FUTEBOL: IDOLATRIA OU TRAGÉDIA? UM ESTUDO DE CASO SOBRE O DRAMA DE BARBOSA, O GOLEIRO DA COPA DE 50

Sérgio Montero Souto (UFF-RJ)

RESUMO

Este trabalho trata da relação entre fama e tragédia no mundo moderno. O universo escolhido é o dos grandes ídolos do futebol pelo estudo de caso de Barbosa, goleiro do Brasil na Copa de 1950. O objetivo é buscar na análise da tensão entre identidade pública e privada uma explicação para o fim trágico de muitos dos grandes ídolos do futebol. Nossa hipótese é que a busca da singularidade numa sociedade de massa – cuja representação mais radicalizada é a fama - ao ser alcançada produz uma identidade pública que resulta num pastiche e com a qual o indivíduo que vive esse novo papel não se reconhece.

Palavras-chave: Barbosa, Futebol e Tragédia

1 Considerações iniciais

O objetivo deste estudo é analisar a fama no mundo moderno, permeado pela comunicação de massa, a partir de um ponto de vista aparentemente antagônico a ela: o destino trágico de muitos dos nossos grandes ídolos do futebol. Este trabalho se propõe a dar conta da seguinte questão: seria a tragédia um corolário intrínseco da fama no mundo do futebol? Nossa hipótese é que a busca da singularidade numa sociedade de massa - cuja representação mais radicalizada encontra-se na fama - ao ser alcançada produz uma identidade pública que resulta num pastiche e com a qual o indivíduo que vive esse novo papel não se reconhece. Dessa tensão entre identidade pública e identidade privada, resulta o germe que leva muitos dos nossos grandes ídolos do futebol a finais tão trágicos, quanto os que abateram , Maradona e Edmundo, e aparentemente contraditórios com o glamour que envolveu suas vidas aos olhos da mídia e dos fãs. Este trabalho se propõe a pesquisar o tema acompanhando as três principais fases em que se dividem as vidas desses personagens: anonimato, fama e ostracismo. O caminho proposto para recompor essa trajetória é através do estudo de caso de , o Barbosa, goleiro da seleção brasileira de 1950, colocado no banco dos réus há quase cinco décadas, acusado de provocar um dos maiores traumas coletivos vividos pelo país: a perda da primeira - e única - Copa do Mundo sediada pelo Brasil. (1 - Nota: Para uma análise mais detalhada sobre o drama provocado pela perda da Copa de 1950 ver Perdigão,1986 e Filho,1964). Fenômeno que assume dimensões inéditas com a comunicação de massa, a fama é um objeto de estudo privilegiado para examinar-se a complexa interação entre individualismo, modernidade e indústria cultural. Relação que tem talvez sua face mais visível na possibilidade da associação de um nome a um rosto, com a divulgação maciça da imagem decorrente dessa fusão, com todas as suas conseqüências sobre a tensão constitutiva da condição individual: a de ser único ou ser igual. Em outras palavras: a tensão entre a busca pela singularidade e o anonimato. Ao tratar do que a psicanálise classifica de "sentimento de algo ameaçadoramente estranho", Freud (1996) observou a ligação entre heimlich (traduzível como algo assustador) e unheimlich (traduzível como íntimo, secreto e acolhedor),palavras no original alemão a princípio antônimas, mas que acabariam por encontrar pontos de contato. Numa análise análoga, poderíamos dizer que significados antípodas, como glória-tragédia, brilho-opaco e fama-ostracismo, estão presentes na carreira dos grandes astros do futebol, fortemente marcada pela relação assimétrica entre fama e anonimato. Titular 42 vezes da seleção nacional, jogador durante 20 anos do Vasco da Gama (Jornal do Brasil, 11/6/97), Barbosa integrou o "Expresso da Vitória", num dos períodos de maior glamour do primeiro clube brasileiro a admitir negros em suas equipes (Filho, 1964). Conheceu momentos de glória e acumulou conquistas importantes, como o de campeão carioca cinco vezes em oito anos - 1945, 1947, 1949, 1950 e 1952 – e o primeiro título sul-americano obtido por uma equipe brasileira, em 1948. Ao mesmo tempo, como poucos, viveu a tragédia em sua face mais visível, ao ser apontado como principal culpado pela perda da Copa de 1950 para o Uruguai, em pleno Maracanã, estádio especialmente construído para sediar a primeira vitória do país em mundiais, apresentada, conforme consulta a jornais da época, como etapa importante na consolidação da identidade nacional. Barbosa, por sua trajetória e singularidade, sintetiza aspectos fundamentais desse universo, da tensão entre singularidade e anonimato e da aparente contradição entre glamour e tragédia. O estudo do seu caso permite-nos reconstituir e analisar a trajetória da fama numa profissão de fundamentos tão antagônicos. Quarenta e nove anos depois e quatro copas conquistadas pelo Brasil, Barbosa, ao 73 anos, continua sendo representado na mídia como símbolo de fracasso e complexo de inferioridade nacional, condição renovada a cada véspera de jogo importante com o Uruguai, (2 Nota: Vide, em particular, jornais da véspera da partida da Copa de 1970 e do jogo que decidiu a classificação do Brasil para a Copa de 1994). O capítulo mais simbólico dessa representação se deu quando o então treinador do Brasil para a Copa de 1994, Carlos Alberto Parreira, pediu ao ex-goleiro que se retirasse do campo de treinamento, para evitar o "mau agouro" (O Globo, 17/9/93). Em "A representação do Eu na vida cotidiana", Ervin Goffman compara a vida em sociedade à atuação de atores num palco, assinalando que, para podermos interagir com nossos pares, passamos a assimilar regras sobre o comportamento do grupo, sem que necessariamente tenhamos consciência disso. (Goffman, 1995). Para Goffman (1995), as diferentes equipes de atores sociais representam papéis para platéias distintas em que reforçam sua linha de atuação e defendem sua face. Esse raciocínio pode ser radicalizado quando aplicado às pessoas da “equipe dos famosos”. As inúmeras subdivisões dessa equipe nos permitiriam examinar a representação da fama e seu corolário trágico através do acompanhamento da trajetória de artistas, políticos, cantores, entre outros famosos. A escolha da “equipe dos jogadores de futebol” para a materialização dessa análise deve-se ao fato de que, em na minha opinião, esse é o universo onde a experiência da fama, com toda a intensidade da oposição entre os domínios público e privado, aparece com maior complexidade. E ao contrário de outros campos, onde o fenômeno da fama está longe de seu momento de maior apogeu (3 Nota: A TV Globo publicou, em setembro no jornal O Globo, pesquisa do Ibope revelando que sua novela de maior audiência não ultrapassa a marca de 40% dos televisores ligados. Isso revela que, embora continue um fenômeno de massa expressivo, esse gênero e, por tabela, os ídolos que produz, está bem distanciado do clímax atingido nos anos 70 e 80, quando chegava a alcançar índices superiores a 80%), o futebol vive momento oposto, de exacerbação da idolatria de seus ídolos incomparável ao de outros universos. Poderíamos citar apenas o espaço dedicado na mídia a numa visita a Kosovo ou ao anúncio da gravidez de sua namorada ou ainda a súbita ascensão no noticiário do outro Ronaldinho, o gaúcho, apenas depois de participar de sua primeira competição pela seleção brasileira, na Copa América de 1999. Os números, porém, são ainda mais eloqüentes. Pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), entre julho e agosto de 1991, revelou que o nome-marca mais conhecido em todo o planeta em todos os setores era o de Pelé, à frente da Coca-Cola e do papa, respectivamente, em segundo e terceiro lugares. (Murad, 1996:124). O crescente reconhecimento do futebol como fenômeno de massa intimamente ligado ao processo de construção da identidade nacional mobilizou e mobiliza a atenção de intelectuais de áreas tão distintas e do porte de Eduardo Galeano, Monteiro Lobato, Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade, Roberto DaMatta, Chico Buarque, Dolores Duran, Elis Regina e Haroldo de Campos, entre 92 personalidades listadas pelo coordenador do Núcleo de Sociologia do Futebol da Universidade do Estado do (Uerj), Maurício Murad (Murad, 1996: 16/17). O jogador de futebol é o principal ator de um negócio que o ex-presidente da Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa) João Havelange estima movimentar US$ 250 bilhões (Carta Capital, junho/96), dado que explica o crescente interesse de empresas poderosas em investirem nesse universo, multiplicando seu potencial de crescimento na indústria cultural e gerando novas tensões entre os mundos sagrado e profano. Esses dados, que se somam a outros tão significativos como às gigantescas manifestações populares que ocorrem a cada quatro anos em que o país participa de uma Copa do Mundo, confirmam a afirmação crescente do futebol como um dos principais catalisadores da mobilização nacional. E ajudaram a romper preconceitos, inclusive, acadêmicos, como mostra a constituição do Núcleo de Sociologia do Futebol da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Meu interesse pelo tema foi despertado ao cursar, no segundo semestre de 1996, a disciplina "Industria Cultural e Sociedade", no curso de Especialização em Comunicação e Espaço Urbano, da Uerj, o que deu origem à minha tese Anonimato, fama e ostracismo - jogador de futebol: uma carreira em ziguezague, defendida e aprovada em janeiro de 1998 neste mesmo curso. Esta tese tratou do papel da indústria cultural na construção e na sustentação da imagem do jogador de futebol; a singularidade alcançada por esses ídolos e a forte assimetria que marca a relação entre ídolos e fãs. Foi justamente a análise da expectativa, quase irreal, despertada por essa relação que me fez atentar para fenômeno aparentemente contraditório. Por que, numa sociedade moderna, onde a capacidade de se tornar singular, deixando o anonimato, é concedida a tão poucos (4 Nota: Enquete realizada pelo programa “Sem censura”, da TVE, de 5/10/99, sobre o desejo de ser famoso revelou que essa era uma vontade acalentada por 73% dos entrevistados, contra apenas 27% que declinaram dessa condição) grande parte dos que alcançam esse status têm destinos tão trágicos? Embora não seja fenômeno exclusivo do futebol, em muito poucas atividades o rito de passagem do anonimato para a fama e dessa para o ostracismo – estado mais penoso que o anonimato – tem características tão dramáticas. Num país jovem como o Brasil, às vésperas de completar seus primeiros 500 anos, poucas instituições conseguem ostentar mais de cem anos de existência. Tirando a Igreja e as Forças Armadas, raras são as que podem exibir alguma certeza quanto a completar seu primeiro bicentenário. No entanto, qualquer torcedor de um de nossos grandes clubes de futebol, digno dessa condição, não alimenta a menor dúvida de que seu time continuará existindo daqui a cem anos. A principal razão dessa fé inabalável é alimentada pelos ídolos que se multiplicam ao longo dos anos em nossos gramados. Se o Ibope se aventurar a realizar pesquisa no interior do Amazonas ou entre catadores de lixo de Pernambuco, por exemplo, nem os mais entusiastas fãs do presidente Fernando Henrique Cardoso poderiam evitar que seu nome fosse menos conhecido – sem mencionar a popularidade - que os de Ronaldinho ou Romário. O objetivo desse trabalho é contribuir para a compreensão dos motivos que levam esses personagens que, talvez somente rivalizem em espaço na mídia com o presidente da República e o ministro da Fazenda, a desenlaces tão trágicos em suas vidas. Titular 42 vezes da seleção brasileira, Barbosa abandonou o futebol em 1963, depois de jogar 20 anos no Vasco da Gama (Jornal do Brasil, 11/6/97). Foi pelo conjunto de feitos da época, com destaque para o primeiro título sul-americano conquistado por uma equipe brasileira - outro importante marco da afirmação da identidade nacional - que o time de São Januário cedeu nove jogadores para a seleção que defendeu o Brasil na primeira copa sediada pelo país e que encantou a milhões de brasileiros até sofrer o segundo e decisivo gol do Uruguai, marcado por Gigghia - nome até hoje carregado de simbolismo para milhões de torcedores. Acusado de falhar neste momento capital do jogo, Barbosa de repente se viu no olho do furacão. Trocou o papel de um dos melhores goleiros do país para a de um quase "leproso social". Às vésperas da partida que decidiu com o Uruguai, no Maracanã, a classificação da seleção brasileira para a Copa de 1994, nos Estados Unidos, foi praticamente expulso da concentração brasileira pelo treinador Carlos Alberto Parreira, que viu na presença do ex-goleiro um sinal de "mau agouro" (O Globo, 17/9/93). Esse estigma ainda persegue a todos os integrantes da tragédia de 1950. Em 1997, quando morreu Francisco Aramburu, o Chico, a imprensa relembrou sua participação como ponta esquerda no time vice-campeão de 1950. E recordou que a derrota para o Uruguai fora "a maior frustração da carreira de Chico" (O Globo, 2/10/97). Nenhum, entretanto, carregou ou carrega estigma mais forte que Barbosa, “o culpado número 1” e que morreu este ano crucificado como principal responsável pela perda da Copa de 1950.

2 Metodologia O desenvolvimento desta tese está previsto para ser estruturado em quatro partes básicas, além da conclusão. Inicialmente, procurarei localizar, no plano teórico, o fenômeno da fama no cenário mais amplo das formas de construção do renome, analisando pontos de contato com a honra e a glória. O objetivo é buscar identificar aspectos que possibilitem a acercamento do fenômeno mais perene da fama com outras representações da imagem pública. Numa segunda etapa, pretendo tratar da indústria cultural, analisando o tratamento recebido pelo fenômeno da fama pela indústria cinematográfica, em particular, pelas produções hollywoodianas, bem como, programas de auditório e documentários jornalísticos sobre o tema por mim gravados. O objetivo é analisar a maneira como a indústria cultural retrata a fama e a reinterpreta. A seguir pretendo tratar do papel do ídolo do ponto de vista dos fãs, parte indispensável da constituição da imagem pública daquele. O material a ser analisado nesse tópico consta de pesquisa na Biblioteca Nacional de jornais da época em que Barbosa jogou que tratam da relação torcedor/ídolo, fitas de programas com fãs- clubes por mim gravados e entrevistas com torcedores, que permitam reconstituir, através do relato de vida, o clima de interação entre os fãs e Barbosa. Finalmente, na quarta parte, pretendo tratar da fama e seu corolário trágico a partir do ponto de vista do ídolo. Nessa etapa, estão previstas entrevistas qualitativas com ex-colegas de Barbosa, treinadores de futebol, dirigentes esportivos, ex-colegas de profissão, integrantes da Associação de Amparo Profissional do Atleta (Agap) e psicólogos com prática esportiva. Essas entrevistas pretendem abordar a carreira do ídolo nas suas três fases fundamentais: anonimato, fama e ostracismo. Bem como a contextualização do universo habitado por esses personagens dentro de uma sociedade moderna e estruturada de forma tão desigual como a nossa. É importante ainda, dentro da metodologia proposta, observar na análise do material coletado a interação e a tensão permanentes entre os mundos sagrado e secular. Entendida aqui secularização como "o processo pelo qual realidades pertencentes ao domínio religioso, sagrado ou mágico passam a pertencer ao domínio profano." (Helal: 1990:34). Por essa definição, "sempre que uma representação racional, científica e técnica substitui uma representação religiosa ou uma explicação pelo sagrado ou pelo divino, podemos afirmar que estamos presenciando um processo de secularização". (1990: 34)

3 Desenvolvimento da pesquisa 3.1 Mitos e ritos

José Carlos Rodrigues nos lembra que os mitos e os ritos são tentativas simbólicas de solucionar problemas da vida social (Rodrigues, 1992), mas ressalva que: "esta (a vida social) também é simbólica. Deste modo, a dicotomia 'simbólico/real' tem seu peso em grande parte neutralizado. Conseqüência disso, as soluções simbólicas nunca são soluções reais quando os problemas são reais. Por outro lado, entretanto, e ao mesmo tempo, estes últimos nunca deixam de ser, em grande medida, problemas simbólicos." (1992: 78). Pelo conjunto da sua biografia, suas glórias e seus dramas, Barbosa encarna como poucos as tensões provocadas por essa limitação, materializada na tensão entre o sujeito psicológico, existente no campo privado, e a imagem pública. Sintomaticamente, personagens capazes de canalizar tal catarse de emoções coletivas têm acompanhamento irregular de suas trajetórias pela mídia. Das três grandes fases em que suas vidas são divididas - anonimato, fama e ostracismo - em geral, somente a segunda é suficientemente esmiuçada. A primeira apenas costuma se tornar conhecida do grande público, quando acoplada à fama. Enquanto da última, o pouco que se sabe, geralmente, é publicizado somente quando o ex-astro se vê envolvido em alguma tragédia ou fato inusitado. Barbosa, como poucos, espelha as três fases dessa profissão, se apresentando como síntese do desenvolvimento dessa tríade. Depois de despertar sentimentos tão fortes e aparentemente antagônicos, como ódio e paixão, Barbosa, ao encerrar a carreira, cai, em plena maturidade como homem, na quase completa indiferença. Somente é evocado pela mídia e, por conseqüência, pelos torcedores, às vésperas de jogos contra o Uruguai. Será ele personagem involuntário e compulsório de um pesadelo que nunca se acaba ou significante de uma catarse que o país precisa realizar a cada encontro com o Uruguai, país cujas dimensões geográfica e política deveriam, pelo senso comum e pelo imaginário popular, se ver eclipsadas na comparação com uma nação continental como a nossa? Seu retorno à mídia parece confirmar a tendência para a tragédia que atrai como imã vários ex-ídolos, como Garrincha, Maradona e Reinaldo e, mais recentemente, Edmundo e Edinho, o filho de Pelé. Entre o fim do primeiro semestre e o início do segundo semestre de 1997, Barbosa voltou a "ganhar vida" na mídia. Motivo: viúvo há 16 dias e vivendo apenas com uma aposentadoria de R$ 86, apelava aos amigos por ajuda. (Jornal do Brasil, 11/6/97). Esse talvez seja o momento em que se torna mais agudo o paradoxo embutido no mito da fama: é que esta não existe sem seu antípoda, o ostracismo. O enterro de Garrincha, em janeiro de 1983, por exemplo, foi revestido de um consenso, por parte de torcedores de todos os clubes, da necessidade de reabilitar o ídolo. Essa reabilitação foi efetuada através da "rememoração do passado" (Lopes e Sylvain, 1992: 115): “Havia consenso em torno da necessidade de desfazer simbolicamente a injustiça de um destino tão trágico, celebrando assim certas tradições e certos interesses que pertencem ao mundo do futebol, ainda que os últimos sejam divididos muitos desigualmente pelos diversos atores da cerimônia." (1992: 115).

A luta para deixar o anonimato "Uma sociedade precisa de heróis, porque ela tem necessidade de uma constelação de imagens suficientemente poderosa para reunir, sob uma mesma intenção, todas essas tendências individualistas." (Campbell & Moyers, 1990:142)

Os responsáveis pela movimentação de bilhões de dólares e pela mobilização de carga emocional tão intensa já suscitaram os mais diversos nomeações, não raro grandiloqüentes: heróis, mitos, deuses... Essas nomeações nos remetem a autores que se debruçaram sobre a análise da geração e do desenvolvimento dos mitos e o papel dos heróis. Um estudo do paralelo entre os ritos do nascimento dos grandes heróis épicos e o de craques consagrados é fundamental para alcançar compreensão mais profunda do tema. Para Campbell, "o herói ou heroína é alguém que descobriu ou realizou alguma coisa, além do nível normal de realizações ou de experiência. O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo" (CampbelI & Moyers, 1990:131). Ele argumenta que, evoluir de uma posição de imaturidade psicológica para "a coragem da auto-responsabilidade e da confiança, exige ressurreição e morte" (1990:132). E destaca: "Esse é o motivo básico do périplo do herói - ele abandona determinada condição e encontra a fonte da vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura." (1990:132). As provações são concebidas por ele como parte do rito de passagem do anonimato à fama. Ainda segundo Campbell, "o herói abandona o ambiente familiar, sobre o qual tem algum controle, e chega a um limiar" (1990:155). Defronta-se, então, com duas possibilidades. A primeira, seguir o exemplo do pescador Jonas: ser engolido e levado ao abismo, para depois ressuscitar. "Precisa então passar por toda uma série de provações e revelações de uma jornada de terror no mar noturno, enquanto aprende a lidar com esse poder sombrio, para finalmente emergir, rumo a uma nova vida." (1990:155). Outra possibilidade posta para o candidato a herói, ao defrontar-se com o poder das trevas, é "vencê-lo e matá- lo, como Siegfried e São Jorge fizeram quando enfrentaram o dragão". (1990:155). Uma das principais barreiras à entronização do herói é que, por definição, ele pertence a uma categoria única e rara. Afinal, no limite, se todos fossem heróis, ninguém seria considerado como tal pelo esgotamento de parâmetros. Essa circunstância impõe necessariamente relações assimétricas entre ídolos e fãs, criando expectativas irreais destes em relação àqueles e se refletindo na auto- imagem dos primeiros, sendo um dos componentes que o levam a transitar do glamour à tragédia, conforme se propõe a examinar esta tese. No futebol, o funil que se interpõe entre os candidatos a Jonas ou são Jorge e a fama começa cedo. Aos 12 anos, numa fase em que, geralmente, garotos ensaiam os primeiros passos rumo à adolescência, milhares de meninos entram em campo para travar a batalha rumo ao estrelato ou, pelo menos, a um lugar ao sol. E, em não raros casos, por uma profissão que lhes garanta a simples sobrevivência. Relembrando a importância de Manuel Victorino dos Santos, o Neca, fundador da primeira escolinha de futebol do Brasil e responsável pela formação dos futuros craques do Botafogo nos anos 60 e 70, Zagallo historia o rito de iniciação dos candidatos a heróis. "Todos sabem que, desde os 12 anos, os futuros jogadores começam a treinar na Escolinha, pelas mãos do Neca. É um trabalho árduo e cansativo. O principal objetivo é treinar o garoto tirando-lhe os defeitos, dando-lhe educação e instruções técnicas. Primeiro, aparecem 50 e até 100 meninos. Ele faz uma triagem e começa a trabalhar com um número mais reduzido. Escolhe aqueles que possuem qualidades." (Pedrosa, 1968:126/127). As exigências que cercam os que sonham com a fama são tais que, candidatos com 20 anos, sem experiência clubística anterior, são descartados. "Se aparece um jogador estranho com 20 e 23 anos para se submeter a teste, eu não o aceito mais", avisa Zagallo (Pedrosa, 1968:126/127). Essas provações são vistas por Campbell como "concebidas para ver se o pretendente a herói pode realmente ser um herói. Será que é capaz de ultrapassar os perigos? Será que tem a coragem, o conhecimento, a capacidade que o habilitem a servir?" (Campbell & Moyers, 1990:134/135). Como conquistar uma vaga nesse mundo – definido por Rodrigues como um sistema de igualdades iniciais, destinado a produzir, ao fim, um sistema de diferenças, segundo o mérito ou a sorte dos competidores (Rodrigues, 1992:81)?

3.2 Zumbis sociais

Para não perder totalmente o contato com o mundo do futebol, grande número de ex-atletas se torna treinador, empresário de jogador ou exerce outras funções ligadas ao esporte e que os ajudem a se manter em evidência. A grande maioria, porém, parece destinada – pelo menos na mídia – a ter direito apenas a meia existência. O projeto de construção da sua imagem parece exigir que raramente alguma coisa se saiba de suas vidas antes de alcançarem a fama – efêmera ou mais permanente. Assim como, em sua grande parte, somem das vistas de seus mais apaixonados fãs poucos anos depois de abandonarem os gramados. Tornam-se, pouco depois de ingressarem na chamada idade da maturidade, zumbis sociais: embora biologicamente vivos, a perda da identidade anterior lhes deixa sem referência social. Numa ironia do destino, encontram-se – pelo menos teoricamente – aptos para o exercício de qualquer profissão, exceto daquela que melhor sabem fazer e de que mais gostam e da qual foram obrigados a se desligarem. Numa segunda e irônica contradição, embora exibam qualidades atléticas superiores às da grande maioria dos demais trabalhadores em atividade, estão excluídos de sua profissão justamente pela defasagem física, que os impossibilita de competirem com jogadores mais jovens.

4 Conclusão

"Aqui neste país, a condenação máxima de um criminoso é de 30 anos. Eles estão me cobrando há 47 anos." (Barbosa, no "Telejornal Brasil", do SBT, 30/10/97).

A experiência da fama, com sua radicalização entre os domínios público e privado, ganha dimensões de extrema complexidade no caso de jogadores de futebol. Um dos componentes responsáveis por essa exacerbação é a juventude dos integrantes desse universo e o mito da sua eternização, que é alimentado pela contínua renovação do “estoque” de ídolos. Nesse universo, todo ídolo – pela própria perenidade da profissão e pela necessidade de reatualização constante daquela condição – é um candidato potencial ao ostracismo e, portanto à “morte” como figura pública. No entanto, esses homens mortais são capazes de feitos duradouros, que se eternizam na interação com os fãs e que a indústria cultural se encarrega de esmaecer ou intensificar, conforme as circunstâncias. Embora fenômeno mais efêmero que a glória, podendo se restringir aos 15 minutos que Andy Warhol prometia para todos, a fama parece se acercar daquela em aspecto que me parece chave para ser analisado: o destino trágico que eterniza ou resgata o herói do anonimato. Podemos assim examinar como o desejo da fama numa sociedade moderna pode desembocar na busca desesperada para transitar da equipe dos anônimos para a equipe dos famosos (Goffman, 1995). E como, para alcançar esse patamar, concedidos a raros privilegiados (?), é preciso obter a singularização que seria garantida pela exposição pública da imagem. Está intrínseco nesse movimento, porém, paradoxo doloroso, a imagem exposta à exaustão não permite que o indivíduo se reconheça nela. Teríamos aí o germe inerente a essa luta dos contrários que poderia nos ajudar a entender por que glamour e tragédia podem ser duas faces da mesma moeda. Ou nas palavras de Freud (1996), as similitudes que guardam heimlich (traduzível como algo assustador) e unheimlich (traduzível como íntimo, secreto e acolhedor). Ou ainda recorrendo à simplicidade da sabedoria popular: quanto maior o coqueiro maior o tombo. Um dos heróis do “Expresso da Vitória”, melhor goleiro do melhor time do Brasil, daquela época, predestinado a ser consagrado como integrante do time prestes a garantir ao país seu primeiro título mundial – consagração a ser obtida no estádio especialmente construído para esse fim. Quantos tiveram a oportunidade de conquistar situação tão singular como Barbosa? Talvez seus outros companheiros de equipe... Ao mesmo tempo, porém, quantos viveram a experiência de ser apontado como principal culpado pelo desmoronamento da afirmação do sonho coletivo de nação que engatinhava na direção da conquista da sua auto-estima? Por que tantos ex-craques recorrem à bebida e a outras drogas criminalizadas? E os que são levados à marginalidade? Será uma forma inconsciente de buscar novamente a singularidade? Por que Barbosa morreu sendo particularmente estigmatizado pela derrota? Que relação terá essa "culpabilidade" com a posição de goleiro, comparada por alguns comentaristas a Átila, rei dos hunos? E o fato de ser negro? Essa condição "ajudaria" a reafirmar antigas teses sobre a "inferioridade" dos brasileiros em confrontos internacionais? Por que, quase 50 anos depois e apesar do tetracampeonato mundial, a derrota para o Uruguai volta a ser ressuscitada a cada confronto com nossos vizinhos? Que tentativas simbólicas de solucionar problemas da vida social se ocultam por trás dessa lembrança? São perguntas que esta tese se propõe a responder à luz do exame da representação da fama numa sociedade moderna, marcada por relações assimétricas entre famosos e fãs.

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