ABUSADO - O DONO DO MORRO DONA MARTA - Caco Barcellos

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ABUSADO - O DONO DO MORRO DONA MARTA - Caco Barcellos ABUSADO - O DONO DO MORRO DONA MARTA - Caco Barcellos Editora Record - C. 2003 Parte 1 TEMPO DE VIVER CAPÍTULO 1 MELHOR BANDIDO O Salgueiro está formado com o Fabinho e o Dá na Mangueira verde e rosa Coringa e o Polegar Lá no Serra tem o Bruxo Na Santa Marta, Santo, Difé, Marcinho VP no ar! Funk proibido O socorro desce a ladeira interminável, com faróis e lanternas apagadas. Silêncio para ouvidos desatentos. O ruído do motor é de carro novo. Com o câmbio em ponto morto, é inaudível até para o cachorro, sempre atento aos movimentos na curva que se aproxima. É prudente frear, reduzir ao mínimo a velocidade e desligar o Fiesta para evitar o latido escandaloso de sempre. Só o rangido do giro de pneu sobre o paralelepípedo denuncia o avanço lento de quem vai tentar o resgate dos amigos. O Fiesta ainda se movimenta ladeira abaixo, quando é cercado pelos parceiros que aguardam ansiosos pelo socorro. Os quatro querem entrar no carro ao mesmo tempo. Alguém esqueceu as portas traseiras travadas, e eles perdem segundos eternos para destravá-las. Correm ao lado, enfiam os braços pelas janelas das portas da frente para levantar o pino das de trás. Um empurra o outro para entrar mais depressa, com dificuldades por causa de fuzis atravessados no peito e mãos ocupadas por pistolas e revólveres. Ao volante, Careca tem o colo cheio de granadas. É sempre o escolhido pelo grupo para as operações motorizadas mais perigosas. Agora dependem da habilidade dele para driblar o inimigo que chega de surpresa, ladeira acima, como se surgisse do nada. - Pisa fundo, Careca! Uma arrancada forte, daquelas de assaltante de banco em fuga, contra o inimigo que avança no meio de uma nuvem explosiva, numa curva em forma da letra U. A ladeira em espiral começa no bairro de Laranjeiras e acaba na favela Santa Marta. 15 Fugir significa fazer a curva radical à esquerda, para subir em direção aos amigos, que aguardam no topo do morro. No meio da curva nasce uma rua, formando o desenho da letra Y. Éo único acesso de Laranj eiras ao morro Dona Marta. É por esta rua que os soldados do Segundo Batalhão da Polícia Militar avançam disparando suas armas. Vista do Fiesta, a camionete D-20 parece um tanque de guerra. Um soldado em pé usa a metralhadora pelo vão do teto solar. Dois outros PMs atiram com os fuzis pelas janelas laterais. Os tiros provocam uma fumaça azul, cortada pela linha de fogo intermitente. Uma das balas atinge o transformador do poste da rede pública de energia elétrica e provoca uma explosão semelhante à de uma dinamite. No Fiesta é forte o cheiro de enxofre e sangue. Careca acelera fundo, mas solta as mãos do volante. Tenta proteger a cabeça com os dois braços erguidos, encostados ao rosto. O Fiesta sem controle aponta para a direita e mergulha na nuvem azulada. Sobe a calçada, atropela uma lixeira da Comlurb, bate no poste de concreto e pára. A colisão quebra a base do poste, que não chega a cair, mas rompe um fio de alta-tensão e desarma a rede de energia. Dez ruas do bairro ficam às escuras. As rajadas do inimigo não param. Pardal, sentado junto à porta traseira direita, salta pela janela e fica caído na calçada. Paranóia tenta a fuga impossível. Baixa o máximo que pode a cabeça, segura firme a arma com as duas mãos e com o ombro direito força a abertura da porta de ferro retorcido. Sai do carro cambaleando quando alguém grita para acionar o gatilho do G-3. - Dá, Paranóia, dá! A reação é quase intuitiva para um jovem de 19 anos, três como traficante da quadrilha de Juliano VP. O chefe ainda está dentro do carro, sentado no banco da frente, ao lado do motorista. Segura um AK-47 que tem a base apoiada no banco entre suas pernas. Paralisado, ferido pelos tiros e pelo impacto da batida do carro no poste. A única reação é de Paranóia, que começa a disparar contra o inimigo justamente no momento em que ele está mais próximo. O tanque D-20, que avançava de frente, agora desvia e passa ao lado do Fiesta, disparando rajadas que furam a lataria, estilhaçam os vidros, espalham o pânico entre os parceiros que tentam se encolher dentro do carro. 16 ao lado do carro, Paranóia se joga ao chão e aperta o gatilho com toda a força dos dedos. Mas o G-3 não responde, o gatilho está mole, sem pressão. Imediatamente ele joga a arma emperrada para dentro do Fiesta e grita com Juliano: Tá fudida essa porra! Me dá a sua. Caralho! Caralho! No lado esquerdo do banco traseiro do Fiesta, Bruxo tenta se encolher para não ser atingido pelas balas, usando o banco da frente, onde está Careca, como escudo. Ele tem 29 anos e é o mais experiente dos homens de Juliano. É um free lancer, voluntário que veio do morro Cerro Corá reforçar o grupo, como sempre faz missões difíceis como esta. A morte nunca esteve tão perto de Bruxo. Ele vê Juliano ainda paralisado e o sacode para saber se está vivo. Vaza, Juliano, vaza! Bruxo aproveita a cobertura de Paranóia, se arrasta pelo banco e passa com dificuldade pela porta traseira semi- aberta. Mas um tiro acerta o cano do seu fuzil, que salta para longe de suas mãos. Ele se abaixa para tentar recuperar a arma. Deitado na calçada, grita de novo para Juliano sair do carro. O chefe, que havia perdido a consciência por alguns instantes, começa então a se movimentar. Grogue, com uma forte ardência na testa, passa a mão na cabeça e nos cabelos encharcados de sangue... - Tô baleado, tô baleado! O sangue escorre sem parar do ferimento no couro cabeludo, um pouco acima da testa. O rosto coberto de vermelho assusta Bruxo, que se expõe ao inimigo para tirar Juliano do carro. Ele o puxa pelo braço, mas o amigo não ajuda. Parece ignorar o risco, não consegue nem mesmo abaixar-se ou proteger a cabeça. - Vaza, Juliano! Vambora! Atordoado, Juliano deixa-se arrastar para fora do carro, falando palavras sem sentido. - Desvia da sombra! Mergulha! Fogo! Fogo! Aos poucos Juliano vai recuperando a lucidez e volta a gritar palavras de ordem. - Dá, Paranóia, dá! Talvez enfurecido pelo tiro na cabeça, Juliano corre em direção aos pontos de fogo que saem das armas dos policiais. E lança um objeto metálico contra eles. - Granada!! Em vez da granada - duas continuam nos bolsos do colete -, Juliano atira o celular contra o inimigo e desaba de cara na calçada. 17 Os homens correm para ajudá-lo. Paranóia se arrasta, pressiona o gatilho e aponta o fuzil na direção de onde vêm os tiros dos soldados. Bruxo tenta levantar Juliano com ajuda de Pardal, o mais calmo do grupo. - Pro outro lado. Vamo, porra! A escuridão ajuda-os a escapar dos tiros, mas a ação de Paranóia é a melhor cobertura. Atacados, os soldados vão para a defensiva, agrupados atrás da D-20. Disparam sem condições de mirar o alvo, atiram a esmo para apavorar os seus inimigos. Paranóia mantém a posição, enquanto Juliano é arrastado ladeira acima. As balas atingem muros e casarões da rua Marechal Esperidião Rosa. Na casa 25, a jovem Ana, de 20 anos, se desespera. Alguns projéteis perfuram a porta e atingem a cama de Ana, que teve sorte. Ela tem desvio de coluna e pouco antes do tiroteio resolveu deitar no chão para fazer exercícios de alongamento e aliviar a dor. Os tiros passam a meio metro dela. Nesse momento a irmã de Ana, Cristina Ramos, está voltando para casa na garupa da motocicleta do marido, o ex-jogador de vôlei da seleção brasileira Antônio Carlos Ribeiro, o Badalhoca. O casal, que aproveitara a noite de clima agradável para tomar chope num bar de Botafogo, leva um susto ao encontrar uma cena de guerra na rua onde mora. Eles param a moto perto da barreira policial e deitam-se no chão para se proteger do tiroteio. Badalhoca usa o celular para falar com a cunhada Ana, mas ninguém atende. Ana ouve o telefone tocar mas não tem coragem de se levantar do chão para atender. Ela se arrasta pelo assoalho, passa pelo corredor até chegar à parede de alvenaria da sala. Com medo de alguma invasão, ela empurra alguns móveis para formar uma barreira junto à porta principal da casa. Em silêncio, luzes apagadas, ouve os tiros e a gritaria da rua. Os gritos agora são de Bruxo: - Manda a granada! - Dá, não. O Paranóia tá lá embaixo - responde Pardal. - Então sobe. Força, força! Um grupo de cinco homens, que do pico do morro acompanhava o tiroteio, desce a ladeira para reforçar o socorro aos amigos. Todos carregam granadas, mas ninguém faz uso delas porque Paranóia troca tiros muito perto do inimigo e pode ser ferido junto. Nenhuma arma do grupo de apoio é acionada. A prioridade ésalvar o chefe. Paranóia, que vem uns dez metros atrás, pede ajuda. 18 - Caralho! A munição acabou! Acabou! - É contigo, Bruxo! A primeira granada é lançada. Pardal recebe a ajuda de dois parceiros que acabaram de descer do morro. Os três levantam Juliano do chão pelas pernas e braços. A explosão da segunda granada lançada por Bruxo contém o avanço dos soldados, apesar das sirenes anunciarem a chegada do reforço inimigo. Três camionetes lotadas de PMs param no meio da ladeira a 300 metros do pico e dali sustentam o tiroteio sem muita chance de atingir o grupo que arrasta Juliano pelo meio do mato.
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