Luiz Gonzaga: Entre O Mito Da Pureza Musical E a Indústria Cultural
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Luiz Gonzaga: entre o mito da pureza musical e a indústria cultural JEAN HENRIQUE COSTA * A história do forró inventou o forró” 1, enquanto gênero interpretada pela musical está cantora Eliane, o sumariamente forró possuiu sim um atrelada à figura de inventor: Luiz Luiz Gonzaga do Gonzaga. Nascimento (o As condições para o Gonzagão), menino surgimento de um pobre nascido no gênero musical semi-árido nordestino a ser pernambucano - amplamente município de Exu, divulgado no país Chapada do Araripe - estavam mais ou que, poucas décadas depois, viria se menos postas já na década de 1930: tornar personagem importante na melhoria nos transportes e nos meios de história da música popular brasileira. comunicação, e, dentre estes, o rádio Nas palavras de Luciana Chianca (2006, como fenômeno massivo de produção p. 67), “entre os artistas da cena musical do que se procurava ser a integração dos anos de 1940, Luiz Gonzaga foi nacional . aquele que preencheu mais eficazmente a função de ‘inventor’ de um estilo No Brasil dos anos de 1920 o rádio era musical regional”. fundamentalmente um artefato embrionário e seletivo do ponto de vista Gonzaga, de fato, foi figura basilar no social. Apesar disso, com o posterior surgimento do forró. Segundo ele próprio já afirmara: “ Não sou modesto, 1 não. Eu não inventei só o baião, mas “Quem inventou o forró, Não podia ter feito também o forró [e] as marchinhas melhor; Onde então se escondeu, Porque até hoje não apareceu ”. (Trecho da música QUEM juninas [palavras do próprio Gonzaga]” INVENTOU O FORRÓ ). Artista: Eliane. (apud CHAGAS, 1990, p. 11). Daí que, Autor(es): Zequinha e Doracy. Álbum: Grandes diferentemente da canção “ Quem Sucessos/Eliane. Duração: 00:02:51. Ano: 2000. Gravadora: Sony-BMG. 135 desenvolvimento das indústrias do disco Outro fator se colocava como favorável e do rádio, as décadas de 30 e 40 ao futuro proeminente de Gonzaga: sua puderam ser sinalizadas como os anos música passa a ser incentivada tanto de ouro do rádio nacional, tendo os anos pelo Estado, como por setores 50 o seu auge. A ascensão do rádio e intelectualizados do país, devido, das indústrias do disco possibilitou o respectivamente, ao Estado populista e desenvolvimento massivo não apenas o problema da nacionalização da música do samba nos anos 30, mas também do brasileira vislumbrado pelos forró (baião) após os anos 1950. modernistas. Nesse meio, apesar de Segundo consta em Vianna (2007, p. todo o vai-e-vem da carreira 109), o rádio fizera suas primeiras gonzagueana, fez-se o forró. transmissões no Brasil nas Gonzagão surge, por um lado, na tensão comemorações do centenário da entre uma região Nordeste em que Independência em 1922. Em 1923 foi persistia uma economia de grande inaugurada a primeira estação de rádio fragilidade e insistiam em perdurar as brasileira, a Rádio Sociedade do Rio de relações tradicionais de poder; de outro, Janeiro. A programação consistia, durante os progressos do rádio e da basicamente, de música erudita e indústria do disco. Entre um frágil palestras culturais. O panorama se Nordeste do ponto de vista social e uma modificaria com a concorrência de crescente indústria fonográfica outras rádios comerciais, como a germinava o criador do forró. Mayrink Veiga, inaugurada em 1926 e a Rádio Educadora, em 1927. No entanto, Nascido em 13 de dezembro de 1912, os primeiros programas de grande Gonzaga era filho de Januário, audiência só surgiriam depois da sanfoneiro que auferia a vida material revolução de 30, transmitidos do Rio de da família com o fole da sanfona Janeiro. Em contrapartida, “o mercado tocando nas festas da região (CHAGAS, de discos brasileiros, no final da década 1990; DREYFUS, 1996; de 20, também estava em ritmo de ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999). revolução, com o advento da gravação “Januário ganhava a vida da família elétrica e a instalação de várias com o fole. Tocava nas festas e nos gravadoras no país [Odeon, em 1928 e forrós – naquela época dizia-se ‘os RCA, em 1929]” (VIANNA, 2007, p. sambas’ – de toda região” (DREYFUS, 110). 1996, p. 35). Além disso, especificamente em relação A figura do sanfoneiro era intérprete ao forró, a emigração de nordestinos social importante na vida cotidiana do para o sudeste ampliava a demanda por sertão. Gonzaga, imerso na cultura “coisas da terra” 2. Gonzaga usará, por sertaneja e tendo Januário no seio conseguinte, “o rádio como meio e os familiar, logo entrara na vida de músico. migrantes nordestinos como público” Segundo a biógrafa Dominique Dreyfus para o seu sucesso (ALBUQUERQUE (1996), em 1926, Luiz Gonzaga, então JÚNIOR, 1999, p. 155). com 14 anos, embarcara na vida artística, comprando sua primeira sanfona através de empréstimo com um 2 Ao freqüentar e participar de festas de forró, o cidadão local. migrante nordestino passava a pensar melhor e mais rápido sobre sua migração e o seu novo Um episódio particular colocaria “eu” (FERNANDES, 2006). Gonzaga nas forças armadas. Viajando 136 pelo país a serviço dos militares, Apesar disso, tocar tangos e valsas não contudo, dia-a-dia ia almejando deixar o era o estilo de Luiz Gonzaga. Aquilo exército e ganhar a vida como artista. Já não fazia parte de seu mundo, nem no exército exerceu a função musical de tampouco de suas pretensões como corneteiro, recebendo inclusive apelido artista. Certo dia, relata Dreyfus, um de bico de aço pela exímia capacidade grupo de cearenses 4 num barzinho do de tocar o instrumento (CHAGAS, Mangue pedira que Gonzaga tocasse 1990, p. 38). algo da terra . Ele, despreparado na “No dia 27 de março de 1939, Gonzaga ocasião, adiara alegando que isso não interessava o povo de lá (do “Sul”). Os embarcou num trem para o Rio de cearenses insistiram! Prometera, então, Janeiro” (DREYFUS, 1996, p. 73). para uma próxima vez. Chegando o dia, Aquela data simboliza o início concreto cumpriu sua promessa e tocou, sendo da carreira gonzagueana. No Rio, irá muito aplaudido pelo público. Nesta conhecer o Mangue , bairro agitado hora pensara: “nem valsa, nem tango, ia musicalmente da capital. O local era tocar uma coisa lá do Norte, o ‘Vira e freqüentado por inúmeros artistas em Mexe’” (DREYFUS, 1996, p. 85). busca de trabalho, que tocavam e cantavam em bares e calçadas. Era um Tanto o “Vira e Mexe”, quanto o lugar movimentado, mas também “Chamego”, de fato nunca foram violento. Nessa época Gonzaga não se gêneros musicais autônomos. Não lembrava das músicas que ouvia passavam, no primeiro caso, de um Januário tocar quando jovem. Também chorinho, e no segundo, de uma considerava que a luminosa cidade do nomenclatura sem autonomia rítmica. Rio de Janeiro não era lugar para Precisava-se, então, de um gênero aquelas músicas “ rurais ”. Mesmo musical mais original. assim, logo começara a tocar no O início de sua carreira musical não foi Mangue e ganhar algum dinheiro. fácil. Não queriam que Gonzaga Tocava, pois, valsas, tangos, choros, cantasse, alegando, tanto as rádios, foxtrotes , etc., ritmos mais comuns do quanto as gravadoras, que se tratava de cenário urbano da ocasião. Contudo, viu um artista de voz feia. O padrão da que o bairro não era grande coisa, além época certamente era o vozeirão (de de ser um espaço nada acautelado – “a timbre grave) de Francisco Alves, ordenação hierárquica dos espaços Orlando Silva e Nelson Gonçalves. públicos de prática musical era Outra dificuldade estava na questão paralela à respeitabilidade social das tecnológica: o fole dos sanfoneiros do respectivas platéias ” (TRAVASSOS, sertão era muito rudimentar e não tinha 2000, p. 13). Pensou, então, recursos harmônicos suficientes para prontamente nos programas de calouros, criados em meados dos anos 30, no estilo Ary Barroso 3. muita atenção (CHAGAS, 1990; DREYFUS, 1996). 4 “Numa das casas noturnas do Mangue, 3 No programa de Ary Barroso, interpretando [Gonzaga] é desafiado por um grupo de músicas de nomes da época, tais como Augusto estudantes nordestinos [...] que exigem que Calheiros e Carlos Gardel, Gonzaga não toque algo ‘lá da terra’, coisa que Gonzaga tinha conseguiria tirar nota superior a 2,5 (numa abandonado. Depois de treinar em casa durante escala de 0 a 5). Posteriormente, com as semanas, apresenta-se diante dos mesmos músicas “No meu pé de serra” e “Vira e mexe”, universitários tocando ‘Pé de Serra’ e ‘ Vira e que depois foi rebatizada de “Chamego”, Mexe’. É aplaudido não só pelos rapazes, como conseguiu conquistar nota 5 e ainda chamar por toda a casa” (CHAGAS, 1990, p. 38-39). 137 permitir suntuosas interpretações Daí que o Baião só pode ser um vocais. Por sua vez, a música do movimento dos anos 40. Foi o Nordeste era pouco difundida na época. verdadeiro manifesto de uma nova Salvo a embolada que encontrara música inventada pela dupla Gonzaga e alguma aceitação do público urbano do Teixeira. Havia já algum princípio de Sul, as outras expressões do Nordeste gênero musical regional anterior ao rural (repente, banda de pífanos, etc.) baião, mas nada com autonomia rítmica. dificilmente podiam ser difundidas num O baião, no entanto, foi um fenômeno mercado competitivo e em ascensão singular. Por exemplo, o “xote”, hoje (DREYFUS, 1996, p. 106). bastante aludido, trata-se de uma Assim, para uma maior repercussão “versão brasileira da schottisch , dança artística nacional, o Nordeste precisava de salão muito difundida em meados do de um novo ritmo de expressão. século XIX na Europa” (DREYFUS, Gonzaga, junto com o seu primeiro 1996, p. 110). No Brasil teve grande grande parceiro, Humberto Teixeira, aceitação, sendo adaptada à gaita no Rio fariam esse ritmo: o Baião. “Foi com a Grande do Sul e ao fole do acordeom no segunda [a primeira foi Meu Pé de Nordeste. O mesmo aconteceu, por Serra ] parceria com Humberto Teixeira, exemplo, com a nossa modinha. intitulada ‘Baião’ [anos 1940], que Luiz Segundo Vianna (2007), a modinha Gonzaga fez sua entrada triunfal na brasileira foi uma maneira, inventada história da música popular brasileira” por mulatos das camadas populares, de (DREYFUS, 1996, p.