De “Xica da Silva” a “Funcionário da Cozinha do RU”: Manifestações Discursivas de Sexismo e Racismo nas Universidades Brasileiras

Autoria: Juliana Cristina Teixeira, Marco César Ribeiro Nascimento, Alexandre de Pádua Carrieri

Resumo:

O objetivo deste artigo é analisar como os discursos, enquanto veículos de ideologias, podem ser construtores e reprodutores de ideologias sexistas e racistas relacionadas ao contexto das universidades brasileiras. Em uma abordagem de pesquisa qualitativa, analisamos discursos escritos e imagéticos vinculados a casos ocorridos em universidades que foram explicitamente relacionados ao sexismo e ao racismo. Observamos que os casos estão associados a práticas hostis que se valem de relações de poder e que acionam ideologias e discursos clara e marcadamente sexistas e racistas, que visam construir relações de pertencimentos e não pertencimentos simbólicos em relação ao lugar da universidade.

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Introdução

A sociedade brasileira vive um momento de enfrentamento, por meio de políticas públicas e também da própria opinião pública, de dinâmicas históricas e culturalmente arraigadas, como o combate ao preconceito, à discriminação e às desigualdades em relação a grupos sociais que, embora nem sempre sejam minoria em termos quantitativos, são assim designados politicamente para se referir a grupos que são minoria em relação à conquista de direitos e possibilidades de acesso a determinados espaços, condições e instituições sociais. Essas minorias podem ser designadas por vários grupos sociais, como as mulheres, os negros, os homossexuais e os pobres, além de várias outras. Esses quatro grupos reúnem dimensões que se entrecruzam: gênero, raça, sexualidade e classe social. Em relação especificamente a este artigo, abordaremos manifestações discursivas que constroem e reproduzem como minoria para o espaço social da universidade as mulheres e os negros, pois estaremos falando de manifestações sexistas e racistas relacionadas ao contexto das universidades brasileiras. Ainda, estaremos falando das dimensões de gênero e de raça enquanto construções discursivas de uma sociedade ainda desigualmente construída. Falamos em manifestações discursivas porque entendemos os discursos como veículos de ideologias (FIORIN, 2005). Os discursos podem ser entendidos como práticas sociais que têm o poder de construir, reproduzir, negar ou combater determinadas ideias e práticas. Eles refletem aspectos importantes da sociedade, mas também podem os refratar, trazendo aspectos que podem desviar o real já que, enquanto textos, falas ou imagens, podem se tornar representações de uma realidade. Consideramos que tais representações são importantes objetos de estudo que podem nos auxiliar a compreender determinadas dinâmicas sociais. Nesse contexto, o objetivo deste artigo é analisar como os discursos, enquanto veículos de ideologias, podem ser construtores e reprodutores de ideologias sexistas e racistas relacionadas ao contexto das universidades brasileiras. Advogamos, nesse objetivo, a importância de se olhar para os discursos como se simbolicamente fossem “as pinturas rupestres” da nossa sociedade contemporânea, pois eles manifestam construções sociais que dizem respeito a um determinado espaço e a um determinado tempo. As universidades brasileiras, espaços dos quais falamos neste artigo, e contexto de produção dos discursos a serem analisados, são espaços constituídos para serem plurais, abarcando as diferenças não só em termos de pluralidade no que diz respeito às suas práticas de ensino, pesquisa e extensão; mas também em relação aos sujeitos que delas farão parte. No entanto, por questões históricas, são espaços que ainda não se constituem efetivamente como acolhedores das diferenças, já que acabam refletindo preconceitos e desigualdades sociais, como as relacionadas a gênero e raça. Nossa questão de pesquisa é, então: de que maneiras os discursos produzidos nesses espaços ou a eles relacionados reproduzem o sexismo e o racismo presentes em nossa sociedade? Propomos ainda uma reflexão a respeito da relação entre a existência de discursos sexistas e racistas e a importância da manutenção de políticas públicas que visem ao enfrentamento dessas questões, como é o caso das cotas raciais, objeto cuja discussão se tornou importante de maneira vinculada à questão de pesquisa central deste artigo porque estava presente como tema nos discursos que analisamos. A importância deste estudo reside também em afirmar a existência desses dois aspectos sociais quando ainda se observa a existência de discursos que negam o racismo e o sexismo na sociedade brasileira (vide o discurso de democracia racial ainda invocado em nossa sociedade), e que alegam o “coitadismo” ou a vitimização aos grupos sociais que se constroem enquanto minoria e que aceitam, por exemplo, as cotas para as universidades.

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O artigo está dividido nas seguintes seções: após esta Introdução, apresentamos um breve contexto das universidades brasileiras; discussões sobre o sexismo e o racismo como referencial teórico; o percurso metodológico da pesquisa; a análise e discussão dos resultados; as considerações finais e as referências bibliográficas.

As universidades públicas brasileiras e os programas de ampliação do acesso à educação superior

As universidades são “instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano” (BRASIL, 1996, art. 52). O tripé ensino, pesquisa e extensão é o que as define, podendo ter cursos de graduação e pós-graduação. Essas universidades podem ainda ser públicas ou privadas. No caso específico deste artigo, falamos das universidades públicas, as quais são criadas e mantidas pelo Poder Público, ao contrário das universidades privadas que, como sugere o próprio termo, são criadas e mantidas pelo setor privado (BRASIL, 2001). Concebidas como um espaço plural, as universidades possuem um papel importante “na inclusão, promoção da participação e da independência das pessoas com necessidades educacionais especiais e dos demais grupos minoritários” (SARAIVA; NUNES, 2011, p. 942). No entanto, a dificuldade de acesso à mesma ainda é uma realidade para determinados grupos constituídos como minoria (SARAIVA; NUNES, 2011). Essas exclusões, reais e também simbólicas, ocorrem de maneira diferenciada se considerarmos o grupo social do qual falamos, a região na qual se localiza a universidade, os cursos e áreas de ensino aos quais nos referimos. Mas grupos sociais como pobres e negros ainda sofrem bastante dificuldade de inserção. Quando inseridos nessas universidades, esses grupos ainda podem sofrer dificuldades tanto no que se refere à adaptação aos cursos e à dificuldade de conciliação cotidiana com a necessidade, por exemplo, de trabalhar; como também em relação ao enfrentamento de manifestações de preconceitos e discriminações. Nesse contexto, as políticas de inserção nas universidades e de cotas, cujos debates já se iniciaram no país na década de 90 (SARAIVA; NUNES, 2011), tiveram sua execução intensificada nos últimos anos e sua importância tanto defendida quanto contestada. Os autores deste artigo se posicionam favoravelmente a essas políticas que, diante de um cenário de desigualdade que não pode ser revertido em um curto prazo, podem trazer benefícios importantes para a inclusão de grupos sociais desprivilegiados. Além do programa ProUni – Programa Universidade para Todos - que foi criado pelo governo federal no ano de 2004 (SARAIVA; NUNES, 2011), e do programa FIES – Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior - que se destinam à inclusão de grupos economicamente desfavorecidos nas universidades particulares, nos interessa particularmente neste estudo o programa de cotas. O programa de cotas é um programa que reserva vagas nas universidades públicas com base em critérios raciais e sociais (BACELLAR E SILVA; SILVA, 2012). No Brasil, os primeiros programas de cotas foram criados a partir de 2003, tendo atualmente a aderência de diversas universidades. No ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu a constitucionalidade das cotas raciais (BLACK WOMEN OF , 2012). Dentre argumentos utilizados pelos que se posicionam contrariamente ao programa estão: a defesa de investimentos em uma educação básica de qualidade, que eliminaria a necessidade das cotas; a acusação de um assistencialismo que não resolveria a exclusão social; a acusação de uma discriminação “às avessas”; a defesa de que as cotas degradarão a qualidade das universidades; e a defesa da meritocracia (BACELLAR E SILVA; SILVA, 2012; BITTAR; ALMEIDA, 2006; FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2009).

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Dentre argumentos favoráveis ao programa, estão os que criticam o próprio conceito de mérito, afirmando que ele não é um conceito isento de subjetividade e de influências de aspectos sociais e que, portanto, não há mérito puro; os que defendem o programa como sendo a reparação de desigualdades históricas; e os que vêem nas contestações ao programa resquícios de paternalismo e de reação diante de uma ameaça à posição de grupos dominantes (BACELLAR E SILVA; SILVA, 2012; BITTAR; ALMEIDA, 2006). Comentando a crítica contrária às cotas que invoca o discurso de que o investimento em educação básica eliminaria a necessidade de cotas, concordamos que a necessidade de investimentos nesse nível básico é inegável, e que a existência de uma educação básica de qualidade não garantiria, mas poderia reduzir em algum grau as dificuldades de inserção de negros e grupos de baixa renda nas universidades. No entanto, frisamos que a construção de uma educação básica de qualidade traria impactos efetivos para a inserção do negro na graduação e para a ocupação de postos de trabalho decentes a um prazo muito longo. Ainda em 2001, Munanga observou que se os ensinos básico e fundamental melhorassem sua qualidade, ainda demoraria aproximadamente 32 anos para que os alunos negros chegassem aos níveis sociais que são ocupados pelos alunos brancos (MUNANGA, 2001). Nesse sentido, reiteramos a importância das cotas raciais para o combate a não pluralidade de diferenças nas universidades públicas.

O sexismo na sociedade brasileira

O sexismo é a manifestação do preconceito social dirigido às mulheres. Trata-se de um conceito multidimensional, expresso por meio de pelo menos duas possibilidades unidimensionais que se complementam. Uma é a manifestação de um sexismo que é acompanhado pela hostilidade contra as mulheres, sendo explicitamente negativo. Outra possibilidade é um sexismo chamado de paternalista, que tem como base a ideia de que a mulher deve ser protegida, proteção essa que é aparentemente positiva, trata-se de um sexismo benevolente. Quando ocorre a manifestação desses dois tipos de sexismo, podemos falar em um sexismo ambivalente (COSTA; PEREIRA; LEAL, 2012; GLICK; FISKE, 1996). Ambos os sexismos trazem ideologicamente a crença na existência de um “destino fisiológico, psicológico e econômico para a mulher” (RIBEIRO, 2013, p. 506), crença essa que pode se manifestar explícita ou implicitamente, e que é muitas vezes naturalizada, já que implica na crença em uma inferioridade da mulher. Nesse sentido, ambos os sexismos condicionam a liberdade da mulher, seja por meio da hostilidade ou do paternalismo. O sexismo explicitamente negativo, o da hostilidade, tem como uma de suas características a inflexibilidade (COSTA; PEREIRA; LEAL, 2012). Envolve práticas que humilham as mulheres e que as consideram como sujeitos sem dignidade. Ou ainda práticas que as reduzem a um aspecto de utilidade, seja como objetos sensuais e sexuais, ou como úteis ao trabalho doméstico e ao atendimento das necessidades cotidianas do homem. Além disso, envolve violência verbal, moral, física e sexual contra as mulheres. Já o sexismo que é aparentemente positivo e, portanto, implicitamente negativo, é aquele que traz o discurso paternalista da proteção à mulher. Como exemplos, podemos citar o cuidado excessivo que os pais podem ter com as filhas comparativamente ao cuidado e proteção direcionados aos filhos; e as práticas que consideram a mulher como o “sexo frágil”. O sexismo, como um fenômeno relacional, também pode se manifestar em direção aos homens, sendo eles as vítimas do preconceito. No entanto, pelo lugar de privilégio que eles ocupam na sociedade, o sexismo prevalecente é aquele dirigido às mulheres. Além disso, ele pode também ser incorporado pelas próprias mulheres (COSTA; PEREIRA; LEAL, 2012), que podem se constituir como sujeitos inferiores ou estereotipados a funções sexuais, domésticas ou de maternidade. 4

Falamos aqui de um preconceito que também se associa ao racismo que será discutido no próximo item. Quando essa associação ocorre, as mulheres negras sofrem duplamente o preconceito, além de serem ainda relacionadas à escravidão. Quando essa relação ocorre, recai sobre as mulheres negras uma histórica sensualização que foi iniciada pela utilização das escravas como servas sexuais de seus senhores. A seguir, discutimos então o racismo como mais uma dimensão do preconceito presente em nossa sociedade.

O racismo na sociedade brasileira

Raça, uma categoria ideologicamente construída como biológica, mas já revelada como uma categoria discursiva (HALL, 1999), é um termo utilizado para a propagação de uma ideia de superioridade e de inferioridade de grupos sociais, baseando-se discursivamente em diferenças biológicas (ROSA, 2012). Embora já tenha ocorrido um movimento para a desnaturalização dessa ideia, há ainda resquícios de pensamentos e práticas que distinguem socialmente os sujeitos com base em sua cor de pele e algumas características físicas. Seguindo o caminho da desnaturalização, entendemos que a cor é socialmente construída (BARROS, 2009). No Brasil, o passado escravista, marcado por um sistema classificatório e baseado na cor da pele, ainda traz profundas marcas para as atuais dinâmicas sociais, nas quais observamos uma desigualdade racial que é acentuada nas esferas do trabalho e da educação. Os negros ainda fazem parte dos grupos econômica e socialmente desfavorecidos e também possuem maior dificuldade de inserção tanto na graduação quanto nas pós-graduações. Ainda ocupam os postos mais precários de trabalho (FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2009) e estão mais submetidos às mazelas sociais. Predomina no caso brasileiro o que Nogueira (2007) chama de preconceito de marca, distinto do chamado preconceito de origem, mais relacionado à origem genética do indivíduo. O preconceito de marca traz outros elementos associativos para o preconceito contra o negro. Nesse tipo de preconceito, outros aspectos também são considerados para além da genética e da cor da pele, como a posição social ocupada pelo indivíduo, o contexto, sua aparência, seu modo de vestir etc. (ROSA, 2012). O racismo na sociedade brasileira reproduziu as considerações do precursor racismo i científico de que homens brancos (e europeus) possuem uma raça superior aos homens originados de países historicamente colonizados, como é o caso da África, da América e da Ásia (ROSA, 2012). Reproduziu também ideologicamente o poder da branquitude e a associada construção de um ideal estético de branquitude (SOVIK, 2004; WARE, 2004). No entanto, podemos mencionar também para o caso brasileiro variações no que se refere à consideração simbólica da existência de diferentes “gradações” de cores. É como se houvesse diferentes gradações de “negritude”, as quais podem ser representadas pelas denominações oficiais “negro” e “pardo”, além de denominações coloquiais presentes no cotidiano das relações sociais brasileiras como moreno, moreno claro, moreno escuro, jambo, mulato, crioulo, caboclo, entre outras (BARROS, 2009; SANSONE, 1996). E essas gradações que se tornam simbólicas podem influenciar também em diferenciações nas próprias manifestações de preconceito ou discriminação. Após essas considerações sobre o racismo, apresentamos a seguir o percurso metodológico da pesquisa.

Percurso metodológico

Esta é uma pesquisa de abordagem qualitativa. A técnica de coleta de dados utilizada foi a pesquisa documental em meio eletrônico. Buscamos, por meio das palavras-chave “sexismo”, “racismo” e “universidade”, casos ocorridos no contexto das universidades 5

brasileiras que tinham alguma relação com os dois principais constructos deste estudo: o sexismo e o racismo. A pesquisa foi realizada por meio de sites de buscas que armazenam conteúdos diários de notícias. A escolha dos casos foi aleatória e intencional, respeitando o critério de que os casos analisados estivessem sendo explicitamente relacionados ao racismo e ao sexismo e que tivessem ocorrido no contexto de universidades públicas. Selecionamos quatro casos de cunho sexista e quatro casos de cunho racista, e que também apresentavam intercruzamentos nessas duas dimensões de preconceito, como é o caso do episódio do trote que construiu a personagem da “caloura Chica [sic] da Silva”. Outro critério importante foi a escolha de casos que reunissem dimensões textuais e imagéticas de discursos e práticas sociais. Um dos mais importantes pressupostos deste artigo é o de que os discursos são veículos de ideologias (FIORIN, 2005). E por discursos entendemos a articulação entre aspectos linguísticos, históricos e ideológicos (FARIA, 2009; VAN DIJK, 1997). Nosso posicionamento é o de que os discursos, escritos, imagéticos ou relacionados a práticas, produzem e reproduzem ideologias (visões de mundo) que podem ou não ser hegemônicas. Afim com esse posicionamento acerca dos discursos, o método de análise utilizado foi a Análise do Discurso (AD). Em termos práticos, aplicamos a AD de corrente francesa, tendo como objetivo a análise das escolhas lexicais; dos percursos semânticos estruturados; dos aspectos explícitos e implícitos dos discursos e práticas; dos silenciamentos e do alinhamento ou não dos discursos em relação a ideologias dominantes na sociedade (FARIA, 2009). Em termos conceituais, no entanto, nossa análise também teve como pressuposto a articulação que a AD de corrente crítica (ACD), a mais propriamente representada por Fairclough (2001), faz entre as práticas textuais, as práticas discursivas e as práticas sociais. Corroboramos com esse autor ao defendermos a articulação intrínseca entre texto, discurso e prática. E, por esse motivo, nossa análise abarca essas três dimensões. Além disso, temos afinidade com um pressuposto da ACD, que é o compromisso com a mudança social. Nossas considerações a respeito dos casos analisados têm como objetivo a denúncia e a chamada de atenção para a importância de se problematizar e refletir a respeito dos preconceitos sociais manifestos no espaço ou contexto das universidades. Embora não apliquemos a ACD em termos metódicos, os pressupostos mencionados nos orientam na própria realização da Análise do Discurso de corrente francesa.

Discursos “a la Xica da Silva”: o sexismo nas universidades brasileiras

Os quatro casos sobre sexismo que serão discursivamente analisados nesta seção estão imageticamente apresentados na Figura 1 (editamos algumas imagens a fim de não identificar rostos ou esconder partes íntimas).

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Primeiro Caso-trote na UFMG (Imagem 1) Segundo caso – resultado do vestibular na UnB (Imagem 2)

Terceiro Caso – trote na USP de São Carlos Primeira Enunciação (Imagem 3) Segunda Enunciação (Imagem 4)

Quarto caso – UNESP Araraquara (Imagem 5)

Figura 1. Casos sobre sexismo no contexto das universidades brasileiras. Fontes: Nunes (2013); Correio Braziliense (2013); G1 (2013); MAIA (2013) baseado em divulgação Frente Feminista; Sorg (2010).

O primeiro caso sobre sexismo discursivamente analisado neste artigo, e que inclusive faz parte de seu título, foi o trote ocorrido em março de 2013 na Faculdade de

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Direito da UFMG (Universidade Federal de ). Com a divulgação de suas fotos em redes sociais, houve uma grande repercussão do caso. O discurso imagético e escrito especificamente analisado neste artigo é o manifesto em uma imagem em que um veterano do curso de Direito aparece segurando por meio de uma corrente uma caloura que está com a pele do rosto e corpo pintada de preto, e que traz em seu corpo um papelão com os dizeres “Caloura Chica (sic) da Silva” (Imagem 1 da Figura 1). Esse discurso imagético reflete uma prática social de conteúdo sexista (sexismo hostil) ao apresentar um homem segurando uma mulher que está acorrentada, em situação física e simbolicamente inferiorizada. Essa inferiorização ocorre não só por sua condição de mulher, mas também pela maneira como o corpo dessa mulher foi adornado para a execução do trote. Pintada de preto e associada à Xica da Silva, a caloura representa, nessa imagem, uma escrava que viveu em Minas Gerais no século XVIII e que se tornou uma figura histórica do período imperial. O ato de pintar o corpo dessa mulher de preto revela o conteúdo racista dessa imagem, o qual associa não só por questões históricas o negro à escravidão, mas o negro à condição de subordinado e de inferior, como sujeito não político e não detentor de direitos e de liberdade. O entrecruzamento invocado entre as dimensões sexistas e racistas é característico dos lugares sociais ocupados pelas mulheres negras, lugares de objetos, lugares de sujeitos passivos ou, ainda, lugares de subalternidade. As palavras de Werneck (2010, p. 10) nos auxilia a compreender esse processo social perverso que incide sobre a mulher negra: “as mulheres negras não existem [...] como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades [...] estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão”. Na ocasião da divulgação da foto, o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial divulgou uma moção de repúdio ao trote, alegando aspectos que corroboram com a nossa análise. Para Luiza Barrios, “a imagem divulgada [...] remete-nos à prática recorrente de menosprezo e depreciação da mulher negra” (TERRA, 2013, s. / p.). As decorrências (punitivas) dessa prática ainda são aguardadas por meio do resultado de processo administrativo que ainda está em andamento na universidade. O segundo caso analisado é um episódio ocorrido na UnB (Universidade de Brasília) em julho de 2013 e que traz mais elementos discursivos do sexismo explicitamente hostil e negativo. O caso é representado pela Imagem 2 da Figura 1 e ocorreu na ocasião em que a universidade divulgou o resultado do vestibular 2013 e os candidatos aprovados foram ao campus, sendo recebidos informalmente pelos veteranos (CORREIO BRAZILIENSE, 2013). Em termos de condições sociais de produção dos discursos, esse segundo caso está, assim como o primeiro, situado em um contexto histórico de práticas simbólicas comuns de demarcação de relações de poder entre veteranos e calouros. Os trotes, que são práticas de destaque nesse contexto, são formas de recepção de calouros por veteranos originárias

[...] do período militar, quando a calourada tinha uma função social de contestação e crítica dos estudantes. Atualmente, perdeu-se essa função e se estabeleceu como um ritual com uma ideia de dominação de 'quem sabe mais' sobre aquele que 'sabe menos' (SEM-DF, 2013, s. / p.).

Nesse contexto, a imagem 2 da Figura 1 apresenta dois estudantes veteranos do curso de Engenharia de Redes da UnB segurando um cartaz com o seguinte enunciado: “CAIU NA REDES É..... (ESTUPRO)”. O conteúdo sexista do enunciado mencionado e das características da enunciação propriamente dita se expressa claramente na organização de um percurso semântico que faz apologia ao estupro. Direcionado às mulheres, essa apologia é uma forma de manifestação de um sexismo hostil e inflexível, já que a inevitabilidade simbólica do “estupro” se manifesta, no enunciado, 8

por meio das relações causais expressas pelos léxicos “CAIU NA REDES É” (ou seja, cair na redes implica em uma determinada consequência, frase que parodia a expressão popular “caiu na rede é peixe”). Reagindo à prática discursiva e social relatada, movimentos feministas, a Secretaria de Estado da Mulher do Distrito Federal (SEM-DF) e a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) se manifestaram em tom de repúdio.

O cartaz tratou as mulheres como objetos, depreciando sua integridade e desmerecendo-as enquanto sujeitos. [...] E não é a primeira vez que isso acontece. Em 2011, durante um trote [...], as mulheres eram obrigadas a lamberem uma linguiça coberta com leite condensado, simulando o sexo oral. [...] A Secretaria de Estado da Mulher questiona, fortemente, a tolerância e até a incitação do estupro na sociedade [...] (SEM-DF, 2013, s. / p.).

Tanto a SEM-DF quanto a SPM-PR destacaram também a condição criminal do estupro e de sua apologia (GELEDÉS INSTITUTO DA MULHER NEGRA, 2013). Ou seja, quando discutimos esse caso específico de apologia sexista ao estupro, não estamos falando simplesmente (ou complexamente) de dimensões sociais, mas também de dimensões sociais especificamente legais e configuradas como crime. O terceiro caso analisado, cuja enunciação está representada na Figura 1 pelas Imagens 3 e 4 (dois enunciados), ocorreu no campus da USP (Universidade de São Paulo) na cidade de São Carlos em um trote organizado por um grupo de veteranos em 26 de fevereiro de 2013, dentro da sede do centro acadêmico da universidade. O grupo organizador do trote em questão é um grupo autônomo que se autodenomina GAP (Grupo de Apoio à Putaria) e que se envolve na organização de festas e eventos estudantis (MAIA, 2013). Na ocasião do trote, um grupo de feministas da universidade protestou contra a prática realizada pelo grupo organizador do trote que era denominada de concurso Miss Bixete (MAIA, 2013). A mulher jovem apresentada na Imagem 3 da Figura 1, integrante do grupo feminista, carrega adornos simbólicos para manifestar seu repúdio ao trote. Possui uma faixa na boca, que simboliza implicitamente a opressão contra as mulheres, e carrega o corpo de uma mulher confeccionado em papel com os dizeres “Miss Bixete” no rosto. Esse enunciado específico traz implicitamente o sentido da invisibilização das mulheres, já que a frase “Miss Bixete” é escrita em cima de um rosto sem olhos, nariz e boca. Nos seios da boneca, que foram destacados, o grupo escreveu a palavra “opressão”, a qual representa simbolicamente o silenciamento da mulher (no rosto) e por sua sexualização (os seios que ficam em evidência durante o concurso, conforme relatos). Como resposta ao protesto representado por essa primeira enunciação, e para demarcar uma relação de poder avessa a opiniões divergentes, os estudantes organizadores do trote provocaram as feministas fazendo gestos obscenos e simulando atos sexuais, sendo que dois estudantes ficaram nus (MAIA, 2013). Na imagem da segunda enunciação (Imagem 4 da Figura 1), é possível observar que um dos estudantes estava com suas partes sexuais expostas e simulando ato sexual. O conteúdo explicitamente sexual da imagem nos leva novamente a uma manifestação do sexismo hostil e inflexível que torna a mulher um objeto. Nessa prática, a transformação da mulher em objeto sexual ocorre duplamente. Em um primeiro momento, há uma relação de poder configurada entre “veteranOs” e “calourAs”, que torna essas últimas os objetos sexuais na simulação de um concurso. Em um segundo momento, há a reafirmação dessa sexualização quando a reação dos veteranos aos protestos das feministas transforma também as veteranas integrantes do grupo feminista em objetos sexuais. Nesse sentido, trata-se de um sexismo que independe da existência ou não da relação de poder que é comumente configurada entre veteranos e calouros, pois é dirigido às mulheres de uma maneira geral. 9

Outra característica comum do sexismo hostil que está presente na prática analisada é a alegação de que as próprias mulheres desejam estar no lugar de objetos sexuais.

O universitário [...], um dos organizadores do 'Miss Bixete' condenou a atitude dos estudantes que ficaram pelados, mas defendeu o evento. Ninguém é forçada a participar, as garotas que sobem no palco e desfilam estão lá porque querem, gostam de ouvir assovios e ser aplaudidas", disse em entrevista no dia 2 de maio (G1, 2013, s. / p., grifo do autor).

O quarto e último caso analisado ocorreu no campus da UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Araraquara, em 2010 e foi intitulado “rodeio das gordas”.

O objetivo do 'Rodeio das Gordas' era agarrar alunas, de preferências as obesas, e tentar simular um rodeio - ficando o maior tempo possível sobre a presa. [...], um dos organizadores do 'rodeio das gordas' e criador da comunidade do Orkut sobre o tema, diz que a prática era só uma ''brincadeira' [...]. Mais de 50 rapazes de diversos campi teriam participado. Primeiro, o jovem se aproximava da menina, jogando conversa fora –'onde você estuda?', entre outras perguntas típicas de paquera. Em seguida, começava a agressão. 'O rodeio consistia em pegar as garotas mais gordas que circulavam nas festas e agarrá-las como fazem os peões nas arenas' (GRANJEIA, 2010, s. / p, grifo nosso).

A Imagem 5 da Figura 1 mostra a figura que era utilizada como capa da comunidade no Orkut criada para divulgar o evento (SORG, 2010), que apresenta conteúdo imagético explicitamente sexista. Em primeiro lugar, trata-se de um homem montado em uma mulher em uma simulação de rodeio, sendo a mulher, no caso específico, a representação dos touros. Em segundo lugar, trata-se de um sexismo hostil diretamente relacionado a uma característica inferiorizada e estereotipada de determinados grupos de mulheres: as mulheres gordas. A gordura, nesse caso, acrescenta mais uma dimensão ao preconceito “puramente” voltado contra as mulheres. Em termos de condições sociais de produção desse discurso imagético, podemos dizer que as mulheres gordas seriam aquelas que desvirtuariam e subverteriam um padrão dominante de beleza, o qual aparece associado à sexualização da mulher. Não sendo mulheres “objetificáveis” do ponto de vista sexual, o são do ponto de vista da inferiorização e da humilhação social. As mulheres que reagiam mais negativamente ao ato violento eram chamadas, nos discursos da comunidade criada, de “gordas bandidas” (SORG, 2010). Os casos analisados nesta seção revelam a manifestação discursiva e prática de um sexismo unidimensional, pois apresentam apenas o sexismo hostil (COSTA; PEREIRA; LEAL, 2012). Os relatos a respeito dos casos demonstram que os estudantes envolvidos negam a conotação sexista de suas práticas. Essa negação também ocorre em relação às manifestações racistas que serão analisadas e faz parte de mecanismos sociais de manutenção de preconceitos com o pretexto do humor (IRIGARAY; SARAIVA; CARRIERI, 2010). Além disso, essa negação reflete uma das particularidades do racismo na sociedade brasileira, que é a negação do racismo como se tivéssemos uma sociedade racista sem (sujeito) racistas (FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2009). E são justamente os casos de racismo que analisaremos a seguir.

Discursos “a la Funcionário do RU”: o racismo nas universidades brasileiras

O episódio do trote na UFMG que criou discursivamente a personagem da caloura “” também guarda relações com o racismo que podemos observar na sociedade e nas práticas sociais de grupos que também estão nas universidades. Mas além desse

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episódio, trazemos para a discussão a manifestação de discursos explicitamente racistas em grafites produzidos de maneira relacionada ao contexto das universidades e que demonstram que esses espaços ainda possuem grupos que seguem e continuam reproduzindo ideologias de cunho racial para afirmar os lugares e não lugares dos negros. Os grafites são manifestações discursivas que abrangem dimensões textuais e imagéticas. Na Introdução, os associamos à significação das pinturas rupestres porque a raiz etimológica do termo é graffiti, que significa “inscrição ou desenho de épocas antigas, toscamente riscado a ponta ou a carvão em rochas, paredes, vasos etc.” (LAGES e SILVA, 2004, p. 4). Sua manifestação contemporânea ocorre comumente por meio de textos e imagens produzidas em paredes e muros com tintas sprays (ALMEIDA, 2008). Em geral, os grafites são associados a formas discursivas de resistência a ordens dominantes. No caso específico deste artigo, veremos que os discursos produzidos por grafites com conteúdo racista são discursos que, ao contrário, abraçam padrões hegemônicos e dominantes. A Figura 2 traz a imagem dos quatro casos que foram selecionados para análise sobre a manifestação do racismo, os quais serão descritos e analisados em seguida.

Primeiro Caso – proximidades da UFMG (Imagem 1) Segundo Caso – dormitórios da UnB (Imagem 2)

Terceiro Caso – proximidades da UFRGS Primeira Enunciação (Imagem 3) Segunda Enunciação (Imagem 4)

Quarto Caso – mural da UNESP Araraquara (Imagem 5)

Figura 2. Grafites e discursos racistas no contexto das universidades brasileiras. Fonte: Black Women of Brazil (2012)

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O primeiro caso analisado (Imagem 1 da Figura 2) é um discurso produzido em um contexto de recente afirmação, pelo Supremo Tribunal Federal, da constitucionalidade das políticas afirmativas, como as cotas para as universidades públicas. Em 1º de maio de 2012, a porta de um estabelecimento comercial próximo à UFMG amanheceu com os seguintes dizeres grafitados: “A UFMG vai ficar preta” (BLACK WOMEN OF BRAZIL, 2012). Por meio do léxico “preta” e dos aspectos temporais representados pelos léxicos “vai ficar”, o discurso cria um percurso semântico de movimento pelo qual a universidade passará em direção a uma perspectiva futura. Essa perspectiva futura seria, no caso, a da negritude. Implicitamente, o discurso associa os negros beneficiados pelas cotas à construção de uma universidade preta, silenciando as desigualdades raciais existentes no espaço da universidade, no qual os negros são minoria. Em termos implícitos, o discurso também se associa à já comentada ameaça à posição de grupos dominantes (nesse caso específico, os grupos não negros) representada pelas políticas afirmativas. Essa ameaça, como discutimos, tende a ser um dos discursos presentes dentre os grupos contrários a essas políticas. O discurso silencia ainda o fato de que as universidades, concebidas como espaços plurais, são ainda espaços de hegemonia branca. O segundo caso ocorreu em março de 2007 (Imagem 2 da Figura 2), em que imigrantes africanos que estudavam na UnB tiveram seus dormitórios incendiados. Nesse episódio, estudantes grafitaram nas paredes dos dormitórios os seguintes dizeres: “Morte aos estrangeiros” (BLACK WOMEN OF BRAZIL, 2012). Produzido de maneira associada a um ato violento, o enunciado invoca, por meio do léxico “morte”, a violência contra os “estrangeiros”. Recorrendo a essas personagens, traz um discurso explicitamente xenófobo. Conhecendo ainda as condições sociais de produção desse enunciado, que o relaciona a uma posição marcadamente contrária à permanência de imigrantes africanos na universidade, o enunciado traz também, em termos implícitos, o alinhamento a discursos racistas, já que se refere a estrangeiros especificamente negros. O terceiro caso (Imagens 3 e 4 da Figura 2) traz como recorrência um discurso contrário às cotas especificamente raciais e ocorreu em junho de 2007 nas proximidades da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Em uma calçada próxima à universidade (Imagem 3 da Figura 2), foi pichado o seguinte dizer: “Voltem para a senzala”, acompanhado do léxico “cotas”. Em uma parede também próxima à universidade (Imagem 4 da Figura 2), foi grafitada a seguinte frase: “Negro, só se for na cozinha do RU [restaurante universitário], cotas não” (BLACK WOMEN OF BRAZIL, 2012). A primeira enunciação, composta pelos enunciados “Voltem para a senzala” e “cotas”, cria como personagem emissor implícito e simbólico um grupo social representado por não negros, que se dirigem implicitamente aos negros, que são os destinatários (implícitos subentendidos) do enunciado estruturado na forma vocativa, a qual sugere o sentido de uma ordem que precisa ser destinada a esses negros. Recorrendo ao espaço “senzala”, o enunciado cria como percurso semântico implícito a negação do lugar da universidade como sendo lugar dos negros, os quais, em termos contextuais, poderiam nela ingressar por meio das “cotas”. A eles é simbolicamente associado o lugar da senzala, fazendo uma explícita menção ao período escravocrata, no qual as senzalas eram os locais de pertencimento dos negros. O racismo presente no enunciado em questão aparece, nesse sentido, associado ao sistema escravocrata, revelando a permanência de resquícios do mesmo nas construções sociais a respeito dos negros, que são negados enquanto sujeitos políticos passíveis de pertencer ao lugar da universidade. A segunda enunciação, manifesta por meio do enunciado “Negros só se for na cozinha do RU, cotas não!” cria como percurso semântico a relativização do lugar do negro na universidade. Ao contrário do enunciado anterior, a universidade não é em si negada enquanto espaço do negro. Ela é negada enquanto seu espaço no que se refere aos contextos que sejam 12

alheios ao espaço da “cozinha do RU”. Uma decorrência implícita desse enunciado seria então a de que a universidade não seria lugar para os negros em outras posições sociais, como as de estudante, professor, e de funcionário de outros setores diversos ao da cozinha. A menção ao negro ser aceito “só se for” na cozinha tem como condição social de produção do discurso a histórica relação, no Brasil, entre os negros e os serviços domésticos, entre os negros e os trabalhos de servidão aos brancos. Essa relação traz novamente um racismo que se associa à memória social escravocrata. Reforçando essa dinâmica de afirmação discursiva de lugares e não lugares para os negros (que seriam então, ideologicamente, sujeitos passivos recebedores das legitimações de seus lugares de pertencimento autorizados pelos grupos dominantes), havia também em outra parede próxima à universidade um grafite com o enunciado “Macaco é no zoológico”. Os negros são metaforicamente associados à personagem do “macaco”, forma de manifestação comum de racismo, e têm seu pertencimento legitimado fora do ambiente da universidade. O quarto e último caso selecionado para análise neste artigo ocorreu em abril de 2012 no campus da UNESP em Araraquara, estado de São Paulo (Imagem 5 da Figura 2). Não se tratava de um grafite, mas uma frase escrita em um mural interno da universidade: “Sem cotas para os animais da África” (BLACK WOMEN OF BRAZIL, 2012). Explicitamente contrário às cotas raciais, o enunciado associa os negros à sua afrodescendência de maneira pejorativa: como se fossem animais (recurso metafórico utilizado) e não sujeitos políticos de direitos. Essa associação é ideológica porque contribui para a manutenção de pensamentos acerca da inferioridade biológica dos negros, os quais foram a base para o surgimento das teses racistas. Essas construções discursivas demonstram não só a manifestação do racismo no contexto das universidades brasileiras, como a reprodução, nesse espaço social, de preconceitos que estão permeados pela sociedade de uma maneira geral. No entanto, como temos no Brasil um preconceito que é relativizado de acordo com vários aspectos, como o contexto no qual se manifesta, os discursos e práticas racistas podem revelar uma tendência de ser mais explícitas e agressivas em espaços ainda elitizados como os das universidades. Trata- se de espaços que se constituem, assim como os outros relativos à educação e também ao trabalho, como áreas consideradas “duras” para os negros (SANSONE, 1996). Embora alguns desses enunciados tenham sido informalmente associados a grupos neonazistas e não reflitam o pensamento e posicionamento de todos os grupos e sujeitos presentes nas universidades, e nem mesmo o posicionamento oficial dessas instituições, eles revelam um cenário ainda muito preocupante se pensarmos a universidade como um espaço que deve ser plural e promotor da convivência com as diferenças. Eles trazem uma denúncia grave a respeito da manutenção de preconceitos históricos e sociais profundamente arraigados na nossa sociedade e que precisam ainda ser combatidos, demonstrando a importância de se manter, sim, as cotas para o estímulo à inserção dos grupos que representam diferenças socialmente desprivilegiadas nas universidades. Demonstram também a importância de se construir e manter energicamente políticas de combate a essas manifestações para que os grupos minoritários sejam considerados, nesses espaços, como sujeitos de direitos assim como o são os grupos historicamente dominantes.

Considerações finais

O objetivo deste artigo foi analisar como os discursos, enquanto veículos de ideologias, podem ser construtores e reprodutores de ideologias sexistas e racistas relacionadas ao contexto das universidades brasileiras. Os casos analisados, especificamente explícitos em relação ao sexismo e ao racismo, demonstram que esses discursos constroem e reproduzem essas ideologias por intermédio de relações de poder.

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Essas manifestações se valem de relações de poder constituídas entre os próprios alunos das universidades. Há um acionamento de ideologias e discursos clara e marcadamente sexistas e racistas, que visam simbolicamente construir relações de pertencimentos e não pertencimentos, para dizer de quem são os lugares da graduação ou da pós-graduação. Em relação ao sexismo, os discursos trazem hegemonicamente aquele manifestado de forma hostil, depreciadora ou estereotipada das mulheres, ainda as considerando de maneira atrelada à servidão (escravidão) e à sexualização. Em relação ao racismo, nota-se a recuperação de um discurso ideológico de inferioridade da raça negra em relação às demais, desconsiderando a já realizada reflexão a respeito da raça como uma categoria discursiva e não biológica (HALL, 1999). Essa inferioridade faz com que os negros sejam discursivamente confinados aos espaços alheios às universidades, ou a espaços estereotipados dentro dessas próprias universidades, como é o caso da “cozinha do RU”. Nossa questão de pesquisa era: de que maneiras os discursos produzidos nesses espaços ou a eles relacionados reproduzem o sexismo e o racismo presente em nossa sociedade? Respondemos que, em relação especificamente aos discursos e práticas aqui analisados (e que refletem apenas uma faceta da realidade social referente ao espaço das universidades), essa reprodução ocorre de maneira que, recebendo rótulos que passam por "Xica da Silva” a “funcionário do RU”, as mulheres e os negros sejam negados enquanto sujeitos de direitos políticos, como o direito à dignidade, ao acesso à educação superior, e a ocupação de espaços que ainda são dominados por um ideal de branquitude e masculinidade hegemônicos. Ideologicamente, esses discursos e práticas produzem e reproduzem a noção de que os espaços que promovem a educação “superior” se destinem igualmente a grupos sociais que são ideologicamente construídos como “superiores”. Entendendo ainda que as posições sociais dos sujeitos exercem influência sobre as formações ideológicas presentes em seus discursos (PÊCHEUX; FUCHS, 1997), podemos dizer que os discursos e práticas analisados refletem a tentativa de manutenção de um status quo, a qual pode ser exemplificada pelo combate às cotas, que podem ser entendidas como uma ameaça à posição dos grupos dominantes. A reprodução do sexismo e do racismo ocorre também por meio de relações e demarcações simbólicas de poder direcionadas aos novos e aos potenciais membros das universidades (como os grupos beneficiáveis pelas cotas). Os resultados desta pesquisa demonstram que essas demarcações não se esgotam na já comum caracterização do calouro como “bicho” ou como “burro” em trotes. Elas também recorrem a preconceitos tradicionais como o sexismo e o racismo. Reafirmando o nosso compromisso com a mudança social (FAIRCLOUGH, 2001) neste artigo, consideramos que seus resultados podem ser tratados como uma forma de denúncia, e também consequências de inquietações dos pesquisadores. Nesse sentido, em um posicionamento contrário à ideia de uma ciência axiologicamente neutra, acreditamos que são as inquietações que constroem os pesquisadores sociais, que não são sujeitos neutros diante de suas pesquisas, trazendo para elas suas experiências e vivências. Em relação ao caráter da denúncia, embora alguns casos aqui analisados tenham tido uma grande repercussão, analisá- los conjuntamente e associá-los ao sexismo e ao racismo em um estudo acadêmico é uma das contribuições deste artigo. No que se refere a um compromisso com a mudança social que possa ultrapassar a esfera da denúncia, frisamos que, embora as universidades não sejam responsáveis por essas manifestações sexistas e racistas e as rechacem, consideramos que são atores fundamentais na promoção não só da redução das desigualdades, como também na desnaturalização dos preconceitos. Nesse sentido, atentamos para a importância da proposição de ações de enfrentamento a essas manifestações e práticas discursivas preconceituosas. 14

Essas ações de enfrentamento precisam ser mantidas não só no que se refere a discursos explicitamente racistas e sexistas como os aqui observados, mas também a sutilezas cotidianas presentes nas relações sociais e que se reproduzem em contextos organizacionais. Por esse motivo, propomos a realização contundente e constante de ações de conscientização e de punição em relação a preconceitos ligados a gênero, raça, sexualidade, classe social e outras possíveis dimensões (como é o caso do preconceito contra os gordos manifesto pelo sexismo contra a mulher gorda). Essas proposições advêm de reflexões possibilitadas por este estudo em relação à importância de se pensar as relações sociais que aguardam os estudantes (cotistas ou não) que fazem parte de grupos historicamente marginalizados. Por fim, ressaltamos que a importância deste estudo está não só em tentar desvelar discursos reprodutores de preconceitos no espaço conceitualmente plural da universidade, mas também em chamar a atenção para a importância de se tratar o sexismo e o racismo de uma maneira desnaturalizada, atentando para o fato de que são construções sociais que ainda precisam ser debatidas por se constituírem entraves à construção de uma sociedade igualitária, com instituições igualmente igualitárias.

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