LIA TOMÁS (Org.)

SÉRIE PESQUISA EM MÚSICA NO BRASIL – VOLUME 6

FRONTEIRAS DA MÚSICA: FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA

1ª edição

São Paulo ANPPOM 2016

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

Diretoria 2015-2017 Sonia Regina Albano de Lima (UNESP), Presidente Martha Tupinambá de Ulhoa (UNIRIO), 1ª Secretária Fernando Lacerda Simões Duarte, 2º Secretário Marcos Fernandes Pupo Nogueira (UNESP), Tesoureiro

Conselho Fiscal: José Augusto Mannis (UNICAMP), Titular Angela Elisabeth Luhning (UFBA), Titular Sonia Ray (UFG), Titular Lucyanne de Melo Afonso (UFAM), Suplente João Gustavo Kienen (UFAM), Suplente José Soares de Deus (UFU), Suplente

Editora de Publicações da ANPPOM Marcos Holler (UDESC)

FRONTEIRAS DA MÚSICA: FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA

SÉRIE PESQUISA EM MÚSICA NO BRASIL VOLUME 6

ANPPOM © 2016 os autores

FRONTEIRAS DA MÚSICA: FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA

CAPA: XiloWeb (Verlaine Freitas) Reproduzido sob permissão

FORMATAÇÃO E MONTAGEM João Paulo Costa do Nascimento

Catalogação da Publicação Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP

F935 Fronteiras da música : filosofia, estética, história e política / organizadora, Lia Tomás. São Paulo : ANPPOM, 2016. 472 p. - (Série Pesquisa em Música no Brasil; v. 6)

ISBN: 978-85-63046-05-5

1. Política. 2. Estética musical. 3. Filosofia da música. 4. História da música. I. Título.

CDD 780.1

ANPPOM Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música www.anppom.com

Printed in Brazil 2016 SUMÁRIO

Apresentação 05

Fronteiras entre música e filosofia

Expressividade e articulação formal na música 09 de Schönberg, segundo Theodor Adorno Verlaine Freitas

Músicas sem fronteiras: música e antropologia - 22 Luciano Berio e Claude Lévi-Strauss; música e filosofia - Wolfgang Rihm e Friedrich Nietzsche Ivanka Stoianova

Alexander Scriabin: convergências e divergências 54 Marcos Mesquita

Prolegômena: Gadamer e a música como modelo 84 para as ciências interpretativas Raimundo Rajobac

Corpo e sociabilidade na experiência musical: por 96 uma estética da heteronomia Rainer Patriota

Etnicidade e antropofagia cultural: dois temas 112 recorrentes nos estudos da música brasileira no exterior Silvano Fernandes Baia

Fronteiras entre música, estética, história e política

Música e multissensorialidade à luz de três 130 abordagens filosóficas: Dewey, Merleau-Ponty e Serres Alexandre Siqueira de Freitas

O papel do charme na estética musical de 143 Vladimir Jankélévitch Clovis Salgado Gontijo Oliveira

A concepção de obra musical em Ingarden 163 Glaucio Adriano Zangheri

Música 1941: crítica e história 176 Danilo Pinheiro de Ávila

A literatura e a música como formas de resistência 190 Estefânia Francis Lopes

Montagem da forma: a relação entre crítica 207 estética e crítica social na música popular brasileira a partir do pensamento de Walter Benjamin Guilherme de Azevedo Granato

Paralelismos entre música, antropologia e história 216 José Calixto Kahil Cohon

Em torno do inconsciente musical: a noção de 224 Formgefühl em Harmonielehre de Schoenberg como operador de crítica à normatividade tonal Igor Baggio

A estética hanslickiana no cinema 233 Jalver Bethônico / Rafael Sodré de Castro

Adès, para onde vão as notas? 250 Lucas Paolo Sanches Vilalta

Música e filosofia em Noites Florentinas de Heine 286 Marcos Branda Lacerda

Música e sacrifício 301 Luigi Antonio Irlandini

Apresentação do inapresentável, ocorrência e 324 presença da matéria no sublime musical de Lyotard João Paulo Costa do Nascimento SUMÁRIO

Música e cartesianismo 344 Flávio Silva

Uma estética do gosto: a ópera francesa do 371 século XVIII em Grandval, Bollioud-Mermet e Blainville Rodrigo Lopes

O músico prático no Compendium Musicae 386 de Descartes Tiago de Lima Castro

A biografia de Francesco Geminiani (1687-1762) 397 e sua relação com a música inglesa no século XVIII Marcus Held

A Metáfora da Coisa: inflexões heideggerianas 417 na canção de Gilberto Gil Paulo Tiné

A (re)composição do material musical em 428 Musik für Renaissance-Instrumente de Mauricio Kagel Rafael Ramalhoso Alves

John Cage e Música Antiga: indeterminação 443 nas práticas composicionais e interpretativas Renato de Carvalho Cardoso

Sobre os autores 453

Apresentação

Filosofia da Música é um campo de pesquisas que vem se A organizando em torno da reflexão filosófica a respeito de conceitos centrais que estruturam a Estética Musical. Área em ascensão nos campos das pesquisas em filosofia e música no Brasil, a filosofia da música relaciona-se ainda com questões mais amplas vinculadas à música, tais como o pensamento e a natureza, a subjetividade, a organização do tempo, a função histórica e política na sociedade, entre outros. Visto que os pesquisadores desse campo têm se reunido e publicado com regularidade suas pesquisas, sejam essas no formato de dissertações, teses, artigos ou coletâneas de congressos, os capítulos que compõem o livro “Fronteiras da Música: Filosofia, Estética, História & Política” são a reformulação dos textos apresentados no IV Encontro Nacional de Pesquisadores em Filosofia da Música, evento realizado no Instituto de Artes da UNESP em outubro de 2015, e que contou com o apoio do Programa de Pós-Graduação e Departamento de Música da instituição e também da FAPESP. "Fronteiras da Música”, livro cuja amplitude se adequa a perspectivas interdisciplinares, intersecciona a própria música com outros campos do conhecimento, transpassando os limites existentes e criando espaços intermediários e diálogos que naturalmente se instalam entre os saberes: literatura, crítica musical, política, antropologia, teoria, análise musical, história, sociologia, para citar alguns. Entretanto, não apenas as fronteiras para o diálogo foram estendidas mas também os autores contemplados: Gadamer, Scriabin, Wolfgang Rihm, Jankélévitch, Serres, Ingarden, Adès, Heine, Grandval, Blainville, Geminiani, Maurício Kagel.....compositores, filósofos e pensadores raramente prestigiados em publicações nacionais. Assim, parece ser oportuno também recordar uma citação do musicólogo Carl Dahlhaus, o qual nos adverte que toda a reflexão que se atrela à música, sejam essas de áreas

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afins ou mais distantes, não podem ser consideradas estranhas à própria música, visto serem pertinentes a ela como objeto histórico ou mesmo perceptivo: afinal, o que se percebe ou o que pensa sobre a música depende, em parte, do que tivermos lido a seu respeito. A todos, uma boa leitura!

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Fronteiras entre música e filosofia

Expressividade e articulação formal na música de Schönberg, segundo Theodor Adorno

VERLAINE FREITAS

osso objetivo é fazer uma leitura de alguns dos ensaios N iniciais da obra Filosofia da nova música , de Theodor Adorno, agrupando-os sob as temáticas da expressividade — que se liga às de sujeito, inconsciente e linguagem —, e da articulação formal — referente aos vínculos entre particular e universal, entre formas musicais e eventos sonoros singulares. Em linhas gerais, trata-se do modo como a música de Schönberg se apresenta como uma proposta radical de expressão objetiva do sujeito, mediante uma unificação ascensional, em que a forma estética adquire sua legitimidade compositiva atravessando os eventos musicais tomados como fragmentos, como materiais descontínuos, não mais entrelaçados previamente pelo fundamento unificante da tonalidade.

I Toda a arte moderna se inicia com uma crítica não apenas ao conceito de obra como totalidade, mas também à própria realidade extensiva, material e concreta. O novo — fundamento de tudo o que se pretende “moderno” — se institui como um movimento de abstração, de negação da aparência de significado pleno, coincidindo com o abandono da figuração nas artes plásticas e de recusa da distensão simétrica do som no tempo. Nesse sentido, as peças extremamente curtas de Webern podem ser lidas como uma crítica a toda concepção de mundo como inteireza, como algo dotado de sentido, evidenciando de forma negativa a própria negatividade da vida em seu núcleo individual, a saber: o sofrimento. A concisão e densidade próprias dessa música de preenchimento mínimo do tempo pretendem fazer justiça à impossibilidade de uma narrativa que ultrapasse a concretude vivencial do indivíduo;

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em outras palavras: ela quer ser anti-ideológica, quer contrariar um discurso que se firma como capaz de aprender o sentido da vida, como uma visão macro de mundo. A música nova almeja uma “expressão negativa”, ou seja, aquela que surge em virtude de recusas, esvaziamentos, mutilações, incompletudes, dissonâncias etc.

Uma das críticas que pretendem desautorizar a força da música de Schönberg consiste em identificá-la como ligada ao movimento da música expressiva, dramática, tal como podemos ver desde os primórdios do romantismo, principalmente em Beethoven. Para realizar sua defesa, não é necessário negar alguma continuidade entre a expressividade romântica de Wagner, tanto na música inicial, quanto na madura de Schönberg, sendo mais importante demonstrar o movimento de ruptura. A expressividade romântica era marcada pelo aspecto ficcional, no sentido de que toda emotividade dependia do posicionamento aparente de uma 10 totalidade, que transpunha para o âmbito contínuo da representação musical as emoções a serem figuradas. A diferença fundamental para com a música de Schönberg consiste em que os elementos miméticos, os choques, os traumas, as contradições e as rupturas da unidade egóica e de consciência são trazidos à tona de forma não-suavisada pela ficção de uma aparência mediada pela homogeneidade global da forma. Os elementos mimético-expressivos deixam de ser domesticados por uma lógica de aceitabilidade através de sua encenação como em um palco musical, passando a eclodir como manchas, nódoas, cesuras, fendas, coágulos musicais, de modo que, se ainda se pode falar de uma unidade (o que se mostrará como verdadeiro), ela é alcançada pela radical mediação desses elementos mimético-expressivos brutos, refratários a uma narrativa musical prévia, fazendo com que ela deixe de configurar um todo. O senso de totalidade antecipadora do sentido de cada particular na música é tão negado quanto a prioridade da consciência perante os impulsos inconscientes. A concretude do sofrimento é trazida à tona como particularidade conflituosa, na condição de índice do quanto a autonomia da aparência estética é em grande parte ficção, inverdade, mentira, ideologia. Expressividade e articulação formal

A arte tradicional-romântica teve sua vida e sua força ao celebrar a conciliação entre o universal e o particular. Cada obra bem-sucedida deveria ser a confirmação de princípios universais na medida em que estes se cristalizavam em cada particularidade. O elemento singular era vivido como anúncio de uma universalidade ainda a ser decifrada, ao mesmo tempo em que as formas prévias abrem um horizonte de determinação não completamente especificado. O estético configurou-se, assim, como este campo de indeterminação, ou melhor: de semi-determinação, em que a prioridade das formas abria espaço para a concretude dos particulares, e a eloquência destes confirmava a vitalidade das formas, sem se deixar amordaçar por elas. Isso significou a constituição de uma linguagem musical com todos os seus movimentos semânticos e sintáticos, em que a ornamentação, os acentos, os diversos graus de ênfase, de relaxamento e de tensão constituem um plano que projeta uma aparência reconciliadora do único e irrepetível, por um lado, e do universalmente já provido de significado, por outro. A nova música de Schönberg tem muito 11 de seu sentido no esforço de negar essa aparência de reconciliação, tensionando ao máximo a disparidade entre esses dois polos, criticando o ornamento, as convenções e seu caráter de linguagem comunicativa. Na medida em que os princípios formais garantiam uma unidade total para os eventos musicais particulares, esses adquiriam uma liberdade comparável ao jogo, podendo mover- se com certa liberdade no interior de esquemas tonais de progressão harmônica, de repetição, de integração dentro de períodos e frases, de antecipação de resoluções etc. Isso se dá pelo fato de que cada particular já possuía uma inteligibilidade razoavelmente garantida, mesmo que não de forma plena (pois se isso ocorresse significaria um enrijecimento excessivo, como na cultura de massa). Em franco contraste com isso, a música de Schönberg estabeleceu um campo em que nada pode mais ser diferente, nada pode jogar dentro de espaços de inteligibilidade previamente demarcados, pois cada elemento particular aparece como irracionalmente único. Qualquer significação deverá ser-lhe atribuída a posteriori , mediada pela relação sintática constituída de forma singular com todos os outros eventos musicais correlatos.

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É precisamente em virtude dessa irracionalidade, afim ao movimento cru e não-mediado do inconsciente, que a materialidade musical da nova música soa como primitiva, primária, bruta e, assim, regressiva e infantil. Ela pode ser facilmente assimilada como tosca e bárbara, negando a sofisticação e progresso cultural refinado. Isso possui sua contraparte no cubismo e no dadaísmo, em que o princípio de montagem é exercido sobre materiais primitivos, tal como as máscaras africanas e dejetos da vida cotidiana. Nesse momento, o progresso da consciência estética se move como a percepção de Schönberg de que a música não deve ser bela, mas sim verdadeira, anunciando uma verdade obscurecida pela consciência falsificada de conciliação do indivíduo com a cultura.

II A arte é conhecimento como expressão, como 12 linguagem do sofrimento, que quer tornar evidente, na singularidade contraditória do seu não-sentido, a eloquência possível do que subjaz a toda consciência de mundo. De um ponto de vista psicanalítico, este fundo do qual emerge o sofrimento é, propriamente, o dos conflitos sexuais inconscientes, tornados visíveis na música de Schönberg, como na expressividade da angústia, da premonição, na ruptura desesperada em relação ao objeto de amor. O que se pode chamar de “forma” é polarizado entre choques involuntários e irrupções brutas, por um lado, e a paralisia diante de uma angústia inominável. Em ambos os casos, está em jogo a ênfase no que é mimeticamente intraduzível, passível apenas de uma documentação por assim dizer sismográfica. À maneira de um mosaico que não admite uma distância segura para sua inteligibilidade, essa profusão mimética de conteúdos inconscientes é avessa à continuidade e ao princípio do desenvolvimento, tal como na forma sonata. Nesse momento, torna-se evidente a imbricação entre o conteúdo expressivo e o invólucro da forma, tornados substancialmente indistintos na construção radicalmente ascensional da unidade da obra. Essa indistinção é que fornece a base para a muito frequente crítica de formalismo para a nova música, uma vez que ela, desprovida de cânones formais preestabelecidos, deverá se tornar Expressividade e articulação formal integralmente forma pelo modo com que, paradoxalmente, transforma-se em um documento protocolar dos conteúdos miméticos brutos. Por outro lado, não se trata de mero formalismo auto-satisfeito já em virtude do princípio geral de que toda a dimensão formal da música (e das artes em geral) é um conteúdo social sedimentado, especialmente dos rituais religiosos, simbólicos e da dança. Os princípios formais artísticos codificam vivências recalcadas e relegadas à insignificância pelo progresso material, as quais adquirem uma eloquência ulterior pelo modo com que são rememoradas.

Além de formalista, a música nova é acusada de individualista e hermética, por recusar uma comunicação direta com a sociedade. É como se cada indivíduo fosse instado a transitar com a obra por si mesmo, em quase total isolamento perante todos os outros. Essa crítica é falha, porém, ao não considerar que esse individualismo possui origem social, tornada evidente na medida em que sujeito e sociedade se comunicam nos pontos de falha da integração de ambos os 13 polos, ou seja, na angústia diante da frustração erótica e econômica. Isso implica dizer que a música nova, em contraste com a avaliação corrente de ser um puro jogo esteticista, possui um significativo impulso de crítica social. Dentre os mecanismos de dominação na sociedade burguesa, um consiste na produção da aparência de um sistema caótico, impossível de ser alterado, ao mesmo tempo em que tudo aparece como resultado da ação não-coordenada de cada indivíduo. Trata-se do contexto de ofuscação [Verblendungszusammenhang ], que impede a cada indivíduo ter uma visão suficientemente clara dos mecanismos de manutenção da ordem e de produção do aspecto de contingência radical. Em termos afetivos, o que se tem é a angústia e o medo como elementos que paralisam as ações reflexivamente orientadas. É óbvio que o sistema social não é caótico em si mesmo, sendo regido por forças sociais, econômicas e políticas especificáveis em grande medida, mas ele se dá a conhecer como se situando para além de toda vontade consciente de seus membros. Contra esse estado de coisas, porém, a arte é impotente para lutar dentro de seu próprio âmbito estético. A arte radical

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de vanguarda, extremamente individualizada, concentrando-se no esforço de instaurar e seguir sua própria lei de movimento, somente tem a si mesma como objeto, girando de forma tautológica ao redor de seu próprio núcleo monadológico. Este auto-centramento não significa, no entanto, uma mera alienação, pois, diante de um mundo radicalmente racionalizado segundo princípios de heteronomia e de subjugação do outro a relações fim-meio, somente a insistência em seu ser-próprio possibilita à arte exercer a crítica do sistema em sua totalidade. Esse individualismo da arte, ao mesmo tempo em que nega a aparência de sentido tradicional, institui uma de direito próprio, transformando-se em ilusão na medida em que a raiz do movimento expressionista, a individualidade, também é mera aparência, apenas aponta do iceberg de forças inconscientes e sociais.

III 14 O expressionismo tem como seu conteúdo mais próprio algo que não existe em si, absoluto. O sujeito, o núcleo do que deverá ser “expresso”, tanto mais é universal, quanto mais recusa camadas superficiais de universalidade socialmente determinada. Essa dialética se reproduz na própria forma da música expressionista; na medida em que ela se fecha em seu ser-assim-e-não-de-outro-modo, dá testemunho do que ultrapassa seu fechamento estético. Essa ultrapassagem, entretanto, jamais é possível de se realizar para além do próprio movimento estético da obra. Nesse sentido, para que esta seja mais do que ela mesma, precisa renunciar a uma comunicação direta com a realidade, fechando-se obstinadamente em seu ser-posto. A música expressionista consiste, em grande medida, nessa tentativa um tanto desesperada e contraditória de extrair uma significação universal de sua extrema concentração no que é meramente pontual, microscópico.

Cada elemento expressivo é tomado por Adorno como um componente “protocolar”, algo programaticamente inserido na obra como testemunho direto de uma expressão crua, não mediada. A música expressionista de Schönberg toma o princípio da expressão romântica de forma literal, concreta, Expressividade e articulação formal tornando-se, assim, “objetiva” ou “concreta” ( sachlich ). Em virtude disso, ela não é expressiva no sentido tradicional do termo, como veiculação de sentimentos, emoções, experiências, memórias etc. Trata-se de uma expressividade material, uma subjetividade pontualmente concreta e pouco reconhecível segundo os critérios de uma subjetividade pessoal. A dimensão expressiva da nova música corrói, ao mesmo tempo, tanto o sujeito quanto tudo o que convencionalmente deveria exprimi- lo. Isso significa, de forma paradoxal, tanto negar uma aparência de totalidade capaz de figurar o sujeito, quanto a necessidade de aglutinar todos esses elementos pontualmente concretos em uma nova espécie de totalidade formal, extraída dessa concretude dos elementos mimético-expressivos. Há que se levar em conta, porém, que nem o indivíduo nem a sociedade são lugares-tenente da verdade, mas tampouco significam a pura mentira. Se a obra tradicional, em sua totalidade, anunciava uma reconciliação possível, isso não significava a simples falsidade perante o indivíduo, pois 15 testemunhava algo que ultrapassa a contingência e o fechamento monadológico do indivíduo. Por outro lado, o indivíduo também representa uma crítica a essa totalidade estética e social por meio de sua singularidade não- inteiramente dissolvível no plano universal. Somente a obra expressionista é capaz de ultrapassar as vicissitudes de verdade e falsidade no sujeito e na objetividade social. Para conseguir isso, ela precisa tanto negar a ideia de totalidade quanto estabelecer uma concepção de obra a partir da coagulação de seus elementos concretos pontuais. Ela não renunciou, e nem poderia, a uma dimensão orgânica, de linguagem e também subjetiva, o que a impulsiona a instituir uma unidade minimamente necessária.

IV O sistema tonal dispõe de diversos mecanismos de estruturação da música que deixam muito pouca liberdade ao singular se fazer como tal no contexto da totalidade da obra. Inúmeras variáveis condicionam o modo com que cada evento musical deverá ser equacionado. O tempo todo o músico é levado a tentar produzir uma obra singular em meio a uma

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multiplicidade de elementos universalmente preestabelecidos. A música atonal libertou o compositor dessas amarras, possibilitando o uso de acordes e eventos sonoros cuja legitimidade é extraída da suficiente racionalidade no instante em que é empregado. Proporcionais a essa liberdade do que é específico na ocorrência na totalidade da obra estão as possibilidades técnicas ao lidar com o material sonoro, pois o que antes era delineado como legítimo dentro de um horizonte de princípios gerais é relegado agora à singularidade do som quando da necessidade de articulá-lo tecnicamente. A emancipação experimentada pelo compositor é proporcional à exigência de assumir que a musicalidade não está inscrita previamente na materialidade tonal do som, devendo ser alcançada pela lógica de articulação entre o particular que não é já-validado e uma universalidade que não apenas não é preestabelecida, quanto também não será confirmada de forma transparente no modo com que cada elemento particular será articulado e “domado” tecnicamente. 16 As diversas dimensões da música tonal ocidental — ritmo, harmonia, melodia, contraponto, cromatismo etc. — não se desenvolveram segundo lógicas próprias derivadas da correlação entre elas. Em vez de cada uma delas surgir segundo uma necessidade inerente à outra, de modo a se complementarem em uma totalidade que alcance, por si, um sentido necessário, uma derivou da outra como se fosse algo “natural”, como a melodia a partir da harmonia, ou situou-se de forma descompassada em relação a outras, como é o caso do contraponto da música romântica, em que cada uma das vozes muitas vezes foi concebida de forma homofônica, e não como voz principal e secundária. Em seu conjunto, isso significou inconsistências no conjunto da produção musical, uma espécie de cegueira para com o que sempre foi demandado por cada um desses valores composicionais. Foi necessário, assim, conceber princípios de articulação, ao mesmo tempo específicos para cada dimensão e de integração na totalidade compositiva. Essa é a origem do dodecafonismo, que provém da consciência altamente desenvolvida no romantismo da necessidade de tornar a música um evento global, fundado no Expressividade e articulação formal esforço de síntese, de aglutinação. A ópera de Wagner, pautada em sua concepção de obra de arte total, demonstra precisamente isso. No dodecafonismo de Schönberg, todos os valores composicionais são por assim dizer destrinçados, lidos em sua lógica imanente, para então poderem ser mesclados e fundidos em um movimento de integração que se recusa a perceber uma relação de naturalidade entre quaisquer dos valores musicais. A contraposição fundamental da música do ocidente, a fuga polifônica e o princípio da sonata homofônica, é equacionada em uma lógica geral dispersa que não mais se contenta com “feudos” legais, que poderiam ditar as leis de um outro, ou garantirem-se de forma independente. A função do contraponto da música nova significa essa tentativa de orquestração multilateral das diversas dimensões composicionais, ao mesmo tempo em que abandona a relação hierárquica entre o cantus firmus e as vozes subalternas.

V 17 A música de Schönberg funda-se na ideia de um “desenvolvimento total” (como se aplicasse à música toda o princípio intermediário da sonata), que, associada a uma organização plena do material musical, faz convergir o ímpeto para uma objetividade global da obra e uma subjetividade formante, ao redor da qual tudo gira. A nova objetividade, representada por Stravinsky e Hindemith, apresenta-se como reacionária, porque quer frear o progresso do senso de composição integral da obra, ao mesmo tempo em que quer retirar do sujeito o centro de importância na composição da obra. Para essa corrente musical, o sujeito é algo contingente, arbitrário, devendo ser substituído por formas canônicas pré- burguesas. Ao mesmo tempo em que exibem a consciência da necessidade de ultrapassar as vicissitudes da subjetividade, oferecem uma resposta que retroage perante o que poderia superá-las.

Para se compreender a noção de desenvolvimento total na música nova progressista, é preciso considerar que as formas convencionais da música não foram apenas princípios externos, impostos à organização da música a partir de seu princípio formativo mais íntimo e interno. Ao mesmo tempo em

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que predeterminavam muito do decurso dos eventos musicais, permitiam que estes obtivessem uma legibilidade própria. Além disso, tais formas sofreram mutações ao longo do tempo, não apenas umas em relação às outras, mas também internamente: tanto pelo modo com que se impuseram sobre cada elemento particular, quanto também pela importância e papel que obtiveram como elemento constitutivo da totalidade da obra. Nesse sentido, o componente formal do desenvolvimento na sonata é paradigmático. Em Beethoven, ele representa aquele momento em que a orquestração prévia da obra é produzida mais uma vez sob o influxo e sob os auspícios da subjetividade, tornando-se o momento mais relevante da obra. O elemento constitutivo para esta libertação subjetiva perante o enclausuramento do esquema geral da sonata é o da variação , retomada da música barroca, como em Bach, e colocada em um novo registro da relação entre identidade e diferença que preenche o decurso temporal. 18 A variação antes de Beethoven teria como sentido primordial a manutenção da igualdade ao longo da repetição. Como constituinte do desenvolvimento na sonata, ela passou a acentuar o diferente perante o igual, realizando concretamente a dialética entre o idêntico e o não-idêntico. A fidelidade ao tema inicial é realizada precisamente pelo vigor da variação, fazendo com que o igual e o diferente adquiram sua legibilidade própria pelo preenchimento temporal, escapando de uma identidade mascarada por seus desvios. É como se o tema fosse sempre negado e mantido, atravessando as sucessivas diferenças em cada instante. Em virtude dessa dialética, o desenvolvimento apresenta uma significativa diferença em seu vínculo com a totalidade da obra e o tempo: este é, ao mesmo tempo, assumido em sua distensão, e contraído na perspectiva sincrônica daquela. Quanto mais os resíduos das convenções e das formas musicais preestabelecidas perdem a força, mais é necessário haver a intervenção subjetiva de cunho propriamente expressivo. Uma das consequências disso é que o próprio decurso temporal se torna ameaçador, pois deixa de ser previamente domesticado por princípios de sua estruturação e, portanto, de sua antecipação. O sujeito passa a experimentar a irrupção de seus elementos miméticos inconscientes na obra, Expressividade e articulação formal exigindo a disseminação absoluta do princípio do desenvolvimento, da variação que desafia a identidade, fazendo convergir os polos subjetivo e objetivo, como se toda a inteligibilidade da obra devesse ser produzida novamente a cada vez que um particular se apresenta. Claro está que uma outra convergência eclode de forma sumamente dialética, a saber: da suprema necessidade de articulação e da experiência da liberdade intrinsecamente associada ao caráter obrigatório de universalização do que resulta dos múltiplos vínculos entre cada evento sonoro. Quanto mais liberdade subjetiva, quanto menos trilhamento já estabelecido à atividade composicional, mais se exige ceder à exigência objetiva dos materiais musicais. Em termos da estrutura da peça, a consequência é que nada mais será supérfluo ou apenas uma variação de um tema principal, pois tudo é, ao mesmo tempo, tema e variação, como também deixará de ser tanto um quanto a outra. Schönberg faz uma apropriação por assim dizer materialista do princípio subjetivo da música romântica, 19 tomando o sujeito em sua face mais historicamente real, a saber, tanto emancipado quanto isolado de todos os outros. Na medida em que o sujeito se exprime na música, esta é tomada em sua dimensão de linguagem, que se equilibra entre a arbitrariedade subjetiva e a objetividade dos cânones formais de composição. Em virtude disso, quanto maior a interferência subjetiva na música em sua totalidade, mais a estabilidade objetiva da gramática musical é colocada em xeque. Isso ocorreu de forma enfática na música de Wagner, mediante seu procedimento do Leitmotiv e de seu cromatismo. Schönberg radicaliza a atomização por assim dizer anti-linguística da música operada por Wagner, fazendo com que toda a superfície musical se torne uma linguagem de direito próprio, para além de uma gramática preestabelecida. A linguagem musical romântica vivenciou seu tensionamento exemplar no vínculo entre os planos harmônico e polifônico. A estruturação dada pelos princípios da progressão dos acordes foi colocada em xeque pela condução múltipla das vozes, desde o Beethoven tardio, passando por Brahms até chegar a Wagner, na medida em que cada nota musical somente se legitimava em virtude dessa linearidade das vozes, e não apenas por sua colocação no esquema

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harmônico preestabelecido. O tecido polifônico configurou-se, assim, como o testemunho da música romântica de que a armadura da progressão harmônica tornou-se fraca e por demais abstrata, distante das exigências internas de articulação dos eventos sonoros. Na música de Schönberg, porém, a polifonia não é um elemento a ser conciliado com a harmonia, pois toda a música se torna polifônica, entretecendo a harmonia a partir da pluralidade de vozes ínsita em cada acorde dissonante. Em vez da harmonia preestabelecida entre os sons no acorde consonante, agora são exploradas as diversas camadas heterogêneas dos sons no acorde dissonante, de modo que cada nota levanta uma pretensão de identidade, exigindo princípios próprios de sua articulação, ou seja, uma racionalidade de síntese para essa divergência. Nesse sentido, a harmonia consonante é menos racional, em virtude do fato de já constituir uma unidade preestabelecida que não precisa refletir 20 internamente os princípios de sua lógica imanente. Articulando os elementos protocolares da expressão não-mediada do sujeito em uma racionalidade sui generis , a música submete cada evento sonoro a uma subjetividade que interfere em toda a extensão musical. Embora ainda haja momentos de tensão e resolução, deixou de haver na música nova de Schönberg diferenças de importância construtiva e constitutiva para o sentido de unidade da obra, no sentido de que todos os eventos musicais situam-se a igual distância de um ponto médio, deixando de haver um tema a ser desenvolvido, pois, como dissemos, tudo é ao mesmo tempo tema e variação, bem como não é mais nem um nem o outro, pois toda a música se distende horizontalmente sobre o tempo. Essa horizontalidade significa, também, que a música se tornou uma congregação de elementos contraditórios, de choques, de materiais brutos, fazendo com que o tempo seja domado não apenas em virtude de seu preenchimento material-sonoro, mas também pela própria suspensão do decurso temporal. Nesse momento, de forma paradoxal, a música nova de vanguarda se aproxima do jazz e da música seria regressiva, que não conhece propriamente o desafio do preenchimento temporal desenvolvido musicalmente. Essa convergência, entretanto, Expressividade e articulação formal resulta da extrema divergência, uma vez que a suspensão temporal da música nova advém da radicalização do princípio de desenvolvimento, ao passo que na música leve e na séria regressiva ela se dá pela anulação deste mesmo princípio.

Referências Bibliográficas

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ZABEL, G. Adorno on Music: A Reconsideration. The Musical Times , Vol. 130, No. 1754, 1989, p. 198-201.

Músicas sem fronteiras: música e antropologia: Luciano Berio e Claude Lévi-Strauss; Música e filosofia: Wolfgang Rihm e Friedrich Nietzsche 1

Ivanka Stoianova

evolução da música do século XX coloca em evidência o A esfacelamento dos limites entre as linguagens estéticas estabelecidas. Ao menos desde Varèse e mais ainda depois dos debates das músicas concretas e eletrônica, a distinção som – ruído não é mais pertinente. As músicas múltiplas utilizam várias mídias que no decorrer dos anos 50 impuseram a extensão da própria noção do material musical. A estética da obra aberta que se afirmou no decorrer dos anos 60 contribuiu consideravelmente ao esfacelamento das fronteiras entre as linguagens estéticas que fazem par – antes inimagináveis – com a abertura das novas tecnologias, mas também aos diferentes domínios das ciências humanas: não somente com a literatura, por tradição, mas ainda com outros domínios como a filosofia, a história, a política, etc.

Tomando o exemplo de dois importantes compositores – o italiano Luciano Berio e o alemão Wolfgang Rihm – esta conferência se propõe a evidenciar a interação da escritura musical sinfônica com a etnologia estruturalista, no primeiro caso, e do gênero ópera-fantasia com o pensamento filosófico de Nietzsche, no segundo caso. Sinfonia (1968) para 8 vozes e orquestra de Berio utiliza fragmentos do texto da obra capital de Lévi-Strauss, O cru e o Cozido (1964), e transporta o pensamento estruturalista no estudo dos mitos em um domínio renovado do gênero na sinfonia. A música-teatro da fantasia operística Dionysos (2009) de W. Rihm é a transcrição de espaços interiores em contato com o pensamento filosófico de Nietzsche e alguns elementos de sua biografia. As interações

1 Tradução do francês por Lia Tomás. Os comentários da tradutora e referências em português, quando necessários, serão indicados pela sigla NT. Música sem fronteiras diferentes domínios das ciências humanas e sua integração com a composição musical engajam o ouvinte-espectador atentivo em um trabalho colaborativo de produção de sentido em benefício de uma construção de si.

1. Música e antropologia: Luciano Berio e Claude Lévi- Strauss

No que se refere a sua Sinfonia (1968) 2 por 8 vozes e orquestra com textos de L. Berio, S. Beckett e C. Lévi-Strauss e no espírito vanguardista da época, Berio afirmava: “ Sinfonia não tem nenhuma relação os movimentos da sinfonia clássica, apesar da semelhança. O título deve ser entendido segundo seu sentido etimológico designando as vozes e os instrumentos (8 vozes e orquestra) tocando juntos. Mesmo que seus caracteres expressivos sejam muito diferentes, as seções são unificadas pela participação de um desenho comum que se encontra explicitado no último movimento, o quinto” (STOIANOVA, 23 1980, pp. 108-118). A Sinfonia em 5 movimentos é centrada em torno do terceiro movimento Scherzo que se tornou o exemplo clássico da colagem das citações sobre citação integral, a saber, o terceiro movimento Scherzo da Segunda Sinfonia Ressurreição de G. Mahler. A estrutura simétrica deste ciclo sinfônico em 5 movimentos colocou em evidência, pela presença de dois movimentos líricos, lentos em torno do movimento mais longo, o Scherzo central – o segundo O King e o quarto – e dois movimentos rápidos – o primeiro e o quinto – com referências aos mitos, retirados da obra de Lévi-Strauss, O Cru e o Cozido (1964) 3. Essa simetria concêntrica reúne a

2 Universal Edition, Wien N°13783. Cf BERIO, L. Sinfonia / Ekphrasis. CD. Göteborgs Symfoniker. Dir. Peter Eötvös. Berlin: Deutsche Grammophon, 2005. Criação dos 4 primeiros movimentos em 10/10/1968 por Swingle Singers e a New York Philharmonic sob a direção de L. Berio em New York. Criação integral dos 5 movimentos em 18/10/1969 a Donaueschingen por Swingle Singers e l’Orchestre de Südwestfunk sob a direção de Ernest Bour. 3 Esse é o primeiro volume de Mythologiques que também compreende compreendendo também vol. 2, Du miel aux cendres (1967), vol. 3, L’origine des manières de table (1968) e vol. 4, L’Homme nu (1971), todos editados pela Editora Plon. NT : A série Mitológicas foi traduzida

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preocupação dos sinfonistas da tradição ocidental na pesquisa da unidade fechada e o equilíbrio perfeito da obra-objeto.

Fiel à sua natureza de artista, sempre curiosa e aberta a todas as pesquisas da vanguarda de seu tempo, Berio escreveu sua Sinfonia como um tipo de homenagem ao antropólogo estruturalista Lévi-Strauss, cujas obras Antropologia Estrutural I e sobretudo O Cru e o Cozido , publicadas respectivamente em 1958 e 1964, o impressionam fortemente pela aproximação do mito e da música por conta de sua profunda “afinidade” 4 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 23). “A música é uma forma de mito, não é? – dizia Berio, ainda sob a impressão da teoria de Lévi-Strauss em uma entrevista de 1978. - É um instrumento muito eficaz para designar o mito. Wagner mostrou isso a todo mundo” 5 (STOIANOVA, 1985, p. 135).

No O Cru e o Cozido , Lévi-Strauss tenta mostrar que as 24 qualidades puramente sensíveis e empíricas, como o cru e o cozido, deixam-se articular em um lugar abstrato de relações, comumente binários, e que formam um sistema. Ele propõe a pesquisa “de uma via intermediária entre o exercício do pensamento lógico e a percepção estética” que “devia naturalmente inspirar-se no exemplo da música, que sempre a praticou” 6 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 22). Segundo o autor, o caráter comum entre o mito e a obra musical é definido pelo fato de que elas são “linguagens que transcendem, cada uma a seu modo, o plano da linguagem articulada, embora requeiram, como esta, ao contrário da pintura, uma dimensão temporal para se manifestarem. Mas essa relação com o tempo é de

em português pelas Editoras Brasiliense (anos 90) e Cosac Naify (anos 2000), e compreende quatro tomos, a saber: O cru e o cozido (I), Do mel às cinzas (II), A origem das maneiras à mesa (III) e O Homem nu (IV). Quando da citação de O Cru e o Cozido nesse texto, usaremos a edição da Cosac Naify (2011), trad. de Beatriz Perrone-Moisés, e serão incluídas as páginas citadas dessa edição. 4 NT: 2011, p. 34. 5 Entrevista concedida a I. Stoianova em 31/01/1978 na cidade de Roma. 6 NT : 2011, p. 33. Música sem fronteiras natureza muito particular: tudo se passa como se a música e a mitologia só precisassem do tempo para infligir-lhe um desmentido. Ambas são, na verdade, máquinas de suprimir o tempo”7 (LÉVI-STRAUSS, 1964, pp. 23-24). Efetivamente, a musicologia teórica da análise musical sempre distinguiu dois aspectos opostos da obra musical: o aspecto temporal, processual e o aspecto arquitetônico estático; a forma musical enquanto processo temporal e a forma musical enquanto arquitetônico, esquema ou local de relações fora do tempo.

É sabido que Lévi-Strauss era um melômano muito preparado, admirador fervoroso da música da grande tradição ocidental. Ele dedicou sua obra O Cru e o Cozido “à música” e destaca um excerto da partitura homônima de E. Chabrier para voz feminina com texto de E. Rostand 8 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 5). Suas referências musicais são, sobretudo, Wagner 9, Debussy, Chabrier e mesmo Stravinsky 10 . Lévi-Strauss mostra uma simpatia particular à ópera, mas sobretudo às óperas que se ocupam de incestos: a tetralogia O Anel dos Nibelungos e 25 Tristão e Isolda de Wagner, Pelléas et Melisande de Debussy. Uma boa parte dos títulos dos capítulos e dos subcapítulos no O Cru e o Cozido são inspirados por, ou emprestados da terminologia musical, sem que haja uma verdadeira relação com os procedimentos formais precisos na música: Abertura, Tema e variações, Sonata das boas maneiras, Sinfonia breve,

7 NT: 2011, p. 35. 8 NT : 2011, p. 15 : “A la Musique” : “Mère du souvenir et nourrice du rêve. C’est toi qu’il nous plait aujourd’hui, d’invoquer sous ce toit!”. 9 Admirador exagerado em relação à Wagner, Lévi-Strauss fala do “Deus Richard Wagner” e afirma : “Pois, se devemos reconhecer em Wagner o pai irrecusável da análise estrutural dos mitos(...) é altamente revelador que essa análise tenha sido inicialmente feita em música . Consequentemente, quando sugeríamos que a análise dos mitos era comparável à de uma grande partitura (1958, p. 234) apenas tirávamos a consequência lógica da descoberta wagneriana de que a estrutura dos mitos se revela por meio de uma partitura.” Cf. (1964, p. 23). NT : 2011, 34-35]. 10 Na terceira subdivisão “Bodas” da quinta parte intitulada “Sinfonia Rústica em três movimentos", Lévi-Strauss destaca um fragmento da partitura de Les Noces de Stravinsky. - Cf. (1964, p. 23). NT: 2011, p. 363.

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Fuga dos cinco sentidos, Ária em rondó, Invenção a três vozes, Duplo cânon invertido, Tocata e fuga , etc 11 . Mas o antropólogo não é efetivamente um teórico da música e seus títulos são, em seu contexto, bem mais fórmulas metafóricas que têm pouco a ver com a significação precisa desses termos na música e na musicologia. Elas são o suporte de uma competência musical praticamente ausente e que ninguém ousou ver e comentar à época.

Nessa obra, Lévi-Strauss insiste no fato que, como a obra musical, o mito opera a partir de um duplo contínuo: um externo, cuja matéria é constituída de ocorrências históricas a partir das quais cada sociedade extrai um número restrito de acontecimentos pertinentes, e outro, interno: está sediado no tempo psicológico do ouvinte. Ou a partir de dois pontos: “um é psicológico, portanto, natural. O outro é cultural”12 (LÉVI- STRAUSS, 1964, p. 24). Para Lévi-Strauss, a música possui um status muito particular: ela é “um tipo de natureza cultural, de 26 cultura naturalizada. A música é o próprio lugar da mediação: mediação entre a alma e o corpo, entre a extensão e o tempo, o sensível e o inteligível, a metáfora e seu significado” (BACKÈS- CLÉMENT, 1974, p. 56). No quarto volume de Mitológicas, O Homem Nu , Lévi-Strauss propõe a hipótese de que a música e o mito desempenharam papéis complementares na história da humanidade e que o papel preponderante do mito dos tempos antigos foi assumido, desde o Renascimento, pela música. – Uma hipótese que poderíamos, talvez, defender ainda hoje.

A admiração extática de Lévi-Strauss pelo compositor- criador e pela música parecem muito exageradas e às vezes prestes a sorrir, mas ela se inscreve perfeitamente na linhagem da tradição filosófica do século XX. Lembremo-nos dos trabalhos de Ernst Bloch e sua teoria da música-utopia que pré-

11 Segundo o testemunho de Jean-Jacques Nattiez, isso explica a dolorosa frustração de Lévi-Strauss de ser incapaz de compor música (1973, pp. 3-9). Certos subtítulos de Lévi-Strauss assemelham-se aos títulos de Erik Satie. 12 NT: 2011, p. 35. Música sem fronteiras programa a sociedade do futuro 13 . Berio é, certamente, muito sensível ao interesse do grande antropólogo pela música e verdadeiramente interpelado pela aproximação possível do pensamento estruturalista na música – essa, proveniente da Segunda Escola de Viena – e a análise estrutural dos mitos. A dupla articulação no discurso mítico e, sobretudo, as oposições binárias reversíveis, tão caras para Lévi-Strauss e a semiologia dos anos 60, em seguida as variações-transcrições no discurso mítico e a leitura-interpretação pelo ouvinte são as grandes ideias do antropólogo que chamam a atenção de Berio em relação com suas próprias pesquisas composicionais.

As oposições binárias ocupam um lugar importante no pensamento de Lévi-Strauss. Segundo o autor, do ponto de vista formal, os mitos indígenas do Brasil que ele estudou são muito diferentes na aparência, mas se reportam todos a uma vida breve, transmitem a mesma mensagem e só se distinguem pelo código empregado. Os códigos são do mesmo tipo: eles repousam sobre oposições entre qualidades sensíveis. O 27 homem possui cinco sentidos e os códigos são cinco. Um desses códigos é prioritário, é o código gustativo 14 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 172). De onde o cru e o cozido. Mais ainda, por extensão, a água e o fogo, a água criativa celeste e a água destrutiva terrestre, o fogo destrutivo celeste e o fogo criador terrestre, o animal e o humano, a madeira dura e a madeira apodrecida, o novo e o corrompido, o apelo ruidoso e o apelo doce, vida e morte, homem e mulher, alto e baixo, moderado e imoderado, etc. O melômano Lévi-Strauss sabe, certamente, que o contraste, desde o classicismo, é o princípio formador preponderante na música. Lembremo-nos, de outro lado, que Berio escreveu várias obras para piano que reenviam aos elementos principais, a terra, o fogo, o ar e a água: Erdenklavier (1969), Feuerklavier (1989), Luftklavier (1985) e Wasserklavier (1965). A oposição água – fogo, diretamente explícita na obra de Lévi-Strauss, será muito importante no Primeiro movimento da Sinfonia .

13 Lembremos das obras de Ernst Bloch, O Espírito da Utopia e O Princípio Esperança , que foram muito lidas nos anos 60 e que verdadeiramente influenciaram as pesquisas em música dessa época. 14 NT: 2011, p. 197.

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Berio é particularmente tocado pelos procedimentos variacionais das transcrições musicais que Lévi-Strauss coloca em evidência no funcionamento do discurso mítico com as diferentes versões do mesmo mito, com suas transformações, simetrias, inversões, permutações, homologias e isomorfismos que reenviam aos procedimentos conhecidos da escrita musical através dos tempos. Os mitos dos índios Bororo do Brasil central indicados por Lévi-Strauss como “mito de referência” M1, “são apenas uma transformação mais ou menos indicadas de outros mitos, sejam da mesma sociedade, sejam de sociedades próximas ou longínquas” 15 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 10). Ele explica “a origem do vento e da chuva”, enquanto que o segundo mito Bororo M2 fala da “origem da água, dos ornamentos e dos ritos fúnebres” 16 (LÉVI-STRAUSS, 1964, pp. 58, 56). “A água da chuva transforma-se portanto, no segundo mito, também em oposição binária da água de proveniência celeste e da água de proveniência terrestre, em água celeste maléfica e água terrestre benéfica” 17 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 28 58).

Nos diferentes mitos estudados por Lévi-Strauss, mas também em música, os elementos comuns têm diferentes modos de realização nos diferentes contextos. Eles podem ser invertidos, completados, dotados de significações opostas. O etnólogo destaca a semelhança das diversas versões, das variações, ou de transcrições no discurso mítico. Os mitos se parecem, às vezes, “ao ponto de se confundirem” 18 (LÉVI- STRAUSS, 1964, p. 84). A ideia das transformações no discurso mítico, segundo Lévi-Strauss, é certamente muito atrativa para o mestre das transcrições Berio: entre os compositores de sua geração, foi ele quem mais transcreveu os outros, mas também a si mesmo.

O etnólogo afirma ainda que, em todos os casos, trata- se do mesmo mito, e que as divergências aparentes entre as versões devem ser tratadas como transformações que se

15 NT: 2011, p. 20. 16 NT: 2011, p. 73, 71. 17 NT: 2011, p. 73. 18 NT: 2011., pp. 101-102. Música sem fronteiras operam no seio de um grupo 19 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 146). O mito bororo de referência seria, ele mesmo, um mito de origem: nome do fogo, mas também da chuva e do vento, que são opostos ao fogo pois o apaga 20 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 147). Porém “todos os mitos possuem seu lugar em um conjunto coerente” 21 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 143). Analisando a Sinfonia , poderíamos dizer que em Berio, trata-se do mesmo mito em versões diferentes: o herói de vida curta cujas ideias sobrevivem a ele. Berio pensará também sua Sinfonia enquanto conjunto coerente de seus mitos, esparsos em vários pontos da memória coletiva musical e literária, mas também na antropologia estrutural de Lévi-Strauss.

A ideia de transcrição de um mesmo mito centralizador define o projeto global da Sinfonia centrada em torno da vida do herói, cuja vida de peripécias é bem curta. Como também aquela de Martin Luther King, os heróis do segundo movimento da Sinfonia . Lévi-Strauss observa que mitos muito diferentes em aparência se dirigem todos à origem da vida breve e 29 transmitem a mesma mensagem. E esse grupo de mitos relativos à vida breve projeta aqui dois aspectos, um prospectivo, e outro retrospectivo: dito de outra forma, no sentido de evitar a morte ou de ressuscitar 22 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 170-171). A palavra é dita e “o fluxo da consciência” (Berio) conduz naturalmente o compositor à Resurrection- Symphony de Mahler e as peripécias do herói através de toda a história da música no Scherzo da Sinfoni a.

Lévi-Strauss considera o discurso mítico com sua pluralidade de níveis enquanto empreitada coletiva de significação. “As transformações míticas requerem dimensões múltiplas, que não podem ser todas exploradas ao mesmo tempo. Qualquer que seja a perspectiva em que nos

19 NT: 2011, p. 166. 20 NT: 2011, p. 167. 21 NT: 2011, p. 163. 22 NT: 2011, p. 194-195. “Retardar a morte”, “ressuscitar” são as palavras de Lévi-Strauss retomadas no quinto movimento da Sinfonia (p. 113) onde o compositor retorna à problemática da imortalidade e da ressurreição.

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coloquemos, algumas transformações passam para o segundo plano, ou se perdem ao longe. São perceptíveis apenas de tempos em tempos confusas e embaralhadas”23 (LÉVI- STRAUSS, 1964, p. 126). É uma ideia similar que guia as diferentes estratégias composicionais de Berio em suas obras sempre múltiplas, plenas de referências culturais que cobrem séculos de evolução cultural. A gestão composicional de uma multiplicidade de matéria e/ou de estratos de enunciação em Berio define a complexidade e a densidade da mensagem, sempre a redescobrir durante a escuta. Pois uma escuta não pode jamais esgotar ou capturar a mensagem em toda sua diversidade.

“É inútil tentar isolar nos mitos os níveis semânticos privilegiados” – afirmava Lévi-Strauss 24 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 347). Berio, ao contrário, dispondo dos privilégios da música com sua dupla articulação, reserva-se o direto de escolher o essencial para ele, de propor nomes e palavras-chave 30 carregadas de sentido para fazer passar uma mensagem precisa e poder guiar a escuta-interpretação de seu ouvinte atentivo. Efetivamente, a música, um pouco como o discurso mítico, é um todo significante: o compositor reenvia também ao todo – à totalidade da obra de matérias múltiplas – a tarefa de significar. Mas no discurso musical politicamente responsável de Berio, existe obrigatoriamente marcos de orientação, pontos de referência, palavras-chave visando integrar o ouvinte atento no momento da escuta, aqui e sempre, em uma empreitada coletiva produtora de sentido.

O primeiro movimento da Sinfonia aparece retrospectivamente como um vislumbre do futuro. Condensado particular do pensamento transformacional dos mitos, este movimento integra trechos de texto que fazem parte dos mitos indígenas analisados por Lévi-Strauss: as palavras “água”, “chuva doce”, “sangue", “tempestade”, etc, tornam-se palavras- chave para o desenvolvimento ulterior na Sinfonia . Assim, a

23 NT: 2011, p. 146. 24 NT: 2011, p. 386. Música sem fronteiras palavra “sangue” 25 , por exemplo, reenvia ao assassinato de Martin Luther King e, portanto, ao segundo movimento. Mas também ao assassinato de Marie e às citações provenientes de Wozzeck de Berg no Scherzo ; ou ainda à “Rosa de Sangue”, o início do quarto movimento, etc.

No primeiro movimento, Berio usa exclusivamente o texto de dois mitos analisados por Lévi-Strauss: o mito Bororo de referência (M1) 26 (LÉVI-STRAUSS, 1964, pp. 43-45) e sobretudo o mito Xerente: a história de Asaré (M124) 27 (LÉVI- STRAUSS, 1964, pp. 206-207). Segundo o antropólogo, o mito de referência é um mito de origem do fogo travestido em mito de origem da água. “Bem que, por sua estrutura social matrilinear e matrilocal os Bororo se opõem aos Xerente patrilineares e patrilocais, observa-se uma notável simetria entre os mitos desses dois grupos, onde o herói é um caçador de pássaros” 28 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 196). Os dois mitos podem ser considerados como simétricos e derivados deles mesmo ou como versões do mesmo mito: tratam 31 simultaneamente da água e do fogo; o herói dos dois mitos afirma-se como trapaceiro, e nos dois casos de vida breve, a morte do herói será seguida pela ressurreição 29 (LÉVI- STRAUSS, 1964, p. 201). “Os Bororo e os Xerente acentuam a ressurreição e não a vida breve” – constata Lévi-Strauss 30 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 201). E esta crença positiva “confirmará”, de algum modo, a afeição de Berio à ideia de imortalidade ou da ressurreição das ideias, aquelas personificadas por Martin Luther King na Sinfonia .

O texto falado por uma voz masculina e facilmente compreensível no primeiro movimento da Sinfonia provém do

25 Essa palavra é também presente, de modo mais raro, nas análises de Lévi-Strauss: Cf. “filhos do sangue”, mito bororo sobre a origem do tabaco (1964, p. 111-112). NT: 2011, p. 131-132. 26 NT: 2011, p. 57-59. 27 NT: 2011, p. 234-235. 28 NT: 2011, p. 223. 29 NT: 2011, p. 229. 30 NT: 2011, p. 229.

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mito Xerete M124, a história de Asaré 31 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 206-207): O compositor retoma exatamente o início da primeira frase e a versão resumida do último parágrafo. “Era uma vez um índio, casado e pai de vários filhos adultos, com exceção do último que se chamava Asaré. Um dia quando esse índio estava caçando, seus irmãos...” – É o começo da declamação, cuja primeira frase não será enunciada até o final, encontraremos seu fim com o motivo de incesto no último quinto movimento da Sinfonia. A declamação interrompida termina, no primeiro movimento, pelas últimas frases da declamação: “Quando o oceano se formou, os irmãos de Asaré vieram rapidamente se banhar. E ainda hoje, no final da estação das chuvas /.../, vemo-los aparecer no céu limpo e renovado, sob a aparência das 7 estrelas da Plêiade” 32 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 207). Depois desse primeiro atalho do mito, a voz masculina falada anuncia: “Esse mito nos deterá por muito tempo”, uma frase também retomada da obra de Lévi-Strauss 33 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 207), se referindo ao mesmo mito 32 Xerente da história de Asaré, que restitui fielmente, ao preço de certo número de transformações que afetam tanto a mensagem (o conteúdo do mito particular) quanto o código (o sistema das funções), o mito Bororo da referência do caçador de pássaros. Efetivamente, todas as proliferações semânticas desenvolvidas na sequência da Sinfonia explicitam elementos do mesmo universo mítico ou deles derivados por associações relativamente livres.

No primeiro movimento, Berio reduz enormemente o texto falado e sempre utiliza as repetições imediatas de certos fragmentos: “havia”, “vários”, “um dia”, “os irmãos”, “as chuvas”, “os sete”, “a Plêiade”. O compositor utiliza também o material vocal indiferenciado, cantado em boca chiusa se

31 NT: 2011, p. 234-235. Cf. pp. 1-2 da Sinfonia . 32 NT: 2011, p. 235. Cf. pp. 4-5 da Sinfonia . 33 NT: 2011, p. 235: “Dedicaremos bastante tempo a esse mito ” (Berio, Sinfonia , p. 6.) Encontramos quase a mesma frase “ Esse mito merece nossa atenção por várias razões ”, à p. 118 [NT: 2011, p. 138] da obra O Cru e o Cozido (1964) , onde se destaca a questão do mito warrau sobre a origem das estrelas e que é estreitamente aparentada a outros mitos.

Música sem fronteiras integrando ao material instrumental. As partes vocais cantadas usam exclusivamente o material fônico proveniente das palavras-chave “água”, “fogo”, “sangue”, “chuva”, “vida”, ou as mesmas palavras-chave, assim como as fórmulas de oposição binárias “doce chuva”, “doce apelo”, “apelo ruidoso” (p.9), “água celeste”, “água terrestre”, “doce chuva da estação seca”, “chuva tempestiva da estação das chuvas”, “água terrestre”, “água celeste” (p. 12-13), “madeira podre”, “madeira dura” (p. 13-14), “um filho privado da mãe”, “um filho privado de alimentação”, “heróis que matam”, “heróis que são mortos”, “herói envergonhado”, “herói furioso” (p.14). São os fragmentos textuais que reenviam aos mitos estudados por Lévi-Strauss 34 e constituem uma transcrição musical sintética – resumida no que se refere à declamação do texto, mas poetizada, musicalizada, transcrita em música vocal-instrumental – do mito. Esse condensado de mitos de Lévi-Strauss ou essa síntese do modo de pensar do etnólogo é também, simultaneamente e de acordo com a estratégia da grande tradição sinfônica ocidental, “a Página na qual se começa o Livro”, de acordo com 33 a célebre fórmula de Mallarmé 35 (1945): o primeiro movimento comporta o enunciado dos elementos essenciais, que serão desenvolvidos na sequência e em outros movimentos do ciclo. Berio retomará esta declamação do mito Xerente no movimento final da Sinfonia e provará a seu modo, sua imaginação transbordante ao longo de sua obra nas peripécias de seus heróis.

A forma musical do primeiro movimento é constituída de duas partes direcionais, dois crescendi formais efetuados com todos os meios de densificação da textura. A primeira parte desse movimento ( até J, p. 1-16), ancorada em um

34 Encontramos o tema das chamadas no O Cru e o Cozido (1964), pp. 161, 166 [NT : 2011, p. 184,189]; o tema da madeira dura – madeira podre na p. 15 [NT : 2011, p. 35], os heróis que matam e heróis que são mortos na p. 215 [NT : 2011, p. 244], a chuva tempestiva e a chuva calma e doce na p. 219[NT : 2011, p. 248], a água celeste e a água terrestre na pp. 195-196, 217[NT : 2011, pp. 228-229, 245], etc. 35 Lembremos que no decorrer dos anos 50-60, a vanguarda musical europeia escontrava-se muito interessada e influenciada pelas pesquisas malarmaicas e seu projeto do Livre .

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complexo quase ininterrupto de sons estáveis, iniciando sobre a ressonância de 3 tam-tams (compasso 1), prefigura a textura das notas longas na variação tímbrica dos movimentos líricos do ciclo, mas também as intervenções pontuais onde a textura densa dos acordes repetidos, retomam também a sequência.

A segunda parte desse movimento (J-L, pp. 16-22) desenvolve, amplificando progressivamente com todos os meios instrumentais, uma textura sonora que lembra a escritura quase pontilhista da geração pós-serial. O piano, a harpa, o órgão elétrico, o cravo elétrico, o vibrafone e a marimba têm no início um papel preponderante. A densificação orquestral progressiva trás a inserção da escritura vocal no fim do movimento (pp. 21-22): é uma lembrança condensada da textura vocal do início da primeira parte – com os mesmos acordes e do material fônico que conduz aqui à fórmula textual- chave “que matam”-“que são mortos” – que efetua a transição nas variações tímbricas do segundo movimento O King. 34 O quinto movimento da Sinfonia retoma à distância o discurso mítico interrompido: as referências ao mito de Asaré e a estratégia composicional do primeiro movimento, diretamente inspirado pela interpretação dos mitos por Lévi- Strauss, reenviando – segunda a tradição do grande sinfonismo ocidental – a todos os movimentos anteriores. A escrita densa desse último movimento pode ser considerada como uma encenação em música-teatro ou como o processo aberto de uma prova de parentesco e/ou da derivação dos mitos segundo a teoria lévi-straussiana. A mistura de textos provenientes de diferentes mitos coloca em evidência a flexibilidade nômade no interior de um mesmo campo mítico e , simultaneamente, dos aspectos essenciais da teoria da Lévi-Strauss.

O quinto movimento se define como uma verdadeira análise da Sinfonia , conduzida com a linguagem da própria obra. A função conclusiva desse movimento enquanto comentário ou ainda síntese final, define a presença no texto de referências a todos os movimentos precedentes e à condensação máxima dos momentos de referências textuais. As “peripécias” anteriores são aqui “colocadas em texto” e em perspectiva concreta: o tema central do mito brasileiro, o do Música sem fronteiras incesto praticamente ausente no primeiro movimento, é apresentado de modo completo ao fim da declamação: a frase interrompida da história da Asaré no primeiro movimento (p. 2) é enunciada inteiramente pela primeira vez no Final (p. 117). O compositor retoma as peripécias entrelaçadas da viagem do herói que reenviam ao primeiro movimento segundo as declamações míticas (os diferentes textos falados, constantemente superpostos, correspondem aos diferentes momentos da mesma declamação ou a declamações diferentes – pp. 117-120). Mas no Final, encontramos também o texto e o universo lírico do quarto movimento “Rosa de sangue, apelo ruidoso, apelo doce” (pp. 105-106), assim como os fragmentos do texto em inglês que se refere à Beckett no Scherzo (pp. 121- 123). O compositor acrescenta ainda um nível ausente até o momento, o teórico-observador 36 que enuncia os fragmentos de textos também retirados da obra de Lévi-Strauss: “Parcial ou provisório, este último comentário não convence, pois deixa de lado importantes aspectos de nossos temas”)(V movimento, p. 110); “mas os temas são os que afirmam a prioridade da 35 descontinuidade universal...”(pp. 111-112,115); “Em outros lugares, os temas invertem o valor de seus termos, os quais procuram retardar a morte ou de assegurar a ressurreição” (p. 113) 37 (LÉVI-STRAUSS, 1964, pp.155, 330, 168, 171). As fórmulas “peripécia”, “herói morto” nas partes vocais no final tornam-se emblemas da vida, sinônimos da ressurreição. Realizado pelo cenário literário e espaço intertextual denso de sua sinfonia múltipla, Berio dá livre curso à sua imaginação no tratamento da voz e da orquestra. As partes vocais utilizam todo o conjunto de possibilidades: a rica melodia solista do soprano para “Rosa de sangue” no início ou “um filho privado de sua mãe”, o coral relativamente estático de todas as vozes em vogais ou sobre texto, os clusters de material ruidoso e/ou percussivos se integram perfeitamente às partes da orquestra, as superposições de enunciações verbais, as intervenções vocais de fórmulas melódicas em sobreposições de vozes

36 Cuja função e a postura lembram aquelas dos recitativos de Laborintus II com um texto retirado, em grande parte, de Il Convivio de Dante. 37 NT : 2011, pp. 173, 350, 188, 192.

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faladas, as texturas em figuras rítmicas rápidas e materiais fônicos sem texto que juntam suas cores às partes instrumentais. Obviamente, a compreensão de todo o texto não é a prioridade de Berio, mas ele está longe de ser desinteressado em relação à palavra: as palavras-chave, os momentos carregados de mensagens agem através da música, mas também através da significação das palavras 38 .

Tipo de síntese dos desenvolvimentos precedentes, o quinto movimento da Sinfonia é a condensação final de todas as referências semânticas importantes, dos materiais sonoros e procedimentos formais fundamentais para a escritura de Berio nessa obra. Este movimento que desenvolve no início o material sonoro do quarto movimento “Rosa de sangue” (p. 105-106) e, na sequência um fragmento do segundo movimento O King em um tecido muito mais complexo (cf. p. 112-113, sopranos, violinos, comp. 44-55) efetua também a fusão dos fragmentos ilógicos, reproduzindo de certo modo à 36 distância, o princípio citacional do Scherzo: encontramos as citações do Violinkonzert de Hindemith, de Urlicht da Segunda Sinfonia de Mahler, do Concerto para violino de Berg, de La Valse e de Daphnis et Chloé de Ravel, do Scherzo da Segunda Sinfonia da Mahler, de Agon de Stravinsky e La Mer de Debussy 39 .

A função conclusiva desse movimento determina, de acordo com a estética da obra-objeto, a síntese resultante de todos os materiais e procedimentos composicionais fundamentais, o resultado esperado de uma obra teleológica múltipla e coerente.

Segundo J.-J. Nattiez, Lévi-Strauss não via a verdadeira relação entre sua obra e a música de Berio: “Se a Sinfonia de

38 Sinfonia conheceu execuções e mesmo registros nos quais o maestro consideravaa os textos falados como preenchimentos fônicos sem pertinência semântica e, relegados completamente ao último plano, são muito pouco audíveis e praticamente incompreensíveis. Não é, em absoluto, a ótica de Berio. 39 Para os detalhes sobre as citações no último movimento da Sinfonia , cf. a obra de ALTMANN, P. Sinfonia von L. Berio . Música sem fronteiras

Berio usa passagens do O Cru e o Cozido , nosso autor (Lévi- Strauss, IS) tem a impressão que seu texto foi escolhido por acaso, que não há parte dele na obra” (1973, p. 6). Berio certamente não tinha certamente a intenção de colocar em música os mitos analisados por Lévi-Strauss ou uma transposição musical de sua teoria – isso teria sido uma ideia absurda. Seu projeto é, visivelmente, muito mais ambicioso: criar um mundo complexo e carregado de sentido – uma “sinfonia”, uma representação sintética de sua época – com os meios da obra múltipla, no contexto histórico preciso, levando em conta toda a herança cultural, musical, literária, e também das pesquisas de vanguarda em ciências humanas de seu tempo. As estratégias composicionais de Sinfonia são marcadas pelas experiências de Dante, Joyce, Beckett, pelas colaborações com Sanguinetti, Eco. Berio ignora as fronteiras, mas certamente não pegou por acaso as palavras provenientes dos mitos analisados por Lévi-Strauss: ele utiliza os fragmentos carregados de sentido e centrados em torno da vida breve em peripécias do herói e em torno da ideia da imortalidade com 37 seu impacto no contexto histórico contemporâneo. O compositor certamente não compartilhava a atitude bem negativa de Lévi-Strauss em relação à música serial e à música concreta. “Eu estava muito impressionado pelo estudo dos mitos no O Cru e o Cozido de Lévi-Strauss e seu modo de escrever – dizia ele, - ao contrário, seus julgamentos no que se refere à música ressaltam uma ausência de perspectiva e de um estreitamento de visão 40 ”(STOIANOVA, 1985, p. 136).

A oposição som-ruído, muito pertinente para o defensor das oposições binárias Lévi-Strauss, não é relevante, pelo menos desde Varèse e nos anos 20-30 do século XX, para nenhum músico evoluído. Lévi-Strauss, amante apaixonado da música – aquela de Wagner, Debussy, Chabrier – que foi certamente muito importante para a elaboração de sua

40 E ele continua brincando: “Isso me faz pensar no homem que sempre consome a música: aqueles, por exemplo, para os quais é necessário haver um soar de violinos quando ele faz amor. E ele, eu creio, escuta música enquanto datilografa na máquina de escrever”. (Entrevista de L. Berio a I. Stoianova em Roma na data de 31/01/1978).

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antropologia estrutural – não podia certamente compreender e apreciar suficientemente a música de Berio que efetuava em sua Sinfonia, uma síntese única da grande tradição sinfônica e das pesquisas da modernidade, ignorando intencionalmente as fronteiras. E ele fazia brilhantemente a demonstração – no contexto vocal-instrumental e musical-literário de sua Sinfonia – dessas qualidades intrínsecas da arte dos sons que determinaram o interesse de Lévi-Strauss pela música ajudando a construir, em parte inconscientemente, seu modelo de análise estrutural. E também se inspirando na pesquisa de Lévi-Strauss que Berio tornou-se o compositor-contraventor dos sentidos, um dos músicos de vanguarda mais atraído pela densidade do sentido, pela importância da mensagem e pela claridade das tomadas de posições ideológicas.

2. Música e filosofia: Wolfgang Rihm 41 e Friedrich 38 Nietzsche

A “fantasia operística”/”Opernphantasie” Dionysos – “cenas e ditirambos a partir de textos de Friedrich Nietzsche” para solistas, coro e orquestra 42 - do compositor alemão Wolfgang Rihm (1953) é um exemplo do tipo de interação do gênero carregado de história da ópera e do pensamento filosófico de Nietzsche, ou do apagamento das fronteiras entre

41 W, Rihm nasceu em 1952 em Karlsruhe onde ainda mora. Estudou composição com K. Stockhausen, Kl. Huber, W. Fortner e H. Searle. Autor extremamente prolífico, W. Rihm compôs dezenas de obras instrumentais e vocais-instrumentais, para conjuntos de câmara, orquestra sinfônica e óperas. Desde 1985 é professor de composição na Escola Superior de Música de Karlsruhe. Suas obras são publicadas pela Universal Edition em Viena. 42 RIHM, W. Dionysos , Szenen und Dithyramben nach Texten von Friedrich Nietzsche, Libretto von Komponisten, Wien: Universal Edition, 2009-2010. Agradecemos a Universal Edition por sua ajuda nesse trabalho. Primeira apresentação mundial em 27/07/2010 no Festival de Salzbourg, sob a regência de Ingo Metzmacher, com a direção de Pierre Audi e cenário de Jonathan Meese. Cf . RIHM, W. Dionysos , eine Opernfantasie. DVD. Salzburger Festspiele / Ich bin dein Labyrinth , filme de Bettina Ehrhardt, Unitel Classica, 2013. Música sem fronteiras o pensamento composicional e pensamento filosófico. Esta obra capital no enorme catálogo de Rihm está na sequência de suas duas óperas de câmera Faust und Yorick (1976), a partir do texto de J. Tardieu, e Jacob Lenz (1977-78), a partir da novela homônima de G. Büchner, ao “poema dançado” Oedipus (1986-87) com textos de Sófocles, Hölderlin, Nietzsche e H. Müller, e Die Eroberung von Mexiko / A Conquista do México (1987-91), com textos de A. Artaud, O. Paz e cantos mexicanos antigos. O compositor pratica, portanto, desde sempre, o apagamento das fronteiras e interações dos gêneros literários e musicais, compondo ele mesmo na maior parte dos casos, os textos destinados à cena.

Dionysos não é uma ópera no sentido tradicional do termo, pois a obra renuncia completamente a narrativa e toda evolução direcional de seus acontecimentos cênicos. É uma não-narrativa aberta, uma fantasia plural de música-teatro com várias dimensões, constituídas de “cenas e ditirambos”. 39 As cenas de Dionysos correspondem aos diferentes lugares de ação cênica e aos componentes delimitados na dramaturgia do espetáculo músico-teatral estruturado em “quatro planos” ou “lugares” 43 : Um mar, Na Montanha, Espaços Interiores 1-3, Um lugar . Tratam-se de cenas musicais abertas que reenviam aos momentos importantes da vida de Nietzsche, mas antes de tudo às ideias universais de sua filosofia: as relações homem-mulher, masculino-feminino, apolíneo- dionisíaco, divino-humano, indivíduo-massa, vida-morte, etc. De onde a possibilidade de impacto sobre todo o público interessado no teatro musical contemporâneo.

Os ditirambos são os momentos de reflexão coral com suporte orquestral denso. Na Grécia antiga, o ditirambo era um gênero da prática coral dos hinos que glorificavam o deus Dionysos. Os poemas de Nietzsche intitulados Dionysos Ditiramben /Ditirambos à Dionysos têm pouco a ver com o gênero antigo da poesia hínica e referem-se muito pouco ao deus grego. Apenas o poema Die Klage der Ariadne / A

43 Na Idade Média chamava-se “mansion” o lugar do teatro no qual se passava uma cena.

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lamentação de Ariadne e alguns elementos temáticos – a ideia do labirinto e a ideia de laceração (que Rihm religara aos personagens de Apolo e Marsyas) aludem aos mitos ligados à Dionysos. Os Ditiramben /Ditirambos na obra de Rihm são comentários corais cuja função é comparável àquelas dos poemas nos escritos filosóficos de Nietzsche (que também praticava o apagamento das fronteiras dos gêneros em suas obras).

A estratégia composicional em Dionysos se situa na linhagem de Abgesangzenen (1979-1981) de Rihm, na qual já se observa a anulação das fronteiras dos gêneros estabelecidos – um pouco no caminho deixado por G. Mahler, mas também de Nietzsche, e a interação sinfônica de peças orquestrais e peças cantadas (também nos textos de Nietzsche) em um tipo de gênero misto onde interagem o Lied sinfônico, a cena de ópera e a peça para orquestra sinfônica (RIHM, 1997, p. 316-319).

40 O primeiro ato, bastante longo, constituído de dois quadros – Um mar – e o curto quarto e último ato – Um lugar – repousam sobre os desenvolvimentos dramatúrgicos explícitos, mas bem concisos, que se organizam em quadros ou em momentos musicais muito estáticos, fixos, mas muito atuantes que reenviam a importantes momentos da biografia de Nietzsche:

• No primeiro ato, Ariadne implora seu salvador ou seu deus-carrasco Dionysos, com alusão à “luta” de Nietzsche por Cosima (lembremos que em suas cartas tardias à Cosima Wagner, a qual Nietzsche estava apaixonado e a chamava de “Ariadne” e assinava “Dionysos”);

• O último ato representa o célebre episódio da vida de Nietzsche, pouco antes de seu colapso psíquico trágico: em Torino, em 1889, vendo um cocheiro que batia cruelmente em seu cavalo, Nietzsche, muito emocionado, se ajoelha em frente ao animal, envolve carinhosamente seu pescoço com seus braços e chora copiosamente, tomado por uma compaixão indizível. Música sem fronteiras

• O segundo ato comporta duas cenas – Na montanha – representa a relação complementar e atormentada entre N. – Nietzsche (mas também Niemand/ninguém ou qualquer um) e Ein Gast / Um Hóspede, seu duplo bem mais coroado de sucesso onde N. falhou.

• O terceiro ato é o mais denso, o mais movimentado, com um verdadeiro desenvolvimento teatral de acontecimentos nas três partes que o constituem: a primeira, intitulada Innenraum 1 / Espaço Interior 1 – apresenta o encontro de dois personagens – N. e Um Hóspede – errantes entre os homens, os dois à procura de um amor.

• A segunda parte – Innenraum 2 / Espaço Interior 2 – se desenvolve em um bordel: dois homens – N. e Um Hóspede – se confrontam na procura de suas próprias verdades. Aqui escutamos o Lied de Wanderer /o Lied do Viajante , do Errante , aquele que erra através do 41 mundo sem nunca encontrar a paz. N. acaba por ser amarrado por Ariadne, enquanto que Um Hóspede é mordido pelas mulheres que se chamam Esmeralda; e a terceira parte Innenraum 3/ Espaço Interior 3 , apresenta N. que se fecha cada vez mais em sua vida interior, até que o deus Apolo retira a sua pele, como ele havia feito outra vez, segundo a lenda, com seu concorrente, o flautista Marsyas, bem mais virtuoso que ele em sua arte dos sons. Escoriado, esfolado vivo, N. sabe que é vítima do ciúmes e se obstina a procurar o amor.

Apenas o primeiro e o último ato reenviam de modo explícito aos elementos conhecidos da biografia de Nietzsche. Em verdade, todos os atos – compreendendo o Segundo que expõe os dois personagens principais N. e Ein Gast, e claro, o Terceiro – são, antes de tudo, colocados em evidência, sonora e cênica, os espaços interiores do universo de Nietzsche onde cada qual pode se encontrar. Parece evidente que o compositor atribui muito mais importância, não aos eventos cênicos exteriores, mas aos estados emocionais e aos movimentos dos

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afetos nos espaços interiores que se tornam teatro musical expressivo 44 .

A fantasia operística de Rihm é, na verdade, uma transcrição músico-cênica densa da experiência pessoal do compositor com as obras filosóficas e poéticas de Nietzsche, assim como também com a personalidade excepcional do filósofo através de momentos-chave de sua biografia45 . Em seu Dionysos , Rihm compõe seu próprio caminho com Nietzsche, suas próprias viagens nos espaços interiores despertos quando em contato com o universo do filósofo. O desenvolvimento cênico de Rihm ignora todo o argumento operístico convencional, todo desenvolvimento linear em proveito de situações sonhadas que se submetem unicamente à lógica dramatúrgica relativamente livre na “fantasia operística” 46 . O não-argumento ou o anti-argumento é constituído de diferentes “ espaços interiores” que ignoram a teleologia típica da ópera. Esses espaços emergem enquanto campos de 42 associações livres e pluridimensionais submetidos à única lógica do sonho, ou de outro modo, segundo a lógica da errância de Wanderer/do Viajante sem objetivo preciso 47 , que evolui em aparições acústicas cada vez mais expressivas e

44 Lembremos que o primeiro quarteto de cordas de W. Rihm intitulou-se “Im Innersten” / “Au plus profond, intérieur, intime” (1976). 45 Nietzsche é um dos autores preferidos de Rihm. Várias de suas obras tomaram como base os textos de Nietzsche, entre as quais sua Terceira sinfonia (1976) para soprano, barítono, coro misto e grande orquestra, a Segunda Abgesangsszene (1979) para voz e orquestra, a Quarta Abgesangsszene (1979-80) para mezzo-soprano e orquestra, a Quinta Abgesangsszene (1979-83) para mezzo-soprano, barítono e orquestra, Klangbeschreibung 2 (1986-87) para 4 vozes, 5 instrumentos de sopro e seis percussões. 46 A noção de fantasia na música instrumental do classicismo e do romantismo sempre se direciona a uma liberdade formal. Lembremos as Fantasias para piano de Mozart. A noção de “fantasia operística” de Rihm é um neologismo que procura definir a especificidade da dramaturgia musical e cênica dessa obra de “música-teatro”. 47 A tradução para o francês para “excursionista”, “viajante” ou “turista” é certamente imprecisa e muito pouco poética, e em todo caso, estrangeira ao espírito do romantismo. Música sem fronteiras cativantes. Trata-se de uma avalanche mais ou menos livre ou ocasional de ideias musicais, de momentos sonoros e cênicos, inspirados nos poemas de Dionysos-Dithyramben de Nietzsche, escritos um pouco antes de seu colapso psíquico. Durante mais de trinta anos, Rihm viveu com o projeto de Dionysos, a mitologia grega e a obra filosófica e poética de Nietzsche. É o próprio compositor que é “o pensador em cena” (SLOTERDIJK , 1986), em meio de suas vagabundagens no universo do filósofo. O processo composicional – Rihm escreveu simultaneamente a música, o texto e os quadros cênicos - é uma invenção contínua da linguagem musical, que ignora as fronteiras convencionais. Não se trata, portanto, de uma música com texto, nem de música que acompanha a dramaturgia cênica, mas de uma invenção permanente da linguagem múltipla e polivalente se desenvolvendo no espaço e no tempo, apelando para todo tipo de expressão da atividade psíquica – em palavras, sons-ruídos, imagens, gestos, ações, etc. – tornando-se escritura musical múltipla dos “espaços interiores”. 43

Os personagens da obra de Rihm têm pouco a ver com os personagens habituais da ópera. Se as cenas ou os quadros são “os recipientes” (Rihm) dos desenvolvimentos músico- cênico múltiplos, os personagens são os espaços flexíveis, moventes, variáveis, com papéis plurais em transformação permanente. As fronteiras entre os personagens tornam-se permeáveis e reconhecemos facilmente os papéis principais que guardam suas integridades em todas as circunstâncias.

N. é, claro, Nietzsche, mas também Dionysos, o dionisíaco em Nietzsche e em geral, a filosofia dionisíaca, o artista, o errante, Marsyas, A Pele, Nescitur, Nobody e Everybody, ou seja, também vocês e eu.

Ein Gast é o duplo de N., o apolíneo nele, depois o próprio Apolo, mas também o homem que maltrata o cavalo.

N. e Ein Gast são, de fato, dois aspectos, opostos e ao mesmo tempo complementares do personagem principal N. Trata-se de uma iluminação musical-cênica dupla – ”Doppel-

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Belichtung” (RIHM, 2010, p. 39) – do papel que se encontra teatralizado, multiplicado, espacializado, colocado em música- teatro. O monólogo interno – ou seja, o movimento do pensamento, o caminho de um processo mental que, mesmo interiorizado, é sempre um affaire de corps , como Nietzsche sempre procurou de provar em sua filosofia – está apresentado sob a forma de diálogo e, assim, exteriorizado, tornado audível e visível, colocado em cena nas ações dos personagens.

Ariadne – a bem amada abandonada – é o amor impossível, inatingível por N., eterno feminino, a mulher, a mãe. Ela aparece também em Innenraum 2 , no bordel do Terceiro ato, mas também no final da fantasia operística, em um quadro cênico de uma Pietá bem cristã na qual N. (ou A Pele) cai nos braços, depois dos braços de Ariadne – Maria, sempre à procura do amor.

As ninfas da primeira cena se transformam em 44 golfinhos, depois em personagens que se chamam Esmeralda, depois em mênades – mulheres míticas no Terceiro ato. Compõem um tipo de personagens fluido, fugidio, variável e inatingível de Mulher, da feminilidade, do feminino que procura desesperadamente N. e Ein Gast.

Os personagens emblemáticos perfeitamente despersonalizados de Rihm agem em espaços proteiformes 48 ou corpos de ressonância para conteúdos semânticos múltiplos. O redobramento e a multiplicação dos personagens criam figuras espaciais, variáveis e pluridimensionais que são mais adaptadas ao fluxo associativo do pensamento ou do sonho, do que os papéis operísticos individualizados da ópera tradicional com seu desenvolvimento teleológico. É bem conhecido que na euforia de seus problemas psíquicos, Nietzsche mudava frequentemente suas máscaras, assim como seu modelo Dionysos: ele se via como Cesar, Shakespeare, o Rei da Itália ou Richard Wagner. Nos escritos filosóficos de Nietzsche, as metamorfoses, as mutações, os desenvolvimentos não são raros: lembremo-nos de Assim falava Zaratustra onde

48 Proteus é o deus do mar que herdou de seu pai Poseidon, o dom da profecia e era capaz de mudar sua forma à vontade. Música sem fronteiras observamos a metamorfose do espírito enquanto camelo, leão e criança. As transformações ou a fluidez do sentido praticado por Nietzsche é um dos aspectos mais atraentes para Rihm. Cada cena e cada faceta de suas figuras cênicas pertencem simultaneamente a vários níveis de enunciação musical-cênica múltipla em Dionysos , este “drama imaginário em torno de N. que é um homem, que é Dionysos, que é o Crucificado, que é Marsyas, que é o Artista, que é...” – como explica o compositor.

Enquanto concentrado aberto de diversos conteúdos semânticos, cada personagem ou bem mais figura cênica de Rihm é composto segundo princípios fundamentais de artes fundadas sobre a gestão do tempo: “o princípio da ação múltipla e concentrada” e o princípio da “interação das funções” 49 : segundo o primeiro, um objetivo estético é esperado com a ajuda de vários meios diferentes; de acordo com o segundo, um meio é usado para servir vários objetivos. Esses dois princípios que gerem a constituição dos personagens contribuem à construção de uma obra unificada e 45 coerente, apesar da diversidade de seus componentes.

Segundo o primeiro princípio, vários personagens, aspectos, detalhes, facetas respondem ao mesmo objetivo unificador: assim N., Ein Gast, der Gott-Henker/ o Deus- carrasco, Dionysos, Marsyas, a Pele estão todos presentes, reunidos na figura, particularmente importante para Rihm, de Wanderer / o Errante, que tem a vantagem de ser, para todo espectador, um personagem mais familiar do que o filósofo Nietzsche.

De acordo com o segundo princípio, os meios expressivos específicos são utilizados para responder aos diferentes objetivos artísticos: assim, a vocalidade feminina, as vozes das mulheres e, mais precisamente, os sopranos agudos

49 A teoria estética que nos anos 40-70 do século XX desenvolveu esses princípios essenciais em musicologia teórica, sobre a base da tradição do sinfonismo ocidental e na sequência da teoria cinematográfica de S. Eisenstein, pertence ao musicólogo soviético Lev A. Mazel. Cf. MAZEL, 1982, p. 3-54.

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caracterizam Ariadne, as ninfas, os golfinhos, as Esmeralda, as mães arcaicas.

Na interação desses dois princípios, a obra se constrói como “organismo vivo” (2010, p. 24), concentrado pleno de energia corporal, intelectual e emocional. A descoberta artística de Dionysos de Rihm consiste, precisamente, nessa interação particularmente eficaz dessas duas linhas de força de sua estratégia composicional que atribui à obra – digamos, segundo os princípios de Nietzsche – mais energia, mais movimento, mais vida. Elas regem a constituição de todas as cenas, assim como a elaboração de todos os personagens no fluxo relativamente livre de uma “tematização da imaginação” (RIHM, 2001, p. 53) que torna-se música-teatro.

Para suas obras “Musick-Theater” / “Música-Teatro” 50 , Rihm compõe sempre “uma música constituída de palavras, de ação, de sons, de imagens, de melodias, de ruídos, de luzes. 46 Tudo o que aparece nesse desenvolvimento é da música” (RIHM, 2002, p. 194). O impulso inicial que vêm com frequência de um ou vários textos é particularmente importante. Em Dionysos são utilizados fragmentos provenientes dos Dionysos Dithyramben (1888-89) Ditirambos de Nietzsche (2010, p. 58-87), que ele recompõe e ordena livremente: “Minha base são os Dionysos Dithyramben de Nietzsche no interior do qual eu li, por assim dizer, um texto – a partir do qual eu subtrai um texto. Exprimo isso do seguinte modo: o libreto é meu, mas cada palavra é de Nietzsche” 51 . “Cada palavra cantada é de Nietzsche, mas apesar disso, o texto é meu” (RIHM, 2010, p. 20).

50 A noção “música-teatro” de Rihm não é o mesmo que “teatro musical”, muito pouco precisa no contexto das pesquisas composicionais depois dos anos 60 dno século XX, que conheceram o teatro instrumental, o happening , os espetáculos multimídias de todos os gêneros, a ópera. A noção de Rihm insiste sobre a multiplicidade dos materiais utilizados, livres de toda narração direcional e tornando-se todas em música-teatro. 51 “Ich will nichts erklären”, entrevista de W. Rohm com W. Schreiber e B. Ehrhardt sobre a criação de Dionysos em Salzburg, publicada no Süddeutsche Zeitung , Munich em 27/07/2010. Música sem fronteiras

Os nove poemas que Nietzsche preparou para a publicação em 1888, mas que não puderam ser publicados por ele por conta do súbito agravamento de sua doença mental, são constituídos de textos-fragmentos: alguns, já publicados em Also sprach Zarahtustra / Assim falou Zaratustra (1883-85), são transplantados aqui. Novos textos se ajuntam. Sabe-se que, desde a sua juventude, Nietzsche escrevia poemas: a arte poética é um aspecto essencial de sua produção literária e uma parte constitutiva de seus escritos filosóficos. Na A Gaia Ciência, Além do Bem e o Mal, Nietzsche contra Wagner , o filósofo incluiu poemas. Sua obra mais conhecida, Assim falava Zaratustra abole, de modo explícito, as fronteiras entre a linguagem filosófica e a linguagem poética. A estreita ligação e a fusão orgânica da poesia e filosofia em Nietzsche exercem uma influência insuspeitável sobre o modo de pensar do compositor Rihm. Um exemplo convincente neste sentido é a integração orgânica do Lied para voz e piano Der Wanderer , escrito por Rihm sobre um poema homônimo de Nietzsche alguns anos antes do contexto sinfônico e músico-teatral de Dionysos 47 (Terceiro quadro, Innenraum 2 ).52

“Seu texto ( Dionysos Dithyramben – IS) é uma compilação e eu tomo-o como uma base, um fundo” (RIHM, 2010, p. 20-21) 53 . Efetivamente, podemos compreender a fantasia operística Dionysos enquanto reescritura múltipla, enquanto Übermalung 54 musical e cênica de fragmentos poéticos de Nietzsche. Os Ditirambos à Dionyso do filósofo são considerados por Rihm como “perfeitamente apropriados para a música-teatro” (RIHM, 2010, p. 21), pois o texto fragmentário

52 RIHM, W. Dionysos. Partitur. UE Wien. 35190B, 3. Und 4. Bild, p. 234- 241. Lembremos que o mesmo poema - Der Wanderer – da época de Zaratustra de Nietzsche, é utilizado na última peça do ciclo de Schœnberg Acht Lieder für Gesang und Klavier Op. 6 / Huit Lieder pour chant et piano Op. 6 (1903-05). Em 2001 Rihm escreveu seus Sechs Gedichte von Fr. Nietzschee para barítono e piano: Der Einsamste, Der Herbst, Der Wanderer (I), Der Wanderer (II), “Der Wanderer und sein Schatten, Venedig . 53 “Grundierung” significa uma primeira demão em pintura. 54 Übermalung é a pintura sobre outra pintura. Lembremos que o mestre da Übermalung, o pintor austríaco Arnulf Rainer é um dos artistas preferidos de W. Rihm.

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é, em essência, aberto e convidativo ao jogo com seus excertos. A interação dos fragmentos do texto permite uma densificação ou, ao contrário, uma rarefação de níveis de sentido que se completam mutuamente (RIHM, 2010, p. 21) 55 . E esse jogo que fica aberto, mas jamais deixado ao acaso, chama a música, torna necessária sua intervenção com sua capacidade específica de produzir sentido.

O compositor utiliza relativamente pouco do texto, em especial os fragmentos particularmente densos e carregados de sentido, como “Mich willst Du?/ “É a mim que você quer?” ou “Ich Bin dein Labyrinth”/”Eu sou seu labirinto” no primeiro ato; ou ainda “Gott als Schaff” /”Deus como cordeiro”, “lachen”/rir”, “Ich bin deine Wahrheit... Wahrheit... Wahrheit”/” eu sou sua verdade...verdade...verdade” no Quarto ato. Ele repete esses fragmentos: imediatamente – para comentar ou criar um tipo de corpo de ressonância em expansão no tempo amplificando uma situação ou uma emoção: ou à distância no 48 tempo, em contextos músico-cênicos diferentes para realizar um espaço intertextual, para amplificar a direcionalidade no desenvolvimento musical-cênico, de crescendo emocional a forte impacto e contribuir à organização da obra enquanto totalidade coerente.

O compositor pode também renunciar completamente à palavra. A música vocal sem palavra é sempre utilizada enquanto comentário musical ou desenvolvimento espacial da significação linguística: lembremo-nos o centro não-verbal dos três golfinhos (três vozes femininas) endereçadas à Ariadne no primeiro ato. No terceiro ato ( Innenraum 3 ), onde N. é maltratado por Apolo, ouvimos o canto sem palavras do coração das ninfas ou das mênades 56 . Enfim, nos seis últimos compassos da fantasia operística, ouvimos novamente vocalizações não verbais dos dois sopranos agudos como reminiscência longínqua do feminino.

55 “Evidentemente, eu brinco com os textos que, como dizemos, se completam maravilhosamente, como se eu tivesse pensado sobre isso”. 56 W. Rihm – Dionysos , partitura, p. 332-337. Música sem fronteiras

A figura emblemática dissimulada atrás de N. e seus duplos é, sem dúvida, Wanderer/O Errante. Não foi por acaso que Rihm retoma, no contexto de Dionysos , seu Lied escrito anteriormente Der Wanderer sobre o poema homônimo de Nietzsche na época de Zaratustra (1833-1885). Não foi por acaso que em 1997, ele escreveu também um texto com o título programático “Eine Wanderer-Phantasie” 57 . No mesmo ano, Rihm transcreveu para voz e orquestra o conhecido Lied de Schubert Der Wandere (op. 4/1, D489, 1816) sobre o texto de Georg Philipp Schmidt Von Lübeck. O viajante errante é para ele a figura da viagem interna, a “divagação interior” (RIHM, 2002, p. 87), do comportamento do pensador/compositor sobre a cena de sua música-teatro. A fantasia operística é constituída de cenas e de ditirambos pensados como representações musicais-cênicas dos espaços interiores dessas divagações internas, onde seguimos os movimentos associativos ocorrem do pensamento. O Errante, como todos os personagens em Dionysos , não é um personagem histórico ou psicológico. Ele é “presença, movimento incorporado do 49 pensamento” (RIHM, 2002, p. 88), “homem do aqui e do agora. Totalmente não teleológico. Em verdade, ele é intrinsecamente sem objetivo”(RIHM, 2002, p. 87) 58 . É a “a representação da fantasia de seu caminhar” (RIHM, 2002, p. 90) 59 . E a música – sobretudo aquela de Rihm - é sempre caminhar, fluxo, fluir de acontecimentos seguindo livremente os movimentos frequentemente impulsivos do pensamento.

O errante, como o filósofo, o poeta, o louco e/ou o compositor, é “abandonado sem defesa na realidade” (RIHM, 2002, p. 91) 60 . “A cabeça do errante fica inclinada para frente. Ele deixa penetrar em si a imagem do caminho, consome o caminho por seu olhar”(RIHM, 2002, p. 87-88) 61 . No final da fantasia operística de Rihm, todos os participantes que

57 O texto foi publicado na Offene Enden , 2002, p. 87-91. 58 “Mensch des Hier und Jetzt. Gänzlich unteleologisch. Eigentlich ist er der genuin ziellose.” 59 “Er ist der Stellvertreter der Phantasie auf dem Weg.” 60 “Ungeschützt der Wirklichkeit ausgesetzt” 61 “Der Kopf des Wanderers bleibt geneigt. Er lässt das Bild des Weges in sich ein, er isst den Weg durch seinen Blick.”

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percorreram os caminhos de N., inclinam-se “calmamente” em direção ao público 62 : são todos os viajantes errantes que já percorreram um caminho, como todos os espectadores na sala. O gesto modesto do corpo inclinado para frente é o emblema da errância e, simultaneamente, um convite a outras viagens: nos espaços interiores já apresentados da fantasia operística que fazem um rizoma, que se entrelaçam com os nossos.

Dionysos de Rihm é uma obra forte que apresenta os movimentos do pensamento com os meios da música-teatro. Filho de sua época, inventando a música segundo o dodecafonismo e a vanguarda serial dos anos 50-60 do século XX e contemporâneo à corrente espectral dos anos 70-80, Rihm sempre compôs sem sistema rígido, tendo apenas como método – sua própria intuição e sua própria vontade como compositor. “É uma verdade de La Palice 63 , mas repleta de consequências, se pensarmos quanto tempo precioso foi desperdiçado na loucura, inventar um método, nada mais que 50 um método, e para compor com ele!” – indigna-se Rihm (2002, p. 97). Nesse sentido, ele também é nietzschiano: Lembremos Nietzsche: “Eu desconfio de todos os realizadores de sistemas e me afasto de seus caminhos. O espírito do sistema é uma falta de probidade” (1974, p. 15). Nietzsche queria um homem livre, “um homem para o qual nada é proibido”. “Um tal espírito liberto se coloca no centro do universo com um fatalismo alegre e confiante, com a convicção profunda de que apenas o individual é condenável, mas que tudo será salvo e reconciliado na Totalidade, - ele não diz não ....Mas uma tal fé é a mais elevada de todas as fés possíveis: eu o batizei com o nome de Dionysos.” (1974, p. 94). De onde também, certamente, o título da fantasia operística de Rihm.

62 Na última didascália da partitura Dionysos , podemos ler: “Im rasch einbrechenden Dunkel sieht man gerade noch, dass sich alle auf der Bühne versammelten Figuren und Gestalten sehrt ruhig zum Publikum hin verneigen.”, p. 369 63 NT. Uma lapalissade (ou verdade de La Palice) é uma afirmação em face a uma evidência imediatamente perceptível, um sinônimo de truísmo. Música sem fronteiras

A linguagem múltipla de Dionysos de Rihm, mas também a Sinfonia de Berio, testemunha o esfacelamento das fronteiras entre as diversas atividades humanas e traduz um comportamento fundamental da psique humana que cada um pode explorar individualmente, segundo sua própria sensibilidade e sua própria cultura. O ouvinte-espectador encontra-se colocado no cérebro do artista, do “pensador sobre a cena” (SLOTERDIJK, 1986) / do “pensador em música-teatro” ou em “sinfonia”, no meio dos meandros de sua fantasia, de seus espaços internos variáveis que são todos, dizemos novamente, uma linguagem do corpo. A obra em cenas e ditirambos de Rihm, mas também a Sinfonia de Berio com sua escritura citacional da história da música e sua síntese do pensamento da antropologia estrutural, demanda aos ouvintes um esforço intelectual e uma nova escuta atentiva: ela repousa sobre uma abertura total às errâncias do pensamento, requer uma reflexão ativa e contínua dos materiais ou personagens variáveis e situações flutuantes derivadas. “Eu acho que a compreensão da música, é uma abertura infinita. – escreve 51 Rihm -. Compreendemos a música na medida em que nós nos abrimos mais e mais, até a possibilidade da desaparição” (RIHM, 2010, p. 20). As obras da tradição culta que praticam a abertura das fronteiras e a síntese única de materiais disparatados e gêneros estabelecidos nos convidam a esta nova experiência com a obra de arte: a experiência do errante – do Wanderer – ao interior dos espaços múltiplos e moventes à procura de sua e de nossa verdade em um movimento de construção de si, sempre a recomeçar.

Nas conhecidas obras Geist der Utopie / Espírito da utopia e Das Prinzip Hoffnung / O princípio Esperança , o filósofo da música-utópica Ernst Bloch afirmava que os compositores prefiguravam, em suas músicas, a sociedade do futuro. O esfacelamento das fronteiras entre as diferentes linguagens estéticas, entre os diferentes domínios das ciências humanas, entre artes e tecnologias pelos artistas da segunda metade do século XX prefiguram – esperemos - um novo humanismo fundado na abolição das fronteiras, sobre os sincretismos e as misturas produtoras de novas sínteses carregadas de sentido. Que a filosofia da utopia de Bloch não tenha se equivocado e que sua teoria – apesar dos muros que continuamos a erguer a

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despeito do atual bom senso em todo o mundo – não seja apenas uma bela utopia humanista, varrida para sempre por uma inundação ameaçadora de nacionalistas intolerantes e nocivos.

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Alexander Scriabin: convergências e divergências 1

MARCOS MESQUITA

Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.

(Machado de Assis)

I. O artista republicano

o decorrer do século XIX, vê-se uma profunda Ntransformação nas relações de trabalho e opções profissionais para artistas em geral e músicos em particular. Os principais mecenas da história da música até então, religiões e nobreza, abandonam gradativamente sua função financiadora e assiste-se ao surgimento de um novo tipo de artista, que eu vou chamar aqui de artista republicano. Trata-se de uma nova categoria de profissional liberal que, a partir de agora, tem que se impor em uma sociedade e em um mercado de trabalho em transformação. Nesta sociedade, ele estava diante, entre outros: 1) De instituições governamentais – orquestras, teatros de ópera ou balé etc. – que podiam encomendar-lhe obras mediante um pagamento negociado segundo as obscuras leis de mercado. 2) De subvenções que podiam ser obtidas também de instituições governamentais, mais tarde de instituições privadas ou mistas. 3) Da possibilidade de divulgar seu nome através da venda de partituras, desde que encontrasse uma casa editora que se dispusesse a publicá-las ou se associasse a uma editora já

1 Todas as traduções são de nossa autoria, exceto aquelas indicadas na bibliografia.

Alexander Scriabin

existente – como foi o caso de Muzio Clementi (1752-1832) ou Anton Diabelli (1781-1858). 4) Da opção de trabalhar como professor particular ou de alguma instituição de ensino musical. 5) Da possibilidade de atuar como instrumentista solista ou de orquestra, como regente, como articulista ou crítico musical. 6) De um público que tinha diferentes níveis econômicos e diversas expectativas em relação à arte musical: entretenimento, catarse, passatempo em saraus, confraternização, representação ou ostentação social, vivência estética, acompanhamento para cerimônias religiosas, música para danças ou bailes etc. 7) Da mediação com a opinião pública através de jornais e periódicos, órgãos estes que podiam eventualmente fazer aquela oscilar conforme modas e humores quase que imponderáveis. 55 As novas classes sociais urbanas participam ativamente nesse processo. Comentando a vida musical de Londres e Viena, John Rink afirma que “os mais importantes patronos na primeira metade do século [XIX] vieram da classe média que incluía numerosos ‘públicos de gosto’ [‘taste- publics’] com orientações culturais diversas, variando da baixa à alta, e ocupando posições variadas na escala social” (2004, p. 58). Ludwig van Beethoven (1770-1827) pode ser citado como um caso limítrofe entre a antiga e a nova fase profissional: residindo em Viena desde 1792, não tivera patrões religiosos ou nobres nesta cidade, mas recebera, a partir de 1800, um “salário” de seu mecenas, príncipe Karl Alois Johann Nepomuk Vinzenz Leonhard Lichnowsky (1761- 1814) e, de 1809 até sua morte, uma pensão de alguns de seus admiradores nobres: o arquiduque Rudolph Johann Joseph Rainer da Áustria (1788-1831), Franz Joseph Maximilian, príncipe de Lobkowitz (1772-1816) e Ferdinand Johannes Nepomuk Joseph, príncipe Kinsky de Wchinitz e Tettau (1781- 1812). Além disso, destacava-se como pianista (até que os efeitos da surdez gradativa o impedissem de tocar em público),

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dava aulas para membros da aristocracia e empenhou-se na publicação de suas obras, dirigindo-as a vários “nichos de mercado” de então: 1) Ao músico amador que cultivava a Hausmusik (música doméstica) nos saraus pela Europa a fora. Típicos exemplos aqui, entre outros, seriam a Serenata op. 8, o Septeto op. 20, a Serenata op. 25, as Bagatelas op. 33 e as Variações opp. 105 e 107. 2) A um público amante de música que freqüentava os concertos sinfônicos, sendo as sinfonias e os concertos os melhores exemplos dessa categoria. 3) A um público especializado de músicos profissionais ou diletantes com boa formação que acolheram, não sem espanto, suas sonatas e quartetos de cordas. Pode-se dizer, então, que Beethoven representou o estágio intermediário entre os antigos e diversos tipos de 56 prestadores de serviços musicais do longo período que vai pelo menos da Baixa Idade Média até o início do Romantismo e o novo profissional liberal de uma sociedade que, aos poucos, e não sem conflitos e derramamento de sangue, implantava modelos administrativos e políticos republicanos. No decorrer do século XIX, assiste-se também a uma gradativa revalorização da herança musical europeia, tendência esta que se reflete no repertório de inúmeras instituições corais, orquestrais e de concerto da época. Entre muitas outras, podem ser citadas em ordem cronológica de fundação ou reabertura:

• 1801 Restabelecimento da Chapelle Royale (Capela Real) em Paris; • 1809 Berliner Liedertafel (Clube de Canto Coral Masculino de Berlim); • 1811 Singverein (Assossiação de Canto) em Heidelberg; Alexander Scriabin

• 1812 Gesellschaft der Musikfreunde (Sociedade dos Amigos da Música) em Vienna; • 1813 Philharmonic Society (Sociedade Filarmônica) em Londres; • 1815 Handel and Haydn Society (Sociedade Händel e Haydn) em Boston; • 1820 Musical Fund Society (Sociedade de Fundos para Música) na Filadélfia; • 1823 Sacred Music Society (Sociedade de Música Sacra) em Nova Iorque; • 1832 Sacred Harmonic Society (Sociedade Harmônica Sacra) em Loncres; • 1833 Italian Opera House (Teatro de Ópera Italiana) em Nova Iorque; Orphéon (Orfeão) em Paris • 1836 Copenhagen Musikforening (Sociedade de 57 Música de Copenhague); • 1837 Reconstrução do teatro de ópera La Fenice (A Fênix) em Veneza; • 1842 Philharmonic Symphony Society (Sociedade Sinfonia Filarmônica) em Nova Iorque; Wiener Philharmoniker (Filarmônica de Viena); • 1851 Crystal Palace (Palácio de Cristal) em Londres; • 1852 New Philharmonic Society (Nova Sociedade Filarmônica) em Londres; • 1854 Tonkünstlerverein (Sociedade de Artistas da Música) em Dresden; • 1857 Sociedad Euterpe em Barcelona; Teatro Colón em Buenos Aires; • 1858 Wiener Singakademie (Academia Coral Vienense); • 1859 Sociedade Musical Russa de São Petersburgo;

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• 1860 Séances Populaires de Musique de Chambre (Apresentações Populares de Música de Câmera) em Paris; • 1866 Sociedad de Conciertos em Barcelona; • 1870 Sociedade Musical de Varsóvia; • 1878 People’s Concert Society (Sociedade de Concertos do Povo) em Londres 2.

Também no Brasil, podem ser observadas iniciativas semelhantes: • 1808 Capela Real no Rio de Janeiro; • 1813 Real Teatro de São João no Rio de Janeiro; • 1815 Assembleia Portuguesa no Rio de Janeiro; • 1831 Sociedade Filarmônica no Rio de Janeiro; 58 Sociedade de Beneficência Musical no Rio de Janeiro;

• 1857 Empresa de Ópera Lírica Nacional no Rio de Janeiro; • 1860 Sociedade Particular de Música Prazer da Nova Aurora no Rio de Janeiro;

• 1867 Clube Mozart no Rio de Janeiro; • 1863 Clube Haydn em São Paulo; • 1882 Clube Beethoven no Rio de Janeiro;

• 1883 Sociedade de Concertos Clássicos no Rio de Janeiro; Sociedade de Quarteto Paulistano em São Paulo; Sociedade Coral Clube Mendelssohn em São Paulo.

2 A respeito desse assunto, ver também o capítulo 18, “O advento do concerto público”, em RAYNOR (1981). Alexander Scriabin

A partir da segunda metade do século XVIII, há uma abordagem diferenciada em relação à estética que busca uma liberação de seus laços com a metafísica. E, nesse sentido, a contribuição de Immanuel Kant (1724-1804) é determinante para as discussões sobre esse tema no século seguinte:

A concepção de Kant sobre experiência legitimou uma abordagem ao conhecimento que tratava a ciência natural, moral e estética como domínios separados, cada qual com sua própria lógica interna, cada qual requerendo uma forma de averiguação especializada que era autônoma das outras (ADAMSON, 2007, p. 29).

Isso reflete “o declínio de um modo hierárquico, religioso e metafísico de organizar e legitimar a ordem cultural” ( (ADAMSON, 2007, p. 29). A valorização do passado musical, por seu turno, 59 contribui para o desenvolvimento da noção de autonomia em música, especialmente da música instrumental, ou seja, uma gradativa liberação de suas atribuições retóricas ou descritivas e de suas funções sociais previamente estabelecidas. Nesse contexto, quatro aspectos devem ser ressaltados: 1) A disseminação de concertos públicos com obras instrumentais de diversos períodos da história cria um ambiente específico para a música, liberado, pelo menos teoricamente, de quaisquer aspectos extramusicais, ou seja, o ouvinte vivencia a música em si, sem que ela esteja associada a uma função predeterminada – a função passa a ser o concerto em si como evento social. Mesmo levando- se isso em consideração, vê-se a consolidação social e a eventual conscientização individual da função eminentemente estética da música. Obviamente, isso não quer dizer que o ouvinte não possa criar suas próprias projeções extramusicais a partir da obra escutada e projetar na música alguma interpretação desde meramente descritiva a transcendental. 2) A valorização do compositor e da obra musical passa por uma profunda transformação. Como escreve Jim Samson,

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o projeto de autonomia também encontrou expressão e apoio no mundo das ideias, inicialmente através da ascenção da estética [...] e, mais tarde, através de um crescimento exponencial da crítica musical – uma resposta direta e imediata à substituição de julgamentos funcionais pelos estéticos. Basicamente, isso resultou em dois desenvolvimentos relacionados: uma progressiva centralização no compositor e um foco crescente na obra musical (2004, p. 11-12).

3) Assiste-se, no decorrer do século XIX, a vários embates entre tendências de exegese expressiva e formalista da música. Na primeira metade do século XIX há, indubitavelmente, um predomínio de teorias estético- musicais que se centralizam nas questões da expressão de sentimentos. Entre muitas outras especulações, vale a pena relembrar a pouco conhecida de Jean François Le Sueur (1760-1837) que desenvolveu a noção de “música 60 hipocrítica”, retomando e expandindo um conceito que Jean-Baptiste Dubos, ou Du Bos (1670-1742), explanara na seção XIII do terceiro volume de suas Réflexions critiques sur la poesie et sur la peinture. Segundo o escrito de Dubos, o termo hipócrita designava, na antiga Grécia, o comediante de teatro e a música hipocrítica tinha como função acompanhar a sua pantomima (1719/1740, passim). A visionária teoria de Le Sueur, por seu turno, previa que, em breve, o desenvolvimento da música se subordinaria a uma temática literária (LAMY, 1912, passim). Essa teoria estimulou definitivamente um aluno de composição de Le Sueur, Hector Berlioz (1803-1869), à busca de uma música que receberia posteriormente o epíteto de programática. Na segunda metade do século XIX, entretanto, a tendência de exegese formalista ganha fôlego, especialmente a partir de teoria de Eduard Hanslick, apresentada em seu Vom Musikalisch-Schönen (Do belo musical) 3, do qual pode-se relembrar o muito citado trecho:

3 Para a questão da teoria da autonomia da música de Michel-Paul Guy de Chabanon (1730-1792), ver TOMÁS (2011). Alexander Scriabin

Pergunte-se, agora, o que deve ser expresso com este material sonoro [melodia, harmonia, ritmo e timbre], e a resposta diz: ideias musicais. Mas uma ideia musical trazida integralmente à manifestação já é o belo autônomo, é finalidade em si e, por sua vez, de maneira alguma, meio ou material da representação de sentimentos e pensamentos. O conteúdo da música são formas sonoras movidas (1989, p. 59).

4) Observa-se, no decorrer do século XIX, uma escalada do estranhamento do público em relação a determinadas obras musicais contemporâneas. Este estranhamento, aliado a uma disponibilidade cada vez maior do repertório histórico e de obras mais próximas ao gosto do ouvinte “médio”, faz crescer a distância entre a criação musical do momento e o público. Como consequência, começam a se formar grupos de artistas empenhados na discussão pública de seus objetivos estéticos e na busca de espaços 61 para divulgação de sua produção artística. Tais grupos reproduzem, de certa maneira, as estratégias de grupos políticos da época que agiam em defesa de ideais republicanos e, em um segundo momento, esquerdistas. É um fenômeno que se tornará a estratégia básica em uma etapa posterior que se convencionou chamar de época das vanguardas heróicas. Como precursores desse fenômeno podem ser citados dois grupos que se formaram na Alemanha. O primeiro, literário, foi chamado Junges Deutschland (Alemanha Jovem), nome popularizado por um escrito de 1834 de Ludolf Wienbarg (1802-1872). Em 1835, a câmara federal alemã proibiu a publicação de escritos de vários membros deste grupo – entre outros, Heinrich Heine (1797-1856), Theodor Mundt (1808-1861) e Karl Gutzkow (1811-1878). O segundo, musical, foi chamado de Neudeutsche Schule (Nova Escola Alemã), título criado em 1859 por von Franz Brendel (1811-1868), crítico e musicólogo, editor da Neue Zeitschrift für Musik (Nova Revista de Música) para designar o grupo de compositores em torno de Franz Liszt, entre outros, os hoje esquecidos Richard Pohl (1826-1896), Hans von Bronsart (1830-1913), Alexander Ritter (1833-1896),

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Felix Draeseke (1835-1913) e Carl Tausig (1841-1871). Diga-se, de passagem, que este grupo foi mais uma invenção jornalística do que uma real iniciativa dos compositores mencionados. Não há dúvida que os vários fenômenos sociais e culturais comentados acima condicionaram muitos dos aspectos que podem ser observados ainda hoje na vida e na atuação profissional do artista republicano.

II. O Simbolismo, um movimento internacional Já há várias décadas, a crítica enfatiza a relação estreita entre os movimentos impressionista, decadentista e simbolista. Não é o caso de discutir esse tópico aqui, mas espero que o leitor leve em consideração que as elisões e eventuais lacunas que ocorrem a seguir devem ser preenchidas pelo seu conhecimento prévio ou por suas pesquisas posteriores. 62 Clive Scott, em artigo intitulado “Simbolismo, decadência e impressionismo”, comentando a sintaxe de Stéphane Mallarmé, menciona aquela que pode ser considerada uma das principais características do movimento simbolista: “A sintaxe excêntrica, mas extremamente meticulosa, de Mallarmé descentraliza a frase, mais desafiando do que pronunciando uma solução” (1998, p. 167). Ao mencionar essa recusa em pronunciar uma solução, o autor nos remete ao fato de que a arte simbolista mais sugere do que expõe, abrindo amplos espaços interpretativos para o fruidor. O próprio Mallarmé estava consciente dessa característica quando escreveu: “Evocar, numa sombra deliberada, o objeto silenciado, por palavras alusivas, nunca diretas, reduzindo-se a um silêncio igual comporta uma tentativa próxima do criar ...” (apud SCOTT, 1998, p. 169). A sugestividade das artes simbolistas desencadeou diversas tendências, formalistas, míticas, místicas, propiciando ao movimento uma ampla gama de possibilidades que seduziu artistas em várias regiões da Europa e das Américas. No texto “O simbolismo” de Jean Moréas (1987, p. 62- 65), pseudônimo de Ioannis Papadiamantopoulos (1856-1910), Alexander Scriabin considerado um manifesto simbolista, percebem-se algumas estratégias discursivas que se tornarão distintivas de vários manifestos posteriores de outros movimentos: 1) A validação estética pelo estabelecimento de uma linhagem, eventualmente fictícia, de criadores considerados precursores do movimento. Nesse sentido, Moréas menciona os nomes dos poetas Charles Baudelaire (1821-1867), Théodore Banville (1823-1891), Stéphane Mallarmé (1842-1898) e Paul Verlaine (1844-1896) (1987, p. 63). 2) O reconhecimento do esgotamento das formas de expressão da arte: “[...] toda manifestação da arte chega fatalmente a se empobrecer, a se esgotar; então, de cópia em cópia, de imitação em imitação, o que foi pleno de seiva e de frescura se desseca e se encarquilha; o que foi o novo e o espontâneo se torna o vulgar e o lugar comum” (1987, p. 62). Tal processo de esgotamento, que em épocas anteriores poderia se manifestar no decorrer de várias 63 gerações, sofre uma clara aceleração no decorrer do século XIX e faz surgir um discurso enfático em defesa dos conceitos de progresso ou avanço em arte e de tabula rasa – que não serão discutidos aqui. 3) Uma avaliação negativa da crítica e do público fruidor de arte:

Uma nova manifestação de arte era portanto esperada, necessária, inevitável. Esta manifestação, preparada desde muito tempo, acaba de aparecer. E todos os anódinos gracejos dos jornalistas confiantes da imprensa, todas as inquietações dos criticos graves, todo o mau humor do público surpreendido na sua indolência imitadora, não fazem senão afirmar cada dia mais a vitalidade da evolução atual nas letras francesas [...] (1987, p. 62-63).

Percebe-se claramente um tom de confrontação com a crítica e o público em geral, considerados agora inimigos da

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mensagem artística de grupos que, no decorrer do século XIX, foram sendo colocados à margem dos circuitos de divulgação artística tradicionais. Vê-se aí uma das causas da criação de espaços alternativos para a divulgação de tais grupos, sejam novas galerias, novas mostras de arte, novos periódicos, busca de novos espaços para apresentações, novas séries de concertos etc. Dois aspectos do Simbolismo relevados por Scott devem ser relembrados aqui: 1) O despertar de uma aguda consciência da linguagem:

A linguagem deixou de ser tratada como um afloramento natural da pessoa, sendo agora vista como um material com suas leis próprias e suas formas específicas de vida. A plausibilidade da poesia simbolista estabelecida deve muito à 64 nossa percepção de que a distância reflexiva entre o poeta e a linguagem é escrupulosamente percorrida (SCOTT, 1998, p. 171).

Apesar das diferenças entre a linguagem poética e a linguagem musical e do perigo de comparações superficiais, pode-se transferir essa noção de despertar da consciência da linguagem para a criação de dois dos mais simbolistas dos compositores: do francês Claude Debussy (1862-1918), especialmente a partir do Prélude à l’après-midi d’un faune, e do russo Alexander Scriabin (1872-1915), de seu segundo período criativo em diante, a partir de 1903. A renúncia à sintaxe musical tonal tradicional, especialmente no que se refere à fraseologia, às técnicas de desenvolvimento, aos encadeamentos harmônicos e à forma espelha claramente o grau de conscientização que eles alcançaram em relação a essa sintaxe e ao esgotamento de suas possibilidades expressivas. 2) A expressão da profundidade no Simbolismo: “É claro que existem técnicas literárias disponíveis. Talvez a mais corrente seja a repetição, com a qual uma palavra, uma sensação, torna-se um sortilégio, conferindo a si e ao seu contexto um caráter abstrato misterioso” ( SCOTT, 1998 , p. 175). Alexander Scriabin

Novamente, há um paralelo possível com a criação musical de Debussy e Scriabin. Devido a seu afastamento das técnicas de desenvolvimento consagradas pela tradição musical austro- alemã, com seus grandes arcos melódicos, percebem-se inúmeras nuances de repetição em suas obras, geralmente de motivos ou ideias rítmico-melódicas de pequena duração que, submetidos a procedimentos contínuos de justaposição, criam um decurso sonoro absolutamente inédito para a época. Entre os precursores do Simbolismo mencionados por Moréas, está Baudelaire 4. De maneiras similares, Baudelaire e Arthur Rimbaud (1854-1891), aquele em seu poema Correspondências, escrito por volta de 1855, e este em seu texto Alquimia do verbo, de 1873, apelam para imagens sinestésicas. Em Baudelaire, lê-se “as cores e os sons se correspondem” (1987, p. 45) e, em Rimbaud (1987, p. 48), “Eu inventei a cor das vogais! – A negro, E branco, I vermelho, O azul, U verde”. Tais analogias, primárias e absolutamente subjetivas, vão ser um elemento recorrente em escritos e obras 65 de vários simbolistas de décadas posteriores em diversos países. Os títulos sugestivos de Debussy e Scriabin, os deste último tendendo a imagens místicas, são um apelo sinestésico à fantasia do ouvinte, um estímulo a uma fruição não somente abstrata das estruturas sonoras ouvidas. Mas a tendência de uma escuta formalista convive simultaneamente com esta tendência sinestésica, como pode ser constatado nesta assertiva de 1912 feita por Arnold Schoenberg (1874-1951): “A suposição de que uma peça musical deveria despertar ideias de qualquer natureza – e se não o faz, ela não teria sido compreendida ou não valeria nada – é tão difundida como somente o falso e o banal conseguem ser” (2013, p. 69). Voltando a Baudelaire, também se deve mencionar seu empenho, na década de 1860, na defesa da música de Richard Wagner (1813-1883). Em 1861, Paris assistiu à conturbada apresentação de seu drama musical Tannhäuser, muito mal recebido pelo público e pela crítica em geral, mas que desencadeou uma verdadeira febre entre intelectuais da

4 A relação estética entre Edgar Allan Poe (1809-1849) e Baudelaire não será discutida aqui. Para isso, ver PHILIPPOV (2004).

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cidade. Não se pode desprezar a contribuição dos conceitos dramático-musicais de Wagner para o Simbolismo francês. Seu longo ensaio Ópera e drama, escrito entre 1850 e 1851, apresenta o seu programa para a criação da Gesamtkunstwerk (obra de arte total) em três partes: Na primeira parte, “A ópera e a essência da música”, é feito um ataque à ópera da época e um esclarecimento sobre a diferença entre poesia e música, sendo esta definida como a mais perfeita linguagem humana. A segunda parte, “O teatro e a essência da poesia dramática”, dedica-se ao exame da função da poesia no drama musical. “Poesia e música no drama do futuro”, última parte, sintetiza o que seria o drama musical idealizado pelo autor (MESQUITA, 2015, p. 30). Nesse programa criativo, vê-se uma tendência de interação entre as diversas artes, lembrando-se que Wagner, com o apoio do rei Ludwig II da Baviera, fez inclusive construir o Festspielhaus de Bayreuth, inaugurado em 1876, 66 especialmente para seus dramas musicais, ou seja, o compositor acrescentou a seu plano, exposto em Ópera e drama, a concepção arquitetônica que ele achava adequada para a representação de suas obras. Outro aspecto da reflexão wagneriana que deve ser mencionado nesse contexto é a sua busca de um modelo ideal para a relação entre teatro e público. Ele encontra tal modelo “no teatro da antiga Atenas, lá, onde o teatro só abria os seus recintos em dias sagrados específicos, onde o deleite da arte era simultaneamente celebrado com uma cerimônia religiosa” (WAGNER, 1873, p. 136). Nessa unificação do teatro com a religião, Wagner vislumbrava a possibilidade de “revelar de maneira compreensível a todo o povo os objetivos mais sublimes e profundos da humanidade” (WAGNER, 1873, p. 137). Como fonte dramática para o poeta, ele escolheu o mito,

pois nele desaparece, quase que completamente, a forma convencional do comportamento humano, explicável apenas pela razão abstrata, para mostrar somente o eternamente compreensível, puramente humano, mas na inimitável forma concreta mesma que confere a cada autêntico mito a sua Alexander Scriabin

forma individual, rapidamente reconhecível ( WAGNER, 1873, p. 143).

Para as gerações de simbolistas que buscavam caminhos para além dos realismo e naturalismo literários, essa era uma opção que devia ser levada seriamente em consideração. A difusão de ideias e obras simbolistas, bem como de outras manifestações da arte e da ciência a partir da segunda metade do século XIX, se beneficiaram dos aprimoramentos dos meios de comunicação impressos de então. Lembrem-se, entre outros, o aperfeiçoamento da prensa móvel feito por Isaac Adams (1802 ou 1803-1883), em 1830, e a invenção da prensa rotativa por Richard March Hoe (1812-1886), em 1843. Aliada a isso estava uma distribuição mais ágil de jornais e revistas graças às inúmeras linhas férreas e marítimas regulares já em funcionamento. Com isso, a influência 67 simbolista se faz internacional e pode ser detectada em vários países da Europa e das Américas. Sem dúvida, uma das vertentes mais curiosas é a do Simbolismo russo, pois ela se reveste de aspectos místicos e religiosos, caros à tradição russa. O Realismo literário russo havia dado destaque ao país no panorama europeu aproximadamente a partir da terceira década do século XIX, sendo Eugene Onegin, um romance em versos de Alexander Pushkin (1799-1837), a primeira obra a abrir esse caminho internacional. Seguiram-se outros grandes nomes, como Nikolai Gogol (1809-1852), Ivan Turgueniev (1818-1883), Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Liev Tolstói (1828-1910). A década de 1880, entretanto, assiste a um declínio com a morte de Dostoiévski e Turgueniev, e a preferência de Tolstói pela escrita de ensaios sobre diversos temas, estéticos, sociais e religiosos entre outros. Além disso, “críticos de esquerda exigiam [...] obras literárias socialmente relevantes e ‘progressistas’. Seus oponentes do lado conservador queriam literatura útil, escritos que expusessem o bem moral” (PETERSON, 1993, p. 2). Os simbolistas russos foram os primeiros a propor novas possibilidades após o predomínio de várias décadas do Realismo em seu país. E essas

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possibilidades se revelaram especialmente originais, pois, enquanto

os franceses eram algo limitados em sua concepção do Simbolismo, vendo-o no máximo como um caminho para a escrita, alguns simbolistas russos queriam fazer de seus conceitos simbolistas um sistema filosófico inteiro, uma visão de mundo que poderia abarcar todo o pensamento (PETERSON, 1993, p. 6).

Dentre vários literatos que são considerados precursores do Simbolismo russo, dois podem ser destacados: 1) O poeta Afanasi Fet (1820-1892). Seus poemas ganharam notoriedade a partir de 1842, ao serem publicados em revistas como Moskwitjanin (O Moscovita) e Otetschestwennye Sapiski (Anais da Pátria). Sua obra é lírica e impregnada por 68 melancolia e tragédia. Em um ensaio de 1867 sobre música e poesia, escreveu: As palavras “poesia é a linguagem dos deuses” não são uma hipérbole vazia, mas adequadas para uma compreensão clara da essência da questão. Poesia e música são não somente relacionadas, mas também indivisíveis. Todas as obras poéticas eternas dos profetas Goethe e Pushkin são, inclusive, obras musicais em sua essência – canções. Todos esses gênios de profunda clarividência abordam a verdade não através da ciência, não através da análise, mas através da beleza, através da harmonia. Harmonia é idêntica à verdade. Onde quer que a harmonia seja rompida, a realidade também é rompida e, com ela, a verdade (Apud DAMARÉ, 2008, p. 12).

Percebe-se aqui um mesmo intuito de interação entre artes, nesse caso poesia e música, interação que foi cultivada por inúmeros simbolistas. Uma tradição que pode nos remeter novamente à Antiguidade grega, com o seu conceito de unificação entre poesia e música que se manifestava no ditirambo, na comédia, na tragédia e entre os rapsodos. 2) Vladimir Solovyov (1853-1900), poeta e filósofo. Ele articulou Alexander Scriabin

a imagem mística de uma “Sophia Divina” tanto em conceitos teóricos como símbolos poéticos. Sua ênfase no papel humano no “processo humano-divino” que cria ambos os seres cósmico e histórico, levou a acusações de heresia por parte de tradicionalistas ortodoxos russos (KLINE, 1999, p. 862).

Filho do historiador Sergei Solovyov (1820-1879), ele defendia uma filosofia da unidade total influenciada pelo pensamento europeu, especialmente Baruc Spinoza (1632- 1677), Friedrich von Schelling (1775-1854) e Arthur Schopenhauer (1788-1860) 5 e fé ortodoxa. Ele profetizava que “o artista do futuro invocaria “forças sobrenaturais” para transfigurar o mundo existente; ele havia definido beleza artística como “a transfiguração do material através da incorporação nele de algum outro princípio mais elevado que o material” (BROWN, 1979, p. 48). Percebe-se, aqui, um intuito de transformar o resultado artístico em algo permeado por 69 uma função mística – ou mistificadora... Veremos, adiante, que este será um conceito fundamental para Scriabin. Sua filosofia da história é marcada pela proposta de um estado teocrático sob a égide de uma igreja cristã reunificada. Ele compreendia a unidade total no pensamento como a essência do cosmo, tanto na vida individual como social. No correr dos anos, ele reconhece cada vez mais que a igreja ortodoxa russa não estava em condições de cumprir a sua missão profética, especialmente devido à sua relação estreita com o Estado russo. A partir de 1881, ele se aproxima gradativamente da igreja católica romana, na qual ele via a força moral e os princípios cristãos mais claramente representados que na ortodoxia e no protestantismo. Nos anos que se seguiram, entretanto, seus pontos de vista se tornaram mais e mais sombrios, até que

5 Para uma exposição de ideias de Schopenhauer sobre música, ver MESQUITA (2015).

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[...] no final de sua vida, Solovyov ofereceu (em Três palestras sobre guerra, progresso e o fim da história, 1900) uma visão apocalíptica contrastante de desastre histórico e cósmico, incluindo a aparição, no século XXI, do Anticristo (BROWN, 1979, p. 48).

Segundo Peterson, é costume assinalar o início do Simbolismo russo em 1892, ano em que Dmitri Mereshkovski (1866-1941)

publicou um volume de poesia entitulado Símbols e ministrou palestras em São Petersburgo e Moscou sobre “As razões do declínio e as novas correntes na literatura russa contemporânea”. Em setembro de 1892, um grande artigo sobre poetas simbolistas da França foi publicado em Vestnik Evropy (O mensageiro europeu) e, mais tarde naquele ano, uma série de artigos sobre [Friedrich] Nietzsche [1844- 70 1900] começaram a aparecer em um jornal dedicado a filosofia e psicologia (1993, p. 13).

A obra de Mereshkowski é impregnada pela ideia do conflito entre o Cristo e o Anticristo, bem como por elementos do misticismo ortodoxo grego. Ele também ficou conhecido pelas biografias escritas sobre grandes personalidades, entre outras, Joana D’Arc, Dante, Leonardo Da Vinci, Napoleão e Adolf Hitler, cujo governo ele apoiava. Sua esposa, Zinaida Nikolaevna Hippius (1869-1945), considerada “uma melhor poeta do que seu marido” ( 1993 , p. 16), viveu para apoiar seu marido e assinava seus ensaios com pseudônimo masculino ou com S. Hippius para ocultar o sexo do autor. Críticos admiram o acabamento e o laconismo de sua poesia. No ano seguinte, 1893, o poeta Valery Briusov (1873- 1924), publicou a antologia Simbolistas russos. Briusov estudou história e filosofia na Universidade de Moscou. Traduziu autores simbolistas franceses e belgas. Ele é considerado o líder dos simbolistas de primeira hora, enquanto Mereshkowski é considerado seu ideólogo. Alexander Scriabin

Já na virada do século XIX para o XX, destaca-se a figura do poeta e ensaísta Viacheslav Ivanov (1866-1949). Nessa época ele elaborou sua visão da missão spiritual de Roma e do antigo culto grego a Dionísio. Reuniu suas idéias dionisíacas no tratado A religião helênica do deus do sofrimento (1904), que segue o curso das raízes da literatura em geral e em particular da arte da tragédia, seguindo O nascimento da tragédia de Nietzsche, até os antigos mistérios dionisíacos. Citando Bernice Rosenthal, Damaré esclarece outra influência sobre o Simbolismo russo, a de Nietzsche:

O simbolismo russo deriva de muitas fontes [...] Mas Nietzsche foi mais importante. Sua filosofia forneceu ao simbolismo russo a sua ala combatente; ela possibilitou a seus admiradores amalgamar uma miscelânea de atitudes em uma doutrina militante.” O fato de Nietzsche classificar a música como a representação da arte dionisíaca, ajuda a explicar o seu status elevado, senão idealizado, entre os 71 simbolistas russos (2008, p. 23).

Já na primeira década do século XX, podem ser distinguidas duas tendências no movimento simbolista russo. Uma formalista, defendida por Briusov, prega a poesia pela poesia. Outra, mística, concebida a partir de conceitos de Solovyov, permeia a poesia de Andrei Biély, pseudônimo de Boris Nikolaevich Bugaev (1880-1934), e o já citado Ivanov, que considerava a poesia ancilla theologice, serva da teologia (BROWN, 1979, p. 48 ). Se no decorrer da primeira metade do século XIX havia se desenvolvido um conceito de autonomia estética, como discutido na primeira seção deste artigo, vê-se que no decorrer da segunda metade do mesmo século ocorre uma gradativa confluência da arte e da religião ou da arte e do misticismo em alguns movimentos artísticos e determinadas teorias estético- filosóficas. E, nesse contexto, a facção mística dos simbolistas russos é um dos exemplos mais significativos. Tal confluência é um reflexo da perda de poder e importância das instituições religiosas estabelecidas, bem como sua cada vez mais

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reconhecida incapacidade de dar respostas satisfatórias para seus adeptos que vivenciavam – e vivenciam –, nem sempre sem sofrimento e estupefação, um mundo em profunda mudança. Como resume Adamson: “intelectuais [...] buscaram um novo refúgio espiritual para si mesmos sob o estandarte do Romantismo em uma religião da arte quase secularizada, uma que, não infrequentemente, serviria como estação temporária no caminho de um reencontro com o mundo que eles haviam perdido” (2007, p. 46). O que devemos nos perguntar é se essa “estação temporária” seria um reencontro ou se se tratava de um refúgio.

III. Alexander Scriabin e o Simbolismo russo

Ralph Matlaw relata que o Poema do êxtase op. 54 de Scriabin “devia ser transmitido [pelas rádios e TVs soviéticas] 72 quando Yuri Gagarin fez o primeiro voo ao espaço e, novamente, quando ele foi recepcionado na Praça Vermelha, em 15 de abril de 1961” (1979, p. 2). Essa curiosidade histórica comprova que a música do compositor russo ainda podia causar impacto e servir de trilha sonora para um momento tão especial para o povo e a política da extinta União Soviética. Além disso, demonstra o processo de redescoberta e reavaliação do compositor nesse Estado, especialmente após a morte de Josef Stalin (1878-1953). Scriabin faz parte de uma geração pós-Grupo dos Cinco 6, juntamente com (1865-1936), Sergei Rachmaninoff (1873-1943), Nicolai Tcherepnin (1873– 1945) e Reinhold Glière (1875-1956), entre outros. Isso quer dizer que esta geração não estava mais tão empenhada na

6 Este grupo, patroneado pelo crítico musical Vladimir Strasov (1824- 1906), era constituído pelos compositores (1833- 1887), César Cui (1835-1918), (1837-1910), Modest Mussorgski (1839-1881) e Nicolai Rimsky-Korsakov (1844-1908). O nome do grupo em russo, Moguchaya Kuchka , significa “poderoso montinho”. Alexander Scriabin utilização de elementos folclorísticos russos em sua criação para consolidar uma música nacional russa e procurava se estabelecer profissionalmente no contexto cultural europeu sem elementos musicais que pudessem ser classificados de exóticos. Obviamente, tal projeção internacional só foi possível com o prestígio granjeado pelas gerações anteriores dos pioneiros da música russa, como Alexander Aliabiev (1787- 1851), Alexander Varlamov (1801-1848), Alexander Guriliov (1803-1858), (1804-1857) e Alexander Dargomyski (1813-1869), do próprio Grupo dos Cinco e de compositores que não estavam ligados a este grupo, como Anton (1829-1894) e Nikolai Rubinstein (1835-1881) e Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893), por exemplo. Nascido em uma família de militares aristocratas, Scriabin frequentou uma escola de cadetes em Moscou, cujo diretor era um tio seu, enquanto recebia ensinamento musical no próprio círculo familiar e com professores particulares. Estudou piano e composição no conservatório de sua cidade 73 natal entre 1888 e 1892. Em 1894, conheceu Mitrofan Belyayev (1836-1904), que se tornou seu editor e mecenas e organizou sua primeira turnê internacional em 1895-1896. Em suas apresentações como pianista, o compositor apresentava quase que exclusivamente suas próprias obras. Por intermédio do diretor do Conservatório de Moscou, Vassili Safonov (1852- 1918), Scriabin passou a frequentar, no inverno de 1895-1896, a residência do riquíssimo homem de negócios Mikhail Morozov (1870-1903), o qual se tornou seu mecenas. Entre 1898 e 1903, o compositor foi professor de piano no Conservatório de Moscou e, para complementar a enda familiar, era inspetor de música no Instituto Santa Catarina da mesma cidade. O apoio financeiro de Mikhail Morozov teve seu prosseguimento, após a morte deste, por parte de sua viúva, Margarita Morozowa (1873-1958). Graças a uma pensão anual de 2 milhões de rublos concedida por ela entre 1904 e 1908, o compositor pôde viver sem dificuldades na Suíça 7, Bélgica,

7 Neste país, frequentou o Congresso Internacional de Filosofia ocorrido em Genebra entre 4 e 8 de setembro de 1904, revelando seu interesse em aprofundar seus conhecimentos nessa área (TAGLIATELA, 1994, p. 25).

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Itália e França. Diga-se, de passagem que a senhora Morozova apoiou financeiramente membros da família de Scriabin após a morte deste. Por este resumo biográfico, pode-se concluir que o compositor russo ainda se encontra em um estágio intermediário de atuação profissional, tal como o caso de Beethoven havia sido classificado na primeira seção deste artigo, com duas diferenças principais: 1) Os mecenas daquele eram ricos negociantes e os deste, aristocratas, o que reflete a transformação sócio- econômica sofrida pela Europa, através da qual a burguesia assumia cada vez mais o comando das atividades comerciais e financeiras de seus respectivos países. 2) Embora algumas das peças curtas para piano de Scriabin pudessem ser tocadas por um pianistas diletantes, as obras musicais publicadas por ele não faziam concessões ao gosto do público “médio” de sua época e não eram adequadas à prática da Hausmusik, como aquelas de 74 Beethoven listadas na primeira seção. Muito se menciona a ligação de Scriabin com a teosofia. De fato, ele frequentou reuniões da Sociedade Teosófica Adyar na Bélgica dirigida pelo pintor belga Jean Delville (1867-1953), o qual, diga-se de passagem, fez o desenho de capa da primeira edição da partitura do poema sinfônico Prométhée. Le poème du feu (Prometeu. O poema do fogo) op. 60 (1908-1910), publicada em 1911. Em carta de 8 de maio de 1905 à sua então amante Tatiana de Schloezer (1883-1922), irmã do musicólogo Boris de Schloezer (1881-1969), pode-se ler: “A chave da Teosofia [de Helena Blavatskaya (1831-1891)],é um livro notável, você ficará surpreendida como ele está próximo de meu pensamento” (Apud BROWN, 1979, p. 42). Mas este mesmo autor adverte que seu envolvimento com a Teosofia parece ter desviado a atenção de outra influência mais imediata e [...] mais profunda para o desenvolvimento pleno de suas noções idiossincráticas sobre música: o movimento no pensamento russo do século XIX tardio conhecido como Simbolismo (BROWN, 1979, p. 42 ).

Alexander Scriabin

Sriabin foi amigo de vários artistas simbolistas, entre outros, os poetas Jurgis Baltrusaitis (1873-1944), Constantine Balmont (1867-1942) e Vyacheslav Ivanov, o qual conheceu em 1909. Em relato ao musicólogo e compositor Leonid Sabaneyev (1881-1968), Scriabin teria declarado: “Ele [Ivanov] está tão próximo de mim e de meu pensamento, como ninguém mais” (BROWN, 1979, p. 43). O compositor fez suas incursões poéticas, buscando expressar suas convicções místicas. Percebe-se a influência de Friedrich Nietzsche, especialmente na incorporação dos conceitos de liberdade artística e do super-homem. As incursões poéticas de Scriabin não serão discutidas aqui, mas uma pequena amostra de seus versos, usados como epígrafes de obras instrumentais ou como base para obras vocais, demonstra que ele não ultrapassou o nível de um diletante de pouco talento e de um misticismo crasso, se é que todo misticismo não é crasso. Até mesmo um scriabinista confesso como Sabaneyev escreveu: “Seus escritos insensatos podem ter estimulado sua criatividade em música, mas eu devo confessar que tudo que ele deixou no campo do verso ou textos 75 para música não alcançou muito artisticamente” (SABANEEFF, 1966, p. 264). O sexto movimento, Andante, da Sinfonia nº 1 op 26, de 1900, apresenta as seguintes duas primeiras estrofes, cantadas respectivamente pelos meio-soprano e tenor:

Símbolos puros do Deus vivo, Sublimes leis da harmonia, Nós vos entregamos nossos corações fervorosos E vossas maravilhas são abençoadas!

Oh, tu, esplêndida visão, Que nos exaltas, nos serena, Nenhum dom sobre a terra onde reinamos Vale teu sonho nem tua graça! (SCRIABIN, 1900, p. 102-103)

Enquanto que a última estrofe é confiada ao coro:

Vinde, então, povos deste mundo, Cantai um hino santo à Arte! Glória à Musa, triunfo e glória!

FRONTEIRAS DA MÚSICA

Sim, glória à Musa, triunfo e glória! (SCRIABIN, 1900, p. 120- 131)

Na Sonata nº 5 para piano op. 53, de 1907, o compositor apresenta a seguinte epígrafe, retirada de seu Poema do êxtase, título, aliás, de seu poema sinfônico orquestral, op. 54, composto entre 1905 e 1908:

Eu vos invoco à vida, oh forças misteriosas! Submersas nas obscuras profundezas Do espírito criador, tímidos Esboços de vida, eu vos trago a audácia. (SCRIABIN, 1971, p. 93)

Por volta de 1909, uma outra fonte de inspiração simbolista, a sinestesia, o estimula. Não há certeza se o 76 compositor de fato “sofria” de sinestesia, tal como a psicologia a define. Seja como for, ele começa a fazer suas especulações a respeito da relação entre tonalidade musical e cor, para as quais ele tinha, entre outros, o antecedente histórico dos conceitos que o jesuíta e matemático Louis-Bertrand Castel (1688-1757) havia desenvolvido a partir de 1725. Existem, entretanto, três diferenças fundamentais entre as ideias de Castel e Scriabin: 1) Castel associou cores a notas da escala cromática, enquanto Scriabin associou-as a centros tonais, sendo que, em suas tabelas, ele não usou a “extensão ‘dur’, isto é, maior. [...] porque em Prometeu [op. 60], a harmonia de Scriabin já estava praticamente além da moldura do sistema tradicional maior/menor” (GALEYEV; VANECHKINA, 2001, p. 259). 2) Enquanto Castel apresenta a relação entre notas e cores cromaticamente de dó a si, Scriabin usa o círculo de quintas: dó, sol, ré etc. 3) Além de uma cor, Scriabin associou a cada centro tonal um sentimento, uma característica humana etc.

Alexander Scriabin

Segue-se uma tabela comparativa entre as concepções de Castel (COTTE, 1990, p. 30) e Scriabin (1911, p. 2):

Nota/Centro Castel Scriabin tonal Dó azul vermelho – vontade Sol vermelho laranja – jogo criativo Ré verde amarelo – júbilo Lá violeta verde – matéria Mi amarel o azul celeste – sonhos Si azul com azul – contemplação leve toque de vermelho Fá # / Sol b laranja azul claro ou violeta – criatividade Ré b / Dó # verde - violeta ou roxo – vontade do 77 mar espírito criativo Lá b carmesim violeta ou lilás – movimento do espírito para a matéria Mi b oliva brilho do aço – humanidade, carne Si b ágata rosa ou aço – luxúria ou paixão Fá laranja vermelho escuro – diversificação claro da vontade Figura 1. Tabela comparativa de cores

Desta comparação depreende-se que no reino da sinestesia impera mais a subjetividade do que qualquer fundamento que possa ser levado a sério de fato. Scriabin colocou sua concepção em prática no poema sinfônico Prométhée. Le poème du feu op. 60, que previa a utilização de uma tastiera per luce (teclado para luz). Alexander Mozer (1879-1958), amigo, discípulo e professor de engenharia elétrica, construiu o teclado original que, diga-se de passagem, não foi utilizado na primeira audição da obra em Moscou em 1911, regida por Sergei Koussevitsky (1874-1951), provavelmente devido à sua limitação técnica (TAGLIATELA,

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1994, p. 42) 8. A utilização de tal teclado era prevista também no Mysterium, a obra monumental que ele deixaria inacabada. Foi por intermédio de Ivanov que o compositor teve acesso aos conceitos wagnerianos sobre o drama musical que seriam extremamente importantes para suas reflexões e que ele expandiria para a concepção do Mysterium. O ensaio de Ivanov, Wagner e o ato dionisíaco, de 1905, era permeado pela ideia da arte como celebração: “Pintura almeja os afrescos, arquitetura almeja reuniões do povo, música almeja coro e drama, drama almeja música; o teatro aspira unir-se em um ‘ato’ único, a multidão toda congregada para a celebração de um júbilo coletivo” (Apud BROWN, 1979, p. 48). Este mesmo autor compara o trecho de Ivanov com a descrição do Mysterium feita por Scriabin a Sabaneyev em 1911:

Não haverá nenhuma possibilidade para o aspecto individual 78 no Mysterium. Ele será uma criação coletiva [sobomyi], um ato coletivo. Ele será como uma individualidade toda- abarcante, multifacetada, como o sol refratado em milhares de gotas de água ( BROWN, 1979, p. 49).

E ainda, com anotações do diário de Anna Goldenweizer (1881-1929) de 1913: “Não haverá um único espectador nesse evento artístico. Todos serão participantes” (BROWN, 1979, p. 49 ). Tanto em Wagner e o ato dionisíaco como em um artigo de 1906, Premonições e augúrios, Ivanov critica a fórmula proposta por Wagner para a síntese artística, pois ela não soluciona a lacuna entre audiência e palco. Nesse artigo, Ivanov aponta que

8 Uma versão com luzes desta composição, feita a partir da pesquisa de Anna Gawboy, da Universidade de Yale, pode ser ouvida em . Alexander Scriabin

O hierofante Wagner não dá uma voz coral ao público. Por que não? Ele tem o direito a essa voz, porque não se supõe que ele seja uma multidão de espectadores, mas um grupo de orgiastas. [...] Wagner se deteve a meio caminho e não pronunciou a última palavra. Sua síntese das artes não é nem harmoniosa nem completa (Apud BROWN, 1979, p. 50).

Seis anos depois, quase que parafraseando Ivanov, Scriabin diria a Sabaneyev que “o palco é uma barreira entre o espectador e o intérprete – ele tem que ser abolido”. E esclareceria:

A audiência, os espectadores, está separada pelo palco ao invés de estar comungada [com os intérpretes] em um ato único. Eu não terei nenhum tipo de teatro. Wagner (e ele com todo seu gênio) não poderia jamais suplantar o teatral – o palco – nunca, porque ele não 79 compreendia qual era a questão. Ele não compreendeu que todo o mal nessa separação está no fato de que não há unidade, nenhuma experiência [genuína], mas somente a representação da experiência. [...] A verdadeira erradicação do palco pode ser efetuada somente no Mysterium (BROWN, 1979, p. 50).

O Mysterium foi concebido como uma gigantesca cerimônia mística que duraria sete dias, culminando com uma dança orgiástica e o êxtase que significariam o fim da vida e da civilização existentes até então e sua transfiguração em algo superior. Com o auxílio de seus colegas da Sociedade Teosófica, o compositor planejava apresentá-lo na Índia. Percebe-se claramente, nesse contexto, a tentativa de transpor para a prática aquilo que Solovyov profetizara ao dizer que “o artista do futuro invocaria ‘forças sobrenaturais’ para transfigurar o mundo existente” (BROWN, 1979, p. 48), como mencionado na seção II acima. Dessa obra, entretanto, Scriabin deixou somente cerca de 70 páginas de esboços para o “Ato preliminar” que,

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várias décadas depois, receberia uma versão por parte do compositor russo Alexander Nemtin (1936-1999) 9.

Devido à sua natureza intrínseca, o Mysterium só poderia ser apresentado uma vez. O “Ato preliminar”, entretanto, ainda estava no domínio da arte e poderia ser apresentado várias vezes. Ele deveria guiar para uma catarse espiritual, unindo pessoas e arte em um ato místico que as prepararia para o Mysterium final. Na verdade, Scriabin primeiramente objetara o termo “preliminar” (predvaritel’nyj) e preferira o termo “preparatório” (pregotovitel’nyj […]) (MATLAW, 1979, p. 19).

O regente Koussevitsky teria dito que Scriabin “é tão ingênuo a respeito de seu Mysterium, que ele pensa que o mundo inteiro sucumbirá pelo fogo com sua música. Mas o que acontece, na verdade, é que nós tocamos o Mysterium e depois 80 vamos a um bom restaurante para comer um delicioso jantar” (Apud SABANEEFF, 1966, p. 263). Esse projeto é fruto de um místico ingênuo ou de um psicótico megalomaníaco? É um diagnóstico que vamos deixar para algum psicólogo estudioso do assunto... Seja como for, o Mysterium de Scriabin é um monumento inacabado, apontando para uma aurora que talvez sequer possa existir.

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Prolegômena: Gadamer e a música como modelo para as ciências interpretativas

RAIMUNDO RAJOBAC

El entender no es un método, sino una forma de convivência entre aquellos que se entienden. Así se abre una dimensión que constituye la práctica de la vida misma. La hermenéutica no pretende la objetivación, sino el escucharse mutuamente. (Gadamer, Introducción a la hermenéutica filosófica de Grondin )

I ensaio pretende apresentar a concepção de música O gadameriana e a maneira como ela integra os problemas da compreensão e interpretação na tradição hermenêutica. Trata-se, portanto, do passo inicial de um processo investigativo que busca explorar o conceito de música que perpassa a obra do filósofo. A hipótese básica que conduz nossas preocupações é a de que discutir música a partir de Gadamer compromete-nos com o âmbito maior da crítica epistemológica às ciências da natureza ao passo que nos possibilita uma revisão conceitual a respeito da música capaz de nos colocar em diálogo com a tradição e as diversas experiências musicais do contemporâneo. O ensaio será conduzido a partir de dois movimentos. Partiremos de algumas proposições gerais intuídas em Verdade e método, seguidas da reconstrução interpretativa do escrito Música e tempo. 1 A

1 Este ensaio deve ser compreendido a partir de um esforço interpretativo e introdutório que busca explicitar o papel que a música ocupa no todo do projeto filosófico gadameriano. Trata-se de fato de prolegômenos ao problema da música em Gadamer e caracteriza-se como o primeiro passo de um processo investigativo que demandará a investigação da obra completa do filósofo, passando por textos Prolegômena: Gadamer e a música produtividade de tais preocupações justifica-se, ainda, por se tratar de um tema pouco explorado: o da música em Gadamer, bem como pela possibilidade de lançar mão de um conceito hermenêutico de música capaz de fazer frente a tradições e perspectivas científico-tecnicistas em música. O que a experiência com a música pode nos ensinar e de que maneira ela integra o âmbito maior do estatuto epistemológico gadameriano? Qual a produtividade de tal especulação e de que maneira podemos encontrar em Gadamer não apenas uma preocupação com a música em si, mas uma investigação conceitual capaz de nos colocar em diálogo com as experiências musicais do contemporâneo? Essas questões apresentam-se como fundamentais para a condução da argumentação pretendida com este ensaio. De maneira propositiva, abre-se aqui uma exigência dialógica gadameriana, base fundamental para a hermenêutica. Em Musik und Zeit, texto de 1988, Gadamer apresenta a seguinte afirmação: “o que leva adiante o inspirado maestro – e, em princípio, qualquer 85 um de seus músicos [...] – só pode ser, a fim de contas, um modelo para nós e para as ciências interpretativas” (GADAMER, 1998, p. 92). Com o argumento que segue essa afirmação, o filósofo procura mostrar que o principal objetivo da compreensão reside em deixar falar a obra que se nos apresenta, e não necessariamente a fixação na interlocução dos intérpretes ou em produções analíticas que comentam tal interlocução (GADAMER, 1998, p. 92). A opção por tomar como ponto de partida esse momento do texto adquire forte acepção, ao passo que o diálogo hermenêutico com a obra de arte musical torna-se uma dimensão que nos oferece as condições para pensar o problema da interpretação no contexto da epistemologia contemporânea, no qual a hermenêutica ocupa posição de destaque, com a crítica ao método das ciências da natureza. Em sentido estrito, a reflexão gadameriana sobre a música mostra-se produtiva, ao tomá-la como problema de racionalidade capaz de nos conduzir para além do âmbito técnico-interpretativo fundado na esteira do tecnicismo específicos sobre problemas musicais e demais referências feitas à música em diversos outros momentos.

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aplicado, filho da ciência positiva, ou no âmbito racionalista e subjetivo que confere ao intérprete o poder sobre a obra. Para chegar à ideia de música como modelo para as ciências interpretativas, Gadamer parte da relação entre música e tempo. Já é bem conhecido o papel determinante que a experiência da arte ocupa no todo do projeto filosófico gadameriano. Arte, história e linguagem compõem três grandes partes de Verdade e método, sua obra principal. Mas como interpretar o papel da música nesse contexto? Ou de forma mais específica: em que medida a música pode ser compreendida a partir da crítica gadameriana ao método? É possível encontrar em vários textos da obra gadameriana momentos nos quais o hermeneuta lança mão da música como dimensão capaz de tornar claro seu problema filosófico. Já em Prefácio à 2ª edição de Verdade e método essa problemática está bastante clara. A maneira como é posta, além de justificar o interesse do filósofo pela experiência da arte, vincula-a ao 86 todo de seu projeto entendendo ser a experiência com a obra de arte musical um exemplo fundamental. Uma boa compreensão da música vinculada ao todo do projeto gadameriano passa pelas intenções do filósofo, as quais deixam claro que sua “[...] investigação coloca a questão do todo da experiência humana de mundo e da práxis da vida [e,] falando kantianamente, ela pergunta como é possível a compreensão” (GADAMER, 2007, p. 16). Nesse contexto, a música converte-se em problema de racionalidade, ao passo que integra o todo de nossa experiência de mundo, vinculada à pergunta sobre as possibilidades da compreensão. O filósofo quer mostrar com tal argumento que “essa é uma questão que precede a todo comportamento compreensivo da subjetividade e também ao comportamento metodológico das ciências da compreensão, as suas normas e regras” (GADAMER, 2007, p. 16). Como crítica ao modelo interpretativo herdeiro da relação dicotômica entre sujeito e objeto, a hermenêutica gadameriana tem como objetivo mostrar “que a compreensão jamais é um comportamento subjetivo frente a um ‘objeto’ dado, mas pertence à história efeitual, e isto significa, pertence ao ser daquilo que é compreendido” (GADAMER, 2007, p. 16). Daí nosso interesse em buscar na obra gadameriana reflexões e Prolegômena: Gadamer e a música considerações sobre a música, integrando-a a seu projeto filosófico mais amplo, pois, como afirma Gadamer (2007, p. 16),

não posso dar-me por convencido quando me objetam que a reprodução de uma obra de arte musical é interpretação em sentido diferente do que, por exemplo, a compreensão que se dá na leitura de uma poesia ou na observação de um quadro. Toda reprodução já é interpretação desde o início e quer ser correta enquanto tal. Nesse sentido, também ela é ‘compreensão’.

Dessa passagem, podem se desdobrar questões diversas. Para a discussão proposta aqui, cabe observarmos a posição em que a obra de arte musical se encontra e como decorre daí o conceito de interpretação. A experiência com a reprodução da obra de arte musical justifica a ideia de interpretação que em si já é compreensão. Em sentido 87 epistemológico-musical, “vale dizer que todo aquele que faz a experiência da obra de arte [musical] acolhe em si a plenitude dessa experiência, e isto significa, acolhe-a no todo de sua autocompreensão, onde a obra significa algo para ele” (GADMAER, 2007, p. 16). A argumentação conduzida até aqui nos ajuda a compreender em torno do que giram as preocupações deste ensaio e, de maneira produtiva, a entender que discutir sobre música e tempo em Gadamer vincula-nos à tradição hermenêutica que, de Schleiermacher, passando por Dilthey e Heidegger, até Gadamer, apresentou uma crítica epistemológica ao problema do método e da compreensão no qual o tema da verdade ocupou lugar central. Além das muitas referências feitas à música em vários momentos de seus escritos, compõem as Obras Completas de Gadamer três importantes escritos sobre música. São eles: Goethe und Mozart – das Problem Oper (1991), Bach und Weimar (1946) e Musik und Zeit (1988). 2 Vale considerar que muitos outros

2 Aqui, não nos deteremos ainda na análise e reconstrução interpretativa desses escritos. Esse esforço comporá um momento posterior da pesquisa.

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problemas musicais podem ser encontrados no todo da obra. Principalmente quando se leva em conta a melodia da linguagem e a poesia, que não terão nossa atenção durante este ensaio, embora componham núcleos de interesse no desenvolver da pesquisa. O caráter introdutório deste ensaio exige-nos agora uma delimitação. Assim, reconstruiremos interpretativamente os problemas apontados por Gadamer no escrito Música e tempo de 1988.

II A forma como o filósofo introduz o problema passa pela reposição de algumas tarefas da filosofia, a qual tem como objetivo entender o pensar, o aspirar e o perguntar humanos e tornar novamente compreensível o que está aí naturalmente. Nessa perspectiva, tal tarefa adquire vasta abrangência, de forma que poucas coisas são capazes de oferecer resistência à 88 insuperável tarefa filosófica do questionamento. Isso já nos é conhecido na experiência da linguagem, que, levada adiante por nós, está sempre a ultrapassar barreiras na concepção dos conceitos. Impõem-se, portanto, como problemática à tarefa do filosofar toda e qualquer experiência que sugere a nós limites da linguagem. Para Gadamer (1998, p. 90), é justamente nos limites da linguagem que se nos apresentam “dois grandes enigmas que nos atormentam, que são repetidamente apresentados ao filosofar sem vermos via de solução”: a música e a matemática. Esses dois campos da formação cultural do mundo europeu encontram-se, portanto, estreitamente ligados, de forma quase inseparável durante a história, a ponto de tal estreiteza poder ser identificada tanto nos pitagóricos quanto hoje. No que diz respeito à matemática, o desafio filosófico está ligado ao fato de o enigma dos números residir apenas em nossa ação pensante, realidade independente e absolutamente alheia a nosso domínio. A perplexidade que surge aqui liga-se, como afirma Gadamer (1998, p. 90), ao fato de estarmos diante de algo que obedece a sua própria lei. Na mesma condição que os números se encontra o espaço. Ambos sem aparo no universo da linguagem. Nesse âmbito, afirma Gadamer (1998, Prolegômena: Gadamer e a música p. 90), “os sistemas simbólicos de signos, com cuja ajuda se articulam, conduzem ao um enigmático apeíron, com que, ao final das contas, provavelmente inicia-se o pensar humano”. Em todo caso, o pensar que acompanha a linguagem e nossa vinculação ao conceito e ao uso de signos revela o desejo humano em iluminar um mundo inacessível, que está sempre a se ocultar. Para Gadamer, a matemática está para além de um sistema instrumental, o qual por meio dos signos se fixa o mundo das concepções. Mas o que são os números, a matemática? E como esse problema pode ser levado a sério a partir do outro mundo da linguagem que Heidegger denominou a casa do ser? 3 Essa colocação, como é próprio da hermenêutica

3 Para Heidegger (1973), de acordo com a sua Essência, a linguagem é a casa do Ser, edificada em sua propriedade pelo Ser e disposta a partir do Ser. Por isso urge pensar a Essência da linguagem numa correspondência ao Ser e como uma tal correspondência, isto é, como 89 a morada da Essência do homem. Segue a isso a ideia de que o próprio ser delimita sua circunscrição, que é circunscrita pelo fato ( temmein, tempus ) de ele se manifestar fenomenologicamente na palavra. A linguagem é a circunscrição ( templum ), quer dizer, a casa do ser. A essência da linguagem não se esgota na significação, nem é ela apenas algo que se apresenta como sinal e cifra. Porque a linguagem é a casa do ser, nós atingimos os entes passando constantemente por essa casa. Quando vamos ao poço, quando percorremos uma floresta, já sempre estamos passando pela palavra “poço” e pela palavra “floresta”, mesmo quando não pronunciamos essas palavras nem pensamos em algo que se refere à linguagem. Pensando a partir do templo do ser, podemos presumir aquilo que ousam aqueles cuja ousadia vai além do ser dos entes. Eles ousam a circunscrição do ser. Eles se aventuram com a linguagem (HEIDEGGER, 2002). Cabe ainda considerarmos que uma das originalidades de nossa época é haver descoberto na temporalidade e historicidade a morada de toda a existência. Em consequência, o problema do tempo deixa de ser considerado apenas como o de uma “propriedade” das coisas. Temporalidade e historicidade são a estrutura do ser do homem e de todo o mundo humano. Não apenas enquanto ato e dinamismo mas também como conteúdo, a existência é o vigor de uma configuração histórica. Em cada momento da vida está em jogo toda a vida no sentido de o sujeito empenhar a vida inteira durante toda a sua vida. Em cada um de seus momentos se “com-plicam” todos os demais; os momentos do futuro e passado se “im-plicam” no presente e o curso histórico não é senão a

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gadameriana, põe em xeque a pretensão das ciências da natureza em traduzir a linguagem de fórmulas em palavras e conceitos em busca da perda da aparência de univocidade (GADAMER, 1998). Partindo desse ponto, chega-se ao problema da “linguagem dos sons” e à “música da linguagem”. Dessa forma, o ideal heideggeriano de linguagem enquanto casa do ser serve a Gadamer como caminho de crítica a toda e qualquer pretensão de univocidade no âmbito da linguagem. Se, entende o hermeneuta, as ciências naturais precisam reconsiderar suas pretensões positivistas; à música essa mesma tarefa se apresenta, quando em um outro questionamento, o filósofo afirma que o mundo dos sons não é como o mundo da matemática, “um mundo tão completamente distinto do mundo interpretado pelos sons naturais da linguagem humana” (GADAMER, 1998, p. 91). O filósofo segue com a defesa, ao afirmar que, mesmo os que não estão familiarizados com a notação musical, percebem sua autonomia, a qual é muito distinta do jogo das fórmulas 90 matemáticas, que também possuem seus próprios encantos. O problema que se ergue daqui se dá por meio dos seguintes questionamentos: “acaso é a linguagem dos sons uma linguagem real, como a linguagem da arte poética? Acaso não está em jogo, quando se ‘faz música’, uma audição parecida com a da classe de leitura?” (GADAMER, 1998, p. 91). Está referida aqui a melodia da linguagem que perpassa a poesia, inclusive durante a leitura silenciosa. Há, para o filósofo, uma distância intransponível entre a forma do sentido e o som que se ouve quando se lê, mesmo a qualquer som audível, embora seja o da própria voz. Com essa perspectiva, somos conduzidos a uma das teses centrais que perpassam o estudo – e que alude à novidade filosófica apresentada: “ao deixar que um texto fale, e este o poder fazer, o chamamos interpretação. Parece ser o mesmo que acontece com quem faz música e o mesmo que faz o leitor quando ler com compreensão” (GADAMER, 1998, p. 92). Ergue-se daqui a exigência do olhar crítico aos que atribuem um sentido secundário à interpretação musical, uma

“ex-plicação” objetiva desse movimento de “com-plicação” e “im- plicação” (HEIDEGGER, 2006). Prolegômena: Gadamer e a música atitude comum ao comportamento científico-tecnicista, para quem a interpretação deve levar a marca da objetividade científica. Para Gadamer, no acontecimento da compreensão a marca da cientificidade deve se constituir em ‘secundário’. Dado que no processo da interpretação as experiências nunca são, de todo, repetíveis, o ouvinte-leitor de uma poesia nunca voltará a lê-la como da outra vez, embora sempre lhe compreenda em seu todo (GADAMER, 1998). Assim, quando afirma o filósofo que “nenhum intérprete, seja da classe que seja, deveria desejar existir de outro modo que desaparecendo [diante da obra]” (GADAMER, 1998, p. 92), ele confere à obra autonomia, esclarecendo que os sentidos existentes aí devem surgir de uma relação hermenêutico-dialógica. Aqui chegamos ao ponto do qual partimos: a ideia central gadameriana, segundo a qual a experiência com a música contribui para se pensar os caminhos das ciências interpretativas. Mas como se pode levar adiante tal tarefa? 91 III No que diz respeito ao projeto filosófico-hermenêutico gadameriano, a ideia de música como modelo para as ciências interpretativas oferece-nos as condições de tematizar música enquanto problema de racionalidade e ajuda-nos no questionamento crítico de processos demasiados cientificistas que norteiam concepções de interpretação e no trato com o texto musical, seja quando nos referimos à poesia, seja quando nos referimos à partitura. A obra musical que se nos apresenta exige que levemos a cabo a interpretação. Dada tal exigência, nos deparamos com o conceito de tempo. Para tornar claro o problema do tempo, o hermeneuta lança mão da palavra Vollzug (levar a cabo), peculiar e assombrosa, por sua tensão dialética. Para Gadamer (1998, p. 92), “toda Zug (tendência) é um transcurso no tempo e todo transcurso no tempo deixa atrás de si o tempo transcorrido, deixando vazio o local que alguém acaba de atravessar a toda pressa”. Aqui repousa uma ideia mecânica de tempo, a que seguiu a modernidade nas trilhas de Galileu e Newton. Contra a ideia de tempo como tendência, o hermeneuta apresenta o interpretar, “que é

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compreender e não deixa nada vazio, nem atrás de si, nem a sua frente” (GADAMER, 1998, p. 92). Continua:

É verdade que a dialética do tempo que transcorre e se consome rege tudo. E quando alguém compreende algo, o tem detido. Quem compreende algo, o retém em uma configuração do tempo no meio de uma tendência, [...] a que damos o nome de vida e que não termina em uma duração permanente. Porém, o que está detido não é célebre nunc stans como instante de inspiração. É, antes, [...] o tempo mesmo. Temos conhecimento dele. Quem se abandona a algo, esquece o tempo (GADAMER, 1998, p. 93).

O compreender surge como uma sorte de demora, que não se mede em horas por ser o tempo ele mesmo. Ao chegar a esse momento, Gadamer (1998, p. 93) entende ter podido explicitar o “‘enigma da música’ e o que a distingue de todas as 92 demais artes”. Música define-se, portanto, como um levar a cabo: “é certo que nas demais artes o ‘compreender’ há de ter a mesma configuração de tempo [...] porém só na música discorre como pura prolongação” 4 (GADAMER, 1998, p. 93). Essa perspectiva presenteia-nos, consequentemente, com um novo sentido de tempo e uma abertura em relação ao conceito de música. Esta se define, portanto, como “a verdade do levar a cabo” (GADAMER, 1998, p. 93), uma vez que detém em si mesma a própria prolongação. Nesses termos, assim como afirma o filósofo, a abertura da ideia de música enquanto prolongação confunde-se com o conceito de jogo (Spiele). 5

4 Para Gadamer (1998), em qualquer outro lugar sempre há algo que está detido dento dessa prolongação, seja o significado estrito das palavras, seja o sentido perceptível do discurso. Assim ocorre na poesia e também na prosa do pensamento. Também há algo na sequência das figuras da dança, e inclusive na sequência estruturada do quadro, da escultura, da obra arquitetônica. 5O Conceito de jogo constitui-se num conceito fundamental no todo do projeto filosófico gadameriano. Considera Gadamer (1985): quando é que se fala de jogo e o que está implícito nisso? Certamente de início, o ir e vir de um movimento que se repete constantemente, um movimento que não está ligado a uma finalidade última. O especial do Prolegômena: Gadamer e a música

Gadamer assume a possiblidade de crítica em relação ao problema que propõe, uma vez que sempre será possível questionar se a música não se encontra limitada a proporções e formulações matemáticas. Temos como exemplo o classicismo vienense, o qual pode ser compreendido, na tradição ocidental, como a expressão mais madura de tal perspectiva. Por outro lado, um olhar atento conseguirá perceber, “tanto na música como nas demais artes, que nosso século tem reconhecido novos impulsos de outros mundos culturais – pensem na violência desenfreada do ritmo e nos estimulantes efeitos que exerce a retórica estrangeira do som, vocal e instrumental” (GADAMER, 1998, p. 93). Essa experiência enigmática é o que nos permite entender também a ideia de música como pulso vital que nos entusiasma, pois “são, novamente, configurações do tempo” (GADAMER, 1998, p. 93). O encaminhamento conclusivo de Gadamer dá-se com a ideia de que todo o impulso musical de outras culturas 93 jogo humano é que o jogo tanto pode incluir a razão, essa característica tão própria do homem, de poder dar-se objetivos e tentar alcançá-los conscientemente, como também anular a característica distinta da razão de impor-se objetivos. Outro aspecto importante é que o jogo seja nesse sentido um fazer comunicativo. Ele desconhece a distância entre aquele que joga e aquele que se vê colocado na frente do jogo. Para Gadamer (2007), quando falamos de jogo no contexto da experiência da arte não nos referimos ao comportamento nem ao estado de ânimo daquele que cria ou daquele que desfruta do jogo e muito menos à liberdade de uma subjetividade que atua no jogo, mas ao modo de ser da própria obra de arte. O movimento que é jogo não possui nenhum alvo em que termine, mas renova-se em constante repetição. O movimento de vai e vem é obrigatoriamente tão central para a determinação da essência do jogo que chega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. O movimento do jogo como tal também é desprovido de substrato. É o jogo que é jogado ou que se desenrola como jogo; não há um sujeito fixo que esteja jogando ali. O jogo é a realização do movimento como tal. Assim, o jogo da arte é muito mais um espelho que sempre emerge novamente através dos milênios diante de nós, um espelho no qual olhamos para nós mesmos – com frequência de maneira por demais inesperada, com frequência de maneira por demais estranha –, no qual olhamos como somos, como poderíamos ser, o que acontece conosco (GADAMER, 2010).

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coincide com a rápida expansão cultural, científica, técnica e industrial europeia. Isso, de fato, nos apresenta aspectos que precisam ser interpretados, pois trata-se de um fenômeno planetário em que se apresentam infinitas questões. Por outro lado, é como se estivéssemos abrindo espaço para uma comunicação planetária “que não é uma espécie de sopro imaterial do espírito, mas se deve a uma ação corporal, um fazer música, sempre a mesma e sempre nova” (GADAMER, 1998, p. 90). Nesse texto em específico, o filósofo está convencido de que essa é uma reflexão que deve ser levada adiante: o que fica claro com o aspecto inconclusivo com que o texto se encerra. Pensar a música a partir de Gadamer compromete-nos, portanto, com sua decidida posição em não tematizar a arte como forma de definição do belo ou de conceituar diferentes formas de arte, mas em demonstrar que a arte, em nosso caso, a música, é uma forma de verdade sobre o mundo, e não um estado alterado de sentimentos individuais: um ponto crucial de acesso às verdades fundamentais sobre o 94 mundo (LAWN, 2007). Acreditamos apresentar com este ensaio um passo significativo para desdobramentos futuros sobre a música em Gadamer. Na perspectiva hermenêutica, somos impelidos a dialogar com o conceito de música e sua carga histórica de sentidos. Abertos ao diálogo, tal perspectiva não só nos possibilita investigar a tradição musical, mas, sobretudo, dialogar com novas experiências de nosso tempo. Em sentido filosófico, a concepção gadameriana de música a vincula a problemas fundamentais da epistemologia moderna e contemporânea e, com isso, possibilita-nos entender a música e as experiências que nesse universo podem ser desenvolvidas a partir de conceitos filosóficos fundamentais, tais como tempo, interpretação, linguagem, verdade, historicidade e compreensão. Por isso a ideia gadameriana que perpassa nosso ensaio, a de que as experiências com a música são de fundamental importância para se discutir os caminhos das ciências interpretativas.

Prolegômena: Gadamer e a música

Referências bibliográficas GADAMER, H-G. A atualidade do belo : a arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. ______. La música y el tempo. In: Arte e verdad de la palabra . Barcelona: Paidos, 1998. p. 90-94. ______. O jogo da arte. In: Hermenêutica da obra de arte . Trad.: M. A. Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 49-56. ______. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. ______. Verdade e método II: complementos e índice . 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. GRONDIN, J. Introducción a la hermenéutica filosófica . Trad.: A. A. Pilári. Barcelona: Herder, 2002. HEIDEGGER, M. Caminhos de Floresta . Trad.: I. Borges-Duarte e F. Pedroso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. ______. Ser e tempo . Petrópolis: Vozes, 2006. 95 ______. Sobre o humanismo .(Coleção Os Pensadores). Trad. E. Stein. São Paulo: 1973. LAWN, C. Compreender Gadamer . Trad.: H. Magri Filho. Petrópolis: Vozes, 2007. RAJOBAC, R. Experiência hermenêutica e formação para o reconhecimento em Gadamer. Revista Espaço Acadêmico , Maringá, n. 134, jul. 2012, p. 1-8.

Corpo e sociabilidade na experiência musical: por uma estética da heteronomia

RAINER PATRIOTA

Não se sabe se a arte pode ainda ser possível; se ela, após a sua completa emancipação, não eliminou e perdeu os seus pressupostos. Adorno, Teoria Estética

o final do século XVIII em diante, a ideia da autonomia da Darte converte-se num problema estético central. Do ponto de vista sociológico, o advento da “arte autônoma” coincide com o fim da sociedade de corte e a consolidação dos valores racionalistas propagados pelo Iluminismo burguês. No quadro da nova racionalidade, a dignidade do artista consiste não em atender a demandas funcionais (serviço religioso, divertimento público ou privado etc.) de setores e classes sociais, mas antes em se dirigir aos interesses superiores do espírito e da razão. No plano conceitual, o pensamento de Kant será o grande divisor de águas. Para este filósofo, o homem é dotado de três faculdades espirituais: a faculdade moral, a faculdade intelectual e a faculdade estética. A cada uma corresponde um princípio exclusivo e a priori. Isso significa dizer que o domínio da arte deixa de ser encarado como uma esfera menor, um tipo inferior – ainda que útil – de conhecimento, tornando-se um campo de valores autônomos, fundados em si mesmos (LUKÁCS, 1974, p.71). Mas foi sobretudo no campo da música que a ideia de autonomia surtiu efeitos transformadores. Até meados do século XVIII a música instrumental encontrava-se nos degraus inferiores do sistema das belas-artes. Com o advento do romantismo, a música instrumental passa a ser reverenciada como um tipo privilegiado de linguagem. A criação da forma- sonata no último terço do século XVIII foi um evento decisivo Corpo e sociabilidade nesse sentido. A despeito da presença ativa de elementos tomados de empréstimo à dança, ao léxico retórico do barroco e a outras fontes extramusicais (RATNER, 1980, p. 3-29; HARNONCOURT, 1998, p. 165-174), é através das funções harmônicas do sistema tonal – portanto, de um elemento estritamente sonoro-musical – que a forma sonata estrutura seu discurso e define sua peculiaridade formal e estilística (cf. ROSEN, 1997). Daí a pertinência da colocação de Fubini (1987, p.103):

Talvez seja na forma sonata que a música pela primeira vez se organiza numa linguagem sintaticamente complexa e não presa ao prestígio de outras linguagens; a suíte era estruturada segundo o modelo das danças, e portanto de uma cerimônia social; o concerto grosso e aquele solístico tripartido de tipo vivaldiano, embora se aproximem do processo de formação de uma linguagem musical autônoma, refletem as formas e os estilos do teatro melodramático. Só a forma sonata realiza pela primeira vez completamente a 97 aspiração a uma música que fala a sua linguagem em um âmbito propriamente seu; para usar uma metáfora literária, se poderia dizer que, se a invenção da harmonia lançou as bases de uma gramática da linguagem musical, a forma sonata criou não só uma sintaxe, mas uma estrutura narrativa comparável ao romance moderno.

Se a forma-sonata possibilitou a noção de um discurso musical autônomo, Beethoven a realizou do modo mais pleno, dela extraindo consequências sociais e políticas. Ainda que a sua formação escolar tenha sido breve, já que não foi além do ensino fundamental, deixando-lhe inclusive algumas lacunas significativas (KERMAN, 1989, p.14; STANLEY, 2000, p. 25), Beethoven não apenas viria a manifestar um grande interesse pelos mais elevados produtos da cultura alemã de seu tempo, como a poesia de Goethe, Schiller e a filosofia de Kant 1, como

1 É famoso o trecho de seu diário do ano de 1820 que reproduz o clássico aforismo kantiano: “A lei moral em nós; o céu estrelado acima de nós – Kant!!!” (BEETHOVEN apud STANLEY, 2000, p.25).

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também se colocaria orgulhosamente no mesmo patamar de importância desses autores. E mesmo tendo sido beneficiário de muitos patronos, Beethoven, coerente com sua autoimagem, jamais se eximiu de afirmar sua independência artística e profissional, a ponto de, em certas ocasiões, desperdiçar oportunidades economicamente vantajosas junto às esferas de poder da aristocracia alemã (STANLEY, 2000, p.14-15). Seu senso de dignidade era de uma suscetibilidade extrema. Ora, é inegável que a autonomia da música instrumental foi uma conquista histórica das mais importantes, quer em termos sociais, quer estéticos. No entanto, seu desenvolvimento ao longo de todo o século XIX e da primeira metade do século XX foi também um paulatino processo de alienação, com efeitos colaterais perversos para a experiência musical. Efeitos que, em grande medida, seriam motivados por uma desconsideração crescente – e metafisicamente orientada – da dimensão lúdica e material da música, então contraposta 98 ao que seria a verdadeira essência dessa arte. Para Schelling, por exemplo, “a música é a arte que mais se desprende do elemento corporal, pois apresenta um movimento em si mesmo, despojado de todo objeto, sustentado por asas invisíveis, quase espirituais (SCHELLING apud BONDS, 2014, p. 70)”. Mas é Hoffmann quem redefine o marco estético da nova música. Nas palavras de Evan Bonds:

Hoffmann imprime um novo giro à imagem tradicional da música como linguagem: nas mãos de Beethoven, a música instrumental havia se convertido em algo parecido com um código secreto, compreensível apenas para uma elite de iniciados” (BONDS, 2014, p.104-105).

E o musicólogo prossegue mais adiante:

A Quinta Sinfonia de Beethoven e outras obras similares já não são consideradas [por Hoffmann] como simples meios de entretenimento, mas como veículos da verdade. A escuta se converte em uma forma de conhecimento (BONDS, 2104, p.106). Corpo e sociabilidade

Daí que, a partir do romantismo, a obra musical tenha sido revestida de uma sacralidade até então desconhecida. De agora em diante, a obra possuirá uma identidade em si mesma, acima das suas possíveis interpretações. A música “séria” desfaz o antigo amálgama entre compositor e intérprete, privilegiando a “obra do gênio”, aquela que é fruto exclusivo do compositor e que, no limite, apenas ele é capaz de representar. Assim, a liberdade criativa do intérprete “ficará limitada radicalmente pelo estilo autobiográfico da composição” (HARNONCOURT, 1998, p. 43). Isso explica porque o próprio Beethoven, apesar de ter sido um ardoroso improvisador, se opunha de modo intransigente a que os intérpretes improvisassem em suas peças (ROSEN, 1997, p. 101). Os românticos inauguram a ideia de que a obra de um compositor não deve sofrer nenhuma interferência. Nesse sentido, como bem observou Nikolaus Harnoncourt (1998, p.35), a notação posterior a 1800 se distingue do que era hábito no passado pelo fato de ser uma indicação não apenas da obra, mas também de sua execução. “Os detalhes da interpretação eram 99 fixados tão precisamente quanto possível, cada nuance, cada pequeno ritenuto, a menor modificação de tempo, tudo estava prescrito” (HARNONCOURT, 1998, p. 43). A consequência mais grave dessa estética, e que, no limite, implica uma enorme contradição, é a eliminação do intérprete e, com ele, do som. Thomas Mann, em seu Doutor Fausto, que expõe brilhantemente o espírito do romantismo musical alemão, não teme em apontá-la.

Talvez – disse Kretschmar – seja o mais íntimo desejo da Música não ser ouvida, nem tampouco ser vista ou sentida, e sim, se possível, ser percebida e enxergada unicamente num além dos sentidos e até da alma, numa região espiritualmente pura (MANN, 1984, p.84).

Na verdade, como em tantos outros momentos desse romance, também aqui é crucial a influência de Theodor Adorno, cujas ideias foram largamente aproveitadas por Thomas Mann para a composição do perfil intelectual do professor Kretzschmar. Nesse sentido, não é casual que

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Adorno, em nome da integridade da composição, tenha ido tão longe a ponto de ressaltar as vantagens de uma “escuta” que prescinda de qualquer execução. Num ensaio a propósito de Schoenberg, dirá:

Uma silenciosa e imaginativa leitura da música poderia fazer a execução sonora tão supérflua como a leitura pode tornar supérflua a fala, e isso ainda poderia libertar e sanar a música do mal que hoje quase toda execução faz ao conteúdo compositivo (ADORNO, 1969, p.183).

Adorno mostra-se aqui não apenas um continuador da tradição romântica, mas também aquele que a levou às suas últimas consequências em termos estéticos. Sua teoria repõe, a partir de seu alinhamento com Escola de Viena e de uma teoria crítica das sociedades industriais, as premissas centrais da 100 autonomia da música formuladas no interior dessa mesma tradição. Para Adorno, a arte autônoma possui uma relação essencialmente negativa com o mundo que a gerou, constituindo sua contraimagem “irracional”, mas por isso mesmo crítica, subversiva e utópica. Nas suas palavras

O obscurecimento do mundo torna racional a irracionalidade da arte: mundo radicalmente ensombrado. O que os inimigos da arte nova, com instinto mais sagaz do que os seus apologistas ansiosos, chama a sua negatividade é a própria substância do que foi recalcado pela cultura estabelecida (ADORNO, 2004, p.31).

Ora, o postulado adorniano da negatividade e da autonomia radicaliza, com um forte acento sociológico, a ideia romântica da música como conhecimento, como verdade. E, como não podia ser diferente, ela impõe restrições tão severas à música que finda por atentar contra aquilo que constitui seus mais elementares pressupostos – coisa que, aliás, o próprio Adorno reconhece, como se pode ler na frase pungente de sua Teoria estética reproduzida, aqui, como epígrafe. Pressupostos que remetem diretamente ao corpo e à sociabilidade, ou seja, Corpo e sociabilidade justamente àquilo que Adorno, por sua visão crítica da cultura de massa, rechaça como elementos de regressão e inautenticidade. Ora, em nome do que defendia como música avançada, Adorno vituperou a música popular, o jazz (sobretudo aquele tocado em bailes nos anos 1930), a música barroca e as correntes neoclássicas do século XX, a exemplo de Stravinsky e Hindemith; ao eleger a música de Schoenberg e de sua escola como as únicas realmente aptas a representar o seu tempo e a combater o espírito adoecido da sociedade massificada, Adorno rejeitou qualquer outra forma de expressão musical, sobretudo aquelas pautadas em finalidades sociais, como dançar, divertir, ambientar, gerar sentimentos agradáveis. Mas antes de serem meros sintomas de alienação e regressão, esses usos da música parecem estar arraigados em nossa natureza mais profunda e ancestral, constituindo modos de manifestação de nossos afetos e de nossa relação vital com o mundo. E essa tem sido a tônica das ideias que, desde o fim da 101 Segunda Guerra Mundial e da hegemonia do modelo austro- germânico, vêm sendo propostas em frontal oposição à concepção romântica da música autônoma. Essas ideias surgem de fontes diversas, como a antropologia, a arqueologia cognitiva, a psicologia do desenvolvimento etc. De fato, de lá para cá, encontramos um conjunto de conceituações e ideias que tentam apreender o fenômeno musical à luz de suas múltiplas relações com a vida, sem distinções hierárquicas rígidas entre o que seriam suas formas superiores e as inferiores, a música “séria” e a música “ligeira”. *** Nos anos 1950, o músico e antropólogo John Blacking conviveu por quase dois anos com o povo Venda no sul da África. O relato e a síntese teórica de sua aventura vieram a público duas décadas depois no livro How musical is man? No prefácio, o autor chama a atenção para o que julga essencial:

O povo Venda me ensinou que a música não pode ser nunca uma coisa encerrada em si mesma, e que toda música está radicada no povo, ou seja, que nenhuma música pode ser

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transmitida ou fazer sentido sem a associação entre as pessoas. As diferenças de complexidades e de estilos e técnicas não dizem nada de útil sobre a finalidade e o poder expressivo da música, ou sobre a organização intelectual envolvida em sua criação. A música está profundamente relacionada com os sentimentos e as experiências [dos homens] em sociedade...Muitos, senão todos os processos essenciais da música podem ser rastreados na constituição do corpo humano e nas formas como esse corpo interage socialmente. Daí que toda música seja, em termos de estrutura e funcionalidade, música do povo. Aqueles que fazem música “artística” não são mais sensíveis ou mais inteligentes que o músico popular: as estruturas de sua música simplesmente expressam, por processo similares ao da música Venda, os sistemas mais numerosos de interação das pessoas com sua sociedade, as consequências de uma divisão mais extensiva do trabalho, e uma tradição de acumulação tecnológica (1973, p.XI).

102 Essas palavras de Blacking traduzem a consciência de um músico educado numa sociedade em que a música considerada autêntica não é aquela fruída e feita pela maior parte das pessoas, mas sim por um pequeno e seleto grupo de músicos profissionais e ouvintes iniciados que se reúnem em ambientes solenes para realizar um ritual cheio de tensão e distância entre atores e expectadores; sociedade na qual a música muitas vezes é tomada mais pelos seus aspectos técnicos e formais – “como uma coisa encerrada em si mesma” – que por aquilo que possa dizer ao corpo e aos sentimentos, uma vez que a música não está associada a uma espontaneidade natural dos seres humanos, mas a um talento especial e a uma formação especializada. A experiência antropológica de John Blacking com os Vendas, bem como as conclusões que viria a partilhar em seu livro, seriam paradigmáticas para futuras gerações de músicos e pesquisadores ocupados em ampliar sua compreensão do fenômeno musical para além do modelo legado pela tradição clássico-romântica e disseminado não apenas musicalmente nos conservatórios e salas de concerto, mas também por vias teóricas sedimentadas numa vasta literatura musicológica e estética. Ao deslocar o foco da investigação musical para a Corpo e sociabilidade

“diferença”, estabelecendo uma relação mais empática e horizontal com aqueles que outrora eram vistos como inferiores e exóticos, a etnomusicologia, superando suas origens como subdisciplina da musicologia, possibilitou a revisão de muitos conceitos e lançou novas luzes sobre as origens da música e suas formas de objetivação e recepção (MEYERS in CRUCES, 2001, p.19-35). Embora fortemente comprometida com o discurso da diferença, alicerçada na ideia de que cada cultura forma seu próprio horizonte de sentido, a etnomusicologia não deixou de apontar para o fato de que, nas mais diversas regiões habitadas pelo homem, a música é um fator de comunhão e encantamento, envolvendo o físico e o psíquico numa teia vivencial altamente significativa e comunitária. Fundamental para essa discussão seria, numa outra frente, a contribuição da musicologia cognitiva. Buscando entender os processos psicológicos relativos à experiência musical, ela ajudou “a destruir os velhos preconceitos da 103 etnomusicologia” (BALL, 2010, p.17), ou seja, a aproximar as culturas, destacando suas semelhanças. Um dos mais ativos e influentes musicólogos da cognição, o americano David Huron, por exemplo, chamou a atenção para o fato de que, nas mais diversas culturas do mundo constatam-se determinados padrões de associação afetiva ou psicológica presentes na experiência musical. Assim, por exemplo, uma linha melódica qualquer normalmente é entendida como mais afetuosa quando executada numa região mais aguda, pois o grave, nas mais distintas culturas, costuma estar associado a ameaça e agressividade (HURON, 2014). Também em termos de organização do material musical, notam-se certas constâncias. Examinado melodias folclóricas dos cinco continentes, Huron verificou que os saltos intervalares de maior abertura ocorrem mais frequentemente em movimentos ascendentes que descendentes e que os intervalos mais recorrentes nos casos dos saltos ascendentes são os de quinta justa e sexta maior; também constatou a tendência a se compensar os saltos ascendentes com movimentos contrários em grau conjunto (Cf. HURON, 2012, p.23-24) E o que parece ser mais relevante: os estudos cognitivos vêm reforçando a tese acerca da origem comum

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entre música e linguagem. Pelo menos desde Rousseau, especula-se em torno dessa hipótese. O próprio Darwin se mostrou favorável a ela. Ian Cross observou que uma das funções da comunicação é apenas promover interação social, fortalecer vínculos. É o caso daqueles encontros perfunctórios do dia a dia em que, de passagem, perguntamos a alguém “olá, como vai”? e o outro responde, “vou bem, obrigado, e você?” (CROSS in CLAYTON, 2012, p.25). O caráter informativo é aqui apenas aparente, pois na verdade o que estamos fazendo é uma vocalização amigável com o objetivo de estabelecer ou confirmar um vínculo social. Vocalização que poderíamos considerar como uma espécie de protoforma da música. De fato, sob esse ângulo, a música “nada mais é” que uma extensão complexa de vocalizações originárias do intercâmbio afetivo entre os seres humanos. Para Ian Cross, é perfeitamente possível que nos começos evolutivos da humanidade

104 algo parecido com a música” possa ter contribuído para que nossos ancestrais estabelecessem vínculos uns com os outros...Com efeito, num cenário evolutivo em que a capacidade para criar e manter relações sociais é tão importante para a sobrevivência quanto qualquer outro atributo individual como força, velocidade, acuidade perceptiva etc., o poder da música para estimular e consolidar a formação de acordos sociais deve ter tido um valor adaptativo considerável no repertório geral das condutas humanas (CROSS in CLAYTON, 2012, p.25).

Promover a socialização de nossos ancestrais numa época crucial de sua evolução – teria sido esse o papel da música em seus começos. Essa tese não é exclusiva de Ian Cross; muitos pesquisadores vinculados à teoria da evolução hoje entendem que a ancestralidade e ubiquidade da música derivam fundamentalmente de seu impacto socializante. O estudo mais fascinante a esse respeito foi empreendido pelo arqueólogo cognitivo Steven Mithen em seu livro The singing Neanderthals. Munido de um aparato teórico multidisciplinar manejado com rigor e muita criatividade, Mithen procura reconstruir o cenário em que o embrião da Corpo e sociabilidade música e da linguagem teria coevoluído. Essa “musilinguagem”, nos termos de Steven Brown (BROWN apud MITHEN, 2006, p.26), é um sistema de comunicação holístico, manipulativo, multimodal e mimético. Sistema que seria um tipo de protolinguagem, mas que no fundo é muito mais música que linguagem, na medida em que não se constitui de elementos referenciais estruturados semântica e sintaticamente, tratando- se antes de um modo de comunicação vocal com impacto emotivo e manipulativo, organizado em alturas e padrões rítmicos (acompanhados de gestos corporais e expressões faciais). Esse sistema teria atingido seu ápice com os neandertais, evolutivamente próximos do homo sapiens, mas ainda carentes de linguagem e representações simbólicas. A “musilinguagem” dos neandertais não só explicaria a sobrevivência desse ancestral, na medida em que teria fomentado relações de cooperação frente a condições ambientais adversas (os Neandertais viveram num período de drásticas oscilações climáticas), mas também representaria 105 uma prova suficiente acerca do caráter adaptativo da música, posto em questão pelo linguista Steven Pinker, para quem a música não passaria de um subproduto da linguagem sem nenhuma serventia adaptativa (cf. MITHEN, 2006, p.11). Na mesma linha de raciocínio de Ian Cross, Mithen procura mostrar que a música surgiu das necessidades de socialização do homem, decorrentes de desafios práticos que exigiam sólidos vínculos comunais e ações coordenadas numa época anterior ao desenvolvimento da linguagem. A cena imaginada por Mithen para esse processo de evolução do “hummm” é uma reconstrução bastante verossímil. Os hominídeos deviam examinar meticulosamente as prováveis intenções, crenças, desejos e sentimentos dos outros membros de um grupo antes de decidir cooperar ou não com eles. Mas em outras ocasiões, simplesmente confiar neles seria mais eficaz, especialmente quando as decisões fossem urgentes. Em consequência, aqueles indivíduos que superavam sua própria identidade individual para forjar uma identidade de grupo partilhando movimentos e vocalizações “hummm”, de conteúdo altamente emocional e portanto musical –, estes teriam prosperado...Fazer música em grupo serviu para facilitar o comportamento cooperativo, na medida em que

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permitiu a expressão da vontade de cooperar, criando estados emocionais comuns, gerando uma preferência pela eliminação das fronteiras, pela afirmação do “nós”, do agrupamento. Com a evolução do homo ergaster e do pleno bipedalismo, o “hummmm” ganhou novas qualidade musicais, enquanto novas pressões seletivas de evolução surgiam da necessidade de transmitir informações sobre o mundo natural, de competir pelo acasalamento e de cuidar dos bebês. Quando os primeiros humanos colonizaram o norte, desenvolvendo formas de caça coletivas, lidando com as dramáticas condições ambientais do Pleistoceno, a necessidade de cooperação se fez ainda maior. Então o fazer musical coletivo no sentido do “hummm” deve ter se espalhando por toda a sociedade humana (2006, p.217-18). Mithen substancia sua teoria com base nos estudos cognitivos sobre o desenvolvimento da criança. Operando num terreno mais firme que o da reconstrução arqueológica, os estudos cognitivos também mostram que os antigos não 106 estavam errados ao relacionar geneticamente a música à voz, às suas inflexões veiculadoras de afetos. Convém, a propósito, recordar o que disse Aristóteles sobre isso:

O discurso é não o referir-se com a voz, mas pelas afecções da voz, e não só para dizer que se sente dor ou alegria. As letras são moduladas pela voz. E, de uma maneira semelhante os bebês e os animais revelam suas afecções, embora os bebês não sonorizem letras (ARISTÓTELES apud CHASIN, 2009, p. 35).

As observações de Aristóteles, genialmente simples, antecipam a conclusão dos psicólogos acerca da prioridade do fator musical sobre o linguístico na comunicação e no desenvolvimento cognitivo e emocional da criança. No livro de Steven Mithen, aprendemos que a chamada IDS (Infant-direct Speech), ou seja, a fala direcionada a bebês, praticada em diversas culturas, repousa sobre o fato intuitivamente percebido e confirmado pela experiência de que os bebês são extremamente sensíveis e responsivos aos sons, já que os sons são o seu principal meio de comunicação. Por um lado, a IDS pavimenta o caminho para a aquisição da linguagem, pois os Corpo e sociabilidade bebês são especialmente hábeis em discernir no fluxo contínuo da fala padrões prosódicos particulares (2006, P.69-84). Por outro, esse falar cantante é um modo de transmitir afeto à criança, complementando, assim, o contato físico, pois, como bem disse Aristóteles, “os sons da voz são reflexos das afecções da alma” (ARISTÓTELES apud CHASIN, 2009, p.37). Neste sentido, as canções de ninar, um fenômeno que também transcende as fronteiras culturais, seriam apenas formas mais complexas do aspecto manipulativo – retórico – da IDS. A canção potencializa o aspecto tonal da voz natural, sendo, pois, um procedimento artístico, procedimento que, como já sabiam os antigos, consiste numa elaboração formal e de caráter mimético de materiais da realidade, no caso, as modulações da fala. Os estudos cognitivos corroboram, assim, uma teoria que norteou hegemonicamente o pensamento e a prática musical durante muitos séculos no Ocidente: a de que a música é a arte das emoções, na medida em que explora artisticamente 107 o vínculo natural entre voz e afeto. Nesse sentido, a diferença essencial entre linguagem e música é que esta, em virtude de seu propósito estético-manipulativo, se apropria da elasticidade vocal a fim de que as emoções aflorem com mais vigor e clareza, seja em associação com a palavra, seja de modo independente, como na música instrumental. Não é de modo algum casual que, nas mais distintas e remotas culturas antigas, a música tenha sido revestida de uma aura mítica, exaltada em seus poderes mágicos sobre o destino dos homens. Orfeu é uma síntese eloquente dessa experiência antiquíssima. Acompanhando de sua lira, esse herói mítico é capaz de amansar as feras mais selvagens, e as próprias pedras dançam sob o efeito de seu canto. E como lembra Ted Gioia (2006, p.20), cantar e encantar – na acepção mágica do termo – compartem a mesma raiz etimológica. Nas culturas antigas e primitivas são muitas as formas de exaltação dos poderes da música. Na tradição hindu, Narada, Shiva e Krishna estão todos associados à música. Na cultura sufi, a música também é vista como uma arte divina (KHAN, 1996). Para os antigos, tamanha era a força da música, que até mesmo os doentes podiam encontrar nela um bálsamo

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revigorador e uma fonte de cura. Na Grécia, o caráter terapêutico da música foi racionalizado pela tradição pitagórica com o conceito de catarse (FUBINI, 1976, p.23). Em tempos mais recentes, o historiador da música Ted Gioia procurou resgatar essa dimensão terapêutica da música em seu livro Healing Songs. E conforme documentado no livro de Steven Mithen, estudos e testes científicos vêm demonstrando que a música pode de fato auxiliar no tratamento de doenças as mais diversas, melhorando o estado emocional dos pacientes, mas também agindo em nível fisiológico, como, por exemplo, no aprimoramento do controle motor sobre pacientes portadores de Parkinson (MITHEN, 2006, p.151). De fato, o efeito da música sobre o estado físico e mental das pessoas há muito não é mais encarado pela ciência como uma especulação de épocas míticas e mentes supersticiosas. Diversas áreas da ciência avançada colaboram para entender os princípios e mecanismos dessa interação já amplamente comprovada e documentada em boletins terapêuticos. 108 Mas foi principalmente Oliver Sacks que, em vários trabalhos importantes, divulgou a informação de que a música pode ser um instrumento eficaz no processo de retardo de doenças degenerativas e na melhora significativa da memória nos pacientes com demência. Isso porque a música é ao mesmo tempo emoção e abstração, pondo em conexão as partes mais primitivas e mais desenvolvidas do cérebro, aquelas responsáveis pela memória motora, afetiva e pelas funções do raciocínio e da linguagem (SACKS, 2013, p.12-13;342ss). Assim como a música unifica os afetos e propicia a formação de vínculos sociais, ela promove uma unificação e uma vivificação das faculdades anímicas, em termos fisiológico e neuronais. Nesse sentido, se o projeto romântico esteve centrado na excepcionalidade dos grandes gênios, dos grandes mestres, bem como na constituição de um cânone altamente seletivo de “obras-primas”, que se destacam pela sua complexidade e originalidade, condição sine qua non de uma fruição intelectualmente densa, a orientação fundamental que surge após o fim da era romântica e pós-romântica se dá em torno da ideia de que a música pode e deve ser entendida também em sua dimensão coletiva e pragmática, onde o corpo e a sociabilidade comparecem como pressupostos Corpo e sociabilidade irrenunciáveis de uma experiência estética cuja legitimidade não deriva de nenhum desvelamento de verdades metafísicas ou sociológicas, mas sim de seu poder para fortalecer nos sujeitos a integração de suas faculdades motora, afetiva e intelectual, promovendo aquilo que Kant chamou de “sentimento de vida”. É o que se depreende das sóbrias palavras de Oliver Sacks:

Anthony Storr, em seu excelente livro A música e a mente, ressalta que, em todas as sociedades, a música tem uma função primordial coletiva e comunal, que consiste em juntar e unir as gentes. As pessoas cantam e dançam juntas em todas as culturas, e é de se imaginar que já o fizessem ao redor das primeiras fogueiras há mais de cem mil anos. Hoje em dia esse papel primordial da música até certo ponto está perdido, pois contamos com uma classe especializada de compositores e intérpretes, e os demais apenas escutam de modo passivo. Temos de ir a um concerto, a uma igreja ou a um festival musical para experimentá-la como atividade 109 social, para recuperar o entusiasmo coletivo e o vínculo que a música cria. Em tais situações, a música é uma experiência comunitária e parece existir, em certo sentido, um autêntico vínculo ou “matrimônio” dos sistemas nervosos, uma “neurogamia” (para utilizar uma palavra muito apreciada pelos primeiros mesmeristas) (SACKS, 2013, p.294).

A título de conclusão, convém deixar claro que propor a discussão de uma concepção “heterônoma” da música não implica em declarar guerra às salas de concerto nem muito menos fechar-se à escuta das grandes obras da tradição europeia. O que se pretendeu aqui foi tão somente problematizar os aspectos ideológicos que, dentro dessa tradição, contribuíram e contribuem até hoje para fomentar percepções distorcidas e parciais do fenômeno musical. Ora, no intuito de dignificar a música, os porta-vozes da tradição romântica e pós-romântica (incluindo diversas vertentes vanguardistas), colocaram uma ênfase demasiado unilateral e muitas vezes epistemologicamente idealista na dimensão intelectual da música, subestimando – quando não desprezando de modo pedante e preconceituoso – uma gama

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de outros aspectos seus (emocional, motor, lúdico, terapêutico, social). E por elegerem um cânone altamente restrito de obras e gênios 2, eles promoveram uma redução inadmissível de horizontes, ignorando a multiplicidade de estilos e formas que caracteriza um mundo de culturas musicais cada vez mais integradas, miscigenadas e plurais.

Referências Bibliográficas ADORNO, T. Prismas. La critica de la cultura y la sociedade . Trad. M. Sacristán. Barcelona: Ediciones Ariel, 1969. ____. Teoria estética . Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2004. BALL, P. The music instinct. How music works and why we can’t do without it . Oxford, New York: Oxford University Press, 2010. BLACKING, J. How musical is man? . Seattle and London: University of Washington Press, 2000 110 BONDS, E. La música como pensamiento. El público y la música instrumental em la época de Beethoven. Trad. F. L. Martín. Barcelona: Acantilado, 2014. CLAYTON, M./HERBERT, T/MIDDLETON,R. The cultural study of music. A critical introduction . New York and London: Routledge, 2012. CHASIN, I. Música serva d’alma: Claudio Monteverdi: Ad voce umanissima . São Paulo: Perspectiva; João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2009 FUBINI, E. L’estetica musicale dal settecento a oggi . Torino: Einaudi, 1987. GIOIA, T. Healing Songs. Durhan and London: Duke University Press, 2006. HARNONCOURT, N. O discurso dos sons: caminho para uma nova compreensão musical . Trad. M. Fagerlande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. HAYNES, B. The End of Early Music: a period performer’s history of music . New York: Oxford University Press, 2007.

2 Sobre o fenômeno do “canonismo” na música de concerto, cf. HAYNES, 2007. Corpo e sociabilidade

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Etnicidade e antropofagia cultural: dois temas recorrentes nos estudos da música brasileira no exterior

SILVANO FERNANDES BAIA

Introdução

xiste no exterior um campo de estudos sobre problemas Ebrasileiros envolvendo política, sociedade e cultura, denominado Brazilian studies , que vem se estruturando desde os anos 1960, embora as iniciativas voltadas ao país ocorram desde a década de 1930. De início, tais pesquisas se concentraram nos Estados Unidos e foram impulsionadas por aspectos geopolíticos do pós-guerra; porém, certamente, também contribuiu a singularidade da cultura brasileira. Não chega a ser uma exclusividade, pois outros países são objeto de estudos. Mas a existência desse campo indica a importância do Brasil e a relevância de sua cultura. Atualmente, em universidades de vários países, há departamentos e cursos dedicados aos estudos brasileiros; há até um nome – não universalmente aceito – para os pesquisadores desse campo: brasilianistas. No Brasil, o termo tem, em algumas interpretações, uma conotação desfavorável e distinta do seu sentido no hemisfério norte, uma vez que ficou associado aos acadêmicos estadunidenses cujas investigações dos problemas brasileiros eram, em geral, financiadas por agência de fomento de seu país. Essa depreciação do termo talvez seja decorrência de certo antiamericanismo ideológico que, se vem perdendo força, ainda é muito presente em setores da nossa sociedade. Os estudos da música brasileira desenvolvidos no exterior, em especial por pesquisadores de língua inglesa, têm se adensado e constituído uma bibliografia relevante. Por um lado, podem ser considerados como parte dos Brazilian studies ; por outro, apresentam especificidades e se relacionam com o campo dos estudos musicais como um todo. Embora alguns artigos esporádicos tenham sido publicados antes dos anos

Etnicidade e antropofagia cultural

1960, podemos localizar o surgimento de uma pesquisa mais consistente no exterior sobre a música do Brasil a partir dos trabalhos de Gerard Béhague, precursor nesse campo. Em sua atividade acadêmica, ele dedicou atenção a diversas sonoridades brasileiras, transitando entre o erudito, o tradicional e o popular urbano; a maior parte dos verbetes sobre música brasileira presentes no New Grove dictionary of music and musicians (ROOT, D.; BOHLMAN) é de sua autoria. A partir da década de 1980, desenvolve-se uma linha de estudos da música popular do Brasil com o trabalho de um conjunto de pesquisadores não centralizados cujas pesquisas vão dialogar entre si e com aquelas realizadas no Brasil. Nesses estudos, foram pioneiros os trabalhos de Charles Perrone, cujos textos motivaram outros pesquisadores. O objeto foi logo adotado por acadêmicos no Reino Unido e nos Estados Unidos, a exemplo de David Treece e Brian McCann, respectivamente, e por publicações de caráter mais jornalístico, como a de McGowan e Pessanha 1 (1991). 113 Essa literatura escrita por pesquisadores estrangeiros em língua inglesa – em livros, artigos em revistas ou coletâneas, teses e comunicações em congressos – já constitui um conjunto significativo de trabalhos; como é natural, não formam um corpo homogêneo de qualidade e relevância, bem como apresentam temas e abordagens diversos e, muitas vezes, conflitantes. Para os pesquisadores brasileiros, o conhecimento dessa bibliografia é fundamental, por três aspectos: 1) ela cumpre um papel decisivo na divulgação e no conhecimento da música brasileira no exterior, dado o alcance restrito da língua portuguesa no cenário internacional; 2) teoricamente, esses trabalhos tendem a não estar diretamente orientados pelas estéticas, poéticas e ideologias em luta no campo dos estudos

1 Gerard Béhague (1937–2005), etnomusicólogo, nasceu na França, estudou e morou no Brasil e desenvolveu carreira acadêmica nos Estados Unidos; Charles Perrone é professor no Department of Spanish and Portuguese Studies, University of Florida, USA; David Treece é professor no Department do Spanish, Portuguese and Latin American Studies, King’s College London; Brian McCann é professor na Georgetown University, Washington, DC, no departamento de História; Chris McGowan (estadunidense) e Ricardo Pessanha (brasileiro) são jornalistas.

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da música no país; 3) se desejarmos dialogar com as ideias que circulam no mundo acerca da música brasileira, então é imprescindível conhecer as concepções já estabelecidas. Neste texto, são observados alguns dos conceitos e das teorias recorrentes nessa bibliografia, com destaque para duas questões que ocupam papel central nessa literatura: 1) a formação étnica do Brasil e as tensões dela decorrentes; 2) a proposição da antropofagia cultural como abordagem para a incorporação de influências culturais estrangeiras. As reflexões aqui apresentadas emergiram da leitura de um corpus de 30 livros dedicados à música do Brasil, todos listados nas referências, embora nem todos diretamente mencionados 2.

A questão étnica nos estudos acadêmicos estrangeiros acerca da música brasileira 114 Pode parecer surpreendente à primeira vista, mas nessa bibliografia o grande assunto que tange a música é a questão étnica no Brasil. Em alguns livros, o foco na questão já se depreende do próprio título: The colour of sound: race, religion and music in Brazil (BURDICK, 2013), Rhythms of resistance: African musical heritage in Brazil (FRYER, 2000), The berimbau: soul of Brazilian music (GALM, 2010), Making samba: a new history of race and music in Brazil (HERTZMAN, 2013), Let’s make some noise: Axé and the African roots of Brazilian popular music (HENRY, 2008), Domination and resistance in Afro-Brazilian music (SWANSON, 2015). Outro exemplo é o artigo Songs of Olodum: ethnicity, activism, and art in a globalized carnival community , de Pier Armstrong, que se encontra na coletânea Brazilian popular music and citizenship (AVELAR; DUNN, 2011). Também pode ser mencionado Samba: resistance in motion (BROWNING, 1995), trabalho na área de dança com conexões com a música, que assim como dois dos outros livros citados, tem a palavra “resistência” no título.

2 Este estudo é parte de pesquisa pós-doutoral realizada no King’s College London e foi viabilizado pelo apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Etnicidade e antropofagia cultural

Além destes, existem outros livros onde a questão étnica tem lugar central. Em Brazilian jive: from samba to bossa and rap (TREECE, 2013), ao longo de todo o texto está presente a concepção de que, em gêneros de música popular do Brasil, sobretudo no samba, na bossa nova e no rap, existiria um fundamento cultural e filosófico de origem africana. 3 Outro exemplo é Choro: a social history of a Brazilian popular music (GARCIA; LIVINGSTON-ISENHOUR, 2005), no qual as tensões étnicas emergem em diversos momentos da narrativa. Os autores desenvolvem uma linha de pensamento que associa a valorização da miscigenação étnica a uma proposição racista e preconceituosa, o que – é evidente – não dá conta de toda a complexidade da questão. Para Larry Crook (2005), a música no Brasil tem sido usada tanto para suportar como para contestar a ideia de que o país seria uma sociedade etnicamente igualitária. A expressão “mito da democracia racial” está presente na maioria dos trabalhos, e Gilberto Freyre é citado em quase 115 todos eles, muitas vezes de um ponto de vista muito desfavorável, como em Shaw (1999). A expressão “democracia racial” é entendida, em geral, como consolidação da visão do Brasil como um lugar sem preconceitos e de convivência harmoniosa entre grupos étnicos distintos; e muitos desses pesquisadores se propõem a confrontar tal concepção. Por vezes, a expressão aparece vinculada a Gilberto Freyre; e, em alguns casos, são até mencionadas e embaralhadas na discussão, de maneira inapropriada, as teorias do “branqueamento” vigentes no início do século XX, como em Garcia/Livingston-Isenhour (2005). O fato de que o tema da formação étnica do país e o lugar do negro na sociedade brasileira sejam a questão principal que mobilizou esses pesquisadores da música brasileira é um indicador da percepção do país no exterior, ao menos nos meios acadêmicos, e dá uma dimensão de como ela está colocada na agenda de estudos brasileiros. Com nuanças de interpretação, uma parcela significativa desses estudos converge para uma

3 Sobre o livro de Treece, ver: BAIA, S. F. Resenha: Brazilian jive , de David Treece. Cf. Referências Bibliográficas.

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narrativa que considera as ideias favoráveis à miscigenação étnica no Brasil como forma de mascaramento do racismo existente no país. Segundo Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, a origem e disseminação da expressão “democracia racial” sempre intrigou os estudiosos da questão étnica no Brasil, “a começar pelo simples fato de que a expressão, atribuída a Gilberto Freyre, não é encontrada em suas obras mais importantes” (GUIMARÃES, 2001, p.147); segundo o autor, ela surgiu entre os intelectuais brasileiros na conjuntura dos anos 1937–44 (GUIMARÃES, 2006). A expressão “mito da democracia racial” tem um autor mais claramente identificado: Florestan Fernandes, que quase não é citado nesses textos que estamos analisando. O significado e o uso político de ambas as formulações mudaram ao longo do tempo como parte das estratégias dos atores sociais envolvidos no debate. Segundo GUIMARÃES (2006, p. 269), “denunciada como mito e 116 transformada, nos anos 1980, no principal alvo dos ataques do movimento negro, como sendo uma ideologia racista, a ‘democracia racial’ passou na última década a ser objeto de investigação mais sistemática de cientistas sociais e historiadores”. Gilberto Freyre se destaca na formação do pensamento sobre a questão étnica no Brasil, daí ser natural que suas proposições sejam submetidas à análise crítica. Mas a formação étnica do Brasil é um debate extenso e complexo, com contribuições de muitos intelectuais de projeção no Brasil e no exterior; é um dos aspectos centrais de um estudo histórico- sociológico do Brasil. Alguns dos autores desses estudos da música brasileira têm bagagem suficiente para discutir esse assunto com propriedade; outros, porém, parecem sucumbir às dificuldades metodológicas da interdisciplinaridade. Por vezes, em que pesem o alto nível acadêmico dos autores na sua área de proficiência e seu esmero na pesquisa, fica a impressão de que enveredaram de maneira muito destemida por um território desconhecido e sem o equipamento necessário. O próprio conceito de “raça” – este sim, poderia ser entendido como um “mito social” – que está presente em muitos dos trabalhos, precisa ser submetido à revisão crítica. Etnicidade e antropofagia cultural

Em artigo com o sugestivo título de “O nocivo conceito de raça, pressuposto do racismo”, Peter Fry discute a contradição presente no Relatório Brasil PNDU 2005 de combater o racismo usando o conceito de “raça”. Segundo ele, o relatório reconhece o conceito de “raça” como historicamente construído e pressuposto do racismo, mas considera que deve ser usado, uma vez que o conceito se perpetua como construção social e afirma “a necessidade de mantê-lo vivo nos estudos demográficos e nos movimentos de identidade étnica”; desta forma, nos termos de Fry, “o relatório propõe o paradoxal caminho de lutar contra o conceito de raça, utilizando-o” (2006, p.135). Parece que, com o emprego do conceito de “raça” na literatura em foco neste artigo, acontece algo semelhante. Não resta dúvida de que seus autores são críticos contumazes do racismo, abominam sua existência lamentável e pretendem contribuir para sua extinção. Entretanto, ao abraçarem o conceito de “raça” estão caminhando em sentido contrário, 117 reforçando a visão racializada da sociedade e contribuindo, involuntária e inadvertidamente, para um processo em andamento que segue na direção de uma cisão do país em duas “raças”. Outro aspecto a ser observado é o emprego generalizado no mundo anglo-americano da expressão “afro- brasileiro”, tanto para designar um grupo étnico específico quanto para se referir a certa cultura, a gêneros musicais ou mesmo a indivíduos. O emprego do termo “afro-brasileiro” para denominar gêneros musicais é relativamente recente nas pesquisas sobre música popular realizadas no Brasil; começa a aparecer com mais frequência por volta dos anos 1990 e, desde então, ganha terreno no país. Assim, é possível historicizar sua utilização neste campo de estudos. É provável que esse aumento na recorrência do termo se relacione com os debates em torno do tema propostos a partir da década de 1970 com a formação de agrupamentos negros como o Movimento Negro Unificado, cuja constituição foi impulsionada por organizações de esquerda, no plano da ação política, e pelos blocos afro na Bahia, no plano cultural.

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Crook chega ao exagero de afirmar que “falar de música brasileira atualmente é falar de música afro-brasileira”. Essa assertiva – é claro – não faz jus à diversidade musical do país; ou se trata de uma utilização extremamente flexível do termo “afro-brasileiro”, que, nesse caso, carece de sentido. Conforme observou Alexander Dent em seu estudo da música caipira/sertaneja, River of tears: country music, memory and modernity in Brazil (2009), uma movimentação da identidade brasileira em direção ao interior do Centro-Sul impõe uma revisão das concepções predominantes em torno da composição étnica. Os modelos dominantes de identificação nacional, centrados no Rio de Janeiro e no Nordeste, dão um grande destaque para o elemento africano na mistura étnica no país; mas no Centro-Sul a principal mistura seria entre índios e portugueses. Dessa forma, os modelos centrados no discurso em torno do “afro-brasileiro” não servem para explicar a música caipira e sertaneja; em interpretações mais radicalizadas, podem levar a um esquecimento ou mesmo uma 118 desvalorização dessa produção. Uma reflexão nesse sentido poderia ser desenvolvida, também, em torno das músicas da região Sul e de outras manifestações musicas no país, uma vez que a miscigenação étnica no Brasil é mais complicada do que “preto no branco”. Portanto, a concepção da música brasileira como manifestação “afro-brasileira” é indissociável da valorização de alguns gêneros e de certo repertório como sendo a música do Brasil. Uma hipótese – não descartável a priori – é a de que se trata de um conceito adaptado de outra realidade sociocultural. É possível que Afro-American seja mais coerente para a realidade dos Estados Unidos 4 do que a utilização generalizada

4 Recentemente, tem se esboçado nos Estados Unidos um novo debate em relação à expressão Afro-American , uma vez que muitos filhos de imigrantes negros de Cuba e do Haiti, por exemplo, ficam excluídos no uso de tal terminologia, ainda que sejam negros, afro-descendentes e estadunidenses. Por outro lado, é interessante observar que também é comum nos Estados Unidos a utilização de termos como Italian American , Japanese American , Chinese American , Jewish American , etc. Esses termos não fariam sentido no Brasil; mesmo em uma São Paulo lotada de imigrantes não é usual denominar os descendentes de Etnicidade e antropofagia cultural de afro-brasileiro. Talvez o termo afro-brasileiro seja mais adequado para se falar das culturas negras no Brasil no período colonial em processo de adaptação ou aculturação, ou mesmo para certas manifestações culturais como o Candomblé, a culinária baiana e a capoeira, nas quais os traços da cultura africana estão bastante delineados e são os essenciais. Mas aplicar essa expressão para toda a música brasileira produzida por setores sociais nos quais é expressiva a presença negra soa exagerado. Por exemplo, não creio ser adequado dizer que o samba é afro-brasileiro. Não resta a menor dúvida de que é um gênero musical em cuja formação concorreu fortemente, e de maneira decisiva, a musicalidade trazida pelos negros para o Brasil. Mas o samba é, também, uma música que incorpora elementos da música europeia. É uma música tonal, em compasso binário – ainda que com o tratamento rítmico que chamamos de síncope – e na qual se usam instrumentos melódicos e harmônicos de origem europeia, tais como o cavaquinho e o violão; mesmo na percussão, encontramos alguns instrumentos também derivados de similares europeus. 119 Então, teríamos de dizer que o samba é afro-euro-brasileiro. Dentro dessa lógica, no caso de alguns gêneros, para não cometer uma injustiça com o elemento indígena, teríamos que dizer afro-euro-indígena-brasileiro. Parece ser mais razoável pensar que somos apenas brasileiros e que a música feita no Brasil é música brasileira. Essa questão tem a sua importância porque conceitos são teorias condensadas, e o tensionamento da questão étnica no Brasil precisa ser enfrentado com seriedade. Por outro lado, os estudos acerca da música brasileira podem, no lugar de simplesmente emprestar terminologias e conceitos advindos de outros campos e formulados para outro contexto sociocultural, fornecer um rico material para que essas elaborações sejam repensadas à luz das especificidades da experiência brasileira. É certo que essa discussão é longa e ficará aqui apenas esboçada; mas são necessárias mais algumas palavras sobre esse assunto, pela dimensão que tem nesses estudos.

imigrantes de árabe-brasileiro, nipo-brasileiro, coreano-brasileiro ou italiano-brasileiro.

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Muitos desses discursos não dão a devida dimensão ao esforço de uma grande parcela de brasileiros – várias gerações de brancos, negros, indígenas e mestiços de todos os matizes – em prol da construção de um país plural onde todos possamos nos reconhecer como cidadãos e onde as diferenças e a mistura étnica sejam vistas com orgulho e como nossa singularidade. No combate ao racismo, infelizmente ainda presente no país, é preciso valorizar a forte tendência contra a discriminação que existe no Brasil no plano institucional e na sociedade como um todo. São numerosos os exemplos de reação contundente da sociedade contra as manifestações de racismo, que ainda acontecem de maneira frequente e lamentável, por exemplo, em estádios de futebol e nas “redes sociais” na internet. Sem desconsiderar a atuação fundamental e decisiva dos agrupamentos negros na afirmação da sua cidadania, é preciso ver também que uma parcela expressiva de brancos – ou melhor, não negros – considera um absurdo valorizar diferenças de pigmentação da pele e não aceita viver 120 numa sociedade que discrimine seus semelhantes. E a participação desse agrupamento é imprescindível no questionamento e na superação do racismo. Noutros termos, a crítica a uma visão idílica do Brasil como paraíso de harmonia multiétnica não pode desprezar os esforços da sociedade em prol da igualdade. Parece que os discursos que superdimensionam os conflitos étnicos no Brasil minimizam o papel da sociedade como sujeito da história e concebem o processo histórico como conduzido de cima para baixo. O importante nessa linha seria o papel dos políticos, das “elites brancas”, dos grupos de pressão negros e dos intelectuais e artistas; nesses casos, quando se olha para a sociedade, é sempre nas situações mais tencionadas e radicalizadas, no discurso de brancos e negros racistas. Enquanto isso, no cotidiano da sociedade brasileira, brancos, negros e mestiços convivem há muitos e muitos anos e vão construindo – com tensões, conflitos e contradições – uma sociedade que, embora não tenha superado plenamente o pesadelo da escravidão, deu passos importantes rumo à tolerância e convivência harmoniosa entre diferenças; isso não deve ser desprezado. Enfim, é necessário pontuar que, ao enfatizarem a “afro-brasilidade”, por exemplo, os estudos de música por Etnicidade e antropofagia cultural vezes centram-se nos aspectos sociais e/ou formais em torno da música. No entanto, as tradições africanas em geral carregam outras concepções de música e da natureza da experiência estética. Uma forma mais equilibrada de tratar tais matizes étnicas exige uma análise que vá além da forma ou do contexto dissociado da forma, que identifique, de fato, quais são as influências concretas que se agregam em uma concepção de música esteticamente pluricultural.

Antropofagia cultural e nacionalismo musical: Oswald de Andrade e Mário de Andrade Outra formulação predominante sobre a cultura brasileira nessa bibliografia é aquela desenvolvida por Oswald de Andrade, que se sintetiza na expressão “antropofagia cultural”, também presente em quase todos os textos. O exemplo mais interessante nesse tema é o livro de Frederick Moehn, Contemporary Carioca: technologies of mixing in a 121 Brazilian music scene (2012). Nesse livro, o discurso antropofágico encontra-se nas falas de produtores musicais cariocas dos anos 1990, que o autor traz para o primeiro plano e as quais traduzem uma leitura da cultura no país que, em busca de uma “brasilidade” – no sentido de uma sonoridade que possa ser identificada como brasileira –, rompeu com os pressupostos e as proposições estéticas do populismo nacionalista e do nacional-popular referenciado em Gramsci. Nessa perspectiva, esses produtores foram precedidos e tiveram como referências os tropicalistas, bem como Chico Science e o mangue beat , que, contemporâneos dessa cena musical carioca, compartilhavam de concepções estéticas afins. Embora haja uma presença marcante do discurso antropofágico oswaldiano no projeto estético dos tropicalistas, segundo Moehn, a década de 1990, ao menos no plano musical, foi o ápice dos discursos “canibalistas” inspirados nas proposições de Oswald de Andrade. Isso se explicita, por exemplo, no título do LP de Lenine Falange canibal ou na canção “Urbano canibal”, de Fernanda Abreu e Lenine. Também muitas canções misturam, com naturalidade, palavras estrangeiras com brasileiras e sugerem tal canibalismo cultural, como “Rios, pontes & overdrives”, do disco Da lama ao

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caos , de Chico Science e Nação Zumbi; além de apresentarem hibridismos de ritmos tradicionais brasileiros com o rock, a música eletrônica e outras sonoridades internacionais. É notável que um programa cultural apresentado em 1928, no Manifesto antropófago , que foi referência fundamental para o tropicalismo, nos anos 1960, e para uma parcela da produção musical dos anos 1990, inspire até hoje setores do campo de produção e esteja em pauta em numerosos textos acerca da cultura brasileira. Isso, por certo, resulta das questões que o motivaram, as quais permanecem em aberto. No contexto de sua formulação – momento de renovação das linguagens artísticas no Brasil que teve um forte impulso com o modernismo nos anos 1920 –, a proposição de Oswald de Andrade apresentou uma abordagem arejada na incorporação das influências externas na cultura brasileira. No caso específico do campo musical, essa proposição da antropofagia cultural não teve, até os anos 1960, repercussão comparável à 122 das elaborações de Mário de Andrade em torno do nacionalismo musical, presentes em vários textos seus e sistematizadas no Ensaio sobre a música brasileira (1928). Porém, em que pese a incidência marcante de Mário de Andrade e da corrente nacionalista na musicologia brasileira no campo de produção erudito ao longo do século XX, sua influência nos rumos da música popular urbana no Brasil não foi determinante e sua incidência sobre a música popular é indireta. Para a música erudita, os escritos e as elaborações de Mário de Andrade constituíram um programa que foi implementado na construção de uma escola de composição que se tornou hegemônica a partir da década de 1930 até meados dos anos 1960; no campo musical popular, suas elaborações não influenciaram diretamente os rumos da produção, mas estão presentes no pensamento sobre essa produção, pois seus textos foram – e são – considerados no debate. Após um período de ostracismo, o programa e o discurso da antropofagia cultural foram retomados pelas vanguardas e pelos tropicalistas na segunda metade dos anos 1960. Se, a partir de então, não chegou a sair de cena, foi mais uma vez colocado no centro do debate na década de 1990, por músicos como Chico Science, Lenine, Fernanda Abreu, Marcos Etnicidade e antropofagia cultural

Suzano e outros (MOEHN, 2012). Possivelmente, a agenda de pesquisas, os objetos escolhidos e as abordagens favoreçam um olhar para aspectos identitários e de hibridismos na produção musical popular brasileira, no qual tem destaque a antropofagia; porém, ao contrário do que ocorre nas pesquisas no Brasil, a antropofagia cultural tem, nesses estudos em inglês, um destaque bem maior do que o nacionalismo musical de Mário de Andrade. Em alguns casos, parece um tanto forçada e exagerada essa onipresença da menção ao projeto antropofágico. De toda forma, talvez um balaço de seu real alcance e influência na cultura brasileira e na música em particular ainda esteja por se fazer.

Discussões políticas que emergem dos textos Outro conceito bastante mencionado nesta bibliografia analisada é o de “neoliberalismo”, termo cujo sentido exato carece de definição. É curiosa a profusão com que essa palavra 123 é empregada no Brasil, e replicada no exterior, para caracterizar o período dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique. É tanto mais curioso seu uso generalizado, uma vez que não existe, na teoria econômica, nenhuma corrente ou programa que se intitule “neoliberal”; no campo da Economia, não há “neoliberalismo” enquanto escola, como técnica especial de produção de conhecimento ou como paradigma científico. No máximo, neoliberalismo pode ser um estilo de conduzir políticas econômicas de inspiração liberal. O termo foi aplicado para os governos Thatcher (Reino Unido) e Reagan (Estados Unidos). Mas as políticas econômicas que caracterizaram esses governos não foram aplicadas no Brasil. Aqui, o que ocorreu, no governo Itamar Franco e nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, foi um ajuste econômico e a estabilização da moeda, combinados com a abertura econômica no período de redemocratização. Ainda que tenha havido privatizações – corretas, no meu ponto de vista –, o estado continuou muito grande e detentor de muitas empresas e bancos. Entretanto, essas medidas foram chamadas de “neoliberais” como forma de associação com políticas econômicas no hemisfério norte, como parte da propaganda do então oposicionista Partido dos Trabalhadores (PT).

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À parte essa observação sobre a utilização da expressão “neoliberal”, que carece de melhor definição, em geral o posicionamento político apresentado nesses textos, ainda que com certa inclinação à esquerda típica das Ciências Humanas, tende a buscar um equilíbrio e uma neutralidade em relação à polícia interna no Brasil. Isso é notório no reconhecimento, quase generalizado, do governo Fernando Henrique Cardoso como o responsável pela estabilização econômica, por ter colocado o Brasil num circulo virtuoso e por ter reposicionado o país no cenário internacional, o que contrasta com muitos dos discursos produzidos no país. Entretanto, por vezes vazam, em alguns discursos, um alinhamento à esquerda com elogios ao PT, ao Movimento Sem Terra (MST) e à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Talvez isso possa ser compreendido se historicizarmos a produção, uma vez que muitos desses textos foram escritos por volta dos anos 1990; dito de outra forma, no século passado. Se considerarmos a história recente do país, o processo de 124 redemocratização, a crítica às desigualdades sociais e o discurso pela ética na política que esses grupos verbalizavam antes de o PT chegar ao poder, é compreensível que muitos setores tivessem certa expectativa – ou ilusões – na ascensão desse partido e nesses movimentos que orbitavam em torno dele. Tais discursos soam muito defasados na atual conjuntura política e econômica do país; quando os discursos ficam datados, torna-se mais evidente que estavam guiados por pressupostos ideológicos. Como costuma ocorrer nesses casos, ao enveredar por considerações políticas, muitas vezes esses textos falam mais do posicionamento dos autores do que do contexto sociocultural, político e econômico da produção musical que pretendem discutir.

Considerações finais Os conceitos observados neste artigo – raça, democracia racial, afro-brasileiro, antropofagia cultural, nacionalismo – são centrais nos estudos da cultura brasileira em geral e da música em particular. Estamos – ou deveríamos estar – familiarizados com eles. No entanto, para o olhar exterior, os debates que esses conceitos incorporam ganham Etnicidade e antropofagia cultural ainda maior relevância porque estão intrinsicamente ligados ao que significa “brasilidade” ou “ser brasileiro”, algo difícil de apreender. São temas que se abrem para muitas – por vezes, apaixonadas e ideologizadas – polêmicas, bem como para interesses de agendas políticas. Ainda assim, esse é um desafio que se coloca àqueles pesquisadores advindos de outra cultura que se interessam pelos problemas brasileiros. Se, por um lado, a presença desses temas nos estudos da música do Brasil realizados no exterior parece exagerada e desproporcional; por outro, mostra que temos de enfrentar essas questões e termos posicionamentos claros sobre esses temas. Com o crescimento dos programas de pós-graduação em Música no Brasil, é necessária uma compreensão equilibrada do que significa a internacionalização no campo de produção intelectual. O intercâmbio se inicia com a mútua capacidade de compreender as agendas e as ideias que embasam interesses em torno de um mesmo objeto de pesquisa. Se desejarmos dialogar com esses estudos acerca da música brasileira 125 produzidos no exterior, então o conhecimento e a reflexão sobre as ideias que sustentam esses debates são fundamentais.

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Fronteiras entre música, estética, história e política

Música e multissensorialidade à luz de três abordagens filosóficas: John Dewey, Maurice Merleau-Ponty e Michel Serres

ALEXANDRE SIQUEIRA DE FREITAS

uando criança, Orfeu não falava, nem cantava e muito Q menos criava poemas e música. Incomodava-se profundamente com o barulho que vinha do mundo e buscava um lugar verdadeiramente silencioso. Inconformado, o futuro músico e poeta, por meio de gestos, recorre a sacerdotisas e a profetizas no templo de Delfos. Sibilas, Pítia e as Bacantes fazem-no perceber que tal silêncio pleno não existe. Confrontando-se com sua mudez, aconselham o jovem herói a escutar os sons do próprio corpo, a pulsação, a respiração, os soluços do desejo e, mais ainda, a atentar-se ao som do entorno, aos gemidos de uma mãe em trabalho de parto, ao grito do recém-nascido.

O ruído de fundo do mundo É preciso que Orfeu abra todo o seu corpo ao “ruído de fundo do Mundo, incessante, contínuo, no qual o translado [ la navette ] tece a cadeia e a trama do tempo” (SERRES, 2011, p. 13). Na infância de Orfeu, narrada por Michel Serres em Musique (2011, p. 9-47), antes de poder soltar a voz em sonoridades intensas, de propagar a emoção pelas canções ou pela linguagem, o jovem aprendiz teve de entrar em contato com o caos do universo, com os ruídos que veem de toda parte. Tinha que escutá-los na totalidade de sua pele, fazê-la vibrar como um grande tímpano. Foi-lhe solicitado uma escuta corporal, para além da especificidade do ouvido: à beira do sentido. “Estar à escuta é sempre estar à beira do sentido, ou no sentido de borda ou extremidade (...)” (NANCY, 2014, p. 19). Esta borda, para Orfeu, é todo seu corpo. Sua pele abre-se ao

Música e multissensorialidade barulho caótico das cidades, das batalhas, aos zumbidos e ao tilintar sem sentido de seu próprio ouvido. Todos os eventos sonoros, segundo o texto de Serres, inscrevem-se nessa base comum, nesse ruído de fundo do mundo. Criança, Orfeu penetrava as entranhas do caos sonoro originário. Era preciso, no entanto, ir mais além, entender melhor essa realidade, que ele conhecia sem conhecer: intuía. Por isso, continua seu périplo, errando nas imediações do mar Mediterrâneo, quando encontra, próximo ao monte Parnaso, uma velha feiticeira, sábia e cheia de ressentimentos: Mnemósine. É ela quem detém todas as lembranças do mundo e quem mais entende do seu ruído de fundo. Titânide, filha de Urano e Gaia, Mnemósine diz a Orfeu que, em meio ao caos, existe uma ordem sutil para a qual é necessário atentar-se. Nossos corpos reverberam sem cessar três ruídos de fundo distintos, porém inextricavelmente misturados. O primeiro e permanente: o ruído do mundo. Mais intenso e raro: aquele dos vivos. E, finalmente, o ruído das sociedades, que busca sentido, 131 cegamente, por todo lado. “Essa tripla sucessão assegura uma primeira grande harmonia nessa suntuosa desordem” (SERRES, ibid. , p. 15) 1. A feiticeira da memória tece assim uma primeira ordenação a esse estado sonoro inicial. Na história de Orfeu, toda expressão intensa de som e poesia é precedida por esta escuta ampliada. Seu canto inscreve-se em um contexto mais amplo, indefinido, ainda que passível de ser ordenado. “A qualidade penetrante e indefinida de uma experiência é aquilo que vincula todos os elementos definidos, os objetos dos quais temos consciência focal, transformando-os em um todo.” (DEWEY, 2010, p. 350). Para sua voz fluir potente, foi preciso Orfeu sentir o todo, extenso e subjacente, contexto de qualquer experiência. Se persistisse na busca pelo silêncio, sua sanidade estaria em jogo. John Dewey trata desse contato inicial com o mundo, o qual aproximamos com o ruído de fundo da narrativa do

1 Esta e as próximas citações retiradas do livro “Musique”, de Michel Serres, além daquelas provindas de “Fenomenologia da Percepção”, de Maurice Merleau-Ponty”, foram traduzidas pelo autor deste artigo.

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aprendizado de Orfeu por Michel Serres. Para o pensador estadunidense, tanto o artista quanto o espectador partem de um estado de captação total, em que um todo qualitativo, ainda não articulado, serve de substrato, base, para a inscrição de uma experiência (DEWEY, 2010, p. 346-347). Vivenciamos as coisas como partes de um todo maior inclusivo, quer estejamos conscientes disso ou não. Orfeu sabia, sem saber. O fato de não ser intelectualmente apreendido não significa a inexistência de algo sentido e intuído com intensidade. Por ser tão completa e disseminada, essa condição de possibilidade para experienciar o mundo é, na maioria das vezes, subestimada. O ruído das sociedades, com suas linguagens e ciências, encobre os ruídos de fundo do mundo e dos vivos. É impossível, entretanto, livrar-se da sensação de algo que está mais além, como Dewey deixa explícito em seus escritos, convergindo com o aprendizado de Orfeu. Por mais que expandamos nosso campo de percepção e nos abramos às experiências, nunca atingiremos esse todo, cujas margens diluem-se em um 132 expansão infinita. “Sem um contexto indefinido e indeterminado, o material de qualquer experiência é incoerente”. (2010, p. 351). O todo é sentido como expansão de nós mesmos e dialoga ininterruptamente com o que a inteligência distingue. Desta última depende a inteligibilidade das coisas, mas não deve, por isso, descartar o pano de fundo que sempre persistirá no que quer que seja: o contexto indefinido e potente no qual inscrevem-se nossas vivências. A síntese que se faz, a cada momento, entre as especificidades e a totalidade das sensações é, contudo, sempre inacabada, indefinidamente feita e desfeita ao longo do tempo. Ainda assim, – recorrendo agora a Maurice Merleau-Ponty – existe uma unidade como pressuposição no horizonte da experiência (1945, p. 265). Na obra Fenomenologia da percepção , de Merleau-Ponty, há um grande esforço que consiste em identificar o núcleo de um “já” ( déjà ), chamado por vezes de pré-história, que precede toda reflexão predicativa e sobre o qual se estabelece a relação explícita que temos com o mundo (LYOTARD, 1986, p. 57). O fenomenólogo francês incita a busca por uma “camada primordial”, onde nascem as ideias e as coisas. Para Orfeu, como músico e poeta, tal camada pode ser caracterizada pelo conhecimento do persistente e incômodo Música e multissensorialidade ruído de fundo do mundo. “Toda percepção se dá em uma atmosfera de generalidade e se apresenta como anônima.” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 260). Quando vemos um objeto, experimentamos também a existência de um ser que está além do que vemos, segundo Merleau-Ponty. Esta e qualquer outra sensação comporta um “germe de sonho ou de despersonalização” e é, literalmente uma comunhão, uma coexistência com aquilo que se está em contato ( ibid. ). Portanto, não deveríamos dizer “eu percebo a cor azul” e sim “percebo em mim a cor azul”. Além disso, uma experiência nunca será absolutamente clara porque existe, entre minha sensação e mim, a espessura de um saber originário, a camada primordial e presente: o “já”.

Música Acabara, nosso herói, de abrir seu corpo aos ruídos que precediam e condicionavam as vozes humanas. Antes de falar, 133 raciocinar, calcular, as profetisas o haviam ensinado a escutar o vento, o som ritmado das marés, o ruído de fundo do mundo. “Mas como passar do ruído à música?” – pergunta Orfeu a Mnemósine.

Como Afrodite, mãe de toda beleza, nasce de um golpe de espuma, emerge subitamente do mar caótico do barulho: a Música. (...) Bem antes que a cabeça a transforme em voz, em sentido e em língua, antes de pensar, de dizer e de significar, seu corpo vibra com essa música, integrada por ele a partir de todos os ruídos do mundo. (SERRES, 2011, p. 20 -21).

“Quem comporia tal música?” – insiste Orfeu. “Minhas nove filhas” – responde Mnemósine. São as nove musas. Todas juntas, na concepção de Michel Serres, fazem com que nasça a música, primeira arte humana, sem a qual ninguém pode acessar à beleza. Sendo difícil, delicada e perigosa tal empresa, a feiticeira teve de agrupar suas filhas: primeiramente as musas-música e, em seguida, as musas-línguas. O filósofo francês apresenta o primeiro grupo composto por cinco musas.

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As duas primeiras, Políminia e Terpsícore, ligam-se mais intensamente ao movimento do corpo e ao ritmo, como elemento essencial da vida. Políminia, musa da pantomima, toca percussão, reproduz, imita, acompanha. Terpsícore expõe em sua dança todo o repertório de condutas corporais: mil movimentos. “A dança inventa o corpo porque lhe dá adaptabilidade.” (SERRES, 2011, p. 25). Vendo e ouvindo os ritmos dessas musas, Orfeu busca compreender a cadência cacofônica do mundo. As duas musas seguintes são mais especializadas. Euterpe toca a flauta inventada por Pan, que simboliza todos os instrumentos capazes de produzir sons. Erato dirige o coral que reuni mil vozes em uma harmonia de raros uníssonos e de acordes complicados. Temos então, por enquanto, musas corporais e musas musicistas. A elas une-se a poderosa Urânia, que compõe, calcula e contempla a harmonia dos céus. Emerge a dimensão técnica. “Eu suavizo, antecipadamente, todo o barulho do Mundo, para podermos ouvir, sob a Grande Narrativa, uma imensa rapsódia.” (2011, p. 134 32). Urânia é musa do saber rigoroso, preciso e universal. As quatro últimas musas são as responsáveis por fazer emergir as significações. São as musas-línguas. Melpômene apresenta a tragédia, Tália a comédia, Calíope a poesia épica e, finalmente, Clio expõe a história e a mentira de seus heróis, completa Serres (2011, p. 36). Todas as linguagens, neste resumo das descrições do filósofo, são precedidas pela música. Embora tenha cada uma seus próprios atributos, todas juntas criaram a música, como primeira manifestação humana de ordem expressiva e sonora. “A música inventa a linguagem (...)” (2011, p. 25). Orfeu, antes de falar, aprende com as musas a compor. Deu-se conta de que as linguagens humanas poderiam impedi-lo de ouvir o ruído de fundo do mundo. A música compreende as linguagens, mas as linguagens não a compreendem. Ela acolhe os ruídos do mundo e transforma-os em universais que precedem os discursos. Antes de serem palavras, os sons eram tons, “variações das sensações de dor e prazer, surpresas... ais e uis melodicamente articulados... poemas arcaicos da invenção do ser. Dias melodias da história humana”, disse José Carlos Capinan, poeta, letrista, parceiro de inúmeros compositores da música brasileira (2014, p. 10). O poeta reafirma a relação Música e multissensorialidade música-palavra como expressão complexa, “reconstituição dos signos primais da expressão”, quando “as palavras eram apenas sons ou quando deles não se haviam separado” (2014, p. 10). A caracterização feita por Capinan do estágio inicial da música como surpresa e variação de sensações converge com a descrição da arte dos sons feita por Dewey e também por Jean- Luc Nancy.

A música, portanto, tendo o som por veículo, expressa necessariamente, e de maneira concentrada, os choques e as instabilidades, os conflitos e resoluções que são as mudanças mais dramáticas, impressas no pano de fundo mais duradouro da natureza e da vida humana. (DEWEY, 2010, p. 416).

A música tece sua trama a partir das descargas de energia, da luta, do movimento. O frêmito, as particularidades e 135 contingências da vida expressas na música, segundo o pensador, encontram-se entranhadas na natureza e são típicas da experiência em suas constantes estruturais. O movimento da grande estrutura da vida acontece em ritmos seculares, enquanto o que capta nossos ouvidos são eventos súbitos e de rápida mudança. (DEWEY, 2010, p 416).

(...) a escuta ocorre ao mesmo tempo que o evento sonoro, disposição claramente distinta da da visão (para a qual, de resto, também não há “evento” visual ou luminoso em um sentido absolutamente idêntico ao termo: a presença visual já ali está disponível antes que eu veja, enquanto a presença sonora chega : comporta um ataque , como dizem os músicos e os especialistas em acústica). (NANCY, 2014, p. 31).

As coisas visíveis não são, em si, perturbadoras, pois a visão, como sentido da distância, nos liga ao que está longe. Ela nos proporciona a cena na qual ocorre a mudança. Na audição, o som vem de fora, mas é muito próximo e íntimo e o sentimos por todo nosso corpo. O som relata mudanças e, dessa forma,

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incita mudanças. “O som transmite o que é iminente, o que está acontecendo como indicação do que provavelmente virá.” (DEWEY, 2010, p. 417). E, ainda nas trilhas de John Dewey, a iminência do som carrega sempre uma aura de indeterminação e incerteza, por isso os sons criam condições favoráveis a intensas agitações emocionais. A dimensão imaterial da música, sua conexão imediata com os afetos, assim como sua ligação íntima com os números, na cultura ocidental, deu a ela status de arte liberal na Idade Média e na Renascença. Inseria-se no chamado quadrivium , ao lado da aritmética, da geometria e da astronomia. As artes liberais gozavam de maior prestígio social em detrimento das artes mecânicas ou servis, associadas às atividades manuais (FREITAS, 2012, p. 45). Curioso notar que a música incluía-se entre as artes liberais somente em sua forma idealizada, na associação com os números, com a harmonia, na educação musical no interior de uma ordem superior. Estaria, digamos, 136 sob a égide de Urânia, a musa dos astros. Em sua forma instrumental e prática, porém, a música não era uma arte liberal e não era sequer mencionada entre as artes mecânicas. Sua presença instaurada como pensamento e memória sobrepõe-se aos gestos instrumentais ou vocais, intimamente conectados à dimensão temporal. A música real, com sua sucessão de surpresas e de choques, tem, por séculos, algo de incômodo. Sua nobreza levantava suspeitas. Filhas da titânide que se liga à memória, as musas criadoras da música frequentam tempos de todas as ordens, nem sempre submetidas à linearidade. A música insere passado e futuro no presente, lembranças e esperança, como nos mostrou Santo Agostinho em suas Confissões (AGOSTINHO, 1996). Contrai, dilata, paralisa o tempo. “(...) eu não sei se a Música segue ou produz o tempo...” (SERRES, 2011, p. 45). Se como expressão ou linguagem a música é predominantemente temporal, como sensação ela é, antes de tudo, espacial. Toda sensação, no contato primordial com o ser, é retomada de uma forma de existência indicada pelo sensível, como coexistência de quem sente e do sensível (MERLEAU- PONTY, 1945, p. 262). A música, embora não esteja no espaço visível, ela o mina, o desloca, abala o chão daqueles que se Música e multissensorialidade entregam, “como uma tripulação sacudida na área de uma tempestade” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 271). Logo, de acordo com o viés observado, a música modula o tempo e o espaço. Por qualquer viés, entretanto, a potência de sua ação é irrefutável. A música antecede as linguagens, como percebeu Orfeu, inclusive a linguagem matemática e das ciências: ela “conta por meio de números sem nome”. (SERRES, 2011, p. 44). Quando liberta de definições adquiridas com o contato da fala, possibilita a retomada de uma qualidade passional primordial, com alto grau de desvinculação de objetos e de acontecimentos particulares, observou Dewey (DEWEY, 2010, p. 419). Orfeu toma o material bruto, o ruído do mundo, tria, tece conexões, ordena, reconfigura e o converte em um veículo intensificado e concentrado, construtor de experiências. Na apresentação de Serres, o aprendizado de Orfeu foi uma descida ao inferno do caos aleatório dos ruídos para, em seguida, com ajuda das musas, emergir como músico, expert em cantos, palavras e razões. Salvo de todo mal, vem suavizar a 137 cólera e o desamor dos humanos. A música é caracterizada por Serres como interseção (coloca em contato ciência rigorosa e caos), encarnação (transita por corpos e instrumentos), completude (depositório de equivalentes sonoros antecessores das linguagens), origem, reunião e universal (SERRES, 2011, p. 45). “A Música não é um saber, e sim um poço por onde despontam todas as invenções possíveis. Assim, a filosofia.” (SERRES, 2011, p. 45 .). Embora liberta do inferno, a música pode sempre retornar ao caos de onde saiu. Persistem, como partes integrantes da experiência, os ruídos de fundo propostos por Serres, neste texto associados ao “contexto indefinido e indeterminado” de Dewey e a “atmosfera de geralidade”, o “já” sempre presente na fenomenologia de Merleau-Ponty 2.

2 Essa associação entre os três filósofos foi sugerida primeiramente na tese de doutorado: FREITAS, Alexandre Siqueira de. Ressonâncias, Reflexos e confluências : três maneiras de conceber os encontros entre as semelhanças entre o sonoro e o visual em obras do século XX. Cf. Referências Bibliográficas.

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Multissensorialidade Como vimos, o aprendizado de Orfeu abriu-se a uma escuta corporal, transformando a pele de todo seu corpo em um grande tímpano, sensível ao mínimo movimento de ondas sonoras. Tais pequenos movimentos constituem, de algum modo, uma comunicação entre um lado perceptivo e um lado motor. John Dewey afirma que as conexões dos tecidos cerebrais com o ouvido são maiores que as de qualquer outro sentido e, ainda, as ligações da audição com todas as partes do organismo fazem com que o som tenha mais reverberações e ressonâncias que qualquer outro sentido (DEWEY, 2010, p. 416 e 419). Os órgãos dos sentidos atuam, em um primeiro momento, como instrumentos de excitação corporal ou “tentáculos” por meio dos quais tocamos o mundo, para utilizar um termo de Dewey (DEWEY, 2010, p. 352). Os sentidos, no entanto, não são a própria percepção, como fica claro no pensamento desse pensador. Tampouco na compreensão de 138 Merleau-Ponty, na qual cada sentido é um pequeno mundo no interior do grande, que é a percepção. Embora o pensamento objetivo – sobre o qual funda-se a ciência, no seu entendimento mais específico e difundido – propague a crença em uma certa autonomia sensorial, a fenomenologia crê no sentir como comunhão com o mundo e modalidade de existência. Seria impossível desconectar do corpo uma experiência de um só órgão, pois a percepção é sempre uma síntese inscrita em um esquema corporal feito de equivalências e transposições. Não existe pureza sensorial, já que o corpo inteiro comunica-se com o mundo e seus objetos. O que existe são certas “vocações de registros sensoriais”:

Ao mesmo tempo em que essa unidade/totalidade do sensível aparece para o sentinente, a especificidade, a vocação de cada registro sensorial não é negada. Pensa-se o corpo inteiro como engajado no funcionamento de um dos sentidos – o surdo pode ter perdido o uso de seus órgãos, mas seu corpo continua investido da dimensão sonora, ele não deixa de escutar o mundo, não é totalmente surdo. (CAZNOK, 2008, p. 129).

Música e multissensorialidade

O som, na sua “impureza”, evoca densidades, texturas, luminosidades, talvez sabores e odores. O saber científico, no pensamento de Merleau-Ponty, perturba nossas experiências reais, pois não se trata, por exemplo, de um vago exercício de abstração pensar no quanto o ruído de um automóvel pode nos dizer sobre a dureza do chão ou a desigualdade do calçamento da estrada (1945, p. 276). Os músicos, vale lembrar, são completamente habituados a ouvir expressões que fazem menções a outros sentidos na condução de suas escolhas interpretativas: sons doces, secos, leves, pesados, brilhantes, fechados, abertos etc. Aqueles mais ligados às músicas contemporâneas e eletroacústicas, que enfocam o timbre, podem acrescentar ainda: sons rugosos, estriados, lisos, densos, nuvens de sons etc. O vocabulário musical está repleto de alusões sinestésicas, que são bem mais que simples metáforas.

139 A percepção sinestésica é a regra e, se nós não a percebemos, é porque o saber científico desloca a experiência e nós desaprendemos a ver, ouvir e, em geral, sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo, tal qual o concebe o físico, aquilo que devemos ver, ouvir e sentir. (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 275).

Para a fenomenologia, todos somos potencialmente sinestetas, pois admite-se “uma unidade primordial do sentir e uma indiferenciação também primordial do sensível (...)” (CAZNOK, 2008, p. 132). Outras áreas do saber aludem também a existência de uma sinestesia generalizada. Desde convincentes insinuações – como as do artista e professor Julio Plaza quando sugere a existência de leis neuropsicológicas que suscitam a conexão de sentidos (PLAZA, 2003, p. 60) – até todo o histórico das últimas décadas de pesquisas neurocientíficas que associa fatos artísticos e multissensorialidade, por vezes inseridos no território da neuroestética, da neurociência cognitiva das artes

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ou, de maneira geral, em recentes estudos das interseções entre arte e tecnologia 3. Dewey, sem negar a vocação sinestésica da percepção, observa que – no interior do permanente diálogo entre a especificidade dos órgãos dos sentidos e a unidade da percepção do mundo – os objetos artísticos acentuam a especialização de um sentido. Segundo ele, pelo fato de as obras de arte atuarem por meios específicos, como faz a música com os sons, a estrutura especial de um sentido assume a liderança no encaminhamento da percepção e reduz a sensação de dispersão difusa (2010, p. 356). A arte toma um material bruto e, mediante seleção e organização, transforma-o em um veículo intensificado e concentrado para construção de uma experiência (2010, p. 420). Supõe-se, no entanto, que, embora o autor fale de experiência artística como um todo, essas considerações reportem-se às modalidades artísticas que endereçam-se a sentidos precisos, como a pintura ou a música. 140 Em outras práticas, como teatro, cinema, artes literárias ou em formas artísticas mais recentes, como performances ou instalações, a consideração de Dewey sobre a condução da percepção por um sentido em especial deve ser vista com algum cautela 4. A “qualidade penetrante e indefinida”, em todo caso, persiste nos objetos artísticos e em nossas relações com eles. A percepção inscreve-se na “atmosfera de generalidade” e a unidade dos sentidos é, para Merleau-Ponty, somente a expressão formal de uma contingência fundamental: o fato de estarmos no mundo (1945, p. 266). Tanto a unidade dos sentidos, quanto suas especificidades são ambas verdades com o mesmo estatuto, são mundos particulares inseridos no mundo mais amplo de nossa experiência integrada (1945, p. 266).

3 Cf. LEOTE, R. Multisensorialidade e Sinestesia: Poéticas Possíveis?. 4 Os textos organizados na obra “Arte como experiência”, de John Dewey, foram escritos ente 1925 e 1953. Portanto, há alguma chance de que os capítulos estudados (“A substância comum das artes” e a “A substância variada das artes”) tenham sido escritos antes do surgimento de certas modalidades artísticas já incorporadas na contemporaneidade. Música e multissensorialidade

Na compreensão de Merleau-Ponty, reflexões mais profundas, incluindo aquelas provindas das ciências, tornam obscuro o que achávamos claro. Ouvir, ver, sentir são palavras probleméticas. Por isso, Orfeu, no seu aprendizado, é convidado a voltar sua audição – na verdade, todo o seu corpo – para os sinais mais fundamentais desse nosso mundo. Sinais que, na narrativa de Serres, precedem toda linguagem humana. Vibra o corpo de Orfeu. Ele assim o sente, e “a sensação é, literalmente, uma comunhão” (1945, p. 257). Quando doou seus ouvidos, o sensível apossou-se de todo o seu corpo e todo ele vibrou à maneira dos “ruídos de fundo do Mundo”.

Toda sensação comporta um germe de sonho ou despersonalização, como o experimentamos por este tipo de estupor em que ela nos coloca quando vivemos verdadeiramente em seu plano. (1945, p. 260). 141 A fenomenologia de Merleau-Ponty, os ensinamentos de Dewey e o percurso de Orfeu, na narrativa de Serres, são como convites para retornarmos às experiências primordiais, acolhermos o aparente caos instalado no seio de nossa percepção e renovarmos a cada “agora” nossas experiências, de todas as naturezas.

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O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

CLOVIS SALGADO GONTIJO OLIVEIRA

O je-ne-sais-quoi, o indizível... Deve ser isso o que chamam de Encanto (Charme) Jankélévitch, De la musique au silence

Introdução

aseando-se na metafísica da música schopenhaueriana, B Richard Wagner (1813-1883), no ensaio comemorativo aos cem anos de nascimento de Beethoven (1770-1827), compreende a beleza como categoria estética particularmente aplicável ao âmbito das artes plásticas. Segundo o compositor de Bayreuth, na língua alemã, “o conceito de beleza [ Schönheit ] (...), segundo a raiz da palavra, relaciona-se claramente com a aparência (como objeto) [ Schein ] e com a contemplação (como sujeito) [ Schauen ]” (WAGNER, 2010, p. 22). Se nos recordamos que, de acordo com Schopenhauer, a música não se constrói dentro do reino das aparências, graças à sua constitutiva separação do mundo fenomênico, a “transposição” da categoria de beleza para todas as artes, incluindo a arte sonora, seria bastante imprecisa. Esta dimensão antes plástica que musical da beleza, observada por Wagner, é desenvolvida por Friedrich Nietzsche (1844-1900) em O nascimento da tragédia (1872). Logo após afirmar a valorização schopenhaueriana da música como o “mais importante [reconhecimento] de toda a estética”, o jovem filólogo destaca a continuidade de Wagner às ideias apresentadas em O mundo como vontade e representação ,

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quando no Beethoven estabelece que a música deve ser medida segundo princípios estéticos completamente diferentes dos das artes figurativas e, desde logo, não segundo a categoria da beleza: ainda que uma estética errônea, pela mão de uma arte extraviada e degenerada, tenha se habituado a exigir da música, a partir daquele conceito de beleza vigente no mundo figurativo, um efeito parecido ao das obras da arte figurativa, a saber, a excitação do agrado pelas belas formas (NIETZSCHE, 1992, p. 98).

O questionamento da aplicabilidade da categoria de beleza à música persiste no século XX, até mesmo em um autor que, apesar de também exaltar a experiência musical, se afasta consideravelmente da perspectiva metafísica de Schopenhauer e da grandiloquência exaltada pela poética wagneriana. Trata- se do filósofo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985), que, nas suas reflexões sobre a música, chega a nomear e examinar a “categoria” que lhe parece mais consentânea à arte sonora. E 144 qual seria ela? Responde o filósofo, em La musique et l’ineffable (1961), que

o encanto ( charme ) é o poder específico da música. Se a Beleza consiste na plenitude intemporal, no cumprimento e no arredondamento da forma, na perfeição estática e na excelência morfológica, o encanto possui algo de nostálgico e precário, um não-sei-quê (je-ne-sais-quoi ) de insuficiente e inalcançável que se exalta sob o efeito do tempo (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 121-122).

Como verificamos desde esta primeira citação, o charme , que aqui traduzimos por encanto, é intrinsicamente inapreensível, indefinível, impalpável, atributos partilhados, de acordo com Jankélévitch, pela manifestação artística com a qual mais se conecta. Contudo, isto não nos impede de reconhecer algumas particularidades do conceito em foco, capazes de garantir tal conexão. Para tanto, traçaremos, antes de nos dirigir à obra de Jankélévitch, uma pequena genealogia do encanto, que nos permitirá visitar alguns dos autores que influenciarão a concepção jankélévitchiana do charme . O papel do charme

Uma genealogia do charme Em Charis: essai sur Jankélévitch, Enrica Lisciani- Petrini esclarece que o conceito jankélévitchiano de encanto carrega consigo dois termos de origens remotas e distintas (cf. LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 24). Por um lado, remete ao termo latino carmen , do qual, segundo a etimologia mais frequente, o charme francês descenderia. Carmen refere-se a “tudo que é escrito em verso, fórmula ritmada, fórmula mágica, fórmula solene (religiosa ou jurídica)”, assim como, de modo mais específico, a uma composição poética, “especialmente poesia lírica ou épica” (FARIA, 1956, p. 153). Por outro lado, ao longo da sua obra, Jankélévitch também associa o encanto a um conceito explorado pelo neoplatonismo, a graça ( kháris ) plotiniana. É a este segundo termo que dedicaremos a presente genealogia, reservando para a segunda parte deste trabalho uma breve menção à fórmula carmen , que, provavelmente devido ao seu teor de irracionalidade, tenha sido desconsiderada e, até mesmo, evitada pela tradição estética. 145 Raymond Bayer, na sua História da Estética , detecta a presença da graça já na Grécia pré-clássica, especialmente nos poetas líricos eróticos que, quando entoam os seus encômios às figuras femininas, tendem a privilegiar mais a graça que a beleza. Segundo Bayer, “a graça, que implica o movimento e o sentimento interior, não está necessariamente ligada à beleza e sempre possui algum matiz espiritual. É, portanto, a primeira interiorização e espiritualização da beleza” (BAYER, 2012, p. 26). Estas características essenciais da graça permanecem em Plotino, desenvolvendo-se em sintonia com a sua proposta ontológica. Contrariando tendência recorrente à estética clássica, de influência pitagórica, o filósofo neoplatônico observa que o seguimento de determinados cânones e proporções, assim como do ideal da taxis kai symmetria (“ordem e simetria”), nas obras artísticas e nas formas naturais, é insuficiente para nos atrair e cativar. Após observar que a justificativa da beleza pela simetria incorreria no absurdo de excluir o potencial estético das formas simples, das quais não

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participa o ajuste harmônico entre partes 1, Plotino questiona: “E se é notório que quando um rosto, cujas proporções permanecem idênticas, mostra-se às vezes belo, às vezes feio, podemos ter alguma dúvida de que a beleza seja algo mais que a simetria dessas proporções, de que a causa da beleza do rosto bem proporcionado seja outra?” (PLOTINO, 2000, p. 20-21, Eneada I, 6, 1). Cotejando esta a outras passagens das Eneadas , poderíamos afirmar que a beleza, para ser efetiva, precisa contar com a participação de outro componente estético. Caso contrário, como Jankélévitch tantas vezes recorda 2, tornar-se-ia uma “beleza preguiçosa”, argon kallos (cf. Eneada VI, 7, 22, 10- 15). Este componente é justamente a graça, que, como nos indica a passagem supracitada, se distingue da beleza formal, por não residir em fatores fixos e assinaláveis, o que lhe concede certo ar de mistério. Enquanto localizamos de modo preciso os critérios e as 146 razões – tanto como números quanto como explicações – da beleza, a graça não se detecta, nem se concentra em algo determinado. Vai e volta, como o rosto, ora trivial, ora atraente ou, seguindo a sugestiva linguagem coloquial, ora sem graça, ora cheio de graça... Fugidia, a kháris também não é localizável por ser manifestação difusa. É como a luz, elemento em certa medida impalpável, que, além de nem sempre estar presente realçando as cores, descortinando as formas, permeia e recobre todo um objeto e toda uma atmosfera. Recorrendo às palavras do próprio Plotino, o encanto, que “se encontra mais na luz que brilha sobre a simetria que na simetria mesma” (PLOTINO, 1999, p. 145, Eneada VI 7, 22, 24-25), é “graça cintilante envolvendo a beleza” (Eneada VI 7, 22, 23-24). A partir destas considerações, constatamos a inegável conotação espiritual da graça. Observa Jankélévitch que, pelo seu caráter não localizável, o encanto plotiniano se assemelha à

1 É interessante observar, neste contexto de um encontro em Filosofia da Música, que um dos exemplos de belezas simples dado por Plotino é o som isolado, que, como hoje sabemos, se constitui de uma composição de harmônicos. 2 Como, por exemplo, em JANKÉLÉVITCH, 1980b, p. 113. O papel do charme

“alma que exala, como um perfume, da presença carnal em geral e que, no entanto, se evade de toda a topografia” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 70). Nesta perspectiva, a graça se identifica ao sopro da vida, o que justifica a seguinte conclusão de Plotino: “o esplendor da beleza está sobre um rosto vivo que resplandece no mais alto grau, enquanto sobre um rosto morto não se vê mais que o vestígio, mesmo se esse rosto não está ainda destruído na sua carne e simetria” (PLOTINO, 1999, p. 145, Eneada VI 7, 22, 25-30). A vitalidade exigida à graça conecta este imprescindível componente estético a um aspecto apontado por Bayer no início desta genealogia. Ausente do cadáver ou das formas simétricas de uma beleza estática, a graça costuma incluir a participação do movimento. Em Plotin et la simplicité du regard , Pierre Hadot, referindo-se ao mestre de Henri Bergson, Félix Ravaisson, declara :

147 A graça, segundo ele [F. Ravaisson], é “eurritmia”, isto é, “movimento que faz bem”. Nós a reconhecemos nos movimentos que exprimem o abandono, a condescendência, a descontração. Os pintores procuram apreendê-la nas inclinações da cabeça, no sorriso feminino. Mas também se pode pressenti-la nos movimentos fundamentais da natureza viva que são a pulsação e a ondulação: “Observe”, diz Leonardo da Vinci, “o serpenteio de todas as coisas”, isto quer dizer, observe em todas as coisas, se você quiser conhecê-las e representá-las de maneira adequada, a espécie de graça que lhe é própria (HADOT, 1963, p. 76-77).

Relacionada ao motor da vida, às disposições interiores, ao mistério que recobre e anima, mas não alcançamos tanger ou dissecar, a graça plotiniana também manifesta a sua dimensão espiritual no que concerne à sua origem. Explica Plotino que a beleza será inoperante se não receber a irradiação, o “calor” ou o “eflúvio” proveniente do Bem, fundamento da realidade. Ao contrário, quando recebe a sua luz, “retoma o seu vigor, desperta, torna-se verdadeiramente alada” (PLOTINO, 1999, p. 144, Eneada VI 7, 22, 15-18), comovendo-nos de tal modo que nos sentimos

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impulsionados a percorrer um caminho ascendente rumo à fonte do ser. A tematização de um encanto imensurável e indemarcável é retomada na Modernidade, especialmente na França dos séculos XVII e XVIII, onde se entrelaça com novos termos, dentre os quais se destacam o charme e o je-ne-sais- quoi . De acordo com o jesuíta Dominique Bouhours (1628- 1702), que dedica um dos capítulos de Les entretiens d’Ariste et d’Eugène ao je ne sçay quoy (1671), este conceito diz respeito a

um atrativo ( agrément ) que anima a beleza e as outras perfeições naturais, que corrige a feiura e outros defeitos naturais: é um encanto ( charme ) e um ar ( air ) que se mistura a todas as ações e a todas as palavras; que penetra o caminhar, o riso, o tom de voz e até os menores gestos da pessoa que agrada (BOUHOURS, 1671, p. 261). 148 Como em Plotino, o atrativo reconhecível, mas de causas irreconhecíveis, responsável tanto pela comoção estética quanto pelas afinidades afetivas, aparece associado ao movimento, às inflexões do espírito e a uma presença que, como o ar, se revela simultaneamente totalizante e impalpável. Estes dois predicados favorecem a permanência da analogia plotiniana anteriormente citada, posto que o desconhecido encanto “assemelha-se à luz que embeleza toda a natureza e que se faz visível a todos, sem que saibamos o que seja” (PLOTINO, 1999, p. 262). Portanto, percebemos que, embora o religioso francês afirme não ser o je-ne-sais-quoi “propriamente nem a beleza, nem a bela fisionomia, nem a graça favorável (bonne grâce ), nem a predisposição ao humor, nem o espírito brilhante” (PLOTINO, 1999, p. 260), nele estão contidas as ressonâncias da graça plotiniana, confirmando a absorção da kháris pela acepção moderna do charme . Por fim, devemos destacar que, no texto de Bouhours, o componente estético indefinível adquire algumas características mantidas pelo inefável, pelo je-ne-sais-quoi e pelo charme jankélévitchiano. Em contraste com outro conceito de natureza estética igualmente reelaborado nos séculos XVII e O papel do charme

XVIII, a saber, o sublime, no qual também se encontra implícito o reconhecimento dos nossos limites verbais e cognitivos, o je- ne-sais-quoi não evoca o grandioso, o excesso de força ou de potência. Poderíamos dizer que, o charme e os seus correlatos, embora imensuráveis, não são incomensuráveis. Segundo Bouhours, o je-ne-sais-quoi é “algo tão delicado e imperceptível, que escapa à inteligência mais penetrante e sutil” (PLOTINO, 1999, p. 262). E, em outro momento, sugere explicitamente a maior adequação da categoria do encanto às obras que cultivam a discrição e o velamento, ao contrapor as “grandes belezas nos livros de Balzac” aos textos de Voiture, que “possuem encantos ( charmes ) secretos, estas graças finas e escondidas sobre as quais falamos e que agradam infinitamente mais” (PLOTINO, 1999, p. 273-274). O jesuíta parece antecipar, assim, outro conceito fundamental do pensamento jankélévitchiano: o presque-rien . E, no contexto dos Entretiens , o quase-nada se manifesta não só no porte delicado, mas também na brevidade temporal: “pois enfim, de todos os aspectos, aquele que vai mais depressa é o que fere o coração, e 149 o mais curto de todos os momentos, se assim puder dizer, é aquele no qual o ‘não-sei-quê’ exerce o seu efeito” (PLOTINO, 1999, p. 264). Quase um século após Bouhours, Montesquieu (1689- 1755) também examina especificamente o je-ne-sais-quoi na sua última obra, o Ensaio sobre o gosto (1757). No início do texto, o autor enumera, dentre os diferentes “objetos do gosto”, “o belo, o bom, o agradável, o ingênuo ( naïf ), o terno, o gracioso, o je-ne-sais-quoi , o nobre, o grande, o sublime, o majestoso”. (MONTESQUIEU, 1964, p. 845). Embora separe, neste momento, o je-ne-sais-quoi do gracioso, percebemos que ambos se conectam na seção dirigida ao primeiro, compreendido não só como “uma graça natural que não se pode definir”, mas também como “um encanto ( charme ) invisível”. Em continuidade com aspectos verificados na kháris plotiniana e no je-ne-sais-quoi de Bouhours, em Montesquieu, “a graça encontra-se menos nos traços do rosto que nas maneiras”, liga-se ao movimento e à leveza, o que explica a sua particular manifestação no domínio da dança. Como o seu antecessor francês, o filósofo iluminista também associa o

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encanto à simplicidade, ao estabelecer a seguinte contraposição: “Os grandes conjuntos de joias raramente possuem graça, enquanto, com frequência, o traje das pastoras é gracioso. Admiramos a magnificência dos bordados de Paul Veronèse, mas somos tocados pela simplicidade de Rafael e pela pureza de Correggio” (MONTESQUIEU, 1964, p. 849). Assim, o je-ne-sais-quoi vem acompanhado de uma qualidade própria, de certa ingenuidade que contrasta com a gravidade do majestoso. E o ingênuo inclui o espontâneo: os movimentos graciosos, que costumam trazer consigo algum grau de surpresa, não podem ser premeditados e calculados, nem tampouco frutos de um esforço. A partir deste ponto, identificamos especial afinidade entre Montesquieu e a reflexão estética e moral jankélévitchiana, na medida em que o valorizado je-ne-sais-quoi possui como pré-requisito uma qualidade impossível de se exercitar. A menção ao elemento de surpresa leva-nos a uma 150 última consideração referente ao Ensaio sobre o gosto , fundamental para a sequência deste estudo. Aquilo que nos surpreende é, com frequência, o oculto que vem à tona ou uma novidade que se manifesta. É assim que “a graça se encontra, de costume, mais no espírito que no rosto: pois um belo rosto aparece de início e quase nada esconde; mas o espírito só se mostra pouco a pouco, quando quer e quanto quer” (idem). Montesquieu reforça, portanto, que o encanto não se aplica aos traços fixos, às formas congeladas. Esta categoria intangível, que, ademais, se identifica estreitamente ao gênero feminino, no qual se veem reforçados o mistério, a discrição e o pudor, só se efetiva sob a ação do tempo, que renova as “maneiras”.

O charme musical em V. Jankélévitch Examinemos agora de que modo esta genealogia repercute e se desenvolve na Filosofia da Música elaborada por Jankélévitch. Antes disso, faz-se necessário ressaltar que, na obra do filósofo francês contemporâneo, a referência ao encanto ultrapassa em muito o âmbito musical. “Marca de fábrica” do pensamento jankélévitchiano (LISCIANI-PETRINI, O papel do charme

2013, p. 163), juntamente com o je-ne-sais-quoi e o presque- rien , o charme possui conotação ontológica. A ontologia proposta pelo filósofo põe em xeque uma concepção que se baseia num princípio previamente estabelecido, estável e imutável, independente da existência cotidiana e, por conseguinte, de igual modo independente da ação temporal. Segundo Jankélévitch, influenciado pelo mestre Henri Bergson, a duração, intrínseca à experiência humana, deveria estar contida no que se concebe como o elemento essencial da realidade. Assimilar ontologicamente o tempo, não mais compreendido dentro de uma “interpretação progressista-linear”, mas “como a eflorescência imprevisível de eventos não pré-determinados, ‘rapsódica’” (LISCIANI- PETRINI, 2013, p. 147), significa acolher o inapreensível, ter como horizonte um fundamento que sempre se desloca e nos escapa. Neste sentido, considerando as prerrogativas da ontologia platônica, o Ser jankélévitchiano é uma espécie de não-ser ou, a partir de uma apropriação da terminologia de 151 Jacob Boehme, é fundamento sem fundo ( Ungrund ), insondável não só por não se fundar em nenhuma determinação fora dele (JANKÉLÉVITCH, 1986, p. 102), mas também por não se encontrar em repouso, por não subsistir e não possuir ponto fixo de localização. No entanto, é importante observar que, nesta concepção, não repousa absolutamente uma perspectiva niilista. A ontologia do não-ser (meontologia) jankélévitchiana não conduz ao nada, mas sim a um quase-nada ( presque-rien ) ou, até mesmo, a um Sobrenada ( Übernichts )3, pois do fluxo impalpável do real, “movimento contínuo, produtor de ‘maneiras’ e de ‘modos’” (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 44), provém uma riqueza inesgotável, inefável e ainda cativante. O “Ser” jankélévitchiano assume, portanto, diversas características constitutivas ao encanto: não se encaixa em definições precisas nem se situa em coordenadas geográficas bem delimitadas, incorpora o tempo e o movimento (e, assim, é

3 Este termo, utilizado por Angelus Silesius em O peregrino querubínico (Cf. livro I, aforismo 111), é citado por Jankélévitch em La mort (1966, p. 61) e em Philosophie première (1986, p. 182).

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menos um “ Est ” que um “ il y a ”4), produz acontecimentos efetivos e eficazes (cf. JANKÉLÉVITCH, 1980b, p. 113), opera um encanto que, como a magia ( carmen ) destituída de substância, se forma, se transforma e nos transforma no próprio momento em que é exercido ou pronunciado. 5 No próprio momento, vale completar, em que é cantado ou tocado... Isto porque, para o discípulo de Bergson, o encanto se expressa, sobretudo, musicalmente. E, assim, a arte sonora, do mesmo modo que a categoria analisada, revela-se como “lugar” privilegiado para uma reflexão que excede a esfera estética ou musicológica. Como sustenta a estudiosa italiana Lisciani- Petrini, o filósofo identifica na música “todos os traços essenciais da sua meontologia” (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 142), dentre os quais se destaca o fundamento encantador (charmant ) da realidade. Segundo a estudiosa italiana,

152 a música é o maior reflexo deste fluxo insubstancial que já é, desde sempre, o movimento vital do próprio real: pivô (...) do pensamento e do discurso de Jankélévitch. Neste sentido, ela não possui nenhuma Substância interna ou ‘profunda’ que deveria trazer à superfície e revelar. A música é exatamente como essa ‘efetividade’ epidérmica e superficial, que é a própria vida das coisas: nada além de movimento diferenciando em si por si. E como tal – como virtualidade insubstancial – é produtora de todas essas ‘formas’ (musicais) que, longe de ‘exprimirem’, portanto, uma Substância subjacente, são as suas ‘atualizações’ imprevisíveis e ‘gratuitas’. Eis porque a música, de acordo com Jankélévitch, é propriamente charme : ‘circulação de graça’ que encanta e opera a feitura dos cantos – mas que, justamente, não se pode nem situar nem apreender, como todo o verdadeiro encanto ou sortilégio. Numa palavra: ela

4 Cf. JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 68. 5 No capítulo de Fauré et l’inexprimable dedicado à presença do encanto na obra do compositor francês (“Du charme”), Jankélévitch sintetiza este modo particular pelo qual o encanto opera: “ Carmen é essencialmente uma operação, como a factura dos mágicos: não é nada, mas faz ” (JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 347). O papel do charme

não possui fundamento – é totalmente gratuita. (LISCIANI- PETRINI, 2013, 149)

Esta passagem fornece alguns dos principais pontos que justificam o elo entre a música e o encanto. Em primeiro lugar, segundo Jankélévitch, a arte sonora é “virtualidade insubstancial”. Como o “fundamento sem fundo”, uma composição musical não se apoia em algo externo, ou seja, não traduz um sentido preexistente, não reproduz um modelo suprassensível (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 37). Uma obra se forma no próprio fazer do compositor (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 38-41) e se realiza no próprio fazer do intérprete. Assim, à semelhança da graça, não se localiza, na sua totalidade, nem na mente criadora, nem na “mão que toca um violão”, nem em qualquer fonte sonora (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 115). É, como carmen , “fazer sem ser” (JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 43). Cabe aqui frisar que tal insubstancialidade e independência do charme diferem da graça plotiniana. Apesar de também 153 “circular” pelo objeto e, assim, possuir um caráter “epidérmico”, esta última, como vimos, é “o ‘eflúvio’ que vem do Bem” (PLOTINO, 1999, p. 144, Eneada VI 7, 22, 8), ou seja, possui procedência transcendente. Em segundo lugar, como expõe Lisciani-Petrini, o caráter insubstancial da música, que o entrelaça ao encanto, vincula-se, em Jankélévitch, à sua relação com o fluxo da temporalidade. Retomando a primeira citação do filósofo francês apresentada na introdução deste trabalho, a música depende intrinsecamente do tempo, que, à semelhança do que ocorre num “tema com variações”, modifica sem cessar a matéria sonora, impedindo que ela se “modele” num “objeto plástico” arredondado e estático (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 118- 119; 1980a, p. 30), perceptível numa única “tomada” e, assim, apreciado na sua simetria. Inscrito no “fluxo insubstancial”, o encanto do melos se afasta da categoria da beleza e se aproxima da graça, cintilação nem sempre presente (Plotino), atrativo que ora se esconde, ora se revela (Montesquieu). Poderíamos completar que não é apenas devido à sua radical inscrição no tempo, fator de intensificação do seu caráter insubstancial, que a música nos oferece algo distinto de

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uma “beleza de exposição” (JANKÉLÉVITCH, 1986, p. 172). Como explica o próprio filósofo, contrapondo a apreciação musical a uma percepção “sinóptica” (JANKÉLÉVITCH, 1978, p. 201; 1988, p. 242), “o universo musical não é algo que se exponha diante do espírito ou se proponha ao espírito: a música, por mais objetiva que pretenda ser, habita a nossa intimidade. Vivemos a música como vivemos o tempo, numa experiência fruitiva e numa participação ôntica de todo o nosso ser” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 120). Talvez pela própria dinâmica da percepção auditiva e pela natureza algo imaterial da “matéria” sonora que, permeável, nos invade, a relação distanciada entre sujeito e objeto, implícita no conceito de ex- posição, deixe de ser aplicável à música. E esta “invasão”, esta “inundação”, que se dirige “não à parte lógica e reta do espírito, mas à existência psicossomática como um todo” (ibidem, p. 8), reforça a proximidade entre a música e o encanto. Este, aparentado com a magia, não nos convence , mas nos persuade , “nos invade atraindo-nos a si, encantando-nos” (LISCIANI- 154 PETRINI, 1985, p. XLIII), cativando-nos, em certa medida, como Carmen, pássaro livre que aprisiona Don José por meio da sua seguidilha sedutora. A menção à consagrada personagem de Bizet permite- nos registrar duas características fundamentais da Filosofia da Música jankélévitchiana. Em primeiro lugar, ao contrário do que ocorre na ópera em questão, o charme não poderia se personificar na obra do filósofo francês, para quem esse componente mais que estético é “como o sorriso ou o encanto, cosa mentale : não sabemos em que se sustenta, nem em que consiste, nem mesmo se consiste em algo, nem onde o situar. Não está nem no sujeito, nem no objeto, mas, como um influxo, passa de um ao outro” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 131). Deste modo, retomando aqui a dicotomia sujeito-objeto, o charme se oferece como via para se superar tanto uma estética subjetiva quanto outra objetiva, posições tradicionalmente excludentes nas reflexões ocidentais sobre a arte e o belo em sentido amplo. Em segundo lugar, é importante ressaltar que, embora resguarde algo da magia, não só na sua origem etimológica, mas no seu modo de operação e nos seus efeitos sem causas substanciais, o charme , quando aplicado à música, afasta-se do regime da irracionalidade “que subjuga, desestabiliza e chega a O papel do charme inquietar a razão” (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 163). De acordo com a concepção do filósofo, em continuidade com Henri Bremond (1865-1933), “o Encanto ( Charme ) é magia no sentido figurado, operação mística e não mágica” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 155). Tal distinção não se justifica somente pelo fato de a música e também a poesia não propiciarem uma transformação palpável e duradoura, constituindo-se, assim, como “uma ação inalcançada” (ibidem, p. 156). A própria “tonalidade” inefável que recobre a música no corpus jankélévitchiano a extrai da irracionalidade do sortilégio e até mesmo do dionisíaco, conduzindo-a a um campo “suprarracional” 6, igualmente habitado pelo silêncio plotiniano que caracteriza a contemplação de um fundamento que em muito excede o logos (cf. ibidem, p. 181). Especifica Jankélévitch que o encanto musical não é, como tantas vezes apregoou e temeu a metafísica ocidental, procedimento hipnótico, “operação indevida, trapaça pérfida e embriaguez cega”, uma vez que “opera na lucidez dos sentidos e da razão” (JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 355). E este cativar que não equivale 155 a uma “captação fraudulenta” (JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 356) favorece não mais a inquietação, a euforia ou a anestesia, mas sim a pacificação, a consolação e a reconciliação do espírito. Sob este prisma, o charme musical jankélévitchiano, mais propriamente encantamento ( enchantement ) que feitiço ou encantação ( envoûtement , incantation ) estaria em maior sintonia com kháris que com carmen ... Esta segunda consideração leva-nos ao tema do inefável, cuja íntima conexão com a música também concorre para que esta arte seja mais bem avaliada por meio da categoria estética do encanto que da beleza. Como observamos

6 Neste estatuto “suprarracional“ da música que cremos implícito na estética do inefável jankélévitchiana também poderiam ecoar, sob nova roupagem, algumas ideias de Henri Bremond, para quem “o conhecimento particular que estudamos no poeta ou no místico não é infra, mas suprarracional; razão superior, mais razoável que a outra (...), na medida em que a sua experiência propriamente poética lhe permite ultrapassar a ordem abstrata das noções e raciocínios e alcançar o concreto, o próprio real até onde possa ser alcançado aqui em baixo” (BREMOND, 1947, p. 80).

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desde Plotino, para o receptor, o esplendor da graça, apesar de experimentável, é intangível, indecifrável e indemarcável. E, segundo Bouhours, o je-ne-sais-quoi , cujos efeitos sentimos vivamente, possui uma natureza “incompreensível e inexplicável” (BOUHOURS, 1671, p. 259). Na perspectiva jankélévitchiana, como o charme , “ je-ne-sais-quoi ativado” (JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 89), a música reveste-se de especial mistério. Este, por um lado, verifica-se no próprio modo pelo qual a música se expressa. Ao contrário de um texto verbal de caráter demonstrativo, uma composição musical não se constrói a partir de referências precisas a um território de significações existente fora dela. A expressão musical é, de acordo com Jankélévitch, uma expressão em certo ângulo inexpressiva, uma vez que não transmite conteúdos unívocos, ou uma expressão grosso modo, cujo teor vago e até mesmo ambíguo propicia fecunda plurivocidade, nomeada pelo filósofo como “expressividade ao infinito” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 93). Assim, a música nos comove intensamente sem que 156 possamos delimitar e decodificar os seus conteúdos expressivos. Por outro lado, focalizando mais a estrutura da obra que a sua possível “mensagem”, poderíamos dizer que o mistério musical também se justifica pela dificuldade em decifrarmos as razões do seu encanto. Como a rosa no célebre aforismo de Angelus Silesius 7, tantas vezes citado ao longo do corpus jankélévitchiano, a música nos toca “sem porquê”. Enquanto as razões de uma beleza formal são identificáveis pelo seguimento de cânones pré-estabelecidos, de justas proporções ou da seção áurea, critérios que também poderiam ser absorvidos por uma concepção espacializada da música (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 114-118), as razões do encanto de uma composição específica não são demarcáveis para a estética jankélévitchiana. É o que nos mostra Lisciani-Petrini, ao apresentar este aspecto como um dos motivos determinantes para a afinidade entre a arte sonora e a categoria estudada:

7 “Die Rose ist ohne warum, sie blüht weil sie blüht. ” (“A rosa é sem porquê, floresce porque floresce.”) O peregrino querubínico , I, 289 (SILESIUS, 2005, 95). O papel do charme

A música é, portanto, um ‘encontro com o charme ’, pois é um evento ‘não localizável’. Isto significa que não o podemos explicar como um produto técnico-racional, localizando a sua significação numa estrutura melódica particular, num timbre específico, numa altura determinada dos sons ou em certa tipologia sintática – reduzindo-o a tudo isso ou, ao menos, somente a isso. (...) Certamente, isso não significa que estes aspectos não sejam essenciais – simplesmente, não esgotam a sua razão de ser. E é por isso que a música leva ao fracasso cada uma das nossas tentativas de a apreendermos ou a apropriarmos para nós (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 164).

Inapreensível e não localizável é o encanto, especialmente, o encanto musical. Vale acrescentar que, assim como a inexpressividade possui uma compensação, também o fato de o encanto não residir num ponto composicional específico favorece a presença totalizante, “profusa e difusa” (JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 93), que o caracteriza. Constatamos, na nossa breve genealogia, que a graça e o je-ne- 157 sais-quoi são como uma “aura mágica” (JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 345) ou uma irradiação que envolve e permeia todo um objeto. E a música, talvez mais que as demais artes, destaca-se como criadora de climas e atmosferas, termos que remetem, até mesmo na linguagem cotidiana, a uma conjuntura identificável, mas impalpável e evanescente. Segundo Jankélévitch, esta dimensão totalizante e “indivisível” (idem) do encanto musical evidencia-se quando contrapomos a música a outros modos de expressão, frequentemente descritos pelo senso comum como formas de “linguagem”. Enquanto o sentido de um discurso em prosa se constrói paulatinamente, uma peça musical, como uma canção de Gabriel Fauré, frequentemente dotada de homogeneidade em termos expressivos, “exala”, desde o primeiro compasso, o seu sentido atmosférico, que permeará toda a obra e “climatizará” o poema (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 71). Este, ao se afastar de um sentido referencial preciso, é compreendido como o “sentido do sentido, que é charme ” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 70), enquanto a música, de expressão ainda mais totalizante, é descrita como o “ charme du charme ” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 71). Tais locuções, mais que um jogo

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poético de palavras, podem refletir algo da perspectiva ontológica do filósofo. Assim defende Lisciani-Petrini, que, na introdução à sua tradução de La musique et l’ineffable , relaciona a identidade entre o “sentido do sentido” e o charme ao fato de, em outros momentos da obra jankélévitchiana, o nosso objeto de estudo, especialmente quando se manifesta na sua quintessência musical, ser apresentado como capaz de revelar “o sentido mais íntimo do inefável sentido do real” (LISCIANI- PETRINI, 1985, p. XLIV). É importante ressaltar que o sentido totalizante e cativante verificado na música, embora não resida nos procedimentos específicos adotados numa composição, precisa de cada um deles para garantir a sua efetividade. Aplicando à música as considerações de Henri Bergson e Henri Bremond sobre a poesia, Jankélévitch destaca que a mera elevação do sétimo grau numa peça de Fauré, como Le plus doux chemin , seria suficiente para dissipar o seu “ divinum nescioquid” 158 (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 135). “O sabor indefinível e irredutível” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 134) é uma resultante de fatores insubstituíveis e irremovíveis, como a opção pela modalidade (idem), conjugados dentro de um fazer único e autêntico. Caso se situasse nas escalas de tons inteiros ou nas sétimas paralelas que, no contexto de uma obra de Debussy, tanto nos embevessem, o encanto seria facilmente reproduzível. No entanto, não é isso o que ocorre: quando utilizada de modo premeditado e não integrado a uma poética, determinada técnica composicional se converte em “um clichê para os imitadores ou um procedimento mecânico para os industriais da fabricação em série” (JANKÉLÉVITCH, 1983, 132). Menos que dos aspectos técnicos tomados isoladamente, o encanto depende, portanto, das maneiras, “do momento, do contexto, da ocasião e de mil condições que podem fazer de uma novidade uma engenhosidade afetada ou pedante e de um acorde banal um achado genial” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 131- 132). Reencontramos aqui a ideia, já presente em Montesquieu, de que o je-ne-sais-quoi só se realiza quando aliado à espontaneidade. Segundo Jankélévitch, “não há receitas para encantar ( charmer ), mas há receitas para ser um encantador (charmeur ), isto é, um histrião” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 112). E, no que se refere especificamente à música, este pré-requisito O papel do charme do encanto não se restringe ao compositor, mas também se aplica ao ouvinte de uma obra musical, posto que uma apreciação estritamente norteada por critérios técnicos “é um meio de se recusar este abandono espontâneo à graça que o encanto ( charme ) nos exige” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 128- 129). O tema da espontaneidade permite-nos recordar outra qualidade diretamente associada ao encanto e ao je-ne-sais- quoi não só no ensaio de Montesquieu, como também no diálogo de Bouhours: a simplicidade. Estaria ela também contida no charme jankélévitchiano? A resposta parece-nos positiva, se observarmos a significativa coincidência de este termo ter sido recuperado e destacado justamente por um autor – e pianista – que privilegia momentos musicais, “cenas” impressionistas e canções, enquanto praticamente desconsidera, como já anunciamos na introdução, as grandes formas cultivadas pela música germânica. Valoriza o encanto aquele que se sensibiliza pela poética miniaturista de Federico 159 Mompou, compositor catalão que, sugestivamente, criou uma série de seis pequenas “encantações” musicais, batizadas de Charmes (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 158-159). Assim, como último ponto a ser abordado nesta seção, cabe observar que a presença de uma preferência poética, patente ao longo da estética-musical jankélévitchiana, parece contribuir para a ênfase por ela concedida ao charme . E isto não só pelo fato de o filósofo do presque-rien admirar o fragmento musical e, com ele, obras que, como o improviso e a rapsódia, potencializam o encanto ao evitar previsíveis formas estabelecidas a priori . No livro-entrevista Quelque part dans l’inachevé , Jankélévitch admite ser tocado de maneira especial por uma música de ricordanza (JANKÉLÉVITCH, 1978, p. 215- 216), que, curiosamente, poderíamos exemplificar pelo quinto Charme de Mompou, em cujo subtítulo se lê: “para evocar a imagem do passado”... E, para além desta “encantação” específica, um pathos evocativo e melancólico se desprende da própria concepção jankélévitchiana do charme musical. Este é fruto de uma “temporalidade encantada” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 122) que, embora possibilite a retomada de temas e seções, ainda lida com a dinâmica da sucessão: o acesso ao

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evento sonoro presente implica a inexorável perda ou metamorfose de um evento anterior (cf. idem).

Conclusão Coincidentemente, encerramos tanto o nosso percurso pelo charme musical jankélévitchiano quanto a genealogia do conceito em questão abordando um mesmo ponto, a partir do qual teceremos esta conclusão. Como indica Montesquieu, à diferença da beleza estática, a graça se efetiva pela surpresa, por um processo de velamento e desvelamento, que pressupõe a participação do tempo e, até mesmo, recordando o diálogo de Bouhours, do “mais curto de todos os momentos”. Por conseguinte, constatamos, já no Iluminismo, indícios de uma revalorização positiva da temporalidade, que passa a ser associada a um je-ne-sais-quoi de conotação “espiritual”. No discípulo de Bergson tal revalorização em muito se 160 aprofunda, como se observa pela aplicação de um conceito, diretamente vinculado à temporalidade, tanto à (me)ontologia quanto à estética do autor, cuja protagonista é uma arte constitutivamente temporal. Constatamos que, no seu pensamento, estas duas áreas se interceptam: uma categoria proveniente da estética, no sentido baumgartiano, como disciplina que abrange não só o “conhecimento” do belo, mas intuições e inclinações, torna-se uma espécie de fundamento (me)ontológico. Fundamento que, como “encanto inefável”, a música nos permite, de certo modo, entrever. Apesar da precariedade da sucessão temporal, a música nos encanta. Mais correto seria dizer que apesar e em razão de tal precariedade há encanto. Caso este se perpetuasse, não mais seria “experiência insubstituível de uma coisa incomparável” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 105): graças à sua “caducidade”, o encanto não apenas suscita “uma poética melancolia” (ibidem, p. 149), mas se destaca e se potencializa como “acontecimento relâmpago” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 152), fruto de uma confluência irrepetível de eventos ( occasion , kairós ). Portanto, há encanto, quando o objeto, o sujeito, o espaço e o tempo são “coloridos” por uma luz (PLOTINO, 1999, Eneadas VI, 7, 22, 34) que nem sempre está presente, fazendo O papel do charme daquele momento “simples furo”, evasão fugidia (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 157). Sob este aspecto, o encanto musical identifica-se com a experiência mística, de cujo léxico a graça – assim como a centelha ( das Fünkchen )! – também participa. Por conseguinte, nem todo tempo é encantado, mas a possibilidade de encantá-lo, ainda que por breve lapso de tempo, mostra que o conceito de charme , especialmente na abordagem jankélévitchiana, é capaz de elevar, de modo significativo, o estatuto da temporalidade. E, com este, o próprio estatuto da música, arte que, além de se oferecer como especial imagem e via de acesso para o fluxo constitutivo da realidade, é interpretada não mais como encantação irracional, mas como encantamento eminentemente inefável.

Referências bibliográficas BAYER, R. Historia de la estética . Trad. J. Reuter. 13ª reimpresión. 161 México: FCE, 2012. BOUHOURS, D. Les entretiens d’Ariste et d’Eugène . Amsterdam: Jaques le Jeune, 1671. BREMOND, H. La poesía pura . Trad. J. Cortázar. Buenos Aires: Argos, 1947. FARIA, E. (Org.). Dicionário escolar latino-português . 2. ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Departamento Nacional de Educação, Campanha nacional de material de ensino, 1956. HADOT, P.. Plotin et la simplicité du regard . Paris: Plon, 1963. JANKÉLÉVITCH, V. De la musique au silence: Fauré et l’inexprimable. Paris: Plon, 1974. _____. La mort . Paris: Flammarion, 1966. _____. La musique et les heures . Paris: Seuil, 1988. _____. La musique et l’ineffable . Paris: Seuil, 1983. _____. Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien: la manière et l’occasion. v. 1. Paris: Seuil, 1980a. _____. Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien: la méconnaissance, le malentendu. v. 2. Paris: Seuil, 1980b.

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A concepção de obra musical em Ingarden

GLAUCIO ADRIANO ZANGHERI

Introdução

presente artigo pretende abordar algumas das ideias O que o fenomenólogo polonês Roman Ingarden (1893- 1970) desenvolve nas três primeiras partes de um ensaio intitulado The work of music and the problem of its identity (A obra musical e o problema de sua identidade ). Em princípio, este ensaio – ainda tão pouco conhecido pelos leitores brasileiros (tanto quanto o seu próprio autor) 1 – fora pensado como parte de um apêndice de outra obra (esta mais conhecida): A obra de arte literária 2. Este apêndice, que além de conter o ensaio sobre música também contém outros três ensaios (sobre pintura, arquitetura e cinema, respectivamente), acabou por tornar-se um tanto volumoso e Ingarden, em virtude de uma série de situações imprevistas, só pode publicá-lo aproximadamente trinta anos após a data inicialmente pretendida 3. No entanto, apesar de a parte que trata sobre a música fazer integrar este apêndice e de estar contextualizada numa discussão mais ampla acerca do modo de ser de cada manifestação artística, ela foi parcialmente publicada, na forma de um ensaio

1 Até o momento temos conhecimento de que há apenas dois textos de Ingarden traduzidos para o português: A obra de arte literária (cf. INGARDEN, 1973) e as Observações do Professor Dr. Roman Ingarden – Cracóvia , publicadas como apêndice na tradução brasileira das Meditações cartesianas de Husserl (cf. HUSSERL, 2012). 2 Publicado pela primeira vez em 1930 (em alemão). 3 Em 1958, em polonês, no segundo volume de seus Studia z estetyki (Estudos em estética ), e em 1961, numa versão alemã, preparada pelo próprio Ingarden, intitulada Untersuchungen zur Ontologie der Kunst: Musikwerk. Bild. Architektur. Film. (Investigações sobre ontologia da arte: Obra musical. Pintura. Arquitetura. Filme ). Cf. INGARDEN, 1989, p. ix-xi; JAGANNATHAN et al.,1985, p. 197 e 211.

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independente, pouco tempo depois da primeira publicação de A obra de arte literária 4 (o que nos faz especular que a música talvez tenha sido a primeira tentativa de Ingarden de expandir as suas teorias estéticas para além da literatura). E foi justamente essa relativa “independência” deste ensaio que fez com que ele pudesse novamente, e postumamente, ser publicado de forma autônoma em sua versão definitiva 5. Sendo assim, o texto é hoje acessível em duas versões: como parte daquele apêndice, e como um ensaio relativamente autônomo. Ambas foram traduzidas para o inglês e foi por meio destas que pudemos realizar o presente estudo 6. O ensaio de Ingarden tem como principal objetivo compreender o modo de ser específico de uma obra de arte musical e é composto por oito partes. Nas três primeiras, a obra musical será distinguida de três coisas intimamente ligadas a ela, mas que, de forma alguma, poderiam ser confundidas ou tomadas no lugar dela. Desse modo, a primeira parte distingue 164 a obra musical de sua performance; a segunda, de uma experiência da consciência; e, a terceira, de sua partitura. Feitas estas distinções de base, Ingarden poderá então a caracterizar com maior precisão o que é uma obra musical. Assim, a quarta parte irá descrever algumas de suas características e argumentará que a obra não é um objeto “real”; a quinta irá debater os elementos acústicos e não-acústicos; a sexta aprofundará as discussões acerca de seu modo de ser e de “existir”; a sétima discutirá a questão de sua unidade e

4 Em 1933, em polonês. Cf. INGARDEN, 1989, p. ix; JAGANNATHAN et al, 1985, p. 188. 5 Em 1973, em polonês. Na verdade, esta versão é apenas uma reimpressão do texto já publicado em 1958 junto com os Estudos em estética – cf. a nota de rodapé no. 3 acima. 6 O apêndice foi publicado em inglês com o título The ontology of the work of art: The musical work. The picture. The architectural work. The film., e consiste numa tradução de Untersuchungen zur Ontologie der Kunst: Musikwerk. Bild. Architektur. Film. A versão autônoma foi publicada com o título The work of music and the problem of its identity e consiste numa tradução do ensaio publicado no segundo volume de Studia z estetyki . Ou seja, temos uma tradução inglesa tanto da versão alemã como da versão polonesa do texto. Cf. INGARDEN, 1989; JAGANNATHAN et al., 1985. A concepçãoo de obra musical em Ingarden totalidade; e, finalmente, a oitava debaterá o problema de sua identidade, bem como de sua historicidade. De nossa parte, como já foi dito acima, temos como principal objetivo apresentar e comentar as três primeiras partes deste interessante ensaio.

1. A distinção entre obra musical e performance. Para demonstrar que a performance é distinta da obra musical Ingarden afirma:

A tese de que a obra musical não é idêntica à sua performance justifica-se pelo fato de que certos juízos válidos para performances específicas tornam-se falsos em relação à obra musical em si (por exemplo, a Sonata em Si menor de Chopin) e vice-versa – aqueles juízos aparentemente verdadeiros acerca da sonata tornam-se falsos em relação às suas performances específicas 165 (INGARDEN, 1986, p. 9).

E será justamente esse método que será usado para distinguir a obra musical da performance. Ingarden fará uma série de seis afirmações acerca da performance que se tornam falsas ou sem sentido quando aplicadas à obra musical. Assim: 1. “Cada performance de uma determinada obra musical é uma determinada ocorrência individual (processo) 7 que se localiza e se desenvolve no tempo univocamente” (INGARDEN, 1986, p. 10). Ou seja, cada performance começa, dura e termina em um dado momento específico do tempo e, como processo, ocorre

7 Sobre o termo “processo” Ingarden esclarece: “Há três tipos de objetos que são determinados temporalmente: objetos que subsistem no tempo (coisas, pessoas), processos (corrida, guerra, o desenvolvimento de um organismo), e finalmente, eventos (a morte de alguém, o início de uma performance específica da Sonata em Si menor). Esses três tipos de objetos determinados temporalmente diferem entre si tanto por seus modos de existência e por suas formas, quanto por suas propriedades possíveis”. (IGARDEN, 1986, p. 10, nota de rodapé 1).

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apenas uma vez. Não há como repeti-lo, pois não podemos voltar no tempo para apreciá-lo novamente. Uma vez terminado o processo, ele simplesmente deixa de existir. Outrossim, uma performance não se distingue de outra apenas por estar situada num determinado momento do tempo, mas também pelos detalhes musicais. Um músico, mesmo que seja extremamente habilidoso e se esforce para isso, nunca conseguirá tocar uma mesma obra duas vezes de uma forma exatamente igual. Diferente disso, uma obra musical permanece no tempo e continua existindo mesmo que o processo da performance termine. Ela não é “temporal” no mesmo sentido em que uma performance o é 8. E apesar de os momentos de uma obra se sucederem uns aos outros na obra em uma determinada ordem, eles existem todos simultaneamente e como um todo. Ou seja, quando estamos escutando o início de uma obra, o seu final já existe previamente e vice-versa. 166 2. “Cada performance é sobretudo um processo acústico” (INGARDEN, 1986, p. 10). Ela é um complexo de coisas que ocorrem no mundo físico “real” 9 – desde o aspecto mecânico dos instrumentos, do meio aéreo de propagação sonora, até a reação do intérprete frente àquilo que ele está executando. Ao contrário disso, nenhuma obra está condicionada por um processo acústico ou psicofísico. A causa de sua existência não depende de tais eventos. Quando, por alguma razão, aquele processo é interrompido, o que se interrompe é a performance, não a obra. Aliás, em sentido estrito, seria um contrassenso afirmar que “a obra” foi interrompida. 3. “Cada performance está univocamente localizada no espaço – tanto objetivamente quanto fenomenalmente” (INGARDEN, 1986, p. 11). Uma performance está “objetivamente” localizada no espaço no sentido em que as ondas sonoras se expandem

8 Em verdade, a obra musical será definida como uma “estrutura quase-temporal” (cf. INGARDEN, 1986, p. 16-17). 9 Cumpre observar que Ingarden distingue quatro categorias de objetos: Absolutos , Reais , Ideais e Puramente intencionais . Conforme veremos mais adiante, uma obra musical será compreendida por ele como um objeto puramente intencional . Sobre isso cf. THOMASSON, 2012. A concepçãoo de obra musical em Ingarden espacialmente a partir de um determinado ponto abrangendo uma determinada área etc. “Fenomenalmente”, uma performance também estará localizada no espaço, pois os sons produzidos serão percebidos pelo ouvinte como tendo sua origem num certo lugar do espaço. Podemos, portanto, nos aproximar da fonte sonora ou nos afastar dela, e disso resultará a possibilidade de escutarmos uma mesma performance modos diferentes. Ora, nada disso tem sentido quando nos referimos à obra musical, pois uma obra musical simplesmente não está localizada no espaço. 4. “Toda performance de uma obra musical nos é dada auditivamente, ou seja, numa multiplicidade percepções auditivas que se sucedem continuamente uma à outra” (INGARDEN, 1986, p. 11). O que ocorre é que estas percepções – os dados sonoros e os próprios aspectos auditivos experienciados (a gestalt que distinguimos num conjunto de sons) – mudam de uma performance para outra, de um ouvinte para outro e até mesmo da localização espacial em que nos 167 encontramos. Além destas, Ingarden (1986, p. 13) também sublinha que a nossa experiência com uma performance muda em razão de nossa concentração, atenção ou atitude emocional. Prova disso é que podemos ter várias reações diferentes ao escutar uma mesma obra por meio de uma mesma gravação. Mais uma vez, nada disso se aplica à obra musical em si. Uma obra não varia em razão de modo como experienciamos os aspectos auditivos dela. 5. Performances de uma mesma obra não diferem entre si apenas por serem tocadas por diversos intérpretes (ou pelo mesmo intérprete, como já foi assinalado), ou por sua localização no tempo e no espaço, mas também em razão de suas propriedades qualitativas. Entre tais propriedades, Ingarden (1986, p. 13-14) destaca o timbre das notas, os tempos, os detalhes dinâmicos ou a clareza como uma determinada passagem é executada. Tais diferenças são impossíveis de serem completamente erradicadas. Além disso, uma performance que nos é dada diretamente à percepção não depende apenas de condições objetivas, mas também de condições subjetivas (que influem em suas propriedades qualitativas) e até mesmo de elementos não sonoros. Ao contrário disso tudo, a obra musical permanece sempre a

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mesma. “Ela permanece incólume a todas as diferenças que necessariamente ocorrem entre performances particulares” (INGARDEN, 1986, p. 20-21). 6. Toda performance é um objeto individual que, em último caso, é determinado univocamente e positivamente pelas “menores variações possíveis – aquelas que não permitem qualquer diferenciação adicional” (INGARDEN, 1986, p. 14). Com relação à obra musical, Ingarden irá concordar que podemos legitimamente questionar se uma obra é “univocamente, e em última instância, determinada por estas ‘menores’ propriedades que não permitem diferenciação adicional” (INGARDEN, 1986, p. 22). Segundo ele a resposta a essa questão irá depender se a obra musical for identificada com: “(1) o produto exclusivamente determinado pela partitura; ou (2) o produto equivalente de uma percepção estética adequada” (INGARDEN, 1986, p. 22). Essa questão será respondida ao longo do ensaio, contudo Ingarden nos adianta 168 que:

Por enquanto, devemos aceitar que uma obra musical contém características que não são univocamente determinadas por qualidades que não permitem uma diferenciação adicional (INGARDEN, 1986, p. 22).

O timbre das notas, e pequenas variações de afinação são exemplos disso. Em suma, uma performance se distingue da obra, fundamentalmente, por ser algo que está situado no tempo e no espaço, e portanto, radicalmente diferente da obra. Além disso, as duas possibilidades de definição da obra musical (como produto de uma partitura ou como o produto de uma percepção estética) acabam por se revelar como os verdadeiros problemas a serem enfrentados por Ingarden.

A concepçãoo de obra musical em Ingarden

A distinção entre obra musical e experiência da consciência. A segunda parte do ensaio é totalmente dedicada ao combate do psicologismo. Segundo Ingarden (1986, p. 24-25), teóricos, musicólogos, físicos e psicólogos, quando não têm interesse em discussões filosóficas, acabam por ter uma visão demasiado simplificada do que é uma obra de arte. Segundo eles:

parece quase óbvio que uma obra de arte, e especialmente uma obra musical, é algo “mental”: um conjunto de imaginações ou experiências auditivas. [...] Uma obra musical é, sobretudo, certo conjunto de sons com o qual se associam pensamentos, sentimentos e imaginações. E, conforme aprendemos com os físicos e psicólogos, sons não são nada além de experiências sensíveis e, portanto, experiências mentais (INGARDEN, 1986, p. 24). 169

Dessas premissas seguir-se-ão uma série de consequências: uma mesma obra musical nunca será a mesma na mente de diferentes indivíduos ou de um mesmo indivíduo ao escutá-la mais de uma vez; a experiência do ouvinte se reduzirá a respostas a estímulos causados em terminações nervosas por ondas sonoras produzidas por uma determinada fonte; a obra musical será uma seleção de fatos mentais condicionados por estímulos físicos e a sua identidade nada mais será do que uma imprecisão do senso comum e da linguagem. Para enfrentar essas consequências Ingarden irá argumentar que, em primeiro lugar, é preciso compreender o que se entende por “mental”. Ao que parece, segundo aquelas teorias, o termo “mental” se refere a tudo aquilo que não é físico e que não pode existir independentemente das experiências da consciência. Tais coisas são também designadas “subjetivas”, e o subjetivo é imperceptivelmente identificado com essas experiências e suas partes constituintes. Ingarden concorda que uma obra musical possa ser “subjetiva”, mas não no sentido em que ela seja identificada com uma

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experiência interna da consciência ou de seus elementos constituintes. Isso se dá porque todas as experiências e seus elementos são acessíveis ao conhecimento apenas por meio de atos de reflexão (na medida em que são inerentes à consciência), e ninguém poderá conhecer uma obra musical por meio de tais atos (fosse assim a obra já deveria estar “contida” nela). Ou seja, é preciso manter a distinção categorial entre ato e objeto. Seria possível então afirmar que a obra é um “conteúdo” das experiências da consciência? Aqui também será preciso por em questão o vocabulário e compreender o que se pretende pelo termo “conteúdo”. Segundo Ingarden (1986, p. 27), ele é entendido de maneira tão ampla pelos psicólogos que qualquer coisa que não for nem uma coisa material nem um ato de consciência se torna conteúdo de uma experiência consciente. Nesse sentido, um “conteúdo” pode se referir tanto a um objeto experienciado sensivelmente, quanto a uma obra 170 musical. Ou seja, é um “conceito que explica tudo, mas que, com a sua ajuda, nada pode ser negado” (INGARDEN, 1986, p. 27). Assim, se a obra for um “conteúdo” das experiências da consciência, ou seja, um elemento que forma uma parte dela, nós devemos, em primeiro lugar, investigar o que efetivamente, ocorre nesta experiência. O que, objetivamente, chega aos nossos ouvidos? Que elementos constituem a audição de uma obra musical? Nas palavras de Ingarden: “O que então, na percepção auditiva, constitui o efetivo elemento de nossa experiência de escuta?” (INGARDEN, 1986, p. 28). Ingarden irá reconhecer que responder a esta pergunta não é tão fácil e tão simples (como o psicologismo pretende) e, para que a investigação não se torne uma análise das estruturas e dos processos da experiência sensível, seja suficiente dizer, provisoriamente, que:

as assim chamadas percepções não são nem os objetos que nos são doados na experiência sensível nem as suas características qualitativas doadas diretamente, mas sim certos dados qualitativos que experienciamos quando estamos objetivamente lidando com coisas ou outros objetos que foram qualitativamente determinados. Em particular, A concepçãoo de obra musical em Ingarden

“percepções” auditivas não são sons, notas, acordes, melodias, ou então as suas características qualitativas como a altura ou o timbre, a qualidade harmônica de um acorde ou o perfil de uma melodia (INGARDEN, 1986, p. 29) 10 .

Ou seja, a experiência da escuta não nos fornece melodias, harmonias e coisas do gênero, mas apenas certos “dados sonoros”, e ao que tudo indica, esses dados sonoros estarão na base daquilo que será compreendido como nota, acorde, melodia, timbre, qualidade harmônica, etc. Será preciso, portanto, uma espécie especial de “reflexão” para apreendê-los sem, por outro lado, falsearmos o seu modo de existir específico. É através dessa reflexão que perceberemos que os produtos sonoros (melodias, acordes, etc.) são radicalmente diferentes dos dados sonoros experienciados (“percepções”). Além disso, nós atingimos essa “reflexão” sem pararmos de escutar uma performance que se desenrola atualmente à nossa frente. Ou seja, os produtos sonoros não são as próprias 171 “percepções”, no sentido de serem uma parte efetiva da multiplicidade dos dados sonoros efetivos, mas algo que as transcende. Ao escutarmos uma música não estamos diante de uma multiplicidade desconexa de sons, mas sim de melodias, notas, acordes etc. Escutamos uma obra, não um conjunto de sons. A obra transcende, portanto, os simples dados sonoros perceptivos. E é também por esta razão que não se pode considerar a obra como um “conteúdo” de uma experiência da consciência. Além disso, Ingarden (1989, p. 31) irá prever a possibilidade de haver uma “correlação” entre os dados sonoros e os produtos sonoros, mas à época em que ele escrevia o ensaio, estas correlações não ainda haviam sido explicitadas e desenvolvidas adequadamente 11 .

10 Como se pode observar, a concepção de “percepção” apresentada nesta passagem por Ingarden é um tanto genérica e difere da de Merleau-Ponty. 11 Esta possibilidade de correlação entre “dados sonoros” e os “produtos sonoros” permite uma aproximação entre o pensamento de Ingarden e o de Pierre Schaeffer. Nesse sentido, poderíamos pensar que o objeto musical de Schaeffer seria equivalente aos “produtos sonoros” de Ingarden, e o sinal acústico equivalente dos “dados

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A distinção entre obra musical e partitura. Desta vez os adversários de Ingarden são os positivistas. Segundo Ingarden (1986, p. 34), estes últimos, buscando evitar uma assim chamada “hipóstase metafísica” tentavam reduzir todos os tipos de objetos a coisas materiais, processos ou processos mentais. A consequência disso é que uma partitura acabava por se tornar um simples objeto físico que nada mais era do que “uma folha de papel com manchas de tinta impressas espalhadas sobre sua superfície de um determinado modo” (INGARDEN, 1986, p. 35). Ingarden reconhece que os positivistas talvez não aceitassem a afirmação que identifica a partitura com um simples objeto físico. Contudo, para escapar mais uma vez de uma “hipóstase metafísica” eles iriam afirmar que:

a partitura é apenas um sistema de propriedades 172 selecionadas ou uma determinada parte de um papel impresso, a saber: um sistema acordado convencionalmente sobre formas coloridas no papel (INGARDEN, 1986, p. 36)

O problema é que esta definição exclui a função decisiva de uma partitura: “ simbolizar determinados objetos ou processos” (INGARDEN, 1986, p. 36, grifo do autor). Um “signo” musical não é apenas uma mancha de tinta sobre um papel ou qualquer outro material. Justamente por ser um signo ele designa funções. Um objeto físico não é capaz de designar, por conta própria, a função de um signo. Ele apenas é uma espécie de suporte que em si mesmo é o produto de uma consciência subjetiva que permite que ele desempenhe uma função intencional de signo. “Uma partitura é sistema de signos de tipo particular” (INGARDEN, 1986, p. 37). Ela não é um simples objeto físico – apesar de ela ter como suporte o papel, por exemplo. No

sonoros”. O terceiro Livro do Traité de Schaeffer será justamente dedicado à discussão das correlações entre o sinal acústico e o objeto musical . Cf. SCHAEFFER, 1977, p. 157-258. A concepçãoo de obra musical em Ingarden entanto, isso de forma alguma nos autoriza a afirmar que a partitura seja algo mental. Os signos que criamos por meio de operações subjetivas são produtos que transcendem essas operações. Eles são, portanto, objetos transcendentes e, nesse sentido, são meios de comunicação intersubjetiva para que várias pessoas possam tocar uma mesma obra musical. Como se pode observar, nada disso se aplica a uma obra musical propriamente dita. E isso se dá por duas razões bem específicas. 1. “Nem toda obra musical foi notada” (INGARDEN, 1986, p. 38). Muitas músicas puderam existir mesmo sem a notação, pois muitos compositores criavam as suas obras simplesmente improvisando-as. Se tais obras continuaram a existir depois de sua improvisação é uma questão difícil de decidir, mas tal dificuldade não reside na distinção entre partitura e obra musical. 2. “Uma partitura consiste num arranjo “imperativo” 173 de símbolos que nós registramos com a ajuda de vários meios técnicos” (INGARDEN, 1986, p. 38). Ou seja, podemos registrar tais símbolos utilizando alguma notação musical, ou um gravador. Há várias maneiras de registrar uma música, basta que se conheça um sistema de signos e suas convenções para que possamos empregá-lo. Mas o papel de uma partitura não termina em designar o modo como uma obra deve ser. Ela também consiste num conjunto de “ instruções de como proceder para alcançar uma performance fiel de uma dada obra” (INGARDEN, 1986, p. 39, grifo do autor). Assim Ingarden (1986, p. 39) irá concluir que do mesmo modo que “um signo é diferente do objeto que ele designa, uma partitura é diferente da obra designada por ela”. Há apenas uma espécie de correlação entre ambas que, entretanto, não é isomórfica, pois uma obra pode ser registrada por meio de diferentes sistemas. Além disso, nem todas as propriedades uma obra são definidas pela partitura. Numa partitura não há propriamente sons, timbres, harmonias etc. Finalmente, quando o compositor não registrou sua obra, esta derivou diretamente de seus atos intencionais criativos que, em certos casos, concretizou-se numa performance do próprio autor.

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Conclusões. Como se pode observar Ingarden começa o seu ensaio oferecendo uma série de três teses negativas acerca da obra musical. Mas, sendo assim, com o quê exatamente elas contribuem? Em verdade, elas fazem com que fique mais fácil compreender o modo de ser específico de uma obra musical. Conforme será explicitado nas partes seguintes do ensaio, uma obra musical será definida como um objeto puramente intencional . Ou seja, algo que não é um objeto real , na medida em que não é uma coisa que esteja situada no tempo e no espaço, não é ideal , na medida em que ela não é algo imutável e atemporal (como o são, por exemplo, os objetos matemáticos ou geométricos, pois uma obra musical foi criada por alguém em algum determinado momento histórico), e que, tampouco, é um objeto absoluto (como o é, por exemplo, Deus). Ela é, finalmente, um objeto intencional puro no sentido específico que a fenomenologia confere a este termo – ou seja, um objeto 174 subjetivo cuja identidade nos é doada por meio de várias perspectivas 12 . Outro aspecto digno de nota neste ensaio é a constatação de certa tensão entre posições que poderíamos classificar, de um lado, como sendo “antiquadas”, e de outro, como sendo “avançadas”. Elas seriam antiquadas na medida em que teríamos certas dificuldades em empregá-las em alguns casos da m úsica dos s éculos XX e XXI, bem como de algumas músicas populares, e at é mesmo de certas músicas extra- europ éias. Mas elas se mostram avançadas justamente por buscar precisar conceitualmente o que é uma obra musical e, por isso mesmo, permite que possamos repensar em que sentido este conceito poderia ser recusado em favor de outras propostas como “arte sonora”, “improvisação musical”, “performance audiovisual” etc. Como se sabe, estas propostas buscam, justamente, atender a outras formas de arte que também lidam com “sons”, mas que não poderiam, com justiça, ser pensadas nos mesmos termos daquilo que é chamado,

12 Sobre os diversos modos de ser dos objetos em Ingarden cf. THOMASSON, 2012. A concepçãoo de obra musical em Ingarden genericamente, de “música tradicional”. E é justamente por nos convidar a repensar o que compreendemos por música, ou obra musical, que este texto ainda nos apresenta algo de promissor. Mas tudo isso já consiste numa outra discussão.

Referencias bibliográficas HUSSERL, E. Meditações cartesianas e Conferências de Paris . Trad. P. M. S. Alves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. INGARDEN, R. A obra de arte literária. Trad. A. E. Beau, M. da C. Puga e J. F. Barreto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1973. ____. Selected papers in Aesthetics . Trad. A. Czerniawski, [et al]. Washington D. C.: The Catholic University of America Press, 1985. ____. The work of music and the problem of its identity . Trad. A. Czerniawski. London: The MacMillan Press, 1986. ____. Ontology of the work of art: The musical work. The Picture. The architectural work. The film . Trad. R. Meyer e J. T. Goldwait. Ohio: Ohio 175 University Press, 1989. JAGANNATHAN, R.; MCCORNICK, P. J.; POŁTAWSKI, A.; SIDOREK, J. Roman Ingarden Bibliography. (Ed. Peter J. McCornick). In: INGARDEN, R. Selected papers in Aesthetics . Traduções: A. Czerniawski, [et al]. Washington D. C.: The Catholic University of America Press, 1985, p. 181-223. SCHAEFFER, P. Traité des objets musicaux : Essai interdisciplines. Paris : Seuil, 1977. THOMASSON, A. "Roman Ingarden ". The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2012 Edition), E. N. Zalta (ed.), 2012. Disponível em: < http://plato.stanford.edu/archives/fall2012/entries/ingarden/ >. Acessado em 20/10/2015.

Música 1941: história e crítica

DANILO PINHEIRO DE ÁVILA

este texto tratarei de um breve momento da trajetória Ninicial de Hans Joachim Koellreutter no Brasil, precisamente entre os anos de 1939 e 1944. Fundador do Grupo Música Viva, o músico alemão passou a desenvolver uma série de atividades (concertos, audições, publicações, aulas, palestras) que portavam claramente o intuito de divulgar as músicas “menos conhecidas” de todas as tendências artísticas, sendo louvado em diversos momentos por críticos musicais da época pelos seus empreendimentos musicais “bem intencionados” que visavam a renovação musical do cenário carioca. Entre as principais contribuições do grupo nestes primeiros anos de atuação (a saber, 1939-1941), estão os onze números da Revista Música Viva, que projetaram Koellreutter no cenário carioca como um grande divulgador da música produzida pelos novos compositores (nacionais e internacionais), assim como as composições menos conhecidas do passado. Koellreutter chega ao Rio de Janeiro em 1937, exilado pelo regime nazista, como um virtuoso flautista e compositor advindo dos cursos alemães e tendo fundado os “Círculos de Música Nova” em seu país de origem, onde também travava conhecimento com as técnicas “de vanguarda”, se ligando diretamente ao maestro Hermann Scherchen, com quem apenas tivera cursos extracurriculares, mas que, segundo o compositor, exercera influência determinante sobre o seu fazer artístico (KATER, 2001, p. 179). Primeiramente recebido aqui por Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, então bibliotecário da Escola Nacional de Música e contribuinte crítico da Revista Brasileira de Música, este irá apresentar Koellreutter a uma parcela de músicos que tinham certa representatividade dentro do cenário musical carioca como Otávio Bevilacqua, Andrade Muricy, Luiz Cosme, Egídio de Castro e Silva. É interessante notar que todos estes músicos e críticos ocupavam posições de

Música 1941 renome no meio musical, a maioria como contribuintes da Revista Brasileira de Música , publicação cientifico acadêmica de música no Brasil criada e mantida pela então Escola Nacional de Música. Além disso, aderiam a posições distintas no projeto do incentivo à música nacional, constituindo uma ala minoritária que procurou-se filiar à Koellreutter naquele momento e incentivar as novas ideias trazidas pelo compositor. Sendo assim, podemos afirmar que a recepção de Koellreutter no Brasil não é de inicio conflituosa, começando a lecionar no

Conservatório Brasileiro de Música e fundando o grupo Música Viva, ambos em 1938, ano em que são realizadas as primeiras audições e concertos. No entanto, é só em 1940 que será criada a Revista (ou Boletim ) Musica Viva, que publica seu primeiro número tendo no corpo editorial Koellreutter como fundador, Octávio Bevilacqua como diretor; Egídio de Castro, Luiz Heitor e Brasílio Itiberê como redatores. Número este que dá reconhecimento público as audições e concertos organizados 177 pelo Música Viva no ano de 1939, com um balanço dos compositores que foram escolhidos, assim como uma relação da quantidade de reproduções de cada um, mostrando que a grande maioria dos compositores ouvidos eram contemporâneos, sendo apenas uma pequena parcela compositores “clássicos”. Entre os compositores contemporâneos brasileiros podemos notar a presença de: Ernâni Braga, Lorenzo Fernandes, Radamés Gnatalli, Camargo Guarnieri, Brasílio Itiberê, Francisco Mignone e Heitor Villa- Lobos. Os compositores estrangeiros são de maioria francesa, com algumas exceções. Os “clássicos”, alemães: Bach, Brahms e Beethoven (MUSICA VIVA, maio/1940, p. 1). A Fundação do grupo foi celebrada por Andrade Muricy, tecendo comentários sobre a iniciativa de um “musicista excepcionalmente culto, informadíssimo e recém- chegado de centros de alta atividade musical”, em crítica intitulada “Um Recital de Música de Câmara” (02/02/1939) no Jornal do Comercio, atestando que as atividades do compositor são “ da mais nobre intenção ” (MURICY, 1939, p. 1) . Os desenvolvimentos iniciais dos primeiros boletins produzidos pelo Música Viva entre 1940 e 1941 devem ser destacados. Dos três primeiros volumes (lançados em

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maio/junho/julho de 1940, respectivamente) constam apenas dois textos publicados originalmente por Koellreutter e nenhum deles têm como objeto principal o atonalismo ou a música serial. No texto “Cravo ou piano moderno?”, lançado ao terceiro volume do Boletim, o compositor procurará levantar apontamentos sobre os debates acerca da predileção dos músicos entre os referidos instrumentos, afirmando basicamente que cada um destes instrumentos tem uma demanda especifica de seu tempo e que esta comparação não encontra sentido sê pensada historicamente (KOELLREUTTER, julho/1940, pp. 3-4). Análise que deriva de um mote que Koellreutter prolongaria para a maioria de suas contribuições escritas: a música como “uma expressão viva de seu tempo”. Podemos ver que ao longo das críticas feitas por João Itiberê da Cunha junto à sua coluna “Correio Musical” no periódico carioca Correio da Manhã a nuance inicial, pois, 178 em um primeiro momento (1940-1941), o crítico apenas louvara os empreendimentos do grupo, afirmando que esta agremiação de músicos deve ser conhecida e protegida. Itiberê da Cunha, notado defensor da estética nacional na música, é um dos poucos a descrever detalhadamente as atividades do grupo neste momento, que é visto como um dos polos aglutinadores da música brasileira contemporânea, já tendo lançado em seus boletins a respeito de compositores “nacionalistas” como Camargo Guarnieri (número 4) e Frutuoso Vianna na (número 1), na seção organizada por Luiz Heitor chamada “Compositores de Hoje”. Ao dedicar o boletim de número 7/8 para Heitor Villa-Lobos e declarar este como um presidente honorário do grupo, que acaba de criar no seu interior a Seção Brasileira da Sociedade Internacional de Música Contemporânea (SIMC), Koellreutter assume uma posição que, até então, contradiz o caráter emergente do grupo ao se vincular a figura de Villa-Lobos – cabe lembrar que este não é um fato isolado, sendo recorrentes os artigos de Koellreutter sobre Villa-Lobos na sua coluna junto a revista Leitura, com elogios em relação não apenas a suas composições, mas a sua pedagogia musical desenvolvida em Música 1941 volta do canto orfeônico . Quem inaugura o volume do boletim dedicado a Villa-Lobos (n.7/8) é o próprio Koellreutter, narrando que tomara ciência da obra do compositor brasileiro em sua ida a Paris, especificamente com o “Choro no. 2”, obra que imediatamente remeteu ao produtor do programa de rádio que participava na Radio Nationale de Paris, em 1934 (KOELLREUTTER, jan. fev./1941, p. 1). Nesta “Homenagem à Villa-Lobos” de Koellreutter, o compositor tece elogios a educação musical proposta por Villa, atividade do compositor brasileiro que ele não conheceu quando travou relação com a sua obra em Paris: “Não imaginaria, no entanto, que seu campo de trabalho fosse tão vasto, pois além de compositor é educador, realizando um programa educativo de música como talvez haja poucos iguais no velho mundo” (KOELLREUTTER, jan.fev. 1941, p. 1) Na publicação em homenagem a Villa-Lobos, o boletim e o grupo Música Viva já obtém uma recepção que 179 relata os ímpetos “militantes” dos envolvidos, como se pode ver na crítica de João Itiberê da Cunha “'Música Viva' em Homenagem a Villa-Lobos”, que mostra como o grupo segue em direção a práticas mais engajadas com relação a música contemporânea:

“Música Viva é um simbolo. Agrupa uma Associação e uma Revista (ou Boletim, como quiserem) ambas doutrinantes, militantes, nacionalizantes, ainda não agressivas por que os que convivem nelas são pessoas educadas… Sente-se, contudo, latente, o prurido da luta, o desejo de matar muita gente, pelo menos os que possam divergir das suas diretrizes “avançadas”… É justo que a gente nova se divirta… (…) E lucramos também ficar sabendo, com a leitura desse introito, que a finalidade principal da agremiação ou melhor do grupo “Música Viva” - não é o mesmo das outras sociedades musicais que possuímos e que “realçam o virtuose e o concerto”, enquanto a “Vivíssima Musica” pretende divulgar “ o compositor e a obra e principalmente a música contemporânea” (CUNHA, fev./1940, p. 21)

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Como podemos perceber o grupo agora é visto não apenas como “bem intencionado”, mas portando um engajamento “militante”, além de diretrizes “avançadas” e “doutrinantes”, o que guarda um reflexo no interior da revista com a publicação de textos contundentes como os de Sílvia Guaspari a respeito da relação da música com os meios de comunicação “Música Mecânica e Rádio” (número 6) ou a seção inaugurada com traduções dos artigos de Nícolas Slonimsky feitas a partir do IV Boletim Latino-Americano de Música (números 5, 6 e 9), onde, em sua segunda aparição no boletim, o musicólogo se presta a narrar relatos das reações que se seguiram a estreia do Pierrot Lunaire de Schoenberg (SLONIMSKY, nov./1940, p. 11). Movimento que também se percebe em textos posteriores a crítica de Itiberê da Cunha, como a crítica de Claúdio Santoro, “Considerações em torno música brasileira contemporânea” (número 9), que demonstra como o folclore tem de ser pensado em um registro lógico e não temático, postulando o que o diferencia 180 do nacionalismo que percebe ou na entrevista reproduzida com Alban Berg, “Que é a Atonalidade?”, mostrando como este é um conceito que não é fundado por Schoenberg, mas antes uma produção da imprensa da época que correspondia o ímpeto de classificar esta música que era então desconhecida e causava certo incômodo. Esses desenvolvimentos da revista são resultados de uma autonomia barganhada não somente pelas posições sociais que ocupavam os músicos relacionados ao grupo, mas também pela inserção cordial de Koellreutter junto ao contexto, possibilitando a difusão destes temas que encontravam claramente opositores. Nos anos que se seguem até 1944, ano da publicação do primeiro manifesto do grupo e desenvolvimento de programas radiofônicos junto a PRA-2, é grande o rol de atividades que realizou o compositor alemão. Temos relatos de uma tournée com a harpista Mirella Vita financiada pela instituição “Pro Arte Brasil”, entre 1941-1942, aonde Koellreutter é visto pela crítica como “quem agitou a modorra musical do nosso meio criando a revista Música Viva”, além de notado “discípulo de Schoenberg, conservando muito de suas predileções. Compreende-se desde logo o seu amor pelo Música 1941 atonalismo” (CUNHA, jan./1942, p. 11). É documentada também sua participação na fundação da Orquestra Sinfônica Brasileira, aonde ingressou como o primeiro flautista e foi diversas vezes instrumentista dos programas organizados pela OSB na Rádio Nacional em “horário nobre”, próximo horário depois do programa “A Hora do Brasil”. Ministrara alguns cursos de Composição e Contraponto no Instituto Musical de São Paulo. Em 1943, o Conservatório Brasileiro de Música convida Koellreutter para ser diretor da Orquestra de Câmara , “destinado a tornar conhecida a vasta literatura dos séculos XVII e XVIII e as obras originais para orquestra de câmara (…) especialmente as dos jovens compositores brasileiros”. Além dessas atividades integradas a instituições, esse período entre 1943-1944 é marcado por artigos e entrevistas publicados tanto em jornais de grande circulação como o Diário, o Correio e O Globo, quanto em revistas de coloração comunista como a Diretrizes e a Tribuna Popular - espaços que Koellreutter transitará até o fim da década de 40 . Todas estas atividades, juntamente com a repercussão “bem intencionada” da crítica 181 musical da época, garantiram a Koellreutter um relativo reconhecimento e uma margem de autonomia que lhe garante novas possibilidades para o desenvolvimento de suas práticas musicais. No entanto, essa autonomia social barganhada a partir de suas atividades musicais iniciais na cena carioca será tensionada a partir de um dado musical: a publicização da obra Música 1941 , editada em 1943 pelo Editorial do Instituto Interamericano de Musicologia no Uruguai. Essa tensão entre a autonomia social conquistada e o dado musical negativo que queremos explicitar nesta comunicação fica clara na crítica da Música 1941 feita por João Itiberê da Cunha a respeito da recepção desta música por escrito, o que mostra a nuance no tom do crítico em comparação relatos feitos anteriormente sobre Koellreutter. Vale conferir o conteúdo da crítica pelo seu tom irônico e agressivo:

Se Hans Joachim Koellreutter nos tivesse dito que descobriu habitantes na Lua, ficaríamos menos surpresos…...... É curioso.

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Resolver o problema dos 12 sons não é nada. Encontrar quem aguente semelhante achado é que é difícil! (…) Koellreutter que tenha paciência. Música é música. Notas esparsas, por mais bem arrumadas que sejam, constituindo apenas ruídos musicais – ou anti-musicais – não podem ter a pretensão de ser música” (CUNHA, 1943, p. 9)

Dessa maneira, essa afirmação de Itiberê da Cunha respalda a narrativa que associa o termo atonalismo ao desenvolvimento de elementos sonoros que se contrapõe a tudo que pode se denominar música. A partir daqui, Koellreutter despe-se da sua vestimenta de “bem intencionado” frente ao crítico para ingressar paulatinamente na construção de “dodecafonista ortodoxo”, jargão que reflete pouco suas atividades musicais neste momento, pois constantemente o flautista enfatizava seu objetivo de divulgar musica de todas as tendências. Atitudes estas que denotam certo interesse da 182 crítica na identificação da sua trajetória ao termo referidos, promovendo um antagonista ideal a se colocar frente aos desenvolvimentos da música nacional. Como consequência desse acirramento, Koellreutter decide ministrar uma palestra sobre os “Problemas da música contemporânea” 1, anunciando que nesta conferência debaterá os artigos produzidos por seu atual crítico (J.I.C). Empreendimento de Koellreutter que dissolve fronteiras que se impunham entre compositor e crítico musical, ocupando ambos até então sua função especifica na dinâmica social da música 2. Cabe nos atentar para o fato de que

1 Conforme relata e anuncia João Itiberê da Cunha no Correio da Manhã em 18 de Dezembro de 1943, dia em que se deu a conferência, que é aproximada novamente da escola schoenberguiana: “o assunto é vastíssimo. Mas supomos que o apreciado virtuose se atenha apenas a uma das modalidades da música: a da defunta escola de Schoenberg. Em todo caso, veremos com prazer o que for. Se for para enterrar a escola, tanto melhor...”. (CUNHA, 1943) 2 No primeiro anuncio da conferência, 6 dias antes da sua realização no Conservatório Brasileiro de Música, “J.I.C.” atenta para o despeito e vê com certo desconforto a arrogância da proposta do compositor teuto de comentar artigos produzidos por ele como crítico musical: “Agora Hans Joachim Koellreutter anuncia uma conferência: “Problemas da Música Contemporânea”, em que nos traz Música 1941 este reconhecimento musical que Koellreutter recebe e a margem de possíveis que se abrem a ele para realização de conferências desta natureza é devido a constante barganha por autonomia social que suas práticas disputam. Para divulgar essa palestra, também ao dia 18 de Dezembro de 1943, Koellreutter confere uma entrevista ao Diário da Noite exposta em forma de artigo, intitulada “O Futuro Terá Uma Nova Expressão Musical” fazendo questão de ressaltar que a conferência a ser proferida se deve aos recentes artigos publicados por “seu maior oposicionista” que “manifestou-se inteiramente contrário á técnica do jovem professor e condenou-a”, fruto dos debates surgidos com a publicação da “Música 1941”. Nesta entrevista, imbuído de vocabulário quase-wagneriano 3 que coloca a então denominada “música nova” como uma “nova expressão do futuro”. Neste artigo, Koellreutter se presta basicamente a esclarecer algumas incompreensões que percebe serem recorrentes, como a confusão entre os termos “atonalismo” e 183 “dodecafonismo”.

Música atonal e a técnica dos 12 sons schoenbergiana, não são sinônimos (idênticas). A música atonal é uma linguagem sonora e a técnica dos 12 sons uma técnica de composição com a finalidade de resolver o problema formal da música 'atonal'; como cadência e funções harmônicas resolveram o problema formal da música 'tonal'. pessoalmente à bulha, por que vai fazer considerações a respeito de artigos nossos como crítico musical!… Que virá por aí, Santo Deus?” (CUNHA, dez/1943) 3 Torna-se perceptível este apontamento com a leitura do seguinte trecho que é colocado como se fossem palavras do Koellreutter: “- Creio que a linguagem sonora atonal será a expressão musical do futuro (…) Achamo-nos atualmente, talvez na maior transformação pela qual o mundo jamais passou. Somos testemunhas de uma gigantesca transformação social que não ficará, certamente, sem influência sobre a expressão artística de nossa época. Infelizmente, uma grande parte da humanidade se recusa a reconhecer esta transformação global, não conseguindo compreender assim os problemas intelectuais do mundo” (KOELLREUTTER, dez./1943, s.p.).

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Uma obra pode ser atonal sem ser escrita na técnica schoenbergiana, e vice-versa; uma composição pode ser tonal, porém, composta na técnica dos 12 sons (KOELLREUTTER, dez/1943, s.p.)

Não podemos aqui concordar com Leandro Souza, em sua dissertação de Mestrado Incomunicação ou Cosmopolistismo? H.J Koellreutter e os Debates sobre a comunicabilidade artistica , ao concluir dessa entrevista “o marco definitivo da nova projeção pública assumida por Koellreutter como polemista, séquito do seu intuito permanente de renovação musical” (SOUZA, 2009, p. 71), refletindo sobre a postura assumida por Koellreutter como substrato de suas intenções exclusivamente, desconsiderando as pressões por explicação que sofriam suas composições. Partindo de um reconhecimento disputado constantemente, as práticas de Koellreutter aqui apontam antes para a vontade de 184 participação na recepção de suas composições frente às demandas colocadas por seu crítico, assim como uma “aclimatação” de suas propostas estéticas que se inscrevem em um cenário onde a progressiva racionalização do material musical não é um dado estruturante. Apontamentos estes que se verificam no relato sobre a conferência de João Itiberê da Cunha, contrariando a expectativa gerada em função dos relatos anteriores, ao dizer que esta fora “a mais interessante e instrutiva das conferências”, onde o compositor “não propriamente para responder artigos nossos, mas para explicar a gênese de certos movimentos revolucionários musicais”. Inclusive, relativizando a opinião do crítico que gostaria de sepultar a escola de Schoenberg, com relação ao “Pierrot Lunaire” de Schoenberg, obra que foi reproduzida durante a conferência 4. Neste sentido,

4 “A audição (realmente muito má) do “Pierrot Lunaire”, de Schoenberg fez-nos, contudo, compreender que o espírito, nessa música, toma a dianteira sobre o sentido ou o sentimento, mas que as audácias de escrita se resolvem, em suma, em combinações sonoras muito menos agressivas do que pensavamos, e que é possível descobrir até uma nova espécie de emoção nessas elocubrações” (CUNHA, dez/1943) (grifo nosso). Também foram reproduzidos nesta Música 1941 podemos até aferir que tenha se desenvolvido uma polêmica a partir destas novas atividades, pois inauguram uma tensão na condição de autonomia alcançada pelo compositor, mas ela é antes fruto de um processo relacional entre o compositor e a formação institucional provisória. Em seus aspectos técnicos, a Música 1941 é uma peça para piano dividida em três movimentos (Tranquilo, Muy expressovo, Muy ritmado y destacado) que, segundo Adriano Braz Gado, trabalha em cima de uma série de doze sons, mas “utiliza diferentes processos no tratamento da série. Entre eles, destacam-se as alteraçõs no ordenamento das alturas: 1) a omissão de alturas da série no interior do segmento; 2) a permutação de alturas da série; 3) a repetição de elementos no interior da série” Em seus aspectos técnicos, a Música 1941 é uma peça para piano dividida em três movimentos (Tranquilo, Muy expressivo, Muy ritmado y destacado) que, segundo Adriano Braz Gado, trabalha em cima de uma série de doze sons, mas 185 “utiliza diferentes processos no tratamento da série. Entre eles, destacam-se as alterações no ordenamento das alturas: 1) a omissão de alturas da série no interior do segmento; 2) a permutação de alturas da série; 3) a repetição de elementos no interior da série” (2005, p. 66). Esse conjunto de procedimentos confere à utilização da série um caráter heterodoxo, adequando a estrutura serial às necessidades expressivas do compositor. Pelo trabalho de permutação e flexibilização da série, podemos aproximar esta experiência de Koellreutter a alguns procedimentos seriais levados a cabo por Berg que, por exemplo, em seu Concerto para Violino propõe alguns encadeamentos tonais a partir de triades derivadas de uma série base . No entanto, é importante notar que o uso de tríades derivadas da série no contexto da Música 1941 não implica em relações tonais como pretende o Concerto de Berg, mas apenas conferência o “Choro Bis” de Villa-Lobos e a Sonatina para Oboé e Piano de Claudio Santoro, conforme consta na entrevista-artigo de Koellreutter (dez./1943).

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a referência isolada de tríades em estilo atonal livre. Portanto, podemos atribuir a Koellreutter uma determinada afinidade eletiva, pois ao dedicar sua atenção aos problemas da estrutura serial visando à flexibilidade dessa estrutura – em beneficio de suas intenções composicionais -, e não a adequação do propósito de ambos ao constructo da série, podemos aproximar suas propostas aos impasses na técnica dodecafônica às soluções berguianas. A partir dessa solução proposta pela Música 1941 , podemos pensar que se desenvolve um determinado estilo composicional koellreutteriano que deixará legado nas composições dodecafônicas de Cláudio Santoro, como em Sonata 1942 e Guerra Peixe, em Música no. 1, ambas também peças para piano onde utilizarão procedimentos semelhantes aos de vosso orientador. Além disso, Música 1941 utiliza-se de um procedimento que alicerçará a proposta estética futura de Koellreutter, fundada a partir da década de 60, nomeada de a 186 Estética do Impreciso e do Paradoxal, conforme o mesmo relata no encarte do disco em que essa peça é gravada. No mais, há que nos atentarmos para a historicidade dos processos e perceber que essa mudança de paradigma musical tenta, por vezes, ressignificar estas obras da década de 40 em função do aparato conceitual formado a posteriori, dando a soar que a trajetória do compositor é um todo contínuo e desprovido de nuanças ou incoerências. Como podemos perceber no relato do compositor alemão, publicado posteriormente no encarte do LP lançado pelo selo Tacape em 1983 sobre a referida Música 1941:

A forma da Música 1941 para piano nasce da seguinte série de 12 sons, geradora de unidades estruturais submetidas a um processo de transformação permanente O principio de estruturação, no entanto, não é o ortodoxo da composição dodecafônica. Assim tirei proveito, por exemplo, de uma série derivada, que está para a original como a escala cromática para o circuito das quintas. Acontece, porém, que essa série nunca aparece na integra. Em Música 1941 tudo é diferente e, ao mesmo tempo, igual. A composição consiste de três movimentos; no fundo, planos Música 1941

ondulatórios, nos quais o contraste tradicional entre os sons e o espaço em que estes ocorrem parece ser superado. É que a série, presente nas três partes, atua como um medium contínuo, igualando em nível e unificando as unidades estruturais (gestalten). Estes surgem como matéria sonora acidentalmente condensada num vaivém constante, evitando qualquer tipo de individualização, dissolvendo-se na atmosfera que os cerca, e tendendo a um idioma de caráter elementarista – que caracterizaria meus trabalhos posteriores – e aos principios de uma estética relativista do impreciso e do paradoxal que alicerçaria tudo o que escrevi a partir de 1960 (KOELLREUTTER, 1983)

Koellreutter utiliza, nesta breve análise de sua peça para piano, uma gama conceitual ('gestalten', 'planos ondulatórios', 'matéria sonora acidentalmente condensada', 'elementarista', 'relativista') que jamais fora utilizada por ele nos anos de sua composição e que, provavelmente, não está dentre os possíveis do cenário musical carioca da época. 187

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A literatura e a música como formas de resistência

ESTEFÂNIA FRANCIS LOPES

endo em vista a musicalidade da prosa do escritor T angolano Boaventura Cardoso, a ligação entre a literatura daquele país e a cultura brasileira, nomeadamente a nossa música popular e, por fim, a questão da produção cultural em países sob severa repressão, a comunicação proposta visa a analisar o conto “Meu Toque!”, do primeiro livro do autor, Dizanga Dia Muenhu (1977), propondo uma análise comparativa com a letra da canção “Pivete” (1978), de Chico Buarque de Hollanda. Ao relacionar os temas preponderantes do conto aos da canção da Música Popular Brasileira, procuraremos refletir sobre a linguagem na construção das narrativas, com especial atenção para o ritmo e por fim apontar o engajamento artístico e político de ambos os criadores. Ainda que estejamos conscientes que entre a violenta opressão colonial sofrida por Angola e a do Brasil sob a ditadura militar haja diferenças bastante marcantes, dentre as quais devemos salientar o fato colonial e todo o largo arco de violência por ele engendrado, cremos ser possível aproximar produções em que a denúncia, ou a “linguagem da fresta”, para usarmos uma expressão de Gilberto Vasconcellos (1977), esteja presente. O que nos interessa principalmente é pensar como em momentos de exceção intelectuais e artistas procuram saídas seja por meio de reflexões ou através de ações propriamente ditas, e de como essas obras artísticas acabam por revelar as tensões sociais. Dessa forma, a partir das vozes sociais presentes nas respectivas obras, propomos uma forma especial de intertextualidade, que por meio de uma relação dialógica constitui “uma classe específica de relações entre sentidos,

A literatura e a música cujos participantes podem ser unicamente enunciados completos, ou vistos como completos, e por trás dos quais estão os sujeitos discursivos” (BRAIT, 1994, p. 25). Nas relações dialógicas definidas por Mikhail Bakhtin há diferentes graus e especificidades, possibilitando estabelecer uma relação entre dois autores que jamais se leram, mas que construíram obras que podem ser confrontadas. Nosso principal interesse é, justamente, a “intencionalidade dialógica” proposta por quem estabelece a relação, o que não implica o dialogismo “nato” entre as obras aqui analisadas.

1. A forja das escritas: Os princípios constitutivos em Boaventura Cardoso e em Chico Buarque

Percebemos correspondências em alguns elementos- chave que constituem as narrativas do contista Boaventura 191 Cardoso e do cancionista Chico Buarque, são eles: o retorno à tradição não como algo estático, e sim, como elemento transformador; nas obras transparecem preocupações tanto políticas e sociais, por meio dos espaços narrativos e das vozes sociais que os compõem , quanto estéticas, na elaboração linguística. Destacamos a utilização da linguagem popular, no caso do escritor angolano, a exploração do quimbundo, e em Chico, uma aproximação com a fala do povo, acrescentando que, ambos os autores, empregam muitas vezes ditos populares, provérbios, entre outros exemplos, afastando-se das normas e apresentando uma linguagem padrão, mais próxima do coloquial; e finalmente, o ritmo da prosa e da música. Esses elementos que desenvolveremos melhor a seguir, perpassam tanto a forma e o conteúdo do conto quanto da canção selecionada para o diálogo e, por não apresentarem fronteiras rígidas, são intercambiáveis. Para darmos início à abordagem sobre tradição trazemos as reflexões de Ecléa Bosi sobre memória e sociedade, "na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho” (BOSI, 1994, p. 55) Estas palavras sintetizam o fazer

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artesanal em Boaventura e em Chico, que forjam em suas escritas a tradição como reinvenção, como uma ligação com o passado, não no sentido de cristalizá-lo, e sim, em constante movimento para uma melhor compreensão do presente. Podemos dizer que, nos respectivos processos artísticos, a tradição como base fundamental agrega as elaborações estéticas e sociais, a linguagem e o ritmo. Vale referir que, segundo entendemos, nos contos de Boaventura, a tradição vem revestida de uma linguagem e um ritmo próprios, conjugada com a modernidade, segundo Benjamin Abdala Jr.,

Entre as múltiplas estruturas geradoras populares, os contos, em especial, colocam em evidência as estratégias discursivas subjacentes ao projeto literário de escritores que, como Boaventura Cardoso, procuram estabelecer imbricações literariamente produtivas entre a tradição popular e a 192 modernidade citadina (ABDALA JR., 2003, p. 249).

A prosa boaventuriana acarreta marcas estruturantes de uma recriação linguística a partir de recordações das tradições orais angolanas. Em seus contos a oralidade está presente na escrita, na voz do narrador, que muitas vezes mistura-se à fala dos personagens, gerando uma polifonia. Ocorre em seus “exercícios de estilo” 1, reconstruções de ordem morfológica e sintática, em que o quimbundo é alternado ao português, dando lugar às vozes não autorizadas e, portanto, marginalizadas, tornando o povo angolano como sujeito da história. Verificamos desse modo, no processo da escrita de Boaventura, forma e conteúdo como um corpo indivisível. Nas palavras do próprio autor,

Ligado a essa questão da tradição há o problema da linguagem, a forma como as pessoas se expressam. É uma

1 Emprestamos o termo do subtítulo da segunda coletânea de contos de Boaventura Cardoso, O Fogo da Fala (Exercícios de Estilo) , de 1980. A literatura e a música

preocupação que também me mobiliza: não pretendo transcrever para a minha ficção o modo de falar, mas o trabalho de recriação que faço. Ou seja, a tradição entra no texto enquanto forma e não apenas tema (CARDOSO, 2005, p. 30).

A tradição no compositor Chico Buarque está atrelada às novas formas de expressão, na formulação de canções que apresentam características tanto dos sambas da década de 1930, portanto anteriores a sua época, como da concisão e da moderna batida da bossa nova. Porém, essa aproximação do gênero samba nem sempre foi bem aceita. No final da década de 1960 o jovem compositor escreve um artigo no Jornal Última Hora, como “resposta” às críticas que o associavam à imagem de passadista, e do qual transcrevemos alguns trechos, a seguir, por revelar o pensamento do próprio compositor sobre a tradição, 193

(...) O importante é ter Mutantes e Martinho da Vila no mesmo palco. (...) se conclui como precipitada a opinião, entre nós, de que estaria morto o nosso ritmo, o lirismo e a malícia, a malemolência. É certo que se deve romper com as estruturas. Mas a música brasileira, ao contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação. Não se trata de defender a tradição, família ou propriedade de ninguém. Mas foi com o samba que João Gilberto rompeu as estruturas da nossa canção (MENESES, 1980, p. 30).

Compreendemos que tanto a linguagem trabalhada nos contos e nas composições, assim como, os temas desenvolvidos em ambos os gêneros, acabam por revelar situações extra- textuais a partir da elaboração artística dos respectivos autores. Seguindo a reflexão de Abdala Jr., por meio de uma nova norma linguística a escrita materializa-se, pois, ao somar a ênfase social a “uma apropriação democrática da cultura popular”, legitima a linguagem considerada marginal apresentando como protagonistas das narrativas tanto os personagens deixados à margem da sociedade como os espaços pelos quais vivem e transitam.

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Por sua vez, o espaço narrativo somado a outros elementos estruturais da narrativa (como as vozes sociais que o compõem, o tempo histórico e/ou o foco narrativo) nos auxiliarão nas reflexões sobre a relação entre literatura e vida social, bem como, sobre a tradição atrelada à modernidade, tanto em Boaventura Cardoso, quanto em Chico Buarque. Esse espaços, seja no conto, como na canção aqui analisados, correspondem aos musseques de Luanda, em Boaventura, e à experiência urbana brasileira da cidade do Rio de Janeiro em Chico. E são concretizados por meio de personagens marginalizados que vivenciam tensões num meio urbano, na maior parte das vezes, hostil. No caso dos contos de Dizanga dia Muenhu , soma-se à díade cidade e literatura, um terceiro elemento: o fenômeno do império, tríade necessária, segundo Tania Macêdo, “para auxiliar nosso entendimento e atuação no mundo contemporâneo” (MACÊDO, 2008, p. 26). Não por acaso Luanda torna-se o espaço da denúncia e 194 futuramente da liberdade. Enquanto “a população negra é deslocada cada vez mais para longe da ‘Baixa’, o centro urbanizado”, e é colocado “à margem do processo urbano”, servindo “de mão-de-obra barata ao crescimento colonial”, por outro lado, os metropolitanos tomam “as melhores terras e os melhores postos de trabalho” (MACÊDO, 2008, p. 115). A cidade além-asfalto é constituída pelos bairros conhecidos como musseques, espaços sociais que levam o nome da areia vermelha sobre a qual as cubatas (casas de teto de zinco e paredes de barro) são erguidas para servirem de moradia. Nos contos de Dizanga , são referenciados pelo Marçal, Golfe, Rangel, Cazenga, Eucaliptos, além do Sambizanga, “famoso Sambila, ‘capital das conspirações’ nacionalistas”, local para onde se dirige o personagem central Mano Zeca, do primeiro conto da coletânea, “A Chuva”,

As nuvens, cada vez maiores, humanizavam-se nas formas, pareciam estranhos animais. Mano Zeca estava a ver a chuva a vir mesmo na zuna [depressa] elá! Olhando no céu, punha nas kinamas [pernas] a pressa de chegar, Sambila está longe! A literatura e a música

E a chuva veio com muita raiva. Os tetos frágeis das cubatas tremiam e, nos lares, as águas que entravam dentro faziam atrapalhação nas pessoas (CARDOSO, 1982, p. 6).

Este foi o impacto da modernização sofrido por Luanda no final da década de 1940, com o aumento da produção cafeeira, muito próximo do vivenciado por moradores pobres do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1920 e 1930, que se vêem cada vez mais afastados do centro, sendo “empurrados” para os morros ou subúrbios da cidade em nome de um “processo civilizador”. Segundo Santuza Naves, “o Rio se moderniza no sentido indicado pelo ‘progresso’ econômico, tecnológico e cultural”, sem deixar de cultivar “estilos de vida associados ao ‘arcaico’ e/ou a um registro ‘primitivo’”, possibilitando dessa forma, “uma interação vital entre tradição e novidade, ‘primitivo’ e ‘civilizado’, ‘antigo’ e ‘moderno’” (NAVES, 2004, p. 82). 195 Na canção popular, Noel Rosa, “originário das camadas médias com formação universitária e fortemente ligado à vida popular da cidade”, dá início a um projeto que “faz da música popular um lugar (...) de expressão da livre opinião e de encontro dos intelectuais com o povo, isto é, dos compositores que pensam a sua experiência com a cidade” (VIANNA, 2004, p. 74). Para Maria Alice Carvalho, Noel resgata o “idioma musical do Rio” em suas letras que narram “de forma simples e direta, a marginalização dos pobres, a vida nas favelas e nos cortiços” CARVALHO, 2004, p. 46). A crítica “à uma modernização que apenas reproduzia os padrões hierárquicos da sociedade”, teve continuidade mesmo no “período mais repressivo da ditadura militar” (CARVALHO, 2004, p. 63), com uma resistência cultural com aprofundamento estético e crítico. Nas canções de Chico Buarque a cidade é um elemento presente, seja de maneira concreta nas ruas, praças e becos, como por meio dos personagens, na maioria das vezes, marginalizados, que vivenciam e dão forma a esses espaços urbanos. Em “A Volta do Malandro”, de 1985, o personagem tipicamente urbano, volta para a praça , “caminhando na ponta dos pés / como quem pisa nos corações / que rolaram dos cabarés ”. Nos dois locais citados, o malandro se encontra entre,

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“deusas e bofetões / entre dados e coronéis / entre parangolés e patrões”, personagens e situações que caracterizam os espaços. E a música tem como frase final, ironicamente, o malandro como “o barão da ralé”, identificando, dessa forma, o local social da personagem. Dentro da relação entre narrativa e cidade, estabelecemos um diálogo entre a composição “Pivete” (de 1978, sobre música de Francis Hime), e o conto “Meu Toque!”. A canção apresenta espaço e personagem como elementos constitutivos do universo urbano e marginalizado. Um garoto que vende chicletes no sinal, “capricha na flanela”, “batalha algum trocado” e “aponta um canivete”, transita por locais cariocas, como a rua Frei Caneca, a Carioca, o bairro da Tijuca, a praia do Recreio e o morro do Borel. Muito próximo do universo de Kaprikitu, personagem do conto “Meu Toque!”, que “no pensamento kandengue um dia veio virar engraxador”. O título do conto é o próprio grito dos engraxates para chamar os 196 fregueses, “o grito da fome, a luta dos homens pequenos empurrados cedo na vida dura” (CARDOSO, 1982 p. 9). Neste conto são usadas muitas palavras em quimbundo, como kandengue e/ou miúdo , que em português significa criança. Assim, sabemos que o personagem começa cedo na luta pela sobrevivência. Logo no primeiro parágrafo do conto nos é apresentada a difícil vida do personagem. A mãe de Kaprikitu “munhungava”, ou seja, prostituía-se no Marçal (primeira referência espacial luandense) para sustentar a família,

Mulato filho de pula [branco] pai dele está onde? Mãe negra é mãe é pai. Munhungar o corpo é pelejar contra a fome (CARDOSO, 1982, p. 8).

As frases acima deflagram a vida colonial com suas profundas fissuras entre o colono branco e o colonizado negro. A denúncia dessa divisão é aprofundada no decorrer da narrativa. Os espaços luandenses pelos quais Kaprikitu circula ao tentar ganhar kumbu (dinheiro) como engraxate demarcam os espaços sociais, como o pivete da música de Chico. O A literatura e a música kandengue começa sua jornada pelos Eucaliptos, zona da cidade onde circulam os engraxates. Depois, decide ir para a Baixa, “experimentar outra sorte na vida”, e “se abancou no fresco da Portugália”, bar luxuoso, “visionando sempre os fregueses com sapato no pé” (CARDOSO, 1982, p. 11). A estrutura do conto direciona a narrativa para um sentido crescente dos acontecimentos, aprofundando a denúncia da violência do estado colonial, até a frase final. Os dois primeiros parágrafos apresentam a vida familiar de Kaprikitu e a decisão de virar engraxate como outros miúdos do musseque. Na sequência a luta de Kaprikitu em aprender o ofício e na conquista de um espaço entre outros engraxates, até deparar-se com a arrogância de um freguês da Baixa, expõe plenamente as contradições e tensões do mundo colonial. A condensação do tempo e do espaço, tanto neste, como nos outros contos da coletânea, demonstra o “essencial do método” do contista, para usar um termo de Julio Cortázar (2004). O contista Boaventura trabalha “em profundidade, 197 verticalmente”, eliminando elementos gratuitos ou meramente decorativos, revelando assim, o ofício do escritor que, segundo Cortázar, se traduz na hábil conjugação da intensidade da ação com a tensão interna da narrativa. Podemos dizer que o escritor angolano forja artesanalmente “um estilo baseado na intensidade e na tensão”, no qual a combinação entre os elementos formais e expressivos dão ao conto uma “forma visual a auditiva penetrante e original” (CORTÁZAR, 2004, p. 157). Vejamos a seguir como o ritmo e a tensão são trabalhados na narrativa de “Meu Toque!” e como também estão presentes na canção “Pivete”. O grito da luta que dá título ao conto aparece sempre em caixa alta, trazendo, dessa forma, a voz dos meninos para a narrativa, misturada à fala do narrador, como mostra o trecho a seguir,

Alguém pé calçado passava, passo apressado, os graxas gritavam MEU TOQUE! Berridavam [afugentavam] atrás do sapato que dava o pão. MEU TOQUE! era o grito da fome, a luta dos homens pequenos empurrados cedo na vida dura.

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MEU TOQUE! era a agonia dos explorados. MEU TOQUE! Quem qui gritou primeiro fui eu! Sueu quin graxo, mé! MEU TOQUE! Por que estás minguiçar [enguiçar-me]? Para ganhar a vida precisa um gajo lutar com os outros, se agarrar mesmo (grifo nosso)(CARDOSO, 1982, p. 9).

Chico Buarque, na música “Pivete”, em regravação no cd Paratodos, de 1993, adiciona na abertura a frase: “ah... Monsieur have money per mangiare ?”, correspondente ao “grito da fome” do conto, pois, “Chico tomou essa expressão emprestada aos garotos que viviam sob as marquises da igreja da Candelária em seu singularíssimo modo de pedir dinheiro aos turistas” (GANDRA, 2010, p. 22). A fala em língua estrangeira é pronunciada como se ouve, assim a frase italiana per mangiare, vira pra manjar, na voz dos meninos, como nas frases do conto grifadas acima, “Quem qui gritou primeiro fui eu! Sueu quin graxo, mé!”, que trazem o uso do português fora 198 da norma culta esperada na escrita. Além do ritmo da fala coloquial dos garotos marginalizados que não têm acesso ao aprendizado escolar, outros ritmos aparecem tanto no conto como na música. Boaventura, por exemplo, faz uso de onomatopéias trazendo uma forma “auditiva e visual”, como vimos em Cortázar, tanto para o ritmo do “mestre” engraxate: “Kaprikitu virou mestre engraxista pouco tempo, sapato fica bem limpo, o pano até dizia nheque-nheque” (CARDOSO, 1982, p. 9), como para o ritmo das ruas da cidade: “Um dia tal qual os outros, com o Sol a estalar quenturas, os carros vum-vum sempre, as pessoas todas também com as corridas” (CARDOSO, 1982, p. 10). Também há o uso de interjeições próprias da fala, como, “poça!, mé!, hem!”. O ritmo dos africanos (presente na escrita de Boaventura, como observado pelo próprio autor, tem a ver com a “maneira de estar” dos angolanos, que enquanto africanos têm a vida muito ritmada, “seja o ritmo na narrativa, ou o andar das pessoas, enfim, o ritmo da vida, a nossa vida. Nós temos muito ritmo mesmo! Então, é essa cadência rítmica que eu, talvez, de forma consciente ou inconsciente acabo por imprimir nos textos” (CARDOSO, 2005, p. 29) é um dos elementos da A literatura e a música formação da nossa música. Segundo Luiz Tatit, o ritmo do lundu de origem “fincada nos batuques e nas danças que os negros trouxeram da África e desenvolveram no Brasil” (TATIT, 2008, p. 70), somado à melodia que “evocava trechos de operetas européias” e à letra (componente vital) formam os três elementos da canção brasileira do século XX. Quanto à música “Pivete”, podemos dividi-la em duas partes: primeiramente em quarenta versos (com uma estrutura que pode ser dividida em oito e doze frases, que seguem o estilo da rima imperfeita), e uma parte final em oito versos. Na letra são descritas as malandrices do pivete pela cidade, como nos oito versos iniciais: “No sinal fechado/ Ele vende chiclete/ Capricha na flanela/ E se chama Pelé/ Pinta na janela/ Batalha algum trocado/ Aponta um canivete/ E até” . O garoto dribla as situações de quem vive na e/ou da rua, como no jogo de futebol o fazem os craques brasileiros. As referências são dadas nos possíveis nomes do “pivete”, que pode se chamar Pelé, ou ter as pernas tortas como Mané 199 Garrincha. Nas dozes frases finais do que chamamos de primeira parte, a referência se faz com outros ídolos do esporte brasileiro, pois “agora ele se chama/ Emersão (Airtão)”, como os pilotos de fórmula 1, Emerson Fittipaldi e Ayrton Senna, justamente quando o garoto rouba carro,

Dobra a Carioca, olerê/ Desce a Frei Caneca, olará/ Se manda pra Tijuca/ Na contramão/ Dança para-lama/ Já era para- choque/ Agora ele se chama/ Emersão (Airtão)/ Sobe no passeio, olerê/ Pega no Recreio olará/ Não se liga em freio/ Nem direção.

Porém, nas oito frases finais ele volta a chamar apenas pivete , um entre tantos que na mesma situação de abandono e marginalidade da cidade, “capricha na flanela/ descola uma bereta/ batalha na sarjeta/ e tem as pernas tortas”. O léxico traz tanto elementos das ruas da cidade: sinal, flanela, locais (como já tratamos) do Rio de Janeiro, prancha e parafina, que remetem às praias da cidade conhecida como “Maravilhosa”, passeio. Como também do universo marginal no

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qual o garoto está inserido: sarjeta, trocado, maloca, ligação direta, contramão; armas, como: canivete e bereta e do universo das drogas: boca, mutuca e papel. Assim como os verbos que trazem uma imagem visual desse universo das ruas: vende, capricha, pinta (coloquial para aparecer, próprio das gírias), batalha, agita, descola, fatura, arromba, se manda. Como as ações de quem circula: dobra, desce, sobe e zanza. Segundo Carlos Rennó, o letrista carioca convoca “as gírias mais atuais e próprias” para as ações do “pivete” nesta canção “em que assistimos a um verdadeiro show de poesia de rua, ágil e lépida como o personagem em foco” (RENNÓ, 2014, p. 129). Como a sensibilidade dos versos a seguir que formam uma sequência do sonho para a difícil realidade em se manter acordado: “Sonha aquela mina, olerê/ Prancha, parafina, olará/ Dorme gente fina/ Acorda pinel”. Voltando para a conclusão da análise do conto, a tensão aprofunda-se em “Meu Toque!”, como referimos acima, 200 quando a divisão entre a Baixa e o musseque ganha nítidos contornos no contato entre os brancos e os negros ou mulatos nativos, quando a “fronteira do asfalto”, expressão de Tania Macêdo, é ultrapassada. Essa zonas não são complementares uma à outra, como lembra Frantz Fanon, “estas duas zonas se opõem, obedecem ao princípio da exclusão recíproca” (FANON, 1979, p. 29). Ao aproximar-se de um possível freguês, Kaprikitu não só é ofendido verbalmente, como tem sua caixa de engraxate destruída por um chute. A violência do domínio colonial é denunciada na arrogância e estupidez do homem branco diante do menino engraxate,

Pergunta que perguntava a todos os fregueses de manhã até à noite. (...) Pula [homem branco] deu a resposta vai engraxar teu pai. Meu pai cara dele nunca lhe vi, mas é meu pai. Vai engraxar teu pai não, mé! (CARDOSO, 1982, p. 10).

Sobre esta passagem do conto, Carmem Secco, observa o “discurso crítico e cortante” da linguagem de Boaventura, pois, além de Kaprikitu ter seu instrumento de trabalho destruído, o homem ainda toca numa “ferida funda: o pai A literatura e a música desconhecido” e diante da humilhação “sentimentos de ódio e revolta transbordam” nas interjeições e exclamações que “marcam o ritmo da fala rebelde” (SECCO, 2005, p. 108). Porém, diante da cena sofrida por Kaprikitu ocorre a união entre os meninos engraxates contra o homem branco. Quando o miúdo “viu no chão a caixa que lhe agüentava a vida, pôs o desafio: vem cá s’és home!” (CARDOSO, 1982, p. 10), e foi logo acompanhado pelo coro dos outros kandengues . Boaventura traz à cena a imagem da ameaça da luta: “Os punhos dos engraxadores no ar. Ameaça. Silêncio. Ameaça” (CARDOSO, 1982, p. 10), assim como, o ritmo, ao intercalar as palavras “ameaça” e “silêncio”, como se fossem o avanço e o recuo do corpo dos meninos diante do inimigo. Segundo Frantz Fanon, “o colonialismo é a violência em estado bruto e só pode inclinar-se diante de uma violência maior”, que seria neste caso, a luta pela libertação, quando o colonizado “de quem sempre se disse que só compreendia a linguagem da força, resolve exprimir-se pela força” (FANON, 201 1979, pp. 46 e 65). E é justamente pela independência total e imediata que Kaprikitu espera para o confronto de uma luta franca: “E amanhã? Quando vier a Totalimediata se te acaço...” (CARDOSO, 1982, p. 10). O mundo colonizado cindido em dois, como observa Fanon, que mantém a cidade do colono “saciada”, enquanto a do colonizado é uma “cidade acocorada”, nutre um ódio recíproco. Somente a “descolonização unifica este mundo, exaltando-lhe por uma decisão radical a heterogeneidade, conglobando-o à base da nação, às vezes da raça” (FANON, 1979, p. 34), como prenuncia a frase final do conto: “O ódio não cresce se lhe cortarem a raiz” (CARDOSO, 1982, p.10).

2. Considerações finais As preocupações políticas e sociais não prescindem do estético tanto em Angola como no Brasil. O como fazer , é um dos pontos de intersecção que estabelecemos entre a escrita de Boaventura e a canção brasileira, em que forma e conteúdo,

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teoricamente distintos, revelam uma unidade. Uma preocupação com a maneira de contar revelada pelo escritor,

O importante é saber como vou contar a história e, portanto, não devo estar atento apenas à atualidade em si: deve preocupar-me primeiramente a forma que vou dar ao texto para contar cenas do século XIX ou princípios do século XX, por exemplo (CARDOSO, 2005, p. 33).

E o modo de dizer no chamado gesto cancional, que segundo Luiz Tatit, se resume em

uma espécie de oralidade musical em que o sentido só se completa quando as formas sonoras se mesclam às formas lingüísticas (...). Tudo ocorre como se as grandes elaborações 202 musicais estivessem constantemente instruindo um ‘modo de dizer’ que, em última instância, espera por um conteúdo a ser dito (TATIT, 2008, p. 69).

Na canção de Chico Buarque há o minucioso trabalho de artesão da escrita em que o jogo das palavras enriquece o som e o sentido. Ao musicar em 1965 a peça de João Cabral de Melo Neto: Morte e Vida Severina, o compositor carioca relata que com essa experiência percebeu que melodia e letra formam um só corpo. Segundo Carlos Rennó, são exploradas nas canções de Chico “as imensas possibilidades sonoro-criativas da nossa língua, o português brasileiro” (RENNÓ, 2014, p. 111). Já nos contos de Boaventura ocorre “a apropriação de uma arma-palavra, arma-cultura”, que segundo Benjamin Abdala Jr., não é portuguesa e nem mesmo quimbunda, e sim, “a angolanidade, em termos linguísticos e de linguagem literária” (ABDALA JR., 2003, p. 256) que forja a narrativa. O engajamento político e social de Boaventura e Chico, está presente na forja de suas escritas, a partir das escolhas formais e temáticas. O autor angolano ao dar o título de seu primeiro livro em quimbundo marca o lugar de onde fala, bem A literatura e a música como, quem fala, “no jogo ético que propõe, o escritor radicaliza o discurso, convocando a subversão” (PADILHA, 2005, p. 204). Para Maria Aparecida Santilli, o título Dizanga dia Muenhu (A Lagoa da Vida , em português) “é adequado a esse conjunto de estórias que lembram rios de marcha lenta, embora devam chegar em alguma foz, como fazem habitualmente os cronistas”, em favor de um discurso narrativo que “espraia-se na procura de sentidos para as circunstâncias da vida angolana”(SANTILLI, 2005, p. 130), que vale lembrar, é antes de tudo, ritmo, para o escritor. Ao escolher não calar-se diante da censura imposta no período ditatorial no Brasil, Chico Buarque posiciona-se como um artista engajado com as questões de seu tempo. Adélia de Meneses, credita essa perseguição política ao compositor, ao “poder inquietante” que ele detém em lidar com as palavras. Vale lembrar, que até 1978, Chico foi um dos artistas mais visados pela censura no país, como também, proibido na Argentina durante o governo de Jorge Videla (1976-1981). 203 Sobre a tensa relação com os censores, declara ao jornalista Tárik de Sousa que,

uma época, lá no Rio, me chamavam todo dia, eu já não agüentava mais. Uma noite tomei um porre no show do Jorge Bem no Flag, chorei e contei tudo que estava acontecendo pelo microfone. Não sei, mas aí a coisa diminuiu um pouco (HOLLANDA, 1979, p. 97).

A partir de algumas análises que desenvolvemos neste texto, foi possível identificar nos contos e nas canções características de escritas de resistência presentes nos respectivos criadores. Boaventura Cardoso a partir de uma nova escrita, no uso do vocabulário e no novo ângulo discursivo, trazendo a colônia como sujeito, revela um mundo colonial repressivo e uma esperança utópica, em relação ao novo que virá, após a conquista da independência do país. A partir de uma escrita crítica, por meio da negatividade, da ironia e da recusa, rompe com o silêncio sobre um período de “sofrimento de um duradouro processo histórico, cuja

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metrópole ignora o fenômeno de dissolução dos impérios coloniais europeus e o ciclo descolonizador do século XX, levando a um conflito armado sistemático e revolucionário” (TUTIKIAN, 2005, p. 173). O compositor Chico Buarque, retém, o que Heloísa Starling, chama de pragmática do saber narrativo, ou seja, “a extraordinária capacidade de uma narrativa gerar condições de compartilhamento de memória, palavra e prática política ao contar uma história (...), em ritmo análogo ao dos procedimentos poético-melódicos” (STARLING, 2003, p. 151.) Adélia Bezerra de Meneses, em Desenho Mágico, Poesia e Política em Chico Buarque, aborda a canção do compositor como “poesia de resistência”, por configurar elementos de ruptura, dissonância e ironia. Como procuramos apontar nesta comunicação, a arma crítica de Chico é a sua palavra-ação que recusa calar-se, e a “arma-palavra” do escritor angolano Boaventura, age ao 204 desvendar tensões sociais. Podemos dizer que, ambos realizam a partir de suas obras artísticas e críticas a fusão de duas forças, levantadas por Cortázar, “a do homem plenamente comprometido com sua realidade nacional e mundial, e a do escritor lucidamente seguro do seu ofício” (CORTÁZAR, 2004, p. 160). Como o escritor engajado, nas palavras de Sartre,

Ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá- la; atinjo-a em pleno coração, traspasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo (SARTRE, 2004, p. 20).

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Montagem da forma: a relação entre crítica estética e crítica social na música popular brasileira a partir do pensamento de Walter Benjamin

GUILHERME DE AZEVEDO GRANATO

filósofo Walter Benjamin, em sua análise do drama O barroco alemão ressuscita a alegoria do ostracismo imposto pelo Romantismo. Os românticos entendiam o símbolo como manifestação sensível e imediata de uma totalidade ideal, tal definição é vista por Benjamin como não dialética e decorrente de uma oposição prévia entre sensível e supra- sensível. A alegoria benjaminiana é um modo de representação que, ao contrário do símbolo, resiste às categorias totalizadoras transcendentes, denunciando a falsa aparência de totalidade e remetendo aos vestígios de uma unidade que se perdeu. O poeta Baudelaire, na filosofia de Benjamin, representa o ressurgimento da alegoria na modernidade. Sua figura melancólica, perdida no turbilhão da cidade, à caça de uma imagem poética sempre desatualizada, dialoga com a condição precária do homem barroco, desprovido de ideais eternos. Como apontou Gagnebin, a alegoria aponta para uma tripla morte: da identidade do sujeito, da estabilidade dos objetos e do próprio processo de significação No entanto, além do luto, também sugere a liberdade lúdica, para aqueles dispostos a criar novos sentidos fugazes em meio à transitoriedade radical (GAGNEBIN,1999, p 39). O contexto do surgimento dos movimentos de vanguarda é marcado por uma forte heterogeneidade, sugerindo a perda dos horizontes normativos de compreensão e produção das obras. Seguindo a análise de Peter Bürger do conceito de alegoria aplicado à obra vanguardista, pode-se constatar as suas características singulares no campo da produção e da recepção. Na produção da obra,

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O alegorista arranca um elemento à totalidade do contexto da vida. Ele o isola, priva-o de sua função. Daí ser a alegoria essencialmente fragmento e se situar em oposição ao símbolo orgânico... o alegorista junta os fragmentos da realidade assim isolados e, através desse processo, cria sentido. Este é, pois, um sentido atribuído, não resulta do contexto original dos fragmentos (BURGER,2008, p.127).

A criação de sentido a partir dos estilhaços delega ao expectador uma ampla possibilidade interpretativa. Diante da precariedade dos elementos aparentemente carente de sentidos, tanto se pode captar melancolia como ludicidade. O principal recurso técnico que difere a obra orgânica da alegórica aponta Burger, é a Montagem. A técnica da montagem tem origem nas obras produzidas por Picasso e Braque antes da Primeira Guerra Mundial, ela difere das demais técnicas pictóricas anteriores por inserir fragmentos da 208 realidade, elementos não elaborados pelo autor na composição, destruindo a unidade do quadro enquanto produto exclusivamente da subjetividade do artista. O artista “orgânico” manipula o seu material como algo vivo, que tem relação com a realidade concreta. Sua obra não procura chamar a tensão para o meio, ao contrário, deseja escamotear o seu caráter de obra e assemelhar-se a um produto da natureza. O significado é construído através da coerência estabelecida entre parte e todo, os momentos individuais apontam para o todo da obra, estabelecendo uma unidade. Já a obra alegórica (inorgânica), construída a partir da montagem, o artista não necessariamente associa o material a algo vivo. “Onde o clássico, no material, reconhece e respeita o portador de um significado, o vanguardista vê tão somente o signo vazio, ao qual ele se acha habilitado a emprestar significado.” (BURGER, 2008, p. 129) A relação entre o todo da obra e suas partes também se altera, estas se emancipam da condição de elemento necessário à construção do todo, assim como o todo não se traduz na concordância das partes, dessa forma a negação da síntese se institui como princípio orientador da obra. A relação com a realidade se diferencia na medida em que o vanguardista reconhece sua obra como artefato, composta de refugos e Montagem da forma fragmentos, estabelecendo uma relação com a realidade menos mimética e mais crítica. Na recepção da obra montada reside a possibilidade de intervenção na práxis vital almejada pelos vanguardistas. O receptor, diante da não linearidade, percebe que seu aparato de apreensão, moldado pelas obras orgânicas, não é adequado para a fruição. Dito de outra maneira, a não lógica da construção da obra questiona os princípios naturalizados da percepção, dessa forma, a atenção, que antes visava o sentido, detém-se no princípio construtivo. A relação contraditória entre as partes sugere uma harmonia discordante, uma “unidade que absorveu a contradição”, atribuindo à obra um caráter enigmático. A impossibilidade de extrair um sentido pleno é recebida como choque, daí provém o estimulo para uma mudança da práxis vital do receptor. “Este choque é intencionado pelo artista de vanguarda, que mantém a esperança de, graças a essa privação de sentido, alertar o receptor para o fato de a sua própria práxis vital ser 209 questionável e para a necessidade de transformá-la.” (BURGER, 2008, p. 142). O tipo de fruição que a obra orientada pelo choque instaura, sua força “tátil”, seu caráter fragmentado e a relação “dispersa” que estabelece com o público, marcam a passagem do quadro para o cinema. No ensaio “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica” (1936), Benjamin analisa o impacto dos novos meios técnicos sobre a natureza da obra de arte. O autor via no dadaísmo uma espécie de prenuncio das transformações que se estabeleceriam a partir da invenção do cinema. Não à toa, depositou consideráveis expectativas no potencial revolucionário da nova forma de arte. A obra de arte tecnicamente reprodutível compensaria a perda do caráter aurático pela ampliação de seu potencial político. Se o apreciador da obra aurática se dirige a ela de forma concentrada, mergulhando em seu interior, o público do cinema dirige-se ao filme distraidamente. A aura da arte remete ao seu passado ligado aos fins religiosos, assim como a uma postura contemplativa reservada. A obra reprodutível emancipa-se da tradição religiosa ao perder a condição de exemplar único, assim como suscita outras formas de fruição, não individuais, mas coletivas. Justamente a condição coletiva

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do cinema, tanto na produção quanto na exibição, potencializaria seu poder político no contexto da sociedade urbana-industrial. O cinema surge como o meio mais eficaz para comunicar-se com as massas. Sua organização formal, a partir de seqüências de imagens justapostas, rompe as estruturas associativas padronizadas do expectador, impondo uma sucessão de choques, que simula a condição do homem inserido na metrópole, em meio ao tráfico e a multidão. Dessa forma ele acompanha as metamorfoses do aparelho perceptivo humano, que, assim como as formas de existência, não permanece o mesmo ao longo da história.

Tropicalismo e a era da obra montável na música popular 210 O movimento Tropicália surgiu no ano de 1967 em meio a um fervilhante cenário cultural e político aonde a canção popular ganhava status de ferramenta ideológica. O tropicalismo reformulou os critérios de apreciação da forma canção ao propor uma relação entre fruição estética e critica social, em que esta é transposta do tema para os processos construtivos. O movimento se insere em um período de transição social, cultural e política, caracterizado pelo fim da mentalidade desenvolvimentista e da estética nacional-popular atrelada a ela. Nesse ambiente, emergiam novas perspectivas artísticas, preocupadas em equacionar no plano estético as contradições nacionais. È sabido que a palavra Tropicália, antes de batizar o movimento musical, foi título de uma instalação do artista plástico carioca Helio Oiticica 1. Este juntamente com outras figuras proeminentes, como o crítico Mario Pedrosa e o poeta Ferreira Gullart, foi protagonista de um novo impulso na arte nacional, que visava redimensionar a relação entre experimentalismo formal e crítica social. Mais do que isso, buscava repensar o papel do expectador em relação à obra,

1 A obra foi exposta pela primeira vez em Abril de 1997, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Montagem da forma delegando a ele um vasto campo de interação e interpretação sensível e semântica. As reflexões de Oiticia são válidas para compreender a estética Tropicalista em seu apelo crítico e no uso que fez dos novos recursos de manipulação sonora, no intuito de desalojar o ouvinte de seu lugar habitual. Tal como consta no “Esquema geral da nova objetividade” 2, redigido por Oiticica, as novas diretrizes da arte vanguardista nacional deveriam partir da necessidade de romper com os protocolos tradicionais de apreciação artística, oferecendo ao expectador uma “ proposição criativa vivencial”. Partindo de uma noção de antiarte, a obra deveria proporcionar uma experiência aberta, realizando-se a partir da interação do objeto artístico com o público. Negando a postura passiva-contemplativa associada ao esteticismo burguês, cujo ambiente natural é o Museu, Oiticica propõem “ programas abertos de realização” onde os significados são extraídos a partir da interação do autor-expectador. A inspiração do artista provinha em parte do contato com festas e ambientes 211 populares, tais como feiras livres e escolas de samba. Daí, numa postura desmistificadora, buscava distanciar-se do intelectualismo aristocrático, desfazendo a aura da arte e aproximando-a do jogo. Seu viés lúdico, capaz de suscitar múltiplas interpretações semânticas e interações sensíveis, aponta para novas estruturas de organização da linguagem artísticas e formas alternativas de engajamento critico, baseadas não em meta-esquemas ideológicos ou políticos, mas em experiências subjetivas transformadoras. O movimento Tropicália, mergulhado no fluxo que movimentava a reflexão artística na arte brasileira, concretizou no campo da música popular as demandas por novas formalizações estéticas que atualizassem a expressão e recolocassem certas questões diante das transformações que se impunha na época. Essas transformações espelhavam a complexificação do cenário político, que não comportava mais

2 Texto escrito a propósito da exposição Nova Objetividade Brasileira, ocorrida no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, de 6 a 30 de abril de 1967.

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o esquematismo de certas polarizações e as transformações impostas è sensibilidade pelos meios de comunicações de massa. Nesse contexto, o movimento se inscreve em um período em que a canção popular, no Brasil e no mundo, começou a flertar de forma criativa com novos recursos técnicos de gravação, amplificação e manipulação sonora, assimilando certas experiências da música de concerto do século XX. Os Tropicalistas foram pioneiros na assimilação dessas novas influencias, realizando um gesto de devoração, tal como pleiteava Oswald, integrando o novo material na construção de uma nova identidade estética para a música popular. Como escreve Molina (MOLINA, 2014, p. 14), é possível localizar nos anos 60 uma transformação fundamental nas práticas composicionais de música popular cantada. O inicio da utilização dos procedimentos de exploração sonora a partir de recursos oferecidos pelas tecnologias de gravação tem nos 212 Beatles a sua referencia inicial. A partir do álbum Revolver (1966) e ostensivamente no álbum Sgt. Pepper´s lonely heart club band (1967) a criação de “sonoridades” em estúdio passou a ser utilizada de forma mais ambiciosa pelo grupo. O protagonismo da tecnologia nas composições dos Beatles resultou em obras com um formato notoriamente distinto da canção tradicional. Como coloca Richard Taruskin:

Esses aparatos (técnicos) agregaram à canção qualidades que não podem ser capturadas (...) na partitura vocal (produzida, como todas as “partituras populares”, depois do fato), (...) Em certo sentido os Beatles não estavam mais escrevendo canções. como alguns ícones da música de vanguarda da época, eles estavam criando colagens – obras de arte acabadas, artefatos em fita que não poderiam ser adequadamente reproduzidos em outra mídia” (TARUSKIN apud MOLINA,2014, p. 20).

A montagem de uma obra musical em estúdio, nos moldes dos álbuns da banda inglesa, guarda muitas semelhanças com o processo de produção do cinema e insere- se em um movimento cultural onde vanguarda e cultura pop Montagem da forma pareciam flertar. O aparato de gravação não é utilizado apenas para registrar a performance dos músicos, os próprios recursos sonoros do estúdio integram o arranjo numa sintaxe própria, resultando em sonoridades e estruturas peculiares, impossíveis de serem atingidas sem esses recursos. A elaboração de sonoridades com atenção especial ao timbre e a textura, a incorporação do ruído, o flerte com a improvisação e a aleatoriedade, o interesse pelas sonoridades não ocidentais e a edificação da forma através dos processos de montagem, fusão e sobreposição indiciam esse influencia. No Brasil, o movimento Tropicália foi percussor na assimilação dessa tendência. O momento de eclosão do movimento era marcado pela efervescência dos festivais da canção. Estes contavam com uma forte presença da juventude universitária, identificada com uma estética que articulava elementos reconhecidos como autênticos da cultura nacional com um discurso político engajado. A chamada canção de protesto seguia uma receita 213 que buscava, através do emprego de ritmos, instrumentações e temáticas próprias da cultura brasileira, vincular um discurso revolucionário, no intuito de educar as massas para a tomada do poder. Tal formato, apesar de em certo momento ter gerado uma produção interessante, já mostrava sinais de desgaste. Muitas vezes a dimensão estética era colocada em segundo plano em prol da mensagem política, que por sua vez era articulada de forma ingênua e esquemática a partir de uma idéia fetichizada de “povo” e um conceito simplista de “revolução”. Dentro de tal perspectiva, que buscava empregar a canção como ferramenta revolucionária, também se ignorava o fato de esta já ser um objeto de consumo e dos festivais serem organizados por redes de televisão dentro de esquemas comerciais. O Tropicalismo escancarou as contradições deste formato ao propor uma crítica alternativa ao modelo esquemático da canção de protesto. Contrariando o modelo conteudista, aonde o arranjo servia de suporte para a mensagem política, o movimento articulou a crítica ao processo construtivo. Assim, manipulando elementos da cultura nacional e internacional, alegorizava os símbolos de brasilidade empregados pela canção de protesto, explicitando as ruínas do imaginário nacionalista. Além disso, buscava uma ocupação

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consciente dos canais de massa, assumindo o caráter mercadológico da canção e buscando, de maneira astuta e perigosa, utilizar-se dessa condição para realizar uma crítica à cultura de massa a partir dela mesma.

Conclusão Trilhando um longo trajeto que foi do barroco alemão aos portais da pós-modernidade, buscamos neste texto demonstrar, ainda que de maneira panorâmica , uma possível abordagem do movimento musical conhecido como Tropicália a partir de reflexões do filósofo alemão Walter Benjamin. Os eixos centrais para esta abordagem foram o conceito de alegoria e algumas questões contidas no ensaio sobre a obra de arte na reprodutibilidade técnica. Mostramos como o tropicalismo desconstruiu o significado de alguns símbolos pertencente ao imaginário nacionalista. Tais símbolos 214 funcionavam como uma representação imediata de um ideário, totalizações que buscavam capturar uma essência imaterial. A alegoria, como mostrou Benjamin, desconstrói essa identidade imediata, denunciando o caráter histórico das atribuições de sentido. O potencial crítico da interpretação e da representação alegórica foi explorado pelo Tropicalismo através de um procedimento de manipulação, análogo àquele apontado por Bürguer em relação à obra de arte vanguardista. A montagem é o procedimento padrão neste caso, onde o choque resultante da justaposição de elementos heterogêneos relativiza o seu significado original. Neste ponto, algumas questões a respeito da obra de arte na era da reprodutibilidade técnica vêm à tona. Os tropicalistas utilizaram-se de recursos técnicos para potencializar o efeito crítico de suas construções alegóricas. Em sintonia com as técnicas de manipulação sonora, no intuito de gerar novas sonoridades e amplificar o estranhamento do ouvinte. Aqui, outro elemento apontado por Benjamin se soma à questão do procedimento alegórico, o efeito do choque. Inicialmente identificado com as montagens cinematográficas, foi visto pelo filósofo alemão como potencialmente revolucionário. O apelo tátil da tela de cinema, a apreensão coletiva da obra e o caráter fragmentado da linguagem teriam o potencial de atingir as massas de forma diferenciada, Montagem da forma rompendo com os hábitos tradicionais da apreciação artística. Tal como mostramos, a música popular na década de sessenta flertou com técnicas de manipulação do som similares aquelas empregadas pelo cinema, abrindo um novo campo de exploração expressiva. No contexto da arte brasileira da década de sessenta, vimos como Helio Oiticica também articulava novas formas expressivas, que apelavam para a experiência sensorial e atribuíam ao expectador certo protagonismo. O Tropicalismo, alegorizando as imagens-ruína do imaginário nacional e utilizando-se dos novos recursos tecnológicos de manipulação sonora, assim como dos meios disponibilizados pelos canais de massa, buscava uma convergência entre crítica estética e crítica social de alcance amplo, sem filiação a nenhuma vertente ideológica específica e que rompesse com os resguardos dentro da música popular brasileira.

Referências bibliográficas 215 BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão . Trad., apres. e notas S. P. Rouanet. São Paulo: 1984. BÜRGER, P. Teoria da Vanguarda . Trad. J. P. Antunes; São Paulo: Cosac Naify, 2008. GAGNEBIN, J.-M. História e narração em Walter Benjamin . São Paulo: Perspectiva, 1999. HOLANDA, H. B. de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960-70 . Rio de Janeiro: Rocco, 1992. MOLINA, S. A composição de música popular cantada: a construção de sonoridades e a montagem dos álbuns no pós-década de 1960. Tese de Doutorado. Escola de Comunicação e Artes. Universidade de São Paulo, 2014. VASCONCELLOS, G. Música Popular: de olho na fresta . Rio de Janeiro: Graal, 1997. XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento . São Paulo: Brasiliense, 1993.

Paralelos entre música, antropologia e história

JOSÉ CALIXTO K. COHON

reflexão sobre o conceito de paralelo pode parecer A imediata, afinal trata de duas linhas retas que nunca se tocam. Mas vejamos outras figurações do paralelo: linhas que se inserem em uma perspectiva e lá se encontram como em um ponto; linhas estas que não são necessariamente retas e podem ser diferentes uma da outra, contanto que certo sentido seja mantido e nunca se toquem; repetição de linhas lado a lado criando um campo; séries repetidas; intervalos em sequência; gestos simultâneos; ideias paralelas.

1. Imagens de José Calixto, 2015

Não é a toa que uma pesquisa em torno do tema leva aos mais distintos campos do saber, por exemplo: na gramática, onde a repetição de um modo de conjugação verbal deve ser seguida, como por exemplo, falta de paralelismo: Ele vive comendo, bebendo e dorme. E um exemplo com paralelismo: Ele vive comendo, bebendo e dormindo. Da gramática à retórica, onde o exemplo se faz ver aqui no próprio escrever, onde o a repetição paralela de termos leva à ênfase de sentido; da retórica aos negócios, existe o conceito de paralelismo consciente, onde empresas se associam criminosamente e manipulam os preços conjuntamente; da economia à evolução, o paralelismo evolutivo, quando duas linhagens diferentes que

Paralelos entre música, antropologia e história não se cruzam descendem de um mesmo antecessor, ou o próprio modo como as linhagens repetem padrões em sequência; da evolução à tecnologia, o paralelismo na computação que baseia toda a computação moderna, na medida em que ele consegue conduzir diversas ações e cálculos em paralelo, simultaneamente; da tecnologia ao espirito, a teoria cristã sempre buscou estabelecer a relação paralela entre corpo e alma, como em Leibniz com sua Monadologia, onde uma unidade singular se reflete e se desdobra em todo o universo de maneira paralela entre os mundos possíveis; da metafísica à música é só mais um passo. E na música, por sua vez, podemos encontrar diversos exemplos de paralelismo. O paralelismo mais básico da música é o cantar junto em uníssono. Duas vozes distintas que caminham paralelamente, duas fontes sonoras projetando o som em paralelo. Existem milhares de exemplos de cantos feitos em uníssono e oitava. Se nos adentrarmos em análises etnomusicológicas reconheceríamos em diversas 217 manifestações musicais do mundo a presença de paralelismo. Para citar alguns exemplos temos aqui canções indígenas coletadas pelo projeto “A Música das Cachoeiras”1. A faixa “Instrumentos aerófonos do Alto do Rio Negro” apresenta alguns exemplos de paralelismo. O primeiro exemplo da faixa onde uma flauta soa uma melodia cíclica e em paralelo um entoar-cantar-falado-recitado; o segundo exemplo da faixa onde uma flauta de série harmônica entoa uma melodia e que se sobrepõe na sequência a um pulso marcado com chocalhos; e o terceiro exemplo com uma poliritmia entre dois “trombones harmônicos” com certo paralelismo entre si e estes em paralelo com o chocalho. Também podemos lembrar-nos dos cantos polifônicos dos Pigmeus AKA onde é possível reconhecer ciclos de frases repedindo-se enquanto outras vão entrando em paralelo acrescentando camadas mais ou menos heterogêneas formando um tecido poliritmico. Essa simultaneidade é a base do paralelismo em música. Ela nos liga de maneira anímica a dimensão da alteridade, tornando o outro que canta em paralelo a mim, um outro eu. Esta zona de indistinção do sujeito estabelece também um paralelo entre dois planos, um

1 http://www.musicadascachoeiras.com.br/

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externo ao tempo do acontecimento musical e outro dentro do acontecimento musical. Daí a música de rito ser repleta de paralelismo. Ela duplica o mundo em um duplo, em uma dobra universal, onde todos se integram num campo de paralelas com uma perspectiva comum e abstrata. Na história da música é possível encontrar muitas formas e tipos de paralelismo. Nas poéticas e escritas antigas os exemplos são muitos, mas ficam quase totalmente paralelos ao pensamento literário. Aqui nos focaremos no paralelismo estritamente musical. É certo que o homem harmoniza e cria paralelismo de maneira oral, mas para fins de análise vale ir de encontro com ao nascimento da escrita musical. A voz organalis , que origina o organum, surge como a capacidade de sobrepor vozes distintas de maneira organizada. O intervalo de quinta e oitava, intervalos que ressoam paralelamente no espectro da ampla maioria dos sons de altura definida, foram os primeiros a serem registrados enquanto prática escrita, 218 muitas vezes apenas pressuposto, apenas realizado na execução. Um exemplo fortuito é o da Musica Enchiriadis - Rex Caeli Domine do século IX, anônima:

2. Rex Caeli Domine (TARUSKIN, 2005, p. 79)

O modo de notação deste canto é chamado de Daseian, inspirado na notação grega que fazia referência ao conceito de “canto áspero”, rough breathing , um sistema de entoação das Paralelos entre música, antropologia e história palavras gregas que anotavam símbolos sobre as letras para indicar modulações. Aqui nós vemos quase um gráfico cartesiano de distribuição espacial do campo de tessitura. As linhas paralelas contemplam formações derivadas de hexacordes. Abaixo a transcrição citada por Taruskin, na sua História da Música Ocidental (vol. 1, p. 79) da editora Oxford:

3. Transcrição de Rex Caeli Domine (TARUSKIN, 2005, p. 79)

Essa peça pode ser considerada como um exercício de 219 paralelismo. Partindo do uníssono a voz superior canta a melodia original do Rex Caeli, enquanto a inferior realiza o organum. Quartas paralelas são usadas em abundância e movimento, em contraposição ao uníssono inicial e final. A técnica de paralelismo se ampliou e outro caso relevante é o fabordão, ou fauxbourden. O fabordão é basicamente uma prática oral de cantar uma voz abaixo da voz principal em movimento paralelo. Ela era usada como ornamentação de melodias em canto conjunto e muitas vezes improvisada. Não é a toa que há extensa bibliografia e sempre repleta de indefinições a respeito desta prática. Por volta de 1300 ela começa a aparecer notada:

Com o desenvolvimento da escrita próxima dos moldes estandardizados em nossa história, o cânone e a imitação em paralelo, surgem como o grande avanço no domínio da manipulação das alturas no sistema ocidental. Após o apogeu

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do paralelismo no fim do medievo para a renascença, o paralelismo seria relegado na música a certa pobreza composicional. O tonalismo buscava atenuar seus paralelismo em terças e sextas, afastando as oitavas, quintas e quartas paralelas. No tonalismo as vozes caminham ligadas uma nas outras, se tocando a todo momento. O domínio do paralelo passa à forma geral no clássico ABA. Vai ser no seu limiar da superação do sistema tonal, naquele último Beethoven, que a dimensão do timbre do paralelismo será recuperada ainda de maneira rudimentar. Mas é na aurora do século XX que o paralelismo ressurge como imensa força composicional. Primeiramente vale lembrar de Debussy que certamente se inspira no paralelismo da música de Gamelão usando de escalas de tons-inteiros, pentatônicas, para produzir harmonias que escapam à sensação funcional tonal. É comum o uso da suspensão da sonoridade de acordes meio-diminutos (3b 5b 7b) encadeados paralelamente, criando uma espécie de 220 plano de paralelo, reproduzindo o domínio espacial no seio da temporalidade musical. Um exemplo clássico deste interesse de Debussy se manifesta em seu preludio do primeiro livro La cathédrale engloutie.

4. Debussy, La Cathédrale engloutie , (Schirmer's Library of Musical Classics, 1990)

Neste exemplo vamos o uso de quartas paralelas idênticas que parecem representar a dimensão interna de uma catedral submersa. Essa espécie de timbre gerado na gestualidade da peça nos lembra imediatamente a sequência de registros de uma catedral em diversos momentos do dia feito por Monet da catedral de Rouen, uma espécie de pintura paralela. Paralelos entre música, antropologia e história

5. Monet, Catedral de Notre-Dame de Rouen , 1890

Messiaen possui muitos exemplos de paralelismo diretamente como regressões e manifestações do espírito 221 religioso. O paralelismo retomado como ressoar do mito. Neste sentido Stravinsky também se expressa em regressões ao passado. Sacre é o exemplo, mas é simbólico o paralelismo de Petruska. Dialeticamente, Petruska, usando um recurso arcaico, marca a abertura do mundo que vivemos hoje: a praça de feira, com seu paralelismo de multi-músicas, soando em simultâneo – paisagem retratada também por Ives e Mahler. Por fim, se aproximando de nosso tempo, vale lembrar o paralelismo de Ligeti. Poderíamos elencar vários exemplos em sua música ricercata, mas é nos estudos de piano que podemos ver a ideia de paralelismo se manifestando de maneira mais singular. Ligeti, buscando estabelecer uma espécie de ilusão rítmica, claramente identificável em Continuum e Monument, na qual o compositor sobrepõe séries rítmicas diferentes que produzem uma textura polirítmica terceira assimétrica. Alguns anos depois destas peças ele descobre a música da África central e a música de Nancarrow. Na música africana é claro o estabelecimento de paralelismo:

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Um tipo diferente de ambiguidade métrica se manifesta na música africana. Aqui não há compassos como em sentido europeu, mas sim um evento rítmico formado por dois níveis: um nível básico formado de uma série de pulsações iguais e rápidas que não são contadas como tais, mas bem sentidas, e um nível superior que consiste em modelos simétricos – fundados sobre um numero de tempos inteiros e pares -, mas cuja a articulação rítmica resulta da justaposição de durações divergentes e que mesmo assim são todas múltiplas do valor mais curto, o que da lugar a uma estrutura interna assimétrica.” (Ligeti , 1988)

É estabelecendo níveis que se relacionam, mas correm em paralelo e em acentuações que se desencontram que Ligeti consegue inovar de maneira profunda a rítmica moderna. Isso é facilmente notável em seu estudo para piano n.1 Désordre, aonde o deslocamento tempo de colcheia em colcheia de uma mão em relação a outra vai gerando um efeito de desordem de 222 acentuação crescente. No início do segundo sistema já é possível identificar a defasagem entre a acentuação de uma mão e outra que gerará a ilusão de desordem. Nota-se na armadura de clave outro tipo de idéia de paralelismo: a divisão da mão direita nas teclas brancas e da esquerda nas pretas, o que cria dois campos harmônicos que não se tocam caminhando lado a lado.

Paralelos entre música, antropologia e história

6. Ligeti , Études pour piano (1986)(Schott Musik International) 223

Por fim, a ideia de paralelo na música mostrou grande fortuna e interesse. Valeria se debruçar ainda mais sobre as consequências expressivas de seu uso e coletar materiais ainda mais variados de sua aplicação.

Referências bibliográficas TARUSKIN, R . The Oxford History of Western Music : 5 vols. Oxford; Oxford University Press, 2005. LIGETI, G. Mes études pour piano (premier livre): polyrythmie et création. In : Analyse Musicale , Paris, S.F.A.M., Avril 1988, n.11, pp. 44- 45.

Em torno do inconsciente musical: uma leitura cruzada de Schoenberg e Rancière

IGOR BAGGIO

m seu pequeno livro de 2001, O inconsciente estético , o Efilósofo francês Jacques Rancière mostrou como podemos localizar no âmbito da literatura, das obras literárias e das obras de arte em geral, bem como no âmbito da reflexão filosófica sobre a arte, isto é, no discurso da Estética, uma formulação precisa e insistente de uma noção de inconsciente que não apenas anteciparia o conceito psicanalítico homônimo em Freud, como, acima de tudo, o prefiguraria concretamente, tornando-se assim uma fonte de revelação maior do fenômeno visado pela psicanálise. Como deixa muito claro o filósofo desde o início de seu livro, com a demonstração de um inconsciente especificamente estético não se trata simplesmente de aplicar o conceito freudiano à interpretação das obras de arte e a seus criadores ou mesmo aos conceitos da Estética, mas apenas de seguir os rastros na arte dos:

(...) testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido do insignificante (RANCIÈRE, 2009, p. 10-11).

Ademais, em sua formulação da noção de inconsciente estético trata-se para o filósofo francês de assumir uma:

(...) ancoragem da teoria freudiana nessa configuração já existente do “pensamento inconsciente”, nessa ideia da relação do pensamento e do não-pensamento que se formou e desenvolveu de modo predominante no terreno do que se chama estética(RANCIÈRE, 2009, p. 11).

Em torno do inconsciente musical

Rancière possui uma maneira determinada de situar historicamente a emergência de um regime propriamente estético das artes na modernidade, uma maneira que nos deixa bastante claro o porquê de sua concepção da arte moderna e do discurso estético reservar à noção de inconsciente um lugar de destaque. Segundo o filósofo, as artes e o discurso da Estética passam a figurar a relação entre o pensamento e o não pensamento, e, portanto, entre o consciente e o inconsciente a partir do momento em que a época clássica, ciosa do mecanismo especular da representação do real, passa a ceder espaço ao mergulho na interioridade do sujeito e na consubstanciação deste com os impulsos afetivos. Nesse sentido, a passagem do classicismo ao romantismo artístico e à filosofia idealista alemã é compreendida por Rancière como uma deposição de um marco estético calcado na representação intelectualista do real por outro fundado no reconhecimento de uma certa lógica imanente aos próprios afetos e paixões. Essa passagem marca para Rancière o advento do que ele chama de “revolução estética” . 225 Trata-se, em última análise, da superação de uma submissão do horizonte das ações e suas motivações afetivas ao horizonte do pensamento, que determinava o regime representativo, em direção à afirmação do enraizamento do pensamento no âmbito do pathos e de sua indissociabilidade com a ação. O advento dessa revolução estética teria na formulação kantiana do gênio um ponto alto:

O gênio kantiano resume essa dualidade [entre ação e pensamento]. Ele é o poder ativo da natureza que opõe sua potência a qualquer modelo, a qualquer norma, ou melhor, que se faz norma. Mas, ao mesmo tempo, ele é aquele que não sabe o que faz, que é incapaz de prestar contas. No regime estético, essa identidade de um saber e de um não-saber, de um agir e de um padecer, que radicaliza em identidade de contrários a “claridade confusa” de Baumgarten, constitui-se no próprio modo de ser da arte (RANCIÈRE, 2009, p. 27).

Dado que o objetivo central do livro de Rancière pode ser visto como explicitar a estreita relação desse inconsciente

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estético com o inconsciente psicanalítico freudiano, as obras de arte sobre as quais a reflexão do filósofo acaba se detendo ao longo do livro são aquelas mesmas referidas por Freud em seus ditos “escritos sobre arte”. Nosso propósito aqui, após nos utilizarmos das formulações de Rancière como introdução, será distinto. Gostaríamos apenas de mostrar como o caso de Schoenberg, mais especificamente como certa filosofia da composição que comparece em meio ao seu Tratado de Harmonia constitui mais um caso exemplar daquilo que Rancière analisou sob a rubrica de inconsciente estético. Portanto, não haverá em nossa exposição nenhuma tentativa de relacionar o pensamento composicional de Schoenberg com a psicanálise, mas sim com o que acabamos de dizer brevemente a respeito do regime estético da arte fundado na relação do pensamento com o não-pensamento. Para tanto, precisaremos nos valer de uma brevíssima reconstrução dos passos fundamentais de tal filosofia da composição em Schoenberg. 226 Ao nos referirmos a uma filosofia da composição entremeada ao pretenso discurso didático do Tratado de Hamornia , temos em mente aquelas diversas passagens do livro que se aventuram em especulações sobre o processo criativo composicional, especulações essas que Schoenberg escreve essencialmente sob a influência de duas fontes, a metafísica da arte de Schopenhauer e o ideário expressionista calcado sobre o imperativo maior da expressão pura da interioridade, com efeito, cabe lembrar, duas fontes que também são costumeiramente elencadas como precursoras ou paralelas à elaboração do inconsciente freudiano. Será em torno dessas passagens, portanto, que poderemos detectar em Schoenberg um exemplo típico do regime estético da arte centrado no jogo do inconsciente estético nos termos de Rancière. Um dos aspectos fundamentais para um bom entendimento do projeto maior do Tratado de Harmonia de Schoenberg diz respeito à crítica que o compositor faz à função representada pelos juízos estéticos no interior das teorias tradicionais da harmonia. Ou seja, segundo Schoenberg, os conceitos harmônicos fundamentais de consonância e dissonância, que a princípio deveriam ser apreciados teoricamente apenas a partir de uma descrição sistemática das Em torno do inconsciente musical relações sonoras naturais, passam, nas teorias tradicionais a ser pensados implicitamente como dicotomias estéticas carregadas de valor subjetivo. De conceitos teóricos, consonância e dissonância passam então a significarem valores estéticos opostos. Será em larga medida contra isso que Schoenberg irá divisar seu ideal de apresentação da harmonia não como um sistema de explicação teórico da natureza do som, mas como uma exposição artística (prática) do material básico da música tonal e de suas potencialidades construtivas. Contudo, e essa é uma peculiaridade extremamente significativa, ao retirar o estudo da harmonia do âmbito de uma determinação teórico-sistemática da natureza do som Schoenberg não abre mão totalmente da base pretensamente objetiva daquelas teorias tradicionais precedentes que visa criticar: a série harmônica. Não obstante, o estatuto desta passa a ser largamente relativizado em seu tratado, o que não impede Schoenberg de ainda reservar a mesma um papel importante em suas especulações sobre o processo criativo. 227 Para Schoenberg, a Harmonia é um ramo do ensino da composição musical e não uma matéria meramente teórica, e tendo isso em vista, o estatuto da serie harmônica em seu livro passa de fundamento natural das tentativas de descrição sistemática do som e da harmonia para substrato material da percepção dos compositores . Uma grande diferença que nem sempre é ressaltada adequadamente. Disso decorre que as tentativas em se fundar uma teoria sistemática da harmonia sobre a estrutura acústica da serie harmônica passam a dar lugar em seu tratado a uma reflexão sobre as possibilidades de exploração artística dos meios musicais fornecidos pela mesma. Provém daí o sentido de afirmações como as seguintes em relação ao papel da série harmônica para Schoenberg: “O realmente importante é basear-se em pressupostos que, sem pretenderem serem leis naturais, satisfaçam nossa necessidade formal de sentido e coerência” (SCHOENBERG, 1999, p. 57). Bem entendida, essa passagem do ponto de vista dos teóricos e dos sistemas para o ponto de vista da atividade criativa marca, no interior do discurso do Tratado de Harmonia, a passagem de uma posição que pretende situar os fundamentos da harmonia exclusivamente no âmbito da natureza e na relação não problematizada de mútua adequação

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entre os pretensos dados naturais e a estrutura perceptiva e representativa dos sujeitos, para outra que salientará a relação problemática entre natureza e história como constituindo o fator determinante. Ou seja, temos aqui já um primeiro indício de uma passagem do âmbito de um regime teórico- representativo para outro propriamente estético em termos muito semelhantes aos destacados por Rancière. Schoenberg acusa as teorias tradicionais da harmonia de subjetivismo, devido ao fato de que nenhuma experiência empírica do som nos obriga a admitir que o material sonoro da música traga inscrito em si mesmo a exigência teórica de sistematização. O principal problema desse subjetivismo representativo das teorizações sobre o material harmônico da música para Schoenberg será sua visão limitada a respeito das sonoridades harmônicas ditas dissonantes, que ao serem encaradas sempre desse ponto de vista, que tinha por objetivo remetê-las à natureza do som pretensamente descrita pela 228 série harmônica, um ponto de vista que acabava sempre por falhar, resultava necessariamente na submissão teórica e estética das dissonâncias às resoluções consonantes. Contra essa submissão, Schoenberg mobiliza um enfoque empírico composicional do material musical, um enfoque que fornece uma outra ideia acerca da “natureza” das dissonâncias. De início, dirá Schoenberg, provavelmente as dissonâncias teriam ocorrido na prática casualmente, como notas de passagem, por exemplo como um ornamento em uma melodia executada sobre um acorde maior. Depois, provavelmente tencionou-se anotar esse fenômeno, o que possibilitaria a repetição do mesmo efeito sempre que desejado, e não mais como uma ocorrência casual. Através dessa passagem da ocorrência casual das dissonâncias para seu manejo possibilitado pela escrita é que Schoenberg situa um impulso decisivo em direção ao estabelecimento de uma explicação sistemática do material pelas teorias harmônicas: “Posto frente ao dilema de escolher entre a repetição e a renovação das sensações, o espírito humano decidiu-se, também aqui, pelo agarrar-como-posse [Besitzergreifen ]: e fundou um sistema (SCHOENBERG, 1999, p. 94-5).” Em torno do inconsciente musical

Pode-se entender, portanto, em que sentido os pressupostos fundamentais da compreensão do material musical relevada pelas teorias sistemáticas da harmonia tonal seguiam um regime claro de representação subjetiva e em que medida o mesmo encontrava-se divorciado da prática real da composição musical para Schoenberg. Dito isso, a questão fundamental para os compositores no início do século XX deveria ser a seguinte no entender de Schoenberg: o que seria uma dissonância, para além da imagem limitada que nos é dela fornecida pelas teorias tradicionais da harmonia? O que seria uma dissonância na prática? Ora, do ponto de vista que encara a série harmônica como base material para a percepção e formalização artística do som, mas não necessariamente como sentido último da natureza do som, Schoenberg oferece argumentos para a expansão da visão tradicional sobre a distinção entre consonâncias e dissonâncias sobre a qual repousavam as tradicionais teorias harmônicas. Isso é feito em seu tratado através de considerações amplas 229 sobre a natureza do processo criativo em música e será a partir desse ponto de seu argumento que o papel de um inconsciente musical, que faz lembrar em muito os contornos do inconsciente estético de Rancière passa a comparecer em seu discurso. O mais notável, contudo, é que dado o caráter não representativo da própria música, Schoenberg não precisa abdicar totalmente da noção de imitação para articular sua versão propriamente estética da relação entre o pensamento e o não-pensamento em música. Para a concepção presente no Tratado de Harmonia , a evolução da criação artística e da arte em geral consistiria no caminho que leva da imitação do exterior à imitação da natureza interna do próprio material , caminho que coincidiria necessariamente com o aprofundamento da expressão dos impulsos inconscientes do sujeito. No que compete à música, segundo Schoenberg, a natureza exterior do som, sua aparência sensível mais imediata nos é dada pelos primeiros harmônicos, que compreendem o substrato material da música tonal. Contudo, os harmônicos superiores, apesar de estarem mais “escondidos” à percepção humana, sempre teriam fornecido à

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percepção inconsciente dos compositores o fundamento das distinções timbrísticas. 1 Assumindo a hipótese de que todos os aspectos que compreendem o processo da composição musical no fundo podem ser entendidos como uma tentativa de sempre produzir imitações e apresentações cada vez mais completas do espectro sonoro, Schoenberg argumentará que à admissão dos harmônicos superiores como alturas reais em uma obra (em uma peça atonal) corresponde à percepção de que, do ponto de vista do objeto, o som, a distinção entre consonâncias e dissonâncias nada mais é do que uma que diz respeito a diferenças de grau, e não de essência; uma distinção que repousa, portanto, sobre o maior ou menor grau de penetração na materialidade do som impulsionada pela capacidade perceptiva e pela ação criativa dos sujeitos. Nessa passagem do ponto de vista meramente subjetivo, que se atém à ilusão da explicação representativa e teórico-sistemática da harmonia com a ajuda das valorações 230 estéticas sobre as consonâncias e dissonâncias, para aquele da relação dos sujeitos com o material na prática real da composição desponta o papel ocupado pelo conceito de gênio na reflexão schoenberguiana. O compositor genial e não o teórico é quem pode nos levar a conhecer o interior profundo, a porção inconsciente do material musical ao nos fornecer obras que almejam a veracidade [Wahrhaftigkeit ] de sua essência. O nome dado a essa modalidade de relacionamento do gênio com a essência da natureza do som por Schoenberg é o sentimento da forma [Formgefühl ], noção esta cuja melhor formulação nos é fornecida quando o compositor se refere a seu próprio processo criativo junto ao material no limiar da tonalidade:

1 SCHOENBERG, 1999, p. 58. “Os harmônicos mais distantes são registrados pelo subconsciente e, quando afloram à consciência, são analisados e relacionados ao complexo sonoro total.” Apesar de utilizar o termo subconsciente nessa passagem, em outros momentos em que é questão o mesmo fenômeno descrito aqui Schoenberg se refere ao mesmo objeto com o termo inconsciente. Como o restante do argumento do compositor deixa claro, essa inconsistência terminológica teria origem no próprio fenômeno, como pretendemos que fique claro ao final desse texto. Em torno do inconsciente musical

Ao compor, decido-me somente através do sentimento, por meio do sentimento da forma. Este me diz o que devo escrever, e tudo o mais fica excluído. Cada acorde que estabeleço corresponde a uma obrigação, a uma coação de minha necessidade expressiva; mas também, talvez, à constrição de uma lógica inexorável, ainda que inconsciente, da construção harmônica. Tenho a sólida convicção de que essa lógica existe também aqui, ao menos na medida em que existia nos terrenos da harmonia outrora cultivados. Como prova disso, posso alegar o fato de que a correção da ideia repentina [ Einfall ] por escrúpulos formais externos, correção à qual se inclina frequentemente a consciência desperta, na maioria das vezes corrompe a ideia. Para mim, isto prova que a ideia já era uma necessidade, que as harmonias ali estabelecidas são partes integrantes da vida, onde nada se pode modificar (SCHOENBERG, 1999, p. 574).

A imbricação do pensamento com o não-pensamento que Rancière situa no centro de suas reflexões sobre o 231 inconsciente estético e sobre o regime estético da arte encontram nessas formulações de Schoenberg sobre o processo criativo guiado pelo sentimento da forma uma confirmação exemplar. Implícito nessa concepção schoenberguiana do gênio, que concebe a composição musical como um processo de conhecimento e de expressão do som e da interioridade profunda do sujeito através de seu sentimento da forma está a ideia de que a natureza segue em seu desvelamento para o sujeito alguma medida de razão e de necessidade que, do ponto de vista do sujeito do gênio, corresponde a sua necessidade inconsciente de expressão. Ou seja, aquilo que é tomado como natureza se manifesta no gênio como criação inconsciente. O senso formal ou sentimento da forma corresponderiam, portanto, à coincidência do racional na natureza com o natural, não conhecido ou inconsciente no sujeito, correspondência esta que engendraria a ideia inspirada [ Einfall ]. O fato de esta, por sua vez, não ser comumente passível de melhoramentos por parte do uso consciente do entendimento, como alega Schoenberg, daria mostras de que a criação a partir do sentimento da forma estaria pautada pela lógica da própria natureza do som, sua essência oculta, que transcende a

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capacidade de representação parcial fornecida pelas teorias da música tonal e pela própria música tradicional. Mas isso não significa que a criação a partir do sentimento da forma deva ser entendida como algo restrito à composição no âmbito da música que visa romper com os limites da tonalidade. Fica claro que no entender de Schoenberg todo grande compositor da tradição o possuía. Decorre disso que o próprio processo histórico de conhecimento e expressão do material sonoro pela composição musical seria impulsionado pelo sentimento da forma dos compositores. Mais do que isso, Schoenberg afirmará que essa tentativa sempre renovada do sujeito em aproximar sua percepção ao substrato “natural” do som é o que fornece a cada época seu senso formal característico. Portanto, ao fim e ao cabo, o processo de desvelamento do substrato material que se pretendia natural do som acaba por descrever os contornos gerais de uma história da composição musical e de um material 232 que poderíamos qualificar, como o fará mais tarde Adorno, como história natural. Uma história e um material estético que não deixa de cumprir um papel tão importante ao longo do regime estético da arte na modernidade quanto às obras literárias com respeito às quais Rancière elaborara sua noção do inconsciente estético.

Referencias bibliográficas ADORNO, T.. La idea de historia natural. In : Obra completa 1 . [s.t]. Madrid: Akal, 2010. ____. Philosophie der neuen Musik . Frankfurt: Suhrkamp, 1978. RANCIÈRE, J. Aisthesis: escenas del régimen estético del arte . Trad. H. Pons. Buenos Aires: Manantial, 2013. ____. O inconsciente estético . Trad. M. Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009. SCHOENBERG, A.. Tratado de Harmonia . Trad. M. Maluf. São Paulo: Unesp, 1999.

A estética hanslickiana no cinema

JALVER MACHADO BETHÔNICO RAFAEL SODRÉ DE CASTRO

música pode ser considerada como um dos fundamentos A do drama grego (CARRASCO, 2003, p. 33-34) e a essência da tragédia nos seus primórdios (NIETZSCHE, 1992, p. 90), antes do desenvolvimento da ação dialogada, na qual música e texto logram independência através da especialização de cada uma das partes. Pode-se dizer que um dos principais papéis desempenhados pela música no drama grego até então era potencializar o páthos 1 do texto através de declamações melódicas, servindo de elo afetivo entre as representações e o espectador. No drama antigo, a ligação do drama com a música é tratada por um viés sofisticado: longe de figurar com a mera finalidade de descrever, redundar ou ilustrar, o que move a música aqui é uma força criadora de mitos que visa algo de caráter eminentemente sugestivo que está além da representação das aparências, ampliando o espaço imaginativo a partir da torrente dionisíaca musical sobre o mundo imagético apolíneo. Dessa maneira, a música não buscava valorizar a aparência da representação, mas era ela mesma o impulso interno que alimentava a fantasia e exigia do homem sua máxima capacidade simbólica (NIETZSCHE, 1992, p. 34-35, 101, 105-108). Mesmo em um momento posterior, após a separação entre música e dramaturgia oriunda da especialização e autonomia de ambas as partes, esses dois

1 Esta palavra grega que designa, entre outras coisas, emoção , é referida em Retórica como método de convencimento destinado a exaltar as emoções do público. Ainda que o vocábulo pudesse ser substituído neste texto por afeto (derivado do correspondente latino affectus ), optou-se por manter a palavra original como forma de preservar toda a abrangência e carga histórica presentes na mesma.

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elementos que antes foram indissociáveis ainda conservavam a característica mimética que possuíam no teatro grego. Esse atributo se manifesta tanto em peças de naturezas apenas musical e apenas dramática quanto em obras que combinam os dois elementos (CARRASCO, 2003, p. 34). Assim, a música foi predominantemente vista ao longo da história como um meio de enfatizar algum aspecto narrativo ou dramático, sendo a expressão musical frequentemente conformada à representação ou à efusão de sentimentos. A música, quase sempre ligada ao texto, seria considerada em vista dos sentimentos que ela seria capaz de provocar e do seu poder de representação, deixando as articulações puras 2 dos sons musicais em um segundo plano. Esse papel secundário normalmente ofertado à música em sua ligação com outros elementos fez com que a música fosse vista como algo menor, subordinado a outras expressões, de forma que o significado da música era lastreado no texto - 234 seja letra, título ou outra referência externa - ou relacionado às inflexões das palavras do canto. Em meados do século XVIII tanto ocorre a ascensão da música instrumental, quanto a música deixa de ser um ofício e assume um lugar entre as artes. No Romantismo, a expressão de aspectos figurativos, narrativos e miméticos através da música ganha novo fôlego e não são raras as composições instrumentais denominadas programáticas, cujo intento era oferecer aos ouvintes uma narração de um evento ou uma descrição de algum fenômeno. A disputa que envolvia a música de programa ocorreu entre os séculos XVIII e XX com argumentos que se modificaram com o tempo, apoiados em razões que também se alteraram com o passar dos anos (DAHLHAUS, 1999, p. 126). No final do século XVIII, a ideia de uma música que representasse uma cena foi rejeitada ou pelo menos reprimida em detrimento da música ligada ao sentimento (DAHLHAUS, 1999). Assim, ainda que a ideia de música enquanto elemento retórico tenha persistido no século XIX, esta visão somou-se então à influência crescente

2 Que se relacionam apenas por suas características sonoras, sem qualquer tipo de intertextualidade. A estética hanslickiana no cinema da Estética, disciplina que almejava uma avaliação mais precisa sobre o objeto belo na busca de parâmetros de avaliação para as obras de arte (DAMMAN apud LUCAS, 2010, p. 1). A publicação em 1819 de O mundo como vontade e representação , do filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860) representa um grande passo em direção à construção de uma filosofia da música. Ainda que esta obra seja em essência uma teoria geral sobre tudo, a visão de Schopenhauer sobre tópicos específicos - em especial a sua visão da música perante às outras artes - apontou um novo caminho estético no qual a música seria, então, protagonista entre as artes românticas (KIVY, 2002, p. 20-21). A teoria de Schopenhauer considera as artes enquanto cópias de ideias. A música, no entanto, é chamada por Schopenhauer algumas vezes de “cópia direta” da vontade (KIVY, 2002, p. 21), e denota um reflexo ou representação da própria vontade cósmica. Ela é “a cópia de um modelo que ele mesmo nunca pode ser trazido à representação” 235 (SCHOPENHAEUR, 2005, p. 338). Essa concepção eleva o status da música e a coloca em uma posição acima de todas as outras artes (KIVY, 2002, p. 21). Dessa maneira, a música instrumental pura deixa de figurar como mera arte agradável, que apenas apraz os sentidos, e se transforma em uma arte profundamente significante (KIVY, 2002, p. 22).

A estética de Hanslick Se a teoria de Schopenhauer trouxe a primeira transformação na relação entre música e emoções do século XIX, a segunda apareceu com a figura de Eduard Hanslick (1825-1904) (KIVY, 2002), crítico musical defensor da “música absoluta 3” - ou “música pura” - termos utilizados em oposição à

3 O musicólogo Carl Dahlhaus (DAHLHAUS, 1999) faz um rico apanhado acerca da ideia de música absoluta e uma ferrenha crítica à estética defendida por Hanslick, apontando inconsistências e comparando o seu formalismo a ideias dos neo-alemães acerca do “espírito na música". Um dos pontos assinalados pelo autor trata de trechos que existiram apenas na primeira edição do livro Do Belo

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”música de programa” para designar a música instrumental que tinha como objetivo a expressão musical sem outra referência narrativa ou descritiva. As convicções estéticas Hanslick (1825- 1904), rompem com o pensamento corrente da estética do sentimento e defendem a música enquanto uma arte autônoma, cujo ideal de beleza deveria estar presente única e exclusivamente no próprio material musical e não nos efeitos causados aos ouvintes. Dessa forma, Hanslick desvincula a música de qualquer parâmetro dramático e se vale estritamente de parâmetros musicais, relacionados apenas à combinação artística dos sons, para valorar o seu objeto. No ensaio “Do Belo Musical”, publicado pela primeira vez em 1854, Hanslick elabora duas proposições, sendo a primeira negativa e a segunda positiva : 1- Não há emoção literal ligada à música; 2- A beleza na música consiste na combinação artística dos elementos musicais. 236 Dessa maneira, uma música que buscasse ser valorizada enquanto música deveria centrar-se nos seus próprios materiais sonoros e não na intenção de representar ou despertar emoções. Não se deve, para Hanslick, valorar a música pelas emoções que desperta ou que intenta representar ou expressar, mas apenas por suas articulações sonoras. O conteúdo e a forma da música seriam, assim, a própria música e nunca algo alheio à expressão musical. Ainda que a relação entre música e emoção não seja consenso na filosofia da música contemporânea, há atualmente quem defenda um posicionamento hanslickiano acerca do tema. Para o professor de estética N. Zangwill da Universidade de Hull, no Reino Unido, a experiência da música pode causar ou ser causada por emoções, mas a experiência musical não é uma emoção per se, uma vez que a música não pode literalmente conter uma emoção em si . Da mesma forma, as

Musical que ligariam a ideia de Hanslick de música absoluta a uma concepção do absoluto universal semelhante ao que é defendido por Schopenhauer ou por Moritz, quem considera a interpretação da obra de arte enquanto metáfora do universo (DAHLHAUS, 1999, p. 31), abordando dessa maneira uma metafísica da música instrumental. A estética hanslickiana no cinema ideias mais importantes envolvidas no ato da realização musical, seja composição ou execução, não são emoções (ZANGWILL, 2004, p. 42). De fato, as discussões contemporâneas sobre o que a música pode significar possuem suas raízes no trabalho desenvolvido por Hanslick. Para Alperson:

A sombra que Hanslick lança sobre discussões filosóficas contemporâneas de música é tão grande que seu ponto de vista pode ser razoavelmente considerado como um modelo contra o qual visões contemporâneas de música podem ser situadas (ALPERSON, 2004, p. 257).

É importante ressaltar que o livro "O Belo Musical" não nega que o ouvinte possa emocionar-se ao ouvir alguma música. A recusa de Hanslick trata essencialmente em opor-se ao emprego do sentimento enquanto princípio estético musical, 237 baseando o belo musical na música em si. Hanslick busca oferecer outras ferramentas conceituais para que se possa pensar na música a partir de elementos fundamentados na natureza do próprio objeto musical, em substituição à resposta afetiva do ouvinte. Dada a recusa expressa na proposição negativa, na qual o sentimento não estaria relacionado à obra de arte, os próprios sons que compõem o material musical deveriam então desempenhar o papel de conteúdo da música. Na visão de Hanslick, portanto, a música poderia apenas ser música, enquanto sua beleza reside apenas em suas próprias características. Nas palavras de Hanslick:

É um belo especificamente musical. Com isto, entendemos um belo que, sem depender e sem necessitar de um conteúdo exterior, consiste unicamente nos sons e em sua ligação artística. As engenhosas combinações de sons encantadores, seu concordar e opor-se, seu afastar-se e reunir-se, seu elevar-se e morrer - é isto que, em formas livres, se apresenta à contemplação de nosso espírito e dá prazer enquanto belo (HANSLICK, 1992, p. 61).

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Como parâmetros próprios para a construção de uma estética musical, Hanslick elenca a eufonia - sucessão de sons harmoniosos, agradáveis - e elementos próprios da música, tais como a melodia, a harmonia, o ritmo, os timbres e a forma da música, que deveriam exprimir somente ideias musicais através do seu próprio material. "[…] Uma ideia musical perfeitamente expressa já é um belo independente, é uma finalidade em si mesma, e não só um meio ou um material para a representação de sentimentos e ideias" (HANSLICK, 1992, p. 62). Hanslick reconhece que a música, no entanto, é capaz de aderir a outras linguagens, como o drama e a palavra, de forma a ambientar e enfatizar o que está sendo expresso pela outra parte. Este uso menor da música é impreciso, uma vez que a mesma música pode ajudar a construir significados distintos de acordo com o conteúdo ao que ela se une. A música, assim, teria o papel de apenas “colorir" o desenho 238 imposto pelo conteúdo do texto/drama. O crítico musical sugere ainda que, no que tange às expressões artísticas mistas, tal como a ópera, o ideal estético seria justamente satisfazer em proporções idênticas as exigências da música e do drama (HANSLICK, 1992, p. 55-56). A primazia musical defendida pelo autor em sua proposição positiva pode levar ao falso entendimento de que a beleza musical seria o suficiente na produção de artes mistas. Para esclarecer esta imprecisão, Hanslick aponta um erro cometido por “todos os compositores": "tentar criar, com textos e situações medíocres, música não medíocre e, do mesmo modo, cometemos grave injustiça apreciando essa música” (HANSLICK, 1992, pp. 59-60). Esta sentença coloca em evidência o critério da unidade enquanto determinante de valoração estética. A música bela, constituindo uma unidade feia , torna-se desprovida de sua beleza. Sua contribuição com seus próprios elementos belos se diluem e se perdem se não constituírem unidade. A situação contrária, em que a música é medíocre e as situações e o texto não o são, por extensão, também resulta em um todo medíocre. Assim, é necessário que as obras que envolvam música e outras linguagens sejam expressivas em todos os aspectos enquanto estabelecem uma unidade. A estética hanslickiana no cinema

Hanslick e a música do cinema A música do cinema desenvolveu-se paralelamente à música durante o século XX e estabeleceu-se como meio efetivo de agradar e “colorir”, habitualmente negligenciando outras potências da própria natureza musical. A prática cinematográfica, no geral, parece ter pouco do pensamento hanslickiano: destaca-se aqui o uso corrente de música que adere ao drama, ambientando afetivamente as cenas e seguindo a temporalidade já estabelecida em termos de duração, fluxo, velocidade, continuidade e linearidade. Ao contrário da ópera e do balé, cujas músicas eram - e ainda são muitas vezes - compostas segundo a vanguarda musical estilística de cada época, grande parte da produção da música de cinema ainda parece estacionada na estética musical do século XIX, recusando de forma veemente o uso de dissonâncias e ruídos que marcaram o desenvolvimento da estética musical do século XX. Concomitantemente, a música não raras vezes é produzida após a cena seguindo os desígnios 239 narrativos e temporais já estabelecidos pelas outras partes do filme, como um elemento menos relevante da montagem. Levando isso em conta, como conceber uma música plenamente autônoma no cinema? Com efeito, qualquer ideia de autonomia pressupõe a existência de outro, um primeiro que foi apartado e um segundo que ficou alheio ao processo de autonomização. Logo, a ideia de autonomia não pode pressupor algo que está de fato sozinho. O editorial da revista A! (2015) cuja temática foi a autonomia na arte, coloca: “paradoxalmente, a autonomia não é autônoma”. Tendo isso em vista, conceber uma ideia de autonomia de um elemento artístico é uma tarefa distinta a cada articulação proposta em cada um dos contextos e objetos possíveis (REVISTA A!, 2015). Um possível modo de conceber a autonomia na arte seria, desse modo, "pela via da oposição, observando como cada um esboça sua ideia de autonomia na construção de um modelo que se deve abandonar. Se os opostos engendram a dita autonomia, podem ser lidos então como contextos que lhe configuram” (REVISTA A!, 2015). A partir dessa caracterização é possível conceber uma música autônoma do cinema, reconhecendo que, não obstante,

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qualquer tentativa de separação de um componente integrante da totalidade do filme apenas evidencie a existência do todo e suas heterogeneidades. A música de cinema deveria ser compreendida em termos de emoção? Há espaço no cinema para uma música que possui valor autônomo da própria expressão musical? A expressão musical no cinema não trata do ideal da “música absoluta” desvinculada de todo aspecto extra-musical, mas de uma autonomia da linguagem, das contribuições musicais à construção do filme e da expressão sonora no contexto do audiovisual, à semelhança do ideal hanslickiano para artes que envolvem duas ou mais expressões artísticas diferentes. Reivindica-se aqui a música de cinema enquanto música, mas não destituída da sua ligação com o todo. É possível constatar em algumas obras cinematográficas uma presença musical que agrega ao filme um valor de natureza musical. Isso é particularmente importante 240 para filmes que pressupõem algum interesse explícito na música que os acompanha, tal como aqueles cuja temática envolva música ou músicos, ou ainda apresentem certa musicalidade, oriunda de uma montagem que valoriza o sonoro. Quando se analisa filmes como Canon (1964, dir. Norman McLaren) é impossível se abster de uma análise da forma musical homônima, assim como ignorar os movimentos sonoros e toda carga de conteúdo que as imagens conseguem conferir à forma: aqui, as imagens são produzidas de forma análoga ao que ocorre no espectro musical, jogando com as regras estabelecidas pelo campo sonoro (BETHÔNICO e CASTRO, 2015). Pode-se citar como outro exemplo uma cena 4 presente no filme Ama-me esta noite (Love me tonight, 1932, dir. Rouben Mamoulian), na qual os ruídos vão progressivamente surgindo da cidade que desperta: o sino que toca - e orienta os cortes de planos - um homem que trabalha, o ronco de um sujeito que dorme na rua, a mulher varrendo a calçada, as pessoas

4 Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=VinvK-xEhBg > (Visualizado em 30 de junho de 2015). A estética hanslickiana no cinema começando a trabalhar, janelas se abrindo e outros sons urbanos. De maneira peculiar, todo som que aparece é explicado dentro da diegese e nunca fora de campo. Da mesma maneira, todos os sons desdobram-se com constância rítmica, somando-se uns aos outros dentro da mesma pulsação e clamando por serem ouvidos como música. Um gramofone é ligado e sua música mescla-se aos sons urbanos fundindo-se a eles e transformando o emaranhado de sons em uma única pista sonora. Aqui, a música orienta o desenvolvimento da narrativa, o ritmo dos cortes de câmera, o que está sendo mostrado. Os elementos relevantes são, além da relação entre som e imagem, o próprio desenvolvimento dos padrões rítmicos musicais, elementos de interesse da esfera musical. Não obstante, se a construção do filme pode ser também orientada pela música, por que os métodos de leitura da obra cinematográfica precisam ser primordialmente imagéticos? As análises fílmicas são processos bem próximos às análises musicais: as duas partem da descrição do que se 241 percebe para então categorizar e sintetizar a ação dos elementos visuais/sonoros, relacionando os signos que ocorrem simultaneamente ou que, mesmo com um lapso temporal, apresentam significativas relações, como por exemplo um tema musical que se repete ou se desenvolve. Em Whiplash - em busca da perfeição (2014, dir. Damien Chazelle), faz-se necessário criar interseções entre os processos de análise fílmica e musical, bem como oferecer ferramentas conceituais capazes de considerar o valor musical como parte intrínseca de filmes dotados de expressão musical. Neste filme, a música age como elemento aglutinador, cenário temático que suporta as questões humanas que são levantadas na narrativa, como a busca em ser o melhor e o tênue limite da pressão psicológica entre o que estimula, constrói, e o que aniquila. Para além de figurar enquanto eixo no qual se assenta a trama, o fato de os personagens estarem em torno da música apresenta-se como um convite ao desenvolvimento de uma abordagem efetivamente musical dos elementos narrativos. Ainda que uma análise habitual do filme com foco na relação entre música e narrativa seja necessária para tratar de Whiplash , esta exploração, nestes termos, demonstra ser

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insuficiente para abordar os últimos 9 minutos do filme. Neste trecho, Andrew, baterista empenhado que se dedica ao seu limite físico, é surpreendido por uma música maliciosamente incluída pelo professor Fletcher que não constava em seu repertório e, consequentemente, fracassa no palco na ocasião que seria a sua grande chance. Em seguida, Andrew causa espanto ao iniciar a música que ele próprio escolheu e assim desafiar o professor. Ao longo da última música, Fletcher passa a demonstrar respeito pela performance do baterista, mas essa mudança não é, de fato, a razão pela qual o filme se estende pela primeira vez por toda a música, da introdução ao último acorde no último compasso. Como justificar, somente através da relação entre música e diegese levada em conta nessa análise até o momento, a ação narrativa que poderia ser desenvolvida com a metade do tempo ser submetida à duração total da última música? Após o término da última peça, o filme ainda possui pendências narrativas: não se sabe se professor e aluno se acertaram, de fato, se a carreira do baterista sofreu 242 qualquer impacto com o fiasco da primeira música ou o sucesso da segunda. Ainda assim, Chazelle optou por encerrar o filme junto à música, o que pode, talvez, sugerir um desfecho através de uma metáfora: a performance impecável que deu certo implicaria, então, em um final que deu certo. Em um filme, quando a música é exibida apenas parcialmente ela é destituída de uma parte estrutural importante: a forma. Este uso da música é amparado apenas no aspecto vertical da montagem e ignora a horizontalidade da obra musical em si, o que usualmente em filmes simplesmente não interessa. Mesmo em endoclipes, trechos audiovisuais em que todos os outros sons se emudecem e a música aparece em primeiro plano, assemelhando-se a um clipe musical mas produzido no contexto do filme (VIDIGAL, 2011), são raras as ocasiões em que a música aparece íntegra, preservando sua estrutura original com suas repetições. Os exemplos em que isso ocorre com música instrumental são ainda mais raros. Importante ressaltar que a música apresentada encontra-se desvinculada de qualquer tipo de texto verbal, de forma que o que ela significa é apenas seu próprio conteúdo musical, ainda que também se articule ao drama e construa um sentido A estética hanslickiana no cinema narrativo próprio do cinema, sem no entanto ter que abdicar do valor da própria música. Há aqui claramente uma reivindicação do domínio musical: a música apresenta-se inteira porque deve ser contemplada inteira. Subverte-se a ordem habitual dos filmes: na última cena, é a narrativa quem acompanha a música, presa ao tempo musical. Da mesma forma, o drama se curva à música ao abandonar suas questões e encerrar-se junto à performance musical. Assim, o valor da cena é também o valor da música, de forma que todos os elementos se integrem na narrativa. Whiplash: em busca da perfeição poderia ser considerado apenas sob o seu aspecto dramático: a estória da obsessão pela perfeição técnica e a relação com o professor são suficientes para sustentar a narrativa. No entanto, abrir mão dos aspectos musicais representa uma grande perda para uma obra audiovisual: a narrativa poderia abdicar-se da música; o filme, não. A música aqui é um elemento que constitui com autonomia a partir dos seus próprios materiais sonoros, não 243 cabendo a ela o papel secundário de complementar e preencher as lacunas deixadas pelas imagens. A autonomia da música no cinema reivindica o valor musical enquanto elemento constituinte, não a redução dos demais elementos que compõem a obra: trata-se de um valor autônomo - musical, não apenas fílmico - em uma obra multifacetada com inúmeras partes que se articulam entre si. A última cena mostra um duelo entre a música autônoma e o drama, mergulhando nos significados dispostos a partir da relação entre música e narrativa. O foco está, a princípio, na própria música, mesmo que algumas ações desenvolvidas durante a cena reclamem a atenção do espectador de volta para a estória. Eduard Hanslick diz que no que tange às artes que envolvem várias linguagens artísticas, a música ainda seria capaz de preservar sua independência estética conforme o autor considere as decisões a favor da música em detrimento aos outros elementos envolvidos. O filme que termina junto à música representa, nesse âmbito, uma vitória da expressão musical aliada à construção do cinema, sobretudo após a performance integral de uma música longa: não se trata de uma cena com uma música entranhada

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ou de uma cena que mostra a música que possui um drama como acessório, mas de uma expressão musical genuína que se integra à narrativa e multiplica os significados. A articulação entre som e imagem pode ser enriquecida com conteúdos musicais estruturados, relacionados diretamente à forma e variações de execução de uma música. Em Festim Diabólico (Rope , 1948, dir. Hitchcock) uma das cenas 5 de maior tensão se desenvolve dramaticamente através da música que o personagem Phillip toca ao piano. O mouvement perpetuel número 1 de Francis Poulenc, peça executada por Phillip, sofre ligeiras variações de hesitação e repetição, manifestas sobretudo no início e final das frases musicais, conforme o professor Rupert Cadell o pressiona a fim de descobrir informações sobre o desaparecimento de uma terceira pessoa. Algumas notas erradas também são tocadas, mas isso só se faz notar em uma escuta mais atenta: a tensão concentra-se nos diálogos enquanto a música parece servir 244 apenas como elemento de contraste, como se estivesse em desacordo com o que está sendo mostrado. Tal “desacordo" na verdade oferece um jogo rico de possibilidades: as variações musicais são utilizadas aí não apenas para potencializar a tensão da cena de um modo peculiar, mas também para criar mais sentidos fílmicos. O mouvement perpetuel de Poulanc possui um andamento moderado e se caracteriza, entre outras coisas, por um movimento cíclico e por um ostinato da mão esquerda que serve de base tanto para a tranquila melodia descendente em tom maior quanto para uma segunda melodia, cujo estranhamento harmônico contrasta com a primeira parte. Neste filme, as partes da música não obedecem estritamente ao que estabeleceu Poulenc em sua composição, mas transformam-se em pequenos graus, de acordo com o sentido fílmico, de forma que os "erros" funcionam como um jogo de “quente-frio” que se estabelece conforme Rupert se aproxima ou se afasta de hipóteses verdadeiras sobre o crime cometido.

5 Disponível em . Acessado em 30/09/2015. A estética hanslickiana no cinema

Em determinado momento, Rupert pega um metrônomo e utiliza-o em andamento elevado como forma de coagir o pianista. O jogo se dá nesse momento pela resistência de Phillip em se submeter ao andamento e por ondas de accelerando , com a segunda melodia. Quando o professor faz um questionamento distante do caso, Phillip irrompe com uma gargalhada e recomeça a primeira melodia em tom maior no andamento moderado, ignorando a imposição de tempo do metrônomo. O jogo recomeça, a música também sofre pausas que direcionam a atenção para alguma resolução do drama, mas retorna à situação de tensão. A aflição se manifesta também com a primeira melodia em tom maior, indicando que essa relação não se constrói apenas sob a dualidade desgastada entre tons maiores e menores, mas se ajusta ao drama sob diferentes formas: o sentido do todo fílmico é muito mais rico do que a histórica relação entre modos maiores e menores e afetos. Enquanto filmes eminentemente musicais podem 245 provocar uma experiência musical, há trilhas sonoras que escondem um conteúdo musical que merece ser compreendido também em si mesmo. A apreciação musical pode trazer à luz elementos a serem valorados nos filmes. Entretanto, é preciso que o espectador se proponha, em primeiro lugar, ser também ouvinte . Em obras audiovisuais musicais, é necessário perceber a música para poder perceber o todo. Quanto mais signos são compreendidos, mais relações são feitas e mais significados surgem.

Considerações finais A transposição de uma concepção de autonomia da música para o contexto do cinema deixa lacunas que este trabalho busca apontar. A hipótese de uma autonomia da música no cinema apresenta problemas em uma definição estrita de autonomia: o cinema não comporta a ideia de um descompasso absoluto entre o que se vê e o que se ouve. Mais do que isso, pensar em relações audiovisuais descarta a possibilidade de independência pura, sem qualquer relacionamento: o que se vê pode discordar do que se ouve,

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mas isso seria apenas o que caracterizaria esta relação. Há várias possibilidades de articulação entre som e imagem que vão muito além do concordar e discordar entre si, atuando de fato na produção de novos sentidos. Dessa forma, o relacionamento entre imagens e sons possui a potência necessária para criar um resultado distinto do produzido por sons e imagens separadamente, de maneira a configurar uma junção cujo total é mais do que a simples soma das parcelas. Assim, pouco interessa a música do filme desvinculada do mesmo, transformada em “música pura”: o valor musical deve ser pensado a partir do filme, com todas suas conexões e hibridações. A autonomia da música pode ser pensada sob o prisma das artes mistas. De acordo com Hanslick, tais artes apresentam critérios estéticos especiais: eles não são exclusivamente musicais, embora também incorporem os elementos musicais como parte integrante relevante. Assim, é 246 necessário que os critérios musicais se integrem aos aspectos estéticos da outra expressão mista que é também composta por música, a fim de estabelecer unidade que contemple a trilha sonora. Para Eduard Hanslick, a relação da música com o drama é uma metáfora de guerra: o equilíbrio entre música e drama se dá através de uma "luta constante de dois poderes legítimos " (HANSLICK, 1992, p. 56). Neste trabalho, entretanto, conclui-se que a noção de embate entre os dois campos é problemática: é preciso que o valor musical e as contribuições do campo autônomo da música - bem como de outros meios - sejam pensados enquanto elementos constituintes. Dessa maneira, essa relação precisa ser pensada por uma outra ideia geral, que se aproxima mais de uma dança ou de um jogo do que de um conflito entre as partes. Não pode ser “uma batalha de um contra o outro”, mas uma dança, na qual todos fazem parte e, em determinados momentos, um dos elementos conduz os passos ou reivindica atenção através de um movimento mais ousado, ainda que contrarie a tradição que defina apenas um condutor. O que importa neste caso não é o movimento isolado, mas a dança como um todo e como cada um dos movimentos contribui para a totalidade. Uma dança que possui vários personagens mas que na qual apenas um deles efetivamente A estética hanslickiana no cinema atua comporta um jogo mais pobre do que uma dança na qual as partes se alternam na condução. A autonomia do valor musical em uma obra cinematográfica é uma possibilidade de enriquecimento do cinema na medida em que a obra ganha uma nova dimensão. Ganha-se com o dizer musical mas não apenas com ele: conforme concebem-se mais elementos enquanto parte da obra, há mais leituras, mais significados, mais relações, mais possibilidades. Nesse âmbito, busca-se valorizar um outro olhar - ou um outro ouvir - capaz de realmente abarcar a música de cinema realizada por autores musicais, ressaltando os aspectos eminentemente musicais, também trazendo consigo os problemas da estética da música: a ligação entre música e afetos ainda é discutida na filosofia da música contemporânea e, dada esta observação, é importante trazer esta reflexão sobre o tema para o contexto da música de cinema, historicamente construída em termos afetivos. A formação de novas poéticas 247 musicais baseadas em critérios distintos do uso emotivo traz consigo possibilidades que ainda são pouco exploradas no cinema. A questão da autonomia da música pode ser pensada meramente como um exercício de variação de procedimentos cuja finalidade é obter novos resultados, mas também baseia-se em uma opinião sobre a natureza da música. Eduard Hanslick e o contemporâneo Nick Zangwill (2004) desenvolvem em seus trabalhos de estética musical a hipótese de que as emoções não são componentes artísticos da música e não devem orientar o trabalho do compositor, do ouvinte/espectador e, por extensão que aqui se reivindica, do diretor de cinema. Os exemplos referidos ao longo do texto demonstram que é possível que a música de cinema se desenvolva também em termos musicais, bem como possa contribuir com seus próprios meios nos processos de criação e percepção do filme. Conclui-se que, sob este mesmo prisma, o filme cuja música é pensada em termos musicais (e não afetivos), tem mais a contribuir para a própria música e para o filme como um todo do que o filme cuja música parece vir desprovida de expressão musical. Assim, é possível

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buscar novas soluções para as velhas perguntas do cinema, longe dos clichês musicais.

Referencias bibliográficas ALPERSON, P. The Philosophy of Music: formalism and beyond. In KIVY, P. (Org.) The Blackwell Guide to Aesthetics . Oxford: ed. Blackwell, 2004. BETHÔNICO, J.; CASTRO, R. S. A autonomia da música no audiovisual . In Avanca | Cinema 2015 . Avanca: Edições Cine–Clube de Avanca, 2015. CARRASCO, N. Sygkhronos: a formação da poética musical do cinema. São Paulo: Via Lettera, 2003. DAHLHAUS, C. La idea de la música absoluta. Barcelona: Idea Books, 1999. HANSLICK, E. Do Belo Musical. Um contributo para a revisão da estética da arte dos sons. Trad. A. Morão. Covilhã: Universidade da 248 Beira Interior, 2011. ____. Do Belo Musical: uma contribuição para a revisão da estética musical. Trad. N. Simone Neto. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. KIVY, P. Introduction to a Philosophy of Music. Nova York: Oxford University Press, 2002. LUCAS, M. I. Emulação de retóricas clássicas no tratado Der Vollkommene Capellmeister (“o mestre-de-capela perfeito”), de Johann Mattheson (1739). São Paulo: CMU-ECA-USP, 2010. Disponível em: . Acessado em 11/11/2015. SCHOPENHAEUR, A. O Mundo como Vontade e como Representação . 2 ed. Trad. J. Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. VIDIGAL, L. Outras relações entre música e território no audiovisual: um discurso da mídia em Netos do Amaral e Documento Especial. In Revista Brasileira do Caribe, São Luis, Vol. XI, número 22, 2011, p. 163- 184. A estética hanslickiana no cinema

ZANGWILL, N. Against Emotion: Hanslick was right about music. In British Journal of Aesthetics , Vol. 44, nº 1, 2004.

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CANON. Direção: Norman McLaren. Música: Eldon Rathburn. Canadá: Office national du film du Canada, 1964. Filme (9 min.), son., color., 35mm. Disponível em , visualizado em 10 de setembro de 2015.

FESTIM diabólico (Rope). Direção: Alfred Hitchcock. EUA: Transatlantic Pictures, 1948. Filme (80 min.), son., color., 35mm.

WHIPLASH - Em busca da perfeição (Whiplash). Direção: Damien 249 Chazelle. EUA: Bold films, 2014. Filme (107 min.), son., color..

Adès, para onde vão as notas?

LUCAS PAOLO S. VILALTA

Introdução ostaria de partir de algumas afirmações do compositor G britânico Thomas Adès presentes no livro de entrevistas Thomas Adès: full of noises: conversations with Tom Service , publicado em 2012, primeiro a apresentar um conjunto de reflexões de Adès sobre a composição musical e sobre suas obras.

THOMAS ADÈS – Eu tenho um problema – bem, não é um problema para mim, mas pode fazer a vida ficar confusa para alguém – que é eu não acreditar nenhum um pouco na distinção oficial entre música tonal e atonal. [...]Isso era outro problema para mim: eu não via a distinção entre música abstrata e música de programa. Eu literalmente não fazia a menor ideia do que isso significava, porque para mim toda música é metafórica, sempre (ADÉS & SERVICE, 2012, p. 3- 5). 1 TOM SERVICE - Eu me pergunto : o que aconteceria se você passasse por todas as portas que você tem disponíveis para você, todas as portas até o infinito que você descobriu em sua música? THOMAS ADÈS – Bem, você não pode , você tem que abrir uma por uma - você não pode apenas sair por aí abrindo todas as portas. Pense em Alice. Você provavelmente terá que voltar para a mesa e comer um pouco de bolo ou beber um pouco de bebida para ter o tamanho certo (Id. P. 177). THOMAS ADÈS – Se um grande compositor prenuncia a era de alguma forma, Ligeti foi um grande compositor. Ele foi o

1 Todas as traduções apresentadas no presente texto são de minha responsabilidade.

Adés, para onde vão as notas?

primeiro a trazer a morte térmica do universo 2 para a musica, a ideia da entropia total. Suas peças todas tendem a essa direção. TOM SERVICE – Peças como os Estudos para piano assim como o Réquiem, você diz? ADÈS – Com certeza. Eu penso que isto tende a ser o ponto de fuga de qualquer peça de Ligeti: a morte térmica do universo. Elas tem uma espécie de desespero cósmico total, um absurdo sobre eles, o que é inteiramente uma coisa século- vinte-tardio. [...] SERVICE – Você quer dizer que a maneira como essas peças configuram padrões de ritmo e sons como espirais fora de controle que se dirigem ao infinito . Tecnicamente, você poderia dizer que a sua própria música faz coisas semelhantes, de certo modo, como aquela qu ase-série gigante no final de Tevot, que você inclusive já descreveu como algo que poderia seguir para sempre, que poderia ser infinito. 251 ADÈS – Mas não se trata do mesmo, porque não se dirige à extinção. A de Ligeti tem um ponto de fuga e a minha não (Id. P. 139). O fato é que a harmonia tem sido sempre irracional. Então, isto significa que ela nunca foi estável. (Id, p. 146)

Quero comentar um pouco essas afirmações de Adès com o intuito de apresentar os dois problemas que desejo abordar aqui. Primeiramente, o modo como Adès se afirma no cenário musical contemporâneo. O compositor se insere de forma irreverente com atitudes e utilizações do material

2 “A morte térmica é um possível estado final do universo, no qual ele "cai" para um estado de nenhuma energia livre para sustentar movimento ou vida. Em termos físicos, ele terá alcançado entropia máxima. A hipótese de uma morte térmica universal surgiu das ideias dos anos 1850 de William Thomson (Lord Kelvin), que extrapolou a visão da perda de energia mecânica na natureza da teoria do calor, como as englobadas nas primeiras duas leis da termodinâmica, a uma situação universal”. Cf: http://pt.wikipedia.org/wiki/Morte_térmica_do_universo.

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musical que não mais se enclausuram em dicotomias maiores que parecem ter animado as reflexões da Estética Musical que se abrem no século XIX e se consolidam no século XX. Polarizações como música tonal e atonal, serial e pós-serial, música abstrata e música de programa, entre outras, não se configuram como limites para sua composição. Isto foi interpretado como uma adesão ao “poliestilismo” de Alfred Schnittke e tachado como uma verve ecletista, pós-moderna, ingênua e até descompromissada do compositor. Surgem, então, as mais diversas críticas a tal posicionamento. Desde Richard Taruskin que afirma que Adès viria resgatar uma corrente do modernismo musical esquecida, podendo “resistir a uma utopia estéril, evitando também, por outro lado, a armadilha oposta do pastiche irônico” (TARUSKIN, 2011, p.9); como também a crítica de Vladimir Safatle da utilização cínica dos materiais:

252 Essa forma consegue absorver sua própria desestruturação, sem com isso colocar em questão a noção de que só há ordem através de materiais fetichizados. Dessa maneira, ela flerta com o informe sem abandonar a sustentação de um princípio de organização a respeito do qual ela faz toda questão de enfatizar sua descrença. Como já foi dito, mesmo o informe pode servir para sustentar uma Ordem que vigora por meio de sua própria descrença (SAFATLE, 2008, p. 200).

Para além da questão de se realmente Adès conseguiria recuperar certa tradição surrealista que foi ofuscada pelas tradições de Schönberg, Stravinsky e Debussy, como o quer Taruskin; ou se ele é apenas mais uma manifestação mais complexa do cinismo contemporâneo de compositores como John Adams, como sugere Safatle; poderíamos procurar, primeiramente, qual a posição singular que caracteriza o compositor em relação à tradição. Esta me parece claramente enunciada no que o compositor denominou de “harmonia irracionalmente funcional” (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 141). Este termo - como poderia parecer - não quer dizer que o tratamento composicional da harmonia deve ser irracional, mas que o próprio material é uma realidade tensa Adés, para onde vão as notas? que não pode ser circuscrita a outra dicotomia, a saber, a de material estável ou inestável. Para uma concepção que pensa o material a partir dessa dicotomia, ou para certa concepção de racionalidade harmônica, o material concebido como uma realidade metaestável é irracionalmente funcional. Não se trata do que fez Debussy, pois como sugere Adès, a descoberta de outras funcionalidades harmônicas ou o rompimento com a racionalidade das funções harmônicas tradicionais, não traz como correlato um tratamento do material em seu aspecto instável. Debussy apesar de inscrever seu material em outra forma de organização da racionalidade harmônica, ainda o faria postulando a estabilidade do material. Por outro lado, algo similar ocorreria com Ligeti, na visão de Adès, apesar dele submeter o material a um processo de dissolução, a uma entropia total, o resultado de tal trabalho com o material seria a subsunção das tensões que lhe são internas a um processo de estabilização dissolutivo. Dito de maneira resumida, se por um lado, Debussy aponta para um tratamento irracionamente funcional da harmonia, ele o faz concebendo o material musical 253 como uma realidade estável; por outro lado, Ligeti concebe o material como pura instabilidade e a confluência inevitável seria, então, um processo de dissolução do material em uma linha de fuga de estabilização em uma entropia total. Nesse sentido, a apreciação que Adès faz dos procedimentos composicionais de Berg é reveladora – bem como seu elogio a outro compositor húngaro, György Kúrtag. Adès se vê como um filho ilegítimo de Berg, isto porque se os materiais do compositor tendem a um movimento de estabilização entrópica – como ocorreria com Ligeti – a implicação expressiva dele com os materiais faria com que essa entropia se realizasse de modo imperfeito. “ Lulu é muito melhor que perfeição” (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 129). A implicação subjetiva de Berg funciona como uma resistência objetiva à tendência de seus materiais à dissolução. Formulemos, assim, o primeiro problema que me interessa abordar aqui. Para Adès, não existe algo como uma divisão entre o material puro (frequências, vibrações, ondas) e o material tratado pelo compositor (notas, sons), consequentemente, mesmo concebendo o material enquanto realidade instável, a relação do compositor com esse se dá

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como uma realidade metaestável. Realizarei uma aproximação com o conceito de metaestabilidade do filósofo francês Gilbert Simondon para analisar este aspecto na consitência dos procedimentos composicionais de Adès. Em segundo lugar, com relação à consistência dos procedimentos composicionais empregados por Adès, podemos iniciar pela seguinte constatação: Adès aproxima a lógica de suas composições à lógica de Lewis Carrol em Alice (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 144). Isto porque as funções que estruturam a composição não são imanentes ao material. Do ponto de vista das tensões imanentes ao material, a harmonia e as funções utilizadas pelo compositor surgem com irracionais ou como exteriores - no entanto, essas funções são estruturantes. O que Adès rechaça é que exista uma estrutura imanente ao material que garanta a inteligibilidade ou a racionalidade dos procedimentos composicionais e das funções. Para Adès, são as funções e os procedimentos que 254 estruturam e dão consistência ao material de um ponto de vista que não lhe é imanente, que lhe é exterior. Isto é o que me parece que está em jogo quando Adès reitera constantemente a afirmação de que para ele toda música é metafórica. Abordemos com calma este ponto. Inicialmente, para a tradição que se acostumou a pensar a autonomia das formas musicais com relação a todo e qualquer contéudo ideológico ou representativo, a afirmação de Adès soaria como uma aberração anacrônica. Também em relação a filosofias imanentistas que recham veemente qualquer tipo metaforização do concreto, tal afirmação soaria como a incapacidade de conceber as potências próprias ao material musical. No entanto, acredito que o que Adès está afirmando é bem mais complexo que isso. Há um respeito à imanência metaestável do material por parte do compositor, contudo, o que Adès afirma é que o sentido da composição com o material é sempre metafórico. Isto não significa, de modo algum, que a música tenha como função última a representação de conteúdos; nem tampouco que ela opere de modo simbólico, como restituição ou projeção de “outra coisa” que estaria ausente. Como diz Safatle:

Adés, para onde vão as notas?

Nenhuma metáfora é “mera” ilustração. Ela é uma forma de relacionar sistemas de referências distintos que dévem, porém, ser conjuntamente articulados para que um fenômeno determinado possa ser apreendido de modo adequado (SAFATLE, 2015, p. 23).

Assim, o que nos parece que Adès afirma ao dizer que toda música é metafórica é que ela é um fenômeno complexo que relaciona sistemas de referências distintos, por exemplo, as tensões internas ao material musical, a consistência da estruturação da composição por meio das funções e os sentidos que o compositor almeja produzir com seus procedimentos. Desse modo, parece que o que Adès pretende afirmar não que é a música seja em si metafórica – o constituiria aliás um contrasenso, algo que seja em si metafórico -, mas que a música sempre é apreendida de modo metafórico, ou seja, como um conjunto de relações entre sistemas de referências distintos. Isto nos leva a uma afirmação de Adès que trouxemos 255 inicialmente e que ainda não abordamos diretamente. A metáfora das portas. Elas não estão ali simbolizando outra coisa que o compositor queria dizer e não disse. Elas são uma imagem do sistema de relações que Adès está tentando estabelecer. Frente à simbolização proposta por Tom Service, a saber, das portas como as possibilidades infinitas abertas pelas música de Adès; este responde com uma metáfora: as portas em Alice . Relendo a pergunta de Service podemos dizer que ela se resume ao seguinte: o que aconteceria se você se utilizasse de todos os procedimentos, das infinitas possibilidades que você descobriu com sua música? Ao invés de responder que todos os possíveis para se configurarem enquanto procedimentos musicais consistentes necessitam estar inscritos num trabalho com o material que produz resistências e que cada procedimento exige uma disposição singular do compositor; Adès responde com a metáfora das portas. Na cena em questão de Alice no país das Maravilhas (CARROLL, 2009, p. 17-23.), as experiências de Alice para sair da situação em que se encontra, para avançar, são sempre frustradas pois o tamanho de seu corpo nunca coincide com o tamanho da porta. Interpretar uma metáfora é remetê-la a outro conjuto de relações. Assim, podemos dizer que as potências inscritas na

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imanência metaestável do material, as portas, sempre excedem os procedimentos, os tamanhos ou as formas, que o compositor possui para articulá-las. Esse processo que tentei captar a partir da metáfora das portas quero pensá-lo - e este é nosso segundo problema - a partir do conceito de transdução de Simondon. Comecemos nossa análise para pensarmos em que medida a obra de Adès consegue articular um material concebido em sua metaestabilidade a partir de um processo composicional transdutivo.

Entre a metaestabilidade do material e a operação composicional transdutiva Explicarei muito resumidamente os conceitos de metaestabilidade e transdução de Simondon para que possamos pensá-los em relação às composições de Adès. Sobre o conceito de metaestabilidade, precisamos inicialmente fazer 256 duas ressalvas. A primeira, é que não tratarei o material sonoro “puro” – por assim dizer – enquanto sistema metaestável; isto porque o material musical com que trabalha um compositor nunca é um sistema de relações do qual está excluído a historicidade perceptiva. O conceito de material que tenho em vista aqui é um sistema tenso de relações, nem natural, nem artificial, prenhe de historicidade. A segunda ressalva, é que não se trata de um conceito que produz uma síntese dialética entre estabilidade e instabilidade, o conceito de sistema metaestável surge, a partir das descobertas da termodinâmica, como um sistema carregado de potenciais internos e que, portanto, pensá-lo a partir de dualismos como estabilidade e instabilidade, movimento e repouso, ou síntese dos contrários, seriam apenas abstrações imprecisas. Estas ressalvas me parecem relavantes, pois, como ficará evidente daqui em diante, minha principal dificuldade constirá em estabelecer autênticas analogias entre o que pensou Simondon ao formular seus conceitos para produzir uma nova filosofia da individuação e o que apresentarei aqui para pensar os dois problemas com relação a consistências dos procedimentos composicionais de Adès. Tenho tomado contato com alguns trabalhos que tentam pensar a música a partir dos conceitos simondonianos e que fazem uma passagem muito rápida, a Adés, para onde vão as notas? saber, tomam a composição musical como um processo de individuação e saem aplicando inadivertidamente os conceitos de Simondon como se pudéssemos pensar a obra musical da mesma forma que o filósofo pensa o indivíduo físico, ou o indíviduo vivente, ou o indíviduo psicossocial, ou o objeto técnico. Isto significaria perder de vista um dos aspectos centrais da filosofia de Simondon, a saber, que a ontogênese é anterior a toda ontologia e toda lógica possíveis, isto porque dos tipos ontogenéticos, dos diferentes tipos de individuação, é que podemos derivar respectivas ontologias e lógicas. Gostaria de insistir que a composição musical provavelmente pode ser pensada como um processo de individuação, no entanto, fazê-lo exigiria um trabalho minucioso de análise das especificidades desse processo, do tipo de ontogênese em questão. Acredito que as reflexões que apresento aqui podem se configurar como um primeiro ensaio de tal análise, contudo, faço aqui a ressalva mais importante: nosso objeto de análise aqui são as obras de Thomas Adès e não a composição musical em geral ou a ontogênese da obras musicais. 257 Simondon apresenta a noção de sistema metaestável como um indicador da mudança de paradigma epistemológico para a teoria da forma (SIMONDON, 2013, p. 26). A teoria da individuação que Simondon formula está construída a partir de duas teses críticas centrais:

1. Os processos de individuação sempre foram pensados a partir do indivíduo constituído e disso resoltou nossa incapacidade de conhecer o indivíduo como mais que uma unidade e um identidade autoidênticas. Devemos, então, inverter esse movimento e buscar o conhecimento do indivíduo a partir de uma teoria da individuação. Apenas desse modo, poderemos perceber que o indivíduo é apenas um momento de maior estabilidade da unidade e da identidade de um processo de individuação. 2. O ser é uma realidade polifasada que comporta em si uma realidade individuada, mas também cargas pré-indivuais. Há uma parte do ser que não possui fases, é uma realidade sem fases, um conjunto de virtualidades e pontencialidades não individuadas que impulsionam novos processos de

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individuação. O devir dos processos de individuação, são assim, uma articulação entre realidade individuada e cargas pré-individuais.

Estas duas teses críticas (SIMONDON, 2013, p. 23-5.) tem como alvo as concepções hilemórficas e substancilistas do ser. Estas tradições não conseguem produzir um conhecimento satisfatório dos processos de inviduação, pois ignoram que o ser não é apenas composto de realidades individuadas e por não conseguirem captar as energias potenciais, as informações e as tensões internas ao sistema metaestável que opera em um processo de individuação. Para o que nos interessa aqui, essa noção de metaestabilidade serve para marcar que a realidade do material musical precisa ser pensada a partir das noções de matéria ou conteúdo ( hylé ), forma ( morfé ), mas também de energia, potencial ou informação. O material musical não é apenas uma realidade que possui uma matéria que possui 258 tendências formais e que pode ser informada, mas também é uma realidade rica em potenciais e tensões. Espero que a análise das composições de Adès possa oferecer maior concretude para esta tentativa de pensar o material como sistema metaestável. O conceito de transdução, ou operação transdutiva, Simondon o define da seguinte forma:

Entendemos por transdução uma operação física, biológica, mental, social, pela qual uma atividade se propaga progressivamente no interior de um domínio, fundando esta propagação sobre uma estruturação do domínio, operada aqui e ali; cada região de estrutura constituída serve de princípio de constituição à região seguinte, de modo que uma modificação se estende assim progressivamente ao mesmo tempo que a operação estruturante. (SIMONDON, 2013, p. 32)

A operação transdutiva é uma individuação em progresso que sedimenta regiões estruturadas ao mesmo tempo em que avança em novas estruturações. A imagem mais Adés, para onde vão as notas? simples que Simondon encontra para esta operação é a do cristal. Os estudos de cristalografia demonstram como o cristal não é um indivíduo, nem uma estrutura prévia a seu processo de individuação, às operações que engendram seu crescimento e estruturação. A partir de uma solução salina, que é um conjunto de potenciais, forma-se um precipitado, que é um germe cristalino muito pequeno, que crescerá por capas moleculares em todas as direções. As orientações de crescimento e as estruturas próprias ao sistema de cristalização não estavam contidos previamente no germe, apenas os potenciais de crescimento que orientaram as operações. O cristal é para Simondon uma imagem simples de como funciona a operação transdutiva, mas também é um dos seres físicos que mais se aproximaria da caracterização de uma individualidade estável e, no entanto, é um sistema metaestável que, mesmo em velocidades muito lentas, nunca cessa de individuar-se. No entanto, para o que nos interessa aqui, o importante será marcarmos como a operação transdutiva permite uma concepção metafísica e lógica (SIMONDON, 2013, 259 p. 25-6.) que dá conta da gênese do indivíduo (ontogênese) enquanto realidade processual e sistema metaestável. Aqui a crítica de Simondon visa tanto à dedução, quanto à indução como modelos insuficientes para a compreensão da individuação (SIMONDON, 2013, p.34). Tentarei abordar este aspecto a partir da composição musical. A pergunta que temos que propor é: o que seria a operação composicional dedutiva, a indutiva e a transdutiva? Aqui é importante inserir mais uma ressalva. Não se trata de responder essa pergunta com aproximações fáceis como serialismo e operação composicional dedutiva, e impressionismo e operação composicional indutiva. Ou avaliar nos modelos de variação em desenvolvimento ou justaposição maiores ou menores proximidades com a dedução ou a indução. Trata-se de pensar a partir de tipos ou modelos abstratos. Isto porque talvez não exista nenhuma composição que seja em si dedutiva, indutiva ou transdutiva. A diferenciação que faz Simondon entre estruturação e operação nos auxilia. Uma operação produz e/ou pensa estruturações e dispara novos processos estruturantes. Assim, podemos dizer que um compositor ao deduzir os parâmetros a partir de uma

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série, está operando dedutivamente, mas talvez a estrutura resultante de tal operação não se esgote e não esgote o sentido musical produzido. Como modelo abstrato, gostaria de propor, então, que a operação dedutiva consiste em partir de generalidades para estruturar particularidades. Algo como partir de séries, formas musicais, conjuntos instrumentais para daí estruturar as melodias, os temas, os timbres. Já a operação indutiva consistiria em partir desses para estruturar aqueles. Evidentemente, a decisão do que constituem as particularidades e generalidades, bem como se é possível fazer esta separação, já dizem respeito a um posicionamento com relação à estruturação do material. De todo modo, em contraposição a essas operações, a transdutiva procederia de modo a não separar avanço composicional e estruturação 3. Não se faria a distinção entre particularidade e generalidade, pois todo momento do processo transdutivo é, simultaneamente, 260 um conjunto de aspectos do material estruturado e tensões internas a estruturação que projetam novos processos estruturantes. Poder-se-ia dizer que isto é exatamente a descrição de uma operação composicional que parte das resistências e tendências imanentes ao próprio material. Isto estaria adequado, desde que especificássemos a que tipo de imanência nos referimos. Assim como a imanência possui sentidos distintos em Hegel e Spinoza, precisaríamos ser capazes de descrever um tipo de imanência própria à operação transdutiva. Deixemos isto como um problema aberto que

3 “Não há tal coisa como ‘pré-composição’: assim que você começa, você realmente já está compondo. Eu não faria a distinção entre um estágio ‘pré-composicional’ e um estágio ‘durante-composição’. E se você tem que voltar para o "estágio pré-composicional", o que muito provavelmente vai acontecer? Você estará lidando com algo que é cronicamente volátil. É como lava, excetuando-se que o meu material na verdade não existe na realidade física. São sons evanescentes. Estas notas não são objetos que estão na frente de vocês - embora em outro sentido possa ser útil tratá-los dessa maneira; talvez eles sejam, na verdade, uma espécie de objeto invisível. Mas essa invisibilidade é frustrante, porque seu cérebro não pode necessariamente defini-los claramente em primeiro lugar.” (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 4). Adés, para onde vão as notas? poderá ganhar alguns delineamentos na análise das composições de Adès.

A consistência metaestável dos procedimentos composicionais transdutivos de Adès “THOMAS ADÈS - Isto é o que movimenta tudo em música – estabilidade e instabilidade. Eu tenho perguntado a mim mesmo: há algo como estabilidade absoluta na música; ou em qualquer coisa? Eu cheguei a conclusão de que a resposta é não: onde há vida, não há estabilidade” (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 1-2). Esta constatação de Adès não nos deve levar a acreditar que, portanto, em sua visão “tudo é instabilidade”. Adès falará mais adiante que o compositor precisa lidar com o “desejo do material” (ADÈS & SERVICE, 2012, p.8). Tal tratamento não é uma simples adesão às tendências do material. “Para realmente descobrir o que as notas desejam fazer, você deve ir contra aquilo que primeiramente elas 261 parecem querer fazer, e daí elas começam a resistir e você tem que usar outros imãs para ver o que elas estão realmente sentido” (ADÈS & SERVICE, 2012, p.3). Esta afirmação de Adès não deve ser tomada como uma personalização das notas, antes se trata de dizer que o próprio “desejo do material” é instável. O que Adès parece sugerir é que, se o compositor adere facilmente a instabilidade do material, o que restará é uma abordagem estabilizante dos desejos do material. Antes seria melhor, instabilizar o própio desejo instável do material produzindo-lhe resistências – isto é tratar o material enquanto realidade metaestável. É preciso seguir o desejo do material imantando-o, polarizando-o, tratando-o, isto porque é preciso resistir a tratar o material como metaestável em si, pois isto seria estabilizar a composição em uma mera tentativa de adivinhação dos desejos do material. O que Adès parece ter em mente é que o desejo do material realmente aparece quando ele se configura como uma realidade que se configura entre as tendências do próprio material e o tratamento que é dado pelo compositor a tais tendências. Assim, podemos dizer que a metaestabilidade do material se configura como um sistema de relações entre o

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desejo instável do material e o tratamento que o compositor vai descobrindo momento por momento da composição. Podemos denominar este último como a criação de procedimentos composicionais transdutivos. Isto porque cada estruturação do desejo do material deve ser abordado como um instante de sedimentação e projeção de novas estruturações. Entretanto, esse sistema de relações pode ser analisado em sua consistência. Penso a consistência aqui como um valor que nos permite avaliar em que medida os procedimentos composicionais desdobram possibilidades de criação e de escuta que não se fecham em si, mas se abrem a criação de novos sentidos e práticas. Assim, os procedimentos composicionais poderiam, por exemplo, ter uma consistência estável, ou seja, a lógica ou a organização do material se desdobraria em um resultado composicional que almeja a conformidade do material ao tratamento dado; a escuta ou a análise estariam de acordo com essa consistência estável se seguissem a conformidade planejada e encontrassem na 262 composição a organização pretendida. Eles poderiam ter também uma consistência instável, ou seja, a organização do material está sempre em desconformidade com o material. O tema do erro ou da incosistência seriam aqui facilmente convocados, no entanto, vale lembrar que muitas inconformidades ou incosistências são muitas vezes errâncias e aberturas com relação às formas e procedimentos historicamente configurados. Acredito que podemos pensar a consistência estável e instável como limites ideiais que surgem da tentativa de circuscrever às relações com o material como apenas produtivas ali onde há determinação. A consistência metaestável surgiria, então, como nem estável, nem instável, mas como um tipo de conformidade singular que permite que as indeterminações na organização do material possam ser valoradas como produtivas. A consistência metaestável seria uma perspectiva para a qual coexistem no tratamento do material momentos de determinação e indeterminação. Minha questão central pode assim ser formulada: Adès consegue constituir uma consistência metaestável no tratamento dos materiais com a utilização de procedimentos composicionais transdutivos? Ou, dito de outro modo, qual a consistência do campo problemático formado pelos problemas da metaestabilidade do material e da transdutividade dos Adés, para onde vão as notas? procedimentos composicionais na obra de Adès? Comentemos algumas obras agora com o intuito de formularmos, mesmo que provisoriamente e de modo incompleto, uma possível resposta para essa questão. O opus 1 de Adès – Five Eliot Landscapes - aparece como a tentativa de um jovem compositor de construir paisagens ( landscapes ) feitas de materiais não-estruturados previamente na tradição musical ocidental. Porém, o que decorre dessa tentativa é a impressão de que as paisagens musicais compostas se configuram como paisagens não- estruturadas. Não se trata de um “ambiente desestruturado”, no caso do opus 1, pois não há estruturas prévias reconhecíveis as quais poderíamos dizer: “muito bem, já ouvi isso em algum lugar, mas o que eu ouço aqui parece ser apenas os destroços ou restos daquilo que já ouvi outrora.”. Ou seja, tudo se passa como se o gesto do compositor de buscar procedimentos não sedimentados na tradição produzisse como resultado inequívoco uma composição que não possui capacidade de se 263 sedimentar. Uma composição cuja consistência não se estabiliza. Esse flutuar em que as cinco peças do opus 1 se encontram apenas é conseguido por duas ações: a primeira, conseguir um solo intersubjetivo através de uma configuração formal dada, digamos, por aquilo que é exterior à composição, ou seja, o opus 1 poderia ser caracterizado com um conjunto de Lieder que não quer ser visto como um conjunto de Lieder ; nisto consiste a segunda ação, compor cinco peças para soprano e piano , nas quais diferentemente da tradição de composição de Lied voz e piano soam como se não se relacionassem por determinações e aspectos musicais, mas simplesmente por ocuparem o mesmo espaço sonoro, constituindo uma paisagem indeterminada. Assim, começamos a ouvir e podemos dizer: “certo, vamos lá, trata-se um conjunto de Lieder ” e acabamos por nos perguntar: “mais isso foi um Lied , eram peças para piano e voz?”. Em suma, Adès compõe um espaço sonoro musical no qual não podemos quase reconhecer estruturas musicais que sustentariam a composição e, mesmo assim, a composição se sustenta sem apelar para o artifício da ironia e da desestruturação; conseguindo por fim inquietar o ouvinte para a questão: “como eu devo ouvir esta peça?”. Isto fica

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evidente em uma possível abordagem do opus 1. O que parece que podemos fazer é descrever os materiais utilizados e, no meio dessa descrição, permitir que a indagação pela relação entre a parte do piano e a da voz surja e percebamos: há uma possível descrição para a relação entre voz e piano, ou temos que primeiramente sentir o que ainda não pode ser pensado, não pode ser estruturado ainda? Isto na primeira peça do opus 1, New Hampshire , é facilmente observável. O piano começa com um motivo que se repetirá ao longo de toda peça e que consiste em uma passagem das notas do extremo agudo ao grave do piano, em pianissíssimo quase inaudível, no qual apenas se pode perceber o contorno rítmico sincopado, e a passagem flutuante do agudo ao grave. Tal motivo funciona apenas como efeito e é estranhamente esse efeito que se repetirá incansavelmente, e que pode nos dar a sensação de que esse ambiente preenchido de atmosfera é o mesmo sempre, pois a reiteração desse efeito que nos coloca 264 em um lugar comum. Esse motivo é seguido por contornos ascendentes que se articulam com um contraponto com uma voz que chega até as notas mais graves do piano oscilando ritmicamente entre mínima e semínima. Esse motivo que parte das notas mais agudas até chegar as mais graves, parece trazer a configuração de um 6/8 que é contraposto a essa outra voz que surge no agudo quando o motivo já se encontra nas notas graves que poderíamos dizer que se estruturaria em um 3/4; Adès consegue com isso criar um ambiente flutuante, pois a peça está a todo momento passando do agudo ao grave e do 6/8 ao 3/4, sem que possamos estabelecer uma identidade para as vozes, do tipo uma voz se articula em ambiência grave e em 6/8 em contraponto com a voz aguda que se articula em 3/4. E esse desencontro ficará ainda mais evidente no momento da entrada da soprano (Comp. 11). A voz entra subitamente interrompendo a terceira repetição do motivo, que fica pela metade, mas que nem por isso deixa de ter a caracterização de motivo; fica como um motivo atrofiado. Essa atrofia se produz na inesperada estabilização da música em acordes de mínimas pontuadas configurando um elementar 3/4. O movimento inicial da peça assim interrompido dá a impressão de que com a entrada da voz se terminaria um introdução mal construída. A Adés, para onde vão as notas? voz e o piano passam a executar tríades iniciadas em um quase acorde de lá maior. A voz então caminha por graus conjuntos na amplitude peculiar de uma terça. Na verdade há um movimento quase tosco nos primeiros compassos de entrada da voz. A voz grave do piano faz o movimento Lá-Fá#-Ré#-Fá#- Lá; a voz aguda do piano Dó#-Si-Lá-Si-Dó#; enquanto a voz executa Mi-Ré#-Ré-Mib-Mi. Esse movimento que desestabiliza completamente uma análise tonal desse momento, parece ser intensificada na negação da identidade daquilo que repete, quando em vez de outra tríade Fá#-Si-Ré#, aparece um Mi bemol sem nenhuma justificativa harmônica para tal modificação. A voz acaba sua frase e o piano reinstaura o motivo e a construção que já havia sido apresentada com algumas pontuais modificações. E desta vez, a voz só retornará interrompendo novamente o motivo após duas repetições. Desta forma, podemos eliminar aquela hipótese inicial de uma introdução mal construída, neste momento parece que há um motivo no piano que é a base da peça e que a voz estaria 265 em contraponto com esse motivo, submetendo-o a se configurar de acordo com o ritmo e o movimento diatônico da voz. Porém, essa expectativa é quebrada, pois agora apenas os dois compassos de entrada da voz se articulam pelas características da voz. Depois desses dois compassos, vemos até o compasso 65 uma sobreposição de voz e piano que parecem completamente desarticuladas, a voz em sua enunciação fixa em mínimas e semínimas em 3/4 e o piano repetindo seu motivo sincopado em 6/8. A partir do compasso 65, a reiteração de um Si# em colcheia e semicolcheia, prepara um momento de semi-estabilidade até o compasso 98. A partir daqui, o piano repetirá seu motivo fazendo a sobreposição do motivo propriamente dito com os materiais que configuravam o que se seguia ao motivo, mas organizado em movimentos descendentes e ascendentes mais delineados; enquanto a voz abandona o movimento que a havia caracterizado, em oposição ao piano, dos compassos 65-98. Tudo isso confluirá para um momento final em que o piano retoma a repetição de colcheia e semicolcheia em stacatto, mas também executa esboços do motivo que o caracteriza, sendo que para a repetição em stacatto é indicado na partitura uma letra que designaria o que as notas estariam cantando. Essa sobreposição entre dois

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conteúdos cantados, o da voz e o do piano (no caso, sem a emissão das palavras) ganham vida a partir do compasso 116, com a sobreposição dos dois cantos e do motivo do piano. Entretanto, tanto o motivo do piano, quanto a voz vão sendo abandonados em ppppp até só restar o piano repetindo notas ré em semínima e stacatto quase inaudíveis que ainda possuem paradoxalmente a indicação na partitura da letra que corresponde à melodia que o piano está tocando. Esse final articula uma dupla impossibilidade, tanto o motivo quanto a voz parecem ter sido meros acontecimentos que não souberam ganhar prevalência nem se articularem como estruturas, e ao piano, que coube expressar esse clímax lírico da peça que estaria indicado pela letra “O my little Alabama darling, do you want the stars to play with, the moon to run away with, O my little Alabama dool?”, só resta soçobrar os esforços diante das notas inaudíveis e sem possibilidade de pronunciar as palavras. Esse silêncio suspensivo do final é marcado como algo que deve ser percebido, pois Adès coloca uma fermata sobre a barra 266 dupla, o que indica que não se deve entrar na segunda peça do opus 1, sem que esse final estranho da peça seja plenamente sentido. No entanto, podemos dizer que a transdutividade dos procedimentos composicionais é alcançada por meio de uma exterioridade à metaestabilidade dos materiais empregados; isto porque a estruturação se dá por uma negação dos momentos estruturantes. A estruturação se dá por uma negação das determinações próprias à tradição do Lied . As estruturas avançam por meio de uma indeterminação que apenas se consegue como negação dessas determinações tradicionais. A questão que se configura desde o opus 1 pode ser enunciada da seguinte forma: como conseguir um tratamento transdutivo da metaestabilidade dos materiais sem que isso seja apenas uma negação cínica dos modelos de estruturação da tradição musical? Neste sentido, vale lembrar que na primeira peça do opus 1 produz-se uma atrofia melancólica das possibilidades expressivas quando, ao final da peça, o piano parece surgir como o emissor nostálgico da expressão de afecções por um espaço idílico e tal conteúdo expressivo evidencia seu limite aterrador completamente atrofiado: o piano deve expressar esse conteúdo (lembramos Adés, para onde vão as notas? que há uma letra indicada para as notas do piano na partitura) sem palavras e em uma intensidade de som inaudível. De todos os modos, tomei a peça do opus 1 mais extrema nesse aspecto, pois é ela que me parece melhor se relacionar com a questão supracitada. No entanto, poderíamos dizer que majoritariamente o que prevalece nas cinco peças do opus 1 são tentativas experimentais com uma multiplicidade de materiais. Todas as outras quatro peças ilustram isso bem, particularmente a última peça Cape Ann - uma peça que bem poderia ser escutada como uma homenagem a ária da Rainha da Noite da Flauta Mágica de Mozart -, na qual se evidencia uma maior complementaridade entre a parte do piano e a da voz. Porém, no ritmo frenético e onomatopaico em que se desenvolve a peça, com seus súbitos momentos lentos, o “quick” (rápido) que é tão repetido pela soprano parece não dominar o piano que articula seus motivos de forma gradual, apesar de acelerada; mesmo quando o piano produz apenas glissandos como efeitos para acompanhar a voz, esta 267 desaparece logo em seguida e adere ao tom lúgubre que o piano irá impor. Mesmo com essa adesão final, podemos dizer que voz e piano aparecem como puras intensidades que não respeitam uma estrutura que lhes é dada e nem conformam uma estrutura em sua relação. Enfim, o que todas as peças do opus 1 irão buscar é impingir ao material, enquanto um conjunto de multiplicidades, uma inserção em um espaço sonoro que resiste às estruturações. Algo similar ocorre em seu opus 4, Catch . Adès o caracteriza como uma peça de estudante, no qual o assunto que o preocupava era “porque as pessoas simplesmente não abandonam o palco?” (Ib, p. 54). O que é produzido com essa peça é uma encenação anacrônica da desestruturação que acomete não apenas a composição musical, mas às próprias convenções sociais da execução e configuração da música de câmara. Piano, violino e violoncelo encenam a tentativa de capturar o clarinete. As aparições instáveis dos quatro instrumentos articulam uma disputa irônica entre clichês musicais que termina com a domesticação do clarinete, sua captura. O clarinete é absorvido para a estrutura de música de câmara do trio quando já nada acontecerá, nem nada aconteceu, além de uma encenação da desestruturação. Outro

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exemplo de transdução abortada ou autoimplodida em procedimentos composicionais que constituem “ambientes desestruturados” por desagregação da metaestabilidade do material, pode ser encontrada em seu opus 2, Sinfonia de Câmara . No primeiro movimento, os pratos parecem convidar os sopros e as cordas para uma atmosfera jazzística desestruturada; no segundo movimento, os sopros não se caracterizam por motivos, melodias ou escalas jazzísticas ou esteriotipadas, apenas criam uma textura instável. Já o terceiro movimento, uma espécie de scherzo, parece exibir a esquizofrênia decorrente da tentativa de conjunção dos dois primeiros movimentos, ou de dois impetos composicionais distintos. Por um lado, a absorção de materiais fetichizado e clichês para subjulgá-los e submetê-los a um ambiente desestruturado que tende a uma organização do informe, por outro lado, o trabalho com materiais tentando impedir a tendência interna desse materiais de se 268 estabilizarem, seja em clichês, em estruturas tonais, ou em repetições que produziriam uma falsa coerência. A Sinfonia de Câmara parece encenar essa questão que animou as obras inicias de Adès: como desestruturar as formas e modos de organização do material que animaram a tradição, ao mesmo tempo, negando ou colocando em curto-circuito os procedimentos que produziriam tal desestruturação? Como experimentar novas possbilidades composicionais das multiplicidades do material se tudo parece soçobrar à desestruturação de um cinismo melancólico? Até este ponto tenho concordância com a crítica de Safatle. Penso que apesar das tentativas altamente inventivas de Adès de produzir problematizações e instabilidade nos “ambientes desestruturados”, subsiste um cinismo composicional que mantém a “Ordem” e tende a uma organização convencional apesar da descrença manifesta. O material é almejado em sua metaestabilidade, mas os procedimentos composicionais beiram uma consistência niilista, ou seja, podemos dizer que Adès apenas consegue tratar, inicialmente, a metaestabilidade dos materiais com procedimentos desestruturantes. Uma descrença generalizada que, apesar de produzir experimentações interessantes e relevantes, não consegue afirmar as potências estruturantes da Adés, para onde vão as notas? metaestabilidade do material – uma perspectiva digna dos piores momentos de Stravinsky. Assim, podemos mencionar rapidamente que algo similar ocorre em outras peças de Adès. Em seu opus 6, Under Himelin Hill , no qual tenta forçar o órgão a produzir sonoridades e construções irônicas que desestruturem os tratamentos historicamente convencionais dos timbres desse instrumento. Em seu opus 9, Living Toys , em que a descrição metafórica de Safatle me parece precisa: “formas que são destruídas da mesma maneira que uma criança destrói brinquedos e depois tenta remontá-los à força” (SAFATLE, 2008, p. 200). Em Arcadiana, na qual aparecem muitos fragmentos que serão recuperados e reconfigurados em obras posteriores, mas que mais parece uma sistemática ironização destrutiva de motivos rítmicos e melódicos que configuram as estruturas da barcarolla, da valsa, do tango e do adágio. Em Darknesse Visible , um belo esgarçar do material produzido no piano com base na canção In darkenesse let me dwell de John Downland. Já 269 Life Story , seu opus 8, parece uma homenagem destrutiva à tradição de canções de Gershwin e dos musicais estadunidenses, um distanciamento humorístico dos personagens que enunciam suas situações melodramáticas – nesta composição já podemos notar um trabalho de passagem da encenação da desestruturação dos instrumentos para os personagens que culminará em sua primeira ópera Powder her face (1995) que comentaremos adiante. Neste conjunto de obras anteriores a 1997 – o que poderíamos chamar de um primeiro grande momento composicional de Adès, anterior a Asyla – se encontram também, por um lado, obras com um sabor neoclássico pós-moderno – se é que esta expressão tem algum sentido - como Sonata da Caccia , opus 11, e The Origin of the Harp, opus 13; por outro, ...but all shall be well e These Premises are Alarmed, peças que se configuram como interessantes experimentações com a metaestabilidade do material, mas ainda procedendo por justaposição de elementos que mais demonstram uma desestruturação entre si do que um estruturação transdutiva, como ocorrerá com algumas obras dos anos 2000. Entretanto, vale destacar aqui duas coisas: primeiro, é digno acentuar o caráter altamente inventivo e as buscas

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experimentais que configuram as primeiras composições de Adès; além de conseguirem resultados interessantes, servem para o compositor se desafiar, pensar e inventar novos modos de trabalhar com a instrumentação e, principalmente, com a textura do material - desde a composição para coro e órgão em seu opus 3, Grefiolsae me , até todas as formações com as mais distintas configurações instrumentais. Em segundo lugar, vale salientar que, se nos mais diversos conjuntos instrumentais Adès está buscando modos de trabalhar com a metaestabilidade do material sem sucumbir a clichês e a usos irônicos e meramente negativos de procedimentos desestruturantes – como é o caso evidente das modificações do uso dos sopros -, em suas composições para piano – instrumento com o qual inclusive Adès começa como solista – há um domínio de procedimentos mais criativos, no sentido de uma trabalho próprio e não cínico, para trabalhar com o material. 270 Podemos dizer que a transdutividade buscada por Adès – enquanto maneira de descobrir o tratamento dado aos materiais processualmente - é, de certa forma, alcançada em composições como Still Sorrowing e Traced Overhead. Still Sorrowing , seu opus 7, uma peça para piano preparado - com a particularidade de que os objetos colocados sobre as cordas, para produzir a alteração da sonoridade e criar o efeito percussivo, são trocados de lugar durante a execução da peça pelo assistente do pianista – se configura como uma composição na qual Adès conseguiu trabalhar com os materiais de um forma inteiramente nova, inclusive não utilizando possíveis gestos típicos de composições para piano preparado. O mesmo ocorre com Traced Overhead , seu opus 15 , esta peça para piano consegue diluir certos clichês comuns à composição serial para piano, principalmente em seu primeiro movimento de menos de um minuto. Já o terceiro movimento, apesar do uso ocasional de escalas impressionistas, se caracteriza por meio de um procedimento que será chave para os resultados texturais das composições de Adès, principalmente em suas peças para piano. Este procedimento - que pode remeter suas origens ao Estudo para sonoridades opostas de Debussy - trabalha nos âmbitos extremamente grave e agudo do piano fazendo com que a instabilidade interna ao sistema temperado Adés, para onde vão as notas? de afinação ganhe pujança. Isso somado ao uso constante de pianíssimos no agudo e no grave que tornam as notas inaudíveis quase entregues à pressuposição; procedimento que também se afasta das mudanças abruptas de intensidade características da justaposição dos materiais. Por outro lado, o quarto movimento de seu opus 2 e alguns momentos de seu Concerto Conciso já apontam para uma mudança de perspectiva no trabalho com os procedimentos composicionais. Podemos dizer que nas obras iniciais o compositor ainda se encontra “colado” a metaestabilidade dos materiais. Adès - como eu trouxe no início do ensaio - não aceita se filiar a uma escola composicional, a uma linha com pressupostos estéticos e poéticos rígidos, a um estilo que se sobrepõe a imanência do material. Interpreto isto como um paradoxal respeito aos desejos do material, isto porque, ao mesmo tempo em que Adès parece submeter o material aos seus mais diversos ímpetos inventivos, ele também não aceita que a consistência de suas composições se dê a partir de 271 concepções que sejam exteriores ao material e que, de algum modo, estabilizem-o. Serão dois procedimentos que permitirão a Adès descobrir modos transdutivos para trabalhar com o material. Por um lado, o 4° mov. da Sinfonia de Câmara parece apontar um procedimento que irá imperar em muitos dos movimentos lentos e finais de composições da primeira década do século XXI (ADÈS & SERVICE, 2012, p.44). Trata-se de uma estruturação como um zoom out , uma visão áerea que vai se afastando de uma perspectiva localizada dentro do conflito (3° movimento), quase como um discurso indireto livre, para perceber a fragilidade da estruturação do material. Tudo se passa como se Adès começasse a descobrir que as tendências do material metaestável podem apontar para uma estruturação que não se fecha em si mesma, mas que é, ao mesmo tempo, sedimentação e projeção de um avanço de novas estruturações. É como se Adès, descolando-se minimamente da imanência metaestável do material, percebe-se ali sua potência transdutiva. Como se, paradoxalmente, os desejos do material fossem contrapostos a suas próprias tendências imanentes para que pudessem produzir modos de avançar em uma processualiade não mais desestruturante. Por outro lado, os três movimentos do Concerto Conciso parecem encenar uma

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mudança de tratamento do material. Se assim como em outras composições, Adès se serve de clichês, principalmente nos sopros, sua justaposição desestruturante se dissolve na textura musical. Como diz João Rizek: “A textura muda mais rápido que o ritmo (a arma secreta do compositor) que se constrói das métricas mais inusitadas” (2012, p. 244) 4. O trabalho com a textura será o que paulatinamente o compositor descobrirá para mudar de perspectiva com relação ao tratamento da metaestabilidade do material. Para obter complexidade textural Adès tem que se distanciar do material para poder abordá-lo de uma perspectiva suficientemente exterior, impingindo a ele funções e procedimentos que não são imanentes aos seus desejos, às suas tendências, mas que o permitem se estruturar de maneira transdutiva. Asyla é, a meu ver, a obra na qual essa mudança de perspectiva se efetua propriamente. A terceira obra pra orquestra do compositor, de uma complexidade orquestral 272 imensa, insere o compositor na tradição sinfônica de maneira bastante singular. O modelo dos quatro movimentos de uma sinfonia é, no geral, seguido. O 1° mov. é uma curiosa tentativa do compositor de compor uma chacona inspirada em Couperin e em Bach. Adès diz que nesse movimento ele parte da composição da melodia das tubas e na sequência, ao ir avançando na harmonização, vai descobrindo que o trato com o movimento do material melódico impedia que a composição se tornasse uma chacona. Frente a essas inadequações, ele não as abandonas mas vai produzindo uma complexidade textural que capture a instabilidade surgente, não mais da justaposição de materiais que não se adequam, mas de inadequações que existem na simultaneidade do material em sua composição textural. Adès afirma: “Eu respondia a uma instabilidade com

4 Um exemplo claro disso é o 1° mov. dessa obra. Nela podemos afirmar que as modificações na textura impedem que os clichês, ou quase-clichês, apresentados pelos metais se estabilizem configurando um “ambiente desestruturado”. [Agradeço a João Rizek por preciosas conversas, nas quais pudemos discutir muitos dos pontos abordados na primeira versão deste ensaio – de 2012. Uma troca de impressões, percepções e análises orientadas pela inquietação de novas possibilidades sensitivas que acreditamos estarem abertas para algumas das composições de Adès.] Adés, para onde vão as notas? outra, e isto poderia assemelhar-se a um salão de espelhos” (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 9). O material é posto no meio desse “salão de espelhos” e seu desejo metaestável produz imagens instáveis que são capturadas pelo compositor como uma textura que une consistentemente essa multiplicidade reflexiva; os ritmos, efeitos e motivos ficam como um resto latente que não foi determinado nesse jogo de espelhos, eles ficam como um conjunto de potenciais não captados pela textura e que fazem avançar novas estruturações; este descompasso entre a sedimentação dos desejos do material metaestável em uma textura complexa, ao mesmo tempo, em que um resto, um conjunto de potenciais, impulsiona novas produções texturais – a tudo isto podemos chamar de um procedimento composicional transdutivo. O 2° mov. que, segundo Adès, está baseado na Sinfonia em ré menor de Cesár Franck (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 34), consiste basicamente em uma melodia principal que efetua uma longa descida alternando intervalos grandes e pequenos 273 tocados pelo obóe baixo ou heckelfone. Aqui se configura outro procedimento que será muito utilizado nas composições subsequentes, trata-se de construir melodias a partir de sonoridades que soam artificialmente na estruturação da textura 5. Como se, na nossa metáfora do salão dos espelhos, entrasse um material que os espelhos não conseguem capturar e que, no entanto, altera a própria textura, pois soa como um resto interno à própria configuração textural. Podemos dizer que Adès o toma como um procedimento composicional em analogia ao funcionamento do piano preparado. Adès, ao escolher certos instrumentos para a orquestração, prepara-a para produzir sons artificiais na própria configuração textural que produz. A ideia de “orquestra preparada” poderia parecer

5 Esta formulação parte das impressões tão distintas que tal uso do oboé baixo produziu em Richard Taruskin e no maestro Simon Rattle. Acredito que Taruskin exagera ao sugerir que tal sonoridade artificial produziria certa descontinuidade temporal que remete aos procedimentos da produção surrealista (TARUSKIN, 2011, p.9). Se tal procedimento é capaz de produzir uma atmosfera onírica, as texturas que ele compõe não estariam próximas às imagens bem comportadas de Dali em Persistência da Memória , mas, sim, às de O Jovem Homem Triste num Trem de Duchamp.

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absurda se esses efeitos que são obtidos fossem apenas efeitos e não se inserissem como sonoridades artificiais que desestabilizam a composição textural. 6 O 3° mov., Ecstasio , causou polêmica pelo compositor utilizar um tecno como forma de composição para o scherzo de uma sinfonia. No entanto, para além da inventidade orquestral surpreende – influenciada por Wagner e Mahler (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 58) -, uma crítica poderia ser feita com relação à perda de complexidade textural e a estabilização produzida ali. Não se trata de problematizar a euforia da peça que representaria um ambiente de balada londrino de modo fetichizado, primeiramente, porque descrições dessa natureza, como a do crítico musical Alex Ross são normalmente apressadas e acabam transformando a composição em uma reprodução de um ambiente no qual começam a surgir “ritmos marcantes, corporais, apupos, assobios, o ruído de multidão, a emoção e o perigo do contato corpóreo” (ROSS, 2009, p.560) 274 que dificilmente são encontrados na peça. O crítico parece ter mais vontade de estar numa balada do que numa sala de concerto. Por outro lado, críticas como a de Safatle (2008) perdem de vista que, se há utilização de materiais fetichizados, ela não produz em Ecstasio um ambiente desestruturado, pelo contrário, produzem um ambiente demasiadamente estruturado. Minha crítica à consistência desse movimento diz respeito à perda da metaestabilidade do material. Aqui a textura está estruturada a partir do ritmo, não há a defasagem que encontramos nos dois primeiros movimentos, e isto produz uma estabilização no material. Na verdade, aqui encontramos um dos poucos momentos em que Adès se cola ao material fetichizado com euforia na estruturação. Até mesmo a artificialidade das sonoridades surge como esperada e previsível aqui, e totalmente inserida na textura.

6 Deleuze e Guattari oferecem preciosos apontamentos para pensarmos essas questões, principalmente nos capítulos sobre o Ritornelo e no sobra a Máquina de Guerra de Mil Platôs. Para uma versão resumida e mais propriamente musical, ver: DELEUZE, 2005, p. 319-381. Adés, para onde vão as notas?

O 4° mov. ainda me é bastante enigmático, não consigo compreender muito bem sua função no interior da composição. De todos os modos, uma possível interpretação seria a de que Adès está buscando produzir um movimento de síntese dissolutiva a maneira de algumas sinfonias de Mahler. No entanto, aqui, Adès não produz uma complexidade textural como a do 4° mov da Quinta Sinfonia de Mahler, mas uma justaposição como a de quem passeia por uma exposição de quadros, de sonoridades – impressão que poderia ser balisada pelos usos de materiais provenientes dos Quadros de uma Exposição de Mussorgsky, por exemplo, a citação literal do intervalo característico do The Gnome no compasso 60. De todos os modos, os dois últimos movimentos de Asyla parecem perder a consistência transdutiva alcançada nos dois primeiros e com isto a metaestabilidade do material tem, de certo modo, sua potencialidade estabilizada. Veremos agora como essa vacilação caracterizará muitas das obras subsequentes de Adès. Concentrar-me-ei agora em composições que podem 275 nos apontar para possíveis respostas para a questão que propus no início desta seção. São estas: Tevot , Polaris , In the Seven Days e Concerto para Violino . Assim como esta última, há ainda outras composições nas quais Adès retoma formas e formações da tradição, são elas Quinto para piano, Mazurkas e o quarteto de cordas The four quarters. Juntamente com as duas óperas que comentaremos no excurso e a sinfonia Asyla , todas estas composições marcam um curioso retorno do compositor às formas tradicionais. No caso do Quinteto para Piano , a forma sonata volta a estruturar completamente os materiais, que parecem buscar em toda peça o que Adès chamou de nota fetiche (Ib, p. 47-51), no caso um Mi#. O violino inicia a peça perdido nessa nota fetiche, quando o piano entra, é a chance de o conjunto organizar a exposição. Essa grande forma sonata que ocupa três movimentos, teria a particularidade de possuir dois desenvolvimentos. Todavia, a inserção dessa alteração não faz com que a peça seja sentida como desestruturada, pelo contrário, intensifica a sensação de que mesmo escapando a estrutura tradicional da forma, esta rebeldia já está estruturada de antemão, já é antevisto no trabalho com o material um segundo desenvolvimento. A peça apenas se torna mais caricata com a justaposição de uma espécie de intermezzo

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completamente desestruturado entre os desenvolvimentos. Já nas Mazurkas o modelo de Adès, como este mesmo afirma, é Chopin: “Eu tentei fazer com o ritmo o que Chopin faz todo o tempo com a harmonia e a melodia; ele está sempre deslizando para longe de você” (RIZEK, 2012, p. 244). Resultam três peças muito similares entre si, caso raro nas obras de Adès, em que as melodias deslizam configurando texturas que se dissolvem. Antes de abordarmos brevemente as principais obras da primeira década do século XXI – Concerto para Violino, Tevot, In the Seven Days e Polaris – retomemos a questão que nos propusemos inicialmente: Adès consegue constituir uma consistência metaestável no tratamento dos materiais com a utilização de procedimentos composicionais transdutivos? Ou, dito de outro modo, qual a consistência do campo problemático formado pelos problemas da metaestabilidade do material e da transdutividade dos procedimentos composicionais na obra de Adès? Resumindo o que vimos até agora, podemos dizer que 276 Adès, desde suas primeiras obras, possui a preocupação de garantir que os desejos do material não se estabilizem em sua imanência, mas sejam magnetizados, instabilizados, tornando- se assim um sistema de relações metaestável. Dito de modo muito geral, o problema inicial é que Adès não consegue abordar a metaestabilidade do material sem proceder por justaposição criando ambientes desestruturados. Como se necessariamente, frente à metaestabilidade do material, as estruturações possíveis apenas pudessem ser destrutivas, irônicas ou caóticas – obtém-se a ordenação consistente dos materiais por meio da desordem. No entanto, por meio de dois procedimentos – um distanciamento da imanência metaestável do material e a composição de texturas transdutivas – o compositor consegue uma nova consistência para o tratamento com o material. Podemos descrevê-la da seguinte forma: a composição de texturas transdutivas com a metaestabilidade do material permite que um resto de indeterminação imanente ao momento estruturante seja o impulsionador de novas estruturações. A textura não forma imagens estáticas, mas é, ao contrário, uma imagem em movimento. Entretanto, se podemos responder nossa questão dizendo que Adès encontra uma consistência metaestável com os procedimentos de composição de texturas transdutivas, temos ainda que nos Adés, para onde vão as notas? perguntar se o campo problemático configurado por essa consistência não se estabiliza na repetição de procedimentos que constituem uma imagem estática – o cosmos como Tom Service surgere (Ib, p.171.). Como pretendo defender na sequência, Adès encontra imagens que conformam a transdutividade dos procedimentos texturais e, com isto, perde a metaestabilidade do material. A música enquanto realidade metafórica – um conjunto de sistemas de referências distintos – cede lugar à predominância de um sistema de referencia: a consistuição de imagens que descrevam e sejam o cosmos, sem movimento. No Concerto para Violino , o arpejo domina quase toda a peça, enquanto a orquestra parece produzir efeitos de fundo sempre organizando uma imagem sonora circular. Já em Tevot – obra pensada a partir da estória da Arca de Noé -, Adès descreve seu procedimento chave da seguinte forma:

277 Eu gostei da ideia de que as barras de compasso estavam carregando as notas como uma espécie de família através da peça. E elas fazem, porque sem barras, você provavelmente teria um caos musical. Mas eu estava pensando sobre a arca, o navio, na peça como a terra. A terra poderia ser uma espaçonave, um barco que nos transporta – e várias outras espécies! – através do caos do espaço em segurança... é a ideia do navio do mundo. 7

Analisando a peça podemos perceber que os materiais permanecem avançando em sua processualidade transdutiva, mas, isto, apenas se submetidos a efeitos para conformarem certas imagens ou narrativas. Essa estabilização imagética ganhará seu correlato harmônico. “O mundo está em Lá Maior” (Ib, p. 161). Adès faz esta afirmação no seguinte contexto: Tom Service sugere que a música final de Caliban 8 em The Tempest e

7 Citação de Adès no texto de Tom Service para o encarte do CD – Adès – Tevot – Violin Concert. (EMI Classics). 8 Personagem que na ópera de Adès fica sozinho quando no final todos abandonam a ilha, conseguindo assim realizar seu desejo mais profundo de ser o rei da ilha.

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o momento de maior estabilidade do Quinteto para Piano se estabilizam em um Lá Maior; Adès, então, diz que o mesmo acontece no final de Tevot e Polaris . Em In The Seven Days e Polaris , os procedimentos e a consistência metaestável que antes produziam texturas instáveis são tematizados nas obras e passam a configurar a própria imagem sonora dessas composições. Nada mais improdutivo estética e politicamente do que se circunscrever e se submeter a uma autoimagem . Em Polaris , o magnetismo – nome que Adès dá muitas vezes para seu tratamento com os desejos do material - é o procedimento que organiza a peça, mas é também aquilo que parece querer apreender a textura e a metaestabilidade do material em uma imagem.

Essa peça de Thomas Adès foi escrita para orquestra de maneira a incluir naipes de metais que podem ser isolados do palco. Esses instrumentos tocam em cânone, uma vez em 278 cada uma das três seções da peça, entrando na ordem do mais agudo (trompete) ao mais grave (tuba). Essas melodias, assim como tudo nessa obra, derivam de uma série- magnética – um dispositivo musical ouvido aqui pela primeira vez – na qual todas as doze notas são gradualmente apresentadas, mas de maneira persistente retornam a uma nota de apoio, como que magnetizadas. Com a aparição da décima segunda nota, claramente marcada pela entrada dos tímpanos, os polos são invertidos. No início da última seção, um terceiro polo é descoberto, estabelecendo um equilíbrio estável com o primeiro. (JONES, 2011, p.11)

Essa descrição de Jones nos faz perceber que o que antes organizava texturalmente o material se transforma em dispositivo central que configura a totalidade de sentido da obra. Os “objetos magnéticos” vêm à frente da cena e estruturam a obra, estabilizando-a. No caso de In The Seven Days , o surgimento do material como algo metaestável que tende à estabilização ou a total organização é tematizado. “Eu estava simplesmente contando aquela história – a história dos materiais e também do ‘material’, tudo isto, no mundo. Isto é um ponto de encontro Adés, para onde vão as notas? entre ciência e religião” (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 31). Aqui poderíamos dizer que temos um procedimento paranoico que quer contar a estória do surgimento do material para garantir que ele realmente se configura enquanto realidade metaestável. Nessa obra, acreditamos que Adès chegou ao limite do paroxismo, ao fazer com que sua composição seja uma metacomposição, ou seja, que sua composição retome um procedimento típico de certa forma crítica moderna, a saber, fazer com que a estrutura apareça, ganhe relevo. Porém, o paroxismo encontra-se no fato de que aquilo que se pretende como metaestável coincida com a estabilidade que configura a obra, e, neste contexto, só podemos dizer que a estrutura da peça é negação da estrutura, que a estabilidade é a negação da metaestabilidade, e só podem coincidir em uma autoimagem espúria. 9 Sintomático também é o fato de que Polaris e In The Seven Days são obras não apenas musicais, mas também realizadas com vídeo. Ambas se constroem de música e imagem. E nesse sentido não creio ser difícil afirmar que essas obras de Adès encontraram exatamente o que estavam 279 buscando: a estabilização de seu sentido em imagens, mesmo que abstratas. O que para Adès é justamente a vitalidade de suas peças, o fato de a metaestabilidade do material advir intuitivamente imagens e sensações, é o que paralisa a processualidade transdutiva que podia garantir a metaestabilidade do material de modo consistente. Curiosamente, a música deixa de ser metafórica quando uma imagem fixa suas possíveis apreensões de sentido . O que podemos perceber é que a configuração de uma textura transdutiva é confundida com a configuração de um espaço visual e isso faz com o fluxo produtivo de um devir metaestável se estabilize em algo que poderíamos chamar de uma imagem sonora totalizante. Veremos que o impulso por configurar imagens, que já se anunciava na coincidência – que abordaremos no excurso - entre personagem e material em The Tempest (2003), fará com que Adès acabe antecipando o impulso formal ao desejo dos materiais, criando assim fotografias desbotadas.

9 Não me parece sem relevância dizer que esta talvez seja a obra em que Adès mais se aproxima de um minimalismo de compositores como Philip Glass.

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Gostaria de concluir dizendo que me parece que Adès constituiu um campo problemático muito relevante com suas composições. Tentei me aproximar desse campo problemático por meio de dois aspectos que me pareceram fundamentais ali: a metaestabilidade do material e os procedimentos composicionais transdutivos. Creio que com a efusiva inventividade de suas composições Adès produziu, em seus melhores momentos, um tipo de tratamento do material, por meio de um trabalho transdutivo com as texturas, que aponta para possibilidades consistentes que não mais se enclausurem em dicotomias como música tonal e atonal, serial e pós-serial, etc., que pareceram dominar o debate da composição e da Estética Musical da segunda metade do século XX. Acredito que quatro aspectos que abordei neste ensaio possam ser produtivos para que encontremos na música novos potenciais de transformação das sensibilidades e das relações sociais, são eles: o material tratado enquanto sistema metaestável; a busca de procedimentos transdutivos que forcem o pensamento 280 composicional a não se fixar em lógicas dedutivas ou indutivas, mas que criem uma lógica transdutiva consistente para cada obra; a aposta na textura como uma das maneiras de conjugar consistentemente os dois aspectos anteriores; por último, e talvez o mais importante, que o compositor não se feche em uma autoimagem, mas se abra ao gesto ético de apostar todos os possíveis, em cada composição, em transformar suas formas de sentir e de pensar.

Excurso: duas óperas

Por fim, gostaria de contrapor as duas óperas de Adès: The Tempest e Powder her face . Se naquela, a crítica que construí anteriormente pode se exacerbada, pois ela encena a configuração da ópera com o material transformado em personagem, na qual cada personagem passa a ser uma imagem sonora, um conjunto funcional que produz a organicidade da obra como um corpo construído a partir de seus personagens- funções; em Powder her face , surge a possibilidade de uma forma crítica das relações sociais por meio de um potencial mimético de exibir a aparência dos personagens como um Adés, para onde vão as notas? exagero de aparências que soçobram, desamparados na composição e na vida social. Em The Tempest, “os personagens não existem sem o material” (ADÈS & SERVICE, 2012, p.11), pois a ópera é construída pelo seguinte procedimento: se designa um complexo harmônico para cada personagem, e se compõe a partir da interação desses complexos. Dessa forma, tanto os personagens, quanto os materiais tornam-se “cascas vazias”. 10 Então, poderíamos dizer que, na verdade, é o material que não existe sem os personagens. É criada uma imagem sonora para cada personagem e a ópera seria, então, a dramatização estéril desses fluxos de intensidades. Nesse sentido, a reconciliação dos personagens no fim da ópera não é uma mera reconciliação no assunto, mas é também uma estabilização dos materiais através de uma reconciliação dos complexos harmônicos. Se a lógica de tratamento do material em The Tempest é a da consolidação de complexos harmônicos que sejam próprios aos personagens que são usados como funções 281 composicionais, em Powder her face , a lógica do empréstimo, da constituição de um material e de personagens para os quais parece que nada lhes é próprio, configura outra lógica de estruturação.

Havia um sentimento de Alice no País das Maravilhas, naquela ópera [Powder Her Face]. Eu ia escrever alguma coisa, que sugeriria empréstimo, eu iria forçar aquele empréstimo a aceitar meu próprio idioma e levá-lo a um ponto absurdo de distorção e de lá, ainda outra música poderia irromper. É uma lógica de sonho, eu suponho. (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 27)

Adès explicita nessa citação o que caracterizou seu trabalho com os materiais. Se muitos materiais seriam roubados – há todo o tipo de empréstimos desde um tango e

10 Devo a uma conversa com Lorenzo Mammì a bela expressão “cascas vazias” para descrever os personagens desta ópera. Também gostaria de tornar manifesto meu agradecimento a ele por tornar possível meu contato, em 2012, com partituras do compositor.

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uma canção melosa dos anos vinte, até passagens de O Cavaleiro da Rosa de Strauss, do The Rake-‘s Progress de Stravinsky, da Flauta Mágica de Mozart, entre vários outros –, no entanto, eles receberiam um tratamento que os submeteria às vontades do compositor. É o que ocorre, por exemplo, com o Tango que se apropria de um tango de Gardel alterando completamente a harmonia que o informa, ou, no caso da canção dos anos vinte cujo modelo é uma canção de Jack Buchanan, completamente alterada. Contudo, quando o compositor submete o material emprestado às suas vontades ele não o faz produzindo estabilidade, transformando o material em um complexo sonoro que seria próprio a cada personagem. Ele o faz levando-o ao limite da distorção, da desestruturação, isto porque para aqueles personagens toda fala é um empréstimo, é um conjunto de aparências que só podem resultar em mais aparências. O mundo para esses personagens só pode ser uma realidade ilusória que aparece distorcida e se propaga em novas aparências que vão 282 sustentando seus paulatinos desabamentos – a música tem a potência mimética de captar essa situação. Esses aspectos ficam evidentes no assunto da ópera:

Powder Her Face , por exemplo, é sobre alguém que se entregou a reclusão, porque em sua vida uma porta foi se fechando em seguida da outra e a Duquesa aprisionou-se a si mesma em todo apartamento, então, ela se retira para um mundo de perfume e fantasia e memória. A instabilidade na peça vem de uma lacuna entre o que ela quer lembrar e o que realmente aconteceu, porque ela vê tudo como um glorioso espetáculo, mas esta não é a verdade. Sua estrutura de negação, a mentira que ela construiu, começa a desabar enquanto a noite decorre. A ópera é uma forma enfadonha de transmitir isto, mas a extravagância é o ponto. Eu acho que na época eu estava fascinado pela gratuidade da música. (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 60-1)

Adès constrói a ópera submetendo todos os materiais a um uso extravagante e enfadonho. As falas das personagens normalmente são exageradas e grotescas, Adès obtém esse efeito da seguinte forma: são quatro personagens, a duquesa Adés, para onde vão as notas? sempre entoa melodias lentamente com passagens do grave ao agudo em uma voz que aparenta ser a voz de alguém que está em outro mundo; a empregada possui uma voz caricata com chilreios agudos e com uma risada descontrolada que em vários momentos aparece na ópera, contaminando a orquestra; o eletricista sempre terá uma voz melosa que se quer sedutora e carregada como se apresenta no momento em que esse executa a canção de amor dos anos vinte; e o gerente do hotel terá a voz explorada em notas graves que muitas vezes mal podem ser emitidas sem parecerem um grotesco arroto, e quando está representando o juiz tem um emissão carregada de força excessiva e de uma variação entre agudos e graves que torna seu discurso mais caricato ainda. Apenas a duquesa possui o que poderíamos entender como uma “identidade fixa”, apesar de ser uma identidade que tenta, a todo momento, se afirmar em um retorno nostálgico a um passado que nunca foi da maneira como ela o recorda. Os outros três personagens se encontram, por assim dizer, em função da duquesa, se não estão designados no libreto da seguinte forma “Emprega como 283 Garçonete”, “Eletricista como Garçom”, “Gerente de Hotel como Duque”, eles já são apenas os funcionários do hotel que na perspectiva da duquesa (e é exatamente isso que vemos na última cena) nunca deixaram de ser meros serviçais que tiveram a honra de servi-la. O universo todo da ópera é construído como se todos fossem meras aparências para a duquesa, sendo essa também uma mera aparência da imagem que ela possui de si própria. A ópera começa como uma paródia e termina com aspectos trágicos, mas sem nunca perder a extravagância – mimese de nossa realidade social. O que começa com o “Eletricista como Duquesa”, ele se pintando e cantando melodramaticamente sobre como foi traída e sobre o tempo em que todos a amavam e compunham canções para ela, termina com o trágico destino de uma personagem, agora a própria “Duquesa” que, apartada de tudo e de todos, não consegue se livrar da fantasia que criou para si mesma de glamour e beleza. Tanto na música como na dramaturgia o que temos são personagens desconectados das imagens que tem de si, músicas desconectadas de suas estruturas e de seus contextos próprios, resultando em personagens e materiais que não são

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mais do que meros reprodutores de estruturas sociais já determinadas. Isso faz com que toda a ópera seja composta de aparências, mas aparências que se manifestam como aparências que estão no limite do instável e de revelar a instabilidade que configura sua realidade social. Essa ópera consegue alarmar sensibilidades críticas para a monstruosa racionalidade que sustenta a sociedade cínica em que vivemos, na qual todos só podem ser apenas aparências das aparências que desejam ser 11 .

Referências bibliográficas ADÈS, T. & SERVICE, T. Thomas Adès: full of noises: conversations with Tom Service. New York: Farrar, Straus and Giroux Books, 2012. CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. DELEUZE, G. Derrames - Entre el capitalismo y la esquizofrenia. Buenos 284 Aires: Editorial Cactus, 2005. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia v. 3 e 5. São Paulo: Ed. 34, 1999. JONES, P. Polaris: Viagem para Orquestra. In: Revista OSESP – Especial Thomas Adès , 2011, p. 11. RIZEK, J. Adès: Anthology. In: Música Hodie , Goiânia, V.12 – n.1, 2012, p.243-245. ROSS, A. O resto é ruído – escutando o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SAFATLE, V. O esgotamento da forma crítica como valor estético. In: Cinismo e falência da crítica . São Paulo: Boitempo, 2008.

11 Remeto aqui a um ensaio de Vladimir Safatle que pensa, de modo mais geral, algumas das questões que tentei trazer com as óperas de Adès. Podemos dizer que o filósofo aborda três afetos como núcleos de organização política da vida social: a angústia sem objeto (muito similar a que acomete aos personagens de Powder her Face ), a insegurança social e civil (que produz a sujeição de boa parte dos indivíduos em nossa sociedade) e o desamparo como insegurança ontológica que abre os corpos para processos de transformação por incorporação do que é indeterminado. Cf.: SAFATLE, 2015, p. 47-97. Adés, para onde vão as notas?

____. O circuito dos afetos – corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. SIMONDON, G. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information . Grenoble: J. Millon, 2005. ____. Communication et information : cours et conférences. Chatou: Editions de la Transparence, 2010. ____. L’invention dans les techniques : cours et conférences. Paris: Seuil, 2005. ____. Dos lecciones sobre el animal y el hombre . Trad. T. Pizarro e A. Cangi. Buenos Aires: Ediciones La Cebra, 2008. ____. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 2008. ____. Cours sur la perception : 1964-1965. Chatou: Éditions de la Transparence, 2006. TARUSKIN, R. Um compositor surrealista vem resgatar o modernismo . In: Revista OSESP – Especial Thomas Adès , 2011, p. 5-9. 285

Música e filosofia em Noites florentinas de Heine 1

MARCOS BRANDA LACERDA

o contrário de outras nações da Europa, a Alemanha A carecia nos tempos de formação da modernidade de um centro prevalente de irradiação de valores culturais. Equipamentos e atividades artísticas diversas eram distribuídos por suas várias regiões e cidades do território germânico que, com exceção da Áustria, compunham as nações que viriam a passar pelo processo de unificação no Século XIX. Desta maneira, formaram-se centros relativamente equânimes em importância cultural de acordo com a independência de unidades administrativas menores, como principados, condados, bispados etc. Tem lugar aí um sistema baseado na concorrência entre pequenos centros de poder, ao qual Norbert Elias atribui grande importância para a formação do volume de práticas musicais na Alemanha de séculos passados. Ao ser posto para fora de Salzburgo, Mozart, por exemplo, não teve problema em dar continuidade a seu trabalho, já que aquela autoridade tinha alcance administrativo limitado. Isso se estendeu por quase todo século XIX. Se Schoenberg se referiu certa vez à “supremacia da música germânica”, isto tem como pano de fundo as relações econômicas estabelecidas nos séculos XVIII e XIX a partir dessa realidade. Em outras palavras: é real um certo tipo de superioridade alemã sobre os demais países da Europa (e do Ocidente em geral) no que tange às práticas musicais eruditas do século XVIII ao XIX. Esse fato parece justificar o imenso esforço que faz o Estado alemão para sustentar ainda hoje o que é certamente um dos maiores e mais dispendiosos aparelhos de ensino musical devotado à prática erudita, tradicional e contemporânea. Perguntamos se essa práxis traz junto de si também o conjunto de ideias que formaram o espectro filosófico que

1 Todas as traduções são de responsabilidade do autor, salvo as indicadas nas referências bibliográficas. Música e Filosofia em Noites Florentinas acompanhou o surgimento do espírito romântico, quando a atividade musical na Alemanha se tornou particularmente aguda. Após a formação de um conjunto razoavelmente articulado de ideias representado pelo Sturm und Drang ao final do século XVIII, desfila no campo filosófico uma série de conceitos explicativos de uma cisão com a materialidade das coisas e da arte com aquilo que é exterior ao sujeito. Está por trás disso uma justa crítica à sobreposição de valores iluministas para o exercício das artes. No pensamento radical de Fichte dá-se valor agora a conceitos como intuição intelectual , imaginação produtora ; um individualismo (o Eu Absoluto, o Ser Incondicionado, isto é a individualidade não influenciada pela experiência no mundo real) passa a ser invocado como forma de acesso ao conhecimento verdadeiro, independente das realidades empíricas. Menciono aqui a apresentação desse estado de coisas realizada por Bornheim:

Na Teoria da Ciência ”, a mais importante obra de Fichte, “o 287 que mais apaixonou os românticos foi a explicação de toda a realidade a partir de um princípio único, fazendo-os aderir mesmo ao idealismo exacerbado a que conduzia o sistema de Fichte. Os dualismos kantianos pareciam definitivamente superados; Fichte tivera a audácia de reabilitar a intuição intelectual contra as duas fontes do conhecimento, de reduzir o mundo extramental à subjetividade, o Não-eu ao Eu, rompendo assim não só com o quebra-cabeça do dualismo fenômeno-númeno, mas principalmente com a oposição irredutível entre o sensível e o espiritual. E este Eu se apresenta com traços simpáticos aos românticos em muitos de seus aspectos: um Eu dotado de enorme força criativa, a ponto de fazer do mundo exterior um derivado da imaginação produtora do homem; um Eu no mais que vence resistências, obstáculos por ele mesmo produzidos, em sua marcha para o infinito definitivamente distante - uma marcha, contudo, redentora do homem. (BORNHEIM, 1978, p. 92).

E também por força da presença dos românticos de primeira hora, Schelling acrescenta a isto uma divisão clara do

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papel abstrato da filosofia e do poder realizador da arte. Seguimos com Bornheim:

Tanto o pensamento reflexivo como a natureza e o espírito movem-se em um mundo de sombras, cujo sentido último está no [Eu-] Absoluto (ou Incondicionado), único ser dotado de substancialidade. Todo o mais são ideias ou arquétipos na mente divina. E assim, o mundo numenal, das coisas em si, que Kant situava além do fenômeno e interpretava como seu pressuposto necessário, é transferido por Schelling para a mente divina. Compreender esse platonismo idealista é missão da vida filosófica; revelá-lo concretamente, próprio do gênio artístico, casando-se assim a intuição intelectual com a estética. (BORNHEIM, 1978, p. 104)

Há uma integração da arte ao sistema filosófico, cuja discussão passa a superar o espaço ocupado pelos filósofos. 288 Estão entre os diversos formuladores de uma nova função para a arte F. Schlegel, Schiller e Goethe entre outros. Em linhas muito gerais, Schlegel define a criação artística como algo que parte do mundo sensível para espiritualizar-se na forma de obra de arte; nessa operação confluem portanto o real, que parte da materialidade do signo artístico, ao ideal. Também Schiller via a obra de arte entre estes dois mundos como uma forma de superação do dualismo real/ideal. (BORNHEIM, 1978, p. 93)

Heine Mas vejamos a percepção que teve Heinrich Heine da doutrina idealista dos filósofos alemães. Como é sabido, trata- se de um dos poetas mais apreciados pelos compositores românticos alemães. Ele procura dar forma ao entendimento crítico do universo conceitual de filósofos e homens de letra da Alemanha do final do século XVIII e das primeiras décadas do século XIX. Escreve em 1934 o extenso trabalho “Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland” (“Para a História da Religião e da Filosofia na Alemanha”) endereçado Música e Filosofia em Noites Florentinas ao público francês. Não lhe faltam ironia e mordacidade para tratar também destes assuntos. Após traçar uma fascinante e bem humorada visão do estilo e dos hábitos pessoais supostamente insossos de Kant, Heine escolhe também sua filosofia como introdução às ideias desenvolvidas na virada dos séculos XVIII e XIX. Através da oposição entre fenômeno e númeno apresentada na “Crítica à razão pura” é introduzida uma discussão sobre a existência de deus. “Deus é, para Kant, um númeno. Como consequência de sua argumentação, aquele ser ideal que chamávamos até então de ‘deus’, não é outra coisa senão uma invenção” (HEINE, 1834, p. 107). Segundo Heine, qualquer demonstração da existência de deus estaria destinada ao fracasso, já que partiria do mundo físico para extrapolar às mais elevadas esferas fora deste mundo, ou partiria de discutíveis conceitos apriorísticos abstratos. Mas essa discussão é dramaticamente interrompida em sua narrativa, quando se insinuam as consequências da irracionalidade da crença na existência de deus. A presença de 289 deus estaria assegurada em Kant apenas por uma reconhecida necessidade do homem mediante o desenvolvimento de uma razão prática. Heine passa então a considerar as ideias de Fichte e Schelling munido de um pensamento crítico exacerbado. Para ele, a filosofia de Fichte resume-se na seguinte questão: “Que razões temos para aceitar que as ideias que temos sobre as coisas equivalem a estas mesmas coisas? E a essa questão ele dá a resposta: todas as coisas possuem realidade apenas em nosso próprio espírito” (HEINE, 1935, p. 116). As coisas existiriam apenas a partir de ideias desenvolvidas pelo espírito humano. Como resultado disso, o Idealismo, um conceito ligado à operação mental implicada nas ideias de Fichte, é visto como equívoco na medida em que representa a negação absurda da realidade das coisas que se encontram fora do sujeito. E no que tange ao idealismo preconizado em seguida por Schelling, Heine reconhece o procedimento inverso: “Partindo-se do fundamento que pensamento e natureza seriam uma mesma coisa, Fichte chega ao mundo real através de operações do espírito; do pensamento ele cria a natureza, do ideal ele chega ao real; para o Sr. Schelling, ao contrário, ainda que partindo do mesmo fundamento, o mundo real transforma-se numa

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infinidade de ideias, a natureza torna-se para ele pensamento, o real torna-se ideal” (HEINE, 1935, p. 139). Heine se contradiz aqui em parte quando vê uma relação de complementaridade entre os dois filósofos, já que também atribui as duas posições seguintes à Schelling: à operação que transforma o mundo das ideias na realidade das coisas estariam implicadas a justificativa das ciências naturais; o inverso corresponderia ao “Sistema do idealismo transcedental”, título de um trabalho de Schelling de 1800. Não há dúvida que a intenção de Heine com sua obra é a de marcar uma posição de oposição aos dois filósofos aos quais são atribuídas colaborações importantes à arte romântica. Em suas observações sobre Fichte, Heine acrescenta com ironia: “Perguntariam as damas: não acreditaria ele ao menos na existência de sua própria esposa?” (HEINE, 1935, p. 117). No entanto, em razão das postulações desafiadoras de uma teologia deísta implicada nas políticas de 290 Estado, e também da perseguição que sofreu, Fichte ganha uma longa e positiva apreciação a partir de remissões às memórias de Goethe e Herder, de narrativas próprias sobre o convívio com Kant etc. Schelling tem menor sorte. Ele é impiedosamente criticado de maneira implacável por sua escrita, que se dividiria contraditoriamente entre a fria objetividade filosófica e uma incipiente representação poética de ideias. Schelling teria criado uma horda de seguidores que não se orientariam por princípios ou por uma disciplina definida, mas apenas por se abrirem às emanações de espíritos difusos; a filosofia naturalista decorrente de suas ideias nada mais seria do que uma cópia da teoria de Espinoza, assim como sua defesa da existência de deus estaria baseada em argumentações presentes igualmente no sistema daquele filósofo. (HEINE, 1935, p. 141-44)2. Nesse contexto, interessa a Heine a crítica ao cristianismo em benefício do panteísmo. Ele atribui a impressionante força das religiões cristãs à ideia nelas contida da oposição entre o bem e o mal. Ele localiza a origem das crenças católicas e da importância destas crenças nas práticas

2 Cf. também BORNHEIM, 1978, p. 104. Música e Filosofia em Noites Florentinas maniqueísta e gnosticista da Idade Média, que teriam se disseminado como “doenças contagiosas por todo o império romano.” Heine enumera provas disso em toda cultura do norte europeu; surge nesse contexto a interpretação da Venus de Tannhäuser como a “filha de Belzebú,” de forma muito semelhante como construída por Wagner uma década mais tarde (HEINE, 1935, p. 15). Heine assenta a natureza panteísta 3 dos povos do norte da Europa em sua condição original: “Seus mistérios e símbolos relacionavam-se às coisas naturais, em cada elemento celebravam-se seres excepcionais, em cada árvore respirava uma divindade, toda realidade era dominada por um deus, mas o cristianismo inverteu essa lógica.” No lugar de uma natureza perpassada por deus criou-se a imagem desta mesma natureza submetida à influência demoníaca (HEINE, 1935, p. 16). O cristianismo seria responsável ainda pela destruição da sensualidade e o catolicismo não passaria de um compromisso entre deus e o diabo, isto é entre o espírito e a matéria (HEINE, 1935, p. 25). Ele afirma também a importância e genialidade de Lutero, mas, bem entendido, 291 quando serve ao desenvolvimento da língua e do pensamento alemães e não da religião. Com relação ao protestantismo, ele dirá que a doutrina gerou uma divisão entre místicos sem fantasia - os pietistas -, e ortodoxos destituídos de espírito (HEINE, 1935, p. 60 e 77). Aqui está uma definição de Heine para panteísmo tão objetiva quanto possível. Nota-se nela também a tendência à superação da dualidade kantiana entre fenômeno e númeno ou das coisas em relação ao homem e entre si mesmas.

Deus é idêntico ao mundo. Ele se manifesta nas plantas que teem uma vida inconscientemente cósmica e magnética. Ele se manifesta nos animais, que em sua sensual vida de sonhos possuem uma existência mais ou menos baça. No entanto, o mais bonito é sua manifestação no homem, que ao mesmo tempo sente e pensa, que sabe individualmente diferenciar-

3 A ideia do panteísmo será entusiasticamente desenvolvida quando ele abordar as ideias de Espinoza, ou como ele o chama, o “terceiro filho” de Descartes - após Locke (materialismo) e Leibniz (idealismo).

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se da natureza e tráz em sua razão as ideias que estão representadas no mundo exterior.

Não tenho condições de fazer objetivamente uma comparação entre a formulação de Espinoza e do entendimento de Heine do conceito de panteísmo. Porém, vale dizer que o poeta identifica com entusiasmo a tendência panteista não apenas nas ideias de Goethe, mas disseminada por toda a obra deste autor. Ele faz referência a momentos específicos do Werther e do Fausto , mas menciona também aquelas canções mais simples, feitas na forma “mais pura e singela”. Segundo ele: “A teoria de Espinoza liberta-se do casulo da matemática e adeja para nós na forma de uma canção de Goethe. [...] Os versos harmônicos entrelaçam-se em teu coração como a amada suave; a palavra te abraça e o pensamento te beija” (HEINE 1835, p. 68-9). Como se sabe, Goethe é pessimista em relação à abordagem de fatos relativos ao mundo sensível em 292 bases exclusivamente objetivas. Na condição de artista, ele refuta filosoficamente o conhecimento estabelecido pela via mecanicista oferecida pela ciência e acaba ele próprio por se dedicar ao estudo de vários sistemas naturais. O Fausto , já em uma de suas primeiras versões, é na companhia da Divina Comédia transportado à posição exemplar e redentora de obra de arte e tem no próprio Schelling um de seus comentadores que o erigem a essa condição (CAMPOS, p.133-34 e p.137). * Mas, em conformidade com as ideias produzidas pelo Sturm und Drang, Goethe dá a entender que os pressupostos de uma arte romântica são também um fato antropológico, um traço de identidade. Ele afirma que a racionalidade dos princípios iluministas e o equilíbrio poético alcançável pela vontade de reproduzir princípios formais da antiguidade grecolatina, não estariam mais disponíveis aos predestinados povos do norte como os alemães (BORNHEIM, 1978, p. 84). Essa perspectiva traz à tona uma oposição mais antiga, aquela que se estabeleceu no campo das artes entre o idealismo alemão e o materialismo francês, para usarmos uma expressão de Heine. Nessa linha, ilustrando ainda o que poderia ser entendido pela dicotomia entre valores relativos de uma Música e Filosofia em Noites Florentinas ciência empírica e os valores de um idealismo absoluto, menciona-se anedoticamente que enquanto Gide tiraria uma lente do bolso para conhecer com detalhes um determinado objeto pelo qual tivesse interesse, Rilke experimentaria fechar os olhos (BORNHEIM, 1978, p. 96). Nesse sentido, invocamos também, aqui excepcionalmente, o pragmatismo dos Estados Unidos que surge na virada dos séculos XIX e XX, justos cem anos após a publicação dos primeiros trabalhos de Fichte. Apesar da distância temporal, pode-se notar uma relação de oposição entre as duas doutrinas quando filósofos ainda hoje o apontam como o “centro nervoso da oposição ao idealismo absoluto” (BLACKBURN, 1978, p. 237). William James, fundador do pragmatismo e que o conceituara como um “empirismo radical”, vê sua filosofia por um viés também necessário aos idealistas, mas o de menor importância: o caminho referente ao mundo exterior, sensível, não ideal - o que Fichte denominara de Não-eu. A diferença expressa nas duas escolas constituem certamente razões importantes da diversidade na prática intelectual e nas formas de aproximação 293 à música desenvolvidas preferencialmente na Alemanha e nos Estados Unidos.

Noites florentinas de Heine Me parece ser nesse mesmo sentido que Heinrich Heine cria em Noites florentinas a oposição entre um comerciante e um narrador romântico sentados lado a lado em um concerto em Hamburgo de ninguém menos que Paganini. Ao comerciante, que também era violinista amador, cabe a percepção objetiva do fenômeno musical. Ele busca o entendimento dos fatos musicais atendo-se a aspectos determinados da execução e lançando mão de alguns conceitos tecnicamente precisos, embora limitados; faz observações sobre a real condição de se chegar àquele nível de desempenho, mas seu discurso é rapidamente superado pelas visões extraordinárias do narrador. A cena do concerto de Paganini adquire centralidade na construção do relato. Ela é bastante longa e dá tempo ao autor de analisar através da linguagem os aspectos musicais do

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repertório em conjunção com a presença física e a personalidade do artista que o produz. Certamente, Heine e Paganini transformam o mundo exterior em “um derivado de sua imaginação produtora”, conforme citação acima de Bornheim sobre Fichte. Apesar das imagens impressionantes suscitadas na mente do poeta, não se trata de alucinações: Paganini transforma-se constantemente, mas nunca sai de cena: é sempre ele quem está por trás de todo o disrcurso! O realismo é mantido apesar da aparência onírica. A narrativa sobre o concerto é precedida por uma discussão que poderia ter sido derivada das ideias de Goethe, na qual o narrador termina por afirmar e explicar o seguinte: “Há pessoas,” diga- se: o próprio narrador, “para as quais os sons propriamente não passam de sinais invisíveis nos quais elas escutam cores e figuras” (HEINE, 1986, p. 41). É permanente o engajamento em dar forma e movimento ao discurso, sabe-se lá se a partir de estímulos musicais concretos ou imaginários. (Pessoalmente não acredito que o escritor tenha prescindido aqui de estímulos 294 musicais bastante precisos). O elemento pictórico é marcante, como demonstra esta passagem, relativa à terceira peça do programa: “[...] O sábio rei mergulhou no mar aqueles vasos e eu acreditava perceber as vozes dos espíritos neles encarcerados, enquanto o violino de Paganini trovejava coléricas notas de baixo profundo. Ao final, cri perceber algo como júbilo da libertação e vi como emergiam das ondas sangrentas as cabeças dos demônios desencadeados: monstros de fabulosa feiúra, crocodilos com asas de morcego, serpentes com aspas de veado, macacos com bonés de conchas, focas com barbas patriarcalmente longas, rostos de mulher com peitos no lugar das faces, cabeças verdes de camelo [...]” A primeira peça contém alguns fatos supostamente vividos por Paganini e descritos logo antes da primeira cena, como se tratasse de distorções próprias de um sonho. O narrador transmite por analogia sensações sugestivas da forma das peças, dos tempos, de alguns aspectos texturais, do caráter de cada parte e, sobretudo, da natureza da expressão dramática e de características que se compõem da percepção simultânea de elementos diversos. Tem-se uma ideia da sucessão de peças de acordo com o tempo de cada uma delas, como se tratasse dos movimentos de uma sonata. A narrativa se inicia pela peça Música e Filosofia em Noites Florentinas formalmente mais elaborada. É descrito um ambiente romântico, o típico “camarim de uma prima dona”, no qual surge também a figura de uma jovem criatura com a qual o violinista dialoga alegremente para então, como em um surto esquizofrênico, transformar-se subitamente e terminar por assassiná-la. Na segunda peça o andamento cai subitamente e o acontecimento passa a representar uma única atmosfera. Aí reaparece a figura de Paganini: “as notas não se transfiguravam em formas e cores claras; muito antes, a figura do mestre se envolvia em sombras densas.” Na peça seguinte, as cores mudam drasticamente: “[...] no momento em que, enfim as águas alvorotadas assemelhavam-se a sangue do mais escarlate, o céu adquiriu uma claridade espectral, uma brancura cadavérica, e, grandes e ameaçadoras, brotavam nele as estrelas [...]” Finalmente, a última peça é ainda mais expressivamente dedicada à figura do artista que, após as sucessivas referências à sua presença, é então colocado no centro de uma celebração religiosa: “Os peregrinos giravam em amplo círculo em torno do grande músico, e das notas de seu 295 violino brilhavam cada vez mais claros os castões dourados, e os corais que ressoavam de seus lábios e que eu havia tomado pela música das esferas eram apenas o eco perdido daquele violino. Um fervor indizível e sagrado morava nesses sons...” (HEINE, 1998, p. 55-65). Aqui alude Heine diretamente àquela perspectiva panteísta que defende, em que, como dito abaixo, “a partir de agora serão celebrados... os verdadeiros feitos do verdadeiro heroísmo.” * Noites florentinas pode parecer uma tentativa da fusão de dois mundos: de um lado a frívola atmosfera dos salões e do gosto burguês, e, do outro, a prática de uma nova arte, desenvolvida no seio deste ambiente, mas, quem sabe, conceitualmente independente dele. Heine flana assumidamente por aspectos deste universo que podemos considerar superficiais: por exemplo, o cuidado excessivo com a descrição de detalhes de aparência e o sensualismo quando toca a questão feminina e as relações pessoais do narrador com sua ouvinte Maria e com a ex-dançarina de rua e agora próspera senhora, a Mademoiselle Laurence. No domínio da música, suas escolhas se movem genericamente entre grandes

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mestres, sem dúvida, mas bem inseridos socialmente por corresponderem à moda mais do que outros; aqui, os mestres de Heine são atualíssimos e indiscutivelmente afeitos ao exibicionismo virtuosístico: o elogio a Bellini - o verdadeiro instigador do bel canto -, se dá pelo frescor de sua aparência física e por seu comportamento espontâneo frente à uma dama em um conhecido salão de Paris; a admiração a Liszt é ornada pela ironia também no contexto de uma de suas gloriosas exibições privadas igualmente no meio burguês de um salão parisiense (é feita referência à transcrição da Marcha ao suplício de Berlioz além de uma suposta peça que o colocava na proximidade do filósofo-escritor francês Ballanche). Somando- se a isso está a arte indefectível de Paganini: ela é situada em lugar público, desencadeia um igualmente virtuosístico surto imaginativo e descritivo de Heine e termina por adquirir centralidade na narrativa além de uma dimensão estética mais elevada do que se reputa de maneira geral nos dias de hoje a essas obras. Estamos por certo diante de hábitos claramente 296 inseridos em novos costumes burgueses e provavelmente materialistas. O repertório referido é histórico e consistente; no entanto, ele é inadequado para ilustrar uma visão de mundo profunda, equivalente a uma arte imbuída do idealismo ou de uma filosofia que mobilizaria a crítica alemã para além do tempo de Heine. Mas é Heine mesmo quem dá uma resposta a essa ambiguidade. Em sua publicação sobre o pensamento alemão ele deixa corresponder ao idealismo a imagem negativa que traçou genericamente do cristianismo. Com isso cai não apenas o conceito, mas também os objetos da arte que conviriam e equivaleriam a este conceito. Ele identifica agora o panteísmo quase como uma nova religião, manifestado nas ações humanas extraordinárias, ainda que possa estar consciente de origens sociais deste fenômeno muito diferentes da experiência alemã, fundada na sobrevalorização da tradição popular. Certamente, ele ignora preceitos desta tradição, que, por sinal, é a que mais o influencia na construção formal de sua obra poética. O homem aqui, como descrito abaixo, e o artista caracterizado em Noites Florentinas correspondem muito mais à objetivação de ideais burgueses do que a qualquer ideia mais abstrata Música e Filosofia em Noites Florentinas suscitada pelo discurso fundamentalmente filosófico ou à então antiga ideologia do Sturm und Drang.

Pois o cristianismo, incapaz de destruir a matéria, provocou distorções por toda parte; ele degradou os mais nobres prazeres: com os sentidos obrigados a enganar surgem a mentira e o pecado. Precisamos vestir nossas fêmeas com roupas e pensamentos novos e insensar nossos sentimentos como depois da peste vencida. O próximo objetivo de nossas instituições é a reabilitação da matéria, a reconquista de sua dignidade, seu reconhecimento moral, sua cura religiosa. [...] É equivocado pensar que essa religião - o panteísmo - leve os homens à indiferença. Pelo contrário, a consciência de sua substância divina levará o ser humano à revelação entusiástica de si mesmo, e a partir de agora serão celebrados neste mundo os verdadeiros feitos do verdadeiro heroísmo. A revolução política que se apoia nos princípios do materialismo francês não encontrará adversário nos panteístas, e sim correligionários, mas do tipo que formou 297 suas convicções a partir de uma fonte mais profunda, de uma síntese religiosa. Nós propugnamos pelo bem estar da matéria, pela sorte material dos povos, não porque, como os materialistas, desprezamos o espírito, mas porque sabemos que o espírito divino do ser humano revela-se também na forma física; a miséria destrói e avilta o corpo - a imagem de Deus - e, da mesma forma, deteriora o espírito. [...] Não lutamos pelos direitos humanos do povo, mas sim pelos direitos divinos do homem. Nisso e em outras coisas nos diferenciamos dos homens da revolução. Vós exigis trajes simples, hábitos recatados e prazeres insossos; nós, ao contrário, queremos Nektar 35 e ambrosia, casacos na cor púrpura, fragrâncias prazerosas, luxúria e esplendor, a risonha dança das ninfas, música e comédia - por isso, não fiqueis indignados , vós virtuosos republicanos! A vossas ofensas e censuras retrucamos da mesma forma que o bobo de Shakespeare: “tu pensas então que por seres virtuoso deveriam deixar de existir sobre a terra as tortas saborosas e a doce champagne?” (HEINE, 1935, p. 69-72) * Apresento a seguir a tradução do texto de Heine de Noites florentinas . Trata-se do trecho final da primeira parte, no qual a descrição física e realista de Paganini é seguida de sua

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transformação fantasiosa e do encadeamento vertiginoso de imagens despertadas pela primeira peça do concerto.

[...] Reinava um silêncio religioso em toda sala. Todos os olhares estavam voltados para o palco; todos os ouvidos armavam-se para ouvir. Meu vizinho, um velho corretor de peles, tirou o sujo algodão do ouvido para em breve poder absorver melhor os deslumbrantes sons que custaram dois táleres de entrada. Finalmente surgiu uma escura figura sobre o palco. Parecia vinda do submundo. Era Paganini em seu traje negro de gala; o fraque negro e o colete negro de corte horripilante, como prescrito talvez pela infernal etiqueta dos jardins da côrte de Perséfone. A calça negra tremulava timidamente em torno das pernas finas. Os braços longos pareciam ainda mais alongados, já que segurava em uma das mãos o violino e na outra o arco, ambos direcionados para baixo, quase tocando o solo quando se declinava exageradamente diante do público. Nas angulares 298 dobras de seu corpo transparecia uma horrível rigidez, ao mesmo tempo que algo estúpido e animalesco nestes gestos provocáva-nos uma estranha vontade de rir; mas sua face, ainda mais alva e cadavérica sob a forte iluminação da orquestra, possuía algo de suplicante, algo de uma tola humilhação, que acabava por despertar em nós um cruel sentimento de solidariedade e reprimia nossa vontade de rir. Teria ele aprendido este cumprimento de um autômato ou de um cachorro? Seria este olhar de súplica o olhar de um morto, ou por trás dele estaria à espreita a zombaria de um astuto avarento? Trata-se de um ser vivo em seus extertores que precisa deleitar o público na arena da arte com os espasmos de um lutador moribundo? Ou se trata de um morto saído da sepultura, um vampiro com um violino que se não nos suga o sangue do coração, pelo menos arranca-nos o dinheiro do bolso? Tais questões cruzavam nossas mentes no momento em que Paganini parou com suas intermináveis flexões; os pensamentos calaram-se no ato em que o maravilhoso mestre levou seu violino ao queixo e começou a tocar. Quanto a mim, a senhora sabe de minha dupla personalidade musical, meu talento de vislumbrar uma imagem sonora adequada a cada som que escuto; e assim foi que Paganini fez desfilar figuras visíveis e situações diante de meus olhos com cada movimento de seu arco; foi assim que Música e Filosofia em Noites Florentinas ele narrou em pictografias sonantes todo tipo de histórias deslumbrantes; assim ele criava ilusões semelhantes ao jogo de sombras coloridas, no qual ele próprio e seu violino atuavam como protagonistas. Já no primeiro golpe de arco transformaram-se os bastidores a seu redor; ele estava agora com sua estante em um alegre e gracioso cômodo, desordenadamente decorado com móveis floreados ao estilo Pompadour: pequenos espelhos por toda parte, cupidos dourados, porcelana chinesa, um caos de todo tipo de fitas, guirlandas de flores, luvas brancas, pérolas falsas, diademas em latão dourado e uma variedade de figuras recortadas em sêda rasgada e de bugigangas mitológicas da forma como normalmente encontramos na sala de ensaio de uma prima- dona. Para sorte de Paganini, também ele se transfigurou: vestia agora calça curta de cetim lilás, um colete branco bordado com fios de prata, uma jaqueta de veludo azul claro com botões revestidos de ouro; seu cabelo cuidadosamente aparado em pequenos cachos circundavam seu rosto jovem e rosado que reluzia de doce suavidade quando espiava a bela garotinha sentada a seu lado na estante enquanto tocava o violino. 299 De fato, a seu lado eu via uma bela e jovem criatura vestida à moda antiga: o cetim branco armado abaixo dos quadris de corte provocativamente pequeno, os cabelos realçados e penteados para cima, o rosto belo e redondo que fulgurava livre através dos olhos vivazes, das faces pintadas, das discretas maquiagens e do doce e impertinente narizinho. Ela trazia na mão um rolo de papel branco e, pelo movimento de lábios e do vaivém coquete do pequeno busto, parecia cantar; mas nenhum trino se fazia audível, a não ser o toque do violino com o qual Paganini acompanhava a graciosa criança e deixava pressentir o que ela cantava, além do que ele próprio sentia em seu coração em razão de seu canto. Oh, aquilo sim eram melodias, como que entoadas pelo rouxinol à hora do crepúsculo, quando a fragrância das rosas inebria-as de nostalgia o peito arfante de primavera! Oh, aquilo sim foi um ardente e voluptuosamente lânguido regozijo! Aquilo sim eram sons que se uniam em um beijo, para então fugirem juntos, amuados, e, novamente sorridentes, entrelaçarem-se, tornarem-se uno e finalmente morrerem em extasiante unidade. Sim, os sons precipitavam- se em um jogo alegre, como borboletas, quando uma desvia graciosamente da outra, esconde-se atrás de uma flor, é finalmente pêga e juntas voam distraídas e satisfeitas para a luz dourada do sol. Mas uma aranha - uma aranha negra -

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tem o poder de levar um destino trágico e repentino a borboletas apaixonadas. Tal pensamento era parte da premonição do jovem coração? Um som doloroso e plangente, como o pressentimento de uma insidiosa desgraça, penetrou sutilmente pelas fascinantes melodias que resplandeciam do violino de Paganini... Seus olhos se umedecem... Suplicante, ajoelha-se diante da amada... Mas, ah! ao inclinar-se para beijar seus pés, ele avista sob a cama um pequeno abade! Sabe-se lá o que poderia ter ele contra o pobre homem, mas o genovês, pálido como a morte, toma o homúnculo em suas mãos raivosas, aplica-lhe diversas bofetadas e fartos pontapés, atira-o porta afora, retira então um longo estilete do bolso e crava-o no peito da jovem e bela mulher... E neste instante ressoou de todos os lados: bravo! bravo! [...]” (HEINE, 1935, p. 44-48, tradução do autor)

300 Referências bibliográficas BLACKBURN, S. Dicionário de filosofia. Lisboa: Gradiva, 1997. BORNHEIM, G. Filosofia do Romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.), O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978. CAMPOS, H. de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe . São Paulo: Perspectiva, 1981. ELIAS, N. Mozart: Sociologia de um gênio . Rio de Janeiro: Zahar, 1995. HEINE, H. Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland, 1835 . Disponível em: http://www.digbib.org/Heinrich_Heine_1797/ Zur_Geschichte_der_Religion_und_Philosophie_in_Deutschland_.pdf ____. Florentinische Nächte [1836]. Frankfurt: Insel Taschenbuch, 1986. ____. Noites florentinas. Trad. M. Backes, Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.

Música e sacrifício

LUIGI ANTONIO IRLANDINI

ste artigo expõe as reflexões que levaram à composição Eda minha música 1 Sacrifício , para coro a cappella . É, em certa medida, um relato a respeito de uma poética musical, mas não pretende fazer uma análise exaustiva da composição ou de seus processos composicionais, nem esgotar o assunto das relações sociais, antropológicas, religiosas, filosóficas, imaginárias entre música e sacrifício. Pretendo explorar a analogia entre música e cosmogonia, música e cosmologia, a música como metáfora da criação, e explicar em que medida e de que modo a referida obra celebra esta metáfora. Seguindo Ernst Cassirer e Susanne Langer, pressuponho que não se questiona mais a ideia de que a música é simbólica. Meu objetivo é explicar de que maneira a música se comporta para funcionar como símbolo da criação e, especificamente, de que modo Sacrifício funciona como símbolo do mito cosmogônico em que se baseia: o Puruṣa Sukta 2, do Ṛg Veda. Trata-se de descrever como esta música satisfaz sua vocação de “logos simbólico , a ordem do sentido que é própria e específica da música”. (TRÍAS, 2007, p. 20) O processo composicional de Sacrifício foi longo, iniciado em 1991 a partir de um estudo do hino védico Puruṣa Sukta (Ṛg Veda, X.90), um poema muito antigo mas tardio dentro da coletânea ( saṁhitā) a que pertence. A estudiosa de religião comparada Barbara Holdrege, em seu monumental estudo Veda and Torah, data O Ṛg Veda entre 1500 – 800 AEC 3

1 Uso os termos música, obra, e composição intercambiavelmente. 2 Para todos os termos em sânscrito, utilizo a transliteração em vigor na literatura acadêmica de língua inglesa. 3 AEC = Antes da Era Comum (O conceito de “era comum” nos estudos de religião comparada sob o ponto de vista laico propõe uma forma de contagem do tempo laica, ou seja, não condicionada à contagem de

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(HOLDREDGE, 1996, p. 30). O hino de Puruṣa descreve um mito da criação dos Vedas segundo o qual o universo é criado pelo sacrifício e desmembramento de Puruṣa, o Homem Cósmico. Mas foi necessário que quatro anos de estudos e atividades de pré-composição se passassem até que o projeto fosse colocado “de molho”, pois, como não tinha terminado de compor nenhuma música no período de 1991 a 1994, precisava dar continuidade à produção de outras obras 4. Estas, compostas a partir de 1994, tiveram grande importância para o amadurecimento dos processos composicionais de Sacrifício , e foram escritas paralelamente à continuação de meus estudos dos Vedas e concepções artísticas e filosóficas indianas até que o projeto de Sacrifício chegou à sua forma final em 1998, uma peça para coro a cappella cantada em sânscrito 5. É preciso olhar mais de perto o conceito de puruṣa antes de passar ao de sacrifício e, finalmente, à música.

302 Puruṣa O termo puruṣa denota tanto “homem” como “pessoa”. Denota também o Homem 6 cósmico, primordial, universal ou arquetípico, assim como o Espírito ou Se ( Self ), consciência pura. Das diversas acepções do termo existentes na vasta literatura filosófica e cosmológica indiana, as duas que mais interessam aqui pertencem ao pensamento brahmânico dos Vedas e Vedanta, pela sua dimensão macrocósmica e ligação com a cosmogonia, antropogonia e sacrifício, e à filosofia não-

tempo do Cristianismo. No entanto, em termos de datação pura, o início da era comum equivale ao nascimento de Cristo). 4 Matrimônio do céu e da terra (1995), Madrigal de fogo (1996), entre outras. 5 A versão para dois pianos, de 2003, foi estreada na XV Bienal da Música Brasileira Contemporânea em 2005 pelos pianistas Luciano Magalhães e Marcelo Thys. A gravação desta performance esta disponível em https://www.youtube.com/watch?v=n02lQMaYc-M 6 O uso do gênero masculino aqui não pode ser evitado, uma vez que, no quinto verso do hino, o Ser primevo emana virāj , o princípio feminino, tornando-o andrógino. Música e sacrifício védica, não-ariana do Sāṃkhya-Yoga, por oferecer uma visão psicofisiológica e ontológica (HOLDREDGE, 1996, p. 74) do ser humano como microcosmos. Em ambos os casos, puruṣa é uma realidade ao mesmo tempo imanente e transcendente (BAÜMER, 2001, p. 29). O indólogo Heinrich Zimmer (1890-1943) traduz o termo puruṣa como “mônada da vida” e o define, no contexto da filosofia Sāṃkhya, como

a entidade viva escondida atrás e dentro de todas as metamorfoses de nossa vida de servidão (...) o número de mônadas da vida no universo é supostamente infinito, e sua ‘natureza propriamente dita’ (svarūpa ) é vista como totalmente diferente daquela da sua ‘matéria’ sem vida (prakṛti) na qual elas estão engolfadas (ZIMMER, 1964, p. 285) (tradução do autor) 7. 303 Parafraseio aqui, livremente, a descrição que Zimmer oferece mais adiante no mesmo texto: a mônada da vida é da natureza de pura luz ( prabhāsa ) e ilumina todos os processos vitais da matéria física e sutil e da consciência individual; o próprio puruṣa não tem forma nem conteúdo, nem começo nem fim, não tem divisões ou partes, não tem atividade, não sofre mudança, não está anexo nem em contato, não se envolve, não se preocupa, nunca está em servidão; puruṣa permeia tudo e é eternamente livre (ZIMMER, 1964. p. 286). O dualismo puruṣa/ prakṛti mostra claramente uma concepção do ser humano como um todo microcósmico que envolve um aspecto matérico vivificado por um aspecto espiritual, mas onde ambos estão separados um do outro. A mônada da vida, esta centelha não-manifesta, transcendente porém imanente, só pode ser percebida pelo indivíduo uma vez que as agitações da mente ( prakṛti) forem acalmadas pela prática do Yoga.

7 Todas as traduções das citações foram feitas por mim.

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A concepção brahmânica é não-dualista. Na formulação do Vedānta 8, explica Zimmer,

prakṛti é energia materializada ( prāṇa , ṣakti ), que, por sua vez, é a manifestação temporal da essência incorpórea, supra-espiritual, eterna que é o Se ( Self ) mais profundo de todas as coisas. (ZIMMER, 1964, p. 242)

Mas, à parte este “detalhe”, encontra-se no brahmanismo e, especificamente no mito cosmogônico em questão, a figura macroscósmica e arquetípica desta Pessoa Primordial, Puruṣa, como “origem e personificação do universo e da sociedade que, coextensivo com o universo, mesmo assim o transcende” (BAÜMER, 2001, p.32). Puruṣa é, ao mesmo tempo, deus e matéria, pois doa o seu próprio corpo através do sacrifício e desmembramento para que o mundo físico dos 304 fenômenos diferenciados possa existir, com seus elementos cósmicos (terra, ar, água, etc), animais, seres humanos e astros celestes, ao mesmo tempo em que a outra porção de seu corpo permanece imortal, não afetada pelo sacrifício. Esta imanência/transcendência é descrita nos quatro primeiros versos do hino, onde se lê que a parte finita do mundo corresponde a um quarto do seu ser, enquanto os outros três quartos correspondem à sua imortalidade ( amṛta ) no céu (HOLDREGE, 1996, p. 37). “Puruṣa é, de fato, este Todo, o que tem sido e o que virá a ser” (Rg Veda X.90.2) 9. Seja como mônada da vida individual ou do inteiro universo manifesto e não manifesto, puruṣa representa uma totalidade primordial, Consciência Pura, “Aquele Um” ( Tad Ekam ) (ver Ṛg Veda X.129) que, paradoxalmente, mesmo sacrificando parte de si próprio, permanece pleno, “um Pleroma não sujeito à diminuição pelo quanto exala, nem ao

8 O Vedānta é a parte mais recente do brahmanismo, e inclui, entre outros textos, os Upaniṣads e o Bhagavad Gītā. 9 Os versos do Puruṣa Sukta que aparecem aqui em português são minhas traduções da versão em inglês feita por Raimundo Panikkar em PANIKKAR, 1977, p. 75 e 76). Música e sacrifício acréscimo pelo quanto inala. Ele é a Morte da qual depende a nossa vida”. (COOMARASWAMY, 1987, p. 16).

Sacrif ício O motivo do sacrifício como base para a criação do cosmos não é a única narrativa cosmogônica do Ṛg Veda. Outras narrativas envolvem diferentes meios criativos como o desejo, a austeridade ( tapas ), a procriação e o som, e também outros princípios criativos tais como o ovo ou embrião cósmico, as águas, um deus criador, ou um Absoluto não-manifesto, demonstrando um complexo campo de especulação deste assunto na cultura védica. (HOLDREGE, 1996, p.35). Por outro lado, o motivo do sacrifício como base para a criação do cosmos não ocorre apenas na cultura védica. Os mitos do gigante Ymir (no Edda nórdico), de Tiamat (na Mesopotâmia), do gêmeo Faro (Mande, África Ocidental), entre 305 outros, envolvem a morte ou mutilação para que se dê uma reconstrução de outro nível (LONG, 1963, p. 223).

As narrativas mitológicas são estruturas ou padrões simbólicos que vão se transformando ao longo do tempo, gerando narrativas variantes muitas vezes intertextuais, isto é, que podem fazer referências mútuas, umas com as outras, mesmo que as culturas que as produziram estejam inconscientes desta interrelação. Neste sentido, pode-se colocar lado a lado a figura de Puruṣa com a ideia de asat , não- existência, já presente no Ṛg Veda como o caos primordial indiferenciado, a realidade última, Tad Ekam, representada por mais um símbolo: o dragão Vṛtra. Mas o mito da criação que narra a vitória do deus Indra sobre Vṛtra traz um aspecto diferente ao Absoluto não-manifesto. Se Puruṣa simbolizava este caos antropomorficamente, aqui o dragão, agindo exatamente como um constrictor (a serpente píton indiana ou sua parente brasileira, a jibóia, Boa constrictor ) simboliza uma “atividade de cobrir ou de não deixar existir aquilo que deseja existir” (DE NICOLAS, 1976, p. 99). Esta conotação negativa segue junto a outras imagens ṛgvédicas também assustadoras

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como a de uma caverna sem fim, um abismo, um lugar de escuridão e silêncio (DE NICOLAS, 1976, p. 98). A não-existencia, asat , ou Todo Imanifesto, representado pelo Dragão, é a morte para o mundo dos fenômenos, sat , existência; por sua vez, a criação do mundo é a morte de Vṛtra, asat . Esta é a reciprocidade característica do sacrifício. O historiador e filósofo da arte indiana Ananda Kentish Coomaraswamy (1877-1947) fala a este respeito tomando o mito de Indra/Vṛtra como um dos mitos fundamentais do hinduísmo. Na criação do mundo, Indra é o sacrificador e Vṛtra é a vitima:

O Todo está contido no Princípio, o qual é designado com os termos equivalentes de Personalidade, Ancestral, Montanha, Dragão, Serpente sem fim. Unido a este princípio como um filho ou irmão menor – como um alter ego e não como princípio distinto – aparece o Matador do Dragão, aquele que 306 nasceu para substituir o Pai (...). Se, de fato, deve haver um mundo, é preciso que a prisão seja destruída e suas potências liberadas”. (COOMARASWAMY, 1987, p. 15-16)

O Todo imanifesto (Pai, e mais uma vez surge, aqui, a imagem masculina da Pessoa cósmica) é a prisão que mantém em potência aquilo que quer manifestar-se; no mito em questão, trata-se das potencialidades do mundo dos fenômenos e do ser humano. Indra é vṛtrahan , o Matador de Vṛtra, que as livra do silêncio e da constrição do dragão. A matança do Pai em combate é um sacrifício por se tratar da única maneira de liberar a manifestação dos fenômenos e criaturas 10 . É preciso lembrar que a religião védica está centrada em complexas práticas ritualísticas sacrificiais, que incluem desde oferendas simples até sacrifícios animais e também provavelmente humanos, em períodos mais antigos, como meios de regeneração da ordem cósmica ( ṛta ) “reavivando as

10 Com relação a este mito, ver a minha composição Vṛtrahan , para trompete e percussão, composta em 2015. Música e sacrifício conexões ( bandhus ) entre as ordens humana, natural e divina” (HOLDREGE, 1996, p.44). Por este motivo, na cultura védica, o sacrifício ritual segue o formato do sacrifício arquetípico, primordial de Puruṣa. Nos versos 6 a 10 do Puruṣa Sukta verifica-se esta relação de reciprocidade ou “sacrificialidade” entre as ordens natural e ritual/litúrgica (HOLDREGE, 1996, p.37). Em Ṛg Veda X.90.6) lê-se: “usando o Homem como oblação, os deuses realizaram o sacrifício. A Primavera lhes serviu como a manteiga concentrada, o Verão como combustível, e o Outono como a oferenda”. Enquanto o sacrifício primordial faz uso das estações do ano como materiais do ritual de sacrifício, o sacrifício primordial dá origem a este universo que existe no tempo das estações, e a criaturas tais como cavalos, gado, cabras e carneiros, que são, aliás, oferendas primárias nos rituais de sacrifício animal. Da mesma maneira, continua Holdrege, assim como o sacrifício primordial cria os versos ( ṛc - s), cantos ( sāman-s), fórmulas sacrificiais ( yajus -s) e metros 307 poéticos ( chandas -s) que compõem os mantra -s védicos, conforme Ṛg Veda X.90.9, estes mesmos versos, cantos, fórmulas e metros são entoados durante os rituais e constituem oferendas sonoras essenciais para a correta performance dos sacrifícios e manutenção do universo (HOLDREGE, 1996, p.37). Portanto, a reciprocidade constitui a característica essencial da doutrina do sacrifício. Ela implica na “descida do divino ao mundo, a imanência, e também na ascenção do humano ao divino, a transcendência” (BAÜMER, 2001, p.49). Em seu aspecto de prática religiosa, trata-se de uma “troca de bens mutuamente envigorantes” (DURKHEIM, 2001, p. 257) entre o divino e o humano, conforme sugere a expressão da antiga religião romana “ do ut des” , “eu dou para que tu me dês”. Entretanto, o sacrifício como cosmogonia inclui este aspecto de prática religiosa 11 , muitas vezes reduzido na visão de alguns a uma simples espécie de “contrato”, mas não se limita a ele. É a energia vital da vítima que dará origem ao resultado necessário e desejado com o sacrifício, num processo que Carl

11 Ou social, como os mecanismos de produção de um “bode expiatório” de que nos fala René Girard (2011, p. 67-68).

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G. Jung descreveu como de transformação dos conteúdos inconscientes para os conscientes:

Como ser primeiro, ele (Puruṣa) representa um estado inicial da psique (...), um estado insconsciente, indiscriminado. Como tal, este é um estado que precisa ser levado a termo, e que, sendo ao mesmo tempo objeto de nostalgia regressiva, precisa ser sacrificado para que possam originar-se entidades distintas, ou seja, conteúdos conscientes.” (JUNG, 1992, p. 405)

Como se vê, o “resultado” do sacrifício é uma reconstrução em um nível diferente, do inicial, mas a ele recíproco. No caso de Puruṣa, que é ao mesmo tempo vítima e sacrificador, sua auto-imolação tem como resultado desejado e necessário a existência, sat ; isto faz do próprio Puruṣa um 308 símbolo do sacrifício. Uma importante elaboração posterior do mito do sacrifício primordial de Puruṣa aparece nos Brāhmanas (ca. 900 a 650 AE), textos que se concentram na especulação filosófica e prática dos rituais de sacrifício, e especialmente no Śatapata Brāhmaṇa, onde puruṣa aparece como a figura do deus criador Prajāpati, Senhor das Criaturas. O mito do sacrifício de Prajāpati, equivalente ao de Puruṣa no Ṛg Veda, enfatiza um aspecto novo da auto-imolação: tapas , a “prática do acúmulo de calor interno gerado pela meditação e vários tipos de práticas ascéticas por meio das quais o praticante acumula poder espiritual e creativo” (HOLDREGE, 1996, p. 439). O sacrifício do deus ( devayajña ) Prajāpati cria o mundo e suas criaturas através do esforço e calor que ele excerce por meio da prática das austeridades 12 . Seguindo os textos originais, o indólogo Raimundo Panikkar atenta para a reciprocidade que se cria entre o deus criador e as criaturas, bem como para a continuidade perpétua do sacrifício cósmico. Ele relata que

12 É possível nos reconhecermos em Prajāpati e seu esforço austero quando dizemos “trabalhei, me sacrifiquei, para que isto pudesse acontecer”. Música e sacrifício

Prajāpati “cai em pedaços”, exausto, para que a vida seja drenada dele para as criaturas. No processo, as criaturas equivalem ao todo de Prajāpati inteiro, e elas o abandonam justamente por este motivo: “porque ele deixa de existir”. As águas, ouvindo o problema do deus morto, correm em sua ajuda, e, oferecendo o sacrifício agnihotra 13 , recuperam sua vida, juntando seus pedaços novamente.

É apenas pelo mesmo sacrifício na direção oposta, pelo mesmo sacrifício em que ele próprio foi oferecido em oblação, que Prajāpati é recuperado da morte. Ele foi sacrificado e ele vive; foi desmembrado mas permanece igual porque o sacrifício o recompôs (PANIKKAR, 1977, p.78).

O sacrifício é continuo e perpétuo: “o corpo de puruṣa é constantemente desmembrado e reconstruído; o tempo real é este processo” (PANIKKAR, 1977, p. 74). A transformação 309 operada pelo sacrifício é a mesma transformação operada pelo devir temporal: cada instante se sacrifica para que o instante seguinte o suceda.

Música O etnomusicólogo Marius Schneider (1903-1982) explicou a relação entre a doutrina do sacrifício dos Vedas e Vedānta com a música numa linguagem muitas vezes poética e simbólica, para grande aflição dos musicólogos positivistas. O sacrifício, visto como o continuum perpétuo do processo de vir- a-ser, o devir temporal, encontra sua analogia ou identidade com a música:

13 O agnihotra é um sacrifício diário oferecido em toda casa de família das castas mais altas e consiste na oblação de leite respingado sobre o fogo (PANIKKAR, 1977, p. 868). O importante elemento aqui é o Fogo (Agni), que se torna o redentor de Prajāpati através deste sacrifício.

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Estas frases 14 refletem a fase da doutrina sacrificial sobre a qual a antiga cosmogonia, as formas culturais e os ideais de vida foram edificados 15 . A vítima é o veículo, a flecha sibilante é a sílaba OṂ ou o caminho com o qual, mediante o qual e que, ao segui-lo, o homem pode superar o dualismo do mundo. Toda a distância que ele atravessa lhe é de vantagem na medida em que a deixa para trás, assim como uma melodia avança apenas na medida em que uma nota sufoca a outra, que morre pelas outras (SCHNEIDER, 1970, p.25).

Neste sentido, toda música é naturalmente sacrificial, pois é tempo que transcorre. Mas não só por isso, pois aquilo a que chamamos música, o devir musical, é uma forma acústica (e, portanto, física) de criação fenomênica, de acontecimentos sonoros. Com a criação da música algo surge na existência concretamente, mesmo que seja efêmero e invisível como o som e suas vibrações. 310 A esta altura é possível retornar à obra musical de que se falou no início, Sacrifício , para coro a cappella , cujo processo criativo leva em consideração a doutrina védica do sacrifício na estruturação de seu devir temporal, de seus materiais, e de sua macroforma. Em diversos níveis macroformais e microformais encontra-se uma relação de interdependência que “amarra” dois elementos opostos numa reciprocidade que supera o dualismo da própria oposição inicial, tornando-os parte de um todo complementar ao qual dou o nome de “estrutura sacrificial”. Uma estrutura sacrificial em Sacrifício consiste numa organização simétrica que coloca em relação de interdependência os eventos que se localizam em suas posições recíprocas. Em princípio, para que haja sacrificialidade, estas posições podem estar ou não estar dispostas em torno a um centro. Nesta composição, todas as estruturas sacrificiais são simétricas em torno de um centro, porque este centro tem um significado especial na própria composição e na cosmologia em

14 Schneider se refere às últimas linhas do trecho do Bṛhadāranyaka Upaniṣad citado por ele mesmo. 15 Refere-se aqui também ao próprio mito cosmogônico do sacrifício de Puruṣa e à cultura védica, mais antigos do que os Upaniṣad-s. Música e sacrifício que ela se baseia, como se verá mais adiante. Mas por que motivo é preciso que haja simetria, quando já poderia bastar a sacrificialidade “natural” (conforme foi visto acima) de toda música como devir temporal? Evidentemente, o simples devir musical não basta como símbolo do sacrifício para o compositor em questão. A questão da simetria é um vasto assunto que, infelizmente, não cabe neste pequeno texto, mas é possível, a esta altura, sugerir que o caráter sacro de Sacrifício alinha esta obra com as estéticas de arquitetura religiosa indiana, tibetana e medieval europeia, no sentido de que as toma como modelo em sua expressão dos pensamentos cosmológicos em que surgiram. Nelas, a simetria está presente como importante elemento formativo de significação simbólica dos processos da criação, e assim é, do mesmo modo, na música em questão. A simetria é “símbolo da unidade através da síntese dos opostos. Ela exprime a redução do múltiplo ao uno, que é o significado profundo da ação criadora” (CHEVALIER, 1986, p. 389). A 311 síntese dos opostos caracteriza o sacrifício contínuo e perpétuo como princípio cosmogônico. A estrutura sacrificial é uma concepção de forte componente espacial, uma vez que se descreve com “eventos que se localizam em posições recíprocas”, mas ela se aplica tanto à organização do espaço musical (alturas, harmonia, timbre), como à do tempo (ritmo, morfologia). Eis um simples exemplo teórico: A B C D C B A

Três elementos contrastantes (A, B e C) se alojam em torno do elemento central D de tal modo que o primeiro e o último, o segundo e o penúltimo, e o terceiro e o antepenúltimo (e assim por diante, se houver mais elementos) estão construídos por uma relação mútua de reciprocidade ou interdependência . Esta reciprocidade se verifica imediatamente na equivalência de sua posição em relação ao centro. A representação de letras escolhida sugeriria inicialmente repetição idêntica ou literal, ou uma similaridade de material ou de conceito (neste caso, uma repetição profunda, não

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diretamente reconhecível através da audição). Na estrutura sacrificial, as letras representam o fato de que existe uma relação de interdependência entre os elementos recíprocos (o primeiro A e o último A, o B com o B, e assim por diante), mais do que simplesmente de repetição ou similaridade. Na verdade, o efeito, comparando o primeiro A com o segundo A, por exemplo, é de repetição ou inversão dos princípios formativos, ou de como eles agem sobre um material que não é mais exatamente o mesmo, como, por exemplo, a inversão de uma série dodecafônica em relação à sua versão original. As estruturas sacrificiais de Sacrifício podem assemelhar-se ao princípio da forma em arco (exemplificado por esquemas como ABCBA e semelhantes), muito usado na composição musical ao longo dos séculos, tanto macroformal como microformalmente. Neste último caso, os ritmos não retrogradáveis, palindrômicos, de Olivier Messiaen vêm facilmente à memória. Eles exemplificam o modo de como a 312 simetria produz unidade através de uma gestalt que se fecha em si mesma, contribuindo na formação do seu sentido de conclusão. Por outro lado, se todo ritmo não retrogradável é sacrificial, mesmo que não tenha um centro, como na frase “socorram-me subi no ônibus em Marrocos ”, as estruturas sacrificiais de Sacrifício são todas palíndromos com centro. O elemento central não se repete, e faz com que a estrutura sempre tenha um número ímpar de elementos, conforme abaixo:

Palíndromo sem centro:

Palíndromo com centro:

Para encerrar esta discussão a relação entre a estrutura sacrificial e os ritmos não retrogradáveis, é preciso notar que uma estrutura sacrificial baseada no princípio “o que é longo antes do centro se torna curto depois do centro e o que é curto antes do centro se torna longo depois do centro” gera uma estrutura rítmica que nem mesmo resulta num palíndromo, pois este se baseia na repetição exata dos seus elementos, e não na relação de inversão entre eles: Música e sacrifício

Portanto, pelo menos teoricamente, o princípio de estruturação sacrificial não resulta necessariamente num palíndromo, ou nem mesmo numa simetria a nível superficial (neste exemplo, a simetria termina por ser jogada para o plano de fundo). O Quarteto de Cordas no. 5 de Béla Bartók ou a Sinfonia de Luciano Berio são exemplos recentes de forma em arco onde a disposição de seus cinco movimentos consiste em aninha-los em torno a um movimento central que funciona como núcleo ou eixo principal da composição, enquanto os movimentos em posições recíprocas tem conteúdos interrelacionados. No entanto, Sacrifício , além de explicitar sua relação com a cosmologia mítica dos Vedas, vai mais além e com maior rigor do que a forma em arco na direção de criar 313 relações de interdependência, inversão e complementaridade entre as partes recíprocas. A macroforma de Sacrifício é um movimento único, dividido em sete partes ou seções: ABCDCBA, (A: compassos 1 a 60; B: 61 a 104; C: 105 a 141; D: 142 a 240, C: 241 a 278; B: c. 279 a 322; A: 323 ao final). A seção central, D, intitula-se Axis Mundi . O ponto central de D, e, consequentemente, da composição toda, está indicado na partitura pela palavra bindu e corresponde à pausa de semínima pontuada que preenche o compasso 186. Bindu significa, literalmente, gota ou ponto (drapsa em sânscrito védico). Também significa zero ou o símbolo para zero, ( śūnya, vazio/infinito no budismo), e representa a Realidade Suprema.

Bindu é, não apenas, a origem, a base, o lar onde se descansa, mas também pura iluminação, assim como som vibratório, sempre se expressando em forma de conceitos ( pratyaya ) e de objetos (bhūta ) enquanto permanece em sua glória primitiva de consciência ( bhānapiṇḍa ) condensada ou incondicional (CHAKRAVARTY, 1992, p.1)

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A pausa bindu é o centro do universo sonoro de Sacrifício , o ponto sem dimensão do círculo, aquilo que em música mais se aproxima à ideia de vazio ou de não manifestação: o silêncio. Enquanto a primeira metade da música, partindo da multiplicidade de cantos e sons, caminha em direção a este silêncio, à unidade, a segunda metade parte da unidade para a multiplicidade. Em Sacrifício, as estruturas sacrificiais são todas simetrias com centro porque seguem um princípio formativo existente na estrutura dos rituais sacrificiais védicos. A descrição do indólogo Jan C. Heesterman citada abaixo serviu para mim como confirmação do procedimento já adotado na composição da obra musical 16 e torna clara esta relação entre a estrutura da música e a liturgia védica, ambas refletindo o próprio princípio do sacrifício como logos :

Cada sacrifício consiste numa sucessão linear de tais 314 unidades de ato e fórmula padronizados, primariamente o ato sacrificial básico com ou sem as suas extensões. O alinhamento dos atos novamente mostra o princípio de “aninhamento” por meio de encaixotar uma unidade em ambos os lados por duas outras unidades mutuamente conectadas ou similares, como no caso da oferenda principal (pradhāna ), que é precedida pelas “oferendas anteriores” (prayāja ) e seguida das “oferendas posteriores” ( anuyāja ). Deste modo, alcança-se uma complicada concatenação ao longo de todo o sacrifício, onde seu início e seu final espelham-se um ao outro como que para circundar o todo. (HEESTERMAN, Jan C., p. 228)

Um simples exemplo de estrutura sacrificial (ou de ninho, na terminologia de Heesterman) está na organização do espaço de alturas em Sacrifício , à qual dou o nome de “campo harmônico”. Até 1999 trabalhei com campos harmônicos

16 Assim como na de outras obras; os estudos védicos que realizei entre 1991 e 1998 foram aplicados de modo menos sistemático (ou não sistemático) em composições que precedem Sacrifício , como por exemplo Matrimônio do Céu e da Terra , como foi observado no início. Música e sacrifício simétricos formados em torno de um tom central em diversas composições. O de Sacrifício é:

O campo harmônico existe em duas versões, I e II. Na versão I, constrói-se em torno ao (ou acima e abaixo do) tom central (Do 3) um campo harmônico empilhando intervalos de cinco e seis semitons alternadamente (intervalos-5 e intervalos-6). Acima do Dó resultam os tons Fa, Si, Mi, e Sib, enquanto abaixo do Dó, a mesma alternância de intervalos (5- 6-5-6) espelhados resulta nos tons Sol, Reb, Lab e Re. A versão 315 II é um campo harmônico recíproco ou interdependente a I, pois resulta da inversão do posicionamento dos tons em torno do mesmo Do central: os tons do registro inferior ao Do central em I passam para o registro superior de II, e os do registro superior de I passam para o inferior de II. Com isto, os intervalos-5 se invertem em intervalos-7 (os intervalos-6, por serem trítonos, não tem inversão). O campo harmônico não se limita a funcionar apenas como uma estrutura de alturas microcósmica, isto é, uma estrutura de alturas local num trecho específico da composição. O campo está sempre presente durante todo a macroforma como espaço total do universo sonoro da composição, como estrutura de fundo sobre a qual se apoiam as estruturas locais, submerso pelas linhas vocais e suas resultantes verticais 17 . É

17 A explicação de como isto funciona foge ao escopo deste artigo mas, em linhas gerais, pode-se dizer que o campo harmônico é um espectro simétrico formado por tons primários em torno a uma fundamental central. Cada tom primário, por sua vez, é o centro de seu próprio “subcampo” simétrico, e seus tons, na estrutura total, adquirem um lugar secundário ou ornamental nesta hierarquia.

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apenas na seção central, Axis Mundi , que, trazido à superfície da textura, ele se torna diretamente audível como “acorde”: a versão I começa a formar-se no compasso 142 e se completa no c. 156 (ver exemplo abaixo); a versão II começa a formar-se no compasso 200 e se completa no c. 223.

316

1. Campo harmônico I em Axis Mundi como “acorde” de superfície (c.156).

A própria macroforma de Sacrifício é outro exemplo de estrutura sacrificial, que segue a forma do tambor damaru (ver ilustração abaixo).

Música e sacrifício

2. Damaru tibetano feito de crânios humanos. Boston Museum of Fine Arts. Foto de L. A. Irlandini.

O damaru , tambor ritual das culturas indo-tibetanas, é rico de conteúdos simbólicos relacionados à cosmologia e 317 escatologia, tanto no hinduísmo quanto no budismo tibetano. Com ele, o deus indiano Śiva, em seu aspecto de Senhor da Dança ou Rei dos Atores (Śiva Naṭarāja) cria o universo, conforme se lê em diversos textos tradicionais de arte indiana, por exemplo, no Chidambara Mummaṇi Kovai , citado entre outros textos, por Coomaraswamy: “Oh Senhor, Sua mão segurando o tambor sagrado criou e ordenou os céus e a terra e outros mundos e inúmeras almas.” (COOMARASWAMY, 1985, p. 60) No contexto do budismo tibetano, o damaru “é uma incorporação microcósmica da estrutura do universo e da vida senciente” (ELLINGSON, 1979), e contém diversos níveis de significação simbólica amplamente relacionados com a meditação e filosofia do budismo. O damaru, como todo membranofone construído tradicionalmente, envolve o sacrifício de um animal para que seja criado e possa criar sons. Mas, além disso, o uso frequente de crânios humanos na sua construção evoca eloquentemente não só a transitoriedade da vida e o dualismo entre nascimento e morte, macho e fêmea, etc, como também a visão de complementaridade que permite superar este dualismo: a ideia de sacrifício cósmico. Marius Schneider comenta a

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sacrificialidade do damaru ao apontar para sua forma de ampulheta (mais um símbolo do tempo), com a qual ele compartilha o mesmo significado:

O instrumento consiste, como a letra X e a figura do próprio Śiva, de dois espaços vazios triangulares contrapostos e iguais, e frequentemente é coberto de um lado com pele masculina e do outro com pele feminina. Assim, Morte e Vida, ou Céu e Terra, valem como valores opostos porém análogos, de cuja constante união a vida sempre se renova no cadinho do sacrifício. Aquilo que a lógica de hoje vê como contraposto e inconciliável, no mundo arcaico constitui uma unidade não só vital mas também conceitual. (SCHNEIDER, 1970, p. 28)

Aquilo a que tenho denominado “sacrificialidade”, a saber, esta dinâmica de reciprocidade entre elementos opostos que resulta em considera-los não mais como estando em contradição ou contrariedade mas sim em complementaridade 318 e interdependência, torna-se o princípio formativo de estruturas musicais, espaciais ou temporais. Em outras palavras, o sacrifício, como princípio formativo de uma composição musical, é o logos (λόγος), no sentido dado ao termo por Heráclito (ca. 535 AEC), a ordem cósmica ( ṛta ) deste universo acústico que é a música de Sacrifício. Aqui é preciso observar com mais detalhe duas ideias que permaneceram até agora ainda como que implícitas: a ideia de forma musical como espaço/tempo, e a de música como cosmologia. Em nossa tentativa de falar de música, vemo-nos constantemente fazendo analogias, metáforas, comparações da música com a forma, a linguagem, o tempo, o espaço, a cosmologia. A ideia de forma muitas vezes leva a concepções que esquematizam o fluir da música. Pensar numa sonata como esquema formal risca, de certo modo, transformar o devir sonata num quisto, algo rígido e que enquadra o livre movimento dos tons e ritmos. A própria idéia de simetria pode, no processo composicional, resultar em que a intuição e imaginação do artista fiquem subjugadas a conceitualizações ou racionalizações esterilizantes, motivo pelo qual Morton Feldman preferia aquilo a que chamou de crippled symmetry , uma simetria aleijada, imperfeita. O próprio uso da simetria Música e sacrifício poderia resultar num efeito de simples duplicação dos opostos, ao invés da desejada síntese de opostos (CHEVALIER, 1986, p. 389). Penso que bastará aqui apenas sugerir que a estruturação de simetrias em Sacrifício não reduziu a escrita composicional a um automatistmo sistêmico. Mas a questão principal consiste na possibilidade de considerar a música de diversos pontos de vista, por diversas analogias, simultaneamente , na medida em que todas contribuem e convergem na formação de um entendimento, uma concepção a respeito da música. Portanto, ao se pensar a macroforma como um damaru ou uma ampulheta, não se trata, necessariamente de conformar o devir sonoro a uma transcrição musical literal de uma imagem visual. Trata-se de compreender a relação como sendo simbólica. Por isso é possível ilustrar a macroforma de Sacrifício pela figura abaixo, sem perda da concepção do sacrifício como logos musical de um espaço/tempo, pois ela, justamente, ilustra, mais uma vez , esta própria ideia. 319

Macroforma de Sacrifício

Vários são os símbolos arquetípicos da mônada da vida (puruṣa ), o vazio indiferenciado. Nas cosmologias antigas, Axis Mundi , eixo do mundo, árvore da vida, skhamba (pilar cósmico, pilar do sacrifício) toma uma acepção quase que geográfica,

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indicando o espaço sagrado originário, como todo templo ou altar simboliza. Na música, a seção central é este eixo cósmico onde o campo harmônico, que anteriormente se mantinha como estrutura de fundo, se revela à superfície, à audição direta, pois o ouvinte chega às representações sonoras mais próximas do silêncio, da sua própria absorção no vazio. Uma vez que este “acorde” se manifesta assim claramente no espaço textural, ele sofre um processo de contração ( pralāya , reabsorção do universo no absoluto, na concepção indiana), onde as vozes superiores procedem por tons inteiros descendentes e as inferiores por tons inteiros ascendentes até atingirem o uníssono com o tom central, Do 3, na sílaba OṂ, que se extingue na pausa central, bindu . Em seguida, o uníssono retorna àquilo que, conforme a cosmogonia sônica dos Vedas, é a sílaba criadora do universo, OṂ, e, por um processo de expansão, inverso àquele de contração, as vozes superiores ao Do 3 central procedem por tons inteiros ascendentes e as inferiores por tons inteiros descendentes até formar o “acorde” 320 em sua versão II, gerando, assim, o campo harmônico sobre o qual se apoiarão as linhas vocais da segunda parte. Se este é o devir temporal indicado pela partitura de Sacrifício , ao segui-la da primeira à última página, isto é, uma estrutura macroformal sacrificial com um instante central em silêncio, há, por outro lado, uma outra possibilidade para a leitura da partitura e, portanto, uma outra alternativa para sua criação na performance. Nesta, “inverte-se” a partitura, fazendo a música começar no compasso 187, com o D 3 central se expandindo na versão II do campo harmônico. Uma vez que se chega ao último compasso (c. 382), este é imediatamente emendado ao primeiro compasso, sem qualquer interrupção, de modo que a performance continua até terminar no compasso 186, aquele com a pausa de semínima pontuada. Nesta segunda opção de performance, bindu , o vazio indiferenciado, equivale àquele tempo em que a música já terminou ou ainda não começou: é o tempo em que se desenrola a vida dos músicos, estes semideuses (demiurgos ou tricksters ) responsáveis pela criação de música. Pois este tempo é, para a música, o seu silêncio. “Ele é a Morte da qual depende a nossa vida” , diriam os próprios sons da música, parafraseando Coomaraswamy (veja a citação que termina a seção sobre Música e sacrifício

Puruṣa neste artigo). O compositor, sujeito da ação que inicia o processo de criação musical, e que vive neste tempo “não- musical” (o nosso quotidiano), vivencia a composição ainda não criada como uma totalidade arquetípica, latente, em potencialidade, ainda inexistente. Ele (ou ela), como um demiurgo, entrega-se a ela, composição, entendida como processo criativo e como objeto resultante deste processo, a obra. O objeto é, nada mais nada menos, do que um universo acústico, um cosmos sonoro que tem como logos os seus próprios princípios formativos. Neste sentido, a música é uma cosmogonia, uma cosmologia, uma ideia que desenvolvi mais detalhadamente noutra sede (IRLANDINI, 2012). Na primeira opção de performance, a macroforma de Sacrifício é uma ampulheta, sendo a progressiva contração do espaço textural correspondente ao caminho da morte ou extinção, uma vez que o silêncio central, bindu , o ponto zero de manifestação musical, é o objetivo teleológico da primeira parte. Até aqui, a direção da música é a da expiração, como uma 321 espiral que se contrai em direção ao próprio centro. Na continuação, o processo inverso, de inspiração, nascimento e criação, consiste na expansão, a partir do silêncio e do tom central, de um novo espaço harmônico, estruturalmente recíproco ao primeiro, em progressivo acréscimo de manifestação e multiplicidade, como uma espiral que se expande a partir de seu centro. A segunda opção de performance resulta na perda da forma de ampulheta e na obtenção da forma de diamante ou losango, que lhe é complementar. Inverte-se a ordem da alternância do expirar/inspirar; partindo do Do central, a peça se inicia com a expansão, inspiração, alcança em seu centro o ápice de manifestação, muda bruscamente para o espaço harmônico recíproco, e, expirando, segue rumo à contração textural, ao uníssono e, finalmente, à extinção dos sons. Se a direção da primeira possibilidade pode ser vista como positiva, por terminar no auge do processo de nascimento, a segunda pode ser vista como negativa, por terminar no auge do processo de morte. Ambas são igualmente representativas da obra, uma o alter ego da outra. Sacrifício é uma peça sobre a vida e a ideia de que o universo está em

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perpétua regeneração através do sacrifício. A obra reclama o status da voz humana como o instrumento que melhor veicula a relação entre criação musical e sacrifício, pois o ato de cantar é o sacrifício de pneuma , respiração e espírito, a força vital do musicista que canta que é sacrificada para que a música se torne fenômeno acústico e, portanto, físico. A versão instrumental para dois pianos retém esta idéia, pois, na música instrumental, embora não vocal, requer-se quase do mesmo modo o investimento da respiração, espírito, vontade e força vital. Toda música e todo fazer música é uma oferenda.

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Apresentação do inapresentável, ocorrência e presença da matéria no sublime musical de Lyotard

JOÃO PAULO COSTA DO NASCIMENTO

Introdução

reflexão estética de Jean-François Lyotard (1924-1998) A constitui um setor privilegiado de sua filosofia que impacta diretamente em seus domínios político e epistemólogico. Seu primeiro texto mais dedicado a arte data de 1969. Mas é no início da década de 1980 que podemos observar uma transformação que divide tal produção em duas grandes fases: a “estética libidinal”, composta por publicações do final dos anos sessenta e dos anos setenta, e a “estética do sublime”, composta pelos escritos dos anos oitenta e noventa (AMEY, 2000; PARRET, 2012). A estética libidinal é caracterizada, em linhas gerais, pelo uso de termos da metapsicologia freudiana para o comentário da produção estética, abordando-se as obras artísticas como dispositivos de deslocamento das energias psíquicas – ou pulsões - e analisando-as sob um ponto de vista da economia da libido. Já a estética do sublime é marcada pela mudança conhecida como “virada kantiana” (PARRET, 2012, p. 9), na qual Lyotard se apropria do referencial teórico das faculdades, principalmente o da Crítica da Faculdade do Juízo de Kant. No entanto, o referencial freudiano não é completamente dispensado, mas apenas enquadrado em uma nova síntese com os termos kantianos, aos quais se adiciona a influência significativa de Heidegger e de Merleau-Ponty. Esta formulação do sublime delineia-se através dos seguintes conceitos subsidiários: inapresentável, ocorrência , presença, matéria e obediência (passibilidade) . Teremos por objetivo, aqui, identificar e expor alguns aspectos sobre o modo pelo qual tais conceitos se assentam no terreno da música do século XX, conforme os

Apresentação do inapresentável exemplos escolhidos por Lyotard para especificar sua estética do sublime relativa à música.

O Sublime Kantiano de Lyotard Lyotard assume o uso do termo sublime, pela primeira vez, em seu texto Resposta à Pergunta: o que é Pós-Moderno? (1993), fruto de uma conferência proferida no ano de 1982 1. Lyotard define o termo sublime como “uma afecção forte e equívoca [que] compreende ao mesmo tempo prazer e dor”, obtida como resultado de um “conflito entre as faculdades de um sujeito, a faculdade de conceber algo e a faculdade de ‘presentificar’ [ou apresentar] algo” (LYOTARD, 1993, p. 21):

Podemos conceber o absolutamente grande [infinito], o absolutamente poderoso, mas qualquer ‘presentificação’ de um objeto destinado a ‘fazer ver’ essa grandeza ou esse poder absolutos surge-nos, ainda, como dolorosamente 325 insuficiente. Estas são ideias de que não há ‘presentificação’ possível, e portanto não fazem conhecer nada na realidade (a experiência), proíbem também a concordância livre das faculdades que produz o sentimento do belo, impedem a

1 Tal conferência responde a uma demanda de seus leitores e críticos por uma explicação a respeito do que seria o pós-moderno no campo específico da cultura e, em especial, da arte. Isso se deve ao fato de que seu livro A Condição Pós-Moderna (2003), redigido em 1979, destina- se a compreensão do fenômeno em termos filosóficos, porém mais voltado ao campo da política, da epistemologia e da sociologia. Mas como bem sabemos, o termo pós-moderno esteve, em suas origens, muito mais ligado as artes do que qualquer outra área do saber. Assim, o conceito de sublime adentra a filosofia de Lyotard afim de se fazer tal ajuste e explanação da condição pós-moderna da arte. No entanto, julgamos desnecessário abordar tal ideia aqui devido ao fato de que, na medida em que a reflexão sobre o sublime cresce na obra do filósofo, o termo pós-modernismo vai se mostrando inadequado ao projeto filosófico e sede lugar a termo “reescrita da modernidade”, com forte relativização da ruptura entre modernismo e pós- modernismo (1997, p.33). Para o acesso de minha conclusões a respeito do pós-moderno e a música, com alguns apontamentos sobre o papel do sublime neste debate, ver Abordagens do Pós-Moderno em Música (2010).

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formação e a estabilização do gosto. Pode-se dizer que são ‘impresentificáveis’ (idem, p. 22) 2.

É necessário, portanto, que recuperemos alguns pontos a respeito do sublime em Kant 3. Na tarefa de investigar as condições de possibilidade de um conhecimento, ele elabora uma trama de faculdades subjetivas responsáveis por diversas sínteses entre conceitos e intuições nas formações de juízos teóricos (Razão Pura), prático-morais (Razão Prática), estéticos e teleológicos (Faculdade de Julgar). O conceito de sublime só pode ser compreendido dentro deste enquadre. Não seria possível desenvolver aqui uma explanação satisfatória de todo este mecanismo. Mas por ora, devemos ter em conta que Kant buscava diferenciar a sensibilidade do entendimento e da razão enquanto faculdades, ou seja, competências e poderes diferentes na estrutura do sujeito. 326 A sensibilidade é entendida não apenas como uma “tábula rasa passiva” de percepção confusa, mas sim como possuidora de certos mecanismos “ a priori ” de sensação. Mas “os objetos [de conhecimento] ‘são nos dados’ através da sensibilidade e depois ‘pensados’ pela [faculdade do] entendimento’” (CAYGILL, 2000, p. 284-285). Assim, “o entendimento recebe da sensibilidade os materiais da experiência, os quais processa mediante sua subsunção numa lei”. Sua função seria “estabelecer ‘a lei de unidade sintética de todas as experiências’” e estipular uma regra para cada fenômeno e para a totalidade deles (CAYGILL, 2000, p.112- 113). Já a razão, tem a capacidade de unificar as regras do entendimento mediante princípios. Mas a razão trabalha através de conceitos puros, independentes das condições concretas dos fenômenos, denominados Ideias. Uma Ideia é “um conceito da razão cujo objeto não pode ser encontrado em parte alguma na experiência”(CAYGILL, 2000, p. 178). Por isso

2 Tomamos os termos apresentar e presentificar, provenientes de diferentes traduções de diferentes obras para o do termo francês unpresentable , como sinônimosos. O mesmo se dá para os termos impresentificável e inapresentável. 3 Para tal tarefa, apoiaremo-nos em Caygill (2000). Apresentação do inapresentável ela será chamada de “incondicionada”, pois independe das condições possíveis de experiência sensível dos objetos. O conceito de Ideia da razão possui uma importância capital na filosofia kantiana, pois seria o caminho pelo qual a razão poderia pensar algo sem depender da sensibilidade concreta, ou seja, livre de toda determinação. Esta seria depositária das expectativas por liberdade, uma vez que torna o pensamento humano independente das limitações do concreto. Devemos, ainda, acrescentar a faculdade da imaginação. Na obra de Kant, ela figura ora como uma subdivisão da faculdade da sensibilidade, ora como uma faculdade para além das demais faculdades. Mas é importante seu papel de mediadora entre sensibilidade e entendimento. É a faculdade da imaginação que possibilita, por exemplo, a retenção de dados sensíveis de um objeto que não está mais presente em forma de memória. Ela possui a função de apresentar tais dados sensíveis para a formulação de juízos do entendimento (CAYGILL, 2000, p. 188- 189). 327 Sobre a posição do sublime nesta trama, pode-se dizer que ele está numa classe de conceitos parcialmente analisáveis, assim como o belo, tratando-se de juízos estéticos – juízo de belo ou juízo de sublime – e, portanto, juízos que não seguem uma determinação lógico-dedutiva externa a eles próprios, sendo juízos de reflexão. (KANT, 2010, p. 89-92). São resultantes de uma espécie de mecanismo no qual o pensamento se sente ou se pensa, por isso levam o nome de juízos reflexivos. Isso corresponde a dizer que tais juízos não podem ser explicados por um mecanismo lógico de causa e efeito e deduzidos a partir de esquemas da faculdade do entendimento. Eles não são conceitos do entendimento. São, na verdade, juízos reflexivos resultantes da concordância ou da discordância (harmonia ou desarmonia) entre as faculdades diante de uma experiência do sujeito. Pode-se, portanto, diferenciar o belo do sublime através da relação mais ou menos harmoniosa e mais ou menos prazerosa resultante do jogo das faculdades em questão. Em um juízo estético, o sujeito pode experimentar um sentimento de prazer ou desprazer mediante a presença de um objeto da experiência. Em um juízo de gosto, como o belo, há um aprazimento resultante de um jogo harmonioso entre a

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faculdade da imaginação e a faculdade do entendimento. Aqui, o entendimento reconhece nos dados apresentados uma forma, mesmo que ela seja paradoxalmente sem conceito. Ocorre que o entendimento não pode subsumir tais dados em uma lei ou regra, o que faria deste juízo um conceito. No entanto, ele reconhece uma ordem formal estética equivalente a pensar que há uma regra, mas tal regra não se apresenta, não se pronuncia. Este é o juízo estético do belo, um sentimento de prazer proveniente da relação harmoniosa entre a faculdade da imaginação e do entendimento (CAYGILL, 2000, p. 46) No entanto, algo de uma ordem diferente acontece no juízo do sublime. Este seria um sentimento vivido pelo sujeito diante da falha da imaginação em apresentar dados sensíveis que possam ser subsumidos pelo entendimento na formação de um conceito ou que possibilitem o reconhecimento de uma forma sem conceito, como ocorre no belo. Vejamos como Kant aborda tais diferenças: 328 [...] saltam também aos olhos consideráveis diferenças entre ambos. O belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na limitação; o sublime, contrariamente, pode também ser encontrado em um objeto sem forma, na medida em que seja representada ou que o objeto enseje representar nele uma ilimitação , pensada, além disso, em sua totalidade; de modo que o belo parece ser considerado como apresentação de um conceito indeterminado do entendimento, o sublime, porém, como apresentação de um conceito semelhante da razão […] Enquanto o belo comporta diretamente um sentimento de promoção da vida […], o sentimento do sublime é um prazer que surge só indiretamente , ou seja, ele é produzido pelo sentimento de uma momentânea inibição das forças vitais e pela efusão imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas, por conseguinte enquanto comoção não parece ser nenhum jogo, mas seriedade na ocupação da faculdade da imaginação. […] a complacência no sublime contém não tanto prazer positivo, quanto muito mais admiração ou respeito, isto é, merece ser chamada de prazer negativo. Mas a diferença interna mais importante entre o sublime e o belo é antes esta: [...] a beleza da natureza (autossubsistente) inclui uma conformidade afins em sua forma, pela qual o Apresentação do inapresentável

objeto, por assim dizer, parece predeterminado para nossa faculdade de juízo, e assim constitui em si um objeto de complacência; contrariamente, aquilo que, sem raciocínio, produz em nós e simplesmente na apreensão o sentimento do sublime, na verdade pode, quanto à forma, aparecer como contrário a fins para nossa faculdade de juízo, inconveniente à nossa faculdade de apresentação e, por assim dizer, violento para a faculdade da imaginação, mas apesar disso e só por isso é julgado ser tanto mais sublime (KANT, 2010, p. 90, §23) 4.

Do trecho acima, devemos ressaltar os seguintes fatos: o sublime não é conforme afins, o que implica em dizer que está associado ao sem forma, ao informe; ele proporciona um prazer indireto, posterior a inibição das forças vitais (misto entre prazer e desprazer), também chamado de prazer negativo; ele se apresenta como inadequado a apresentação e violento a faculdade da imaginação. Mas para Kant, enquanto a imaginação não reconhece complacência em relação a 329 faculdade do entendimento, ela reconhece tal complacência em relação à razão, ou seja, uma faculdade de nível superior responsável por formular os princípios do entendimento. Podemos aqui acrescentar que o sublime é um juízo que não se encontra nos objetos ou na natureza, mas é resultado de um certo tipo de disposição anímica do sujeito, tendo em vista o entrelaçamento de suas faculdades diante de uma experiência; ele não pode ser encontrado em nenhuma forma sensível, sendo, portanto, uma “apresentação [presentificação] negativa” segundo os termos de Lyotard (1993, p. 23; 1997, p.91). Para Kant, ele se equipara a uma Ideia da razão devido a sua inadequação à sensibilidade. A imaginação, ao invés de buscar parceria com o entendimento na busca de uma conformidade afins, uma forma sem conceito, troca de parceira e busca uma Ideia incondicionada de apresentação sensível. A passagem abaixo ilustra tais afirmações no texto da terceira Crítica : […]Não podemos dizer mais senão que o objeto é apto à apresentação de uma sublimidade que pode ser encontrada no ânimo ; pois o verdadeiro sublime não pode estar contido

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em nenhuma forma sensível , mas concerne somente a ideias da razão , que, embora não possibilitem nenhuma representação adequada a elas, são avivadas e evocadas ao ânimo precisamente por essa inadequação, que se deixa apresentar sensivelmente (KANT, 2010, p. 91; §23).

Lembremos que uma apresentação informe, ao afetar o sujeito com o sentimento de que há algo impossível de ser apreendido pela sensibilidade, dá testemunho da existência do ilimitado ou do infinito. E este é o exemplo mais conhecido de sublimidade retirado do texto kantiano: “denominamos sublime o que é absolutamente grande”(KANT, 2010, p. 93; §25). Assim, o sublime é a afecção causada no sujeito pelas Ideias do absolutamente poderoso ou do absolutamente grande, como é o caso da Ideia de infinito. Como uma Ideia da razão, o infinito não pode ser deduzido a partir de dados sensíveis, mas pode ser pensado como um conceito puro 330 incondicionado. O juízo estético diante da ideia de infinito é o sublime.

O Sublime de Lyotard para além de Kant Lyotard aceita, em parte, os termos kantianos 5 e define esta apresentação negativa como “inapresentável”. Localiza aí a inspiração das vanguardas modernas ao dizer que a arte moderna é aquela que “consagra o seu petit technique [...] a ‘presentificar’ [apresentar] o que há de ‘impresentificável’ [inapresentável]”(1993, p.22). Mas nos ensaios que compõe o livro O Inhumano (1997), em meados dos anos oitenta, começa a diferir-se do sublime kantiano. Pode-se dizer que a grande diferença está na recusa da afirmação de um novo acordo entre

5 Lyotard escreveu um livro intitulado Lições Sobre a Analítica do Sublime (1993). Trata-se de uma abordagem do sublime calcada exclusivamente na analítica do sublime de Kant com maior interesse na compreensão deste sistema do que na proposição de uma nova teoria do sublime. No entanto, pode-se observar pequenos ajustes no sistema kantiano que apontam para as adaptações que Lyotard fará de tais enunciados nas demais obras. Apresentação do inapresentável imaginação e razão diante do conflito entre a primeira e o entendimento. Privilegia-se, então, a abertura ou fratura do sujeito e mantém-se a tensão de um conflito intransponível, de uma diferença entre a sensibilidade e o pensamento que não passa pelo privilégio do segundo. Trata-se da assunção do sublime como um experiência de quebra da consciência delimitada de um eu, do despojamento de suas capacidades de pensamento e sensibilidade diante de algo que não pode ser sentido (VALL, 2002; SAINT-GIRONS, 2005). Lyotard afirma que, “com a estética do sublime, a aposta das artes durante os séculos XIX e XX, é testemunhar do indeterminado existente”(1997, p. 106). Mas a definição do que seria o inapresentável tomo outro caminho:

As vanguardas pictóricas cumprem o romantismo, ou seja, o modernismo, o qual representa num sentido forte e purificador [...], a falha da regulação entre o sensível e o inteligível. Mas, ao mesmo tempo, representam uma saída 331 para a nostalgia romântica porque não procuram o não apresentável no mais longínquo, como na origem ou um fim perdidos, a apresentar no tema do quadro, mas perto, na própria matéria do quadro artístico (1997, p. 130).

Aqui o sublime se adequa melhora às coisas da arte, a partir de princípios que não são transcendentes à própria matéria artística. Não se tem alusões a princípios metafísicos ou princípios de caráter essencialista, nem mesmo a aposta no abstracionismo das Ideias da razão. Lyotard opera uma ligação do termo inapresentável aos termos “inapreensível” e, consequentemente, aos termos inaudível e invisível. Assim “o inaudível e o invisível não pertencem a um substrato suprassensível que escaparia inteiramente a condição ordinária do tempo-espaço-matéria”, diferentemente do sublime kantiano no qual apenas uma filosofia metafísica ou crítica poderia dar conta: “o inaudível é um gesto dentro do espaço-tempo-matéria do som, e ele faz sinal de sua presença, mas como isso que o pensamento-corpo não pode mais sentir. Ele faz sinal de uma presença que não é apresentável”(2012, p. 212). O que garante este distanciamento da metafísica é o

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conceito de matéria que passa a ser o foco do sublime em Lyotard. Portanto, o inapresentável é a “presença” da matéria, cuja qual o pensamento-corpo não pode mais sentir. Mas o que seria, então, matéria? Matéria é, antes de tudo, diferente de material. O material, seguindo uma tradição aristotélica de pensamento da matéria, seria a “matéria que está esperando, em suspenso, por uma forma que lhe dê acabamento e lhe admita, como uma potência que não está ainda atualizada ou realizada”(2012, p. 216). O material seria um dado sensível, mas que, de alguma maneira, já teria passado por um processo de identificação apriorística que lhe confere destinação e direção no pensamento-corpo. É como se este já estivesse preparado para aquele através de seus mecanismos de percepção. Mas tornar a matéria sensível ou pensada pressupõe que há algo de não pensável ou não sensível nesta matéria, que não possuímos uma antecipação de sua forma e que esse algo não obedece a 332 nenhuma finalidade. A advertência é para o fato de que mesmo o que pensamos ser dados sensíveis, ou o que sentimos como tal, sofrem a influência de mecanismos preestabelecidos de sensação-pensamento, atuando como filtros. Mas há algo na matéria que sempre escapa a tais pré-configurações. Segundo Durafour, essa matéria “não é mais o dado sensível exatamente”, e sim “o que Merleau-Ponty havia chamado de ‘forro do visível’, o qual acompanha todo o visível, melhor, que o sustém, que é seu suporte” (2012, p. 250). E Parret afirma: é uma “presença que excede a experiência concreta e as tensões do sensível” (2012, p. 10). Essa matéria é “‘imaterial’, an- objetável, já que só pode ‘acontecer ou ocorrer pelo preço da suspensão desses poderes ativos do espirito”(1997, p. 144). Assim, para que a matéria se faça presente, é importante que se vislumbre seu caráter “imaterial”, ou seja, o que dela não se converteu em códigos, nem mentais e nem corporais, e que não pode, ainda, ser visto, ser ouvido ou ser sentido como um material. Trata-se da matéria em seu sentido indistinto e indiscreto e, por isso mesmo, ainda imperceptível, possível apenas a uma pré-percepção.

Apresentação do inapresentável

Maurice Merleau-Ponty comentou o que chamou justamente de ‘dúvida de Cézanne’, como se o objetivo do pintor fosse, de fato, agarrar e restituir a percepção no seu início, a percepção ‘antes’ da percepção, poderia dizer: a cor, na sua ocorrência, a maravilha sentida pelo fato de ‘ocorrer’ (algo: cor) pelo menos a olho nu (1997, p. 107)

Até aqui, é possível afirmar que o sublime, em Lyotard, é o sentimento que se experimenta diante da apresentação do inapresentável, do testemunho da existência da matéria imaterial. Mas outro ponto importante é a afirmação de que ele é o sentimento de que “algo ocorre”: A “ocorrência” (acontecimento ou evento), mais um aspecto que diferencia o sublime lyotardiano em relação ao kantiano, é proeminentemente uma questão do tempo:

[...] A questão do tempo, do Ocorrerá , não faz parte, pelo 333 menos de forma explícita, da problemática de Kant. [...] A questão do tempo está no centro das [ Investigações Filosófica sobre a Origem de nossas Ideias de Sublime e de Belo ], escrito por Edmund Burke [...] Kant despoja a estética de Burke do que penso ser o seu maior desafio: mostrar que o sublime é provocado pela ameaça de nada ocorrer (1997, p.103-104)

E Lyotard continua:

[...] O belo dá um prazer positivo. Existe, porém, outro tipo de prazer, ligado a uma paixão mais forte do que a satisfação, que é a dor e a aproximação da morte. No entanto, a alma pode também afetar o corpo, como se sentisse uma dor de origem externa, pelo único meio de representações conscientes associadas inconscientemente a situações de dor. No léxico de Burke, esta paixão extremamente espiritual chama-se terror. Ora, os terrores estão ligados à privações: privação da luz, terror das trevas; privação do outro, terror da solidão; privação da linguagem, terror do silêncio; privação dos objetos, terror do vazio; privação da vida, terror da morte. O que é assustador é que o Ocorrerá não ocorra, cesse de ocorrer. (1997, p. 104)

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Este motivo, dado a Lyotard por Burke, é desenvolvido sob a influência de Heidegger: “Um acontecimento, uma ocorrência, o que Martin Heidegger chamava de ein Ereignis , é infinitamente simples; contudo, esta simplicidade só se pode tornar próxima na privação. O que chamamos pensamento deve ser desarmado”(idem, p.96). Para exemplificar este conceito, Lyotard recorre ao comentário das obras de Barnett Baruch Newman (1905-1970) 6, pintor nova-iorquino do círculo do expressionismo abstrato. Lyotard se apoia em uma afirmação de Newman de que seus quadros “não se prestam nem à manipulação do espaço nem a da imagem, mas à sensação do tempo” (NEWMAN apud LYOTARD, 1997, p. 92; 95), e completa:

Uma tela de Newman opõe às histórias a sua nudez plástica. Está ali, dimensões, cores, traços, sem alusão. Ao ponto de ser um problema para o comentador. O que dizer que não seja 334 dado? A descrição é fácil, mas monótona como uma paráfrase. A melhor glosa consiste na interrogação: o que dizer?, na exclamação: há!, na surpresa: e está! Todas expressões de um sentimento que tem um nome na tradição estética moderna (e na obra de Newman): o sublime. É o sentimento: aqui está. Não há assim quase nada para ‘consumir’ [...] Não se consome a ocorrência, mas apenas seu sentido. Sentir o instante é instantâneo (1997, p. 87)

Assim, experimentar a ocorrência seria experimentar um instante no tempo no qual não se indaga sobre o que ocorrerá - ou o que é isto, ou o que está ocorrendo - mas sim a respeito de que algo ocorre, aqui e agora algo existe: “o que acontece (quid) chega logo depois. O inicio é que há... ( quid ); o mundo, o que existe” (1997, p. 89). O quadro “representa a presença, o ser oferece-se aqui e agora”. Não interessa narrá-lo ou interpretá-lo. Como observadores, somos um “ouvido aberto ao som que chega do silêncio”(1997, p. 90). A obra interpela

6 Dentre as obras teóricas de Newman, podemos citar o ensaio O Sublime é Agora (1992) de 1948. Para uma referencia de seus quadros nos comentearios de Lyotard, nota-se a tela The Voice (1950) Apresentação do inapresentável seu espectador exigindo que ele “erga” a sua atenção para o quadro: “erguer os ouvidos, escutar”. A pergunta principal, diante desse quadro é: ocorrerá? Algo ocorrerá? E há um ‘milagre’ da criação, pois sente-se o instante em que algo emana do nada e acontece, em contraposição ao terror burkeano de que nada venha a ocorrer, pois “o sublime é que, no meio dessa iminência do nada, aconteça alguma coisa apesar de tudo”(1997, p. 91). Além disso, este instante de presença, o “now [agora] puro e simples”, “desampara e destitui a consciência, representa o que ela não consegue pensar, talvez mesmo o que esquece para ela própria se constituir “(1997, p. 96). Vall ajuda-nos a compreender o elemento de sublimidade contido em The Voice :

Sua sublimidade reside [...] na insistência da linha, uma insistência que se faz sentida como um jogo temporal com nossa atenção. Este jogo não é apenas prazeroso. Existe um sentimento irritado, resultante da frustração do desejo por 335 uma impertubável e prazerosa experiência de sonhar, pela presença cada vez mais forte e perturbadora do que no início parecia um detalhe. Mas existe, também, um sentido de permanecer acordado , de ser destinado ou chamado, ou mesmo de ser guiado, por um recurso pictórico emergindo da invisibilidade (VALL, 2002, p. 360)7.

Como podemos ver, as noções de inapresentável, matéria imaterial e ocorrência são interdependentes, pois o que se apresenta é está matéria que não pode ser apresentada, pois está destituída de sua forma que nos possibilita reconhecê-la, senti-la e pensá-la como material. E esta presença se dá na forma de uma ocorrência, um acontecimento, um vislumbre do impensável de que nada ocorrerá. Isso nos aterroriza e o que era antes insensível dá-se a sentir neste momento de tensão. A tensão se estabelece ao dar-se ouvido a ocorrência, na tentativa paradoxal de se por a escutar antes mesmo de se por a saber o que é que se escuta. A essa

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prostração em escuta, Lyotard deu o nome de “passibilidade” ou “obediência” ao acontecimento, à ocorrência.

Devemos sugerir, portanto, que haveria um estado do espírito à espera da ‘presença’ (uma presença que não é de nenhum modo apresentada no sentido do aqui e agora , isto é, como o que designa as deíticas da apresentação), um estado de espírito sem espírito, que é requerido do espírito não para que a matéria seja percebida nem concebida, nem dada, nem apreendida, mas para que haja alguma coisa. E digo matéria para designar o “ que há ” o quod , porque essa presença, na ausência do espírito ativo, é e não é timbre, tom, nuance, numa ou noutra disposição da sensibilidade, num ou noutro dos sensoria , numa ou noutra passibilidade, pela qual o espírito é acessível ao acontecimento material e se sente ‘tocado’ (1997, p. 144-145).

336 O sublime na música contemporânea Nos ensaios sobre música, pertencentes a essa estética do sublime, alguns temas aparecem com constância como se as mesmas ideias tivessem sido escritas e rescritas de forma variada em cada texto, como um exercício de estilo. Seus termos e assuntos são basicamente os mesmos, trocando-se a ordem de aparecimento em cada um destes ensaios. A temática das vanguardas musicais predomina e a discussão musical não é simplesmente um terreno de exemplificação de um pensamento estético retirado da literatura ou da pintura, mas sim um campo potente de formulação, síntese e criação de tais ideias. A música está presente na estética de Lyotard desde o período libidinal, do qual destacam-se alguns ensaios mais concentrados nas ideias e na música de Cage, Bério e Schoenberg. Já sobre a estética do sublime, algumas de suas definições e formulações mais condensadas acontecem nos ensaios sobre música, uma vez que a música colaborou contundentemente para a construção da teoria estética de autores caros a ele, tal como é o caso de Adorno. Mas a principal pergunta é: o que seria essa estética do sublime na música? Como se daria uma apresentação do inapresentável no campo do sonoro? O apresentável, em Apresentação do inapresentável música, é o inaudível: “a música trabalha para dar à luz o audível do sopro inaudível” (1996, p. 202). E este é um “gesto” no espaço-tempo-matéria do som, no “espaço-tempo-som” (2012, p. 209). Mas este gesto “não é o feito do autor. O trabalho do autor é de deixar o som fazer um gesto que pareça exceder o audível e de registrar o traço dentro do espaço- tempo-som que determina o campo do audível”(2012, p. 209). Tais gestos não são nem os conteúdos nem as formas, mas sim o poder absolutamente inovador da obra. O gesto é o acontecimento que afeta a sensibilidade para além do que ela pode sentir:

o gesto não é feito pelo compositor, ele não exprime alguma subjetividade. A delícia que ele proporciona à subjetividade do compositor ou do ouvinte supõe, ao contrário, um tipo de suspenção ou decomposição dessa subjetividade. Porque a ‘presença’ do gesto dentro da apresentação das formas adentra o desenlace da síntese sobre as quais a subjetividade 337 é construída. Seu tempo, seu espaço, a materialidade das sensações que a afetam são suspendidos. A ‘presença’ não é ela-mesma sentida já que ela não satisfaz às condições de lugar, de momento e de sensorium que são aqueles da sensibilidade subjetiva (2012, p. 212-213)

Podemos ver que a mesma suspensão do espirito característica da passibilidade aqui é retomada como suspensão ou decomposição da subjetividade. Lyotard relembra Adorno e diz que “este gesto não é expressivo” - “a expressão é um engodo”-, pois a arte não teria por destinação exprimir o mistério da encarnação. Ela supõe um pensamento- corpo e a capacidade de ser afetada pelo sensível. Ela não tem nada a exprimir desta encarnação e sim deve excedê-la. O gesto proporciona o sentimento de uma ocorrência, um acontecimento, instaurado dentro do espaço-tempo-som. Portanto, é no percurso de se definir o que é essa matéria som que tais conceitos vão se delineando:

É igualmente óbvio que, de Debussy a Boulez, Cage e Nono, passando por Webern ou Varèse, a atenção dos músicos

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modernos está virada para essa passibilidade secreta em relação ao timbre sonoro. É ela também que dá sua importância ao jazz e a música eletrônica. Os músicos tem acesso a um continuum infinito de matizes sonoros, com os gongs e, em geral, com todas as percussões e os sintetizadores. Além do mais, penso que seria necessário reconsiderar, sob este aspecto, o da matéria imaterial, algumas obras minimalistas ou ‘pobres’ e certas obras expressionistas, abstractas ou não (1997, p. 145)

A passibilidade, voltada a matéria imaterial, é associada diretamente ao timbre sonoro. Assim, os compositores contemporâneos teriam realizado uma “anamnese [...] do que lhes era dado sobre o nome de música”(1997, p. 170). Tal anamnese é o processo pelo qual, na história da música e através das investigações criativas dos séculos XIX e XX, foi-se distanciando dos “constrangimentos” que aprisionavam o som, “como se o som, através de más 338 pesquisas e invenções, procedesse a sua própria anamnese”. Esses constrangimentos são os recursos de organização e manipulação da linguagem musical, os quais a música teve de respeitar para se tornar “apresentável”. Eles colocavam os timbres sob o domínio da “instrumentação clássica, barroca e moderna”; “as durações e o ritmos regulados pela medida e o contraponto”; as alturas “definidas pelas gamas e pelos modos”; e, por último, as intensidades traduzidas em “regras transmitidas pelos conservatórios”(idem, p. 170). Eis que sobra, ao final de tal anamnese, a concepção do som como “vibração no ar”, decomponível em seus parâmetros de frequência, amplitude, duração e intensidade. Esta narrativa é também conhecida como emancipação do timbre ou do som. Então Lyotard retoma o enunciado adorniano de que, “com a libertação do material, a possibilidade de dominá-lo aumentou” (1997, p.167; 2012, p. 204). Primeiramente, ele se esmera em dizer que o que ele pensa por “matéria” é diferente do que Adorno pensa por “material”. A noção adorniana remontaria a tradição aristotélica. Assim, esse material seria uma matéria determinada por uma forma, já participante de um jogo de destinação que possibilita sua reconhecibilidade, sua Apresentação do inapresentável sensibilidade e seu pensamento. No entanto, a tarefa de uma arte sublime seria a de possibilitar um vislumbre da matéria imaterial. Esse seria um ideal “aporético”: trata-se de assumir o que há de paradoxal nisto, pois no momento em que tal matéria é disponibilizada ao ouvinte, ela deixa de ser matéria e sobra apenas o testemunho de que há algo de inaudível que não se encontra disponível para as premontagens sonoras do corpo humano, da natureza e da cultura: Existem algumas premontagens sonoras do copo humano, da natureza e da cultura, e a música tem sempre feito os esforço de as exceder. Mas juntamente, e sobretudo, essa superação em si mesma deve ser superada. Porque ele confina novamente a matéria sonora na linguagem da harmonia, da melodia, da retórica musicais, afim de a dirigir para os ouvintes (os destinatários) que poderão escutá-la porque eles podem decifrar os códigos, conscientemente ou não. Ao se propor como ideal de fazer sentir ao ouvido a matéria- som, o timbre, livre de qualquer destinação, os músicos contemporâneos extremisam seu desafio até a aporia 339 constitutiva de toda a música: fazer-se ouvir isso que se subtrai por si mesmo a toda escuta, dirigir [destinar] isso que não é dirigido [destinável] (2012, p. 218)

Em outro techo, Lyotard escreve: Se a matéria sonora não espera nada de sua formalização, é necessário dizer, também, que ela não espera ser ouvida pelo vibrar ou pelo soar. Esse ideal aporético da música se chama, em alemão, tonkunst , uma arte do timbre. Essa matéria que se subtrai à destinação não é o material, o qual é somente o suporte de uma mensagem. Ela é imaterial. Os físicos [dizem] que isso ao qual nós chamamos matéria é a energia transformada em corpúsculos e em objetos. A obra de arte carrega o testemunho de que os objetos não existem, que eles são os traços filtrados, codificados e decodificados pela nossa sensibilidade corporal e nossa língua, de um poder que os excede. (1997, p. 220).

Assim, toda tentativa da música moderna e contemporânea em expor o timbre, como se expusesse a matéria sonora, tem validade não enquanto domínio técnico ou

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tecnológico deste som, mas como uma tentativa de desarticular os mecanismos de destinação dos sons na escuta, de tentar desarticular os esquemas pré-concebidos de audição que cristalizam o mundo como se ele já fosse completamente dado, conhecido ou previsível. Esse passo é análogo à nudez plástica reconhecida nos quadros de Newman. A aporia reside no por em dúvida o que se ouve. E o paradoxo é que tal matéria sempre escapa pois ela é um poder que está para além do material, que o excede. Podemos pensar que este desejo, no século XX, é observável na obra de Varèse, o qual Lyotard compara com Cézanne. Ambos tentaram fazer com que a forma de suas obras emanassem da livre junção entre cores, no caso do pintor, e timbres, entendidos como massas sonoras projetadas, no caso do compositor. Aqui está uma rejeição do conceito clássico de oposição entre forma - a construção pelo desenho - e matéria - as cores aplicadas sobre as figuras desenhadas. Rejeição da 340 prioridade da primeira sobre a segunda. Tal qual Cèzanne, Varèse projeta os planos e as massas sonoras, umas sobre as outras, como rio escoando, sem a ideia de contraponto e melodia. Cada timbre seria “tomado um a um” fazendo “corpo com a forma”, com os sons “integrando a estrutura da obra”(VARÈSE apud LYOTARD, 1997, p. 174). Isto significa a libertação em relação as regras das formas clássicas. A busca de Varèse era, portanto, por “ultrapassar o limite de audibilidade” na expectativa de que as novas tecnologias do século XX o possibilitassem a utilizar um “leque inteiramente novo de sons”, ao qual ele chamou de “radical impensado das resultantes inferiores e dos sons diferenciais e adicionais”. Para Lyotard, este “’impensado radical’ é um impensado do ouvido, um inaudível” (idem, p. 173). Bem como Varèse, tanto partidários de Cage quanto de Boulez operaram feitos composicionais na busca de ultrapassar esse limite de audibilidade. Cage subtrai a articulação (e a composição, que é sua forma suprema) recorrendo-se ao ‘silêncio’, ao contingente, ao evento (ocorrência?), ao encontro imprevisível de uma peça de piano e um ‘ruído’ de metrô, encarando o ruído como som musical bruto, não temperado – fiel a Varèse. Boulez concorda com o som musical bruto, mas crê que devemos sobre-articular todos os componentes da Apresentação do inapresentável linguagem musical para extrair sua matéria-som inaudível, pois, deixar “estar os sons” apenas, não nos poupará de escutar o continuum sonoro sob os filtros de nossa organização fisiológica, psíquica e cultural. Assim Lyotard afirma: “Eu não escolherei dentre essas duas filosofias da matéria sonora. É certo que elas tem um projeto em comum: liberar essa matéria sonora de seu envelope formal convencional” (2012, p. 216). Em ambos os casos “trata-se de fazer sentir o insensível do campo sensorial, [...] o inaudível” (1997, p. 177). E podemos tentar alcançá-lo, “quer por defeito, quer por excesso, dirigindo-nos para o que há de mais elementar [...], ou então para o que há de mais complexo”. Neste mesmo contexto da oposição entre Cage e Boulez, Lyotard nos revela o que pensa a respeito do termo ocorrência no domínio da música. “Aqui, agora um som soa, desdobrando, no instante inapreensível, a sua fuga em espera”. Trata-se do enigma da “ Darstellung [figurabilização] imediatamente transcrita em sentimentos antes de qualquer 341 objetivização [...] num sentimento sonoro que é talvez a presença mais elementar do tempo ou ao tempo, [...] o estado mais pobre do ser-tempo” (1997, p.178). Mas este ser-agora seria rapidamente esquecido quando “apanhado na trama apertada das retóricas musicais, as quais regulamentam e determinam a sua ocorrência: de harmonia, de melodia, de instrumentação [...]”. Assim, o sentimento de ocorrência seria comum a todas as músicas contemporâneas, ou seja, a todas as músicas que, de alguma forma, suspendem essa trama retórica:

Desfazemos, ou pensamos que desfazemos a trama que entropece a escuta ao deixar os ‘sons existirem’, como diz Cage, ou frustrando-a com tramas mais complexas, menos retóricas do que cognitivas, frequentemente chamadas ‘estruturas’, onde as várias dimensões do som são experimentadas para se tornarem ‘presentes’ em relação ao sentimento sonoro [Boulez] (1997, p. 178)

Este é o acontecimento sonoro, a ocorrência sonora, a libertação da escuta das tramas retóricas em busca do sentimento de ser-agora – presença. Mas isso se dá como uma

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tentativa paradoxal, um enigma que exige “doação” a um “estado de espirito sem espirito” como se pudéssemos pensar- sentir, ouvir, não sendo um eu, esquecendo-se o que uma consciência subjetiva precisa para ter consciência de si. Trata- se de dar voz, de dar audiência a alteridade, de ouvir sua voz antes de se projetar na determinação do que ela é. Dar voz é também “dar ouvidos a”, ou seja, o que anteriormente foi definido por “passibilidade” a algo. Um sinônimo para essa passibilidade é o termo “obediência”. Assim, uma das conclusões mais significativas de Lyotard é a de que, o que está de fato em jogo na “libertação do som”, não é exatamente a libertação deste som enquanto material, mas sim a “libertação da obediência ou, de preferência, o respeito pela obediência”(1997, p.178). Importa, no sublime musical descrito pela emancipação do timbre, a “doação ao acontecimento”, à ocorrência sonora.

342 Conclusão Como síntese, portanto, podemos reunir os termos apresentação do inapresentável, passibilidade ao acontecimento e matéria imaterial em um enunciado que resumiria o sublime musical de Lyotard: trata-se de um sentimento de presença ocasionado pela obediência (doação, passibilidade) ao acontecimento sonoro como um gesto, da obra, no espaço-matéria-som que dá a ouvir o som imaterial inaudível. Assim, para Lyotard, o caminho de diversas correntes de compositores contempâneos teria sido o de expor e emancipar a nudez sonora, análoga a nudez plástica de pintores como Newman, como estratégia de desmanche, tanto da narrativa musical que impossibilita o vislumbre do que ainda não se deu a ouvir – do inaudível – quanto de um eu musical cristalizado que não pode ouvir o som a não ser através de seus modos preconcebidos de escuta.

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FLÁVIO SILVA

ão sou especialista em paleografia musical. As ideias a N seguir expostas resultam de confluências de estranhezas envolvendo:

• as diferenças entre as músicas eruditas na Europa e em outras partes do mundo; • as diferenças entre as músicas eruditas consolidadas na Europa a partir da Renascença e as outras músicas lá praticadas; • as diferenças entre músicas eruditas e folclórico/populares em outras partes do mundo; • a intervenção de um músico marroquino em ciclo realizado em Paris, por volta de 1970, sobre as origens do flamenco na música do Irã. Esse músico criticou a exaltação, por compositores europeus, da improvisação na música árabe: “Nós estamos improvisando a mesma música há quinhentos anos, enquanto a de vocês, nesse mesmo período, experimentou enormes mudanças”. • o tipo de desenvolvimento social, econômico, tecnológico e, mais geralmente, cultural que a Europa foi a única região do mundo a experimentar

Creio ver no sistema de notação musical pautada desenvolvido na Europa medieval uma raiz dessas diferenças e um germe do cartesianismo.

Notações extra-europeias

O enorme esforço de abstração exigido pela invenção da escrita resultou de questões práticas e objetivas: ao que tudo indica, foram exigências de viajantes comerciando em diferentes regiões que suscitaram necessidade de fixar Notações e cartesianismo informações em signos e em suportes variáveis de acordo com as diferentes culturas e com os objetivos visados. Signos indicando quantidades podem ter sido concebidos antes da grafia de palavras; os chamados números arábicos foram inventados na Índia. A escrita de narrativas épicas justificando crenças político-religiosas parece ter sido posterior, e precedeu a de textos profanos de caráter ficcional.

Notações musicais só aparecem em civilizações onde a escrita literária já adquirira grande desenvolvimento e que conheciam sistemas teóricos, inclusive musicais, formalmente constituídos em textos escritos. Elas são, portanto, ligados a músicas cultas, e não a práticas musicais de populações iletradas, cujos sistemas musicais não conheciam a formalização possibilitada pela escrita, embora tivessem pelo menos uma teoria implícita.

As diferenças entre música erudita, folclórica e popular não são invenção de elites europeias ou europeizadas; elas 345 aparecem em outras culturas. O termo japonês gagaku é composto de dois ideogramas: ga significa refinado, nobre, justo, e gaku designa música; gagaku é a música refinada, nobre e culta, por oposição à música folclórica, considerada como vulgar e primitiva (TAMBA: 82). No Tibet, a música “comporta três aspectos: a música folclórica – tal como a encontramos na vida corrente do povo tibetano; uma arte musical − cultivada sobretudo por menestréis profissionais; o canto sagrado e a música instrumental da liturgia budista e de outros ritos − centrada em volta dos mosteiros” (CROSSLEY-HOLLAND). Na China, “a expressão musical apela a qualidades de apreciação que a distinguem das artes ordinárias, e fala-se de uma ‘música virtuosa’, deyin , que não pode ser percebida nem realizada pelas pessoas comuns: é necessário uma educação para amar e compreender a música [...]. A partir dessa noção de música elevada, yayue , reflexo da ordem universal, é operada uma diferenciação com a música ‘vulgar’, suyue [...]. [...] era perigoso realizar uma música elevada perante quem não tinha a virtude necessária para ouvi-la” (RAULT: 77). “Nas principais regiões islâmicas, havia uma ampla distinção entre a cultura da corte e a cultura popular. A corte era o lar da poesia escrita, da música e da dança clássicas [...]. Entre o povo, as artes mantiveram uma

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tradição contínua, raramente perturbada pelas práticas volúveis das elites.” (GOODY: 2011, p.144) As concepções ligando determinados modos ou intervalos musicais, melodias e mesmo instrumentos a determinados sentimentos, horas do dia, estações do ano, deuses, status social são comuns à maioria dessas culturas e estavam presentes na Grécia antiga, onde Platão criticava os emolientes modos cromáticos e exaltava os diatônicos. O prof. Tran Van Khê ensinava que na India a paixão era expressa pelos modos cromáticos e a serenidade pelos diatônicos. A existência de corpus respeitáveis de textos religioso, que também deviam ser cantados e exigiam grande esforço de memorização, pode ou deve ter sugerido, por analogia ao texto literário, a conveniência ou necessidade de algum tipo de fixação gráfica de entonações ou de melodias. Assim como textos sacros costumavam ser ditados por divindades, também as melodias com que eles eram entoados tinham essa origem; 346 ambos, portanto, deveriam ser preservados da forma como foram recebidos. As notações dessas melodias aparecem em geral sob forma de signos descontínuos inscritos paralelamente aos textos de extensos repertórios sacros, escritos vertical ou horizontalmente, e indicam apenas alturas aproximadas; elas ajudam a lembrar movimentos melódicos entonados ou cantados e são lembretes ou aide-mémoires sem preocupação maior com precisão. As notações puramente instrumentais, mediante tablaturas, parecem surgir apenas em culturas que desenvolveram concepções menos dependentes do sagrado.

Os exemplos a seguir são dados sem maior preocupação cronológica, visando sobretudo mostrar grafias musicais desenvolvidas em vários países ou regiões.

As primeiras escritas teriam sido registradas na Suméria/Iraque, há cerca de 4000 anos; é razoável que 2000 anos depois tenham lá surgido inscrições cuneiformes que poderiam indicar notas musicais (ex. 1). Notações e cartesianismo

Ex. 1: Mesopotâmia: possível notação do sec. IX a.c., segundo Galpin (MACHABEY p.11)

Desde 1500 a. C. há salmodias notadas com acentos, cifras e neumas na Índia. Na China, onde o confucionismo exibia uma faceta que pode ser vista como profana ou laica, há inscrições mencionando escalas e transposições desde 433 a. C. Composições musicais instrumentais surgem em mais de 3300 tablaturas na dinastia Ming (1360-1644).

Os casos de tablaturas parecem muito mais ligados a músicas profanas do que a músicas sacras; eles podem ser mais precisos na informação das alturas, em função de afinações instrumentais. Na Ásia, apenas a Coréia teria conhecido um 347 sistema de notação definindo durações, organizado pelo rei Sejong (1397-1451), que também teria melhor ordenado a escrita literária e inventado tipos móveis para impressão, 215 anos antes de Guttenberg; Jack Goody refere a impressão de um texto em um milhão de exemplares por esse processo coreano, durante nossa Idade Média. São dados dois exemplos bem diferentes de tablaturas para cítara, um na Coréia (ex. 2) e outro no Japão (ex. 3); a tablatura japonesa para biwa é bem anterior à coreana.

Ex. 2: Coréia – tablatura de cítara Ex. 3: Japão − tablatura biwa, 747 (JASCHINSKI, p. 279) d.c. (TAMBA, p.74)

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Na tablatura do ex. 3, os ideogramas alinhados verticalmente indicam alturas com bastante precisão, mas o Japão também conheceu notações onduladas indicando movimentações vocais na música sacra shomyo (ex. 4), necessariamente mais imprecisas do que as instrumentais; ambas são lidas da direita para a esquerda.

Ex. 4: Japão 1240-1321 notação vocal para shomyo (JASCHINSKI, p. 271)

348 Outros exemplos de notações onduladas são encontrados no Tibet. Assim como no caso japonês, a extensão das linhas onduladas talvez corresponda à duração da emissão vocal ou do sopro, seja no caso da notação instrumental, onde algumas linhas terminam em forma de pavilhão (ex. 5), seja no caso da música vocal (ex. 6). Esses exemplos tibetanos são lidos da esquerda para a direita.

Ex. 5: Tibet – notação instrumental (JASCHINSKI, p. 281)

Ex. 6: Tibet − notação vocal (JASCHINSKI, p. 280)

Notações e cartesianismo

Arrolei a notação do ex. 7, da Grécia do sec. I, entre as extra-europeias. A primeira linha sobre o texto indica alturas, e a segunda as durações. Não referi outras notações praticadas na Grécia antiga e que só se ocupam de alturas, a meu conhecimento.

Ex. 7: Grécia, sec. I (MACHABEY, p. 18)

As únicas notações encontradas designadas como não- europeias e que informam alturas e durações com boa margem de precisão são as dos exemplos 2 para música profana e 7 para música sacra.

As notações horizontal ou verticalmente alinhadas, paralelas a textos sacros, lidas da direita para a esquerda ou 349 vice-versa e que utilizam signos descontínuos são bem mais numerosas do que as onduladas. O predomínio parece ser o de signos de entonação indicando movimentações da voz e tendo muito mais função de lembretes do que de informação exata de alturas, como as dos exemplos 8 a 10. O predomínio parece ser o de signos de entonação indicando movimentações da voz e tendo muito mais função de lembretes do que de informação exata de alturas, como nos três exemplos a seguir:

Ex. 8: Al Kindi (JASCHINSKI, p. 230) Ex. 9: Cântico dos Cânticos, Código de Aleppo, ca. 100 d.c.

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Haveria alguma ligação entre os exemplos 11 e 12? Processos musicais análogos ocorrem nas mais diferentes regiões sem que haja qualquer indício de influências mútuas. Em meados do sec. XVIII, o jesuíta francês Amyot publicou um tratado sobre música chinesa em mais de 150 páginas, com informações sobre sua história, teorias, teóricos e práticas, além de detalhadas ilustrações de instrumentos musicais. Ele também referiu uma possível origem indiana para as teorias de Pitágoras e diferenças entre concepções chinesas e as de Rameau. Observe-se que no ex. 11 os dedos trazem menos informações do que no ex. 12.

350

Ex. 11: mão harmônica chinesa, Ex. 12: mão harmônica de Guido sec. XVIII (AMYOT, p. s/n) d’Arezzo (GOLDRON, p. 38)

Notações neumáticas europeias

Nos exemplos 8 a 10, as notações aparecem horizontal e paralelamente aos textos a que servem e utilizam signos descontínuos, diferentemente do que ocorre nos exemplos 5 a 7, em linhas onduladas contínuas. Como antes sugerido, o primeiro caso é o mais comum nas notações extra-europeias ligadas a cânticos sacros, dos quais dão uma noção aproximada da movimentação vocal. Como única exceção nos casos de textos sacros, temos a notação grega do ex. 7, que também se ocupa de durações, mas em duas linhas paralelas à do texto, num processo de racionalização que é, de outra forma, refletido na notação coreana para música profanas. Notações e cartesianismo

As notações em linhas onduladas, contínuas ou descontínuas, partem de uma ideia de representação espacial da movimentação sonora, com os sons graves e agudos aparecem grafados em posições diferentes. Na Asia, só encontrei notações onduladas em linhas contínuas, diferentemente das notações onduladas na Europa, em linhas descontínuas. Creio que nenhuma notação extra-europeia, horizontal, vertical ou ondulada, sobre textos sacros ou em tablaturas instrumentais, em signos contínuos ou descontínuos, possibilitou desenvolvimentos ou aperfeiçoamentos ou modificações como os que puderam ser propiciados pelos neumas em linhas onduladas descontínuas praticados na Europa sobre textos sacros a partir do sec. IX. Os neumas eram signos que representavam sons ou agrupamentos de sons. O ex. 13 mostra neumas isolados, não inseridos numa melodia.

351

Ex. 13: signos neumáticos de Saint-Gall (BEGUERMONT, P. 121)

A Europa conheceu vários sistemas neumáticos, que aparecem inteiramente constituídos por volta do sec. IX, sem que deles se conheça experimentos prévios. É certo que essa

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constituição deve ter passado por muitas tentativas, possivelmente elaboradas a partir de acentos bizantinos. A febre neumática se alastrou em diferentes grafias pelos mais diversos centros musicais europeus. No ex. 14, de notações sobretudo francesas, pode-se notar uma quase horizontalidade nos casos de Chartres e Mont-Renaud, contrastando com os voos em Saint-Yrieix e Bénévent. Merece destaque o exemplo de Montpellier, onde o texto sacro é encimado por uma notação alfabética horizontal e por uma notação neumática ondulada. Diferentemente das notações em linhas asiáticas onduladas e contínuas dos ex. 4 a 6, foram esses signos ondulados e descontínuos acrescentados a textos sacros que forneceram a base para a revolução notacional que modificou radicalmente a maneira de fazer música na Europa.

352

Ex. 14: notações neumáticas sobre um mesmo texto sacro (BEGUERMONT, p. 108-109)

Notações pautadas

Os tratados Musica enchiriadis e Scolica enchiriadis , do sec. IX, trazem proposta de notação musical radicalmente diferente da neumática, onde os espaços entre linhas paralelas Notações e cartesianismo são atribuídos às diferentes notas de um sistema tetracordal, cada uma com sua própria representação, ou seja: a cada espaço é atribuído o que depois seria chamado de clave. Nesse sistema, as sílabas do texto sacro a ser cantado são grafadas nos espaços respectivos, de acordo com sua altura. O mais importante, porém, é que esse sistema abre, ao que tudo indica pela primeira vez na história da música, a possibilidade da representação de duas e, portanto, mais melodias num mesmo sistema de linhas paralelas. O exemplo mais emblemático dessa notação parece ser o Rex Coeli domine , que Jacques Chailley designou como o equivalente aos serments de Strasbourg para a música europeia e que professor campineiro Yulo Brandão via como a origem dessa música. O ex. 15 dá o primeiro verso desse organum, com a grafia das palavras atualizada mas trazendo os signos/claves originais atribuídos a cada espaço; os dois versos são dados em tanscrição no ex. 16, que indica a vox principalis e a voz organalis . 353

Ex. 15: Rex coeli domine (primeiro verso)

Ex. 16: Rex coeli domine (os dois versos)

Práticas tradicionais polifônicas ou heterofônicas, instrumentais e/ou vocais, são mais do que vezeiras em todas as partes do mundo, em músicas ligadas ou não a sistemas

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teóricos formalmente constituídos. É mais do que possível que tais práticas também ocorressem a partir da realização vocal e/ou instrumental de melodias notadas, em culturas que conheceram notações musicais; é certo que elas ocorreram na Europa medieval. Pretende-se que a origem das notações polifônicas europeias tenha raiz nessas práticas. Ora, em nenhuma outra parte do mundo tais práticas levaram a notações polifônicas. Não creio viável que a polifonia trazida pelos dois exemplos acima, com a regularidade de seus movimentos oblíquos, paralelos e opostos, possa ser entendida como uma transcrição de polifonias orais, vocais e/ou instrumentais, que certamente existiam na Europa, mesmo que essas polifonias também se servissem de movimentos oblíquos, paralelos e opostos.

O segundo verso desse organum, Te humiles famili , é particularmente representativo do que sugiro. Começando da mesma forma que o primeiro verso, a vox organalis usa o 354 intervalo de terça para fazer um notável malabarismo melódico que evita o triton na sílaba “ li ” e conduz ao uníssono na sílaba “mo ”; essa utilização da terça nada tem a ver com a encontrada na silaba “ li ” do primeiro verso. E é após o uníssono em “ mo ” que pela primeira vez aparece no organum o intervalo de quinta para depois tudo continuar como dantes, em quartas e em uníssonos, como no final do primeiro verso. Vejo nessa notação pioneira um sistema eminentemente teórico e complexo, composicionalmente organizado por uma mão criadora e mais acessível a doutos musicus do que a um simples cantor . Mais, ainda: nela, vejo um primeiro exemplo de objeto musical bem separado do observador, que passa a exercer um controle visual sobre o que escreve, em vez de limitar-se a transcrever o que pensa. É em função desse controle visual sobre o texto musical objetivado que o observador pode corrigir o que seria uma continuação natural na linha melódica da voz organal e que levaria inevitavelmente ao intervalo diabólico.

Vejo nessa notação, porém, muito mais uma profecia do que poderia vir a ser uma notação musical objetiva do que o motor da construção dessa objetividade. A notação que vai realmente criar um objeto musical bem separado do Notações e cartesianismo observador será construída passo a passo, não a partir de grandes edifícios teóricos, mas de um artifício cuja simplicidade inicial não permitiria prenunciar a fantástica revolução que possibilitaria. Lembro, agora, meu professor Jacques Chailley para referir a notação mostrado nos ex. 17 e 18 como a que lança as bases do que viria a ser a música europeia – e não só a erudita. Foi a partir da notação neumática ondulada em signos descontínuos sobre texto sacro que algum monge em algum mosteiro – em Saint Gall? − teve a ideia de sobrepor a essa ondulação uma linha horizontal que receberia o nome e o signo de uma nota – a nota fá, no caso −, de forma tal que os signos indicando sons coincidentes com a essa linha horizontal corresponderiam à nota fá e os signos acima e abaixo dessa linha corresponderiam, respectivamente, aos sons acima e abaixo do fá.

355

Ex. 17: neumas sobre uma linha (JASCHINSKI, p. 94

Ex. 18: Nevers, sec. XII (p. 51)

FRONTEIRAS DA MÚSICA

Ex. 19: Bruxelas, 1398 (BEGUERMONT, p. 139)

A partir do traçado de uma linha horizontal sobre neumas ondulados e descontínuos, fica inteiramente lógico e consequente traçar outra linha, que será atribuída à nota dó, o que contribuirá para tornar mais preciso o entendimento da altura dos neumas acima da linha do fá (ex. 19 e 20). Mais 356 linhas tornarão ainda mais localizáveisl as emissões vocais dos diferentes neumas, sem o acréscimo de outras claves.

A expansão dessa invenção não modificou, alterou ou eliminou, de saída, os vários sistemas neumáticos em vigor na Europa, que continuaram a existir e a se modificar, nem determinou evoluções lineares, cronologicamente ordenadas. Assim, no ex. 19, de 1398, os signos neumáticos não aparentam haver sofrido grande modificação pela superposição das quatro linhas com suas duas claves , mas o ex. 20, de 1200, já aponta para uma tendência cada vez mais explícita, de transformar os arabescos neumáticos em punctus bem determinados, tendência que se encontra bem mais afirmada no ex. 21.

Ex. 20: quatro linhas e duas claves em 1200 (GOLDRON, p. 164)

Notações e cartesianismo

Ex. 21, Limoges: quatro linhas e uma clave, entre 1304-1342 (BEGUERMONT, p. 175)

No ex. 15 era atribuída uma nota – uma clave − a cada entrelinha; os exemplos 19 e 20 trazem apenas duas claves que ordenam a distribuição das alturas nas quatro linhas e nas três entrelinhas, mas essa dualidade é cancelada no ex. 21, com apenas uma clave: a prática da leitura tornou a segunda clave supérflua, inútil – bastava uma para sinalizar as alturas relativas de todos os sons representados pelos signos dispostos sobre as linhas paralelas e nos espaços entre elas 357 compreendidos.

Se o compositor dos ex. 15 e 16 podia, já no sec. IX, superpor duas linhas melódicas para serem cantadas simultaneamente, com seus movimentos oblíquos, paralelos e contrários, o mesmo não ocorreu com os que, posterior-mente, tateavam um sistema para clarificar a grafia neumática superpondo aos neumas uma, depois duas e depois três e mais linhas paralelas. Só quando essas tentativas alcançaram uma relati- va precisão, no que concerne à notação de alturas e de durações, é que foi possível notar duas e mais melodias numa mesma pauta (ex. 22) e depois, em pautas diferentes (ex. 23 e 24).

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Ex. 22: Perotin, Alleluia nativitas, sec. XII

358

Ex. 23: Moteto a três vozes, sec. XIII. As superiores ocupam as duas colunas; o tenor aparece ao pé da página. (LEMOS, p. 168)

Ex. 24: partitura de Pierre de la Rue impressa por Petrucci (internet)

Notações e cartesianismo

Os signos pautados passaram por uma gradual e constante simplificação e homogeneização relativas e acabam incorporando procedimentos já desenvolvidos na notação neumática tradicional, mediante os quais era possível aliar a notação das alturas à das durações. Essas transformações não ocorreram de forma simétrica ou linear em toda a Europa; notações neumáticas sem a superposição de uma ou mais linhas continuaram a ser utilizadas até as vésperas da Renascença. As diferentes notações, porém, acabaram confluindo para representações comuns que serão tornadas obrigatórias com o desenvolvimento dos processos de impressão de partituras, adaptados à edição musical a partir da invenção de Guttenberg. Tanto a edição de livros como a de partituras passou a exigir mercados cada vez mais amplos para assegurar menores custos e tiragens maiores a seus produtos, facilitando sua aquisição por classes médias emergentes. É essa industrialização que operará uma simplificação e homogeneização final nos signos notacionais, ampliando, inclusive suas possibilidades de representação. 359

A meu conhecimento, a Europa só passou a usar tablaturas após uma crescente autonomia da música instrumental com relação à vocal, relacionada a uma vida cada vez mais secularizada. As tablaturas para diversos instrumentos (ex. 25 e 26) tiveram, porém, uma vida relativamente breve: elas foram eliminadas pela expansão da partitura impressa.

25: tablatura para órgão Ex. 26: tablatura para teclado (JASCHINSKI, p. 191) (JASCHINSKI, p. 188)

FRONTEIRAS DA MÚSICA

Conclusões, ou ilações

Retomo, agora, ideias já esboçadas para nelas ver uma outra objetivação: a da definição de alturas do som, não no sentido de sua grafia, mas da própria entonação, vocal ou instrumental, do som grafado. Tudo parece ter se passado como se aqueles signos cada vez mais claramente identificados e tão simetricamente dispostos em linhas paralelas indicassem, também, que suas entonações poderiam ou deveriam corresponder à clareza com que passaram a ser grafados. As infindáveis discussões sobre afinações pitagóricas, zarlinianas e outras mais foram dando lugar à ideia segundo a qual era muito mais razoável ter uma escala de sons ignorando diferenças entre sustenidos e bemóis, isto é: que fosse temperada. Evitava-se, assim, a complexidade exigida, em especial, pela fabricação de instrumentos de teclado, com teclas diferentes para esses cromatismos. O temperamento, porém, é 360 uma convenção tornada essencial para a música europeia, sem o qual o sistema tonal é impensável, e que vale para a utilização tradicional de instrumentos de sons fixos; os cantores naturalmente cantarão notas mais para o agudo ou mais para o grave de acordo com a movimentação melódica, e o mesmo farão os cordistas. Sem o temperamento, não teríamos o sistema tonal, de cuja formulação Descartes pode ser visto como um dos precursores, pelo status que conferiu ao acorde perfeito maior:

“Pour la première fois [no Traité de l’homme], l’accord parfait s’y trouve légitimer par la science physique. Descartes ouvre ainsi la théorie à des perspectives nouvelles: l’acord parfait majeur est perçu comme une unité, et est justifié par des données acoustiques. [...] Descartes est le premier à donner une légitimation naturelle à l’accord parfait majeur, lequel fonde notre système tonal. Il n’a hélas pas cru bon d’exploiter davantage cette intuition, comme le fera Rameau plus tard” (WYMEERSCH, 128, 130).

A racionalização na entonação das alturas – e não apenas na sua grafia − teve como consequência uma drástica redução na variedade de instrumentos musicais: as numerosas Notações e cartesianismo famílias de flautas, alaúdes, oboés etc., largamente praticadas na Idade Média e na Renascença, foram reduzidas a um ou dois modelos, quando não foram esquecidas. As entonações ‘imprecisas’ perderam espaço, ou passaram a não ser toleradas, o que levou a modificações na fatura instrumental, possibilitadas por aperfeiçoamentos tecnológicos tanto na fabricação dos metais como no aperfeiçoamento de chaves e na criação de válvulas para os sopros. As cordas, em particular, ficaram reduzidas ao quarteto cuja artesania alcançou patamares insuspeitados. As modificações que levaram do cravo ao pianoforte corresponderam às exigências de maior volume musical e de maior flexibilidade entre os ff e os pp. A essa diminuição na quantidade dos sons e na variedade dos instrumentos musicais correspondeu uma intensificação na concepção de procedimentos formais que levou à forma sonata e a uma nova profundidade para o pensamento musical, num movimento análogo ao verificável no pensamento filosófico e no científico. 361 Se as partes das suítes tinham nomes de danças, com a sonata e a sinfonia essas partes passaram a ser designadas por termos abstratos − allegro , adagio , vivace . A formação dos conjuntos musicais ficou muito mais definida, com sua associação em conjuntos bem estabelecidos – já foram assinalados paralelismos entre a criação das orquestras e a de fábricas. Todas essas modificações na prática e na concepção de como fazer música, operadas num accelerando molto a partir da Renascença e que motivaram o comentário do músico marroquino citado no início desse texto, podem ser vistas, em última análise, como tributárias daquele gesto solitário do obscuro monge medieval que inventou traçar uma linha para melhor identificar os sons com que deveriam ser cantadas as melodias sacras. Pode-se estimar que essa procura de exatidão, num material tão abstrato como o som, está na origem do desenvolvimento de um racionalismo inédito na história da humanidade, ou é, talvez, uma primeira manifestação ‘concreta’ do desenvolvimento dessa nova racionalidade. Surge, agora uma pergunta que alguns julgarão descabida, mas que faço, mesmo assim: qual a razão ou motivo pelo qual não ocorreu a nenhum escriba japonês ou tibetano

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traçar uma linha horizontal sobre suas notações onduladas em linhas contínuas, como fez nosso monge medieval? Uma primeira resposta reside no fato de que essas notações eram onduladas em linhas contínuas e não poderiam dar origem a notações pautadas, como os neumas medievais notados em linhas descontínuas. Outra resposta possível e mais discutível pode ser encontrada na diferença entre concepções que entendem o universo como um contínuo indesmembrável, deificado; não caberia, portanto, atentar contra sua unidade essencial, inclusive no que se refere à unidade do som. Em oposição, temos as concepções que estabelecem clara fronteira entre o que é divino e o que emana de sua criação, de seu poder. No primeiro caso, temos os politeísmos, em que deuses, homens e natureza se misturam num contínuo indissociado; no segundo, as religiões abrâmicas, do deus único, inicialmente atrelado a um único povo, e depois anunciado para a humanidade em geral. Parece, mesmo, haver uma lógica 362 segundo a qual os politeísmos só podem ser holísticos ou monistas, enquanto os monoteísmos são dualistas por conceberem seu deus como separado do que foi por ele criado. Observo, porém, que o pretenso deus único é diferente de uma religião para outra, e mesmo no interior de cada uma delas. Algumas civilizações que conheceram a escrita elaboraram sistemas teóricos e concepções musicais próprias às camadas superiores de suas sociedades – o letramento era privilégio dessas camadas – mas nem todas elaboraram sistemas de notação para essas músicas ‘elevadas’. As concepções musicais, da China à Índia, ao Japão e à Grécia, estabeleciam ligações entre o comportamento do universo e as realizações musicais, associando, inclusive, notas musicais a planetas e a animais, e desenvolveram concepções segundo as quais músicas licenciosas poderiam levar à ruína da cidade e de impérios. Era corrente a atribuição de qualidades próprias aos diferentes modos, escalas e/ou intervalos, que expressavam tanto virtudes como depravações, bem como a assimilação de certas práticas musicais a determinadas divindades, maléficas ou benéficas. Judaísmo e islamismo, que eram religiões abrâmicas, rejeitaram a representação pictórica ou escultórica da figura humana, de animais e de plantas, na medida em que essa representação significaria uma tentativa humana de Notações e cartesianismo assemelhar-se à divindade, ou de imitá-la. As uniões deificadas entre as estruturas musicais e as do universo não podiam ter grande acolhida na Europa medieval cristã, muito embora resquícios desse pensamento tenham a ela chegado, através de heranças de teorias gregas. Esses resquícios não chegaram a ser prevalentes por muito tempo: se o criado está separado do criador, não há como imaginar que entoar tal melodia ou modo possa ameaçar o equilíbrio da natureza. Resumindo: a evolução notacional trazida pela adição de uma e mais linhas horizontais e paralelas às ondulações neumáticas descontínuas exerceu-se em vários sentidos:

• progressiva unificação não linear ou concomitante nas representações neumáticas, tendendo a assegurar uma localização claramente definida e individualizada dos signos musicais nas linhas e espaços da pauta; o desenvolvimento da impressão musical sepultará as diversidades ainda existentes; 363 • maior definição na emissão das alturas, como se à visão de punctus bem definidos em espaços claramente delimitados devessem corresponder sons de frequência claramente definida; • maior precisão na definição das durações, por um processo análogo ao acima descrito; • maior complexidade na escrita a várias vozes, pela relativa simplificação e diversificação dos signos notacionais; • redução da quantidade de modos, progressivamente limitados a dois; • entronização da figura do compositor, criador de melodias ou de polifonias, que passa a ter nome; • a partir do desenvolvimento da polifonia escrita, progressiva definição do que viria a ser o sistema tonal; • eliminação das tablaturas; • abandono das várias afinações, substituídas pelo temperamento, também de certa forma prefigurado pelo esquematismo da pauta e pela regularidade dos signos nela inscritos; • enfim, constituição de uma linguagem musical inteiramente nova no panorama da música mundial.

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Num período mais avançado, e em função de desenvolvimentos tecnológicos, ocorre uma progressiva redução na variedade dos instrumentos musicais e uma maior especialização na sua fatura, artesanal ou industrial, buscando a definição mais precisa dos sons emitidos. As formas e gêneros musicais tendem a se concentrar em uns poucos modelos; a partir do sec. XVIII nota-se uma sistemática redução de nomes de danças nas designações de movimentos de suítes, que passam a ter cada vez mais nomes abstratos ou genéricos. Pode-se ver nessas reduções de signos, de alturas, de durações, de gêneros uma contração na extensão e uma expansão na profundidade que acompanha as mutações no pensamento científico e no filosófico – ou que as prenuncia?

Cartesianismos

As referências de J. Chailley e de Y. Brandão ao Rex 364 coeli domine ganham todo sentido com relação ao verso no ex. 17. O malabarismo da voz organal para evitar o tritom na sílaba “li ” só foi possível a partir da negação teórica desse intervalo e da visualização da escrita das duas vozes sobrepostas que criou um “objeto bem separado do observador”, graças ao qual o compositor – e já é possível assim designar o autor desse organum – foi confrontado com a necessidade de evitar o intervalo diabólico modificando o que seria a condução natural daquela voz. É possível, portanto, ver nesse organum a pedra angular do que viria a ser a música erudita (e mais tarde a popular) na Europa, e que a tornaria diferente da praticada em todos os outros continentes. Se, como antes sugerido, a grafia adotada nos dois Enchiriadis não prosperou, com suas inúmeras linhas e claves e com o texto cantável escrito nas entrelinhas, nem por isso ela deixou de apontar para um futuro que seria realizado, linha a linha, nota a nota, pela gradual construção de um novo sistema objetivo de representação dos sons, onde o pensamento criador podia, cada vez mais, fazer valer seus direitos e propósitos. É a partir dessa objetivação que começam a surgir os nomes dos primeiros compositores europeus, antes dos fantásticos arquitetos de catedrais. Notações e cartesianismo

Desde Boecio, a teoria tradicional atribuía uma diferença entre o musicus , aquele que conhece a essência da música, as suas leis, e o cantor , que seguia o instinto e o não o intelecto para fazer música. Não foram, porém, os grandes teóricos e sapientes musicus que asseguraram a revolução capital que deu à música erudita europeia a fisionomia que a distingue de todas as demais, e sim um simples e anônimo cantor que quis trazer maior clareza ao entendimento dos neumas e sobre eles traçou a linha pioneira.

A separação corpo/alma é fundamental para o cristianismo. Pode-se estimar que ela é essencial para separação cartesiana entre sujeito e objeto e para o desenvolvimento do pensamento científico, que demandaram, porém, a separação prévia entre o tempo divino/cosmológico e o tempo humano/natural. Esse tempo humanizado, afirmado já no sec. XII, levou a uma separação entre teologia e ciência; tornou-se possível trata-lo como grandeza mensurável, puramente formal (BOUREAU, p. 38). A nova maneira de 365 entender o tempo também se reflete nas regularidades das horas do dia, nos desenvolvimentos de mecanismos de relojoaria e nos detalhamentos das medições nas durações dos sons.

Essas questões, da forma como colocadas, podem indicar uma espécie de cartesianismo avant la lettre presidindo a evolução do pensamento técnico-científico europeu, mas talvez seja mais razoável entender o cartesianismo como uma consequência ou uma formalização possível de toda uma experiência anterior. Elas também parecem indicar que um pensamento monista não favorece o desenvolvimento do pensamento científico.

Descartes não se ocupa de nenhuma das questões que abordo. Em sua época, inexistia o conhecimento de músicas extra-europeias, eruditas ou populares; o que se sabia de música grega eram excertos de especulações filosóficas e de teorias filtradas por pensadores posteriores, pagãos e cristãos.

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Seu primeiro texto é um Compendium musicae , escrito aos 22 anos e só editado após sua morte. É esse texto que suscita as primeiras investidas teóricas do pensador, divididas com o amigo holandês Isaac Beeckman, a quem a obra foi dedicada, e que ele retomaria com Mersenne. O Compendium “reprend l’essentiel des connaissances musicales de l’honêtte homme de l’époque”. […]. Son intention, en rédigeant l’ Abrégé de musique pour son ami, est de lui exposer le système traditionnel par sa méthode propre. Comme il l’affirme dans des écrits ultérieurs, ce qui l’intéressait alors, c’était de reconstruire le savoir par la seule logique de son esprit, en l’appuyant sur quelques fondements solides. [...] La musique est le premier domaine où Descartes exerce son esprit critique. [...] La dissonance n’et plus l’ombre face à la lumière, l’imparfait face au parfait, mais devient une donnée essentielle dans la dynamique musicale [...] syncopes e diminutions, qui peuvent engendrer des tritons et des fausses quintes, sont nécessaires pour faire avancer le discours musical vers um point central, et 366 pour éveiller l’attention de l’auditeur” (WYMEERSCH, p. 9/100/120).

Uma das regras do método cartesiano consiste em dividir uma dificuldade em tantas partes quantas forem necessárias para resolvê-la. A linha sobre neumas ondulados constitui uma primeira tentativa de melhor resolver a definição das alturas, para só depois cuidar das durações. Essa trajetória de certo modo refaz a de notações neumáticas que lograram atingir razoável precisão na definição de alturas e de durações, com a desvantagem, porém, de não possibilitar a escrita simultânea de duas e mais melodias com seus próprios ritmos; a notação do Rex coeli domine (ex. 16/17) parecia não possibilitar ritmos diferentes nas duas linhas melódicas.

Não posso deixar de referir uma outra possível fonte para a eclosão do pensamento do autor evocado. Vejo na partitura a várias linhas uma antecipação das coordenadas cartesianas, onde as abcissas representam as alturas e as ordenadas as durações. Como sugere B. van Wymeersch: ”la distance nous permet d’apprécier et de conceptualiser des théories ou des représentations mentales qui solvente Notações e cartesianismo n’existaient que dans l’inconscient de leur auteur, tout en étant la source constante de leur inspiration” (p. 11).

Coda

Em trecho anterior, referi o desenvolvimento de uma nova racionalidade ocorrido na Europa. Cabe, agora, uma explicitação: qualquer explicação ou tentativa de explicação da realidade, ou do que se entenda como tal, passa pelo estabelecimento de medidas, de critérios, e todas essas medidas ou critérios são razões ou racionalizações que podem ser de fundamentos ou origens diferentes. Assim, se quero deslocar um armário de um lugar para outro, posso verificar se esse deslocamento é possível apenas confrontando com o olhar o espaço ocupado pelo armário e o que receberia esse móvel. Em caso de dúvida, posso usar a palma da mão como medida: o palmo pode ser um razão suficiente para determinar se o 367 deslocamento pretendido é possível. Mas se há alguma suspeita de que essa medida não seja adequada, posso usar um barbante ou um metro, caso seja adepto do sistema decimal, e chegarei a uma medida bem mais precisa, que também é racional, embora mais adequada. Supõe-se que não seja necessário usar um microscópio ou telescópio para saber se o armário poderá ou não caber num novo local; esse uso não seria racional. Ou seja: as diferentes explicações para um mesmo fato, com a sucessão dos dias e das noites, dependem de diferentes medidas ou razões que terão diferentes fundamentos. O mais natural é considerar que dias e noites se sucedem pelo movimento do sol em torno da terra. Essa naturalidade, porém, foi contrariada por outra racionalidade, o que coloca uma questão ética: há razões melhores do que outras razões?

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370 Uma estética do gosto: a ópera francesa do século XVIII em Grandval, Bollioud-Mermet e Blainville

RODRIGO LOPES

Introdução

té o século XVIII, a música e artes eram orientadas pelas A teorias imitativas. Estas possuíam regras definidas que davam forma e significado à música. A mesma deveria ser pensada como um discurso racional e, assim, sua escuta deveria ser uma escuta literária. Desta forma, a valorização da razão estava sobre as sensações emocionais, pois estas eram provocadas por meios pensados previamente. A música era considerada um meio que apelava apenas ao coração, e por esse motivo, já que a razão estava em primeiro lugar, a poesia era atrelada a ela por ser uma expressão da razão. O objeto da razão e, por sua vez, das teorias imitativas, era a bela natureza, da qual todas as artes derivavam, assim como as ciências. Na medida em que as ciências e as artes se desenvolviam, a natureza ganhou concepções diferentes no decorrer do tempo: a natureza foi considerada, num primeiro momento, sinônimo de razão; posteriormente, com as transformações da visão do conceito de natureza, ela foi considerada sinônimo de sentimento, o que não significava deixar de ser racional, mas, que os sentimentos e paixões humanas derivavam dela, e por isso, a música deveria de ser pensada de modo a despertar paixões humanas em seus ouvintes. Somente a palavra, a poesia, seriam capazes de despertar as paixões humanas por meio da razão, e, por isso, quando a natureza foi considerada sinônimo de sentimento, a estrutura musical deveria estar alicerçada na linguagem verbal como meio para se projetar, e somente assim a música vocal poderia expressar sentimentos imitados de acordo com

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modelos retirados da natureza: esta possuía todos os modelos para a expressão das paixões humanas. Para que a poesia e o meio verbal se expressassem como razão na música, precisavam da literatura como veículo, e as formas literárias usadas como modelos nos séculos XVII e XVIII eram as formas da tragédia da Antiguidade Clássica e a tragédia do Teatro Clássico Francês do século XVII. A expressão musical se davam por esses meios literários, desenvolvidos como um teatro cantado, ganhando o nome de ópera. A linearidade racional era primeiramente demonstrada através de um libreto de ópera ou peça de teatro, pois a música, isolada, era considerada como um veículo que se dirigia somente às sensações humanas, sendo, assim, desprezada. Na ópera francesa, a linguagem verbal deveria ser evidente e ela mesma ser capaz de criar uma representação dos significados de sua poesia. E os textos deveriam ser bonitos, agradáveis, tornando-se, assim, uma exigência de que sua 372 estética se aproximasse dos antigos clássicos, devido à sua elegância. Partindo desses pressupostos, autores franceses como Grandval, Bollioud-Mermet e Blainville, em comparação a Dubos e Batteux, tinham sua discussão estética na ópera voltada para a imitação da natureza como sinônimo de sentimento. A imitação para esses autores deveria realçar os aspectos dramáticos relacionados com a realidade, pois as paixões humanas eram consideradas os modelos retirados da natureza, e, ao promulgar o uso desses recursos imitativos, faziam críticas àqueles que não seguiam essas regras ou que não as conhecesse. Essas teorias representavam uma mentalidade legitimada pela aristocracia francesa, representavam uma leitura de mundo ao direcionar costumes e práticas comportamentais em que a ópera era a representação desse mundo de relações de mentalidades.

Uma estética do gosto

As discussões sobre ópera: Abade Dubos e Charles Batteux A ópera francesa era possível desde que em acordo com as regras do bom gosto, do bom senso, num fazer poético conforme a razão. Esse fazer poético era a teoria da imitação, que retiraria modelos previstos da bela natureza, esta como sentimento, usada como meio para mover as paixões humanas. Ela era o princípio criador, e as artes e a música deveriam criar como a natureza criava. A imitação da bela natureza era tida como um princípio soberano e todas as belas artes se submetiam a ela, pois se assim não fosse, sua valoração estaria perdida. Os franceses privilegiavam o princípio da clareza racional. Dessa forma, a beleza e a verdade eram uma única coisa, e sua valoração se dava através do bom gosto. Embora a natureza fosse o modelo para as criações em música, o modo de imitá-la também era importante, e essa forma eram as poéticas da Antiguidade Clássica e do classicismo francês do século XVII. A forma da tragédia deveria 373 de ser imitada. Eram exigidos da música um significado e representação como ocorriam com a pintura e a poesia. Se questionava se existia na música de ópera algum significado. Ela, como objeto individual, sem o apoio das palavras, seria incapaz de imitar, de acordo com a concepção da época, ou no mínimo, teria seu propósito incompleto e não concretizado, já que precisaria da linguagem verbal para se completar. O que ocorreu com maior frequência, e isso se tornou mais claro a partir da segunda metade do século XVIII, era a visão de que o papel da música dentro da ópera havia se limitado a adornar e realçar os conceitos atrelados às palavras, a fim de agradar a razão, embora a música instrumental, considerada destituída de significados, tomasse mais domínios no campo operístico e mesmo fora dele. Mas era unânime o pensamento de que esta música não tivesse um poder mimético completo. Nesse momento o Abade Dubos, com sua obra Reflexões Críticas sobre a Poesia e a Pintura , de 1719, fez parte de um movimento de reflexão sobre as artes que traria uma

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nova definição de gosto; “um dos primeiros intentos conscientes de se conferir à música dignidade de arte” (FUBINI, 2007, p. 183), uma reflexão sobre a percepção dos efeitos da arte, fazendo a experiência do espectador para uma nova definição de gosto. Observava-se então a música e as artes do ponto de vista do receptor que, embora com regras bem definidas quanto aos aspectos literários, como o modelo da tragédia, considerado um acontecimento externo, tinha agora nas sensações os modificadores subjetivos da alma, e assim a ideia de sentimento como julgamento para a obra de arte começaria a se fazer presente, algo novo até então. Para justificar o uso do sentimento pessoal como julgamento para a música, ele colocou essa esfera nas origens da música no que compete ao que se considerava ser a declamação dos antigos. Essa declamação possuía esse sentimento, usado como meio de imitação para a música: 374 Os sinais naturais das paixões que a música reúne e que emprega com arte para aumentar a energia das palavras que ela coloca em canto, devem, portanto, torná-las mais capazes de nos tocar, porque os signos naturais possuem uma força maravilhosa para nos emocionar. Eles a retiram da própria natureza. Na verdade, nada há de mais comum em nosso espírito que os ritmos e os sons que nos excitam, nos inflamam, nos acalmam, nos adormecem , diz um dos judiciosos observadores das afecções dos homens. É assim que o prazer do ouvido torna-se um prazer do coração. Daí nascem as canções e a observação que tínhamos feito, que as palavras dessas canções tinham outra energia quando escutávamos cantar, quando a escutávamos declamar, e deu lugar aos recitativos em música nos espetáculos e sucessivamente a cantar inteiramente uma peça dramática (DUBOS, 1993, I, §45, p. 151) 1.

1 Todas as traduções são nossas, salvo as indicadas nas Referências Bibliográficas. Uma estética do gosto

Dubos não pretendia uma especialização do leitor, mas que, como um amador, o mesmo pudesse conhecer e falar sobre ópera, teatro e artes em geral. Isso demonstrou uma mudança do tipo de público, que começara a mudar nesse época, e que já não era mais como o público aristocrático da corte de Luís XIV. Sua teoria imitativa interrogava as relações entre cópia e original, produção e prazer estético. O original deveria sempre despertar interesse no espectador, e o prazer gerado pelas artes seria valorizado pela capacidade de não só imitar, mas de produzir paixões, mesmo que estas fossem essencialmente uma produção artificial. Já Charles Batteux, com sua obra As Belas-Artes Reduzidas ao Mesmo Princípio , de 1746, tinha como regra um único princípio, que unificasse todas as artes, baseado na imitação e que seria o único critério e julgamento para as artes. Os princípios da imitação trariam consequências para a instituição do bom gosto. 375 Assim como Dubos, para Batteux todo fazer artístico partia da imitação da bela natureza, mas, diferentemente dele, sua visão de mundo era comprometida com uma tradição atrelada ao Antigo Regime, às suas aspirações heroicas, e defendia aos antigos dentro de uma concepção hierarquizada de mundo, fundamentada no decoro aristocrático. Nele, o artista não inventava objetos, nem os imaginava, mas que os encontrava na bela natureza, e que sua criação estava apenas na observação, pois tudo o que produzisse era somente fruto da imitação:

Assim, todas as artes, em tudo o que têm de verdadeiramente artificial, são apenas coisas imaginárias, seres fingidos, copiados e imitados segundo os verdadeiros. É por isso que se coloca incessantemente a arte em oposição à natureza, que se escuta em todo lugar apenas este grito, que é a natureza que é preciso imitar, que a arte é perfeita quando a representa perfeitamente, enfim, que as obras primas da arte são aquelas que imitam tão bem a natureza que as tomamos pela natureza mesma (BATTEUX, 2009, p. 28-29).

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A música era a bela natureza apreendida pelo ouvido, considerada um canto, mas que deveria estar ligada à poesia para ganhar status racional. Para ele, diferente de Dubos, a música, mesmo sem as palavras, ainda assim, continuaria sendo música, pois que sua natureza eram os sons. Mas, para que a imitação ocorresse satisfatoriamente como acontecia com as palavras na poesia, os significados dos sons da música deveriam ter as mesmas qualidades da elocução oratória, e ela deveria se exprimir em conformidade com sua própria natureza; a “música imita o orador que emprega todas as figuras e variações de sua arte sem mudar o tom geral de seu estilo” (BATTEUX, 2009, p. 143). A música apresentava certa autonomia porque era um veículo para fazer sobressair os sentimentos, enaltecidos pela imitação e que despertavam e excitavam as paixões humanas. Em Dubos, quanto ao aspecto da música instrumental, 376 esta era apenas um recurso que reforçava a música vocal, a linguagem verbal, a palavra; evidenciava o texto poético, principalmente quando este se fazia ausente nos trechos cantados da ópera. Já em Batteux, esse aspecto poderia evidenciar significados, de forma mais flexível do que Dubos. A partir de Dubos e Batteux fora estabelecido uma concepção de sentimento como um conceito autônomo e insubstituível, e a música passaria com o tempo a adquirir status de linguagem do sentimento. Essa concepção aos poucos se sedimentou, e a partir dela, a ruptura entre sentimento e razão foi cada vez mais clara e profunda, separando-se tudo o que pertencia ao coração e tudo o que pertencia à razão; aquilo que correspondia ao coração era compreendido mais prontamente, pois bastava sentir. A música se tornaria posteriormente a linguagem universal do sentimento, sem a necessidade de intermediários, livre de convencionalismos.

Uma estética do gosto

Grandval, Bollioud-Mermet e Blainville: a ópera francesa e a música italiana Grandval (1676-1753) em seu Ensaio sobre o Bom Gosto em Música , de 1732, tinha muito em comum com Dubos. Compartilhou da noção de sentimento em conformidade com as regras, e estes promoveriam o julgamento natural para a apreensão das belezas de uma obra de arte, assim como gerenciar os efeitos passionais numa audiência:

Existe (segundo minha opinião) dois grandes modos de conhecer as boas e as más coisas: o sentimento interior e as regras. Somente conhecemos o bom e o mau senão que por essas duas vias. O que ouvimos, nos apraz ou nos desagrada. Quando escutamos esse sentimento interior, dizemos: parece-me que é bom, ou, parece-me que isso é ruim (GRANDVAL, 1732, p. 1-2). 377

O julgamento das coisas boas ou más seria decidido através do conhecimento das regras, e nisso estava o prazer advindo por esse conhecimento, e deveria ser sentido e reconhecido pelo sentimento. Este sentimento, como em Dubos e Batteux, deveria ser orientado, para que a apreensão dos efeitos das paixões humanas pudesse ser eficaz.

O sentimento interior não é seguro porque devemos duvidar de cada um deles. Quem ousa se vangloriar de ter uma satisfação natural na qual as ideias do bem, do belo, do verdadeiro sejam corretas e claras? Podemos ter trazido ao mundo o fundo dessas ideias mais ou menos claras; mas recebemos desde nosso nascimento mil impressões falsas, mil prejulgamentos perigosos que podem nos ter enfraquecido a voz da boa natureza (GRANDVAL, 1732, p. 3-4).

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Para ele, o sentimento, sem a orientação do conhecimento, prejudicaria o julgamento da música, e não se apreenderia o verdadeiro bom gosto, pois sua construção se daria através de sua purificação pelas regras. Para isso, era necessário aprender e ter ouvido para música; sem a união desses elementos, as regras seriam inúteis, e não se saberia reconhecer os traços imitados da natureza. Grandval também aceitou a música italiana, fruto de muitas discórdias entre os franceses, principalmente a instrumental, considerada sem significado e exagerada:

Ouvi dizer que, de todas as qualidades, a vivacidade é a mais trivial e a mais cômoda. A erudição a mais palatável e a mais perigosa; a retidão do julgamento a mais sólida e a mais útil, e o bom gosto, o mais raro e o mais requintado. Deve-se tornar o canto natural e ajustá-lo à expressão. A ele 378 se deve ao gênio que o toca, que para fornecê-lo, não abandona jamais o verdadeiro. Caso contrário, por mais que nos empenhemos, ele será um sussurro. Como é mais fácil falar muito do que falar apropriadamente, é mais fácil trabalhar muito do que trabalhar bem. Deve-se, portanto, render justiça a todo mundo. Dizem que entre os músicos da Itália são encontrados infinitos modelos que souberam juntar à ciência (que a possuem em geral um grau um pouco mais alto que a nossa) o bom canto e o natural. Há neles, dentre outras coisas, sinfonias encantadoras. Sempre as observo para pegar de sua música, busco-as ansiosamente e as devoro com avidez (GRANDVAL, 1732, p. 24-26).

Grandval afirmou que os italianos tinham gosto, mesmo que de outro modo, pois para ele os mesmos souberam juntar a ciência com o canto e o natural, e isso não era aceito por parte do gosto dos franceses. Denota-se assim uma aceitação de uma música por si mesma, sem necessidade de regras, e a música instrumental, até então considerada um elemento de ênfase da música vocal ou de imitação de ruídos da natureza, começava a ser vista com mais liberdade. Uma estética do gosto

Porém, assim mesmo era preso às regras, pois as mesmas eram meios de refinar a educação, o conhecimento e o comportamento em público, já que as aparências geravam uma preocupação cuidadosa na sociedade francesa desse período. Assim, as regras também controlariam os costumes e os comportamentos, e, mesmo apreciando uma música instrumental sem o suporte vocal, a falta da palavra geraria dúvidas quanto ao comportamento em sociedade, e isso não deixou de ser uma preocupação para Grandval. Bollioud-Mermet (1709-1796), em seu texto Da Corrupção do Gosto na Música Francesa , de 1746, tratou da existência de muitos artistas, de sua distância da verdade, que os mesmos não estavam mais à altura dos grandes mestres e que a música francesa estava em decadência. Para ele, o público passou a ser menos exigente quanto à concretização das teorias imitativas em música, e que isso também estava se afrouxando no fazer musical de um compositor: 379 A primeira função do músico é a composição: se ele se sobressair em sua arte, deve necessariamente ser harmonista por regras e princípios. As qualidades as mais indispensáveis do compositor são o gênio, o método e o gosto. A meta a que deve se propor em seu trabalho é a de imitar a natureza, de agradar ao ouvido, de tocar, de elevar o coração, de excitar por sua vontade as paixões; de dar alma e expressão aos seus cantos, de os fazer novos e variados pela incursão, pela beleza escolhida dos acordes e temas; de exprimir com exatidão, com elegância, os sentidos das palavras. Assim se compõe música vocal: de emprestar, por assim dizer, as palavras aos sons, e dar vida aos acordes; se trabalha pelo instrumental, imitando pelos traços vivos e animados, a ternura, o natural da voz. Em uma palavra, seu objeto principal deve ser o de emocionar e de agradar, de pintar depois da natureza os movimentos da alma, as afecções do coração, de variar suas modulações de tal sorte que sua harmonia satisfaça ao ouvido, e seja confessada pela razão (BOLLIOUD-MERMET, 1746, p. 7-8).

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Ao defender as teorias imitativas, Mermet tinha consigo que os princípios deveriam ser conhecidos pelos compositores e pelo público, e isso veio demonstrar que o público estava se transformando, e que essas regras estavam começando a deixar de ter importância nas representações de ópera, pois prescrevia normas que eram conhecidas de sua hierarquia social, e que se davam como prática no século XVII e início do XVIII. Para relembrar o que os compositores franceses de seu tempo estavam fazendo com a música, trouxe o exemplo do compositor Lully, que em sua concepção era um modelo para música teatral, pois que sabia realçar o texto literário, enfatizando as palavras em seus recitativos e que mesmo na música instrumental usava de requinte de acordo com as regras:

380 Tal foi a intenção dos grandes mestres neste gênero. Tais foram os meios que eles empregaram para sobressair. Lully, que nos propôs ousadamente o modelo da música teatral, nos fez experimentar em suas obras os encantos sedutores da harmonia. O belo volteio de seus cantos, a nobreza, a força de sua expressão, sua maneira simples e natural de modular, o caráter de suas sinfonias, a melodia de seus recitativos, as graças ingênuas de suas arietas, a bela ordenação de seus coros, o atraem como jamais o título de Orfeu de nosso século (BOLLIOUD-MERMET, 1746, p. 8-9).

Demonstrou assim um saudosismo da era de Luís XIV, assim como Batteux o demonstrou, salientando que a música estava se degenerando, a ponto de afirmar que estava deixando de ser francesa. Bollioud-Mermet em suas manifestações chamou a atenção para o que a imitação da bela natureza estava se tornando. Ele afirmou que a mesma já era vista pelos compositores como algo comum, e que ao se utilizarem das teorias imitativas, o faziam de modo displicente, buscando, a seu ver, aquilo que havia de feio na natureza, assim como de bizarro. Os nobres procuravam, nas representações ao palco se Uma estética do gosto livrar de tudo o que havia de feio na sociedade, e projetaram um mundo ideal como norma para os bons costumes. Então o autor assinalou que o inverso ocorria, que se faziam más escolhas para se executar essas teorias. Essas más escolhas, segundo ele, estavam ligadas a um gosto dos franceses pela música italiana, pois que os mesmos tinham uma febre em imitar aos estrangeiros, e assim, transformando o gosto francês em algo bizarro. Próximo à metade do século XVIII francês a esfera do sentimento foi se desenvolvendo mais e dominando o julgamento estético da ópera. A perspectiva do gosto foi se fazendo mais ainda pelo “sentir” em detrimento da “razão”. E o discernimento do julgamento da música pela inteligência foi ficando em segundo plano na sociedade francesa, que, com frequentadores da ópera cada vez menos conhecedores de uma cultura tradicional devido à ascensão da classe burguesa, se contentava cada vez mais somente com os aspectos agradáveis das óperas, e ávida por música “estrangeira” como era o gosto 381 pela incidência de música italiana na ópera francesa. Charles Henri de Blainville (1711-1769), em sua obra O Espírito da Arte Musical , de 1754, fez referências à incidência de intermezzi italianos (ópera bufa) na ópera francesa, sendo um fervoroso partidário da tradição clássica, e para defender aos franceses, atacou a língua italiana:

Uma nação cujo teatro dramático seria reconhecido em toda Europa como a escola da bela declamação só poderia ter uma língua própria ao canto musical. Os franceses podem, portanto, ter uma música, a menos que, por uma doença singular, eles nos chegassem a se tornar surdos e mudos, não vejo outro impedimento. Em vão se nos vangloriará as vantagens da língua italiana: se é questão de que venham as comparações, esta língua não faz valer bem o nosso mutismo? O que é que [são] seus “u”, “z”, “gn”, “ci”, etc., e todas as pronúncias que um francês não poderia adquirir que por um exercício também penoso quanto ridículo? (BLAINVILLE, 1754, p. 2-3).

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Ele se referiu a um gosto refinado francês e à imitação da natureza, mas, como a discussão sobre a língua apropriada para a ópera estava em voga, o autor elogiou as vozes da nação francesa, e que estas se adequavam a todos os gêneros. Mais do que isso, que a beleza estava em se manter o gosto, ou seja, em seguir as regras das teorias imitativas, já que a língua italiana, segundo o autor, tinha na imaginação algo mais que suficiente para compor música sem precisar de regras, além do uso excessivo da extensão vocal. Para Blainville, assim como o canto foi a manifestação primeira da humanidade através da natureza, a mesma gerou as árias francesas, por serem simples e frutos do cantabile , tal qual a natureza, e apenas foram ditadas pelo gosto e, assim, eram algo a ser destinado para poucos, ou seja, aos conhecedores que reconhecessem sua origem e os modelos dos quais elas foram cópias. Ele era conhecedor da ópera bufa, assim como das 382 disputas da época, como podemos inferir no seguinte trecho, quando se perguntou quais eram as disputas na ópera italiana, demonstrando seu partido, que, sem dúvida, tinha nos franceses como a melhor música existente:

Então começamos a perceber todas as riquezas musicais. Os bufões acabaram de abrir a cortina, e nós nos convencemos desta variedade pelos encantos de seus intermezzi . Mas, quais são as disputas? Quais são os discursos que nada concluem? Sem dúvida que tomamos a parte oposta de qualquer palavra e as estudamos em segredo, e presume-se que estas belezas nos agradariam mais quando um dia os vermos vestidos à francesa (BLAINVILLE, 1754, p. 36).

Blainville tinha na língua francesa um exemplo de gosto e requinte naturais, próprios do caráter nacional francês, ordenado e condutor do gosto mais refinado e subserviente à razão; por comparação, afirmou ser natural na língua italiana uma desordem da imaginação, e que isto transpareceu na sua ópera, desordem tal, segundo ele, que estava distante da língua francesa, cujos sentimentos eram nobres e circunspectos, Uma estética do gosto condizentes com as próprias paixões humanas. Para ele, a força da tradição clássica teatral em conjunto com a pintura na formação de um quadro dos sentimentos era bastante incentivada pelos seus partidários, e que deveria de ser mantida. Até a primeira metade do século XVIII a música ainda era vista como uma representação teatral, e o gosto era moderado pelo componente tradicional, cuja imitação da natureza deveria sempre possuir os traços das formas poéticas da Antiguidade Clássica e do teatro clássico francês do século XVII.

Considerações finais Observamos nos autores franceses dos séculos XVII e XVIII que o dispositivo imitativo como prerrogativa para a composição da ópera estava se modificando; demonstraram 383 pelos seus escritos como as composições e execução da ópera se aproximavam ou de distanciavam dessas regras como critério. Quando uma ópera era avaliada segundo as regras, ela o era segundo a avaliação que se fazia ao texto literário e a representação teatral, sendo muitas vezes a música avaliada como sendo um desses dois aspectos, tomada por eles mesmos. E assim o era porque a prerrogativa da imitação era reproduzir em objetos não naturais cópias a partir de modelos retirados da natureza, produzindo assim a ilusão de ser o próprio modelo ali existente, mas aperfeiçoado, melhorado e controlado pelo engenho da arte. A natureza era o modelo a ser imitado, ela era sinônimo da razão, e a imitação deveria então realçar os aspectos racionais para satisfazer essa condição, e o modo como a razão era demonstrada na ópera o era pelo seu texto literário, através da linguagem verbal. O elemento permanente em fins do século XVII e no decorrer do século XVIII como encontrados nos textos, e em transformação, era o elemento imitativo. A teoria imitativa se manteve como concepção para as artes até o fim da monarquia, apesar de seu declínio. A partir dos autores mencionados, percebeu-se em que medida a sociedade em transformação se manteve ou se distanciou das regras das teorias imitativas, que

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determinavam o bom gosto. O que se viu foi a modificação e enfraquecimento gradativo dessas teorias a partir da aceitação da ópera bufa italiana em seu meio. Grandval, Bollioud-Mermet e Blainville tinham uma espécie de descrição do dia a dia nas representações de ópera, relatando aquilo que era esperado pela audiência quanto à imitação e o cumprimento de suas regras, concordando em maior ou menor grau com Dubos e Batteux, relatando aspectos do tipo de público que assistia as representação de ópera, assim como aquilo que era considerado correto e incorreto, conforme o gosto, em relação ao texto, à representação teatral, e mesmo à música. Eles demonstraram o quanto a tradição era lembrada ou esquecida, e em que grau as teorias imitativas satisfaziam ao gosto vigente. Verificou-se que havia um estranhamento entre a música e a representação dramática, e se muitas vezes a representação teatral da ópera satisfazia ao esperado quanto ao gosto cumprido pelas regras, a música 384 deixava a desejar nesses aspectos, gerando uma espécie de conflitos e não conciliação entre os aspectos verbais e musicais, e o que se tentava, conforme os autores, era fazer a música se modelar conforme a tragédia teatral. Essa disparidade entre os dois elementos era constatada na medida em a interferência da ópera bufa trazia apenas o poder de agradar, dirigindo-se às sensações, sem os recursos das teorias imitativas, e agradava mais ainda às classes não aristocráticas, que não conheciam e não se fiavam pelas regras das teorias imitativas na ópera.

Referências Bibliografia BATTEUX, C. As belas artes reduzidas a um mesmo princípio . Trad. M. A. Werle. São Paulo: Humanitas/Imprensa Oficial, 2009. BLAINVILLE, C. H. de. L'Esprit de l'art musical. In: L'Esprit de l'art musical, ou réflexions sur la musique, et ses différentes parties . Genebra: 1754. Disponível em: http://www.chmtl.indiana.edu/tfm/18th/BLAESP_TEXT.html. Acesso em 26/03/2013 . BOLLIOUD-MERMET, L. De la corruption du goust dans la musique françoise. In: Music and Theatre in France in the 17th and 18th Centuries . An AMS Reprint Series. Lyon: Delaroche, 1746. Disponível Uma estética do gosto em:http://www.chmtl.indiana.edu/tfm/18th/BOLCOR_TEXT.html. Acesso em 26/03/2013. BURY, E., LOPEZ, D., PICCIOLA, L., ZUBER, R. Littérature française du XVIIe siècle. Paris: Presses Universitaires de France, 1992. CASSIRER, E. A filosofia do Iluminismo . Campinas: Editora da Unicamp, 1994. DUBOS, A. Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture . Paris: École Nationale Supériure des Beaux-Arts, 1993. FABIANO, A. La “Querelles des Bouffons” dans la vie culturelle française du XVIII° siècle. Paris: CNRS Éditions, 2005. FUBINI, E. Estética da música . Lisboa: Edições 70, 1993. ____. La estética musical desde a Antigüedad hasta el siglo XX . Madri: Alianza Editorial, 2007. GRANDVAL, N. R. de. Essai sur le bon goust en musique . Paris: Pierre Prautl, 1732. Disponível em: http://www.chmtl.indiana.edu/tfm/18th/GRANESS_TEXT.html Acesso em 26/03/2013. 385 NEUBAUER, J. La emancipación de la música: el alejamiento de la mímesis em la estética del siglo XVIII . Madri: Visor Dis., S.A., 1992.

RIBEIRO, R. J. A glória. In: NOVAES, A. (Org.). Os sentidos da paixão . São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ROVIGHI, S. V. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel . São Paulo: Edições Loyola, 2006.

O Músico Prático no Compendium Musicae de Descartes

TIAGO DE LIMA CASTRO

Introdução

o longo da história, a música ocupou um lugar A peculiar ao pertencer, simultaneamente, às artes liberais e às artes mecânicas, como se depreende da obra De Institutione Musica de Boécio. Nesse contexto, o músico prático, como executor e compositor da música como arte mecânica, é inferior ao músico teórico, o qual reflete sobre a música através da razão, portanto, atuando nas artes liberais. Todo argumento gira em torno da ausência do uso da razão na prática musical, sendo a razão parte da teorização sobre música. Esta divisão é influente sobre a escrita de tratados musicais, onde geralmente as soluções composicionais eram dadas como fórmulas a serem memorizadas pelos músicos práticos, já que o pensamento musical não era sua tarefa. Tal divisão será rompida por Jean-Phillippe Rameau na publicação do Traité de l´harmonie em 1722, sendo também um músico prático por ser instrumentaista e ter escrito diversas obras musicais. Porém, com a obra Compendium Musicae de René Descartes (1596-1650), redigido em 1618 e publicado postumamente em 1650, é proposta a possibilidade do músico prático no uso da razão. Assim, primeiramente, analisar-se-á a proposição de Boécio em seu contexto histórico; em um segundo momento, analisar-se-á o contexto em que a obra fora escrita de Descartes e sua publicação póstuma; na sequência, o foco será a proposição de Descartes no contexto do próprio compendio; e O músico prático finalizando, como o contexto da leitura das proposições cartesianas colocam em dúvida as proposições boecianas. Boécio e os tipos de músicos na Idade Média Na Idade Média, a música ocupa um lugar específico dentro da cultura geral, sendo ao mesmo tempo partes das artes mecânicas, em seu aspecto prático de cantar, tocar instrumentos e compor peças musicais; como pertence as artes liberais, enquanto reflexão racional dos elementos musicais em sua relação com o Todo e sua relação com a matemática. O ensino medieval das artes liberais dividia-se em: trivium (gramática, retórica e lógica) e quadrivium (matemática, geometria, astronomia e música). A música está do quadrivium por sua intrínseca relação com a matemática, já que já influência da estética pitagórica e platônica entre os autores (FUBINI, 1985). Uma das grandes obras dessa época fora o De Institutione Musica de Boécio (480– 524). Como assevera 387 Fubini: “Por toda a Idade Média, Boécio fora uma referência capital e, durante os séculos, todos as teorias foram fundadas sobre sua autoridade” (FUBINI, 1985, p. 41). Pode-se ver sua influencia após o século IX e pelo fato de ter sido umas primeiras obras que trata sobre música a ser impressa em 1491 e 1492 em Veneza (BOÉCIO, 2009). O foco dessa análise é a maneira como compreende o músico. Em sua argumentação, há uma clara deferência aos executores de tarefas manuais, mecânicas. O trabalho do artesão é tido com indigno em relação o qual pensa sobre esta arte por não usar as mãos, mas a razão. Já que a razão é tida como soberana as habilidades manuais, por estas servirem as suas diretrizes. Como assevera o autor:

[...] toda arte, assim como toda disciplina, tem por natureza um sistema teórico mais digno que a perícia artesanal exercida pelas mãos e obra do artesão. Muito maior, em efeito, e mais elevado é o saber pelo qual se põe em prática aquele que sabe, pois, a habilidade física de um artesão é erxercida como escrava; a razão, ao contrário, exerce comanda, por assim dizer, como uma soberana. [...] Portanto,

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muito mais admirável é a ciência da música ano plano do conhecimento racional do que pela execução de obras e posta em prática! (BOÉCIO, 2009, Mús. I 34, p. 224)

Sobre a égide dessa proposição, ele divide em três grupos aqueles que lidam com a arte musical: os que se dedicam aos instrumentos, os que compõe as canções e os que julgam os trabalhos instrumentais e as canções. Os que se dedicam aos instrumentos são tidos como escravos, já que “[...] não fazem uso da razão e são totalmente desprovidos de reflexão” (BOÉCIO, 2009, Mús. I 34, p. 224). Boécio propõe que estes atuam somente como criados por aquilo estabelecido pelos racionalmente pelos teóricos, daí estarem afastados da reflexão, já que sua habilidade advém somente da prática mecânica e obediência dos tratados. Os que se dedicam a compor as canções, os poetas, o 388 fazem por “[..] não tanto pela especulação e pela razão, mas por um certo tipo de instinto natural” (BOÉCIO, Mús . I 34, p. 225), portanto, não utilizam a razão para este fim. Estes são o que se podem chamar de músicos práticos, os quais não tem grande valor, segundo Boécio, por não fazerem uso da razão para sua atividade. Já os tidos como efetivamente músicos por Boécio são aqueles que realizam o julgamento sobre as obras musicais através da faculdade racional.

E observando que a totalidade é fundada na razão e na reflexão, esta classe é reconhecida como altamente musical, e este músico é reconhecido como um músico que possui a faculdade de julgar, acordando a reflexão ou a razão apropriada e conveniente a música. (BOÉCIO, Mús. I 34, p. 224)

Este é o que se pode chamar de músico teórico, sendo aclamado por Boécio exatamente por sua ação ser pautada na razão e no pensamento, daí ser o único digno de ser chamado de músico. O músico prático

Tal concepção leva a uma compreensão do músico prático enquanto inferior – Boécio nem o considera como músico – devido a não usar da razão para suas tarefas, seja no ato de execução musical ou de composição. Tal ideia influenciou a escrita de tratados teóricos posteriores e na própria prática de memorização das cadências musicais por parte dos músicos, por exemplo, para sua correta execução, pois como não utilizam da razão necessitam recorrer a memorização dos procedimentos para sua prática.

Escrita e publicação do Compendium Musicae de Descartes Descartes escreve a obra no final de 1618 para seu amigo físico e matemático Isaac Beeckman (1588-1637). É uma obra de juventude, escrita quase que simultaneamente com a obra Règles pour la direction de l'esprit (1619). Verifica-se o uso no compendio dos procedimentos propostos na última obra 389 citada (JORGENSEN, 2012). Descartes sempre teve interesse por matemática durante sua formação no colégio de La Fléche, entretanto “[...] Beeckman exerceu sobre ele um fascínio intelectual, dando à sua atracção espontânea pelas matemáticas uma dimensão científica” (RODIS-LEWIS, 1995, p. 46). O uso da matemática para lidar com problemas de física atraiu o jovem Descartes, e Beeckman tinha um interesse sobre música também, utilizando-se do mesmo método. Entretanto, a composição do compendio mesmo sendo uma homenagem ao seu amigo mais velho, não aplica as ideias de Beeckman exatamente, pois “[...] sua intenção, ao redigir o Compendium Musicae para seu amigo, é de explicar-lhe o sistema tradicional por seu método próprio” (WYMEERSCH, 1999, p. 100). Não era uma obra a ser publicada, inclusive, Descartes não retoma a problemática do compendio, somente a preocupação com as paixões exposta neste, mantém-se durante sua existência ao ponto de sua última obra, a Passions de l´âme (1649), lidar diretamente com esse problema.

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Mesmo o compendio já apresentando elementos característicos ao futuro cartesianismo, ainda não se pode falar dessa obra como exatamente cartesiana, sendo um tema possível de amplas discussões (JORGENSEN, 2012; WYMEERSCH, 1996). A obra fora publicada postumamente em 1650, gerando interesse ao ponto de já em 1653 receber uma tradução inglesa – com o sugestivo título Renatus Descartes, Excellent Compendium of Musick: With Necessary and Judicious Animadversions threupon, by a Person of Honour –, em 1661 uma tradução flamenga, tradução francesa em 1668 (BUZON, 1987). Rameau além de interessar-se pela obra, influenciou-se pelo cartesianismo (WYMEERSCH, 1999). Tal interesse reflete o impacto do pensamento cartesiano em sua época. O interesse pelo compendio tem grande relação com esse impacto, não sendo absurdo conceber que sua leitura teve primeiramente um viés cartesiano em sua 390 publicação. O furor causado por sua obra gerou um interesse por tudo o que ele escreveu, tanto sobre obras de juventude com de suas cartas. Nesse momento, em que Descartes é dos autores mais discutidos pelo impacto da emergênciada filosofia moderna em sua obra, um escrito sobre música desperta interesse, pois não se está falando de um autor qualquer, e sim de um dos pensadores mais discutidos em sua época.

As proposições cartesianas sobre o músico prático Primeiramente, tratando das maneiras de compor e da origem dos modos, no quarto item discute sobre a necessidade de passar de uma consonância imperfeita a uma perfeita, escolher o alvo através da proximidade, exemplificando com o caminho natural da sexta maior à oitava. Explica essa regra como sendo devido a necessidade do ouvido de escutar sempre uma consonância mais perfeita. Evitando entrar em uma discussão acirrada sobre o tema, como ocorria em sua época (PIRRO, 1907), escreve:

O músico prático

[...] Mas esta regra varia frequentemente; e não me recordo agora a quais consonâncias chegar, a partir de quais e por quais movimentos deve ser alcançado. Todas essas coisas dependem da experiência e do uso dos práticos. Como é conhecido, eu creio que que se pode facilmente deduzir as razões pelo que foi dito, inclusive as mais sutis. (DESCARTES, A.T., X, p. 133) 1

Além de sair de uma disputa dos processos composicionais, a proposição coloca nos músicos práticos a capacidade de pensar as razões de seu procedimento e valorizando também sua própria experiência. Ao tratar especificamente dos modos o autor propõe que “este tratado é famoso entre os praticantes e conhecido de todos: é por isso que seria supérfluo explicar plenamente” (DESCARTES, A.T., X, p. 139). Pirro propõe que isso é devido a paixão com que os músicos práticos discutem os modos em sua época (cf. PIRRO, 1907), entretanto, como o foco da discussão 391 com Beeckman é epistemológico, estes aspectos mais práticos seriam ignorados pelo próprio âmbito da discussão (cf. WYMEERSCH, 1999). Ao discorrer sobre a movimentação de afetos no ouvinte graças ao uso dos modos, propõe-se que “[...] os práticos falam muito, porém instruídos somente por sua experiência” (DESCARTES, A.T., X, p. 139). Em seguida, dizendo que se poderia deduzir diversas razões destes efeitos através daquilo já apresentado em seu texto.

Um diálogo em torno do músico prático Para pensar esse diálogo possível entre Boécio, representando o pensamento tradicional sobre o músico prático, e Descartes, é necessário considerar que sua obra fora lida por seus contemporâneos, provavelmente, com uma lente

1 Essa maneira de citar os textos de Descartes é uma prática internacional de sempre partir-se da paginação e volumes da edição Adm-Tannery, normalmente apontada nas traduções.

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constituída das proposições de Descartes na fase madura de sua produção, dessa forma, vendo o texto escrito pelo filósofo do cogito , daquele que se contrapôs ao pensamento tradicional, e aos argumentos de autoridade, através do racionalismo e da dúvida metodológica e hiperbólica (SILVA, 2005). É importante considerar a publicação póstuma do texto, despertando o interessante de seus contemporâneos em sua análise exatamente devido a fundação da filosofia moderna feita por Descartes. Hipoteticamente, o interesse despertado pelo texto advém da obra pela qual Descartes tornou-se o pai da filosofia moderna, talvez mais do que o texto em si mesmo. Esse contexto permite pensar a leitura do Compendium Musicae dentro de uma ótima cartesiana, mesmo tendo em conta os problemas dessa leitura. Seguindo esse intinerário, na obra Discours de la méthode (1637) o autor propõe seu método em torno do princípio de clareza e evidência, o qual implica em não aceitar 392 nada que não seja evidentemente claro e distinto ao espírito, através do uso da dúvida hiperbólica, quer dizer, tudo é colocado em dúvida até que surja um elemento claro e evidente para daí poder começar a afirmar algo partindo dessa evidência, mesmo que seja a própria realidade a ser afirmada. Nesse processo, o autor chega ao dito latino cogito, ergo sum , traduzido normalmente como: penso, logo existo. Ao colocar toda a realidade metodologicamente em dúvida, chego a uma evidência clara e distinta de que enquanto penso não posso duvidar que eu seja algo pensante, exatamente por estar pensado. A partir daí o filósofo vai reafirmando toda a realidade partindo deste princípio (DESCARTES, 1973a). Na obra Meditationes de prima filosofia (1641), ele aprofunda o mesmo percurso, sendo a metafísica o foco dessa obra. Não é objetivo desse texto aprofundar esse percurso, entretanto, nesta obra fica clara a separação entre alma e corpo no pensamento cartesiano, mesmo que há certa sutileza em não propor a alma como uma espécie de piloto do corpo. Essa separação, em Descartes, é de grande radicalidade comparado ao pensamento medieval, pois corpo e alma são ditos como susbstâncias diferentes, ou seja, ambas existem em si e por si, apresentando atributos diferentes, ou seja, a alma tendo o O músico prático atributo do pensamento e o corpo o atributo da extensão, o que também problematiza essa união (ROCHA, 2006). É característico do homem essa relação necessária entre alma e corpo. Por mais que ambos estejam unidos, na obra cartesiana, o pensamento é anterior as ações corporais, naquilo que é fruto da vontade e da reflexão. Ao longo do pensamento ocidental, houve intrínseca relação entre o homem e a razão, seja no lógos grego ou na ratio latina, entretanto, como Descartes, em sua dúvida metodológica e hiperbólica, duvida da própria existência do corpo, chegando a ideia de que o homem é alguma coisa que pensa, para depois afirmar a realidade do corpo, essa separação propõe uma nítida predominância da alma, do pensamento, sobre a ação corporal. Numa concepção como essa, seria impossível dizer que um músico prático que executa instrumentos não pense, pois se compreende o homem como essencialmente algo pensante, o que já coloca em dúvida a divisão dos três grupos de pessoas que lidam com música, 393 como proposta por Boécio, pois o critério de divisão foi o maior ou menor uso da razão para desenvolver sua ação. Numa concepção em que há uma clara e radical divisão de alma e corpo, tendo na alma certa predominância devido a ter como atributo o pensamento, portanto, todos exercem o pensamento antes de suas ações. Torna-se insustentável dizer que o músico prático tem toda sua ação pautada nas ações corporais, já que neste contexto estas ações têm origem no pensamento. O compositor, o qual Boécio atribuiu ua uma espécie de instinto natural no processo composicional, também teria no pensamento o fundamento de sua prática compositiva. Portanto, não somente o teórico é que faz uso do pensamento para sua ação. Nesse prisma, as afirmações comentadas do Compendium Musicae ganham possíveis nuances ao lê-lo, como provavelmente deve ter ocorrido na leitura de seus contemporânos. Ao discutir sobre as regras relativas a passagem de uma consonância imperfeita à uma consonância perfeita o autor diz:

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[...] Mas esta regra varia frequentemente; e não me recordo agora a quais consonâncias chegar, a partir de quais e por quais movimentos deve ser alcançado. Todas essas coisas dependem da experiência e do uso dos práticos. Como é conhecido, eu creio que que se pode facilmente deduzir as razões pelo que foi dito, inclusive as mais sutis. (DESCARTES, A.T., X, p. 133)

Em uma época onde tratados partiam da ideia que músicos práticos não pensam e, portanto, necessitam memorizar os procedimentos de tratamento destas regras, propor que o uso destas regras depende da experiência dos práticos é valorizar a própria prática, pois poderia indicar outro teórico ou dizer que isso depende do teórico que aborda o tema, sendo a ênfase no prático aqui algo notável. Além disso, ao sugerir que estes poderiam deduzir as razões deste uso pelos princípios já exposto no compendio, ou seja, atribui a 394 possibilidade do uso da dedução, do uso do pensamento, ao músico prático. Não é impossível imaginar que esse trecho pudesse ser lido por músicos práticos como uma potencial equiparação entre práticos e teóricos. No trecho em discute os modos e seus procedimentos, o autor indica a leitura da obra de Zarlino, dizendo que “este tratado é famoso entre os praticantes e conhecido de todos: é por isso que seria supérfluo explicar plenamente” (DESCARTES, A.T., X, p. 139). Colocar um argumento de autoridade, advindo dos músicos práticos, ao indicar a leitura de Zarlino é, indiretamente, propor a estes a capacidade de fazer juízos, ou seja, de avaliar a competência e relevância de um tratado teórico. Tendo em conta que Boécio propôs, entre outros elementos, que o músicop verdadeiro é o músico teórico pela capacidade de fazer juízos, aqui há uma possível equiparação entre o músico prático e o teórico. Nestes últimos dois trechos analisados, ao lembrar que o texto fora escrito para ser lido por um teórico somente, Beeckamn, e traz-se uma autoridade da experiência do músico prático tanto na indicação de um tratado como no uso das regras é algo um tanto inusitado. Uma correspondência entre O músico prático teóricos trazendo os práticos na argumentação não é algo a ser ignorado. Quando passa a discorrer sobre os efeitos dos modos sobre o ouvinte, enquanto movimentação de afetos, o autor coloca que “[...] os práticos falam muito, porém instruídos somente por sua experiência” (DESCARTES, A.T., X, p. 139). Aqui está uma crítica as proposições dos músicos práticos sobre o tema por serem instruídos somente por sua própria experiência, ou seja, o problema não é os músicos práticos falarem sobre isso, mas não embasar em algo além da experiência, o que é muito diferente de dizer que sua prática exclui a possibilidade da racionalização de suas proposições e, por isso, não deveriam falar desse assunto. Inclusive, ao se ler a obra tendo em vista a revolução no pensamento realizada por Descartes, o trecho pode ser lido como um ensejo e impulso aos músicos práticos trabalharem essa questão com maior rigor, ou seja, tornarem-se também teóricos. Essa leitura é somente uma leitura possível pautada na 395 proposição de que o texto de Descartes pode ter sido lido em face de sua obra madura. Tendo em vista a forte presença do pensamento musical de Boécio a época, suas proposições foram utilizadas como um representante do pensamento musical medieval, daí um diálogo possível entre os dois. Seria muita ingenuidade passar a ver Descartes como uma figura quixotesca, uma espécie de espadachim da razão lutando em defesa dos músicos práticos, porém, todo o contexto de estabelecimento da ciência e filosofia moderna, no qual Descartes é um dos protagonistas, no qual a música caminhará em busca de autonomia e a divisão entre músico prático e teórico tenderá a ser superada, as proposições de Descartes sobre o músico prático ganham relevância, mesmo a obra não sendo escrita para ser lida por estes.

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A Biografia de Francesco Geminiani (1687-1762) e sua relação com a música inglesa do século XVIII

MARCUS HELD

escrita biográfica compreende-se como uma importante A ferramente de compreensão histórica. Não somente com a narração da vida de alguém, este gênero literário lida com o compromisso de fundamentar e analisar historicamente o biografado, assim como seus envolvidos, oferecendo, portanto, o contexto cultural daquele momento registrado. Nesse sentido, “Pierre Bourdieu falou acertadamente de ‘ilusão biográfica’, considerando que era indispensável reconstruir o contexto, a ‘superfície social’ em que age o indivíduo, numa pluralidade de campos, a cada instante.” (cf. LEVI, 1989, p. 165). No entanto, tal compromisso possui seus custos: a biografia, segundo Alberto Levi, é incapaz de captar a essência do biografado (cf. LEVI, 1989). Longe de estar diminuída, porém, perante os outros gêneros literários, é inegável a importância que a escrita biográfica possui para a já enunciada compreensão histórica. Sobre isso, Levi explica, ainda, sobre sua tipologia Biografia e Contexto , defendendo que, nessa utilização,

A biografia conserva sua especificidade. Todavia a época, o meio e a ambiência também são muito valorizados como fatores capazes de caracterizar uma atmosfera que explicaria a singularidade das trajetórias. (...) A reconstituição do contexto histórico e social em que se desenrolam os acontecimentos permite compreender o que à primeira vista parece inexplicável e desconcertante. ” (LEVI, 1989, p. 175)

Nesse viés, a presente pesquisa visa a narrar e contextualizar a vida do violinista, professor e compositor Francesco Geminiani, nascido na Itália do século XVII, berço da

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profusão musical barroca, fundamentando-se em relatos e pesquisas de estudiosos da música italiana e de Geminiani especificamente, bem como ao acesso a fontes primárias, para, por fim, compreender a cena musical britânica daquele período. A General History of The Science and Practice of Musick (1776) de John Hawkins, e A General History of Musick (1779- 1789), de Charles Burney, são as duas fontes primárias que dialogam com o corpus teórico atual. Optou-se pela leitura do artigo Geminiani in England and in Ireland (1910), do musicólogo W. H. Gratan Flood, e da obra canônica do pesquisador Enrico Careri, intitulada Francesco Geminiani (1687-1762) (1993) para a elaboração da biografia do músico italiano, que compreende a primeira seção deste artigo. Para Chartier,

Toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa prática histórica particular, num espaço de trabalho 398 específico. O meu [de Chartier] organiza-se em torno de três pólos, geralmente separados pelas tradições acadêmicas: de um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos, decifrados nos seus agenciamentos e estratégias; de outro lado, a história dos livros e, para além de todos os objetos que contém a comunicação do escrito; por fim, a análise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos e significações diferenciadas. (CHARTIER, 1991, p. 178).

Assim, a partir do conhecimento da vida deste compositor, será possível refletir sobre a música instrumental em voga na Inglaterra na primeira metade do século XVIII, já que sua atuação artística nos centros britânicos - Londres, Dublin e Edimburgo, como constataremos a seguir, foi decisiva para a formação do gosto musical inglês. Para tanto, será elaborado um texto biográfico sobre Francesco Geminani; em seguida, será observada sua produção musical e tratadística, em especial o Treatise of Good Taste in the Art of Musick , e sua posição no cenário musical inglês.

A biografia de Francesco Germiniani

Francesco Geminiani (1687-1762) Francesco Saverio (Xaverio, Xavier, Zaverio) Geminiani (Gemignani, Giomignani) foi um compositor, professor e violinista setecentista renomado. Natural de Lucca, Itália, a data de seu nascimento é assunto de discussão em virtude das divergências encontradas em diversas fontes, primárias e secundárias. Autor da primeira história da Música e conhecido na musicologia histórica como referência em questões de dados históricos em virtude de sua longa e laboriosa obra A General History of Musick (1776-1789), Charles Burney (1726-1814) conhecera Geminiani pessoalmente, e relatou que “[o compositor] nasceu em torno do ano de 1666” (BURNEY, 1954, p. 990). No entanto, o musicólogo W. H. Gratan Flood, em seu artigo Geminiani in England and in Ireland (1910) defende 1674 como o ano de seu nascimento. Nesse artigo, está citada uma carta de Mrs. Delaney (amiga próxima de Geminiani), datada do dia quatro de março de 1760, sobre um concerto dado pelo músico no dia anterior, ao qual ela esteve presente, o que 399 corrobora para a conclusão de Flood sobre a data de nascimento de Geminiani:

“Ponho na minha manhã [o momento de] quando fui ao grande monde, o que fiz ontem no concerto de Geminiani: estava bastante cheio; cheguei em torno das dez [primeiras pessoas]. A Duqueza de Bedford e a Dama Caroline Russel estavam lá. A música começou à sete e meia. Fiquei extremamente satisfeita: há um espírito de harmonia e mesquinhez de fantasias que nenhuma outra música (além da do nosso querido Händel) tem. Ele tocou um de seus próprios solos maravilhosamente bem para um homem de oitenta e seis anos de idade, e um de seus dedos machucou- se, mas a doçura e a melodia do som de seu violino, seu gosto encantador e refinado, bem como a perfeição do tempo e da afinação fazem toda a reparação de alguma falha em seu tocar ocasionada pela fraqueza de sua mão. (...).” 1 (DELANEY apud FLOOD, 1910, p. 111)

1Todas as traduções são de nossa autoria, salvo aquelas indicadas nas Referências Bibliográficas.

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Neste sentido, a constatação de que, em 1760, Geminiani tinha 86 anos de idade traz a conclusão de que seu nascimento tenha ocorrido, pois, em 1674. No entanto, pesquisas mais recentes demonstram conclusões diferentes. O longo e completo trabalho do pesquisador italiano Enrico Careri, referência mundial em Geminiani, conclui que ele, definitivamente, nasceu em dezembro de 1687, tendo seu batismo sido realizado no quinto dia daquele mês (CARERI, 1993). Careri sugere que seu segundo nome, Saverio, tenha sido escolhido com base na tradição existente naquele tempo: batizar a pessoa com o nome do santo que é celebrado naquele dia; no caso, dia de São Francisco Xavier. Logo, Geminiani nasceu, possivelmente, dois dias antes de seu batizado, isto é, a três de dezembro de 1687 (CARERI, 1993). Segundo Careri, Francesco Gemininai, o quarto de onze filhos de Signor Giuliano Geminiani e Signora Angela, teria sido o único a seguir a profissão do pai. Tendo, possivelmente, 400 iniciado seus estudos musicais com Giuliano, que era violinista da Capela Palatina (única instituição musical da cidade, à qual foi nomeado ao cargo em 1681), Francesco teria, segundo Burney,

recebido suas primeiras instruções no violino de Carlo Ambrogio Lonati, de Milão, comumente chamado de Il Gobbo (o Corcunda), um celebrado intérprete nesse instrumento... Depois disto, estudou contraponto com Ales[sandro] Scarlatti em Roma, onde tornou-se discípulo de Corelli no violino (...). (BURNEY, 1954, p. 990)

Como seu pai era membro da Congregazione dei Musici di Santa Cecila , sediada na capital italiana e, consequentemente, muito ativo no cenário musical romano, crê-se que tanto Arcangelo Corelli quanto Alessandro Scarlatti tenham sido apresentados ao filho por seu intermédio. Giuliano manteve seu emprego na Capela com um salário razoavelmente alto de quatro ducados mensais até agosto de 1707 quando, no mesmo mês, Francesco, logo após completar seus estudos em Roma, assume o posto pelo salário de 2,45 ducados. Ao passo que seu pai precisou de dez anos de ofício para conquistar tal quantia, A biografia de Francesco Germiniani

Geminiani precisou não mais que dois, atestando, assim, sua excepcional habilidade artística. Todavia, assim que recebeu o aumento, optou por abandonar esse emprego seguro (paralelamente aos 26 anos de serviço que seu pai prestara, o filho permaneceu por apenas dois anos na orquestra), o que levanta uma série de questões sobre o porquê de tal atitude. Como atesta Careri,

suas habilidades no violino deveriam ser, certamente, muito acima da média, e Lucca pode ter representado o fim para ele, visto que uma carreira de virtuoso era uma preocupação. Então, pode-se entender se ele se sentisse atraído a grandes cidades e decidisse buscar sua fortuna em outro lugar. (CARERI, 1993, p. 03)

Substituído, portanto, pelo violinista Francesco Lombardi, o rastro de Geminiani entre 1707 a 1714 é 401 dificilmente traçado em vista da precariedade de documentação. Aceita-se, atualmente, que o músico tenha partido para Nápoles, cidade em que lideraria uma orquestra. No entanto, essa nova experiência teria um resultado catastrófico em sua carreira, como pode ser constatado em Burney:

ele foi logo descoberto como sendo tão desabilitado e impreciso em relação ao tempo que, em vez de regular e conduzir o conjunto, largou-o à confusão, pois nenhum dos executantes eram capazes de segui-lo em seu tempo rubato , em outras acelerações inesperadas, bem como em relaxamentos do compasso. (BURNEY, 1954, 1991)

Tendo isto ocorrido em 1711 (cf. FLOOD, 191), o músico, que já havia demonstrado dificuldade de manter-se regularmente em algum trabalho fixo sob a ordem de terceiros, não permaneceu mais em Nápoles 2. Como havia optado por

2 Sobre seu temperamento contrário ao trabalho servil, Geminiani passaria, durante seu tempo em Londres, a ser conhecido também

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seguir carreira de virtuoso itinerante, independentemente das dificuldades financeiras que esta escolha poderia acarretar-lhe (CARERI, 1993), Geminiani, em 1714, aos vinte e sete anos de idade, parte para Londres, capital inglesa, para nunca mais retornar à Itália. A Inglaterra foi uma escolha acertada para um italiano pupilo de Corelli. De fato, a técnica violinística corrente nesse país era muito menos sofisticada em relação a países como Itália e França. Além disso, a Itália era o país da moda, o que denota que a música de Corelli estava em alta em todos os países da Europa; naturalmente, Geminiani faria muito sucesso com sua arte em sua nova pátria (CARERI, 1993). Embora Burney relate que “Geminiani era raramente ouvido em público durante sua longa residência na Inglaterra” (BURNEY, 1954, p. 992), o recém-chegado compositor logo atraiu a atenção do ambiente musical britânico. Rapidamente, sua reputação tomou grandes proporções enquanto professor (tendo em vista 402 sua vasta quantidade de alunos, alguns deles prodigiosos) e compositor, e Geminiani passou a ser considerado, nos círculos musicais ingleses, uma autoridade (CARERI, 1993). Seus primeiros anos em Londres foram patrocinados pelo Barão Kielmansegg, e a ele foi dedicada sua primeira publicação (1716) 3: doze sonatas para violino e baixo contínuo, op. 1 (figura 1), cuja opinião de Burney é a de que, embora poucos consigam tocá-las, são mais elaboradas e sofisticadas que as sonatas de Corelli (BURNEY, 1954). Assim sendo, na ocasião da publicação, foi organizado um concerto no palácio

como vendedor de quadros, ocupação esta que garantiria seu sustento em tempos economicamente instáveis, ainda que “sem o conhecimento e o gosto para pintura necessários” (BURNEY, 1954 [1779-89, ii, p. 993]. Há relatos, inclusive, de que ele tenha se envolvido em casos de falsificação, tendo sido preso por um breve período de tempo (HAWKINS, 1963 [1776], ii, p. 847). 3 Obviamente, a data de publicação não deve ser confundida com a de composição. Certamente Geminiani já havia executado tais sonatas (e publicações posteriores) anteriormente, inclusive em seus anos na Itália. No entanto, o processo de edição, impressão e divulgação era muito caro, e, na falta de capital, requeria patrocínio.

A biografia de Francesco Germiniani de seu patrono com a presença do rei George I: seriam executadas as sonatas com o próprio compositor ao violino, como habitual, e ninguém menos que Georg Friedrich Händel, o mais renomado compositor em solo britânico, ao cravo, para executar o baixo-contínuo.

403

Fig. 1 Frontispício do op. 1 (1716), de Francesco Geminiani.

Essas sonatas (que seriam publicadas novamente em 1718 e, ao longo de muitos anos, extensivamente reeditadas) e seus concertos grossos (opp. 2 e 3) publicados muitos anos depois, foram seu cartão de visita como violinista virtuose e representante da escola romana, discípulo do grande nome da

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música naquela época, Arcangelo Corelli (CARERI, 1993). Assim, como constatado que suas apresentações públicas eram escassas, seus primeiros dez anos em Londres foram dedicados ao ensino e à composição (FLOOD, 1910) até que, em fevereiro de 1725, Geminiani tornou-se um dos oito membros fundadores da loja maçônica Philo-Musicae et Archteturae Societas. Essa loja, como comprovado por Careri, não foi a única instituição maçônica da qual o músico fizera parte, tendo sido membro da Academy of Vocal Musick (de 1726 a 1727) (CARERI, 1993). Embora o propósito fundamental da Societas seja desconhecido, a primeira decisão do grupo foi angariar fundos e organizar assinaturas para a publicação dos concertos baseados nas seis primeiras sonatas op. 5 de Corelli, compostos por Geminiani. Assim, em agosto de 1726 foi publicado no jornal Daily Courant sua nova publicação (pelo editor William Smith). No mês seguinte, no mesmo jornal, uma nova edição (por Walsh, um dos editores mais renomados da Inglaterra setecentista) não autorizada foi anunciada, tendo sido taxada 404 de falsa imediatamente. Ainda que o retorno financeiro com esses concertos tenha sido insuficiente para Geminiani, o sucesso dessas composições é incomparável. A partir de sua primeira publicação, a obra foi copiosamente reeditada e vendida por toda a Europa. Todo esse sucesso motivou-o a continuar o projeto e a trabalhar nas últimas seis sonatas do mesmo opus de seu mestre. Criados em 1727, com a expectativa de que o sucesso se repetiria, as assinaturas dos novos concertos desapontaram, e foi Walsh quem os publicou, apenas dois anos depois (CARERI, 1993). Curiosamente, no mesmo ano, a Philo- Musicae et Archteturae Societas encerrou suas atividades, o que corrobora para a hipótese de que o principal projeto da associação era garantir a publicação dessas orquestrações de Geminiani. Em 1728, William Capel, conhecido como Lord Essex (1697-1743), que foi aluno de Geminiani, ofereceu o posto de mestre e compositor da corte Irlandesa; posto esse que garantiria seu futuro economicamente (HAWKINS, 1963 [1776]). Segundo Hawkins, outro grande expoente da história da música, que o conhecera pessoalmente, assim como Burney, Geminiani recusou o cargo por questões religiosas: para A biografia de Francesco Germiniani assumi-lo, o compositor deveria abandonar sua fé católica. No entanto, Careri ainda defende a posição de que o músico, avesso ao regime hierárquico de trabalho, tenha declinado para não ser limitado em seu ofício (CARERI, 1993). Um outro discípulo de Geminiani, Matthew Dubourg (1703-1767), que tardiamente seria o responsável pela presença de seu mentor nos círculos musicais irlandeses, assumiu o cargo ora deposto (HAWKINS, 1963 [1776]). Em oposição às suas raras aparições públicas nos primeiros anos de residência na capital Inglesa, Francesco Geminiani organizou, em 1731, uma série de vinte concertos apresentados na Hickford’s Room todas as quintas-feiras (FLOOD, 1910). Essa série, que teve duração de cinco meses (de dezembro de 1731 a abril de 1732), foi financiada por assinaturas, e marcou o ponto culminante de sua carreira enquanto violinista virtuose: os concertos foram todos muito bem sucedidos, e os lucros foram, segundo Careri, investidos nas publicações de suas obras (CARERI, 1993): os concertos op. 405 3, de abril de 1732, e os concertos op. 2, de junho do mesmo ano, ambos publicados por Walsh (vale lembrar que, apesar da publicação ter ocorrido de maneira inversa – os concertos posteriores publicados anteriormente, o fato não indica ordem de composição, e sim estratégia de venda ou organização empresarial por parte do editor). Seus concertos op. 2 e op. 3, compostos e executados anos antes de suas publicações, foram, após a série no Hickford's Room e a subsequente edição, os responsáveis pela fama do compositor no território britânico até o fim de sua vida, sendo obras paradigmáticas da linguagem barroca italiana, muito em alta na Inglaterra setecentista, intensamente copiadas, vendidas e executadas por todo o continente europeu, atestando sua grande popularidade. Tal sucesso não se repetirá com nenhuma outra composição musical de sua autoria. Na segunda metade de 1732, Geminiani deu início a uma série de transcrições e revisões de suas obras anteriores, e viajou a Paris, cidade em que era referência na tecnologia editorial para obras musicais em sua época. No entanto, sua partida fez com que alguns jornais da época anunciassem sua morte (CARERI, 1993). Ainda que essa primeira visita tenha durado um ano, retornando, portanto, a Londres em 1733, os

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anos subsequentes foram marcados por inúmeras viagens entre Londres, Paris e Dublin, cidades em que Geminiani era considerado uma autoridade musical. Assim sendo, sua primeira visita a Dublin, a convite do barão Charles Moore de Tullamore (1712-1764), ocorreu em dezembro de 1733, e, no mesmo mês, apresentou-se em um concerto público. Nessa cidade, Geminiani abriu uma sala de concertos, utilizada, também, para venda de quadros – Geminiani’s Great Room (FLOOD, 1910). Após a apresentação de dois concertos em Dublin em setembro de 1734, o músico retornou a Londres. Em sequência,

Em 1737, sob pedido urgente de seu pupilo Douborg, ele bancou uma segunda visita à Irlanda, e novamente capturou o público amante de música de Dublin. Tão fenomenal foi seu sucesso que ele foi induzido a reabrir sua Academia em Spring Gardens, na Dame Street, novamente conhecida como 406 ‘Geminiani’s Great Room ’, onde deu concertos, assim como aulas. Ele continuou em Dublin por mais três anos e retornou a Londres em novembro de 1740. (FLOOD, 1910, p. 109)

Neste ínterim, embora a documentação histórica ateste que Geminiani tenha divulgado sua nova coleção de peças – doze sonatas para violino e baixo continuo op. 4 – em 1737, a publicação ocorreu, apenas, em 1739, em Londres, embora o autor estivesse ainda na Irlanda. De fato, Dublin era, como a capital inglesa, um grande centro musical nos setecentos. Segundo Careri, a música italiana era a moda, assim como o culto a Corelli. Portanto, era natural que Geminiani faria sucesso também nessa capital (CARERI, 1993). Logo, por intermédio de seu aluno, Douborg, radicado em Dublin desde 1728, o renomado compositor pôde frequentar os círculos musicais irlandeses, adquirindo enorme reputação. O ano de 1740, como constatado em Flood, é a data em que Geminiani parte de Dublin em direção a Paris, para fins de publicações de suas obras: após ganhar um privilégio para realizar impressões de suas composições, publicou, nessa cidade, seus concertos opp. 2 e 3 e sua coleção Pièces de Clavecin . Em 1741, retorna a Londres para diversos concertos A biografia de Francesco Germiniani e, dois anos mais tarde, publica, dedicado ao Frederico Príncipe de Gales, transcrições em forma de concertos de suas sonatas, sendo agora seu novo op. 4. Nesse meio tempo, foram publicadas na Inglaterra a versão britânica de suas Pièces de Clavecin , bem como reedições de trabalhos anteriores, além de trabalhar em uma coleção de sonatas para violoncelo (op. 5) e mais uma coletânea de concertos (op. 7), a serem publicados anos depois, em 1748. Sobre a recepção dessas novas composições, Careri atesta:

Nem os concertos, nem as sonatas para violoncelo usufruíram muito da apreciação do público, e as altas expectativas de Geminiani foram, certamente, desapontadas. Suas falhas, talvez, convenceram-no de que seu estilo não estava mais em moda. Consequentemente, de 1748 em diante, Geminiani trabalhou principalmente em seus tratados; se excluirmos as revisões de trabalhos anteriores e The Enchanted Forest , pode-se dizer que sua atividade como compositor poderia ter chegado ao fim. (CARERI, 1993, p. 38) 407

Com efeito, foram publicados, nos anos seguintes, não menos que seis tratados de música: Rules for playing in a True Taste (1748), A Treatise of good Taste in the Art of Musick (1749), The Art of Playing on the Violin (1751), Guida Armonica (1752), The Art of Accompaniament (1754) e The Art of Playing the Guitar of Cittra (1760). Durante todos esses anos, Geminiani viajou extensivamente a Paris, seja para a realização de concertos, seja para acompanhar as edições de suas obras. Após a publicação de seu último tratado, custeado pelo próprio autor e impresso em Edimburgo, Geminiani faleceu em Dublin no ano de 1762, o mesmo ano em que publicou uma segunda coleção de peças para cravo (Pièces de Clavecin), aos 74 anos de idade, tendo sido sepultado no adro do Parlamento Irlandês (FLOOD, 1910).

Francesco Geminiani e o gosto musical inglês Como foi possível notar na seção anterior, a obra musical, tratadística e performática de Francesco Geminiani foi

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constante ao longo de seu tempo enquanto radicado na capital britânica, de modo que a recepção de sua obra era sempre afirmativa. Uma consulta rápida na Biografia escrita por Careri revela que sua primeira publicação, as sonatas op. 1, de 1716, teve sucesso absoluto, considerando o número de edições e reimpressões. Em relação aos concertos op. 2 e 3,

A fama de Geminiani na Inglaterra atingiu seu auge. Suas habilidades como violinista, compositor e professor estavam além de [qualquer] disputa. A crítica contemporânea, com apenas algumas exceções, é geralmente bastante positiva – não apenas em relação às qualidades da música em si, mas também por Geminiani ser creditado por guiar o gosto musical inglês na direção certa, por encorajar o estudo e a performance da música de Corelli, bem como por contribuir decisivamente para a formação de uma escola inglesa de violinistas e compositores. (CARERI, 1993, p. 46) 408 Ou seja, a contribuição de Geminiani para o gosto musical inglês é evidente, não só por esse país ter a música de Corelli como referência, mas também pelo fato de que o compositor formou dezenas de músicos - instrumentistas e compositores. Comentários de sua época revelam, também, a opinião de algumas pessoas em relação ao seu conhecimento musical, como por exemplo em Serre: “é certo que o Sr. Geminiani ganhou acertadamente sua reputação para com os apreciadores da música por ser um dos artistas que, depois de Corelli, teve o maior conhecimento dos diferentes caminhos da harmonia, tendo observado suas várias regras muito corretamente.” (SERRE, 1763, apud CARERI, 1993, p. 47). Naturalmente, a relação de Geminiani com o gosto da época é torna-se ainda mais forte quando o olhar se volta para seus tratados, Rules for playing in a True Taste (1748), A Treatise of good Taste in the Art of Musick (1749), The Art of Playing on the Violin (1751), Guida Armonica (1752), The Art of Accompaniament (1754) e The Art of Playing the Guitar of Cittra (1760). Suas duas primeiras publicações textuais revelam, já no título, o mote principal de sua produção. Seu principal objetivo nesses trabalhos é o de mostrar as melhores soluções de A biografia de Francesco Germiniani ornamentação, seja em notas pontuais, seja ex tempore , utilizando-se de canções populares inglesas, irlandesas e escocesas. Analisar tais tratados não é o objetivo desta pesquisa, mas vale notar o fato de Geminiani ter se utilizado exclusivamente do repertório de raiz britânica para introduzir a ornamentação em estilos francês e italiano, tendo o cuidado de listar os ornamentos a serem trabalhados, mostrando várias maneiras de executá-los e os respectivos efeitos que estes causam no ouvinte. Portanto, é interessante para este trabalho o conhecimento de sua concepção de “bom gosto”; para tanto, segue a tradução de parte do tratado Treatise of Good Taste in the Art of Musick:

INTRODUÇÃO PARA O BOM GOSTO EM MÚSICA O que é comumente denominado bom gosto no cantar e no tocar foi considerado, por alguns anos no passado, como destruidor da verdadeira melodia e a intenção de seus 409 compositores. É suposto por muitos que o verdadeiro bom gosto não pode ser adquirido por nenhuma regra da arte, sendo ele um particular dom da natureza, concedido apenas àqueles que têm naturalmente um bom ouvido. E como a maioria se exibe por ter essa perfeição, por consequência, aquele que canta ou toca pensa apenas em fazer continuamente suas passagens e ornamentos favoritos, acreditando que por isso será visto como um bom intérprete, não percebendo que tocar com bom gosto não consiste em frequentes ornamentações, mas em expressar com força e elegância a intenção do compositor. Essa expressão é o que todos devem se esmerar em adquirir, e pode ser facilmente obtida por qualquer pessoa que não seja afeiçoada a sua própria opinião e não resista obstinadamente à força da verdadeira evidência. No entanto, não nego a poderosa capacidade de um bom ouvido; percebi, em diversas situações, quão grande essa força é; apenas aponto que certas regras da arte são necessárias para um engenho mediano, e podem melhorar e aperfeiçoá-lo. No final, portanto, os que são amantes da música podem, com mais facilidade e precisão, alcançarem a perfeição. Recomendo o estudo e a prática dos seguintes ornamentos de expressão, que são 14 em número; denominados,

FRONTEIRAS DA MÚSICA

1º, o trinado simples 4 ; 2º, o trinado

composto 5 ; 3º , a apojatura superior; 4º, a

apojatura inferior ; 5º, segurar a nota ; 6º,

staccato ; 7º, crescendo ; 8º, diminuendo ; 9º piano ; 10º, forte ; 11º, antecipação ; 12º, separação ; 13º, um mordente ; 14º, o vibrato . Por meio da explicação a seguir, podemos compreender a natureza de cada elemento em particular.

(Primeiro) do Trinado Simples O trinado simples é próprio para movimentos rápidos e ele 410 pode ser feito sobre qualquer nota, observando-se que deve se prosseguir, imediatamente após ele, à nota seguinte.

(Segundo) do Trinado Composto O trinado composto, sendo feito de forma rápida e longa, serve para expressar alegria, porém, se o fizeres curto e mantiveres o comprimento da nota contínua e suave, podes, então, expressar algumas das mais ternas paixões.

(Terceiro) da Apojatura Superior A apojatura superior deve expressar amor, afeição, prazer, entre outros. Deve ser feita de forma bem longa, atribuindo- lhe mais da metade do comprimento ou tempo da nota a qual ela pertence, observando para que se aumente o som gradativamente e, aproximando-se do fim, para que se force um pouco o arco. Se for feito de maneira curta, ela perderá muito das qualidades citadas, mas sempre terá um efeito prazeroso e pode ser adicionada a qualquer nota que você desejar.

A biografia de Francesco Germiniani

(Quarta) da Apojatura Inferior A apojatura inferior tem as mesmas qualidades que a precedente, exceto pelo fato de ser muito mais restrita, uma vez que só pode ser feita quando a melodia ascende o intervalo de uma segunda ou terça, observando para se fazer um mordente na nota seguinte.

(Quinto) de Segurar a Nota É necessário usar isto frequentemente, pois se tivéssemos que fazer mordentes e trinados continuamente sem, às vezes, trazer prejuízo à sonoridade da nota pura, a melodia seria diversificada demais.

(Sexto) do Staccato Expressa descanso, tomar fôlego ou trocar uma palavra e, por essa razão, cantores devem tomar cuidado para respirar em um lugar onde o sentido não seja interrompido. 411

(7º e 8º) do Crescendo e do Diminuendo Esses dois elementos podem ser usados um após o outro, produzindo uma grande beleza e variedade na melodia e, quando empregados alternadamente, são próprios para qualquer expressão ou medida.

(9º e 10º) do Piano e Forte São ambos extremamente necessários para expressar a intenção da melodia e, como toda boa música deve ser composta em imitação de um discurso, esses dois ornamentos são designados para produzir o mesmo efeito que um orador produz ao levantar e abaixar seu tom de voz.

(Décimo Primeiro) da Antecipação A antecipação foi inventada com vistas a variar a melodia, sem alterar a sua intenção. Quando é feita com mordente ou um trinado e aumentando o volume, terá um efeito maior, especialmente se observares que deves fazer uso dela

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quando a melodia ascende ou descende em intervalos de segunda.

(Décimo Segundo) da Separação A separação é utilizada apenas para dar variedade à melodia e é aplicada mais apropriadamente quando a nota sobe uma segunda ou terça; como também quando descende uma segunda e, então, não será errado adicionar um batimento, crescer a nota e fazer a apojatura para a nota seguinte. Assim, ternura é expressa.

(Décima Terceira) do Mordente É próprio para expressar diversas paixões, por exemplo, se for executado com força e de forma contínua, expressa fúria, raiva, determinação etc. Se tocado menos forte e mais curto, expressa júbilo, satisfação etc. Entretanto, se o tocares bem 412 suavemente enquanto cresces a nota, o mordente pode, então, denotar horror, medo, pesar, lamentação etc. Se tocado de forma curta e com um gentil crescendo, pode expressar afeição e deleite.

(Décimo Quarto) do Vibrato Não pode ser descrito por meio de notas, conforme os exemplos anteriores. Para executá-lo, deves pressionar teu dedo fortemente sobre a corda do instrumento e mover o punho para dentro e para fora, lenta e igualmente. Quando uma nota longa com vibrato é acompanhada de um crescendo gradual, do arco se movendo para perto do cavalete e de uma terminação muito forte, o vibrato pode expressar majestade e dignidade. Entretanto, ao fazê-lo de forma mais curta [com menor amplitude], mais piano e mais suave pode denotar aflição, medo etc. Quando é realizado em notas curtas, [o vibrato] deixará seu som mais agradável e, por esta razão, deverá ser usado o mais frequentemente possível. Pessoas com entendimento limitado e de meias ideias talvez perguntarão se é possível dar sentido e expressão à madeira e ao arame; ou conferir a eles o poder de elevar e acalmar os sentimentos dos seres racionais. No entanto, toda vez que A biografia de Francesco Germiniani

ouço tal colocação, seja por desinformação ou com o intuito de ridicularizar, não tenho nenhuma dificuldade em responder de forma afirmativa e sem investigar a causa muito profundamente, por pensar que é suficiente apelar para o efeito. Mesmo em um discurso comum, a diferença do tom [de voz] proporciona à mesma palavra sentidos diferentes. Assim, no que diz respeito à performance musical, a experiência mostra que a imaginação do ouvinte está tanto à disposição do mestre que ele, com a ajuda de variações, andamentos, intervalos e melodias com harmonia, pode quase estampar a expressão que lhe agrada na mente [dos ouvintes]. Essas emoções extraordinárias são, de fato, mais facilmente excitadas quando acompanhadas de palavras. Eu aconselharia, ainda, tanto para o compositor como para o intérprete que ambiciona inspirar sua plateia, estar primeiramente inspirados eles mesmos. Isto certamente ocorrerá se for escolhida uma obra engenhosa, se [o intérprete] estiver totalmente familiarizado com todas suas belezas, e se [ele] embeber sua própria performance do 413 mesmo espírito exaltado.

Percebe-se, após a leitura dessas instruções para “tocar com bom gosto” (GEMINIANI, 1749), em especial a introdução de seu capítulo e o décimo quarto exemplo, o cuidado que Geminiani possuía em relação à performance musical, visto que esta deve mover o ouvinte e provocar-lhe as mais ternas paixões. Como Geminiani utiliza a bagagem cultural britânica para a elaboração de todos seus exemplos musicais nos seus tratados de ornamentação, nota-se claramente a inserção da linguagem italiana na música de sua nova pátria, bem como a absorção da estética de sua terra natal por parte dos ingleses, da qual esse compositor, discípulo de Corelli, foi o principal propagador.

Considerações Finais Estudar – e escrever – a biografia de Francesco Geminiani não se trata apenas de narrar a história de um homem, mas sim de uma parte importante da música ocidental. A vida do italiano, discípulo do maior compositor de seu tempo,

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Arcangelo Corelli, permite traçar diversas facetas dos hábitos sociais daquela época, do cenário musical europeu setecentista, bem como, tratando-se da era pré-iluminista, de mudanças na mentalidade rumo ao romantismo. Embora tenha sido fruto da tradição pai-e-filho na educação musical, Geminiani foi o único, de onze filhos, a seguir a profissão do pai. Uma análise cuidadosa da história de outras famílias musicais, como as de Vivaldi, Bach e Benda, revela que existiram, no comportamento familiar dos setecentos, uma quantidade maior de contingentes seguindo a profissão paterna. Com isso, conclui-se que não se trata de talento, mas sim de trabalho. Após estudar na capital da música, Roma, Geminiani retornou à sua cidade natal preparado para dar seguimento ao legado de seu mentor. No entanto, não permaneceu muito tempo, e logo sentiu a necessidade de algo maior. Abandonar a estabilidade financeira e arriscar caminhos incertos na Inglaterra denota muito mais que mera curiosidade 414 ou rebeldia jovial. Francesco, durante toda sua vida, recusou cargos em cortes e patrocínios de longa data, dando preferência a produzir seu sustento por meio de sua própria criação musical, de suas habilidades ao violino, ainda que suas apresentações tenham sido poucas, e de sua didática bem- sucedida, que formou alunos prodigiosos como Charles Avison, referência na Estética Musical. Embora a venda de quadros tenha sido uma alternativa em tempos de dificuldades financeiras, o compositor jamais se inclinou à submissão de algum patrono, revelando uma mudança substancial no comportamento social, anunciando o fim de uma era. Na Inglaterra, Geminiani deu prosseguimento à tradição musical italiana. Não só este era o gosto em moda no país, como também o prodigioso compositor soube usufruir de sua bagagem cultural. Ao compor sonatas – da chiesa e da camara , concertos grossos, música incidental e tantos outros gêneros instrumentais, Francesco Geminiani firmou-se como um dos maiores compositores de seu tempo: as inúmeras reedições, cópias e transcrições realizadas por ele e por outros músicos revelam o grande sucesso que sua arte obteve em solo estrangeiro. A era iluminista, questionadora por natureza, proporcionou mais liberdade aos que nela viveram. No entanto, tal liberdade teve um preço para Geminiani: o compositor teve A biografia de Francesco Germiniani obras roubadas, falsificadas e grandes prejuízos editoriais. No entanto, além de nunca ter se abalado, foi audaz – e venturado - o suficiente para custear algumas de suas próprias publicações, bem como a inaugurar uma sala de concertos que levou seu próprio nome: Geminiani’s Great Room . Francesco Geminiani, pouco lembrado nas salas de aula e de concerto da atualidade, é paradigma da tradição italiana de violino e de composição, que transformou o pensamento musical europeu, sobretudo na Inglaterra, país em que colaborou para a construção de um gosto musical. Esse país, que testemunhou o progresso de um músico outrora desconhecido a um marco na história de seu instrumento, tendo seu legado sido copiosamente reeditado e estudado muitos anos após a sua morte, foi cenário de incomparável florescimento cultural, tendo absorvido, em especial na música, os estilos em voga no século XVIII, sobretudo o italiano. Recordado atualmente como compositor de sonatas e de concertos grossos (em especial os opp. 1 a 4) a exemplo de 415 Corelli, e como tratadista, principalmente como autor do importante tratado The Art of Playing on the Violin , que demonstra sua excepcional habilidade ao instrumento, o compositor é síntese da longa tradição italiana, que guiou a formação do gosto musical inglês.

Referências Bibliográficas BURNEY, C. A General History of Music [London, 1776-1779]. New York: Harcourt, Brace and Company, 1935. CARERI, E. Francesco Geminiani (1687-1762) . New York: Oxford University Press, 1993. CHARTIEU, R. O Mundo como Representação . Estudos Avançados 11 (5), 1991, p. 173 – 191. DOLMETSCH, A. The Interpretation of the Music of the 17th and 18th Centuries [London, 1915]. London e New York: Dover Publications, 2005. FLOOD, W. G. Geminiani in England and in Ireland. Samelbände der Internationalen Musikgeselchaft, 12. (out. – dez. 1910). pp. 108-112. GEMINIANI, F. Rules for Playing in a True Taste . London, 1748.

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____. Treatise of Good Taste in the Art of Musick . London, 1749. ____. The Art of Playing on the Violin . London, 1751. HAWKINS, J. A General History of the Science and Practice of Music [London, 1776]. London: Dover Publications, 1963. LEVI, G. Usos da Biografia. In: AMADO, J., FERREIRA, M. Usos & Abusos da História Oral. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996.

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A Metáfora da Coisa: inflexões heideggerianas na canção de Gilberto Gil

PAULO JOSÉ DE SIQUEIRA TINÉ

pequena crítica redigida por Dirceu Soares para o disco A “Um banda um” de Gilberto Gil em 13 de agosto de 1982 publicada na edição do jornal A Folha de São Paulo ressaltava o que chamava de “múltiplas faces” do compositor. Chamava atenção em especial para duas canções do autor: “Metáfora” e “Esotérico”, tendo a letra da primeira publicada em um box ao lado da foto de Gil. A crítica foi feita a partir de uma fita, ou seja, tratava-se de uma escuta realizada antes que o disco chegasse às lojas. Trata-se do quinto disco da carreira do artista gravado para a WEA, multinacional norte-americana que estava instalada no Brasil desde 1976.

A WEA, (...), se instalou oficialmente em julho de 1976, limitou-se a reproduzir suas matrizes estrangeiras até o final do ano, conseguindo apesar disso conquistar 2,9% do mercado. E, em 1977, embora tivesse lançado apenas 5 LPs nacionais, previa-se sua participação para 5% das vendas anuais do setor, ao mesmo tempo em que o presidente da companhia dizia esperar para o ano seguinte a conquista de 8% do mercado, lançando apenas mais 12 LPs de seu reduzido grupo de artistas brasileiros (MORELLI, 2009, p. 67).

Um desses artistas era Gilberto Gil. Apesar da ascendência africana, os ritmos e a temática afro-brasileira não integram as referências dos primeiros álbuns do compositor, estando mais ligado às questões do tropicalismo e da música popular nordestina de um modo geral. Segundo o documentário de BIGAULT (2005), realizado na década de 1980, as questões ligadas à diápora africana, engajamento e ativismo político, só passam a fazer parte do universo do autor

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a partir do álbum Refavela (1977), após viagem ao continente africano. O texto “A Coisa” de Martin Heiddeger, por sua vez, fui publicado pela primeira vez em 1954, em uma coletânea de ensaios. Sobre esse ensaio comenta o filósofo luso-brasileiro Eudoro de Souza em sua obra Mitologia na introdução de sua tradução para o texto do filósofo alemão:

A atmosfera de “A Coisa” é de um interrogar insistente sobre o ser da “proximidade”, (...). Heidegger dá a entender que nada temos a recear de futuras explosões, posto que a mais pavorosa já se deu muito antes de qualquer efetiva explosão de bombas atômicas ou nucleares; as coisas, há muito que residem no “sem distância”, igualmente distantes ou próximas. (...) Heidegger quer saber da proximidade da “coisa enquanto coisa”, e assim, todo o estudo que dedica seu seríssimo jogo com a linguagem, é de uma consequência 418 inabalável. (...) Aquela interpretação da “cantaridade do cântaro”, da coisidade da coisa-cântaro, como “unificidade” do Quatro, o Quadrado, a Quadratura e a Circulatura do Jogo de Espelhos, a ronda do Anel em que se “transpropria” o ser de cada um (céu e terra, mortais e imortais) para ou pelo ser do conjunto dos Quatro, a hábil insinuação de que cada coisa não pode ser só ela, mas a emergência singularizada de um objeto no trans-objetivo (...) e, portanto, que o “coisar” da coisa é, de certo modo, o “mundar” de um mundo, traz-me a lembrança o haver ensinado, por exemplo, que malentendido é perguntar o que significa uma qualquer das obras de arte, que verdadeiramente o sejam. (SOUZA, 1984, p. 237-239).

A “cantaridade do cántaro”, por exemplo, é apropriada por Gil no sentido do canto mesmo, ou seja, da musa que inspira o deus a derramar o bálsamo, ou seja, o canto divinamente inspirado que canta a cura afugentando o “fogo do inferno”, presente na canção Palco, lançada no disco “Luar”, um anterior ao abordado. O conteúdo teológico não é explicito no autor alemão mas SOUZA (1984), comentando o filósofo e a relação de seu pensar com o do autor, assinala para essa possibilidade. Contudo, não parece que Gil tenha se inspirado exclusivamente no texto aqui seleccionado. A questão da poesía A metáfora da coisa

é colocada noutro ensaio, da mesma coleção, intitulado “…poéticamente o homem habita…” a partir da produção de Friedrich Höderlin. Nele Heiddeger diz “A arte do poeta consiste em desconsiderar o real. Em lugar de agir, os poetas sonham. O que eles fazem é apenas fantasiar” (HEIDEGGER, 2001, 166). A canção Metáfora, logo no seu início, insinua: “Uma lata existe para conter algo, mas quando o poeta diz: Lata! Pode estar querendo dizer o incontível” (GIL, 1982). Ao separar as palabras “meta” e “fora” que, juntas, formam metáfora, o compositor brasileiro define a meta do poeta como sendo aquela que pode ser inatingível. Ao apontar para o tudo e o nada que cabe na lata do poeta, a canção parece dialogar com outra, “Copo Vazio”, composta para Chico Buarque, que a gravou no antológico álbum Sinal Fechado, lançado em 1974. Aquí também se encontram vestigios da leitura de Heidegger: “o vazio, o nada da jarra é que faz a jarra ser um receptáculo, que recebe” (HEIDEGGER, 2001, p.147) 419 Heidegger, em seu texto, descreve o oleiro como aquele que, ao moldar o vazio, produz a jarra. Sabidamente, o oleiro é um artesão e não artista. Nesse sentido, quando se pensa na relação artista e artesão na produção de Gilberto Gil, invertendo a abordagem até aqui insinuada, no sentido de observar ecos dos escritos de Heidegger em Gilberto Gil, mas procurando observar o modo de produção do compositor à luz de certos entendimentos do filósofo alemão, observa-se uma dicotomia ou fricção. A pesquisadora Thais Curi Beaini, ao tentar descortinar uma estética heideggeriana, assim coloca:

A Estética é a época de esvaziamento da Arte, de inautenticidade, posto que nela não há mais uma colaboração do Homem para o des-velamento do Ser. (...)..., Heidegger cita os cinco fenômentos básicos que caracterizam a modernidade: a Ciência, a Técnica, a Arte enquanto estética, a Cultura e o desaparecimento dos deuses. (...)... a Ciência tecnicizada é uma espécie de modelo para a análise da obra de arte, da Arte e da desdivinização elaborada pelo Cristianismo. Todos levam a um ponto comum: a objetivação do ente. (BEAINI, 1986, p. 23).

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Por um lado a canção de Gil é um artesanato: letra e música realizadas com voz e violão. Assim deve ter sido realizada a poiésis da canção: de uma forma íntima e solitária. Por outro, do ponto de vista estésico e da recepção da obra, ele passou pelo processo que o início desse texto começa descrevendo: um processo industrial de produção que passa, não só pelos arranjos e pela padronização da sonoridade através das mixagens e equalizações - em parte caracterizada pela época na qual foi realizada - como pela otimização de custos e reprodução em larga escala com vistas a obter o lucro, tendo como base um processo já ocorrido de legitimização e de construção de um paradigma chamado MPB. 1 De qualquer forma, o compositor não parece permanecer acomodado nesse processo, mas se inseri de maneira dinâmica realizando, como colocado, nesse álbum, referências afro-brasileiras, do pop internacional e alusões, além das heideggerianas, sobre o sagrado a partir de óticas cristãs (“Drão”), místicas (“Esotérico” e “Andar com Fé”) e afro-baianas (“Afoxé”). Por um lado, o 420 processo tecnológico reafirma a questão da “proximidade” abordada logo no início de “A Coisa”:

O homem está superando as longitudes mais afastadas no menor espaço de tempo. Está deixando para trás de si as maiores distâncias e pondo tudo diante de si na menor distância. E, no entanto, a supressão apressada de todo distanciamento não lhe traz proximidade. Proximidade não é pouca distância. (HEIDEGGER, 2002, p. 143).

Se a pouca distância é trazida pela ciência ambos, Heidegger e Gil apontam para o vazio e, por consequência para o nada, já que ele “é justamente rejeitado pela ciência e abandonado como elemento nadificante” (HEIDEGGER, 1996,

1 A padronização sonora do álbum se dá, ao meu ver, pela produção de Liminha (Arnolpho Lima Filho), que após tocar com os Mutantes na década de 1970, tornou se homem forte da WEA na década seguinte, produzindo diversos discos do então emergente rock nacional.

A metáfora da coisa

53). Entretanto, ele está no centro da discussão do filósofo sobre a metafísica (1996) e em sua metáfora na canção de Gil. Para Benedito Nunes, comentando o texto de Heidegger, “o nada não é um conceito oposto ao ente; pertence, de modo originário, à mesma essência do ser” (NUNES, 2004, 40). Nesse sentido, “na lata do poeta tudo nada cabe”.

Somente na clara noite do nada da angústia surge a originária abertura do ente enquanto tal: o fato de que o ente é ente – e não nada. (...) Ser-aí quer dizer: estar suspenso dentro do nada. (...) O nada é a possibilidade da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. (HEIDEGGER, 1996, p. 58, 59).

Tais frases, retiradas do texto e, em parte, do contexto do filósofo, se aproximam de algo poético, assunto importante na sua produção, tal como no citado texto “...poeticamente o 421 homem habita...”. Segundo Nunes, comentanto o filósofo, “a primeira relação do pensamento à luz do problema do sentido do ser ali proposto se estabelecerá com a poesia e com a arte, não com a ciência,...” (2004, 10). No posfácio ao “O que é isto a Metafísica” (1943) o filósofo diz: “ O pensador diz o ser. O poeta nomeia o sagrado” (1996, 72). Assim, procurarei verificar a relação, não mais no sentido do conteúdo da letra de Gilberto Gil com o filósofico, mas a relação intrínseca da letra (poesia) com a fraseologia musical, afim ressaltar alguns apontamentos. O primeiro terceto estrutura o que poderíamos chamar de seção A. É composto por antecedente e consequente de 4 compassos cada, mas com a extensão de um compasso entre elas, perfazendo, assim o total de 9 compassos.

Letra Fraseologia Rima & Métrica Uma lata existe frase x Antecedente a (11) para conter algo Mas quando o frase y b (8)

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poeta diz: “lata” Pode estar frase z Consequente c (12) querendo dizer o incontível Quadro 1: 1º terceto (A) e fraseologia

O segundo terceto difere apenas no tocante ao conteúdo literário, sendo estruturalmente e musicalmente igual ao primeiro:

Uma meta existe frase x Antecedente a’(11) para ser um alvo Mas quando o frase y b’(8) poeta diz: “meta” Pode estar frase z Consequente c’(12) querendo dizer o inatingível Quadro 2: 2º terceto (A) e fraseologia

422 A seção B é composta por cinco versos que não rimam entre si, mas dialogam com as palavras de outras seções da letra. Ela se assenta sobre uma estrutura ternária de 12 compassos divididos em dois antecedentes e um consequente o qual o qual é composto de apenas uma frase.

Por isso não se frase x’ Antecedente 1 a (12) meta a exigir do poeta Que determine o frase x” b (12) conteúdo em sua lata Na lata do poeta frase x”” Antecedente 2 c (12) tudo nada cabe Pois ao poeta frase z d (9) cabe fazer Com que na lata frase z’ Consequente e (13) venha a caber o incabível Quadro 3: Quintilha ( B) e fraseologia.

Já a volta variada de A’ musicalmente se assenta novamente em uma estrutura binária, também irregular, aqui, com 10 compassos. Outro dado curioso reside no fato de, A metáfora da coisa poeticamente ter quatro e não três versos como nas repetições de anteriores de A.

Deixe a lata do Frase x5 Antecedente(1’”) a (11) poeta, não discuta Deixe a sua meta Frase x6 a’ (11) fora da disputa Meta dentro e Frase w Consequente (4) b (11) fora, lata absoluta Deixe-a Frase k (cad.) c (8) simplesmente metáfora Quadro 4: Quadra ( A’ ) e fraseologia.

O que se constata, nessa breve abordagem da relação 423 da organização poética da letra com a da fraseologia musical é que nela não há a habitual correspondência, verificadas em outros estudos entre as estruturas. Via de regra, tercetos correspondem a estruturas ternárias e quadras a estruturas binárias do tipo período ou sentença, observadas em trabalhos anteriores (TINÉ, 2013). Nesse sentido os versos “ao poeta cabe fazer - Com que na lata venha a caber, o incabível” se adequam ao que cabe ao cancioneiro musicar os versos de maneira inusual. Outro ponto a se especular reside no fato de o terceto de A apontar para a estrutura ternária de B e a quintilha de B ser correspondida, posteriormente, pela estrutura binária irregular de A’ , formada por 10 compassos. Voltando a Heidegger, para ele “a poesia ou bem é negada como coisa do passado (...), ou então é considerada como uma parte da literatura.” (2001: 165). A partir da problematização dessas duas perspectivas possivelmente vistas como inautênticas, o filósofo aponta para a poesia como habitar, ou como deixar-habitar o mundo. Esse deixar-habitar se dá através da linguagem verbal e, sendo o homem o único animal dotado dessa capacidade, se ilude ao se pensar criador e soberado dela quando, na verdade, ela mantem uma soberania sobre o homem. Segundo o filósofo o homem cai em uma

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“estranha mania de produção” quando se torna soberano da linguagem e ela se torna apenas “expressão” para, então, na contemporaneidade ser um simples meio de pressão.

A poesia constrói a essência do habitar. Ditar poeticamente e habitar não apenas não se excluem. É mais do que isso. Ditar poeticamente e habitar se pertencem mutuamente no modo em que um exige o outro. “Poeticamente o homem habita”. E nós habitamos poeticamente? Parece que habitamos sem a menor poesia. Se é assim será mentirosa e não verdadeira a palavra do poeta? (...)... um habitar só pode ser sem poesia porque, em sua essência, o habitar é poético. (...) É possível que nosso habitar sem poesia, que nossa incapacidade de tomar uma medida provenha da estranha desmedida que abusa das contagens e medições (HEIDEGGER: 2001, p.179).

Corroborando com essa ideia Ricardo Rizek (1987), a partir de uma leitura heideggeriana particular, divide a 424 linguagem em dois níveis: o da nomeação e da nominação. A primeira corresponderia ao que se poderia chamar de nível dos poetas, que partejam a existência a partir da nomeação, “devolvendo a linguagem ao seio do ser, como canais da primordialidade da linguagem”, como filhos da linguagem. Ao passo que ao nível da nominação, ao tentar escravizar a linguagem, o homem se torna escravo dela e começa a visualizá-la como um “conjunto de sinais auto-referentes”: como um sistema!

Ela [a linguagem] tinha dois níveis, agora ela nomina. Sabe qual é a diferença entre nomear e nominar? É que nominar é a substantivação, é institucionalização, (...). Nominar é aquilo que a gente faz todo momento. Sabe quando palavras surgem por minuto? Só de sigla surgem umas dez, e todo mundo lidando com elas: é “software”, é “ONU”, “Bradesco”, “Itaú”, (...) e todo mundo usando violentamente, pois os meios de comunicação não são mais expressão como foi no romantismo, os meios de comunicação são [meios de] pressão. Eles têm linguagem de manifesto e comunicam ao homem o que se tornou público. (RIZEK: 1987, transcrição do autor). A metáfora da coisa

Mais uma vez chega-se na contradição do que o poeta Gilberto Gil nomeia e, ao mesmo tempo, nomina ao transformar sua obra em produto que, enquanto tal, passa, pelo menos na sua forma de divulgação e, como colocado anteriormente de produção, pela referida “linguagem de manifesto”. Apesar da condução rítmica que remete às características da música pop, as harmonias de Metáfora têm, nas seções A e A’ características, pode se falar assim, “bossanovisticas”: acordes com extensões (as chamadas “dissonâncias” da bossa nova) e processos cadenciais de tipo jazzístico. Como contraste, a seção B é formada por acordes dominantes que sobem em intervalos de tons inteiros do -III ao VI grau para finalizá-la com características semelhantes às da seção A. Em B o caráter pop se acentua o que pode remeter, musicalmente, às tensões entre nomear e nominar: “bossa-nova versus iê-iê-iê”. Nesses ponto ocorre exatamente aquela tensão que, de certa forma, o movimento tropicalista, se dispôs, se não a dissolvê-lo, pelo menos a conviver com os dois elementos em estado de fricção, para usar a terminologia de PIEDADE (2004). 425 Em A Caminho da Linguagem HEIDEGGER (2004) coloca que as definições correntes de linguagem não seriam suficientes para delimitar sua essência, tais como “fala é expressão”, “falar é uma atividade humana” ou ainda que “a palavra da linguagem tem origem divina” (2004, p.10). Para ele, “a linguagem fala” e “ao poetizar, o poema representa numa imagem o que imaginou”. Assim seria a “imaginação poética que se exprime na fala do poema” (2004, p.14). Isso traz, novamente, o papel da nomeação do poeta: “... as coisas nomeadas são evocadas em seu fazer-se coisa”. (2004, p.17) Volta-se, assim, a temática da coisa e ao papel existenciador da nomeação: “Somente quando se encontra a palavra para a coisa, a coisa é coisa. Somente então ela é”. Para o filósofo é “a palavra que confere ser a coisa” (2004, p.126). Não seria esse dizer ao qual Gilberto Gil menciona na frase “mas quando o poeta diz...” retirada dos versos?

O poeta, quando é poeta, não descreve o mero aparecer do céu e da terra. (...)... o poeta faz apelo àquilo que no desocultamento se deixa mostrar precisamente como o que se encobre e, na verdade, como se encobre. Em tudo que se

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mostra familiar, o poeta faz apelo ao estranho enquanto aquilo a que se destina o que é desconhecido de maneira a continuar sendo o que é – desconhecido. (...) Assim, e num sentido muito privilegiado, as imagens poéticas são imaginações. Imaginações e não meras fantasias ou ilusões. Imaginações entendidas não como inclusões do estranho na fisionomia do que é familiar, mas também como inclusões passíveis de serem visualizadas. (HEIDEGGER, 2001, p.177).

Nesse sentido, a citação assobiada ao final de Metáfora da canção Penny Lane de Lennon & McCartney 2 parece representativa. Segundo TURNER (2009), a letra descreve locais na cidade de Liverpool que, de fato, não existiam. Algo semelhante ao que ocorreu no Brasil no assim chamado Clube da Esquina que, inicialmente canção, deu nome ao clássico álbum da MPB e, por fim, passou a denominar um grupo de músicos mineiros. Fato é que nunca houve clube nenhum, mas a presença das tensões entre brasilidades e música pop 426 também pautou as escolhas daqueles músicos. Por fim, a canção de Gilberto Gil parace versar sobre ele mesmo, como uma metáfora do seu próprio ofício. Segundo Heidegger, “fazer experiências com a linguagem é algo bem distinto de se adquirir conhecimentos sobre a linguagem” (2004, p.122). Nesse sentido, fazer metáforas é algo distinto de metalinguagem, que seria a “...contínua tecnização de todas as línguas, com vistas a torná-las um mero instrumento de informação, capaz de funcionar (...) globalmente” (IDEM, Ibidem). Como colocou o parceiro tropícalista de Gil, Caetano Veloso na canção Lingua (1982):

Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção. Está provado que só é possível filosofar em alemão

Parece que, assim, procedeu o compositor baiano Gilberto Gil.

22 Lançada em 1967 no Reino Unido e Estados Unidos no álbum “Strawberry Fields Forever”. A metáfora da coisa

Referências bibliográficas BEAINI, T. C. Heidegger: arte como cultivo do inaparente . São Paulo: USP/Nova Stella Editorial, 1986. BIGAULT, A. Gilberto Gil: La Passion Sereine. [DVD] Jurubatuba-SP: Editores Associados LTDA, 2005. CHEDIAK, A. (Org.). Songbook Gilberto Gil . [PARTITURA]. Rio de Janeiro: Lumiar Ed., 1992. GIL, G. Um banda um [LP]. WEA discos, 1982. HEIDEGGER, M. A Caminho da Linguagem . Trad. M. de S. C. Schuback. Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança Paulista-SP: Ed. Universitária São Francisco, 2ª Edição, 2004. ____. Conferências e Escritos Filosóficos . Trad. E. Stein. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1986. ____. Ensaios e Conferências . Trad. Trad. M. de S. C. Schuback, G. Fogel e E. C. Leão. Petrópolis: Vozes, 2001. MORELLI, R. Indústria Fonográfica: um estudo antropológico. 427 Campinas: Ed. UNICAMP, 2009. NUNES, B. Heidegger & Ser e Tempo . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. PIEDADE, A. Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades. In: Opus: Revista Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Música. Ano 11, No 11. Campinas, ANPPOM, 2004. RIZEK, R. Aula de Estética – 04/08/1987 . Disponível em https://www.facebook.com/Ricardo-Rizek-325228884181558/ . Acesso em 27/10/2015. SOARES, D. No novo Lp de Gil, suas múltiplas faces . Folha de São Paulo , 13/08/1982. SOUZA, Eudoro. Mitologia. Lisboa: Guimarães Ed., 1984. TINÉ, P. J. S. A estruturação poética da fraseologia em alguns exemplos de música popular do Brasil. In : Anais do IX Simcam: Simpósio de Cognição e Artes Musicais . Belém-PA: Escola de Música da UFPA, Associação Brasileira de Cognição Musical, 2013. TURNER, S. The Beatles: A história por trás de todas as canções. Trad. Alyne Azuma. São Paulo: Cosac Naify, 2009. A (re)composição do material musical em Musik für Renaissance-Instrumente de Mauricio Kagel 1

RAFAEL RAMALHOSO ALVES

partir da análise de Musik für Renaissance-Instrumente , A escrita em 1966, buscarei definir a relação que a peça tece com o material musical do século XX, investigando o sentido que Musik apresenta em relação aos paradigmas estéticos das neovanguardas da segunda metade do século XX. A significativa heterogeneidade estilística e formal da obra de Mauricio Kagel nos atraiu para a tarefa de analisá-la e buscar compreender seu sentido estético e filosófico. Björn Heile (2006) salienta a dificuldade em se definir a estética composicional de Kagel

A qual Kagel nos estamos referindo? Kagel, o aspirante multiartista mergulhado na vanguarda influenciado pela Bauhaus de Buenos Aires dos anos 1950? Kagel, o membro da vanguarda europeia do pós-guerra, que esforçou-se para integrar o serialismo com a técnica aleatória e live- electronics ? Kagel, o experimentalista, cujas criações influenciadas pelo Fluxus questionavam os limites não somente da música e da composição musical mas de tudo que poderia ser considerado arte? Kagel, o dedicado a trabalhos de teatro experimental, filme e multimídia, para quem o termo ‘composição’ não se conecta exclusivamente ao domínio acústico? Kagel, o pós-modernista que recombina fragmentos descartados previamente, sejam estes de música ‘clássica’, ‘popular’ ou ‘folclórica’, em uma nova forma de arte composta de diversas camadas? Ou Kagel, o compositor de peças enganosamente simples de música de concerto que parecem fazer uma paródia das complicações conceituais e das refrações das perspectivas frequentemente associadas a seu trabalho? (HEILE, 2006, p.1)

1 Todas as traduções são do autor, excetuando-se aquelas indicadas nas Referências Bibliográficas. A (re)composição do material musical

Considerando esse aspecto, nos parece adequado tratar das peças em sua particularidade e não de sua obra como um todo orgânico. Apesar da grande quantidade de instrumentos antigos requerida, a referência de Musik não é a da sonoridade habitual ou convencional desses instrumentos, tampouco a das técnicas de execução historicamente informadas. A composição propõe ao intérprete explorar suas possibilidades sonoras e organológicas, muitas vezes desconfigurando a sonoridade e os modos tradicionais de relação entre intérprete e instrumento. Entre tais propostas estão a da preparação do instrumento, numa perspectiva análoga à desenvolvida por Cage, através principalmente da inserção de materiais e objetos estranhos à sua estrutura. Kagel propõe essa experimentação com instrumentos até então desprezados por grande parte da vanguarda musical. Kagel integrou o meio sócio-musical dos Cursos de Darmstadt, um dos principais pólos de produção musical de 429 vanguarda na segunda metade do século XX. O compositor participou assim dos debates musicais da composição de vanguarda, embora sua obra apresente elementos estranhos a uma concepção progressista e positiva de produção musical. Seus textos e comunicações expressam sua perspectiva crítica daquele meio musical, sem no entanto invalidá-lo por completo. Musik für Renaissance-Instrumente surge assim como objeto estético que dialoga nesse debate. A peça parece mover- se sobre a reflexão acerca do material musical e do debate sobre o caráter progressivo ou regressivo da obra. Para isso retomaremos brevemente a conceituação que fez Adorno, um dos principais teóricos da música do período e participante ativo dos Cursos de Darmstadt.

Conceito de material musical Em Teoria Estética, Adorno define o material da arte como:

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aquilo que está à disposição dos artistas: o que se apresenta a eles em palavras, cores e sons, em todas as suas combinações, em todos os diferentes procedimentos técnicos desenvolvidos; nesse sentido, as formas podem igualmente se converter em material. (ADORNO apud OLIVE, 2009, p.86)

O material não deve ser compreendido e definido de maneira fixa, imutável, mas caracteriza-se pela contínua transformação pela qual passam técnicas e meios de produção, articulando-se de maneira fundamental com o contexto sócio- histórico em que surgem. Segundo Adorno (2004, p.35), “este material é reduzido ou ampliado no curso da história e todos os seus rasgos característicos são resultados desse processo.” Nos anos 40 essa perspectiva buscava criticar a retomada de elementos do tonalismo pelo neoclassicismo, já que Adorno compreendia que essa intenção seria o de reestabelecer uma organicidade e identidade na experiência 430 musical que teria sido abalada pelos choques e dissonâncias das vanguardas do início do século. O paradigma historicista servia assim para invalidar uma compreensão do tonalismo como natureza. No entanto, nos anos 60 Adorno diagnostica o envelhecimento da música nova, a partir da constatação de sua tradicionalização, acomodação e posterior integração a um parâmetro que naturalizou o que haveria de mais moderno e progressivo por meio de determinados meios de composição ou técnicas, notadamente as que se compreendiam como “extendidas” cada vez mais se tradicionalizavam, adquirindo sentido oposto. Dessa maneira, um dado material musical, em diferentes períodos, apresentará sentidos diversos. As transformações que observamos na sociedade manifestam-se de maneira difusa e não-consciente na música e no tratamento do material. Assim, a reflexão sobre o material musical é também uma reflexão sobre seus paradigmas construtivos e os meios sócio-históricos que o determinam. Musik für Renaissance-Instrumente surge assim como crítica à apropriação fetichizada de sons, formas e A (re)composição do material musical instrumentos musicais, buscando assim renovar tanto a percepção da música composta para instrumentos antigos, quanto criticar o novo convencionalismo advindo, malgrado intenções, dos procedimentos serialistas e vanguardistas nos anos 50 e 60. Dessa maneira o uso dos instrumentos antigos não determina a priori o caráter progressista ou regressivo da obra, ou ainda, para colocar em termos menos absolutos, não determina sua consistência ou valor estético. É a formalização musical a partir dessas referências que constitui seu sentido e potencial crítico.

O renascimento do Renascimento Todos os instrumentos utilizados por Kagel estão representados em Syntagma Musicum (1619), de Michael Praetorius. O projeto de Musik teria sido iniciado em 1950 por Kagel quando estudava musicologia na Argentina. No entanto, a 431 peça só pode ser concretizada a partir do “renascimento do Renascimento”, ocorrido na Europa a partir da segunda metade do século XX, quando a prática da interpretação historicamente orientada se consolida como perspectiva interpretativa dos repertórios anteriores ao período romântico. Com o surgimento de grupos e intérpretes especializados em música antiga, como o Concentus Musicus, Frans Brüggen, Anner Bylsma e René Clemencic, o movimento adquire reconhecimento artístico e mais espaço na indústria cultural da música. Na segunda metade do século XX, em The Interpretation of Early Music (1963), Robert Donington delineará o conceito de ‘autenticidade’ na interpretação da música do passado, orientando e influenciando a perspectiva dos intérpretes dessa música. Segundo Donington:

O primeiro pressuposto pelo qual podemos servir à música antiga, conduzindo nossa interpretação moderna o mais próximo possível ao que conhecemos da interpretação original, pode ser chamado de doutrina da autenticidade histórica. (DONINGTON, 1974, p.37)

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Esse pressuposto se caracterizaria pela aproximação às práticas utilizadas no período de composição das obras, compreendendo-as como a forma ideal de interpretação, a que mais se aproximaria às intenções do autor. No entanto, teóricos como Richard Taruskin, Eleanor Selfridge-Field e Neal Zaslaw compreendem a importância da interpretação historicamente orientada como sintoma do pensamento moderno, e será essa a perspectiva que parece ter Kagel no uso destes instrumentos. Essa perspectiva interpretativa então se delinearia como um movimento musical de contraposição ao cânone interpretativo clássico-romântico, “resgatando a virtude da música que antes parecia sem importância e restaurando o brilho de repertórios mais conhecidos entorpecidos pelo verniz de técnicas de execução pós-wagnerianas” (SELFRIDGE-FIELD, 1994, p.XXV), ou como coloca Taruskin:

o que denominamos interpretação histórica é o som do 432 agora, não do então. Sua autenticidade advém não de uma verossimilitude histórica, mas de ser, para o bem ou para o mal, um verdadeiro espelho do gosto tardio do século 20. (TARUSKIN, 1995, p.166)

Em um artigo a respeito do legado do movimento da música antiga, Neal Zaslaw identifica aspectos interessantes bastante específicos quanto às técnicas de interpretação historicamente orientada e às técnicas desenvolvidas pelas vanguardas do século XX, tais como a precisão rítmica e um timbre mais brilhante, sem vibrato. Mais do que a referência aos modos de execução da música do passado, passa a primeiro plano agora, portanto, no movimento de interpretação histórica da música antiga, sua profunda ancoragem no contexto sócio- histórico e musical do século XX. Em Kagel, o uso dos instrumentos antigos parece ter o sentido de uma busca sonora que se apresenta também como alternativa à sonoridade dos instrumentos da orquestra e da tradição romântica. Com relação à produção musical de Kagel, Musik é compreendida como parte de um conjunto de obras em que a instrumentação é bastante experimental, entre as quais se inclui Acustica e Der Schall, para fontes sonoras A (re)composição do material musical experimentais e fita magnética, e Exotica, para instrumentos não europeus indeterminados. Kagel, longe de esgotar-se na alusão ao passado, parece situar assim os instrumentos antigos em sua potencialidade criativa e especulativa para a composição, apropriando-se de seus elementos técnicos e sonoros, reposiciona-os no espaço contemporâneo.

Kagel e as vanguardas

Desde muito cedo Kagel participou na Argentina de grupos (como o Agrupación Nueva Música) e eventos ligados à música mais experimental e de vanguarda do período. Ainda na Argentina, Kagel conhece Pierre Boulez, quando este excursionava com uma companhia de teatro. Boulez o encoraja a ir para a Europa, de modo que em 1957 Kagel se muda para Colônia. Foi nesse contexto que integrou 433 um conjunto de jovens compositores recém-imigrados para a Alemanha e participou ativamente dos Ferienkurse de Darmstadt, dedicados à Música Nova do período. Rapidamente sua produção foi bem aceita e o compositor tornou-se, assim, uma das referências de Darmstadt, sucedendo Stockhausen à frente do Instituto de Música Nova de Colônia, em 1969. No entanto, cumpre notar que, apesar de seu sucesso no meio vanguardista europeu, sua obra apresenta elementos dissonantes e críticos ao pensamento progressista estabelecido e difundido no período. A partir do final da década de 50 se expressa em Darmstadt a construção de uma ideologia progressista que vê somente no desenvolvimento dos meios e fontes sonoras o desenvolvimento do pensamento composicional. Expressão disso foi o de ver no serialismo integral e na música eletrônica os meios mais avançados para a composição musical naquele momento. A nosso ver o equívoco estaria em avaliar as obras a partir de seus meios técnicos e formais de construção, elementos que permanecem até hoje em muitos círculos que fazem da tecnologia e da técnica composicional um fim em si, o que se constituiria como um fetiche pela técnica.

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Ainda em 1966 Kagel percebe a permanência dessa ideologia e afirma que em Darmstadt o valor da obra ainda se media pelo grau de manipulação da técnica serial. A crítica ao tecnicismo formalista por Kagel se expressou na avaliação positiva e provocativa que fez da visita de John Cage a Darmstadt em 1958:

Cage removeu sensatamente a maioria dos conceitos sobre a técnica de composição empregados até hoje por jovens compositores europeus. Contribuiu assim, com um sentido quase “aperspectivo”, para o desmoronamento dos modernos mitos seriais, instituídos pelos acadêmicos do dodecafonismo e os espíritos abjetamente sérios da publicidade. (KAGEL, 2011, p.172)

Apesar disso, Kagel nunca se considerou um compositor ligado a uma estética da aleatoriedade ou 434 “cageana”. Ele na verdade criticou posteriormente o conteúdo ideológico dessa concepção composicional: “as operações de acaso em Cage são, de certa maneira, ideológicas porque ele era da opinião que o verdadeiro acaso era o melhor caminho possível para alcançar um nível filosófico e estético superior”. Em entrevista a Werner Klüppelholz, o compositor desenvolve a ideia:

Nos anos 60, quando o acaso começou a ser considerado a única alternativa coerente à música serial, me pareceu claro o risco que existia de que essa novidade fosse manipulada dogmaticamente, como havia sido o caso do pensamento em série que tinha um tom ideológico. Uma nova ideologia viria a substituir a anterior. (KAGEL, 2011, p.195)

Os compositores da segunda geração de Darmstadt, dentre os quais destacamos Ligeti, Berio, Pousseur e o próprio Kagel, desenvolveram estéticas mais livres e abertas, sem no entanto se vincularem à estética de Cage. Para Kagel o valor da obra reside na esfera estética e não no desenvolvimento formal de uma determinada técnica. “O objetivo de qualquer técnica é aperfeiçoar os meios de expressão. Se uma técnica serve para estancar e inibir a expressão, é inútil como técnica” (Cowell, A (re)composição do material musical

1996, p. XII). É importante salientar que esse posicionamento não invalida o uso dos progressos tecnológicos proporcionados pelas pesquisas do período; para Kagel as inovações tecnológicas devem ser incorporadas ao pensamento e à formalização composicional 2. Dessa maneira, sem invalidar as pesquisas da vanguarda, Kagel apropriará em boa parte de sua obra um pensamento tecnomórfico de composição musical, caracterizado pela influência da sonoridade eletrônica na escrita instrumental. Também se identifica com a perspectiva de vanguarda ao pensar sobre novas formas de composição e de produção sonora. Dessa maneira, se expressa na perspectiva composicional do período uma busca análoga ao do movimento de interpretação histórica, o de buscar formas de criação e interpretação musical alternativas ao cânone romântico, que se 435 expressou na consolidação e permanência do repertório orquestral do período.

Análise de Musik Für Renaissance-Instrumente

Esta obra não contém nem previsões ou orientações para o futuro, nem o consolo de uma retomada do passado: o uso de instrumentos renascentistas não segue nenhuma intenção programática que se entenda como geral. Foi determinante apenas o motivo de que estes instrumentos correspondiam melhor à minha imaginação timbrística que os instrumentos atuais de corda ou sopro (KAGEL, 1998, p. 8)

O comentário de Kagel parece apresentar uma dupla negação, dirigida tanto ao ímpeto progressista de discursos prescritivos de vanguarda, quanto ao sentido nostálgico de uma prática reconstrutiva da música do passado.

2 É o que afirma Kagel em palestra em 1966 em Darmstadt (KAGEL, 2011, p.113): “hoje em dia também devemos implementar todas as inovações tecnológicas, sobretudo as da eletrônica”.

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Musik está dividida em onze seções, de A a K, e pode ser iniciada a partir de qualquer uma delas. As seções deverão ser tocadas respeitando-se sua ordem cíclica (de D até K, seguindo-se de A até C, por exemplo), permitindo que uma ou mais partes sejam omitidas ad libitum. Musik possui instrumentação flexível: linhas podem ser dobradas, rearranjadas ou simplesmente omitidas, nesse caso Kagel determina que a peça se intitule Kammermusik für Renaissance-instrumente , sendo executada por um número de dois até vinte e dois instrumentistas, em vez dos vinte e três previstos para a peça integral. A composição de Kagel apresenta assim aspectos de indeterminação, o que a relaciona tanto à concepção mais aberta e experimental do período quanto às práticas interpretativas da música antiga, que tinham no manuscrito original da peça diversos elementos de interpretação indeterminada, tais como dinâmica, articulações e até 436 elementos rítmicos e melódicos. Cage, por exemplo, ressalta o elemento de indeterminação na Arte da Fuga : a não definição da instrumentação requerida, assim como podemos notar também na Oferenda Musical , assim como nas sonatas barrocas em que o instrumento solista não é definido com exclusividade, ou mesmo na prática do baixo contínuo, que pode ser realizado por diversos instrumentos. Da maneira análoga, em Musik :

o regente pode adicionar fermatas, rallentandos e accelerandos sempre que desejar, se determinados sons ou progressões o inspirarem a fazê-lo. (...) Em "Música para Instrumentos Renascentistas" e nas versões de música de câmara, os músicos podem adicionar à interpretação alterações timbrísticas não prescritas. O texto musical é, então, ornamentado com coloridos timbrísticos de maneira semelhante à prática de grande parte da música Renascentista e Barroca.” (KAGEL, 1970, p. V-VI. Bula da partitura de Musik für Renaissace-Instrumente )

Apresento agora algumas das técnicas de execução dos instrumentos antigos utilizadas na peça de Kagel, em que tradição e experimentalismo se articulam de maneira original. A (re)composição do material musical

Logo no início da obra, Kagel determina o uso de uma folha de papel entre as cordas-bordão do instrumento, bem como a scordatura específica requerida:

Fig. 1: Scordatura da Teorba (KAGEL, 1970, p. 2)

Considerando a relação que Musik für Renaissance- Instrumente estabelece com o material musical do passado, 437 remetemos à prática bastante utilizada da scordatura na música barroca, através da qual a afinação tradicional de um instrumento é modificada. Um dos usos mais conhecidos desse recurso é feito por J. S. Bach, em sua 5ª suíte para violoncelo solo . A afinação da corda mais aguda é transposta de lá para sol, conferindo uma tessitura mais grave ao instrumento assim como uma sonoridade mais opaca e escura. Outro compositor do período, Heinrich Ignaz Franz Biber (1644-1704), também fez uso significativo desse recurso. Em suas Sonatas do Rosário apresentou uma exploração bastante significativa da ressonância de scordaturas alternativas. Abaixo temos a afinação requerida para o violino em cada uma dessas sonatas:

Fig. 2: Scordatura das cordas do violino nas Sonatas do Rosário

No conjunto das dezesseis sonatas, com exceção da primeira e da última, todas as outras requerem o uso da scordatura . É sintomático que durante o romantismo muitas edições da peça ignoraram essa determinação técnica e foram

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transcritas para a afinação convencional do instrumento. De fato, essa prática foi pouco explorada durante o período romântico, sendo retomada no século XX através de uma perspectiva de preparação e modificação da sonoridade habitual do instrumento. Tal atitude talvez decorra do equívoco em considerar essas scordaturas apenas como artifício externo empregado com o intuito meramente virtuosístico ou simbólico. Mas mais importante ainda é que cada scordatura cria uma ressonância específica do instrumento, apresentando uma interessante elaboração do timbre. É esse elemento de pesquisa de timbres e técnicas, tão caro à composição experimental do século 20, que podemos perceber também presente em obras barrocas e renascentistas. No exemplo retirado de Musik a prática da scordatura é feita de maneira que se ressalta os intervalos mais dissonantes, tão explorados no período. A ressonância da afinação proposta por Kagel privilegia os intervalos de 7ª e 9ª, como se pode 438 observar entre os pares das cordas de 1 a 12. Percebemos também a relação da preparação da teorba, utilizando tiras de papel entre as cordas, com a peça Battalia a 9 (1673), também de Biber, primeira peça a solicitar esse uso em instrumentos de corda. Outro aspecto inovador no uso dos instrumentos antigos se apresenta na escrita para órgão em Musik . Kagel estudou e praticou esse instrumento ainda na Argentina, possuindo certa familiaridade com suas questões técnicas e organológicas. Gerd Zacher, um dos principais organistas ligados à música experimental, considera Kagel, juntamente com Ligeti e Hambraeus, um dos principais compositores a promover uma renovação na escrita do instrumento depois do desenvolvimento realizado por Messiaen. Já no título de seu ensaio, L’orgue outil (ou O órgão-ferramenta ), Zacher alude à dimensão física e material do instrumento, sobre a qual se debruçarão esses compositores. A diferença fundamental que marca a nova perspectiva é a da compreensão do órgão enquanto instrumento de sopro. Essa nova forma de abordá-lo promoverá inovações como o uso de assistentes na manipulação dos tubos, ou até mesmo na execução de grandes A (re)composição do material musical clusters . Na bula da peça, Kagel apresenta os meios de preparação técnica para a execução do órgão regal, que possui os tubos expostos e com fácil acesso para a manipulação:

439

Fig. 3: Preparação do Regal (KAGEL, 1970, p. VI)

Em Musik für Renaissance-Instrumente o acoplamento de tubos suplementares aos tubos do instrumento aparece como forma de transformação de seu timbre, através dessa concepção salientada por Zacher: Como podemos observar, tubos de diferentes materiais e formas são requeridos como meio de desnaturalizar o som convencional do instrumento, abordagem que perpassa grande parte da obra de Kagel no período. O que podemos notar é uma experimentação junto ao órgão muito afim à perspectiva de Cage de preparação do instrumento, gerando novos timbres e sonoridades sobre o suporte do instrumento tradicional. No trecho da peça em que Kagel requer o uso dos tubos suplementares, a sonoridade que se produz torna-se muito afim aos da síntese eletrônica, apresentando aspectos de tecnomorfismo na produção musical. A perspectiva tecnomórfica pode ser compreendida como a influência de

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técnicas e recursos oriundos do desenvolvimento tecnológico na forma e nas técnicas de execução e interpretação musical. Um efeito característico desse conceito é o da simulação do efeito doppler nas peças musicais do período e consiste na percepção de alteração de determinada frequência de onda proveniente de uma fonte, seja ela sonora, eletromagnética etc. Essa percepção se dá, por exemplo, ao observarmos a frequência sonora de uma sirene de ambulância quando se desloca com relação ao nosso ponto de referência: quando a fonte se aproxima a frequência sonora aumenta e diminui quando a fonte se distancia. Esse efeito de alteração perceptiva do som foi melhor compreendido pela música através da tecnologia musical digital, sendo bastante explorado também pela corrente espectral, como demonstra Catanzaro ao analisar a simulação desse efeito em peças de Stockhausen e Grisey. 440 Em Musik f. R.-Instr. essa simulação se dá de maneira bastante particular, envolvendo apropriação inovadora dos aspectos técnicos e organológicos dos instrumentos antigos. Uma das propriedades organológicas do crumorne é a técnica do underblowing, por meio da qual a frequência da nota pode ser estendida até uma quinta abaixo. É justamente esse instrumento que Kagel utiliza para simular o efeito doppler, articulando a composição moderna e experimental ao uso de técnicas próprias dos instrumentos antigos:

Fig. 4: Simulação do efeito doppler no Crumorne (KAGEL, 1970, p. 27)

O uso do crumorne para apresenta aspectos essenciais para a formalização da ideia musical de metáfora do efeito doppler. Possuindo um extenso âmbito de oscilação da afinação que se pode manipular através da simples pressão do sopro, o dedilhado não precisa ser modificado, propiciando uma variação bastante orgânica da altura. A (re)composição do material musical

Esse é uma das características fundamentais que parecem reger a composição de Kagel, o de apropiar-se dos instrumentos antigos em sua potencialidade de criar sonoridades próprias do século 20, explorando os timbres e seus sons, mais puros e precários, que os dos instrumentos tradicionais românticos e modernos. Conclusão

A perspectiva de Kagel, como pudemos demonstrar, é a de “não tomar os instrumentos como algo dado mas operar nesse campo de modo experimental” 3. A atitude do compositor diante da tradição é o de um radical questionamento de seus pressupostos, por vezes operando num sentido de esvaziamento de seu papel histórico. Essa perspectiva recoloca a tradição em outro nível, que não o da ruptura, mas o de uma abordagem que ressignifica sua funcionalidade. Por fim, definiríamos a relação desta peça com o material musical como uma relação tipicamente moderna, que 441 esvazia o significado original de determinado material para que este seja reapropriado por uma visão moderna. No entanto, essa ressignificação, mais do que uma prática estritamente estética, pode aludir a uma perspectiva de atuação política, crítica à determinadas visões e práticas da história musical. Assim como parte do sentido das vanguardas do início do século 20 foi o da crítica à institucionalização da arte, em Musik , o sentido parece ser o da crítica às perspectivas artísticas e estéticas que se delineavam nas práticas da interpretação historicista e das vanguardas musicais, sem no entanto deslegitimá-las. Na obra de Kagel convivem múltiplos sentidos, que se identificam e se distanciam, mas convergem em um aspecto: seu caráter assistemático. Essa proposta de manter-se em constante transformação pode constituir-se como prática de

3 “No tomar los instrumentos como algo dado sino operar en dicho campo de modo experimental” ( El sonido y sus consecuencias – Diálogo con Matthias Kassel In: KAGEL, 2011, p. 223)

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liberdade, geradora de sempre novas articulações, ideias e sons. Na relação com a história, que pode ser compreendida como uma relação com a memória, Musik se distancia tanto de um sentido nostálgico da música do passado, quando de um sentido progressista que elimina a tradição e se orienta principalmente por uma perspectiva de futuro. Musik opera assim num espaço de convergência, que transfigura tanto o material antigo com o qual trabalha, quanto o material moderno que se associa a materiais a princípio estranhos a sua prática.

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John Cage e Música Antiga: indeterminação nas práticas composicionais e interpretativas

RENATO CARDOSO

John Cage

partir dos anos de 1950, na chamada música pós-guerra, A começam a se formar dois movimentos que vão influenciar largamente a música da segunda metade do século. O primeiro, encabeçado por John Cage junto a outros compositores situados em Nova Iorque, explorará os limites do papel do compositor, tratando de temas como silêncio, indeterminação, acaso e escuta do meio ambiente. O segundo, proveniente da musicologia e das práticas interpretativas, operará um revival da herança musical anterior ao classicismo vienense, com grande ênfase em afinações e temperamentos de época, instrumentos de época e tratados de época. Apesar de ambos os movimentos serem frutos de um desenvolvimento no pensamento musical do início do século, é a partir dos anos de 1950 que começam a ganhar alguma notoriedade e a formalizar aspectos técnicos e estéticos que se tornarão referência no mundo da música. Nesse sentido, o texto de 1951 de Theodor Adorno, Em defesa de Bach contra seus seguidores (Bach defended against his devotees) , antecede a discussão sobre o tema proposto neste artigo, pois tem como modelo musical o trabalho de Anton Webern em contraposição com os primeiros ícones da ‘ performance autêntica’ (Wanda Landowska e Arnold Dolmetsch) (ADORNO, 1995). Um pensamento em particular, que tomo como ponto de partida para as considerações teóricas neste artigo, surge a partir das considerações de John Cage sobre indeterminação e a tentativa de identificar esse conceito no repertório histórico, inclusive na Música Antiga.

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Por um lado, é a partir da conceituação dos termos acaso, aleatório e indeterminação na música que se percebe explicitamente a divisão do que poderíamos chamar de música conceitual, de John Cage e a música formal de Pierre Boulez. Para Boulez, o acaso e o aleatório serviam como desdobramentos formais, que permitiam ao compositor maior complexidade em relação aos fenômenos sonoros, sem abrir mão do controle autoral sobre a obra musical. Já para Cage, a ideia era justamente subverter o processo composicional, de tal forma que o compositor se dispusesse cada vez de menos ferramentas de controle sobre o material (PRITCHETT, 1996; NATTIEZ, 1993; TERRA, 2000). John Cage entende indeterminação como “a habilidade de uma peça em ser executada de maneiras substancialmente diferentes – ou seja, a obra existe de tal forma que ao performer é dado uma variedade de maneiras únicas de executá-la” (PRITCHETT, 1996, p. 108). Esse termo se 444 diferencia de acaso , pois este se refere ao uso de procedimentos aleatórios no ato de composição (PRITCHETT, 1996, p.108). Esclarecendo ainda, na visão de Pritchett, John Cage deixa claro que indeterminação e acaso não são conceitos idênticos e que numa partitura indeterminada não se pressupõe o envolvimento do acaso na sua composição ou performance (Pritchett, 1996, p.108). Outra comentadora do texto Indeterminacy , Vera Terra, no livro Acaso e Aleatório na Música , explica a importância de discernir esses termos:

Cage não usa o termo acaso em sua conferência. Prefere falar em indeterminação; Se considerarmos que a noção de acaso é estranha ao universo clássico, fundado sobre os princípios da causalidade e do determinismo, e que, portanto, seria inadequado recorrer a esta noção para nos referirmos à música do passado (segundo Boulez, a introdução do acaso na música ocidental ocorre pela primeira vez no século XX), então compreenderemos que o emprego da palavra indeterminação permite a John Cage ampliar a esfera de sua análise para além da época contemporânea. Permite-lhe, por exemplo, identificar a presença de elementos John Cage e a música antiga

indeterminados na música do período barroco e estender este emprego até a música de nosso século (TERRA, 2000 p. 31).

Portanto, em nenhum momento aventuro a hipótese de que haja no repertório barroco a presença de elementos aleatórios, randômicos, provenientes do acaso enquanto conceito norteador de uma obra. Mas parto da hipótese de que inúmeras peças trazem em sua concepção a ideia de serem executadas de maneira substancialmente diferente a cada performance ou por cada performer , mesmo situados interpretativamente na linha de performance historicamente informada. E, mesmo no universo em que encontramos o princípio de causalidade e determinismo, que trazem ordem à noção de música enquanto discurso, podemos encontrar a presença de elementos indeterminados. Alguns destes elementos precediam de especificação na medida em que sua execução 445 musical era um dado corrente da época em que foram escritos. Outros elementos eram entendidos culturalmente como indeterminados e era tarefa do intérprete viabilizar uma execução de qualidade. Como a escrita textual fez parte do desenvolvimento estético e intelectual de músicos no último século, tais termos se encontram fartamente documentados e comentados. Em um desses textos, compilado no livro Silence (1961), John Cage palestra sobre a indeterminação na música e se estende sobre sete peças e suas particularidades, sendo cinco de caráter indeterminado. Uma delas é a Arte da Fuga, de J. S. Bach. O título da palestra é Indeterminação (Indeterminacy) e foi proferida em 1958.

Na Arte da Fuga, estrutura, o qual é a divisão do todo em partes; método, o qual é o procedimento nota a nota; e forma, o qual é o conteúdo expressivo, a morfologia da continuidade, estão todos determinados. Frequência e duração, características do material também estão determinadas. Timbre e amplitude característicos do material, por não serem dados, são indeterminados. Essa

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indeterminação cria a possibilidade de uma única estrutura de harmônicos e extensão de decibéis para cada performance da Arte da Fuga (CAGE, 1961, p.35).

Para o compositor, há quatro elementos principais a serem analisados quanto a uma composição: estrutura, forma, método e material. É desta forma que ele analisa e comenta as sete peças musicais em sua palestra. A estrutura é a divisão do todo em partes. No caso da Arte da Fuga , esse é um fator determinado, já que as fugas tradicionalmente se dividem em uma alternância entre exposição e episódio, finalizado por uma coda. A forma é a maneira como se dá a continuidade entre as partes. No caso da grande maioria da música ocidental até o século XX, a forma é sempre determinada. Para clarificar a distinção entre termos, John Cage observa que a Klavierstück XI de Karlheinz Stockhausen, a estrutura está determinada, pois há clareza na escrita sobre quais são as partes da música. A 446 forma não está determinada, pois o modo de se conectar cada parte, assim como a ordem das partes não estão dados, e fazem parte da elaboração de cada interpretação, produzindo sempre resultados sonoros diferentes. Esse modo de entender forma e estrutura se conceitua razoavelmente de modo independente da literatura de análise musical, mas parece bastante coerente quando se analisa peças de sua época. No caso do método, ambas as peças de Bach e de Stockhausen estão determinadas. O material é definido por Cage como composto por frequência, duração, timbre e amplitude. Na verdade, trata-se das quatro propriedades do som, em que o compositor se utiliza de termos da física acústica, provenientes provavelmente da sua vivência com a composição de música eletroacústica. Assim, frequência está no lugar de altura, sendo que para Cage, isso o permite refletir sobre frequências tradicionais, como a oitava dividida em 12 semitons, e frequências indeterminadas, provenientes da notação gráfica. Outro termo emprestado da acústica é a amplitude, que no vocabulário musical se coloca como intensidade. Interessante notar que é nas propriedades do som que se encontra, para o compositor, o fator de indeterminação da Arte da Fuga . O timbre e a intensidade (amplitude) não são John Cage e a música antiga dados. Nesse caso, a função do intérprete não é de apenas fornecer o timbre e a intensidade de maneira objetiva, racional. Cage apresenta uma série de possibilidades, conforme segue:

A função do intérprete, no caso da Arte da Fuga , é comparável à de alguém preenchendo as cores onde contornos são dados. Ele pode fazer isso de uma maneira organizada, o qual pode estar submetido com sucesso a uma análise (transcrições de Arnold Schoenberg e Anton Webern são exemplos pertinentes neste século). Ou ele pode executar sua função de colorista de uma maneira não conscientemente organizada (e consequentemente não sujeita à análise) – tanto arbitrariamente, segundo seu jeito, seguindo os ditames de seu ego; ou mais ou menos inadvertidamente, ao se dirigir para dentro de si, com referência à estrutura da sua mente até um ponto de sonhos, seguindo, como em uma escrita automática, os ditames de sua mente subconsciente; ou para um lugar do inconsciente coletivo da psicologia analítica Jungiana, seguindo as inclinações da espécie e 447 fazendo algo mais ou menos de interesse universal para os seres humanos; ou para o ‘profundo sono’ da prática mental indiana – o chão do Meister Eckhart – identificando lá quaisquer tipos de eventualidades. Ou ele pode executar sua função de colorista arbitrariamente, ao se dirigir para fora tendo como referência a estrutura da sua mente quanto à percepção sensorial, seguindo seu gosto; ou mais ou menos inadvertidamente ao empregar alguma operação exterior à sua mente: tabelas de números aleatórios, seguindo o interesse científico em probabilidade; ou operações ao acaso, identificando lá quaisquer tipos de eventualidades (1961, p.35).

O primeiro exemplo de Cage, da transcrição de Schoenberg e Webern, evidencia o quão expandido pode ser uma aplicação racional das propriedades de timbre e intensidade. Ao distribuir em diversos instrumentos de uma orquestra uma composição a seis vozes, Webern explora os limites do Ricercar a 6 da Oferenda Musical de J. S. Bach, outra obra em que a instrumentação é largamente deixada em aberto. Do ponto de vista da subjetividade, Cage coloca uma série de possibilidades que vão de encontro com suas próprias

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pesquisas poéticas, não necessariamente refletindo possibilidades interpretativas provenientes do modo de tocar em sua época.

Música Antiga É importante contextualizar como foi a consolidação do movimento de Música Antiga, nos anos 1960, ainda sob a alcunha de Movimento Autêntico. Segundo Bruce Haynes (2007), no começo dos anos dessa década havia uma preocupação com a performance estilística do repertório antigo, mas os instrumentos de época não eram uma prioridade, mas já no fim desta década a predominância das réplicas já estava normatizada. Conforme aponta Haynes:

Um bom exemplo do estado da arte do Estilo de Época em 448 1962 é uma gravação do Concerto em Mi menor para flauta e traverso de Telemann feito por Frans Brüggen e Frans Vester, que na próxima década se tornariam ícones e gurus em seus instrumentos. Em 1962, o grupo toca em A-440 em instrumentos românticos; cordas estão reguladas em estilo moderno, Brüggen toca num projeto moderno de flauta doce (não uma cópia de um original antigo), e Vester no que ele mais tarde chamaria de ‘flauta de ferro’ (2007, p.44).

A partir dos anos 1960, a base ideológica diretamente vinculada ao Movimento Autêntico era a do reconstrucionismo histórico. Esta é uma abordagem objetivista da música em que a montagem de qualquer peça deve adotar o mais fielmente possível os fatores de ordem histórica e indicações de execução de fontes primárias na tentativa de emular performance s de época. Esta base ideológica priorizou os aspectos científicos da relação do músico com o repertório e possibilitou um avanço significativo no conhecimento histórico e musicológico, nos levantamentos de fontes materiais, na publicação de periódicos musicais e proporcionou à área de Práticas John Cage e a música antiga

Interpretativas um novo olhar mais científico e acadêmico sobre interpretação musical. Já em meados dos anos 1980, começa a surgir, a partir de adeptos dessa prática, críticas contundentes ao modo de conduzir tanto as investigações musicológicas como as práticas interpretativas relacionadas a essa música. Alguns autores importantes teceram comentários e críticas a esta abordagem, atribuindo a ela diferentes nomes e implicações: Richard Taruskin (1995) e Laurence Dreyfus (1983). Taruskin refere-se ao reconstrucionismo como uma abordagem modernista, despersonalizada, em que o músico é mais um executante do que um intérprete. Em um evidente tom de crítica, o autor comenta:

O que nós nos acostumáramos a considerar como performance historicamente autêntica, eu comecei a ver, representava nem um determinado protótipo histórico nem qualquer reflorescimento coerente de práticas coetâneas 449 com os repertórios a que eles se dirigiam. Em vez disso, eles incorporaram toda uma lista de desejos de valores modernos (modernistas), validados na academia e no mercado igualmente por uma visão eclética e oportunista da evidência histórica (TARUSKIN, 1995, p.5).

Em seus artigos, Eithan Ornoy (2006, 2008) refere-se a esta abordagem como ‘positivista’, já que os dados históricos a que alude e ‘reconstrói’ são dados ‘positivos’, como afinação de época, diretrizes interpretativas de tratados e instrumentos de época. Para Dreyfus, chega-se à ‘autenticidade’ ou à reconstrução histórica seguindo as regras do método científico. Ele critica este “tratamento estritamente empírico para se verificar práticas históricas” (DREYFUS, 1983, p.299). Para o autor, esta é uma abordagem objetivista da música. Taruskin defende que uma performance não pode ser a demonstração do estado da arte, nem estar apenas embasada em documentos históricos. Sob o viés historicamente orientado, ele parte do princípio de que um grande conhecimento funcional (histórico, porém prático) está nas

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mãos do intérprete e será usado de acordo com suas escolhas artísticas. O autor também defende que o uso de instrumentos de época é em si mesmo de nenhum valor estético.

Práticas Interpretativas É interessante notar como tanto a palestra de John Cage como o Movimento de Música Antiga centraram parte de suas considerações em torno da figura do compositor J. S. Bach. Essa preocupação não é exclusiva desses dois casos, sendo que na tradição clássico-romântica se tratou de fazer o mesmo, com o agrupamento “Bach e Beethoven”, ao qual Carl Dahlhaus atribui um fundamento histórico-filosófico (1999, p.116). Para John Cage, a Arte da Fuga e indiretamente a Oferenda Musical são os grandes exemplos históricos da indeterminação no repertório ocidental. Ele usa esse conceito para obras de épocas muitos anteriores à música de vanguarda 450 do séc. XX. E é até com base neste pressuposto histórico que ele justifica um uso mais arrojado de processos randômicos na concepção musical contemporânea (TERRA, 2000, p.32). É possível adicionar inúmeros outros exemplos de indeterminação do repertório barroco, em J. S. Bach assim como em outras tradições instrumentais. As chamadas obras para alaúde de Bach apresentam uma problemática quanto sua instrumentação, por vezes indicadas para mais de um instrumento (alaúde ou cravo na BWV998), ou sendo obras transcritas a partir do violino (BWV1006a e Fuga BWV1000) ou violoncelo (BWV995 a partir da BWV1011). Mais a fundo no repertório alaudístico francês, encontramos peças indeterminadas quanto à forma, em que as partes eram apresentadas e sua disposição ou repetição ficava a cargo do intérprete. Os préludes non mesuré de S. L. Weiss, contemporâneo de Bach, são exemplos de peças indeterminadas quanto à duração e até mesmo quanto ao método, o procedimento nota a nota (Suíte n.1, em Fá maior). Independentemente do componente histórico possível de se atribuir ao conceito de indeterminação, ou da ênfase documental da interpretação historicamente orientada, é John Cage e a música antiga importante a avaliação de que ambos são ideais de um tempo presente, que se desenvolvem a partir do fim dos anos 1950 e começo dos anos 1960 e se desdobram até os dias atuais. Em se tratando de metanarrativa ou de metodologia, tais abordagens são nada mais que poéticas típicas da segunda metade do século XX, e sendo contemporâneas dialogam entre si, gerando tensões para o âmbito da prática interpretativa. É fato que pouco se aventurou em termos concretos nas abordagens interpretativas possíveis aventuradas por Cage em sua palestra. E que concretamente, não é possível apenas reconstruir um passado em uma prática presente. Assim, a prática instrumental condizente com o elemento de indeterminação das obras, canalizada como liberdade do intérprete, pode ser ensaiada das seguintes maneiras no tempo presente: • na possibilidade de usar poéticas do presente para repensar obras do passado. 451 • no modo como o intérprete organiza o conhecimento racional adquirido em sua formação técnica/reflexiva. • nas especulações que é capaz de fazer e de articular. • nas imposições concretas de sua técnica e de seu instrumento. • na construção social de sua prática com a recepção de público especialista e não-especialista.

A indeterminação abre as potencialidades de uma obra para além de uma visão tradicional de reprodução de um conteúdo dado, pois nesse caso entende-se que o conteúdo nunca é totalmente dado e que há um procedimento interpretativo complementar necessário para dar vida a qualquer obra. A prática interpretativa é uma atividade intrinsicamente ligada ao tempo presente, dispondo no tempo experiências concretas a partir de uma exploração das potencialidades de uma obra.

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Referencias bibliográficas ADORNO, T. Bach defended against his devotees. In: Prisms . Massachussets: MIT Press, 1995. CAGE, J. Silence . Middletown: Wesleyan University Press, 1961. DAHLHAUS, C. La idea de la música absoluta . Barcelona: Idea Books, 1999. DREYFUS, L. Early Music Defended against Its Devotees: A Theory of Historical Performance in the Twentieth Century. In: The Musical Quaterly , vol.69, n.3 (Summer, 1983), p.297-322. Disponível em: . Acessado em 12 jul. 2013. HAYNES, B.. The end of early music . Oxford: Oxford University Press, 2007. NATTIEZ, J.-J. (Org.) The Boulez-Cage correspondence . Nova York: Cambridge University Press, 1993. ORNOY, E.. Between theory and practice: comparative study of early music performances. In: Early Music , Oxford Journals, v.34, n.2, 2006, 452 p.233-248. ____. In Search of ideologies and ruling conventions among Early Music performers. In: Min-Ad: Israel Studies in Musicology Online , vol.6, 2007- 2008. Disponível em: . Acesso em 10 jan. 2014. PRITCHETT, J. The Music of John Cage . Cambridge: Cambridge University Press, 1996. TARUSKIN, R. Text & Act: Essay on Music and Performance . New York: Oxford University Press, 1995. TERRA, V. Acaso e aleatório na música; um estudo da indeterminação nas poéticas de Cage e Boulez . São Paulo: Educ/Fapesp, 2000.

Sobre os Autores

Alexandre Siqueira de Freitas é pianista, professor da área de Artes na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Doutor em Artes/Música pela Universidade de São Paulo e pela Universidade Paris-Sorbonne (cotutela), sob orientação de Eduardo Monteiro (USP) e Michèle Barbe (Paris-Sorbonne). Foi articulista cultural do site da revista Carta Capital e é autor do livro Rencontre des arts (Harmattan, 2015).

Clovis Salgado é graduado em Música e Filosofia (Faculdade Santa Marcelina - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia), Mestre em Música (Texas Christian University) e Doutor em Estética e Teoria da Arte (Universidad de Chile). Atua como professor assistente e pesquisador na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Além de seus trabalhos acadêmicos, dirigidos sobretudo à Filosofia da Música, ao pensamento de Vladimir Jankélévitch, às poéticas noturnas e às interseções entre Mística e Estética, vem desenvolvendo projetos ligados à formação de público e à arte-educação.

Danilo Ávila é mestrando em História e Cultura Social no PPG em História da UNESP/Franca. Atualmente desenvolve a dissertação "Hans Joachim Koellreutter: uma experiência de vanguarda nos trópicos? (1939-1951)", com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos Culturais da UNESP (GECU).

Estefânia Francis Lopes é mestranda na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, junto ao Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, da Universidade de São Paulo. Formada no curso de Letras na mesma Universidade, com atuação profissional na área de arte- educação.

Flavio Silva estudou piano com Milton Lemos, Hans Graff, Alda Caminha e Homero de Magalhães. Bolsista do governo francês de 1968 a 1971, permaneceu em Paris até 1974 estudando musicologia e etnomusicologia no Institut de Musicologie, no Musée des Arts et Traditions Populaires e na Faculté de

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Vincennes com Jacques Chailley, Tran Van Khê, Simha Arom e Claude Laloum. Para a École Pratique des Hautes Études preparou o memoire "Origines de la samba urbaine à Rio de Janeiro", sob a direção de Claudie Marcel-Dubois e supervisão de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo. Voltando ao Brasil, ingressou na FUNARTE, do MinC, onde exerceu várias funções, em especial a de organizador das últimas Bienais de Música Brasileira Contemporânea.

Glaucio Adriano Zangheri é bacharel em música pela ECA-USP (2002) e licenciado em Filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo (2009). Sob a orientação do Prof. Dr. Mário Videira Júnior (ECA-USP) concluiu o mestrado (2013) e atualmente cursa doutorado na mesma instituição. Profissionalmente, atua como arranjador e orquestrador, e como professor do curso de música da Faculdade Mozarteum de São Paulo (FAMOSP). 454 Guilherme Granato possui duas graduações em música: Bacharel em Música - habilitação Guitarra, pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas- FMU (2003) ; Licenciatura em Educação Musical pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP (2009). Atualmente realiza pesquisa de Mestrado em Estética e Filosofia da Arte na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Igor Baggio é pianista, graduado em música pela UFRGS (2004), mestre em música pela UNESP (2009) e doutor em filosofia pela USP (2015). É autor do livro " O dodecafonismo tardio de Adorno (EDUNESP, 2010). Como pesquisador, privilegia a estética da música do século XX e questões oriundas ou ligadas à teoria estética adorniana, bem como reflexões estéticas de autores contemporâneos como Rancière e Badiou.

Ivanka Stoianova é musicóloga. Sua formação contempla a Escola Nacional de Música de Sófia, Bulgária, o Conservatório P. Tchaikovsky (Moscou), a Musik-Akademie, Universität Basel, a Technische Universität, Berlin e a Université de Paris 8, em Paris. Entre 75-81, foi Membro da Equipe do IRCAM, de 89-99 Sobre os autores foi diretora artística das Edições Ricordi (Paris)e atualmente é professora aposentada da Université de Paris 8. Com mais de 200 artigos publicados em diversos idiomas (francês, russo, inglês, alemão, etc) e variados livros, suas área de pesquisa compreende história, teoria, semiótica e filosofia da música (sécs. XVII, XIX e XX).

Jalver Bethônico é doutor em Comunicação e Semiótica. Professor de Design Sonoro e Sistemas Musicais Interativos do CAAD - EBA - UFMG. Coordena as pesquisas audiovisuais do Grupo de Pesquisa interSignos – EBA que fundou em 2004. Criou e realizou a trilha sonora de animações e vídeos premiados internacionalmente. Foi ganhador do Prêmio da Música Brasileira de 2011. Atua nos grupos “klang!” e “As Is” que trabalham no relacionamento de música e imagem.

João Paulo Costa do Nascimento é Doutorando em Música pelo 455 PPG em Música da UNESP-Instituto de Artes. Possui graduação em Música-Habilitação em Composição e Regência pelo Instituto de Artes/UNESP (2004) e mestrado em Música pela mesma instituição. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Música, atuando principalmente nos seguintes temas: música contemporânea, filosofia da música, Lyotard, pós-modernismo e educação musical. É autor de “Abordagens do Pós-Moderno em Música: a incredulidade das metanarrativas e o saber musical contemporâneo” (Ed. Cultura Acadêmica, 2010).

José Calixto Kahil Cohon é bacharel (2008) e mestre (2013) em Filosofia pela FFLCH-USP, tendo como ênfase Estética e Filosofia da Música. Tem formação musical na Escola Municipal de Música de São Paulo (2009-2015) e na ECA-USP (2012- 2017). Atua como músico, violonista, teorbista, compositor, regente e diretor da orquestra de música contemporanea Camerata Profana. Leciona Estética, História da Música, Teoria e Musicalização.

Lia Tomás é Livre-Docente em Estética Musical (UNESP, 2008), e possui bacharelado em música (instrumento piano) pela

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UNESP - Instituto de Artes (1985), mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUCSP (1993 e 1998) e dois Pós- Doutorados em Estética Musical (Université de Paris I - Institut d'Esthétique et des Sciences de l'Art)(2001 e 2003). Coordenou o Programa de Pós-Graduação em Música da UNESP - Instituto de Artes de 2007 a 2013 (duas gestões) e foi 1ª Secretária da ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música), de 2008 a 2011. No Instituto de Artes (UNESP-IA), coordena o DeMusica: Laboratório de Estudos em Estética Musical e Filosofia da Música(Projeto CNPq) e é Bolsista de Produtividade do CNPq - Nível 2

Lucas Paolo S. Vilalta é bacharel e mestrando em Filosofia pela FFLCH/USP. Pesquisa no mestrado a relação entre ética e ontogênese na filosofia de Gilbert Simondon. No campo da Filosofia da Música desenvolve atualmente artigos e ensaios que visam produzir uma reflexão sobre a ontologia das obras musicais. Trabalha também como pesquisador para a 456 produtora Neoplastique Ltda. na série "13 canções essenciais para compreender a História do Samba". É o atual diretor executivo do Instituto Outubro que realiza pesquisas e projetos em direitos humanos com o intuito do aperfeiçoamento das instituições democráticas.

Luigi Antonio Irlandini , compositor e instrumentista (piano, shakuhachi e percussão), é professor nos cursos de graduação e pós-graduação da UDESC em Florianópolis. Sua pesquisa se concentra no estudo da interação entre composição musical e conteúdos não-europeus e antigos, principalmente da Índia e Japão, tais como sistemas tonais, intonações, temporalidades musicais, rítmica complexa, improvisação e concepções do tempo filosóficas, cosmológicas e míticas.

Marcos Branda Lacerda nasceu em São Paulo em 1954. Estudou composição com Osvaldo Lacerda e Hans Joachim Koellreutter. Em Berlim realizou os estudos de Linguística e Musicologia com um doutorado sobre estruturação na musica africana (Fon e Iorubá). Aí manteve contacto com o compositor Nikolaus A. Huber. Hoje é professor de História da Música e Análise no Departamento de Música da Universidade de São Paulo e participa regularmente como compositor de diversos Sobre os autores encontros de música contemporânea no Brasil. Recebeu recentemente o prêmio Funarte de composição. Publicou em 2014 pela Edusp o livro Música instrumental no Benim: repertório fon e música bàtá.

Marcos Mesquita é compositor, pesquisador, flautista e arranjador. Estudos no Brasil, Áustria e Alemanha. PhD pela Universidade de Kalrsruhe. Publicações no Brasil, na Alemanha, Itália, França e nos Estados Unidos. Foi bolsista do DAAD, da FAPESP, Capes, Fundação Paul Sacher, Fundação Vitae e RioArte. Onze primeiros prêmios em concursos no Brasil e na Itália. Professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unesp.

Marcus Held é Bacharel em Música pela Faculdade de Artes Alcântara Machado (FIAM-FAAM) (2014), especializa-se em Música Antiga - Violino Barroco sob a orientação de Luis Otávio Santos, na Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP - Tom Jobim). Atualmente, é membro da Orquestra Barroca da 457 EMESP e aluno do curso de Mestrado em Música - Musicologia - no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (CMU-ECA-USP).

Paulo Tiné é Professor Doutor do Instituto de Artes da UNICAMP desde 2012 e líder do grupo de pesquisa “Transcriações Musicais”. Coordena os grupos musicais UNICAMP Big Band e o ENSEMBLE BRASILEIRO e é autor dos livros “Harmonia: Fundamentos de Arranjo e Improvisação” (2011/14) e “10 Peças para Violão: Solo brasileiro, anos 90” (2016), ambos pela editora “Rondó”.

Rafael Ramalhoso Alves Rafael Ramalhoso Alves é musicista e mestre em Musicologia pela Universidade de São Paulo, com a dissertação "A (re)composição do material musical em Musik für Renaissance-Instrumente de Mauricio Kagel", concluída em 2015, sob orientação do Prof. Dr. Cesar Villavicencio. Como violoncelista integra grupos de interpretação historicamente orientada e de música experimental.

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Rafael Sodré de Castro É doutorando em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. Possui mestrado em Artes (2016, dissertação intitulada A trilha sonora do cinema a partir de Hanslick) e graduação em Música pela Universidade do Estado de Minas Gerais (2010). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Composição Musical para Audiovisual e em Educação, atuando profissionalmente como músico e professor.

Raimundo Rajobac é professor efetivo no Departamento de Música da UFRGS. Vice-diretor do Instituto de Artes da UFRGS (2014). Mestre e Doutor em Educação, possui Graduação em Música, Filosofia e Teologia. Seus estudos e pesquisas concentram-se nas seguintes áreas: Estética e Filosofia da Música; Filosofia da Educação Musical; Hermenêutica, Música e Formação (Bildung).

Rainer Patriota é bacharel em música (violão) pela UFPB e 458 doutor em filosofia (estética) pela UFMG. Atua como músico, tradutor e pesquisador no terreno da filosofia e da estética musical. É professor pelo PNPD no Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Renato Cardoso é Doutorando em música pelo PPG em Música da UNESP – Instituto de Artes. Mestre e bacharel em música pela mesma instituição, período em que fez parte do Grupo PET-Música, no qual desenvolveu inúmeras atividades de ensino, pesquisa e extensão. Formado em guitarra elétrica pela Universidade Livre de Música (ULM-SP). Apresenta-se em recitais solo e em grupo de câmara como violonista e é compositor e arranjador do grupo Espírito do Tempo.

Rodrigo Lopes é doutorando em Música pelo PPG em Música da UNESP-Instituto de Artes. Graduado em Composição e Regência pela UNESP – Instituto de Artes em 2010 e mestre em Música (2014) pela mesma instituição, desde 2011 cursa a graduação em Letras Clássicas - Grego Antigo - pela FFLCH/USP. De 2011 a 2013 estudou Cravo, Baixo Contínuo e Música de Câmara na classe de Maria Eugênia Sacco no Conservatório Dramático e Musical Dr. Carlos de Campos, de Tatuí (SP). É autor de “O Sobre os autores

Conceito de Imitação na Ópera Francesa no Século XVIII” (Ed. Cultura Acadêmica, 2015).

Silvano Fernandes Baia é doutor em História Social pela FFLCH- USP (2010), mestre em Música pelo IA-UNESP (2005) e bacharel em Música com habilitação em violão pela mesma instituição (2001). Realizou estágio de pós-doutorado no King´s College London (2014/2015). É professor no IA-UFU e autor do livro A historiografia da música popular no Brasil: análise crítica dos estudos acadêmicos até o final do século XX .

Tiago de Lima Castro é Graduado em filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo. É violononista e atualmente cursa o mestrado em Música no PPG em Música da UNESP-Instituto de Artes, sob a orientação da Profa. Dra. Lia Tomás.

Verlaine Freitas possui graduação (1994), mestrado (1996) e doutorado (2001) em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais; fez estágio de Pós-doutorado na University of 459 Windsor, Canadá (2011). Atualmente é professor associado da UFMG e pesquisador do CNPq. É autor do livro "Adorno e a arte contemporânea", além de organizador de outras obras sobre estética. Traduziu textos de autores alemães e de língua inglesa. Trabalha principalmente os temas: estética, psicanálise e cultura de massa, abordando as obras de Immanuel Kant, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Theodor Adorno.

ISBN: 978-85-63046-05-5