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Universidade Do Estado Do Rio De Janeiro Centro De Ciências Sociais

Universidade Do Estado Do Rio De Janeiro Centro De Ciências Sociais

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais

Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Fernando Peres Peixoto

Interpretando o Holocausto

Rio de Janeiro 2013

Fernando Peres Peixoto

Interpretando o Holocausto

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, da Univer- sidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Renato Lessa

Rio de Janeiro 2013

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA IESP

P377 Peixoto, Fernando Peres. Interpretando o holocausto / Fernando Peres Peixoto. – 2013. 140 f.

Orientador: Renato Lessa.

Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos.

1. Totalitarismo - Teses. 2. Holocausto judeu – Teses. 3. Ciência Política – Te- ses. I. Lessa, Renato. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Es- tudos Sociais e Políticos. III. Título.

CDU 378.245

.

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte.

______Assinatura Data

Fernando Peres Peixoto

Interpretando o Holocausto

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, da Univer- sidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 18 de março de 2013.

Banca Examinadora:

______Prof. Dr. Renato Lessa (Orientador) Universidade Federal Fluminense

______Prof. Dr. Cesar Guimarães Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

______Prof. Dr. Luiz Eduardo Soares Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

______Profa. Dra. Maria Clara Bengemer Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

______Prof. Dr. Jacó César Piccolli Universidade Federal do Acre

Rio de Janeiro 2013

RESUMO

PEIXOTO, Fernando Peres. Interpretando o Holocausto. 2013. 140 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Políticos e Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

O Holocausto se tornou um tema acadêmico pelas mãos de Hannah Arendt; “As Origens do Totalitarismo”, publicado em 1951, delimitou a reflexão sobre o tema postulando a originalidade de uma ordem política desconhecida da tradição e do pensamento político clássico. O nazismo e o comunismo eram a evidência empírica de uma nova temporalidade, onde o passado, ou a história como mestra da vida no sentido dado ao termo por Maquiavel, era incapaz de lançar qualquer luz sobre o presente. A tragédia dos judeus ela analisou com os olhos de Alexis de Tocqueville e seu modelo de interpretação da revolução francesa, levando- a a arguir para Israel uma condição similar àquela dos aristocratas no Antigo Regime. A nobreza e a judiaria, como a maior parte das vítimas dos soviéticos, foram exterminadas apesar de efetivamente serem impotentes politicamente; o terror como meio de governar suprimiu a antiga distinção de amigo e inimigo e instaurou a ideologia como critério de escolha das vítimas. Curiosamente os críticos de Hannah Arendt e os estudiosos da Shoah – ou a solução final da questão judaica, o jargão nazista para o extermínio – desconheceram a apropriação do paradigma de Tocqueville pela filósofa alemã e a sua assertiva enfática em afirmar a condição única na história dos procedimentos insanos de bolcheviques e nacional- socialistas. Tentaremos aqui preencher este hiato pelo recurso aos estudos antropológicos mostrando ser o assassinato dos mais fracos e impotentes um recurso natural quando os interditos culturais se esboroam, quando a guerra de todos contra todos se torna uma realidade.

Palavras-chave: Totalitarismo. Holocausto judeu.

ABSTRACT

PEIXOTO, Fernando Peres. Interpreting the Holocaust. 2013. 140 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Políticos e Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

In the hands of Hannah Arendt the Holocaust became an academic subject. In "The Origins of Totalitarianism" she defined Nazism and Communism as forms of domination unknown by tradition and classical political thought. Hitler and Stalin were empirical evidence of a new time, where the past, or the historical as the master of life in the sense given by Machiavelli, was unable to illuminate the present. She studied the tragedy of Israel with the eyes of Alexis de Tocqueville: the destruction of the Jews presents the same mechanism present in the suppression of the aristocracy of France. The nobility and the Jews, as well as the Soviet victims, were powerless politically. Totalitarian terror suppressed the old distinction between friend and foe, its ideologies defined who should die. But the great majority of scholars of the Final Solution (the Nazi jargon for the extermination of the Semites) is unaware of Tocqueville's relationship to the German philosopher's interpretation of the insane Bolshevik and National Socialist procedures. This text seeks to fill this gap using anthropological studies and historical analysis showing that the murder of the weak and powerless is a natural resource when cultural boundaries disappear and the war of all against all becomes a reality.

Keywords: Totalitarianism. Holocaust jews.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 6

1 HANNAH ARENDT E ALEXIS DE TOCQUEVILLE: FUNDANDO A NOVIDADE

RADICAL DA REVOLUÇÃO E DO TOTALITARISMO ...... 12

2 INTERPRETANDO A SUBJETIVIDADE TOTALITÁRIA : AS CATEGORIAS DO

JUÍZO, DO MAL RADICAL E DA APARÊNCIA ...... 40

3 MITO E TOTALITARISMO: A LÒGICA SACRIFICIAL COMO NATUREZA DAS

IDEOLOGIAS ...... 78

4 O ANTAGONISTA DAS IDEOLOGIAS: O CONCEITO DE INIMIGO OBJETIVO

VERSUS A NOÇÃO DE INIMIZADA DA TRADIÇÃO ...... 108

REFERÊNCIAS ...... 135

6

INTRODUÇÃO

A teoria da política ganhou um alento desconhecido após a primeira grande guerra mundial com o renascimento da experiência revolucionária no Velho Continente após mais de um século de paz entre as nações e de estabilidade dentro das sociedades. Do congresso de Viena, encerrando as guerras napoleônicas, até agosto de 1914, início da primeira conflagração mundial os conflitos europeus, guerras internacionais e civis, como a de 1848 e a comuna de Paris, ou as lutas da Prússia com a Áustria e a França, assim como a guerra da Crimeia ou a luta dos gregos por sua independência, foram episódios localizados e rapidamente resolvidos. A revolução americana de 1776 e a crise do Ancién Regime de 1789 já de há muito haviam sido incorporadas aos currículos escolares como eventos históricos e tanto os Estados Unidos quanto a França, apesar de suas diferenças, muitas vezes gritantes, haviam desembocado em sociedades relativamente abertas e democráticas marcadas pela universalização do mercado e da franquia plena na participação política. A instabilidade renasceu generalizada em 1917, ao fim da Primeira Guerra Mundial, produzindo uma nova onda revolucionária, dessa vez multifacetada em tonalidades distintas e antagônicas, a esquerda e a direita do espectro político; ambas se apresentaram como novidade quando comparadas com os experimentos políticos até então conhecidos e, em meados da primeira metade do século XX, ambas as vertentes já haviam se institucionalizado em Estados e se inserido no concerto das nações europeias e tanto a ordem nacional-socialista da Alemanha hitlerista quanto a União Soviética de Stalin, pareciam ser o futuro da Europa após a crise de 1929. A revolução bolchevique de outubro de 1917 fez do antigo império tzarista uma nova ordem social, assim diziam seus fundadores à opinião pública do mundo. Alardeando ter invertido a pirâmide de classes, a recém-criada república soviética apresentou-se ao mundo como o futuro natural da humanidade, na qual a aliança das classes produtoras, o proletariado e o campesinato, simbolizada na cruz(amento) da foice e do martelo, prometia acabar com a – tão antiga quanto o homem – exploração e a opressão do ser humano pelo seu semelhante e corrigir o equívoco histórico de uma produção coletiva e uma apropriação privada presentes para o marxismo em todas as formações sociais conhecidas até então, excetuadas é claro, o mundo primitivo com seu comunismo espontâneo, conforme imaginavam os arautos do socialismo científico, Marx e Engels. A única prova histórica, até então disponível, para pensar a exequibilidade de uma ordem sem classes veio graças ao descobrimento da América 7

e das suas comunidades indígenas, responsáveis por dar um mínimo de fundamento empírico e respeitabilidade teórica ao sonho de uma sociedade igualitária presentes nas esperanças utópicas do Velho Continente, independentemente das antigas expectativas niveladoras, alicerçadas na escatologia religiosa, presentes no grande surto nivelador das guerras camponesas do século XVI, filhas da Reforma protestante.1 O nazismo com sua cruz gamada, a suástica, compartilhou com o seu arqui-inimigo, o marxismo, o horizonte da igualdade, não aquela do status, do social, mas a da raça, da comunidade de sangue, ameaçada de diluição pelos judeus e seus agentes. Em ambos dominava a perspectiva do nivelamento, da homogeneização, exponenciando a patologia presente na ordem democrática moderna e profetizada por Tocqueville: “Não tenho medo de afirmar que o nível comum dos corações e dos espíritos não cessará nunca de baixar enquanto houver união da igualdade e do despotismo.”2. Distintos e antagônicos quanto a forma, comunistas e nacional-socialistas tinham, portanto, um substrato comum por entenderem terem descoberto o sentido, e o segredo, do movimento histórico rumo a padronização e uniformização dos homens. As utopias totalitárias do século XX reproduziram o padrão dos jacobinos; negarão a religião e qualquer vínculo com o transcendente, todas buscaram o amparo da ciência, seja a biologia para o racismo ou a história e a economia para o socialismo científico. O autoentendimento das ideologias sobre si mesmas, curiosamente, é reiterado nas múltiplas interpretações acadêmicas do nazismo e do comunismo, em que quase todas as análises são unânimes em afastar a religião e a tradição de qualquer responsabilidade pela patologia totalitária e em destacar o vínculo com o século, com uma nova temporalidade histórica e uma nova condição existencial do homem, da tradição revolucionária. O arquétipo da grande maioria destas interpretações foi a obra de Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, na qual o antissemitismo fundado religiosamente, presente ao longo da história da Igreja, e reiterado pela Reforma, é estranho ao nazismo e sua pretensão de legitimar cientificamente o ódio aos semitas. Ocorreram, é claro, interpretações alternativas, nas quais se buscou mostrar laços com o sagrado na proposição das ideologias da supressão do mal no mundo, mas a afirmação de Hannah Arendt quanto a novidade radical do totalitarismo, do seu total distanciamento da tradição, permaneceu intocado. Demandas aparentemente religiosas aparecem no totalitarismo, seja na expectativa de por fim ao sofrimento humano ou em seu projeto de justiça e igualdade. Adolfo Hitler

1 Cf. CLASTRES, Pierre. A arqueologia da violência. São Paulo: CosacNaify, 2004, p. 166 ss. 2 TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Brasília: UnB, 1979, p. 47. 8

ascendeu ao poder na Alemanha prometendo, como Mussolini, seu modelo mais próximo, realizar transformações radicais e, plagiando os bolcheviques, suprimir o conflito entre o capital e o trabalho assim como expulsar para fora das fronteiras do Reich a fonte mesma da discórdia social, os judeus. Para o comunismo, a burguesia e as classes proprietárias dos meios de produção eram os inimigos a serem suprimidos por se apropriarem privadamente, seria melhor dizer, roubarem, o fruto do trabalho produzido coletivamente. Hitler por seu turno falava de um III Reich de mil anos marcado, como a futura sociedade comunista, pela ausência do conflito e da exploração graças à supressão do inimigo natural dos povos, os judeus, a quem ele atribuía os males da civilização e um desejo de domínio universal. Nacional-socialistas e bolcheviques tinham em comum a utopia de uma ordem sem males, a crença em sua realização e a vontade de efetivá-la graças à capacidade de suas respectivas doutrinas de identificarem a fonte do sofrimento coletivo e da disposição de seus respectivos partidos de suprimi-los, por meio de uma vontade política adequadamente organizada. O nazismo compartilhou com o marxismo a ideia de história como luta contínua e a expectativa do progresso como a resultante natural do conflito; acreditavam na reificação do mal na vida social e na possibilidade de suprimi-lo; tinham também no sangue um ódio real contra a sociedade democrática, considerada um biombo por trás do qual se escondiam os verdadeiros antagonistas, à distância do senso comum. As ideologias afirmam ser um logro a aparência da vida social; o totalitarismo relacionará a ideia da objetivação do mal – em um grupo, classe ou raça – com o conceito de hipocrisia: o antagonista está marcado pela dissimulação constante da sua condição e voltado obsessivamente à conquista, ou à manutenção, do poder; por isso os partidos totalitários fundam seu agir político na denúncia da aparência e enfatizam a organização clandestina e desconhecem impeditivos éticos quanto aos métodos de luta; tudo isso é necessário para enfrentar um inimigo escondido sob aparências estranhas ao seu ser e disposto a lançar mão dos meios mais ignóbeis para alcançar seus objetivos. Para Hannah Arendt esses radicais atribuem ao inimigo a sua própria natureza, projetando no outro a sua própria condição; como alguém comentou, Stalin tinha o hábito de atribuir aos seus inimigos os crimes a serem cometidos por ele e seus sicários; há nas ideologias totalitárias a identificação entre a vítima e o algoz, fenômeno observado por Hannah Arendt no livro apócrifo, Os protocolos dos sábios do Sião. Descrito como uma ata de um congresso mundial dos líderes judeus, exaustivamente apresentado e reproduzido aos milhões por Adolfo Hitler e pelo movimento nazista como evidência empírica e irrefutável do anseio da sinagoga pelo domínio dos povos. Na verdade os “Protocolos” expressavam os 9

métodos e os mecanismos organizacionais dos nazistas e dos movimentos antissemitas em geral. A relação mimética estabelecida pela lógica totalitária com o inimigo é comum às ideologias e será apresentada como uma das provas da singularidade deste fenômeno político. O III Reich e a União Soviética não se adequaram a antiga noção de tirania do pensamento político clássico, em que a rivalidade política tinha um fundamento real e a inimizade nascia de interesses e paixões factíveis. O inimigo para o pensar totalitário independe de suas atitudes, é definido pela ideologia a expensas de seu comportamento real: seu potencial de infligir dano nasce da natureza, da biologia, da raça, de um atavismo irrecuperável, como foi o caso dos judeus. Esta lógica levou Hannah Arendt a elaborar o conceito de “inimigo objetivo”, para explicar a paradoxal realidade dos campos de concentração e extermínio cujas vítimas, em sua esmagadora maioria, eram inocentes de qualquer delito penal ou político. Quando Stalin, durante o “Grande Terror”, enviou arbitrariamente centenas de milhares de pessoas, em sua maioria isentas de terem cometido qualquer infração, para os campos de concentração, muitos deles membros do Partido Comunista, e fuzilou outro tanto, isso não afetava em nada seus seguidores: o dramaturgo marxista Bertold Brecht disse ao filósofo britânico Sidney Hook seu parecer para as maciças execuções: “quanto mais inocentes eles são, mais merecem morrer”.3 O paradoxo totalitário, as milhões de vítimas inocentes, personalizou a singularidade sangrenta da sua existência e fundamentou a crença na originalidade histórica desta forma de governo e do seu discurso teórico, perante os quais as categorias clássicas do pensamento político, herdadas da tradição, emudecem. O horror nasceu quando as ideologias conceberam uma identidade simetricamente invertida, de objetivos e meios, entre os antagonistas, transformados em gêmeos irreconciliáveis, o outro traz em si a impossibilidade do acordo e da convivência, a inimizade torna-se eterna, dada a alteridade absoluta e irredutível da vítima. Independente de qualquer ato ou palavra o distanciamento entre os contendores exige o aniquilamento, a morte física, como recurso necessário e natural dada a total e absoluta diferença entre os antagonistas. Este conjunto de questões será apresentado aqui na seguinte ordem: no primeiro capítulo discutiremos a originalidade da obra de Hannah Arendt para a questão totalitária como resultado direto da apropriação do modelo teórico de Tocqueville, esboçado em sua obra “O Antigo Regime e a Revolução”, na qual procura dar conta do processo de isolamento

3 In Robert Conquest, The Great Terror: a reassessment citado por Anne Applebaum em seu livro Gulag, uma história dos campos de concentração soviéticos. São Paulo: Ediouro, 2004, p. 19. Esta autora recorre a Hannah Arendt e ao seu conceito de “inimigo objetivo” para entender a aparente irracionalidade – frente aos padrões clássicos da política – do mecanismo de repressão soviético, ver p. 35 e ss. 10

da nobreza, da sociedade e do Estado, assim como a sua estigmatização como classe, como precedendo o seu extermínio. Hannah Arendt mostrou a simetria existente entre a nobreza e os judeus e o destino análogo de ambos os grupos considerados por seus inimigos mais como antagonistas no plano da moral e menos como rivais políticos. Apresentaremos ainda os elementos culturais e teóricos, distintivos da modernidade presentes na lógica totalitária com os quais se justifica a crença na condição contemporânea do nazismo e do comunismo. O segundo capítulo tem em seu centro o conjunto de categorias acionadas, em particular por Hannah Arendt, para pensar a ordem totalitária: Juízo, Mal Radical e Aparência. Todos estes conceitos serão discutidos referidos a sua presença na reflexão religiosa, como o conceito kantiano de mal radical, como a máxima má dada pelo livre-arbítrio a si mesmo, presentes já em Santo Agostinho e apropriados por Hannah Arendt para destacar a personalidade única da subjetividade totalitária. Problematizaremos também, histórica e antropologicamente, as categorias “morais” (hipocrisia, querer, mal radical) e políticas (o conceito de inimigo objetivo) usadas para atestar a novidade radical do totalitarismo mostrando como essas configurações da subjetividade e da práxis do agir estiveram no mundo da tradição e estão refletidas nas Escrituras judaico-cristãs. Estudaremos, como caso exemplar, a questão da bruxaria – e da magia em geral – na sociedade europeia e a reação das igrejas cristãs – a inquisição católica e evangélica – contra ela no início da Era Moderna mostrando a inflexão do cristianismo em cristandade, em experiência política, em magia e mito; esta será a conexão posterior da religiosidade ocidental com as ideologias totalitárias do século XX, também filhas da magia e do mito. No terceiro capítulo, aprofundaremos a incorporação da violência pelos cristãos, transformando o cristianismo em experiência mítica e sacrificial com suas múltiplas categorias de vítimas: heréticos, judeus, leprosos e mulheres. A metamorfose da Igreja de perseguida em perseguidora será analisada como consequência de mudanças em sua estrutura institucional em suas relações com o mundo. Trabalharemos com o paradigma de Kierkegaard opondo ética e religião para entendermos esta inflexão, apresentando a questão do martírio como o lugar limite da separação entre religião e política e experiência privilegiada para o entendimento do mimetismo. Esta mudança indica como dentro do cristianismo a repressão política e militar será incorporada à sua religiosidade delineando seu caráter sacrificial e mágico. Finalizando o capítulo discutiremos a experiência mimética e o martírio dentro do universo concentracionário da SS. O capítulo seguinte, reflete sobre o nascimento da inimizade a partir das categorias antropológicas da exogamia e da endogamia aplicadas às relações de nobres e judeus com o 11

mundo na tentativa de explicar o isolamento social e político de aristocratas e hebreus como condição prévia e necessária ao seu extermínio. O nazismo como efeito mimético e perverso do judaísmo absorverá a endogamia como princípio básico de seu movimento com o seu consequente efeito correlato em suas relações com o “inimigo objetivo” e para entender esta definição compararemos a guerra e a inimizade entre povos indígenas com o conflito totalitário utilizando como mediador a ideia de simpatia, categoria presente em Hannah Arendt camuflada no conceito de juízo assim como vincularemos a experiência da ideologia como a expressão contemporânea da idolatria. O capítulo final, poderia ser resumido como uma tentativa de pensar a história como resultado necessário da linguagem, como morada do Ser, como Logos, no sentido dado a ele por Heráclito no qual os homens são aprisionados em uma temporalidade distinta do presente, do aqui e do agora, são prisioneiros do não-ser como se explicita na experiência do ressentimento como sendo uma estrutura de duplos, pertencendo a um tempo pré-sacrificial, o tempo da desordem estruturada simetricamente na indiferenciação, em que o sujeito não vê diferença com o outro. É a perda desta diferença que faz do Outro o duplo do agente totalitário e dele um louco. A linguagem reaparece também quando polemizamos a tentativa de explicar o holocausto como resultante do antissemitismo presente nos Evangelhos, em particular em uma locução presente no texto de São Mateus  considerada por muitos, em particular por alguns padres e judeus, como apócrifa  quando os judeus aceitam sobre si o sangue de Jesus. Esta é a argumentação de Israel para ausentar de si qualquer responsabilidade na execução do nazareno e apontar em uma falsificação uma capacidade de causar dano além de qualquer limite aceitável como procuramos demonstrar recorrendo à lógica da tradição exposta nas Escrituras e no mundo primitivo. Para isso acrescentamos uma reflexão sobre a presença de componentes absolutamente irracionais como sonhos e lendas, por exemplo, e sua capacidade de estabelecerem um prognóstico sobre o mal, antes mesmo da consumação do horror; nosso intuito foi retomar um entendimento sobre eventos desta natureza e problematizar o conceito de vontade, decisivo nas narrativas sobre o totalitarismo. 12

1 HANNAH ARENDT E ALEXIS DE TOCQUEVILLE: FUNDANDO A NOVIDADE RADICAL DA REVOLUÇÂO E DO TOTALITARISMO

A magistral teoria da revolução francesa de Alex de Tocqueville reapareceu com plena virtualidade na obra de Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, para explicar o extermínio dos judeus. Apesar de separados no tempo o fim dos aristocratas e dos hebreus mostra um padrão semelhante: ambos ocorreram em corpos políticos revolucionários nos quais a hipocrisia é a existência e domina a esfera pública, a vida. Da interioridade dos atores ao mundo público, na intersubjetividade, há uma dúvida radical quanto às aparências, a crise é da cultura em seu fundamento. A denúncia da experiência sensorial precedeu o domínio revolucionário e permaneceu como seu modus vivendi, entranhando-se e confundindo-se com a própria revolução, tornando-se a natureza essencial de sua vida política em que a realidade verdadeira do poder é uma dimensão antipública, secreta, inacessível aos sentidos e cuja entrada só é possível pela ideologia. O catecismo dos revolucionários dos séculos XIX e XX apresentava como seu antagonista e inimigo dos povos um poder capaz de plasmar as aparências e tornar inacessível ao senso comum perceber sua natureza por conseguir apresentar como sua, uma imagem contrária ao seu ser. Jacobinos, marxistas e nazistas supunham e acreditavam em uma distinção absoluta entre ser e aparecer no conflito político, essa foi sua contribuição à definição moderna, laica e filosófica, da origem do mal e do sofrimento e dos seus responsáveis, imputando a seus inimigos uma natureza dominada pela hipocrisia, pela dissimulação. Diferindo radicalmente da mentira e do engodo, a hipocrisia existencialmente realiza- se quando o ator confunde-se com a sua máscara, perdendo sua própria identidade. Esta condição anímica do inimigo segundo o ator revolucionário, descrita magistralmente por Hannah Arendt, em seu estudo comparativo das revoluções americana e francesa4, dista léguas da distinção agostiniana do mentiroso, a quem apetece interiormente mentir, distinto por sua vez do embusteiro, o mentiroso de ocasião5. A ideia de Hannah Arendt aproxima-se do conceito de má-fé, empregado por Sartre para designar quem mente para si mesmo6, ato no qual só na aparência há identificação com a mentira. Na natureza desta subjetividade Hannah

4 ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p. 139 ss. 5 Santo Agostinho. “Sobre a Mentira”. In Obras Completas de Santo Agostinho - Biblioteca de Autores Cristãos, Madrid: l951, p. 549. 6 SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 93. 13

Arendt defrontou-se com uma teoria para dar significação à vida e aos eventos em que a evidência e o próprio senso comum são desconsiderados em favor da imposição da doutrina na essência mesma da percepção; é o efeito esperado da ideologia, conceito decisivo para compreender a grande perversão política da modernidade, a experiência totalitária; como o próprio Hitler declarou a superioridade do movimento, pouco importa se nazista ou comunista, sobre os partidos políticos comuns, reside na infalibilidade da ideologia7. A qualificação do inimigo pelas doutrinas revolucionárias como alienado de sua própria natureza significava colocá-lo fora da condição humana justificando, para seus carrascos pelo menos, a violência insana desencadeada contra aristocratas e judeus condenados à revelia de sua inação, de sua impotência real. A ausência de força e capacidade política entre os nobres e os judeus foi entendida como simulacro a encobrir um poder incomensurável voltado a práticas culturalmente condenáveis da transgressão de tabus e ao crime, dos quais acusavam suas vítimas antes de matá-las8: Maria Antonieta foi acusada de ser uma puta, de cometer incesto, de ser lésbica e agente estrangeira; quanto aos judeus basta lembrar as acusações do pornógrafo nazista Gregor Strasser, editor do principal pasquim antissemita da Alemanha, o Der Sturmer, no qual abundavam referências a assassinatos, rituais de crianças, incesto, profanações religiosas etc. Por considerar a coexistência de uma discrepância real entre a condição de fato da vítima e a sua capacidade de realizar malefícios como seus perseguidores julgavam possível, o arrazoado teórico de Alexis de Tocqueville, apropriado por Hannah Arendt para outro momento histórico, apresentou como resultado de suas pesquisas sobre 1789, Hitler e o Bolchevismo, serem eles eventos exclusivos de uma nova temporalidade, consequência de uma ruptura da tradição, em que o passado não lança mais luz sobre os fatos do presente; por isso ambos não admitem comparar a crise revolucionária “com nada que o mundo tenha testemunhado”9. A ruptura com a tradição gestou as filosofias da história e seus rebentos políticos inesperados, as ideologias e sua esperança na capacidade da vontade humana de “fabricar” uma sociedade ideal e extirpar o vetor do mal pelo extermínio de aristocratas, judeus e burgueses, responsáveis pelas catástrofes modernas: lembremos as acusações dos

7 “Os partidos políticos estão sempre prontos a assumir compromissos, ao contrário do que acontece com as concepções universais (as ideologias). Aqueles entram em acordo com seus adversários, essas proclamam-se infalíveis”. HITLER, Adolf. Minha Luta. São Paulo: Centauro, 2001, p. 341. 8 Para uma descrição do caso francês, ver a obra de SCHAMA, Simon. Cidadãos: Uma Crônica da Revolução Francesa. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, na qual o autor descreve o epíteto de puta dado à Maria Antonieta e a acusação de incesto dirigida contra ela pelos jacobinos, ele reproduz uma gravura, impressa em texto pornográfico, da rainha nua fazendo amor com seu suposto amante; ainda para o caso da rainha ver GIRARD, René. “O Bode Expiatório”. São Paulo: Paulus, 2004, p. 29. Girard observa ser a condição da soberana comum às categorias vitimarias: “ela não só é rainha, como estrangeira”. 9 Tocqueville citado por Hannah Arendt, “Entre o Passado e o Futuro”. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 32. 14

nazistas aos judeus pela deflagração da Primeira Guerra Mundial e de estarem preparando a segunda, também contra a Alemanha. O paradoxal da acusação contra aristocratas e judeus, apontando-os como responsáveis pelo sofrimento coletivo, está na marginalidade real de ambos com relação ao poder político e a sociedade de seus respectivos países; mas foi a própria separação de ambos da realidade do poder e da economia o ventre do estigma e do desejo de exterminá-los10. Mas qual a razão da irracionalidade do nacional-socialismo e dos vermelhos de castigarem inocentes após suprimirem toda oposição? Está na construção ideológica, no reconhecimento de inimigos potenciais, definidos por sua origem racial e social; Hannah Arendt procurou sintetizar o fenômeno na categoria de “Inimigo Objetivo”, apresentando o fato como demonstrando a modernidade de uma inimizade nascida ao arrepio dos atos das vítimas. Mas e quanto a massacres como o dos cristãos na Antiguidade pelos romanos; ou das bruxas, leprosos e judeus na Idade Média e moderna, eventos ocorridos ainda sob a guarda da tradição? Bem antes da Modernidade, nos primórdios dos tempos, nas narrativas míticas, também se encontra o absurdo das vítimas inocentes; nas manifestações culturais da Antiguidade como as Tragédias gregas – o caso de Édipo é o mais famoso – ou ainda nas peças de William Shakespeare e nas Escrituras Judaicas e nos Evangelhos cristãos, em que pelas histórias de José, Abel, Moisés e Jesus a denúncia da imolação dos justos é uma constante em praticamente todos os seus textos; para uma visão geral da presença da vítima inocente na cultura ocidental basta ver a obra de René Girard11. O Antigo Regime e a Revolução e as Origens do Totalitarismo desenvolveram temas também presentes na antropologia da crise nas sociedades primitivas e do recurso ao sacrifício, como rito político, demiurgo da ordem e da paz e antídoto contra a desagregação das sociedades tradicionais, como expostas por René Girard, seguindo as pegadas de Marcel Mauss e Henri Hubert. Escrito um século atrás, o Essai sur la Nature et la Fonction du

10 Cf. Arendt, Hannah. Los Orígenes del Totalitarismo. Madrid: Alianza Editorial 2002, p. 90 ss. Na edição brasileira deste texto, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 25, Hannah Arendt justifica sua opinião: “A perseguição de grupos impotentes ou em processo de perder o poder, pode não constituir um espetáculo agradável, mas não decorre apenas da mesquinhez [...] O que faz com que os homens obedeçam ou tolerem o poder e, por outro lado, odeiem aqueles que dispõem de riquezas sem poder é a idéia de que o poder tem [...] uma utilidade geral. Até mesmo a exploração e a opressão podem levar uma sociedade ao trabalho e ao estabelecimento de algum tipo de ordem. Só a riqueza sem o poder [...] são [...] revoltantes, porque nessas condições desaparecem os últimos laços que mantém relações entre os homens. A riqueza que não explora deixa de gerar até mesmo a relação existente entre o explorador e o explorado.” 11 Para a lógica das narrativas míticas ver GIRARD, René. A Voz Desconhecida do Real: uma teoria dos mitos arcaicos e modernos. Lisboa: Instituto Piaget, 2003, p. 23-83; ver também, Eu Via Satanás Cair do Céu como um Raio. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 71-135; e GIRARD, op.cit., p. 33-133; para Antiguidade ver A Violência e o Sagrado. São Paulo: Unesp/Paz e Terra, 1990, p. 91-181; para Shakespeare, ver Shakespeare: Teatro da Inveja. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 379ss, para as Escrituras Hebraicas e Cristãs valem estes mesmos textos. 15

Sacrifice12 de Mauss foi amplificado com a teoria do “bode expiatório” de René Girard, para quem a imolação de homens funda a vida social, tendo esses rituais, em comum com a experiência totalitária a inocência das vítimas, apresentadas por seus executores como culpadas da desordem e do caos. Girard escreveu muito após a publicação do Antigo Regime e a Revolução e não cita nem Tocqueville nem Hannah Arendt em seus textos; mas entre estes três autores há uma correspondência indireta, mas real, quanto a condição paradoxal da ausência de culpabilidade das vítimas, atestada a posteriori, contrastando com a afirmação da sua responsabilidade pelo mal por seus carrascos. A aleatoriedade da vítima apresentou-se também em Thomas Hobbes, em sua antropologia política, associada a uma teoria da crise da cultura: a transgressão ao universalizar-se e tudo permitir realiza a igualdade absoluta, condição existencial da guerra civil, na qual a desordem da comunidade estende-se à interioridade, ao conflito subjetivo de cada um consigo mesmo; a guerra no mundo dos homens transforma-se em luta consigo mesmo dada a possibilidade de todos serem vítimas e estarem sob o governo do medo e daí ser a vida do homem, neste estado, “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”. O fim do estado civil e da ordem política, envolve uma ameaça geral sobre todos, sem exceção, assim como uma contrapartida espiritual, a desordem interior. Quando cada um radicaliza sua individuação a expensas de outro, agem todos de uma mesma forma, tornam-se assim um, massa, ordem entrópica, autodestrutiva; é a esquizofrenia como estado coletivo, quando a vontade de cada um diz para si mesmo estar se realizando plenamente ao agir conforme suas próprias determinações, sem limites. Objetiva e subjetivamente assim é a guerra de todos contra todos, potencialmente todos podem sofrer suas consequências; existencialmente, onde se unem interioridade e exterioridade, ela implica conviver com um sentimento, o medo, nada edificante e inimigo de nós mesmos e de qualquer sociabilidade13. Na antropologia contemporânea de René Girard o homem como lobo do homem dominou a humanidade em seus primórdios, a este estado retornamos quando a ordem se esboroa. O mito relata a superação desta condição através do Sacrifício como primeira ação política e violência fundadora, origem da religião e da sociedade, para (re)estabelecer as

12 MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. São Paulo: CosacNaify, 2005, p. 98: “O Sacrifício acabou então por se revelar como a essência e a origem dos deuses, o seu criador. E é também o criador das coisas, pois é nele que está o princípio de toda vida”. Para o mito no Sacrifício está a origem de tudo, posição aceita sem restrições por René Girard. Hannah Arendt tocou, sem aprofundar, esta mesma questão, diz-nos ela, em Sobre a Revolução, op cit., p. 68: “A ênfase de Maquiavel sobre a violência [...] Era o resultado direto da dupla perplexidade em que ele se encontrou teoricamente, e que mais tarde passou a ser uma perplexidade muito concreta a assediar os homens das revoluções. A perplexidade consistia na tarefa da fundação, no estabelecimento de um novo início, que, enquanto tal, parecia exigir violência e violação, repetição, por assim dizer, do velho crime lendário (Rômulo matou Remo, Caim matou Abel)”. 13 Desejo e medo são as categorias decisivas do discurso de Hobbes, ver Leviatã, São Paulo: Abril (coleção Pensadores), 1983, parte I, cap.6, p. 32 ss. 16

fronteiras da Lei, da Cultura – parentesco, amizade etc. – ameaçadas de serem suprimidas por uma violência mimética permanente e contagiosa em que os homens desejam o desejo do próximo fazendo a volição de cada um manter-se mediada pelo outro e exercer-se sem qualquer obstáculo fomentando a guerra de todos contra todos, este é o estado natural da humanidade anterior a qualquer laço comum e para onde voltam as sociedades quando o conflito se universaliza e suprime todas as proteções culturais14. A superação do estado de natureza, presente nas teorias contratualistas, reaparece na obra de René Girard no pacto fundador alicerçado no sacrifício e em sua vítima. O acordo entre os homens, origem da sociedade, é selado com o sangue de inocentes, de vítimas expiatórias. Os relatos míticos segundo Girard, como os estilizados na Tragédia grega apontam um estado de caos, de conflito generalizado, de absoluta indiferenciação  onde são desconhecidos quaisquer limites e as transgressões, como o incesto, parricídio e coisas do gênero, são a norma; supera-se a desordem exigindo a escolha de um inocente, definido aleatoriamente, apontado como responsável pelo conflito, transformado agora em bode expiatório a ser sacrificado para o estabelecimento da paz, da sociabilidade e da ordem15. A teoria política clássica – Hobbes e Rousseau – entendeu a superação deste caos primevo por um ato em que a vontade, contrariando a si mesma, obedece à lei formulada pelo ego em livre consentimento; a cultura nasce quando a máxima boa dada pelo livre-arbítrio a si mesmo transforma a natureza da volição tornando-a submissa ao princípio da utilidade e subjugando o irracional, o desejo desmedido, fonte da desordem; o juízo para estes pensadores funda a ordem. A utilidade, como princípio de julgamento, guia a vontade para a superação da desordem, sendo a qualidade do ato em si uma experiência fundada no contingente como todo juízo o é16. O resultado imediato da decisão é um estado anímico e intersubjetivo: a superação do medo da morte e o nascimento da sociabilidade como instituições, como cultura; o juízo agora ao produzir segurança e ordem, harmoniza o sujeito com seu julgamento; para Kant o bem-estar consigo mesmo é o resultado natural de um juízo bem formulado17 e em Hobbes o raciocínio condutor da superação do estado de natureza conduz-nos à paz, à ordem civil e política.

14 O mecanismo mimético é analisado por René Girard em toda sua obra, para uma exposição mais detalhada ver Um Longo Argumento do Princípio ao Fim: diálogos com João Cesar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello. Rio de Janeiro: Topbooks, sem data, capítulo 2, p. 81 ss. 15 GIRARD, René, O Bode Expiatório, op.cit., capítulos 2, 3 e 4. 16 “Quando alguém transfere seu direito ou a ele renuncia, fá-lo em consideração a outro direito que reciprocamente lhe foi transferido, ou a qualquer outro bem que daí espera. Pois é um ato voluntário, e o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos”. Hobbes, op. cit., p. 80. 17 Cf. ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Editora UFRJ, 1992, p. 378. 17

A experiência do sentir-se a si mesmo manifestada em cada julgamento mostra o parentesco desta faculdade com a esfera do gosto, estado resultante da fruição estética. O conceito de obra de arte em Kant, como o objeto destinado a produzir o prazer desinteressado situa o juízo enquanto faculdade intimamente vinculada ao gosto, à experiência consigo mesmo por definição. A definição de juízo pode ser facilmente entendida se pensarmos a proposição de Kant exposta em sua Crítica do Juízo, na qual o contrário do belo não é o feio, mas o repugnante18. Hannah Arendt relaciona o prazer interior, resultado natural da práxis do juízo, com a esfera política quando a decisão do sujeito exige a possibilidade de comunicá-lo, de apresentá-lo publicamente19. O exemplo também ilustra a relação entre o juízo e a subjetividade, seja o medo da morte ou a satisfação consigo mesmo neles está a moderna experiência da sensação qua sensação20. O medo da morte, sentimento natural entre aqueles submetidos à desordem, em que cada homem – parentes, filhos, amigos – pode vir a ser um potencial executor desaparece por um ato de juízo; consentindo na formação do poder soberano o homem abdica do uso da violência e transfere o direito de vingança. Este julgamento tem sua legitimidade atestada pela sensação resultante da escolha, fundada na experiência de cada um consigo mesmo, mecanismo necessário para se por fora do mimetismo geral e implementar a paz como consenso. Por isso Hobbes recomenda suspender a ideia do indivíduo como juiz “das boas e más ações” e, como consequência lógica, suprimir a ideia “de que é pecado o que alguém fizer contra sua própria consciência”, pois segundo ele quando juízo e consciência são sinônimos, aí se encontra a origem mesma da guerra civil21. O contexto histórico de Hobbes é o das grandes guerras religiosas nas quais os diferentes partidos justificavam suas ambições no estado interior de seus integrantes, na subjetividade de cada um deles, em suas convicções no sentido nietzschiano: a crença em estar de posse da verdade. Para suprimir os conflitos religiosas dos séculos XVI e XVII, nos quais os antagonistas se acusavam mutuamente de hipócritas, o raciocínio político do século XVII assim como o público da Ilustração, no século seguinte, afirmou a paz associando-a ao Estado, em sua forma monárquica e absolutista, determinando a emergência da moderna

18 Segui em linhas gerais as reflexões de Hannah Arendt sobre A Crítica do Juízo de Kant presente em sua obra final A Vida do Espírito, op.cit., p. 371 ss. Arendt deixa clara a relação do aprazeiramento consigo mesmo com a esfera política quando da decisão do sujeito de comunicá-lo, de apresentá-lo publicamente, ver p. 378. O aprazeiramento consigo mesmo, fruto de um julgamento acertado, é uma experiência moderna na qual se enfatiza a “[...] sensação qua sensação como mais real que o objeto sentido e de qualquer modo, o único fundamento seguro para a experiência” in ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro, op.cit., p. 83. 19 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito, op. cit., p.371. 20 “[...] consequentemente se os fenômenos são os princípios para conhecer as outras coisas, é preciso dizer que a sensação é o princípio para conhecer os próprios princípios e que deles deriva toda ciência. Para indagar das causas da sensação não se pode, portanto, partir de outro fenômeno que não seja a própria sensação”. HOBBES, Human nature and de Corpore Politico. UK: Oxford, 1989, 25,1. 21 Hobbes, Leviatã, op, cit., p. 193. 18

forma da política e sua superioridade sobre a religião; mostrando as confissões cristãs como a fonte do mal, a política forçou o seu confinamento na esfera privada exigindo dos homens a adequação de suas ações às leis do soberano e não às determinações da consciência22. Os fanáticos Católicos e Protestantes dos primeiros séculos da Era Moderna têm em comum com as ideologias contemporâneas o paradoxo de serem forças a querer o bem quando praticam o mal, como foi o caso do nazismo e do comunismo. Podemos por isso situar uma origem comum tanto para a multiplicação das seitas nas guerras de religião quanto para as ideologias contemporâneas, todas foram consequências históricas da crise das aparências e da universalização da experiência do juízo e da autonomia individual na Europa moderna; por isso Lutero, por ajudar a universalizar a experiência do juízo, foi nomeado por Kierkegaard o primeiro dos revolucionários por entronizar o público no lugar do Papa23. Quando as culturas do passado e do presente se desagregam, os homens tornam-se iguais, colocam-se em um mesmo patamar; quando desaparece a tradição – os vínculos unificadores do costume – e a ordem, o conflito e a guerra tornam-se a norma. A desordem absoluta, o todos contra todos, é o ventre do mito, como uma religiosidade política, centrada na busca da ordem e por isso fonte do religioso e da política como termos intercambiáveis, como instituições, como sociedade; esta proposição circunscreve a nossa investigação em fronteiras teóricas e empíricas claras ao afirmar um elemento comum a crise das comunidades antigas e os argumentos presentes no Antigo Regime e a Revolução e na leitura do extermínio dos judeus por Hannah Arendt. Pela analogia dos conceitos de Tocqueville e Hannah Arendt com o quadro teórico de René Girard sobre o Sacrifício e a superação da desordem pelos povos primitivos observamos a crise revolucionária compartilhando diversos elementos comuns aos da crise das sociedades tradicionais. Por isso falamos da presença de linhas de aproximação entre o fenômeno revolucionário atual e os conflitos responsáveis pela introdução das práticas sacrificiais nas sociedades tradicionais; por esta comparação é possível pensar o conceito de crise como a abertura natural para o sagrado. Entre a teoria esboçada por Hobbes para compreender a guerra civil na Inglaterra e a de Tocqueville para a débâcle do Antigo Regime há uma problemática similar, ambos estudam o mesmo fenômeno em sociedades diferentes. Por não associar revolução e progresso, Tocqueville pôde comparar a Reforma Protestante e a crise europeia dela resultante com os acontecimentos em sua pátria, e na Europa, a partir de 1789; em ambos os casos a

22 A categoria “Políticos” significava no século XVII os partidários da monarquia e do Estado em oposição aos “crentes” das diferentes confissões religiosas em conflito. Ver KOSELLECK, Reinhardt. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto, 1999, p. 19ss. 23 KIERKEGAARD, Sören. Diario Intimo. Barcelona: Planeta, 1989, p. 399. 19

supressão das fronteiras e a universalização do ideário político, foram a consequência natural da inflexão cultural, de uma falência dos valores dominantes24. Para a França ele percebeu o nascimento da vítima: o enervamento completo da condição aristocrática e a deterioração absoluta de suas relações com o Estado e a sociedade desnudam as razões do profundo ódio e da violência insana do povo contra seus antigos senhores. A apropriação da teoria de Tocqueville por Hannah Arendt levou-a a debitar aos judeus uma condição similar àquela da nobreza, mas isto escapou aos críticos da pensadora; recentemente chegou-me as mãos um conjunto de artigos publicados sob o título Hannah Arendt in Jerusalem, no qual nenhum dos 22 autores ali presentes destaca o papel da apropriação da hipótese de Tocqueville para pensar o extermínio dos judeus tampouco aventa a oportunidade do recurso à antropologia para mostrar a presença da similaridade da crise em sociedades contemporâneas com o mundo pré- moderno25. O desconhecimento da reflexão antropológica sobre o mundo primitivo certamente foi responsável por dar ao fenômeno revolucionário a interpretação original e duradoura, mantida até hoje relativamente inexpugnável em seus pressupostos quanto a sua filiação à modernidade da cultura onde a revolução e o totalitarismo se manifestaram e dos laços desses eventos com a experiência do público moderno; para a reflexão histórica em geral, aceitou-se a ilação do século XIX, compartilhada por Tocqueville, Marx e Hannah Arendt, onde a revolução é dissociada da religião e da tradição. O jacobinismo, o nazismo e o bolchevismo são ideologias, ideias usadas para fins políticos nascidos do mundo moderno e do seu público crítico26 no qual a comunicação acredita poder exercer-se despojando o juízo, a crítica propriamente, do seu antigo significado em que ao veredicto sucedia naturalmente a crise, agora a universalização do julgamento realiza-se dissociando o seu exercício de suas consequências. Essa é a experiência pública necessária à existência do social, na qual as necessidades vitais, os bens necessários à vida, se tornaram publicamente relevantes e o poder se transformou em administração. Filhas do progresso, das filosofias da história e do social, as

24 O capítulo III do livro primeiro do Antigo Regime e a Revolução chama-se: “De como a Revolução Francesa foi uma revolução política que se processou a maneira das revoluções religiosas e por quê”. 25 ASCHHEIM, Steven E. (org.). Hannah Arendt in Jerusalem. USA(cidade?): University of California Press, 2001. Dos 22 artigos presentes nesta obra, três tratam exclusivamente da obra de Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo e, em nenhum deles a apropriação da lógica de Tocqueville é questionada. 26 “Crítica” é aqui a sua acepção moderna, a da Ilustração, em que seu significado é despojado da ideia da crise, presente na antiga acepção grega do vocábulo, agora o termo é tão somente a ideia de veredicto dissociado agora de suas consequências, cf KOSELLECK, Reinhardt op.cit., cap. I e II; e ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo, op.cit., p.189 para a emergência das ideologias como teorias capazes de transcender a experiência da opinião. Tocqueville já descrevera a irresponsabilidade – quanto às consequências – do debate público da Ilustração, ver parte III do Antigo Regime e a Revolução, ele viu nas guerras religiosas da reforma experiência similar a da revolução francesa; não estava sozinho, outro contemporâneo seu, Sören Kierkegaard já denunciara Lutero por entregar ao público o cetro de Pedro; Kierkegaard, op.cit., p. 399. 20

ideologias reproduzem a cultura, o senso comum de nossa civilização, em que a mutação permanente de tudo em direção ao aperfeiçoamento resulta da associação da natureza e da história27 consorciadas de forma definitiva pela ciência e pela tecnologia, filhas inesperadas do pensar com o social e potências do ideal contemporâneo de produtividade. A Cultura de nosso tempo existe e se concebe como um vir-a-ser contínuo e apesar das diferenças entre as suas dimensões todas existem como processo: o pensar crítico e a ciência experimental, a economia e a política e, paradoxalmente, na religião, no ascetismo protestante, no qual o “conceito da Fé triunfa sobre o conteúdo da Fé”28, endossando a hipótese da “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” quanto a relação existencial29 estabelecida nesta vivência e perpetuada no ideal contemporâneo de ação; em que o agir é destituído de qualquer conteúdo, é um obrar correto. A ideia de movimento, comum as diferentes correntes totalitárias, é assim parte da nossa cultura, do nosso senso comum. Ao contrário dos Antigos, onde a Ordem Política significava o exato oposto da Natureza, o comunismo e o nazismo concebem a sociedade e a natureza submetidas ao princípio do movimento, rompendo a antiga e respeitada fronteira dos gregos e romanos entre o mundo dos homens e a ordem natural em que a cultura enquanto instituição possibilitava permanência à ação e à palavra quando únicas e relevantes em seu significado e sentido. Premiar o singular e o excepcional30 por intermédio da política é criar na história o âmbito especificamente humano da liberdade, por isso na Revolução americana, nos federalistas, a função do governo é regular a busca da distinção31. A natureza em permanente mutação, destituída de sentido e marcada pela eterna recorrência tem na durabilidade um estado estranho ao seu ser. A pólis contrariava a uniformidade e o eterno vir-a-ser do ambiente natural pela hierarquia do mérito no mundo dos homens e pela distinção perpetuada na estabilidade e na duração do corpo político e seu ideal

27 Cf. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo, op. cit., p.189ss e 527; sobre a relação entre as ideologias e a ciência ver, GAY, Peter. O Cultivo do Ódio. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, caps.1, 2 e 3 e, “A Luta Contra os Fracos”, de Edwin Black, SP: Girafa, partes I e II; sobre o conceito de social em Hannah Arendt ver, A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 47ss, do meu ponto de vista a tentativa mais séria e bem-sucedida, depois de Tocqueville e Weber, de compreender conceitualmente a radical singularidade de nossa sociedade. 28 A proposição é do principal interlocutor de Weber no protestantismo, Ernest Tröeltsch, e está em sua obra El Protestantismo y el mundo moderno. México: FCE, 1967, p. 104; a mesma questão está em Weber, na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004 (edição crítica comemorativa do centenário da publicação do texto), em suas últimas páginas, quando descreve as consequências do moderno ascetismo e sua condição de processo presente na ideia de vocação. Ver também ARENDT, Hannah, A Condição Humana, op. cit. p. 307ss. 29 O conceito de Existência é a interseção do Eterno com o presente; a proposição é de Kierkegaard (Diário Íntimo, op. cit.) reescrevendo, segundo me parece, o enunciado de Platão quanto ao tempo como a imagem móvel do Eterno. Hannah Arendt definiu existência como realidade, o dado manifesto aos sentidos de todos; cf. A Condição Humana, op. cit., p. 59. Em suas duas expressões o conceito retém a ideia de percepção, de relação com a aparência, questão decisiva nesta narrativa. 30 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro, op. cit., p. 50 e A Condição Humana, op. cit., p. 205ss. 31 As palavras são de John Adams, segundo presidente dos EUA e estão na obra de Hannah Arendt, Sobre a Revolução, op. cit., p.19. 21

de impedir o juízo deletério do tempo, o esquecimento, sobre os grandes atos e palavras. Hoje a história e a cultura entendem a si mesmas como processo, é o pensar da razão crítica e da ciência experimental onde a verdade é tão somente aproximação, possibilidade; o mesmo ocorre nas práticas sociais submetidas ao seu princípio, isto é, o conjunto da atividade humana como processo se organiza, abdica-se da estabilidade e da permanência dadas pela tradição; hoje o tempo é experenciado como progresso, processo portanto32. A lógica totalitária também apresenta a natureza e a sociedade como “processos”, atestando a condição moderna das Ideologias e do seu parentesco com o senso comum de nosso tempo. Adolf Hitler estabeleceu a modernidade da sua doutrina quando separou seu antissemitismo, fundado na ciência, dos antigos preconceitos de origem religiosa33. Em Hannah Arendt o Totalitarismo como forma de governo não tem precedentes históricos, a tradição o desconhece; nele inexistem fronteiras entre o mundo público e a esfera privada, assim como entre natureza e história Ao promover o isolamento dos homens, sua atomização, a ordem totalitária suprime a liberdade mesmo em seu sentido negativo, na esfera privada, mantida até então intocável nas experiências clássicas e modernas de tirania e ditadura34. É a lógica do Terror; diferente do domínio fundado no medo, o “princípio de ação” da tirania – no sentido atribuído a ele por Montesquieu  assim como a virtude é o princípio a animar as repúblicas e a honra, as monarquias. O medo isola cada um de todos os outros e interdita qualquer forma de associação, mas resguarda um grau de autonomia, interior, recompensando de alguma maneira todo aquele conformado com sua própria impotência; nesse governo, diz-nos Montesquieu, “Cumpre [...] que o medo aniquile todas as coragens e extinga até o menor sentimento de ambição”, onde as leis devem ser mantidas para julgar o povo, mas “os poderosos devem ser julgados pelo arbítrio do príncipe”35. O Terror totalitário tem outra natureza, ele procura suprimir a liberdade não só em sua dimensão pública, mas a liberdade enquanto tal, buscando a adesão absoluta da interioridade pela destruição sistemática dos limites entre o público e o privado e de todo e qualquer espaço ou instituição

32 Ver A Condição Humana, op. cit., p. 307ss. 33 HITLER, Adolf, Minha Luta, op. cit., p. 91ss; também na última biografia do líder nazista, escrito pelo historiador britânico KERSHAW, Ian, Hitler. Nova York: WWNorton, 1997, p. 78 e 125, esta premissa permanece . Ver também o impacto das ciências naturais, em particular o darwinismo, nas ideologias do século XIX em Peter Gay, op.cit., p.104 ss; sobre Darwin ver também, Origens do Totalitarismo, op. cit., p. 515. 34 ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo, op. cit., p. 372, a este respeito ver também o artigo de I. BERLIN, I., Dois Conceitos de Liberdade. In Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p.226ss. 35 MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p.65. 22

factível de estimular a individualidade e a ação autônoma, tornando cada indivíduo não só impotente, como nas tiranias, mas supérfluo36. Por estas razões, ao comparar o nazismo ao tradicional preconceito religioso cristão contra os judeus, Hannah Arendt conclui pela descontinuidade, a completa ausência de parentesco entre um e outro, e filia Hitler e Stalin a contemporaneidade em ilação ainda dominante em quase todos os estudos contemporâneos sobre o Totalitarismo, como os de Zygmunt Bauman37 e sua observação sobre a burocracia do extermínio ter sido guiada pelo moderno critério da produtividade, a rigor uma derivação da noção de processo, evidência portanto da modernidade do fenômeno. Para Hannah Arendt, na senda de Tocqueville, é na secularização, na moderna experiência política e social do Ocidente, no Estado e no mercado, que estão as raízes do fenômeno revolucionário, que governa uma racionalidade absolutamente diferente daquela da tradição em geral e da religião em particular38. Quando Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento39, mostraram como o governo da cultura pelo princípio da racionalização crescente da Ilustração transformou a razão em mito, atualizaram a observação de Alexis de Tocqueville40, reafirmada por Hannah Arendt41, sobre a presença na política moderna de um fenômeno novo responsável por inverter o ideal de ação clássico no qual o agir estava separado do resultado42; agora a ação reclama para si a utilidade e a eficácia, os mesmos valores a presidirem a moderna relação com o mundo natural e a fabricação de objetos. A técnica instalou-se nos negócios humanos, região onde a Filosofia antiga considerara como impermeável à razão dada a sua irracionalidade congênita, consequência do predomínio das paixões nos negócios humanos43. Bauman segue Tocqueville e Hannah Arendt quando descreve o princípio da fabricação no esforço do totalitarismo de construir a humanidade perfeita e erradicar o mal do mundo, pretensão desconhecida das diferentes religiões universais da história humana, em especial no

36 “Rule by Terror reveals not merely the impotence of the ruled, but their sheer superfluousness. This is the differentia specific of totalitarian power”, cf. VILLA, Dana R. “Totalitarianism, modernity, and the tradition”. In Hannah Arendt in Jerusalem, op. cit., p. 126. A questão originalmente está no último capítulo de Origens do Totalitarismo, op. cit. intitulado “Ideologia e Terror”. 37 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 33, para Bauman a burocracia do extermínio foi organizada segundo padrões industriais, i.é., guiada pelo moderno critério da produtividade. 38 Cf. Arendt “se a revolução [...] provoca o nascimento de um novo domínio, o secular [...] então é a própria secularização que constitui a origem da Revolução”, in Sobre a Revolução. Lisboa: Moraes Editora, 1971, p. 26. Tocqueville, referindo-se aos preâmbulos da crise de 1789, escreveu: “[...] tudo que vive, age e produz é de origem nova, mais do que nova – oposta”, O Antigo Regime e a Revolução, op. cit., p. 63. 39 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, l991. 40 Tocqueville, Alexis de, op. cit. livro terceiro. 41 ARENDT, H. A Condição Humana, op. cit., p. 232 ss. 42 Jesus pediu para a mão esquerda não olhar para os atos da direita. Na tradição oriental, no hinduísmo, são considerados infelizes todos aqueles que agem visando resultados, ver o clássico hindu, O Baghavad Gitã, São Paulo: Prema Editora, 2003, p. 57; e CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Atenas, 2000, p.159. 43 Cf. Arendt, A Condição Humana, op. cit., p. 197-198. 23

judaísmo e no cristianismo. As escrituras de Israel – e aí incluo o Evangelho e o Cristo – mostram a absoluta incompatibilidade entre o mundo e o divino e são as palavras do próprio Senhor ao profeta Samuel para convencê-lo a ungir Saul rei de Israel, ser desejo dos judeus serem governados por um rei mortal como eles em vez de o serem pelo próprio Deus, conforme contado na belíssima passagem do Livro dos Reis; mais tarde Jesus reafirmaria o Antigo Testamento: “meu reino não é deste mundo”, graças a este enunciado, testificado por sua paixão, o martírio marcou os três primeiros séculos do cristianismo. A inflexão posterior do clero, negando a imitação do Cristo, seu desejo de submeter o mundo à religião por meios estranhos aos Evangelhos, significou a constituição da Igreja como comunidade política, onde até mesmo o martírio mudou de natureza, tornando-se apanágio dos defensores da violência, dos matadores. Fazer da Verdade, por intermédio dos filósofos ou do clero, o governo dos homens e da sociedade é levar política e religião a serem categorias cambiáveis, termos contidos um no outro, é a forma da tradição, do governo do costume, em que “tudo se mistura” como notou Marcel Mauss44. Ao longo da história ocorreram tentativas de mudar o costume, mas não de viver sem ele e até nossa época qualquer sociedade sem ethos, mores, sem costumes comuns e dominantes era impensável. Nosso tempo tornou soberana a vontade de cada um quanto ao costume, um paradoxo! Tal ato equivale a suprimir a subordinação da vontade e do mundo à autoridade, à transcendência, fundamento da Tradição. Verdade e mundo se separaram para a modernidade tornar-se a experiência do pluralismo e do Estado em que só se reconhece relevância à ideia de verdade na esfera privada e onde os fins éticos últimos são decididos no interior da casa e da consciência. As franquias da pluralidade religiosa e da diversidade de valores na vida social, intrínsecas e necessárias à ordem moderna45, nasceram da necessidade de pôr fim as guerras civis religiosas dos séculos XVI e XVII46 nas quais os contendores ao se arvorarem em autoridade, fonte do costume, tornavam-se os promotores do mal como Hobbes nos mostra no Behemoth e no Leviatã47. Quando o Iluminismo proclamou a soberania do público sobre todos os âmbitos da existência acreditou na possibilidade histórica da ordem perfeita; como sociedade na qual se

44 MAUSS, Marcel, “Ensaio sobre a dádiva” (texto completo), in Marcel Mauss: Sociologia e Antropologia, São Paulo: CosacNaify, 2003, p. 187. 45 “O mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite uma perspectiva”, ARENDT, Hannah, A Condição Humana, op. cit., p. 68. 46 Cf. HOBBES, Thomas. Behemoth ou o Longo Parlamento. Belo Horizonte: EDUFMG, 2003; ver também KOSELLECK, op. cit., caps. I e II. 47 Segundo Hobbes, “Os sedutores eram de várias espécies... se diziam de Cristo e às vezes, em seus sermões ao povo, embaixadores de Deus. E de Deus pretendiam ter o direito a governar cada um de sua paróquia e, através de sua assembléia, a nação inteira”, in Behemoth, op. cit. p. 32. Em seu Diálogo entre um Filósofo e um Jurista. São Paulo: Editora Landy, 2004, p.135 ss, Hobbes define heresia como “palavra que não significa outra coisa, senão seguir uma opinião.” 24

argumentava para fazer a razão prevalecer em todos os âmbitos, o mundo público da Ilustração fundamentava-se no otimismo quanto à natureza humana da antropologia filosófica de Kant e Rousseau e sua fé no domínio da Razão no homem, em oposição ao ceticismo das Escrituras judaicas e cristãs; essa foi a causa da excomunhão do Émile de Rousseau pelo arcebispo de Paris por este livro enunciar um homem naturalmente bom, ser estranho a Bíblia onde o mal está em nós, em nossa natureza48. Sem Kant e Rousseau, sem a crença da Ilustração na disposição da vontade humana a se limitar, de voltar-se contra si mesma, certamente todas as utopias modernas não poderiam enunciar suas pretensões e mostrar seu significado último na fantástica e fanática disposição dos seus seguidores para sofrer e infligir a dor; seus agentes foram orientados, seria melhor dizer governados, por princípios aceitos voluntariamente a partir da moderna conversação, i.é., da práxis do juízo. A inversão defendida pelo Iluminismo para a natureza humana significou estabelecer o mal como exterioridade – os homens nascem bons e a sociedade os perverte como afirma o enunciado mais famoso de O Contrato Social de Rousseau. Como defenderemos mais adiante esta mudança retoma um postulado central do mito e da magia, em franca oposição a tradição judaica e cristã: a objetivação do mal. O Antigo Testamento e os Evangelhos ao afirmarem a responsabilidade de cada um perante Deus por atos, palavras e omissões situam a origem do sofrimento na transgressão ética e em uma interioridade deformada e isto é o exato oposto da lógica mágica presente no mundo pagão em que se acredita na reificação do mal, em uma origem para ele e na capacidade humana de reagir a ele e suprimi-lo. Como veremos o próprio catolicismo e seu(s) antagonista(s) protestante(s), na figura da Inquisição, presente em ambos, instituição criada para dar fim às práticas mágicas, viram-se dominados pela lógica do mito e com ele se confundiram. Caso atestemos esta ilação estaremos no caminho de mostrar ser a experiência totalitária um dos frutos possíveis da desagregação da ordem, mesmo em sociedades tradicionais e, neste sentido, relacionada diretamente com a questão da percepção e da aparência dado ser da natureza mesma da crise da cultura a inversão das diferenças e com isto a deformação da percepção como aquela causadora da ira contra a aristocracia e os judeus. Hannah Arendt interpretou o holocausto com o magistral arrazoado de Tocqueville sobre o destino dos nobres: o antissemitismo contemporâneo nasceu nas relações políticas e sociais dos judeus com o Estado e com a sociedade moderna, em dinâmica relativamente semelhante àquela presente no extermínio da aristocracia francesa. A perda de poder da

48 O relato da reação da Igreja ao livro de Rousseau está em CASSIRER, Ernest. La filosofia de la Ilustración. México: FCE, 1969, p. 232. 25

nobreza não trouxe qualquer diminuição de suas riquezas e privilégios, os quais eram aceitos pelo povo comum quando acompanhados da supremacia política da aristocracia, mas a ascensão do Absolutismo trouxe o fim das prerrogativas políticas senhoriais sem suprimir os privilégios conferidos à nobreza e inerentes as suas antigas funções de domínio. Esta dissociação levou o povo da França a considerar os nobres como parasitas, sem qualquer função real na condução do país. Em outras palavras, nem a opressão nem a exploração em si chegam a constituir causa de ressentimento: mas a riqueza sem função palpável é muito mais intolerável, porque ninguém pode compreender – e consequentemente aceitar – porque ela deve ser tolerada. O antissemitismo alcançou o seu clímax quando os judeus, de modo análogo, haviam perdido as funções públicas e a influência, quando nada lhes restava senão sua riqueza49.

Em Tocqueville e em Hannah Arendt a destruição da nobreza e dos judeus se relaciona a ascensão do Estado e a constituição do Social, de uma dominação burocrática e racional a uma nova articulação entre os homens no mundo civil fundada na autonomia, como fenômenos coevos e intimamente aparentados. A perda pelos aristocratas de suas antigas funções políticas e sociais é representada por Tocqueville pelo verbo enervar (fazer perder a força e o vigor, físico moral e mental)50, uma forma de decrepitude e de morte portanto. As consequências dramáticas deste processo serão expressas na Revolução pela preocupação coletiva com a condição de cavalheiro, no profundo ressentimento contra nobreza, demonstrado na violência empregada para extirpá-la e destruí-la mais como inimigo moral e menos como antagonista político51. Ao aceitar o valor e a capacidade cognitiva da assertiva de Tocqueville para a questão judaica, Hannah Arendt está considerando ambos os casos, mutatis mutantis, como semelhantes, frutos de um ventre comum: o Estado, o processo de racionalização pública, e a correspondente constituição de uma esfera privada, ambos submetidos à experiência do juízo, mas produzindo concomitantemente a marginalização crescente da aristocracia e da sinagoga52. A nobreza e os judeus constituíram uma relação negativa, ou melhor, uma ausência de relação, com as suas respectivas sociedades, esta seria a fonte do ódio generalizado contra eles; incapazes de legitimarem socialmente suas riquezas, obtidas graças a privilégios e particularismos, em uma época em que o igualitarismo exige o trabalho e a mediação do mercado na distribuição dos bens, naturalmente escassos; marginais ao poder político, judeus e nobres estavam à parte dos homens comuns e da sociedade como um todo, tornaram-se

49 ARENDT, Hannah, As Origens do Totalitarismo, op.cit., p.24. 50 Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 51 A melhor descrição da corrupção e da degradação da aristocracia do ponto de vista ficcional está no romance As Relações Perigosas, de Chordelos de Laclos, ele mesmo um aristocrata revolucionário. 52 As Origens do Totalitarismo, op. cit., começa discutindo as relações dos judeus com o Estado, cap.1 e com a sociedade, cap.2. 26

estigmas, objeto do preconceito por se apropriarem, segundo seus acusadores sem trabalho e sem esforço, dos recursos necessários à existência, e o mais importante, sem trocarem, sem darem nada e sem exercerem quaisquer formas de poder. Para Hannah Arendt todo preconceito tem por trás uma história, um fundamento empírico, sem o qual a sua permanência seria uma incógnita.53 Nietzsche, em a Vontade de Domínio, comentou a condição negativa dos detentores de fortuna de seu tempo lembrando: “Nossos ‘ricos’, estes são os mais pobres! O verdadeiro fim de toda riqueza é esquecida”54. Tocqueville declarara algo semelhante quando conceituou a aristocracia de seu país, no Antigo regime, como uma casta, entendida por ele como um grupo endógamo, fechado sobre si mesmo, em um sentido completamente oposto àquele apresentado por Louis Dumont, em seu clássico sobre o sistema de castas em que a circunscrição do casamento, a hierarquia e a interdependência das diferentes castas estão intimamente associadas55. O Antigo Regime e a Revolução descreve como o Absolutismo quebrou as relações da nobreza com o campesinato, e com os diferentes grupos sociais, configurando um quadro em sentido contrário ao apresentado no texto Homo Hierarchicus de Dumont sobre uma sociedade de castas como a indiana; os reis capetos “enervaram” seus pares suprimindo um dos pilares do sistema de castas – e de classes também – a dependência mútua dos grupos. As obrigações políticas e sociais dos nobres são transferidas para o monarca, para o Estado, restando para aqueles somente as antigas vantagens pecuniárias, os privilégios, dissociados das antigas obrigações políticas e sociais. A utilização por Tocqueville do vocábulo casta parece reter um dos seus significados presentes no século XIX no qual o termo aparece como raça, e ele mesmo assim o utiliza quando nos diz ser o nascimento a “marca distintiva” entre os nobres em contraste com a ideia de aristocracia, para designar “os principais”56; etimologicamente casta foi entendida pelos portugueses como raça ou tribo, para explicar a realidade social da Índia quando da sua chegada ao subcontinente no século XVI57 e no idioma inglês assim como no francês do século XIX “houve durante muito tempo uma falta de

53 “Os preconceitos não são idiossincrasias pessoais que, apesar da impossibilidade permanente de sua indemonstrabilidade, sempre remontam a uma experiência pessoal dentro da qual persiste a evidência de percepções sensoriais”, in ARENDT, Hannah. O Que é Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 29. 54 NIETZSCHE - A Vontade de Domínio. Buenos Aires: Aguillar, 1967, aforismo 61. 55 DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP, 2008. 56 No capítulo IX do livro segundo do Antigo Regime e a Revolução, op. cit. p. 109 Tocqueville nos diz: “Em todos os lugares onde o sistema feudal estabeleceu-se no continente da Europa acabou em casta, exceto na Inglaterra onde voltou-se para a Aristocracia”, linhas abaixo ele conclui: “A Inglaterra [...] o único país onde em vez de alterar o sistema de casta chegaram a destruí-lo. Lá os nobres e os plebeus juntavam-se para fazer os mesmos negócios, escolhiam as mesmas profissões e, o que é muito mais significativo, casavam-se entre eles”. 57 Cf. Dumont, op.cit., p. 69, nota 11b, assim está, segundo Dumont, na Enciclopédia Britânica (1947) . 27

distinção entre casta e tribo”58. A endogamia dos nobres aparece em Tocqueville como algo nefasto, excludente e preconceituoso e não foi por acaso, segundo Hannah Arendt, ter sido criação de um nobre Francês, Bouainvillier, no século XVIII, a primeira teoria racista dos tempos modernos, opondo deliberada e claramente a nobreza e o rei, como de origem germânica, ao povo comum da França, como galo-romano59. Essa clivagem segundo Hannah Arendt, nasceu menos de uma distinção biológica e mais de um anseio da aristocracia de compartilhar o poder com o monarca; mas pelo arrazoado de Tocqueville a separação refletia também uma distinção quanto ao sangue, e da ausência de laços de qualquer espécie entre os nobres e o povo. Tocqueville alimentou a interpretação de Hannah Arendt e seu cânone, aceito por quase todos: a tragédia do povo judeu foi um fenômeno sem relação com a tradição e a religião, foi um evento moderno em todos os sentidos por derivar, como o massacre da aristocracia, de relações sociais e políticas datadas historicamente, de nosso tempo e do isolamento político e social dos judeus, também transformados em casta no mesmo sentido aplicado aos nobres. A leitura do interessante Para entender Hitler de Ron Rosenbaum60, no qual diferentes perspectivas contemporâneas sobre o nazismo são resenhadas e discutidas, reafirma a atualidade e a presença do diagnóstico da pensadora alemã em muitos dos mais importantes trabalhos publicados sobre o tema apesar de muitas vezes ela não receber o crédito devido e ter desconsiderada a sua singular contribuição quanto às origens históricas da impotência real dos judeus e do suposto papel a eles atribuídos pela ideologia nacional- socialista e das consequências desta contradição61. Ao dialogar com intelectuais das mais variadas áreas das humanidades, preocupados com o nazismo, Rosenbaum nos mostra como para seus entrevistados a religião não só tem pouco a dizer sobre o Shoah, o massacre dos judeus, como Deus foi isento por eles de qualquer responsabilidade. Quando porventura o Senhor pode desempenhar algum papel, como aventado na entrevista de um teólogo, Ele é imediatamente afastado dos acontecimentos, caso fique claro o Seu envolvimento com o extermínio em massa, segundo o depoente, a diferença entre Ele e Lúcifer está irremediavelmente suprimida62.

58 Idem. 59 ARENDT, Hannah. Los Orígenes del Totalitatismo, op. cit., 2002, vol. II, p. 251 ss. 60 ROSENBAUM, Ron. Para Entender Hitler. Rio de Janeiro, Record, 2004. 61 Arendt foi estigmatizada a partir do seu livro Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 54, 131,133-136, 139 e 142, quando mostrou o papel decisivo para a consecução do Holocausto da cooperação das lideranças judaicas com os nazistas, isto foi debitado à sua relação com Heidegger, quando um intelectual judeu sugeriu “that this affair was behind Arendt’s calumnies about the jews” (transcrito do The New Republic, 9/10/1995, citado por Finkelstein, A Nation on Trial: The Goldhagen Thesis and the Historical Truth, Nova York: Henry Holt Edit, 1996, p. 90. 62 ROSENBAUM, Ron, op. cit., p. 441 ss. 28

Neste debate há uma considerável confusão; as diferentes categorias para designar o fenômeno – genocídio, holocausto ou Shoah – são utilizadas como termos intercambiáveis, como sinônimos, quando na verdade não são. O primeiro termo, genocídio, tem emprego geral na historiografia e designa situações históricas nas quais um grupo étnico é exterminado por outro: a destruição dos negros do Congo por Leopoldo II63, o extermínio dos tutsis pelos hutus em Uganda, o massacre das nações índias das Américas, o extermínio de armênios pelos turcos64 e dos judeus e ciganos65 pelos alemães, são exemplos da abrangência da categoria. Os outros dois conceitos, Shoah e Holocausto, estão relacionados diretamente com a “Solução Final”66, o eufemismo nazista para designar seu projeto de matança dos judeus, e se tornaram os mais utilizados para descrever o fenômeno. Contudo entre estas duas categorias há diferenças profundas; Hannah Arendt apesar de trabalhar com a ideia kantiana do “mal radical” não faz uso da palavra Holocausto, tampouco usa Shoah, a palavra hebraica usada pela diáspora e pelo Estado de Israel para designar o ocorrido com os judeus europeus na segunda guerra67. Mas o vocábulo shoah (devastação, destruição) não tem nenhum significado religioso. Claude Lanzmann, cineasta francês, ex-editor da revista Tempos Modernos, utilizou o termo hebraico para designar seu filme, não religioso, de nove horas e meia sobre a “Solução Final”68. Assim parece ser com a esmagadora maioria das ponderações sobre este evento, todas retiram qualquer sentido religioso desse acontecimento, presente de maneira direta na palavra Holocausto utilizada sem qualquer conotação religiosa inclusive por religiosos cristãos e judeus. Um superior dos jesuítas deu à etimologia do vocábulo holocausto uma conclusão curiosa sobre o porquê do seu uso para descrever os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, segundo este padre o termo é palavra “grega e pertence ao mundo religioso: significa o sacrifício em que uma oferenda é inteiramente consumida pelo fogo. A ideia de holocausto aplicada à matança de judeus [...] quer significar a abrangência da matança que foi

63 Sobre o fim de 9 milhões de congoleses, cf. TWAIN, Mark. O Fantasma do Rei Leopoldo, de Adam Hoschschild, São Paulo: Cia. das Letras, 1999. 64 “The Armenian Genocide as Precursor and Prototype of Twentieth-Century Genocide”, de Robert F. Melson e “The Comparative Aspects of the Armenian and Jewish Cases of Genocide: A Sociohistorical Perspective”, de Vahakn N. Dadrian, estes textos estão na coletânea, Is the Holocaust Unique? Perspectives on Comparative Genocide. USA: Westviewpress, 1996. Hitler comentou uma vez: “Quem se lembra dos Armênios?” 65 Hitler ordenou também o extermínio dos ciganos, ver “Reponses to the Porrajmos: The Romani Holocaust”, de Ian Hancock in Is the Holocaust Unique?, op. cit. 66 BURLEIGH, Michael. The Third Reich: A New History. Londres: Macmillan, 2000, p. 574ss; ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Leetras, 1999, p. 98 ss. 67 FINKELSTEIN, Norman G. A Nation on Trial, op. cit., p. 93, comenta sobre o contexto histórico – guerra dos seis dias e os judeus americanos - responsável pela popularização do vocábulo holocausto. Segundo Primo Levi, “Trata-se de um termo que, quando nasceu, me deixou muito incomodado, posteriormente eu soube que foi o próprio Wiesel que o forjou, depois, porém, ele se arrependeu disso e teria querido retirá-lo”, in Giorgio Agamben, O Que Resta de Auschwitz: O Arquivo e a Testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008, p. 37. 68 Sobre Lanzmann e seu filme ver Rosenbaum, op.cit. pág. 403 ss. 29

um verdadeiro genocídio”(?)69. A mesma explicação nos é dada por rabinos contrariados com a afirmação dos judeus ortodoxos sobre o Shoah ter sido um castigo de Deus e Hitler o instrumento de sua fúria70: revoltado um sacerdote disse ser “[...] o Holocausto... muitas vezes justificado, de modo infame [...] como um mal que afligiu o povo judeu em função dos seus pecados” [...]71; outro rabino declarou preferir a categoria shoah, “pois a palavra Holocausto, usada na Torá, a Bíblia hebraica, para designar um ser vivo oferecido em sacrifício no altar do templo, é absolutamente inadequada para descrever o extermínio de seis milhões de judeus pelos nazistas. Os judeus não foram oferecidos em sacrifício; foram simplesmente massacrados”72. A Igreja Católica quando publicou seu esperado pronunciamento sobre o tema deu como título: “Nós Recordamos – uma reflexão sobre a Shoah”73, e seguiu a tendência geral, separando o antissemitismo moderno do preconceito religioso clássico contra a sinagoga. Dentre todos os grandes massacres ocorridos no planeta no fim do século XIX até o fim do século XX muitos – como os realizados por Leopoldo II no Congo ou os grandes expurgos de Stalin – excedem em número de vítimas aos judeus mortos pelos fascistas, contudo nenhum foi tão conhecido e desencadeou reações e estudos tão controversos como o genocídio dos hebreus e paradoxalmente apesar dos vínculos de Israel com o cristianismo e com a história sacra do Ocidente, teólogos cristãos e judeus vieram a público negar laços do holocausto com a religião e o sagrado. Mas cabe ressaltar as exceções como as do historiador judeu inglês Ian Maccoby74, do juiz da Suprema Corte de Israel, Haim Cohn75, e do historiador David I. Kertzer76; em todos, a doutrina Cristã, o Evangelho, assim como o clero, são responsáveis pela dissociação radical entre a Igreja e a Sinagoga e indiretamente fomentaram o genocídio ao culpar os judeus por Deicídio; este enunciado é relevante e o discutiremos de forma mais aprofundada a seu tempo pois ele suprime a noção de ruptura na história do antissemitismo como defendida por H. Arendt e afirma uma linha de continuidade,

69 Padre Luís Corrêa Lima, SJ. “O Holocausto e a Consciência Cristã”, xerox, data ilegível, de conferência promovida pelo CIA-IBRADES, no Centro Cultural de Brasília em 4/6/l998 e publicada pela Revista Eclesiástica Brasileira. 70 Ver ROSENBAUM, op. cit., p. 446 e JONHSON, Paul. História dos Judeus. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 535. 71 In FUKS, Raúl (org.). Tribunal da História: Julgando as Controvérsias da História Judaica. Rio de Janeiro: Centro de Cultura e História Judaica/Relume Dumará, p.148. 72 Rabino Henry Sobel, Deus nos ensina a escolher a vida. Carta Capital, ano IX, n. 235, abril de 2003. 73 São Paulo: Loyola,1998 74 In ROSENBAUM, op.cit., p. 495ss. MACCOBY, Ian. O judaísmo em julgamento. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 24ss, apresenta os debates públicos entre cristãos e judeus na Idade Média. Convocados pela igreja visando converter os hebreus, essas discussões historicamente antecederam as conversões forçadas do início dos tempos modernos, em particular na península ibérica, e ao aparecimento da dissimulação como parte da condição judaica no mundo cristão, como foi o caso dos marranos; ver a esse respeito, KAPLAN, Yosef. Do Cristianismo ao Judaísmo: a história de Isaac Oróbio de Castro. Rio de Janeiro: Imago, 2000. 75 COHN, Haim Hermann. O Julgamento e a Morte de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1994, ver especialmente p.276 ss, cap.10 (O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos) e o capítulo final, p.334ss. 76 KERTZER, David. O Vaticano e os Judeus. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. 30

desde a Antiguidade até o século XX, do preconceito contra os judeus. Na mesma linha seguem muitos teólogos católicos alemães advertindo para as consequências nefastas da identificação pelas escrituras cristãs dos adversários de Jesus com o povo judeu como um todo, contribuindo assim para criar o caminho para Auschwitz77. Mas Cohn, Maccoby e os padres germânicos, estão muito distantes de considerar a dimensão do sagrado como o ventre do Totalitarismo em geral ou do Holocausto em particular, em todos, a religião tem papel igual ao de Pôncio Pilatos no Credo, alguém de fora da história mesmo, mero espectador, quando muito um coadjuvante inadequado. O mesmo pode ser dito da reflexão acadêmica, em que a incapacidade de pensar as pistas abertas por Hannah Arendt levou a afirmações como a do israelense Dan Diner: “Auschwitz is a no-man’s-land of understanding”78; Norman Finkelstein observa corretamente ser a saída deste tipo de reflexão ver no Holocausto o clímax do ódio gentio aos judeus79. Talvez a resposta esteja em polemizar o consenso generalizado quanto a modernidade do Holocausto e de toda a crise e a tradição revolucionária – a partir da reflexão antropológica e da teoria do sacrifício – comparando-os com a crise das sociedades pré-modernas nas quais a experiência do juízo se universaliza com a desagregação da cultura e o costume como mediador desaparece, alterando a percepção dos atores e a natureza institucional das relações sociais. Como colocamos acima, Tocqueville e Hannah Arendt desenvolveram uma teoria, para explicar o extermínio da aristocracia e dos judeus, similar em uma variedade de tópicos, com o fenômeno religioso do sacrifício descrito pela tradição antropológica80. O sacrifício se apresentou como uma questão quando me indaguei pelo uso da categoria holocausto na reflexão científica para explicar a “Solução Final”; despertara a minha atenção um texto intitulado “Sepultados nas Nuvens” em referência à incineração dos corpos das vítimas nos fornos crematórios dos campos de concentração. O uso inicial da categoria holocausto pelos estudiosos da “Solução Final” resultou de uma etnografia limitada e circunscrita à forma dos assassinos fazerem desaparecer a evidência do morticínio em massa pela queima dos corpos; o uso da categoria holocausto é assim uma alegoria cuidadosa e tímida da realidade empírica do acontecido. Mas ainda assim não deixa de ser o problema do sacrifício o significado da palavra holocausto, e como descreio em coincidência suspeito ser propositado o seu uso; segui o insight filosófico, religioso, político e antropológico comum a

77 MUSSNER, Franz. Tratado sobre os Judeus. São Paulo: Edições Paulinas, 1987, p. 196. 78 In FINKELSTEIN, op.cit., p. 88, nota 78. 79 Idem. 80 Ver o clássico de MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. São Paulo: Cosacnaify, 2005. 31

Kierkegaard81, Tocqueville82 e René Girard83: a igualdade em nosso tempo é a forma do demoníaco, nela reside o mal, a crise. As ideologias totalitárias buscam homogeneizar a sociedade, o mundo, por entenderem ser este o remédio para o sofrimento humano. “O demoníaco é uma relação forçada com o bem”, a assertiva de Kierkegaard reaparece em Nietzsche e Doistoiévsky, Tocqueville e Hermann Melville; Hannah Arendt apresenta uma peça exemplar desta condição no apelo dos comunards na Paris de 1871: “Por piedade, por amor à humanidade, sejam desumanos (inhumains)”84. Para a etnologia, o sacrifício nasce para conter a supressão das diferenças e dos limites; o rito como memória e perpetuação simbólica do sacrifício fundador, existe justamente para restaurar e consolidar a diferença85 e de um ponto de vista estritamente antropológico o caos da indiferenciação é o ventre da violência e a origem do sacrifício86, o rito sacrificial é então o meio de suprimir o recurso à força na relação de todos com todos e estabelecer a sociedade e a diferença. A igualdade é a alma da moderna ordem democrática, a paixão universal de nosso tempo e de suas revoluções, para Tocqueville; Hannah Arendt concordou com ele, só acrescentou ser este ideal também a condição espiritual do totalitarismo. Mas se da igualdade e sua realidade nasce o sagrado nem por isso o comunismo e o nazismo são religiosos por sua esperança em algum tipo de homogeneidade (de classe ou de raça); ou por suas cerimônias, marcadas por grandes formações, uniformes, paradas; ou por sua expectativa de uma terra sem males, como muitos sugeriram, mas talvez condições preliminares à fundação do religioso; ou serão eles movimentos à constituir a massa em torno do sacrifício permanente, institucionalizado como um historiador alemão sugere?: “On the basis of the apocalyptic vision of the nazis, Ley suggests that the extermination of the jews was equivalent to a holy sacrifice wich was to pave the way toward the thousand-year – Reich”. Philippe Burrin observa sobre esta hipótese, caso ela seja verdadeira, um fato a meu ver problemático: “The notion of redemption through the dead of the jews implies that nazism was profoundly structured by Cristianity”. Mas logo em seguida Burrin problematiza sua interrogação dizendo: However, if nazi anti-semitism cannot be explained without the long tradition of christian anti-judaism, and if the genocide cannot be understood without considering the purifying,

81 Kierkegaard, “Jó e a Repetição”, in Kierkegaard, Textos Escolhidos, seleção de E. Reichmann, Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1978, pág.185 82 Aléxis de Tocqueville. A Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2001 e O Antigo Regime e a Revolução, op.cit. pág. 47. 83 René Girard -””A Violência e o Sagrado””- SP: Paz e Terra, 2008, nesta como em outras de suas obras Girard correlaciona crise sacrificial e igualdade. 84 Hannah Arendt, ““Sobre a Revolução””, op.cit., 1971, pág.71. 85 René Girad, ““A Violência e o Sagrado””, op.cit., pág.148 86 ibidem, pág.76. 32

restorative and expiatory value it had in the Nazis’ mental universe – all of these elements originating in Christianity – it seems dubious to argue for such a strong relationship between Christian sacrifice and nazi genocide. On the one hand, the argument contains a contradiction: if the jew is the Antichrist, he cannot be the victim of a sacrifice; he is the mortal enemy who has to be exterminated.

Burrin dá continuidade a sua resposta agregando duas outras forças constitutivas do nacional-socialismo, esquecidas por Ley, e distintas do cristianismo: a idealidade neogermânica dos movimentos völkisch, antecessores do nazismo, com sua moralidade arcaica dominada pelo princípio da retaliação (olho por olho, dente por dente) presente na concepção de guerra de Hitler e manifestas em todas as alusões ao extermínio dos judeus e a outra são as concepções científicas do Führer, sua doutrina biológico-racista dominada por uma concepção radical de seleção natural e de supremacia do mais forte87. O arrazoado de Ley desconhece um elemento importante: no mito o sacrifício é a forma de suprimir o eclipse cultural, a supressão de todas as diferenças e limites88, a indiferenciação enfim, porque sacrificar é fundar, neste ato derradeiro de violência, a ordem consubstancialmente à religião, pela associação de todos contra um, contra o responsável pela divisão e o fratricídio, em movimento em que a política e religião são um só ser, irmãos siameses, a constituir-se simultaneamente quando a massa, a multidão torna-se sociedade, pela experiência do assassinato supressor da fonte do sofrimento. Antes de Girard, a multidão em seu estado de duplos, de semelhantes, em guerra de todos contra todos, constitui-se como sociedade, torna-se una, pelo assassinato de muitos, na interpretação de Elias Canetti89, ou de um, como no Freud de Totem e Tabu90. René Girard, pela vantagem da posteridade, não só os sintetiza como propõe na teoria da vítima expiatória situar no sacrifício a origem da cultura. Quando se estabelece o rito, cria-se uma instituição, estamos agora na esfera da ordem, acabou-se a guerra de todos contra todos; pelo sacrifício transcendeu-se o estado de atomização absoluta, marcado pela ausência de regras, de normas e dominado pela indiferenciação. Contra isso se opõe a lógica do totalitarismo, na qual o princípio do movimento supõe, pelo uso sistemático do terror, a perpetuação do conflito entre todos, mantendo-se digamos assim, as pessoas como duplos, no sentido dado ao termo por Girard, quando a violência “reduz os homens à repetição monótona do mesmo gesto assassino. Ela os

87 BURRIN, Philippe. “Political Religion, the Relevance of a Concept”. History and Memory, v. 9, fall 1997. Passing into History: Nazism and the Holocaust beyond the Memory. 85 O conceito de René Girard (O Bode Expiatório, op. cit., cap.2) equivale a imagem hobbesiana do homem como lobo do homem, um estado marcado pela total indiferenciação e pela guerra de todos contra todos fomentada por um mimetismo crescente definido por Girard como “desejar o desejo do outro”. O estado de indiferenciação era conhecido dos antigos yogues: “A inteligência arruinada pela ignorância é a percepção iludida pela qual se aceita a irreligião como sendo a religião e tudo se torna o oposto”, Bhagavad Gitã, op.cit. pág. 312. 89 CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 57ss. 90 FREUD, S. Obras Completas. Buenos Aires: Santiago Rueda Edit., vol. VIII, cap. IV, p. 97ss. 33

transforma em duplos”91; por este prisma a lógica do movimento totalitário apresenta-se, digamos assim, como um adiamento infinito do ato sacrificial porque se este se realizar o passo seguinte é a constituição da cultura no sentido de uma ordem institucional, seria o fim do “movimento”. Para responder ao arrazoado de Ley e de Burrin, e esclarecer os objetivos do sacrifício, utilizarei as palavras do sumo sacerdote Caifás sobre a necessidade da execução de Jesus, elas são claras para meus propósitos: é melhor que um só morra a que pereça toda a nação ou dito de outra maneira, a ordem para permanecer como é, para se perpetuar, exige (este) sacrifício. No artigo denominado “Que Um Só Homem Morra”, René Girard, sintetiza seu conceito de processo vitimário, do bode expiatório, de um pagar para pôr fim às ameaças que pesam sobre todos; usando a paixão do Cristo no contexto maior da crise de Israel sob ocupação romana como exemplo ilustrativo da razão política, qualifica a condenação de Jesus por Caifás como demonstrativo da política em seu sentido pleno, em que o rabino limita o uso da força, mas soube usá-la, quando necessário, para evitar um mal maior, Girard a mostra como exemplo clássico de articulação entre sacrifício e política. Vamos à citação: Muitos dos judeus que tinham vindo à casa de Maria, tendo visto o que Ele fizera, creram nele. Mas alguns dirigiram-se aos fariseus e lhes dizeram o que Jesus fizera. Então, os chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram o conselho e disseram: “Que faremos Esse homem realiza muitos sinais. Se o deixarmos assim, todos crerão nele e os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e a nação. Um deles, porém, Caifás, que era sumo sacerdote naquele ano, disse-lhes: “Vós de nada entendeis. Não compreendeis que é de vosso interesse que um só homem morra pelo povo e não pereça a nação toda?”. Não dizia isso por si mesmo, mas sendo sumo sacerdote naquele ano profetizou que Jesus iria morrer pela nação e não só pela nação, mas também para congregar na unidade os filhos de Deus dispersos. Então, a partir deste dia, resolveram matá-lo (Jo 11, 45-53).

Girard observa ter sido a popularidade do nazareno a razão aparente da reunião do Sinédrio, ela encoberta a ameaça de uma crise maior pairando sobre Israel cujo ápice se dará menos de um século depois com o desaparecimento da presença judaica na Palestina; sob este pano de fundo é possível encontrar o significado da ação de Caifás como um ato de natureza claramente política, no qual o recurso ao sacrifício tem por alvo a manutenção da ordem afastando o perigo, exorcizando-o. Histórica e religiosamente, o Sacrifício apresentou-se entre nós como fundação (são os casos paradigmáticos de Isaac, Abel e Jesus) de uma sociedade ou de um novo tempo, aparentando-se por isso com as narrativas míticas das sociedades primitivas, levando a antropologia do século XIX, Frazer e Mauss/Hubert em especial, a classificar o cristianismo como mais um mito em razão da intensa semelhança

91 GIRARD, René. Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo: A Revelação Destruidora do Mecanismo Vitimário. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 33. 34

existente entre eles92. Na tradição cristã e judaica a renúncia à vida para não abjurar sua fé foi a práxis por excelência da Igreja primitiva e dos hebreus fundamentalistas da Europa nazista. O crente provava com sua vida imitar o Cristo ou, caso dos judeus, morrer pela glória do Senhor, ambos evitavam pelo seu ato de absoluto pacifismo, por sua morte, dar a sua comunidade, enquanto organização pública, uma condição política. Caso eles se associassem aos seus irmãos de fé para responder de forma coletiva a violência com outra violência, o ideal da Imitatio Christi93 estaria perdido e com ele a salvação da alma e a natureza da comunidade cristã como uma associação não violenta e não política estaria transformada. O martírio também foi práxis dos judeus ortodoxos pelo menos até o sionismo e a formação do Estado de Israel. Como expressão do pacifismo radical, o martírio tem como dístico o ser melhor sofrer o mal a infligi-lo a outrem; esta atitude ilumina muito a natureza das relações entre religião e política como veremos. Mas como o conceito de sacrifício, pode ajudar a elucidar o fenômeno do Totalitarismo? Esta interrogação nasceu do espanto sobre a aparente irracionalidade de determinados eventos e práticas sociais e sobre uma possível correlação com o fenômeno religioso do sacrifício mesmo quando não se fala dele: no início da Revolução Francesa, em um dos seus eventos pouco conhecidos, o povo antes de começar a matar os nobres, dirigiu-se às reservas senhoriais de caça e matou toda a fauna onde pode deitar a mão94. Nos animais estavam a impotência e a inocência, atributos por excelência da vítima expiatória dentro da tradição do sacrifício, mas também presentes nos habitantes do Gulag soviético ou nos campos de concentração da SS cuja população foi constituída, como observou Hannah Arendt e Anne Apllebaum, essencialmente por inocentes95. Para que o sacrifício seja adequado deve ser uma violência sem possibilidade de vingança96, os judeus foram reduzidos à absoluta impotência, assim como o absolutismo fizera com a nobreza antes da revolução, como passo prévio necessário à sua eliminação, para trazer de volta a paz e a harmonia à sociedade ameaçada, como era no mundo primitivo –

92 Ver MAUSS, Marcel e HUBERT, op. cit., cap. 5, p. 83ss. 93 A expressão é o título de um dos livros mais interessantes da tradição religiosa do Ocidente, A Imitação de Cristo. Petrópolis: Vozes, 2009. Escrito no século XV, retoma o ideal da Igreja primitiva, onde como observador por Kierkegaard, Cristo deixou um exemplo a ser imitado e não uma doutrina a ser ensinada, cf. Migalhas Filosóficas, op.cit. 94 O episódio está em Massa e Poder, op. cit, p.58; o mesmo caso é contado por SCHAMA, Simon em sua obra Cidadãos: uma crônica da Revolução Francesa, op. cit., p. 271, segundo este autor, p. 634ss, a revolução de 1789 foi também a primeira a associar extermínio em massa à técnica: na luta contra a insurreição da Vendéia os jacobinos solicitaram...ao ilustre químico Fourcroy que estudasse a possibilidade de usar ...gases para exterminar o inimigo”. 95 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo, op. cit., p. 500. Para os campos de concentração da União Soviética ver APLLEBAUM, Anne. Gulag: Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos. São Paulo: Ediouro, 2004, p.33-4. A autora endossa, como Hannah Arendt, a condição de inocência da maioria dos presos do gigantesco sistema concentracionário comunista. 96 Cf. Girard, idem. p. 25 e MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Natureza e a Função do Sacrifício. São Paulo: Perspectiva,1985, p. 171. 35

assim é na experiência sacrificial, “polarizando sobre a vítima os germens da desavença...”97. Hannah Arendt observou estar o desencadeamento do terror totalitário condicionado a supressão da oposição política, ele então se volta contra os inocentes, os “inimigos objetivos”98, aos despojados de qualquer possibilidade de reação como deve ser na vítima sacrificial. Hitler separou os judeus da comunidade alemã e os conduziu a inação antes de eliminá-los99, apesar de não representarem nenhuma ameaça ao III Reich. Hannah Arendt também observou no iídiche – a língua das massas judaicas do leste europeu, as vítimas do holocausto – a ausência do vocábulo guerra; como observou o escritor judeu, de língua iídiche, Scholem Asch, a respeito de um de seus personagens: “quando sóbrio tinha medo de espingarda, de cavalo e de cachorro, como qualquer outro judeu”.100 Conduzidos ao estado de desmobilizados pela interdição a assumirem a condição de soldado nas guerras entre cristãos, os judeus deram demonstrações de rara bravura nos inúmeros pogroms à eles impingidos e, se considerarmos o tempo, o martírio como práxis inerente a experiência religiosa foi mais constante entre os servos da sinagoga do que entre os frequentadores de Igrejas. Mesmo o levante do ghetto de Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial, solitário exemplo de resistência armada judaica, foi iniciativa de alguns poucos, em especial dos jovens, em contraste com a passividade do povo judeu e a colaboração efetiva de suas lideranças com a máquina de extermínio101, demonstrando ser a inclinação ao martírio, ou melhor, talvez à resignação, mais forte entre as massas judaicas que a vontade de resistir militarmente de uma minoria102.

97 GIRARD,op. cit., p.19-20. 98 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo, op. cit., p.512 ss. 99 “[...] as categorias sacrificáveis são freqüentemente constituídas de criaturas que não pertencem e que nunca pertenceram a comunidade...”, Girard, op.cit., p.337-8. 100 ASCH, Schole. O Martírio da Fé. São Paulo: Perspectiva, 1967, p. 95. 101 Em seu clássico, HILBERG, Raul, The Destruction of European Jews. New York/London: Holmes and Meier, 1985, p. 218, comenta: “[…] the councils responded to german demands with automatic and invoked german authority to compel the communitys obedience. Thus the jewish leadership both saved and destroyed its people, saving some jews and destroying others, saving the jews at one moment and destroying at the next. Some leaders refused this power, others became intoxicate with it […]. In march 1940 a nazi observer in Kraków was struck by the contrast between the poverty and filth in the jewish quarter and the businesslike luxury of the jewish community headquarters, which was filled with beautiful charters, comfortable leathers chairs’ etc. 102 Ver de ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém, op. cit., especialmente os capítulos sobre as deportações; e GUTMANN, Israel. Resistência: o levante do Gueto de Varsóvia. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 125ss sobre o comportamento das massas judaicas e a luta armada. O martírio talvez fosse raro como autojustificativa das vítimas do holocausto; inclinação à passividade extrema pode ser o termo mais adequado para designar a interioridade judaica. Raul Hilberg, op.cit., p. 22 comenta: “Preventive atttack, armed resistance, and revenge were most completely absent in the jewish exilic history. The last, and only, major revolt took place in the Roman Empire at the beginning of the second century, when the jews were still living in compact settlements in the eastern Mediterranean region and when they were still envisaging an independent Judea. During the Middle Ages the jewish communities no longer contemplate battle. The medieval Hebrew poets did not celebrate martial arts. The jews of Europe were placing themselves under the protection of constituted authority. This reliance was legal, physical and psychological”. 36

Hannah Arendt também anotou o caráter mimético da relação dos nazistas com suas futuras vítimas; segundo ela os nacional-socialistas ao apresentarem uma falsificação literária sobre um congresso clandestino dos líderes judeus (“Os Protocolos dos Sábios do Sião”) como sendo a prova da conspiração mundial Judaica e de sua forma de organização (no caso, clandestina e conspirativa), expressavam nesta obra antes de mais nada o seu próprio ser e a estrutura de seu movimento. Os judeus são apresentados nos “Protocolos” como os nazistas eram de fato em sua prática, a relação é mimética, especular103. Reaparece aqui o tema mítico dos “irmãos inimigos”104 pela reedição perversa, pelo nazismo, em si mesmo, do tema religioso do povo eleito dos judeus105, reafirmando a sagacidade da observação de Adorno: “o estudo do antissemitismo leva à mitologia...”106. Como colocamos antes, podemos apontar a presença de situações semelhantes àquelas constitutivas da crise da cultura e da emergência da experiência totalitária em fenômenos decisivos à religiosidade ocidental e à origem do Estado moderno: os judeus e a Inquisição católica e protestante107, a obsessão das bruxas108, a Reforma e as guerras de religião dos séculos XVI e XVII, fenômenos diretamente relacionados à incorporação do Antigo Testamento, da lei mosaica, ao catolicismo inicialmente e ao protestantismo posteriormente. Na Igreja graças à sua condição jurídica e à sua organização burocrática, como espaço público foi possível a convivência em seu interior da diversidade, desde um São Francisco com sua religiosidade mística, subjetiva e pacifista, em que o inimigo estava na alma de cada um com uma outra definição, a do proselitismo repressor da Inquisição e das cruzadas, onde o mal é externo, objetivado em bruxas, heréticos, muçulmanos ou judeus; neste lado da Igreja Nietzsche detectou a condição mesma do anticristo109, ele viu na história das diferentes comunidades religiosas cristãs a guerra e a repressão aberta, e quando tal ocorre ela “constitui uma unidade política além de ser uma comunidade religiosa”110. Portanto se queremos ver “o mundo dos campos de concentração e a sociedade que ele engendra revelando o lado negro da civilização cristã [...]”, como afirmou o teólogo Richard Rubinstein, temos de atestar ser o cristianismo “a origem de parte da perversidade que ele

103 ARENDT, Hannah. As origens ..., op. cit., p. 273. 104 GIRARD, op. cit., p. 80. 105 ARENDT, Hannah, As Origens..., op. cit., p. 274. 106 Citado em WIGGERSHAUS, Rolf. A Escola de Frankfurt. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 337. 107 A leitura de Malleus Maleficarum e O Martelo das Bruxas, Rio de Janeiro: edit. Rosa dos Ventos, 1991, escrito no século XV por dois inquisidores, H. Kramer e J. Sprenger, traz já o conceito de inimigo objetivo, do perigo potencial representado por uma categoria social, dissimulado em sua aparência. Ver próximo capítulo. 108 Ver o artigo A Obsessão das Bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII in TREVOR-ROPER, H. R., Religião, Reforma e Transformação Social. Portugal, Martins Fontes, 2003. 109 In Vontade de Potencia, op. cit., aforisma l96. 110 SCHMITT, op. cit., p.63. 37

abomina”111, um exemplo disso foram as medidas tomadas pelos nazistas contra os judeus, em geral eles copiaram aquelas tomadas pela Igreja contra Israel ao longo dos séculos112. A dimensão institucional do cristianismo, sua condição de ordem, organização de homens, burocracia e espaço público e as relações entre a cultura cristã e a sociedade podem nos dar indicadores preciosos; na instituição universalmente conhecida como Igreja o cristianismo é a doutrina, mas o Evangelho enquanto cultura transcende em muito a Igreja visível e na problemática relação destas duas esferas com o mundo encontram-se elementos esclarecedores das origens do moderno conflito civil, da luta fundada em valores e também da formação da moderna experiência religiosa e laica da interioridade. Pensemos na Reforma Protestante e nas guerras de religião a ela relacionada, omitidas na reflexão de Hannah Arendt, mas presentes em Spinoza113, Hobbes, Tocqueville, Carl Schmitt, e Koselleck. Para estes três últimos, a dinâmica do conflito religioso dos séculos XVI e XVII reapareceu na Revolução Francesa, colocando o cisma protestante e suas consequências como a primogênita das Revoluções modernas. A Reforma foi também o berço do moderno antissemitismo alemão: dois trabalhos de Lutero, profundamente antijudaicos por entre outras coisas pedirem a expulsão dos judeus das terras alemãs, foram reimpressos aos milhões, por um admirador seu e responsável pela realização de seu desejo de uma Alemanha jüdenrein, sem judeus, Adolf Hitler114. Nos textos do reformador certamente estão os fundamentos das relações quase carnais entre o protestantismo e o movimento nazista até 1937, pois segundo afirmou um dos chefes nazistas a um representante da “Organização Federal das Igrejas Protestantes do Estado” (da Alemanha), “a liderança do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores alemães [...] era ‘moldada pelo protestantismo’”115, ou como o próprio Adolf declarou em público: “Por meu intermédio, a Igreja Protestante poderia tornar- se a Igreja oficial como na Inglaterra”116. Hannah Arendt ao referir-se à Idade Média e à Era Moderna disse ser difícil “[...] equacionar o público com o religioso”, talvez por isso ela não

111 In STEIGMANN-GALL, Richard. O Santo Reich:Concepções Nazistas do Cristianismo. Rio de Janeiro, Imago, 2004, p. 326. 112 Ver HILBERG, Raul, op. cit. p. 11-2. 113 Espinoza, em seu Tratado Político. São Paulo: Abril (coleção Os Pensadores), 1973, p. 313, observa estarem os reis impedidos de “conduzir os negócios públicos consoante as regras morais que o particular deve observar”, esta condição do soberano só é inteligível se pensarmos o fim do monopólio da crença e a pluralidade confessional, resultante das lutas confessionais e da ascensão do Estado. 114 DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Cia. das Letras, 1993, p. 320 para os textos de Lutero; para a admiração de Hitler pelo reformador do século XVI ver STEIGMANN-GALL, op.cit., p.307ss. 115 STEIGMANN-GALL, op. cit.p. 93. 116 Ibidem, p.308. 38

tenha aprofundado a assertiva de Tocqueville sobre as linhas de continuidade existente entre a Revolução Francesa e os conflitos religiosos da Europa dos séculos XVI e XVII117. A Reforma será a expansão do debate religioso para fora da burocracia eclesial, para a sociedade. Por isso Sören Kierkegaard atribuiu a Martinho Lutero a entronização do público como o soberano da Igreja reformada118. Para o pensador dinamarquês na relação entre a cultura do cristianismo e as suas principais instituições, as Igrejas, está uma das origens do público moderno, do reino da doxa, da opinião, da experiência do juízo, condição do governo moderno segundo os Federalistas e Hannah Arendt, condição do Estado e da cultura moderna portanto. Kierkegaard também acusou Lutero de ter ensinado os homens a vencer com a força do número, ao alterar o ideal de martírio do Novo Testamento119; em outras palavras, ajudou a criar a política moderna por reconhecer e legitimar a vontade da massa e da opinião no mundo religioso e no político – termos intercambiáveis no século XVI – e, posso acrescentar, o antissemitismo radical de Lutero e seus seguidores ajudou a preparar os alemães para a condição de carrascos. A obra de Lutero, Os Judeus e suas Mentiras, reimpressa aos milhões por Joseph Goebbels, ministro da do Reich, foi comentada por Raul Hilberg: “This is Luther’s Picture of the jews. First, they want ruled the world. Second, they are archcriminals, killers of Christ and all Christendom. Third, he refers to them as a “plague, pestilence, and pure misfortune”.120 Lutero está entre os mais importantes heróis dos germanos; a língua culta da Alemanha, o hochdeutsch, é consequência direta de sua histórica versão para o vernáculo das Escrituras, e o protestantismo será a denominação religiosa do norte alemão; por isso a semente luterana do preconceito, deu frutos além do esperado. A condição “moderna” da Igreja, por ser portadora de uma racionalidade na gestão de si mesmo mais tarde perpetuada pelo Estado, foi afirmada por Tocqueville e Michel Foucault. Para o pensador francês o Estado moderno em seus primórdios imitou a Igreja, ela foi o modelo dos príncipes absolutistas121. Foucault seguiu Weber para quem todas as modernas modalidades de associação, nos diferentes campos da vida humana – Estado, Igreja, organização econômica etc. – é coeva ao aperfeiçoamento e desenvolvimento da organização burocrática cuja superioridade reside no saber profissional especializado122. A questão

117 In A Condição humana, op. cit., p. 43; quanto à filiação feita por Tocqueville entre os dois períodos históricos ver a primeira página do capítulo I do O Antigo Regime e a Revolução”, op. cit. 118 KIERKEGAARD, Sören, op. cit., p. 399. 119 Ibidem, p. 399. 120 HILBERG, Raul, op.cit. p. 18. 121 “[...] tinha-se a impressão de que, para conseguir atacar as instituições do Estado, era preciso destruir as instituições da Igreja, que lhes serviam de base e de modelo”. TOCQUEVILLE, op. cit., cap. II do livro III; FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1974, mimeografado, cap.3. 122 Cf. WEBER, Max. Conomia y Sociedad. México: Fondo de Cultura,1992, p.178. 39

reaparece em Carl Schmitt123: o catolicismo, na sua condição jurídica e burocrática é um “complexio oppositorum”, está para o Estado moderno como o Protestantismo está para a economia de mercado. Desta forma a modernidade manteve muitos elementos em comum com a época precedente, portanto haveria um grau elevado de continuidade histórica e a noção de ruptura pode ser mais um simulacro teórico a encobrir a permanência. Nas páginas finais de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo Weber deixa claro um dos elementos de permanência e continuidade entre épocas: o ascetismo dos mosteiros, gerador da riqueza e do poder da Igreja, com sua profunda capacidade de racionalização da existência, posto no mundo pelo Protestantismo pela ética da vocação, tornou o século espaço de ação do cristão e ao associar ação e renúncia, em conúbio totalmente estranho à cultura dominante no mundo clássico124, perpetuou-se como o moderno ascetismo secularizado. Weber seguiu Nietzsche quando observa a presença da religião no desejo da Ilustração, e de sua descendência histórica e cultural, em um domínio da razão nas relações sociais, em uma ordem sem exploração e sem domínio na qual o mal possa ser erradicado de forma definitiva entre os homens. Esta expectativa de um mundo sem sofrimento, comum às diferentes ideologias totalitárias, pode ser considerado um rebento inesperado da metamorfose do ascetismo religioso e seu amalgamento com a lógica mítica e mágica graças ao concurso da Ilustração e sua esperança em uma ordem fundada na Razão. No próximo capítulo desenvolveremos com mais profundidade este argumento.

123 SCHMITT, Carl. Catolicismo Romano e Forma Política. Lisboa: Hugin, 1998. 124 In WEBER, op. cit., p.106. 40

2 INTERPRETANDO A SUBJETIVIDADE TOTALITÁRIA : AS CATEGORIAS DO JUÍZO, DO MAL RADICAL E DA APARÊNCIA

Hannah Arendt em seus últimos anos de vida ocupou-se com A Crítica do Juízo de Kant no qual afirmou ter encontrado os fundamentos de uma filosofia política125 porque o juízo, das experiências interiores do homem, exige interlocutores, público, requer sujeitos autônomos capazes de deliberarem livremente sobre o contingente; o dialogo é constitutivo da natureza desta faculdade, a “referência ao outro [..é..] básica no juízo”126. O raciocínio de Hannah Arendt reitera a definição de público de Kant e da Ilustração: a conversação racionalmente orientada, mediada pela razão, pelo juízo crítico, tende a fazer prevalecer o argumento mais racional. Como a massa, na definição de Elias Canetti, o público moderno busca o nivelamento, a igualdade, assim como a sua contínua expansão; ele é a dinâmica da moderna democracia127. A idealidade deste público Kant descobriu na práxis do juízo, em que “devemos renunciar a nós mesmos em favor dos outros [...] onde o egoísmo é superado”128 “[...]temos consideração, no sentido original da palavra, transcendemos nossas condições subjetivas especiais em nome dos outros”129, é a ideia da mentalidade alargada, quesito necessário a uma perfeita intersubjetividade – os conteúdos comuns ao pensar – o elemento espiritual da coesão social de seres livres. O Iluminismo e a práxis do juízo a ele inerente mantêm ainda sua virtualidade; perseverou no tempo o rigor de sua exigência de tolerância e de compreensão, responsável por sua força e universalização, herdaram do judaísmo e do cristianismo o ideal de autonomia e o conceito de vontade – aliás um não vive sem o outro – atributos do sujeito desta ordem, apresentado como modelo de homem pela Ilustração quando raciocina publicamente conforme as regras do melhor argumento e se coloca na perspectiva do outro.

125 Hannah Arendt morreu quando ia começar a escrever sobre o problema do juízo, última parte de sua obra filosófica, o Life of the Mind. O que foi editado foram as notas para um curso sobre a filosofia política de Kant impressos no apêndice a esta obra; ver prefácio de Mary Mcarthy, em Life of the Mind, Nova York; Harcourt Brace Jovanovitch, l978. 126 ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 68. 127 CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 14ss. Para o moderno conceito de público, ver HABERMAS. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 46 ss. 128 Segundo Hannah Arendt, “Devemos superar nossas condições subjetivas especiais em nome dos outros. Em outras palavras, o elemento não-subjetivo nos sentidos não-objetivos (a imaginação e o senso-comum) é a intersubjetividade”. In ARENDT, H. Lições sobre a Filosofia Política de Kant, op. cit., p. 68, ver também A Condição Humana, op. cit., p. 188ss.

129 Idem. 41

A comunicação, em sua expressão mais sadia é a experiência do juízo, por natureza antagônica ao totalitarismo. Adolf Eichmann, responsável pela deportação de milhões de judeus para campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial é descrito por Hannah Arendt como destituído da experiência do pensar, do diálogo do eu com ele mesmo, impossibilitado de julgar, de “[...] olhar qualquer coisa do ponto de vista do outro”130. O otimismo contido na proposição de excluir qualquer relação do juízo com o totalitarismo é consequência da articulação entre a moderna experiência do julgamento, do raciocínio argumentativo com a democracia e o seu mundo público, fonte dos modernos processos de racionalização da esfera social e responsáveis por elevar à dignidade pública o labor e o trabalho pela mediação da moderna experiência da publicidade e da autoridade do argumento, como nossa civilização faz, liberando o julgamento e o pensar em geral de quaisquer limites.131 No mundo do costume, nas sociedades tradicionais, era o contrário, mesmo na técnica deveria haver uma adequação clara entre objeto e observação conforme o argumento da filosofia clássica e da religião, quanto a estratégica relação entre a confiança nos sentidos e crença na razão, demolida pela ciência moderna132. As sociedades tradicionais acreditam na revelação de todo o existente e da capacidade dos sentidos e faculdades humanas de recebê- lo; essa é a lógica do costume, seja ela baseada na percepção dos sentidos, na razão ou na revelação do Supremo. Em Hannah Arendt a coincidência entre o ser e a aparência no espaço público é fruto da palavra e da ação, não resulta do metabolismo com a natureza como o trabalho e o labor; tampouco é resultado das atividades da consciência mesmo sendo ela profunda e intensa, porque o conhecimento de si mesmo nasce da intersubjetividade, da comunicação fundada na mais política das atividades mentais, o juízo. Ela busca desvelar com este enunciado os laços entre a vida da mente e o agir e apresenta o estatuto existencial do homem: não existimos no singular, mas coexistimos no plural133. Ela buscou uma ontologia: a natureza intersubjetiva do ser dos homens requer a comunicação e esta, em nosso tempo, pressupõe a mentalidade alargada, conceito kantiano, no qual o pensar se vincula ao pensamento do outro134

130 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Cia. das Letras, 1994, p. 60. Em sua crítica ao trabalho de Jacob Robinson, a The Crooked shall Be Made Straight: The Eichmann Trial, The Jewish Catastrophe and Hannah Arendt’s Narrative, Nova York, Macmillan,1965, Hannah Arendt qualifica Eichmann como um ser “totalmente irreflexivo” in ARENDT, Hannah. Una Revisión de História Judía y otros ensayos. Barcelona: Paidós, 2005, p. 167. 131 Ver capítulos Labor e Trabalho na A Condição Humana, op. cit. 132 Mesmo os protestantes compartilharam com a Inquisição católica ressalvas semelhantes quanto a hipótese heliocêntrica levantada por Copérnico e atestada por Galileu; ver o comentário do texto de Philipp Frank feito por Hannah Arendt em sua obra A Condição Humana, op. cit. p. 272, nota 12. 133 “Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos; mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens” in A Condição Humana, op. cit, p. 31. 134 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro, Relume Dumará/Ed. UFRJ, 1992, p. 377. 42

pressuposto necessário à tolerância, ao Estado, a ordem fundada na diversidade cultural e na publicidade, e como tal antitética ao modo tradicional de agir e avaliar, como fora desde a Antiguidade até a Era Moderna nas sociedades existentes na Terra.135 No mundo da tradição era vedado julgar os fundamentos do religioso, e como tal do político; assim como a ação era claramente limitada pelo sagrado, o juízo também o era. O mundo era ético, moral, vocábulos etimologicamente referidos a costume, onde se obedece a uma autoridade superior, “[...] não porque ela manda fazer o que nos é útil, mas porque ela manda”136. Hoje a política é uma das dimensões do juízo, do julgamento do particular sem a sua subsunção ao geral137, em que a utilidade predomina no governo de si mesmo e na ordem do mundo. Essa irredutibilidade do contingente e da pluralidade como condição da liberdade instituída politicamente é consequência da multiplicidade dos pontos de vista e das opiniões constituintes do mundo público; o contingente é o resultado inesperado da natalidade – o novo presente no mundo em cada nascimento – fenômeno político de primeira grandeza, por trazer em si a possibilidade de um novo começo138. Para Hannah Arendt a pluralidade é a lei da terra todo existente, ao aparecer, requer a intersubjetividade; a realidade do percebido é garantido pelo mundo, pelo outro. Portanto, nada pode ser em si ou pra si. Ela exaustivamente enfatiza não ser o homem no singular, mas os homens, no plural, os habitantes da Terra. O fato comum a todas as coisas deste mundo é o fato delas aparecerem aos olhos e aos ouvidos humanos constituindo um espaço de aparências do qual os homens participam como observadores e atores; esta é a natureza fenomênica do mundo na qual os homens são dotados de um impulso para a ação e para a autoapresentação e na condição de expectadores adotam ângulos distintos de observação, seja de um objeto, de um ato ou de um discurso. O relevante filosófico e politicamente é o âmbito público fundar um conceito próprio do real, oposto ao conceito inaugural da tradição metafísica em que essência e aparência não só são separados, como se atribui à primeira um status superior; agora está sendo dito o contrário: “só a presença dos que vêem o que vemos e que ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos”139. Neste raciocínio o senso comum sempre conflita com o pensar, pois enquanto este busca eliminar o corpo e desligar-se das aparências o outro evita sempre o isolamento provisório inerente às operações do

135 Cf. NIETZSCHE. Aurora, livro I, aforisma 9, in Obras Completas. Buenos Aires: Aguilar, 1951. 136 Ibidem. 137 Ver ARENDT, op. cit., p. 371ss. 138 Sobre a importância do conceito de natalidade na obra de Hannah Arendt ver, de MOORE, Patrícia Bower, Hannah Arendt’s Philosophy of Natality, Nova York: St. Martin’s Press, 1989, cap.5. Hannah Arendt comenta que na política romana as novas gerações, eram sempre um fator incontrolável, pois seriam eles os portadores do novo, ver sua obra Sobre a Revolução,op. cit. introdução e capítulo 1. 139 A Condição Humana, op.cit. p. 60. 43

pensamento140. Enquanto o senso comum se vale de exemplos, o pensamento especulativo requer a metáfora, a qual fornece a imagem abstrata do pensamento como uma intuição extraída do mundo das aparências141. Seguindo Kant, Hannah Arendt nos adverte: as metáforas filosóficas, provenientes das analogias, têm como traço constitutivo o fato de apresentarem uma perfeita semelhança de relações entre coisas totalmente distintas142. Ela considera todas as categorias filosóficas como metáforas que fazem a mediação entre o mundo e o pensamento. A Ideia platônica era o modelo presente na reflexão a partir do qual a diversidade fenomênica do mundo era compreendida e organizada pelo eu pensante, o qual, a rigor, nunca deixa o mundo das aparências. Vinculando a mente ao mundo e presente no espírito antes de iniciar o trabalho da reflexão ou da produção material, a Idéia como paradigma permanece após o processo de fabricação e ao objeto fabricado, pode por isso mesmo ter uma nova aplicação, ajustando-se, enquanto metáfora, a duração solicitada pela vida contemplativa143. Para Hannah Arendt a metáfora serve como meio para comunicar o não visto ao pensamento garantindo a unidade da experiência humana, por isso a primazia do mundo das aparências: pela metáfora a linguagem da mente ilumina o que não pode ser visto, mas pode ser dito144. Assim a experiência do pensamento também pode ser submetida à lei da Terra, a pluralidade, onde nada pode ser em si ou para si, dada a intersubjetividade do mundo. O pensamento é então parte do mundo das aparências, dos fenômenos. O diálogo do eu com ele mesmo é uma atividade cuja significação requisita a infinita pluralidade145 e o seu sentido não é a verdade imposta pela razão, mas a concordância do eu consigo mesmo; somos parceiros de nós mesmos e existencialmente necessitamos do princípio da não contradição para ordenar nossa personalidade: não podemos ser nossos próprios adversários. O diálogo do eu com ele mesmo para pensar o significado das coisas e com isto chegar a uma conclusão questiona e problematiza opiniões, na comunicação consigo próprio o pensamento é a busca do significado, é a faculdade do juízo, a mais política das atividades mentais; através do juízo, julga-se o particular sem subsumi-lo no geral, isto é, nas normas gerais positivas que podem ser ensinadas e aprendidas até se transformarem em hábitos146.

140 Cf. Vida do Espírito, op. cit., p. 99ss. 141 Idem. 142 Ibidem. 143 Idem. 144 Idem, p.104. 145 Idem, p.185. 146Cf. Life of the Mind, op.cit., p. 192-3. 44

O juízo é condição da política porque o “nós” presente no agir em conjunto e condição da geração de poder e da sua legitimidade, não é redutível ao diálogo do eu consigo mesmo do pensamento147. Em Kant o juízo é conhecimento direto, de homem a homem, não se transita nem pelo conceito, como é o caso da Razão pura, nem pela universalidade da lei, caso da razão prática. Julgar é procurar no particular a sua significação universal148, é a capacidade de pensar no lugar do outro e, na política e no juízo, qualquer pessoa que representa ou pensa está na presença de outros, capazes também de agir e de pensar e tendo cada um uma apropriação particular do mundo comum149. O espaço público, como um espetáculo, exige atores e espectadores e suas relações são a intersubjetividade, dado os atores dependerem da aprovação da plateia150. O sim ou o não dado pela assistência baseia-se na opinião; sendo assim não pode ser unânime posto não resultar de verdades universais tendo, consequentemente, validade particular. O sim ou o não é a condição da comunicação pública151 e garante a condição do juízo como uma faculdade democrática152. A persuasão é a razão de ser dessa forma da comunicação em razão da condição intersubjetiva do mundo das aparências, no qual a fala exige, por dar-se no plural, a concordância potencial dos outros do qual depende o agir em comum153. Para Hannah Arendt o juízo como faculdade independente não resulta do homem enquanto ser cognitivo, Kant usa uma vez a categoria verdade em a Crítica do Juízo e mesmo assim em circunstâncias especiais154. O gosto, decisivo para o entendimento do juízo, é em Kant um problema de senso comum e este é uma espécie de sexto sentido responsável por unir os outros cinco e integrar o homem em um mundo compartilhado com outros155. A experiência do mundo das aparências exige esta integração dos sentidos e por isso a estética de Kant se torna relevante politicamente para Hannah Arendt, pois ao calcá-la no senso comum, Kant torna-a dependente do humano por excelência: o discurso, a comunicação156. De fato, o juízo tem como objeto um particular que já aconteceu, um evento qualquer, e mesmo compartilhando com o pensamento algum grau de afastamento do mundo das

147 Cf. idem, p. 200. 148 Cf. LAFER, Celso, Hannah Arendt, Pensamento, Persuasão e Poder. São Paulo: Paz e Terra, 1974, p.122. 149 Cf. LAFER, op. cit., p. 123. 150 Cf. Life of the Mind, op. cit., p. 92-4 e apêndice, p. 267. 151 Idem, apêndice, p. 267. 152 Idem, apêndice, p. 263. 153 Ver, A Condição Humana, op. cit., p. 188ss. 154 Life of the Mind, op. cit., p. 3-16 e apêndice, p. 255-6. Ver também, Lectures on Kant’s Political Philosofy, The Harvest Press, 1989, p.13. 155 Idem, p. 50. Para Habermas, “A arte liberada de suas funções de representação social, torna-se objeto de livre escolha e de tendências oscilantes. O ‘gosto’, pelo qual a partir de então se orienta, Expressa-se no julgamento de leigos sem competência especial, pois no público qualquer um pode reivindicar competência”, Habermas, op. cit., p. 56. 156 ARENDT, Hannah, idem, apêndice, p. 267-8. 45

aparências – por ser uma atitude mental – não é a mesma coisa, no juízo articulam-se o geral – sempre uma construção mental – e o contingente – sempre dado pela experiência157. Para Hannah Arendt o mérito do juízo é sua maior limitação: o articular o pensar – por sua natureza generalizante – com aquilo que por sua condição é particular. Se o geral fosse dado o juízo limitar-se-ia a enquadrar o particular em sua norma universal. Isto não ocorre porque hoje tanto na política quanto na estética, conta somente a possibilidade de os homens serem capazes de uma ação original. Estamos numa situação em que o particular é dado, precisa-se agora encontrar o geral, a experiência é incapaz de fazer isso, não podemos julgar um particular através de outro; a determinação do valor requer uma mediação, como algo relacionado ao singular, embora distinto deste158. Esta foi a questão de Hobbes no momento de destruição da tradição, quando a capacidade normativa do transcendente metamorfoseia-se em seu exato oposto, transformando-se na fonte mesma da sedição e da guerra civil. Hobbes mostrou um sutil discernimento antropológico na compreensão da crise do costume em sua relação com o julgamento proferido pelos atores da primeira revolução moderna, as guerras civis religiosas dos séculos XVI e XVII, conflito cuja lógica se apresentará também na Revolução Francesa segundo Alexis de Tocqueville. O contexto histórico de Hobbes e o de Luís XVI, tempos nos quais o costume sucumbia a olhos vistos, mostram a cultura em franca desagregação; Nietzsche mostrou ser perigoso um momento como este, neles aparecem Rômulo, Moisés, Lutero, Robespierre, Lenin, Hitler e Mao. O Príncipe, arquiteto de Estados é também fundador de uma cultura como a minha lista indica. Por isso seu papel como fundador os distingue, realçando qualidades únicas, em particular a capacidade política de associar, de criar um povo, fundada no consentimento interno, em que infinitos sujeitos paradoxalmente obrigam a si mesmo à obediência, voluntariamente, sem qualquer coação externa, aí incluído a necessidade; aceita-se obedecer pelo caráter legítimo deste ato, entendido como um juízo, para a consciência de quem se dispõe à obedecer. A crise da cultura para Hobbes exige a fundação do poder soberano para superar o medo de todos contra todos, sentimento por si só excludente a qualquer forma de vida política, i.é, incompatível com qualquer ordem e sociabilidade. A crise é debelada no Leviatã por um julgamento no qual se reconhece a utilidade do pacto entre os homens independente de qualquer transcendência; a morte ao ameaçar a todos torna obrigatório, e racional, fundar o soberano para estabelecer a paz civil. Do discernimento do juízo, do aceitar o seu veredicto, do raciocínio fundado no contingente, nasce a

157 Idem, p. 69-77. 158 Idem, apêndice, p. 271. 46

comunidade. Mas a experiência do juízo do homem hobbesiano, condição da sociabilidade e, por decorrência, da paz civil, é idêntica a de Hannah Arendt para fundamentar uma filosofia política na reflexão de Kant, na sua Crítica do Juízo? Aparentemente sim. Ela viu na práxis do julgamento a experiência do sentir-se a si mesmo; como no gosto, o juízo resulta de uma deliberação interior, no qual se reenvia ao pensamento o material dos sentidos tornando-os percepção, e consequentemente, deliberação e, enfim, expressão pública, dando ao social uma dinâmica historicamente única, de ordem fundada no juízo como uma práxis central da cultura, das relações entre os homens. Espaço desconhecido fora de nosso tempo, governado pelo julgamento contínuo de tudo por todos, o social e sua razão instrumental foi lido por Hannah Arendt com o mesmo estranhamento de Tocqueville, Kierkegaard e Nietzsche: a ordem moderna, mediada pela ideia de razão e pelo governo de si mesmo, traz uma dissociação entre ser e aparecer desconhecida na História humana, ela é uma interação sem precedentes da espécie humana por meio da promoção de uma forma radical de individuação governada pela utilidade, meio necessário ao domínio crescente da razão; este mundo será para Hannah Arendt o solo de origem do totalitarismo e da sua tentativa de suprimir a pluralidade do mundo dos negócios humanos. A modernidade do Totalitarismo se alicerça na subjetividade, como é em geral a sociabilidade contemporânea. O domínio em nosso tempo é mediado por interioridade, pela busca da adesão interior, ao contrário da Antiguidade, onde o domínio era direto, destituído de persuasão. A singularidade do hodierno foi ilustrada por Max Weber quando correlacionou a dimensão subjetiva e as relações de domínio, destacando o paradoxo presente na possibilidade da moralização substantiva das relações puramente pessoais, de homem a homem, no feudalismo e na escravidão, “dado que sua forma depende da vontade individual dos que participam na relação”, ao contrário da modernidade, onde as relações dos sujeitos, entre si e de cada um consigo mesmo, são mediadas por uma racionalidade formal e pelo juízo dominado pelo princípio da utilidade, no qual desaparece qualquer possibilidade de regulamentação ética pela exclusão da vontade, submissa agora a razão instrumental tornada seu princípio civilizatório159. O social transformou o governo em administração pela ascensão das atividades privadas à relevância pública; a ordem política voltando-se à promoção da economia reconheceu a utilidade governando as relações sociais e exigiu a pluralidade de

159 WEBER, Max, Economía y Sociedad, Buenos Aires: Fundo de Cultura Econômica, 1992, p. 458. DUBY, George em História da Vida Privada, vol. I. São Paulo: Cia. das Letras, 1993, p. 68 comenta não ser possível conceber o trabalho assalariado “como uma relação neutra e regulamentada, mas como uma ligação feita de desprezo, pois não se trata de um vínculo pessoal.” 47

concepções, a multiplicidade dos pontos de vista frutos da autonomia absoluta da experiência do juízo, e da utilidade a ele inerente, como progresso. Em torno da pluralidade, consequência sempre bem-vinda da natividade e condição ontológica da vida humana, H. Arendt compreendeu os laços entre o pensar e o agir e teceu, gradual e sistematicamente, o tema da sua vida intelectual, cuja expressão final será a A Vida do Espírito no qual discute a Crítica do Juízo de Kant; mas a indagação do julgar está presente na obra de H. Arendt desde os seus primeiros textos e serve como guia para o entendimento do conjunto da sua reflexão. Já no último capítulo de seu primeiro grande trabalho, As Origens do Totalitarismo, ela reafirma a distinção feita por Kant entre cognição, voltada para a busca da verdade, e o pensamento, destinado a conferir universalidade, dar as coisas sua significação160, como condição necessária ao entendimento do totalitarismo e da sua especificidade na história.161 Cognição e pensamento marcam a diferença entre a vida contemplativa e a vida ativa, entre a verdade e a opinião, entre o filosofar e a ação; nestas antinomias se delineiam as fronteiras e as exigências da política, onde ao agir cada um apresenta-se e diz quem é, e a que veio, na sua irredutível particularidade162, pressupondo-se a contradição entre mundo e verdade e ambicionando, como na Antiguidade e no Renascimento, como bem máximo, a glória. A Era Moderna dissolveu o conceito clássico de ação; em seu lugar exigiu a obediência da vontade à história e arguiu para ação o atributo da eficácia, pelos seus resultados no tempo. Marx, o mais significativo dos arautos deste ideal, ambicionou realizar a filosofia na história, reapresentando de modo novo e radical o desejo de submeter o mundo à verdade. H. Arendt contrapõe a isso uma ontologia na qual retoma a questão do juízo para estabelecer uma filosofia política em que a verdade resultante dos mecanismos cognitivos do homem e a opinião, fruto do pensar e da intersubjetividade sejam afirmados como experiências necessárias à nossa humanidade. O Totalitarismo relacionou em Hannah Arendt o juízo e a ação163: quando as motivações humanas desaparecem da política e é suprimido o problema do significado do agir dos homens, está em jogo a nossa própria condição. A desumanidade das filosofias da História, sua radical singularidade, resulta de uma nova experiência do tempo; diz-nos ela ser na ruptura entre o passado e o futuro, entre o “espaço de experiências” e o “horizonte das

160 Refiro-me ao capítulo intitulado “Ideologia e Terror”, de Los Orígenes del Totalitarismo. Madrid: 2003, vol. III, p. 682 ss. 161 Ibidem. 162 Idem, p. 218. 163 Ver introdução de Mary McCarthy ao Life of the Mind, op. cit. 48

expectativas” – para usarmos as categorias meta-históricas da historiografia alemã164 – na qual a especulação aprende a triste e póstuma sabedoria sobre o Totalitarismo: tudo é possível. Este é o elemento dramático da nossa situação histórica e do perigo nela presente: o futuro pode realizar todas as possibilidades165, inclusive uma forma de mal radical presente na tentativa de fazer da humanidade a encarnação da lei pela perda de si mesmo ao renunciar ao juízo e ao pensamento, faculdades constitutivas da individuação e fundamentos do sujeito e por isso avessas à ordem totalitária166. As experiências políticas conhecidas pela tradição e pela sabedoria política são inúteis para o entendimento do nazismo e do comunismo; a exterioridade absoluta à tradição do conceito de ação das filosofias da história não está no legado de vivências do Ocidente entregue ao homem moderno, “herança sem testamento” na expressão do poeta René Char, querida à Hannah Arendt.167 O carrasco totalitário não pensa, ele é quando muito um burocrata: ele não tem amor nem ódio por suas vítimas, tampouco deseja isso delas. As motivações humanas, mesmo em suas dimensões negativas, desaparecem no totalitarismo. As paixões e os interesses são absolvidos, eles não estão na gênese do mal, são estranhos ao conceito totalitário de “inimigo objetivo” onde a inimizade independe de qualquer atitude, ela resulta de uma determinação da natureza ou da História, é o antagonismo biologicamente fundado com relação aos judeus por parte do antissemita; ou histórico, como a contradição entre a burguesia e o proletariado, para o marxismo. Em H. Arendt o totalitarismo separa o mal da sensibilidade, dos afetos, apresentando nesta conclusão a permanência de temas do início de sua reflexão, presentes em sua tese de doutoramento sobre Santo Agostinho168, no conjunto de sua obra, inclusive em seu escrito derradeiro sobre o juízo. Meu argumento é simples: conceitualmente H. Arendt reproduz em toda a sua obra a definição de mal, comum a Santo Agostinho e o Kant da Religião dentro dos Limites da Simples Razão”, no qual o homem é mau quando “tem consciência da lei moral e admite em sua máxima o afastamento ocasional da mesma”169 i.é., “quando inverte a ordem moral dos motivos ao acolhê-los em suas máximas”170. O mal radical é a “justificação fraudulenta da máxima pela conformidade aparente com a lei, é o

164 Cf. o artigo de R. Kosellech, “Space of Experience and Horizonte of Expectation. Two Historical Categories”in Future`s Past, USA, MIT, 1979, p. 267. 165 Esta conclusão aparece ao final de As Origens do Totalitarismo e de A Condição Humana, delineando um perfil trágico em H. Arendt. Ver nota 75, p. 247 de A Condição Humana, op. cit. 166 Hannah Arendt mantém-se fiel à definição clássica em que pensamento e ser são a mesma coisa, ver A Vida do Espírito, op. cit., p.104. 167 Ibidem, p. 12. 168 A tese intitula-se O Conceito de Amor em Santo Agostinho. Tese de doutorado. Lisboa, Instituto Piaget, 2005. 169 KANT, A Religião nos Limites da Simples Razão. São Paulo: Abril, 1977, p. 316. Para Kant as inclinações naturais que resultam da sensibilidade não tem sequer uma relação direta com o mal. 170 Idem. 49

simulacro da moralidade”, é a impostura171. O mal está na máxima má dada pelo livre-arbítrio a si mesmo; considerado na relação do sujeito consigo mesmo ele é a hipocrisia, fenômeno moral de um tempo novo no qual a crença na capacidade da verdade se revelar por si mesma desmoronou, e sem essa crença a mentira e o fingimento sob todas as suas formas mudam de caráter172. Para o homem da tradição, consciente da presença da verdade, a mentira era uma possibilidade natural e como tal era aceita, porque mais dia menos dia a verdade prevaleceria; atesta esta assertiva o fato de nenhuma das grandes religiões – “com exceção do zoroastrismo”- ter considerado pecado mortal o ato de mentir173. Ao contrário da mentira, a hipocrisia como experiência política e histórica é a transformação da política em moral, ela ocorre quando existe a possibilidade dos atores ao acreditarem em sua própria mentira, perderem-se no enunciado de sua fraude, suprimindo o testemunho da consciência, garantia da nossa integridade e do testemunho que cada um pode dar de si mesmo. O mal, quando independe da sensibilidade, é fenômeno fundado na perversão da vontade. A ideia kantiana de subversão da máxima – o mal radical – é a realização plena da reflexão de Santo Agostinho em sua obra Sobre a Mentira, quando descreve aquele a quem “apetece interiormente mentir”174. Kant levou às últimas consequências a distinção agostiniana entre vontade e natureza tornando possível enunciar o mal como problema de liberdade, a ponto de fazer dele o poder originário de dizer não ao ser, o poder de “faltar”, de “declinar”, de tender para o nada175. A questão também é posta nestes termos por Kierkegaard, em seu tratado sobre o Desespero Humano, em cujo fundamento situa-se a liberdade176. Hannah Arendt retornará à empresa de Agostinho e Kant de estabelecer na vontade uma quase natureza fazendo do mal um involuntário na ordem mesma do voluntário, vendo no mal uma

171 RICOEUR, Paul. O Conflito das Interpretações. Rio de Janeiro: Imago, l978, p. 255-6. 172 ARENDT, H. Sobre a Revolução. Lisboa: Moraes Editora, 1979, p. 100. 173 ARENDT, Hannah, em A Condição Humana, op. cit., p. 290, comenta: “Não só não existe nenhum mandamento que diga ‘não mentirás’ (pois o outro, ‘não dirás falso testemunho contra o teu próximo’, tem, evidentemente outra natureza), como também parece que, antes da moralidade puritana, ninguém jamais considerou a mentira como uma ofensa séria.” 174 Santo Agostinho, “Sobre a Mentira”, in Obras completas de Santo Agostinho, Biblioteca de autores cristãos, Madrid: 1951, p. 565; a questão está também em Heidegger: “Se existe uma região do Ser onde reina o inautêntico, é justamente a relação de cada indivíduo com qualquer outro possível. É por isso que o grande capítulo sobre o ser-com, em o Ser e o Tempo, é um debate sobre o ser como foco e lugar privilegiado de dissimulação”, RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologia. Rio de Janeiro: Imago,1980, p.32. 175 RICOEUR, op.cit., p. 254. GILSON, Étienne em sua obra, Introdução ao Estudo de Santo Agostinho, São Paulo: Discurso Editorial/Paulus, 2006, p. 277 comenta: “Fonte de toda ciência, a razão conhece a si mesma; conservadora de todas as lembranças, a memória lembra-se de si mesma; mestra de todas as coisas de que dispõe livremente, a vontade livre é igualmente mestra de si mesmo. Logo, dela, e só dela, depende o mau uso do bem que ela é.” 176 Para KIERKEGAARD, Sören. O Desespero Humano. Porto: Tavares Martins, 1958, p. 134, “[...] o pecado está na vontade e não no conhecimento; e esta corrupção da vontade ultrapassa a consciência do indivíduo”, ou [...]“o pecado não é o desregramento da carne e do sangue, mas o consentimento dado pelo espírito a este desregramento.” 50

realidade anterior a todos nós: “ele é minha impotência preliminar”177, ele é minha herança. Quando assim argumenta Hannah Arendt afasta-se de um outro raciocínio político em que a vontade dos atores – e a vontade de todos em geral – pode ter outro enfoque, como em Hobbes. Livre da definição de vontade como apetite racional, decisiva para a definição de mal radical em Hannah Arendt, Hobbes adverte que se assim fosse “não poderiam haver atos voluntários contra a razão”178; Hobbes considera estar o espírito humano sujeito a deliberações contínuas envolvendo apetites e aversões, esperanças e medos, com relação a um objeto, ou quando reflete sobre as consequências boas ou más de uma ação, enfim tudo sobre o qual pensamos antes de qualquer ato, são para Hobbes parte da deliberação179, ela põe fim a liberdade presente em nós antes de praticarmos a ação, neste estado o ato de raciocinar é também um apetite ou aversão “imediatamente anterior à ação ou à omissão desta é o que se chama vontade, o ato (não a faculdade) de querer”. Animais também deliberam segundo Hobbes neste caso eles também têm vontade, por isso adjetivar qualquer apetite ou aversão como racional é criar uma contradição em termos, por ser a vontade, “o último apetite na deliberação”180. Ao incorporar em sua teoria interpretativa as categorias de Agostinho, Rousseau, Kant, Hannah Arendt se incapacitou para perceber as possibilidades abertas por Hobbes, na imagem da guerra de todos contra todos, como uma possibilidade universal, passível de acontecer em qualquer sociedade e momento histórico – como o faz René Girard – como fonte natural da vítima inocente. Para ela a emergência de uma nova temporalidade consorcia-se a novas experiências fundadas na liberdade – o juízo e o mal radical – conceitos decisivos em seu discurso, estando esta antinomia a serviço da compreensão histórica e se reproduzindo na natureza dos tipos ideais elaborados por ela para extrair sentido dos eventos constituintes do mundo moderno181, em especial o holocausto, compreendido como um evento fruto da volição, como mal radical, perspectiva ainda dominante e presente, como indica o debate entre os historiadores “funcionalistas” e “intencionalistas”, no entendimento do Shoah e do nazismo.

177 RICOEUR, op. cit., p. 258. A questão está colocada da mesma forma no início da obra de H. Arendt, em sua tese de doutoramento, O Conceito de Amor em Santo Agostinho, op. cit., p. 86, quando comenta “sobre o perigo que o homem corre é o de não poder ver esse necessário tender para o não ser.” 178 HOBBES, Thomas. Leviatã, op. cit., p. 37. 179 “A deliberação se exprime pelo subjuntivo que é o modo próprio para significar suposições e suas conseqüências, como por exemplo, se isto for feito esta será a conseqüência”. HOBBES, op. cit., p. 38. 180 Idem. 181 Em Hannah Arendt, como em Weber, busca-se compreender a perspectiva do agente associado ao contexto objetivo, a investigação dos motivos passa pelos tipos ideais, onde se busca não o vivido, mas o sentido da ação. 51

Os estudiosos classificados como “intencionalistas” defendem a determinação do Führer quanto aos judeus, como algo presente desde sua transformação em ator político por efeito de um sonho no qual foi convocado a salvar a Alemanha. Ocorrido no Hospital de Pasewalk, na Pomerânia, para onde Hitler foi levado cego, após combate com tropas britânicas em Ypres, na Bélgica, o apelo à salvação ocorre em meio à angústia e a vergonha do cabo austríaco quando é comunicado aos pacientes soldados a rendição do império alemão e o hospital é visitado por revolucionários, entre os quais se incluíam... judeus naturalmente. Os “funcionalistas” por outro lado, associam o holocausto a uma radicalização incontrolável do preconceito pela irracionalidade congênita do nazismo enquanto ordem182, agora se trata de relevar o ator coletivo, aí incluídas as circunstâncias, em relação à decisão183. A Vontade enquanto categoria explicativa permanece em ambas as correntes explicativas; mesmo quando se vincula a decisão do Holocausto à derrota alemã, como na interessante hipótese, “funcionalista”, desenvolvida por Arno Mayer e Philippe Burrin, do genocídio como vingança, ela é precedida de uma escolha determinada pela vontade, sem a qual o conceito de mal radical é impensável. A faculdade da vontade é uma criação do cristianismo para Hannah Arendt, a Antiguidade greco-romana desconhecia a contradição enunciada por São Paulo entre querer o bem e praticar o mal, tanto o paradoxo quanto a angústia daí derivados são desconhecidos no mundo clássico184, apesar dela mesmo citar o poeta romano Ovídio: “vejo o que é melhor e aprovo; sigo o que é pior”, enunciado contraditório com sua assertiva, mas bastante coerente com a interpretação de Hobbes. Ainda assim sua obra é prisioneira desta perspectiva e a perpetuou na grande maioria dos estudos sobre o holocausto, imprimindo em todos o efeito organizador do conceito dantiano, e religioso, do mal radical  no qual a vontade perverte-se a si mesma. No fim de sua vida, em carta a Gerschom Scholem, ela afirma ter mudado de opinião: “el mal no es nunca ‘radical’, que sólo es extremo, y que carece de toda profundidad y de cualquier dimensión demoníaca”185; mas mesmo esta autocrítica não implicou na revisão dos seus textos, nem em um aprofundamento da sua reflexão em outra direção. Mas de qualquer maneira o conceito de mal radical é bastante interessante quando temos em mente os modernos conflitos políticos fundados em ideias, em teorias, como as ideologias, e no papel da persuasão pública e da reflexão privada em seu desenvolvimento porque para Kierkegaard

182 Para um aprofundamento das diferenças entre as interpretações ver o interessante Hitler e os Judeus: Gênese de um Genocídio, de Philippe Burrin, Porto Alegre, L&PM, 1990, p. 7-17. 183 Idem. 184 Cf. ARENDT, A Vida do Espírito, op. cit., p. 233 ss. 185 ARENDT, Hannah, Una Revisión de la historia Judía y otros Ensayos, op. cit., p.150. 52

a filosofia ensinou a todos ter o mundo entrado em uma era dominada pela reflexão, por isso ser humano algum, nenhum ente  para usar seus próprios termos  seja rei ou papa poderá impor-se como Cesar porque “A tirania se converterá naturalmente em uma relação de reflexão. Eis-nos aqui ante a categoria de turba, opinião pública”186; talvez por isso Nietzsche, seguindo a mesma linha de raciocínio, quando confrontou a convicção com a mentira, escolheu a primeira como a inimiga mais perigosa da verdade. Oxalá tenhamos conseguido mostrar o vínculo entre a teoria interpretativa do totalitarismo e a nossa tradição religiosa. Agora nossa argumentação se volta para problematizar, histórica e antropologicamente, as categorias “morais” (como hipocrisia, querer, mal radical) e políticas (o conceito de inimigo objetivo) usadas para atestar a modernidade do totalitarismo e mostrar como estas configurações da subjetividade e da organização da ação estiveram presentes em outros tempos, em formações sociais tradicionais ou primitivas e nas Escrituras judaico-cristãs. Em todas as grandes religiões – no Antigo Testamento e na tradição hindu, na Yôga, por exemplo – lutar consigo mesmo é condição necessária ao domínio dos instintos e a superação das paixões; está na filosofia cristã, pelo menos em Agostinho, associada a individuação e em diferentes gradações o problema é comum a todas as culturas. Os Evangelhos colocam a autonomia do sujeito, mas não são os únicos; talvez eles sejam o caso mais radical de liberdade, mas o tema não é exclusividade deles, mas mesmo neles também a volição tem seus limites definidos como quando Jesus deixa claro para seus ouvintes a impotência da vontade porque “[...] até as coisas mínimas ultrapassam o vosso poder”187. Para entender a volição e a hipocrisia é necessário associá-las à cultura, as representações sociais, mostrando sua antiguidade e universalidade, fora da lógica judaico-cristã, no mundo tradicional e em comunidades primitivas, em que a vida é ritualizada188, consequência de tudo nela se relacionar ao sagrado, fonte de ordenamento e significação para o sujeito em suas relações consigo mesmo e com o outro, seja ele o semelhante, a sociedade ou o meio- ambiente. O pensar do homem da Tradição ou das comunidades indígenas ou primitivas pode ser definido como uma epistemologia pré-copérnicana, sem com isso em nada diminuí-lo, porque graças à capacidade de consorciar forma e função e dar unidade à experiência individual e

186 KIERKEGAARD, Sören, Diário Íntimo, op. cit., p. 179. 187 “Evangelho segundo Lucas”, 12,26. 188 Cf. Mauss e Hubert, Esboço de uma Teoria Geral da Magia. In Marcel Mauss: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 56. “O homem é um animal ritual”, afirma Mary Douglas em Pureza e Perigo, São Paulo, Perspectiva, 1991, p. 80. 53

coletiva189 este pensar é, no sentido aristotélico, lógico, raciocínio propriamente dito, i.é., juízo, por ser capaz de lidar com o contingente, o fortuito, sempre presentes no cotidiano da vida. Esta é a razão de Lévi-Strauss aproximar os sistemas classificatórios indígenas dos nossos: em ambos há exigência de ordem e é “[...] sobre o ângulo das propriedades comuns que chegamos mais facilmente às formas de pensamento que nos parecem muito estranhas”190. Comparar Culturas pode nos conduzir a ilações estranhas, como as de Mary Douglas quando distingue as mentes moderna e primitiva atribuindo a uma a condição da outra, qualificando o mundo pré-moderno como um lugar onde a subjetividade impõe-se, onde o mundo move-se “em torno do observador [...] tentando interpretar suas experiências”. A experiência do primitivo é para ela antropocêntrica, “implicitamente subjetiva, egocêntrica na referência”, em arrazoado mais adequado para descrever a experiência nascida da revolução científica presente no sujeito moderno – do cogito ergo sum – em que o pensar dissociou-se da experiência sensorial. Vale lembrar a polêmica em torno da hipótese heliocêntrica de Copérnico, onde há uma contradição entre a percepção sensorial e as conclusões científicas; ela foi atestada por Galileu e seu telescópico e determinou a doutrina filosófica de Descartes, e da ciência moderna como um todo, para quem o depoimento dos sentidos é enganoso. Galileu fundou a ciência experimental na qual a natureza é submetida aos critérios da mente tal como está na afirmação da antropóloga Mary Douglas para quem a subjetividade primitiva, tal como o Cogito, impõe-se e o mundo passa a mover-se em torno do observador tentando interpretar suas próprias experiências191. Para a tradição, e para o mundo primitivo em geral, é o contrario; a relação entre a subjetividade e a verdade é mediada pelos sentidos, algo absolutamente antagônico ao cogito e supõe a capacidade do aparato sensorial perceber o real como quando a religiosidade fala de um Deus revelado e por isso Platão foi levado a afirmar que a percepção sensorial e o conhecimento imediato não podem se enganar192. Ao acusar o mundo pré-moderno de subjetivismo, Mary Douglas mostra desconhecer a lógica da tradição, presente nas histórias bíblicas de Jonas e Saul, na literatura homérica, na

189 Ver o mito de Trickster dos índios winebag descrito por Mary Douglas, op. cit., p.99-101, como uma forma de desenvolvimento da consciência de si. 190 LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Papirus, 1989, p. 25. 191 Douglas, op. cit., p. 101. Ela apesar de aparentemente ser contra, endossa a suposição de Frazer da mente primitiva como confundindo as experiências subjetivas e objetiva, p. 110. Ver a respeito Hannah Arendt, A Condição Humana, op. cit., capítulo intitulado “A Descoberta do Ponto Arquimediano”, sobre a ciência moderna e sua diferença das formas clássicas de conhecimento. 192 PLATÃO, Teeteto. Bauru, SP: EDIPRO, 2007, 195c. KIERKEGAARD, em Migalhas Filosóficas. Petrópolis, RJ: 1995, p. 120, nota 44, observa: “Que a percepção sensorial e o conhecimento imediato não podem enganar é enfatizado tanto por Platão quanto por Aristóteles. E mais tarde por Descartes, o qual diz exatamente como os céticos gregos que o erro provém da vontade que se precipita ao tirar conclusões.” 54

astrologia e em todos os sistemas de adivinhação das sociedades pré-modernas; mas ela se mostra capaz de ver a singularidade do mundo pré-moderno quando elogia os antropólogos capazes de perceber nas cosmologias primitivas algo diferente de uma “filosofia sistemática consentida”193, isto é uma forma de opinião, é porque para ela, aceitando a teoria de Mauss194 para a magia e seu princípio, a simpatia, a correlação do todo com a parte, também está no sagrado e no pensar e, caso esta proposição seja aceita, a natureza deste modo de pensar impede a emergência de uma experiência como a do cogito.195 O costume supõe a subjetividade, o mundo e o cosmos submetidos a uma força comum e a ritualização é a práxis necessária para mantê-los integrados; a dissociação e a fragmentação aparente das coisas é consequência de maya, a ilusão emanada da divindade196; a unidade do todo é fruto do dever e mesmo Deus age, falhar no desempenho das tarefas traz o castigo, tanto para o faltoso quanto para a comunidade, assim foi com Saul e Jonas197. A presença do todo nas partes funda a eficácia dos mecanismos de adivinhação, seja a cabala, o I-shing ou a “sorte dos apóstolos”198, todos têm sua inteligibilidade na crença de uma ordem comum atravessando e integrando as diferentes dimensões da vida. Ao discutir as antinomias sujo/limpo, puro/impuro, Mary Douglas mostra o papel destas oposições no cuidado consigo mesmo e na manutenção da ordem nas sociedades primitivas delineando a natureza sociológica e política da sociabilidade da tradição e suas linhas de continuidade com o nosso tempo mesmo quando ela ocorre destituída de santidade, com vistas a racionalização higiênica por exemplo. Na tradição, a dimensão cerimonial, o rito, desconhecia o anseio moderno da eficácia, perseguia antes de tudo a harmonia da ordem e de seus componentes com o Eterno; ao contrário do ideal instrumental da modernidade, as relações entre meios e fins nas comunidades tradicionais se condicionam reciprocamente de outra maneira199 porque ali a religiosidade persegue a totalização, a subsunção de tudo a uma significação sagrada. A moderna subjetividade, na qual o arbítrio individual reina, é estranha a estas culturas onde os valores religiosamente orientados perpassam a vida como um todo.

193 DOUGLAS, op. cit., p.113. 194 Ver de Mauss e Hubert, “Esboço de uma Teoria Geral da Magia, op. cit., p. 47ss. 195 Para SCHELER, Max. O Princípio de la Simpatia. Buenos Aires: Losada, 2004, p. 14, 74 e 78, “Os fatos da simpatia são indícios da existência de uma unidade supra individual da vida”. 196 No clássico da literatura religiosa do Oriente, o Bhagavad Gita. São Paulo: Prema, 2003, p.140, Deus declara a ilusão como uma das suas potências. 197 NIETZSCHE, Nietzsche: Obras Incompletas, op. cit., p. 159, no aforisma 9, Aurora, observa que “[...] onde há uma comunidade e conseqüentemente uma eticidade do costume, domina também o pensamento de que o castigo por lesar o costume recai antes de tudo sobre a comunidade [...]”. 198 Esta prática era comum na Idade Média entre os frades menores, in Francisco de Assis: O Santo Relutante, Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. 199 Essa e a razão de Jesus pedir para que a mão esquerda desconheça os atos da mão direita. Para a Yôga são considerados infelizes todos aqueles que agem visando resultados, ver o Bhagavad Gitã, op.cit., p. 57 e CAMPBELL, Joseph, O Poder do Mito. São Paulo, Palas Atenas, 2000, p. 159. 55

Observemos a análise das leis dietéticas dos judeus, no capítulo terceiro de Pureza e Perigo, no qual se descreve a expectativa da lei mosaica de tornar a santidade uma experiência holística, condicionando o conjunto da vida, desde seus aspectos mais prosaicos e cotidianos, como os da alimentação e da poluição, a um ideal de existência capaz de organizar a personalidade e orientá-la, em sua faina cotidiana a fins transcendentais, como requer a tradição e a cultura clássica como um todo. O Antigo Testamento aconselha, quando se toma o arado na mão, a não se olhar para trás. O mesmo exórdio foi retomado por Jesus na ideia do sim, sim, não, não, fora disso é o mal; este horizonte existencial também está na filosofia clássica, no princípio da não contradição, pois quando se é um, é melhor estar em guerra com o mundo do que consigo mesmo200; o mesmo enunciado em diferentes culturas mostra a expectativa do mundo pré-moderno com relação a unidade do sujeito com a cultura e estabelecem a origem do conflito e da poluição na ambiguidade, fonte mesma do mal, cujo exemplo clássico é a feitiçaria201. A bruxaria é o poder da duplicidade, o feiticeiro se move para a esfera animal, metamorfoseia-se em bicho, invalidando com isso a unidade necessária à ordem e à harmonia do todo202. Contrapõe-se a isso a integridade manifesta na ordem, na capacidade de discriminar e na possibilidade de definir corretamente, por isto a ambiguidade, a hipocrisia, aponta para a contradição “entre o que parece e o que é”203, o mal está então na relação da aparência com a esfera da interioridade. Esta é a realidade em que a palavra adquire um peso absoluto por isso em algumas tribos africanas qualquer um estando em seu direito de amaldiçoar deve fazê-lo, caso não o faça, a sua saliva passará a ser uma ameaça, a recusa em proferir a maldição inscreverá o rancor em seu próprio corpo, a comunidade pede então a todos explicitar publicamente suas queixas e demandar algum tipo de compensação “a fim de que a saliva do seu rancor não cause secretamente danos”204; a norma cultural pede uma harmonia entre a interioridade e o ato, por isso o sim deve ser sim, o não deve ser não, onde o sentido deve ser explícito e claro.

200 Ghandi disse: “É melhor parecermos desleais perante o mundo do que sermos desleais com nós mesmos”. In FISCHER, Louis, Ghandi. São Paulo: Martin Claret, 1983, p. 116. 201 DOUGLAS, op. cit., p.127. O Evangelho é bastante claro contra a ambiguidade, condição dos inimigos do Cristo, os fariseus, contra quem ele pede cautela contra seu fermento, a hipocrisia, Lucas, 12, 1. 202 Idem, p. 203, ver a respeito o interessante manual dos inquisidores, Malleus Maleficarum. São Paulo: Rosa dos Ventos, 1980, p.147, em que a metamorfose de homem em animal é atributo das bruxas e feiticeiros. 203 DOUGLAS, op. cit., p. 70. 204 “[...] se uma pessoa que tenha o direito de amaldiçoar abstém-se de formular sua maldição, considera-se que a saliva contida em sua boca possui o poder de causar dano. Melhor do que nutrir um secreto rancor, qualquer um com um justo ressentimento deveria falar alto e requerer uma compensação, a fim de que a saliva do seu rancor não cause secretamente danos.” Douglas, op.cit., p. 130, isto supõe a harmonia entre o dentro e o fora, uma adequação do ato com a interioridade e reconhece a dissimulação como o mal, fonte mesma da doença. PRITCHARD, Evans. Bruxaria, Oráculo e Magia entre os Azandes, Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 83, fala que para estes africanos o “[...] ódio, ciúme, inveja, traição vão à frente e ... a bruxaria segue atrás.” 56

Em culturas nas quais o costume e a tradição dominam o conflito nasce da contradição entre o poder aberto e declarado da hierarquia comunitária e o poder não controlado205, da oposição entre a institucionalidade formal da sociedade e os seus elementos marginais e subterrâneos, do agir legal contraposto às práticas clandestinas206; algo como a presença de uma religião institucional de um lado e bruxaria de outro. É a realização do político presente em qualquer relação de associação e dissociação entre homens, seja como amizade e paz ou guerra e antagonismo; por este juízo todo ato orientado para a permanência ou a dissolução da ordem, perseguindo a unidade ou a separação entre os homens, é compreendido como um fenômeno integrante da natureza do político porque sempre onde há união de homens, naturalmente se coloca a questão do poder207. A ideia kantiana do mal radical reapresenta, pela ótica da Ilustração, como crise moral, o fenômeno da ambiguidade já presente no mundo da Tradição, constituindo-se como tema universal, comum a todas as culturas e, podemos dizer, em todos os tempos e lugares onde existam homens. Assim a questão totalitária – i.é., a ordem política onde o inimigo se configura como dissimulado, hipócrita, e é, aos olhos da investigação científica posterior, inocente das acusações a ele imputadas – o conceito de inimigo objetivo de Hannah Arendt – tem seu equivalente em uma sociedade tradicional. A hipótese de Freud (em Totem e Tabu e Moisés e a Religião Monoteísta), e de René Girard, coloca o nascimento da cultura em um crime primordial, a morte de um inocente208. Como as Escrituras, Freud e Girard lidam com “a raiz do humano, com a possibilidade de emergência da Cultura”209, considerando inexistir no mundo dos homens qualquer espaço impermeável à violência de origem mimética onde a escolha da vítima é aleatória como no sacrifício em geral.

205 DOUGLAS, op. cit., p. 122. 206 Ibidem, p. 127. 207 “O político pode extrair sua força dos mais variados setores da vida humana – de contraposições religiosas, econômicas, morais e outras. Ele não designa um âmbito próprio, mas apenas o grau de intensidade de uma associação ou dissociação entre os homens [...]. O real agrupamento amigo-inimigo é ontologicamente tão forte e decisivo, que a contraposição não política, no mesmo momento em que provoca tal agrupamento, coloca em segundo plano seus critérios e motivos até então ‘puramente’ religiosos... econômicos... culturais ...político ...sempre é o agrupamento que se orienta na perspectiva de uma eventualidade séria. Por isso ele é sempre o agrupamento humano determinante [...]”.SCHMITT, Carl, O Conceito do Político””, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 64; este arrazoado legítima uma antropologia política para sociedades no qual o vocábulo política é desconhecido. Hannah Arendt aproxima-se de Carl Schmitt, para ela “Uma sociedade, seja de políticos, seja de cientistas que abjuraram a política, é sempre uma instituição política; sempre que homens se organizam, pretendem agir para adquirir poder.” In A Condição Humana, op. cit., p. 283-4, nota 26. 208 Segundo GIRARD, René. “Um Longo Argumento do Princípio ao Fim: Diálogos com João Cezar do Castro Rocha e Pierpaolo Antonello” Rio de Janeiro: Topbooks, 2005, p. 155, ““[...] a tese freudiana de que Moisés foi linchado é menos antijudaica do que parece. Neste caso, Freud, teria feito uma interpretação inteiramente no espírito da grande tradição profética tanto judaica quanto cristã. Por isso, foi rejeitado. Moisés e o monoteísmo é... o seu melhor livro... Freud baseou o livro nesta “lenda” judaica segundo a qual Moisés é morto pelos judeus, sem se dar conta de que circularam histórias semelhantes a respeito de Rômulo, de Zoroastro e da maioria das figuras ligadas à fundação de religiões.” 209 Cf. João Cezar do Castro Rocha e Pierpaolo Antonello na introdução ao livro de René Girard, Um Longo Argumento do Princípio ao Fim, op. cit., p. 16. 57

Consideremos a presença da hipocrisia e da violência nas Escrituras e nos Evangelhos onde a marca de Caim  cujo crime trouxe consigo a interdição da vingança, permitindo segundo Girard a emergência da primeira sociedade  a hipocrisia, distingue os deicidas dos escolhidos. Antes de Jesus o Antigo Testamento denunciou a hipocrisia pela voz dos profetas de Iahweh acusando os judeus de só O louvarem com os lábios210. Para a Bíblia  do Eclesiastes, dos Salmos ou do Eclesiástico, enfim na maioria dos seus textos  o conhecimento do jogo de sombras das relações humanas é necessário, ele é sabedoria, só por ele podemos conhecer a natureza do homem e a experiência do julgamento em sua articulação com a aparência; transparece nas Escrituras o esforço de mostrar a dissimulação como uma estratégia de vida recorrente em nosso mundo; a ingenuidade é condenada, ela incapacita a discernir o mal e quem “[...] confia rapidamente é um coração leviano”211. As Escrituras cristãs receberam sua forma final há aproximadamente dois mil anos, caso da literatura apostólica, os Evangelhos sinóticos; para o Antigo Testamento o recuo no tempo precisa ser maior ainda; em todos aparece a vítima inocente, como Abel, José e Moisés na Bíblia Hebraica. Quanto a Jesus, centro dos Evangelhos, seu caso é decisivo para os nossos propósitos – o extermínio dos judeus no holocausto como caso paradigmático do totalitarismo – por articular a inocência de fato da vítima e a condição sacrificial atribuída à sua paixão por seus seguidores com a perseguição movida contra os judeus responsabilizados pelo seu assassinato e acusados de hipocrisia, primeiro por Jesus e depois por seus seguidores. Durante muitos séculos em toda sexta-feira da Paixão, no final da missa, os cristãos eram convocados a rezar pelos pérfidos judeus, isto durou do século VI até o Concílio Vaticano II no século XX, quando foi retirado da liturgia. Perfídia é palavra latina e etimologicamente designa traição, ato profundamente aparentado com a hipocrisia212. Assim os elementos culturais necessários à emergência da experiência totalitária, também estavam presentes em épocas e sociedades muito diferentes da realidade europeia do século XIX e da primeira metade do século XX quando emergiram o bolchevismo e o

210 “Eles o adulavam com a boca, mas com a língua o enganavam; seu coração não era sincero com ele, não tinham fé na sua aliança”, Salmo 78,36. 211 Bíblia de Jerusalém, Eclesiástico 19,4, 212 “No século VI surge na liturgia latina da Sexta-Feira Santa uma prece de conteúdo anti-judaico: Oremos et pro perfidis judaeis [rezemos também pelos pérfidos judeus]. Originalmente pérfido significa não-crente. ..na cristandade, pérfido passou a significar malvado e perverso”, A afirmação é do Padre Luís Corrêa Lima, SJ, em seu artigo “O Holocausto e a Consciência Cristã”, originalmente conferência proferida pelo autor no centro cultural de Brasília, em 4/6/1998 e publicado posteriormente pela Revista Eclesiástica Brasileira. A afirmação do Jesuíta do significado de pérfido como não crente é problemática mas muito sugestiva; etimologicamente a palavra perfídia é latina, traduzida quer dizer traição (cf. Dicionário Houaiss), a meu ver muito mais adequada por sua projeção no tempo nas relações dos cristãos com os judeus; como o padre não dá referências para suas afirmações, chamo a atenção para a análise de Hannah Arendt em Los Orígenes del Totalitarismo, op. cit., p. 125, no capítulo III, “Os Judeus e a Sociedade”, ela nos adverte para o estigma de traidor dado aos seguidores da lei mosaica no século XIX. 58

nazismo, exemplos clássicos da patologia política considerada exclusiva da modernidade. A presença da duplicidade de caráter no mundo pré-moderno, assim como a penalização de inocentes, é atestada pelas Escrituras, pela antropologia em inúmeros textos sobre magia e feitiçaria e nos estudos históricos sobre a Inquisição católica e seus congêneres protestantes na Europa de final do medievo até o século XVIII e deles iremos tratar agora. Na Europa do fim da Idade Média e do início dos tempos modernos a perseguição as bruxas213 e aos judeus tem semelhanças intensas com a práxis totalitária de séculos depois; ambos são responsabilizados pelo mal e de duplicidade moral e política; social e espacialmente estão isolados da sociedade por aparentarem costumes diferentes ou antagônicos aos valores dominantes e são acusados de transgredirem tabus culturais ao praticarem incesto, assassinatos de crianças e coisas do gênero. O historiador britânico H. Trevor-Hopper ao estudar a obsessão das bruxas na Europa renascentista, observa ser o ódio contra elas compartilhado pela sociedade como um todo, nos eclesiásticos e nos leigos; apesar das vítimas serem inocentes das acusações a elas imputadas foram poucos, muito poucos, a levantar a voz contra o tratamento dado à elas214. Vale o mesmo para o nazismo e o comunismo? Certamente, apesar de serem ocorrências separadas por séculos no tempo e se manifestarem em sociedades estruturalmente distintas, há uma notável semelhança nos padrões da perseguição: o isolamento das vítimas, cultural e espacialmente, precedeu o seu aniquilamento, sobre elas recaiu a responsabilidade pelo sofrimento da sociedade: seja a peste, a crise econômica ou a queda do telhado o responsável pelo infortúnio foi descoberto e deve ser punido por alterar a ordem das coisas e disseminar o sofrimento. Nas sociedades primitivas a bruxaria é aceita como parte do cotidiano particular de cada um, como uma possibilidade natural de ação215, é o contrário da doutrina da Inquisição europeia dos séculos XIV216 ao XVII em que a bruxaria passou a ser considerada uma

213 Rigorosamente falando, a antropologia distingue bruxaria e feitiçaria, Evans-Pritchard, em sua obra clássica, Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azandes”, op. cit., p. 37 e 283, diz-nos que entre os Azandes, “Um ato de bruxaria é um ato psíquico. Eles crêem ainda que os feiticeiros podem fazê-los adoecer através da realização de ritos mágicos que envolvem drogas maléficas. Os azandes distinguem claramente entre bruxos e feiticeiros”. Essa distinção não será observada aqui, considerarei ambos os termos como sinônimos. 214 TREVOR-HOPER, “A Obsessão das Bruxas na Europa dos Séculos XVI e XVII”, in Religião, Reforma e Transformação Social. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1985, p.113 ss. 215 Para Evans-Pritchard, op.cit., p. 41, “Os Azandes interessam-se apenas pela dinâmica da bruxaria em situações particulares”. 216 Em 1435/7, quando do concílio da Igreja em Basileia o inquisidor John Nider publicou O Formigueiro; cerca de 50 anos depois, por volta de 1485 foi impresso e divulgado o Malleus Malleficarum, o Martelo das Bruxas pelos frades dominicanos, Sprenger e Kramer, resultado do trabalho de ambos como inquisidores nos Alpes; foram os primeiros, de uma longa série de escritos de demonologia, onde se denuncia a bruxaria como uma conspiração de Satã, líder de uma organização internacional. A bruxaria foi introduzida na reflexão cristã por Santo Agostinho, segundo Trevor-Hoper, op. cit., p. 74, “Alguns dos mitos pagãos penetraram na síntese cristã em seus primórdios...Santo Agostinho com sua mente barroca e credulidade africana fez muito para os preservar: constituem a decoração acidental e bizarra do imponente edifício doutrinal que sua autoridade impôs à cristandade ocidental”, posteriormente a questão foi retomada pelo Doutor Angélico, São Tomás 59

organização de pessoas voltadas ao domínio total. Os monges reinterpretaram as antigas crenças populares sobre a bruxaria e as transformaram em teoria217, discurso, weltanschaung do mal; para os frades a teoria de um complot de belzebu justificava o uso da força contra vítimas inocentes, mulheres em sua maioria, a quem era imputado a condição de agentes de Satã. Essa representação dos perseguidores eclesiásticos, a demonologia, talvez tenha sido a ancestral natural das ideologias modernas, em tudo similar as suas congêneres do século XX, todas se arvoraram terem descoberto a origem do mal e o remédio para extingui-lo: o extermínio. A magia foi um princípio de ação legítimo em todo o mundo pré-moderno; com a notável exceção dos judeus218 e, posteriormente, dos cristãos, o entendimento, a causalidade presente no mundo e na natureza, era mágico, simpático, cria-se na conexão entre a parte e o todo, consequência da ideia de emanação, presente até hoje nas religiões orientais, nas quais se desconhece a criação ex-nihilo, a partir do nada, e afirma-se a eternidade do Ser em cada uma de suas manifestações. Teologicamente, o enunciado oriental é absolutamente diferente da ideia judaica de um Deus completamente dissociado de sua obra, de uma natureza absolutamente desligada de seu Criador e destituída de espiritualidade, rebaixada a objeto do domínio e do trabalho do homem219. O judaísmo colocou a natureza como valor de uso, destituindo-a de todo animismo e de qualquer vínculo com o sagrado, a isto Weber chamou de desencantamento do mundo e atribuiu ao cristianismo, ao ascetismo calvinista em particular, a disseminação desta concepção ao Ocidente capacitando-o para a experiência do mercado e da ciência, para um novo tipo de moralidade na relação entre os homens e uma nova causalidade para a natureza e seus fenômenos. Desencantamento é uma transformação radical no pensar por romper os limites do costume e estender o juízo a tudo e a todos, sem ele o domínio do princípio da utilidade nas relações dos homens entre si e da sociedade com o mundo natural não teria se efetivado. Abrindo o mundo físico a um novo tipo de entendimento, e não menos importante,

de Aquino, a quem Trevor-Hoper, op. cit., p. 77, afirma “[...] que depois de Santo Agostinho deve ser considerado o segundo fundador da ciência demonológica. Segundo Aquino (crente na capacidade de seres infernais poderem fecundar mulheres), o Diabo apenas podia expelir como Incubo [demônio macho] aquilo que absorvera previamente como súcubo [demônio fêmea]”. No manual dos inquisidores, o Malleus, Agostinho e Aquino são citados com muita frequência, a presença de seus nomes significa a chancela da autoridade. 217 O erudito italiano Carlo Guinsburg em sua obra História Noturna: Decifrando o Sabá, São Paulo, Cia. das Letras, 1991, p. 107, mostrou a apropriação do folclore popular europeu pelos monges para elaborar sua doutrina. 218 “A religião hebraica foi fundada pelo verdadeiro Deus com base na proibição da adivinhação, baseado na qual surgiram todas as nações gentias”, VICO, Giambattista, “Ciência Nova”. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, seção segunda (“Dos Elementos”), aforisma XXIV, p. 120. 219 Curiosamente entre os judeus isto não é uma questão fechada; segundo o grande sábio Reb Pinchas de Koretz, século XVIII, quando interrogado sobre “O que é Deus?, respondeu: “A totalidade das almas. Seja lá o que existir no todo, também existe na parte” (grifos meus), citado pelo Rabino Nilton Bonder, A Cabala da Inveja, Rio de Janeiro: Rocco, 2010, p. 211. 60

separando decisivamente cultura e natureza, a modernidade indicava a supressão da causalidade mágica, golpeada e suprimida em seus fundamentos, assim raciocinou Weber aparentemente seguindo um consenso amplo, quanto ao papel da Reforma neste advento. Aparentemente a perseguição aos bruxos indica a supressão de formas místicas e retrógradas presentes no raciocínio do senso comum do medievo, possibilitando o pensar moderno; em Carl Schmitt por exemplo, a Igreja esteve historicamente ao lado do bom senso contra o fanatismo sectário e segundo suas palavras “em toda a idade media ela reprimiu [...] a superstição e a feitiçaria”.220 Também em Weber a magia é citada negativamente: o ascetismo protestante deu continuidade a obra judaica de mudança de status do mundo natural e da relação do homem com ele pondo fim ao animismo e a qualquer forma de encantamento; modificou radicalmente o conceito de amor ao próximo como o medievo praticou, suprimindo a ética clássica católica e submetendo as relações interpessoais as exigências do racionalismo econômico, assumindo como dever submeter o mundo a razão por ser essa a vontade de Deus. Ao estabelecer a doutrina e a práxis do protestantismo, em particular do Calvinismo, como ventre do moderno homem econômico e do predomínio da utilidade como princípio universal, Weber destacou o caráter decisivo da Reforma para a modernidade, mas não cita a perseguição às bruxas assim como as guerras de religião dos séculos XVI e XVII em seu estudo clássico, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, apesar deste assunto estar na ordem do dia da historiografia alemã do seu tempo221. Lutero e Calvino acreditavam em bruxas e viam nelas uma ameaça à cristandade e, como seus inimigos católicos, aceitavam o uso da tortura sistemática para a obtenção de confissões assim como prescreviam a queima de qualquer mulher ou homem considerado bruxo. A afinidade entre os reformadores e a inquisição dominicana é absoluta e seus respectivos manuais para identificar a feitiçaria eram conceitualmente idênticos. Ambos acreditavam em sabás – encontros periódicos de feiticeiras com demônios – assim como em voos noturnos em cabo de vassouras e na capacidade de atos mágicos modificarem o clima e afetarem colheitas, impedir a gestação de crianças, suprimir a potência sexual e uma infinidade de outros malefícios222.

220 SCHMITT, Carl. Catolicismo Romano e Forma Política, Lisboa: Hughin, 1998, p. 28. G. K. Chesterton em sua obra Ortodoxia, São Paulo: ITR, 2001, p. 53, por exemplo, declarou no século XIX que os sistemas religiosos militares visavam proteger a possibilidade de pensar. 221 Ver Trevor-Hoper, op. cit., p. 106 ss. 222 O Martelo das Bruxas, op. cit., p. 43, apresenta a bula do Papa Inocêncio VIII, ver também Dos Métodos pelos quais se Infligem os Malefícios e de que Modo Podem Ser Curados, p. 195 ss; quanto a identidade de católicos e protestantes e de seu ódio paranoico as feiticeiras, ver Trevor-Hoper, op. cit., p. 106 ss. 61

Quando tomamos conhecimento da crença dos reformadores nestas aberrações fica difícil adjetivar suas concepções como modernas e distintas daquelas dos católicos, em especial de seus arqui-inimigos, os monges. Na história cristã a obsessão dos clérigos da renascença com as bruxas foi o coroamento do processo de transformação do cristianismo em religião sacrificial, em costume  entendido aqui como a retomada do princípio da simpatia223 e da objetivação do mal como veremos adiante , em domínio, poder político, ou em outras palavras, o cristianismo se torna ordem e elabora uma “ideologia” para justificar a perseguição de inocentes. Esta mudança foi uma regressão em relação à Igreja da idade das trevas: no século VIII, pela figura de São Bonifácio, o apóstolo inglês da Alemanha, a Igreja afirmou a inexistência de bruxas e lobisomens; nesta mesma época a pena de morte é imposta por Carlos Magno na Saxônia a quem queimasse bruxas, fazer tal coisa é regredir para o paganismo afirmava o imperador. No século seguinte a Igreja considerou anticristã a crença na feitiçaria e incorporou isto na lei canônica, o Canon Episcopi ou Capitulum Episcopi, tornando-se doutrina oficial da Igreja224. Mas desde a luta contra a heresia albingense, quando da constituição da ordem dos dominicanos, até 1490, dois séculos de investigação e debates se passaram e a bruxaria deixa de ser atividade marginal e individual tornando-se uma heresia, um movimento organizado chefiado pelo príncipe das trevas, podendo ser submetida a tratamento inquisitorial do qual estavam de antemão excluídos judeus e muçulmanos, por serem infiéis, e a magia popular, por ser paganismo225. Esta inflexão demorou em se realizar, perseguir os ritos mágicos estava interditado, contrariava a doutrina clássica da Igreja, expressa no Canon Episcopi, negando qualquer tipo de eficácia real à bruxaria. A perseguição é aceita por Roma quando os dominicanos mostram ser a magia popular uma heresia, uma expressão pervertida de cristianismo, podendo assim ser submetida à inquisição. Mas existia entre essas mulheres e seus perseguidores algum tipo de vínculo? Anteriormente mostramos ter Hannah Arendt observado o mimetismo nazista em relação aos judeus, a simetria entre eles, presente em um dos livros de ouro do antissemitismo moderno,

223 Cf Nietzsche, aforisma 9 do livro I de “Aurora” in Nietzsche, Obras Incompletas, op. cit., p. 159. 224 Cf. Trevor-Hoper, op.cit., p. 74. 225 O Malleus Maleficarum, p. 77, observa: “É preciso observar que essa heresia – a da bruxaria – difere de todas as demais porque nela não se faz apenas um pacto tácito com o diabo, mas sim um pacto perfeitamente definido e explícito que ultraja o Criador e que tem por meta profaná-lo ao extremo e atingir Suas criaturas. Pois que em todas as demais heresias não há pacto com o demônio, seja tácito ou explicito, embora seus erros e sua falsa doutrina sejam diretamente atribuídos ao pai dos erros e das mentiras. Ademais a bruxaria difere de todas as outras artes maléficas e misteriosas pelo fato de que, de todas as superstições, é a mais vil, a mais maléfica, a mais hedionda – seu nome latino, maleficum, significa ...praticar o mal e blasfemar contra a fé verdadeira”. 62

Os Protocolos dos Sábios do Sião226, no qual aos semitas é atribuída uma maneira de se organizar idêntica à praticada pelo partido nacional-socialista de Hitler, assim como por qualquer grupo totalitário. Vale algo análogo para as feiticeiras. Quando descreve as raízes populares do famoso encontro das bruxas e feiticeiros, o sabá, nas culturas europeias e asiáticas, Carlo Guinzburg alerta sobre o simbolismo presente neste encontro, em que se formulava em negativo os valores dominantes: “A escuridão que envolvia os encontros das bruxas e feiticeiros exprimia uma exaltação da luz; a explosão da sexualidade feminina nas orgias diabólicas, uma exortação da castidade; as metamorfoses animalescas, uma fronteira claramente traçada entre o animal e o homem”227. A Igreja reconhecia na bruxaria a imitação consciente de seus rituais, de forma contrária e oposta ao desejado; para os dominicanos isto era consequência dos demônios tentarem, “ao extremo, harmonizar-se aos ritos e cerimônias divinas”228. Os inquisidores de fato não criaram o sabá, ele já existia para as antigas populações rurais da Europa, tampouco a ideia de complot, ambos estão no folclore europeu e mesmo fora do mundo cristão representações semelhantes aparecem229; Evans Pritchard comenta a associação de bruxos entre os Azandes africanos para festins e crimes230. Da mesma forma relata o nascimento nesta tribo de associações secretas, fenômeno também manifesto entre os índios brasileiros231, ambos relacionados ao esmaecimento dos laços culturais tradicionais. Quando consideramos os traços comuns envolvendo bruxas e judeus chama a atenção não só o isolamento real de ambos com relação à sociedade, mas a condição atávica comum aos dois segundo o ponto de vista de seus inimigos. Quando os nazis negavam clemência aos judeus convertidos ao cristianismo alegavam ser impossível alterar a condição de judeu: o batismo não transformava a sua natureza semita e a inclinação para o mal presente na raça. Da mesma forma os clérigos católicos e protestantes procuraram, e conseguiram, combater a constituição imperial, do Sacro Império Romano Germânico, de 1532, na qual prevalecia a distinção do direito romano entre as “boas” e as “más” bruxas impondo a pena de morte para

226 Os Protocolos dos Sábios de Sião, São Paulo: Editora Júpiter, sem data. 227 GINZBURG, op. cit., p. 15. 228 Malleus, op. cit., p. 287, na p. 288 está um exemplo disso: No Salmo 50 está escrito: “Meu sacrifício, ó Senhor, é um espírito contrito; um coração arrependido e humilhado, ó Deus, não haveis de desprezar”. ”Da mesma maneira quando uma bruxa oferece um recém-nascido ao diabo, confia sua alma e seu corpo a ele, como seu princípio e seu fim na danação eterna...”. 229 Cf. GINZBURG, op. cit. 230 EVANS PRITCHARD, op. cit., p. 45 e 83. 231 PRITCHARD, op. cit., p. 211 e para os índios brasileiros ver a obra de CARVALHO, Silvia Maria S., Jurupari: Estudos de Mitologia Brasileira. São Paulo, Ática, 1979, p. 21. Ver também de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, capítulo sobre índios. 63

todas, sem distinção232; um dos maiores inquisidores defendeu inclusive a pena capital para os filhos e filhas de bruxas por acreditarem serem eles oferecidos por sua mãe à Satanás, quando não eram devorados em rituais de canibalismo233. Para perseguir as crianças, e em muitos casos queimá-las, seus perseguidores, justificavam-se na Bíblia citando o caso do profeta Eliseu e o do extermínio dos jovens por ele amaldiçoados234. O tratamento dado aos infantes, filhos ou filhas de feiticeiras, põe em relevo outro vínculo com a perseguição dos judeus: era crença do povo comum assim como de juízes e inquisidores aceitar como normal a transmissão do mal por hereditariedade. Os filhos de bruxas eram muitas vezes levados a assistir ao suplício de suas mães; tempos depois, já adultos, são suspeitos de retomarem o ofício de sua genitora por muitas vezes demonstrarem uma inclinação para a cura, atributo vinculado aos olhos do senso comum com a capacidade efetiva de fazer o mal presente em seus pais. Robert Mandroux, o estudioso das relações da justiça com a feitiçaria na França do século XVII, mostrou o peso da noção de hereditariedade no pensar social da época e como as representações populares e as crônicas camponesas alimentavam constantemente rumores, fomentando o estigma, sobre famílias de bruxas e feiticeiros. Mesmo nos tribunais a descendência diabólica era aceita como um indício suficiente o bastante, dependendo da denúncia, para levar o suspeito a ser torturado e queimado. Em algumas regiões da França a hereditariedade foi o princípio decisivo para a permanência da perseguição em gerações sucessivas235. Da mesma forma os nazistas ordenavam a execução das crianças judias; a descendência racial significava aos olhos do nacional-socialismo estar o destino e o futuro comportamento determinados biologicamente e contra isso a conversão religiosa era impotente assim como a ruptura com a cultura judaica. Para a Inquisição a questão, só aparentemente, não era biológica236, era o fruto do pacto com o demo: [...] sabemos dos casos das filhas de bruxas que sempre são suspeitas de práticas semelhantes, como imitadoras dos crimes de suas mães: de fato toda a prole de uma bruxa já é contaminada. A razão... [é o] pacto firmado com o diabo, sempre têm elas que deixar atrás de si um sobrevivente, que será devidamente instruído para que preencha as condições impostas pelo seu voto de que farão tudo que estiver ao seu alcance para aumentar o número de bruxas.237

232 Cf. TREVOR-HOPER, op. cit., p. 106, 109. 233 Malleus, op. cit., p. 155, ver também o cap. XIII, p. 283ss, “De que modo as parteiras cometem o mais hórrido dos crimes; o de Matar e Oferecer aos Demônios Crianças da Forma Mais Execrável”. 234 TREVOR-HOPER, op. cit., cita o inquisidor Nicolas Remy como defensor da aplicação do tratamento inquisitorial aos infantes, apoiando sua tese nas Escrituras, em 2 Reis 2,23. 235 MANDROUX, Robert. Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVII. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 95ss. 236 A questão da hereditariedade reaparecerá no ideal espanhol da limpieza del sangre, para distinguir cristãos de semitas. Ver de PERNIDJI, Joseph Eskenazi. “A Inquisição e os Judeus”. In FUKS, Raul (org.) Tribunal da História: julgando as controvérsias da história judaica. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Centro de História e Cultura Judaica, 2005, p. 69. 237 Malleus, op. cit., p. 289. 64

A ideia da descendência diabólica não se restringe a Europa. Na África a bruxaria também é transmitida aos filhos e lá, conta-nos Evans-Pritchard, pelo menos entre os Zandes e outros grupos tribais, há um órgão da bruxaria, que se inscreve na anatomia do corpo e pode, por uma necropsia, ser vista e tocada238. A presença desta estranha propriedade corporal acrescenta um outro problema em nossa reflexão: sendo a “substância-bruxaria” um componente da fisiologia do bruxo, naturalmente ela aumenta com o crescimento natural do corpo; fraca em crianças e mais forte em adultos. Mas o correr do tempo também traz o aumento de sua capacidade deletéria, levando os azandes a temerem os velhos, porque neles esse órgão encontra o seu apogeu. O conflito com crianças geralmente é raro, mas o mesmo não se pode dizer para os adultos, e como a fonte da bruxaria é o ódio interpessoal, ela se inscreve como uma resposta natural e possível aos conflitos de vizinhança, comuns em qualquer comunidade. Quando Evans-Pritchard fala da apreensão dos azandes quanto aos idosos, não quer dizer serem os velhos naturalmente bruxos. Para a cultura azande a bruxaria é consequência de sentimentos negativos, como o ódio, o ciúme, a inveja, ou de atos como o da traição, ou do mau uso das palavras, como na calúnia; ela não está reificada em nenhum grupo específico, mas tende a se manifestar com mais intensidade na relação entre iguais239 e quase nunca contra seus superiores na hierarquia social. Mas para os africanos, os bruxos não estão destinados a ser sempre assim, o seu estado resulta de contextos passageiros e é sempre possível a reconciliação entre as partes. A lógica dos negros se diferencia radicalmente da leitura evangélico/católica em que a bruxaria nasce de condições semelhantes àquelas dos azandes, mas respondem a ela de maneira completamente diferente por julgarem impossível qualquer entendimento entre as partes. Africanos e europeus, contudo, aparentam compartilhar uma crença comum, ambos veem a bruxaria como um ato moral e volitivo; ambos acusam de bruxos quem transgride regras de convívio social, as normas distintas da lei civil ou criminal: “Quem mata um homem

238 Evans-Pritchard, op. cit., p. 38. “Os Azandes acreditam que a bruxaria é uma substância no corpo dos bruxos; uma crença encontrada entre muitos povos da África central e Ocidental....segundo os zandes (A substância-bruxaria) ...está presa à beira do fígado. Quando se abre a barriga basta aprofundar-se nela e a substância-bruxaria explode com um estalo”. Em seguida ele acrescenta: “[A bruxaria] e transmitida por descendência unilinear dos pais aos filhos. Os filhos de um bruxo são todos bruxos, mas suas filhas não o são, enquanto que as filhas de uma bruxa, são todas bruxas, mas seus filhos não o são”. Entre os mandaris, estudados por Mary Douglas, op. cit., p. 128 “[...] linhas hereditárias de bruxos são reconhecidas e temidas”. 239 “[O zande] sabe muito bem que outros sentem satisfação com seus problemas e sofrimentos e que invejam a sua boa sorte. Ele sabe que se ficar rico os pobres irão odiá-lo, que se subir de posição social, seus inferiores terão inveja ...se é bonito, os menos favorecidos terão ciúme de sua aparência...se é um caçador, músico, lutador ou orador talentoso, ganhará a má vontade dos menos dotados...se tem as boas graças de seu príncipe e de seus vizinhos, será detestado por seu prestígio e popularidade”. EVANS-PRITCHARD, op. cit., p. 85. 65

é a bruxaria, mas é a falta de caridade que leva um bruxo a matar”240, dizem os azandes. Para a(s) Igreja(s) europeia(s) a autonomia da vontade, a liberdade facultada a cada um, é área exclusiva de domínio pessoal, sobre ela o diabo não tem poder; ser bruxo é uma opção voluntária diziam os frades dominicanos: segundo eles, “[...] refrear os desejos descontrolados compete ao livre-arbítrio do homem sobre o qual o Diabo não tem poder” e páginas adiante acrescentam “[As bruxas] oferecem a si próprias, em corpo e alma, ao diabo, pela negação propositada, voluntária, blasfema da Fé”241. Por essas palavras fica fácil enquadrar a proposição dos frades quanto a condição de bruxos – para falarmos nos termos de Kant e Hannah Arendt – na natureza mesma do mal radical, como uma opção da vontade livre e não coagida, onde o livre-arbítrio dá a si mesmo uma máxima má. A diferença entre um e outro está a rigor na intenção, na natureza mesma do mal; para os africanos a bruxaria tem uma relação direta com as paixões (ciúme, brigas comunitárias, inveja) estado classificado por Kant como ligado as afecções da alma e por isso mesmo estranhos a ideia de mal radical; para os inquisidores europeus ele é uma opção pervertida da volição, a máxima má dada pelo livre- arbítrio a si mesmo, guia os atos independentemente dos afetos. Esta diferença alimentava outra, vinculada ao tratamento social do problema: a coação violenta e o extermínio sistemático no caso europeu. A lógica clerical legitimou um mecanismo persecutório, no qual a tortura para obtenção das confissões era decisiva na disseminação da suspeita em proporções inusitadas: segundo uma das vítimas, um juiz alemão acusado de complacência com os feiticeiros, a sua tortura não cedeu enquanto novos nomes de suspeitos não fossem delatados; os citados eram por sua vez detidos e submetidos a sevícias para entregarem outras pessoas, as quais ao serem torturadas apresentavam novos nomes, alimentando sem parar a máquina do terror”242. ...

240 Idem, p. 91. 241 Ver Malleus, op. cit., p. 125, “E refrear os desejos descontrolados compete ao livre-arbítrio do homem, sobre o qual o diabo não tem poder”; e p. 183, “[As bruxas] oferecem a si próprias, em corpo e em alma, ao diabo, pela negação propositada, voluntária, blasfema e sacrílega da Fé.” 242 “[…] bastava descobrir uma verruga com a qual a bruxa amamentava o espírito familiar; um ponto insensível que não sangrasse quando era picado; a capacidade de flutuar quando atirada à água, ou uma incapacidade de verter lágrimas ... ou... a tendência para olhar para o chão quando acusado, sinais de medo, ou ter simplesmente o aspecto de uma bruxa velha, feia e mal cheirosa. Qualquer destes indícios era suficiente para definir um caso...e justificar o uso da tortura para obter a confissão, que constituía uma prova, ou a recusa da confissão, que era uma prova ainda mais convincente e justificava torturas ainda mais ferozes e uma morte mais terrível”, Trevor-Hoper, op. cit., pág. 94. Uma das vítimas da obsessão das bruxas declarou: “[...] se todos nós não confessamos também ser bruxos, foi apenas porque não fomos torturados” (ibidem, p. 122). Para os inquisidores “[...] bruxaria é alta traição contra a majestade de Deus. E assim os acusados devem ser torturados para que confessem o seu crime. Qualquer pessoa, de qualquer classe, posição ou condição social, sob acusação dessa natureza, pode ser submetida à tortura, e a que for considerada culpada, mesmo tendo confessado o seu crime, há de ser supliciada, há de sofrer todas as outras torturas prescritas pela lei, a fim de que seja punida na proporção de suas ofensas”. Malleus, op. cit., p. 55. 66

Mas por que ocorre a caça às bruxas na Europa? O pensar mágico é universal e é tão antigo quanto o homem e em nenhuma sociedade tradicional ocorreu nada semelhante ao acontecido no Velho Continente durante os séculos XVI e XVII. Existe algum vínculo entre os perseguidores e suas vítimas e qual é a natureza deste laço? Podemos definir a demonologia como tendo uma natureza semelhante a das ideologias, as representações teóricas dos movimentos totalitários? E o juízo, erguido por Hannah Arendt como o antídoto do totalitarismo, será mesmo? Oxalá consiga responder a estas interrogações e demonstrar ser exequível a lógica totalitária, com seu conceito de inimigo objetivo, da vítima inocente, em uma sociedade tradicional, ao contrário do postulado por Hannah Arendt quanto a modernidade do fenômeno; caso consigamos isto estaremos perto de mostrar os pontos de convergência entre o totalitarismo e o nascimento da experiência sacrificial como resultado natural da crise da cultura e da experiência do julgar. Caminhemos. Marx afirmou, em A Questão Judaica, ser a sociedade burguesa, a economia do mercado, com seu princípio da utilidade, uma evidência da judaização do Ocidente por ter imposto a todos as práticas antes exclusivas dos adeptos da lei mosaica: “os judeus se emanciparam na medida em que os cristãos se fizeram judeus”243. Karl Marx tinha em mente a economia capitalista e a mercantilização das relações humanas e da sociedade como um todo, esquecendo ter sido essa mudança anterior ao capitalismo maduro; historicamente a presença judaica se impôs primeiramente pela religião, pela restauração da autoridade normativa do Antigo Testamento no velho mundo medieval, ainda sob a égide da tradição, e é por ela que o cristianismo tornou-se “cristandade”, costume. Nas Escrituras Hebraicas os perseguidores de bruxas encontrarão os argumentos necessários para se opor ao Canon Episcopi e às antigas leis da Igreja francamente condescendentes com relação a tradição mágica e pagã então presentes entre as populações rurais da Europa. O desejo de dominar politicamente e unificar as mentalidades legitimou para o clero o recurso à violência e à coerção para impor a ortodoxia tal como o Antigo Testamento exigira para suprimir a magia entre os judeus; no Pentateuco, em Exodus XXII, 18, é ordenado: “[...] não [...] deixar que uma bruxa viva”, amparados neste versículo, dominicanos e jesuítas, luteranos e calvinistas, pregaram a seus seguidores a legalidade transcendental do recurso à espada e ao fogo contra os praticantes de ritos mágicos. O Antigo Testamento pode ser descrito como um livro pouco simpático às mulheres; seu seguimento entre os judeus, o Talmude, manteve a tradição veterotestamentária de

243 MARX, Karl. A Questão Judaica. São Paulo: Centauro, 2000, p. 46. 67

estigmatizar o belo sexo. S. W. Baron, o historiador americano do povo judeu, comenta ter sido forte a presença de práticas mágicas entre as israelitas na Antiguidade e a pecha de feiticeiras é atribuída às mulheres, mesmo as mais devotas, pelos escritores do Talmude244, o “novo testamento” da religião mosaica245, escrito após Jesus Cristo. Para algumas correntes do hinduísmo, de acordo com escritos bramânicos, “a mulher é a morte”, delas emanam fluidos malignos, miséria, feitiçaria e mau-olhado246. A qualificação das mulheres para a magia resulta da sua posição social e das singularidades do seu corpo – gestação, menstruação, por exemplo – as apresentando como distintas dos homens e aos olhos destes dotadas de uma inclinação natural para a magia e a feitiçaria invertendo nestas práticas a condição de submissão e dependência de seu gênero na sociedade maior, predominantemente masculina, levando Mauss a observar a coincidência, nas mulheres, entre a virtude mágica e posição social na “medida que uma produz a outra”247. O mesmo vale para os judeus e podemos acrescentar, para qualquer grupo, no qual o seu valor é atribuído a partir do papel desempenhado por eles na sociedade ou em relação a esta. Na cristandade europeia, dado o poder das ordens católicas, masculinas em sua esmagadora maioria, e o papel dos homens na sociedade agrária e feudal, não é de admirar a escolha das mulheres, a sua estigmatização, como uma ameaça a essa ordem. A sua perseguição neste contexto dever ser vista como um “reencantamento” do cristianismo, uma prova a mais a atestar a transvaloração dos ideais evangélicos, endossando o comentário de Kierkegaard sobre ser este tipo de cristianismo um forma travestida da religiosidade combatida por Jesus248. O desencantamento descrito por Weber, afirmado na teoria, era negado na prática; a matança de mulheres foi antes de tudo um ato político para reerguer uma sociedade cujos fundamentos culturais se esboroavam; quando a crise explodiu com a Reforma, a caça as bruxas foi um dos ingredientes da guerra civil religiosa dos séculos XVI e XVII; a concordância teórica entre católicos e protestantes quanto a ameaça das bruxas, não os impedia de se acusarem mutuamente de cumplicidade para com elas. Mas a repressão das feiticeiras tem como pressuposto a crença na eficácia dos seus atos como destruir colheitas, separar casais, causar mortes, levar homens à impotência fazendo desaparecer a genitália

244 BARON, Social and Religious History of the Jews, 3 volumes. Nova York: Columbia University Press, 1957, a afirmação está na p. 211 do vol. 1, cf. nota 42, p. 398 do livro de COHN, Haim, O Julgamento e a Morte de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1994. 245 A afirmação foi feita por um rabino americano e transcrita pelo rabino Nilton Bonder em sua obra, A Cabala da Inveja. Rio de Janeiro, Rocco, 2010. 246 In Mauss e Hubert, op. cit., p. 154. 247 Idem. 248 Kiekegaard, Diário Íntimo, op. cit., p. 233, “El único cristianismo que posee la cristandade se reduce al final a judaísmo. Pues asi ES; un cristianismo tranquilamente planeado (como um ordem estabelecido) es judaismo”. 68

masculina ou “[...] incitar os inhames de seu vizinho a se mudarem e se estabelecerem em sua horta”249. A Igreja da idade das trevas viu nestas crenças pura ilusão, resquícios do paganismo, quando séculos depois a Inquisição considera a magia uma ameaça algo mudou, mas o quê? A magia, pelas mulheres, deu continuidade a sua tradição, parece ter mudado a lógica do clero; ou em outras palavras, a resposta mais imediata é ver na demonologia, a teoria dos perseguidores, uma teoria mágica, mítica, uma ideologia. Vou explicar. Nas sociedades tradicionais, em que o pensar e a intersubjetividade agem simpaticamente, o tratamento e a percepção do contingente, em particular os infortúnios presentes no cotidiano de cada um ganham inteligibilidade pelas relações dos homens entre si. Para Lévi-Strauss o pensar selvagem não distingue o momento da observação e o da interpretação250, ou dito de outra forma, distingue-se da ciência na qual o contingente e o necessário são diferenciados, como fato e estrutura251. Como isto funciona na bruxaria? Seguirei em linhas gerais o raciocínio de Evans Pritchard em seu estudo sobre os Azandes, quando compara o modo de pensar destes africanos com o nosso, dando como exemplo um acidente banal, possível em qualquer cotidiano: quando um homem moderno, “desencantado”, tropeça em algo e se fere, atribui o caso à sua falta de atenção por não ter reparado em um objeto disposto em seu caminho ou a ausência de sorte, trazendo um infortúnio às expensas da sua vontade. Caso o personagem deste caso fosse um crente, cristão ou judeu assumido, naturalmente atribuiria seu acidente à vontade divina como expiação de uma falta, ou pecado, e com isso se resignaria ao acontecido. Para qualquer um destes personagens não há qualquer correlação entre as diferentes variáveis – o objeto no caminho e sua presença ali – presentes no evento. No modo mágico de pensar domina a fé na capacidade humana de agir sobre o mundo natural252; por isso para os Zandes, como em geral para as diferentes culturas primitivas, a bruxaria não é a causa dos fenômenos mas ela engendra uma relação com os eventos cuja consequência é o dano sobre aquele alvo designado pelo bruxo253. Nestas sociedades os fatos só se explicam parcialmente e quando os infortúnios se sucedem: a casa caiu sobre fulano, a vaca chifrou aquele outro etc., a causa está na volição maligna de alguém, está na bruxaria.

249 Lévi-Strauss, O Pensamento Selvagem, op. cit., p. 129. 250 Lévi-Strauss, op. cit., p. 248. 251 Ibidem, p. 37. 252 LEVI, Eliphas. e Ritual da Alta Magia. São Paulo: Pensamento, 1991, p. 74, “A magia é a ciência tradicional dos segredos da natureza”. Para Lévi-Strauss, op. cit. p. 247, “A magia repousa inteiramente na crença segundo a qual o homem pode intervir no determinismo natural”. 253 PRITCHARD, op. cit. p. 60. 69

Eventos fortuitos como os descritos acima delineiam a esfera do contingente para a cultura moderna, i.é., eles constituem naturalmente material para o juízo como nós temos delineado, a faculdade voltada ao particular, mas o pensar primitivo adiciona um novo componente, a bruxaria; o raciocínio mágico não se preocupa em descrever como os eventos acontecem, ela “explica porque os acontecimento são nocivos”254. As relações de causa e efeito não entram em contradição com o pensar mágico, para Evans Pritchard os negros de forma alguma negligenciam as variáveis presentes em um evento funesto: a casa de sicrano caiu e o matou, uma observação empírica detecta terem os cupins comido os esteios. Para a modalidade moderna de ver as coisas, os insetos causaram o desastre, mas os africanos [...] selecionam a causa que é socialmente relevante e deixam o restante de lado. Se um homem é morto por uma lança na guerra, por uma fera em uma caçada, ou por uma mordida de cobra, ou de uma doença, a bruxaria é a causa socialmente relevante, pois é a única que permite intervenção, determinando o comportamento social255 (enfâse minha).

A possibilidade de agir contra a bruxaria na sociedade azande pode adquirir múltiplas formas, indo desde uma advertência ao bruxo para suspender sua ação até sua execução pela comunidade, mostrando ser possível nesta cultura encontrar a origem do mal e, o mais importante, agir contra ele256. Em muitos povos indígenas, como os Jívaros do Equador, por exemplo, inexiste morte natural, quando alguém expira foi o fruto da feitiçaria e os familiares do morto têm o dever de descobrir quem fez o encanto e revidar; nesta tribo a vingança é o grande traço cultural de união e de identidade porque nessa cultura todo falecimento decorre de um assassinato257. O discurso mágico representa a desgraça como obra do outro; para o pensar mítico a teodiceia258 é um falso problema. Para os povos primitivos assim como para os inquisidores conciliar Deus e o sofrimento não era uma questão; os dominicanos deixam claro no Malleus Malleficarum as três condições necessárias à bruxaria: “O Diabo, a Bruxa e a Permissão de Deus Todo-Poderoso”259. A questão levantada pela teodiceia teve seu desfecho quando Rousseau considerou inata a bondade natural – todo homem nasce bom – mas a sociedade o perverte. Nas relações dos homens entre si, em sua sociedade, está a raiz do mal, disse Jean Jacques, mostrando ser possível, como no mundo primitivo, intervir contra o ventre do infortúnio e, parafraseando Evans Pritchard, determinar o comportamento social. Ao professar essas ideias no Emile, Rousseau acabou vendo o seu livro excomungado pelo

254 Idem, p. 63. 255 Idem, p. 63-4. 256 Ibidem, p. 65. 257 CANETTI, Elias, op. cit., p. 133. 258 ARENDT, Hannah, em A Vida do Espírito, op. cit., p. 258, comenta: “Quando os homens não podiam mais louvar, voltaram seus maiores esforços conceituais para justificar (ênfase no original) Deus e sua Criação em teodiceias”. Em outras palavras trata-se de conciliar a existência de Deus com a presença do mal. 259 Malleus, op. cit., p. 47. 70

arcebispo de Paris; para a Igreja, com seu conceito judaico-cristão do pecado original, o mal nos ameaça a partir de dentro, de nosso próprio ser, só removível pela graça do Senhor e contra o qual a vontade, a rigor, nada pode; considerar a natureza humana e o mal como Rousseau fez, resulta de uma antropologia filosófica absolutamente antagônica àquela das Escrituras, abrindo a possibilidade da revolução por acreditar, como no pensar mágico, na possibilidade de supressão do mal e, portanto, desenvolver a expectativa de uma ordem autorregulável, fundada no ego, considerando esse novo homem como semelhante ao homem religioso segundo São Paulo: capaz de tudo julgar e não ser julgado por ninguém. As bruxas e seus perseguidores compartilham uma intersubjetividade mimeticamente orientada, cada um se corresponde ao outro, como termos negativos de uma relação cimentada em valores semelhantes, daí a associação ser negativa, persecutória, validando nossa assertiva quanto aos laços deste fenômeno com o totalitarismo: aonde a crença na objetividade do mal, em uma raça ou classe, vem junto com a esperança na capacidade da vontade de extirpá-lo. René Girard, em artigo denominado “Violência e Magia”, afirma a presença do pensar mágico tanto nos caçadores de bruxas quanto em suas vítimas. Considerando como termos intercambiáveis magia e mito, por compartilharem uma mesma modalidade de raciocinar e agir, Girard reproduz uma passagem de Evans-Pritchard, citada por Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem260, para fundamentar sua proposição da intersubjetividade comum aos perseguidores e às vítimas. Curiosamente Marcel Mauss e Henri Hubert, mesmo sem esposarem conclusão semelhante, escrevem ao final do seu texto clássico sobre magia: “[...] a inquisição queimava mais feiticeiras que as que haviam realmente, ela as criava por isso mesmo, imprimindo em todos os espíritos a idéia de magia [...]”261. Para o pensar mágico, o sofrimento tem um responsável, ele pode ser esclarecido pelo entendimento dos processos advinhatórios, desvelando quem o instigou aos nossos sentidos. Graças a diversos mecanismos adivinhatórios e oraculares, organizados em torno do princípio

260 GIRARD, René, O Bode Expiatório, op. cit., p. 72. O artigo de E. Pritchard é “Witchcraft”, Africa, 8(4), Londres, 1955, p. 418-9. Na internet encontrei o artigo completo em Africa-Journal of International Institute of African Languages and Cultures, vol. 8, número 4 (outubro), 1955, págs.417-422. A passagem citada por Lévi-Strauss, também transcrita por Girard, reza: “Considerada como um sistema de filosofia natural [a feitiçaria] implica uma teoria das causas: a infelicidade resultada bruxaria trabalhando em cumplicidade com as forças naturais. Que um homem seja chifrado por um búfalo, ou que um celeiro lhe caia sobre a cabeça, ou que ele contraia uma meningite [...] o búfalo, o celeiro, ou a doença, são as causas que se conjugam com a bruxaria para matar o homem. A bruxaria não é responsável pelo búfalo, pelo celeiro ou pela doença, pois eles mesmos existem por si próprios; mas ela o é pela circunstância particular que os coloca em uma relação destrutiva para certo indivíduo. O celeiro teria desmoronado de algum modo, assim é por causa da bruxaria que ele caiu em dado momento, quando dado indivíduo repousava debaixo. Entre todas as causas apenas a bruxaria admite uma intervenção corretiva, pois apenas ela emana de uma pessoa. Contra o búfalo e o celeiro não se pode intervir. Embora também eles sejam reconhecidos como causas, estas não são significativas sobre o plano das relações sociais”. 261 Mauss, op. cit., p. 170. 71

da sincronicidade, o responsável é descoberto e legitima-se a vingança262. Mas no mundo da tradição o tema enreda-se, e é esclarecido, nas relações interpessoais. Quando se afirma ser o sofrimento em geral resultado da ação de uma força histórica reificada em um gênero, como as mulheres para a Inquisição; uma classe, a aristocracia ou a burguesia, para os marxistas; ou uma raça, os judeus para os nazistas, é lícito considerar este tipo de teoria como fundado na causalidade mágica, quando transposta da relações de indivíduos para as relações sociais? A proposição de Girard, exposta acima, válida para a caça as bruxas, quando remetida às ideologias modernas significa considerá-las como uma permanência da lógica da magia no mundo “desencantado”? Perfeitamente, é a resposta. Mas há alguma diferença substancial entre a lógica dos dominicanos e a dos zandes? Certamente. A primeira delas está no plano da representação; para o mundo primitivo a magia é legítima por ser ela a causalidade do universo e da natureza, ela é relevante para as relações sociais como a causa dos infortúnios gerados por disposições anímicas como ódio, inveja, ciúme; sentimentos presentes nas relações pessoais, e o ato mágico é um dos recursos possíveis de agir, por serem conflitos entre vizinhos um fenômeno recorrente e cujos danos podem ser reparados e a amizade restaurada. Mas se a doutrina da Inquisição é magia, pode também ser considerada uma ideologia quando afirma ter achado a origem do mal em um movimento organizado, em uma “contra sociedade”, em que os valores dominantes acham-se invertidos? O movimento dos bruxos contra a Igreja, segundo a Inquisição, tem um fundamento diacrônico, ele é histórico: “O diabo... desde a sua primeira queda vem tentado destruir a unidade da Igreja e subverter...a raça humana”.263 Na visão dos inquisidores já está uma das particularidades das ideologias totalitárias posteriores: a história como palco da conspiração. Pela presença transcendental do senhor dos infernos entre os homens e por sua capacidade de intervir na geração, procriando homens e mulheres a ele dedicados, a sexualidade foi pervertida de seus fins naturais e tornou-se porta de entrada para o mal, engendrando seres mais poderosos e “[...] de melhor disposição para obras diabólicas”264: as bruxas ao entregarem-se sexualmente aos demônios têm por meta sua propagação e o domínio da humanidade. Como os judeus, as bruxas se tornaram sangue contaminado, em razão da sua

262 Ver os capítulos VIII (“O Oráculo de veneno na Vida Diária”) e IX (“Problemas levantados pela Consulta ao Oráculo de Veneno”), de Bruxaria, Oráculo e Magia entre os Azandes, op. cit. 263 Malleus, op. cit., p. 237. 264 Idem, no capítulo intitulado “De como as Bruxas nos Tempos Modernos praticam o Ato carnal com os íncubos, e de como se Multiplicam através Dele” os monges desvendam o mistério: “Eis como se dá o processo sucessivamente. Um súcubo (demônio fêmea) recolhe o sêmen de um homem perverso e, se for ele o demônio próprio daquele homem e não desejar transformar-se em íncubo (demônio macho) para uma bruxa, passa o sêmen para outro demônio delegado a uma mulher ou bruxa; este então, sob os auspícios de uma constelação favorável aos seus propósitos – de gerar um homem ou uma mulher vigorosos na prática da bruxaria  , transforma-se no íncubo para outra bruxa”. 72

descendência demoníaca são irrecuperáveis; colocadas a parte do mundo, da sociedade e da condição humana; como os judeus, abriu-se para elas a senda para o extermínio. Para os negros interrogados por Evans Pritchard, ser bruxo não é sinônimo de criminoso, eles vivem em sua comunidade como qualquer zande vive: “Podem ser pais e maridos respeitados, visitantes bem-vindos às residências, convidados às festas e às vezes membros influentes do conselho da corte de um príncipe”265. Em sociedades assim a bruxaria é um fato corriqueiro, comum na vida das pessoas e da sociedade. Portanto há uma diferença com relação à intolerância sistemática dos europeus e sua fobia assassina, na qual é negada qualquer tipo de convivência por ser a bruxaria uma tentativa sistemática de realizar coisas ruins, independente de qualquer litígio. Entre os bruxos africanos tampouco existe proselitismo ou qualquer tentativa de fazer proliferar seus seguidores; as bruxas europeias, ao contrário de seus congêneres africanos e americanos, buscam não só a sua multiplicação por adesão voluntária mas lançam mão da própria geração – atributo de Deus – para se constituir enquanto raça pelo coito com o maléfico, a fonte de todo o mal, meio seguro para engendrar seguidores fiéis. Em tese este imaginário é único, ele aparentemente já não é mais parte da tradição mágica, mas é, e mostraremos por que. Existem pontos comuns interligando essas práticas, vamos descrever um deles, já exposto em linhas gerais, quanto ao papel da vontade; tanto para os zandes quanto para o clero europeu, a bruxaria é uma força espiritual, o seu poder é psíquico266; ele difere do feiticeiro, mestre na utilização de ervas ou outros materiais para o preparo dos seus encantos. O caso do mau-olhado é um exemplo. O bruxo é capaz de causar o mal por sua visão, muitas vezes involuntariamente. Muitas das doenças, principalmente entre crianças recém-nascidas ou ainda bebês, têm sua origem em um desejo pervertido – cobiça, inveja, ódio – da vontade, transmitido pelos olhos267. Vontade e inteligência se conjugam para dar efetividade ao mal, por meio delas os demônios agem na Terra,268 os bruxos se submetem ao mal sem qualquer tipo de coação, em um estado de liberdade absoluta, afirmam os monges269; entre os azandes, a questão é colocada nos mesmos termos, para ambos a bruxaria tem um caráter volitivo e moral e todos os seus praticantes têm claro para si mesmos a natureza de sua prática e suas implicações éticas.

265 PRITCHARD, op. cit., p. 95. 266 PRITCHARD, op. cit., p. 48. 267 “[...] há o feitiço lançado pelo olhar sobre outra pessoa, que pode ser prejudicial e maligno”, Malleus, op. cit., p.71. Para o campesinato caboclo da Amazônia o “quebrante”, doença comum às crianças, tem no olhar a sua origem. 268 Cf. Malleus, op. cit., p. 81. 269 Ibidem, p.70. 73

Em quem a vontade se deteriora mais facilmente e deixa-se tomar pelo mal? Ou dito diretamente: quem são os bruxos? Para os mandaris, estudados por Mary Douglas, são os ressentidos, os descontrolados, incapazes de segurar suas reações270; vale o mesmo para os azandes. Os rancorosos, os taciturnos e mal-humorados, os fisicamente deformados, mutilados, “suspeitos devido ao rancor que demonstram”271, todo aquele cuja postura afasta- se mais do comportamento social exigido, e – para mim isto é muito importante e já veremos por que  os fracos em geral, impotentes para revidar a ofensa presente quando apontados como bruxos, chamam sobre si acusações de bruxaria tanto quanto aquelas motivadas pelo ódio, o ciúme ou a inveja.272 Fracos eram as mulheres, os judeus e os leprosos na Europa medieval e renascentista, minorias excluídas em maior ou menor grau da sociedade e os bodes expiatórios por excelência da mentalidade mágica coletiva quando as coisas não iam bem. Os leprosos normalmente eram identificados por denúncias de vizinhos ou parentes, e tal como as bruxas levados perante a um tribunal composto por um médico, um preboste e um padre; ciência, estado e religião eram necessárias em razão das consequências, sociais e religiosas do veredicto para o acusado. Caso a doença fosse confirmada ele era excluído da sociedade e da Igreja em ato oficiado pelo pároco de sua localidade vestido para recitar o réquiem. A igreja era coberta de negro e erguia-se para a cerimônia um cadafalso no centro de templo e era oficiado para o doente o ofício dos mortos, cobriam o leproso com um véu negro e lançavam sobre ele algumas pás de terra, em alguns casos ele era levado ao cemitério local onde se realizava uma inumação simulada fazendo o doente entrar em uma cova verdadeira. Após esta liturgia ele era internado em um leprosário do qual só era permitido sair calçado, para não contaminar o solo, devia usar, como os judeus, roupas capazes de identificá-los, um uniforme, e anunciar sua aproximação por castanholas e quando desejasse falar com alguém deveria postar-se em relação ao vento de tal forma a afastar do olfato de seu interlocutor o fedor de suas feridas e mesmo na morte era lhe negado enterro nos cemitérios comuns273. Como sobre os judeus e as bruxas, recaiu também sobre os portadores do mal de Hansen a acusação de lubricidade; Deus os teria castigado pela sua inclinação para a luxúria e a perversão sexual. Isolá-los era uma forma de evitar a propagação da doença, acreditavam na sua difusão pela sexualidade, tornando-a uma doença venérea e a castração tornou-se uma

270 DOUGLAS, op. cit., p., 128: “um bruxo não pode se controlar, é de sua natureza ser zangado”. 271 PRITCHARD, op. cit., p. 92, acrescenta a esta lista: “Homens de hábitos sujos, como os que defecam nas roças alheias e urinam em público, ou que comem sem lavar as mãos, ou que comem comidas ruins como tartarugas, sapo e rato doméstico [...] gente mal-educada que entra na cabana de um homem sem pedir permissão; que não consegue esconde sua gula diante de cerveja ou comida; que faz observações ofensivas [...]”. 272 Idem, p. 93. 273 Cf. Jean-Charles Sournia e Jacques Ruffie, As Epidemias na História do Homem. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 132 e 134. 74

possibilidade profilática; segundo um texto medieval esses doentes “são perseguidos por um desejo extraordinário e insuportável do ato venéreo, têm sempre o membro teso como os sátiros e devem ser castrados para se curarem desta importuna perseguição”.274 Como os judeus e as mulheres sobre eles recaia a culpa por diferentes tipos de desgraças: mortes estranhas, tempestades destruidoras de colheitas e bens imóveis ou mesmo uma epizootia, poderia levar ao linchamento de leprosários inteiros, como ocorreu no século XIV no sul da França, tendo os executores recebidos posteriormente a aprovação do monarca por terem castigado devidamente os responsáveis.275 A perseguição sofrida por estes diferentes grupos repõe o problema colocado por Hannah Arendt no conceito de “inimigo objetivo”, “criminosos sem crime” segundo uma vítima de Stalin – uma criação da ideologia totalitária – para explicar a perseguição aos judeus; independentemente de terem feito alguma coisa eles são potencialmente ameaçadores, representam um perigo ainda que nada façam, o mal se inscreve em sua natureza, por isso as paixões e os interesses, como colocamos, estão ausentes da etiologia do mal. O caso das bruxas e dos leprosos, graças a sua similaridade com a questão judaica, nos permite aprofundar o insight de Hannah Arendt, mostrando em outras culturas e em outros tempos, uma declaração de inimizade e antagonismo fundada em termos bastante próximos daqueles expostos na teoria do nacional-socialismo, no qual o hebreu é um negativo às avessas do ariano por isso mesmo ameaçador. Em todos estes casos a lógica mágica da retribuição organiza o raciocínio dos perseguidores, por isso Kierkegaard chamou a religiosidade medieval e protestante de “cristandade” e viu em Lutero um caso exemplar, um revolucionário, por alterar o conceito de martírio do Novo Testamento e ensinar os homens a vencer com a força do número276, suprimindo o princípio evangélico de ser melhor sofrer o mal a afligi-lo a outrem; Nietzsche pouco tempo depois mostraria, em outras palavras, a mesma aberração: “O que Cristo negou? Tudo o que hoje se chama cristão”.277 Mas a observação de Kierkegaard é válida para bem antes do alemão Martinho e dos protestantes, vale também para os ex-colegas de batina de Lutero: os frades dominicanos e os jesuítas, e com eles a Igreja, precursores na senda mais tarde trilhada pelos reformadores, no retorno do cristianismo a lógica sacrificial do paganismo entendido como a aceitação do princípio – antijudaico e anticristão – mágico e mítico nas relações sociais aceitando como

274 Idem, p. 133. 275 Ibidem, p. 138 e 139. Neste livro, nas p. 139-140 é contada também a discriminação sofrida pelos , populações dos vales dos Pirineus marcadas pelo raquitismo e pelo nanismo; para o povo comum eles eram tratados como leprosos e como tal excluídos de tudo. 276 KIERKEGAARD, Diário Íntimo, op. cit., p. 399. 277 NIETZSCHE, A Vontade de Domínio. Buenos Aires: Aguillar, 1967, aforisma 158. 75

factível encontrar a origem do mal, ou para retomarmos a expressão de Evans Pritchard, agir sobre o único fator a ser corrigido, a vontade maléfica... do outro. Evidencia-se aqui o caráter problemático da afirmação de Hannah Arendt sob a modernidade das ideologias totalitárias e dos fenômenos delas decorrentes, em especial, o extermínio sistemático de inocentes; mulheres, judeus e leprosos se enquadram perfeitamente como “inimigos objetivos”. A inocência das vítimas destes procedimentos políticos – isso foi a Inquisição, por exemplo – repõe o tema do julgamento e da causalidade, pois a perseguição era deflagrada quando atribuíam à responsabilidade de fatos empiricamente verificáveis – desastres, acidentes etc. – a vontade destruidora de um determinado grupo social. A bruxaria como teoria das relações interindividuais, seja entre os povos primitivos ou como ideologia do clero, apesar das gritantes diferenças entre uma e outra, sempre operou como uma teoria causal, tornando transparente o autor “invisível” do infortúnio. Quando nós classificamos a demonologia, o discurso dos padres e pastores, como simpática, mágica, estamos dizendo ter havido entre os inquisidores e suas vítimas comunicação intersubjetiva, estava presente um mesmo objeto sendo percebido por diferentes pessoas e comum a elas; e sentir o mesmo que o outro é o princípio elementar da simpatia.278 Já havíamos demonstrado esta comunidade como uma forma de imitação presente nas representações, simetricamente invertidas, de algozes e condenados, manifestas entre os judeus e os nazistas, assim como entre as bruxas e o clero, por isso o totalitarismo não pode ser pensado como uma forma de insanidade – e isto é insinuado indiretamente por testemunhas e estudiosos do Holocausto como Primo Levi e Giorgio Agamben quando consideram o paradoxo presente no testemunho dos sobreviventes279 – porque esta só existe para Kant quando há “[...] perda do sensus communis e a teimosia lógica em insistir no seu próprio (sensus privatus)”, considera ele estar neste sensus communis “[...] um sentido comum a todos, isto é, de uma faculdade do juízo que, em sua reflexão, leva em conta (a priori) o modo de representação de todos os outros homens em pensamento [...]”280. Quando Marcel Mauss considera todas as operações mágicas como juízos é porque “os juízos mágicos são anteriores às experiências mágicas; são cânones de ritos ou cadeias de representações; as experiências só são feitas para confirmá-los e quase nunca conseguem invalidá-los”281, isso tem algo a ver com as ideologias? Claro, estas se fundam no distanciamento de qualquer tentativa de análise crítica sobre si mesmas, caso contrário sua

278 SCHELER, Max, Esencia y Formas de la Simpatia, op. cit., p. 128. 279 Ver a respeito o texto de Agamben, O Que Resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 25ss. 280 Kant citado por Hannah Arendt, A Vida do Espírito, op. cit., p. 379. 160 MAUSS, Marcel, op. cit., p. 157. 76

irracionalidade seria exposta abertamente. Lévi-Strauss quando elogia o trabalho de Mauss refere-se à sua contribuição à etnologia de entender o ato mágico como um juízo e introduzir na crítica etnográfica “[...] uma distinção fundamental entre juízo analítico e juízo sintético [...]”282: proposições como o judeu é mal/mulheres são bruxas e coisas do gênero, são juízos sintéticos, julgamentos cujo esclarecimento o cientista deve realizar. Quando Hannah Arendt contrapõe ao mal radical à práxis do juízo ela está considerando o papel dos princípios morais presentes em nossa conduta manifestando a condição de nossa vontade, porque máximas, como axiomas aceitos voluntariamente para orientar a conduta ou o pensar “aplicam-se e são necessárias só para questões de opinião e de juízo”283 como “pensar por conta própria”, expresso por Kant em sua obra O que é o Esclarecimento, lema da Ilustração; ou estar de acordo consigo mesmo, máxima da consistência, ou, como já colocamos, do princípio da não contradição. Mas estas máximas são datadas historicamente e configuram o juízo na história da civilização ocidental; mas e quanto à atualidade em que se aboliu a “distinção básica entre o sensorial e o suprassensorial”284 e estendeu-se o juízo aos campos antes reservados à autoridade e interditados aos homens comuns?285. O juízo não pode, segundo nosso ponto de vista, ser o contraponto ao totalitarismo, por ser parte do problema; ou colocado nos termos dos aforismas de Nietzsche vivemos em um tempo no qual o juízo se universalizou e desconhece fronteiras a sua práxis286; esta ausência de limites significou a supressão da transcendência e com ela, como decorrência necessária, a crise das aparências. A garantia da realidade da percepção dada pelo senso comum, como possibilidade mesmo da intersubjetividade, sempre se fundou em uma crença universal, cujo fiador era autoridade. A morte dos deuses, ou de Deus, engendrou o sentimento universal da suspeita espreitando todo o enunciado sobre o real; Nietzsche compreendeu em sua radicalidade o vínculo existente entre a percepção, ou o senso comum se quiserem, e o fenômeno da autoridade e do transcendente a ela imanente: “O verdadeiro mundo nós o expulsamos: que mundo resta? O aparente, talvez?...Mas não! Com o verdadeiro mundo expulsamos também o aparente!”287.

161 Lévi-Strauss, “Introdução à obra de Marcel Mauss” in Marcel Mauss: Sociologia e Antropologia, op. cit. 283 ARENDT, Hannah, “A Vida do Espírito”, op. cit., p. 379. 284 Ibidem, p. 10. 285 Cf. Hannah Arendt, em seu artigo “O Que é Autoridade”, em Entre o Passado e Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 129, esclarece que “A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos tem o seu lugar estável predeterminado.” Em outras palavras, trata-se das formas tradicionais de sociedade. 286 NIETZSCHE, A Vontade de Domínio, op. cit., aforisma 854, p. 331. “[Nosso tempo] é a época em que cada qual tem o direito de julgar a cada indivíduo e a cada coisa”. 287 NIETZSCHE, “O Crepúsculo dos Ídolos”, aforisma 5, in Nietsche, Obras Incompletas, op. cit., p. 331. 77

A crise da cultura é o ventre do totalitarismo. A supressão dos valores, dos parâmetros organizadores da atividade do julgamento, abrem o contingente, em sua infinita multiplicidade, ao caos da interpretação. A resposta das ideologias à crise dos valores, da cultura – atestado pelo menos no caso das bruxas e dos judeus – foi restaurar a solução mágica do bode expiatório; testemunhando a religiosidade mítica renascendo pelos movimentos totalitários. As ideologias sempre tiveram como meta última constituir-se como costume, estabelecer-se como paradigma universal, tornar-se a cultura em última instância. Mas as suas metas aparentemente contradiziam os meios: o ideal de uma sociedade igualitária em que a exploração do homem pelo homem inexistisse e a ciência governasse a opinião, tinha em seu reverso a apologia da violência; justificava-se o recurso à força por se defrontarem com inimigos poderosos, cuja força residia na dissimulação, fossem eles um gênero, uma classe ou uma raça, estavam dispostos a tudo a fim de impedir a consumação do paraíso, por isso toda ideologia disposta a se prezar, e todas estão, sacralizam a violência como a parteira necessária da história. As representações totalitárias, sejam elas quais forem, afirmam em uníssono a relevância do uso da força; a relação das ideologias com a violência associa-se ao reconhecimento da cultura, dos valores regentes de uma ordem, como “alienação”, como máscara a ser retirada e com isso tornar transparente a loucura escondida pelas aparências, as quais por isso mesmo a expressam e são rigorosamente falando, portanto, parte dessa perversão. Seja o nazismo ou o bolchevismo, todos têm como meta da sua ação a denúncia do caráter enganoso do senso comum, ou em outras palavras, a incapacidade do juízo, enquanto faculdade, de discernir o real. O “inimigo objetivo” desconhece a sua própria natureza, como o lobisomem só reconhece sua condição quando a lua cheia se manifesta, mas aí já é tarde demais; assim é com os judeus e bruxas, prisioneiros de sua própria natureza. Esta duplicidade é o estigma das mulheres, dos leprosos, dos judeus e dos aristocratas; em todos, sem exceção, a acusação de hipocrisia legitimou para seus carrascos a sua exclusão do convívio dos homens.

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3 MITO E TOTALITARISMO: A LÓGICA SACRIFICIAL COMO NATUREZA DAS IDEOLOGIAS

No Espírito das Leis, em capítulo intitulado “Muito humilde exortação aos inquisidores da Espanha e de Portugal’’288, Montesquieu publica o lamento de um judeu ibérico chocado com a execução pela Inquisição de uma adolescente de sua crença no último auto-de-fé realizado em Portugal no século XVII. A carta descreve a disposição dos inquisidores em converter os judeus ao cristianismo por atos pouco evangélicos, estranhos à mensagem de Jesus; queimar na fogueira assemelha-se mais as atitudes de Diocleciano e Nero, os primeiros grandes inimigos romanos da Igreja289. As palavras do magoado israelita escritas trezentos anos atrás, reapresentaram o paradoxo presente na profecia de um também judeu, natural de Belém, a seus seguidores israelitas, quanto as ameaças vindas da sinagoga: eles seriam perseguidos e seus assassinos afirmariam para si mesmo com convicção, e entre eles mesmos publicamente, estarem realizando a vontade de Deus290. A profecia do Filho de Maria, pronunciada há dois mil anos, realizou-se nele primeiramente quando da sua crucificação, só após a sua execução recaiu sobre seus discípulos a violência, legitimada religiosamente, dos executores judeus e pagãos, como seu mestre anunciara. Poucos séculos mais tarde o paradoxo do nazareno se voltará contra os seus aparentes herdeiros, pela surpreendente metamorfose dos cristãos de mártires em perseguidores de judeus e heréticos como ocorreu no catolicismo e no protestantismo291. Jesus de modelo a ser imitado tornou-se máscara de uma vontade de potência orientada para submeter o mundo por todos os meios disponíveis inclusive, ou principalmente, pela força, camuflando para si mesma seus objetivos como fins éticos, morais. A mudança não passou despercebida a Nietzsche para quem textos como os Evangelhos “só têm valor na luta, como estandartes, não como realidades, mas como palavras magníficas para outras coisas completamente diferentes”292; por isso ele denunciou a presença judaico/cristã nos

288 MONTESQUIEU, O Espírito das Leis (coleção Pensadores), São Paulo: Editora Abril, 1997, livro XXV, cap. XII, p.158. 289 MONTESQUIEU, op. cit. 290 “Digo-vos isto para que não vos escandalizeis. Expulsar-vos-ão das sinagogas. E mais ainda: virá a hora em que aquele que vos matar julgará realizar um ato de culto a Deus”, Evangelho de São João, 16. O texto é da Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 1995. Esta excelente edição ganhou renome por ter sido organizada pela Escola Bíblica de Jerusalém sob os auspícios de Roland de Vaux, P. Benoit, Etiene Gilson e outros. René Girard elogia esta edição em seu estudo sobre Jó, A Rota Antiga dos Homens Perversos. São Paulo: Paulus, 2009, p. 83ss. 291 Ver História do Cristianismo de Paul Johnson, Rio de Janeiro: Imago, 2001, parte dois, “De Mártires a Inquisidores” e parte quatro, “A Sociedade Total e seus Inimigos”. 293 NIETSCHE, A Vontade de Domínio. Buenos Aires: Aguillar, 1967, aforisma 80. 79

extremismos da modernidade293, ascetismos em que se pratica o mal quando se quer o bem conforme a inversão do enunciado de Goethe por Max Weber294, reiterando a indicação de Nietzsche quanto as raízes religiosas das ideologias modernas e laicas de salvação. Resulta em contradição comparar Jesus ao comportamento institucional da(s) Igreja(s), entre a idealidade do religioso e sua experiência histórica e institucional há uma distância incomensurável. Kierkegaard compreendeu a antinomia e inverteu-a: para se realizar o bem hoje é necessário aparentar fazer o mal ou pondo de ponta-cabeça sua proposição: para ele sob a forma do bem se realizava o mal e a religião é prisioneira desta condição por ser ela mesma, enquanto instituição, uma esfera pública e assim fonte de poder. A Reforma protestante foi exemplar, ela sem o querer reafirmou a proposição de Vico, sobre a origem religiosa do mundo da política e de suas instituições295. Mas desde há muito o catolicismo já se organizara como uma experiência pública no sentido moderno do termo; Tocqueville, Carl Schmitt e Foucault, mostraram ter sido a Igreja o modelo dos primeiros arquitetos de Estados, os reis296. Na Idade Média um intelectual e um religioso – Marsílio de Pádua e Francisco de Assis – perceberam o problema e deram soluções diferentes a ele como apresentaremos adiante. Antes de Montesquieu, da Ilustração e de Kierkegaard o descompasso entre a instituição religiosa e Jesus já era proclamado pelas heresias desde Santo Agostinho297 até o texto essencialmente político d’“O Defensor da Paz” de Marsílio de Pádua298, no século XIV. Em Maquiavel299 e Hobbes o tema reaparecerá na teoria política dos primeiros tempos da Era Moderna, e em Nietzsche, em A Vontade de Potência ele ecoa na filosofia do século XIX e pela literatura russa, em Dostoiévski, este antagonismo será considerado a própria natureza do

293 Ver aforisma 9 de “Para a Genealogia da Moral”, Nietsche, Obras Incompletas, São Paulo: Abril (coleção Os Pensadores), 1983, p. 300. 294 Weber transcreve às avessas passagem do Fausto de Goethe (ato 1,v 1337): “ a força que sempre quer o mal e sempre faz o bem”, in A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, op. cit., p. 156. Vale a pena lembrar “que o nazismo começa com uma preocupação e uma proposta estética: banir da cultura europeia as representações do mal [...] era como os nazistas se referiam as [...] produções que procuravam elaborar e criar um espaço simbólico para a ‘feiúra’ (como a arte de Kokoshka); o erotismo, o ‘doentio’ (como os textos de Freud) [...] Vocês sabem o que os nazistas fizeram com a Entarte Kunst (a arte degradada): uma fogueira monumental. Em nome do bem...”. Maria Rita Kehl, “O Sexo, a Morte, a Mãe e o Mal”, in NESTROVSKI, Arthur e SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.), Catástrofe e Representação”, São Paulo: Escuta, 2000, p. 143. 295 Quanto a Vico, refiro-me ao aforisma 31da sua obra clássica, A Ciência Nova, São Paulo: Abril, 1979. Quando ele refuta a afirmação de Políbio sobre a natural supressão da religião se todos fossem filósofos, dizendo “[...] na verdade, se não existissem as repúblicas, que não podem ter nascido sem as religiões, não existiriam filósofos no mundo”. 296 TOCQUEVILLE, O Antigo Regime e a Revolução, op. cit., p. 150; FOUCAULT, A Verdade e as Formas Jurídicas, Rio de Janeiro: PUC, l974, cap. 3. L. Moulin em l958 (segundo Michel Maffesoli, A Violência Totalitária, Rio de Janeiro: Zahar, l981, p. 46), antes de Foucault, portanto, mostrou na organização dos mosteiros a origem das técnicas de delegação, das técnicas eleitorais e deliberativas modernas. 297 BROWN, Peter. Santo Agostinho, uma Biografia. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 61ss e 425ss. 298 Em Marsílio a separação entre religião e política é uma necessidade, um pré-requisito para a restauração do cristianismo, ver FALBEL, Nachman, Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1995, p. 185ss. 299 Para uma visão geral dos escritos do Fiorentino sobre religião ver, de GRAZIA, Sebastian, o interessante Maquiavel no Inferno, São Paulo: Cia. das Letras, 1993, p. 96 ss. 80

mal300. A antinomia entre Jesus e a Igreja que estava na cultura cristã da Idade Média, em sua intersubjetividade, era parte dos conteúdos comuns de pensamento das diferentes ordens do Medievo; estava na arte, no Decameron de Bocaccio e na Divina Comédia de Dante Alighieri, também estava na reflexão teológica e no tempo de São Francisco ela estimulava as diferentes heresias a arguírem para si uma capacidade de exemplaridade, de santidade, superior a da Igreja301. Para Hobbes essas múltiplas concepções religiosas revelam anseios políticos e são tão somente opiniões, elas desvelam a religiosidade permeada pela doxa em seu sentido clássico de juízo emitido sem reflexão, sem pesar as consequências do veredicto; o mundo da opinião confundiu-se definitivamente com a religião quando a Reforma, sem o querer, facultou a todos julgar temas antes exclusivos da autoridade; por isso para ele o termo heresia, “quando empregado sem paixão, significa uma opinião particular”302. A profunda intimidade entre religião e política na Europa do medievo e do Renascimento perpetuava o clássico conflito civil da Antiguidade em que o sagrado e a política eram faces de uma mesma moeda, governadas pela opinião e o interesse, levando Maquiavel a considerar os italianos, dos europeus os mais próximos da influência do Vaticano, a terem “com a Igreja e os padres esta dívida: tornamo-nos sem religião e maus”. “[As pessoas] quanto mais próximas da Igreja ... têm menos religião”303. Quando explodiram os conflitos religiosos da Reforma, a paz virá graças ao Absolutismo – o Estado moderno em sua primeira configuração – separando a questão confessional do mundo público político, confinando a religião na subjetividade e no mundo privado, como condição necessária à restauração da ordem civil304. Quando se aplicava ao clero a medida usada pela Igreja para julgar a virtude e o vício da sociedade, transpareciam para todos as ambiguidades da relação do sacerdócio com o mundo, consigo mesmo e com seu ideal de ego, Jesus. O anseio pela adequação dos clérigos aos Evangelhos era uma demanda dos cristãos, assim como a distância entre os padres e as

300 Refiro-me à figura do Grande Inquisidor no romance Os Irmãos Karamazov, ver a respeito a análise de Hannah Arendt em sua obra Sobre a Revolução, cap. 2, “A Questão Social”. 301 Ver a introdução da biografia Francisco de Assis”. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 13, 103, 120 e 278, escrita por Raoul Manselli. 302 “Heresia é um termo que quando empregado sem paixão, significa uma opinião particular Assim as diferentes seitas dos filósofos antigos, os acadêmicos, os peripatéticos, epicuristas, estóicos etc., eram chamadas de heréticas. Para a Igreja tal termo compreendia em seu significado uma oposição pecaminosa a quem fosse o juiz supremo das doutrinas relativas à salvação das almas; [...] a heresia está para o poder espiritual assim como a rebelião para o poder temporal, devendo ser perseguida por quem deseja conservar um poder espiritual e um domínio sobre as consciências dos homens”. HOBBES, Behemoth ou o Longo Parlamento, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 40. Para Habermas “Opinion” assume em inglês e em francês o sentido nada complicado do termo latino opinio, a opinião, o juízo sem certeza, não plenamente demonstrado. “A linguagem técnica filosófica, da ‘doxa’ de Platão até o Meinem de Hegel corresponde [...] ao entendimento semântico da linguagem cotidiana”. HABERMAS, Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 110. 303 Maquiavel citado por De Grazia, op. cit., p. 97. 304 Cf. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise, Rio de Janeiro: EdUerj/Contraponto, 1999, p. 19ss. 81

Escrituras era denunciada por seus inimigos, as forças antagônicas à Igreja na disputa pelo domínio do secular. Em O Defensor da Paz305 o engajamento da Igreja no mundo da política era condenado por levar ao afastamento do ideal evangélico naturalmente estranho a qualquer pretensão de domínio. A Reforma protestante e as guerras de religião dela nascidas divorciaram o cristianismo de Roma e a busca da paz exigiu o divórcio definitivo entre religião e política. A secularização suprimiu a velha e antiquíssima associação do trono com o altar, tornando a religião assunto privado e a subjetividade o seu âmbito; a nova configuração do público e do privado obrigou sobretudo o soberano, interditando-o  pela multiplicidade das confissões entre seus súditos  de “conduzir os negócios públicos consoante as regras morais que o particular deve observar”306. O anseio das seitas de impor suas concepções a todos engendraram as guerras de religião dos séculos XVI e XVII, a primeira expressão da moderna guerra civil, como conflito de ideias, segundo Tocqueville307. A solução do absolutismo para estabelecer e perpetuar a paz civil no século XVII foi legalizar o pluralismo religioso, pré- requisito necessário ao estabelecimento do Estado moderno, de uma ordem sem costume, na qual a opção por uma confissão religiosa se tornou uma decisão de foro íntimo, resultado da deliberação interior e destituída de consequências públicas. A separação entre a subjetividade e o mundo, entre os espaços de Deus e o dos príncipes, trouxe o pluralismo religioso e a autonomia interior, o primeiro direito privado moderno, exigindo das religiões abdicarem do desejo de tornarem-se a alma da ordem, costume, como nas sociedades tradicionais em que a vida coletiva e a vida privada são governadas por um só valor e o indivíduo e a sociedade estão associados irreversivelmente308. O divórcio entre público e privado foi uma consequência inesperada da Reforma e contra a vontade dos contendores religiosos. A constituição da esfera privada, da autonomia individual, isenta de qualquer obediência às igrejas em luta, teve como contrapartida a aceitação do poder do rei nos negócios públicos e foi uma vitória do poder político secular sobre Roma e o protestantismo obtida graças à fragmentação do cristianismo.

305 A obra de Marsílio de Pádua, defendia o poder imperial do sacro-império sobre o papado. Para o paduano “[...] os poderes da Igreja [...] desde o legislativo até o da administração de bens temporais, não lhe devem pertencer pois são parte das atribuições únicas do Estado [...] não se pode admitir que o Papa exerça qualquer poder temporal. Se ele exerce tal poder, pior para ele, pois é justamente isto que o leva a corromper o corpo místico de Cristo, causando escândalo, e promovendo o nepotismo e simonia”. PÁDUA, Marsílio. Defensor Pacis in G. de Lagarde, La naissence de l’Espirit Laique au Declin du Moyen Age, Paris: PUF, 1948,vol. II, XXIV, 2, p. 368 apud Nachman, op. cit. p. 188. 306 Spinosa comenta estar o soberano impedido de “conduzir os negócios públicos consoante as regras morais que o particular deve observar”, in Baruch Spinoza, Tratado Político (coleção Os Pensadores). São Paulo: Editora Abril, 1973, p. 313. 307 Ver capítulo primeiro do Antigo Regime e a Revolução, op. cit. 308 Hobbes, O Leviatã, op. cit., p. 60, define costume em sentido excessivamente amplo: “[são] aquelas qualidades humanas que dizem respeito a uma vida em comum pacífica e harmoniosa”. A definição de Nietzsche, discutida mais adiante é bem mais completa e amparada pela etnografia como veremos. 82

A Reforma, contra a vontade de seus promotores, multiplicou as confissões religiosas e franqueou o cristianismo ao debate público. Lutero acreditou ter liberado o poder vinculante sobrenaturalmente das Escrituras309 quando na verdade remeteu a experiência religiosa ao mundo da opinião; como definiu Wilhem Dilthey310, o monge agostiniano foi um príncipe, no sentido de Maquiavel, ator político voltado à fundação de uma nova ordem, incapaz por isso de ser absorvido pela Igreja por implodir os estreitos limites do pluralismo católico e desqualificar Roma como matriz do costume. Carl Schmitt segue Vico quando afirma a religião como origem de nossas instituições políticas; a Igreja como Complexo Oppositorum311 permitiu a convivência de opiniões e práticas diferenciadas, formando um espaço de debate e de julgamento, juridicamente organizado, como posteriormente será o Estado. Em Michel Foucault a Igreja é a burocracia resultante da associação voluntária de homens fundada em uma relação única entre a verdade e a forma Jurídica em que uma e outra se correspondem no tempo e na Instituição por meio do juízo, do debate312. Do manso São Francisco às ordens de monges militares, da experiência do eremita às de um coletivo com características políticas declaradas, a Igreja sempre buscou se confundir com a cultura e integrar em si, por meio da sua forma política e jurídica, a religiosidade e a cultura em sua totalidade, buscando portanto ser a matriz dos valores, ser o costume. Na Idade Média foram raros os momentos nos quais a compaixão e a piedade existiram como experiências externas ao corpo eclesial porque a Igreja ao dirigir-se ao seu outro, ao mundo, buscava integrá-lo em seus princípios sem necessariamente suprimir suas particularidades. Roma, como uma burocracia governada pelo argumento racional, promoveu o exercício do poder  imitado posteriormente pelo Absolutismo  alicerçado na ideia de verdade baseada no inquérito presente em nossa tradição jurídica e em nosso fantástico domínio sobre a natureza. Para Michel Foucault, a relação entre a verdade e o jurídico presente na Igreja e posteriormente na modernidade política ocidental, nasceu entre os gregos tornando-se um axioma de nossa cultura pela mediação das burocracias formadas de modo voluntário: a Igreja e o Estado313. O pluralismo eclesial, consequência de exigências políticas e religiosas de um corpo multinacional e multifacetado, sempre buscou restringir a dissidência a limites aceitáveis porque suprimi-las era impraticável.

309 A expressão é de CASSIRER, Ernest. La Filosofia de La Ilustración. Mexico,: Fondo de Cultura, 1976. 310 O comentário de Dilthey está na introdução de Agnes Heller ao seu livro, O Homem do Renascimento, Lisboa: Moraes Editora, 1989. 311 SCHMITT, Carl. Catolicismo Romano e Forma Política, Lisboa: Hugin Editores, 1998, p. 22. 312 FOUCAULT, A Verdade e a Forma Jurídica. Rio de Janeiro: PUC, mimeografado, 1974. 313 Foucault, A Verdade e as Formas Jurídicas, op. cit. 83

A heresia é o fruto natural da opinião, por isso Francisco de Assis interditou o estudo e discussões em sua ordem por considerá-los como um perigo para a Fé314 e afastou-se dos argumentos de grupos religiosos sempre prontos a invocar a pureza de suas intenções e a santidade dos seus integrantes e contrapô-las à corrupção do clero; uma maneira de ser estranha ao santo de Assis para quem só valia a imitação do Cristo e, por extensão, a interdição do juízo. Graças a Francisco, e a sua habilidade em transigir e negociar com a burocracia eclesial, as ordens mendicantes foram incorporadas ao complexio oppositorum e a crise deveria esperar por Lutero, dois séculos mais tarde, para explodir. A exemplaridade franciscana supera a questão da aparência, presente no contínuo julgamento do outro como era do estilo das heresias e da própria Igreja, e situa a religiosidade como fenômeno subjetivo, o “bom combate” de São Paulo, a luta consigo mesmo, em que o fenômeno da aparência é eclipsado pela relação do eu com o divino. Francisco foi cristão no sentido original do termo; ele não sucumbiu à tentação de aceitar o cristianismo como costume e de relacionar religião e território como a Igreja do seu tempo fez e praticou até o século XIX quando a reunificação da Itália confiscou os territórios papais e confinou o Pontífice ao Vaticano. Como Francisco de Assis, Kierkegaard também separou o Cristo e a religiosidade institucional das Igrejas, acusando todas as confissões de seu tempo como antagônicas aos Evangelhos, classificando-as sob a rubrica de “cristandade” manifesta na aliança do protestantismo com a política moderna, “onde ambas as partes lutam pela mesma coisa, pela soberania do povo”315; uma estranha tentativa de retomada do paganismo e da tradição, de unir política e religião. Carl Schmitt, na antípoda de Kierkegaard, comenta terem “os ateus franceses e os metafísicos alemães, que redescobriram o politeísmo no século XIX, (louvado) a Igreja, pois julgavam descobrir nela um paganismo saudável”316. Ao querer unir subjetividade e mundo, costume e domínio territorial, a Igreja tornou-se “cristandade” e incorporou elementos mágicos – a Inquisição como vimos, é a prova disso – na crença de desvelar a origem mesma do mal e legitimar transcendentalmente o recurso à violência, em nome de Deus. Na denúncia do mito em religiões cristãs René Girard segue Kierkegaard, para ambos o ressentimento ainda presente em nossa cultura mostra a vingança, comum ao paganismo e ao mundo primitivo em geral, sobrevivendo ao impacto do cristianismo e utilizando os

314 Como tradicionalmente toda regra comporta exceções, Francisco permitiu somente a um de seus seguidores, conhecido pela posteridade como Santo Antonio, estudar permanentemente. Manselli, op. cit., p. 126. 315 KIERKEGAARD, Diário, op. cit., p. 25. 316 SCHMITT, Carl. Catolicismo Romano e Forma Política, op. cit., p. 23. 84

Evangelhos para seus próprios fins317. A lógica mítica passou a governar as Igrejas, ou para falarmos nos termos do hebreu, citado por Montesquieu, os cristãos se transmutaram em seus antigos perseguidores pagãos. Para entender esta transformação refletiremos agora sobre as diferenças entre a tradição pagã e as Escrituras judaicas e os Evangelhos de um lado, e de outro, da tensão entre a doutrina bíblica e as instituições encarregadas de promovê-las, ou entre religião e ética no mundo judaico-cristão. As sociedades em que a subjetividade e o mundo são interligados entre si e subordinados a valores alicerçados na transcendência, na religião, são denominadas de tradicionais, nelas se obedece a uma autoridade superior classificada hoje como tradição, “[...] não porque ela manda fazer o que nos é útil mas porque ela manda” (ênfase no original)318, assim era o costume. Nestes mundos é caluniado como desviante e mau todo elemento desobediente ansioso em se guiar pelo cálculo da sua utilidade desconsiderando a comunidade, o todo. O sujeito ideal desta ordem é quem mais interioriza o costume e desconsidera o princípio da utilidade individual e os possíveis benefícios a serem auferidos, afirmando a tradição as expensas do proveito individual. O homem livre, nós enfim, aos olhos do mundo pré-moderno, é não ético porque ao desejar depender exclusivamente de si mesmo afasta-se do ethos, do mos, respectivamente os vocábulos grego e romano para costume. O contraste entre o ascetismo cristão e pagão ajudará a esclarecer as diferenças de valores entre um e outro. No mundo da tradição o ascetismo se diferencia do seu congênere judaico e cristão pelo significado atribuído pela sociedade ao ato. Apesar de corajosos quando martirizados, os cristãos eram julgados pelos romanos como estranhos, inimigos, maus, porque se dissociavam da comunidade, por ambicionarem antes de tudo a sua própria felicidade designada como salvação entre os seguidores do nazareno319. O costume entende a desobediência individual como acarretando consequências nefastas sobre toda a comunidade, o erro de um traz o castigo sobre todos; vejamos um exemplo de conexão entre o indivíduo e a comunidade em uma história bíblica. Segundo as Escrituras a palavra de Iahweh foi dirigida a Jonas, filho de Amati: Levanta-te vai a Ninive, a grande cidade e anuncia contra ela que a sua maldade chegou até mim. E Jonas levantou-se para fugir para Társis, para longe da face de Iahweh [...] Mas Iahweh lançou sobre o mar um vento violento, e houve no mar uma grande tempestade, e o navio estava a ponto de naufragar. Os marinheiros tiveram medo e começaram a gritar cada um para o seu deus. Lançaram ao mar a carga para aliviar o navio. Jonas, porém, havia descido para o fundo do navio, tinha-se deitado e dormia profundamente. O comandante do navio aproximou-se dele e lhe disse: Como podes dormir?, Levanta-te e invoca teu Deus! Talvez Deus se lembre de nós e não pereceremos”. E eles diziam uns aos outros: “Vinde,

317 GIRARD, René. A Voz Desconhecida do Real. Lisboa: Instituto Piaget, p. 126. 318 Nietzsche, Aurora, livro 1, aforisma 9. São Paulo: Abril, coleção Pensadores. São Paulo: Abril, 1983, p. 159. 319 Ibidem. 85

lancemos sortes para saber por causa de quem nos acontece esta desgraça”. Eles lançaram as sortes e a sorte caiu sobre Jonas. E lhe disseram então: “Conta-nos qual é a sua missão, donde vens, qual a sua terra, a que povo pertences”. Ele lhes disse: “Sou hebreu, venero a Iahweh, o Deus do céu, que fez o mar e a terra”. Então os homens foram tomados por um grande temor e lhe disseram: “Que é isto que fizeste?” Pois os homens sabiam que ele fugia da face de Iahweh, porque lhes tinha contado. Eles lhe disseram: “Que te faremos para que o mar se acalme em torno de nós?” [...] Ele lhes disse: “Tomai-me e lançai-me ao mar e o mar se acalmará em torno de vós, porque eu sei que é por minha causa que esta grande tempestade se levantou contra vós”. Então os homens remaram para atingir a terra, mas não puderam, pois o mar se tornava cada vez mais tempestuoso contra eles. Eles invocaram então a Iahweh e disseram: Ah! Iahweh, não queremos perecer por causa da vida deste homem! Mas não coloques sobre nós o sangue inocente, pois tu agiste como quiseste”. E tomaram Jonas e o lançaram ao mar e o mar cessou o seu furor. Os homens foram tomados por um grande temor para com Iahweh, ofereceram um sacrifício a Iahweh e fizeram votos“(Jonas 1,15).320

Curiosamente, nesta passagem, a Bíblia compartilha a lógica pagã e mítica, dominante em todas as sociedades tradicionais, do bode expiatório, longamente estudada e criticada por René Girard, na qual o sacrifício do responsável pelo dano é a única maneira de apaziguar a divindade. A narração destaca a diversidade religiosa, étnica e cultural da tripulação do navio invocando cada um o seu deus na tentativa de livrar a embarcação da tribulação e salvar os marinheiros da morte. Apesar das diferenças todos buscam um responsável pela calamidade coletiva. A multiplicidade de divindades não esconde o padrão comum presente em todas como representações do divino típicas das sociedades pré-modernas governadas pelo costume e, sem exceção, todos entendem a relação de dependência existente entre o sujeito e a comunidade, estão conscientes quanto à consequência imediata da falta individual é fazer recair sobre todos o castigo. Por isso a busca por um culpado dispensa acionar a racionalidade formal de investigação por nós conhecida como inquérito e traz a magia no recurso às sortes. O texto bíblico é indefinido quanto ao modo como Jonas é indicado como o responsável pela tragédia da embarcação, mas isto é irrelevante em nosso contexto. Os diferentes mecanismos adivinhatórios, acionados por múltiplos povos – astrologia, i ching, tarô, sorte dos apóstolos, leitura de cartas, quiromancia etc. – são processos mágicos e como tal acreditam na correlação entre o todo e as partes321; conceitualmente este fenômeno é governado pelo princípio da sincronicidade por sugerir correlações entre eventos causalmente não relacionados322. A história de Jonas, apesar de estar nas Escrituras, divide com a tradição

320 Bíblia de Jerusalém, op. cit., p. 1765. Jonas é citado por Jesus no Evangelho de São Mateus como o único sinal a ser deixado por ele aos fariseus, seus antagonistas. Para Girard Jonas indica a prática mítica da vítima inocente reproduzida pelos judeus, ver de Girard, O Bode Expiatório, op. cit., p. 154. 321 Cf. Marcel Mauss e Hubert, O conceito de magia in Marcel Mauss: Sociologia e Antropologia, op. cit., p. 58. No tempo de S. Francisco abrir as Escrituras ao acaso para responder uma dúvida era chamada “sorte dos apóstolos”, ver a obra de SPOTO, Donaldo, Francisco de Assis, o Santo Relutante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 119. 322 Cf. C. G. Jung, citado por Alan Vaughan, Incredible Coincidence, The Baffling World of Sincronicity. New York: J.B. Lippencourt Co., 1979, p. 16. Ver também GRANET, Marcel, O Pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 113 ss: os chineses antigos chamavam esta ocorrência como as “relações regulares entre os seres”. Ver também, 86

e o mundo primitivo em geral, do princípio da responsabilidade coletiva e da mútua dependência do sujeito com seu povo; mas domina a Bíblia outra perspectiva para o sagrado, em que religião e ética não só se separam como se antagonizam nos apresentando a possibilidade de entender a tensão entre espírito e instituição, comentada por nós desde o início deste texto, e indagar o porquê da violência presente nas religiões e sua simetria com o conflito de origem secular. Em tese as diferenças entre o judaísmo/cristianismo e a religiosidade das sociedades tradicionais, fundada no costume, tendem a ser descartadas pela antropologia em geral como insignificantes e as identidades, os elementos comuns, são apresentados com destaque e reforçados como foi o caso de Frazer323 e de outro antropólogo, P. Wendland: ambos comentam a estranha analogia entre a paixão evangélica e os mitos como “o tratamento dispensado ao Cristo pelos soldados romanos e aquele que outros soldados romanos infligiram ao falso rei das Saturnais em Durostorum”324. Mas quando lemos a apologia de Kierkegaard a Abrahão nos deparamos com uma compreensão do sagrado absolutamente distinta daquela exposta nos mitos, em que costume e religião são uma coisa só; a Bíblia antagoniza o indivíduo com a comunidade, opondo religião e ética, religião e costume325: aquela como fundadora do sujeito, por exigir uma individuação radical, colocando cada um em relação exclusiva com a divindade enquanto o costume em geral une cada um com o outro tornando possível a vida em sociedade pela aprovação dada pelo todo às ações individuais. Kierkegaard marcará esta diferença comparando o sacrifício presente em todos os povos na Antiguidade com o caso de Isaac, fundador da história judaica. Em quase todas as culturas fundadas no costume, o sacrifício existiu como um ato socialmente inteligível, ou em termos sociológicos, uma ação legítima, compreendida e aceita por todos entre os quais se incluía a vítima, em estranho efeito mimético, como em Jonas e em Jó e no esforço de seus acusadores em fazê-los assumir a responsabilidade pela condição nefasta dos acontecimentos e do sofrimento deles advindos326; este é o caráter das histórias clássicas de sacrifício de homens, mulheres e até mesmo crianças, nas diferentes culturas nas

Sincronicidade: A Promessa da Coincidência de Deike Begg. São Paulo: Cultrix, 2003, p. 24, em que sincronicidade é conceituada como um princípio de ligação não causal. 323 Ver Los Orígenes de la Cultura”, de René Girard, Madrid: Trotta, 2006, p. 141ss. Girard mostra como Frazer se espantou diante das semelhanças entre os mitos pagãos e os Evangelhos. 324 Wendland e Frazer, citados por René Girard em Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 211 e 212. 325 KIERKEGAARD, Sören. Temor e Tremor (coleção Os Pensadores). São Paulo: Abril, 1985, p. 150ss. 326 Ver a respeito, de GIRARD, René. A Rota Antiga dos Homens Perversos. São Paulo: Paulus, 2009, p. 146. 87

quais o rito existiu327. A única exceção a este quadro foi o holocausto de Isaac pedido por Deus a um homem chamado Abraão, pai da vítima. Como é de conhecimento geral houve entre este homem e Iahweh um pacto, no qual Deus pedira fé a Abraão e consentira no pedido deste em dar à Sara, sua mulher, uma criança, a quem o pai deveria circundar no oitavo dia e nomeá-la Isaac, o filho da promessa, por meio de quem a descendência de Abraão seria tão numerosa quanto as estrelas. A espera por este menino fora longa para Sara e seu homem; sua natividade trouxe alegria e renovou a fé em Deus e esperança em suas promessas. O Gênesis nos recorda ter sido Abrahão provado na juventude de Isaac, quando Deus o ordenou sacrificar seu filho em uma montanha no país de Morija; pelo relato bíblico o patriarca tomou dois de seus servos, selou seu jumento e partiu com o menino para o local indicado. Quando interrogado pela criança sobre o cordeiro para o holocausto responde de forma sucinta: “É Deus quem proverá [...]”. Ao chegarem, depois de três dias de jornada, Abraão construiu o altar, preparou a lenha, amarrou seu filho e o estendeu no altar sobre a madeira para queimar e ao levantar a faca para imolar Isaac foi detido pelo anjo de Iahweh e por meio dele recebeu a benção do Criador, extensiva a sua posteridade, por sua obediência e fé (Gênesis,1-18). A leitura deste evento por Kierkegaard em seu ontológico Tremor e Temor é, para dizer o mínimo, edificante, como era o desejo do autor; na originalidade de sua interpretação – eivada de erudição e insights teológicos e antropológicos – reside a serventia deste texto para nós. A obra distingue claramente a experiência de Abraão da práxis sacrificial do mundo grego-romano, vale dizer, das sociedades fundadas no costume. Para Kierkegaard, Abraão é um estranho para as culturas de seu tempo; o mundo da tradição, e o de hoje também, faria eco das palavras de Hegel denunciando a condição de assassino do patriarca se o seu ato for julgado pelas categorias da ética, ou seja, pela dimensão própria a esfera pública. A imolação de Isaac é toda pautada pelo silêncio do patriarca, ele velou sua intenção para Sara e Isaac, assim como para Eliezer e o público em geral se quiserem; aparentemente só em Deus foi possível a Abraão encontrar algum significado e conforto para a sua ação, daí o imperativo do recurso ao segredo. O ato narrado no Gênesis é em si bastante distinto das execuções sacrificiais cometidas por Jefté328 ou por Agamenon329 contra suas respectivas

327 Nos Andes, a herança religiosa dos Incas perpetua o sacrifício de crianças até os dias de hoje, ver, de TIERNEY, Patrick, The Highest Altar. USA: Viking Penguim, l989, p. 245ss. 328 JZ 11,12-31. A Bíblia nos conta ter Jefté feito um voto a Iahweh para vencer o inimigo de Israel: “[...] aquele que sair primeiro da porta da minha casa para vir ao meu encontro quando eu voltar vencedor do combate contra os amonitas, esse pertencerá a Iahweh, e eu o oferecerei em holocausto [...]. Quando Jefté voltou a Masfa, à sua casa, eis que a sua filha saiu ao seu encontro [...]. Era sua única filha.” 329 Euripedes, Efigênia em Áulide, citado por Kierkegaard, Temor e Tremor, op. cit., p. 162. 88

filhas ou aquele dos marinheiros contra Jonas: todos estes têm seus atos legitimados pela ética, o costume exigiu deles que assim fosse feito, garantindo ao sacrificador o aplauso da sua comunidade; mas para Abraão esta possibilidade não é factível, ele deve permanecer enclausurado em sua subjetividade até o desfecho do drama. Kierkegaard chamou a esta prisão interior de paradoxo330; o patriarca estava confinado em sua interioridade e impedido de lançar mão de qualquer forma de comunicação, a exceção do rogo e da oração os quais por definição não se dirigem aos ouvidos do mundo e devem ser proferidos em silêncio. A angústia do patriarca, aventada por Kierkegaard, certamente nasceu da contradição entre a sua conduta moral, qualificando-o como assassino, enquanto do ponto de vista religioso seu ato é sacro, mas ilegítimo perante o olhar de todos por não receber do costume a necessária inteligibilidade. A singularidade da sua experiência foi ter sido uma prova em que a ética, o costume enfim, constituiu a tentação; a moral, ao exigir a compreensão de todos, ergueu-se como obstáculo à concretização do sacrifício. Quando pensou o acontecido em Morija, Kierkegaard reconheceu nele a experiência da fundação do Eu; a introspecção radical vivida pelo patriarca mostra ser a interioridade não a relação do sujeito com ele mesmo, mas o seu voltar-se sobre si, o conhecimento de si mesma depois de estabelecida331. As palavras de São Paulo  “só um chega”  reportam ao dilema de Abrahão, elas nos falam da relação do Divino com cada um, na sua absoluta singularidade, sem a mediação do outro o qual deve ser eclipsado para a relação ser capaz de se efetivar. O isolamento do Cristo quando da sua Paixão, abandonado à multidão enfurecida é, mutatis mutantis, em sua natureza, similar ao corrido com Abrahão e neste sentido ele se opõe a experiência da religião tal como entendida em sua dimensão mitológica, na qual o sujeito se constitui não em oposição, mas no movimento fundador da multidão, do povo, e claro, do costume, como adiante discutiremos amparados pela reflexão de Elias Canetti e René Girard. Por este viés o fenômeno do martírio – horizonte para onde se encaminharam todos os seguidores do nazareno nos primeiros séculos de nossa era  se torna claramente compreensível; Cristo exige imitadores, ele não deixou uma teoria, uma doutrina a ser esclarecida por meio de uma exposição coerente; para Jesus não é indiferente quem o expõe como seria no caso de discursar sobre uma teoria explicitando seu conteúdo, o cristianismo não se manifesta em quem discorre sobre ele, o Cristo é uma mensagem existencial e só se

330 Idem, p. 158. 331 KIERKEGAARD, O Desespero Humano, São Paulo: Abril, coleção Os Pensadores, 1985, p. 195. 89

pode expressá-lo reduplicando-o e “existir naquilo que se compreende é praticar a reduplicação”332. Por este arrazoado fica clara a opção pela morte, desprezando qualquer forma de resistência, das primeiras comunidades de seguidores do Cristo quando coagidas a abandonarem sua crença. A coragem e o destemor, traduzida na aceitação do martírio, declaram uma coerência com os Evangelhos e seu ideal de ser melhor sofrer o mal a praticá- lo. A posterior opção da Igreja, e também de suas heresias aí incluída a Reforma protestante, pela violência, transformando-se em seitas sacrificiais e míticas, mostra como nossos símbolos – sejam eles a cruz ou o texto mesmo das Escrituras e dos Evangelhos – não trazem quaisquer garantias contra a sua transformação em ídolos333, vale dizer, em uma representação destituída de realidade mas com eficácia política, como ideologia. Aceitar a idolatria como uma experiência similar a das ideologias, nazista ou bolchevique, é ver ambas exprimindo existencialmente a convicção no sentido nietzschiano: a crença de estar de posse da verdade incondicional. Hoje em vez de uma imagem adora-se uma ideia, e o tirano moderno, busca o consentimento ativo, a adesão interior, pela mediação da argumentação, por isso “[...] nunca mais um Ente (rei, papa etc.) poderá tornar-se tirano. A tirania se converterá forçosamente em uma relação de reflexão.”334 Caso estejamos corretos apontando as representações totalitárias como uma forma de idolatria, como existencialmente semelhantes, indicamos as ideologias como expressão do mito. Mas como se dá a mutação de um ideal de não violência em seu outro? Pela instituição! Os Evangelhos continuam os mesmos, a opção pela violência é resultado da decisão de uma organização humana, a Igreja. A transformação deve ser buscada no público presente nela, i.é., em suas relações, porque toda associação de homens “seja de políticos, seja de cientistas que abjuraram a política, é sempre uma instituição política; sempre que os homens se organizam pretendem agir para adquirir poder”335. Por isso acusar as Escrituras judaicas ou os Evangelhos pela violência é jogar fora a criança com a água do banho; nas instituições religiosas é onde encontraremos a raiz da transformação do princípio do amor em clamor pelo sacrifício. O mártir escapa a armadilha da instituição, ventre da política, se isolando do todo, pagando por isso com sua vida.

332 REICHMANN, Ernani (org.), Kierkegaard, Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1971, p. 306. 333 “Quando um homem que vive no seio do cristianismo vai à casa de Deus, a casa do verdadeiro Deus, tendo no espírito a verdadeira representação de Deus e, e em seguida reza, mas não em verdade e, quando um homem que vive num país pagão, mas reza com toda paixão do infinito, se bem que seus olhos repousem sobre um ídolo: onde há mais verdade? Um reza a Deus em verdade, se bem que reze para um ídolo. O outro reza para o verdadeiro Deus, mas não em verdade e reza, assim, verdadeiramente para um ídolo”. Kierkegaard in Reichmann, op. cit., p. 237. O pensador dinamarquês manteve-se fiel ao ideal judaico e evangélico de ver na interioridade o alicerce decisivo da relação com o Divino. 334 KIERKEGAARD, Diário Íntimo, op. cit., 179. 335 ARENDT, Hannah, A Condição Humana, op. cit., p. 284, nota 26. 90

O significado do martírio para os cristãos primitivos, está na antípoda daquele esperado por seus antagonistas romanos; é uma experiência estranha ao costume em geral, por ser uma práxis na qual a comunidade e o território são eclipsados e onde só subsiste o paradoxo do confinamento do sujeito em si mesmo, interditando a quem o vive, buscar por intermédio do outro, certezas sobre si mesmos; por isso no Evangelho de S. João os judeus são julgados incapazes para aceitarem a nova crença porque preferem receber “glória uns dos outros”336. Para o evangelista seus compatriotas confundem ética, costume, a dimensão pública, política enfim, como sendo a condição da religião. Para o apóstolo os judeus – como os cristãos o serão mais tarde – são incapazes de entender a experiência religiosa apresentada pelas Escrituras em geral e pelo Cristo em particular e sua exigência de uma individuação absoluta, separando radicalmente quem a acolhe, quem por ela é provado, do outro. O paradoxo kierkegaardiano não é exclusivo das escrituras ocidentais, da Bíblia; na tradição oriental, em um dos seus clássicos, o Bhagavad Gitã, se compreende esta inversão – no caso o ideal religioso transfigurado em simulacro de si mesmo – como resultado de mentes em que a ignorância domina resultando uma percepção “iludida pela qual se aceita a irreligião como sendo religião, e tudo se torna o oposto”337 levando o Senhor Deus a dizer à Arjuna, seu interlocutor no épico hindu, a abandonar todo tipo de instituição religiosa e entregar-se apenas à Ele.338 A definição do Gitã é idêntica àquela apresentada milênios depois por Thomas Hobbes, Elias Cannetti339 e René Girard para a crise da Cultura como crise mimética, entendida literalmente quando as diferenças culturais se invertem fomentando a violência recíproca, transformando os homens em duplos340. Agora podemos estabelecer a religiosidade em sua natureza contraditória: de um lado fundando a subjetividade no sujeito, quando o separa do todo, e de outro se constituindo como o ventre primeiro da política, quando suprime o indivíduo e funda a multidão, ao estabelecer por meio de normas e regras relações entre o território e o sujeito, garantindo pela violência a relação valorativa entre eles. A história institucional do judaísmo e do seu inesperado rebento, o cristianismo, pode ser lida nesta chave, a da relação com o espaço – negativa no caso do Cristo –, como o de qualquer corpo político, e do conflito entre suas instituições e suas doutrinas. Radcliff Brown na introdução à obra de Meyer Fortes e Evans Pritchard, sobre sistemas políticos africanos, alerta: o estudo das sociedades tradicionais deve considerar a

336 Jó 5,44. 337 Srimad Bhagavad Gitã, São Paulo: Ed. Prema, 2002, p. 312. 338 Idem, p. 326. 339 CANETTI, Elias, Massa e Poder”. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 57. 340 GIRARD, René. Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo, op. cit., p. 41. 91

“manutenção da ordem social dentro de um quadro territorial, pelo exercício da autoridade coercitiva.”341 O caso dos judeus é exemplar; a derrota da sublevação de Bar Koshba com a subsequente dispersão de Israel pelo mundo antigo em 170 d.C. dissociou por muitos séculos política, território e religião entre os hebreus, transformando a experiência do transcendente em experiência privada e os judeus em minoria perseguida, status até então ocupado pelos cristãos primitivos342, e assim foi até o surgimento do sionismo e do Estado de Israel, quando novamente, no judaísmo, aproximam-se religião, território e política. Com o cristianismo a direção é outra: educados na obediência ao Estado e vivendo a sua crença à parte da política, apesar de vítimas de suas injunções, a Igreja com a conversão de Constantino iniciou sua paulatina fusão com o poder, realidade até então desconhecida e perigosa para ela; como nas sociedades tradicionais, a Igreja aceita associar-se com o trono e gradualmente estabelece o monopólio da crença e torna-se a fiadora do costume em um dado espaço geográfico recorrendo à força quando o seu monopólio é ameaçado. Nos três primeiros séculos de existência da Igreja o martírio foi o antídoto eficaz contra o fascínio do poder, de transformar o movimento cristão em força política. Posteriormente em São Francisco, a pobreza – entendida não só como ausência de posse ou propriedade de bens materiais mas também de qualquer forma de poder – como ideal de existência foi a substituta eficaz do martírio. Pelo seu holocausto o cristão evitava a transformação da religião em força política negando-se a constituir o outro – mesmo quando vinha matá-lo – como um inimigo; as palavras proferidas por Jesus quando da sua paixão atestam isto: “Senhor perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. Por isso Girard separa a religião nascida do homem daquela vinda de Deus: naquela “o homem nada mais é do que uma negação mais ou menos violenta da sua violência”343, é a natureza da religiosidade mítica contra o qual se ergueu o judaísmo e o Cristo. O costume, dominante em todas as sociedades pré-modernas, onde o indivíduo está irreversivelmente unido à sociedade, santifica as relações violentas entre homens, acreditando ser possível erradicar o mal e publicizar o fenômeno do sagrado, de expô-lo aos sentidos e à percepção do entendimento humano. A crença na presença do sagrado na instituição da Igreja, pressuposto da cristandade, concebe a santidade como um fenômeno público, posta aos sentidos e ao raciocínio pelo ritual, capaz de ser comunicada racionalmente e aceita como uma manifestação dotada de

341 FORTES, Meyer e PRITCHARD, E. Evans.- Sistemas Políticos Africanos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, p. 9. 342 Cf. JOHNSON, Paul. A História dos Judeus”. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 155ss. 343 GIRARD, René. Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo, op. cit., p. 210. 92

autoridade, podendo organizar-se enquanto fenômeno político tanto na Antiguidade clássica como na Igreja medieval, assim como na Canudos de Antonio Conselheiro. Hobbes percebeu o problema quando considerou um erro afirmar “que a atual Igreja militante sobre a terra é o reino de Deus”344; essa doutrina já atesta a religiosidade mítica dizendo-se cristã, por ela o princípio sacrificial subjugou a Igreja, mediado agora pela reflexão, na qual afirma-se para si mesmo e para o outro, por meio da persuasão do argumento da autoridade, a natureza racional e moral da obediência fundada no consentimento ativo da vontade criando uma aparência para o poder em que quem manda aparenta obedecer345. Nesta inflexão da Igreja encontra-se a sua primogenitura como Estado, ela já é moderna, nela como no domínio político de nosso tempo recorre-se à interioridade como mediação necessária à ordem como um todo; a experiência da argumentação pública com vistas à persuasão e à adesão interior antes aparentemente restrita, tornou-se a condição do domínio; hoje dominam os argumentos, ontem vingava a força e o costume. A Igreja tornou factível uma ordem alicerçada no ego, no consentimento ativo dado pela vontade apaziguada por argumentos. O século XX viveu a tentativa de fazer da humanidade a encarnação da lei, restaurando o ideal platônico da verdade governando os homens, da ordem dos perfeitos convocados a governar pela inclinação do seu ser para dar ao mundo a mesma configuração da sua subjetividade. Nietzsche advertira para a presença na política moderna de uma consciência aparentemente destituída de egoísmo, orientada para a universalidade e submissa aos critérios públicos e por isso capaz de governar em nome de todos, para isso busca-se um consenso fundado interiormente, pela práxis da persuasão. Aqui público não é uma coisa, mas um postulado, um pensamento, “[...] e existe tão problematicamente como a Igreja”346; é o conceito de intersubjetividade. Schlegel, seguindo Kant de perto, possibilitou estender o juízo às sociedades pré-modernas quando correlacionou autor e leitor, público e obra: por analogia, toda obra é uma Bíblia e todo público é uma Igreja invisível e quando uma comunidade se une em torno das Escrituras forma-se em decorrência uma comunidade de pensamento, ou na proposição de Kant: “Uma comunidade ética sob legislação moral divina é uma Igreja a qual, na medida que não é objeto de experiência possível se chama Igreja invisível”347. Mas como tal instituição torna-se política? Ilustrarei a discussão tomando como exemplo um caso ocorrido no Brasil no fim do século XIX, o Arraial de Canudos.

344 Hobbes, Leviatã, op. cit., p. 397. 345 “Nietzsche, Obras Incompletas, op. cit., p. 50. 346 SCHLEGEL, F. O Dialeto dos Fragmentos, São Paulo: Iluminuras, 1997, Fragmento 35, p. 25. 347 Kant citado em F. Schlegel, op.cit., nota 20, p. 171. 93

Euclides da Cunha, em Os Sertões, apresenta um caso exemplar, da relação entre religião e ética, da transformação da fé em vontade política sacrificial, na comunidade de Canudos no sertão nordestino, onde seu líder, conhecido como Conselheiro, repudiava em nome de Deus a sociedade moderna e o Estado republicano como instituições do anticristo. A autonomia subjetiva e a configuração de uma sociedade laica, consequências inesperadas da diversidade religiosa oriunda da Reforma e da ascensão do absolutismo, do Estado, é fruto do pecado causado pelo protestantismo, pela maçonaria e pelo judaísmo, acusados pelo Conselheiro, de só acreditarem na lei da Moisés348; apoiando-se nestes argumentos Canudos rompe com o Estado brasileiro e declara guerra contra sua forma republicana, secular, para restaurar o vínculo entre o trono e o altar, presente na história da Igreja desde a conversão de Constantino e na sociedade brasileira desde seus primórdios até o fim do Império. O conflito aparentemente contrariou a trajetória do líder dos sertanejos. Nos primeiros vinte anos de sua trajetória, Antônio Conselheiro demonstrara uma performance alheia a qualquer intervenção no mundo; segundo o seu principal biógrafo, Euclides da Cunha, ele se comportara nos primeiros anos de sua vida pública como São Francisco de Assis: voltado à penitência e à transformação de si mesmo. A conversão ao cristianismo ascético de Antônio Maciel, nome de batismo do Conselheiro, levou-o a uma longa peregrinação pelos sertões do nordeste brasileiro cuidando de doentes, limpando igrejas e cemitérios, participando de grupos de oração, de procissões, missas e outras cerimônias religiosas sem exigir nada, vivendo da caridade alheia como os antigos eremitas mendicantes e os franciscanos em seus primórdios. Após duas décadas desta vida de beato, reconhecida por todos nos sertões nordestinos como santa, Antônio conseguiu reunir em torno de si uma quantidade grande de prosélitos seduzidos pelo seu carisma, por sua exemplaridade, pelo seu esforço de imitar o Cristo e viver como ele; esta multidão tornou exequível e necessário a fundação de uma comunidade religiosa na proximidade do rio Vaza Barris, no norte do Estado da Bahia: o arraial de Canudos. O estabelecimento do beato Antônio Conselheiro e seus discípulos neste rincão coincidiram com uma grande seca nos sertões e com mudanças sociais e políticas de relevância para a sociedade brasileira com repercussões profundas em Canudos, onde o fim da escravidão foi aceito, mas a proclamação da república e a separação entre Igreja e Estado foram consideradas pelo Conselheiro a expressão do poder do anticristo sobre o Brasil349. Certamente estas crises contribuíram para o Conselheiro deflagrar o mais sério conflito social brasileiro do século XIX; contudo a estas causas gerais da guerra de Canudos

348 Os Sertões, de Euclides da Cunha, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979, p. 137-9. 349 Ibidem, p. 111-3. 94

seria necessário acrescentar duas outras variáveis: o fundamentalismo do beato e a constituição do arraial de Canudos, de um mundo público religiosamente estruturado em torno do princípio da autoridade, tornando exequível para o Conselheiro, pela quantidade de prosélitos dispostos a lhe render obediência, a possibilidade de uma decisão de natureza política configurada na ruptura com a Igreja e, posteriormente, com a república. O nascimento da comunidade religiosa de Canudos foi, rigorosamente falando, a formação de um principado religioso, no sentido empregado por Maquiavel, isto é, de uma forma monárquica de governo em seu sentido pré-moderno onde poder e religião sempre foram uma coisa só, pela entronização de Antonio Maciel na condição de sacerdote e conselheiro, unindo a liderança religiosa e o domínio sob um território. Para os seguidores do Conselheiro, todo aquele desejoso de salvar a sua alma deveria dirigir-se à Canudos; davam ao seu lugar um status semelhante ao atribuído pelos judeus a Canaã onde a terra tornara-se sinal da dádiva divina, “terra na qual lhe é possível viver abertamente a sua obediência pessoal”;350 Canudos concebe a si mesmo como a Igreja até a era moderna se representava, como o reino de Deus na terra, um equívoco, como Hobbes demonstrou, com enormes conseqüências históricas.351 A religiosidade do Conselheiro e do seu povo é a mesma da tradição em geral, é ethos, costume, por implicar coerção sobre um território e a definição de um inimigo externo, reproduzindo no recém-fundado Brasil republicano manifestação semelhante às descritas nas páginas do Antigo Testamento e nos relatos das guerras civis religiosas dos séculos XVI e XVII. A disposição e a coragem demonstrada por Canudos contra seus inimigos externos e a constituição de um poder policial contra possíveis dissidentes internos - a repressão ao uso da cachaça e aqueles que faltavam aos ofícios religiosos- confirmam esta hipótese352. Nas prédicas do Conselheiro desvela-se a saudade do costume em sua teologia e em sua vontade, esclarecendo a razão do seu espírito de reagir à sociedade de seu tempo. O Conselheiro imprimiu a seus acólitos, os valores de um catolicismo fundamentalista, vigoroso o bastante para inclusive induzir ao martírio, similar aquele reclamado pelo patriotismo do Estado moderno aos seus súditos e por sua capacidade de definir uma estratégia e um inimigo comum à sua imensa congregação de devotos, qualificando-a como uma ordem política na definição de Carl Schmitt: a capacidade de definir os amigos e os antagonistas e a disposição de efetivar sua vontade sobre outrem, de ir à guerra, Os habitantes do Arraial demonstraram heroísmo e disposição de imolar-se por

350 A frase é do teólogo alemão H.U. Von Bhaltazar citado pelo teólogo alemão Franz Mussner em sua obra “Tratado Sobre os Judeus”, edições Paulinas, SP, 1979, pág.25. 351 Hobbes, “Leviatã”, op.cit. pág.397. 352“Os Sertões”, op.cit. págs 129 e 130. 95

Canudos e seu Conselheiro contra o poder republicano. Comandava Antônio Conselheiro uma comunidade religiosa soberana quanto a seus desígnios doutrinais e delimitada espacial e economicamente à parte da sociedade e dotada de um poder militar real manifesto nas suas formações de jagunços. Pelo relato de Euclides da Cunha partiu do Conselheiro a deflagração da guerra, sem o seu estímulo dificilmente o conflito teria adquirido as dimensões de um conflito militar; sua personalidade ascética e as suas pregações foram responsáveis pelo moral elevado de seus combatentes, sua disciplina prussiana, sua obediência cega e coragem para o sacrifício de sua própria vida. A constituição de Canudos, de uma cidade, de um mundo público portanto, foi a configuração de uma ordem, no sentido político do termo, mesmo sendo tal condição desconhecida para os seus participantes; este evento, representou uma inflexão na trajetória do Conselheiro, um divisor de águas, a sua transmutação, sua metamorfose, de devoto em Príncipe, o seu afastamento do caminho dos místicos e dos santos, como delineado pelo caso exemplar de Francisco de Assis imitador do ideal de santidade de Jesus de Nazaré marcado pelo afastamento do mundo, de um ideal de subjetividade voltada ao relacionamento do eu com ele mesmo, para travar o “bom combate”, a luta consigo mesmo. A similaridade da trajetória inicial do Conselheiro com a de Francisco de Assis, esboçada anteriormente, é ilustrativa para os fins propostos neste texto; tanto um como outro perseguiram a santidade pela imitação de Cristo e dessa forma adquiriram fama e seguidores, ambos respeitaram e obedeceram a Igreja, especialmente no início de suas trajetórias; contudo quando trataram de organizar os seus respectivos séquitos suas histórias separam-se. Francisco de Assis sempre buscou manter-se em perfeita sintonia e obediência com a Igreja, e mesmo quando o seu movimento tornou-se popular e respeitado Francisco manteve como característica da sua religiosidade a ênfase na interioridade, da qual a ordem dos frades menores, enquanto seu fundador viveu, nunca se afastou. Antônio Conselheiro após a fundação do arraial seguiu um caminho contrário ao de Francisco; nos documentos sobreviventes, onde são apresentados os seus escritos e suas preleções em Canudos, era recorrente em sua prosa ao público local a denúncia da pluralidade das concepções de mundo, laicas e religiosas, presentes na modernidade assim como de suas instituições; seu discurso denota uma ênfase no mundo e em suas relações inexistente em Francisco o qual mantivera o ideal da exemplaridade, o “Imitatio Christi”, como princípio de sua ação e afastara-se de qualquer forma de envolvimento em argumentação e duelos verbais comuns em seu tempo para a manutenção da ortodoxia. Francisco aceitara incluir sua religiosidade na Igreja por entender inexistir qualquer 96

incompatibilidade entre uma forma de vida interior e a instituição oficial da Igreja e também porque instintivamente suspeitava serem altos demais os riscos para experiências religiosas fora da Igreja. A contraposição entre o santo de Assis e Antônio Conselheiro, entre duas formas de religiosidade, repõe a história mesma do cristianismo. Em sua origem podemos ver esta mesma tensão na história da paixão narrada no Evangelho quando no Jardim das Oliveiras São Pedro reage com a espada a ordem de prisão contra Jesus e é desautorizado pelo seu mestre e forçado a aceitar passivamente o curso dos acontecimentos. Pedro expressara a expectativa clássica dos judeus quanto ao messias, como uma reedição de David, um chefe militar voltado a restaurar, no mundo, a glória de Israel; o apóstolo mostrara não ter entendido, ou aceito, o enunciado de Jesus onde este nega qualquer possibilidade à política e à violência para estabelecer o reino de Deus, o seu reino. Quando Nietzsche, Kierkegaard e Doistoiévski se voltam contra o cristianismo “oficial”, institucional, enfatizam a característica subjetiva, interior, da mensagem de Jesus em oposição a religiosidade institucional restauradora de uma dimensão, formal e farisaica, voltada para o mundo, apresentam de fato uma contradição entre as disposições doutrinárias e a realidade empírica da organização religiosa. Carl Schmitt tentou resolver esta questão em sua definição da Igreja como Complexo Oppositorum, feita em sua obra “Catolicismo Romano e Forma Política”, onde mostra a diversidade contida na Igreja, onde, como antípodas, conviviam São Francisco e São Domingos, a religiosidade mística e subjetiva do primeiro ao lado das práticas da ordem dos Dominicanos, os inquisidores do Santo Ofício, voltada ao combate, por torturas e violências inimagináveis, da heresia e das diferenças doutrinais. Ao longo de sua história a Igreja sempre reconheceu uma distinção entre a subjetividade e o mundo: Santo Tomás de Aquino, afirmava só serem passíveis de juízo os atos externos do homem, só Deus poderia julgar as motivações da vontade353. Em Antônio Conselheiro prevalece a tradição eclesial, particularmente aquela constituída após a conversão do imperador Constantino, quando pela cristianização do império e pela romanização da Igreja a relação da subjetividade eclesial consigo mesma passava pela relação com o mundo: o modelo clássico de ação cristã, presente na Igreja primitiva, recomendava e aceitava o martírio para a salvação da alma; após a simbiose do cristianismo com o império o martírio em defesa da Igreja, subordina o sacrifício de si mesmo a defesa da instituição eclesial,

353Thomas de Aquino, “Summa Theológica”, Biblioteca de Autores Cristãos, Madrid, 1951, Prim.Sec.Qu.100,art.9. Esta tradição está na reflexão de Hobbes para quem “...se há reta intenção não há pecado”, “Leviatã”, op.cit. pág.180. 97

manifestando a sua condição política.Carl Schmitt comenta ser natural uma igreja, ou confissão religiosa, exigir de seus membros morrer por sua fé, “mas só para a salvação de sua alma”, caso entreguemos nossa vida pela comunidade religiosa enquanto uma formação de poder subsistente neste mundo [...] ela se torna uma grandeza política; suas guerras santas e cruzadas são ações que se baseiam, como as outras guerras, numa decisão sobre quem é o inimigo”354. A origem desta forma de religiosidade está na metamorfose sofrida pela herança de Jesus, a criação da “cristandade”, a rigor uma regressão as sociedades regidas pelo costume onde se amalgamam em um todo o mundo e a subjetividade, casando a religião e a política cujo modelo mais espetacular foi Roma e cujo eco final está no Renascimento, em Maquiavel, em seus escritos sobre a Década de Tito Lívio e seu ideal de reforma religiosa. Nietzsche em “Vontade de Potência”, denuncia a Igreja e o Estado como pertencentes à ordem do anti- Cristo355, ressalta a contradição evidente entre o Jesus histórico e seus ensinamentos e a história empírica da(s) Igreja(s), dominadas por uma trajetória onde ao contrário do determinado pelo Filho do Homem estabeleceu-se o sacerdócio, teologia, hierarquia, culto, sacramentos, guerra etc356. Entre Francisco de Assis e Antônio Conselheiro a distinção reside na interioridade, enquanto o primeiro interdita o julgar, o outro dá livre curso a experiência do juízo, ventre por excelência da política. Por ser uma faculdade onde o público é o requisito necessário à sua práxis, o julgamento enquanto atividade anímica não só supõe o outro, mas precisa dele para se tornar intersubjetividade, comunidade de pensamento, condição básica a qualquer forma de sociabilidade, em diferentes tempos históricos. Os seguidores do nazareno compreenderam isto e para se disporem para a morte, suspendiam o exercício desta faculdade. O martírio fora o mecanismo de equilíbrio da experiência pública do cristianismo primitivo, ele interditou a transformação dos cristãos em atores políticos ao exigir o abandono de qualquer associação de defesa capaz de suprimir a exemplaridade no instante derradeiro de cada um enquanto tal. Mas para isto poder se efetivar é necessário a vítima se situar em um patamar subjetivo distinto daquele dos algozes, dos carrascos, e a este estado ela só pode chegar quando compreende o efeito deletério causado pela experiência do juízo e o afasta da sua atividade interior, por entendê-lo como um estado de alienação expresso na locução de Jesus, quando o crucificavam, a Deus: “Senhor perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. Para

354Carl Schmitt, “O Conceito da Política”, Vozes, Petrópolis, 1989, pág. 74. 355Nietzsche, “Vontade de Domínio”, op.cit. Aforisma 196. 356 Idem,Aforismas 212,213 e 214. 98

René Girard, Jesus expressou nesta frase um conceito de inconsciente dominante nos seus carrascos e na multidão quando clamavam por sua execução357; este inconsciente comum, constitui-se pela interlocução necessária ao estabelecimento da intersubjetividade, e isto é a própria política nascendo como religião por conseqüência do mimetismo e da vítima sacrificial. O martírio clássico, cujo paradigma é o Cristo, é assim um antídoto contra a política e a violência mimética a ela inerente, e por isso ele se antagoniza com o costume, onde a política e religião são sinonímias, faces de uma mesma moeda. Geralmente estas duas dimensões do religioso, e o antagonismo entre elas, são desconhecidas; Weber, por exemplo, em seus “Ensaios de Sociologia”, considerou a guerra como a rival por excelência da religião, ambas despertam uma compaixão e uma solidariedade ativas entre seus participantes; são grandezas homólogas capazes de amalgamar os seus integrantes em um só corpo e em uma só alma e levar a individualidade a desaparecer no todo. Weber falava sobre a religiosidade do costume, do mito, fundadora da ordem e simpática a violência, esquecendo a experiência dos profetas, de Abel, de José, de Jó e de Jesus e de todos os dispostos a entrarem no “paradoxo”, a se antagonizarem com o todo.358 Considerada do ponto de vista do mártir, a experiência religiosa da multidão é ilusão. Isto vale para o judaísmo, para o cristianismo e para o islamismo. Para ilustrar minha proposição citarei uma história contada por Bhagavan Shree Rajneesh sobre os místicos do Islã, os Sufis: [...] e Deus falou a Abu Yasid e disse: Yasid você se tornou um dos meus escolhidos. Devo declarar isso ao mundo? Abu Yasid riu e disse: sim, o Senhor pode se quer que eu seja crucificado.359 O Senhor declarou tudo sobre Al-Hillaj e o que aconteceu? Cricificaram-no... [o povo] não ama o Senhor e não pode tolerar Seu povo. Assim se o Senhor quer me ver crucificado, declare. E dizem que Deus jamais declarou nada sobre Abul Yasid. Manteve-se quieto [...] Alguém perguntou a Al-Hillaj Mansur, o maior místico sufi de todos os tempos: Qual é a maior experiência Sufi? Al-Hillaj respondeu: Amanhã você verá qual é a maior experiência Sufi. Ninguém sabia o que ia acontecer no dia seguinte. O homem tornou a perguntar: Porque não hoje? Al-Hillaj disse: Simplesmente espere, vai acontecer amanhã – O Supremo. E no dia seguinte ele foi crucificado e gritava em altos brados a esse amigo que lhe havia feito a pergunta: Onde está você escondido na multidão? Agora venha e veja o Supremo no Sufismo.360

357 Ver o artigo de Girard, “As Palavras chaves da Paixão Evangélica” in “O Bode Expiatório”, op.cit., pág. 137. 358 Max Weber, “Ensaios de Sociologia”, RJ, Zahar, 1979, pág.384: “A guerra promove, portanto, uma comunhão incondicionalmente dedicada e pronta ao sacrifício, entre os combatentes, e libera uma compaixão de massa ativa e um amor pelos que estão sofrendo necessidades. E, como fenômeno de massas, esses sentimentos derrubam todas as barreiras naturais à associação.” 359 Técnica de execução mantida durante muito tempo no mundo muçulmano e, em particular no Irã islâmico, onde se passou a história narrada por Rajneesh. Aliás se não estou enganado a crucificação foi inventada por eles na antiguidade quando se chamavam partos e antagonizavam Roma no oriente médio. 360 Bhagavan Shree Rajneesh, “Sufis, O Povo do Caminho”, São Paulo, Edit. Maha Lakshmi, 1983, pág.25. 99

A contradição entre a doutrina e a instituição, ou entre os Evangelhos e a(s) Igreja(s), tende a ser da mesma natureza, mutatis mutantis, do fenômeno observado por Robert Mitchels, o dissidente da social-democracia, nas relações entre a organização sindical e a concepção marxista de seus dirigentes; o conúbio entre eles levou a transvaloração, operada pelos mecanismos institucionais, nos valores dos sindicalistas de esquerda pelo progressivo predomínio das “necessidades institucionais” em prejuízo da doutrina marxista, com a transformação das organizações corporativas da classe operária e de sua burocracia dirigente em um fim em si mesmo.361 Lenin, o fundador do Estado soviético, notou o mesmo perigo, capaz de fazer soçobrar a Revolução, caso a doutrina, corporificada no partido, se confundisse com o povo e seus organismos corporativos: por isso argumentou contra os “populistas” e sua crença na capacidade do social e suas instituições(sindicatos e outras associações populares) por si mesmo, por seus movimentos espontâneos, dar nascimento a uma “consciência revolucionária”. Para o chefe bolchevique o movimento revolucionário era a articulação das práticas das massas na sociedade às idéias socialistas pela mediação do partido.362 Stalin e a posterior vitória da burocracia partidária sobre os trabalhadores e a sociedade como um todo mostraram a vitória póstuma da compreensão de Mitchells sobre o arrazoado de Lenin. O Escritor Thomas Mann, opositor de primeira hora contra o nazismo, escreveu certa vez sobre a capacidade manifesta dos Evangelhos e de sua mensagem de sobreviverem a tantas épocas e a múltiplas formações sociais; atribuiu ele esse dom a natureza mesma destes escritos, a sua espiritualidade, a força de transcenderem a diversas molduras sociais e as diferentes “prisões” institucionais.363 A este elogio faltou tão somente reconhecer o valor de homens e mulheres capazes de pagarem com seu próprio corpo as crenças de seu coração. O Cristo conheceu nas Escrituras de seu povo modelos ilustres, cujo testemunho, presentes na Bíblia hebraica, no Antigo Testamento, continuou a receber novas adesões ao longo da História dos judeus até Auschwitz. O judaísmo, onde o hebreu Jesus foi educado, também foi capaz da mesma transcendência dos Evangelhos e sua presença ainda hoje atesta a força da sua espiritualidade e a universalidade da sua mensagem e se hoje ele, como a Igreja medieval, deixou de produzir mártires e faz vítimas, a etiologia da transformação deve ser buscada, em parte pelo menos, na velha associação de crença e território com as dores e desgraças inerentes a este velho conúbio, cujo fruto mais visível é o “povo”, a multidão unida e coesa, ansiosa por ter mártires à mão.

361 Robert Mitchels, “Los Partidos Políticos”, Buenos Aires, Amorrutú, 2 vols., 1969, PP. 156 ss. 362 V.I. Lenin, “Que Fazer?”, Lisboa, editorial Estampa, 1973, pág. 39. 363 Thomas Mann, “O Artista e a Sociedade”, Madrid, Guadarrama, 1975, pág.50. 100

Quando o poeta português Fernando Pessoa pensou o homem da massa como “cadáver adiado que procria”, incapaz de estranhar sua própria condição, de se colocar fora do todo, da multidão, reapresenta uma velha constatação; a originalidade do seu texto está antes no radicalismo como expressou seu espanto e menos no conteúdo.364 Antes dele, muitos filósofos, artistas e religiosos já proclamavam algo parecido. A Questão é da Bíblia, dos Evangelhos, do Gitã, dos escritos Sufis e do Budismo, todos advertem para homens com olhos e ouvidos sãos, mas incapazes de ver e ouvir. Os grandes tratados religiosos reconheceram, bem antes da sociologia e das ciências sociais em geral, o “fato social” de Durkheim, a mecânica da reprodução da vida social, como o “nós” aparece e se perpetua. Quando comentei o enunciado de vontade – a pedra de toque da individuação – de Hobbes como presente, segundo ele, também entre os animais, associei a idéia ao problema do mimetismo, por ser ele a origem do conflito generalizado, a crise da cultura, o ventre dos duplos como exposto por René Girard, onde a imitação só adquire intelegibilidade como contraface da experiência interior do desejo em seu sentido “mimético”: o querer alguma coisa não é determinado pela natureza intrínseca do objeto, seja ele uma mulher ou uma coisa, a volição se manifesta porque o objeto pelo qual ansiamos pertence, ou também é querido, por alguém considerado modelo por nós. O objetivo imediato de René Girard foi, já em seu primeiro texto publicado e perpetuado ao longo de sua obra, criticar o fundamento do moderno conceito de sujeito, do individualismo em sua expressão mais exacerbada, ressaltando a nossa incapacidade para querer por nós mesmos, necessitamos do outro para nos indicar o objeto. O resultado natural desta competição é o conflito365. René Girard declarou a paternidade religiosa da sua teoria do desejo mimético e da sua relação com o violência nas Escrituras judaicas e nos Evangelhos. Comparando o décimo e último mandamento do decálogo com as quatro interdições anteriores, todas voltadas para o agir: não matarás, não cometerás adultério, não roubarás, não dirás falso testemunho contra o seu próximo”; o último, o de número 10, coíbe o desejo: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença.”(Ex 20, 14). O uso do verbo

364 “Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia Sem a loucura o que é o homem Mais que a besta sadia Cadáver adiado que procria? Do poema “Dom Sebastião, Rei de Portugal” in “Poesia de Fernando Pessoa”, Introdução e Seleção de Adolfo Casais Monteiro, Lisboa, Presença, 2006. 365 Ver a introdução de João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello ao livro de René Girard, “Um Longo Argumento do Princípio ao Fim”, RJ, Topbook, sem data, pág. 12. 101

“cobiçar” aparenta, diz-nos Girard, um querer perverso, reservado aos “pecadores empedernidos”, mas a palavra hebraica utilizada no decálogo é a mesma para o caso de Eva, da primeira transgressão, do pecado original; é o desejo comum, universal.366 A lei bíblica quer obstar a emergência da ameaça primordial de qualquer ordem: o conflito interno, a guerra civil, a guerra de todos contra todos, cujo estopim se acende quando os limites culturais desaparecem. Os interditos nos protegem uns dos outros; quando este muro protetor, condição da vida comum, desaparece, a vingança torna-se a reação natural à ofensa, levando todos os envolvidos no processo desencadeado pelo dolo a consentirem e estimularem o crescimento contínuo e exponencial da reação em cadeia. O contrário efetivo da vingança é o perdão, apanágio natural do mártir, por ser “a única reação que não re-age apenas, mas age de novo e inesperadamente, sem ser condicionada pelo ato que a provocou e cujas conseqüências liberta tanto o que perdoa como o que é perdoado.”367 O poder de cancelar o automatismo natural do processo da ação, incapaz de por si mesmo alcançar um fim, é o atributo, presente na remissão da ofensa, do perdão; Hannah Arendt compreendeu, como poucos, o valor deste ato: para ela quem perdoa, deve aceitar como pressuposto a alienação do ofensor quanto ao impacto do seu feito (“eles não sabem o que fazem”), assim como estar possuído pela experiência anímica do amor, a “mais poderosa das forças humanas anti-políticas”; essa é a condição natural do mártir, para quem a mão de Deus está em tudo, inclusive na morte por meio da qual ele se separa, para sempre, da multidão; não se submetendo ao mimetismo violento, a “ilusão acústica que confunde a vox populi com a vox Dei, como quando gritaram: crucifica-o, crucifica-o!: era a vox populi”.368 Kierkegaard separou religião e ética quando antagonizou o indivíduo com o todo, mostrando o sagrado como uma experiência onde se exige eclipsar o mimetismo para entender os caminhos trilhados por aqueles poucos dispostos a não se deixarem a engolfar pelo rebanho. Mas qual é o alcance deste modelo? É possível aplicá-lo a vida nos campos de extermínio, ao totalitarismo na sua mais perfeita expressão? Páginas atrás apresentei a “guerra de todos contra todos” como a expressão da igualdade perfeita, estado marcado pela total ausência de normas onde o arbítrio reina sem limites e essa parece ter sido a condição dos lager da SS para judeus, ciganos, homossexuais, criminosos comuns e presos políticos.

366 “A idéia de que o decálogo consagraria o seu supremo mandamento, o mais extenso de todos, à proibição de um desejo marginal, reservado a uma minoria, é pouco verossímel. No décimo mandamento, deve tratar-se do desejo de todos os homens, do desejo puro e simples”; René Girard, “Eu Via Satanás Cair do Céu Como Um Raio”, Lisboa, Instituto Piaget, 2000, págs23ss. 367 Hannah Arendt, “A Condição Humana”, op.cit., pág. 252 368 Kierkegaard, Diário, op.cit. pág.233. 102

Primo Levi comenta, em seu fantástico “É Isso Um Homem?”, o contraditório processo de eliminação dos prisioneiros pelos nazistas porque seria “lógico” - por ser Auschwitz também um campo de trabalho forçados e, portanto parte do esforço de guerra da Alemanha – eliminar primeiro as bocas inúteis e preservar os saudáveis. Isso de fato era feito, quando chegavam os trens com os deportados, destinavam-se crianças, velhos, mulheres grávidas e doentes, mentais e de todo tipo à morte imediata, preservando os dotados com uma condição mínima para trabalhar. Mas Primo Levi descreve momentos onde se subverte esta precária racionalidade, como a das portas de trens abertas de ambos os lados, o lado esquerdo é destinado à morte imediata e o outro, o direito, é acolhido vivo no campo, ou vice-versa; ou de uma seleção de presos para serem executados feita em seu pavilhão destituída de qualquer critério, como capacidade para trabalhar ou conhecimento técnico especializado; qualquer um servia, mostrou-se ser “essencial para a administração do campo não é que sejam eliminados justamente os mais inúteis e sim que surjam logo vagas numa percentagem prefixada”.369 Quando eram engolfados pela loucura do universo concentracionário muitos dos prisioneiros enviados aos campos enlouqueciam e perdiam qualquer chance de sobreviver, dissipando suas precárias reservas de energia “em vez de se concentrar, desde o início, no único esforço válido, a saber: tentar sobreviver a qualquer custo, isto é, ao custo do entendimento e, também, da comunicação com os outros”.370 A condição hobbesiana de Auschwitz e similares impunha aos dispostos a sobreviverem a aceitarem a realidade kafkiana desta singular sociedade e sua hierarquia, procurando situar-se nela o mais próximo do topo possível onde estavam os SS, seguidos pelos kapos, os políticos, os criminosos, os “proeminentes”, grandes e pequenos, até seu degrau mais baixo, os “muçulmanos”. Verdadeiros zumbis segundo Primo Levi, os primeiros a serem destinados às câmaras de gás por não se associarem nem com seus camaradas nem com seus algozes e por esse meio prolongarem um pouco mais seu tempo de vida e também por esgotarem suas forças rapidamente cumprindo à risca tudo quanto lhes era ordenado, os “muçulmanos” são a grande maioria, a multidão anônima do campo “contínuamente renovada e sempre igual, dos não- homens que marcham e se esforçam em silêncio”.371 Para compreender a estrutura interna dos campos, utilizarei uma analogia chocante dizendo ser ela bastante similar aquela encontrada na disposição dos corpos dos gaseificados nas grandes câmaras de gás de Auschwitz–Birkenau, após uma grande execução coletiva.

369 Primo Levi, “É Isto Um Homem?”, RJ, Rocco, 1997. 370 J.M. Gagbebim, na introdução ao livro de Giorgio Agamben, Ö Que Resta de Auschwitz”, SP, Boitempo, 2008, pág.12 371 Primo Levi,op.cit.pág. 91. 103

Com uma capacidade estimada de aproximadamente duas mil pessoas, cada um destes patíbulos coletivos era acionada após os condenados terem se despido e Once the prisioners had undressed, they were herded on into another large room, also brightly lit. Once they were all inside, the doors were bolted shut, and the lights were switched off. Some of the prisioners embraced each other as they waited. Some simply waited, numb. The gas had a smell of something burning. Twenty minutes later, the electric ventilators were set going in order to evacuate the gas, Dr. Nyizsli later wrote as a medical witness to these scenes. The door opened…the bodies were not lying here and there throughout the room but piled in a mass to the ceiling. The reason for this was that the gas first inundated the lower layers of air and rose but slowly toward the ceiling. This forced the victims to trample one another in a frantic effort to escape the gas…I noticed that the bodies of the women, the children and the aged were at the bottom of the pile; at the top the strongest.372

Todos os prisioneiros tinham conhecimento do objetivo das “seleções” e procuravam desesperadamente escapar delas por meios de alianças com seus companheiros, mantendo um mínimo de capacidade física e, sem descartar estas duas primeiras, confundir-se com a hierarquia do campo. Para estar no topo e escapar do gás qualquer prisioneiro deveria tornar- se um “proeminente”, instalar-se na cadeia de comando do campo e por esse meio, mesmo indiretamente, associar-se ao inimigo, ao nazismo, e distanciar-se o máximo possível dos “muçulmanos”. A este conúbio Levi chamou de “zona cinzenta”, onde a fronteira entre o opressor e o oprimido desaparece, onde os papéis aparecem invertidos e a responsabilidade pelo crime é socializada pela cooptação da vítima: “tentava-se transferir para outrem, precisamente para as vítimas, o peso do crime, de tal sorte que para o consolo delas não ficasse nem a consciência de ser inocente”.373 Primo Levi endossou, sem o saber, o arrazoado de Raoul Hilberg e Hannah Arendt sobre o colaboracionismo judeu com seu arqüiinimigo Hitler. A ajuda das lideranças judaicas foi imprescindível para manter a disciplina dentro dos ghettos, no recrutamento da mão de obra para trabalhos forçados para o esforço de guerra alemão e na elaboração das listas daqueles judeus a serem enviados para os campos de concentração e na organização do processo mesmo de captura dos “eleitos”. Primo Levi por seu turno, mostrou a colaboração judaica no mecanismo de ordenamento do campo (como kapos e “proeminentes”) e no momento mesmo do extermínio físico: os judeus – do sonderkommando - eram ajudantes dos carrascos no processo da execução, evacuando e limpando as câmaras de gás dos cadáveres e acionando os fornos crematórios.374 Os integrantes do comando eram separados da massa de

372 Otto Friedrich, “The Kingdom of Auschwitz”, New York, Harper Collins Publishers, 1994, págs. 68/69. 373 Primo Levi, “Os Afogados e os Sobreviventes: Os Delitos, os Castigos , as Penas e as Impunidades”, SP, Paz e Terra, 1990, pág. 28. 374 “Their bodies, which were covered with scratches and bruises from the struggle which had set them against each other, were often interlaced. Blood oozed from their noses and mouths; their faces, bloated and blue, were deformed as to be almost unrecognizable…the sonderkommando squad, outfitted with large rubber boots, lined up around the hill of the bodies and 104

detidos e tinham um padrão de vida superior ao do prisioneiro comum devido a natureza de suas funções; mas por compartilharem com os nazis o segredo maior do III Reich e conhecerem a extensão da loucura eram periodicamente mortos e substituídos. Quando descreve os fatos, Primo Levi levanta ressalvas de natureza moral, pedindo ao leitor suspender o julgamento por consideração as circunstâncias onde todos estavam ser o próprio inferno. “Ter concebido e organizado os Esquadrões (o sonderkommando) foi o delito mais demoníaco do nacional-socialismo” porque é como se os nazistas tivessem dito: “[...] nós somos capazes de destruir não só seus corpos mas também suas almas, tal como destruímos as nossas”. Talvez por isso Davi Rousset, ele mesmo um ex-interno de Auschwitz, reputava como ignóbeis, tanto a vítima quanto o carrasco, “a lição dos campos é a fraternidade da abjeção” conclusão também esposada por Primo Levi quando fala de si e dos seus personagens como não sendo homens.375 Talvez Rousset e Levi tenham detectado a mesma coisa, ambos enunciam o conceito de mimésis, como imitação perversa, para dar conta da identidade entre as vítimas e seus carrascos; a descrição feita por Levi, amparado pela memória do médico-prisioneiro do sonderkommando, é bastante ilustrativa da apreensão do narrador quanto a profundidade da identificação dos judeus, auxiliares da SS no manuseio da estrutura das câmaras de gás, com os nazistas e por isso citarei por extenso seu depoimento: Os SS ... escolhiam cuidadosamente...os efetivos do sonderkommando... viam-nos de algum modo como colegas, já tão desumanizados como eles próprios, ligados à mesma condição, unidos pelo vínculo imundo da cumplicidade imposta. (o Médico e testemunha) narra ter assistido durante uma pausa de “trabalho”, a uma partida de futebol entre SS e Sonderkommando ... (com ambos os lados) torcendo, apostando, aplaudindo, encorajando os jogadores, como se a partida se desenrolasse não diante das portas do inferno, mas num campo de aldeia. Nada semelhante jamais aconteceu, nem seria concebível, com outras categorias de prisioneiros; mas com eles, com os “corvos do forno crematório” (o sonderkommando), os SS podiam entrar em campo, em igualdade, ou quase. Por trás desse armistício se lê um riso satânico: está consumado, conseguimos, vocês não são mais a outra raça, a anti-raça, o inimigo primeiro do Reich milenar: vocês não são mais o povo que refuta os ídolos. Nós os abraçamos, corrompemos, arrastamos para o fundo conosco. Vocês são como nós, vocês com seu orgulho: sujos de seu sangue, como nós. Também vocês como nós e como Caim, mataram o irmão. Venham, podemos jogar juntos.”376

Primo Levi nesta passagem dá vazão ao seu espanto; sua prosa mistura o ódio com a incompreensão da realidade paradoxal desta “comunidade”, tão estranha quanto louca, onde a vítima consorcia-se ao carrasco; ele pede a todos os seus leitores meditarem este paradoxo “com piedade e rigor, mas que o julgamento sobre eles fique suspenso”. Mas porque Primo flooded it with powerfulljets of water. This was necessary because the final act of those who die by drowning or by gas is an involuntary defection. Each body was befouled and had tobe washed. Once the “bathing”of the dead was finish…they knotted thongs around the wrists…and with these thongs they dragged the slippery bodies to the elevators in the next room (the crematorium).” Otto Friedrich, op. cit. pág. 69. 375 Primo Levi, “Os Afogados e os Sobreviventes”, op. cit. , pág. 29. 376 Primo Levi, idem, pág.29. 105

Levi nos incita a suspender o juízo sobre os colaboradores, aí incluídos os homens do Sonderkomando, mesmo por aqueles que viveram os campos na condição de prisioneiros? A resposta, dada por ele mesmo, para a sua “impotentia judicanti”, incapacidade para julgar, está na impossibilidade de cada um “saber por quanto tempo, e a quais provas, sua alma resistirá antes de dobrar-se e de quebrar”. Quando terminei a leitura do “É Isto Um Homem” me associei com Primo Levi quanto a necessidade de evitar julgar, dado a natureza extrema e absolutamente insólita da situação destes homens, incapazes de imaginar, por serem homens comuns, “que tudo é possível”, como disse Davi Rousset sobre os Lager de extermínio, em frase famosa, tornada epígrafe das “Origens do Totalitarismo” de Hannah Arendt. Mas quando escrevia este capítulo e refletia sobre o martírio, como o único meio em determinadas situações de escapar ao mimetismo, chegou-me às mãos o texto de Giorgio Agamben, “O Que Resta de Auschwitz”, endossando a “impotentia judicanti” de Primo Levi de maneira problemática e insatisfatória (para mim, F.P., é claro) e, indo além de Levi, interdita o uso da idéia de martírio para compreender a morte dos judeus por “atribuir um sentido ao que parece não poder ter sentido”377; Agamben faz sua a proposição de Bruno Bettelheim para quem o uso do termo martírio falsifica o destino das vítimas e justifica isso retomando o debate da Igreja primitiva onde heréticos afirmavam a insensatez do martírio frente aos pagãos, porque Deus não pode querer o absurdo: “Cristo imolou-se por nós uma vez para sempre, foi morto uma vez para sempre, justamente para que nós não fôssemos mortos”. Alega Agamben ter sido um equívoco o uso da advertência de Jesus: “Todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai; e aquele que me negar diante dos homens, também eu o renegarei na frente de meu Pai” (Lc 12, 8-9 e Mt. 10, 32-33); essa passagem dos Evangelhos serviu segundo ele para “justificar o escândalo de uma morte insensata”, problema já abordado e creio, respondido, acima, quando apresentei o martírio como prova de fé e como a única e mais plausível atitude capaz de impedir a constituição do político, problemas desconhecidos para Agamben. No primeiro capítulo deste texto falamos das observações de Raul Hilberg e Hannah Arendt sobre a quase absoluta passividade dos judeus sob o domínio nazista, mas chamei a atenção para exceções como dos combatentes do ghetto de Varsóvia. Mas ocorreram casos de martírio de indefesos e despreparados para a luta armada, como o dos Hassidim, por exemplo, os judeus ortodoxos, citados por Paul Johnson na sua “História dos Judeus”, e sua atitude de reverência perante Deus, agradecendo o castigo pelos pecados de Israel, quando iam ser

377 Giorgio Agamben, op. cit., pág. 37. 106

gaseificados.378 Primo Levi relata a resposta heróica de um grupo de quatrocentos judeus gregos de Corfú ao convite dos nazistas para participarem do sonderkommando com todas as regalias oferecidas caso aceitassem; ao não consentirem em se tornar cúmplices foram todos imediatamente gaseificado. São exemplos dos poucos, mas exemplares, a se manterem de pé, mesmo com a morte em sua frente. Agamben infelizmente não os cita. Mesmo os “muçulmanos” apresentados como o homem comum do campo, situados no mesmo patamar de um “robot” porque morriam antes dos seus corpos, são casos difíceis de entender: quem pode ler os seus corações ou entender o significado de seus atos? Nietzsche uma vez disse ser da natureza dos fortes se isolar, “se afastar, assim como os fracos tem a tendência de se unir.”379 Estar só em Auschwitz era garantia quase certa de morte; isso explica o grande número de uniões clandestinas nos campos –comunistas, socialistas, étnicos, patrióticos etc–, esses grupos, eram na verdade um recurso básico e necessário para a sobrevivência física em primeiro lugar, apesar dos ideais presentes entre seus participantes apontar noutra direção, mais elevada éticamente falando, porque “a formação dos rebanhos é um progresso essencial e uma vitória na luta contra a depressão.”380 Pensemos com Nietzsche: talvez ser um “muslim” indicasse força de caráter e integridade; talvez a indiferença do “muçulmano” tenha nascido de uma experiência semelhante a vivida pelo deus das florestas, Silenos, quando viu a verdade e sentiu, segundo Nietzsche, nojo. Grande parte da literatura histórica dos judeus de língua iídiche, como os livros de Scholem Asch, rememora e comemora a coragem dos hebreus da Europa durante os múltiplos pogroms vividos por seus antepassados.381 O martírio é parte da memória dos ostjüden, os judeus do oriente europeu, por isso descartá-lo como fundamento da conduta dos prisioneiros, sem mais nem menos, como o faz Agamben mostra antes de tudo um desconhecimento da história judaica e de homens como aqueles judeus gregos de Corfu, capazes de disserem não, mesmo ao custo de suas vidas. Céticos como Agamben desconhecem terem os campos de concentração do III Reich e da União Soviética um traço comum com os pântanos: como todos sabem o pântano é um ecosistema marcado pela pobreza da vida animal ou vegetal, são poucas as espécies dignas de admiração, mas neles viceja uma rainha da flora, a flor de Lótus, destacando-se do seu entorno por sua graça, beleza e luminosidade; o mártir compartilha com a flor de Lótus a natureza de só se manifestar em pequeno número e se

378 Paul Johnson, op.cit. pág. 535 379 Nietzsche, “Genealogia da Moral”,III 18 in “Nietzsche: Escritos sobre Política”, Noéli Correia de Melo(org.), RJ: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2007, pág. 108. 380 Idem, pág. 107.

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contrapor ao seres ao seu lado por sua radical singularidade e beleza: viva aos mártires, judeus e gregos, de Corfú! A leitura das obras de Levi, memórias da sua internação em Auschwitz, oferece aos dotados de uma imaginação afeita ao pensamento político moderno a possibilidade de materializar a imagem do “estado de natureza” anterior a qualquer forma de sociabilidade, onde o homem é lobo do homem e a transgressão se universaliza pela supressão dos interditos e a igualdade torna-se absoluta. Esse estado imaginado por Hobbes e retomado como recurso heurístico por René Girard, está longe de ser um momento primevo da história humana, ele pode retornar e os campos de concentração, assim como qualquer linchamento, são a prova cabal desta possibilidade. 108

4 O ANTAGONISTA DAS IDEOLOGIAS: O CONCEITO DE INIMIGO OBJETIVO VERSUS A NOÇÃO DE INIMIZADE DA TRADIÇÃO

Quando esboçou um entendimento da política de perseguição e aniquilamento dos judeus pelo III Reich, Philippe Lacoue-Labarthe o fez por meio de um paradoxo; a contradição do seu enunciado é representativa da dificuldade dos estudiosos de estabelecerem parâmetros interpretativos capazes de dar um mínimo de sentido a um evento aparentemente destituído de significado; para o interprete de Heidegger “O extermínio dos judeus (...) é um fenômeno que essencialmente não segue nenhuma outra lógica (política, econômica, social, militar) que não uma lógica espiritual.” (...) O extermínio é (...) produto de uma decisão puramente metafísica.”382 Esta proposição tem um fundamento empírico, não é destituída de realidade; os dados históricos evidenciam a loucura congênita dos regimes totalitários onde os atos, mesmo quando sua sobrevivência está em jogo, contrariam todo bom senso. Quando em dezembro de 1941 o avanço da Wehrmacht, o exército alemão, foi detido nas portas de Moscou e a iniciativa da guerra começou a trocar de mãos, os nazistas convocaram a conferencia de Wansee, realizada em Berlim, em fevereiro do ano seguinte, para concatenar todo o aparato estatal do Reich na “Solução Final”, eufemismo nazista para encobrir a supressão, pela morte, da presença judaica na Europa383. Os anos de agonia da Alemanha nazista, da derrota de Stalingrado em 1943 até a queda de Berlim e o suicídio de Adolfo Hitler em 1945, foram marcados pela intensificação do extermínio. As crescentes exigências dos militares alemães por transporte ferroviário e pelos recursos logísticos em geral, resultado das vitórias aliadas em todos os fronts, só eram atendidas após terem sido satisfeitas as exigências da SS para encaminhar os judeus para os campos de extermínio, incluindo-se entre eles mão de obra técnica, muitas vezes altamente qualificada, teoricamente necessária ao esforço de guerra mas nem por isso eram poupados. A irracionalidade política e militar de decisões deste tipo salta aos olhos de qualquer observador orientado por paradigmas clássicos quanto à condução da guerra; demonstrando uma aparente alienação quanto aos destinos do conflito em curso, Hitler priorizava o genocídio sobre as prementes necessidades militares de uma Alemanha acossada por todos os lados.384

382 Phillipe Lacoue-Labarthe, “Heidegger, Art and Politics”, Oxford, Blackwell, 1990, págs. 35 e 48. 383 Sobre a conferencia de Wansee ver a obra de Hannah Arendt, “Eichmann em Jerusalém”, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, Cap. VII. 384 Em seu “Eichmann em Jerusalém”, op.cit., pág.234, Hannah Arendt comenta: “O exército podia vetar transportes...(mas) o mais interessante, é que o exército usava este direito de veto só nos anos iniciais, quando as tropas alemães estavam na 109

As agruras da guerra e o colapso da Alemanha naturalmente exigiriam, para qualquer um dotado de um mínimo de praticidade, uma atitude sensata voltada a eleger os fins políticos e militares a serem alcançados e adequar os meios necessários à sua realização; a derrocada longe de trazer o pragmatismo atestou tragicamente o vínculo absoluto entre o regime e sua ideologia, mostrando ser o ódio aos judeus a alma mesma do III Reich e seu objetivo supremo. Louco e irracional quanto a estratégia político-militar, o nazismo em sua nêmese demonstrou uma coerência absoluta com a sua antiga bandeira antissemita e apresentou-se como um tipo ideal perfeito de ação relacionada a valores. Nos primórdios do nacional- socialismo a maioria dos observadores entendia o recurso ao antissemitismo como uma atitude demagógica capaz de galvanizar as massas pelo velho recurso do bode expiatório visto como um ardil do partido nacional socialista dos trabalhadores alemães e do seu Füehrer na luta pelo poder em recurso clássico da tradição política como Platão percebeu nos políticos gregos do seu tempo, buscando a persuasão pelo recurso à opinião, como juízo impensado, não pela verdade385. Mas os acontecimentos, na medida mesma da sua radicalização, mostraram a verdade, a ideologia antissemita não era um embuste a ser descartado quando da conquista poder, ela no último ato revelou-se como a natureza essencial do regime, dos corações e mentes dos seus promotores. No emaranhado de interpretações da “Solução Final” destaca-se a obra de Hannah Arendt por contextualizar o problema dentro da história da Europa e das relações dos judeus com seus vizinhos. Para ela o holocausto está bastante distante de ter sido, para usarmos a expressão de Marx, “um raio em céu azul”, um evento inesperado ou conseqüência imprevista de uma ideologia completamente irracional; o comportamento dos judeus, a sua história, tem algo a dizer sobre as suas difíceis relações com os cristãos e de alguma maneira repercutirão, para o bem e para o mal, nos dramáticos acontecimentos do século XX. Ao defender uma ruptura entre o antissemitismo clássico, de origem religiosa, cujo objetivo era a conversão dos judeus, com o moderno ódio antissemita das teorias racistas cujo alvo era o extermínio, ela encontrou as raízes da inimizade radical entre gentios e judeus na modernidade e em seus arranjos desconhecido pela tradição: com o Estado como modo de domínio desconhecido das épocas anteriores e com a sociedade civil contemporânea, experiência desconhecida da história por trazer a novidade radical do social; a nova ordem hodierna engendrou o horror.

ofensiva; em 1944 quando as deportações de judeus da Hungria congestionavam as linhas de retirada de todos os exércitos alemães em fuga desesperada, nenhum veto ocorreu”. 385 Platão, “Diálogos(Menon/Banquete/ Fedro), Rio de Janeiro, Ediouro, s/d., Fedro, 260. 110

Os dois primeiros capítulos de A Origen do Totalitarismo estudam a relação enviesada dos judeus com a política e a sociedade européia, onde eles são, pela ação do Estado e das suas lideranças, obstados de se integrarem na estrutura de classes do Estado- nação; enquanto os salões, a expressão pública da sociedade, só se dispõem a aceitá-los como exóticos, anormais, traidores ou superdotados, como exceção enfim386. Em grupo ou como indivíduos os judeus oscilavam segundo ela entre a condição de pária e a de parvenu387, entre o isolamento real da política e da vida social das nações onde viviam com o anseio de ascender socialmente e obter reconhecimento público realizado na maioria das vezes ao custo da sua identidade pretérita pela conversão ao cristianismo, o bilhete de entrada dos judeus na sociedade européia segundo o poeta Heinrich Heine, ele mesmo um converso, como o pai de Karl Marx fora.388 O distanciamento dos judeus das relações constitutivas da totalidade da ordem social, sejam elas econômicas, políticas ou sociais, será o traço distintivo da história da diáspora judaica e, por este viés, Hannah Arendt processará a incorporação do modelo teórico de Tocqueville. Elaborado para dar conta do paradoxo da condição aristocrática e do destino a ela dado pelo terror jacobino, a lógica do pensador francês será incorporada na questão judaica para esclarecer a gênese do Holocausto devido a semelhança entre os casos históricos. Como a nobreza do Antigo Regime, cujo comportamento e inserção nas relações sociais colaboraram ativamente para modelar o estigma sobre a sua condição e levar as paixões a um ponto de ruptura, sem retorno, sem chance de qualquer conciliação, assim será também para os judeus. Hannah Arendt se esforçará em sua obra para entender como o isolamento e a cegueira política dos judeus e da sua liderança colaboraram para o ensandecido desfecho de sua presença na Europa e levando-os a serem jogados nas entranhas do inferno. A condição comum dos nobres e dos judeus quanto as suas respectivas sociedades, sua marginalidade política e social aliada ao destino trágico de ambos, estimulou Hannah Arendt a naturalmente recorrer a Tocqueville e a seu singular modelo de interpretação como o único antecedente teórico adequado capaz de estabelecer um termo comparativo válido. Evidentemente as diferenças históricas entre os eventos do século dezoito e a crise da segunda grande guerra são enormes mas, mutatis mutandis, a nobreza e os judeus eram estruturalmente marginais ao

386 cf o cap.3, “Os judeus e a Sociedade”, do vol. I da obra de Hannah Arendt, “Los Orígenes Del Totalitarismo”, Madrid, Alianza Editorial, 2002, págs.90 ss. 387 Para um aprofundamento da distinção entre pária e parvenu, além do livro I do “As Origens do Totalitarismo”, ver Tb “Hannah Arendt: Por Amor ao Mundo”de Elizabeth Young-Bruehl, Rio de Janeiro: Relume –Dumará. 1997, págs 132 ss; também sobre a questão ver o artigo de Celso Lafer, “Hannah Arendt, Totalitarismo e Antissemitismo” in “Tribunal da História: Julgando as Controvérsias da História Judaica”, Saul Fuks (org.), Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2005, págs. 260. 388 Ver nota23 pág. 103 de “Los Orígenes del Totalitarismo”, vol.I, op.cit . Para Heine e o nascimento do intelectual judeu e “do ódio judeu por si próprio”ver Paul Johnson, “História dos Judeus”, Rio de Janeiro,Imago, 1995, pág. 350 ss. 111

poder político e a economia produtiva e por isso ambos foram contemplados por um intenso e duradouro ódio popular, razões suficientes o bastante para justificar uma comparação histórica válida. Desde o início da era moderna os governos europeus encontraram na elite judaica, em seus banqueiros, o único setor da burguesia européia disposto a financiar o Estado; a contrapartida recebida por estes financistas do poder público foi a garantia do monopólio da poupança judaica e o aumento dos seus privilégios e da sua comunidade, no momento mesmo da promoção da igualdade e da extensão da cidadania a todos, colocando os judeus na contramão do movimento de democratização389; os frutos desta aberração manifestou-se na luta política dando ao antissemitismo razões seculares: todo grupo em luta contra o Estado antagonizava automaticamente os judeus. Quando descreve as reações e o comportamento dos judeus na elaboração do estigma, ela conscientemente reconheceu estar aprofundando a ruptura, promovida pela nova geração de historiadores de Israel dos anos 50 do século XX, com a “história lacrimógena” do povo judeu onde este sempre foi apresentado como vítima de maquinações cristãs; tratava-se agora de procurar compreender o papel desempenhado pelos judeus na ulterior hostilidade totalitária desencadeada contra eles. Ela comenta, entre surpresa e satisfeita, as inteligentes conclusões do historiador israelense Jacob Katz, sobre a mudança na auto-compreensão dos judeus quanto aos gentios na era moderna ter se realizado endogenamente, sem nenhuma intervenção do exterior, e seu resultado mais espetacular, por suas conseqüências nefastas, foi terem os judeus descartado a religião e passado a acreditar “que a diferença entre a judiaria e as nações não era de credo e de fé, mas de natureza interna”, a singularidade de Israel era “racial em sua origem (...) não se tratava de uma questão de diferença doutrinária”390. A fantasia de uma origem racial extraordinária substituirá a religião como elemento de ligação dos intelectuais judeus com o seu povo. Quando no final do século XIX, com o processo Dreyfus, emergem as primeiras reações judaicas declaradamente políticas ao antissemitismo, seja o sionismo de Herzl, como a busca de uma pátria para o povo pária; ou o combate a seus inimigos pela revolução mundial de Bernard Lazare, essas iniciativas aprofundaram ainda mais a ruptura com a tradição religiosa. Apesar de suas diferenças, eles compartilham uma esperança secular e o distanciamento de qualquer escatologia; nasceram afastados da sinagoga e de qualquer crença em um Deus revelado ou de um fim divino para a

389 Ver “Los Orígenes del Totalitarismo”, op.cit. pág. 102, sobre a constituição de uma casta, promovida por casamentos entre filhos dos banqueiros judeus. 390 Jacob Katz, “Exclusiveness and Tolerance: Jewish-Gentile Relations in Medieval and Modern Times” (New York, 1962, cap.12) citado em Hannah Arendt, “Los Orígenes del Totalitarismo”, op.cit., pág.16. 112

História, estavam a margem da religião e nunca alimentaram a expectativa de a ela retornarem.391 O tema da raça é bem verdade, também debutou entre os gentios, na Espanha, no início da era moderna, por intermédio da Inquisição e da decretação da “ley de la limpieza de la sangre” para distinguir o espanhol “verdadeiro” dos seguidores da fé mosaica392. No século XVIII reapareceu no contexto das lutas entre a aristocracia francesa e a monarquia absolutista dos Bourbons, como texto histórico escrito por um nobre, Boulainvilliers, declarando a condição germânica do rei e da sua nobreza, em oposição à origem galo-romana do povo da França; o objetivo do escritor era franquear o poder à aristocracia justificando este anseio no sangue comum do rei e dos seus pares393. No século seguinte Gobineau popularizou por sua obra a raça e a luta entre elas, como elemento decisivo da evolução histórica; graças a isso e a expansão imperialista da Europa, o papel das diferenças e da condição atávica foi incorporado à reflexão das elites e do povo comum. Ao fundar a diferença no organismo, na biologia, os judeus indiretamente ajudaram a construir o pressuposto elementar para o desencadeamento do moderno antissemitismo fundado no antagonismo racial, dissolvendo e tornando sem sentido a antiga distinção fundada na religião onde o preconceito, esperava-se, pelo menos para os defensores da assimilação, de um lado e de outro, se dissolveria pela conversão e o batismo.394 Ao lado desta distinção capital, Hannah Arendt ressalta também a condição única de seu povo marcado pela ausência de Estado e de território e, isto é importante para a argumentação a seguir, dominado por costumes absolutamente estranhos aos da esmagadora maioria cristã para os quais a riqueza judaica, por ser voltada ao financiamento do Estado era desprovida de qualquer sentido e vista como inútil. A realidade dos judeus na diáspora implicava viver dentro de um território, espaço politicamente demarcado, mas eram estranhos a ele; voltados ao

391 “[Herzl e Lazare] estaban alejados, como inlecutales, de aquellas estrechas y provincianas camarillas judias que de alguna manera se habián desarrollado em el marco de la sociedad gentil. Ambos estaban a anos-luz de aquel gueto espiritual que había conservado de la vida del gueto todo menos su repligue interior,y, sin embargo, ambos eran su producto natural; era esse gueto el lugar de que ambos habían escapado. Cuando se lês empujó de nuevo a el, el judaísmo ya no podia significar para ellos una religión […]” Hannah Arendt, “Herzl y Lazare” in “Uma Revisión de La História Judía y otros Ensayos”, Barcelona, Paidós, 2005, pág. 55. 392 In Joseph Eskenazi Pernidji, “A Inquisição e os Judeus” in “Tribunal da História: Julgando as Controversias da História Judaica”, Saul Fuks (org.), Rio de Janeiro, Relume Dumará: Centro de Cultura e História Judaica, 2005, pág.69. 393 Hannah Arendt, op.cit. vol. II, págs. 255 ss. Na pág. 256 Hannah Arendt comenta que “neste século criador de nações e neste país amante da humanidade (a França) é onde devemos buscar o germe deste poder destruidor de nações e aniquilador da humanidade, o racismo”. 394 “Este cambio en la estimación del carácter aparte del pueblo judio, que entre los no judíos se hizo frecuente sólo mucho después, en la época de la Ilustración, es claramente la condicion sine qua non para el nascimiento del antisemitismo, y resulta de alguna importancia señalar que se produjo primeramente em la interpretación que los judíos hicieron de si mesmos, aproximadamente en el tiempo en que la cristandade européia se escindía em aquellos grupos étnicos que cuajaron políticamente en el sistema de las modernas naciones –estados. Hannah Arendt, op.cit. vol. I págs. 16 e 17; neste mesmo texto, pág.114/115, ver também as teorias de Disraeli para distinguir os judeus dos outros povos. 113

fortalecimento do Estado, os judeus se submetiam a sua autoridade, mas nele não participavam; essa dissociação tornava-se ainda mais profunda na sociedade civil, em suas relações com a população do país hospedeiro, onde o judeu era aceito na medida mesma do seu exotismo, seja como homossexual ou traidor, a perversão manifesta do israelita era condição de ser convidado a frequentar os salões da aristocracia. Ao classificar os judeus como marginais ao mundo do seu tempo, Hannah Arendt seguiu o publicista franco-judeu, Bernard Lazare, defensor de Drefus e um dos promotores do sionismo e quem primeiro utilizou publicamente a categoria pária395; mas ela utiliza o conceito como empregado pela primeira vez por Max Weber para designar aquelas “comunidades que, ao mesmo tempo que são desprezadas, são buscadas como vizinhos por causa de uma técnica especial que elas monopolizam”396, esse dom, reservado aos judeus desde a idade média, era a usura, o dinheiro, capital financeiro. Como a elite mais representativa e poderosa da burguesia judaica, os banqueiros privilegiavam o Estado, seus recursos estavam prioritariamente voltados para empréstimo aos governos e só tangencialmente segundo Hannah Arendt este capital se voltava para atividades produtivas e esta foi uma das causas do distanciamento dos judeus da sociedade, contribuindo para aprofundar o fosso entre eles e o mundo circundante. A marginalidade dos judeus, bastante similar a dos nobres nas proximidades da revolução, era acompanhada por uma discrepância com relação à percepção do público com relação a eles; para Tocqueville a “nobreza francesa havia demonstrado que preferia as aparências do poder ao poder mesmo”397, o mesmo vale para os judeus. Quando judeus e nobres perderam a condição, e talvez a vontade, de oprimir e explorar o povo, este os considerou parasitas, sem qualquer papel prático na condução dos negócios públicos e na economia em geral; a causa do ressentimento contra ambos tinha pouco ou nada a ver com a opressão e a exploração; “a riqueza sem função visível é muito mais intolerável, porque ninguém pode compreender porque deveria ser tolerada”398. A nobreza abdicou de administrar a economia rural, de julgar os litígios do povo, de protegê-lo e ajudá-lo quando suas carências se manifestavam; ela renunciou aos seus deveres sem abdicar dos privilégios, concedidos

395 cf. o artigo “Herzl y Lazare” in Hannah Arendt, “Una Revisón de la História Judía y Otros Ensayos”, Barcelona, Paidós, 2005, págs. 53 ss. 396 Max Weber, “Economia y Sociedad, México, Fundo de Cultura Economica, 1997, pág. 316. 397 Alexis de Tocqueville, “Estado Social e Político da França Antes e Depois de 1789”,(artigo de l836 escrito para a “London and Westminster Rewiew”, traduzido para o inglês por John Stuart Mill ), in Tocqueville, “Igualdade Social e Liberdade Política”, Pierre Gilbert(org.), São Paulo, edit. Nerman, 1988, pág.71. 398 “Los Orígenes de Totalitarismo”,op.cit. pág.27. 114

desde os primórdios do feudalismo, vinculados a obrigações políticas, econômicas e sociais com o povo comum e o campesinato em particular. Para Tocqueville esta metamorfose da classe senhorial da França, a perda de suas prerrogativas de domínio, tornou sua existência um simulacro de si mesma, levando-a a comportar-se perante seus subordinados, e a sociedade em geral, como madame Duchatelet agia com seus lacaios, despindo-se em sua frente, por não considerá-los homens.399 A metáfora de Tocqueville sobre o “modus vivendi” desta nobre com seus serviçais pode ser ilustrada por uma observação do historiador americano Simon Schama, em seu interessante livro sobre a revolução francesa, “Cidadãos”, quando observa o paradoxo de serem a corte e a alta nobreza “os principais compradores das obras que mais combatiam a sua autoridade”400. Tocqueville já havia analisado este mimetismo suicida das classes dominantes da França as vésperas da Revolução; aceitando, divulgando e patrocinando obras contrárias aos seus interesses, os nobres ajudaram a cavar a sua própria sepultura, atestando por atitudes como essas a separação das classes, disseminando a patologia de uma sociedade onde “o todo não compôs mais de que uma massa homogênea cujas partes não estavam mais ligadas”.401 Na análise de Tocqueville e Hannah Arendt a natureza dos vínculos sociais dos nobres e dos judeus com suas respectivas sociedades é uma “anti-relação” por promover a invisibilidade de ambos os grupos, tornando-os párias, por se negarem a realizar o esperado, mesmo sendo o domínio e a exploração, e levando judeus e aristocratas a uma existência onde o vínculo entre a vontade e a ética, no sentido de obrigações recíprocas, desaparece; vale lembrar, a título de esclarecimento, o destaque dado por Weber `existência nas sociedades onde as relações entre os homens se funda na vontade, seja a ela a do senhor e do escravo, como na antiguidade, ou a servidão do medievo, todas elas podiam ser regulamentadas éticamente “(...) dado que sua forma depende da vontade individual dos que participam da relação.”402 Para compreender a assertiva de Weber vale lembrar a metáfora de Hegel sobre a incapacidade do escravo se libertar por se ver com os olhos do senhor; nobres e judeus se puseram fora da intersubjetividade necessária ao ordenamento da sociedade e condição mínima para uma vida política porque esta “surge no entre-os-homens” nas relações necessárias à vida.403

399 Alexis de Tocqueville, “O Antigo Regime e a Revolução”, São Paulo, Hucitec/UNB, 1989. 400 Simon Schama, “Cidadãos”, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pág. 158. 401 Alexis de Tocqueville, “O Antigo Regime e a Revolução”, op.cit., pág. 139. 402 Max Weber, “Economia Y Sociedad”, op. cit. pág. 458. 403 Hannah Arendt, “O Que é Política?”, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998, pág.23. 115

Tocqueville sintetiza o processo de marginalização dos nobres da vida política e social da França usando a categoria casta para classificar, como um grupo endógamo, fechado sobre si mesmo: “o nascimento era verdadeiramente a única fonte da qual emanava a nobreza; o nobre nascia, não se fazia”404. Enuncia ele o enclausuramento radical dos nobres em si mesmos; deixaram de ser uma aristocracia, expressão dos melhores e das classes superiores; o termo então passou a só ter sentido para os britânicos e sua notável capacidade de integrarem, inclusive pelo casamento, os mais capazes, de todas as classes, na nobreza da Inglaterra. O mesmo raciocínio reaparecerá em Hannah Arendt para os judeus: quando eles descobrem o sangue e a raça como os elementos decisivos para distingui-los dos gentios, deixando em segundo plano a sua eleição por Deus, afirmam sem o saber uma tendência mais ampla, já presente entre os cristãos com a “Ley de La Limpieza Del Sangre” dos jesuítas espanhóis e das obras de Bouianvillier para seus pares senhoriais. A endogamia está presente na história dos judeus desde seus primórdios quando Abraão foi buscar uma esposa entre seus parentes e esta tradição só fez se fortalecer ao longo da história; entre todos os povos os judeus foram os mais definidos e intransigentes quanto a sua separação dos gentios. Mesmo nos tempos modernos quando a assimilação se colocou como um problema bastante sério para os judeus europeus Hannah Arendt destaca como um “fato notável” ter a assimilação conduzido com mais frequência a conversão i.é., a mudança religiosa, e menos a casamentos exogâmicos: “Sabemos, sem dúvida, que na Alemanha existiram muitas famílias batizadas ao longo de várias gerações e que seguiram sendo puramente judias. Prova isso era que o judeu convertido só raramente abandonava a sua família e ainda mais raramente deixava seu entorno judeu. Em qualquer caso a família judia demonstrava ser uma força mais conservadora que a religião judaica”405. Curiosamente os nazistas não poupavam os cristãos novos, alegavam ser a conversão um simulacro, ligeiro verniz, a esconder sua condição real, mantida inalterada porque a raça falava mais alto; seguiram a Inquisição. A criação do Estado de Israel parece não ter atenuado a tradição de exclusão e de promoção da endogamia; Hannah Arendt quando da sua estada na Palestina para cobrir o julgamento de Adolfo Eichmann em Jerusalém denunciou a simetria entre as leis raciais de Nuremberg, impostas a todos os alemães pelo III Reich, e os obstáculos, legais e

404Tocqueville, 1988, op.cit. pág. 69: “Não é que na França não se pudesse enobrecer comprando certos cargos ou pela vontade do príncipe;mas o enobrecimento que tirava um homem das fileiras do terceiro-estado não o introduzia de fato nas da ‘nobless’. O gentil-homem recém-promovido ficava, de certa maneira, entre as duas ordens, um pouco Acima de uma mas abaixo de outra; vislumbrava de longe a terra prometida, onde só seus filhos poderiam entrar. Assim, o nascimento era verdaddeiramente a única fonte de onde emanava a nobreza; o nobre nascia, não se fazia.” 405 Hannah Arendt, “Los Orígenes Del Totalitarismo”, vol.I, pág. 103, nota 23. A mudança de religião podia ser mesmo um embuste para os inimigos, foi o caso dos “marranos”na península ibérica, ver o artigo de Joseph Eskenazi Pernidji, “A Inquisição e os Judeus”, op.cit. 116

religiosos, israelenses para o reconhecimento dos casamentos mistos e dos filhos destas uniões, e das conversões ao judaísmo feitas por rabinos reformistas americanos.406 Hannah Arendt manteve-se fiel a tradição crítica, preferiu ser leal a razão e a verdade, seguiu antecedentes ilustres dentro do judaísmo: Bernard Lazare, no final do século XIX, em 1894, publicou um longo trabalho sobre o antissemitismo, responsabilizando em parte o comportamento antissocial dos judeus pelo furor desencadeada contra eles407. A percepção das diferenças e da ausência de pontes com os gentios, assim como a responsabilidade judaica por seu autoisolamento, estava presente na consciência dos intelectuais judeus quando o moderno antissemitismo racista se apresentou publicamente durante o processo Dreyfus. A constituição de um lar nacional para o povo judeu na Palestina longe de atenuar a separação parece tê-la radicalizado. O processo de isolamento de aristocratas e judeus, ocorrido à revelia de sua vontade, prepararam o terror jacobino e as fábricas de morte da SS; as desgraças foram precedidas por um reforço da endogamia em ambos os grupos como decorrência do orgulho de sangue e da elegia da raça, estabelecendo uma distinção fundada na natureza para separá-los dos plebeus e gentios; por isso Tocqueville recorre a categoria casta para iluminar o estado da nobreza francesa e a sua separação efetiva e absoluta da França real. O enclausuramento dos hebreus e dos aristocratas dentro de seus respectivos grupos, estava longe de se limitar a ausência de casamento com estranhos a esses grupos, a negativa de estabelecer laços consangüíneos se estendia as relações políticas e econômicas, ao social como um todo. Equivoca-se quem usa o termo casta para judeus e aristocratas porque a categoria é empregado mutilada de sua acepção clássica, hindu, onde a proibição de casamentos fora do grupo não interditava relações de natureza política e social entre as diferentes castas, muito ao contrário, como atesta a obra de Louis Dumont sobre a ordem social da índia. Tocqueville aparentemente recorreu a esta categoria sociológica para mostrar o exclusivismo dos nobres e seu

406 (...) “em Israel, onde a lei rabínica governa o status pessoal de cidadãos judeus, proibindo judeus de casar com não- judeus; os casamentos realizados no exterior são reconhecidos, mas os filhos de casamentos mistos são legalmente bastardos (filhos de pais judeus nascidos fora do casamento são legítimos), e se a mãe de alguém é não-judia essa pessoa não pode nem se casar nem ser enterrada. O ultraje deste estado de coisas ficou mais agudo depois de 1953, quando boa parte da jurisdição de assuntos relativos à lei familiar passou para a corte secular.(...) Portanto não é bem respeito à fé ou ao poder da minoria de fanáticos religiosos que impede o governo de Israel de substituir a jurisdição secular da lei rabínica em questões de casamento e divórcio. Cidadãos israelenses parecem concordar que é desejável ter uma lei que proíba o casamento misto, e é sobretudo por esta razão – como admitiam funcionários israelenses fora da sala do tribunal – que eles consideram indesejável possuir uma constituição escrita, em que essa lei teria de ser embaraçosamente descrita em todas as letras. (“Os argumentos contra o casamento civil rezam que ele fragmentaria a Casa de Israel, e que também separaria os judeus deste país dos judeus da diáspora”, como disse há pouco Philipe Gillon em Jewish Frontier.) Fossem quais fossem as razões, havia, sem dúvida, algo assombroso na ingenuidade com que a acusação denunciou as infames leis de Nuremberg de 1935, que proibiu o casamento e as relações sexuais entre judeus e alemães.” Hannah Arendt, “Eichmann em Jerusalém”,op.cit. págs. 17 e 18. 407 Bernard Lazare, “El Antisemitismo, su Historia y su Causas”, Madrid, Edit. Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales, 1986, 117

fechamento a relações de parentesco com outros grupos sociais, mas na realidade o isolamento dos gentis-homens franceses abarcava diferentes esferas da vida e Tocqueville não dispunha em seu arsenal teórico de nenhuma outra categoria para entender a sociedade do antigo regime. O mesmo se aplica a reflexão de Hannah Arendt; buscando as raízes históricas do holocausto ela solicitará o modelo teórico de Tocqueville e se defrontará com a ausência de troca com os gentios e a sociedade em geral, como o traço distintivo da história judaica contemporânea. Considerado de uma perspectiva antropológica trocar – presentes, sejam eles alimentos, bens materiais ou mulheres – é da natureza da vida em sociedade, é a condição básica para a amizade e os laços de consangüinidade. Marcel Mauss afirma a universalidade da dádiva e comenta estar contido no dar a possibilidade do receber. Segundo o épico hindu, o Mahabharatha, tudo anseia por ser dado: outrora “A terra falou ao herói solar, a Rama, (...) ela dizia: Recebe-me (donatário) Doa-me (doador) Doando-me tu me terás de novo.”408

Para a doutrina moral hindu, o segredo da felicidade e da fortuna é dar, distribuir a riqueza “para que ela retorne neste mundo, espontaneamente, e sob a forma do bem que fizemos , no outro. Renunciar a si mesmo, adquirir apenas para dar, eis a lei da natureza e eis a fonte do verdadeiro proveito”409. A tradição entende ser da natureza do alimento o ser partilhado, não dividi-lo com outrem é “matar sua essência”; “A avareza interrompe o círculo do direito, dos méritos, dos alimentos ou de qualquer outro bem, que renascem perpetuamente uns dos outros. O vínculo estabelecido pela dádiva entre o doador e o donatário é extremamente forte por isso entre os antigos evitava-se comer na casa do inimigo porque cada um, nas refeições em comum, “participa da substância do outro”410. Quando se recebe algo a retribuição é natural e necessária, subtrair-se a esse dever inferioriza quem a aceitou. Marcel Mauss acreditava na permanência entre nós de uma moralidade arcaica porque nem tudo ainda é classificado em termos de compra e venda, nossa moral e a vida mesma se alimentam desta “atmosfera em que dádiva, obrigação e liberdade se misturam”. Mauss comunga com Durkheim a crença em uma origem religiosa da noção de valor econômico; o mundo

408 Marcel Mauss, “Ensaio Sobre a Dádiva”in “Marcel Mauss: Sociologia e Antropologia”, op.cit. pág. 282. 409 Marcel Mauss, op. cit. nota 67 pág. 281. 410 Idem, pág. 290. 118

primitivo e tradicional tinha plena consciência do vínculo entre o mundo das coisas e a transcendência e por isso obstavam de todas as maneiras possíveis a utilidade imperar sem limites por ser contra a natureza mesma da troca e da ordem dos homens: na língua sagrada da índia, o sânscrito, um mesmo significante designa o mercador, o avarento e o estranho ao grupo, o estrangeiro e, portanto, o inimigo. São Francisco de Assis deixou-nos, em sua oração mais célebre, a importância do dom, da troca: Senhor fazei-me um instrumento de vossa paz, onde houver ódio que eu leve o amor, onde houver ofensa que eu leve o perdão, onde houver discórdia que eu leve a união, onde houver dúvida que leve a fé, onde houver erro que eu leve a verdade, onde houver desespero que eu leve a esperança, onde houver tristeza que eu leve a alegria, onde houver trevas que eu leve a luz. Ó mestre! fazei com que eu procure mais consolar que ser consolado, amar que ser amado, pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado e é morrendo que se vive para a vida eterna.

A dádiva, como valor social, está no Antigo Testamento e nos Evangelhos, e mesmo quando Jesus admoesta seus seguidores a não serem testemunhas de seus atos (Que a tua mão esquerda não veja os atos da direita) ele pressupõe Deus presidindo tudo e organizando as retribuições conforme a contribuição de cada um. A dádiva é, em Mauss, um princípio de civilidade. Agora contarei uma pequena história judaica ilustrativa de onde queremos chegar. Tempos atrás, um judeu solicitou a dois rabinos resumir toda lei enquanto ele ficasse sobre uma só perna; um dos sacerdotes o expulsou com um pedaço de pau alegando ser impossível resumir a Torah, o outro entretanto conseguiu encontrar uma resposta engenhosa e disse: “Não queiras para ninguém o que tu abominas. Esta é toda Lei”. A resposta do rabino coloca a natureza mesma da simpatia como afinidade moral, como disposição comum no sentir e no pensar capaz de aproximar duas ou mais pessoas e/ou faculdade de compenetrar-se das idéias ou sentimentos de outrem411. O princípio da simpatia foi apresentado por nós, em capítulo anterior, presidindo a magia e o pensar do mundo primitivo e sua crença na relação entre a parte e o todo. A disposição de se colocar no lugar do outro, de sentir suas expectativas e agir de acordo com seus anseios, oferecendo ao próximo aquilo que gostarias de receber, além de ser a essência mesmo da simpatia, está no centro da experiência da dádiva e, curiosamente, do meu ponto de vista, reaparece na ideia kantiana do juízo, como mentalidade alargada, onde se deseja se colocar no lugar do outro para entender suas motivações, dando a intersubjetividade a sua razão de ser esteio natural do público e das suas relações. Após ter lido o artigo de Hannah Arendt sobre o juízo em Kant, em sua “A Vida do Espírito”, e da

411 Cf. “Marcel Mauss: Sociologia e Antropologia”, São Paulo, Cosac Naify, 2003, págsa. 55ss; ver também de Max Scheler, “Esencia y Formas de La Simpatia”, Buenos Aires, editorial Losada, 2004, págs. 14, 21, 74 e 78; ver também de Edith Stein, “Sobre El Problema de La Empatia”, Madrid, editorial Rotta, 2004,págs. 19 ss. 119

ausência desta faculdade naqueles homens onde predomina a “banalidade do mal”, como na figura de Adolfo Eichmann, incapaz de falar pela impotência do pensar, pela recusa em se colocar no ponto de vista do próximo, de viver a experiência do juízo412 entendi uma observação de J. M. Coetzee, o prêmio Nobel de literatura, sobre os defensores do totalitarismo, assim como todos os “submetidos ao pecado”  entendido como ensimesmamento, estado de cessação de qualquer intercâmbio  tem almas marcadas pela ausência da simpatia.413 A importância da comunicação para nossa humanidade, tenha ela o nome de juízo, dádiva ou simpatia, é o contraponto necessário ao conflito e a guerra; por ela podemos pensar a fundação da cultura. Quando Levy-Strauss definiu o interdito do incesto e a troca matrimonial como quesito elementar da sociabilidade, seguiu a teoria da dádiva de Marcel Mauss e seu princípio de reciprocidade para descrever, em termos sociopolíticos, a metamorfose do estado de natureza em mundo cultural. Marshal Sahlins foi mais além e afirmou a teoria da dádiva, do Dom e da troca, constitutiva das sociedades tradicionais, como a instituição por excelência do mundo primitivo para a superação da guerra do estado de natureza e possibilitar a cultura; é o equivalente no pensamento antropológico ao contrato fundador do Estado e do poder soberano da teoria política de Hobbes para a resolução do conflito universal de todos contra todos414. Claro, muitos argumentam contra, é o caso de Pierre Clastres onde a crítica a Lévi- Strauss e, por extensão a Mauss, estabelece uma dicotomia no fenômeno da troca pondo de um lado o câmbio exogâmico de mulheres como derivado da proibição do incesto e condição de fundação da ordem social e a troca como fruto da razão política - “os melhores aliados, ou os menos ruins, são os parentes”415. Quando mulheres de um grupo são enviadas para outro e vice-versa, o alvo é uma solidariedade, uma aliança, para resolver uma ameaça militar. Para Clastres qualquer relação entre grupos tribais não tem por objetivo a troca em si, o sentido da aproximação é político-militar porque a sociedade primitiva tem em seu ser, em sua natureza, a busca da autarquia, da independência, por isso a guerra é a alma mesma destas comunidades, é o contrário do preconizado por Lévi-Strauss. A guerra põe em questão a troca como a totalidade das relações sociopolíticas entre os diferentes grupos tribais, ela é o meio

412 “Eichmann em Jerusalém”, op.cit. pág. 64. 413 J.M.Coetzee, “A Vida dos Animais”, São Paulo, Companhia das Letras, 2002., pág.25: “Na Alemanha (...) se ultrapassou uma determinada linha (...) além do assassinato e da crueldade normais na guerra, conduzindo-os até um estado que poderíamos chamar de pecado.” 414 Marshall Sahlins, “Stone Age Economics”, Nova York, Edit. Aldine, citado por Eduardo Viveiros de Castro in “A Inconstância da Alma Selvagem”, São Paulo, Cosacnaify, 2011, pág. 305. 415 Pierre Clastres, “Arqueologia da Violência”, São Paulo, CosacNaify, 2004, pág. 261. 120

para se compreender a troca e não o inverso. “A guerra não é um fracasso acidental da troca, a troca é que é um efeito tático da guerra.”416 A leitura de Clastres, apesar de diferente e antagônica à Mauss e Lévi-Strauss, endossa a proposição desenvolvida aqui, porque se considerarmos a realidade do mundo primitivo, onde para qualquer grupo tribal, todos os outros são estrangeiros417, e como tal, inimigos, a troca de mulheres, mesmo quando aceito para cimentar uma aliança militar, implica em transcender sua alteridade pela aceitação do sangue alheio como tão digno de ser compartilhado como o seu próprio. O recurso à exogamia como prática diplomática significa a aceitação do outro e evidentemente uma renovação da sua própria condição. Quando os nazistas afirmaram a endogamia, proibindo casamentos inter-raciais, foi dado o primeiro passo para o início da segunda grande guerra. Hitler, em uma de suas primeiras medidas, mandou esterilizar todos os filhos de mulheres alemães com soldados africanos, concebidos durante a ocupação do Ruhr por tropas negras coloniais francesas em 1919/1920, quando a França, para exigir o pagamento das reparações de guerra ocupou a região industrial da Alemanha. As leis raciais de Nuremberg elaboradas durante o congresso do partido nacional- socialista de 1934, deixam claro, sob pena de prisão, a interdição de relações sexuais e a realização de casamentos entre arianos e judeus. O interessante nisto tudo e terem sido as medidas claramente endogâmicas introduzidas primeiro junto as SS, a elite do nazismo,em 1929, quatro anos antes da ascensão de Hitler ao poder; posteriormente, quando se tornou chanceler, elas foram estendidas a toda população.418 Antes de envolver bens materiais, a troca é antes de tudo subjetiva por requisitar em alguma medida a experiência da mentalidade alargada, aquela disposição anímica descrita por Kant e Hannah Arendt para situar existencialmente a práxis do juízo; por isso um literato como Coetzee enunciou a experiência anímica dos SS, e dos movimentos totalitários em geral como adversa ao juízo e a simpatia; para o escritor sul-africano a recusa dos assassinos em se imaginarem na condição de suas vítimas abriu o caminho para a escuridão e o horror do genocídio: “Em outras palavras, eles fecharam seus corações. O coração é o sítio de uma faculdade, a simpatia, que, às vezes, nos permite partilhar o ser do outro”, mas ele também

416 Idem. 417 Entre os Araweté, “A palavra bidê, que traduzi por “humanidade”, significa também “nós”, “a gente”, e “os Araweté. (.....) Como várias outras sociedades amazônicas, os Araweté não objetificam o coletivo a que pertencem por meios de substantivos de tipo etnonímicos, reservando-os para os outros, isto é, precisamente, para os inimigos.” Eduardo Viveiros de Castro, “A Imanência do Inimigo” in “A Inconstância da Alma Selvagem”, São Paulo, CosacNaify, 2011, pág. 271. 418 Cf. Hannah Arendt, “Los Orígenes del Totalitarismo”, op.cit. pág. 585, nota 112, Tão logo foi nomeado chefe das SS em 1929, Himmler introduziu o princípio da seleção racial e as leis matrimoniais”( impeditivas do contato sexual e de estabelecer matrimônio com não-alemães). 121

reconhece a existência de homens privados desta faculdade e “quando esta falta é extrema chamamos essa pessoa de psicopata.”419 Em um outro extremo está Gilberto Freyre e sua obra Casa Grande e Senzala apresentando a troca configurando relações de afinidade como o traço distintivo da civilização brasileira nascida do intercambio sexual entre grupos étnicos fisicamente diferenciados. Graças à ausência de preconceito e de mulheres européias, nasceu a natural disposição dos lusitanos em relacionar-se com mulheres de outras raças nestas novas terras. O coito ao associar um punhado de portugueses com a maioria índia e com os negros, habilitou-os a estender seu domínio sobre vastos territórios e estabelecer condições minimamente adequadas para a sua defesa. Casa Grande e Senzala veio a público em 1933, ano da ascensão de Hitler a condição de chanceler da Alemanha marcando a ascensão do racismo como doutrina de uma das principais potências européias e candidata à hegemonia mundial. Freyre defendeu a idéia, hoje universal, mas então repudiada, principalmente pelas ciências sociais, da miscigenação dos povos como responsável pelo caráter único do Brasil como civilização tropical e multirracial bem-sucedida. Bem outra é a condição judaica. Ao estabelecer um princípio radical de separação, promotor de uma endogamia radical, o povo judeu defendeu-se, ao longo da diáspora, da possibilidade natural de ser assimilado. Mesmo Nietzsche, apresentado muitas vezes como tolerante com os semitas, os julgava, “sem dúvida nenhuma, a raça mais forte, mais tenaz e mais pura que vive agora na Europa”.420 Em seus primóridos a origem da separação foi religiosa; está na Torah, no Pentateuco, a exigência dos judeus viverem separados dos outros povos; no Levítico (20, 25-26) o Divino promulga: “Sereis consagrados a mim, pois eu Iahweh, sou santo e os separei de todos os outros povos para serdes meus.”421 A modernidade trouxe, entre os judeus, uma mudança no entendimento da sua diferença dos gentios, passaram a afirmar a raça, o sangue, como o traço definitivo da separação abandonando a eleição divina; a mudança mostrou a presença de uma problemática comum, perpassando os modernos movimentos antissemitas abertamente racistas e a sinagoga. Naturalmente a promoção da endogamia e a marginalização política e social, uma promovendo a outra, foram as chaves para abrir o inferno para os judeus. Quando é radicalizada, levada a seu termo lógico, a endogamia, assim como a negativa em entrar no circuito da dádiva, traz, para “o casal incestuoso o mesmo que com a família avara: Isola-se automaticamente do jogo que

419 Coetzee, op.cit. págs. 42/43. 420 Nietzsche, “Para Além do Bem e do Mal”, aforisma 251, in Nietzsche, Obras Incompletas, São Paulo, Abril, 1083, pág. 290. 421 Bíblia de Jerusalém,op. cit. 122

consiste em dar e receber ao qual se reduz toda vida (...). Nesse corpo coletivo tornam-se um membro morto ou paralisado.”422 O isolamento político e social de judeus e aristocratas antecedeu o seu extermínio e quem observar estes processos históricos perceberá a simetria entre a argumentação de Hannah Arendt, e seu conceito de inimigo objetivo, com René Girard e a sua teoria de processo vítimário onde a violência recai antes de tudo sobre grupos sociais “outsiders”, acusados injustamente de crimes, independentemente dos seus atos reais afirmarem sua inocência. Certamente foi seu isolamento, prova da sua impotência, a condição essencial para serem apontados, teoricamente pelo menos, como culpados por seus carrascos; a situação é a mesma de outras épocas e de outras formações sociais: Lucien Levy-Bruhl observou nos povos primitivos por ele estudados, a disposição de executar os mais fracos e sem amigos.423 Hannah Arendt e René Girard viram na marginalização, voluntária ou involuntária, das vítimas, a razão da sua escolha como bode expiatório; será sem dúvida esta condição a fonte de onde nasce o comportamento singular de seus perseguidores. Judeus e aristocratas foram antagonizados com um ânimo muito diferente daquele encontrado nas comunidades primitivas onde a inimizade não configura ausência de relações sociais, ao contrário, a relação entre o matador e sua vítima pertence ao mundo do Dom, i.é., da dádiva, da troca, observou Claude Lefort.424 Vamos compará-los com os procedimentos de execução dos judeus para ilustrar a questão: Heinrich Himmler, o Reichsfuehrer da SS, seu comandante supremo, exigia de seus comandados um distanciamento total de suas vítimas, ele interditava o saque dos bens dos judeus mortos assim como levava a julgamento carrascos com traços comprovadamente sádicos. A relação possível, desejada, entre a vítima e seu algoz, deveria ser “técnica”; por isso ele optou pelas câmaras de gás, como método mais “humano” e com um know-how acumulado e já largamente utilizado, e aprovado, com os doentes mentais da Alemanha.425 A

422 B.Z. Seligmann, “The Incest Barrier: Its Role in Social Organization”, citado por Levy-Strauss, “Estruturas Elementares do Parentesto”, Petrópolis, Vozes, 1982, pág. 529. 423 Lucien Levy-Bruhl, “A Mentalidade Primitiva”, São Paulo: Paulus, 2008, pág. 254. 424 Claude Lefort, cf. cap “A Mudança e a Luta dos Homens” in “As Formas da História: Ensaios de Antropologia Política”, São Paulo, Brasiliense, 1979. 425 “A primeira câmara de gás foi construída em 1939, para implementar o decreto de Hitler datado de 1/9/1939, que dizia “que pessoas incuráveis devem receber uma morte misericordiosa” (...) A idéia em si é consideravelmente mais antiga. Já em 1935, Hitler havia dito ao médico-chefe do Reich, Gerhard Wagner, que “se a guerra viesse, ele englobaria e resolveria a questão da eutanásia, porque era mais fácil fazê-lo em tempo de guerra.” O decreto foi cumprido imediatamente no que dizia respeito aos doentes mentais, e entre dezembro de 1939 e agosto de 1941, cerca de 50.000 alemães foram mortos com monóxido de carbono em instituições cujas salas de execução eram disfarçadas como seriam depois em Auschwitz – como salas de duchas de banho. O programa foi um fracasso. Era impossível manter a eliminação por gás em segredo da população alemã circundante; houve protestos de todos os lados, de pessoas que aparentemente ainda não tinham atingido a visão “objetiva”da natureza da medicina e da função de um médico. A eliminação por gás no leste (...) começou no mesmo dia que cessou na Alemanha” (...), Hannah Arendt, “Eichmann em Jerusalém”, op.cit. pág. 124. Coube ao historiador alemão Gerald Reitlinger desvendar o vínculo entre o programa alemão da eutanásia e a “Solução Final”, ver também Edwin Black, “A Guerra Contra os Fracos”, São Paulo: A Girafa editora, 2003, págs. 449 até 592. 123

opção pelo gás veio após Himmler assistir a uma operação dos Einzatzengruppen426, as unidades móveis de extermínio operantes no leste europeu, cujas execuções eram feitas por fuzilamento; o chefe da SS sentiu-se mal com a brutalidade da operação e a partir daí estimulou meios mais “suaves”, “misericordiosos”, onde o contacto entre o executor com os condenados inexistisse ou fosse o essencialmente necessário.427 A “tecnicidade” preconizada por Himmler foi eficaz operacionalmente, vale a pena lembrar sobre o manuseio das câmaras de gás de Auschwitz e outros campos de extermínio depender muito dos sonderkommandos (composto por prisioneiros judeus), facultando aos SS um distanciamento seguro do “trabalho sujo” graças à colaboração direta das vítimas; no campo de concentração de Theresienstadt a ajuda dos presos chegou ao extremo do próprio carrasco ser judeu.428 O comportamento de Himmler atesta o ideal dos nazistas de agir contra os judeus “científicamente”, impedindo a interferência de qualquer emoção, como o ódio, justificativa para a violência insensata e sádica; ou o interesse, estímulo para o roubo e o saque. O raciocínio totalitário e seu conceito de “inimigo objetivo” define o antagonista independentemente de seus atos e palavras; os sentimentos e os afetos pouco afetam a definição das ideologia e devem estar ausentes na relação com as suas vítimas, A pesquisa sobre as múltiplas possibilidades de matar em massa nasceu em decorrência direta do programa da eutanásia do III Reich e foi toda ela organizada por médicos e posta em prática com os doentes mentais da Alemanha e só mais tarde foi utilizada com os judeus, ciganos e eslavos. A SS articulou a necessidade de eliminar milhões com as exigências da doutrina nacional-socialista; o conceito de “mal radical”, como uma máxima má dada pelo livre-arbítrio a si mesmo, ao possibilitar a idéia de “inimigo objetivo”, qualificado como tal pela natureza ou a história, as expensas de qualquer atitude hostil, também requisitará o distanciamento de qualquer emoção na mecânica do extermínio, por ser um trabalho médico, contra parasitas, vermes, não se trata de seres humanos, por isso inexiste inimizade ou ódio, a ideologia dispensa sentimentos, trata-se de uma necessidade histórica ou biológica,ou as duas ao mesmo tempo; para a SS, a questão era “médica”, Himmler em pronunciamento a seus agentes declarou ser o “antissemitismo o mesmo que tirar piolhos. Livrar-se de um piolho não é um problema ideológico. É uma questão de limpeza.”429 Tudo

426 Para estas unidades ver de Raul Hilberg, “The Destruction of the European Jews”, New York/London, 1985, pág. 271 ss. Responsáveis por aproximadamente um milhão de mortes, os Einsatzgruppen eram comandados por intelectuais sem qualquer vínculo pretérito com a violência, sobre isso ver o texto de Hilberg pág. 289. 427 A consciencia de Eichmann, executado em Jerusalém em 1962, apresentou também um comportamento parecido com os pluridos de Himmler, ver “Eichmann em Jerusalém”, op.cit. págs. 108 ss. 428 Hannah Arendt, “Eichmann em Jerusalém”, op.cit. pág. 141. 429 Hannah Arendt, “Los Orígenes del Totalitarismo”, op.cit. pág. 585. 124

isso elucida um comentário de Hannah Arendt sobre o nazismo e o bolchevismo se negarem a darem morte de mártires às suas vítimas.430 Culturalmente a diferença da violência nos os povos primitivos com as sociedades totalitárias, é abissal. Teorizando o conflito entre tribos melanésias, Simon Harrison apresenta conclusões interessantes para compreender a distância da lógica totalitária do extermínio e da inimizade quando a comparamos as guerras primitivas; segundo ele, “A agressão (entre os melanésios) é concebida integralmente como um ato comunicativo dirigido contra a subjetividade de outrem; e guerrear requer a redução do inimigo não ao estatuto de uma não pessoa ou de uma coisa, mas muito ao contrário, a um estado de extrema subjetividade”, erra-se ao definir a inimizade como ausência objetiva de relações sociais, ela é uma relação social tão definida como qualquer outra. Matar o antagonista leva o assassino a incorporar um traço da identidade do morto, fundindo “duas alteridades sociais em um só ser”.431 O fenômeno não se restringe aos povos do pacífico; em outro continente, entre os Araweté, povo indígena da Amazônia oriental brasileira, a morte de um guerreiro inimigo longe de encerrar-se com o assassinato abre, após sua consumação, uma lenta mas constante aproximação e fusão da alma do morto com seu executor. Após retornar à sua comunidade o assassino demonstra incapacidade para falar e comer, ficando pasmo e imóvel e vomitando continuamente por levar em si o sangue do falecido; a tribo o isola e o submete a uma série de interditos alimentares e sexuais porque devido a crescente simbiose dele com a vítima esta contaminaria com seu esperma a mulher do assassino causando-lhe imediatamente a morte. A dieta do guerreiro encerra-se quando a alma do morto vai a algum recanto no mundo invisível e retorna trazendo canções e começa a entregá-las ao seu algoz. Gradualmente nasce entre o espírito do morto e seu executor uma relação de companheirismo e de amizade muito especial, qualificada pela tribo no mesmo nível de valor da maior e melhor relação entre homens existente entre eles; ela é denominada pelos arawetés de Apihi-pihã, quando dois casais desfrutam sexualmente dos conjugues opostos assim serão os laços do matador e de sua vítima. O detalhe pitoresco e distintivo dessa relação, seu ápice, se dará após a morte do executor. Os arawetés acreditam ser o destino das almas dos seus inimigos após a morte, serem expulsas do céu para terra onde conhecerão um segundo falecimento, este definitivo. Mas quando um guerreiro araweté faz tombar um antagonista de outra tribo, ambos, após suas

430 “Faz parte dos refinamentos dos governos totalitários de nosso século que eles não permitam que seus oponentes morram a morte grandiosa, dramática dos mártires”, “Eichmann em Jerusalém”, op.cit. 253. 431 Simon Harrison, “The Mask of War: Violence, Ritual and the Self in Melanesian”, Manchester, Manchester University Press, 1993, citado por Eduardo Viveiros de Castro, “A Inconstância da Alma Selvagem, São Paulo: Cosac Naify, 2011, pág. 292. 125

respectivas mortes, sobem aos céus e os espíritos dos dois se metamorfoseiam em uma entidade dual devidamente respeitada pelos deuses por a considerarem um ser divino, equivalente a eles. O contrário dos primitivos está em Hitler; em sua biografia, “Minha Luta”, e ele narra o nascimento de um antagonismo sem chance de reconciliação. Conta o futuro Fuehrer ter conhecido poucos judeus em sua cidade natal, Linz, na Áustria e não ser capaz de distingui- los porque “com o decorrer dos séculos, o aspecto do judeu se havia europeizado e ele se tornara parecido com gente (ênfase minha). Eu (Hitler) os tinha por alemães.” Mas um dia o jovem Adolfo se defrontou nas ruas de Viena com um ostjüden, um judeu do oriente europeu: “Um dia eu passeava pelas ruas centrais da cidade, súbitamente deparei com um indivíduo vestido em longo caftan preto e tendo pendidos da cabeça longos cachos: Meu primeiro pensamento foi: isso é um judeu? Em Linz eles não tinham as características externas da raça [...] e quanto mais eu contemplava aquela estranha figura [...] mais me perguntava [...]: isso é também um alemão? Durante sua permanência em Viena, Hitler começou por duvidar cada vez mais da pureza moral dos judeus e a se perguntar: “Poderia haver uma sujidade, uma impudência de qualquer natureza [...] em que, pelo menos um judeu não estivesse envolvido? Quem cautelosamente abrisse o tumor, haveria de encontrar, protegido contra as surpresas da luz, algum judeuzinho. Isso é tão fatal como a existência de vermes nos corpos putrefatos.”432 A condenação é de natureza moral, descritos como uma patologia do corpo social os judeus são associados irreversivelmente a perversão sexual, a hipocrisia e a mentira como atributos natural da raça em suas relações com a sociedade germânica. A presença judaica na imprensa “marrom”, no controle da prostituição e nos movimentos marxista com seu ideário internacionalista e revolucionário levaram Hitler a começar a odiá-los e a crer estar o seu pensamento e as suas ações “de acordo com as prescrições do Criador-Onipotente. Lutando contra o judaísmo, estou realizando a obra de Deus.”433 O hebreu não é um antagonista comum, ele é inimigo do Onipotente e, por decorrência, de toda criação. A inimizade presente em Hitler fala de um antagonismo irreversível; a diferença racial envolve uma diferença de objetivos e valores; enquanto o ariano busca o apolíneo e a grandeza o judeu persegue a supressão das diferenças e a afirmação dos seus objetivos

432 Adolfo Hitler, “Minha Luta”, São Paulo: Edit. Centauro, 2001 págs.44, 46,47. Na pág. 240 Hitler comenta: “O judeuzinho de cabelos negros espreita, horas e horas, com um prazer satânico a menina inocente que ele macula com seu sangue, roubando-a ao seu povo. Não há meios que ele não empregue para estragar os fundamentos raciais do povo que ele se propõe vencer.” 433 Adolfo Hitler, op.cit. pág.53. 126

niveladores e degradantes é recoberta com o maquiavelismo dos seus métodos, dos quais o marxismo é o maior exemplo. Em Hitler se enuncia o princípio da vítima expiatória como exposto por René Girard: ao isolamento do acusado se segue a denúncia de traços perversos do seu caráter e da sua natureza física e biológica ser a fonte do próprio mal. A inimizade nascida da ideologia constitui-se como “mal radical”, como máxima má dada pelo arbítrio a si mesmo no sentido dado por Hannah Arendt ao conceito; mostramos no capítulo anterior os vínculos desta problemática com a religião e com o conceito de vontade. Quando Hannah Arendt se apropriou da problemática contida na obra de Kant, “A Religião nos Limites da Simples Razão” para servir de alicerce à sua definição da ideologia como a representação formal e objetiva do mal, ela se aproximou da problemática religiosa do pecado original em termos bastante próximos aos de Filoxeno de Mabbugh, padre e bispo da igreja oriental, para quem essa queda primeira, o pecado primevo, foi entendido como uma perversão da fé, manifesta quando uma falsa crença se “sobrepõe à simples e imaculada visão da verdade, pervertendo o conhecimento direto, distorcido por uma falsa afirmação ou negação”.434 O pecado em Filoxeno está na representação, na máxima má dada pelo livre-arbítrio a si mesmo, para falarmos como Kant e Hannah Arendt, como aquilo interposto entre o homem e a sua realidade e nesta mediação situa-se seu parentesco com a idolatria e a lógica mítica. Associei a ideologia à idolatria na tentativa de explicar a inimizade totalitária como a promoção de um antagonismo aparentemente sem fundamento empírico algum, como explicitado no conceito de inimigo objetivo. O recurso aos textos religiosos ajudará a pensar a questão, por estar neles a definição básica da idolatria. O segundo mandamento do decálogo interdita (Ex 20, 4 – 6; Dt 5,8 – 10; Lv 26,1; Dt 4,15 – 23) o feitio de imagens, sejam elas “no alto, nos céus; nem embaixo na superfície da terra, nem nas águas debaixo da terra”. A proibição funda-se na transcendência absoluta do Divino, colocá-lo em imagens pintadas ou esculpidas significava reduzi-lo e confundi-lo com a natureza, rebaixando-o ao mesmo nível dos deuses pagãos adorados em suas representações, como imagens. O ídolo não é um deus, é obra da mão humana, é uma representação ilusória argumenta o Antigo Testamento nos escritos deixados pelo profeta Isaías (44,18): Eles nada sabem nem entendem, porque os seus olhos são incapazes de ver e os seus corações não conseguem compreender. Nenhum deles tem conhecimento ou inteligência para dizer: “A metade (da madeira) queimei ao fogo, com ela assei pão sobre a brasa, assei carne e a comi; com resto fiz uma coisa abominável e me prostrei diante de um pedaço de lenha!” Aquele que se apascenta de cinzas, o seu coração lubridiado o desencaminha: ele não

434 Cf. Thomas Merton, “A Experiência Interior”, São Paulo, Martins Fontes, 2007, pág. 31. Filoxeno de Mabbugh ( C. 450 – 523), nascido em Tahal, Pérsia, foi um destacado teólogo monofisita. 127

consegue salvar a sua vida nem é capaz de dizer: “Aquilo que tenho na minha mão não será apenas uma mentira?435

Hoje temos consciência do caráter ilusório e fantástico das teorias políticas totalitárias do século XX, o nacional-socialismo e o bolchevismo. O desnudamento destas doutrinas, a transparência pública da sua condição insana e criminosa, foi uma decorrência natural do desmoronamento de seus fundamentos políticos – a derrota militar do Estado nazista e a falência da União Soviético – eventos pelos quais à opinião pública teve acesso aos traços demoníacos dessas sociedades como o uso do terror sistemático e a matança monumental de inocentes atestando o seu afastamento de todo e qualquer bom senso. Mas durante bastante tempo as teorias racistas assim como o materialismo histórico e dialético tiveram – e para o último ainda tem – um público disposto a ouvi-los e, para desgraça de toda a humanidade, multidões destes admiradores e prosélitos despertaram em si a disposição para transformar estas teorias na razão de ser do seu próprio espírito e a infligir sofrimentos à muitos e a perecer lutando por sua realização. As vítimas destas ideologias contam-se aos milhões, mas seus seguidores contavam-se as dezenas de milhões, nações inteiras; Heidegger em sua última entrevista à revista alemã “Der Spielgel”, quando interrogado sobre sua adesão ao nazismo em seus primórdios, defendeu-se dizendo: “Eu e toda Alemanha!” O fascínio exercido pelas ideologias sobre as multidões, aí incluída a elite intelectual, se relaciona de alguma forma com a experiência existencial presente nela ser similar a da idolatria? Aparentemente são coisas diferentes, vistas de relance não há simetria possível entre um ídolo e uma doutrina, o primeiro é uma imagem, pouco importa se um quadro ou uma escultura, a outra é uma teoria, um discurso. Mas elas são parentes porque ambas são aceitas por seus adeptos, ansiosos por crerem serem elas a verdade e de possuírem eficácia sobre a realidade circundante; e last but not least, todos aqueles adoradores de um e de outro são destituídos de inteligência e de conhecimento, segundo o profeta Isaías, para reconhecerem a mentira em seus corações e mentes. O ídolo na verdade é uma idealidade, ele tem uma teoria como a ideologia, é uma representação prática, um método de intervenção sobre o mundo, sobre os homens e suas relações; o centro de gravitação de um e de outro é a lógica mítica, mágica, a fé na capacidade da vontade agir sobre o outro, seja ele o homem ou a natureza. Hannah Arendt associou o fenômeno revolucionário com a emancipação da vontade na era moderna e a fé dos revolucionários em um novo tempo derivava da sua crença na força do querer ser capaz de modificar a própria história. Só aparentemente a liberação da volição é

435 Isaías 44, 18 – 20, Bíblia de Jerusalém, op.cit. 128

moderna, mostramos antes como a magia e a bruxaria em geral supõem a autonomia do sujeito e a capacidade de escolher entre o bem e o mal. Dividem também, a idolatria e a ideologia, o anseio por resolver o problema do mal e do sofrimento e são, como a moderna teodicéia, uma tentativa de explicação e de solução para as desgraças do homem. A ideologia, herdeira hodierna do mito e da magia, recebeu deles o dogma da reificação do mal e da sua tangibilidade, e a ilusão da capacidade da vontade de agir contra ele. A maneira de definir o portador do maléfico pode ser um mecanismo adivinhatório, o recurso às sortes, como vimos na descrição da história de Jonas ou uma teoria causal fundada na raça ou na história como é do escopo da ideologia. O jogo mítico ou a ideologia são portadores de uma racionalidade de desvendamento para poder visualizar o responsável pelo dano, escondido além das aparências. Os jogos eram o modo mágico de escolha das vítimas sacrificiais, o caráter aleatório estava na base da seleção da vítima para ser o bode expiatório.436 As ideologias como a do “Malleus Malleficarum” (“O Martelo das Bruxas” a doutrina da bruxaria da inquisição católica e evangélica) ou o “Mein Kampf” de Adolf Hitler, são concepções fundadas na história, e atingem categorias sociais (leprosos), ou um gênero (as mulheres como bruxas em potencial), ou povos inteiros como judeus, ciganos e eslavos. A idolatria e a ideologia dividem também uma semelhança formal quanto ao conteúdo, vejamos como. Na interpretação dada por Nietzsche ao culto de objetos como representação de deuses, está a idéia da imagem como “divindade e ao mesmo tempo esconderijo da divindade”, por ser a figura do divino algo mais próximo ao monstruoso, ao inumano, por isso é função do ídolo guardar e resguardar o deus.437 A insuficiência da imagem – o pau, ou a pedra ou um Apolo com quatro mãos e outras tantas orelhas - resulta menos da capacidade para representar o transcendente esteticamente; evita-se, isso sim, o enunciado direto para impedir de associar a entidade espiritual com o humano dado o seu caráter ambíguo, a sua duplicidade, seu potencial de infligir a dor e o prazer. A interpretação de Nietzsche pode ser aprofundada através das reflexões de Girard sobre as fundações das religiões primitivas nascidas de uma vítima expiatória morta por ser a causa da discórdia ou da peste, ou qualquer outro flagelo; apontada como promotora da cizânia, da desunião, fonte da doença e do sofrimento, o seu assassinato trará o fim da desordem e a cura. O bode expiatório, suspeito de ser a fonte do mal, se transforma, pelo seu

436 René Girard em “Evolução e Conversão”, São Paulo, Edit. É, 2011, PÁG. 95; “(...) os rituais parecem guardar a “memória” dos elementos aleatórios na base da seleção da vítima no mecanismo do bode expiatório, fazendo jogos de charada ( como a esfinge com Édipo), para a seleção contingente da vítima a ser sacrificada”( Girard segue aqui a obra de Roger Callois “Les Jeux et les Hommes). 437 Nietzsche, “Humano, Demasiado Humano”, segundo volume, aforisma 222 in “Nietzsche, Obras Incompletas, São Paulo: Abril, 1983, pág. 137. 129

linchamento, em divindade benéfica por trazer o entendimento à comunidade e o afastamento do mal.438 Apolo por exemplo é a fonte da doença e a sua cura, o mesmo se aplica à Édipo, acusado de ter trazido a peste à Tebas, ao responder corretamente ao enigma proposto pela esfinge libertará sua cidade da epidemia. Quando discutimos bruxaria falamos das suspeitas da Inquisição sobre os descendentes de feiticeiros queimados de seguirem os passos de seus pais quando apresentavam dons de cura e capacidades médicas; Girard nos conta da execução de Lopez, o médico judeu de Elizabeth primeira, acusado de ser bruxo; segundo a tradição medieval o povo preferia os médicos judeus porque “eles associavam o poder de curar com o poder de tornar doente”.439 Para Nietzsche a imagem é, na idolatria, o divino e simultaneamente seu abrigo; mutatis mutantis, a ideologia é a verdade e concomitantemente seu lar, ela permite penetrar no segredo do mundo, ela é a força de desvendamento do engano das aparências, mas ela tem seu limites: a “verdade” do totalitarismo não se confina a texto algum, está no “Führerprinzip”, a vontade de Hitler tem a força da lei, por isso o nazismo e seu irmão siamês, o comunismo, não são partidos, são movimentos, defendem a revolução permanente, alérgica e intolerante com qualquer institucionalidade porque toda estabilidade contraria sua natureza. A grande maioria dos líderes do NSDAP provavelmente sequer leu “Minha Luta”. A doutrina é, rigorosamente falando, para o “público externo”, para fins de propaganda, para quem ainda não aderiu de fato440. O lema da SS era: “A minha Honra é a minha lealdade”, nele se inscreve o ideal da obediência cega; Heinrich Himmler, seu comandante, selecionava seus integrantes independentemente de qualquer conhecimento ideológico, eles eram escolhidos a partir de uma perfeita “objetividade racial”: uma foto do pleiteante, analisada pessoalmente pelo próprio Reichsführer, decidia pelo seu ingresso ou não nessas tropas de elite.441 Curiosamente os SS no campo de concentração de Auschwitz escolhiam seus colaboradores judeus, para ajudá-los a operar a máquina de extermínio, por um critério parecido com aquele utilizado por seu chefe, Himmler; conta-nos Primo Levi, sobre a seleção dos integrantes judeus do

438 Ver de René Girard, “Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo; A Revelação destruidora do Mecanismo Vitimário”- São Paulo: Paz e Terra, 2008, cap. V. 439 René Girard, “O Bode expiatório”, SP, Paulus, 2004, pág. 64. 440 “Uma mistura de credulidade e de cinismo predomina em todos os escalões dos movimentos totalitários, e quanto mais alta é a categoria, mais se imporá o cinismo sobre a credulidade. A convicção essencial, compartilhada por todas as categorias [...] é que a política é um jogo de enganos e que o “primeiro mandamento” do movimento é: “O Führer sempre tem razão”. Hannah Arendt, “Los Orígenes Del Totalitarismo”, op.cit. pág.581. Na página seguinte, Hannah Arendt reproduz um comentário de um estudioso do Partido Comunista da União Soviética: “Nenhum comunista verdadeiramente doutrinado acredita que o partido está “mentindo”por professar uma política em público e outra completamente oposta em privado.” 441 Hannah Arendt, idem, págs. 527 ss. 130

SonderKommando, “que a escolha não se dava só com base no vigor físico mas também no estudo aprofundado das fisionomias.”442 A idolatria e a ideologia se entendidos como uma máxima má dado pelo sujeito à si mesmo poderia ser enunciada como o aprisionamento do pensar pela representação: existem aqueles dotados com a maestria do pensar e aqueles outros, incapazes de dialogarem consigo mesmo e por isso, não pensam, são pensados, tornam-se escravos de um discurso. Os termos deste raciocínio remetem à Heidegger e a sua proposição da linguagem como morada do ser, a meu ver uma atualização do enunciado de São João Evangelista: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus.”443 Equacionar o ser com o pensamento, entender esta relação, é um dos objetivos da ascese religiosa porque nela se funda a distinção entre heteronomia e seu contrário, a ideia de autonomia; ser capaz de pensar por conta própria qualifica o homem esclarecido e é o dístico por excelência da Ilustração. O ideal religioso aparentemente persegue este mesmo ideal, mas quando chegamos mais perto da tradição mística transparece a busca por algo diferente porque ela declina do desejo de alcançar um discurso racional perfeito, seu alvo é verdadeiramente escapar da armadilha da representação. A tradição mística entende como o objetivo da contemplação, chegar a Deus, onde todo discurso silencia, por isso só é possível defini-lo por negação, as categorias da linguagem seriam insuficientes para defini-Lo; consciente disso o dominicano Maister Eckhart definiu o Divino como silêncio, afirmação também comum à tradição do sagrado no outro lado do mundo, em especial no zen budismo. A questão pode ser posta em outros termos e vou tentar aprofundá-la. Kierkegaard adverte seus leitores contra o paradoxo contido no arrependimento por ser um estado d’alma onde não se deve ficar por muito tempo porque a vontade não pode agir retroativamente; tratando da mesma questão Maister Eckhart definia o ato de arrepender-se como só sendo factível se aceitarmos Deus como dono do tempo e Senhor do passado, se aceito isto não posso desejar não ter feito o meu ato porque se o passado expressou a vontade do Criador, devo aceitá-lo, e não lamentar o mal cometido.444 Tanto Kierkegaard quanto o dominicano entendem a experiência do passado, quando nos domina, como condição do não-ser. O acontecido, como tempo já transcorrido, não pode ser alterado, permanecer nele é viver em

442 Primo Levi, “Os Afogados e os Sobreviventes: Os Delitos, os Castigos, as Penas, as Impunidades”, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. Pág. 27. 443 “Bíblia de Jerusalém”, Evangelho Segundo João, 1, 1-2. 444 “Tão unida a Deus é a vontade de um tal homem que ele quer tudo o que Deus quer e assim como Deus quer. E como, de certa forma, Deus quer inclusivamente que eu tenha feito pecado, eu não quereria não ter feito pecado, pois assim se faz a vontade de Deus “na terra”, isto é, na ação má, “como no céu”, isto é, no agir bem.” Mestre Eckhart, “O Livro da Divina Consolação”, RJ, Vozes, 1999, pág. 61. 131

uma antirrealidade. Da mesma maneira podemos situar as expectativas abertas pelo querer, pela vontade com relação ao futuro quando desencadeamos em nós um estado de ansiedade pelo que ainda não é. Para vencer estes limites o primeiro codificador da Yôga, escrevendo dois mil anos atrás, definiu a sua disciplina como a supressão da instabilidade da mente, quando isso é alcançado, o observador conscientiza-se da sua própria identidade. Caso contrário, ele se identifica com a instabilidade. Para o hindu Pátañjali deter o movimento oriundo do instável, do contingente, da ilusão como não-ser, a “maya” segundos os hinduístas, conduz ao conhecimento de si próprio, ou como o Antigo Testamento definia, a Sabedoria. Talvez seja necessário um exemplo do fenômeno da instabilidade para esclarecer a questão; utilizarei o ressentimento. Experiência moral e temporal, classificado por Nietzsche como um sentimento presente e dominante na política do seu tempo e corporificados no nazismo e em seu gêmeo, o comunismo, o ressentimento refere-se a um dano cometido e não expiado, contendo em si o germe da vingança, incapaz de ser realizada, a não ser como vivência interior, sem consequências práticas, o ressentimento na verdade ergue-se contra tudo que é. Quando o pensamos como uma experiência coletiva, de massas, estamos frente a um fenômeno histórico, um evento ocorrido no passado erguendo-se contra o presente. Max Scheler em enunciado também válido para o nazismo, fala do “grande movimento de ressentimento do proletariado, que duvidando da energia ativa de toda simpatia, faz da luta da natureza (utilizando a Darwin) e entre as classes, o exclusivo fator de movimento da História.”445 O ressentido deixa-se governar pela instabilidade quando volta-se contra o presente a partir do passado, manifesto aqui e agora como lembrança, representação de um evento já transcorrido, um não-ser. A instabilidade foi definida pelo pré-socrático Heráclito como um autêntico esquecimento de si: “não saber o que se faz quando acordado, assim como os homens se esquecem do que fazem durante o sono”446. A idolatria e a sua expressão moderna, a ideologia, engendram zumbis, mortos-vivos, por isso Jesus designou seus inimigos, os fariseus, como “sepulcros caiados de branco”, incapazes de qualquer lucidez. Kierkegaard na esteira de seu mestre conceituou este estado como desespero, para ele sinônimo do pecado marcado pela distância e ausência da verdade. A existência onde não se compreende a importância de um valor, caro a Deus e aos homens, como a justiça por exemplo, não significa pecado, este está na vontade, em não querer entendê-lo, está em não querer ser

445 Max Scheler, op.cit. pág. 125. Ver também Elias Canetti, “Massa e Poder”, São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pág. 311. 446 “A Arte e o Pensamento de Heráclito: uma edição dos fragmentos com tradução e Comentário”, Charles H. Khan, São Paulo: Paulus, 2009, pág. 461. 132

justo. A proposição aparentemente é platônica, mas Kierkegaard se distancia de Sócrates (quem conhece a verdade deve praticá-la) quando fala da impotência de todos os imersos nesta condição, de com suas próprias forças, porem fim ao desespero. Ele invoca a Revelação, a ação do próprio Deus, para vencer o desespero porque a corrupção da vontade ultrapassa a consciência individual.447 Em nosso idioma, desespero é desesperança, incapacidade para agir, mas também ira, raiva, furor, cólera, estar possesso por um sentimento; na língua alemã o vocábulo forma-se da palavra dúvida, ele é uma radicalização da inquietação nascida de um questionamento, de uma interrogação; colocando-se antes do vocábulo um sufixo, exponencia-se a vivência do duvidar, tornando-se desespero pela incapacidade de escolher, de optar. Para a Igreja medieval era o pecado entre os pecados, designava-o pelo termo acedia, para a língua portuguesa ficou a expressão grega, apatia. Platão não utiliza em seus escritos a categoria desespero, mas ele pensa a paralisia do ser quando a injustiça o tomar, ela naturalmente promoverá uma “sedição dos elementos da alma”448, “torna-lo-á incapaz de atuar, por suscitar a revolta e a discórdia em si mesmo; seguidamente, fazendo dele inimigo de si mesmo e dos justos”.449 O acontecido na Alemanha ao final da segunda guerra testifica o enunciado platônico assim com a atitude final de qualquer suicida. O desespero pode nascer da ruptura de uma relação com uma coisa ou uma pessoa, como a perda de um ideal, ou de um amor, pela morte, separação ou inconstância; para Kierkegaard quando sofremos por termos nosso desejo rechaçado, essa dor nasce daquele eu do qual aceitaríamos ser despojados se ele tivesse se tornado o bem do outro, “esse eu provoca agora [...] tristeza, porque tem de ser o eu sem o outro.” O desespero nascido de um amor não correspondido ou duma coisa perdida não é ainda o verdadeiro desespero, quando este se instala desespera-se de si próprio.450 O desejo de perder-se pode ser uma inclinação constante no homem, por ele podemos compreender a formação da massa, quando os traços definidores da personalidade são suprimidos e o indivíduo absorvido no povo, na raça, na classe ou no movimento. Os filósofos estão juntos com os poetas na compreensão deste sentimento de repulsa à individuação como Fernando Pessoa quando escreveu sobre esta alienação: “Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que tem os animais”451; repõe ele a condição do homem-massa, incapaz de realizar a

447 Sören Kierkegaard, “O Desespero Humano”, Portugal, Livraria Tavares Martins, 1957, pág. 153 ss. 448 Platão, “A República”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, 444b, pág. 205. 449 Idem, 352ª. 450 Kierkegaard, op.cit., pág.45. 451Fernando Pessoa, “Livro do Desassossego”, São Paulo : Companhia das Letras, 2002, pág. 166. 133

individuação de fato porque o eu não é a relação do sujeito com ele mesmo, mas o “seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida.”452 Quando somos argutos o bastante para aceitar estar a vida da maioria dos homens “na mesma íntima inconsciência que a vida dos animais” podemos entender Heráclito; “Que juízo ou entendimento eles possuem? Creem nos poetas do povo e adotam a turba como professor, sem saber que “os muitos não valem nada” e os homens bons são poucos.”453 A ideologia apresentou-se como uma solução contraditória e suicida para o desespero das massas, e isto é natural, dada a sua natureza intrinsecamente injusta. Ela reproduz macroscopicamente, no plano do social, as angústias e as fobias presentes nas psicoses individuais, particularmente na paranóia, classificada corretamente por Elias Canetti como “literalmente uma doença de poder”.454 Como o doente mental, cercado de inimigos por todos os lados, as teorias totalitárias engendraram a figura do inimigo objetivo, pervertido sexual, voltado à destruição e ao domínio do ariano ou do proletariado. O antagonista das ideologias esconde-se, joga com as aparências e simula ser algo outro de si mesmo. No paranóico Schreber, analisado por Freud e Canetti, a conspiração armada contra ele não se voltava só “para o assassinato de sua alma e a destruição de seu juízo”, pretendiam transformá-lo em uma mulher para dele abusar.455 Estas analogias entre um indivíduo e uma sociedade são legítimas quando prevalece em uma comunidade o monoideísmo, estado dominado por uma única ideia, onde prevalece uma só ordem de associação mental onde, para Marcel Mauss, “uma mesma ideia pode, à vontade, ser dirigida em dois sentidos diferentes sem contradição.”456 A idolatria e as ideologias, galhos da velha árvore da ilusão, presentes entre os homens desde os primórdios da história, confirmam a afirmação de Fernando Pessoa sobre a pouca importância da existência ou não dos deuses, porque independentemente da sua realidade, deles somos escravos. A experiência da convicção reproduz a subsunção da subjetividade a um discurso, como cimento do coletivo, amálgama da massa, do movimento; quem assim se deixa guiar entende o seu raciocínio como resultado das suas deliberações interiores, fruto das maquinações da sua vontade, esquecendo-se da natureza comum do pensamento. Contudo a

452 Kierkegaard, op. cit. p. 33: “O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. Mais e melhor que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade.” 453 Fragmento LIX in “A Arte e o Pensamento de Heráclito”, op. cit. pág. 267. 454 Elias Canetti, “Massa e Poder”, op.cit. pág.448. 455 Elias Canetti, op.cit. p.448. 456 Marcel Mauss, “Esboço de uma Teoria Geral da Magia”, op.cit. p.163. 134

maioria dos homens vive com se seus pensamentos fossem possessão particular, esquecem-se como reza o fragmento XXXI de Heráclito: “O pensamento é o que é comum a todos”.457 A compreensão da proposição do pré-socrático exige a ideia de um pampsiquismo, ou para falarmos como Hannah Arendt, o conceito de intersubjetividade quando resgatamos o próprio pensamento no autoconhecimento como um reconhecimento de um estado comum a todos; mas isto exige algo refinado, exposto no fragmento seguinte, o XXXII: “Pensar bem é a máxima excelência e sabedoria: agir e falar o verdadeiro, apreendendo as coisas segundo a sua natureza”.458 O pensamento torna-se então o princípio universal, “a atividade de uma psyché inteligente”; mas isso é demais para Hitler, Stalin ou Pol Pot, porque implica retomar o tema da simpatia, como ponte necessária entre os homens.

457 Heráclito, op.cit. frag. XXXI, pág. 159. 458 Para o professor C. H. Khan, “Pensar bem ou corretamente passa, assim, a significar falar e agir o que é verdadeiro no sentido de comunicar o logos em “palavras e feitos”, compartilhando com os outros a própria percepção de como as coisas se mantém unidas e ao mesmo tempo se distinguem em suas naturezas próprias. O homem cujo pensamento funciona corretamente, com excelência, não irá esconder a verdade, mas significá-las em suas ações e palavras.” in Heráclito, op. cit. p. 165-166. 135

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