No Planalto Há Um Cruzeiro? Reflexões Sobre Uma História Cruzalmense. Mateus José Da Silva Santos1 Terra Do Fumo, Da Guerra
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No planalto há um cruzeiro? Reflexões sobre uma história cruzalmense. Mateus José da Silva Santos1 Terra do fumo, da Guerra de Espadas, da velha Escola de Agronomia que deu lugar a UFRB. Por essas e outras coisas, Cruz das Almas é, sem dúvida nenhuma, uma das cidades mais conhecidas do Recôncavo, estando juntamente com Santo Antônio de Jesus na condição de município mais populoso da região, segundo os últimos dados do IBGE.2 A “rainha do planalto” (SANTANA, 2008, p.25), como também é conhecida, chama-nos atenção não somente pelo seu nome peculiar, mas por possuir ainda muitas questões sobre seu passado. A trajetória cruzalmense, contada por nossos pais e presente em alguns livros, mostra uma cidade que emerge muito tardiamente em relação aos demais núcleos do Recôncavo “mais conhecidos”, e, de forma muito rápida, se desenvolve, mas sem muitas explicações sobre como isso se deu. Com as mudanças na ciência histórica durante o século XX, uma das áreas que passaram por novos contornos foram as chamadas história regional e local. Compreender as dinâmicas de uma determinada região ou localidade e articulá-las com contextos mais amplos são somente algumas das problematizações realizadas por esses estudos na atualidade. Uma das grandes consequências desses novos objetivos foi a possibilidade de refletirmos sobre a história dos municípios, no entendimento de que há muito por se investigar sobre os mesmos, tendo em vista tanto as lacunas existentes em muitas narrativas, como também a permanência de mitos ou histórias que não passaram por uma crítica apurada dos historiadores, à luz das novas pesquisas. A nosso ver, este é o caso de Cruz das Almas. A cidade recebeu pouca atenção da historiografia, fruto tanto das dificuldades documentais, mas também por se situar numa área que vem sendo desvendada recentemente, dada as suas diferenças em relação à visão hoje equivocada de um Brasil e, consequentemente de um Recôncavo limitado ao sistema de plantation (BARICKMAN, 2003, p.27), isto é, a produção latifundiária, de mão- de-obra escravista e tendente à monocultura (PRADO JÚNIOR, 1965, p.114-115). Objetivamos, portanto, discutir o que compreendemos como “narrativa oficial” sobre a história de Cruz das Almas, pensando criticamente sobre sua validade com relação às pesquisas históricas sobre a Bahia e o Brasil entre os séculos XVIII e XIX. Fazendo uso de algumas fontes históricas, disponíveis na versão digital da Biblioteca Nacional, apontaremos algumas possibilidades para novas investigações sobre o passado dessa localidade, no esforço de uma revisão histórica, no entendimento de que esse é um processo inerente à produção historiográfica. Num primeiro momento apresentaremos as versões vigentes ainda na atualidade sobre o passado da urbis, destacando os seus principais elementos caracterizadores. Em seguida, iniciaremos discussão a partir do diálogo entre alguns documentos eclesiásticos e perspectivas conhecidas sobre a história do Recôncavo e da capitania da Bahia, tentando situar a cidade, ou melhor, o que viria a ser essa numa perspectiva muito mais ampla. De antemão, deixemos explícito que esse trabalho vem, no sentido de propiciar novas investigações sobre nosso passado, trazendo muito mais perguntas do que respostas prontas. Assim, procuramos adentrar na limitada produção historiográfica sobre o passado de Cruz das Almas, dialogando com os demais autores e permitindo com que pensemos juntos sobre a questão central. 1. Terra dos viajantes, terra da fé: a origem do povoado das Almas. No que versa as narrativas sobre a origem do objeto de estudo, Alino Matta Santana (1997) e Mario Pinto da Cunha (1955) (1983) afirmam que duas são as hipóteses principais. A primeira, e mais detalhada, aponta para a fundação atrelada a condição dessa localidade em finais do século XVIII e início do XIX. Segundo os mesmos autores, o que entendemos como Cruz das Almas surgiu a partir do fincamento de uma cruz nas proximidades do que hoje é a chamada Rua da Estação e a Igreja matriz, no intuito de ali se constituir um pouso para os viajantes, além de um local para culto dos mortos.3 A autoria desse movimento é atribuída aos tropeiros, homens que iam de Cachoeira ao Sertão em prol de interesses comerciais (SANTANA, 1997, p.25). A passagem desses grupos por essa região se devia, segundo Santana e Cunha, ao fato de, nas margens da atual cidade, estar localizada uma importante via de conexão entre o porto de São Félix e as regiões do interior, especialmente Rio de Contas. Desta maneira, a formação do povoado cruzalmense teria, pelo menos num primeiro momento, sido resultante dos fluxos intracapitania, envolvendo pessoas e produtos. Outra versão apresentada possui um cunho visivelmente saudosista. Segundo os autores em questão, o nome Cruz das Almas advém de uma localidade portuguesa, sendo designada, portanto, por lusos que povoaram o espaço da atual cidade. Essa relação carece de mais profundidade, na medida em que não encontramos nenhum registro de qualquer freguesia portuguesa com este nome. Ainda como outra possibilidade historiográfica, na Enciclopédia dos Municípios (1959) há uma breve menção a história de Cruz das Almas, citando o povoamento ainda no século XVIII por motivações econômicas, especialmente a “uberdade do solo”.4 Neste processo, os sujeitos envolvidos eram provenientes de Cachoeira, ligados às famílias Batista de Magalhães e Rocha Passos, dois ramos tradicionais da sociedade cruzalmense.5 Tomando, assim, a primeira versão como aquela que tende a ser a oficial, chamamos a atenção para três elementos. O primeiro é a datação: No princípio eram apenas algumas casas em meio á mata circundante. Poucas, pequenas e modestas moradias, plantadas descuidada e despretensiosamente, no solo fecundo, nos meados e fim do século XIX (CUNHA, 1983, p.11) Cruz das Almas seria, então, a localidade com formação mais recente, considerando as atuais municipalidades ao seu redor. Formação essa que, se comparado com sua vizinha São Felipe, excederia mais de 100 anos!6 Outro elemento é a questão da existência de uma estrada para o sertão nas proximidades dessa região. A historiografia, assim como a própria produção cartográfica dos séculos XVII e XVIII, apresentam inúmeras controvérsias sobre essa questão, especialmente quanto a certa hierarquia dos caminhos, o que nos leva a investigar mais de perto qual a relevância dessa estrada mencionada pela história tradicional, relacionando-a com a questão da circulação na capitania da Bahia. Por último, e não menos importante, o caráter religioso dessa origem, relacionado com a necessidade de um espaço de culto, assim como os interesses em mais um local para descanso devem ser levados em consideração, o que nos pede compreendermos qual a posição dessa região em termos eclesiásticos e, até mesmo, demográficos, tentando situar quais os principais focos de habitação. 2. “O ‘logar’ da Cruz das Almas”: tentativas de reconstrução. Ao se debruçar sobre a história das municipalidades do Recôncavo baiano, especialmente das cidades que pertenceram a Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, o leitor certamente se depara com uma produção pequena, realizada por historiadores e também cidadãos dessas localidades, como no caso de Nelson Brito (2012) e Anfilófio de Castro (1941) para Muritiba. Desta maneira, pouco se tem de referência sobre Cruz das Almas na historiografia e produção acadêmica voltada para as questões locais ou mesmo, sob uma perspectiva mais ampla, regional. No entanto, é necessário destacar que antes de se tornar uma freguesia, isto é, ganhar uma das principais subdivisões da política administrativa e eclesiástica da colônia e também do império, a atual região de Cruz das Almas pertenceu durante boa parte do século XIX a freguesia de Nossa Senhora do Desterro do Outeiro Redondo. Diante disso, estudar a formação dos primeiros núcleos que futuramente viriam a ser nossa cidade é uma tarefa extremamente complicada, na medida em que se torna necessário levar em consideração essas mudanças na questão da administração do território.7 Assim, é preciso levar em consideração a configuração dos espaços anteriormente citados, tentando pensar nossa questão central a partir das dinâmicas entre esses territórios. Dito isso, como nosso objetivo maior é a realização de uma problematização, comecemos então nossa breve discussão pelo ponto central da chamada narrativa oficial: a estrada. a) A derrota do Porto de São Félix para as minas do Rio de Contas. O processo de expansão e interligação entre o sertão e a região do Recôncavo, incluindo também Salvador, foi, sem dúvida nenhuma, facilitada pela existência de alguns rios, como o Paraguaçu, Rio de Contas, Jaguaripe, Itapicuru e outros também de menor porte que desaguam na Baia ou no oceano, propiciando assim a existência de uma considerável circulação marítima e/ou hidroviária.8 No entanto, as dinâmicas entre essas diferentes regiões não se deram apenas pelo uso de vias hídricas. Os caminhos terrestres, alguns herdados das antigas trilhas indígenas, possuíram fundamental importância nesse processo de integração, na medida em que conseguia abranger um maior número de povoações e espaços socioeconômicos em sua extensão. As estradas, tanto para a Bahia colonial, como também para toda a América portuguesa, em termos metafóricos, eram como a circulação sanguínea ao, juntamente com o transporte hidroviário, promoverem dinâmicas entre os diferentes espaços coloniais. Pensando por uma perspectiva braudeliana,9 a circularidade de bens e pessoas no interior da capitania da Bahia e, consequentemente