Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Elis Facchini

“Toda mulher em liberdade é um perigo”: A Pia União das Filhas de Maria no município de Nova Trento-SC

Mestrado em Ciência da Religião

São Paulo 2019 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Elis Facchini

“Toda mulher em liberdade é um perigo”: A Pia União das Filhas de Maria no município de Nova Trento-SC

Mestrado em Ciência da Religião

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciência da Religião - área de concentração Estudos Empíricos da Religião, sob orientação da professora Dra. Maria José Fontelas Rosado Nunes.

São Paulo 2019

Banca Examinadora:

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A todos os meus antepassados e, em especial, à minha avó, Maris Stella Cadorin Dalri (in memorian), por ter me ensinado que a vida pode ter um pouco mais de ternura e amor. À minha família, especialmente meus pais, Genésio e Zaide, que sempre me incentivaram a prosseguir com os estudos. Ao meu marido, Paulo, que está presente em todos os momentos.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)/PROSUC e Fundação São Paulo, entre os anos de 2017-2019. Código de financiamento no 88887.199021/2018-00.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)/PROSUC and Fundação São Paulo, between the years of 2017-2019. Finance Code no 88887.199021/2018-00.

AGRADECIMENTOS

Muitas vezes palavras não são suficientes para expressar nossos mais sinceros sentimentos de gratidão. São muitas pessoas que estiveram envolvidas com a gente ao longo da nossa trajetória acadêmica, especialmente no mestrado. Mas pretendo condensar as pessoas e instituições que foram muito importantes para a conclusão deste trabalho. Primeiramente, meu sincero agradecimento à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), juntamente com a Fundação São Paulo (FUNDASAP) por terem me agraciado com a bolsa de estudos. Sem este auxílio, jamais conseguiria realizar este curso e finalizá-lo. À Paróquia São Virgílio de Nova Trento (SC), que me possibilitou o acesso aos livros de atas e outros documentos das Filhas de Maria, manuscritos entre os de 1902 e 1964. À Rosiana, da cidade de -SC, que num gesto de profundo carinho me cedeu o xerox de um livro raro, já que este não existe mais, nem mesmo em sebo. Ao Rodrigo Sartoti, que me enviou a cópia de um outro livro sobre Nova Trento, este também bastante antigo, que eu pensei nunca mais encontrar. E ao André Martinello, namorado da minha amiga, Magali Moser, que me indicou das muitas obras que estão nesta dissertação. Muito obrigada por este gesto lindo de vocês! Às minhas quatro queridas entrevistadas e ao meu único entrevistado, Renzo. Com a ajuda de todas/os vocês, foi possível que eu estruturasse este texto! Agradeço as longas conversas, os cafés, o carinho, as palavras de incentivo para que eu não desistisse. Muito obrigada! Ao meu marido, Paulo, que não me permitiu desistir, embora em muitos momentos eu quisesse fazer isso. Foi ele quem me incentivou a voltar aos estudos, a entrar novamente na universidade e que, durante esta trajetória acadêmica, comprou muitos dos livros que eu precisava para finalizar esta dissertação! Te amo e te quero muito bem! À minha família, que sempre me incentivou a estudar – desde os primeiros anos do colégio até a faculdade – e que acreditou em mim. Palavras de agradecimento são poucas aqui para expressar minha gratidão e amor. A todos os professores do curso de Ciência da Religião e, em especial, à Zeca – Maria José Fontelas Rosado Nunes, que abraçou a minha pesquisa com muito carinho. Fico muito grata e honrada de ter sido sua aluna e de ter você como minha orientadora! Aos professores que estiveram presentes na minha banca de qualificação: Ênio da Costa Brito e Brenda Carranza. Suas contribuições foram fundamentais para que eu desse prosseguimento na escrita e na organização textual! Agradeço também o fato de vocês aceitarem participar da minha banca (oficial): será uma honra tê-los novamente neste momento tão significativo da minha vida! Um agradecimento muito especial, ao professor Fernando Torres-Londoño, que me possibilitou enxergar com outro olhar a história da Companhia de Jesus, retratada brevemente aqui. E ao professor e coordenador deste curso, Frank Usarski, por ter me indicado algumas obras sobre teoria da transplantação religiosa. Muito obrigada por toda força e pelo conhecimento compartilhado! À Andreia Bisuli de Souza, secretária deste curso, sempre muito solícita e atenta a todos os prazos. Qualquer ajuda ela sempre nos atendia com muita educação e carinho! Fico feliz por ter te conhecido ao longo dessa trajetória! Muito obrigada! À minha psicóloga, Janete, que ingressou na minha vida no meio da correria do mestrado, me apontando caminhos, me fazendo refletir sobre inúmeros acontecimentos e me segurando na mão (embora não fisicamente). Sua ajuda foi primordial para que eu conseguisse vencer meus medos, minhas angústias, a ansiedade e o stress. Sem palavras para expressar minha gratidão por sua contribuição nesta fase final! Agradeço, também, a todos os professores de língua italiana que passaram por mim ao longo dos últimos anos: ao meu primo, Juliano Martins Mazzola, à Valdirene Dalla Brida e à Kamila Trainotti. Esta última, minha grande amiga, que sempre atendeu aos meus chamados quando eu tinha alguma dúvida com o italiano e/ou o dialeto, muito solícita e muito carinhosa, e que me ajudou na tradução do resumo! Muito obrigada por todas as tuas contribuições. À Manuela Ribeiro, que no período de conclusão desse texto me apontou caminhos que eu não havia percebido até aquele momento. Sua cooperação foi muito importante para que eu chegasse até aqui! Muito obrigada! E, a todos os colegas – do mestrado e do doutorado também – que, de alguma forma, passaram por mim durante o curso de Ciência da Religião. Em especial, quero agradecer às pessoas que me ajudaram durante o processo de construção desse texto: Marco Antônio de Sá, Sabrina Alves e Ana Trigo. E, um agradecimento caloroso à minha colega de turma, Solange, e à minha amiga, Silvia Geruza, que me ajudaram na tradução (para o Inglês) do resumo. Abraços em todos, muito obrigada e até breve!

“Porque há uma história que não está na história e que só pode ser resgatada apurando o ouvido e ouvindo os sussurros das mulheres” (Rosa Montero)

FACCHINI, Elis. “Toda mulher em liberdade é um perigo”: A Pia União das Filhas de Maria no município de Nova Trento-SC. 2019. 212 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo: 2019.

RESUMO

A Pia União das Filhas de Maria foi uma instituição vinculada à Igreja Católica com a proposta de congregar mulheres solteiras, promover as virtudes cristãs e preservar a pureza com a proteção da Virgem Maria e de Santa Inês. A pesquisa cumpriu dois objetivos maiores: preservar a memória de mulheres que participaram desta entidade, no município de Nova Trento, Estado de , especialmente entre os anos de 1902 e 1964, período em que a entidade esteve ativa, investigando a atuação desta perante essas senhoras e suas descendentes. E mostrar como as Filhas de Maria absorvem os princípios da moral católica repressora e se submetem ao controle da Igreja, mas, ao mesmo tempo encontram formas de transgredir algumas regras, de contestá-las e aproveitar o espaço de socialização que significavam as reuniões e outras atividades da organização. A pesquisa adentrou nesse mundo ambíguo da religião. Foram utilizados três métodos de análise: documental, buscando informações mais detalhadas nos livros de atas e no manual da associação; pesquisa de campo, por meio de entrevistas semiestruturadas com questões em aberto, iniciadas após prévia aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa e consentimento esclarecido oral das entrevistadas e do entrevistado. Foram realizadas quatro entrevistas com mulheres – ex-participantes da instituição referida, e um homem, o sociólogo italiano Renzo Maria Grosselli; e, por fim, a bibliográfica, nas áreas de Ciência da Religião, Gênero, Sociologia, História, Filosofia e Psicologia. Para examinar todo este material, foram utilizados os recursos oferecidos pelo método de análise de conteúdo. Ao concluir, pode-se dizer que ao estudar as Filhas Maria, observa-se um forte disciplinamento, que afetou profundamente a vida afetiva, familiar e social dessas mulheres. Porém, mesmo diante destas relações complexas, elas encontraram brechas para transgredir as regras a que eram submetidas. Encontra-se, assim, um cenário bastante contraditório e, ao mesmo tempo, muito interessante: as participantes desta associação ora seguiam com firmeza todas as determinações estabelecidas pela Igreja Católica, sendo seu espaço social e de encontro, ora optavam pela transgressão das regras e assumiam sua autonomia.

Palavras-chave: Filhas de Maria – Disciplinamento – Transgressão – Igreja Católica – Nova Trento

FACCHINI, Elis. “Every woman in freedom is a danger”: The Pia Union of the Daughters of Mary in the county of Nova Trento- SC. 2019. 212 f. Dissertation (Master of Science in Religion) - Post-graduate Program in Religion Science, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo: 2019.

ABSTRACT

The Pia Union of the Daughters of Mary was an institution connected to the Catholic Church with the intent to congregate single women, promoting Christian virtues and preserving purity with the protection of the Virgin Mary and Saint Agnes. The research accomplished two major objectives: to preserve the memory of women who participated in this entity, in the municipality of Nova Trento, State of Santa Catarina, especially between the years 1902 and 1964, during which the entity was active, investigating those ladies and their descendants, and to show how the Daughters of Mary absorbed the principles of the repressive Catholic morality and submitted to the Church control, but at the same time they found ways to infringe some rules, to challenge them and to take advantage of the space of socialization that the meetings and other activities meant. Thus, the research has entered into the ambiguous world of religion. We used three methods of analysis: documentary, searching for more detailed information in the books of the minutes and in the manual of the association; field research, through semi-structured interviews with open questions, initiated after prior approval of the Research Ethics Committee, and informed oral consent of the interviewed and the interviewer. Four interviews were conducted with women - former participants of the referred institution, and one man, the Italian sociologist Renzo Maria Grosselli; and, finally, the bibliographical, in the areas of Religion Science (Religion Studies), Gender, Sociology, History, Philosophy and Psychology. We also used the resources offered by the content analysis method to examine the material. In conclusion, we can affirm that we found a strict discipline that deeply affected the daughters of Mary’s lives in their family, and in their emotional and social dimensions. However, even in the face of these complex relationships, they found loopholes to transgress the rules to which they were subjected. That is a very contradictory and at the same time interesting scenario: at times, the participants of that association thoroughly complied to all the rules established by the Catholic Church, which was their social and meeting space, and at other times they opted for the transgression of the rules and took control of their autonomy.

Key words: Daughters of Mary – Discipline – Transgression – Catholic Church – Nova Trento

FACCHINI, Elis. “Ogni donna in libertà è un pericolo”: La Pia Unione delle Figlie di Maria nel comune di Nova Trento-SC. 2019. 212 f. Tesi di laurea (Master in Scienza della Religione) - Programma Post-laurea in Scienza della Religione, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo: 2019.

RIASSUNTO

La Pia Unione delle Figlie di Maria era un'istituzione legata alla Chiesa Cattolica con la proposta di unire le donne single, promuovere le virtù cristiane e preservare la purezza con la protezione della Vergine Maria e di Santa Agnese. La ricerca ha raggiunto due obiettivi principali: preservare la memoria delle donne che hanno partecipato a questa entità, nel comune di Nova Trento, nello stato di Santa Catarina, in particolare tra gli anni 1902 e 1964, durante i quali l'entità era attiva, indagando il suo ruolo nella vita di queste signore e dei loro discendenti. E mostrare come le Figlie di Maria assorbono i principi della morale cattolica repressiva e si sottomettono al controllo della Chiesa, ma allo stesso tempo trovano il modo di trasgredire alcune regole, sfidarle e approfittare lo spazio di socializzazione che erano gli incontri e le altre attività dell'organizzazione. La ricerca è entrata in questo ambiguo mondo della religione. Sono stati utilizzati tre metodi di analisi: documentario, alla ricerca di informazioni più dettagliate nei libri dei verbali e nel manuale dell'associazione; ricerca sul campo, attraverso interviste semi-strutturate con domande aperte, iniziate dopo l’approvazione del Comitato Etico della Ricerca e con il consenso orale delle intervistate e dell'intervistato. Quattro interviste sono state condotte con donne - ex partecipanti dell'istituzione citata, e un uomo, il sociologo italiano Renzo Maria Grosselli; e, infine, la bibliografia, nelle aree della Scienza della Religione, Genere, Sociologia, Storia, Filosofia e Psicologia. Per esaminare tutto questo materiale, sono state utilizzate le risorse offerte dal metodo di analisi del contenuto. In conclusione, studiando le Figlie Maria, si osserva un forte disciplinamento, che ha influenzato profondamente la vita affettiva, familiare e sociale di queste donne. Ma anche di fronte a queste relazioni complesse, hanno trovato delle scappatoie per trasgredire le regole a cui erano soggette. Questo è uno scenario molto contraddittorio e allo stesso tempo molto interessante: le partecipanti di questa associazione in determinati momenti seguivano tutte le determinazioni stabilite dalla Chiesa Cattolica, essendo il loro spazio sociale e d’incontro, ed in altre ocasioni decidevano trasgredire le regole, assumendo la loro autonomia.

Parole chiave: Figlie di Maria – Disciplinamento – Trasgressione – Chiesa Cattolica – Nova Trento

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Foto de um dos primeiros “barracões” construídos em Nova Trento, em 1875. Percebe-se que não há mulheres nesta foto ...... 35 Figura 2 – Registro do Monte Barão de Charlach – o mais alto do município, com 1.148 metros. Na virada do século 19 para o século 20, os montes mais altos receberam cruzes como esta ...... 50 Figura 3 – Fita e medalha das aspirantes à Filha de Maria, década de 1950, em Nova Trento – parte da frente – pertencente à Elvira ...... 72 Figura 4 – Fita e medalha das Filhas de Maria, ano de 1957, em Nova Trento – parte da frente – pertencente à Elvira ...... 74 Figura 5 – Fita e medalha das Filhas de Maria, ano de 1957, em Nova Trento – parte de trás – pertencente à Elvira ...... 75 Figura 6 – Primeira página do livro de registros das aspirantes – Registro delle Aspiranti alla Pia Unione delle Figlie di Maria, com início em 1902 ...... 88 Figura 7 – Primeira ata do Diário da Pia União das Filhas de Maria de Nova Trento, datada de 01 de novembro de 1903 ...... 91 Figura 8 – Filhas de Maria da década de 1950, ao lado da Igreja Matriz São Virgílio, em Nova Trento. Elas usam vestido especial, completamente branco, com mangas até o punho e saias abaixo do joelho. A fita azul, com a medalha na ponta, é ostentada em seus colos ...... 118 Figura 9 – Igreja Matriz São Virgílio, década de 1940. Destaque para os fundos da igreja, onde situava-se a Cappella della Madonna del Buon Consiglio, na qual as Filhas de Maria se reuniam. Esta capela foi demolida na década de 1980, quando foi aberta a rua dos Imigrantes ...... 126 Figura 10 – As Filhas de Maria reúnem-se para uma nova foto, desta vez com um vestido confeccionado especialmente para o trabalho voluntário que estavam prestando em uma das festas da Paróquia São Virgílio. A saia foi feita com tecido de chita, e a manga é mais curta que a habitual. Década de 1950, Nova Trento ...... 128 Figura 11 – As Filhas de Maria são flagradas pelo fotógrafo Amadeu, na descida do Morro da Cruz, sul monte da onça. Década de 1950, Nova Trento ...... 131 Figura 12 – Uma das entrevistadas, após o matrimônio, utiliza a fita azul de Filha de Maria. A tradição era retirar a faixa após a cerimônia religiosa. Década de 1950, Nova Trento ...... 138 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13 CAPÍTULO 1 – A CONSTRUÇÃO SOCIORRELIGIOSA DE NOVA TRENTO ...... 23 1.1 – O povoamento no Sul do Brasil e em Nova Trento ...... 25 1.1.1 A questão da transplantação ...... 36 1.2 – O contato com os povos originários ...... 39 1.3 – A construção de uma cultura religiosa em Nova Trento ...... 41 1.4 – A chegada da Companhia de Jesus ...... 46 1.5 – A constituição das escolas para a formação religiosa ...... 51 CAPÍTULO 2 – ASCENSÃO E QUEDA DAS FILHAS DE MARIA ...... 57 2.1 – A liderança de Amábile Lúcia Visintainer ...... 57 2.2 – A criação das Filhas de Maria em Nova Trento ...... 60 2.3 – O Manual da Pia União das Filhas de Maria ...... 69 2.3.1 A primeira parte: os estatutos das Filhas de Maria ...... 70 2.3.2 A parte final dos estatutos: as indulgências ...... 78 2.3.3 Segunda e terceira partes: os cerimoniais e o devocionário ...... 81 2.4 – Vigiar é preciso: os livros de atas da associação ...... 83 2.4.1 O diário das atividades e o livro de consultas: as condutas de uma “boa” Filha de Maria ...... 90 2.4.2 O protesto de fidelidade e a queda das Filhas de Maria...... 99 CAPÍTULO 3 – AS FILHAS DE MARIA: LEMBRANÇAS E VIVÊNCIAS SOCIORRELIGIOSAS ...... 105 3.1 – A medida dos cabelos ...... 107 3.2 – “A virtude da delicadeza”: a mulher constantemente cerceada ...... 109 3.3 – O uso das roupas brancas, do véu e da fita ...... 113 3.4 – “Deus me livre alguma de vocês dançar” ...... 120 3.5 – Práticas comuns de uma “verdadeira” Filha de Maria ...... 124 3.6 – O contato com a Itália e a Santa Sé ...... 132 3.7 – Vida religiosa ou vida leiga? O dilema em optar pela vida consagrada ou pela vida de mulher casada ...... 135 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 141 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 145 FONTES DE PESQUISA ...... 151 APÊNDICES ...... 154 Apêndice A ...... 154 Apêndice B ...... 155 Apêndice C ...... 156 13

INTRODUÇÃO

Falar de religiosidade e falar de Nova Trento, para mim, é praticamente a mesma coisa. Nova Trento, município localizado no estado de Santa Catarina, recebe hoje o título de Capital Catarinense do Turismo Religioso1, e não é em vão: é a única cidade do país que possui dois santuários religiosos: o de Santa Paulina e o de Nossa Senhora do Bom Socorro, este último localizado a 525 metros de altitude, que foi erguido com força dos imigrantes trentino-italianos (tiroleses), que levaram para este monte uma imagem de Nossa Senhora com mais de 700 quilos, ainda no início do século 20 – época em que não havia roldanas e muito menos guindastes para carregá-la até o alto. Além disso, o município concentra pouco mais de 20 capelas e igrejas, espalhadas por toda sua extensão territorial. E, num contexto de apenas 14 mil habitantes, diria que este número é bastante expressivo. Em Florianópolis, por exemplo, apenas para fazer um pequeno comparativo, existem 19 paróquias2, num espaço de pouco mais de 400 mil habitantes3. Nasci e me criei em Nova Trento. E, desde jovem, aprendi que a religiosidade4 faz parte do dia a dia da comunidade, que está tão entrelaçada com as pessoas que é difícil discernir uma da outra. Tomo como exemplo minha falecida avó, Maris Stella Cadorin Dalri, que atuou como benzedeira e sempre esteve envolvida com a Igreja Católica. Foi ela quem me ensinou que a religião foi passada de geração para geração na família. E foi “Dona Stella” que me apresentou às Filhas de Maria e me fez compreender que nossa família sempre esteve envolvida com esta entidade. No início, não entendia muito bem suas histórias, ficava maravilhada (ou espantada) com as proibições a que eram submetidas, e nunca me esqueci desta frase dela: “a gente arrotava vela de tanto que a gente ia na missa”.

1 Projeto de Lei (no 136/10), de 2010, aprovado pela Assembleia Legislativa do estado de Santa Catarina. Hoje o município recebe aproximadamente 45 mil turistas e visitantes por mês, segundo dados da SANTUR (Santa Catarina Turismo S/A, do governo do estado), cuja pesquisa foi realizada em julho/2018. Informações disponíveis em: , acesso em 20 de março de 2019. A maioria vem em visita ao Santuário Santa Paulina, considerada a primeira santa do Brasil, canonizada pelo Papa João Paulo II, em 19 de maio de 2002. 2 Informações colhidas do site da Arquidiocese de Florianópolis. Disponível em: , acesso em 14 de março de 2019. 3 O último censo realizado em 2010, em Florianópolis, contabilizou 421.240 habitantes, conforme informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: , acesso em 14 de março de 2019. 4 Há uma diferença entre os termos religiosidade e religião. A primeira refere-se a um sentimento, algo que você vivencia em seu dia a dia, na prática, enquanto que a segunda refere-se a uma escolha, um sistema simbólico, sendo que pode se compor de várias dimensões, cumprindo funções individuais e sociais (USARSKI, 2006, p.125). 14

Atuando como jornalista, entre 2001 e 2003, fui percebendo que muitas pessoas a minha volta – especialmente meus amigos, com a mesma idade que eu – não sabiam o que eram e o que foram as Filhas de Maria. Mas analisando sociologicamente a atuação desta entidade entre mulheres como a minha vó, percebi que ela tinha muita influência na formação das futuras famílias neotrentinas e, principalmente, agia fortemente com as moças, ou as futuras senhoras. Por isso, ao findar o curso de Jornalismo, na Univali, em Itajaí-SC, decidi que iria trazer à tona as histórias dessas mulheres. A proposta era resgatar essa memória, um tanto esquecida pela comunidade, já que as Filhas de Maria haviam finalizado suas atividades ainda na década de 1960 do século passado, ou seja, há pouco mais de 50 anos. Muitas pessoas a minha volta se surpreenderam com a escolha do tema, pois, afinal, por que revirar o passado? Por que era tão importante contar as histórias dessas mulheres? O Trabalho de Conclusão do Curso, com a proposta de livro-reportagem chamou atenção da banca à época e foi indicado para publicação. Concretizei o sonho da obra impressa apenas 12 anos depois da minha formação em Jornalismo, ou seja, em 2017. Naquela ocasião, o tema ganhou repercussão na mídia local e regional. A imprensa me questionou quanto ao tema escolhido. E as minhas respostas se concentravam no seguinte: a proposta era dar vez e voz a essas mulheres que sequer foram ouvidas, ou nunca foram percebidas pela comunidade, que sempre deu mais atenção aos homens ou a pesquisas realizadas por eles. Mulheres simples, que dedicaram boa parte de suas vidas ao trabalho doméstico ou “da roça”; mulheres voltadas à vida religiosa, ora como leigas, ora como religiosas; mulheres dedicadas à casa, ao marido e aos filhos; mulheres que, com certeza, tiveram participação decisiva na construção da família, da sociedade. Após este período do lançamento do livro-reportagem, que culminou, inclusive, com a apresentação da pesquisa na cidade de Altopiano della Vigolana, no Trentino Alto-Ádige (Itália), em julho de 2017, a ideia de ingressar no mestrado em Ciência da Religião chegou em um bom momento. Era hora de voltar à pesquisa sobre as Filhas de Maria, mas dessa vez com um novo olhar: com o recorte de gênero e da Ciência da Religião. A minha grande preocupação, no entanto, era encontrar as fontes: mulheres que, porventura, tivessem participado da entidade e se colocassem à disposição para novas entrevistas, já que grande parte das minhas primeiras entrevistadas havia falecido. Não demorou muito para que elas aparecessem: o livro lançado recentemente mexeu um pouco com as “moças” que participaram da instituição. Muitas delas – que eu nem conhecia – mantiveram contato para comentar sobre o texto e propor uma conversa. Claro, as mulheres que participaram das Filhas de Maria na fase mais aguda – com regras mais rígidas e cobranças mais austeras – não estavam mais entre nós – décadas de 1930 15 e 1940, principalmente. Algumas delas foram retratadas no meu livro-reportagem. Restaram as participantes da década de 1950, ou seja, as últimas vivas que ainda podem contar um pouco desse passado não tão longínquo. Foi em meio ao relato dessas mulheres que iniciei o trabalho de pesquisa no mestrado, procurando, então, envolver os elementos do campo empírico-religioso com as discussões científicas, especialmente àquelas relacionadas ao disciplinamento de corpos5 e à punição. As Filhas de Maria, antes de tudo, foram mulheres dedicadas integralmente à vida da comunidade religiosa, muito embora fossem leigas e não frequentassem uma congregação do tipo confessional. Elas deveriam seguir à risca as determinações impostas pela família e pela Igreja Católica. Entre as principais regras estavam: não cortar o cabelo, não assistir aos jogos de futebol, não usar saias acima dos joelhos, não usar mangas curtas, não dançar, não andar de bicicleta – depois esta ordem foi abdicada – não responder aos pais e aos avós, ir à missa sempre que possível, e assim por diante. Parti, então, do pressuposto – hipótese do trabalho – que, diante da forte atuação das Filhas de Maria, essas mulheres foram “moldadas”, seguindo o ideal católico daquela época: “promover as virtudes cristãs e preservar a pureza com a proteção da Virgem Maria e de Santa Inês” (FACCHINI, 2017, p. 53). A proposta era, então, analisar a Pia União das Filhas de Maria de Nova Trento, especialmente entre os anos de 1902 e 1964, período em que ela esteve ativa, investigando a atuação perante essas senhoras e suas descendentes. Diante deste vasto campo empírico que se descortinou, o trabalho de dissertação possuía dois grandes objetivos: primeiramente, preservar a memória de mulheres que participaram desta entidade; e segundo, mostrar como as Filhas de Maria absorvem os princípios da moral católica repressora e se submetem ao controle da Igreja, mas, ao mesmo tempo encontram formas de transgredir algumas regras, de contestá-las e aproveitar o espaço de socialização que significavam as reuniões e outras atividades da organização. Para alcançar estes objetivos gerais, elencaram-se alguns objetivos específicos: → contextualizar como ocorreu a construção sociorreligiosa do município de Nova Trento; → investigar, nos livros de atas e no Manual das Filhas de Maria, as particularidades da atuação dessa entidade junto à comunidade; → registrar, através da oralidade, os relatos colhidos da memória social dessa comunidade; → investigar as influências da Igreja Católica e a construção da vocação religiosa entre essas mulheres e suas descendentes, por meio de entrevistas;

5 Segundo Michel Foucault (1987), ocorreu um disciplinamento dos corpos, para regular a população; são intervenções que visam todo o corpo social em questão. 16

→ explicar como estas mulheres tiveram suas vozes silenciadas ao longo desses anos. A proposta foi bastante ousada e, até robusta, uma vez que mexer com o campo empírico requer preparo, jogo de cintura, uma dose de coragem e muita paciência. Entrevistar idosas traz à tona inúmeras histórias, até mesmo aquelas que não fazem parte do seu objeto de pesquisa. Mas, de qualquer forma, é muito gratificante ouvi-las, revirar este passado e fazer com que elas confiem na sua própria fala6, expressem seus sentimentos, seus anseios, seus sonhos não alcançados. Ao adentrarmos no campo da memória, percebemos como o idoso tem a função social de lembrar e aconselhar, conforme escreveu Marilena Chauí no prefácio do livro Memória e Sociedade, de Ecléa Bosi (1994, p. 18). E ela continua: “Por que temos que lutar pelos velhos? Porque são a fonte de onde jorra a essência da cultura” (Ibidem, p. 18). Para a pesquisadora, o velho numa sociedade capitalista como a nossa, sobrevive – muitas vezes é impedido de lembrar e sofre os mais diversos tipos de adversidades. Por isso, realizar um trabalho de pesquisa envolvendo memória e idosos nos tempos atuais é como concretizar um ato revolucionário. Segundo Chauí, decaiu muito a arte de contar histórias. “‘Talvez porque tenha decaído a arte de trocar experiências’. Porque matamos a sabedoria” (CHAUÍ, In: BOSI, 1994, p. 28). O velho é alguém que se retrai em seu lugar social e, por isso, trazê-lo à luz é possibilitar que ele traga sua contribuição e sua sabedoria para o grande grupo. Produzimos, assim, com esta dissertação, uma espécie de obra de arte. Para obter o máximo proveito das entrevistas, foi elaborado um roteiro semiestruturado7, para captar as principais informações dessas mulheres. No entanto, ao me aproximar do objeto, surgiam outras perguntas, outros questionamentos que, com certeza, não foram deixados de lado no momento do diálogo. Assim, foi possível assimilar muitos outros detalhes que, se estivesse num roteiro muito rígido, não seria possível observar. O roteiro prévio das entrevistas está disponível no Apêndice A desta dissertação. As entrevistadas e um entrevistado foram delimitados a um grupo de cinco pessoas, ainda na fase de construção do projeto, no primeiro semestre do mestrado. Primeiramente porque precisava estabelecer um recorte com um número máximo de pessoas, para compor o projeto perante o Comitê de Ética em Pesquisa. E, segundo, porque o tempo para finalizar o

6 Esta explicação tem inspiração em Paul Thompson, em A Voz do Passado (1998). 7 O termo significa que as entrevistas contaram com uma série de perguntas abertas, ou seja, foi elaborado um roteiro prévio de perguntas, mas o entrevistado e as entrevistadas tiveram grande liberdade para responder às questões e comentar sobre outros assuntos relacionados ao tema, de acordo com suas perspectivas. 17 mestrado era curto e não me permitiria avançar ainda mais na pesquisa de campo. Acredito que, num futuro doutorado, isso poderá ser feito um maior número de pessoas. No universo dessas cinco pessoas, quatro delas são mulheres que participaram da Pia União das Filhas de Maria em Nova Trento. Como cheguei até elas? Duas delas estiveram presentes no lançamento do meu livro-reportagem, porque estavam retratadas na capa da minha obra. Assim, em conversa informal, elas se colocaram à disposição para o diálogo. Lembrando que nenhuma delas participou da primeira pesquisa da graduação – levei em consideração a questão do autoplágio, reforçado pela academia. As outras duas mulheres surgiram ao longo da pesquisa, por indicação de amigos ou familiares próximos. Interessante é que, em nenhum momento, eu estabeleci um recorte específico, comum num trabalho socioantropológico, e as entrevistas se encaixaram perfeitamente, levando sempre em consideração a participação – ativa ou não – nas Filhas de Maria. Optamos por manter em sigilo os nomes das entrevistadas e, assim, todas elas receberam um pseudônimo. Um breve perfil – com um quadro resumo – e o conteúdo completo das entrevistas pode ser conferido nos Apêndices B e C desta dissertação. Para completar este bloco de cinco entrevistas, optei por incluir o diálogo estabelecido com o italiano Renzo Maria Grosselli, sociólogo, jornalista e doutor em História que esteve no Brasil no mês de abril de 2018, realizando um ciclo de conferências em diversas comunidades que possuem um número significativo de descendentes trentino-italianos e/ou tiroleses. Nova Trento foi a primeira cidade a receber a conferência, no dia 7 de abril do ano passado. Considerei interessante e oportuno entrevistar Grosselli, pois suas pesquisas – de cunho sociológico – retratam: os motivos do grande fluxo migratório da Europa para o Brasil, especialmente do Trentino; a análise de documentações – da saída da Itália e da chegada ao continente sul-americano, bem como o registro de boa parte dos imigrantes trentinos, vênetos e lombardos que se estabeleceram no Brasil e, principalmente, em Santa Catarina, entre 1875 e 1900. Em meio a todos esses dados, o sociólogo traz detalhes em suas obras – algumas já traduzidas para o português8 de que a religião foi o fio condutor de todo processo migratório. Isso, para mim, já era motivo suficiente para não perder a oportunidade de entrevistá-lo, tendo em vista que suas visitas ao Brasil ocorrem esporadicamente.

8 Renzo Maria Grosselli possui diversos livros lançados, mas podemos destacar estes: 1. Vincere o Morire - contadini trentini (veneti e lombardi) nelle foreste brasiliane – Santa Catarina 1875-1900. Trento, 1986; 2. Colonie Imperiali nella Terra del Caffè - contadini trentini (veneti e lombardi) nelle foreste brasiliane. Espírito Santo 1874-1900. Trento, 1987; 3. Dove cresce l’araucaria. Dal Primiero a Novo Tyrol - contadini trentini (veneti e lombardi) nelle foreste brasiliane. Paraná 1874-1940. Trento, 1989; 4. Da schiavi bianchi a coloni. Un progetto per le fazendas - contadini trentini (veneti e lombardi) nelle foreste brasiliane. São Paulo 1875-1914. Trento, 1991; 5. Noi Tirolesi Sudditi Felici di Dom Pedro II. Trento, 2008. Grande parte destas obras já estão traduzidas para o português, mas hoje encontram-se esgotadas, pois o lançamento ocorreu há mais de 30 anos. 18

Vale pontuar que todas as entrevistas foram gravadas, concomitantemente em que as anotações pessoais eram realizadas em um caderno à parte. O recurso foi utilizado para não se perder nenhum detalhe que, por ventura, poderia ocorrer se não fosse usado o gravador. Senti, em muitos momentos, que as mulheres ficavam um pouco intimidadas com o aparelho – principalmente no início da entrevista, mas depois se deixavam envolver pela conversa e, logo, abriam o cabedal de memórias. Em muitas situações, precisei voltar às perguntas para conseguir captar alguns dados mais detalhados desse passado. O medo de revelarem algumas particularidades era muito presente e perceptível nas transcrições das entrevistas, conforme é possível acompanhar no Apêndice. Devido à falta de pesquisas e/ou livros que retratem a história das Filhas de Maria em Nova Trento, a alternativa encontrada foi ter acesso – novamente – aos livros de atas da instituição, localizados atualmente na Paróquia São Virgílio do município. A secretaria da paróquia me possibilitou ficar alguns dias debruçada sobre estes livros (no total, são oito), num espaço reservado, que foi a sala de reuniões. Não tive permissão, desta vez, de levar esses documentos para casa – quando da pesquisa, em 2005, para o TCC da faculdade, isso me foi permitido. Por isso, optei por fotografar (página por página) dos manuscritos, até porque não poderia ir a Nova Trento com tanta frequência. Isso me deu uma certa autonomia, pois a qualquer momento poderia analisar ou colher alguma informação desses livros no conforto da minha casa. No entanto, minha dificuldade quanto a estes registros se concentrou na questão da língua. Até por volta da década de 1930, os documentos foram escritos em italiano. E, em grande parte das páginas, não era o italiano gramatical que estava aí retratado e, sim, o italiano dialetal, próprio da região de onde partiram os imigrantes, boa parte deles do Trentino e/ou do Vêneto. Por exemplo, as Filhas de Maria não utilizavam o termo “suora” para designar “freira”, mas, sim, o termo “moneche”, muito comum no dialeto praticado na minha cidade. O que me ajudou bastante, nesse sentido, foi a experiência que adquiri com o dialeto no período em que atuei como “ponto” no grupo de teatro dialetal Anima Trentina, e dos diálogos que tabulava com a minha vó, praticante do dialeto Vêneto. Em alguns outros momentos, quando não compreendia o que estava escrito, recorri aos amigos e parentes que são professores de língua italiana na minha cidade e fora dela. Além disso, outra dificuldade foi a caligrafia: as moças utilizavam-se das canetas- tinteiro para compor os manuscritos. E, por fazerem uso do “mata-borrão”, havia momentos nos livros de atas que era quase impossível compreender a escrita. Mas, aos poucos, com muita paciência e em conversa com algumas pessoas da comunidade, consegui descobrir o que estava 19 aí inserido, descortinando uma série de elementos e particularidades da história das Filhas de Maria e da própria cidade. Foi curioso para mim constatar em ata como as moças eram expulsas da associação – na frente de todas as participantes, cerca de 100 a 150 mulheres; descobrir como elas tiveram participação decisiva na construção da atual Igreja Matriz São Virgílio, realizando o bingo e promovendo festas para angariar recursos; como estas mulheres foram e são corajosas por enfrentar o clero e toda a pressão da sociedade em favor de um ideal que não era delas, mas de todo um conjunto de fatores e de imposições criadas ao longo de inúmeros anos entre a Igreja e a comunidade. São centenas de descrições – impossíveis de retratar todas, nesta dissertação – mas que foram fundamentais para a construção deste texto. Só posso agradecer à Paróquia por ter me permitido ter acesso a esses livros e contar um pouco dessas histórias aqui. Fez parte da pesquisa documental, também, a análise do pequeno Manual da Pia União das Filhas de Maria. Não era o manual extenso – com mais de 600 páginas – comumente presente nas bibliotecas das Filhas de Maria, mas o manual compilado, uma espécie de resumo, que elas levavam para a Igreja em todas as reuniões que frequentavam. Uma das minhas entrevistadas possuía um desses pequenos manuais – livrinho de bolso, datado da década de 1950 – mas ela não me permitiu ficar com ele durante a pesquisa. Por isso, tive que sair em busca de um desses raros livrinhos. Consegui adquirir um deles em um sebo on-line, pagando um valor alto, claro, por se tratar de uma obra rara. Este, por sua vez, foi editado em 1953, sendo a 24ª edição elaborada pelo frei Basílio Röwer: uma compilação contendo as principais orações, cerimônias e regras das Filhas de Maria. Por fim, as entrevistas – pesquisa de campo – também resultaram em uma série de informações, que refletem o modo de pensar, as características da sociedade da época, a memória dessas senhoras, entre outras singularidades que só são possíveis de conferir numa pesquisa qualitativa. Foi a partir daí que se iniciou a análise de conteúdo. Esta pode ser aplicada a tudo o que é dito em entrevistas ou depoimentos, bem como também nos livros de atas, em algumas cartas – que estão presentes nestes registros – em imagens e, inclusive, na comunicação não-verbal: gestos, posturas, maneiras de falar das entrevistadas. Com todo esse vasto conteúdo em mãos, era hora de analisar o material com base nas teorias previamente escolhidas, lidas e consultadas. Procurei efetuar a investigação – pesquisa bibliográfica – a partir de autores nas áreas de Ciência da Religião, Gênero, Sociologia, História, Filosofia e Psicologia. Para a hipótese do trabalho, encontrei respaldo nas teorias desenvolvidas pelo filósofo Michel Foucault, quando ele trata das questões sobre disciplinamento, poder, cuidado de si. Nesse sentido, os livros História da Sexualidade 3 (1985) e Vigiar e Punir (1987) foram os que 20 mais trouxeram subsídios para compreender como ocorreu o processo de repressão dessas mulheres – desde o século 17 até o século 20 – e como esse poder direcionou os hábitos e fez do corpo objeto de proibições/articulações do prazer. Além de Foucault, trouxe para esta dissertação teóricas feministas como a historiadora francesa Michelle Perrot (As mulheres ou os silêncios da história), a filósofa italiana Silvia Federici (Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva) e a cientista social, Raewyn Connell (Gênero em termos reais), proporcionando, assim, uma visão feminista sobre a história dessas mulheres e da minha própria cidade. O referencial teórico contou ainda com bibliografias da área da sociologia, com Zaíra Ary (Masculino e feminino no imaginário católico: da Ação Católica à Teologia da Libertação), Maurice Halbwachs (A memória coletiva) e Paul Thompson (A Voz do Passado: história oral); área da psicologia, com Vera Paiva (Evas, Marias, Liliths... As voltas do Feminino) e Ecléa Bosi (Memória e Sociedade: lembranças de velhos); e da área da teologia, com Uta Ranke- Heinemann (Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica) e Ivone Gebara (Mulheres, religião e poder: ensaios feministas). Para fechar este escopo de teorias, utilizamos pesquisas de diversos historiadores, que deram sustentação em inúmeros momentos da pesquisa. Aqui damos destaque à Maria Luiza Renaux e Luiz Felipe de Alencastro (História da vida privada no Brasil: Império); Peter Burke (Cultura popular na Idade Moderna); Roger Chartier (com textos sobre dominação e diferenças entre os sexos); Mary del Priore (Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia e Histórias das Mulheres no Brasil); Thomas Laqueur (Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud); Marilda Checcucci Gonçalves da Silva (Imigração italiana e vocações religiosas no Vale do Itajaí), além da feminista Rose Marie Muraro (Sexualidade da Mulher Brasileira: corpo e classe social no Brasil). Especificamente sobre a história de Nova Trento, diversos autores trouxeram subsídios para a escrita: Ivete Marli Boso (Entre passado e futuro: bilinguismo em uma comunidade trentino-brasileira); Jonas Cadorin (Nova Trento outra vez...); Renzo Maria Grosselli (Vencer ou Morrer); Ana Maria Marques (Nova Trento inCanto de fé); Walter Fernando Piazza (Nova Trento e A Igreja em Santa Catarina); Débora Izabela Ruberti (Vassoura, remédio e rosário); Vanessa Célis Ruberti (Per fare l’América: uma história de sonho, trabalho e fé) e Anderson Sartori (O cotidiano de Nova Trento durante o processo de construção da Igreja Matriz). Em suma, todo esse referencial teórico possibilitou responder às perguntas/problemas da pesquisa, que foram as seguintes: Como ocorreu a construção sociorreligiosa do município de Nova Trento? O que foram as Filhas de Maria e qual a sua influência na vida social das 21 mulheres? Como foi a atuação da Pia União em Nova Trento e de que forma esta afetou a constituição das famílias e de suas descendentes? Posto isso, no primeiro capítulo explico de que forma ocorreu a construção sociorreligiosa do município de Nova Trento, no Estado de Santa Catarina, alicerçado numa cultura religiosa muito forte, especialmente trazida pelos imigrantes provenientes do norte da Itália, em sua maioria. Essa explicação é fundamental e muito importante, tendo em vista que a primeira diretora e fundadora das Filhas de Maria de Nova Trento foi a imigrante Amábile Lúcia Visintainer, hoje conhecida como Santa Paulina, também fundadora da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. Contextualizo, ainda, neste primeiro capítulo, o contato dos imigrantes com os povos originários, a construção dessa cultura religiosa – que teve forte influência da Companhia de Jesus, que chegou na cidade praticamente junto com os italianos e com os outros grupos de etnias – além da constituição e a influência das escolas na formação religiosa da população. Por fim, trago para o foco a questão da transplantação, esclarecendo como o imigrante italiano ali instalado tentou reproduzir seu padrão de cultura e religião em solo brasileiro. Transplantou, assim, os costumes e as crenças religiosas – especificamente a religião católica – para o núcleo colonial que fora designado. Utilizamos, aqui, as teorias de Michael Pye (2013). Importante ressaltar que as Filhas de Maria não aparecem neste primeiro capítulo da dissertação. Considerei oportuno contextualizar, num primeiro momento, como foi formado o cotidiano de Nova Trento, entendendo que esse cenário foi decisivo para a criação, posteriormente, de diversas instituições, entre elas a Pia União. No segundo capítulo, aí sim é dado ênfase à história da Pia União das Filhas de Maria: desde sua criação, em Roma (século 12), e a sua fundação em Nova Trento, no início do século 20. Por conta da falta de uma literatura específica sobre este tema, buscamos aporte no Manual da Pia União, datado de 1953, que evidenciamos acima, bem como nos documentos da instituição neotrentina. Trouxermos à luz as muitas histórias relatadas nesses manuscritos – principalmente o Diário da entidade – entre os anos de 1902 e 1964. Aqui é importante destacar a preservação dessas narrativas – até mesmo para a posteridade – já que até o momento não havia ganhado destaque ou a devida valorização. O terceiro capítulo considero o coração deste projeto: nele esboço como foi a atuação das Filhas de Maria em Nova Trento e de que forma esta afetou a constituição das famílias neotrentinas e de suas descendentes, entrelaçado pelas histórias de vida das mulheres que aceitaram participar das entrevistas. Foi muito prazeroso constatar que, sem que houvesse uma combinação ou uma estratégia, as histórias dessas mulheres eram diferentes e muito 22 particulares: uma delas foi expulsa da instituição, uma outra atuou como Filha de Maria em outra cidade (), outra foi presidente, se destacando como líder da entidade e, por fim, uma simples congregada. Essa diversidade de histórias possibilitou que o capítulo final fosse construído com muita leveza e, ao mesmo tempo, com muita excentricidade. Concluindo, acredito que os dois primeiros capítulos são o alicerce para o terceiro, onde demonstro, com as entrevistas, como as Filhas de Maria foram realmente moldadas e encaminhadas para seguirem um projeto extremamente forte, que visava a criação de mulheres puras e castas, conduzindo-as – na maioria das vezes – para o casamento. Contudo, elas encontraram brechas para transgredir muitas das imposições, o que será possível observar através do relato dessas senhoras: ora elas trazem à memória a saudade dos tempos da juventude – seguindo à risca as regras da instituição, ora optavam pelo rompimento, assumindo suas autonomias. Por fim, destaco como surgiu a ideia do título deste trabalho. Ele foi modificado inúmeras vezes ao longo da pesquisa. Encontrei dificuldades para condensar, em poucas palavras, o verdadeiro teor desta dissertação. Mas, durante a última orientação com a Zeca, ela me permitiu enxergar uma frase importante, que está retratada no texto da historiadora Michelle Perrot: “Toda mulher em liberdade é um perigo” (2005, p. 447). O título, portanto, é uma citação desta escritora, presente no livro As mulheres ou os silêncios da história, e também mencionada aqui no texto. Despeço-me neste ponto, convidando você para a leitura desta dissertação. Como uma Filha de Maria que entrega sua fita azul e segue rumo a uma nova caminhada, ofereço este texto, a fim de que você possa conhecer um pouco mais sobre a vida dessas mulheres, que em muitos momentos abdicaram dos seus sonhos, dos seus objetivos, dos seus ideais, para cumprir com os princípios de uma educação familiar rígida, embasada nos valores cristãos da Igreja Católica. Boa leitura!

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CAPÍTULO 1: A CONSTRUÇÃO SOCIORRELIGIOSA DE NOVA TRENTO

Nova Trento é um pequeno município localizado no Vale do Rio , a aproximadamente 80 quilômetros da capital do estado de Santa Catarina, Florianópolis. Possui pouco mais de 14 mil habitantes, conforme informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)9. O município guarda forte vínculo com a religião católica desde a época de sua criação. Os imigrantes, em sua maioria oriundos da região norte da Itália10, hoje denominado Trentino Alto-Ádige, trouxeram na “bagagem” seus ritos, usos e costumes. Lá na Europa, homens e mulheres estavam intimamente ligados à religiosidade11 católica. A Igreja assumia com facilidade seu papel norteador da comunidade. Basta analisarmos a infraestrutura das pequenas cidades da região do Trentino e do Vêneto – de onde partiram a maioria dos imigrantes que colonizaram Nova Trento – para perceber que a religião era a instituição principal das cidades. Na Itália, cada pequeno vilarejo possuía, e ainda possui, a sua igreja e o seu santo protetor principal, ou padroeiro. Por exemplo, na comunidade de Vigolo Vattaro, local de nascimento de Amábile Lúcia Visentainer, Santa Paulina, a paróquia é dedicada a São Jorge (San Giorgio). Em Besenello, outro pequeno lugarejo do Trentino, a padroeira é Santa Ágata. Já a paróquia dedicada a São Roque (San Rocco) está localizada na cidade de Nave San Rocco, e a de São Vigilio (San Vigilio), bispo de Trento, até hoje é o padroeiro da capital do Trentino Alto-Ádige12. Interessante observar, nesse contexto, que os imigrantes trouxeram para o Brasil os seus respectivos santos de devoção, provenientes de suas cidades de origem. Na bagagem carregaram seus livros de oração (devocionários), quadros ou imagens de algum santo. Por isso, em cada bairro de Nova Trento encontramos uma igreja que fora construída por moradores de determinada região, com o padroeiro da vila de proveniência. No bairro Besenello, por exemplo, está a Capela Santa Ágata; no bairro São Roque, é onde está localizado o Oratório a São Roque; no bairro Vígolo, encontra-se a Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, mas que possui em seu interior uma imagem de São Jorge – mesmo santo padroeiro de Vigolo Vattaro, no

9 A população estimada, segundo dados do IBGE, é de 14.312 pessoas, numa área de 402,891 m2. Disponível em , acesso em 20 de fevereiro de 2019. 10 Importante ressaltar que quando a imigração se inicia (a partir de 1875), o Trentino Alto-Ádige não fazia parte da Itália e, sim, do Império Austro-Húngaro. O Trentino só foi integrado à Itália em 1919, após a primeira guerra mundial (RUBERTI, 1999, p. 20). 11 Como já mencionado, a religiosidade é um sentimento, algo que está manifestado fortemente em seu dia a dia. Ela consiste em uma série de ações/práticas que a pessoa dedica à sua religião. 12 A Diocese de Trento, Itália, possui hoje 452 paróquias, assistidas por mais de 400 sacerdotes. Informações disponíveis em , acesso em 23 de maio de 2018. 24

Trentino Alto Ádige. À época da colonização, os imigrantes renderam muita devoção à Nossa Senhora de Lourdes13 e, não por acaso, lutaram para conseguir uma imagem dessa santa para o bairro. E, por fim, mesmo não sendo a última, no centro da comunidade está a igreja dedicada a São Virgílio, que é hoje o padroeiro de Nova Trento14, da mesma forma que em Trento, na Itália. Além disso, as linhas do interior – uma forma que o governo, à época, registrava as demarcações dos terrenos – receberam nomes como Vígolo, Besenello, Valsugana, Vasca, Tyrol, Lombardia, ou seja, os imigrantes batizaram suas localidades com os mesmos nomes das cidades ou regiões que habitavam, outrora, na Europa. Não é de se estranhar que, em cada pequeno vilarejo formado, foram sendo edificadas igrejas e capelas batizadas com os nomes de seus santos de devoção. No total, há hoje mais de 20 igrejas, oratórios, capelas e Santuários religiosos – como o de Santa Paulina e o de Nossa Senhora do Bom Socorro – que traduzem bem este espírito religioso e devocional do povo neotrentino. Com base neste breve cenário, a proposta deste primeiro capítulo é explicar a construção sociorreligiosa desse município, contextualizando como ocorreu a vinda desses migrantes ao Brasil, a religião católica sempre tão entrelaçada com o cotidiano, o papel da mulher na construção desse espaço e na difusão dessa cultura religiosa, além da inserção da Companhia de Jesus como um dos fatores decisivos no controle/direcionamento dessa população. Neste capítulo também damos evidência à inserção da escola e a direta ligação com a formação religiosa da população. Com relação às mulheres, especialmente àquelas que depois passarão a fazer parte da Pia União das Filhas de Maria, a proposta é trabalhar em torno de como elas foram inseridas na formação da população, muito embora isso não receba a devida atenção por parte da população como um todo. Além disso, damos ênfase de como estas

13 As aparições de Nossa Senhora de Lourdes começaram em 11 de fevereiro de 1858, sendo que a Igreja Católica reconheceu estas manifestações por volta de 1860. Não por acaso, as/os imigrantes já trouxeram da Europa sua devoção à Virgem de Lourdes (França). Informações colhidas do site oficial do Santuário de Lourdes, disponíveis em: , acesso em 20 de março de 2019. 14 No passado, o centro de Nova Trento possuía duas igrejas: uma dedicada a São Virgílio – cujo nome foi “aportuguesado”, pois o verdadeiro nome é Vigilio, como em Trento, na Itália – e outra dedicada ao Sagrado Coração de Jesus. No final dos anos de 1930, os padres resolveram definir que apenas uma igreja ficaria concentrada no centro e seria a sede da paróquia. Por esta razão, a igreja São Virgílio, construída na Praça Getúlio Vargas foi demolida, assim como a igreja do Sagrado Coração de Jesus, localizada junto à antiga Praça da Bandeira, hoje Praça del Comune. Uma nova igreja foi edificada pelos descendentes de trentinos e vênetos, entre os anos de 1940 e 1942, no mesmo lugar da igreja do Sagrado Coração de Jesus, porém em honra a São Virgílio. Esta foi inaugurada em 1942, inclusive com a presença do governador do Estado à época, Nereu Ramos. Informações obtidas da monografia de Anderson Sartori (2000), historiador neotrentino. 25 mulheres perpetuaram a fé e a educação, mas, ao mesmo tempo, foram de certa forma excluídas, ignoradas e, até mesmo, silenciadas da historiografia tradicional.

1.1 – O povoamento no Sul do Brasil e em Nova Trento

“Mérica, Mérica, Mérica, cossa saràlo 'sta Mérica? È un bel massolino di fior!”15

Cada família neotrentina sente-se fortemente ligada às suas origens – especialmente com o Trentino Alto-Ádige, na Itália, embora o município também tenha recebido imigrantes de outras etnias, mas em menor porcentagem, como poloneses, alemães e, também, portugueses e espanhóis. Algumas características são facilmente percebidas pelas pessoas que visitam a cidade: a culinária típica, com a polenta, a pizza, o vinho, o suco de uva; o dialeto italiano – muito embora isto está se perdendo um pouco ao longo dos últimos anos; os grupos de canto e de dança típica, com inspiração na região norte da Itália e, claro, a religiosidade, sempre presente em cada canto do município, como referenciamos acima com as capelas e as igrejas que estão espalhadas por toda a extensão territorial. A primeira leva de imigrantes começa a chegar naquela que seria a futura Nova Trento em 1875 – até 1892 o território pertenceu à Colônia Itajaí e Príncipe Dom Pedro. São homens e mulheres provenientes, em sua maioria, do antigo Tyrol (ou Süd Tyrol) do Império Austro- Húngaro, hoje Trentino Alto-Ádige, além do Vêneto e da Lombardia italianas16. Grande parte dessas pessoas eram camponesas e camponeses: na Europa eles viviam (ou sobreviviam) com recursos provenientes da venda de produtos da lavoura, especialmente milho, batata e batata doce17. Porém, com a invenção do motor a vapor e seu emprego em máquinas, isso substituiu paulatinamente a tração animal e dispensou o excesso de mão-de-obra. As trabalhadoras e trabalhadores, que produziam em escala doméstica, encontraram fortes concorrentes nas indústrias. As mulheres, da mesma forma que os homens, trabalhavam assiduamente nas

15 Tradução nossa: “América, América, América, o que será esta América? É um belo buquê de flores!”, trecho da canção do folclore italiano até hoje entoada pelos moradores de Nova Trento. Os imigrantes vieram para o Brasil cheios de esperanças e na expectativa de construir uma nova vida na América. 16 Antes da chegada dos italianos, a localidade já havia recebido imigrantes de outras nacionalidades. Entre eles havia um inglês, chamado Christovão Bonsfield, que recebeu concessão do governo imperial (1835) para explorar madeira. Dois anos mais tarde, uma firma estadunidense (Wells, Pedrich & Gonçalves) compra esta serraria e explora a região até o ano de 1838, quando passou para as mãos de um senhor chamado Pedro Höhn e que, logo em seguida, transfere o negócio para o governo provincial. Além dessas etnias, a região também recebeu imigrantes portugueses e espanhóis (CADORIN, 1992, p. 24) 17 Informações divulgadas pelo sociólogo e historiador, Renzo Maria Grosselli, durante palestra realizada em Nova Trento-SC, no dia 07 de abril de 2018. 26 lavouras para dar sustento às suas filhas e filhos. Em épocas de muito frio, ficavam em casa, sozinhas com os pequenos, enquanto os maridos saíam em busca de novas oportunidades de trabalho pela Europa. Especialmente no inverno, quando a neve chegava, era quase impossível plantar e colher. Restavam, então, os trabalhos alternativos, como a limpeza de chaminés ou os ofícios de pedreiro e carpinteiro, conforme elucidou Renzo Maria Grosselli, durante palestra em Nova Trento. Tamanha era a coragem dessas mulheres em permanecer por meses sozinhas, às vezes grávidas, parindo em muitos momentos com a ajuda de vizinhas ou outras parentes próximas. Além dos problemas da produção agrícola, as trabalhadoras e os trabalhadores enfrentavam as modificações da “política fundiária, instituída por ocasião da unificação italiana18 em 1861, que fez com que milhares de agricultores tivessem suas terras confiscadas pelo governo”, aponta o historiador Jonas Cadorin (1992, p. 15). As atividades no campo, então, iam sendo cada vez mais inviabilizadas e ficavam concentradas em torno dos grandes benfeitores. As leis fundiárias e a indústria atraíram para as grandes cidades massas de agricultoras e agricultores, que vendiam sua mão-de-obra a preços reduzidos. Somado a tudo isso, não havia leis trabalhistas. Elas só surgiram após arbitrariedades praticadas no decorrer da Revolução Industrial, inicialmente em países não católicos, como o Reino Unido. Consequentemente, a Itália vislumbrou esse processo muito mais tarde. O resultado desse processo – principalmente em localidades que viviam da agricultura – foi o desemprego, que trouxe inúmeras intempéries para a população. No final do século 19, em virtude disso tudo, a Itália passava por uma grande crise no setor de alimentos. A comida, que já era escassa, passou a um nível baixíssimo, a tal ponto que a população começou a passar fome. Mulheres e crianças foram as que mais sofreram. Com a falta de nutrientes, muitas mulheres não conseguiam gerar o leite após o parto. As crianças, subnutridas, eram alimentadas com uma espécie de “papinha”, feita de milho ou outro tipo de farinha misturada ao leite da vaca. Com dois ou três meses as crianças morriam, possivelmente contaminadas por tais alimentos. Nos registros de óbitos dos trentinos, do final do século 19, é possível verificar que as mulheres tinham filhos praticamente todos os anos19, sendo que estes

18 O Reino da Itália foi um Estado fundado em 1861 após o rei Vitor Emanuel da Sardenha ter sido proclamado rei da Itália. O Estado foi fundado como resultado da unificação italiana, sob a influência do Reino da Sardenha, que era seu Estado antecessor legal. Este reino existiu até meados de 1946, quando os italianos optaram por uma constituição republicana, mediante plebiscito (RUBERTI, 1999, p. 20). 19 Importante destacar que um dos principais motivos das mulheres engravidarem todos os anos era a influência da própria Igreja Católica. Na Europa e, posteriormente, no Brasil a Igreja perpetuava a ideia de que evitar filhos era pecado. Isso nos remete ao vídeo elaborado por Monty Python, grupo de comédia britânico, que parodiou esta situação em “O sentido da vida” (1984), com a canção: “Todo esperma é sagrado, todo esperma é grandioso, se um esperma é desperdiçado, Deus fica bastante irritado”. Disponível em: 27 não chegavam a completar seu primeiro ano de vida. O índice de mortalidade infantil era altíssimo20. Por isso, entre ficar na Itália, assimilar um novo modo de produção (industrial) e enfrentar todos esses problemas sociais, um grande contingente de pessoas vislumbrou uma outra solução para sair da crise: emigrar! O objetivo sonhado pelo migrante casou perfeitamente com a proposta do governo brasileiro, que iniciou uma ampla campanha, incentivando a vinda de jovens “sadios, agricultores, laboriosos e moralizados, nunca menores de dois anos, nem maiores de 45, salvo se forem chefes de família”, como consta no decreto no 6.663, de 17 de junho de 1874, assinado por José Fernandes da Costa Pereira Júnior e Joaquim Caetano Pinto Júnior21. Estes senhores eram contratantes responsáveis pelos europeus que se instalaram na Colônia Itajaí e Príncipe Dom Pedro, comprometidos com o governo imperial de transportar para Santa Catarina, num período de 10 anos, cem mil imigrantes22. Além da proposta de povoamento e da substituição gradual da mão-de-obra escrava, neste caso na região sudeste do país – especificamente – o governo tentou fazer da imigração um instrumento “civilizatório”, ou seja, buscaram expandir o “embranquecimento do país” (ALENCASTRO; RENAUX, 1997, p. 293). Até aquele momento, já havia se consolidado – especialmente no sul do Brasil – diversas comunidades de origem alemã. Porém, estes imigrantes traziam consigo uma cultura religiosa diferente daquela que o governo instituíra como “ideal” – a grande maioria era de origem Protestante. Havia, portanto, o privilégio pelos católicos, já que esta era a religião oficial do Estado à época. Essa mesma discussão em torno da religião e da cultura ocorreu durante a tentativa de trazer imigrantes chineses e asiáticos. Inclusive, logo no início da República, em 1889, um decreto foi publicado proibindo a entrada de asiáticos e africanos no Brasil. Nota-se, assim, que houve um favorecimento do ingresso no país de pessoas brancas e católicas. Tudo foi milimetricamente pensando e executado pelo

, acesso em 10 de janeiro de 2019. Esta nota foi feita com base nas anotações do curso Poder, Sexualidade e Performatividade de Gênero, realizado no primeiro semestre de 2018. 20 Informações divulgadas pelo sociólogo e historiador, Renzo Maria Grosselli, durante palestra realizada em Nova Trento-SC, no dia 07 de abril de 2018. 21 O decreto com todas as informações deste contrato firmado com Joaquim Caetano Pinto Júnior está no livro Nova Trento outra vez..., do historiador Jonas Cadorin (1992, p. 16-20). 22 A imigração foi a solução pensada pelos líderes políticos do império brasileiro para sanar o baixo contingente populacional que havia diante da vastidão do território. Resolvido esse interim, ficariam as fronteiras demarcadas e a posse de terra garantidas, pois uma das inquietações do governo imperial brasileiro à época, Dom Pedro II, era justamente com os vizinhos latinos: Argentina, Uruguai e Paraguai. Este acreditava, assim como uma elite da época, que através da pequena propriedade rural autossuficiente o modelo de desenvolvimento do Brasil seria alcançado. Firmou-se, então, um contrato com Joaquim Caetano Pinto Júnior, acordo esse que previa a introdução de cem mil imigrantes europeus no Brasil, num período de dez anos. (CADORIN, 1992, p. 16). 28 governo e, claro, foi ao encontro das necessidades enfrentadas pelos italianos e tantos outros trabalhadores braçais da Europa daquele tempo. Porém, nem tudo eram flores, como dizia a canção destacada no início desse texto. Das pequenas vilas italianas, as pessoas se deslocaram de trem ou de carroça até o porto mais próximo. Sabe-se que grande parte das/dos imigrantes italianos embarcaram no porto de Gênova, norte da Itália. Ali permaneceram, duas ou três noites, “ao ar livre, agachados como cães pelas ruas” (DE AMICIS, 2017, p. 19). Muitos nem puderam embarcar, pois antes de entrar na máquina a vapor rumo à América, um médico fazia um exame minucioso, impedindo de viajar quem estivesse com alguma enfermidade. Entre os diagnósticos, o mais comum era a pelagra23, que às vezes atingia toda a família, conforme explica De Amicis (2017). Revolta, frustação, aborrecimento e uma série de sentimentos assombravam as pessoas que estavam prestes a deixar a sua terra de origem. Além disso, como referido por diversos autores, inclusive por Luiz Felipe de Alencastro e Maria Luiza Renaux grande parte das mulheres – mães, esposas e filhas – não embarcavam no navio por vontade própria, mas eram, sim, impulsionadas ou, melhor, obrigadas pelos pais ou maridos. Elas “embarcavam na aventura da imigração para o Império por escolha dos maridos ou dos pais, e não por vontade própria – e tinham consciência da carência que afligiam os imigrantes” (In: ALENCASTRO, 1997, p. 324). Essas mulheres, então, ficavam submissas às vontades do patriarcado, tendo suas vozes silenciadas. Ao analisar a narrativa de De Amicis (2017), é possível supor a melancolia que estas mulheres enfrentavam ao abandonarem suas casas no norte italiano, venderem tudo o que possuíam – inclusive seus animais domésticos, como a vaca, a única que a ajudava na lavoura e de onde provinha o leite para o sustento da família – bem como o pequeno palmo de terra. O sociólogo Renzo Maria Grosselli pontuou, durante palestra em Nova Trento, que muitos acabavam vendendo até mesmo as portas e as janelas de suas residências para bancar as passagens até os portos e migrar com uma certa quantia no bolso. É interessante refletir a respeito do desespero dessas famílias em deixar tudo – inclusive sua história, seus familiares – apostando em algo provavelmente incerto, que não lhes proporcionaria, num primeiro momento, nenhuma garantia. Mas, o terror da fome e da apatia falaram mais alto, juntamente com o sonho de conseguir uma maior quantidade de terra para plantar e, quem sabe, enriquecer. Somado a tudo isso, havia outros dois fatores que impulsionavam as famílias a emigrarem para a América e outras regiões do globo em busca de melhores condições. O primeiro fator era o medo das consequências que poderiam surgir a partir dessa nova ordem

23 Doença de pele causada pela deficiência nutricional do ácido nicotínico ou pela falta de triptofano. Isso ocorria muito, já que a fome atingiu boa parte da população e se refletia em apatia e esgotamento físico. 29 econômica ou dessa nova organização do trabalho, que afetava para eles “a estrutura familiar e a moral católica” (GROSSELLI, 1987, p.138). Para o homem trentino, era muito difícil aceitar o fato de mulheres trabalharem fora – nas fábricas e demais espaços públicos, sendo estas submetidas a jornadas de trabalho exorbitantes e a pagamentos pífios24. Segundo sua moral e seus costumes, era melhor que essas mulheres – suas filhas – ficassem restritas ao núcleo familiar, ou seja, trabalhassem para eles, principalmente na roça e no lar. Por conseguinte, “a unidade familiar teria garantido a continuidade da tradição (sem a corrupção de novos valores ou desvalores). Era possível salvaguardar a integridade da cultura camponesa, transportando-a para a América” (Ibidem, p.138). Em suma, para o camponês, era muito importante migrar: ele estava impelido pela utopia de reconstruir no continente americano uma sociedade que, para ele, na Europa, estava se despedaçando. Uma sociedade que tinha na terra o seu fator de produção e de sustento, sendo fortalecida por uma cultura católica preponderante, que, segundo os homens, não poderia ser perdida. O outro fator que colocou os italianos dentro dos navios foi o próprio interesse do clero. Segundo Grosselli (1987), os sacerdotes trentinos (tiroleses) avistavam a América com olhos ávidos, pois já previam a reconstrução de comunidades camponesas trentinas no meio das florestas brasileiras. O sociológico italiano, inclusive, destaca que essas questões podem ser analisadas mais claramente nos jornais que circulavam na época, especialmente o “La Voce Cattolica”25, uma publicação muito próxima da população trentina daquele período.

Uma parte do clero intuiu esta tendência, viveu-a internamente e participou da utopia. (...) Se não é esta uma teorização da possibilidade de transplantar a sociedade católica (camponesa) do outro lado do oceano, certamente se lhe assemelha muito e mesmo dá a ideia de quanto estava difundido no clero o mal-estar pelo avanço célebre de valores e costumes que pareciam incompatíveis com a moral católica. (GROSSELLI, 1987, p. 140).

Essa onda de mudanças econômicas – e estruturais – que mexeu diretamente com a vida da população italiana, pode ser conferida em detalhes na obra da filósofa italiana e ativista feminista, Silvia Federici: Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017). Ela traça um retrospecto do feudalismo até o capitalismo, sob uma perspectiva feminista, trazendo para o foco as questões de dominação e exploração, principalmente perante às mulheres. Para Federici, a força e a resistência das mulheres foram inviabilizadas do processo

24 Conforme Grosselli (1987), as meninas eram empregadas em fábricas de seda, trabalhavam das 4 horas da manhã até às 8h30 da noite, e ganhavam 40 centavos, as mais bem pagas (p. 138). 25 Jornal de cunho religioso, lançado em 1865, que representa a posição dos católicos trentinos reunidos em torno da cúria. 30 de consolidação do capitalismo na Europa, muito provável porque raramente aparece na história do proletariado a caça às bruxas. Segundo ela, este episódio nivelou o terreno para a construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens. O preço da resistência dessas mulheres foi o extermínio. “A violência foi a principal alavanca, o principal poder econômico no processo de acumulação primitiva” (FEDERICI, 2017, p. 121). Isso afetou diretamente as mulheres e a sua autonomia. Era preferível mantê-las nos espaços privados – da casa ou nos campos próximos a ela – do que vê-las pelas ruas, pois isso poderia expô-las a uma violência masculina (Ibidem, p. 144). Cercadas, as suas atividades foram cada vez mais inviabilizadas. Por conseguinte, foi intensificada a “naturalização” do trabalho reprodutivo às mulheres, como se fosse uma “vocação”. O Estado passou a ser o supervisor da reprodução da força de trabalho; o marido, nesse contexto, controlava a conduta delas. Assim, a família passou a ser a “instituição-chave que assegurava a transmissão da propriedade e a reprodução da força de trabalho” (FEDERICI, 2017, p. 173). Consequentemente, como veremos mais adiante, o Estado em conjunto com a religião, tinha o aval para supervisionar a sexualidade, a procriação e a vida familiar. Faz-se essa pequena intervenção no texto, dentro da história da imigração italiana para o Brasil, a fim de elucidar que existiram inúmeros fatores e interferências que influenciaram diretamente a população daquele período. E, como visto, a dominação masculina mais uma vez calou a voz dessas mulheres, que não tiveram oportunidade de prosseguir naquele sistema econômico (no Trentino) e lutar por melhores condições. Elas foram, sim, “raptadas” ou se tornaram “fugitivas” dessa economia, na companhia dos seus maridos, os causadores dessa intervenção, juntamente com a própria Igreja. O tom de revolta desses emigrantes ficava evidente logo da partida, já embarcados no navio que os levaria à América. Eles gritavam em tom de sarcasmo para o continente: “viva a Itália”! Indignados com as más situações a que estavam submetidos, tinha ainda aqueles que mostravam o punho para a pátria (DE AMICIS, 2017, p. 23). Apostaram numa vida melhor no Brasil, mais cheia de oportunidades. Acreditaram nas promessas dos agenciadores, do próprio clero, e até das “linguiças penduradas nas árvores” (RUBERTI, 2002, p. 16). Mal sabiam eles que, ao invés das linguiças, as bananas é que matariam a fome, por muito tempo, em terras brasileiras. Hoje é difícil avaliar o que era mais problemático: a situação a que estavam submetidos, devido à crise, ou a nova realidade que encontrariam em solo brasileiro. Após cerca de um mês atravessando o Oceano Atlântico, muitas situações foram vivenciadas a bordo da 31 máquina a vapor – por vezes foram embarcações a vela. Grande parte das pessoas permaneceu na terceira classe do navio, cuja viagem foi subsidiada pelo governo imperial brasileiro, acometidos de enjoos, mal-estar, entre outros problemas que toda travessia marítima pode proporcionar.

Estendidos em bancos, eles pareciam estar doentes ou mortos, com os rostos sujos e os cabelos desalinhados, em meio a uma grande bagunça de cobertores e trapos de pano. Famílias apertadas dignas de pena eram vistas em grupos, com aquele ar de abandono e desorientação, próprio da família sem-teto: o marido sentado e adormecido, a mulher com a cabeça apoiada no ombro dele, e as crianças no chão, dormindo com a cabeça sobre os joelhos de ambos: um amontoado de trapos onde não se enxergava nenhum rosto, mas apenas o braço de uma criança ou a trança de uma mulher. (DE AMICIS, 2017, p. 26).

Homens e mulheres apegaram-se à religião, aos seus santos de proteção, e torciam para que tudo corresse bem até a chegada ao Brasil. Especialmente as mulheres, com seus terços enrolados nas mãos, provavelmente invocavam por graças e se sentiam arrependidas de partirem sem ao menos se despedirem, dignamente, da sua terra de origem. É sabido que ao longo da travessia muitos morreram em decorrência de doenças ou outros tipos de viroses, sendo jogados ao mar. Há inúmeros relatos entre os neotrentinos de pessoas da família que morreram durante a viagem26, às vezes muito jovens ou ainda recém-nascidos e, a grande maioria, idosos, que sentiam o peso de uma viagem transatlântica. A chegada a Santa Catarina ocorria pelo porto de Itajaí, sendo direcionados, logo em seguida, a Brusque, sede da Colônia Itajaí e Príncipe Dom Pedro. De Brusque, os primeiros imigrantes se instalaram a 16 quilômetros dali, numa localidade que viria a se chamar Claraíba – já em território da futura Nova Trento. A maioria se deslocou a pé, algumas pessoas a cavalo, outras de carroça, tendo em vista que as condições das estradas não eram boas e tudo era feito por “picadas”. Para chegar ao que seria o centro de Nova Trento, mais alguns quilômetros percorridos a pé. A região era composta de vales banhados por riachos, vegetação exuberante, fauna diversificada, com animais de pequeno porte – entre eles, a onça – e aves dos mais variados tipos, com clima quente e chuvoso. Um tanto diferente da região norte da Itália, em que a neve era uma constante – com um inverno rigoroso – e que, em muitos momentos, impossibilitava o plantio de hortaliças e outras plantas para consumo. Em território previamente definido, as colonas e os colonos foram instalados em galpões construídos especialmente para recebê-los, os também chamados “barracões”

26 Ao longo da minha trajetória como jornalista, tive a oportunidade de obter essas informações junto aos idosos. Especialmente minha avó, sempre contava algumas lembranças de nossos antepassados nessa viagem de navio para o Brasil, como o nascimento de crianças durante o período em que estavam na embarcação. 32

(CADORIN, 1992, p. 21). No que era para ser uma situação provisória – assim avisavam os agenciadores, informando que logo seriam transferidos para seus lotes definitivos – os imigrantes permaneciam semanas e, até meses, dormindo sob o mesmo teto, sendo este construído com madeira e palha, como há registro em foto (logo mais à frente). Ali, na prática, o imigrante já constatava as falhas de um projeto de imigração impensado. Se na propaganda havia a promessa de conseguir uma grande quantidade de terra e uma casa para morar, na realidade os colonos encontravam a Mata Atlântica fechada, repleta de animais e, obviamente, nenhuma infraestrutura. O problema se acentuava ainda mais com o surgimento de doenças e com as tempestades, que eram constantes. Assim, pontua Cadorin:

Os princípios morais católicos que norteavam a vida daqueles indivíduos, tanto na viagem de navio como nos barracões, tiveram de ser adaptados e reforçados à nova realidade. A privacidade deixou de existir em muitas situações. Somente princípios morais bem alicerçados poderiam evitar que se criasse um quadro de promiscuidade, desavenças, roubos e outras implicações próprias de um grupo formado por indivíduos de diversas proveniências. (CADORIN, 1992, p. 22).

Embora isso não esteja retratado em livros, supõe-se que a mulher foi quem liderou e assumiu este papel de cuidar dos princípios morais, ficar atenta à educação das crianças e jovens, zelar pelos doentes e pelas pessoas que mais precisavam de um apoio no momento da chegada dessa grande leva de imigrantes. Afinal, o fluxo migratório prosseguiu de forma intensa até 1880 – cinco anos, aproximadamente. E, muito provavelmente, a mulher também foi fundamental na formação dessa cultura religiosa, não só em Nova Trento, mas em todas as cidades desse Brasil, muito embora as suas atividades apareçam como secundárias ou consequentes da ação dos homens. A mulher também teve forte participação no início do povoado neotrentino. Após um breve período de espera, as/os imigrantes decidiram começar a construção daquele que seria o futuro município, pois pouco (ou quase nenhum) incentivo vinha do governo imperial. Começaram a derrubar o mato, retirar a madeira para construir as casas, localizar água potável para consumo, entre outras estratégias para se adaptar ao novo “lar”. É lícito supor – e isso não está retratado em nenhum livro escrito sobre Nova Trento – que as mulheres devem ter se organizado quanto ao cuidado com as crianças e os recém-nascidos. Entre as imigrantes havia algumas parteiras – formadas em escolas técnicas na própria capital do antigo Tyrol, Trento – que possuíam conhecimentos sobre como proceder num trabalho de parto, cuidados com a 33 higiene feminina e com os bebês27, entre outros procedimentos necessários para saúde das crianças e das mulheres. Quando se citam as palavras “supõe” e “provavelmente”, não é em vão. Elas estão inseridas assim nesse texto, pois, como já referenciado, não há uma comprovação – ou algum registro – de que esses fatos ocorreram, desta forma, com essas mulheres. Por isso, toma-se como inspiração a hermenêutica da suspeita, muito utilizada por teólogas feministas na atualidade, inspiradas pelo “círculo hermenêutico” de Juan Luís Segundo (FELIX, 2010, p. 34). Este autor propõe estudar criticamente até que ponto a realidade, a bíblia e a teologia favorecem a libertação e até que ponto contribuem para a opressão e dominação de mulheres e homens empobrecidos do continente latino-americano. A proposta, portanto, é promover uma prática “desconstrutiva e desnaturalizadora de ensinamentos e sentidos” (Ibidem, p. 228), uma avaliação crítica da realidade que se apresenta, entendendo que muitas situações servem para legitimar as estruturas patriarcais. E, claro, em Nova Trento, isso não foi diferente: a mulher raramente, ou melhor, nunca aparece retratada nos livros históricos e/ou nos relatos de monografias e outros registros do passado – essencialmente construídos por homens. Assim, este trabalho propõe dar destaque à mulher que estava ali inserida e participou decisivamente na construção dessa cidade, embora ela esteja ofuscada pelas lentes da masculinidade. Voltando para história, certamente a adaptação desses imigrantes foi muito lenta nesse novo território. Todo o núcleo familiar – o pai, a mãe, as crianças e os adolescentes – se envolviam na edificação das casas e de toda infraestrutura do vilarejo. A distância entre um morador e outro dificultava a realização de trabalhos em mutirão. Para auxiliar as/os imigrantes a conseguir dinheiro, havia um regulamento para trabalhos públicos remunerados pela Província de Santa Catarina: era delimitada a faixa etária, havia a exclusão de mulheres nestes serviços – sim, elas foram excluídas neste contexto também – era fixado um valor e a quantidade de horas a serem trabalhadas. As obras incluíam a abertura de “picadas” – as futuras estradas, a construção de pontes, abertura de clareiras para aqueles que ainda estavam por chegar e, até mesmo, o auxílio na medição de novas linhas coloniais (CADORIN, 1992, p. 28). Para não passar fome, eles cultivavam seu próprio alimento: milho, feijão, cana-de- açúcar, aipim (mandioca), batata-doce. Anos mais tarde, foi introduzida a uva, o tabaco e a

27 Isso pode ser ratificado por meio de uma obra que está em minhas mãos: uma das entrevistadas do livro- reportagem Devote della Vergine: histórias de mulheres em Nova Trento (FACCHINI, 2017) – neste caso, minha avó – me presenteou com um livro italiano, datado de 1843, destinado especificamente para a formação de parteiras. Este livro pertencia à sogra dela (Carolina Feller Dalri) e, esta, por sua vez, foi presenteada por sua sogra (Domenica Orsi), imigrante da cidade de Besenello (TN), que atuava como parteira no Trentino – e em Nova Trento – no final do século 19. O livro chama-se: Elementi d’ostetricia ad uso delle Levatrici (Elementos de obstetrícia para uso das parteiras), de autoria de Luigi Pastorello, doutor em medicina e cirurgia. 34 amoreira, para alimentar o bicho-da-seda – este último as mulheres já conheciam bem na antiga Europa, pois tinham experiência na produção de paramentos feitos com a seda. Historiadores como Jonas Cadorin e Anderson Sartori pontuam que as imigrantes trouxeram em suas bagagens as sementes que cultivavam nas lavouras italianas. E, segundo Renzo Maria Grosselli, era

uma sociedade enraizada na terra que viu na terra um fator de produção único e essencial junto com o trabalho. Uma sociedade cujo grupo central era a família em que havia divisões precisas de tarefas que diferenciavam os sexos e, muito menos, as faixas etárias. Por fim, uma sociedade profundamente permeada por um espírito religioso totalizante que se confundiu, até se tornar identificável, com a moral e a ética social, e que também, por isso, confiou às estruturas eclesiásticas tarefas que iam além do “cuidado das almas” e que, afinal, também eram administrativas e, ainda mais, políticas. (GROSSELLI, 1986, p. 11)28

Os animais domésticos, como galinhas, porcos, cavalos e vacas foram integrados à vida das colonas e dos colonos somente após um ano da sua chegada (1876), trazidos da região serrana do Estado. Era mais uma alternativa para a alimentação – tão escassa – naquele vilarejo. Em Nova Trento inCanto de fé, a historiadora Ana Maria Marques traça um panorama de como foi constituída Nova Trento e essa cultura religiosa. Em sua pesquisa, ela enumera o recenseamento do distrito colonial, datado de 1890, que está preservado junto ao Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. A maioria é composta por colonos: são 852, mas havia outros profissionais. Entre os declarados, há pedreiros, negociantes, policiais, alfaiates, carpinteiros, sapateiros, padeiros, carreiros e tanoeiros (MARQUES, 2000, p. 61). A autora não registra as atividades consideradas femininas, mas, como já citado, provavelmente deveria haver neste grupo parteiras, professoras, cozinheiras, costureiras. Conclui-se, assim, que era um público que já trouxe da Europa conhecimentos dos mais diversos. Não eram ignorantes, e estavam conscientes da situação precária a que estavam submetidos naquele território. Por isso, não demoraram muito para organizarem uma rebelião contra a direção da colônia, em 1878, ou seja, três anos após a chegada ao Brasil. Eles eram em mais de 400 pessoas, e pediam pelos salários atrasados e pela falta de assistência – especialmente em relação à saúde. Em contrapartida, o governo dizia que as colonas e os colonos não estavam cumprindo com o contrato de atuarem como agricultoras e agricultores

28 Citação original em italiano: “Una società radicata sulla terra che vedeva nella terra un fattore di produzione essencialize ed unico assieme al lavoro. Una società il cui nucleo portente era la famiglia in cui vigevano precise divisioni di compiti che differenziavano i sessi e, molto meno, le fascie di età. Una società infine profondamente permeata di uno spirito religioso totalizante che si confondeva, fino ad identificarzi, con morale ed etica sociale e che, anche per questo, affidava alle strutture ecclesiastiche compiti che andavano aldilà della "cura delle anime" e che in ultima istanza erano anche amministrativi e più ancora politici”. 35 que eram. Diversas mortes ocorreram durante estes confrontos entre migrantes e autoridades: Nova Trento passou a ter um destacamento policial permanente depois desses episódios, mas os conflitos não cessaram. Há relatos de um grupo que partiu para o Rio de Janeiro, a fim de reivindicar melhores condições de vida junto à corte.

Figura 1 – Foto de um dos primeiros “barracões” construídos em Nova Trento, em 1875. Percebe- se que não há mulheres nesta foto

Fonte: Elis Facchini/Arquivo da Banda Musical Padre Sabbatini (1875)

Renzo Maria Grosselli explica que, antes desses conflitos iniciarem, ainda na fase em que o governo disponibilizava alimentos, as colonas e os colonos foram obrigadas (os) a escreverem cartas para os familiares que ficaram na Europa. A proposta era atrair cada vez mais pessoas para o Brasil. Grosselli afirma que muitos receberam dinheiro para mentir nas correspondências, afirmando que eram ricos e felizes. Mas, havia aqueles que conseguiam burlar as autoridades e enviar cartas contando a real situação a que estavam submetidos. Inclusive, antes de partirem para o porto rumo à América, combinavam com a família que deixariam alguma marca nas cartas, uma espécie de “carimbo”, para provar que aqueles registros eram seus originais. É o que pontua o sociólogo em entrevista:

Eu até tenho várias cartas, cópias de cartas, que os colonos escreviam: “meu irmão, fica lá, aqui é um desastre, aqui dá pra comer, aqui só dá cobra, aqui eu tenho 25 hectares de terra” ou que aqui era uma podridão, que eles estão na selva, que não vai 36

dar mais, que morreram muitas pessoas. Foi aí que os colonos começaram a ficar “vivos”.29

Os anos foram passando e as promessas não eram cumpridas. Por isso, um grande contingente de pessoas migrou novamente, muitos deles para a Argentina, onde também havia oferta de terras. Outros, ainda, se estabeleceram em núcleos coloniais, onde hoje estão localizadas cidades do sul de Santa Catarina, como , e os mais abastados conseguiram ir para o Rio de Janeiro, onde, de lá, vislumbraram a possibilidade de comprar passagens de volta à Itália. Para aqueles que permaneceram em Nova Trento, restava apenas a possibilidade de trabalhar na terra – a imensa maioria estava habituada a esta tarefa, enfrentando a duras penas a mata fechada, os animais, como as cobras, aranhas e mosquitos. Muitos daqueles que não se adaptavam ao clima tropical, iam à morte rapidamente, pois as picadas de insetos, por exemplo, provocavam ulcerações e febres. Médicos foram enviados apenas na primeira fase da colonização. Em boa parte do tempo eles estavam desprotegidos e recorriam às mulheres - aquelas que eram quase médicas, com formação de parteira, para sanar os casos mais simples (ou não). Por isso, se sobressaíam aquelas senhoras que conhecessem receitas caseiras à base de chás e emplastros, acompanhadas de orações e benzeduras. Até pouco tempo muitas comunidades neotrentinas ainda recorriam apenas este tipo de ritual, confiando inteiramente suas vidas às benzedeiras. Em caso de morte, a fé católica apaziguava a dor dessas imigrantes e suas descendentes.

1.1.1 – A questão da transplantação

A partir do que foi construído até o momento, é possível elucidar que em Nova Trento, bem como em muitas cidades pelo Brasil, a/o imigrante ali instalado tentou reproduzir seu padrão de cultura e religião em solo brasileiro. Transplantou, assim, seus costumes e suas crenças religiosas – especificamente a religião Católica Apostólica Romana, da Itália para o núcleo colonial que fora designado. Tomando como base a Ciência da Religião, especificamente da relação entre religião e migração, contata-se que as tradições domésticas desses imigrantes – praticados em seu país

29 Renzo Maria Grosselli em entrevista à pesquisadora, no dia 07 de abril de 2018, bairro Centro, Nova Trento- SC. A transcrição completa está no Apêndice C desta dissertação. NR: Todos os trechos citados neste texto têm como base o colóquio realizado com o sociólogo, no dia 07 de abril de 2018. 37 de origem – foram mantidas no exterior e contribuíram para a manutenção dessa religiosidade em solo brasileiro. Além disso, conforme a teoria da transplantação de Michael Pye (2013), há um fator importante na disseminação de uma cultura religiosa em outras partes do globo: o desafio de se relacionar de maneira bem-sucedida com as condições encontradas nos novos horizontes culturais, que perpassa também pelas questões de comunicação social, língua, educação, ou seja, as dinâmicas da religião, como veremos logo à frente, que tiveram forte influência, também, com os padres da Companhia de Jesus instalados em Nova Trento. Leva-se em consideração, do mesmo modo, “que a busca pelo enraizamento no país que recebe afeta não apenas os imigrantes propriamente ditos, mas também as gerações subsequentes”, como afirma Frank Usarski (2016, p. 79). O mesmo autor contextualiza que a língua materna e a herança familiar trazida e continuamente praticada no país anfitrião são elementos decisivos para a coexistência de segmentos culturais não-imediatos. No caso de Nova Trento, o processo de transplantação religiosa envolveu, principalmente, o aspecto geográfico, do norte italiano para o Brasil. Mesmo se deparando com diferenças culturais e de língua no novo “lar”, neste caso o português, o imigrante manteve firme suas tradições, imitando o modelo trazido da Europa, reintroduzindo aqui a ideia de crença ou religião “correta”. Ficam evidentes os processos propostos por Michael Pye (2013): o contato, a confrontação, a ambiguidade, a recuperação e a inovação em solo brasileiro. É interessante ressaltar que essas informações sobre transplantação já eram comentadas pelos próprios religiosos, no ano de 1889, em artigo divulgado em um jornal Trentino, intitulado Il Popolo Trentino. Uma parte do conteúdo está retratada na dissertação de mestrado da pesquisadora neotrentinas, Ivette Marli Boso:

No que diz respeito à religião, então, os nossos colonos estão muito pior que na nossa região; exceção é feita a Nova Trento, onde há vários anos existe uma casa de Missões de jesuítas da província romana. Por esta razão, Nova Trento pode se considerar um oásis feliz, onde graças ao espírito religioso daqueles excelentes missionários, o espírito religioso dos nossos trentinos é mantido vivo, a ponto de parecer uma das melhores localidades do Trentino lá (no Brasil) transplantada. (Il Popolo Trentino, de 29/06/1889, apud BOSO, 1992, p. 86-87).

Parece ver, até aí, que os padres e religiosas acreditavam em uma transplantação “ipsis litteris” – nos mesmos termos – em outro território geográfico. Porém, é de conhecimento que nem tudo se manteve exatamente igual às cidades de origem. Certamente eles tentaram reproduzir as capelas e oratórios, como citado no início desse capítulo, mas há que se destacar as mudanças do ambiente sociocultural, tendo em vista as adaptações da doutrina, as suas 38 práticas, a estrutura organizacional para atender as preferências e as necessidades da sociedade local. Provavelmente, nesse processo adaptativo, muitos elementos da identidade original foram enfraquecidos ou, até mesmo, perdidos, embora a própria comunidade religiosa tentasse amenizar ou “aparar” as arestas produzidas pela transplantação. Renzo Maria Grosselli também trouxe em entrevista, que a base de sua pesquisa para o livro Vincere o Morire foi essa: mostrar como a sociedade camponesa se manteve fechada, conservadora, transplantando para as comunidades do Brasil os seus valores, muito bem alicerçados na religião católica:

Eles quiseram, então, desestruturar em pedaços a cultura camponesa daquele tempo, que era cultura católica, que se baseava em vários lemas – no qual a religião católica era central, para reconstruir tudo isso na América. (...) Digamos que, ao longo de um século, essas comunidades permaneceram com os maiores conteúdos culturais que foram transportados de lá.

Quando o sociólogo afirma “eles quiseram”, ele estava se referindo aos párocos (ou ao clero), que teorizaram e propuseram soluções e utopias para mover para a América esses valores cristãos. No livro Vencer ou Morrer (1987), ele conta em detalhes como esses padres – e, às vezes, a família toda desse sacerdote – partiam para a América “na consciente ou inconsciente esperança de poder transplantar na América a sociedade camponesa trentina com todos aqueles valores que aqui começavam a ser roídos pela penetração do capitalismo e pelas novas formas de organização social que consigo trazia” (GROSSELLI, 1987, p. 132). Além disso, o pesquisador pontua que o próprio clero Trentino transferiu virtualmente a custódia, em território americano, aos jesuítas italianos de Nova Trento, aos franciscanos alemães estabelecidos em (no Alto Vale do Itajaí), e aos capuchinhos franceses, de Caxias do Sul (RS).

Eles, junto com os padres trentinos que emigraram, teriam substituído a intelectualidade católica que permanecera na pátria, teriam reconstruído uma classe dirigente aos camponeses dispersos nas florestas brasileiras e, mesmo, teriam procurado aperfeiçoar aquele “caminho para a santidade” que era e é, definitivamente, o mito último da ideologia católica (Ibidem, p. 133).

Veremos, logo mais à frente, como foi reconstruída essa nova cultura católica, em Nova Trento, com a ajuda dos padres da Companhia de Jesus, que estiveram junto aos imigrantes, desde o desembarque nos portos brasileiros. Para finalizar esta primeira parte, retratamos a seguir como ocorreu o contato com os povos originários, um capítulo significativo da história da construção desse município.

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1.2 – O contato com os povos originários

Há poucos registros – entre os pesquisadores de Nova Trento – sobre a vida e os costumes dos povos originários que habitavam o município antes da chegada dos imigrantes, sejam eles italianos (e tiroleses), alemães e poloneses. Mas há informações de que, à medida que as colonas e os colonos se estabeleciam em seus lotes, aumentava o perigo de ataques desses povos. Muito provavelmente eles estavam protegendo o seu território – para eles, considerado sagrado – e, certamente, assustados pelo contato com pessoas de cor de pele diferente (brancas). Francisco Mazzola, na monografia que escreveu sobre o município, em 1925, faz algumas referências aos povos originários, que ele denominou como “bugres”. Este nome pode ter surgido de um explorador francês, que os tinha descrito como “búlgaros”, isto é, que não eram católicos, como explica Grosselli (1987, p. 345). Outra possibilidade quanto a esta denominação pode provir do nome dado ao “ribeirão dos bugres”, que corta o município de norte a sul. Posteriormente, este mesmo ribeirão passou a se chamar “Alferes”, em homenagem a um militar que liderou uma “caça aos bugres às beiras deste ribeirão” (MAZZOLA, 1925, p. 5-6), muito embora não haja vestígios desses povos às margens desse rio. A palavra “bugre” foi empregada de forma pejorativa, apontando para aqueles que não se encaixavam no “conceito de civilização” trazido pelos colonos da Europa. Outros termos também usados eram pelos imigrantes eram: bugre-botocudo, selvagem, indígena, aborígene (CADORIN, 1992, p. 45). Em Santa Catarina havia, naquela época, dois grupos de povos originários: os Tupis- Guaranis e o Jês. Estes últimos se dividiam em Kaigang e Xoklens, denominados também de botocudos, pois havia o costume de os homens colocarem os botoques, ou um tipo de “pratinho”, no lábio inferior (GROSSELLI, 1987, p. 368). Segundo relatos, eles não eram povos violentos. Avançavam, sim, mas para conseguir objetos de metal para as pontas das flechas e lanças, provavelmente para utilizar na caça, na busca de diversos alimentos e na defesa do seu território. Não pescavam, não eram agricultores, não conheciam a cerâmica. Cultivavam o milho, mas não há confirmações a este respeito (Ibidem, 1987). Sabiam mover-se com segurança, sem ao menos fazer um só ruído, mesmo em meio à vastidão da floresta. Além disso, eram hábeis em lidar com os animais, por exemplo, as cobras, e tinham conhecimento de como fugir de animais ferozes, como as onças – que habitavam frequentemente a região. Viviam em pequenos grupos, com 50 a 300 pessoas reunidas, sendo que durante o dia caçavam para se alimentarem e, durante a noite, recolhiam-se em seus ranchos e/ou abrigos. 40

Porém, a medida que a colônia se expandia – e os lotes eram demarcados – os ataques dos brancos contra povos originários se intensificaram. A intenção destes, acredita-se, era de defender o seu lugar sagrado e, quem sabe, amedrontar os colonos. Com o tempo, esses ataques passaram a ficar cada vez mais violentos. Famílias inteiras de colonos/colonas eram mortas. E, consequentemente, dezenas (centenas) de nativos também foram à morte. Na bagagem, o colono trouxe inúmeras armas de fogo30 que, provavelmente, foram utilizadas não só para matar animais, mas também para dizimar os povos que já habitavam essas terras. Não demorou muito e as lideranças municipais (e os próprios colonos) solicitaram a presença de “bugreiros” ou “caçadores de índios” para a Província de Santa Catarina. Alguns ficaram até “conhecidos” em suas linhas, como foi o caso de “Martín Bugreiro”, cujo nome verdadeiro era Martinho Marcelino de Jesus (GROSSELLI, 1987). No livro Devote della Vergine (2017), um dos entrevistados, Luiz Bastiani contou como este capanga atuava em Nova Trento. “Esse Martín odiava índio [sic], porque eles mataram a mulher e a criança dele. Ele ficou tão revoltado que não podia ver índio. Andava de facão e cortava a cabeça deles. Fazia ‘arruaça’, como os colonos diziam” (FACCHINI, 2017, p. 27). Mas, não apenas “Martín Bugreiro” agia com atrocidade em Nova Trento e toda a região. Há testemunhos de mulheres que também usaram da força para defender suas famílias, como foi o caso de Carolina Feller Dalri (Ibidem, p. 28). Com medo do “diferente” ou com certo receio dos arcos e das flechas que nunca vira, ela se impôs para proteger suas filhas e filhos. Ficou com remorso a vida toda, conforme os relatos dos familiares, por ter cometido tamanho ato de violência contra alguém que não conhecia. Foram inúmeros massacres, explica Renzo Maria Grosselli (1987). Como “prova” dessas matanças, os capangas costumavam trazer os arcos, as flechas e alguns prisioneiros, geralmente as crianças. Estas eram entregues às autoridades ou ficavam com os comerciantes da região – muitas foram escravizadas. Até mesmo alguns botocudos foram enviados à Europa para serem expostos ao público, como se fossem “atração turística”. Outros, ainda, acabaram morrendo, e havia aqueles também que eram “civilizados” por famílias abastadas ou entregues a conventos de freiras, para serem “educados”.

Num certo momento, o Governo brasileiro, que parece nunca tenha sido o mandante direto dos massacres, procurou favorecer a catequização e consequente pacificação dos índios [sic]. Foram expedidos para as florestas alguns frades e alguns deles conseguiram aproximar grupos de nativos. Cansados, dizimados pelas batidas dos bugreiros e dos colonos, pela gripe e pelas bebidas alcoólicas trazidas pelos brancos,

30 Tenho um tio-avô (Luiz Dalri), que guarda até hoje a arma que meu trisavô, Casto Dalri, trouxe da Itália. Segundo relatos dos meus familiares, o armamento era utilizado para caçar animais e, também, para se defender. 41

os índios praticamente decidiram render-se. Foi o fim de sua sociedade. (GROSSELLI, 1987, p. 372).

Grosselli conta ainda o caso de um “ex-bugreiro” que, “convertido” ao pacifismo chegou a aproximar um grupo de povos originários e ajudou os religiosos na “catequização”. Em livros e nos registros mais antigos – como estes do professor Francisco Mazzola - encontra- se a relação dos mortos e feridos entre os colonos e suas famílias. Não há informações precisas do número de pessoas dizimadas entre os nativos. E, não há dúvidas de que o mais “forte” prevaleceu, tendo em vista que praticamente não há informações sobre esses povos atualmente em Nova Trento – a maioria evita falar no assunto e/ou não conhece nada a respeito. Supõe-se que a imensa maioria foi morta ou migrou para outros lugares. Há que se destacar que a grande maioria dos imigrantes rejeitava os nativos pelo fato de eles não acreditarem no Deus da Igreja Católica ou por considerarem eles como “seres inferiores”. Isso fica claro em um dos depoimentos do padre jesuíta Arcângelo Ganarini, um dos primeiros religiosos a atuar em Nova Trento, no final do século 19 e início do século 20. O relato dele está transcrito no livro do historiador Jonas Cadorin, que reproduzimos a seguir:

Estávamos a 525 metros sobre o nível do mar e descansamos uma hora. Ali nos veio encontrar uma turma de jovens robustos, todos eles também armados, para acompanhar-nos durante o resto da viagem dentro da mata virgem. Vendo isso, pensei novamente no meu canivete e não digo o quanto desejaria que se transformasse numa terrível durindana pendente de minha cintura e capaz de esquartejar sozinha uma dezena de índios [sic] se tivessem aparecido. (GANARINI, 1901, Impressioni di Viaggio, apud CADORIN, 1992, p. 50-51).

Para Ganarini, a única solução para resolver a desarmonia entre aqueles povos era a “domesticação” ou “civilização” daqueles que ali estavam, como se o estilo de vida do branco fosse o melhor modo de viver. A própria Província destinava verbas para a “catequização dos selvagens”, mas muito poucas delas se concretizaram. Os arcos e as flechas cada vez mais foram sucumbidos, e os “civilizados” impuseram sua força com as armas de fogo – fossem elas provenientes do próprio núcleo familiar ou da ação dos “batedores” contratados.

1.3 – A construção de uma cultura religiosa em Nova Trento

Em Nova Trento quando uma criança nasce, faz-se a polenta e joga-se na parede. Se grudar vai ser pedreiro, se não vai ser padre. (Ditado popular)31

31 Este ditado está transcrito no livro Nova Trento inCanto de Fé, de Ana Maria Marques (2000, p. 19). 42

O ditado popular acima reflete bem o panorama da população neotrentina desde a sua fundação até os dias de hoje. O trabalho e a religiosidade sempre andaram juntos. Até hoje, Nova Trento é considerado um “celeiro de vocações”, devido ao grande número de muratori (pedreiros) e também pelo expressivo ingresso de pessoas em ordens religiosas e seculares. Até pouco tempo, eram raras as famílias que não tinham pelo menos um filho padre ou uma filha freira. O mesmo se aplica em relação aos pedreiros. Inúmeras famílias herdaram de seus antepassados o referido ofício e, não por acaso, dedicaram-se intensamente na construção de igrejas, capelas, oratórios e santuários espalhados pela cidade. Mas, de que forma esta forte religiosidade foi construída em Nova Trento e influenciou diretamente na fundação de diversas ordens religiosas, sejam elas leigas ou não? Como já citado, o imigrante – tirolês e/ou italiano - trouxe de sua pátria de origem uma cultura enraizada na fé católica. Camponeses, em sua maioria, eram habituados a servir sem dificuldades uma autoridade, “fosse ela interna à família, a figura do pai patriarca, ou externa, o pai espiritual ou padre” (GROSSELLI, 1987, p. 343). Aqui, em solo brasileiro, reproduziram o tipo de sociedade em que tinham vivido na Europa. Não demoraram muito a começar a construir as capelas, sendo as primeiras delas feitas de madeira e cobertas de palha. Posteriormente, conforme eles foram se estruturando e conquistando seus próprios recursos, promoviam mutirões para restaurar ou reconstruir estes mesmos espaços com tijolos e cimento. Sim, eles mesmos dedicavam parte da sua rotina na construção dos templos religiosos e dispendiam os valores necessários para a edificação e a ornamentação do lugar, tudo de forma voluntária. No início da colonização, entre 1875 e 1878, eventualmente um padre visitava a localidade de Nova Trento. Há registros de que, quando os imigrantes desembarcaram em Santa Catarina, o padre jesuíta João Maria Cybeo32 foi quem conduziu essa massa de imigrantes até os locais determinados. Porém, quem de fato atendia todo o Vale do Itajaí e arredores era outro sacerdote: padre Alberto Gattone33 (CADORIN, 1992, p. 55), que prestou assistência religiosa

32 Informações obtidas de PIAZZA (1977, p. 241): Nascido em 1839. Ordenado em 1868. Em 1873 esteve na freguesia do Santíssimo Sacramento de Itajaí (SC), como pároco, e em Tijucas. Em 1875 em . Em 1876 nas colônias italianas da cercania de Curitiba (Rondinha). De 1872 a 1879 na Colônia Blumenau, estando em 1878 em e Rodeio. Em 1890 esteve no planalto norte-catarinense. Esteve em Nova Trento, de 05/01/1880 a 07/03/1925, como administrador do curato. Faleceu nessa cidade em 07/03/1925. 33 Era o padre Alberto Francisco Gattone. Nascido em 09/10/1834, em Schladen, Goslar, diocese de Hildesheim, Alemanha, filho de João Gerard Gattone e de Ernestina Frederica Gericke. Ordenado em novembro de 1850. Trabalhou em Hanover, transferiu-se, depois, para o Brasil, residindo em Joinville (1860). Foi vigário de São Pedro Apóstolo do Alto Biguaçu (1836), Gaspar (1864 a 21/05/1867), Brusque (1867 a 1882), concomitantemente, Itajaí (1871 a 1874), Laguna, Vassouras (RJ). Capelão da Igreja da Glória, Rio de Janeiro. Morreu no Hospital de Nossa Senhora da Gamboa, Rio de Janeiro, a 28/01/1901, de acordo com PIAZZA (1977, p. 253). 43 nos primeiros quatro anos do processo migratório, juntamente com o padre Arcângelo Ganarini, seu coadjutor, também imigrante do Trentino (Itália). Eles atendiam toda a paróquia de São Luiz (Brusque), a qual compreendia Nova Trento. Em virtude da grande extensão da Colônia Itajaí e Príncipe Dom Pedro e pela dificuldade de acesso dentro da mata, as visitas eram raras. Estas aconteciam, especificamente, para realizar batismos, casamentos, bênçãos de residências ou para celebrar uma missa. Estes primeiros eventos foram realizados na Capela Santa Ágata, localizada no bairro Besenello, ou na Igreja dedicada a São Virgílio, no centro, ambas construídas em 1876, um ano após a chegada da primeira leva de imigrantes Com as raras visitas apostólicas e a demora na construção das capelas, as colonas e os colonos promoviam celebrações em honra a seus santos de devoção em suas próprias residências ou em algum nicho improvisado em lugar de destaque. O culto geralmente era dirigido por algum membro da família que conhecesse as orações ou por alguém que possuísse um devocionário trazido na bagagem. Também estavam na lista de bagagem dos imigrantes os quadros ou imagens do santo padroeiro de sua vila de proveniência. Antonieta Cadorin Marchi (FACCHINI, 2017, p. 82-83) guarda até hoje o quadro de São José, que sua avó trouxe da Itália. O trabalho de formação religiosa junto às crianças, o cuidado com as capelas e o atendimento provavelmente esteve atrelado às mulheres. É possível afirmar que o papel feminino foi fundamental na formação dessa cultura religiosa em Nova Trento, embora muitas vezes isso não esteja evidente nos documentos da paróquia e nos livros de atas consultados para esta pesquisa, conforme destacado no último ponto desta dissertação. Desta maneira, devido às raras visitas de sacerdotes, a figura do “sacristão” ou “sacristã” ou, conforme cita Grosselli, o “padre da floresta”, o “padre da capela” ou, ainda, o “capelão” surgiu quase espontaneamente (1987, p. 452). Era uma pessoa que sabia ler ou era considerada uma das mais cultas da comunidade. Segundo o sociólogo, “geralmente” era um homem, mas há registros de que houve uma capelã ou capelãs:

Em Besenello (bairro de Nova Trento) atuou com estas funções a “vécia Conci” (velha Conci), ao passo que outra fonte fala de uma “betta Slossera” (é possível que se trate da mesma pessoa). (GROSSELLI, 1987, p. 452).

Muito embora a historiografia tente convencer que a figura do capelão pertencia “quase sempre” a um homem, é possível acreditar que grande parte destas funções fossem executadas por uma mulher. Até porque esses mesmos homens, como já mencionado, estavam concentrados em trabalhos “laboriosos”, como a construção de estradas, pontes e casas, 44 restando para a figura feminina o trabalho apostólico e missionário, ensinando as crianças e os mais jovens a sua cultura e tradição religiosa. Alocadas em suas casas ou em espaços estratégicos, entretinham as crianças com o catecismo ou a recitação do rosário em latim, geralmente defronte de algum pequeno altar ou oratório. A religião, então, era doméstica, como fora nos tempos primórdios, de acordo com Fustel de Coulanges (2005, p. 25). Ali, neste pequeno nicho, clamavam por proteção, pediam por chuva – em função da lavoura pela qual zelavam – rezavam pela solução de problemas de saúde e, até mesmo, em favor dos seus animais domésticos. São Roque, santo protetor do gado e dos animais, é uma das capelas mais visitadas pelos moradores até os dias de hoje, inclusive com celebração de festa. A “sacristã” não detinha a função apenas de assistente religiosa, mas era também uma líder na comunidade, responsável por congregar as pessoas e reconstruir uma ordem social. Com a chegada do padre ou da Igreja, esta ordem foi completamente restabelecida ou revertida. O padre era, oficialmente, o representante de Deus e, portanto, a maior autoridade local, na visão das colonas e colonos. Nas esporádicas visitas dos padres à colônia, o padre celebrava a missa e falava sempre do púlpito a respeito de tudo e de todos. As cristãs e cristãos só escutavam.

Discorria sobre os mais variados assuntos sem contestação: sobre o número dos filhos que um casal podia e devia ter e como educá-los. Demarcava limites até onde podiam chegar os namorados. Decretava aos casados qual devia ser a relação deles. Ditava regras quanto ao vestir, cabelos, perfumes, festas, diversões. Era ele que tomava as decisões para resolver o problema de uma seca, de calamidade da agricultura, de uma peste nos animais, de um desacordo entre um casal. Enfim, sua competência era universal: cobria o ser humano desde o nascimento até a morte e até no outro mundo. (GROSSELLI, 1987, p. 455)

O centro da vida da comunidade, então, não era uma autoridade local ou da colônia, mas a religião ou a sua liderança maior ali presente: o padre ou a sacristã. Em entrevista, Renzo Maria Grosselli afirma que o calendário (ou o ano) se desenvolvia em torno das festas e datas celebrativas da Igreja: “O ano não era só do Natal ou da Páscoa, mas era o ano dos mortos, dos santos. Era o ano das festas religiosas e dos momentos da vida de Jesus Cristo. E eles eram, na grande maioria – esmagadora maioria – crentes firmes”, afirmou. Não é difícil constatar que, em grande parte das famílias – verificando-se os nomes das filhas e filhos das entrevistadas dessa pesquisa e da anterior, realizada em 2005 – que as crianças foram batizadas com nomes de santos e santas: Ágata, Maria, Anna, Giovanni (João), Giuseppe (José), Francesco 45

(Francisco). Geralmente prevaleciam os nomes de origem italiana, perceptível nos livros de atas das instituições religiosas, que veremos logo à frente. Mas a Igreja Católica não apenas influenciava na escolha de nomes de santos. Ela também interferia diretamente na constituição dos núcleos familiares. Como já mencionado, havia a proposta de povoar o sul do Brasil. A religião, neste sentido, também contribuiu para incentivar as famílias a não evitarem os filhos. Esta era a intenção: concebê-los seguidamente. Segundo a pesquisadora Marilda Checcucci Gonçalves da Silva, até a década de 1960, houve uma forte pressão da Igreja Católica no sentido de “impedir qualquer tipo de controle à natalidade por parte dos colonos” (SILVA, 2001, p. 148). Ainda hoje, em Nova Trento, ouvem- se muitos descendentes falarem: “somos filhos da Igreja”, remetendo à ideia de que nasceram pelo incentivo de padres e religiosas. Naqueles tempos, era difícil, tanto para as mulheres, quanto para os homens, contestar qualquer determinação vinda da Igreja, pois o padre era a autoridade máxima e deveria ser respeitado como tal. Ainda nos dias de hoje, muitas famílias neotrentinas não ousam posicionarem-se contra alguma ordem ou atitude proveniente de religiosos, afirmando que “é pecado” ou que pode causar algum “mal” ou “trazer consequências”, muito provavelmente porque mantêm firme a ideia de punição que pode vir do tão temido purgatório ou inferno, citado nas homilias. Sendo assim, conforme o passar dos anos, esses inúmeros filhas e filhos passavam a ajudar na lavoura, quando atingiam uma certa idade, aos sete ou oito anos. Quanto mais filhos, mais mão-de-obra. Por outro lado – e talvez os colonos e colonas não ficaram atentos a essas questões no início do processo de colonização, conforme referencia SILVA (2001) – o número de filhos interferia diretamente na divisão da herança depois, ou seja, na partilha das terras que tanto lutaram para conquistar. A estratégia mais simples – às vezes adotada até os dias de hoje – era excluir as mulheres da herança da terra. “Essa estratégia, considerada mais fácil, era tomada como ‘costume italiano’, embora também fosse praticada por colonos de origem alemã. A mulher não herdava terras porque, a partir do casamento, faria parte de uma outra família” (SILVA, 2001, p. 156-157). A mulher, mais uma vez, é vista como uma figura secundária, não merecedora da tão sonhada partilha. O patriarcado privilegiava o homem, ou o “varão”, que daria continuidade ao sobrenome da família – assim na visão machista daqueles tempos. Outra estratégia, que foi foco da pesquisa de Marilda Checcucci Gonçalves da Silva, foi o estímulo para enviar os filhos ou as filhas para a carreira religiosa, mais comum no passado do que nos dias atuais, sempre em parceria e em comum acordo com a autoridade religiosa local. A vocação religiosa, então, foi uma das práticas justificadas pelos pais para reduzir o número de herdeiros na família. “Nesses casos, os filhos renunciavam e o que seria a 46 indenização pela perda da terra ou do dote (no caso das mulheres) era tomado pelo seu equivalente no estudo” (SILVA, 2001, p. 165). Sim, porque manter os filhos e as filhas em conventos também tinha um custo, e quem bancava tudo isso geralmente era a família. Somente em casos específicos, quando os familiares admitiam a falta de recursos, as despesas eram “patrocinadas” por algum padrinho ou autoridade local que se disponibilizasse a pagar. Além disso, as próprias congregações religiosas tinham interesse nesse público, e promoviam diversas ações para atrair e manter essas pessoas em suas casas. Conclui-se, assim, que as vocações religiosas, difundidas em praticamente todas as famílias neotrentinas, foram estimuladas pelas duas esferas sociais: a própria família, que tinha interesse em função da divisão dos bens, e as entidades religiosas, que buscavam preencher suas escolas de formação e que, ao final, enviavam esses religiosos e religiosas para diversos trabalhos apostólicos. Era a estratégia da ação da Igreja, do projeto restaurador romanizado – que explicaremos logo em seguida – que muitas vezes batia de frente com a tradição popular religiosa. Mas ambos conviveram, experimentaram-se, divergiram e concordaram na defesa de seus interesses.

1.4 – A chegada da Companhia de Jesus

A Companhia de Jesus34 estabelece residência em Nova Trento, a partir de 1879. Até então, como já comentado no último ponto, os imigrantes eram atendidos esporadicamente por padres da Colônia Itajaí e Príncipe Dom Pedro – submetidos à paróquia São Luiz Gonzaga, da atual cidade de Brusque, sendo eles Alberto Gattone e Arcângelo Ganarini35, ou pela própria comunidade através da figura da sacristã ou da capelã. Além desses dois padres, o jesuíta João Maria Cybeo já conhecia as colonas e os colonos italianos, desde o desembarque, no porto de Itajaí. Ele mesmo tomou diversas medidas e solicitou – em Roma – o estabelecimento de uma Missão Romana Jesuíta em meio aos italianos de Nova Trento (MARQUES, 2000, p. 69). A proposta era investir em áreas de

34 A Companhia de Jesus, também conhecida como Ordem dos Jesuítas foi fundada por Inácio de Loyola, com aprovação papal datada de 27 de setembro de 1540. Reúne, hoje, aproximadamente 16 mil religiosos, atuando em torno de 100 países dos cinco continentes. Informações colhidas do site oficial da Companhia de Jesus, disponível em: , acesso em 17 de agosto de 2018. 35 Ganarini nasceu em 01/02/1844, em Ronchi, diocese de Trento, Itália. Entrou para o seminário daquela Diocese em 1866. Ordenado em 1869. Cooperador em Roncegno, por sete anos. Vindo para o Brasil foi coadjutor em S. Luiz Gonzaga de Brusque (1882-1886), com provisão de 21/02/1884 “para cura da Colônia de Itajaí”, atendendo preferentemente Nova Trento. Esteve 16 anos à frente de Sto. Amaro do Cubatão (com provisão de 22/09/1884). Esteve em Enseada de Brito, de 1889 a 1892. Capelão da Irmandade do Senhor dos Passos, de Florianópolis. Autor de trabalhos sobre o Brasil, como “Nuova Trento. Impressioni di Viaggio” (Trento, 1901). Com os seus escritos, favoreceu o fluxo migratório para o Brasil. Faleceu em Florianópolis, a 23/07/1920 (PIAZZA, 1977, p. 252). 47 colonização europeia, especialmente italiana, pois esta população já trazia consigo suas tradições alicerçadas na Igreja Católica. Era o projeto romanizador católico tomando forma: a Igreja anunciava a sujeição do poder monárquico ao Pontificado Romano e, mais especificamente, ao Papa, representante oficial desse poder, a autoridade máxima que direcionava e orientava (e ainda hoje orienta) a vida em sociedade. Desde a chegada desses religiosos, o governo catarinense auxiliava ou, melhor dizer, patrocinava os Jesuítas em suas missões pelo estado. Bancava as despesas com aluguel e necessidades básicas. Incentivava, então, a presença de um religioso com o propósito de firmar, cada vez mais, a religião católica, que era considerada oficial à época. Nos relatos dos antigos padres da companhia, sempre estavam listadas as dificuldades de acesso à colônia e o mau estado de conservação das capelas e igrejas. “Nestas muitas vezes não existiam paramentos litúrgicos, nem vasos sagrados”, como registrou padre Jorge Alfredo Lutterbeck, no livro Jesuítas no Sul do Brasil (1977, p. 73). Os Jesuítas marcaram presença em Santa Catarina, primeiramente em dois momentos, sempre com a preocupação de criar os conhecidos colégios. A primeira tentativa ocorreu em 1750, na ilha de Santa Catarina, ainda quando a província catarinense não tinha párocos. Contaram com a ajuda, naquela ocasião, de padres provenientes de Portugal. Mas a tentativa durou pouco. Logo em seguida, em 1749, esses religiosos são expulsos do país por determinação do governo português.

Coube ao Governador de Santa Catarina, Dom José de Melo Manuel, fazer embarcar para os Rio de Janeiro os que aqui existissem. Desta forma, os dois padres que trabalhavam no Colégio do Desterro foram enviados para a sede do Vice-Reino do Estado do Brasil. (PIAZZA, 1977, p. 62).

A segunda tentativa ocorreu anos mais tarde, em 1845, com a criação do segundo colégio de padres Jesuítas, também em Desterro – hoje, Florianópolis. Participaram desta formação padres Jesuítas de origem espanhola, que moravam na Argentina e no Uruguai e ficaram sabendo “que a Assembleia Provincial de Santa Catarina ocupava-se em estabelecer meios para trazer da Europa missionários da Propagação da Fé” (PIAZZA, 1977, p. 107). O colégio teve início em Santa Catarina com 30 alunos de gramática Latina. Não demorou muito e estes mesmos padres incentivaram a criação da Congregação do Sagrado Coração, em 1847, enquanto davam prosseguimento às missões rurais, que se estendiam até as colônias alemãs da província. Acredita-se que Santa Catarina recebeu os primeiros jesuítas da “ordem restaurada” no Brasil, muito embora até hoje o Rio Grande do Sul seja considerado o “berço” da Companhia 48 de Jesus, pois estes fincaram morada em Porto Alegre e, posteriormente, em São Leopoldo, onde hoje possuem o santuário do Sagrado Coração de Jesus, que atrai multidões de devotos ao túmulo do padre João Batista Reus. A instalação dos colégios e dos seminários, posteriormente, tinha um propósito muito bem delineado pelos Jesuítas: formar um laicato católico e um clero secular numeroso, que desse continuidade ao trabalho missionário da Companhia, seja em Santa Catarina ou no resto do Brasil. Não é de se estranhar que, em pouco tempo, surgiram as escolas católicas ou paroquiais, que foram crescendo gradativamente a cada ano – trataremos do assunto mais adiante. O primeiro “embate” dos Jesuítas, acredita-se, foi o convívio com a figura da sacristã na comunidade de Nova Trento, que atuava até de forma consolidada naquele vilarejo. Embora não haja registros de desentendimentos entre os religiosos e a população leiga, muito provavelmente isto deve ter existido quando da chegada dos padres Jesuítas. A sacristã, diferente do padre, atuava em conjunto com as famílias, dividindo tarefas, arrecadando recursos para as reformas da capela ou do oratório, organizava a limpeza do espaço, entre outras atividades daquele núcleo. Com a vinda dos padres, esses papeis precisaram ser remodelados, ou seja, exigiu acomodações. Com o passar dos tempos e adaptando-se gradativamente ao dia a dia do povo, os padres estabeleceram morada numa casa no centro, especialmente construída pelos colonos. Para atingir todos os fiéis, os religiosos firmaram um sistema de rodízio, sendo que o padre de origem alemã, por exemplo, atendia os imigrantes de mesma origem. O mesmo acontecia para os de origem italiana ou polonesa. Em localidades mais longínquas, eles acabavam se hospedando nas residências dos “puxadores de rezas” ou na zeladora da capela, até porque era péssima a qualidade das estradas, o que dificultava o deslocamento. Como já mencionado, o padre atuava com autoridade sob todos os aspectos da vida das pessoas. Princípios alicerçados no Concílio de Trento e no Vaticano I, com base no trinômio: autoridade, tradição e sacramentalismo. A Igreja buscava oficializar estruturas hierárquicas e devocionais, de uma forma vertical, ou seja, de cima para baixo, de Roma até os fiéis. Valorizava-se, assim, os sacramentos, o respeito à hierarquia clerical e a práticas devocionais. Não por acaso, toda a comunidade era envolvida a prestar reverências a Nossa Senhora, ao Sagrado Coração de Jesus e a São José. No caso da Companhia de Jesus, os padres incentivavam ainda a devoção a Santo Inácio de Loyola e a São Luiz Gonzaga (MARQUES, 2000, p. 70). Esta era uma cultura de certa forma imposta pela Igreja romanizada, alicerçada na proposta de grandeza da Santíssima Trindade (Pai, Filho 49 e Espírito Santo). No centro de Nova Trento é fácil averiguar esta devoção institucionalizada pela Companhia de Jesus: a principal rua ganha o nome do santo fundador dos Jesuítas: Inácio; e no interior da igreja matriz encontramos todos os santos mencionados neste parágrafo: São José, Sagrado Coração de Jesus, Santo Inácio e São Luiz. É interessante observar a veneração a santos do sexo masculino, deixando para segundo plano a devoção à Nossa Senhora, que ganha dimensões mais fervorosas apenas anos mais tarde, como veremos logo à frente. Com relação ao Sagrado Coração de Jesus, este era o padroeiro dos apostolados e, por isso, não demorou muito o estímulo vindo dos padres para fundar essa entidade em Nova Trento. Em 2019, o Apostolado da Oração de Nova Trento, fundado em 1887, completa 132 anos de existência, sendo considerado o terceiro mais antigo do país. Ele congrega até hoje devotos – homens e mulheres, portanto uma associação mista – que tem a proposta de “adorar o Santíssimo e rezar pelos pecadores” (FACCHINI, 2017, p. 95). Realiza alguns rituais clássicos, como a realização de missas em todas as primeiras sextas-feiras do mês, a participação em reuniões, as ladainhas e as adorações. Além disso, carregam no peito uma medalha do Sagrado Coração de Jesus, adornada por uma fita de cor vermelha. Esta estratégia de criar uma “unificação” religiosa fez parte do plano gerencial dos padres que ali estavam. E, diversas foram as ações propostas pela Igreja naquele momento: além da devoção a determinados santos e a criação de associações como o Apostolado da Oração – a primeira de outras que surgirão – o clero estabeleceu festas religiosas e também canalizou a fé para a construção de santuários em pontos altos, como foi o caso de Nova Trento e de tantas outras cidades pelo país (veja a foto, logo em seguida). Tudo isso fazia parte deste projeto amplo, romanizador, que, como comentado, provinha da autoridade maior, Roma. Um exemplo desse plano unificador e centralizador foi a virada do século 19 para 20, que ficou marcada em Nova Trento. Foram instaladas cruzes nos pontos mais altos, mais especificamente em quatro pontos estratégicos: Barão de Charlach (com 1.148 metros), Lima (com 1.090 metros), Bela Vista (com 850 metros) e Morro da Onça, atual Morro da Cruz (com 525 metros), onde hoje está localizado o Santuário Nossa Senhora do Bom Socorro. Os Jesuítas incentivaram o acendimento de fogueiras nesses pontos mais altos, para celebrar ou pedir por graças, na noite do dia 31 de dezembro de 1899. Toda a população pode ver os clarões dos fogos nesses montes e comemorar a passagem do século. É interessante pontuar que essas iniciativas que envolviam pompa e festa, ressaltando a autoridade hierarquicamente constituída na Igreja, contrastava com a religiosidade popular, que começou com a figura da sacristã e da própria construção das capelas e igrejas da comunidade. 50

A capelã ou a sacristã era a porta-voz dessa população, mas, ainda assim, precisava manter (ou era obrigada) a manter uma ótima relação com o padre e demais religiosos. É o que Peter Burke explica ao afirmar que é difícil estabelecer de onde começam e onde terminam a cultura de elite e a cultura popular, pois ambas estão entrelaçadas. “O problema básico é que uma ‘cultura’ é um sistema com limites muito indefinidos” (BURKE, 1978, p. 23). O que constatamos aqui, é uma certa homogeneidade entre o que é popular e o que é clerical, pois de um lado temos uma população religiosa já na sua história, construindo seus capitéis e realizando suas cerimônias domésticas; e de outro temos a figura do padre e seus auxiliares, que tentavam controlar ou mesmo “normatizar” esta Igreja romanizada. De certa forma, a instituição reinante ali rivalizava com esta religiosidade popular e, assim, o clero precisava monitorar os tais “abusos”, para manter firme seus propósitos.

Figura 2 – Registro do Monte Barão de Charlach – o mais alto do município, com 1.148 metros. Na virada do século 19 para o século 20, os montes mais altos receberam cruzes como esta

Fonte: Édio Antônio Facchini (2011)

É o que podemos comprovar na fala do próprio padre Arcângelo Ganarini, ao afirmar que a presença fixa dos jesuítas foi “a salvação material e moral” das colonas e colonos, pois, caso contrário, eles estariam entregues “à dissipação e a mau vezo de querer servir a dois senhores, do modo que a fé e a piedade avoenga iam cada vez mais esfriando” (GANARINI, Impressioni di Viaggio, 1901, apud PIAZZA, 1950, p. 147). Outra influência bastante forte proveniente dos padres Jesuítas foi em relação à criação de instituições de caráter cultural e recreativo. Um exemplo é a Banda Musical Padre Sabbatini, 51 fundada pelo sacerdote de mesmo nome: Ângelo Sabbatini SJ36, em 1888. O religioso tinha forte inclinação para a música e, não demorou muito para incentivar a criação de uma banda, inspirado por uma apresentação de cinco músicos provenientes de Blumenau. Os primeiros instrumentos da “Filarmônica Neotrentina”, como era conhecida no início, foram adquiridos com o auxílio de diversas pessoas da comunidade, sendo que a primeira apresentação ocorreu no ano seguinte, em 1889, durante a procissão de Corpus Christi. A banda fora criada para entoar canções apenas em cerimônias religiosas, durante procissões ou festas litúrgicas, ou seja, o repertório estava restrito ao universo sacramental. O grupo musical existe ainda hoje em Nova Trento. Completou, em 2018, seus 129 anos ininterruptos de atividade, mas mudou completamente seu repertório: mantém presença em procissões, como no passado, mas apresenta-se em festas populares do município e da região, mesclando ritmos como rock, pop e canções italianas. Assim, é possível observar que o poder clerical sobressaiu para manter certa “ordem” diante de tudo e de todos. Ao mesmo tempo, a população não deixou de lado seus costumes trazidos da antiga Europa e se reinventou em solo brasileiro. Um assimilou do outro e ambos se recriaram. Ali desenvolveram-se ações de poder e resistência, mas acredita-se mais de poder do que de resistência, tendo em vista que a própria gente preferia atender à figura do padre do que conflitar com ele.

1.5 – A constituição das escolas para a formação religiosa

Entender como foi formado este cotidiano de religiosidade em Nova Trento perpassa também sobre como foram constituídos os núcleos escolares neste município catarinense. A escola acompanha a história de Nova Trento desde quando era núcleo colonial da Colônia Itajaí e Príncipe Dom Pedro, em 1876. O local, muitas vezes a própria capela, onde eram realizadas as missas, servia como espaço para estudo, até 1879, quando os jesuítas chegaram em definitivo. Aquele espaço físico congregava, então, o religioso, o social e o educacional ao mesmo tempo. Supõe-se que aprender a ler e escrever era uma prioridade para essa população. E quem ficava responsável por esta tarefa? Certamente às mulheres. Na maioria das vezes a historiografia insiste em colocar uma figura masculina para esta função. Inclusive muitos pesquisadores citam que Virgílio Fantini foi, provavelmente, o primeiro professor e diretor de

36 Italiano, professor do Colégio do Desterro, em 1860 (?). Trabalhou em Nova Trento, de 03/01/1880 a 06/08/1882 e, novamente, de 16/03/1887 a 1896. Manteve ali um colégio e fundou a “Filarmônia Neotrentina”. Faleceu em Itu (SP), a 18/10/1907. Informações obtidas de PIAZZA (1977, p. 290). 52 escola daquela comunidade, para formação apenas para meninos (BOSO, 1992, p. 90). Mas, de qualquer forma, havia muitas mulheres envolvidas com as crianças – como já foi citado com relação à figura da sacristã ou capelã. Certamente cabiam às mulheres a organização e a educação: elas tiveram papel fundamental e decisivo na criação de toda esta cultura: religiosa e social. Naquele tempo, quem assumia a função de professor ou professora era alguém que detinha um certo conhecimento, que se destacava e se colocava à disposição para ensinar com os materiais que estavam ao seu alcance e, claro, ainda na língua italiana ou no dialeto que fora trazido por esses imigrantes. Além disso, é importante destacar que “dos imigrantes trentinos estabelecidos em Nova Trento, em torno de 15% eram analfabetos” (BOSO, 1992, p. 74). Segundo a professora Ivette Marli Boso,

(...) uma estatística realizada no Trentino, em 1880, apontou que os analfabetos acima de seis anos eram em um percentual de 12,07% entre os homens e de 16,32% entre as mulheres. Nas províncias Vênetas e Lombardas, das quais vieram muitos para Nova Trento, o percentual de analfabetos era ainda mais elevado, pois o percentual total para o norte da Itália era de 54, 2%. (Ibidem, 1992, p. 74).

Com estes dados, é possível perceber que as meninas não recebiam o mesmo estímulo para estudar, se comparado aos meninos no início da vida escolar, tanto que a taxa de analfabetismo das jovens é maior. Além disso, os meninos tinham uma escola exclusiva para eles, conforme citado anteriormente, enquanto que as meninas muito pouco ou quase nunca eram incluídas nesses espaços. Mais adiante, no capítulo dedicado às entrevistas, isso pode ser comprovado na fala de uma das entrevistadas, que nunca recebeu incentivo para estudar: muito pelo contrário, era preferível mantê-la nos espaços privados da casa. A comunicação verbal também era dificultada pela diferença dialetal, pois o imigrante natural do Trentino tinha problemas para entender o conterrâneo da Lombardia. Todos esses fatores, somados, interferiam diretamente no dia a dia da comunidade e na constituição das escolas. O distrito possuía, em 1878, cinco escolas (CADORIN, 1992, p. 123), embora outros autores, como o Padre Arcângelo Ganarini (1901) e Ivette Marli Boso (1992), apontam que haviam sete escolas, mas acredita-se que este número é relativo, pois ainda naquele período Nova Trento não havia sido elevada à categoria de município37. Todas essas escolas eram mantidas com recursos do governo provincial, até 1881, quando houve o desmembramento do

37 Nova Trento foi elevado à categoria de município no dia oito de agosto de 1892, através da Lei Provincial promulgada pelo presidente da Província à época, Tenente Joaquim Machado. 53 município vizinho de Brusque em relação à colônia e ocorreu uma queda considerável, chegando a nulidade, do número de escolas. Esta dificuldade se dava por conta da falta de infraestrutura e de professores capacitados. Isto só foi restabelecido anos mais tarde, com o apoio de religiosos. “A escola era, após a igreja, a estrutura que mais interessava aos religiosos” (BOSO, 1992, p. 87). Não por acaso, formaram-se os núcleos escolares, muitas vezes na própria capela, com a figura do padre sempre presente, seja ministrando educação religiosa ou mesmo promovendo missas antes do início das aulas. A Igreja atuava fortemente junto às famílias, pois era de fundamental importância – e um pré-requisito – que todas as crianças fossem bastante instruídas, caso contrário não recebiam a Primeira Comunhão. Desta forma, a obrigatoriedade do ensino ficava atrelada aos parâmetros religiosos, e não governamentais. Era o início na vida católica. A partir daí a criança seguiria sua vocação, seja para a vida religiosa ou para a vida em sociedade, aprimorando seu perfil temente à Igreja. Contudo, “as escolas do governo começam a aparecer na cidade a partir de 1885” (MARQUES, 2000, p. 103). Antes disso, o governo provincial apenas subsidiava iniciativas particulares. Essas escolas públicas trouxeram à tona uma discussão na sociedade: esta escola deveria ser laica ou religiosa? Os líderes à época entenderam que uma escola mista de ensino primário precisava ser formada e, anos mais tarde, com a formalização do Estado Republicano, fica evidente que não era oportuno criar escolas de cunho religioso – conforme a Constituição de 1891. Elas deveriam ser laicas, independentes de credos religiosos, pelo menos formalmente, no papel. Surge, assim, a primeira escola pública (mista), tendo à frente uma professora: Inês de Castro e Silva Sá Lobão (Ibidem, 2000, p. 104), trazida do Desterro (Florianópolis) para as terras da Colônia Itajaí e Príncipe Dom Pedro, para instrução pública em português. Assim, o distrito de Nova Trento viveu um certo conflito em relação à criação das escolas de governo (públicas), até porque estas não traziam em seu currículo o ensino da “doutrina” religiosa e nem mesmo da língua italiana – que muitas vezes as escolas paroquiais prezavam. Segundo conta Ana Maria Marques (2000, p. 105), o Padre Cybeo contabilizou em uma publicação dirigida a um periódico italiano a existência de quatro escolas “governamentais” e quatro “paroquiais”, em 1910. Esta informação é melhor contextualizada na pesquisa da neotrentina Ivette Marli Boso, quando explica de que forma eram mantidas essas instituições:

As governamentais são naturalmente mantidas pelo governo brasileiro, as paroquiais pelo bispo; duas dessas são dirigidas por freiras e duas por bons professores italianos. (BOSO, 1992, p. 90)

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As escolas paroquiais, conforme explica Boso, eram patrocinadas pelo próprio governo italiano, outrora, austríaco: recebiam livros e dinheiro para custear as despesas com os professores. Isso criou, de certa forma, um isolamento inicial e foi fundamental, até o início do século 20, para a sobrevivência da língua dos imigrantes. Este fator da língua e da cultura influenciou também na constituição das famílias neotrentinas, criando até um certo “enclausuramento” regional. O imigrante evitava criar laços e estabelecer comunicação com pessoas de origem diferente da sua, como os alemães, os poloneses e os brasileiros (de origem lusa), que também estavam aí. Esta análise é feita por Grosselli (1987, p. 432-444) diante dos casamentos estabelecidos entre os imigrantes. Verifica- se uma forte separação étnica e uma escala de valores: receavam menos o contato dos brasileiros do que com os alemães, por exemplo. Os brasileiros eram vistos como pessoas sem amor para com a família e a agricultura. Porém, com os alemães existiam diferenças mais acentuadas do que a própria língua: a religião que professavam, neste caso o Protestantismo.

O bem estava todo ele dentro dos próprios limites étnicos, o mal, todo ou quase, fora dos mesmos. Portanto, os casamentos podem ser celebrados somente entre pessoas do mesmo lugar, mesmo que fossem parentes próximos. Devia ser levantado de imediato um muro entre o próprio e os outros. As novas comunidades foram caracterizadas por um fortíssimo espírito religioso, mais forte se possível de quanto o fora na pátria. Mas outras características foram o ódio pelos estrangeiros (e) o isolamento. (GROSSELLI, 1987, p. 443).

O que fica evidente aqui é que para o migrante era extremamente importante manter suas raízes intactas, neste caso a língua e a cultura religiosa. Esses dois fatores estavam intimamente ligados à Igreja, como já referenciamos no início deste ponto, uma vez que eles caminhavam juntos, e era seu espaço social. Os próprios religiosos evidenciavam que a educação religiosa não passava pelo ensino da língua portuguesa, muito pelo contrário, tentavam aprender a língua dos colonos para melhor se comunicar com eles. Trocar a “Madonna” pela “Nossa Senhora” era um processo a ser construído em comunidade, mas que apenas foi assimilado após longos anos. Um fator preponderante neste processo foi o início da 1ª Guerra Mundial, quando os subsídios do governo italiano para o ensino foram suspensos. A utilização de línguas que não fosse a portuguesa estava associada a uma forma de segregação social. Isso se intensificou nos anos de 1930 (2ª Guerra Mundial), quando o italiano passou a ser vinculado à política autoritária de Mussolini. Nos livros de avisos da Paróquia, como registra a historiadora Ana Maria Marques, fica nítido o conflito entre manter a língua italiana – e uma maior proximidade com os descendentes italianos – e a política de nacionalização que atingia toda aquela sociedade. A 55

Igreja e a escola foram as primeiras a sofrerem com as críticas e repressões desse período, visíveis até mesmo nos livros de atas escritos pelas associações vinculadas à Igreja: uma parte escrita na língua italiana (e dialetal) e outra parte escrita em português. Mesmo com todos esses enfrentamentos em relação à língua, a Igreja tinha uma preocupação constante em garantir uma instrução religiosa na escola e, especialmente, na escola paroquial. Os padres promoviam ações para manter essas instituições, como por exemplo festivais e teatros, sempre com o intuito de angariar fundos para a manutenção das escolas. Além disso, os Jesuítas trataram de trazer para Nova Trento religiosas da cidade de Rodeio, localizada no Vale do Itajaí e também colonizada por imigrantes trentinos, porém estas pertencentes à Congregação das Irmãs Catequistas. Elas assumiram, em 1917, a direção da Escola Paroquial de Santo Antônio, recém-construída na localidade de Salto, interior de Nova Trento. Ali permaneceram até 1941, atendendo às crianças no ensino básico e primário (MARQUES, 2000, p. 106). A língua italiana foi o fator principal para a contratação destas religiosas, uma vez que elas poderiam se comunicar com mais facilidade com o público alvo em questão. Porém, com o passar dos anos e a frequente perseguição política em função da língua, o governo catarinense apoiou o crescimento das escolas públicas – com base na política de nacionalização – e, consequentemente, houve um declínio das escolas paroquiais. Nota-se, então, que havia um conflito entre manter uma escola voltada para os assuntos religiosos e para a manutenção da língua italiana – preponderante, por assim dizer – e a escola pública, que detinha um outro tipo de projeto pedagógico, voltado para a consciência nacional. Era a proposta de separar o público do privado, muito embora isso fosse quase impossível. O migrante não deixava em casa seus valores religiosos quando ia para a escola, muito menos a linguagem, seu fator de comunicação essencial. Dessa forma, os conflitos desta natureza prosseguiram por longos anos e, é fácil constatar, até na atualidade, que a língua e a religiosidade jamais foram separadas do cotidiano de Nova Trento. Ainda hoje, mesmo entre os que não falam o dialeto, há uma forma especial de se comunicar com uma certa “italianidade”, com provérbios e até mesmo palavrões que remetem, inclusive, ao meio religioso. “Sacramenta” ou “sacraóstia” são expressões usuais dos neotrentinos na atualidade. É o efeito do “bilinguismo” – expressão utilizada por Ivette Marli Boso (1992), na sua dissertação de mestrado. E, com relação às escolas, fica claro que elas congregaram interesses da família no processo de construção social e, ao mesmo tempo, auxiliaram a formar pessoas com base na moral católica da época. Ao finalizar este capítulo, compreendemos um pouco como foi construído este espaço sociorreligioso do município de Nova Trento, que perpassa pela própria população – formada 56 quase que essencialmente por imigrantes camponeses – e, claro, muito religiosos; pela Companhia de Jesus, presente desde os primeiros anos após a chegada desses colonos e colonas; pela constituição dos núcleos escolares e, por fim, pela formação das instituições religiosas, sejam elas leigas ou não, que veremos logo a seguir. Assim, no próximo capítulo, será possível compreender como este poder legitimador foi exercido para e com associações leigas femininas, como a Pia União das Filhas de Maria. Para tanto, será retratada como foi criada essa instituição no município de Nova Trento, que contou, inclusive, com a figura de Amábile Lúcia Visintainer, ou Irmã Paulina do Coração Agonizante de Jesus, que depois passou a ser adorada como Santa. A teoria será entrelaçada pelas análises dos livros de atas das Filhas de Maria e pelo manual utilizado por elas.

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CAPÍTULO 2: ASCENSÃO E QUEDA DAS FILHAS DE MARIA

2.1 – A liderança de Amábile Lúcia Visintainer

A partir das informações expostas no primeiro capítulo, tendo como base como foi construída a comunidade de Nova Trento, em Santa Catarina, damos continuidade a esta análise pontuando como foram criadas as principais instituições religiosas no município, entre elas a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição e, concomitantemente, a Pia União das Filhas de Maria, foco desta pesquisa, sendo esta uma associação leiga. Neste capítulo, também trataremos de enumerar e dar destaque ao Manual ou devocionário das participantes, editado no ano de 1953 e escrito pelo frei Basílio Röwer, bem como aos livros de atas desta entidade neotrentina ligada à Igreja Católica, que fornece informações sobre sua ascendência e o seu declínio na década de 1960. Neste momento damos ênfase à Amábile Lúcia Visintainer – futuramente, Irmã Paulina do Coração Agonizante de Jesus e, depois, Santa Paulina. Ela, então, imigrante da cidade de Vigolo Vattaro – antes pertencente ao antigo Império Austro-Húngaro, hoje Trentino Alto Ádige, Itália, chega ao Brasil com sua família em 1875, estabelecendo-se naquela que seria a futura Nova Trento. Com apenas nove para dez anos, a menina começa a ganhar destaque na comunidade por meio de seu trabalho junto à Igreja, especialmente por lecionar catequese às crianças, visitar os doentes e cuidar da limpeza da capela – esta edificada em 1880, no bairro Vígolo – mesmo nome da cidadezinha da família Visintainer, uma vez que boa parte das famílias que aí se estabeleceram eram oriundas de Vigolo Vattaro. Quem a ajudava nestas tarefas era sua amiga, Virgínia Rosa Nicolodi, migrante da mesma cidade do Trentino. A mãe de Amábile faleceu precocemente devido complicações em um dos partos, e, por isso, foi a jovem quem prosseguiu com os trabalhos domésticos e o cuidado dos irmãos, bem como com a catequese e a limpeza da capela até os 25 anos. Aos poucos, com a independência de seus irmãos e com o novo casamento de seu pai, Amábile passou a se dedicar quase que integralmente às atividades religiosas da comunidade. Inclusive ela e Virgínia queriam muito trazer uma congregação religiosa para Nova Trento, onde pudessem viver como Irmãs religiosas. “Mas não havia recursos para tal empreendimento, justificava o padre” (MARQUES, 2000, p. 39). Amábile sugeriu, então, a construção de um casebre junto à capela do bairro, num espaço onde pudessem rezar, trabalhar e ajudar os doentes da comunidade. O 58 padre aprova, mas faltava algum fato ou algo concreto para que pudessem levar adiante a ideia. Este aconteceu em 1890:

(...) uma mulher idosa e doente de câncer veio do Salto (outra localidade de Nova Trento) visitar sua filha no Vígolo. Já em estado grave e impossibilitada de volta para casa, permaneceu ali. O genro e a filha queriam interná-la no hospital, mas esse ficava em Desterro (atual Florianópolis). A distância e a falta de recursos para levá-la inviabilizou essa possibilidade. Os familiares, que trabalhavam na roça, alegavam não poder cuidar da idosa. (Ibidem, p. 39).

Não demorou muito e o padre pediu a um amigo, chamado Benjamin Galotti, permissão para utilizar o casebre que ficava ao lado da capela de Vígolo. O benfeitor fez a doação e, logo em seguida, Amábile e Virgínia batizaram o local de “Ospedaletto San Vigilio” (Hospitalzinho São Vigilio), passando a cuidar da referida cancerosa. Era o início da vida religiosa dessas duas jovens, embora não oficial, ainda. Porém, o trabalho missionário – e de enfermagem, se podemos chamar assim – não foi aceito por unanimidade pela comunidade local. Duas moças vivendo longe de suas famílias, em um casebre, suscitou inúmeros comentários maldosos. O desafio de viver de uma forma ainda não autorizada pela hierarquia eclesiástica – com exceção da aprovação do padre – dava margem a interpretações das mais diversas. Mesmo assim, Amábile e Virgínia persistiram e, foi desta forma, que começou o trabalho daquela que veio a se chamar mais tarde Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. O trabalho cresceu e tomou tais proporções que, os padres jesuítas propuseram investimentos para trazer de Vígolo para o centro de Nova Trento aquela instituição. Isso ocorreu em 1894, ou seja, quatro anos depois do início dos cuidados com a doente de câncer. Os sacerdotes também foram os responsáveis por buscar, junto aos grandes proprietários e políticos locais, a doação de terrenos no centro da localidade. Giovanni Valle e seu sogro, Francesco Sgrott foram os doadores. Foi então que os padres, com a ajuda dos moradores, coordenaram a construção da nova casa que abrigaria Amábile, Virgínia e Teresa, nova integrante do grupo. O local passou a se chamar “Casa de São José” e, posteriormente, Juvenato São José, destinado, futuramente, à formação religiosa das moças. Quem ficou responsável pela direção espiritual das jovens enfermeiras foi o padre Luigi Maria Rossi SJ38, após o pedido formal pela aprovação eclesial, feito por elas, junto ao

38 Este padre trabalhou em Nova Trento, de 25.02.1895 a 02.02.1903, onde foi o orientador da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, conforme explicita PIAZZA (1977, p. 290). 59

Bispo Dom José de Camargo Barros39. O mesmo Padre Rossi foi nomeado superior da nova Congregação, criada oficialmente em 7 de dezembro de 1895, com o nome de Filhas da Imaculada Conceição40 (CADORIN, 1992, p. 82). No ato solene, as jovens concretizaram a profissão dos votos de pobreza, castidade e obediência, passaram a adotar como hábito uma túnica preta e um cinto com a cor azul celeste, e assumiram seus novos nomes: Amábile, Irmã Paulina do Coração Agonizante de Jesus; Virgínia, Irmã Matilde da Imaculada Conceição; e Teresa, Irmã Inês de São José, acolhendo, assim, o trinômio: Jesus, Maria e José. A Congregação estava distribuída em duas comunidades: uma no centro de Nova Trento, com a Casa de São José, e a outra no bairro Vígolo, onde estava o Hospitalzinho que, depois, anos mais tarde, com maior estrutura, passou a se chamar Casa Nossa Senhora de Lourdes. Aos poucos, ganhando maior número de adeptas, elas passaram a atender os doentes, lecionar, preparar as crianças e os adultos para os sacramentos – como Primeira Eucaristia e a Crisma. A manutenção dessas casas era feita através de doações e por meio da venda de produtos da agricultura: uma parte do dia era dedicado ao plantio do milho, do arroz e da mandioca. Em uma outra parte da história da congregação entra em vigor a filanda, a fábrica de seda empreendida por Madre Paulina, como era popularmente conhecida, e muito incentivada pelos políticos da época, como o coronel Henrique Carlos Boiteux, primeiro prefeito do município de Nova Trento recém-criado, em 1892. Esta fábrica sustentou a Congregação por mais de 20 anos, ganhando inclusive menções honrosas, sendo uma de reconhecimento internacional, pela qualidade da seda produzida. A expansão da Congregação ocorreu no início do século 20, em 1903, com a vinda de Madre Paulina para São Paulo: primeiramente para Bragança Paulista e, depois, para a capital do mesmo Estado. A convite de Padre Rossi, que veio sob transferência para São Paulo, Paulina, duas irmãs e uma postulante deram início a uma nova fase, acolhendo e cuidando de ex-escravos negros e suas filhas e filhos. Mais à frente, Madre Paulina conta com a ajuda do conde Dr. José Vicente de Azevedo, considerado um dos grandes benfeitores da Congregação, estabelecendo- se no bairro Ipiranga, em São Paulo.

39 Nesta ocasião, as igrejas catarinenses estavam vinculadas à Diocese de Curitiba – Bispado do Paraná e Santa Catarina. Até 1892, todo o Estado de Santa Catarina estava vinculado à Diocese do Rio de Janeiro (PIAZZA, 1977, p. 140). 40 Há, ainda, a denominação “Filhas de Maria”, conforme documento original, datado de 25 de agosto de 1895 (Arquivo da Cúria Metropolitana de Curitiba), que a historiadora Ana Maria Marques reproduziu em sua pesquisa, baseada no livro Madre Paulina – Biografia Documentada: “Fazemos saber que atendendo ao que em sua petição nos enviou a dizer o Revdo. Superior da Residência dos Padre Missionários da Companhia de Jesus, e tendo em vista o bem espiritual de Nossos Diocesanos, Aprovamos, o quanto em nós está, a pia associação das ‘Filhas de Maria’ – estabelecida n’esta Villa de Nova Trento e na Paróchia de São João Batista das Tijucas, n’este Estado de Santa Catharina e Bispado de Curytiba” (Madre Paulina – Biografia comentada, p. 105, Apud MARQUES, 2000, p. 41). 60

Um dos momentos mais desafiadores da vida de Paulina foi quando ela foi deposta do cargo de superiora da Congregação das Irmãzinhas, em 1909, função esta que lhe foi confiada “Ad Vitam” (por toda a vida), durante a eleição para o governo da instituição, cinco anos antes. O fato é constantemente relembrado pelas Irmãzinhas até os dias de hoje, sendo por elas considerado um fator determinante – a humildade – para a conquista do título de beata, em 1991 e, logo em seguida, de santa, em 2002. Mas, é consenso, entre inúmeras freiras que tiveram a oportunidade de conhecê-la, que Madre Paulina possuía um espírito forte de liderança e comando ou, poder-se-ia dizer, temperamento forte, que muitas vezes contrariava quem estava ao seu redor. Uma característica comum para quem está à frente de qualquer empreendimento, mas ainda hoje muitas dessas religiosas comentam sobre a vida e algumas atitudes tomadas por Paulina41. Segundo relatos, passou por muitas provações, inclusive durante a fase final de sua vida, quando o seu braço precisou ser amputado, em virtude de consequências da diabetes. Morreu aos 76 anos, em 9 de julho de 1942, em São Paulo, onde seus restos mortais estão ainda hoje ali depositados, no bairro Ipiranga. Após alguns anos, a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição começou a receber relatos de pessoas que foram abençoadas por “graças” advindas da intercessão de Madre Paulina. O primeiro milagre foi registrado em , sul de Santa Catarina, em 1966, quando foi reconhecida a cura de Eluíza Rosa de Souza. Esta possuía uma doença complexa: a morte intrauterina de um feto e sua retenção por alguns meses. Após cirurgia, a doente sofreu uma forte hemorragia e choque irreversível. Disse que foi curada após uma freira colocar em seu peito a imagem de Madre Paulina e invocar por sua intercessão. O referido milagre deu o título de beata à Madre Paulina, em 18 de outubro de 1991, pelo Papa João Paulo II. Já o segundo milagre comprovado pela Igreja Católica ocorreu com a menina Iza Bruna Vieira de Souza, da cidade de Rio Branco (AC). Segundo a equipe médica, ela nasceu com má formação cerebral, diagnosticada como “meningoencefalocele occipital de grande porte”. A avó da menina, Zaira de Oliveira rezou à Madre Paulina pedindo pela cura da neta, em 1992. Iza recebeu o batismo no próprio hospital, e logo se recuperou. O “milagre” foi atestado novamente pelo Papa João Paulo II, que canonizou Paulina em 19 de maio de 2002.

2.2 – A criação das Filhas de Maria em Nova Trento

41 Estas informações foram obtidas por mim durante o período de atuação como assessora de imprensa do Santuário Santa Paulina (2012) e, posteriormente, junto à sede geral da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, em São Paulo (2015). 61

Como visto, Amábile Lúcia Visintainer ou Madre Paulina foi a pessoa responsável por dar início à Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, em 1890, através do cuidado de uma doente de câncer. Porém, Amábile não foi apenas empreendedora desta instituição. Com sua participação ativa na comunidade neotrentina, a jovem criou mais uma associação, desta vez voltada para o público leigo: a Pia União das Filhas de Maria. Seu nome aparece no primeiro Libro delle Ufficili della Pia Unione delle Figlie di Maria (Livro das diretorias da Pia União das Filhas de Maria), datado de 1902 a 1957. Ela é mencionada como Direttrice (Diretora), e contém o seu nome de religiosa: Suor Paolina del Cuore Agonizzante di Gesù (Irmã Paulina do Coração Agonizante de Jesus). A associação teve início no final do século 19, em 13 de novembro de 1890, mesmo ano em que Madre Paulina dava início à sua Congregação religiosa devocional. Para Marques (2000), a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição nasceu desta Pia União e, ambas conservaram, durante muito tempo, uma forte ligação. Isso porque muitas irmãs auxiliavam em retiros, presidiam e secretariavam reuniões; e muitas Filhas de Maria se tornavam aspirantes da congregação. De qualquer forma, há que se destacar que são duas associações distintas: uma voltada para o público leigo, e outra destinada para a formação religiosa, possuindo, cada qual, objetivos específicos. Enquanto as Filhas de Maria congregavam moças solteiras, conduzindo-as para o casamento – e também para a vida religiosa, caso desejassem – a congregação era um espaço de desenvolvimento e ordenação da vida religiosa consagrada. A Pia União das Filhas de Maria sob o patrocínio da Virgem Imaculada e de Santa Inês Virgem e Mártir, não teve suas origens no Brasil. Esse modelo de confraria religiosa direcionada ao apostolado leigo surgiu ainda no século 12, onde, pela primeira vez, se fundou uma entidade de Filhos e Filhas de Maria (RÖWER, 1953, p. 17). Segundo informações do manual das Filhas de Maria, a instituição desapareceu com as “vicissitudes do tempo”, e surgiu de novo no fim do século 16 “devido ao zelo do bem-aventurado Pedro Fourrier42, tomando ela o nome de Confraria das Filhas de Maria” (Ibidem, p. 17). Porém, novamente não teve continuidade, e não há informações sobre o motivo principal de ela não ter seguido em frente neste período.

42 Este padre atuou na França, no século 16, e fundou três associações apostólicas: a de São Sebastião, para homens; a do Rosário, para mulheres; e a da Nossa Senhora Imaculada, para moças. Ele foi o responsável por fomentar a piedade mariana na juventude feminina francesa. Foi canonizado, em 1897, pelo papa Leão XIII. Informações colhidas do site da Arquidiocese de São Paulo, disponíveis em: , acesso em 14 de outubro de 2018. 62

Foi nos primeiros decênios do século 19 que ela ganhou corpo, principalmente na Paróquia Santa Inês, fora dos muros de Roma. Oficialmente foi constituída em 30 de setembro de 1864, canonicamente ereta na mesma paróquia, com o título: “Pia União das Filhas de Maria, sob o Patrocínio da Virgem Imaculada e de Santa Inês, Virgem e Mártir”. A associação fora logo submetida à apreciação do Papa Pio IX e, depois de aprovada, foi elevada à Primária, em 1866, o que significa que todas as outras Pias Uniões que viessem a surgir ao redor do mundo deveriam estar subordinadas a ela. Espalhou-se, com rapidez, não só na Itália, mas na França, Espanha e outros países da Europa, inclusive na América e na Ásia e, assim consta no manual: “inúmeras foram as donzelas que em todas as partes do mundo, colocando-se debaixo do manto poderoso de Maria, conservaram imaculada a sua inocência e alcançaram a salvação eterna” (RÖWER, 1953, p. 18). A partir das palavras do autor deste manual para Filhas de Maria, é possível perceber que era do interesse da Igreja Católica incentivar a instalação destas Pias Uniões ao redor mundo. Isso possibilitaria trazer para o seio da Igreja fieis devidamente disciplinadas, de acordo com os valores e ensinamentos católicos. Conforme a Sé Romana, esse modelo de associação era uma das formas mais eficazes de “cuidar da virtude do sexo frágil” (ANDRADE, 2008, p. 11). Essas ações eram não só apoiadas pela Igreja, mas pela própria sociedade da época, que via na entidade um “modelo sadio de comportamento feminino e também uma ferramenta de controle das jovens católicas” (Ibidem, p. 11). No Brasil, a expansão das associações Pias de Filhas de Maria começa a se efetivar no início do século 20. Elas rapidamente vão sendo fundadas, mesmo diante de um corpo institucional fragilizado. É dito fragilizado, porque a Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil estava, nas primeiras décadas do século 20, se reestruturando, buscando se firmar como poder, sem o apoio do Estado – como visto, no último capítulo, em relação às escolas, com a busca de um “Estado laico”. Este fato afetou diretamente o público feminino, uma vez que havia um projeto de Igreja para as jovens proveniente de Roma para todas as associações. Contudo, com o fim do Padroado Régio43 – em que o poder do rei interferia diretamente na escolha de bispos e no estabelecimento de ordens religiosas, por exemplo – a Igreja se voltou para as diretrizes de Roma, além de buscar se adequar a uma série de mudanças

43 Este era um conjunto de privilégios concedidos aos reis de Portugal e Espanha pela Igreja Católica. Isso também vigorou no Brasil. Era um instrumento tipicamente medieval que possibilitava um domínio direto da Coroa nos negócios religiosos. Informações colhidas do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR), da Unicamp (SP). Conteúdo disponível em: , acesso em 05 de outubro de 2018. 63 propostas pelo Concílio Vaticano I. Esse processo de transformação, como já contextualizado no primeiro capítulo, ficou conhecido como romanização e deu novas feições à Igreja no Brasil. Esse movimento procurou sacralizar os locais de culto, moralizar o clero, reforçar a estrutura hierárquica da Igreja e diminuir o poder dos leigos, principalmente aqueles organizados em irmandades. Desta forma, a Igreja Católica via a Pia União como uma oportunidade de congregar novas adeptas e discipliná-las de acordo com seus ensinamentos, normas e dogmas. As Filhas de Maria eram frutos deste projeto moralizador, que tinha a proposta de disciplinar o sexo feminino, ancoradas nas virtudes: pureza e/ou castidade, penitência/obediência e caridade. Um discurso fortemente alicerçado no corpo e na sexualidade, utilizados como instrumentos de normalização de condutas. A Igreja Católica fazia questão de trazer para o foco a preservação do corpo através da manutenção da virgindade. Os ícones católicos para enaltecer essas virtudes, e que se tornaram padroeiras dessa associação, eram: Maria, modelo incansável de pureza, obediência e caridade; e Inês, reconhecida como a padroeira da pureza, que preferiu o martírio a casar-se. Maria era o principal modelo a ser imitado. Segundo o ideal cristão, Maria disse “sim” a Deus e ao projeto de salvação; ela é a senhora da castidade, sempre virgem, mãe puríssima, tendo seu corpo, alma, sentidos e coração centrados naquele que seria o salvador. Na história da salvação, Maria é a mãe de Deus por ter concebido, gerado e dado à luz Jesus Cristo, o filho de Dele. É, então, considerada a mãe dos cristãos. No livro Legenda áurea: vidas de santos é possível notar como a figura de Maria é construída: ela gerou um filho não pelo “sêmen viril, mas pela aspiração divina” (DE VARAZZE, 2003, p. 680), e, só este motivo, a coloca em uma categoria especial, pois ao contrário das outras mulheres (inclusive de Eva), ela não partilhou as dores do parto e outras vicissitudes. Ela é posta em um patamar único e inalcançável, um patamar de pureza e obediência que dificilmente alguém poderia aspirar, mas deveria ser visto como modelo, como ideal. Ao longo do texto sobre a “Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria”, por exemplo, são evidenciadas inúmeras características que atestam o que foi citado anteriormente, como por exemplo: “a mais bela das filhas”, “alguém que conservou seu leito sem mácula”, “foi elevada integralmente de corpo e alma”, “sobrenatural, admirável, temível, e não sujeito a discussão”, “deu à luz permanecendo com a virgindade intacta”, e “sofreu a morte sem ser aprisionada por ela” (DE VARAZZE, 2003). Todas essas descrições apontam para um modelo de mulher visivelmente idealizado pela Igreja Católica e constantemente propagado em seus sermões. 64

Seguindo este ideal, o mesmo modelo de castidade e obediência é enaltecido na história de Santa Inês, que ganha maior destaque – muito mais do que Maria – no Manual da Pia União das Filhas de Maria. São quatro páginas (13 a 16) dedicadas a contar a vida dessa santa: uma jovem moça que, ao completar 13 anos, recebe a proposta de casamento de um jovem de procedência nobre. Ela, no entanto, é ríspida com o rapaz e afirma que estaria comprometida com “aquele cujo amor é puro, cujo amplexo é casto e cuja união é a própria virgindade” (RÖWER, 1953, p. 13-16). O compromisso dela, neste caso, era com Jesus Cristo que, segundo consta, seria seu legítimo esposo. Ao recusar o referido casamento, o “procônsul”, pai do jovem pretendente, “mandou colocar em sua presença os instrumentos de tortura e preparar uma fogueira” (Ibidem, p. 15). Inês, mesmo assim, mantém firme seu desejo de pureza e virgindade para com seu Senhor. “Podeis derramar o meu sangue, mas nunca conseguireis manchar o meu corpo, que é consagrado a Jesus Cristo” (RÖWER, 1953, p. 15). A história chega a um desfecho com a descrição do momento do martírio:

O procônsul então deu ordens para que a despissem e a levassem para um lugar infame. Apenas, porém, tiram-lhe as vestes, e eis que, por um milagre, cresceu-lhe o cabelo, cobrindo o seu corpo melhor do que a própria roupa. Entrando no lugar da desonra, encontrou um anjo no meio de uma luz resplandecente, que oferece à santa uma túnica mais branca do que a neve. Entra depois Procópio (o pretendente), acompanhado de outros, para lhe fazer violência; mas, atemorizados pelo milagre que veem, retrocedem os companheiros. (RÖWER, 1953, p. 15).

Ao final, Inês é colocada numa fogueira, mas sai completamente ilesa. Assim, ordenam que ela seja degolada – e o foi. No Manual da Pia União das Filhas de Maria há ainda a descrição de sua representação na Igreja Católica: Santa Inês é ainda hoje reconhecida como aquela que possui um cordeirinho em seu colo, pois oito dias após a sua morte, ela apareceu desta forma, “acompanhada por um coro de santas virgens” (Ibidem, p. 16). Por esse motivo, há a informação de que todos os anos o Papa benze dois cordeiros, de cuja lã se fazem os pálios que o pontífice envia aos arcebispos, como símbolos da jurisdição metropolitana. Percebe-se, assim, que a história de Santa Inês ganha maior destaque no Manual da Pia União, mais do que a própria Virgem Imaculada, que também é padroeira da instituição. Isso porque a santa é um exemplo de jovem virtuosa, que “abraçou a morte” para não ter sua pureza maculada, e que durante sua vida deu diversos exemplos de caridade e obediência. Sua história era constantemente contada e recontada às Filhas de Maria, que aprendiam, desde muito cedo, que esta jovem mártir deveria ser cultuada e imitada em seu dia a dia. Era o modelo de mulher constantemente propagado pela Igreja, especialmente porque enaltecia a obediência e a pureza. 65

No texto anteriormente destacado, também é possível verificar que Inês contou com seu cabelo, que cresceu de repente, para proteger seu corpo. Manter os cabelos compridos – esta regra será contextualizada mais à frente – era uma das normas estabelecidas às Filhas de Maria de Nova Trento, assim como o uso de vestimentas brancas, imitando a túnica “mais branca que a neve” de Santa Inês. Além disso, o nome “Inês” merece destaque aqui por seu simbolismo, pois advém de “agnus” (cordeiro), ou seja, supõe que esta jovem foi doce e humilde como um cordeiro. “Ou vem do grego agnos, ‘piedoso’, pois foi cheia de piedade e de misericórdia. Ou também vem de agnoscendo, ‘conhecendo’, porque conheceu o caminho da verdade” (DE VARAZZE, 2003, p. 183). Estas são características muito veneradas pela instituição religiosa, que enaltecia em seus discursos às jovens o poder da piedade, da misericórdia, da verdade. Uma das formas de propagar essas virtudes, tanto de Maria, quanto de Inês, era através da memorização do hino em louvor à Santa Inês. Esta ode era ensaiada e cantada em praticamente todas as reuniões e missas que as Filhas de Maria deveriam participar. O hino está assim transcrito no Manual:

Ó Inês, a ti se eleve Destas filhas a homenagem Que na mais terna linguagem Ao teu culto vêm prestar: Tu que és nossa protetora Junto ao trono de Maria, Nossas súplicas lhe envia, Pra seus dons nos alcançar.

Ó Inês, somente um voto As tuas aras nos conduz, Como tu, só desejamos Ser esposas de Jesus.

Aos treze anos de idade, Já vencias ao tirano, Que te armou embuste e engano, Para conquistar-te o amor; Mas, amante da pureza E de Jesus protegida, Não deste a menor guarida Aos ardis do tentador.

Aos mentidos simulacros Recusaste culto indigno, E por isso o algoz maligno Co’a nudez te injuriou; Mas entre o esplender e o brilho De uma auréola celeste, Divinal, cândida veste, Os teus membros adornou.

66

Entre as chamas da fogueira, Que p’ra te queimar se acende, Te protege, te defende, Com seu manto um querubim, E logo as fráguas se espalham Sobre as turbas violentas E sobre a pira te assentas, Como em florido jardim

Como a flor que nas campinas, Desabrocha pura e bela, Sem receio da procela, Dos tufões e vendavais; Assim tu, robusta e cândida, Entre os bárbaros tiranos, Sem temor vences seus danos Arrostando os vis punhais.

(Hino de Santa Inês, Virgem e Mártir, Frei Basílio Röver, Manual da Pia União das Filhas de Maria, 1953, p. 148-150)

Na visão da Igreja Católica era preferível o martírio, como na história de Santa Inês, do que ferir a castidade. A pureza era um dom extremamente importante para uma Filha de Maria e, por isso, qualquer assunto relacionado à sexualidade, lugares de “desonra” ou até mesmo comportamentos considerados mundanos, eram fortemente combatidos. A virgindade das “jovens donzelas” era vigiada com obsessão, tanto pela Igreja, quanto pelas suas famílias, conforme o hino por elas entoado tantas vezes (RÖWER, 1953). Ser “esposas de Jesus” era um ideal e um objetivo de vida a ser conquistado dia após dia por essas moças solteiras, que fugiam ferozmente dos “ardis do tentador” ou de seus próprios monstros internos – aqueles em que elas guardavam seus mais ardentes e sinceros desejos. Desta forma, o cuidado com o corpo – especialmente o feminino – era austero e, quaisquer tentativas de burlar ou feri-lo eram fortemente combatidas. Para a feminista Rose Marie Muraro (1983), o poder concentrado em mãos masculinas trouxe consequências para as mulheres ou, neste caso, para as futuras esposas. Havia, assim, um controle na reprodução e/ou do processo reprodutivo, ou seja, da própria descendência (MURARO, 1983, p. 21), o que afetou sobremaneira a percepção e a organização da vida humana, seja em seu contexto biológico ou social: O primeiro em relação à própria sexualidade, com o corpo inserido num processo que perpassa por prazeres e desprazeres que se cruzam. E o segundo, o social, que produzem corpos economicamente úteis e submetidos a sistemas de produção e transformação de bens materiais (capitalismo). Mas, tecnicamente, em ambas as posições o corpo é submetido a adestramentos e hábitos inculcados – desde a mais tenra infância – para atender a interesses do dominador. São normas e condutas produzidas pela sociedade a seu próprio favor, do dominante para o dominado, do consciente para o inconsciente. 67

Essas normas, que se concretizam nas instituições, chegam aos indivíduos a favor ou contra seus interesses. Para que elas possam ser aceitas é preciso que venham estruturadas por uma ideologia, a ideologia dominante. (MURARO, 1983, p. 24).

Sem que houvesse uma percepção por parte das moças, o sistema dominante – neste caso a Igreja e as próprias famílias – influenciava fortemente o comportamento delas, fazendo- as entender que o mundo “perverso” do sexo oposto deveria ser evitado e, junto com ele, as paqueras e possíveis namoros. Era preciso lutar contra qualquer atitude que pudesse levar à perda da inocência das jovens, e isso incluía também imagens, leituras, bailes (danças), entre outros tipos de atrativos que toda e qualquer sociedade possui. Havia, assim, um grande sistema de adestramento e/ou domesticação, se assim podemos chamar, com um discurso normatizador, que regulamentava o cotidiano dessas jovens pela orientação ética, pela educação (quando permitido), pelo ritmo semanal, juntamente com as festas de Nossa Senhora. Sendo assim, por ser a “pureza virginal” a virtude predileta de Maria e de Jesus Cristo, cuidar desse “precioso tesouro” era de suma importância para uma Filha de Maria. É possível compreender melhor esse cerceamento e a proteção desta virtude ao ter acesso aos textos de abertura dos Estatutos da Pia União das Filhas de Maria (capítulo I) e, especificamente, ao conselho no 6 (presente no capítulo IV – Obrigações das Filhas de Maria), que é descrito, respectivamente, abaixo:

A Pia União tem por fim principal auxiliar os seus membros na observância da lei de Deus, no fiel cumprimento dos deveres cristãos, oferecendo ao mesmo tempo um meio seguro para preservar as donzelas cristãs do contágio corruptor do século. (RÖWER, 1953, p. 19).

6. Devem esforçar-se para crescer na piedade e assim tornar-se modelos de virtude cristã, imitando Maria Santíssima na humildade, na obediência, no amor do próximo e, sobretudo, na sua pureza virginal. Devem, pois, velar muito para que possam conservar sempre imaculado o seu mais precioso tesouro, a inocência e a pureza de sua alma. (Ibidem, p. 29).

Outra virtude que ganha destaque nos discursos propagados a essas Filhas de Maria era a obediência. Isso possibilitaria torná-las mais “dóceis” e passíveis de dominação. E, sendo dominadas, a Igreja e as famílias tinham a sensação de controle absoluto sobre elas (ANDRADE, 2008). Isso fica evidente no capítulo IV do Manual das Filhas de Maria, quando elenca as obrigações e os conselhos que deveriam ser cumpridos pelas participantes. 68

Primeiramente, são listadas 11 “obrigações” que deveriam ser cumpridas. São atividades consideradas habituais para uma Filha de Maria, com a proposta de haver maior controle do tempo:

1. Rezar todos os dias, pela manhã e à noite, três Ave-Marias, acrescentando a invocação “Ó Maria, ó Mãe puríssima, preservai-me do pecado mortal”; procurar ouvir missa todos os dias, rezar o terço, fazer uma pequena meditação e leitura espiritual e, à noite fazer um breve exame de consciência; 2. Todas as semanas, ou de quinze em quinze dias, ou pelo menos todos os meses confessar-se. Uma vez por semana devem rezar o Ofício ou o Terço da Imaculada Conceição. Nos sábados terão uma pequena devoção em honra da Virgem Imaculada, por ser esse o dia consagrado ao seu particular culto; 3. Se possível, fazer todas as semanas uma reunião presidida pela Diretoria; 4. Obrigatório o uso da medalha nas comunhões gerais, nas procissões e outras funções da associação. Podem também trazê-la em outras ocasiões, caso o Diretor não aconselhe o contrário; 5. Todos os meses devem assistir à reunião geral; aquelas que não puderem comparecer avisarão a Presidente, para que esta justifique a falta. Depois da reunião, concorrerão todas com uma pequena contribuição para pagar as despesas da Pia União; 6. No dia da reunião mensal, receberão a Santa Comunhão por intenção de todas as Filhas de Maria, agregadas à Primária. 7. Passar, todos os meses, por um dia de recolhimento espiritual, “refletindo sobre as verdades eternas”; 8. Nas festas mais solenes de Nossa Senhora e de Santa Inês, participar da comunhão e da reunião geral; 9. Nas festas principais “de Nosso Senhor e Nossa Senhora”, sugere-se que se preparem com uma novena, e para as festas de Santa Inês, com um tríduo. O mês de Maria celebrarão com especial fervor; 10. No dia 8 de dezembro, festa principal da Pia União, a associação mandará celebrar uma Santa Missa por intenção de seus membros; 11. E devem fazer a cada ano um retiro espiritual, que durará pelo menos quatro dias. (RÖWER, 1953, p. 27-28).

Seguindo no mesmo texto, o manual enumera os principais “conselhos” às Filhas de Maria, que no total são oito, ligados diretamente ao controle da sociabilidade, descritos a seguir:

1.Sendo o fim principal da Pia União promover a vida cristã, será o primeiro dever das Filhas de Maria a fiel observância da lei de Deus e o exato cumprimento dos mandamentos da Igreja. 2. Devem ser fervorosas nas orações, zelosas na devota audição da Santa Missa, e prontas na recepção dos Santos Sacramentos. 3. Devem, em particular, abster-se de leituras de jornais, de livros e romances que ofendam a honestidade ou a Santa Religião. 4. Devem evitar também os espetáculos e bailes perigosos. A estes não devem assistir senão quando obrigadas, e sempre em companhia de seus pais ou de quem fizer suas vezes, e com todo o recato. 5. Em seus divertimentos devem proceder sempre como estando na presença de sua Mãe Maria Santíssima. Devem fugir das más companhias como se foge da peste. 6. Devem esforçar-se para crescer na piedade e assim tornar-se modelos de virtude cristã, imitando Maria Santíssima na humildade, na obediência, no amor do próximo e, sobretudo, na sua pureza virginal. Devem, pois, velar muito para que possam conservar sempre imaculado o seu mais precioso tesouro, a inocência e a pureza de sua alma. 7. A santa modéstia deve resplandecer nos seus vestidos, e nunca admitirão no seu trajo certas modas ridículas e exageradas. 8. Entre as Associadas deve haver a maior harmonia e amizade; a benevolência, a modéstia e caridade reinarão sempre entre elas, lembrando-se que todas são filhas da mesma Mãe. (Ibidem, p. 28-29)

Fica notório, então, que uma Filha de Maria deveria cumprir inúmeras regras para se manter ativa na associação. As orações e o comparecimento na missa e nas reuniões da Pia 69

União eram apenas algumas dessas normas. Entravam neste rol as confissões, as vestimentas, o uso da medalha – sejam elas aspirantes ou adeptas, a proibição da leitura de jornais e romances, além da participação em bailes e outras festas que não estivessem sob o crivo dos pais e da Igreja. O filósofo Michel Foucault traz em História da Sexualidade 2: O uso dos prazeres (2014) como foi constituída esta moral desde a antiga Grécia, especialmente dentro da tradição cristã, que via o ato sexual como algo negativo, associado ao mal. Dentre tantas normas de condutas que essas Filhas de Maria deveriam seguir estava implícita a atividade sexual, que era objeto de uma preocupação moral, de um cuidado ético que, por sua vez, estaria ligada a um conjunto de práticas denominadas por Foucault de “técnicas de si”. Em suma, era importante este “cuidado de si”, a fim de não se deixar levar pelos apetites e pelos prazeres, ou melhor, era necessário manter um certo equilíbrio e tranquilidade perante os instintos, configurando, assim, uma “soberania de si sobre si mesmo” (FOUCAULT, 2014, p. 39). Somado a tudo isso, as participantes dessa associação deveriam manter a modéstia na forma de vestir, bem como a amizade entre elas e a caridade. Esta última, por sua vez, completa o círculo de controle – pureza, obediência e caridade – que fazia parte do dia a dia delas. O ato de ajudar alguém sem esperar qualquer recompensa, era traduzido pela instituição como a marca da boa essência do ser humano. E, neste caso, colocar-se a serviço da Pia União das Filhas de Maria era um dos principais objetivos da Igreja. As atividades eram realizadas não só dentro da própria associação, como também em eventos promovidos pela paróquia e, assim, elas deveriam estar sempre prontas a ajudar no que for preciso. Havia, portanto, um controle físico e um controle social que, juntos, ajudavam a formar o caráter dessas moças.

2.3 – O Manual da Pia União das Filhas de Maria

A partir deste ponto, elencamos os principais itens do Manual da Pia União das Filhas de Maria – Sob o patrocínio da Virgem Imaculada e de Santa Inês Virgem e Mártir, compilado pelo frei Basílio Röwer e datado de 1953 (XXIV Edição), impresso pela Editora Vozes, de Petrópolis, Rio de Janeiro/São Paulo. Logo após a página de rosto, o autor escreve três parágrafos para explicar o motivo que o levou a dar publicidade ao livrinho, considerando que o principal objetivo era oferecer às Filhas de Maria um manual que, sendo de pequeno volume, tratasse com clareza a matéria e 70 cujo preço fosse reduzido44. Ele informa também que o manual logo se esgotou e, segundo ele, isso reforçaria a ideia de que ele é acolhido com muita estima pelo público alvo. Diz, ainda, que não há modificações das edições anteriores, e o assina com data de 2 de dezembro de 1933 (RÖWER, 1953, p. 12). As páginas seguintes (13 a 16) são dedicadas à vida de Santa Inês, conforme referenciado acima. Inclusive, na primeira página da descrição, consta uma gravura da referida santa. Logo em seguida, o frei traz uma noção histórica da Pia União – desde sua fundação na Itália até a sua rápida expansão pelo mundo, dedicando a isso duas páginas e dividindo o texto em dois pontos: o primeiro, especificamente, sobre a história da associação, e o segundo sobre a ereção e filiação da Pia União. Neste último item, é possível compreender que uma Pia União de Filhas poderia ser ereta não só em todas as matrizes, mas em diversas igrejas da mesma paróquia, sempre com a licença do ordinário diocesano. A requisição era feita ao bispo, e dever-se-ia apresentar o manual e os estatutos da associação a ser criada. O bispo tinha poder para modificar os documentos, assim que achasse necessário “para o maior bem espiritual e temporal das Pias Uniões em suas dioceses” (RÖWER, 1953, p. 18). Com o envio dos respectivos documentos ao “Abade Geral dos Cônegos Regulares Lateranenses, em Roma” (Ibidem, p. 18), a Pia União recebia um diploma com o elenco das indulgências45. Este, por sua vez, deveria ser posto em quadro e colocado em um lugar na capela ou oratório onde ocorressem as reuniões. Por fim, o diretor, nomeado pelo bispo, designava a diretora e a vice-diretora e, assim, dava início ao processo de eleição do conselho.

2.3.1 – A primeira parte: os estatutos das Filhas de Maria

A primeira parte do Manual é aberta com uma gravura da Imaculada Conceição46 no topo da página e, em seguida, inicia o texto dos estatutos da Pia União das Filhas de Maria. No capítulo I, são elencados os quatro objetivos da entidade, listados no item “fins da associação”, que são estes: “1. Prestar culto especial à Maria Santíssima; 2. Promover o adiantamento de

44 Existiu, no passado, um manual de grande volume, com mais de 600 páginas, que também era adquirido pelas moças quando do ingresso na entidade, conforme ANDRADE (2008). Porém este, de menor volume, foi editado anos mais tarde, para facilitar o manuseio e o transporte para qualquer lugar. 45 Etimologicamente, o termo indulgência se originou a partir do latim indulgentia, que significa “bondade”, “para ser gentil” ou “perdão de uma pena”. Segundo o dicionário Aurélio (2008), indulgente significa “pronto a perdoar”, condescendente, complacente. 46 A Imaculada Conceição ou Nossa Senhora da Conceição é, segundo o dogma católico, a concepção da Virgem Maria sem mancha do pecado original – “não concebeu por meio de sêmen, mas de um sopro místico” (DE VARAZZE, 2003, p. 244). 71 seus membros na prática das virtudes cristãs; 3. Assegurar a perseverança na pureza dos costumes; 4. Preparar as Filhas de Maria para o estado a que tiverem vocação” (RÖWER, 1953, p. 19-20). Em vista disso, certamente as participantes eram influenciadas a venerar Maria Santíssima e a preservar as virtudes cristãs, mantendo sempre em seus atos a pureza dos costumes, que perpassava, sem dúvida, pela conservação da virgindade. Por conseguinte, a associação preparava a adepta para a “vocação”, seja esta voltada para a vida religiosa consagrada ou para a vida leiga – posteriormente, se assim quisesse, como mulher casada. No capítulo II, por sua vez, é explicado como compõem-se a diretoria de uma Pia União, com três categorias de associadas: a primeira formada por aspirantes – que buscavam ser admitidas como Filhas de Maria, mas que poderiam atingir tal grau após determinado tempo dentro da entidade e se cumprissem todas as regras já citadas; a segunda formada pelas Filhas de Maria propriamente ditas, e a terceira de Filhas de Maria por devoção. No caso das admitidas em Nova Trento, não há menção quanto a terceira categoria, embora acredita-se que tenha existido naquela comunidade. A diretoria era formada por um diretor, que deveria ser o vigário ou o capelão, ou um outro padre escolhido para isso (RÖWER, 1953, p. 20). Eram, ainda, nomeados por aclamação/eleição: uma diretora e uma vice-diretora, presidente e vice-presidente, secretária, tesoureira, conselheiras – tantas quantas o diretor, juntamente com a diretora, achassem necessário), sendo que uma delas era nomeada mestra das aspirantes e, se fosse necessário, uma zeladora para o “culto divino”. Para a admissão das aspirantes à Filha de Maria eram pontuadas quatro regras principais a serem cumpridas: que a moça tenha manifestado especial amor à Maria Santíssima; que tenha assistido algumas reuniões; que seja ela de conduta honesta e louvável; que obtenha no conselho a maioria dos votos em favor da sua admissão (Ibidem, p. 21). Há ainda a informação de que o diretor poderia admitir – em casos extraordinários – uma candidata, mas esta não poderia ter sido recusada pela maioria do conselho. Como aspirantes, elas possuíam todos os direitos, privilégios e indulgências de uma Filha de Maria, mas não podiam votar e nem ser votadas quando ocorressem as eleições da diretoria. Uma aspirante também tinha como regra o uso de um distintivo: uma medalha da Pia União benta com indulgência plenária, conforme estabelecido por Pio IX, em 26 de março de 1867 (RÖWER, 1953, p. 21). Esta medalha era posta no pescoço dessa aspirante à Filha de Maria, pendente por uma fita de cor verde. Na insígnia havia a imagem da Virgem Maria sobre um globo, com os braços abaixados e as palmas das mãos voltadas para frente, sendo que, de 72 suas mãos, emanavam luzes. Ao redor desta imagem constava a frase: “Ó Maria concebida sem pecado”, juntamente com esta: “Rogai por nós que recorremos a vós”, contendo ainda o ano de 1830 talhado nela. Na parte posterior da medalha havia uma letra M, concomitantemente com uma cruz, tendo esta um traço na base e, abaixo deste símbolo, dois corações: um representando Jesus – cercado por uma coroa de espinhos – e o outro representando Maria, com uma espada atravessada. Além disso, a parte de trás da medalha era adornada com 12 estrelas e dois ramos de oliveira, em ambos os lados.

Figura 3 – Fita e medalha das aspirantes à Filha de Maria, década de 1950, em Nova Trento – parte da frente - pertencente à Elvira47

Fonte: Elis Facchini (2018)

No Manual da Pia União das Filhas de Maria, há a explicação de que a imagem de Maria na medalha é da “Santíssima Virgem das Graças acolhendo as suas filhas” (RÖWER, 1953, p. 21). Ela está sobre um globo terrestre, pois para os fiéis esta é considerada a rainha da

47 Optou-se por alterar os nomes das entrevistadas, para manter em sigilo as fontes. Um quadro, com um breve perfil delas, está no Apêndice B desta dissertação. 73 terra e de todo universo. Já os raios de luz simbolizam as graças concedidas àqueles que são seus devotos. Além disso, a data de 1830 marca o ano das aparições de Nossa Senhora das Graças, na França, à Santa Catarina de Labouré48. A frase “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós”, é uma curta oração que deveria ser repetida constantemente por toda Filha de Maria. Por sua vez, no reverso da medalha o grande “M”, tendo sobre si uma cruz, é a inicial do nome de Maria, e a cruz simboliza Jesus Cristo, que morreu por todos os cristãos. Os dois corações que vêm logo abaixo deste símbolo também possuem um significado especial para os católicos: o da esquerda, envolto por uma coroa de espinhos, simboliza os pecados e as más ações dos cristãos, dissipados pelo sofrimento de Jesus; O da direita, o coração atravessado por uma espada tem como significado a dor sentida por Maria diante da paixão de cristo. E, por fim, as doze estrelas aí retratadas, adornadas por ramos de oliveira, representam a coroa que adorna a mulher revestida de sol, com a lua abaixo de seus pés, descrita no livro do Apocalipse (12: 1). Estas estrelas simbolizariam os cristãos – com as 12 tribos de Israel – e os descendentes dessa mulher seriam as pessoas obedientes em Jesus (Apocalipse 12:17). O capítulo II tem continuidade com o ponto sobre as Filhas de Maria “propriamente ditas”, admitidas se cumprissem quatro regras: a candidata deveria ter recebido a primeira comunhão; ter sido aspirante por pelo menos três meses; ter assistido às reuniões mensais; e ter tido conduta boa e exemplar, além de ter obtido a maioria dos votos do conselho (RÖWER, 1953, p. 22). Da mesma forma que as aspirantes, elas também utilizavam uma medalha como Filha de Maria – com os mesmos símbolos citados anteriormente, mas a fita desta vez era da cor azul celeste. Este distintivo era entregue solenemente em uma cerimônia de diplomação como Filha de Maria, que geralmente coincidia com a data de celebração da Imaculada Conceição: 8 de dezembro de cada ano. Ao final, são listadas as informações sobre as “Filhas de Maria por devoção”, categoria pertencente às “donzelas que, sem poderem frequentar a Pia União, desejassem gozar das suas vantagens espirituais; e às viúvas” (Ibidem, p. 22). O manual destaca as vantagens de participar desta categoria, como o direito em assistir às reuniões e demais atos religiosos, usando a

48 Foram duas aparições de Nossa Senhora das Graças, no ano de 1830, conforme história da Igreja Católica. Segundo esses relatos, a Virgem se manifestou contrária aos pecados do mundo, oferecendo perdão e misericórdia à humanidade pecadora e prevendo severos castigos, caso não se convertesse. Mas também anuncia que, após esses castigos, viria um triunfo esplendoroso do bem. Observação: para a construção desta nota, foram feitas várias pesquisas, até mesmo junto ao livro do DE VARAZZE (2003), porém não encontramos referências à Nossa Senhora das Graças, até porque existem inúmeras “Nossas Senhoras”. Por isso, optamos por descrever esta santa a partir de dados obtidos junto aos sites de cunho católico, como o do Santuário Nacional de Aparecida (www.a12.com). 74 medalha com a fita azul, bem como o gozo das indulgências e outros benefícios espirituais. Porém, nas eleições elas não poderiam votar e nem ser votadas, diferentemente de uma Filha de Maria propriamente dita.

Figura 4 – Fita e medalha das Filhas de Maria, ano de 1957, em Nova Trento – parte da frente – pertencente à Elvira

Fonte: Elis Facchini (2018)

No capítulo III do Manual da Pia União das Filhas de Maria estão listadas as atribuições da Diretoria Geral da entidade, especificando as atividades para os cargos de diretor, diretora, presidente, secretária e tesoureira. No que compete à diretoria, é citada pela primeira vez a palavra “expulsão”, que deveria ser decidida perante os “membros indignos” (RÖWER, 1953, p. 23), ou, neste caso, às moças que não cumprissem as normas previamente definidas. Aqui convém dar destaque à diferença entre os cargos de diretor e diretora da instituição. O primeiro, conferido a um vigário, tinha como competência presidir todas as reuniões, dirigir as sessões, propor matérias de deliberação, subscrever as atas e os diplomas das associadas, e presidir o retiro anual. Já a diretora era também responsável por presidir as 75 reuniões e aos diversos exercícios da Pia União, em caso de ausência do diretor, porém esta exercia forte vigilância sobre os membros do conselho e sobre todas as participantes (Ibidem, p. 24). Ela também ficava responsável por avisar e corrigir uma associada que não procedesse corretamente, avisando o diretor caso fosse preciso. Essa era a função de Amábile Lúcia Visintainer ou Madre Paulina quando assumiu o posto de primeira diretora da entidade, em 1902. Zelar pelas moças que faziam parte da associação era uma tarefa essencial, afinal era necessário preservar a pureza e a virgindade dessas jovens, conforme visto anteriormente. Além disso, era comum que esta função fosse cumprida por uma religiosa. Em Nova Trento, o cargo geralmente era ocupado por alguma Irmã pertencente à Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição.

Figura 5 – Fita e medalha das Filhas de Maria, ano de 1957, em Nova Trento – parte de trás – pertencente à Elvira

Fonte: Elis Facchini (2018) 76

Havia, ainda, a função de presidente. Ela era responsável por subscrever as atas das sessões e os diplomas das associadas, “vigiar sobre as associadas e comunicar-lhes as ordens do diretor” (Ibidem, p. 25), recitar orações junto com as demais participantes, apresentar os nomes das jovens que tivessem interesse em ingressar na entidade, e nomear, se fosse necessário, as “zeladoras do altar” que atuariam no mês de Maria e nas principais festas de Nossa Senhora para a ornamentação do local. Por isso, fica evidente que a presidente era uma pessoa de extrema confiança do diretor e da diretora, que denunciaria quem não seguisse as ordens com diligência. O capítulo IV dos estatutos das Filhas de Maria foi referenciado no último ponto dessa dissertação: são as obrigações e conselhos diretamente dirigidos às participantes da instituição. Por sua vez, no capítulo V são listadas as penas perante o descumprimento de alguma determinação, as quais especificamos a seguir:

1.As repreensões dos superiores devem aceitá-las com humildade, e seguir os bons conselhos e avisos que lhes forem dados; 2. Compete, ordinariamente, ao conselho excluir um membro da associação. A pena será aplicada, exceto o caso de grave escândalo, depois de três admoestações; outras penas, que o conselho pode decretar, são: privar a delinquente de trazer a fita por um determinado tempo, obrigá-la a fazer um ato de reparação, rebaixá-la de categoria, etc. (RÖWER, 1953, p. 29).

Inegavelmente uma moça que burlasse qualquer “obrigação e conselho” previamente definido era fortemente reprimida, conforme as próprias palavras do frei Basílio Röwer. Inclusive elas eram nominadas como “delinquentes”, uma palavra extremamente forte e humilhante. Ser expulsa e/ou não poder utilizar a fita de Filha de Maria por um determinado tempo era algo que feria não só aquelas mulheres, mas também suas famílias. A expulsão gerava uma série de sentimentos e angústias nessas mulheres, muitas vezes difíceis de serem descritas pelas entrevistadas49. No penúltimo capítulo (VI) dos estatutos, o autor delimita as “disposições regulamentares” das Filhas de Maria, que são seis, no total. Neste item, ganha destaque o regulamento de admitirem apenas moças solteiras na associação – tanto para a primeira, quanto para a segunda categoria – além de uma observação quanto à solenidade de admissão. “Não há

49 No livro Devote della Vergine: histórias de mulheres em Nova Trento (2017), a entrevistada Carmela Ceccato Dell’Antônia demonstrava muito temor ao contar sua história de vida. Ela foi expulsa das Filhas de Maria após cortar os cabelos. As palavras do padre e das religiosas com quem conviveu, nunca foram esquecidas. Depois de certo tempo, ela pensou em seguir a vida religiosa, mas ao conversar com as Irmãs, uma delas respondeu: “Se não serviu para Filha de Maria, quem dirá para as freiras”. Ela chorou por vários dias e jamais esqueceu o episódio. (FACCHINI, 2017, p. 97). 77 um dia fixo” (RÖWER, 1953, p. 30), mas havia uma forte influência para que essas cerimônias acontecessem sempre durante alguma festividade de Nossa Senhora – 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição, por exemplo. As disposições continuam com o item 2, relativo à constituição do conselho, em que a diretora e a vice-diretora são nomeadas pelo diretor por tempo indefinido, sendo “conveniente” que sejam Irmãs (Ibidem, p. 30). Já as demais são eleitas pelos votos das Filhas de Maria propriamente ditas, no dia 8 de dezembro ou no domingo seguinte a esta data, juntamente com a profissão das orações prescritas no cerimonial. Elas também poderiam ser reeleitas. Mesmo assim, era sugerida a apresentação de dois ou três nomes para serem votados para o cargo de diretora. Neste caso, o diretor não tinha voto, mas a diretora dispunha de dois deles. Em caso de empate, o diretor colocava numa urna os nomes das que empataram e, a mais nova das eleitoras, extraía um deles, elegendo a nova sucessora. Quando alguma associada mudasse de cidade, se esta possuísse uma Pia União, poderia pedir uma carta de recomendação de seu diretor, a fim de ser admitida e transferida para aquela entidade (item 3). Em se tratando de enfermidade de alguma Filha de Maria, “as suas irmãs espirituais deveriam visitá-la e confortá-la espiritual e materialmente” (RÖWER, 1953, p. 31). O mesmo congraçamento valia em caso de falecimento: era de suma importância a presença de todas as participantes na missa de enterro de uma colega, inclusive rezando o terço e oferecendo a comunhão. E, no dia 2 de novembro, todas deveriam estar presentes na missa especial dedicada às participantes falecidas, especialmente daquelas associações agregadas à primária (itens 4 e 5). O último item (número 6) alertava para o fato de que todas deveriam cumprir com as recomendações. “Uma boa Filha de Maria observá-los-á com zelo e exatidão. Nada vale trazer o título de Filha de Maria se a vida de quem o trouxer não for digna desse título” (Ibidem, p. 31). De alguma forma, as palavras eram aplicadas em tom de ameaça, fazendo-as entender que não poderia haver qualquer tipo de falseamento ou desvirtuação. O filósofo Foucault (2014) também nos auxilia nesta questão, ao explicar que essa moral ou esse conjunto de normas foi estrategicamente pensado, escrito e ensinado por homens, ou seja, por um patriarcado que se impunha. Por conseguinte, as mulheres eram vistas apenas a título de objetos ou no máximo “como parceiras, às quais convém formar, educar e vigiar, quando as tem sob poder, e das quais, ao contrário, é preciso abster-se quando estão sob o poder de um outro (pai, marido, tutor)” (FOUCAULT, 2014, p. 30). Mais do que cuidar dessas mulheres, a proposta era o próprio cuidado com o comportamento sexual ou a problematização deste, sendo objeto de reflexão, matéria para estilização. 78

2.3.2 – A parte final dos estatutos: as indulgências

O último capítulo dos estatutos da Pia União das Filhas de Maria (capítulo VII) é dedicado às indulgências, termo que foi muito utilizado ao longo desse capítulo sobre o manual, ao qual refere-se, no catolicismo, à remissão dos castigos ou dos pecados cometidos. Essas indulgências eram “concedidas in perpetuo” a todas as Pias Uniões de Filhas de Maria, agregadas à primária de Roma, conforme documento datado de 4 de fevereiro de 1870, pelos pontífices Pio IX e Leão XIII (RÖWER, 1953, p. 31). As indulgências eram divididas em quatro categorias: plenárias, parciais, das estações e pelos defuntos e privilégios. As indulgências plenárias (item I) eram concedidas para as associadas no dia da admissão como aspirantes, se estas estivessem verdadeiramente arrependidas e se tivessem confessado e comungado naquele dia. Nota-se que a confissão e o ato de arrepender-se eram fatores essenciais que garantiam a essas moças as indulgências, ou o perdão diante de tudo, mesmo que não tivessem cometido qualquer infração. Essas regras vão estar presentes em todos os requisitos das indulgências plenárias, pois foi a forma que a Igreja Católica encontrou de cercear e estar no controle de todas as situações perante essas jovens. Era uma severa “vigilância doutrinal” (DEL PRIORE, 1993, p. 29), que perpassava não somente pela questão da confissão, mas também pelos sermões e demais eventos promovidos pela instituição religiosa. Essas vigias e proibições culminaram, posteriormente, na concretização do projeto de Igreja: impedir a mulher de obter outros papeis que não aqueles determinados pela vida familiar, como o cuidado da casa, da cozinha, da lavagem de roupas e o servir ao chefe da família, dando-lhe filhos que assegurassem sua descendência. Foucault (1988, p. 76) também atenta para a questão da confissão, demonstrando que ela tinha uma função hermenêutica: aquele que possuía o poder da escuta era considerado o dono da verdade – ele era quem dominava. Havia também outras ocasiões em que essas indulgências eram concedidas às Filhas de Maria, conforme especificado no estatuto: em caso de morte, mas ainda era necessário o arrependimento, a confissão e a comunhão e, se uma Filha de Maria não pudesse cumprir, ao menos deveria invocar o nome de Jesus; nas festividades do Natal e ascensão do Senhor, se tiverem efetuado as obrigações do primeiro item, além de fazer uma visita à igreja ou capela e “orar pela extirpação das heresias e cismas e pela exaltação da Igreja” (RÖWER, 1953, p. 32); nas duas festividades principais da Pia União, sendo estas a Imaculada Conceição da Virgem Maria e de Santa Inês Virgem e Mártir; nas festas da natividade, anunciação, purificação e assunção de Nossa Senhora; na solenidade do rosário de Nossa Senhora; na festa de Todos os 79

Santos; uma vez por mês, no dia em que escolhessem, mas cumprindo as condições do primeiro e do terceiro item – confissão, comunhão, arrependimento, visita a uma igreja ou capela e oração – contanto que tenham assistido às reuniões durante aquele mês. O capítulo das indulgências plenárias finaliza com a informação sobre o dia da comunhão geral ou mensal – que poderia ser escolhido por elas, juntamente com o último item sobre a concessão de indulgência às devotas que assistissem aos “exercícios espirituais ou retiro” que era realizado costumeiramente todos os anos pela Pia União. Mais uma vez, no entanto, era enaltecido o cumprimento do primeiro e do terceiro item, sendo esses objetos essenciais de controle. O texto prossegue com o item II, sobre as indulgências parciais. Estas eram concedidas às associadas “de coração contrito, que visitarem a igreja da Pia União ou qualquer oratório público, e aí orarem segundo já dito nos números 1 e 350, e poderão lucrar a indulgência de sete anos em todas as demais festas de Nossa Senhora” (Ibidem, p. 33). De acordo com o manual, esta regra foi firmada em 18 de dezembro de 1862, onde constavam as seguintes festividades oficiais da instituição: festa das dores de Nossa Senhora – na sexta-feira da semana da Paixão; festa da visitação - 2 de julho; festa de Nossa Senhora do Carmo - 16 de julho; festa de Nossa Senhora das Neves - 5 de agosto; festa do santo nome de Maria - 12 de setembro; a segunda festa das dores - 15 de setembro; festa de Nossa Senhora das Mercês - 24 de setembro - e a festa da apresentação de Nossa Senhora - 21 de novembro. É possível constatar que a vida de cada Filha de Maria era estrategicamente controlada por meio das datas celebrativas da Igreja, especialmente àquelas ligadas à Nossa Senhora. A cada dia uma nova data religiosa e, consequentemente, um novo culto ou uma nova missa tomavam conta do cotidiano dessas jovens moças. Há que se perguntar se sobrava tempo para os demais afazeres, uma vez que desde a hora de levantar até a hora de ir para a cama elas possuíam atividades e normas a serem cumpridas. Existiam, também, as indulgências de sessenta dias, que no manual estão como parte das indulgências parciais referenciadas no último parágrafo. Elas eram concedidas às associadas que praticassem boas obras, seguindo o espírito da Pia União alicerçado na caridade. Mas, como é de se esperar, essas indulgências só eram concedidas se as moças seguissem determinadas regras, que no total eram 15, sendo sempre estas vinculadas às questões de sociabilidade e de controle/normatização do tempo, conforme a seguir:

50 Refere-se à confissão e à comunhão, bem como à participação das festividades mencionadas, Natal e Ascenção do Senhor; e entra neste item a visita à igreja da Pia União ou qualquer capela pública, desde que orassem pela extirpação das heresias e cismas, e pela exaltação da Igreja (RÖWER, 1953). 80

Se assistirem aos ofícios divinos, prédicas e outras devoções que se fazem nas reuniões hebdomadárias; Se assistirem às reuniões em que se tratar da admissão de alguma candidata, ou na eleição das Associadas para algum cargo, ou de negócios da Pia União; Se ouvirem Missa nos dias semanais ou úteis; Se visitarem o Santíssimo Sacramento e orarem à Santíssima Virgem e a Santa Inês, ao menos na sua habitação, não podendo ir à Igreja; Se recitarem os cinco salmos em honra do nome de Maria, ou a Coroa da Imaculada Conceição, ou três Ave Marias com um Padre Nosso em honra de Santa Inês; Se cantarem hinos em honra de Nossa Senhora, abstendo-se de cantos profanos; Se forem diligentes em fazer todos os dias a meditação, a leitura espiritual e o exame de consciência; Se praticarem as virtudes cristãs, principalmente a caridade, a pureza, a humildade e a obediência; Se desviarem o próximo do mal com salutares admoestações ou com orações; Se consolarem os aflitos e procurarem reconciliar os inimigos; Se, ao som do sino pela morte de alguma associada ou de qualquer fiel, rezarem por sua alma; Se acompanharem o enterro de alguma associada ou de qualquer outro fiel; Se visitarem os enfermos e encarcerados, ou derem alguma esmola aos pobres; Se usarem de particular modéstia no trajar, ou evitarem os bailes, teatros e outras reuniões clamorosas ou divertimentos perigosos; Se beijarem devotamente a medalha da Pia União. (RÖWER, 1953, p. 34-35).

O terceiro item das indulgências presente no Manual da Pia União das Filhas de Maria era referente às indulgências das estações. Neste ponto, as associadas eram orientadas a visitarem uma igreja da associação e, caso não pudessem estar presentes, o aconselhamento era de rezarem cinco pais nossos, cinco aves marias e cinco glórias ao pai, junto a qualquer oratório público. Essas indulgências das estações – isto é, de 10 anos ou plenária - eram concedidas nos seguintes dias, desde que confessassem e comungassem: domingos do Advento; têmporas do Advento; Vigília de Natal; Dia de Natal (com três missas); nos dias 26, 27 e 28 de dezembro; na circuncisão e na epifania do senhor; nos domingos da setuagésima, sexagésima e quinquagésima; na quarta-feira de cinzas e em todos os outros dias da quaresma; no domingo de Páscoa e nos dias dentro da oitava até o domingo da Páscoa; no dia de são Marcos - 25 de abril - e nos outros três dias de rogações; no dia da ascensão do senhor; na véspera do Espírito Santo; no domingo do Espírito Santo e em todos os outros dias dentro da oitava e nas têmporas de setembro. Mary Del Priore (1993) aponta que a regulamentação do controle do cotidiano das pessoas estava atrelada, ao calendário anual. Havia uma grande necessidade de presidir a mulher, tornando-a obediente e submissa a todas as ordens, seja dentro de casa ou no seio da Igreja, por meio de suas datas comemorativas:

Advento, Natal, Quaresma, Páscoa e pelo ciclo santoral dos diferentes apóstolos, confessores. A Igreja fazia-se presente ainda em momentos da vida como o batismo, a eucaristia, o casamento, a extrema-unção, os funerais, a penitência e os demais gestos que acompanhavam o dia-a-dia das pessoas, do nascimento à constituição da família, da reconciliação à morte, da reza doméstica às celebrações coletivas. (DEL PRIORE, 1993, p. 28). 81

Por fim, havia as “indulgências pelos defuntos e privilégios”: aqui se especifica que todas as indulgências poderiam ser aplicadas em sufrágio pelos fieis defuntos, e as missas deveriam ser celebradas no altar da Pia União, agregada à primária, em favor das associadas falecidas. Além disso, neste mesmo item, é acordado que todos os diretores poderiam lucrar as mesmas indulgências que as associadas, desde que cumprissem com as condições impostas. Ainda neste item, havia a descrição de que as medalhas deveriam ser bentas – por indulgência plenária, in articolo mortis (na hora da morte). Esta ordem foi estabelecida em 3 de abril de 1870, conforme documentos autênticos “pela Santa Congregação das Indulgências” (RÖWER, 1953, p. 37). Ao final do estatuto, há uma nota, datada de 14 de fevereiro de 1906, descrevendo como devem proceder as pessoas que costumam receber a comunhão todos os dias – mesmo que se abstenham um ou dois dias na semana. “(...) Podem, com a comunhão que fizerem, e cumpridas as outras condições, ganhar todas as indulgências para as quais a comunhão é requerida, e não há prazo marcado para a confissão” (Ibidem, p. 38).

2.3.3 – Segunda e terceira partes: os cerimoniais e o devocionário

Finalizada a primeira parte do Manual da Pia União das Filhas de Maria, dedicada aos estatutos da entidade, dá-se início à segunda parte, em que há a descrição dos principais cerimoniais da Pia União: admissão das aspirantes, admissão das Filhas de Maria, oração para as reuniões, orações para as eleições, orações para as reuniões do conselho e, por fim, o cerimonial da despedida, em que a moça se desliga oficialmente da entidade, seja para seguir a vocação religiosa ou para assumir matrimônio. Na folha de abertura da segunda parte, o autor deixa claro que a recepção das candidatas, especialmente as aspirantes à categoria de Filhas de Maria, é uma das maiores solenidades da Pia União, sendo realizada apenas durante as grandes festividades da Igreja Católica Apostólica Romana. Há ainda a observação quanto ao altar de Nossa Senhora, que deve ser devidamente ornamentado para essas cerimônias. Além disso, ele faz referência – novamente – aos trajes que as moças devem usar nesses eventos obrigatórios, abdicando-se completamente de vestidos decotados, mesmo que essas moças sejam menores de 12 anos. Elas 82 também não devem se apresentar de chapéu, mas, sim, estarem com a “cabeça coberta com um véu ou fichú51” (RÖWER, 1953, p. 39). Ainda em relação ao véu e às vestimentas, no artigo II sobre a admissão das Filhas de Maria, o Manual detalha de que forma devem estar paramentadas as jovens candidatas: vestido branco, véu branco de filó, tarlatana ou escumilha – sempre de acordo com o que foi definido em Conselho – grinalda de rosas brancas e cinto azul, com as pontas caídas no lado esquerdo. Em relação ao cinto azul, esta não era uma regra que vigorava em Nova Trento, pois até mesmo nas fotografias das entrevistadas este item não compõe suas indumentárias. Permanecia, sim, a regra dos vestidos brancos e o uso do véu, especialmente em cerimônias festivas e em determinadas missas dominicais, seguidas pelas reuniões. Esta parte do Manual é extremamente descritiva, contendo todos os discursos daqueles que orientam as cerimônias, juntamente com as orações a serem proferidas em cada ato. Por este motivo, optou-se por não os relacionar ou os descrevê-los por completo aqui. De qualquer forma, damos destaque ao “Ato de Consagração à Maria Santíssima”, ou o momento em que uma Filha de Maria se consagra, estabelecendo seu compromisso social e religioso diante de tal função e perante todas as demais colegas, assumindo também o papel de vigia. Este era o momento mais importante para uma moça que participava dessa entidade. Assim está descrito no Manual e, por meio desses votos, a jovem confirmava seu compromisso com a sociedade e com a família em ser toda de Maria:

Ó Maria, concebida em pecado, / eu, querendo hoje colocar-me sob vossa especial proteção, / vos elejo por minha protetora e advogada, / por minha Mãe e Senhora. / Prostrada aos vossos pés / prometo firmemente empregar todos os esforços / em promover a vossa glória / e propagar o vosso culto. / De hoje em diante / quero fazer profissão manifesta de ser toda vossa, / de seguir os vossos vestígios, e de imitar as vossas virtudes, / especialmente a vossa angélica pureza virginal, / a vossa perfeitíssima obediência, e a vossa incomparável caridade. / Isto prometo solenemente / ao pé de vosso altar, em presença de toda a corte celeste. / Obtende-me, ó terna Mãe, / a graça de ser fiel a esta promessa / durante toda a minha vida, / para merecer a alta dita de ser vossa filha / por toda a eternidade. Assim seja. (RÖWER, 1953, p. 47).

Neste contexto, é possível visualizar o modelo de mulher preconizado pela Igreja Católica através do discurso de posse de uma Filha de Maria: a mulher “prostrada”, que imita firmemente as virtudes de Maria, especialmente àquelas vinculas à sexualidade. No livro Ao Sul do Corpo, de Mary del Priore, é possível observar este modelo de mulher sendo construído durante todo o período colonial: havia funções muito bem definidas para as mulheres, em que

51 Espécie de abrigo, de tecido leve e de formato triangular, com que as mulheres cobriam a cabeça, pescoço e ombros. 83 diversos órgãos buscavam enquadrar ou estabelecer o padrão de sexualidade pretendido. “O modelo de feminilidade que vicejava era ditado pela devoção à Nossa Senhora e correspondia a comportamentos ascéticos, castos, pudibundos e severos. Cultuava-se a virgindade (...)” (DEL PRIORE, 1993, p. 36). Ser completamente “pura” era o ideal para toda moça Filha de Maria, que seguia os preceitos da Igreja, da sociedade, da família e, não menos importante, do cuidado consigo mesmo. O corpo era objeto de conhecimento, campo de transformação, de correção, para promover a própria purificação e salvação, assim como também contextualiza Foucault (1985). Na terceira parte do Manual da Pia União das Filhas de Maria está o devocionário. Neste capítulo estão enumeradas e compiladas todas as orações, novenas, ladainhas, tríduos e demais textos que uma Filha de Maria deveria ler (ou decorar) para as cerimônias. São 23 itens, enumerados a seguir: orações da manhã; orações da noite; orações para a santa confissão; orações para a santa comunhão; orações para a santa missa; ofício da Imaculada Conceição; novena da Imaculada Conceição; ladainha de Nossa Senhora; coroinha da Imaculada Conceição; coroa de Nossa Senhora das Dores; tríduo de Santa Inês, virgem e mártir; oração a Santa Inês; exercício da via-sacra; ladainha do Sagrado Coração de Jesus; à benção do Santíssimo Sacramento; oração a Cristo Rei; oração ao divino Espírito Santo; ladainha de São José; oração em honra das sete dores e sete alegrias de São José; lembrai-vos, ó São José; ofício da Imaculada Conceição, em verso; Eu prometi – uma canção escrita pelo frei Pedro Sinzig OFM; e o hino a Santa Inês. Há, ainda, uma última parte do manual, intitulado “apêndice”, em que estão listadas as cerimônias para admissão de aspirantes à Associação dos Santos Anjos. Esta entidade era formada por meninas leigas, com idade entre 7 e 10 anos, admitidas com o uso de uma fita branca, tendo na ponta uma medalha benta contendo Maria Auxiliadora de um lado e o Anjo da Guarda do outro. Posteriormente, eram incorporadas como “associadas”, e a fita branca era substituída por uma fita de cor vermelha, sendo mantida a mesma medalha. Esta era a primeira etapa antes do ingresso de aspirante à Filha de Maria na maioria das paróquias, embora não fosse uma regra. Em Nova Trento, por exemplo, era comum o ingresso na Cruzada Eucarística, e não na Associação dos Santos Anjos, já que a primeira comunhão era um pré-requisito para ingressar em associações, sejam elas femininas ou masculinas.

2.4 – Vigiar é preciso: os livros de atas da associação

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Tendo em vista o que foi exposto até o momento, compreende-se que a Igreja Católica, preocupada com as questões pastorais, utilizou artifícios teológicos que limitavam os direitos das mulheres. As autoridades religiosas – que se expressavam em nome de Deus – controlaram os corpos e as sexualidades, partindo do pressuposto de que estavam defendendo objetivos considerados “universais”: a vida e a família. Este controle, expresso na forma de vigilância, de estar atento, de observar, de espreitar e, em muitas situações, de espionar estava fortemente presente até mesmo dentro da própria igreja (espaço físico). O Santuário Nossa Senhora do Bom Socorro, por exemplo, situado a 525 metros de altitude, em Nova Trento, possui, no interior de seu templo, um imenso olho, pintado dentro de um triângulo e colocado no alto, acima da imagem de Nossa Senhora colocada no altar52. O ponto superior é estratégico: é para que as fieis possam se sentir observadas o tempo todo.

Ele vê tudo, sabe tudo e pode tudo. É um olho onipotente, um panóptico que atravessava muros e até nossos sentimentos mais íntimos. Através de seu olho observador julgava os fiéis e particularmente as mulheres. (...) Ele não só está na pintura das Igrejas, mas foi pintado dentro da consciência de cada mulher, de tal forma que se torna uma espécie de olho atemorizante ou de juiz interior. (GEBARA, 2017, p. 63).

Como visto, este olhar atravessa qualquer obstáculo e chega aos recônditos mais íntimos das mulheres. Ali, na igreja, no espaço em que elas deveriam ser acolhidas, este olho passa a espiar suas ações, a julgá-las e a fazê-las sentirem-se culpadas o tempo todo. Uma vigia que as atemorizava, não só dentro do próprio templo, mas fora dele, quando estavam concentradas em outros afazeres. Este constante vigiar está presente de forma muito intensa nos livros de registros das Filhas de Maria. Durante o trabalho de pesquisa, foi possível ter acesso aos documentos junto à Paróquia São Virgílio, em Nova Trento, que os mantém com cuidado em sua biblioteca. Havia a proposta de transferir esses livros para o arquivo dos padres Jesuítas, no Rio Grande do Sul, mas pelo menos por enquanto eles permanecem em Nova Trento. No total, são oito documentos: 1. Livro das Oficiais da Pia União das Filhas de Maria (1902-1957); 2. Registro das Aspirantes à Pia União das Filhas de Maria; 3. Registro das Filhas de Maria; 4. Cartas pertencentes à Pia União das Filhas de Maria; 5. Diário da Pia União das Filhas de Maria; 6. Livro de consultas da Pia União das Filhas de Maria; 7. Congregação Mariana Nossa Senhora de Assunção; 8.

52 Atualmente permanece a figura do olho. No passado, esta pintura já foi apagada – permanecendo completamente branca – e, em outros tempos, o espaço ganhou a figura de uma pomba. Depois de várias reformas, o Santuário preferiu retornar à pintura original. Esta igreja foi erguida em 1902. 85

Congregação Mariana das Moças53. Vale pontuar que os quatro primeiros livros, juntamente com o número 7 – Congregação Mariana Nossa Senhora de Assunção – não são de atas de reuniões, mas, sim, documentos em que são anotados os nomes das participantes (livros de registros), livros de presença e, também, a relação das diretorias constituídas. Nos demais documentos – diário, livro de consultas e Congregação Mariana das Moças – elas notificam as suas atividades em atas formalmente redigidas à mão. Por conseguinte, o primeiro livro, “Ufficiali della Pia Unione delle Figlie di Maria” tem como proposta registrar as diretorias constituídas entre os anos de 1902 e 1957. Embora as atividades das moças tenham iniciado antes, em 1890 – conforme já mencionado – as Filhas de Maria passam a escrever apenas a partir de 1902, quando recebem a diplomação de Roma. É possível observar esta informação na carta escrita pela Secretária da Pia União à época, Ida Gottardi, em que ela abre a ata (diário de registros) contando a história da instituição. Esta carta foi escrita no dia 1º de novembro de 1903, em língua italiana – ou melhor, no dialeto praticado à época54, dando a impressão de que era preciso preservar a história da entidade naquele momento.

Pode-se dizer que a Pia União das Filhas de Maria de Nova Trento e dos arredores começou em 1890. Foi o padre Alfonso Parisi SJ quem fez, por assim dizer, a fundação. Mas não foi então criada canonicamente, pois precisavam ver se esta Pia União era possível nesses lugares, dada a dispersão das famílias e a distância. Foi desta forma que ela durou cerca de 12 anos. Depois de uma longa experiência, mantendo-se firme e, com nenhuma dúvida, sobre o poder sucedido da glória de Deus e em honra de Maria, o Reverendo Padre Giustino Lombardi - Superior da Missão Jesuíta no Brasil, veio para Nova Trento em janeiro do ano 1901 para uma visita à residência dos Padres, e assim ordenou que a Pia União fosse canonicamente criada. No entanto, Sua Excelência, o Monsenhor Bispo de Curitiba, escreveu para a aprovação necessária, que foi então enviada a Roma para obter o diploma de agregação. O diploma foi imediatamente enviado sob a data de 23 de agosto de 1902. Estabelecida regularmente, a Pia União tinha como diretor principal o padre Luigi Rossi - Superior da residência dos padres. Mas logo ele teve que deixar a direção, pois foi transferido. Esta permaneceu, no entanto, sem um Diretor por sete meses, até que veio a Nova Trento, pela segunda vez, o Reverendo Padre Giustino Lombardi, que designou para o ofício de Diretor o Reverendo Padre Giovanni Giacomo Colleoni, que havia chegado há pouco tempo da Europa. Na festa de todos os santos, 1º de novembro de 1903.

53 Os seis primeiros livros têm seus títulos escritos em italiano. Tradução da pesquisadora – de todos as citações neste capítulo e no próximo – cujos nomes originais são: 1. Libro delle Ufficiali della Pia Unione delle Figlie di Maria (1902-1957); 2. Registro delle Aspiranti alla Pia Unione delle Figlie di Maria; 3. Registro delle Figlie di Maria; 4. Lettere Spettanti alla Pia Unione delle Figlie di Maria; 5. Diario della Pia Unione delle Figlie di Maria; 6. Libro delle consulte della Pia Unione delle Figlie di Maria. Os dois últimos livros também pertencem à Pia União, porém esta ganha uma nova denominação a partir de 22 de março de 1945 (conforme relatado em ata e com documento da cúria), passando a se chamar “Congregação Mariana”. 54 Comprovamos esta questão do dialeto quando nos livros de atas encontramos palavras como “moneche”, que significa freira no dialeto trentino. No italiano gramatical, freira é “suora”. 86

Ida Gottardi, Secretária da Pia União55 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, texto de abertura do Diário da Pia União das Filhas de Maria, 1º de novembro de 1903, Livro 1, p. 01)

A caligrafia nesses livros, em muitos momentos, dificulta a leitura da ata. Soma-se a isso o fato dessas atas terem sido escritas com canetas-tinteiro. Por usarem tinta à base de água e pigmentos coloridos, entre eles a nanquim, é perceptível que as secretárias faziam uso do mata-borrão – para poder tirar o excesso de tinta da escrita. Por isso, em muitas situações, é difícil compreender o que está escrito e, em se tratando das transcrições das diretorias, com inúmeros nomes, essa leitura às vezes não é efetiva. Especificamente nesta ata de registro das diretorias havia sempre uma observação sobre moças que deixavam suas funções devido ao matrimônio. Este comentário geralmente era colocado ao final da página, indicando o motivo de elas terem deixado a entidade, seguido da data. Entre as funções ocupadas pelas moças leigas estavam estas: presidente, vice- presidente, assistente, conselheira, secretária, tesoureira e sacristã. Em outros momentos aparecem também os cargos de mensageiras e de “coriste” (coristas e/ou cantoras). As únicas atividades comandadas por freiras – neste caso da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, fundada por Santa Paulina – eram as de diretora, vice-diretora e mestra das aspirantes, por seguir fielmente as diretrizes do Manual das Filhas de Maria. O uso da língua italiana permanece nesses livros até 1924. A partir de 1925 adotam o português, que segue até 1930. Em 1931, passam a adotar o italiano novamente até 1933. Em 1935, o português retorna e permanece até o final. Tendo como base a história do Brasil, pode- se concluir que Nova Trento também sentiu intensamente a campanha de nacionalização de Getúlio Vargas. Até então, cada estado possuía uma certa autonomia política. Na década de 1930, a proposta de Vargas era construir uma integração entre os brasileiros, principalmente

55 Carta original transcrita a seguir: La Pia Unione delle Figlie di Maria di Nova Trento e dei dintorni si può dire che in qualche modo incominciasse nel 1890. Fu il padre Alfonso Parisi SJ che ne gesto, a cosi dire, le fondamento. Ma non fu allora eretta canonicamente, giacchè si volea jorima vedere se tale Pia Unione fosse possibile in questi luoghi, atteso la dispersione delle famiglie e la lontananza. Durò essa in tal modo come in prova circa 12 anni. Dopo si lunga esperienza, non rimanendo omai più alcun dubbio circa il poder riuscire a gloria di Dio e ad onore di Maria SS, il R. P. Giustino Lombardi Superiore della Missione dei Gesuiti nel Brasile, venuto a Nova Trento nel mese di Gennaio dell’anno 1901 per la visita della residenza dei Padri, ordinò che la Pia Unione fosse eretta canonicamente. Si scrisse però a Sua Ecc. Monsignor Vescovo di Curytiba per la necessaria approvazione, la quale venne tosto mandata a Roma per averne quindi il diploma di aggregazione. Il diploma fu subito spedito sotto la data del 23 agosto 1902. Stabilitasi cosi regolarmente la Pia Unione abbe da principio per Direttore il R. Padre Luigi Rossi Superiore della residenza dei Padri. Ma ben presto egli ne dovette lasciar la direzione essendo stato traslocato. Rimase però la Pia Unione senza Direttore per sette mesi, finchè giunto a Nova Trento per la seconda volta il R. P. Giustino Lombardi affidò l’Ufficio di Direttore al Rev. Padre Giovanni Giacomo Colleoni arrivato poco prima d’Europa. Nella festa di tutti i santi, 1º novembre 1903. Ida Gottardi, Segretaria della Pia Unione. 87 minimizando as comunidades de imigrantes. E, com o advento da 2ª Guerra Mundial, falar um idioma – neste caso o italiano – era falar a língua do inimigo, pois a Itália pertencia ao eixo, e o Brasil naquele período fez aliança com Grã-Bretanha, Estados Unidos e União Soviética. Por esses motivos, a língua italiana passou a ser proibida e as Filhas de Maria também sofreram interferência, perceptível nos registros da instituição, quando elas deixam o italiano de lado e passam a adotar o português. Outra curiosidade do livro “das oficiais” aparece logo depois de 1917. As diretorias são todas enumeradas, ano a ano, até esta data. Porém, logo em seguida, é possível observar que algumas páginas foram arrancadas. A ata fica sem registros por três anos, ou seja, até 1921. Não há uma justificativa por parte das Filhas de Maria em nenhum dos livros de atas56. As últimas líderes, o que coincide com o término do livro, são anotadas até o início do ano de 1960. Os livros 2 e 3 são dedicados aos registros das aspirantes e das Filhas de Maria propriamente ditas, respectivamente. Uma a uma as moças são enumeradas: primeiramente são escritos os sobrenomes, seguidos dos nomes das jovens. Por exemplo: Battistotti Amelia. Na segunda coluna é registrada a data de nascimento e, na coluna ao lado, a data de permissão ou ingresso. No caso das aspirantes era a permissão, pois ainda não estavam integradas oficialmente à entidade. Em seguida era registrado o local onde a jovem frequentava as reuniões. Em Nova Trento, os espaços de maior número de adeptas eram o centro – anotado como “Nova Trento” na ata, e o bairro Vígolo, distante cinco quilômetros. Mais tarde passa a constar em ata “S. Giuseppe”, que é o nome da igreja do bairro Claraíba, hoje distrito do município. Na parte final era anotado o bairro em que a moça morava (“abita”, em italiano) e pequenos registros (“note”). Este último ponto era o mais importante, pois ali informavam se as moças tinham obtido a permissão – no caso das aspirantes – se foram admitidas, se se casaram, se entraram para uma congregação religiosa, se morreram ou se foram expulsas, conforme exemplos a seguir:

Ágata Sgrott se casou em 20/05/1905; Maria Stramostri, mora em Vígolo junto com as freiras, entrou para a Congregação da Imaculada Conceição em 24/12/1906; Luigia Dalri, agregada em 08 de dezembro de 1907, frequenta em Nova Trento, foi mandada embora porque se comportava mal. (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, livro de Registros das Filhas de Maria)57.

56 Não encontramos um motivo sobre essa falta de registros, tanto no livro das diretorias, quanto no Diário das Filhas de Maria nesses três anos (1918-1920). Não sabemos se pode haver alguma relação com a 1ª Guerra Mundial, que aconteceu entre os anos de 1914 e 1918. 57 Citações originais: Sgrott Agata si maritò il 20/05/1905; Stramostri Maria, abita a Vigolo presso le suore, entrò fra le Figlie dell’Immacolata Concenzione, il 24/12/1906; Dalri Luigia, nata a 04/02/1893, aggregata a 08/12/1907, frequenta in Nova Trento, note: Fu mandata fuori perchè si diportava male. 88

Figura 6 – Primeira página do livro de registros das aspirantes - Registro delle Aspiranti alla Pia Unione delle Figlie di Maria, com início em 1902

Fonte: Elis Facchini (2017)

A maioria das notas/observações refere-se às expulsões e aos casamentos, uma vez que partir deste último a jovem automaticamente saía da instituição. Mas, ainda assim, havia casos de readmissão de jovens depois de algum tempo de expulsão, como desta moça de sobrenome Franzoi: “Iva Franzoi, nasceu em 31/03/1906, agregada em 08/12/1914, mora no Coração de Maria (bairro Morro da Onça), nota: Expulsa – readmitida 01/05/1927” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, livro de Registros das Filhas de Maria)58. Além disso, eram registradas também as migrações para outras cidades, que provavelmente ocorriam depois do casamento ou simplesmente porque a família e/ou a moça havia optado pela mudança. Entre as

58 Citação original: Franzoi Iva, nata a 31/03/1906, aggregata a 08/12/1914, abita in Cuore di Maria, note: “E. – readm. 01/05/27. 89 cidades que constam em ata estão Taió, Rodeio, Itajaí, Pinheiral – um bairro de , mas que no passado pertencia ao município de São João Batista – Azambuja (Brusque), São Paulo, entre outras. Uma observação interessante é que o cargo de catequista ganhava destaque nos apontamentos/notas, provavelmente porque servia para análise do próprio clero, caso acontecesse alguma expulsão ou situação de conflito. O cargo de catequista geralmente era ocupado por alguém de confiança dos padres; alguém que possuía muito conhecimento e que, de certa forma, detinha algum prestígio. A partir da década de 1930, as anotações das jovens mudam. O nome da moça vem primeiro, seguido do nome do pai. Por exemplo: “Clara Voltolini, de Próspero” ou “Angelina Piccoli, de Simão”. Isso demonstrava que elas pertenciam a uma família “tradicional” da cidade e, principalmente, com descendência italiana. Até pouco tempo, em Nova Trento, ouvia-se muito a expressão “brasiliani”, indicando quem não era de origem italiana. A migração de pessoas de outras etnias começou muito recentemente, depois da década de 1980. Até então, o município mantinha certo “enclausuramento” cultural e via com maus olhos aqueles que não tivessem a mesma ascendência. Além disso, o registro do nome do pai também aponta para o domínio do patriarcado, ou seja, ele é quem mantém a autoridade sobre essas mulheres, suas filhas. Isso só era quebrado quando a jovem assumia casamento e, assim, o domínio passava para as mãos do “chefe de família”, neste caso, o marido. Até o ano de 1930, 989 meninas ingressaram oficialmente nas Filhas de Maria de Nova Trento. Depois desse número, o livro de registros é interrompido com uma grande nota, informando que a Pia União ficou suspensa por alguns meses. “Para restituição foram só chamadas as mais exemplares, dando-se a estas plena liberdade de entrar ou não” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, livro de Registros das Filhas de Maria). A partir desse ponto, passam a anotar os nomes a partir do número um novamente, até atingir o número 407, em 1944. Em 1945, com a oficialização da mudança do nome de Pia União para Congregação Mariana, começa uma nova contagem, que permanece até o final do livro, na década de 1960. Neste período final, os nomes dos pais não eram mais mencionados e as moças começam a ser registradas por ordem alfabética, o que não era feito anteriormente: no passado elas eram listadas por data de admissão, que geralmente coincidia com o dia da Imaculada Conceição (8 de dezembro) ou, mais tarde, com o dia de Nossa Senhora de Assunção (15 de agosto). Acredita-se que o número de participantes nas reuniões variava entre 100 e 200 moças, dependendo da época. Os encontros aconteciam na Capela de Nossa Senhora do Bom 90

Conselho59, localizada atrás da Igreja Matriz São Virgílio – até 1940, Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Em uma das atas foi possível ter acesso a uma página avulsa, possivelmente uma carta escrita pelo padre da época, datada do dia 05 de novembro de 1903. Ele conta que,

presentemente as Filhas de Maria são mais ou menos 150. Considerando as circunstâncias do lugar, este número é de admirar. Para contar só brevemente uns pormenores: as que moram perto são poucas, a maior parte delas mora longe, 4, 6, 10, 12 e até 15 km e, contudo, dificilmente faltam as reuniões. (Possivelmente escrita pelo padre Giovanni Giacomo Colleoni, no dia 05 de novembro de 1903, direcionada ao padre Luigi Santini, residente em Roma).

Além das dificuldades de deslocamento até a Igreja, nessa carta está registrada a falta de recursos das famílias e das jovens Filhas de Maria, que nem ao menos conseguem comprar um guarda-chuvas e/ou um par de sapatos. Segundo o padre, a maior parte delas anda “pé no chão, no meio de tanto barro” e, mesmo assim, traz “no peito a medalha de Maria, caminhando alegres e contentes, como se estivessem a passear por um jardim de rosas” (Giovanni Giacomo Colleoni, 05 de novembro de 1903, direcionada ao padre Luigi Santini, em Roma).

2.4.1 – O diário das atividades e o livro de consultas: as condutas de uma “boa” Filha de Maria

Dos cinco últimos documentos (livros de atas) das Filhas de Maria, optou-se por dar destaque a três deles: diário, livro de consultas e Congregação Mariana das Moças, porque neles encontram-se informações do dia-a-dia da entidade, especialmente em relação às condutas de uma Filha de Maria. Há um livro dedicado às correspondências, ou às cartas que as Filhas de Maria recebiam e enviavam, entre os anos de 1903 e 1916, que tratar-se-á brevemente no último capítulo desta dissertação. Um outro livro que não entrará nesta análise será o da Congregação Mariana Nossa Senhora de Assunção, pois este apenas registra os nomes das moças e as suas faltas/presenças, a partir do ano de 1958. Primeiramente, é importante assinalar que as reuniões das Filhas de Maria ocorriam sempre aos domingos – geralmente o primeiro de cada mês, após a missa da manhã – que durante certo tempo foi às 5h e, depois, passou a ocorrer às 6h. Devido à distância de uma localidade a outra, havia três locais “oficiais” para os encontros: centro (Nova Trento), Vígolo e S. Giuseppe, este último referindo-se à Igreja São José, do bairro Claraíba, distante 16 quilômetros do centro. Uma vez por mês também aconteciam os retiros, realizados geralmente

59 Citação original: Cappella della Madonna del Buon Consiglio. 91 na casa da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, localizada no centro, ou em Vígolo, em outro espaço pertencente às freiras. Tudo isso está registrado em ata, inclusive as reuniões com as aspirantes, que ocorriam no segundo domingo do mês, ou seja, em um dia separado das Filhas de Maria propriamente ditas.

Figura 7 – Primeira ata do Diário da Pia União das Filhas de Maria de Nova Trento, datada de 01 de novembro de 1903

Fonte: Elis Facchini (2017)

Duas datas ganham destaque em praticamente todas as atas da instituição: 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição, data oficial de ingresso das Filhas de Maria – pelo menos no início da associação. Ao longo dos anos, isso vai se perdendo, e outras datas são incorporadas para a admissão de novas filhas, como o dia de Nossa Senhora de Assunção (15 92 de agosto), dia de Regina Caeli60 (22 de abril) e dia de Santa Inês (21 de janeiro). Esta última é a segunda data mais importante para uma Filha de Maria, por se tratar da “Festa de Santa Inês, protetora da Pia União”61 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 03 de janeiro de 1904). Por indicação das famílias e das próprias moças da comunidade, inúmeras meninas recebiam “permissão” para participar da Pia União das Filhas de Maria como aspirantes. Durante determinado período – que durava cerca de seis meses a um ano, conforme relatado em ata – essas aspirantes eram observadas pelo grupo, neste caso pela diretoria e pelo padre diretor. Todas elas eram orientadas a comunicar os possíveis desvios dessas candidatas ao vigário. Desta forma, as associadas vigiavam-se mutuamente, facilitando inclusive o trabalho do próprio clero: muitos olhares estavam atentos ao modelo de mulher preconizado. Com base nessa perspectiva de vigilância, em História da Sexualidade 3: o cuidado de si (1985), Foucault teoriza como o sujeito constrói sua identidade e direciona sua conduta, embasado em um conjunto de técnicas: tecnologias de produção, tecnologias de signos, tecnologias de poder e tecnologias do eu. Estas últimas, em especial, possibilitam que os indivíduos adotem algumas diretrizes sobre seu corpo, pensamento e conduta. Esse “cuidado de si” imbuído da temática da sexualidade, mais do que um aglomerado de recomendações, carregam um ideal ético. Este, por sua vez, conduz os indivíduos a aplicá-lo de forma voluntária, sem que percebam que estão sendo conduzidos por esse conjunto de técnicas, derivadas de relações de poder. Isso propicia a elaboração de um saber, que se torna comum ou normal em uma sociedade após determinado tempo de atuação. Foi exatamente o que ocorreu com as Filhas de Maria: elas passaram a adotar essa vigilância perante si e as outras; essa prudência tinha relação direta com o corpo e, consequentemente, com a sexualidade.

O cuidado de si aparece, portanto, intrinsecamente ligado a um “serviço de alma” que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas. De acordo com uma tradição que remonta a muito longe na cultura grega, o cuidado de si está em correlação estreita com o pensamento e a prática médica. Essa correlação antiga ampliou-se cada vez mais. (FOUCAULT, 1985, p. 59).

É importante ressaltar que esse “cuidado de si” ou a ética diferem da moral, sendo este um conjunto de regras, valores e leis pré-estabelecidas pelas mais variadas instituições (família,

60 Em muitos momentos dos livros de ata aparece a citação de “Festa Regina” e/ou “Regina Caeli”, um hino mariano habitualmente entoado pelos católicos durante o Tempo Pascal, em determinados horários. O termo está em latim, que em português significa “Rainha do Céu”. Informações obtidas no blog “Todo de Maria”, da Canção Nova. Disponível em: , acesso em 24 de março de 2019. 61 Citação original: Festa di S. Agnese, Protettice della Pia Unione. 93

Igreja). Quando Foucault se remete ao cuidado de si, ele está em um campo diferente, baseado no pensamento greco-romano, que não enquadra os prazeres e a sexualidade dentro de um contexto de leis. Segundo o filósofo francês, é um pensamento que resiste ao poder, que é capaz de refletir sobre o campo das forças e dos desejos, aproximando o sujeito de si mesmo, criando uma consistência na diferença através das mais variadas técnicas. Será possível ver, logo mais, como essas mulheres de Nova Trento criam resistências em seu cotidiano, a fim de atender aos seus desejos mais íntimos. E não são só resistências: são também um emaranhado de jogos e saberes para driblar as inúmeras regras a que eram impostas. Dando continuidade à história da associação conforme os registros, o primeiro grupo de aspirantes que recebe “permissão” para participar das atividades da Pia União é notificado em ata no dia 08 de dezembro de 1903. Neste dia ocorreu uma grande festa, com direito a coral, entrega de medalhas para as aspirantes e também para as Filhas de Maria, beijos na relíquia de Nossa Senhora e outras homenagens em honra à Imaculada Conceição. A primeira Filha de Maria a ser formalmente admitida, de acordo com o livro de atas datado de 20 de dezembro de 1903, é Virgínia Borgonovo, moradora do bairro Claraíba. Porém, no mês seguinte, o mesmo bairro recebe uma notícia de expulsão: é o primeiro desligamento oficialmente comunicado, cuja jovem é Giovanna Deleastagne, que “foi vista, várias vezes, na companhia de um homem casado, separado da sua esposa”62 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 17 de janeiro de 1904). Com o medo de serem denunciadas (e expulsas!), provavelmente surgiam entre elas gestos de cumplicidade. Estabeleciam-se pactos de silêncio e acobertamento de pequenas transgressões, como namoricos após a missa, conversas não recomendadas, leituras não permitidas, ou seja, pequenos “pecados” que, se chegassem aos ouvidos do diretor, certamente elas seriam advertidas e até expulsas. Esses pequenos delitos aconteciam e foram confirmados durante as entrevistas com algumas mulheres participantes63. Entretanto, havia um pequeno número de associadas que mantinham as diretrizes da Igreja Católica e não admitiam qualquer transgressão. Estas, certamente, uniam-se por afinidades pessoais e levavam as informações detalhadas até os ouvidos do padre, da Diretora ou da mestra das aspirantes. Isso trazia à tona conflitos e diversas tensões, que muitas vezes estão visíveis nos livros de atas das Filhas de Maria.

62 Citação original no livro de atas: Fu espulsa Daleastagne Giovanna perquè fu vista, più volte in compagnia di un uomo maritato, diviso dalla moglie. 63 Essas entrevistas foram realizadas na fase final do curso de Comunicação Social – Jornalismo, em 2005, para compor o livro-reportagem Devote della Vergine. 94

Um exemplo foram as expulsões das irmãs Maria e Catina Capraro, do bairro Vígolo. Em ata, o padre destacou que elas foram expulsas “para sempre”, porque não se dedicavam às companheiras e porque participavam de festas durante à noite, voltando para casa muito tarde. Na mesma reunião, no dia 07 de fevereiro de 1904, elas foram obrigadas a devolverem suas medalhas. Nas atas dos meses seguintes, o padre reforçou as expulsões e os motivos, inclusive em tom de ameaça:

Então ele exortou as Filhas de Maria a não ficarem na companhia das expulsas, mesmo com a intenção de ajudá-las, dizendo que quando juntam boas e más companhias, geralmente as boas não convertem as ruins, mas, em vez disso, estas pervertem aquelas64. (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 28 de março de 1904)

Nota-se que a Igreja buscava controlar essas Filhas de Maria de diversas formas, inclusive mantendo por meses seguidos essa pressão psicológica, imprimindo medo a cada nova expulsão. Estratégias disciplinadoras que ora surgem e ora desaparecem das atas, sempre com a fala do diretor (padre) em evidência. Era ele quem conduzia as reuniões e, sem ele, os encontros não eram realizados65. Uma das ferramentas desse controle era a participação nas missas e nas reuniões da entidade, todas contabilizadas nos livros de registros, com presenças e faltas. Obviamente, as moças que registrassem muitas faltas – incluindo as ausências nas “santas comunhões” – eram afastadas após algumas advertências. Elas estavam sob esta vigília constante, sob este controle, que vinha não apenas da Igreja, mas de suas famílias. Uma das entrevistadas do livro-reportagem Devote della Vergine, contou: “Tinha que ser Filha de Maria, não tinha jeito, e dava para contar nos dedos as mulheres que não faziam parte da associação, pois os pais obrigavam” (FACCHINI, 2017, p. 55). Esta “obrigação” estava fortemente enraizada no seio da família, por se tratar de uma tradição católica passada de geração para geração, possivelmente desde os tempos em que viviam na Europa66. Além disso, estar inserida numa entidade como as Filhas de Maria era motivo de orgulho para a família, e proporcionava, até certo ponto, um “status”: essas jovens ocupavam um local específico dentro

64 Citação original: Esortò quindi le Figlie di Maria a non frequentar la compagnia delle espulse neppur coll’intenzione di giovar loro, dicendo che quando si uniscono insieme compagne buono e cattive generalmente parlando le buone non convertono le cattive, ma piuttosto queste pervertono quelle. 65 Isso fica evidente nas atas, inclusive com as moças informando o motivo de algumas reuniões não serem realizadas: o padre está em viagem, o padre está adoentado, o padre está em missão no Rio Grande do Sul. 66 Esta informação não pode ser confirmada pelo sociólogo e historiador, Renzo Maria Grosselli, durante entrevista – pois não é foco de suas pesquisas – mas certamente a associação existia na Itália, uma vez que foi lá que ela surgiu. 95 da igreja – o lado direito era reservado às mulheres – trajavam seus vestidos brancos e traziam em seus colos a fita de cor azul celeste. Querendo ou não, isso as diferenciava das demais moças que, porventura, não participavam da associação. Consolidava-se, assim, uma imagem de lugar social privilegiado, pois essas moças atendiam aos anseios dos padres: eram “boas, honestas e bem modestas” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro de Consultas da Pia União das Filhas de Maria, 30 de abril de 1939). Mesmo sendo fortemente difundido como um local privilegiado, tanto pela Igreja quanto pelas famílias, atender a todas as imposições da entidade não era tarefa fácil, principalmente para aquelas que gostavam de dançar, de usar uma saia mais curta, de conversar, de ler, ou de simplesmente ter opinião própria. Nessas atas – principalmente no Diário – é possível notar que a grande maioria das expulsões ocorria por conta da dança. Aqui é importante assinalar que o ato de dançar não estava restrito apenas às casas de dança – que existiam, principalmente, no centro da cidade – mas a todo lugar, até mesmo residências de famílias, que promoviam festas e comemorações com músicas e bailados. Em um dos registros das atas, o padre diretor acusa uma dança “com palavras de fogo”, sendo que este foi o motivo da expulsão de “Maria Voltolini, de Nova Trento, e Anna Battisti; Anna Sborz, Ângela Battisti, do Morro da Onça” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 22 de setembro de 1908). Em outro momento, aparecem as expulsões de outras duas irmãs, Narcisa e Rosa Gessele, porque “dançaram em duas casas: em uma da tia e na outra de Antonio Tomasoni e, antes de entrar na segunda, para se certificar de que não seriam reconhecidas como Filhas de Maria, elas esconderam a medalha”67 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 22 de setembro de 1905). A falta foi ainda maior por terem escondido a medalha, considerada um símbolo “sagrado” para uma Filha de Maria. Mesmo assim, muitas moças que dançavam eram readmitidas nas Filhas de Maria, de acordo com os registros no Diário da associação. Conforme especificado, algumas jovens voltavam a receber a medalha após cumprirem “penitência” ou após pedirem “desculpas” diante de todo o grupo. Em uma dessas readmissões, o padre diretor fez questão de reforçar em ata que se tratava de “un miracolo” (um milagre), depois de proferir um pequeno sermão a todas as meninas presentes no encontro (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 05 de novembro de 1905). Como já mencionado, elas

67 Citação original: Oggi furono espulse dalla P. U. due sorelle, Gessele Narcisa e Gessele Rosa perchè il giorno 10 ballarono e ballarono in due case in quella di una loro zia e in quella di Antonio Tomasoni, e prima di entrare nella seconda per assicurarsi di non essere conosciute come Figlie di Maria, nascosero la medaglia. 96 tinham interesse em continuar na entidade, por ser um local de inserção social, de encontro com a comunidade e, não menos importante, de prestígio por estarem à frente de uma associação de grande tradição na cidade. Durante todo o período analisado, não houve questionamento por parte das meninas sobre o motivo da proibição da dança, com exceção de um episódio que curiosamente é anotado em um dos livros. Trata-se de uma reunião que ocorre, quase no findar da associação, em 26 de julho de 1964:

O Padre José contou-nos que certa moça perguntou por que o Padre Vigário não deixa as congregadas dançar, que não há nada de mal nisso. Sim, dançar não é nada de mal e também não é pecado em certas condições: se uma moça está dançando com algum moço e procura ter sensação desonesta, é pecado. Falou muito das moças que andam com vestidos decotados. Nós que somos congregadas não devemos usá-los para dar bom exemplo. (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, livro Congregação Mariana das Moças, 26 de julho de 1964).

Dançar, então, “não é nada de mal”, mas torna-se perigoso se a moça tiver “sensação desonesta” e, desta forma, “é pecado”. E, pecar para uma Filha de Maria, era algo que a ligava ao mundo escuro do diabo e das suas artimanhas – muito difundido em praticamente todos os sermões da Igreja, e a distanciava do universo de Maria ou de Santa Inês, modelos que deveriam ser imitados no seu cotidiano. Neste trecho mencionado, é curioso o fato de uma Filha de Maria contestar não só a regra, mas também o padre. A ousadia, então, também fazia parte do cotidiano delas. Se alguma dessas moças fosse atraída para a dança e, consequentemente, “comesse do fruto proibido”, passava a se tornar a “Eva seduzida pela serpente”, conforme descrição tradicional da Bíblia. A psicóloga Vera Paiva (1989) faz esta analogia da Eva – e também de Lilith – com Maria, propondo uma reflexão sobre as insubordinações, que são sempre ligadas à Eva pecadora. Lilith, de acordo a autora, é considerada um mito: a primeira mulher de Adão, igual a ele, que não foi gerada de suas costelas. Ela reivindica um papel de igualdade para exercer seu prazer na relação com o homem. Porém, houve uma demonização da Lilith e sua completa exclusão, seguida pela criação da Eva, esta amplamente difundida pela Igreja Católica como uma figura submissa ao Pai e ao homem, mas que depois trairá essa expectativa (PAIVA, 1989, p. 59). Lilith é, portanto, uma mulher com autonomia, dona de si, que vai muito além da Eva, uma mulher mais submissa e, por fim, mais reprimida. Em suma, a mulher sensível e submissa, que vive totalmente à sombra, esta sim merece respeito, e deve ser colocada num pedestal, ao lado da Virgem Santíssima. As Filhas de Maria são sempre vinculadas a este ideal. 97

Ao analisar as memórias dessa associação, são perceptíveis os papeis completamente antagônicos, que geravam tensão e uma certa confusão psicológica nessas mulheres: ora elas transitavam por caminhos considerados pecaminosos, ora elas estavam inseridas em um universo vasto, resplandecente e puríssimo. A ideia de pecado também era fortemente interligada ao uso de roupas não apropriadas perante os rigores da fé católica. Muitas expulsões são retratadas em ata porque as jovens utilizavam vestidos curtos. E o que eram esses vestidos curtos? Trajes acima dos tornozelos, ou mangas acima do cotovelo, ou ombros descobertos. Como exemplos desses fatos estão as expulsões de Elvira Facchini, “pelo uso de vestido curto” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 24 de junho de 1923), e de Maria Gessele, “por andar mal enroupada” (Ibidem, novembro de 1932). Mesmo que as famílias não tivessem condições financeiras para obter uma vestimenta adequada, era imprescindível que as moças usassem vestidos conforme a tradição católica. Além da medida dos vestidos, o padre e a diretoria apontavam também para o uso de vestes completamente brancas em cerimônias especiais, como as procissões. Esta regra foi aprovada por unanimidade em uma das reuniões, que ocorreu no dia 19 de maio de 1907. Contudo, era um tanto difícil de cumprir, pois “a maioria delas é totalmente pobre, que nem consegue pagar a medalha”68 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro de Consultas da Pia União das Filhas de Maria, 19 de maio de 1907). Esse ambiente contraditório as perseguia constantemente e, em muitos casos, as levava à expulsão. Uma “boa congregada” também precisava estar atenta às palavras que pronunciava e ficar distante da companhia de algum moço, a não ser se estivesse junto com os pais ou os irmãos. A vigia em relação a este preceito era constante, tanto que Maria Nicolodi não foi poupada do afastamento após ser acusada por inúmeras situações:

Hoje finalmente foi expulsa da Pia União, Maria Nicolodi, levíssima filha, que, apesar da exortação do Padre Diretor e das admoestações da vice-diretora e das duas irmãs freiras, sempre quis fazer o que gosta, falar sozinha com o namorado em casa e na rua, brincava e dizia insolências para aquelas que passavam, especialmente para certas Filhas de Maria mais sérias do que ela, assim desacreditando toda a Pia União69 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 15 de fevereiro de 1905).

68 Citação original: gran parte sono totalmente povere che non posson pagare nemmeno la medaglia. 69 Citação no Diário da associação: Oggi finalmente è stata scacciata dalla P. U. Nicolodi Maria, leggerissima figliuola, la quale nonostante le esortazione del P Direttore e gli ammonimenti della Vicedirettrice e delle due sorelle moneche, ha sempre voluto fare come le piacque, chiacherar da sola col fidanzato in casa e per le vie, scherzare e dire insolenze a chi passava specialmente a certe Figlie di Maria più serie di lei, screditando per tal guisa tutte la P. U. 98

Percebe-se que “fazer o que gosta” também era um dos motivos para expulsar uma moça da instituição, tendo como princípio que elas deveriam cumprir exatamente o que o padre e a diretoria ordenavam. Além disso, uma Filha de Maria desvirtuada poderia pôr em risco as moças “mais sérias” e, por conseguinte, estas deveriam ficar distantes daquelas, pelo bem de toda a instituição. Ler também não era visto com bons olhos pelos padres e pela diretoria da Pia União das Filhas de Maria – muito provável porque este era o caminho da autonomia. Embora elas fossem estimuladas a ter sempre em mãos o Manual e os livretos de orações, a leitura ainda era uma prática que incomodava a Igreja Católica, pelo temor em torno dos efeitos que ela poderia provocar, da mesma forma que a dança. Por isso, a própria Igreja classificava as obras literárias como permitidas e proibidas. Em determinado período, inclusive, houve a criação uma pequena biblioteca70, muito provavelmente composta por livros previamente selecionados para essas jovens. Esta informação foi obtida em 2010, ao final do curso de pós-graduação em Estudos Literários, com a pesquisa sobre que tipo de leitura as moças de Nova Trento realizavam, com uma pequena analogia com as leituras das jovens da capital do Estado de Santa Catarina. Em entrevista, Irmã Herci Julia Reis, da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, destacou que tanto a paróquia São Virgílio, quanto as freiras possuíam bibliotecas com as coleções dos “Grandes Romances do Cristianismo”. Livros como Fabíola, Quo Vadis, Ricardo Coração de Leão, A Cabana do Pai Tomás e Bem-Hur compunham essas bibliotecas (FACCHINI, 2010, p. 49). Percebe-se, então, que as moças poderiam ter acesso às leituras, desde que fossem livros dessa coleção ou alguns outros indicados sob a supervisão dos padres e das freiras, bem como sobre a vida de algum santo, por exemplo. Qualquer leitura fora desse padrão e longe dos olhares dos padres era terminantemente proibida, sendo passível de expulsão da entidade. Foi o que aconteceu com Maria Voltolini e Stedile Agnese, que foram excluídas e impedidas de participar da votação da nova diretoria das Filhas de Maria, “porque leem muito pela estrada”71 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro de Consultas da Pia União das Filhas de Maria, 22 de outubro de 1905). Não foi especificado que tipo de leitura elas estavam

70 No dia 25 de julho de 1926 é registrada a compra de um armário para a biblioteca das Filhas de Maria, no valor de 78$000 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 25/07/1926). 71 Citação no livro de atas: Maria Voltolini ed a Stedile Agnese perchè troppo leggere per la strada. 99 fazendo. Mas, diante do que foi exposto em ata, o simples fato de estarem lendo pela estrada, ou seja, em local não permitido, era motivo suficiente para a expulsão. No livro de consultas das Filhas de Maria – que era como se fosse um grande manual de conduta, em que a diretoria registrava as principais regras a serem cumpridas – constava também a preocupação com as meninas que não sabiam ler. Na ata do dia 13 de março de 1904, elas registram que medidas devem ser tomadas quanto a essas jovens: que elas participem de retiros com mais frequência, que realizem cultos em suas residências recitando as orações que ouvem na Igreja e nas missas, que possam também fazer meditações, rezar o Pai Nosso, o rosário e a ladainha de Nossa Senhora (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro de Consultas da Pia União das Filhas de Maria, 13 de março de 1904). A preocupação estava presente aqui, pois era importante para a instituição que essas moças tivessem acesso às leituras previamente selecionadas. Isso influenciaria no comportamento delas e na forma que elas iriam se portar diante de toda sociedade. Uma “boa” Filha de Maria fazia uso de leituras que iam ao encontro das propostas da Pia União, a fim de mantê-las puras, castas e aptas para um “bom” casamento no futuro – se assim desejassem.

2.4.2 – O protesto de fidelidade e a queda das Filhas de Maria

Havia muitas Filhas de Maria que, por vontade própria, saíam da Pia União. Tanto nas atas de registos quanto do Diário da associação encontram-se anotações como “não quis mais” e “retirou-se”. Isso atesta que algumas mulheres optavam por ficar longe da entidade e, em certos casos, elas relatavam que não queriam “mais saber do padre, porque ele as repreendia” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro Congregação Mariana das Moças, 24 de maio de 1964). Portanto, elas reagiam a este sistema, assumindo uma nova postura perante a sociedade. Uma das entrevistadas do livro-reportagem Devote della Vergine (2017), Odília Dalla Brida Gandin informou que sua mãe jamais a obrigou a participar da Pia União das Filhas de Maria e, pelo fato de gostar de dançar, preferiu não se tornar congregada (FACCHINI, 2017, p. 35). Em vista disso, é possível afirmar que algumas famílias davam certa autonomia para a jovem decidir ou não pelo ingresso na associação. Isso mostra que, no auge da Pia União, havia famílias que desafiavam o poder da Igreja e deixavam suas filhas terem autonomia. Existia, ainda, o fato de muitas jovens morrerem durante o período como congregadas. Geralmente eram mortes prematuras: moças com idade entre 15 e 17 anos. Mas, não 100 informavam em ata a causa da morte72. Quem redigia o relatório – com base nas palavras do padre – dava ênfase às virtudes dessa “boa” Filha de Maria falecida, pedindo sempre para que as imitassem em seus atos. Foram os casos de Emma Sperandio e Ida Melzi que morreram com apenas 15 anos. “Ida era boa, humilde, paciente, trabalhadora, e nunca deixou suas práticas de piedade”73 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 08 de março de 1908). O ingresso em um convento também era uma das justificativas para o afastamento das moças da entidade. Isso era motivo de festa e de muito orgulho para as Filhas de Maria, que faziam questão de registrar o momento nos livros de registros e nas cartas que trocavam com essas periodicamente. As moças de Nova Trento entravam para a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, com sede no próprio município e/ou em São Paulo, além de um outro convento na cidade de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, mas que não é especificado o nome. Embora não se tenha uma estatística sobre o número de mulheres que optavam pela vida religiosa, é possível afirmar que grande parte das famílias neotrentinas possuíam, e ainda possuem, freiras que fizeram e/ou fazem parte de alguma instituição religiosa de formação, conforme elucidado no primeiro capítulo desta dissertação. Por fim, ocorria o “protesto de fidelidade” de uma Filha de Maria, que era sua renúncia para poder contrair matrimônio. Nas atas, esse momento era formalmente descrito quando da saída de alguma congregada que ocupava um cargo de liderança na entidade, uma presidente ou uma secretária, por exemplo. Para as demais participantes, esses afastamentos eram anotados apenas nos livros de registros, constando as seguintes descrições: “Casada”, “casada com Carlo Feller” (nome do cônjuge), “casada com um congregado mariano”. Este último caso referia-se ao matrimônio com um jovem que também participava de uma congregação mariana, porém esta direcionada aos jovens moços. A Congregazione Mariana Maschile (Congregação Mariana Masculina) teve início em Nova Trento na década de 1930 e finalizou suas atividades na década de 1960, mantendo em suas diretrizes os mesmos preceitos da Pia União das Filhas de Maria. Embora o foco da educação religiosa fosse a preservação da virtude e da pureza, o casamento era incentivado nos redutos católicos. As moças sonhavam com o casamento, mesmo

72 É importante destacar que o município ainda não possuía hospital nesse período. As atividades médicas começam apenas na década de 1930, com o Hospital Nossa Senhora Imaculada Conceição, fundado pela Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, de Amábile Lúcia Visintainer (Santa Paulina). Nessa época, havia uma grande incidência de tuberculose, desnutrição e malária, sendo que os médicos vinham para a cidade esporadicamente, conforme relata a historiadora Débora Izabela Ruberti (2002). 73 Citação original: Mori senza ricevere gli ultimi conforti religiosi, e cià dispiace; tuttavia conforta il pensare che era buona, umile, paziente, laboriosa, nè mai lasciava le sue pratiche di pietà. 101 que os namoricos e os encontros com os rapazes fossem proibidos. Ser uma Filha de Maria era um diferencial e um atrativo para os pretendentes, conforme relatos dos próprios jovens daquela época. “Casar com uma Filha de Maria era uma das coisas mais difíceis, porque elas eram mais ‘direitas’”, contou Agustinho Moresco em entrevista (FACCHINI, 2017, p. 34). Mesmo sob vistas grossas da família e da Igreja, as meninas encontravam alternativas – como pequenos bilhetes, encontros com a supervisão dos pais – para conquistar alguém do sexo oposto, efetuar seus protestos e seguir rumo ao casamento, que ocorria em grande número, de acordo com os livros de atas. Como exemplo desse “protesto de fidelidade” pode-se citar o egresso da Filha de Maria, Giuseppina Facchini, que estava de casamento agendado com o jovem Ferdinando Cadorin, no dia 11 de junho de 1921. Giuseppina ocupava o cargo de presidente à época. O padre diretor fez um amplo agradecimento à moça, que também ocupou os cargos de tesoureira e bibliotecária na instituição.

O padre diretor agradeceu, em nome da Pia União, o bom exemplo dado às irmãs e ao zelo pelo bom progresso da Pia União, e exortou todas a rezarem pela irmã e também pelo sucesso da futura eleição. Em seguida, Giuseppina fez o protesto de fidelidade a serviço de Jesus e Maria, conforme prescrito no Manual74 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 29 de maio de 1921).

É importante observar que a moça, ao sair da entidade, renunciava à sua vida a serviço de Jesus e Maria, passando para a condição de casada e, sucessivamente, de dona de casa. Mesmo que não fosse uma regra, as mulheres também renunciavam aos seus trabalhos: deixavam para trás suas atuações como agricultoras, domésticas e, já no século 20, como costureiras em fábricas de tecido, conforme relatos das participantes que veremos mais adiante. Com o matrimônio, logo em seguida vinham os filhos, que tomavam boa parte do tempo delas, mantendo-as afastadas de atividades profissionais formais. Sim, porque dentro de suas casas, o trabalho continuava, era muito mais árduo e conferia uma tripla missão: ensinar, educar e assistir aos pequenos, estes gerados continuamente, ano a no, sob grande influência da própria Igreja Católica. Michelle Perrot, em As mulheres ou os silêncios da História (2005), trabalha as relações de poder em torno das mulheres, tendo como foco o corpo, que foi, ao longo dos anos,

74 Citação no livro de atas: Il padre direttore ringraziate in nome della Pia Unione del buon esempio dattò alle consorelle e del zelo che parlerò per tutto quanto riguardava il buon andamento della Pia Unione e esortò le altre a pregare per la consorella e più per la buona riuscita della futura elezione. In seguito Giuseppina fece la protesta di fedeltà a servizio di Gesù e di Maria come prescrive il Manuale. 102 controlado e/ou subjugado. No caso das Filhas de Maria de Nova Trento, o corpo delas não lhes pertencia. Ele foi fortemente reprimido e silenciado, primeiramente pela própria instituição religiosa e pela figura do líder, neste caso, o padre. Depois, com o casamento, este corpo acabou sendo subjugado pela figura do marido, então considerado senhor da casa. Durante longo período, as mulheres passaram a ser influenciadas pelo discurso de uma “vocação natural”, que as limitava à casa.

O corpo está no centro de toda relação de poder. Mas o corpo das mulheres é o centro, de maneira imediata e específica. Sua aparência, sua beleza, suas formas, suas roupas, seus gestos, sua maneira de andar, de olhar, de falar e de rir (provocante, o riso não cai bem às mulheres, prefere-se que elas fiquem com as lágrimas) são o objeto de uma perpétua suspeita. Suspeita que visa o seu sexo, vulcão da terra (PERROT, 2005, p. 447).

O sexo e/ou os desejos, por sua vez, precisavam ser abafados. Havia um olhar de suspeita, de pecado, que permeava todo o dia a dia dessas jovens. O ideal era mantê-las presas, detidas e, se assim pode-se dizer, domesticadas no interior de suas residências. Em certo sentido, podemos aproximar Michelle Perrot de Hanna Arendt (2009), com essas questões sobre público e privado, especialmente em relação às mulheres dentro e fora da casa. Ao longo desses muitos anos, a sociedade definiu o que deveria ser exibido e o que deveria ser ocultado. Isso fundamentou também o princípio organizador do corpo social, que vai interferir diretamente nas questões econômicas, institucionais e sexuais. Econômicas, porque é a mulher como mãe que vai gerar, criar e cuidar dos futuros trabalhadores. Mesmo assim, o corpo feminino que gera deve ser protegido e escondido, mantido sob vigilância neste espaço privado. Institucionais, pois são construídos micropoderes em organizações dos mais diversos tipos, que percorrem a cidade e a casa. E sexuais, que segrega os prazeres, que produz uma diferenciação sexual dos espaços em favor de uma moral culturalmente imposta. A propagação dessa moral continuou de forma intensa junto às Filhas de Maria até a década de 1960, quando a associação começou a perder força. Neste período, a Pia União passou a ser mais questionada por suas adeptas – conforme relatado sobre a cobrança das mulheres em relação à dança – e muitas famílias não atenderam mais aos chamados da “obrigatoriedade” para com suas filhas. Somado a tudo isso, os anos 60 foram de revolução em diversas frentes: a televisão passou a se tornar um meio de comunicação em massa; surgiram movimentos de comportamento como os hippies – com protestos à Guerra Fria e à Guerra do Vietnã; eclodiu a Jovem Guarda, influenciando fortemente os jovens na música, no comportamento e na moda; 103 e, não menos importante, começou nessa época a Segunda Onda do Feminismo75, com a mulher se organizando e reivindicando seus direitos, principalmente opondo-se à ideia de apenas cuidar dos filhos e do lar. E, neste mesmo período, surgiu a pílula anticoncepcional, que provocou uma grande revolução sexual: a mulher passou a ter a possibilidade de decidir o número de filhos e ter um maior controle sobre em que momento gerar uma vida. Pode-se afirmar que todos esses eventos afetaram diretamente os rumos da Igreja Católica. O próprio Concílio Vaticano II, que iniciou em 1962 e finalizou em 1965, tinha como premissa modernizar a Igreja Católica e atrair os cristãos ora afastados da religião. Por conseguinte, o “Vaticano II significou um grande avanço na autocompreensão da Igreja, bem como na compreensão do mundo moderno e de sua prática pastoral” (PASSOS, 2014, p. 09). Isso suscitou uma série de interpretações e mudanças, como a reforma da liturgia, a celebração das missas na língua vernácula e a valorização do ecumenismo, a fim de promover uma maior unidade entre as igrejas cristãs. Não por acaso, todo este processo de mudanças e de revolução da década de 1960 afetaram também os rumos das Filhas de Maria. É perceptível nos livros de atas que a associação acabou sentindo a pressão desses novos tempos. Em uma das reuniões daquele período, por exemplo, o padre citou o lançamento do “monoquíni” – provavelmente referia-se ao atual biquíni – que atingiu o auge da popularidade nos anos 60. Dizia em ata que esta moda ofendia a moral e os bons costumes, que era escandalosa, e que “aumenta a sexualidade da juventude” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Congregação Mariana das Moças, 23 de agosto de 1964). No dia 13 de setembro de 1964 é redigida a ata da última reunião da Pia União das Filhas de Maria, que naquele período já se chamava Congregação Mariana. O padre Luís Petry SJ destacou que as moças congregadas levavam vantagem perante as outras, pois elas tinham formação, neste caso, religiosa. E, durante todo o registro, indicou a leitura e fez um pequeno resumo de um livro, intitulado “O Diário de Ana Maria”76. Tratava-se de uma obra bastante popular à época, que incutia fortemente a ideia de pecado, orientando as meninas a sempre procurarem um padre para se consultarem. Ao final das anotações, a diretoria informa o número

75 A Primeira Onda do Feminismo ocorreu no fim do século 19 e início do século 20 em todo o mundo, debruçando- se sobre questões jurídicas, principalmente na conquista do direito do voto feminino, conforme elucida a historiadora Joana Maria Pedro (2006). Disponível em: , acesso em 20 de março de 2019. 76 Este livro foi escrito pelo padre Michel Quoist, um missionário francês que atuou no comitê episcopal da Igreja Católica na América Latina, de acordo com uma breve investigação da pesquisadora. 104 de congregadas (100), sendo que neste dia, 19 moças haviam faltado, ou seja, quase 20%. Um número bastante expressivo. É importante frisar que não há uma ata de finalização da instituição. Apenas é assinado um “termo de encerramento” pelo próprio padre Luís Petry SJ, pároco na época, no dia 08 de outubro de 1964, que não ocupava três linhas. Nota-se que as Filhas de Maria de Nova Trento assumiram, assim, os compromissos propostos pelo Concílio Vaticano II: não promover distinção entre as pessoas, mas garantir que todo e qualquer membro se sentisse integrado nesta Igreja que, agora, se dizia renovada. Novos contextos, novas propostas, porém com uma observação: os resquícios dessa educação e regulação desses corpos femininos permaneceram com suas integrantes e, posteriormente, nas gerações seguintes. É o que poderemos ver no próximo capítulo, com os depoimentos dessas filhas que não deixaram para trás esses ensinamentos ou esse sistema disciplinador.

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CAPÍTULO 3 – AS FILHAS DE MARIA: LEMBRANÇAS E VIVÊNCIAS SOCIORRELIGIOSAS

Do Prata ao Amazonas, do mar às cordilheiras. Cerremos as fileiras. Soldados do Senhor. O nome teu, Maria, Ó Virgem soberana. Nos une e nos irmana. Nos dá força e valor, nos dá força e valor. D’um ideal celeste, seguimos os encantos. Vendo em amargos prantos, a terra esmorecer. Seguirmos a Maria, será nossa ventura. Teus filhos, Virgem, pura, sempre queremos ser, sempre queremos ser. O averno ruge enfurecido, altar e tronos quer destruídos. Da vida entramos na luta ardida. Por Deus pugnamos por nossa vida. Tu nos proteges, Ó Mãe potente. Contra inimiga, cruel serpente. De mil soldados, não teme a espada. Quem pugna à sombra da Imaculada. (Hino das Congregações Marianas, ano de 1957, presente no Manual das Congregadas, cuja cópia está com uma das entrevistadas).

Lutar à sombra da Imaculada Virgem Maria contra este inferno ora descrito no Hino das Congregações Marianas, era o ideal de toda Filha de Maria de Nova Trento. Era a “Mãe potente” que a protegia de todo mal que, porventura, poderia se aproximar dela. Não só protegia, mas “irmanava”, ou num linguajar mais habitual, unia todas essas filhas num só propósito: ser virgem, pura, obediente e caridosa, seguindo os preceitos da Igreja Católica. Ao longo desta pesquisa, optou-se por dar vez e voz às mulheres que participaram da Pia União das Filhas de Maria, por entendermos que era preciso ouvir suas histórias, saber como se desenrolavam seus cotidianos. O manual e os livros de atas da instituição oferecem algumas pistas do que de fato acontecia com elas, mas os relatos dessas mulheres são os que fornecem detalhes do que realmente se passava. São falas recheadas de saudosismo – do tempo da juventude, das amizades, das brincadeiras que surgiam antes e depois das reuniões – e também de memória dos discursos repletos de proibições com os quais elas precisavam conviver. Desse modo, neste capítulo dá-se destaque às quatro entrevistas realizadas com mulheres que participaram como congregadas em Nova Trento. Elas ingressaram na Pia União – naquela época denominada Congregação Mariana – entre os anos de 1948 e 1954, com idade que variava entre 12 e 17 anos. Para preservar as fontes, optou-se por alterar os nomes de todas elas. Um quadro, com um breve perfil das entrevistadas, está no Apêndice B desta dissertação, incluindo os respectivos pseudônimos criados. Sem que houvesse um combinado – pois as pessoas foram surgindo aleatoriamente durante a pesquisa – as entrevistadas possuem perfis diferentes umas das outras. Há uma mulher que participou como presidente das Filhas de Maria, outra que atuou apenas como congregada, uma que precisou pedir transferência para outro município, por conta de trabalho e, por fim, uma adepta que foi expulsa da entidade. 106

Todas elas confirmaram que, para participar das Filhas de Maria, era necessário ter feito a Primeira Comunhão. Geralmente elas comungavam quando tinham seis ou sete anos e, logo em seguida, ingressavam na instituição denominada Cruzada Eucarística77, fazendo uso de uma fita de cor amarela. Porém, não era uma regra, pois muitas meninas não conseguiam participar das atividades devido à distância: moravam em bairros muito afastados, como foi o caso da senhora Helena78. Mesmo assim, o local em que esta morava mantinha com fervor os ensinamentos da catequese e, como ela mesma registrou, era uma mulher, dona Palmira quem ministrava as aulas, possibilitando o primeiro contato com a religião. Alcina79 também não participou da Cruzada Eucarística, pois com apenas oito anos ingressou na Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, sob forte influência do pai, que a orientou para seguir a carreira religiosa. Permaneceu cinco anos no convento, até optar pela saída. A senhora de 89 anos disse que sofreu uma pressão psicológica muito grande por parte de uma freira que atuava como coordenadora no Centro de Encontros Imaculada Conceição (CEIC), no passado Juvenato São José, local de formação das religiosas80. Ao voltar para casa, logo recebeu convite para ingressar nas Filhas de Maria, com apenas 13 anos. Além do convite, os pais a obrigaram. “Porque antigamente era só Igreja, né?”, relatou Alcina. Conforme contextualizado no capítulo anterior, a admissão de uma Filha de Maria geralmente ocorria por indicação/convite das próprias moças participantes ou sob orientação da própria família. “Os pais faziam gosto que a gente pertencesse”, disse Elvira81 em entrevista. Célia82 também confirma esta informação: “A minha mãe era muito católica. Ela sempre sonhou que as filhas fossem todas Filhas de Maria”. Com Helena aconteceu como no primeiro exemplo: as amigas a convidaram para ingressar na associação.

77 Esta entidade foi criada pelo Papa Bento XV, em 1916. Era uma secção infantil do Apostolado da Oração, com a proposta de alcançar a conversão das nações e a restauração cristã. Foi chamada de Cruzada, pois queriam remeter às antigas cruzadas, de grandes lutas, e Eucarística, porque acreditavam que a “arma de combate” era a Comunhão frequente. A Cruzada Eucarística começou em Nova Trento em 1939, e as crianças faziam uso de uma faixa transversal no corpo, de cor amarela, juntamente com uma medalha (e fita) no pescoço (FACCHINI, 2017, p. 64). 78 IGB, 80 anos. A entrevista com Helena, cujos trechos são citados nesta dissertação, foi concretizada no dia 19 de maio de 2018, bairro Centro, Nova Trento-SC. Tanto esta quanto as demais entrevistas estão transcritas no Apêndice C desta dissertação. 79 AIMV, 89 anos. A entrevista com Alcina, cujos trechos são citados nesta dissertação, foi concretizada no dia 06 de abril de 2018, bairro Centro, Nova Trento-SC. 80 A Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição transformou o espaço recentemente: o antigo convento agora é uma pousada, e foi batizada com um novo nome: Centro de Espiritualidade Imaculada Conceição, mantendo a mesma sigla – CEIC. Este local foi reinaugurado em 2015. 81 EMCV, 81 anos. A entrevista com Elvira, cujos trechos são citados nesta dissertação, foi concretizada no dia 09 de fevereiro de 2018, bairro Cascata, Nova Trento-SC. 82 ZTD, 83 anos. A entrevista com Célia, cujos trechos são citados nesta dissertação, foi concretizada no dia 08 de fevereiro de 2018, bairro Salto, Nova Trento-SC. 107

3.1 – A medida dos cabelos

É interessante observar que não havia uma idade definida para a admissão. Por exemplo, Alcina ingressou com 13 anos, Helena com 12, Célia também com 13 e Elvira foi admitida como aspirante aos 17 anos. Esta última entrevistada, em especial, disse que demorou para entrar nas Filhas de Maria pelo fato de gostar de cortar os cabelos e “encrespar”. “Eu queria ser Filha de Maria, mas por conta do cabelo eu fiquei um tempo sem participar... porque a gente não podia cortar o cabelo. Aí eu comecei a usar trança”, justifica Elvira. A medida dos cabelos era um dos quesitos para permanecer na Pia União. A Igreja Católica tinha como referência a história de Santa Inês que, como visto, teve seus cabelos aumentados para proteger seu corpo durante um episódio em que sua fé foi posta à prova. Por conseguinte, manter os cabelos compridos – normalmente até a metade das costas – era uma regra que não poderia ser violada, pois para a Igreja o corpo necessitava dessa “proteção”. Helena lembrou, durante entrevista, de uma moça da sua época que foi expulsa porque cortou os cabelos. A jovem Alcina também foi expulsa por conta dos cabelos. Ela não cortou, mas fez “permanente”, o que era terminantemente proibido pela Igreja à época. A ideia era que o penteado se tornasse “mais prático” para o dia a dia. “Quando eu fiz isso eu tinha 16 pra 17 anos. Era moda na época. E depois eu achava bonito! Sempre gostei do cabelo meio ondulado. Eu sempre fui muito vaidosa quando era mocinha. A gente se arrumava bastante!”, registra Alcina. A entrevistada disse que quem efetivou sua expulsão foi o padre José da Poian83, na época diretor espiritual das Filhas de Maria de Nova Trento. O fato ocorreu no ano de 1945 e jamais foi esquecido por Alcina:

Eu fui pra reunião. E na reunião, então, ele falou: “A Alcina está expulsa das Filhas de Maria” (a voz muda um pouco nesse momento). Aí, perguntaram, “por que?” “Porque ela fez permanente”. Já diziam o motivo na hora. Na cara.

No mesmo dia, a jovem foi obrigada a entregar a fita como congregada. Aborrecida, saiu da reunião sem dizer uma palavra. “Ficava com vergonha, também. Porque naquela época a gente era muito envergonhada. Depois a gente foi pegando... sabe como é, né? Confiança! A

83 Segundo PIAZZA (1977, p. 241), o padre José da Poian SJ trabalhou em Nova Trento de 20/02/1921 a 24/01/1922, de 07/06/1922 a 28/08/1922, de 11/01/1923 a 28/12/1924 e de 04/02/1928 a 05/02/1945. 108 gente era muito ‘tola’... tudo a gente aceitava!”, desabafou Alcina, que também sofreu forte pressão por parte do pai. “Quando ele soube, não gostou, não. Ele me colocou pra rua”. Alcina era uma das jovens que se rebelaram contra algumas regras impostas pelas Filhas de Maria – assim como algumas outras mulheres. Mas, antes disso, durante o período que esteve no convento, ela conta que aprendeu a tocar piano, tinha aulas de canto e sempre foi apaixonada por teatro. Não por acaso, era convidada para encenar inúmeras peças teatrais – sempre com o consentimento das freiras, além de bailados e outros tipos de apresentação. Por isso, é possível supor que não foi apenas o cabelo que incomodou os padres da época, mas sim sua postura perante as outras jovens. Isso fica notório quando ela se remete à pressão exercida por Irmã Clarinda, a referida coordenadora, que não a deixava ensaiar as peças. “Eu não podia fazer nada! Sempre me convidavam para fazer os dramas, bailados, e essa freira não queria. Eu era convidada, porque eu sempre fazia o papel principal”, contextualiza Alcina. Perguntadas sobre o motivo de tanta pressão sobre o corte de cabelo, apenas Elvira dá uma explicação de acordo com o entendimento de uma Filha de Maria à época: “Porque era tipo um ‘recato’ para as Filhas de Maria”. Esse “recato” a que Elvira se refere, era o cuidado, a precaução e a discrição que toda congregada deveria ter perante sua família e a sociedade. Cuidar da pureza dessas jovens era tarefa principal. O corpo delas precisava ser vigiado a todo momento, juntamente com a valorização das virtudes cristãs, com a proteção da Virgem Maria e de Santa Inês (FACCHINI, 2017, p. 53). Foucault analisa no livro Vigiar e Punir: nascimento da prisão, como o corpo está diretamente mergulhado num campo político entrelaçado por diversas relações de poder. Estas, por sua vez, “o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais” (FOUCAULT, 1987, p. 29). Essas relações de poder expressam-se nas normas que cerceavam a vida dessas jovens neotrentinas – bem como em outros espaços onde é exercido um poder disciplinador, como escolas, prisões, fábricas, conventos – com o objetivo de “adestrar” ou manipular de forma estratégica seus corpos.

O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo (FOUCAULT, 1987, p. 143).

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Foucault (1987) traz como exemplo o sistema pan-óptico84, um mecanismo de controle e vigilância permanente, pensado como modelo ideal para instituições disciplinares, que vai se adaptando a diversas realidades ao longo do tempo, mas sem perder a sua essência. Em virtude disso, os sujeitos criam campos de percepção voltados à correção constante de comportamentos e maneiras de agir, que vão sendo incorporados e passam a funcionar quase que espontaneamente sobre si mesmo e perante os outros. É o caso explícito das Filhas de Maria, que mesmo longe da Igreja eram vigiadas constantemente por suas próprias colegas e pela sociedade, como num verdadeiro pan-óptico. Qualquer deslize ou qualquer atitude considerada “mundana” pela instituição religiosa, essas mulheres passavam a ser alvos de punição e/ou expulsão.

3.2 – “A virtude da delicadeza”: a mulher constantemente cerceada

As mulheres que participavam da Congregação Mariana eram, dia após dia, cercadas em seus comportamentos. A instituição religiosa e a família diziam o que elas poderiam ou não fazer, delimitavam suas ações, as impediam de estudar, impunham diversos tipos de limitações. “Mulher tinha que ficar em casa”, como contou Célia. Em um dos livros de atas das Filhas de Maria, saltou aos olhos uma passagem escrita com base no discurso de uma freira, diretora das congregadas no ano de 1963, que ilustra bem esse universo de cuidado e de imposições para as mulheres:

A Irmã Diretora nos falou sobre a delicadeza. A delicadeza é a mais apreciada virtude na mulher. A mulher deve ser delicada em tudo... no modo de trajar, no andar, no sentar-se, no falar, no escutar, no saudar. A fineza de uma moça consiste nisto, e não nos exageros da pintura, nos trajes e no porte leviano. O moço quando escolhe uma moça para com ela casar-se, procura nela em primeiro lugar a virtude da delicadeza, e não nas exibições com os quais ela procura conquistá-lo. A moça leviana poderá servir-lhe para namoro e experiências, mas não para o casamento; porque quando chega a hora de casar, ele procura uma moça séria, que saiba dar-lhe felicidade como esposa fiel. Maria Santíssima foi a donzela mais delicada que viveu neste mundo. Caríssimas congregadas, como Filhas de Maria que somos, procuremos imitá-la nesta bela virtude: a delicadeza. (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro Congregação Mariana das Moças, 22 de setembro de 1963).

A delicadeza, tendo como a principal referência Maria Santíssima, era uma virtude que jamais poderia ser esquecida por uma Filha de Maria. E isso interferia, mais tarde, nos rumos

84 É uma penitenciária ideal, concebida pelo filósofo e jurista inglês, Jeremy Bentham, em 1785, que permite a um único vigilante observar todos os prisioneiros, sem que estes possam saber se estão ou não sendo observados (FOUCAULT, 1987). 110 da sua vida afetiva, conforme indicou a Irmã, pois o homem “procura uma moça séria” e “esposa fiel” para o matrimônio. Percebe-se, então, que o casamento85 era um dos objetivos principais a ser conquistado e, não por acaso, uma moça optar por outros rumos – como estudar, por exemplo – feria este princípio de se tornar esposa e, depois, mãe. O pai de família também interferia nas escolhas pessoais das jovens moças, de acordo com os interesses do núcleo familiar. É o que se pode perceber na fala de Elvira. Ela conta que seu grande sonho era ser freira missionária, mas como era a única filha mulher – até aquele momento – o pai não a deixou seguir por esses caminhos. Preferia mantê-la em casa, para ajudar a mãe nos afazeres domésticos, além de vigiá-la constantemente. Conta Elvira:

Eu queria ser freira ou missionária, e meu pai disse que não, porque eu era a única filha moça, e eu tinha que cuidar em casa. Não é que tinha que cuidar, eles é que cuidavam da pessoa da moça, porque a moça não podia estar exposta. Sabe como é que era, né? A gente tinha que ser uma moça recatada, não podia ser uma moça qualquer... Cuidar da pureza da moça, porque tinha que sempre casar virgem... naquele tempo era isso! Os pais se preocupavam com as moças por causa disso... com os moços já não era tanto... Os moços podiam fazer tudo o que queriam, mas as moças tinham que estar ali! Na rédea! (risos)... Só que hoje em dia a gente diz: foi bom, né? A gente aprendeu...

Neste trecho de entrevista, é possível notar a percepção da diferença de Elvira: ela já sabia, desde muito nova, que a educação direcionada aos meninos era diferente das meninas. Eles poderiam estudar, “fazer tudo o que queriam”, mas as moças não, elas precisavam ficar “na rédea”, ou seja, presas. Além disso, a pureza surge novamente na fala desta entrevistada, que agora também traz outro tema bastante comum para aquela época: a virgindade. Inclusive Elvira foi a única – entre as quatro entrevistadas – que mencionou a palavra “virgem”, uma característica que ganhava especial atenção e que deveria ser mantida por essas jovens participantes das Filhas de Maria. Novamente o tema remete ao corpo, ou ao domínio dele, estabelecendo uma divisão sexual, que coloca homens e mulheres em posições diferentes e, claro, estabelece atribuições bem distintas. Raewyn Connell (2016) afirma que “ordens sociais patriarcais”, limitam a mulher apenas à capacidade de procriar. Consequentemente, há um controle maior da sexualidade, “criando uma obsessão com a pureza” (CONNELL, 2016, p. 60).

85 Veremos mais adiante, como ocorriam as paqueras e os encontros dessas mulheres com o sexo oposto, geralmente nos espaços de sociabilidade, como a Igreja. Ainda assim, a família influenciava diretamente na escolha dos parceiros, dando preferência aos jovens de origem italiana, ligados à Igreja Católica e, não menos importante, que fossem trabalhadores. 111

Além de mantê-las dentro de casa e enaltecerem a pureza, com inspiração na Virgem Maria, as mulheres muitas vezes eram privadas do estudo. Elvira também precisou abdicar da escola: conseguiu estudar até o 4º ano primário, no Grupo Escolar Lacerda Coutinho, embora tivesse recebido indicação do próprio diretor para continuar se aprimorando. Entretanto, a figura paterna entra de novo em cena. “Mas aí eu tinha que ir pra Tijucas (outra cidade, que fica a 30 quilômetros de Nova Trento). Tu achas que ele deixou? Uma moça ir pra Tijucas... se fosse um rapaz ele deixava!”, suspirou Elvira. Outra vez, aqui, encontra-se a percepção da diferença entre os sexos. As outras três entrevistadas também só conseguiram estudar até o 4º ano primário, alegando que em Nova Trento não tinham oportunidade de continuar – pelo menos naquele período. Helena, Alcina e Célia disseram que dividiam a rotina da Igreja com os afazeres domésticos e da roça, local de onde provinha o sustento da família, e este era um dos motivos para abdicar dos estudos. Elvira não trabalhou na roça, mas desde muito nova dedicou-se ao ofício de costureira, cujos ensinamentos foram repassados por sua tia. Participar das missas, se possível diariamente, era uma das obrigações de toda Filha de Maria, conforme relatos dessas senhoras. A celebração era um espaço de encontro com a comunidade, de troca de experiências, local em que concretizavam trabalhos voluntários em prol da Igreja. Mesmo que o número de atividades ao longo do dia fosse extenso, essas mulheres disseram que não perdiam as missas por nada. Uma forma de mantê-las sempre à vista e coibir qualquer atitude que fosse contrária às diretrizes da congregação, era a confissão. Pelo menos uma vez ao mês elas deveriam ir ao confessionário relatar seus possíveis pecados, caso contrário não recebiam a Comunhão, que naquela época era sagrada. Alcina conta em entrevista que elas eram obrigadas. Ao mesmo tempo, ela brinca ou “confessa”: “A gente repetia (os pecados) toda vida (risos). Nós não fazíamos nada, pelo amor de Deus”, exclamou. Era uma estratégia de resistência adotada por elas – mesmo que timidamente – para continuarem sendo Filhas de Maria. Emanuel Araújo, no artigo “A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia”, que compõe o livro Histórias das Mulheres no Brasil, atenta-se para a questão da confissão, ao analisar que a mulher “devia ter seus sentimentos devidamente domesticados e abafados. A própria Igreja, que permitia casamentos tão precoces, cuidava disso no confessionário, vigiando de perto gestos, atos, sentimentos e até sonhos” (In: DEL PRIORE; BASSANEZI, 1997, p. 51). Aqui persiste a reflexão: quantos sonhos essas moças deixaram de lado para atender aos preceitos da Igreja e da família? Como visto com Elvira, muitos. Os homens podiam seguir seus 112 desejos, sair para estudar, mas a mulher permanecia reclusa, cuidando dos próprios irmãos, dos familiares e, posteriormente, do marido. Alcina, que é uma amante do teatro, deixou para trás o sonho de ser atriz para se dedicar à vida a dois. Até antes do matrimônio era ela quem encenava as principais peças teatrais, “os dramas”, como ela chama, que na maioria das vezes tinha um viés religioso. Durante a conversa, Alcina deixa escapar que o marido tinha muito ciúme, e não a deixou seguir em frente. Com a televisão ligada na novela, ela olha para as atrizes e confessa para a pesquisadora, com o gravador desligado: “Quem sabe, em outros tempos, eu poderia ter sido muito famosa”. Elvira não atuava de forma profissional como Alcina86, mas em muitos momentos era cotada para participar das encenações promovidas pela Igreja Católica. As Filhas de Maria protagonizavam muitas dessas peças, sob a coordenação do neotrentino José Poli (já falecido), um amante do cinema e das artes. Entre os dramas estavam “O amor de duas mães”, que retratava a vida de Nossa Senhora; “A Paixão de Cristo”; e a história de Santa Aquilina. Interessante registrar que esta mártir, em especial, é muito cultuada pelos cristãos ortodoxos, e não pelos cristãos católicos. De qualquer forma, a Congregação Mariana fazia questão de trazer à tona a vida desta santa, que demonstrava extremo amor a Deus, consagrava a virgindade e confirmava seu ódio ao paganismo. Elvira sorri ao se lembrar do dia da apresentação sobre Santa Aquilina87, pois ela precisou ser decapitada no palco. “Ficou tão natural, que a gente ouvia o povo lá em baixo chorar, chorar...”, relembra. Percebe-se, então, que há uma supervalorização da abstinência sexual, ou da castidade, com a Igreja agora tomando como referência Santa Aquilina, outra mártir que traz aos holofotes a virtude da pureza/virgindade. Zaíra Ary (2000) trabalha essa premissa ao analisar de que

86 Conforme contextualizado, Alcina era protagonista em muitas peças e, inclusive, atuou numa produção cinematográfica (Grazia Ricevuta, ou Graça Recebida, na década de 1950), dirigida pelo neotrentino José (Giuseppe) Poli, um simpático senhor que fez história em Nova Trento ao dirigir o primeiro filme com roteiro em Santa Catarina, embora ele até hoje não tenha recebido devido reconhecimento. Importante frisar que isto ocorreu antes de Alcina contrair matrimônio. 87 Durante a pesquisa, saí em busca de informações desta santa, mas encontrei dificuldades. Consultei bibliotecas, conversei com várias pessoas, tentei localizá-la no livro de DE VARAZZE (2003), mas ela não aparecia. Até que um dia, na biblioteca da PUC, um dos funcionários disse que Santa Aquilina era venerada pelos cristãos ortodoxos, e não pelos cristãos católicos. Os dados a seguir foram captados de um site vinculado à Igreja Ortodoxa, disponíveis em: , acesso em 20 de março de 2019. Conta a história que Santa Aquilina foi esbofeteada, açoitada e, por fim, decapitada, por simplesmente confessar abertamente sua fé em Cristo (percebe-se que a história é bem similar à de Santa Inês). A cabeça e o corpo de Aquilina, de apenas 12 anos, foram jogados nos campos, longe da cidade – possivelmente em Byblos (hoje Jbeil), no Líbano, onde ela viveu, no século III – para serem comidos pelos cães. Diz a tradição que um anjo apareceu e juntou o corpo à cabeça de Aquilina, devolvendo-lhe a vida. As relíquias da mártir foram levadas para Constantinopla (atual Istambul), sendo colocadas numa igreja em sua homenagem. Os cristãos ortodoxos celebram a vida da referida santa no dia 13 de junho. 113 forma a instituição católica age como produtora de símbolos, de valores e de normatizações estritas,

visando assujeitar a consciência e a ação de seus adeptos aos limites morais impostos por sua doutrina, apesar de também levar em conta as possíveis adaptações espaciais e temporais e as transgressões das suas normas prescritas, reavaliadas e perdoadas (ARY, 2000, p. 18)

Ary também aponta para o marianismo – culto da superioridade espiritual feminina, que considera as mulheres semidivinas, moralmente superiores e espiritualmente mais fortes do que os homens – centrando nelas a base da família, a pedra fundamental da sociedade. Tendo à frente um espelho com a Virgem Maria, Santa Inês e, também, Santa Aquilina, a religião fez da virgindade um valor absoluto, ligado à ideia de “espiritualidade”. Fora dali não existia salvação. Não por acaso, a sexualidade feminina era excluída desse modelo cristão de mulher, “pois ela devia ser radicalmente ‘espiritualizada’ (sublimada?)” (ARY, 2000, p. 137).

3.3 – O uso das roupas brancas, do véu e da fita

Como visto no capítulo 2 desta dissertação, uma das regras das Filhas de Maria era o uso de vestimentas brancas em ocasiões especiais, como em algumas celebrações – a Hora Santa, por exemplo – procissões e outros eventos que a Igreja Católica promovia. O véu na cabeça e o uso da fita também eram preceitos que não deveriam ser violados, como veremos a seguir. Nos demais dias da semana, a moça também deveria estar atenta às suas vestes: os vestidos deveriam, obrigatoriamente, ser confeccionados com cinco dedos abaixo do joelho e a manga das blusas, no mínimo ¾. No caso das roupas brancas, a medida das mangas mudava um pouco: esta deveria chegar até o punho, e o colo todo coberto, “fechadinho”, como as entrevistadas relataram. “Não podia entrar na igreja de manga curta. Na igreja tinha que ser manga comprida e véu na cabeça, né? As mulheres todas, não era só as Filhas de Maria”, assegura Elvira. Célia também lembra do “uniforme” que tinha que ser usado pelas Filhas de Maria. “Tínhamos que usar sempre manga comprida, não podia manga curta. (...) O vestido era branco, abotoado, podia ser godê; o meu era godê (risos). O modelo não interessava. Só tinha que ser ‘afogadinho’ e de manga comprida”, lembra. O “afogadinho” citado por Célia, era um vestido abotoado na altura do pescoço, pois uma Filha de Maria jamais poderia usar decote ou mostrar os braços. Segundo esta entrevistada, na sua época, padre José da Poian não admitia uma Filha 114 de Maria usar mangas ¾. “Tinha que ser comprida a manga. Até o punho. E, principalmente, Filha de Maria”, registra. As entrevistadas sempre lembram com receio do padre José da Poian. Segundo elas, era um padre enérgico, que batia com as mãos no púlpito, enaltecendo com rigor todas as normas que as Filhas de Maria deveriam cumprir. Isso fica evidente nos livros de atas da instituição. Em uma passagem, datada de julho de 1932, o referido padre faz constar em ata as principais diretrizes de uma congregada, e pergunta para elas se todas cumpririam com o que estava sendo prescrito. Vejam a seguir:

1) Não faltar sem razoável motivo (doença, tempo ruim, etc) às reuniões (duas) mensais e à comunhão geral, à leitura e às procissões oficiais; 2) Trajar segundo a modéstia cristã: chegue o vestido até ao menos a metade da perna entre o joelho e o pé; mangas até o cotovelo, ombros cobertos; 3) Trazer sempre a medalha na fita, e não em corrente; 4) Não assistir a bailes e futebol; 5) Não namorar nas estradas, não além do pôr do sol, e sempre em casa à vista dos pais ou irmãos; 6) Nas igrejas ou capelas não ficar à porta ou de fora; 7) Não faltar ao respeito e obediência aos pais e superiores, aceitar de boa mente qualquer emprego que se lhes der na congregação; 8) Faltando a um desses pontos por 3 vezes, e não se emendando será excluída e só poderá ser readmitida se pedir desculpa em público. E todas prometeram que as haviam de observar. (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 03 de julho de 1932).

Fica nítido, então, que uma Filha de Maria deveria estar trajada “segundo a modéstia cristã”, com vestidos sempre abaixo dos joelhos e mangas compridas. O uso do véu e da fita verde ou azul completava o traje, que era muito similar à indumentária da Virgem Maria. Por qualquer deslize, elas eram fortemente repreendidas. Foi o caso de Helena, que disse ter passado a “única vergonha da sua vida”:

Nós tínhamos que estar bem vestidas. Nunca que a gente podia usar uma roupa sem manga. Nunca, nunca, nunca! Uma vez eu fui à missa, mas era missa cedo, e como a gente se vestiu cedo, o “degote” do vestido de trás ficou pra frente, e quando eu fui à Comunhão, o padre não me deu a Comunhão, porque viu que eu “tava” um pouco “degotada” aqui, ó. Única vergonha que eu passei na minha vida.

Naquela época, comprar “roupa pronta” era muito raro. Apenas as famílias mais abastadas conseguiam fazer isso. Dessa forma, os vestidos eram confeccionados por boas 115 costureiras da cidade, geralmente mulheres que participavam da Pia União das Filhas de Maria e conheciam as diretrizes da entidade88, como no caso de Elvira. Esta entrevistada, inclusive, foi uma das únicas a dar uma justificativa sobre o motivo de utilizarem as roupas brancas e o véu. “O branco era a pureza, né? Porque a Nossa Senhora é virgem, ela foi mãe, Virgem e Mãe. Aí tínhamos que usar as vestes mais decentes, porque era uma moça mais recatada, mais decente”, explicou Elvira. Helena também admitiu que as Filhas de Maria imitavam a “Madonna” em todos os seus atos, inclusive nas vestimentas. Elvira, no entanto, confessa que ainda hoje sente-se um pouco mal quando utiliza uma roupa com mangas curtas e/ou com decote. A entrevista foi realizada no mês de fevereiro, num dia de forte calor, quando ela fazia uso de uma regata, conforme relato a seguir:

A gente tinha que dar o bom exemplo, né? Ser bem recatada no vestir, em casa também, não era só na igreja... Uma roupa bem sóbria, que não fosse muito aberta... como agora, isso aqui eu nunca usei, nunca usei quando era nova. Nunca, nunca...Em casa a gente até usava até aqui (metade do braço, ela mostra com as mãos), mas na Igreja não... Pra usar uma manga curta, a gente tinha um casaquinho de tecido, que colocava por cima. Pra poder ir pra igreja! (risos)

É possível notar, que mesmo após 60 anos, Elvira ainda sente certo receio por utilizar um tipo de roupa diferente daquele modelo preconizado pela Igreja. “A gente estranha. Só que agora todo mundo usa! A gente estava acostumada sempre abaixo do joelho (as saias). Agora eu subi um pouquinho, mas nem tanto, né?”, pondera, ainda com certo temor. E, ainda hoje, em pleno século 21, o padre de sua paróquia fica atento ao comportamento e a forma com que ela e suas colegas – ministras de eucaristia – se apresentam durante as celebrações. Em entrevista, Elvira desabafa que o sacerdote a questionou sobre o uso de brincos.

Nós estávamos falando em brinco e ele disse: “mas ministro não tem que usar estes brincos, não tem que usar enfeites”. Aí eu disse: “meu Deus, será que isso também?” Aí eu me lembrei do meu tempo como Filha de Maria, mas naquele tempo eu acho que eu usava (brinco)... E eu falei pro padre: “porque a gente se acostumou a usar, né?”

Esta obrigação imposta às Filhas de Maria em relação às roupas e adornos também é explicada por Michelle Perrot (2005). De acordo com a historiadora, “o corpo das mulheres, sua cabeça, seu rosto, devem às vezes ser cobertos e até mesmo velados. ‘As mulheres são feitas

88 Uma das entrevistadas do livro-reportagem Devote della Vergine, Antonieta Cadorin Marchi, também era costureira neste período, mas jamais se atreveu a fazer vestidos e outros artigos para as mulheres. “Soava em seus ouvidos a advertência de que as costureiras que fizessem blusas decotadas iriam mais cedo para o inferno. Então, deteve-se somente aos paletós e camisas masculinas, que ficaram famosas em todo o estado. Até hoje ela é conhecida em Nova Trento como a ‘mulher das camisas’” (FACCHINI, 2017, p. 82). 116 para esconder a sua vida’ na sombra do gineceu, do convento ou da casa” (PERROT, 2005, p. 10). A proposta é reprimir e apagar este corpo, um corpo ligado diretamente à sexualidade, que deveria ser abafada. Qualquer atitude era motivo de suspeita, uma suspeita que estava atrelada ao sexo. A solução seria mantê-las sempre presas, longe dos olhares masculinos:

Enclausurá-las seria a melhor solução: em um espaço fechado e controlado, ou no mínimo sob um véu que mascara sua chama incendiária. Toda mulher em liberdade é um perigo e, ao mesmo tempo, está em perigo, um legitimando o outro. Se algo de mau lhe acontece, ela está recebendo apenas aquilo que merece. O corpo das mulheres não lhes pertence. Na família, ele pertence a seu marido que deve “possuí-lo” com sua potência viril. Mais tarde, a seus filhos, que as absorvem inteiramente. (Ibidem, p. 447)

“La veletta” ou o véu que elas utilizavam, era da cor branca. Depois de casadas, ao ingressarem no Apostolado da Oração89, outra instituição que vigora até hoje em Nova Trento, elas usavam o véu da cor preta e uma fita de cor vermelha. Isso simbolizava sua passagem da pureza para o pecado, indicando que o corpo é representação e local de poder90. Mesmo que tenha sido escrita para retratar os primórdios da Igreja Católica, a pesquisa da teóloga alemã Uta Ranke-Heinemann também expõe esta preocupação da instituição religiosa em esconder o corpo das mulheres. Ela cita Clemente de Alexandria, que deixava claro como as mulheres deveriam se vestir:

As mulheres devem estar completamente veladas, exceto quando estão em casa. Ao velarem o rosto, estarão assegurando que não atrairão ninguém ao pecado. Pois essa é a vontade do Logos, a de que convém que elas se cubram com véu na oração (Paedagogus II, 79, 4) – (RANKE-HEINEMANN, 1999, p. 141).

Ranke-Heinemann fala ainda que o mandamento das mulheres cobrirem o rosto estava intimamente ligado ao campo do “sagrado”91. As Constituições Apostólicas, datadas do século 2, “estabeleciam que as mulheres só podiam tomar a Comunhão usado o véu” (Ibidem, p. 141). Uma preocupação exacerbada, para cobrir a cabeça e algumas partes consideradas erógenas,

89 Em 2019, a instituição completa 132 anos de existência em Nova Trento. É a terceira mais antiga do país. Sua proposta é “rezar em desagravo ao Coração de Jesus pela conversão dos pecadores” (FACCHINI, 2017, p. 98). 90 Há um episódio sobre a utilização do véu, narrado no livro Devote della Vergine (2017), que aconteceu com o casal Zaide e Irineu Busnardo. Ao irem para a missa, eles foram barrados pelo padre, na porta da Igreja, pois a mulher havia esquecido a indumentária. “Eu tentei explicar que ela usava o véu, mas que tinha esquecido em casa. Ele disse que ela não poderia entrar” (FACCHINI, 2017, p. 80). 91 “Tanto para Rudolf Otto quanto para Mircea Eliade o sagrado se manifesta, se revela e se impõe por ele mesmo. Para Otto, o sentimento do numinoso se exprime no tremendum, no mistério e na língua sagrada. (...) Por sua vez, segundo Eliade, o espaço sagrado não é mais que um espaço onde continuamente acontecem hierofanias ou manifestações sagradas” escreve Fernando Torres-Londoño, In: Interfaces do Sagrado, 1996, p. 58. 117 como o pescoço. Qualquer dessas partes, quando descobertas, atraíam pessoas – ou melhor, ou homens – para o pecado. Em Nova Trento, esse “encobrimento” ia muito além. Uma Filha de Maria era vigiada em seu dia a dia, na frente dos pais, irmãos e nos espaços públicos que, por ventura, viesse a frequentar. Conforme Elvira, ela até poderia sair, mas sempre acompanhada por algum irmão mais velho. Esta norma, estabelecida por seu pai, perdurou até o seu casamento. Dessa forma, a família e a Igreja Católica silenciavam as mulheres em todos os sentidos, cobrindo-as e afastando-as dos olhos do público. “Do ponto de vista da Igreja a melhor mulher é a de quem menos se fala, menos se olha e menos se ouve falar” (RANKE- HEINEMANN, 1999, p. 143). Então, quanto menos elas eram vistas, menos eram faladas e menos ainda se ouvia falar. Fazê-las descortinar essas memórias como Filhas de Maria e deixar para trás esse silêncio que a vida em sociedade lhes impôs, é quebrar um paradigma muito grande. Interessante observar que esta obrigatoriedade das roupas brancas e do véu não era uma norma seguida à risca na cidade de Blumenau, por exemplo. Helena foi para lá após completar 23 anos. A cidade, considerada um polo da indústria têxtil do estado, atraía muitas pessoas que buscavam uma oportunidade e o sonho de melhorar de vida. O pai de Helena, atento ao desgaste físico provocado pelo trabalho fatigante na roça – em casa, a família cuidava da plantação de café, além de produzir farinha de mandioca e açúcar – vislumbrou a possibilidade de encaminhar a filha para a “fábrica”, a fim de trabalhar como costureira. Em Blumenau, no entanto, Helena fazia praticamente dois turnos: trabalhava como empregada nas casas de famílias ricas, em troca da pensão – no período da manhã e, às vezes, à noite – e à tarde atuava como costureira na empresa Sulfabril, uma malharia bastante conhecida no Sul do Brasil, mas que fechou suas portas em 2014. Porém, antes de sair das Filhas de Maria de Nova Trento, ela foi conversar com a Irmã diretora, explicando que iria morar na cidade de Blumenau, e que não poderia mais frequentar as reuniões. Foi aí que a freira lhe disse: “Você segue as Filhas de Maria de lá”. E foi assim que Helena ingressou como congregada em Blumenau. Contudo, ao chegar naquela cidade, ficou surpresa, pois as Filhas de Maria não eram obrigadas a usar a roupa branca nas missas especiais, como em Nova Trento. “Ninguém usava roupa branca. Mas, nós mesmas, por educação, a gente usava a fita azul, por amor. A roupa a gente ia como podia, com uma manga comprida, não até o punho, mas podia ser mais curta, ¾”, recorda-se Helena. 118

Durante a conversa, ela acaba descortinando da memória uma situação que viveu com uma de suas patroas, que era evangélica e, também, costureira. Esta quis presentear a empregada com um vestido, tirando o molde de uma revista famosa da época. Era um “tubinho”, modelo bastante visado nos anos de 1960, que Helena jamais esqueceu:

Eu tinha um corpo bonito! E ela disse assim: “esse aqui vou fazer como ele está aqui, de manga curta!” Não, ele era sem manga e, depois, vinha um casaquinho por cima, né? Aí eu disse pra ela: “ai, não! Sem manga a senhora não faça! Põe uma manga, porque quando eu vou pra casa, meu pai não me deixa ir à missa com este vestido!” Meu pai era rigoroso também! Então ela disse: “mas você não é vó nem bisavó pra andar com manga!”

Figura 8 – Filhas de Maria da década de 1950, ao lado da Igreja Matriz São Virgílio, em Nova Trento. Elas usam vestido especial, completamente branco, com mangas até o punho e saias abaixo do joelho. A fita azul, com a medalha na ponta, é ostentada em seus colos

Fonte: Elis Facchini (2018) /Arquivo fotográfico de Elvira

Fica visível que os costumes da cidade grande eram bem diferentes das cidades interioranas, como Nova Trento. Atentos à moda, as mulheres procuravam trajar-se de forma mais ousada. E, claro, possivelmente os rigores da Igreja Evangélica não fossem tão austeros quanto os da Igreja Católica daquele período. A patroa tentou convencer a empregada a usar um traje com mangas curtas, mas os rigores da instituição religiosa falaram mais alto. A jovem neotrentina disse que não usava a vestimenta em Nova Trento e, sim, somente em Blumenau. 119

Helena sentia diferença até mesmo nas reuniões das Filhas de Maria, que não ocorriam com tanta frequência como em Nova Trento. Nessa cidade do Vale do Itajaí os encontros eram esporádicos, às vezes aos sábados, outras vezes aos domingos. Por fim, fica notório, com a fala de Helena, que o uso da fita de cor azul celeste sempre acompanhava uma “boa” Filha de Maria. Como ela mesma disse, a usavam “por amor” na cidade de Blumenau, mesmo que não fosse uma regra. A fita, tanto quanto as roupas brancas, era algo considerado “sagrado”, tanto que todas deveriam beijar a medalha que estava na ponta, quando se lembrassem da Virgem Santíssima92. Esta permanecia com a congregada até o casamento – inclusive a usavam durante a cerimônia de matrimônio – tirando-a apenas ao final. Se caso uma delas chegasse a falecer, a fita era colocada na jovem junto ao caixão, justamente com as vestes brancas. Conforme relatado no segundo capítulo da dissertação, havia um ritual de “passagem”, de aspirante para Filhas de Maria. A primeira recebia uma faixa de cor verde, mais fina, permanecendo com ela por aproximadamente um ano. Caso cumprisse todos os preceitos, sem nenhuma advertência por parte da diretoria, ela recebia a fita “mais larga”, da cor azul, conforme relatou Célia. Havia uma cerimônia de entrega da fita, uma vez por ano, junto com a missa, que geralmente ocorria em datas celebrativas de Nossa Senhora: dia da Imaculada Conceição, dia de Nossa Senhora de Assunção. “Tinha que fazer uma roupa com bolso, pra nunca esquecer da fita! Era importante”, contou Helena. As punições poderiam surgir, caso alguma congregada esquecesse da fita, símbolo primoroso da Pia União das Filha de Maria. Elvira registra como ocorreu sua transição da fita verde para a fita azul, bem como sua atuação como secretária e, posteriormente, como presidente da instituição no final da década de 1950. O cargo geralmente era ocupado por alguém de confiança do padre diretor, e por uma pessoa que se destacava no grupo. A votação ocorria nas reuniões – no início, por voto impresso – e, ao final da entidade, por aclamação, conforme explica esta entrevistada:

Eu fiquei um tempo com a fita verde, de aspirante, depois então recebi a azul... aí quando recebi a azul eu já passei pra secretária, fazia a ata... Depois de secretária eu fui pra presidente. Era feita uma eleição, ali na reunião. Era feito, assim, não por voto, mas era por aplausos (aclamação). A gente tinha que estar à frente de tudo. A secretária anotava tudo na ata o que a gente fazia, mas a gente tinha que organizar as reuniões, organizar as procissões... ficar, tudo, na frente.

92 Há uma passagem no Diário da Pia União das Filhas de Maria, do dia 07 de janeiro de 1906, em que o padre pede para que as Filhas de Maria beijem as suas medalhas, dizendo: “Maria, vi amo, vi voglio amare” (Maria, eu te amo, eu quero te amar). 120

Ao serem questionadas se burlaram alguma regra da instituição, as entrevistadas afirmaram categóricas: “Não, eu sempre aceitei tudo”, responde Elvira. “Não, nunca. Porque a gente cumpria direitinho as regras. E a gente achava que aquilo é que era certo”, registra Célia. “Não, não”, disse Helena. Apenas Alcina destacou em entrevista que, por ser muito vaidosa, não se importou em seguir suas vontades e se afastar um pouco da Igreja. Claro, isso gerou sua expulsão, mas ela preferiu não guardar rancor em relação a isso. Outra curiosidade das entrevistas foi que nenhuma delas quis revelar os nomes das mulheres que foram expulsas das Filhas de Maria. Elas explicavam os motivos das saídas – corte de cabelo, idas ao baile e gravidez precoce – mas não revelavam quem eram as jovens. Parecia haver uma rede de proteção em torno da pessoa expulsa ou o medo pelo fato de manter contato com essas moças, uma vez que a Igreja orientava a permanecerem distantes dessas pessoas. Isso é perceptível porque elas mudam o tom de voz ao falar de alguma congregada afastada, como foi o caso de Célia, que conheceu uma jovem que engravidou do namorado. “Eu conheci uma, mas não vou dar o nome”, fala com apreensão. É possível perceber que a pessoa a quem ela se refere é uma amiga, e ela prefere guardar sigilo. Mas garantiu que a moça logo assumiu casamento com o rapaz. “Porque naquele tempo se engravidava, casava, né? Naquele tempo tinha isso”, explicou Célia.

3.4 – “Deus me livre alguma de vocês dançar”

Dançar era um ato considerado pecaminoso aos olhos da Igreja Católica, pois poderia aflorar “sensação desonesta”, como visto no capítulo anterior. Por isso, era uma atividade terminantemente proibida para uma Filha de Maria. As vozes das entrevistadas mudam, elas falam mais baixo, mordem os lábios e, por fim, relatam que nunca participaram das “domingueiras” ou de qualquer festa/casa com dança. Os padres, inclusive, as proibiam de passar ou parar em frente à alguma dessas casas, que existiam nas ruas centrais da cidade. “Eles não deixavam dançar. E nem espiar não se podia. Eu sei que tinham aquelas ‘domingueiras’ no Giacomelli e no Piazzera, mas nós tínhamos que ficar lá no Hospital (na outra rua), não podia ficar ali na frente”, conta Célia, em entrevista. No centro de Nova Trento, existem apenas duas ruas: Santo Inácio e Nereu Ramos, sendo que esta se prolonga até a rua dos Imigrantes, hoje em dia. Enquanto os rapazes ficavam em frente à Igreja Matriz São Virgílio, na rua Santo Inácio, as moças só podiam circular pela rua Nereu Ramos, pela parte de trás da matriz. Vez ou outra ficavam circulando pela praça, ao 121 lado da Igreja – como elas acabaram confessando – mas na maior parte do tempo isso não era permitido. Mesmo assim, Célia afirmou que as paqueras aconteciam: as moças passando de um lado para o outro da praça, enquanto os rapazes estavam do lado oposto. Porém, “ficar ali na frente da Panificadora Tell – onde aconteciam as “domingueiras” – não podia, de jeito nenhum. Proibido”, assinala Célia, aumentando o tom de voz ao final da frase. Elvira afirmou, num primeiro momento, que não gostava de dançar, mas adorava passear. “Mas dali a gente tinha que ter um pouquinho mais de... cuidado... de recato... de se manter, né?”, afirma, mudando o tom da voz. No entanto, na segunda parte da entrevista, ao ser questionada novamente sobre a dança, ela revela:

Não, baile, difícil. Nunca fui. (Ela diminui o tom de voz). Antes a gente até ia, quando não era Filha de Maria, dar uma olhada, assim... Quando dava da gente sair, dar uma “enganadinha”, mas antes de ter namorado, né? Porque se tivesse namorado, não ia. Era bem rigoroso.

Com esta fala, é possível sublinhar que antes de ingressar nas Filhas de Maria, ela até dava uma “enganadinha” para “dar uma olhada” nos bailes, ou mesmo antes de namorar. Mas, com a entrada na instituição e, depois, com a vinda de algum pretendente era mais difícil transgredir a regra da dança, por medo da punição. Nos livros de atas das Filhas de Maria, os motivos das expulsões quase sempre giravam em torno da dança. As denúncias chegavam aos ouvidos dos padres por diversas informantes, que estavam sempre atentas ao “recato” das jovens. Porém, algumas delas conseguiam ludibriar essas imposições e evitar a expulsão, mesmo pertencendo à Pia União. Uma dessas moças foi Maris Stella Cadorin Dalri, retratada no livro Devote della Vergine (2017). Stella gostava muito de dançar e, numa ocasião, resolveu sair com as amigas para as tais “domingueiras”. A mãe desta jovem, Josefina – que no passado também foi Filha de Maria – ameaçou: “se tu fores expulsa das Filhas de Maria eu te quebro das pernas” (FACCHINI, 2017, p. 61). Entretanto, o pequeno grupo combinou que, na reunião seguinte das Filhas de Maria, fingiria que nada tinha acontecido. Mas, mesmo assim, a conversa chegou aos ouvidos do padre José da Poian:

Na reunião das Filhas de Maria o padre chamou nossa atenção: “teve algumas meninas que estavam dançando nesse último fim de semana”. O padre passou perto de nós e todas falaram: “eu não dancei, eu também não, e eu também não”. Quando o padre José da Poian passou perto de mim, ele disse: “tu não tem cara de quem dançou” – e me deu um beliscão no braço. Ele gostava de mim e me defendeu”, recorda dona Stella. (Ibidem, p. 61)

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Mesmo sob os olhares atentos das mensageiras ou delatoras, as meninas conseguiam fugir ou disfarçar. Havia muitas expulsas, sim, conforme é possível constatar nos livros, mas algumas delas utilizavam certas artimanhas para permanecer na instituição, seu espaço de sociabilidade, de encontros.

A Igreja bem que tentava domar os pensamentos e os sentimentos, muitas vezes até com algum sucesso, mas nem todo mundo aceitava passivamente tamanha interferência quando o fogo do desejo ardia pelo corpo ou quando as proibições passavam dos limites aceitáveis em determinadas circunstâncias. (ARAÚJO; In: DEL PRIORE; BASSANEZI, 1997, p. 53).

Muitas não ludibriavam os sentimentos que ardiam em seus corpos e atendiam os desejos da dança. Helena e Célia contam que havia mulheres que abdicavam de entrar nas Filhas de Maria porque gostavam muito de dançar. “Tinham muitas naquele tempo. Essas que gostavam de dançar, não adiantava, elas não iam. Porque senão não podia ir dançar, né?”, afirmou Célia. Em entrevista, Helena chega até a citar o nome de uma família que era “famosa” na dança:

Ahh, tinham as Orsi, essa “mulherada”, gente que dançava. Mas não era Filha de Maria. Tinham mulheres, tinham homens... essas dançadeiras! Meu Deus do céu! Araci, que é mulher do Alcides, ela sempre foi “dançadeira”. Todas elas! Nunca foram Filhas de Maria.

Contudo, dentro da entidade as regras não poderiam ser quebradas. No Livro de Registros das Filhas de Maria, as moças expulsas eram notificadas com pequenas notas/observações: “Cecilia Pianezzer, agregada em 25 de março de 1926, moradora do bairro Morro da Onça, observação: Fora, dança, 1929” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Registro das Filhas de Maria, 1929). E, ao longo do livro de atas, há inúmeras notas sobre a expulsão de filhas por conta das danças/bailes que participavam. Uma situação em especial chama a atenção, pois é registrada tanto no Diário da Pia União, quanto no Livro de Consultas da diretoria. Era o ano de 1923 e, na ocasião, toda a diretoria das Filhas de Maria foi expulsa porque dançou93. No livro de consultas, especificamente, relatam o “grave escândalo para a Pia União”, pois as moças foram flagradas e estavam sem a medalha. Ocorreu uma reunião extraordinária, em setembro daquele ano, para

93 Citação original no Diário da Pia União: Fu tolta la medaglia per alcune tempo almeno, per mostrare imparrialità, alla Presidente, alle due assistenti, a due consigliere per aver ballato: queste sono Francesca Botamelli, Domenica Sgrott, Giulia Golini, Luigia Sgrott, Paula Muraro; poco dopo per lo stesso motivo fu tolta la medaglia a Giulia Ceccato e Santina Ceccato e adun’altra di Trinta Reis, Linda Mazzola. 123 empossar uma nova diretoria94. O caso repercutiu por meses seguidos, em que elas e o padre exprimiam uma “preocupação moral” com as Filhas de Maria. Apenas uma delas, Luigia Sgrott, ganhou o direito de ser “readmitida” na Pia União, porque “se arrependeu do fato de ter dançado novamente”, sendo incorporada com o cargo de sacristã. Além disso, a jovem ganhou este privilégio, conforme está em ata, pois sempre trabalhou “com amor e zelo” pela entidade. Esta preocupação moral para com as moças manteve-se até o ano seguinte, 1924, quando no Livro de Consultas elas destacam que obtiveram informações sobre como estavam seus “status” perante a sociedade: “Deduzimos que são bons”95. Para a instituição, isso era de extrema importância, uma vez que as famílias também exigiam da Igreja uma posição coerente com a proposta da instituição. Pai e mãe não deixariam que suas filhas participassem de uma Pia União que tivesse seu nome manchado por escândalos. Com base no que foi visto até aqui, nota-se que a proposta era controlar a sexualidade feminina de várias formas e em diversos níveis. Assim, as mulheres, ou se submetiam aos padrões misóginos impostos, ou reagiam com volúpia com exercícios de sedução e de transgressão, como era o caso da dança. “Uma forma de lazer, a dança decerto propiciava não só a exibição lúbrica do corpo feminino como a ocasião de seduzir e de ser seduzida” (ARAÚJO; In: DEL PRIORE; BASSANEZI, 1997, p. 62). Mais perigoso que ser seduzida era seduzir alguém do sexo oposto, até porque certamente a mulher era considerada culpada por despertar os desejos ocultos daqueles que se aproximavam dela. Foucault (1988), no primeiro livro da trilogia sobre a sexualidade, A vontade de saber, teoriza a repressão do sexo ao longo da história. Uma repressão atrelada ao poder, que resultará numa genealogia da moral. Analisar essa sexualidade é precisar essas relações de poder-saber ao longo dos tempos, apontando para o elemento fluido delas e para as estratégias que propagam os seus dispositivos. Dentre elas, o filósofo cita a histerização do corpo da mulher:

94 Informações que constam no Livro de Consultas da entidade: Consulta straordinaria. Per motivo di impessitenza della Presidente Francesca Botamelli, della assistenti Domenica Sgrott, Giulia Golini, della tesoriera consultrice Paula Muraro d’erano state a ballare, dando cosi grave scandalo alla Pia Unione e più grave ancora per aver accettato male la pena di stare, come se lo meritavano, per un mese senza medaglia. Fu formato un nuovo consiglio composto delle seguenti: Presidente Bernardina Piva, 1ª assistente Giuseppina Fontanella, 2ª assistente Domenica Cucco, 1ª consigliera Lucia Wisentainer, 2ª consigliera Luigia Battisti, 3ª consigliera Emilia Ceccato, e cassiera Enrichetta Battisti; Luigia Sgrott che più prudente e savia della Presidente e assistenti si mostrò pentita del fallo d’aver ballato dimandò di nuovo la medaglia e la otenne cosi fu riconfermata nell’impiego di Sagristana ufficio ch’essa sempre disimpegnò com amore e zelo. 95 Citação original: Si parlò delo stato morale della Pia Unione e dalle informazioni si deduce che è assia buono. 124

(...) tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado – qualificado e desqualificado – como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo qual, este corpo foi integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo qual, enfim, foi posto em comunicação orgânica com o corpo social (cuja fecundidade regulada deve assegurar), com o espaço familiar (do qual deve ser elemento substancial e funcional) e com a vida das crianças (que produz e deve garantir, através de uma responsabilidade biológico-moral que dura todo o período da educação): a Mãe, com sua imagem em negativo que é a “mulher nervosa”, constitui a forma mais visível desta histerização. (FOUCAULT, 1988, p. 115).

Obtém-se, então, o perfil da mulher de Nova Trento, participante da Pia União das Filhas de Maria: uma mulher essencialmente impregnada de sexualidade, que precisava ser cerceada com regras de decência, caso contrário, era enquadrada em uma patologia, a histeria feminina. Essa doença só poderia ser vencida pela maternidade – e o ideal do casamento – único caminho para a sanidade feminina, conforme trabalha Foucault. Veremos a seguir como o matrimônio era idealizado pelas entrevistadas, ao longo do período em que permaneciam como congregadas.

3.5 – Práticas comuns de uma “verdadeira” Filha de Maria

Era considerada uma “verdadeira” Filha de Maria aquela que demonstrava diariamente, em suas atitudes, as boas práticas como congregada. Não era apenas na Igreja que elas deveriam se apresentar sobriamente, mas em casa, na rua, em qualquer lugar que frequentassem. Essas “boas práticas” estavam e ainda estão presentes na vida dessas senhoras entrevistadas. Elvira disse que a “Consagração à Nossa Senhora” é uma atividade que permanece com ela até hoje, e a faz na hora em que acorda. “Todo dia, quando eu levanto, consagro meu dia à Nossa Senhora. (...) A que a gente mais fazia, que era mais curtinha a oração, era aquela: ‘Lembrai-vos que vos pertenço terna mãe, Senhora nossa, guardai-me e defendei-me como filha própria vossa’”, recorda-se a senhora de 81 anos. Helena também se lembra da oração que aprendeu no período como Filha de Maria, e ela a reproduz ainda hoje, sempre que necessário. “Ah, ofereço o dia à Nossa Senhora! “Oh, Senhora Minha, Minha Mãe, eu me ofereço a vós inteiramente todo o meu ser. Minha incomparável Mãe, guardai-me e defendei-me, como Filha de propriedade Vossa, Amém!”. Além das orações e da consagração à Nossa Senhora, as entrevistadas lembram dos momentos com a família, à noite, quando tinham que rezar o terço, todos reunidos. Às vezes estavam cansadas pelo dia exaustivo de trabalho na roça ou em casa – quase dormiam na cadeira 125 com tanto sono, como contou uma delas – mas não deixavam de lado esta prática, considerada “sagrada”. O terço era rezado, inclusive na Igreja, todos os domingos à tarde, quando participavam não só as mulheres, mas os homens também. O momento era de oração e também de encontro, de troca e de paquera, como conta Célia:

A gente vinha no terço de tarde, aí aproveitava. Todo domingo. A mocidade toda ia pro terço. Só se visse! Aí a gente aproveitava pra paquerar. (Tinha paqueras então? – perguntei). Ô se tinha! Mas aí de noite não podia sair. Era sempre na praça, por ali. Aí eles acompanhavam a moça, né? Ai, meu Deus! (risos).

Admitir as paqueras e os encontros com os rapazes ainda gera certo constrangimento nas entrevistadas, como visto na fala de Célia, que começa a rir. Mas, sem dúvida, o espaço da Igreja ainda era o melhor local de encontro, de congraçamento com a comunidade. Por ser uma cidade pequena, todos se conheciam, e na praça podiam conversar, estarem juntos. Além disso, para as mulheres era o período do dia que estavam longe dos olhares dos pais e dos irmãos, já que “à noite não podia sair”. Elvira conta que além dos terços aos domingos, as Filhas de Maria coordenavam os terços especiais, realizados no mês de maio, mês de Maria, e, às vezes, em outubro, mês do rosário. Todas participavam assiduamente desses eventos. “Às vezes não se participava todo dia, mas a gente procurava sempre”, registra. A Hora Santa também era um momento bastante enaltecido pelas senhoras entrevistadas. Elas contam que uma vez por mês – no primeiro domingo, às 15h – participavam desse encontro de oração, usando vestido branco, véu e fita. O evento durava cerca de uma hora, junto com os rapazes, os Congregados Marianos, rezando muito, principalmente para “aplacar” a ira divina, reparar a ingratidão dos homens e pedir graça para os pecadores – os objetivos dessa devoção. A Hora Santa terminava com uma benção, como contou Helena:

Era a bênção do Santíssimo, né? O padre vinha com aquela vestimenta “grannnde”! Colocava aquele manto para pegar o Santíssimo, pra dar a bênção! Que devoção que a gente tinha, meu Deus! Ah! Pra mim parecia que aqueles raios vinham tudo em cima de mim. Tanta fé e devoção!

As reuniões com as aspirantes e com as Filhas de Maria aconteciam, separadamente, todo mês, conforme já mencionado, após a missa das 6h. O mesmo ocorria com os Congregados Marianos, que se encontravam na Igreja em um dia diferente das moças. A Capela de Nossa Senhora do Bom Conselho era o local escolhido para os encontros. Todas eram obrigadas a se 126 apresentar com a roupa branca nessas ocasiões, e em jejum. Segundo Elvira, que atuou como presidente no final da década de 1950, as reuniões duravam cerca de meia hora:

A gente fazia o encontro, passava as informações, a gente lia a ata e, depois, era falado o que tínhamos feito naquela semana. Se tinha alguma festa que a gente tinha que ir ajudar na igreja, se tinha alguma adoração que precisava ir... porque naquele tempo tinha que servir o altar, o sacristão... hoje são nós ministros que fazemos.

Figura 9 – Igreja Matriz São Virgílio, década de 1940. Destaque para os fundos da igreja, onde situava-se a Cappella della Madonna del Buon Consiglio, na qual as Filhas de Maria se reuniam. Esta capela foi demolida na década de 1980, quando foi aberta a rua dos Imigrantes

Fonte: Arquivo da Banda Musical Padre Sabbatini (década de 1940)

Essas informações a que Elvira se refere estavam sempre ligadas à vida de Nossa Senhora. Segundo ela, o padre diretor e as freiras contavam e recontavam a vida da “Madonna”, e solicitavam que elas deveriam imitá-La em todos os atos. “Deveríamos ser puras de coração, servir como ela servia”, disse Elvira. As moças também eram orientadas a ajudar na paróquia em dias de festa, nos momentos de celebração, na limpeza da Igreja, na ornamentação dos altares, entre outras ocasiões, conforme a entrevistada citou logo acima. No livro de atas da Congregação Mariana das Moças ganha destaque a fala do padre, que pede para que todas obedeçam às regras, os costumes da congregação, o diretor e também à diretoria. Inclusive ele menciona um exemplo: 127

Disse-nos que devemos obedecer à presidente. Quando manda varrer a Igreja, devemos estar prontas, não como algumas que responderam: “não tenho tempo”. Não é tempo, isto é regra da congregação, tudo é por amor à Nossa Mãe do Céu. (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro da Congregação Mariana das Moças, 11 de agosto de 1963).

Sobretudo, uma Filha de Maria deveria sempre “estar pronta” para ajudar no que fosse preciso, pois era “regra da congregação”, e isso demonstrava o amor que elas sentiam por Nossa Senhora. Em outra passagem das atas, no ano anterior a este fato, o padre destaca que as Filhas de Maria deveriam dar bom exemplo, não sendo congregadas só de fita, mas “congregadas de fibra, congregadas exemplares” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro da Congregação Mariana das Moças, 9 de setembro de 1962). O historiador francês, Roger Chartier (1995) explica essa dominação perante os corpos das mulheres. A construção da identidade feminina perpassa por normas enunciadas de discursos masculinos:

Definir a submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica ajuda a compreender como a relação de dominação, que é uma relação histórica, cultural e linguisticamente construída, é sempre afirmada como uma diferença de natureza, radical, irredutível, universal. (CHARTIER, 1995, p. 42).

Essas enunciações, incansavelmente repetidas e mostradas a essas mulheres, se materializaram nos pensamentos e nos corpos delas, resultando numa submissão, portanto em uma violência simbólica. Não por acaso, elas encaravam aquele cotidiano de divisão social e divisão sexual como “natural”, dos papeis e das funções. A análise de Chartier conversa com Thomas Laqueur (2001)96: este explica que a partir do século 18 foi concretizada – com a expansão da biologia e da medicina – uma “sexualização” do gênero, com o modelo de dois sexos/duas carnes97. Em resumo, os revolucionários europeus (franceses) precisaram justificar a tradicional desigualdade entre homens e mulheres, para torná-los compatíveis com os ideais igualitários republicanos. Todos os “homens” eram iguais, mas as mulheres eram frágeis e incapazes de exercer atividades intelectuais, científicas e

96 Foi um dos autores estudados no curso Poder, Sexualidade e Performatividade de Gênero, realizado pela pesquisadora no primeiro semestre de 2018. 97 Para Laqueur, até aquele momento, havia apenas um modelo de sexo único/carne. Acreditava-se que as mulheres tinham a mesma genitália que os homens, “só que a delas fica dentro do corpo e não fora. (...) Nesse mundo, a vagina é vista como um pênis interno, os lábios como o prepúcio, o útero como o escroto e os ovários como os testículos” (LAQUEUR, 2001, p. 16). 128 políticas. A diferença, aqui, foi biológica: afastaram o sexo feminino desses locais e determinaram como seria sua vida, principalmente a atrelaram à casa e aos afazeres domésticos. No caso das Filhas de Maria, além das atividades que realizavam no reduto familiar, era uma regra estarem sempre dispostas a contribuir com a Igreja Católica e com a instituição a qual estavam inseridas. Uma diferença sexual construída pelo discurso legitimador, que coloca a mulher em determinadas ocupações, atendendo aos interesses do dominador que, neste caso, era o padre e a Igreja – num primeiro momento – e, depois, em casa, o pai e/ou o marido.

Figura 10 – As Filhas de Maria reúnem-se para uma nova foto, desta vez com um vestido confeccionado especialmente para o trabalho voluntário que estavam prestando em uma das festas da Paróquia São Virgílio. A saia foi feita com tecido de chita, e a manga é mais curta que a habitual. Década de 1950, Nova Trento

Fonte: Elis Facchini (2018) /Arquivo fotográfico de Elvira

Nesse emaranhado de atividades, as moças também participavam de retiros. Embora o Manual das Filhas de Maria ressaltasse a realização destes uma vez por ano – pelo menos – as jovens de Nova Trento, contudo, participavam de retiros mensais, na Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, no centro de Nova Trento (1º domingo), e/ou no bairro Vígolo (4º domingo). A catequização – ou a doutrina, como as entrevistadas se referem – que começava no período em que eram crianças, continuava na vida adulta como congregadas. 129

Havia, ainda, uma prática comum durante esses retiros: uma meditação orientada, que foi descrita detalhadamente no Livro de Consultas da Pia União das Filhas de Maria, no dia 13 de março de 1904:

A meditação pode ser feita em três pontos: Eu morrerei! Quando vou morrer? Como vou morrer? Depois da meditação, o ato de aceitação da morte é recitado, junto com a oração para depois da meditação, e se encerra com o Pai Nosso98. (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro de Consultas da Pia União, 13 de março de 1904).

Esta meditação consistia numa “cerimônia de mortificação”, uma antiga prática religiosa, cuja proposta era realizar um sacrifício mental ou físico por amor a Deus, para se unir à paixão e à cruz de Jesus Cristo e, portanto, como meio de participação na redenção. Esta tinha duas finalidades: a reparação, não só como penitência, mas como purificação das faltas; e a santificação, para diminuir o apego ao prazer, grande fonte das faltas pessoais, e “neutralizar as influências malignas que o pecado original ainda exerce nas almas”99. Os retiros começavam às 4h30 da manhã no domingo e, ainda em jejum, as moças participavam da missa e da meditação. Ao longo do dia, o tempo era preenchido com as refeições, leituras de livros – aqueles permitidos, conforme já citado – exames práticos, seguindo o Manual da Pia União, visita ao Santíssimo Sacramento e coroação da Imaculada Conceição, passeios em silêncio, Via Crucis100, rosário e pouquíssimo tempo livre: 15 a 30 minutos, no máximo. Tudo isso foi descrito com detalhes no Diário da instituição, no dia 11 de janeiro de 1922. Depois, no retorno pra casa, as atividades continuavam: “A gente tinha umas tarefas em casa. Ler os mistérios. Ler estes livrinhos, o catecismo, eles chamavam”, recorda-se Célia em entrevista. Apesar de as entrevistadas não terem mencionado a participação em peregrinações/procissões durante o colóquio desta pesquisa, elas existiam e eram realizadas periodicamente pelas Filhas de Maria. Há anotações sobre esses eventos nos livros de atas da associação, e um registro fotográfico, que pode ser conferido nas próximas páginas.

98 Citação que consta no livro de atas: La meditazione si può fare duoi tre punti: Io morirò! Quando morirò? Come morirò? Terminata la meditazione, si recita l’atto di accettazione della morte indi la preghiera per dopo la meditazione e se chinde col Pater Noster (este termo está em latim). 99 Informações colhidas do site oficial da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, com sedes em São Paulo (SP) e Santa Maria (RS), disponíveis em: , acesso em 26 de fevereiro de 2019. 100 Termo em latim, que significa Caminho da Cruz. A proposta é que as moças realizassem o exercício da Via Sacra, refazendo o percurso de Jesus (ao carregar a cruz) até o monte Calvário. 130

Entre os locais de maior peregrinação estavam: Madonna del Buon Soccorso – Santuário Nossa Senhora do Bom Socorro, distante cinco quilômetros do centro e numa altitude de 525 metros; Santuario di Vigolo dedicato all’Immacolata di Lourdes – Igreja Nossa Senhora de Lourdes, também distante cinco quilômetros da paróquia, no bairro Vigolo; além de San Giuseppe – Igreja dedicada a São José, localizada no distrito de Claraíba, distante 16 quilômetros. As caminhadas rumo a esses espaços de fé e devoção eram feitas em meio a muitas orações e cantos. No dia 14 de abril de 1907, por exemplo, é descrita em ata a procissão das moças rumo à Igreja São José, em que elas entoaram diversas ladainhas de Nossa Senhora101. Conforme está nos documentos, elas cantavam para esquecer a lonjura da estrada, lembrando que muitas vezes elas estavam em jejum e só iriam preencher o estômago depois da missa e da comunhão. Em um outro momento do Diário das Filhas de Maria, ano de 1904, elas relatam a peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, bairro Vígolo. Percorreram os cinco quilômetros acompanhadas pelas Irmãs da congregação, juntamente com a superiora da casa. A ocasião era especial para elas: estavam comemorando o 50º aniversário da definição dogmática da Imaculada Conceição. Todo o percurso foi realizado com rezas e cantos, divididas em grupos, para que ninguém se cansasse muito. Eram em torno de 100 mulheres, que saíram às 8h da Igreja Matriz e chegaram em Vígolo às 9h15, sendo recebidas pelo padre diretor para a missa e, logo em seguida, foi servido um café pelas religiosas102 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 02 de julho de 1904). As Filhas de Maria entrevistadas para esta pesquisa evidenciaram também os ensaios de canto, nos quais participavam. Célia e Elvira, em especial, disseram que havia um coral com todas as congregadas. “Era bonito! Nós tínhamos o nosso coral, a gente cantava as missas. Eu

101 Citação original que consta em ata: La processione parte da Nova Trento salito dopo la 1ª messa e giuze a S. Giuseppe verso alle 10. Durante la processione pici volte le Figlie di Maria cantarono le “Litanie della Madonna”, alcona canzone en. e cantarono si bene li faceno dimenticare la lunghezza della strada. (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União das Filhas de Maria, 14 de abril de 1907). 102 Citação que consta no documento: Terminati gli eserzici, le esercitanti fecero um pellegrinaggio al Santuario di Vigolo dedicato all’Immacolata di Lourdes essendo quest’anno il 50º anniversario della definizione dogmatica dell’Immacolata Concezione. Alle 8 pertanto le Figlie di Maria si misero in modo col loro stendardo per la partenza. Erano guidate da alcune Suore di Vigolo con a capo da loro Superiora. Per tutta la via da Nova Trento a Vigolo si occuparano in preghiere ed in cantici e perchè non avessero troppo a stancarsi la Superiora divise le pellegrinanti in quattro cori. Verso le 9 ¼ entrarano cantando nel Santuario dove furon ricevute dal P. Direttore della P. U. che diede loro le benvenute a nome dell’Immacolata e a nome suo rivolte loro opportune parole di circonstanza. Si ricitarono quindi alcune preghiera e dopo il canto del Magnificat, il padre imparti loro la benedizione colla reliquia della Madonna cui diede poi a baciare. E così terminò la funzione. La carità delle buone Suore di Vigolo non mancò di apprestare alle più di 100 pellegrinanti um buon caffè. Partirono in fine le Figlie di Maria alla volta delle loro case assai contente, dispiacenti solo di dover partire. Non mancarono di quelle che perciò piansero. 131 e a Irani (uma amiga) fazíamos os solos... a gente ensaiava. Eu participava de tudo! Eu gostava de participar!”, relembra Elvira. Célia também se recorda do quanto era bonito o coral das Filhas de Maria naquele período. “Eu, a Terezinha, a Irani, a Adelaide... elas tinham uma voz, que era a coisa mais linda! Era lindo aquele tempo! (...) Até a Banda ia lá (Banda Musical Padre Sabbatini). Muito bonito!”, conta Célia, segurando as mãos. Distantes do gravador, as senhoras mostram uma foto – retratada logo abaixo – que elas bateram numa ocasião que estavam descendo o Morro da Cruz – como é conhecido popularmente o Santuário Nossa Senhora do Bom Socorro. Um fotógrafo chamado Amadeu, da cidade de Brusque, registrou o momento junto com a sua lambreta. No retrato, é possível perceber que elas não estavam com roupa branca – não era uma ocasião especial, apenas haviam subido em peregrinação o referido monte – e levaram com elas um pequeno casaquinho, que provavelmente colocaram para poder entrar na igreja.

Figura 11 – Filhas de Maria são flagradas pelo fotógrafo Amadeu, na descida do Morro da Cruz, sul monte da onça. Década de 1950, Nova Trento

Fonte: Elis Facchini (2018) /Arquivo fotográfico de Elvira e Célia

Ao serem perguntadas se sentem saudades daquele tempo, todas disseram que sim. Inclusive Célia contextualiza: “Tinha muita amizade naquele tempo. A gente era muito unida. 132

Até hoje a gente se conversa. A gente ia pro Morro da Cruz, quase toda a segunda-feira, a pé. O padre Afonso acompanhava a gente a cavalo. Mas era uma beleza! (risos)”. Em suma, era um importante espaço de socialização, de convívio entre elas, longe dos olhares dos pais e dos irmãos. Uma relação que perdura ainda hoje, pois vez ou outras essas mulheres se encontram para conversar e recordar os tempos da juventude.

3.6 – O contato com a Itália e a Santa Sé

Conforme mencionado no capítulo anterior, não foi possível dar destaque ou ênfase – nesta dissertação – às cartas enviadas e recebidas pelas Filhas de Maria de Nova Trento, entre os anos de 1903 e 1916, até mesmo por conta da de detalhes e informações, difíceis de condensar num trabalho como este. Estas correspondências estão concentradas em um único documento, que também compõe o acervo da Paróquia São Virgílio. No entanto, não se pode deixar de mencionar como a congregação mantinha forte vínculo com a Itália, e também com a Santa Sé, desde os primórdios, conforme os registros neste livro. Por isso, mesmo de forma breve, daremos ênfase para este momento da história da entidade. Entre as correspondências, ressaltam-se aquelas em que elas se reportavam para Madre Florida, que pertencia a uma congregação na cidade de Albano Laziale, região do Lácio, província de Roma, ou mesmo para o padre Luigi Santini, que naquele período atuava na abadia geral dos reverendos cônegos regulares de Santo Agostinho, também em Roma. Na primeira carta transcrita nesse livro, no final do ano de 1903, a secretária Ida Gottardi informa a situação de miséria das Filhas de Maria, a necessidade de se adquirir o estandarte da entidade e, também, uma pequena biblioteca para que elas possam estudar a vida dos santos e de Nossa Senhora. Para tanto, ela solicita – a fim de sanar as necessidades básicas daquele momento – o periódico das Filhas de Maria, que era editado na cidade de Roma (inclusive ela informa o endereço de impressão: Basílica de San Pietro in Vincoli). Desta forma, as moças de Nova Trento poderiam utilizá-lo em seu dia a dia (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Cartas pertencentes à Pia União, 07 de novembro de 1903). São inúmeras trocas de mensagens entre Ida e Madre Florida (anos de 1903 e 1904), mas em resumo a superiora responde e solicita que as meninas não desanimem diante das dificuldades, que confiem em Cristo e sempre rezem por todas as jovens que estão envolvidas com as Filhas de Maria. Além disso, a Irmã promete enviar os periódicos para Nova Trento, mas é possível subtender pelas cartas que esse jornal não chega às mãos dessas filhas com regularidade. Elas continuam solicitando-o até 1908. 133

Neste ano, elas são orientadas a enviar uma correspondência para o padre diretor do periódico “La Figlia di Maria”, que a remetem no dia 11 de dezembro de 1908. Elas até supõem o motivo de não terem recebido as edições do jornal: “Certamente por causa dos Correios daqui que não são exatamente como os da Europa103” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Cartas pertencentes à Pia União, 11 de dezembro de 1908). Inclusive em carta elas relatam que, em outras ocasiões, encaminharam dinheiro para o envio do periódico, mas não foram informadas se os recursos tinham chegado, de fato, ao destinatário. No ano seguinte, 1909, as Filhas de Maria trocam cartas com noviças que estão na cidade de Nova Friburgo (RJ), e informam à estudantes que receberam 150 livretos da cidade de Rovigo, região do Vêneto, Itália. Não é possível saber o teor desses livretos, mas pode-se supor que poderiam ser os pequenos manuais ou mesmo os periódicos ora citados. Embora não fique claro no livro das cartas que o envio desse jornal chegou a Nova Trento – pois as referidas correspondências italianas não confirmam a informações – nos outros documentos, como o Diário e o Livro de Consultas da Pia União existem registros de que elas o receberam. No dia 06 de junho de 1905 - Diário da Pia União, por exemplo, elas obtêm três cópias do periódico La Figlia di Maria, que era de dezembro do ano anterior, enviado por Monsenhor Giovanni Bressan, capelão do Papa à época. E, nos anos de 1908 e 1931 - Livro de Consultas, utilizam como referência artigos publicados nesse jornal para enaltecer algumas regras que precisavam ser cumpridas por elas, como a medida dos vestidos e o tamanho das mangas. Na nota do ano de 1908, uma curiosidade: elas comunicam que a proposta sugerida no periódico seria impossível de cumprir e que, por isso, fariam qualquer outra coisa104 (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro de Consultas da Pia União, 02 de fevereiro de 1908). Aqui não é possível saber se se trata de alguma regra/norma que poderia afetar os bolsos das famílias ou se poderia ser algo mais complicado de assumir diante das condições da entidade. As cartas entre as Filhas e o Monsenhor Giovanni Bressan, de Roma, continuam. Em 1904, especificamente, elas enumeram as atividades que estavam costumadas a fazer: Comunhões, missas, novenas, visita ao Santíssimo, atos de amor, de obediência e de mortificação. Por exemplo, até aquele ano elas realizaram 13.950 Comunhões espirituais e 2.363 Comunhões sacramentais” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento,

103 Citação original: Certo per colpa delle poste di qui, che non sono mica esatte come quelle dell’Europa. 104 Citação original no livro de atas: La conclusione fu che essendo troppo difficile nelle circostanze in cui si trova la magior parte delle Figlie di Maria far quanto si propone, si fará qualche altra cosa. Ma di ciò se ne riparlerà. 134

Cartas pertencentes à Pia União, 04 de outubro de 1904). Em reposta, Bressan não agradece, mas solicita que elas continuem as orações e as devem oferecer ao Santo Pontífice e à Santa Igreja105. No mesmo ano em que elas remeteram a carta a Giovanni Bressan, ou seja, em 1904, as Filhas de Maria recebem o quadro de aprovação da Pia União, de Roma, que foi introduzido na Capela de Nossa Senhora do Bom Conselho, no domingo que precedeu a festa da Imaculada Conceição, 8 de dezembro daquele ano, de acordo com a Diário da entidade. Logo em seguida, no dia 1º de janeiro de 1905, o Padre Diretor destacou em reunião sobre o atestado de especial benevolência106 que receberam do Papa Pio X. A Pia União das Filhas de Maria de Nova Trento, então, havia sido incorporada à Primaria, de Roma, junto com outras sete mil distribuídas em todo o mundo. Com este atestado, as moças poderiam ter acesso às indulgências plenárias, no dia em que celebrassem a Imaculada Conceição (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União, 01 de janeiro de 1905). E, para surpresa de muitas Filhas de Maria de Nova Trento, na semana seguinte a este fato, no dia 07 de janeiro de 1905, durante reunião na sede da paróquia, o padre diretor deu considerável atenção a uma correspondência que acabara de chegar de Roma: tratava-se de uma fotografia do pontífice, o referido Papa Pio X107, com uma pequena carta endereçada a essas filhas de Nova Trento:

Às amadas Filhas de Maria de Nova Trento e ao igualmente amável Diretor, como penhor das graças celestiais e da nossa especial gratidão e benevolência, comunicamos com todo o coração a Bênção Apostólica. Papa Pio X108. (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Diário da Pia União, 07 de janeiro de 1905).

Além do Papa, cuja fala está registrada em ata, na íntegra, há duas passagens em que os Bispos escreveram a próprio punho uma nota para as moças de Nova Trento. A primeira foi escrita no dia 08 de maio de 1910, pelo então Bispo de Florianópolis – primeiro Bispo de Santa Catarina, Dom João Becker, que estava em visita pastoral à região. Ele pede para que as jovens continuem sua devoção “à Nossa Senhora, Rainha do Céu, dando exemplo aos seus semelhantes”.

105 Citação que está no documento: “(...) e ad offrire a Lei fervide preci secondo le intenzione del Sommo Pontifice e pei bisogni della Santa Chiesa” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Cartas pertencentes à Pia União, 21 de abril de 1905). 106 Citação que consta em ata: “Attestato di speciale benevolenza”. 107 Foi o 257º Papa da história da Igreja Católica Apostólica Romana. Atuou entre 1903 e 1914. 108 Citação original que consta no Diário da Pia União: “Alle dilette Figlie di Maria di Nova Trento, e all’egualmente diletto loro Direttore come pegno di celesti grazie e della nostra speciale gratitudine e benevolenza impartiamo di cuore l’Apostolica Benedizione. Pius P.P. X”. 135

Já a segunda nota que interrompe a ata, é escrita pelo 2º Bispo e 1º Arcebispo de Florianópolis, Joaquim Domingues de Oliveira, que também veio em visita pastoral a Nova Trento, no dia 17 de abril de 1928: “Abençoamos muito particularmente a Pia União das Filhas de Maria de Nova Trento, que sejam perseverantes na prática do bem”. Ambas as passagens estão registradas no Diário da Pia União das Filhas de Maria de Nova Trento.

3.7 – Vida religiosa ou vida leiga? O dilema em optar pela vida consagrada ou pela vida de mulher casada

Mulheres solteiras, devotas da Virgem Imaculada e de Santa Inês tinham que necessariamente seguir para a vida consagrada? A resposta é não. Muito embora elas estivessem alicerçadas no trinômio pureza, obediência e caridade, bem similar aos votos de uma freira – com diferença apenas da “pobreza” – elas não eram obrigadas a optar por esse caminho. Mas, havia, sim, uma forte influência para ingressarem na Congregação, especialmente aquela cuja fundadora foi Amábile Lúcia Visintainer, hoje Santa Paulina. Como já referenciado no primeiro capítulo, muitas vezes a própria família as direcionava, a fim de mantê-las afastadas da herança da terra. Das entrevistadas para esta pesquisa, apenas Elvira demonstrava interesse em ingressar numa ordem religiosa. Alcina foi encaminhada para o convento muito jovem, sob forte influência do pai, mas logo saiu por motivo da intensa pressão que sofreu junto à instituição e perante à freira que a coordenava. Por fim, todas elas – inclusive Célia e Helena – casaram-se em Nova Trento. Optaram, então, pela vida leiga. Ao decidirem pelo matrimônio, as moças realizavam o seu protesto de fidelidade perante à instituição, conforme relatado no capítulo dois. Grande parte desses protestos estão descritos no Diário e no livro de registros das Filhas de Maria. As entrevistadas contam que a norma era casar com a fita de congregada, a referida fita azul, sendo que a após a cerimônia elas a retiravam. “Sim, casava com a fita! Depois do casamento, tirava. Aí já ia direto pro Apostolado (da Oração)” conta Célia. O Apostolato della Preghiera, ou Apostolado da Oração, era a instituição indicada para as mulheres – e o os homens também – após o casamento. É uma associação mista, que vigora até hoje em Nova Trento, embora seja formada em sua maioria por mulheres. Periodicamente, são elas que se revezam na limpeza da Igreja, por exemplo. 136

Porém, uma dúvida surgiu durante a pesquisa: como eram os namoros? Como elas eram constantemente vigiadas em seus atos, seja em casa ou na Igreja, a pergunta chave era como elas conheceram seus maridos. Este tipo de questionamento gera um certo constrangimento nas entrevistadas, que começam a rir, ficam um pouco nervosas e diminuem o tom de voz. Mas, aos poucos, elas vão revelando algumas particularidades desse período do namoro ou da fase que antecedida o casamento. Foi o caso de Elvira, que muito timidamente explica como conheceu o marido, seu único parceiro:

Ele mandava recado! Eu passava na frente dele, mas eu era muito envergonhada! Ele dizia: “mas porque ela não olha pra gente?” E dizia também: ‘essas tranças me levam!’ (risos)... porque eu usava tranças! E ele de vez em quando me mandava recado, mas eu não respondia... aí foi passando, foi passando...

O jovem moço não era congregado mariano, segundo conta Elvira, pois ele não gostava de participar das atividades da Igreja. Insistiu muito para conhecê-la. Inúmeros recados foram enviados à jovem, que sempre dizia: “não sei... vou ver, vou ver...”. Até o dia em que ela cedeu e topou um encontro. Contudo, esses encontros não eram a sós. Num primeiro momento ocorriam na praça, em frente à Igreja ou nas festas que a Paróquia promovia. “Uma vez ou outra ele passava aqui (na casa dela). Se eu estava por perto, ele parava, aí ele olhava...(risos). Quando ele chegou mesmo para namorar, teve que pedir pro meu pai. Aí ele vinha em casa namorar”, relembra Elvira. O namoro se desenrolou na sala, sob as vistas do pais, e tinha um limite de horário: 9 horas da noite. “Era bem rigoroso”, recorda-se ela. Pouco tempo depois, o jovem foi chamado para o exército, no Rio de Janeiro. A partir daí o namoro passou a ser por cartas, durante cerca de um ano. Elvira lembra que eles começaram as conversas quando ela tinha 14 anos, mas só foi autorizada a namorar após completar 17 – mesmo período que ingressou nas Filhas de Maria. Esta regra de namoro após os 17 anos era enaltecida nos livros de atas da entidade: “Condenou- se duramente o namoro antes dos 17 anos” (PIA UNIÃO DAS FILHAS DE MARIA, Nova Trento, Livro da Congregação Mariana das Moças, 28 de julho de 1963). O casamento de Elvira aconteceu logo depois, quando ela tinha 22 anos, ou seja, em 1959. “Já vai fazer 59 anos! Já faz bastante tempo! Faz bastante tempo que a gente se atura! (risos)”, brinca. Com Célia, o namoro foi um pouco diferente. Ela já tinha 24 anos quando conheceu seu pretendente, que na época tinha 42 anos. Por esse motivo, ela registra que não foi pedida 137 em namoro, pelo fato dele ser mais velho. Não foi o seu caso, mas ela conta que a maioria dos casamentos era “arranjado” pelos pais. Além disso, as famílias se preocupavam se o jovem era de “família boa”. E o que era ser de “família boa”? Ela responde:

Ah... se era bem católico. Naquele tempo era assim mesmo. Preferiam que fosse gente de Nova Trento. O meu pai era “tinhoso”. Ele queria que as filhas casassem tudo com “italiano”. Meu pai era. Ele não gostava (que fosse descendente de outra etnia) - (risos).

Célia se recorda, durante a entrevista, de uma amiga que acabou conhecendo um jovem da religião Evangélica, morador da cidade de Blumenau. O padre se recusou a casar os dois, porque ele não era batizado. Todavia, a família apoiava a união, por ele ser um “rapaz bom”:

Eu sei que deu um “barulho” danado. O padre não queria casar. Ainda hoje ele não se batizou, mas ele é uma pessoa, olha, precisa ver. Ele acompanha ela na igreja, tudo... Se eles não casassem, ela ia se “ajuntar” e, naquele tempo, meu Deus! Era o fim do mundo! Aí o padre casou. Mesmo não sendo batizado. Porque se “ajuntasse”, o pecado era do padre, de certo, né?

É possível perceber que, ainda hoje, o rigor da Igreja Católica está muito presente na vida dessas senhoras. Elas se recordam com muito temor de todas as normas, principalmente daquelas que advinham da própria família: casar com um moço “de família”, preferencialmente católico e de origem italiana. Fugir dessas regras, colocava em risco não só o casamento, mas a estrutura da própria instituição religiosa. A entrevistada do bairro Salto, Célia, também traz à memória a obrigação do período de noivado. O mais longo durava cerca de seis meses. Era o tempo exato para se preparar para o casamento – que logo estava por vir – e manter conversas longas com o padre, que orientava o casal em todos os sentidos. Ela narra que eles ficavam muitas horas com o sacerdote, às vezes meia manhã. Entre as recomendações: “se dar bem, se respeitar”. Conversar sobre sexo? Jamais. “Deus me livre conversar em sexo naquele tempo! Iiiii, na frente da minha mãe, ainda mais! Era muito difícil. A gente casava quase inocente”, pondera Célia. Esse “quase inocente” nos remete ao fato de que elas conversavam, sim, sobre sexo. Talvez não com a família – que, como ela relatou, raramente falava no assunto – mas com as amigas ou com pessoas mais experientes, que poderiam contar como se processava um casamento, as relações com o sexo oposto, a vinda dos filhos. Alcina também confirma a informação de que os namoros começavam mesmo após os 17 anos. Único parceiro de sua vida, namoraram durante oito anos, grande parte desse tempo à distância, porque ele também serviu o exército, na época da 2ª Guerra Mundial. Ela o conheceu 138 por acaso, pois ele trabalhava com seu pai. Os encontros mais constantes foram nas festas da Igreja, quando ela trabalhava nas “barraquinhas”, ajudando a paróquia a angariar recursos, na época em que eram “cruzadinhas”. “Aquela coisa de criança primeiro e, aí, quando chegou nos 17, ficou mais firme. Mas foi tudo muito natural. Aconteceu”, disse Alcina.

Figura 12 – Uma das entrevistadas, após o matrimônio, utiliza a fita azul de Filha de Maria. A tradição era retirar a faixa após a cerimônia religiosa. Década de 1950, Nova Trento

Fonte: Elis Facchini (2018) /Arquivo fotográfico de uma das entrevistadas

O namoro de Helena também foi à distância, pois naquele período ela trabalhava como costureira em Blumenau. Nunca imaginava que encontraria um namorado em Nova Trento, e nem na cidade onde morava, pois lá ela nunca namorou ou saiu de casa. Contudo, em uma de 139 suas vindas para visitar os pais na cidade natal, ela conheceu o rapaz num passeio pelo centro com sua amiga, Maria. Ele era congregado mariano e, tanto quanto as Filhas de Maria, este obedecia com rigor as regras da instituição que frequentava. Helena registra que eles se encontravam a cada dois meses, pois o moço trabalhava como pedreiro e passava boa parte do tempo fora de Nova Trento. Por isso, trocavam muitas cartas. Não havia telefone, nada disso. O namoro, claro, na frente dos pais, na sala, quando se encontravam, ou na igreja, nas festas da paróquia. “Não podia faltar a festa de São Virgílio, era sagrada. Podia estar meses fora, mas nesta a gente vinha”, relembra Helena. Ela disse que sua irmã também namorava um rapaz de Nova Trento e, da mesma forma que ela, trabalhava em Blumenau. “Quantas vezes ele veio visitar ela! Mas, o meu era mais tímido. Acho que veio lá (em Blumenau) uma vez!”, lamenta a entrevistada. Trabalhando na malharia Sulfabril e adquirindo seu próprio dinheiro, ela foi comprando, aos poucos, os móveis da sua futura casa. Cama, guarda-roupa, tudo ela foi conquistando, enquanto o namorado construía a residência que eles iriam morar depois de casados. Sua patroa, em Blumenau, a ajudou com alguns outros móveis e o enxoval. O casal trocava correspondências e o jovem informava como estava o andamento da construção. Não demorou muito e o pretendente foi buscá-la em Blumenau, de caminhão. Carregou a mudança para a casa nova quando já estavam de casamento agendado, em Nova Trento. A data escolhida para a cerimônia foi o dia 17 de setembro de 1966. Terminava aí a vida como Filha de Maria, como empregada na fábrica e como diarista na casa dos patrões. Porém, o trabalho não acabou, obviamente. Iniciava, agora, sua vida como mulher casada, como mãe e como associada ao Apostolado da Oração – título este que Helena guarda com muito carinho até hoje. Os valores como Filha de Maria e, depois, como participante da entidade que mantém a fita vermelha, foram repassados aos seus três filhos de Helena. Ela se orgulha ao falar que sempre os orientou para tomarem a Comunhão, se crismarem e se casarem na Igreja Católica. Todos eles moram longe: um mora em Curitiba, uma em Brasília e uma outra nos Estados Unidos, mas o casal faz uso da tecnologia para conversar com os filhos e os netos. Quando ela telefona, não deixa de recomendar: “vocês não podem passar um domingo sem ir à missa! O que vocês fazem dessa vida? Trabalho, trabalho, trabalho?”, questiona Helena. Ela fica orgulhosa ao saber que um de seus netos segue os passos da avó: gosta muito de ir à missa e, quando pode, participa de retiros, em Brasília. Um dos filhos do casal, que 140 informalmente participou da entrevista, informa: “Sim, essa coisa de religiosidade, até hoje muito presente. Ela sempre pergunta se fomos à missa”, atesta. Elvira também afirma, durante a entrevista, que sempre repassou aos filhos e filhas a educação que recebeu de seus pais e de seus avós, com quem aprendeu “só coisas boas” e sente maior orgulho:

Hoje eu digo para os filhos: “eu tento passar pra vocês, agora vê se vocês passam para os filhos de vocês! A gente tem que conservar isso, né? Aí elas me dizem: “mãe, tudo, tudo mesmo, hoje, é por causa da liberdade hoje em dia! É muita televisão, aprendem de tudo, né?” Mas de vez em quando a gente “pega” os netos – que são tudo mais altos do que eu. Agora são eles que me pegam no colo (risos).

Em vista disso, embora a Pia União das Filhas de Maria tenha finalizado suas atividades na década de 1960, a entidade continua muito presente na vida e no cotidiano dessas mulheres de Nova Trento. Ir à missa, uma atividade obrigatória para todas elas, não foi deixada de lado, e nem os ensinamentos repassados pelos seus pais e avós. Muito pelo contrário, permanecem até os dias de hoje e reverberam na vida dos filhos e dos netos dessas senhoras. É como uma pedra lançada em meio a um lago: a vibração provocada pelo impacto, causa movimentos de ondas de circunferência, que se afastam e se prolongam até às margens. As Filhas de Maria, como centro dessa vibração que ainda não acabou (pelo menos simbolicamente), se expandem e se multiplicam na vida e na rotina das famílias que aí vivem.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando começamos uma pesquisa, sempre imaginamos que ela terá um fim. Mas isso, de fato, não ocorre. Especialmente num projeto como este, colocar um ponto final é muito difícil, pois as histórias de vida dessas mulheres ficam muito presentes em nosso cotidiano, em nossas reflexões do dia a dia. Durante a caminhada neste mestrado, algumas pessoas me questionaram sobre o meu objeto pesquisado. Diziam que eu poderia estar cometendo uma espécie de “anacronismo” – quando pessoas, eventos, palavras, objetos, costumes, sentimentos, pensamentos ou outras coisas que pertencem a uma determinada época são erroneamente retratados noutra época. Nesses momentos, eu precisei ser forte: resistir para não desistir! Por isso, me concentrei nas histórias dessas mulheres que eu fui entrevistando para esta pesquisa e nas mulheres que eu já havia entrevistado tempos atrás. Eu sabia da importância de revirar este passado delas, trazer à tona essas memórias de determinações: essas pessoas que me questionaram, talvez não saibam, mas muito desse passado está no nosso presente, hoje, em Nova Trento. Esse passado repressor, repleto de imposições, reverbera até hoje. Embora as Filhas de Maria tenham finalizado suas atividades há mais de 50 anos, suas descendentes (como eu), na atualidade, ainda recebem uma educação pautada na moral: as regras – ainda que, de certa forma, ocultas ou subtendidas – são internalizadas a partir de uma visão conservadora, patriarcal, misógina e, também, machista. É a partir desse ponto de vista que eu entrego este texto à avaliação de todos. Acredito que minha missão, meu objetivo, foi alcançado: contextualizei de que forma a Pia União das Filhas de Maria “moldou” essas mulheres, seguindo o ideal católico daquele período, ao promover as virtudes cristãs e preservar a pureza com a proteção da Virgem Maria e de Santa Inês. Através das histórias de vida dessas senhoras foi possível perceber como a Igreja Católica e esta associação construíram uma cultura religiosa muito forte em Nova Trento. Não por acaso, o município é hoje considerado um dos principais destinos turísticos religiosos do país que, segundo informações da própria SANTUR (governo do estado), só perde para o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em São Paulo109. Além disso, entre os meus objetivos principais estava o de explicar como essas mulheres tiveram suas vozes silenciadas. No decorrer dos três capítulos, foi possível perceber algumas dessas situações de imposição de silêncio: quando elas foram “obrigadas” a deixar a

109 A Prefeitura Municipal de Nova Trento e o Santuário Santa Paulina sempre enaltecem isso em seus materiais de divulgação. Além disso, é a única cidade de país que possui dois santuários. Este acima referenciado, e o de Nossa Senhora do Bom Socorro, localizado a 525 metros de altitude. 142 pátria italiana para vir ao Brasil; quando elas foram mantidas em espaços privados e assumiram o trabalho reprodutivo como suas “vocações”, abdicando, na maioria das vezes, dos estudos; quando a “sacristã” foi completamente apagada pela figura do padre; quando elas foram chamadas de “delinquentes”, em razão do descumprimento de regras/ordens previamente estabelecidas pela instituição religiosa; ou quando a “virtude da delicadeza” deveria prevalecer, muito mais do que qualquer virtude ou aptidão que elas poderiam ter. Enfim, são inúmeros os exemplos citados durante este texto que, certamente, devem ter saltado aos olhos da leitora e do leitor. Em contrapartida, há que se ressaltar que as mulheres que participaram das Filhas de Maria em Nova Trento também criaram diversas estratégias de resistência para dar a volta por cima, ou seja, reverter essa absolutização do controle exercido perante delas. Questionavam o padre, a instituição, não cumpriam com as regras – e, claro, eram expulsas por isso – ou havia ainda as moças que, num ato de coragem, não participavam da Pia União, desafiando o poder da Igreja e assumindo sua autonomia. Ademais, mesmo sendo um espaço de muito cerceamento e em meio a um conglomerado de regras, é importante dizer que a Igreja também era um local de convívio, de troca de experiências, de amizade, sendo que estas permanecem vivas ainda hoje, conforme relatos das senhoras entrevistadas. Estamos, então, diante de uma contradição: em um momento a associação revela-se repressora, assumindo o controle dessas jovens e, por outro lado, é ali, na comunidade, que se descortina a sociabilidade e as relações de reciprocidade. Algo complexo, mas ao mesmo tempo, muito interessante: elas absorvem esta cultura católica, se socializam, mas, ao mesmo tempo encontram formas para transgredir algumas regras – como quando repetiam, durante a confissão, os seus pecados diante do padre. À vista disso, no primeiro capítulo, apresentei como ocorreu a construção sociorreligiosa do município de Nova Trento. Mostrei como a religião católica, trazida do norte italiano, influenciou decisivamente no clima da cidade e, em especial, Amábile Lúcia Visintainer, fundadora da Pia União das Filhas de Maria. Ainda assim, contextualizei o silêncio dessas mulheres em espaços privados, mas, ao mesmo tempo, expus como elas lutaram para proteger suas famílias e disseminar essa cultura católica. Por fim, e não menos importante, trouxe para o enquadramento a forte influência das escolas e da presença Jesuítica para a formação religiosa dessa população em solo brasileiro. Como um dos pontos significativos, destaquei como se deu a transplantação da religião católica da Itália para o Brasil. Por conseguinte, no segundo capítulo expliquei como iniciou e se desenvolveu a Pia União das Filhas de Maria em Nova Trento e, principalmente, de que forma a instituição 143 interferiu na vida dessas mulheres. Através do método de análise de conteúdo, investiguei o Manual da Pia União, datado de 1953, e os livros de atas da associação. Destaque para as histórias das moças retratadas no Diário e no livro de Consultas, entre os anos de 1902 e 1964, e que são descritas com muito cuidado nessa parte do texto. Por fim, no terceiro capítulo, que considero “a cereja do bolo”, trouxe as histórias de mulheres que atuaram como Filhas de Maria, nas décadas de 1940 e 1950, em Nova Trento. Foi muito gratificante manter contato com todas elas – que não foram retratadas no meu livro- reportagem, lançado em 2017. Uma nova experiência se descortinou, pois por mais que eu conhecesse a realidade a qual elas estavam inseridas, cada história é única e merece ser ouvida. Acabei descobrindo muitos outros pormenores, que na primeira pesquisa não havia me atentado. Muito provavelmente porque, no mestrado, apurei ainda mais meus ouvidos e minha percepção em relação à religiosidade, às questões de gênero e, também, à própria história da Igreja Católica no Brasil. Espero que isso tenha ficado explícito no texto. Todavia, este não é o fim. Felizmente, é possível continuar esta pesquisa, talvez por outros ângulos, por outras nuances. Durante o mestrado, pude constatar que muitas paróquias por este Brasil ainda mantêm a Pia União das Filhas de Maria ativa. Numa análise rápida – pois não era o foco da minha pesquisa – pude ver que há Filhas de Maria em cidades de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Quem sabe, num futuro doutorado, seja possível investigar com mais propriedade como essas associações se mantêm presentes e, vivas, até hoje. Durante essa especialização também pude “apurar” um pouco mais minha percepção em relação a um livro, que ganhei de minha avó, durante a pesquisa para a graduação em Jornalismo. Este livro, datado de 1843, que pertenceu anteriormente à minha bisavó e, antes disso, à minha trisavó, foi utilizado na formação de parteiras na antiga Europa. Ele está bastante “surrado” pelo tempo – afinal, atravessou o Atlântico, no final do século 19 – mas traz uma contribuição bastante significativa: evidencia que as mulheres tinham, sim, acesso ao conhecimento naquele período. Muito provável que elas conseguiram burlar as pressões impostas pelo patriarcado. No entanto, naquela época, dava-se muito mais preferência à mulher como parteira do que na atualidade, no qual a figura do médico ainda está muito presente, embora isso esteja mudando um pouco, a partir da entrada da doula, ou da acompanhante de parto. Talvez encontro aqui um outro tema ou uma nova perspectiva de pesquisa para o futuro. Ao longo do trabalho, foi uma verdadeira batalha separar a pesquisadora da neotrentina, que conhece muito bem sua comunidade, a vida social e religiosa, bem como seus moradores e seus estilos de vida. A partir desse esforço, eis aqui o resultado: alguns caminhos apontados, outros subtendidos, mas que de uma maneira ou de outra refletem o cotidiano de 144

Nova Trento, de sua gente e, em especial, das mulheres. É para elas que este trabalho foi construído. Era muito importante para mim trazê-las para o foco, pois ao meu ver elas sempre ficaram distantes dos holofotes ou não entravam no rol de discussão dos historiadores e de outros amigos da cultura neotrentina. Cito como exemplo Santa Paulina: apesar de hoje o turismo movimentar centenas de visitantes e peregrinos ao Santuário, o poder público e a própria população não dão a devida atenção para esta mulher que, no meu entender, foi uma liderança extremamente importante para o desenvolvimento da cidade. Pelo contrário, em muitos momentos há uma supervalorização das caraterísticas negativas de Paulina e, consequentemente, da Congregação que ela fundou. Como toda pesquisa qualitativa, esbarrei em algumas dificuldades, como o acesso às entrevistadas – com uma pequena resistência em expor suas vidas íntimas – o contato com os documentos da associação, que estão restritos à biblioteca da Paróquia, além do desafio de interpretar os registros na língua e dileto italianos, conforme mencionado. Mesmo assim, acredito que consegui cumprir com o esperado neste um ano e meio de mestrado. Espero ter levantado questionamentos e apontado algumas respostas diante deste tema tão complexo e, ao mesmo tempo, tão lindo. Estou disposta a continuar estudando, contribuindo com o protagonismo dessas mulheres.

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151

FONTES DE PESQUISA

1. Fontes manuscritas: Arquivo da Paróquia São Virgílio de Nova Trento-SC.

Documentos da Pia União das Filhas de Maria: 1. Libro delle Ufficiali della Pia Unione delle Figlie di Maria (1902-1957) - Livro das Oficiais da Pia União das Filhas de Maria (1902-1957); 2. Registro delle Aspiranti alla Pia Unione delle Figlie di Maria (1902-1955) - Registro das Aspirantes à Pia União das Filhas de Maria (1902-1955); 3. Registro delle Figlie di Maria (1902-1955) - Registro das Filhas de Maria (1902-1955); 4. Lettere Spettanti alla Pia Unione delle Figlie di Maria (1903-1916) - Cartas pertencentes à Pia União das Filhas de Maria (1903-1916); 5. Diario della Pia Unione delle Figlie di Maria (1903-1937) - Diário da Pia União das Filhas de Maria (1903-1937); 6. Libro delle consulte della Pia Unione delle Figlie di Maria (1903-1946) - Livro de consultas da Pia União das Filhas de Maria (1903-1946); 7. Congregação Mariana Nossa Senhora de Assunção (1958-1962); 8. Congregação Mariana das Moças (1958-1964).

2. Fontes orais (por ordem de gravação):

Z. T. D. – Entrevista concedida à autora, gravada em Nova Trento, no dia 08 de fevereiro de 2018.

E. M. C. V. – Entrevista concedida à autora, gravada em Nova Trento, no dia 09 de fevereiro de 2018.

A.I. M. V. – Entrevista concedida à autora, gravada em Nova Trento, no dia 06 de abril de 2018.

Renzo Maria Grosselli – Entrevista concedida à autora, gravada em Nova Trento, no dia 07 de abril de 2018.

I.G.B. – Entrevista concedida à autora, gravada em Nova Trento, no dia 19 de maio de 2018. 152

3. Sites pesquisados (por ordem na dissertação):

“Estatísticas e Indicadores Turísticos - Estudo da Demanda Turística Municipal 2018”. Disponível em: , acesso em 20 de março de 2019.

Paróquias da Arquidiocese de Florianópolis-SC. Disponível em: , acesso em 14 de março de 2019.

População de Florianópolis, de acordo com o censo realizado em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: , acesso em 14 de março de 2019.

População estimada de Nova Trento, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: , acesso em 20 de fevereiro de 2019.

Número de Dioceses e Paróquias em Trento (Itália). Disponível em: , acesso em 23 de maio de 2018.

“As aparições” (Nossa Senhora de Lourdes). Disponível em: , acesso em 20 de março de 2019.

“O sentido da vida” (1984), filme produzido por Monty Python. Disponível em: , acesso em 10 de janeiro de 2019.

“Quem somos” (Companhia de Jesus). Disponível em: , acesso em 17 de agosto de 2018.

“São Pedro Fourier – santo do dia”. Disponível em: , acesso em 14 de outubro de 2018.

“Padroado”. Verbete elaborado por Cézar de Alencar Arnaut de Toledo, Flávio Massami Martins Ruckstadter e Vanessa Campos Mariano Ruckstadter. Disponível em: , acesso em 05 de outubro de 2018. 153

“Nossa Senhora das Graças e a Medalha Milagrosa”. Disponível em: , acesso em 15 de outubro de 2018.

“A história da composição do hino Regina Caeli”. Disponível em: , acesso em 24 de março de 2019.

“13 de junho: Santa Aquilina, Mártir”. Sacra Arquidiocese de Buenos Aires (Igreja Ortodoxa). Disponível em: , acesso em 20 de março de 2019.

“A prática da mortificação cristã”. Fraternidade Sacerdotal São Pio X, com sedes em São Paulo (SP) e Santa Maria (RS). Disponível em: , acesso em 26 de fevereiro de 2019.

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APÊNDICES

APÊNDICE A

Roteiro de questões

Grupo A: As Filhas de Maria:

A – Dados pessoais: • Nome completo • Idade • Estado civil

B – Perguntas: 1) Quando você ingressou nas Filhas de Maria e com que idade? 2) Quem a incentivou? Seus pais ou a própria Igreja? Ou foi por vontade própria? 3) Quais eram as principais regras a serem seguidas na entidade? E quais as proibições? 4) Alguma Filha de Maria foi expulsa na sua época? Qual o motivo? 5) O que fazia nas horas vagas quando não estava na Igreja? 6) Quais as principais atividades e quais os dias da semana? Todo dia, uma vez na semana ou uma vez por mês? 7) Qual a razão de terem tantas reuniões? O padre informava? 8) Por que tinha que usar roupas brancas e véu na cabeça? 9) Você como Filha de Maria já contestou alguma norma ou alguma situação imposta pela entidade ou pelo padre? 10) Alguma regra ou algo que você viveu permaneceu com você até os dias de hoje? E foi repassado para seus filhos e netos?

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Grupo B: Entrevista com o sociólogo e historiador, Renzo Maria Grosselli:

A – Dados pessoais: • Nome completo • Idade

B – Perguntas: 1) As Filhas de Maria existiam no Trentino (século XIX, antes da imigração)? 2) Se existiam, por que era mais forte a atuação em comunidades trentinas? 3) Qual era a congregação que regia o povo do Trentino? Jesuítas? 4) Vieram padres junto com os imigrantes? Como eles coordenavam as atividades? 5) Era comum no Trentino esta relação forte ou de influência dos padres com as mulheres e a comunidade? 6) Como ocorreu a transplantação da religião católica para o Brasil? Eles tentaram “copiar” o que eles tinham na antiga Europa?

APÊNDICE B

Breve perfil das entrevistadas - Filhas de Maria:

Nome Pseudônimo Idade Estado Idade que Data da (abreviado) criado para Civil ingressou nas entrevista identificá-las Filhas de Maria

ZTD Célia 83 anos Viúva 13 anos 08/02/2018

EMCV Elvira 81 anos Casada 17 anos 09/02/2018

AIMV Alcina 89 anos Viúva 13 anos 06/04/2018

IGB Helena 80 anos Casada 12 anos 19/05/2018

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APÊNDICE C

Transcrições das entrevistas:

1) Célia110 (ZTD), 83 anos. Entrevista concretizada no dia 08/02/2018 – bairro Salto, Nova Trento-SC.

Quando a senhora ingressou nas Filhas de Maria e com que idade? Eu tinha 13 anos. Quando a gente tomava a primeira comunhão, dali a gente já ia pra Cruzada Eucarística e ficava até os 12 ou 13 anos. Com 13 anos a gente já ia pra Aspirante a Filha de Maria. Depois com 14 a 15 anos já ganhava a fita larga, a fita definitiva de Filha de Maria.

A aspirante ganhava que tipo de fita? Uma fita estreitinha, da cor verde. Depois ganhava a fita azul, mais larga. Fiquei até os meus 23 anos, quando eu casei. E comportadas também, né? Tinha que ser, né?

Quem a incentivou? Seus pais ou a própria igreja? Ou vontade própria? A minha mãe era muito católica, né? E ela sempre sonhou que as filhas fossem todas Filhas de Maria. E toda ela, foi: eu e todas as mais novas foram Filhas de Maria. A família é que orientava, e depois o padre - tinha o padre Afonso Kurso naquele tempo. Era um santo aquele padre. E era também um encaminhamento, depois da Cruzada a gente ia direto para as Filhas de Maria. Era uma coisa que não precisava forçar muito. Era tudo encaminhado já.

E a sua mãe também foi Filha de Maria? Não, não. A minha mãe não era de Nova Trento. Ela era de São João Batista (outra cidade). E lá não tinha isso. Ela casou e veio morar aqui e aí ela seguiu as regras da nossa igreja.

Como eram os nomes dos seus pais? A minha mãe era M. J. de O. e o meu pai era T. T.

Quais eram as principais regras a serem seguidas na entidade? E quais eram as proibições?

110 Pseudônimo criado para manter em sigilo a fonte. 157

As regras eram: todo primeiro domingo do mês a missa das 6 horas. Tinha uniforme naquele tempo: vestido branco. Depois da missa (de mais ou menos 1 hora de duração) – não sei se você chegou a ver aquela capelinha do Bom Conselho atrás da Igreja, tinha uma capela – em jejum, a gente ia lá pra aquela capela e ficava mais de uma hora em reunião com o padre.

E tinham retiros? Eu fiz duas vezes retiro, em Vígolo (bairro 5 km distante do centro). Mas não era muito de fazer retiro. No meu tempo, não. Mas era um tempo bom.

Mas quais eram as regras que a igreja passava? A gente tinha que rezar muito. Não tinha muita reunião, era uma vez por mês. Depois era usar sempre manga comprida, não podia manga curta. Não podia ir a baile e nem espiar. E um domingo por mês tinha a hora santa, às 6 horas da tarde. E aí tinha que vir com o uniforme de Filha de Maria também.

E o uniforme era como? Branco, abotoado, podia ser “godê”; o meu era godê. O modelo não interessava. Só tinha que ser “afogadinho” e de manga comprida.

E a saia? Muito comprida? Sempre abaixo do joelho.

Isso era só nos domingos de missa? Nos outros dias podiam usar outra roupa? Sim, mas era mais manga comprida naquele tempo. Por causa do padre, naquele tempo. Porque tinha o Padre José da Poian que não podia ver ninguém de manga ¾. Tinha que ser comprida a manga. Até o punho. E principalmente Filha de Maria.

E por que não podia dançar? Eu lá sei porquê? Eles não deixavam. E nem espiar não se podia. Eu sei que tinha aquelas “domingueiras” no Giacomelli e do Piazzera – nós tinha que ficar lá no Hospital (na outra rua), não podia ficar aqui na frente.

Porque vocês podiam passar na frente... Não podia passar e nem parar. 158

Mas como vocês faziam? Se a estrada principal era ali? Aí passava por trás, pela outra rua. E aí gente paquerava aí naquela estrada, pra cima e pra baixo... (risos) Senão a gente ficava naquela praça. Ficar ali na frente do Tell não podia, de jeito nenhum. Proibido.

E uma outra coisa que minha vó comentava eram dos jogos de futebol. Vocês também não podiam assistir aos jogos de futebol? Não, eu ia de vez em quando. Mas naquele tempo era as nossas mães que não deixavam. Sabe que naquele tempo, né? Era as nossas mães que não deixavam. Por conta da religião. Sei lá porquê que era. Não deixavam, porque menina tinha que ficar em casa, né? E depois os pais batiam muito em cima, sabe? Mulher tinha que ficar em casa. Mas ao final de tudo... a gente viveu!

E aquela regra que não podia andar de bicicleta? Agora quando chegou no meu tempo, não. Não tinha mais essa regra. Mas não podia usar calça comprida. Usava só saia ou vestido. Aqueles “godê” duplo, sabe? Andava de bicicleta, aquilo... ush!

E pra fazer essas roupas? Era fácil? As costureiras. A Elvira111 era uma costureira. Ela costurava muito bem. Tinham muitas costureiras. Muito mais que agora. Eu tinha uma irmã que costurava também. Quem costurava muito mesmo era a mãe da Cleonice Tomasi. A Filomena. Uma costureira muito boa. Ela costurava muito para as Filhas de Maria.

E a senhora fazia o que nas horas vagas? A senhora trabalhava? Eu trabalhava na fábrica, comecei com 12 anos. Eu morava aí onde mora o Nico Corsi (bairro Cascata, próximo ao centro da cidade). E a fábrica era logo ali. Trabalhava no tear, fazendo tecido. A gente pedia pra trabalhar, porque precisava, né? Para ajudar a família. Meu Deus! Aí quando eu casei eu saí. Eu trabalhei até casar.

111 Uma das entrevistadas desta dissertação. 159

E depois do casamento? Não quis continuar na fábrica? Meu marido tinha açougue. E morava aqui dentro, né? (no bairro Salto, um pouco distante do centro). E ele disse pra eu ficar em casa pra ajudar ali, né? Eu ajudava a vender carne e etc... (risos)...

Alguma Filha de Maria foi expulsa na sua época? A senhora lembra a situação e qual foi o motivo? Teve uma que engravidou e foi expulsa. Ela namorava e depois casou com o mesmo homem. Porque naquele tempo se engravidava, casava, né? Naquele tempo tinha isso...

E a senhora conheceu esta moça? Conheci. Mas não vou dar o nome.

Ela já faleceu? Ainda não, mas está muito doente. Ela nem “acerta” mais nada. E ela era amiga...

E na época quem expulsava? O padre? O padre.

Quem coordenava eram as freiras também, né? Também, elas ajudavam. Mas o que mais fazia ali era o padre. E tinha a presidente. Até a Elvira foi presidente também das Filhas de Maria.

A senhora ocupou algum cargo nas Filhas de Maria? Eu ajudava na diretoria, mas de presidente eu nunca fui.

E a senhora participava no Centro ou em outro bairro? Não, era tudo aqui no centro. Mesmo se morava longe, concentrava tudo ali.

E se morava longe? Ah, elas vinham. Elas vinham a pé ou de carroça. Não se perdia a missa naquele tempo, sabe? Vinha gente de tudo o que é lado. Às vezes passava às 3 horas da madrugada gente. Porque a missa às vezes era às 5h ou às 6h. Era um tempo bom, pra falar a verdade.

160

A senhora tem saudades? Eu tenho. Foi uma juventude... tinha muita amizade naquele tempo. A gente era muito unida. Porque só tinha uma igreja e juntava... a gente vivia sempre juntas. Até hoje a gente se conversa. A gente ia pro Morro da Cruz, o Padre Afonso ia, toda a segunda-feira subia o Morro. Ele ia a cavalo e a gente acompanhava. Quase toda segunda a gente ia. (Morro da Cruz é o Santuário Nossa Senhora do Bom Socorro, que fica a 5 km do centro e está situado a 525 metros de altitude). E tudo de pé. Mas era uma beleza. (risos). A gente tava sempre unida. Isso que era bom. Era uma amizade bonita. E depois o mais bonito também era o 8 de dezembro (Dia da Imaculada Conceição) e 15 de agosto que tinha aquelas procissões. A sexta-feira santa. Naquele tempo tinha procissão. Era uma festa linda. Então a gente sempre se unia nestas festas.

A entrega da medalha era nestas datas? Das Filhas de Maria era uma vez por ano, eu acho. Que lembro bem era uma vez por ano.

Tinha uma cerimônia específica para entregar a medalha? Aham. Pra entregar a fita e a medalha. No Apostolado da Oração também era uma vez por ano. Mas era uma coisa bonita, sabe? Uma cerimônia bonita. A igreja toda bonita. Aí tinha a missa, tudo... A igreja cheia. Depois eles faziam a entrega, ia lá na frente perto do altar, lembro bem.

Como foi a cerimônia da senhora? Foi assim também? Sim, a gente tinha uma turminha que ia, né? Mais ou menos da mesma idade. Era Cruzada e já entrava nas Filhas de Maria.

E a Cruzada era uma preparação para a Primeira Comunhão? Depois que tinha a primeira comunhão. Era tudo gurizada, né? Com fita amarela, nunca me esqueço. O vestido branco também. Era como uma escola, sai de um ano, vai pro outro.

E a crisma tomava quando? Depois, a gente tava bem preparado. Antes de entrar nas Filhas de Maria. E durante também podia. 161

Mas pra gente tomar a primeira comunhão tinha uma... (ushh!, se visse!) doutrina, né? Catequese de agora. Era doutrina naquela época. Agora eles não precisam mais decorar as orações tudo, né? Hoje pergunta se eles sabem os dez mandamentos? Os meus netos são os primeiros que não sabem. Porque é tudo por escrito, né? Tinha o catecismo, era um livrinho assim (gesticula com as mãos) e aí tinham todas as orações, tudo ali tinha que aprender. Tudo! Tinha que saber tudo de cor.

Quais eram as atividades das Filhas de Maria durante a semana? Quanto mais missa a gente fosse, melhor era, durante a semana. Aquele tempo era mais rezar do que... mas quanto mais missa a gente ia, melhor era.

Porque na minha pesquisa junto à paróquia tinham algumas atividades que vocês tinham que cumprir, por exemplo, durante a semana ler o livrinho tal... Sim! A gente tinha umas tarefas em casa. Ler os mistérios. Coisa assim. Ler estes livrinhos. O catecismo eles chamavam. Mas o mais mesmo era a missa, o terço, porque naquele tempo tinha terço todo o domingo, né? De tarde, às 6 horas, e uma vez por mês era obrigação e a hora santa.

Como era a hora santa? A hora santa a gente rezava, rezava...Depois, no fim, o padre dava a benção do santíssimo. Na igreja a gente entrava, ficava rezando o tempo todo. Uma hora, mais ou menos. Aí depois ficava cantando, rezando... E quando a gente terminava as orações tudo, o padre fazia um “sermãozinho”, aí ele dava a benção do santíssimo. Quando terminava a gente ia pra casa. Uma vez por mês tinha que ir naquela missa das 6h, pra depois ir a reunião lá trás, né? E tinha uma hora santa às 3 horas da tarde, um domingo por mês, também era obrigação. Mas aquilo a igreja enchia... sabe? Lotava.

É diferente de hoje em dia? Meu Deus! Não tem mais essas coisas... Como pras crianças domingo de tarde, não tem... naquele tempo era a doutrina, que a gente dizia, né? Era a catequese agora. Mas era todo domingo.

Qual a razão de terem tantas reuniões? O padre informava o por quê? 162

Ah, ele explicava. Falava muito dos santos, explicava... depois ele ensinava muita coisa, né? Pra pessoa se comportar... essas coisas... Porque naquele tempo tinha que cumprir as leis de Deus. Naquele tempo era isso. Pra ser Filha de Maria tinha que cumprir o que estava determinado. As leis de Deus, eles falavam.

E por que tinha que usar a roupa branca e o véu? Pois é! Ninguém sabia porquê. Porque eu acho que as santas de antigamente usavam e a gente tinha que usar também. O branco era porque é Maria, né? Eu acho. Eu acho que era isso, sim. Por conta de Nossa Senhora. E o véu? Pra falar a verdade, nunca foi explicado. Era porque tinha que usar. E o véu era branco, tudo branco. Cobria a parte de trás. Até pelo ombro. Pena que naquele tempo não tinha fotografia como agora. Não batemos foto com o véu. Como nas procissões tinha também cada uma linda... na procissão também tinha que ser tudo com o véu. Véu e fita. Sexta-feira Santa, Corpus Christi. Ou Imaculada Conceição. Eram as principais. Mas era lindo.

Você, como Filha de Maria, já contestou alguma norma ou alguma situação imposta pela entidade ou pelo padre/ freira? Não, nunca. Porque a gente cumpria direitinho as regras, né? E gente achava que aquilo é que era certo. Então a gente fazia tudo direitinho. A gente já sabia que tinha que usar, por exemplo, o véu. Não desobedecia, sabe?

E tinham muitas meninas que queriam ser freira? Tinha, bastante! Meu Deus! Aqui mesmo tinha muita mesmo! Eram juvenistas. Mas ficavam só no convento, né? Naquele tempo. Elas não saiam pra fora. Elas eram separadas. Na igreja elas vinham tudo em fila, né?. E não saíam do convento pra passear... pra essas coisas... Lá era oração mesmo de verdade, né? Ali onde hoje é o CEIC (Centro de Encontros Imaculada Conceição). Mas tinham muitas naquele tempo. Algumas iam dar aula aí no colégio também.

Com que idade iam para as freiras? Ah, iam novinhas. Acho que com 12 ou 13 anos. Começavam novinhas pra ir pras freiras. Eu tinha uma irmã, ela foi com 18 anos. Já era uma moça já. Mas as minhas cunhadas foram todas novinhas. 12 anos, parece. Nem entrava para as Filhas de Maria. Já ia direto.

163

E quem não era Filha de Maria? A senhora conheceu alguma? Tinham muitas naquele tempo. Essas que gostavam de dançar, não adiantava, elas não iam. Porque senão não podia ir dançar, né? E naquele tempo já tinha o Carnaval. Elas não entravam. Naquele tempo os pais escolhiam (pro casamento). Não é que eles obrigavam, mas escolhiam se era de família boa.

Com a senhora também foi assim? Não, comigo não. Mas conforme o namorado que as mais velhas (irmãs) arrumavam, se não era de família boa, como eles diziam antigamente, eles não deixavam namorar.

Mas o que era família boa? Ahh... se era bem católico. Naquele tempo era assim mesmo. Preferiam que fosse gente de Nova Trento. O meu pai era tinhoso. Ele queria que as filhas casassem tudo com “italiano”. Meu pai era. Ele não gostava. (risos)

Cuidado com os “brasiliani”, como dizia minha avó. “I brasiliani”. Uma vez tinha uma amiga minha que era Filha de Maria, e ela arrumou um namorado e ele era evangélico. Em Claraíba tinha muito (outro bairro em Nova Trento, colonizado por famílias alemãs). E os “alemão” aí da Fábrica eram tudo protestante, né? (da cidade de Brusque-SC). Não entravam na igreja, nada. Depois quando eram mais velho o Paulo alemão (um senhor da cidade) era até músico. Aí ele entrava na igreja e tudo. E essa minha amiga era Filha de Maria e arranjou este rapaz de Blumenau. E quando foi pra casar, o padre queria casar ela atrás do altar. Porque ele não se batizou na católica. Eu sei que deu um “barulho” danado. O Padre não queria casar. Aí ela... a família dela não era contra, porque ele era um rapaz bom, né? Aí foram, foram... Ainda hoje ele não se batizou, mas ele é uma pessoa, olha, precisa ver. Ele acompanha ela na igreja, tudo... Aí se eles não casassem, ela ia se “ajuntar”, e naquele tempo... Meu Deus! Era o fim do mundo! Aí o padre casou. Mesmo não sendo batizado. Porque se “ajuntasse”, o pecado era do padre, de certo, né? É como agora não querer batizar crianças de pai e mãe “junto”. A criança não tem culpa. Né? Mas tinha padre aqui que não batizava. Os padrinhos também. Se eram “junto”, não podia. Agora acho que já estão tolerando um pouco.

E como eram os namoros? 164

No meu já era mais... vinha no terço de tarde, aí aproveitava, né? Todo domingo. Aí a gente tinha, porque ia tudo, a mocidade toda ia pro terço. Só se visse! Aí a gente aproveitava pra paquerar.

Tinham paqueras então? Ô se tinha! Mas aí de noite não podia sair. Era sempre na praça, por ali. Aí eles acompanhavam a moça, né? Ai, meu Deus! (risos)

Tinha que pedir permissão para o pai? Iii, quantas vezes! Quantos que precisavam pedir!

E você também foi pedida em namoro pro seu pai? No meu não, porque eu já tinha quase 24 anos e ele tinha 42. Ele era bem mais velho do que eu. Ele era açougueiro, acho que tu conheceste. Irmão do Bepi. Ele era solteiro. Mas naquele tempo se fosse uma moça namorar um separado, Deus me livre! Aquela que engravidava era o fim do mundo! Agora já é demais.

E a senhora casou com 23 anos. Como foi essa passagem das Filhas de Maria para o casamento? A gente namorava e, quando era para casar, tinha o noivado – e naquele tempo a gente noivava 6 meses, o mais longo. Mas aí antes do casamento tinha que ir lá no padre, ficava lá meio dia. Era o padre. Agora eles dão curso de noivos, mas naquele tempo era com o padre. Era um perigo. Tinha que ficar aí escutando o padre. Ele passava todas as recomendações pro casamento.

E quais eram essas recomendações? Ahh... que tem que se dar bem, tem que se respeitar, essas coisas, sabe? Mas naquele tempo era até bom, porque a gente não conversava, não era uma conversa aberta que a gente tinha. Deus me livre conversar em sexo naquele tempo! Iiiii, na frente da minha mãe, ainda mais! Era muito difícil. A gente casava quase inocente.

E vocês casavam com a fita de Filha de Maria, não é? Sim, casava com a fita! Depois do casamento aí tirava. Aí já ia direto pro Apostolado (da Oração). 165

E você guardou a sua fita? Eu guardei e, quando eu casei, fiz uma mudança e eu acabei perdendo a minha fita. E tinha aquela que quando falecia ia com a fita também. Se morria uma Filha de Maria, naquele tempo era assim. Era de branco e com a fita no velório, se morria antes de casar. Era uma coisa assim, mas até que era bonito. Dá saudade. Agora é uma mistura, que tu não tem quase mais nada. Tinha uma separação de cada coisa. Pra nós que passamos por aquele tempo, a gente estranha um pouco. A gente faz que aceita, mas por dentro não. Porque... mudou muita coisa! A religião mesmo... Hoje eles fazem o teço de homens e mulheres? Mas e a juventude? Que é a principal... Não vão! Mas hoje eles trabalham, estudam... naquele tempo não tinha estudo. Anoitecia era todo mundo dentro de casa. Rezar o terço e às 8h da noite a gente ia pra cama.

E na igreja, as meninas ficavam separadas dos meninos, não é? Sim!! Ai de quem olhasse pro lado de lá! Não podia olhar pro lado de lá. Não se podia cruzar com um e outro. Sempre foi!

E a missa das Filhas de Maria iam só mulheres? Sim, tinha a missa das Filhas de Maria e, depois, dos Congregados Marianos. Era um domingo cada um. Porque depois da missa eles também tinham a reunião, sabe? Era como nós. Era um ritual bonito, até.

Você também pegou esta fase do padre rezar de costas pra igreja? Sim! A gente ficava lá no coro, cantando. E rezando o terço aqui em baixo. Nós era do coral das Filhas de Maria. Eu, a Terezinha... a Irani Merizio, a Adelaide Darós, elas tinham uma voz! Que era a coisa mais linda! Era lindo aquele tempo! E às vezes então os Congregados também cantavam com a gente! Mas, não sempre! Que eles tinham o deles também. E ficava lá no coro, na parte de cima da igreja. Era bonito! Até a Banda ia lá (Banda Musical Padre Sabbatini). Era lindo aquele tempo! Muito bonito! Cantava em português e o padre rezava em latim, virado de costas pra nós. Aqui em baixo o povo rezava o terço. Mas é mais bonito assim, hoje, com o padre virado pro povo! Ficou mais bonito, porque o povo acompanha a missa. Antigamente a gente não entendia nada em latim. Só rezava o terço, cantava... era bonito, olha, francamente! 166

Daquele tempo acho que não tem ninguém do coral... e da banda que tocava! O João Valle era o cantor!

A senhora teve quantos irmãos, no total? Eu tive 9 (vivos), comigo 10. Sou a mais nova dos irmãos. E tive 9 filhos também.

2) Elvira112 (EMCV), 81 anos. Entrevista concretizada no dia 09/02/2018 – bairro Cascata, Nova Trento-SC.

Como era o ingresso na cruzada e pré-cruzada? Depois da primeira eucaristia a gente passava por esta fase, né? A pré-cruzada e depois a Cruzada Eucarística.

A pré-cruzada era quanto tempo? A preparação logo depois da comunhão. Mais ou menos um ano. A gente tomava a comunhão muito cedo... com 6 anos ou 6 anos e meio já tomava a primeira comunhão. A gente vinha de berço quase, né? Quando eu tomei eu ia completar 7 anos no mês seguinte. Depois da cruzada, aí passa um tempo, até uns 14 anos mais ou menos. Os rapazes tinham a Congregação Mariana (Congregados Marianos) e nós tínhamos a Congregação Mariana, mas feminina. Então eram as Filhas de Maria.

Quando que a senhora ingressou nas Filhas de Maria? Quando eu ingressei eu tinha uns 17 ou 18 anos.

Mais tarde, então? É... porque a gente não podia cortar o cabelo. Aí eu comecei a usar trança. Quando eu era bem nova eu já usava (trança), mas aí eu comecei a cortar. E fazia permanente, coisa que não se podia na época. Aí quando eu casei, ainda tinha o cabelo comprido. Porque eu era Filha de Maria e não podia cortar.

112 Pseudônimo criado para manter em sigilo a fonte. 167

Não podia cortar quanto? Não podia ser curto demais. O meu vinha até a metade das costas, assim. Eu tinha bem comprido.

E por que essa medida dos cabelos? Não sei o que é que tinha. Era pintura, não se podia usar. Porque era tipo um “recato” para as Filhas de Maria. A gente também não podia olhar/espiar baile, domingueira... Eu queria ser Filha de Maria, mas por conta do cabelo eu fiquei um tempo sem participar...

A senhora gostava de dançar? Eu não... até que não era muito, mas eu gostava de sair, passear... mas dali a gente tinha que ter um pouquinho mais de... cuidado... de recato... de se manter, né?

Quem incentivou a senhora a entrar nas Filhas de Maria? Seus pais ou a própria igreja? Os pais já faziam gosto, né, que a gente pertencesse, só que eu queria ser freira ou missionária, e meu pai disse que não, que eu era a única filha moça, né?

Ah, então a senhora queria ser freira? Sim, queria. Mas queria ir para as Missões. Não queria pra ficar por aqui. Não sei se é porque elas incentivavam na doutrina, nas coisas assim, porque a gente vivia no convento, né? Nós vivíamos lá no convento. Era pra preparação pra primeira comunhão, nós íamos ensaiar bailados e coisa... jardim da infância. Eram só as Irmãs que estavam lá...

As Irmãs coordenavam as Filhas de Maria? Também coordenavam, mas nós tinha a presidente, tudo certo, e o padre que era o diretor, né...

O padre era uma espécie de diretor espiritual? Ele era nosso diretor espiritual. Ele vinha, fazia as reuniões. Tínhamos reunião uma vez por mês, a comunhão espiritual, a reunião, nós tínhamos retiro, uma vez por mês também... Eu sei que a gente fazia... não era o dia todo, mas a gente fazia aquela parte de oração...

A senhora contou que foi presidente. Como era ser presidente desta entidade? 168

Logo que eu entrei como Filha de Maria... porque depois com 23 anos, nem tinha 23 anos eu casei, né? Eu fiquei um tempo com a fita verde, de aspirante, depois então recebi a azul... aí quando já recebi a azul eu já passei pra secretária, fazia a ata... Depois de secretária eu fui pra presidente. Era feita uma eleição, ali na reunião, né? Era feito, assim, não por voto, mas era por aplausos (aclamação). A gente tinha que estar na frente de tudo, né? A secretária anotava tudo na ata que a gente fazia, mas a gente tinha que organizar as reuniões, organizar as procissões... ficar tudo na frente, né?

Quais eram as procissões que havia à época? Nós tínhamos que participar de todas as procissões que tinha na igreja. Corpus Christi, nós fazíamos o mês de maio, os terços da noite do mês de maio (mês de Maria), mês de outubro eu não lembro, mas às vezes a gente fazia o mês de outubro, por conta do mês do rosário. Porque outubro é o mês do rosário, então nós fazíamos. Às vezes não se participava todo dia, mas a gente procurava sempre... tínhamos o retiro que a gente fazia, mas era bastante assim... era uma vida dedicada à igreja, à religião. Depois nas festas, também, nós tínhamos como que vender bilhetes na roda do bingo, a gente dizia roda da fortuna naquele tempo... A gente ia ajudar os outros que eram os coordenadores da roda, né? Até tenho aquela foto... (ela mostra a foto)... fizemos uma saia diferente, para sermos distinguidas na festa, né? As que trabalhavam, que ajudavam lá...

Era como um uniforme para ser usado na festa? Era a gente que fazia, né? Era uma saia bem assim, coisa... Depois nos teatros também... eu participei muito em teatro, né? Nós fizemos “O amor de duas mães”, que era como um filme de Nossa Senhora, e uma mãe que perdeu um filho. Então eu encenei este. Eu era a filha. Eu tinha estas fotos, mas como falei no início elas desapareceram daqui... Não sei se emprestei o álbum pra alguém e alguém tirou... e eu não sou capaz mais de encontrar... A outra que encenamos foi a Paixão de Cristo, eu fiz a Madalena, porque eu tinha cabelo comprido. Então fiz a Madalena aos pés da cruz. Quem era o Cristo naquele teatro era o Alcides Sgrott, já é falecido. E aí quando eu tava assim, aos pés da cruz, ele disse: cheira chulé! (risos)... mas nós estava encenando, não podia rir, nem nada, né? Fiz a mártir Aquilina (Santa Aquilina)... é a história de uma santa, Santa Aquilina. Eu fiz a mártir. Eu tinha que ser decapitada. Eu digo: e agora, como é que eles vão me matar aqui no palco? 169

O seu José Poli, que era o que ensaiava, né, aí ele fez a cena... ficou tão natural, que o povo lá em baixo ouvia chorar, chorar... ali no salão paroquial. Teve vezes que a gente foi até representar fora. Fomos pra São João Batista, Brusque... Dona Osvalda Gessele, ela trabalhava, também, no mesmo tempo que eu. Ela era a minha mãe, sempre. A Idalina Sgrott, mulher do Dilo Merizio... tinha bastante naquele tempo... Outro “Entre dois corações e uma perna” também eu fiz... Quando eu era bem pequenina, eu encenei o teatro “Os Morangos” ... então eu ia colher morango e cantando... O teatro era muito forte aqui... trabalhei com o seu José Poli o tempo todo...

Mas voltando, quais as principais regras que vocês tinham que seguir como Filhas de Maria? Não podia entrar na igreja de manga curta... na igreja tinha que ser manga comprida e véu na cabeça, né? As mulheres todas, não era só as Filhas de Maria. Agora faz um tempo que eles tiraram, né? No nosso tempo... Nós tínhamos que vir com a fita, o véu, o vestido branco... o véu era larguinho assim (gesticula com as mãos), meio compridinho, a gente colocava na cabeça. Aí tinha a fita no pescoço, o vestido de manga e abaixo do joelho. Ainda hoje em dia eu às vezes visto uma coisa mais curta, mas a gente estranha... só que agora todo mundo usa... a gente estava acostumada sempre abaixo do joelho... agora eu subi um pouquinho... mas nem tanto, né?

Os bailes também não podiam espiar, né? Sim, os bailes sim... também em casa a gente não... pra namorar era só até aquela hora e depois...

Que horas mais ou menos? Nove horas (noite)... na casa dos pais. Ele vinha na casa da gente de tarde, ia pra casa jantar, e depois voltava, porque não era nada na casa da mulher (almoços, jantas). Só depois de noivo, e olhe lá!

E namoravam na sala? Como era? Tinha que ser na sala, sob as vistas dos pais, eles estavam sempre por aí... Era bem rigoroso. Meu pai também... se fosse sair pra alguma coisa, um irmão tinha que vir junto. Eles deixavam a gente ir, mas um irmão tinha que ir junto.

E nos bailes, então, a senhora nunca foi dançar? 170

Não, baile difícil. Nunca fui. (ela diminui o tom de voz) Antes a gente até ia, quando não era Filha de Maria, dar uma olhada, assim... Quando dava da gente sair, dar uma “enganadinha”, mas antes de ter namorado, né? Porque se tivesse namorado, não ia. Era bem rigoroso.

A minha vó falava também que não podia assistir aos jogos de futebol... Na minha época não era assim. Era mais liberado. Porque eu ia assistir lá no Humaitá (é uma sociedade recreativa, que tem em Nova Trento). Eu ia às vezes. Às vezes! Não sempre! Mas quando dava a gente ia. Antigamente era bem mais rigoroso do que a gente, né? Do que do nosso tempo...

Mais alguma coisa que vocês tinham que cumprir... tipo, em casa, vocês tinham que fazer alguma coisa? A gente tinha que dar o bom exemplo, né? Ser bem recatada no vestir, em casa também, não era só na igreja... Uma roupa bem sóbria, que não fosse muito aberta... como agora, isso aqui eu nunca usei (mostra a roupa – uma regata de manga curta), nunca usei quando era nova. Nunca, nunca... Em casa a gente até usava até aqui (metade do braço, ela mostra com as mãos), mas na igreja não... Pra usar uma manga curta, a gente tinha um casaquinho de tecido, que colocava por cima. Pra poder ir pra igreja! (risos)

E as orações? Algo que vocês tinham que cumprir? A consagração à Nossa Senhora, que a gente fazia. Hoje em dia eu também eu faço. Todo o dia que eu levanto e eu consagro meu dia à Nossa Senhora. A gente foi já desde aquele tempo... O que a gente mais fazia, que era mais curtinha a oração... era aquele... “Lembrai-vos que vos pertenço terna Mãe, Senhora nossa, guardai-me e defendei-me como filha própria vossa”. E tem o canto também... e nós cantávamos nos encontros lá... a gente cantava. Era bonito! Nós tínhamos o nosso coral também das Filhas de Maria, a gente cantava as missas. Eu e a Irani fazíamos o sólos... a gente ensaiava. Eu participava de tudo! Eu gostava de participar!

Alguma Filha de Maria foi expulsa na sua época? A senhora lembra o motivo? Na minha época mesmo, eu não lembro de ninguém. Mas antes teve uma que foi expulsa porque foi vista num baile, né? Se a gente fizesse “permanente”, também já iam contar pro padre (risos)... 171

A senhora sabe quem é que foi expulsa? Não lembro... Mas se usasse pintura (no rosto) também não podia... tinha que ser como é mesmo... Hoje em dia, esses tempos o padre, não sei como é que a gente tava falando, Padre Benno, porque agora eu sou ministra da eucaristia... nós estávamos falando em brinco e ele disse: “mas ministro não tem que usar estes brincos, não tem que usar enfeites”. Aí eu disse: “meu Deus, será que isso também?” Aí eu me lembrei do meu tempo, né? Como Filha de Maria... mas naquele tempo eu acho que eu usava (brinco)... Eu falei pro padre: “porque a gente se acostumou a usar, né?”

Porque a Célia113 falou de uma moça que foi expulsa por ter engravidado... Aí era expulsa mesmo... eles não aceitavam nada disso... Meu Deus! A gente tinha que nesse ponto ser bem... bem.... firme!

O que a senhora fazia nas horas vagas quando não estava na igreja? Meu serviço normal. Eu costurava... vinham as freguesas que queriam que eu fizesse alguma roupa, porque naquele tempo não tinha “roupa feita” pra comprar, né? Só as madames compravam... porque elas iam nas “boutiques” caras, né? Mas aí nós fazíamos, porque eu aprendi o corte e costura com a minha tia, irmã da minha mãe, Inês Tomasi. Depois eu costurei um tempo com ela, pra praticar bem e depois eu costurava por minha conta. Não cheguei a trabalhar na roça... A minha mãe costurava roupas para homens... calças, né? Porque eu tenho 5 irmãos homens. E depois veio mais duas meninas... pra pagar pra fazer custava muito, por isso ela aprendeu a fazer calça, e depois ela costurava para outros também. A gente pagava imposto pra poder costurar pra fora, porque não se podia, assim... Era “Imposto sobre serviço de qualquer natureza”... a minha mãe quando chegou uma certa idade ela conseguiu se aposentar, mas não por costureira... se aposentou não sei como... e conseguiu se aposentar! E eu quando quis me aposentar, aqueles anos tudo que eu costurei... e disseram que aquele tempo foi passado coisa pra Brusque e lá pegou fogo as coisas tudo... e eles não tinham nada guardado.

E como compravam os tecidos?

113 A entrevistada citada e transcrita anteriormente. 172

Tinham as lojas de tecido. A do seu Irineu era uma. Trabalhei um ano, antes de casar, na loja. A gente comprava o tecido aí, e depois tirava a medida na pessoa e aí fazia a roupa. Continuei trabalhando depois de casada, mas não costurava tanto por causa dos filhos... pra pagar empregada era mais... aí não dava. Ainda assim fazia roupa pra Zita, pra Eda... costurava pros meus irmãos... as minhas cunhadas... fiz vestido de formatura delas, foi tudo eu que fiz. Vestido comprido, vestido de casamento... Meu... costurei! O da Valéria eu que fiz, o da Lurdes do Mário, que era irmã da Valério, eu que fiz... O meu vestido de casamento foi minha tia Inês que fez... ele era godê duplo, e a blusa era de renda. Eu sei que a gente dava jeito!

Então as principais atividades que vocês tinham como Filhas de Maria, talvez eu já tenha perguntado, durante a semana, ou todo dia... Tinha que participar da missa, de manhã. No dia que a gente pudesse... se não pudesse todo dia, mas a missa era às 6h da manhã... ia na missa e depois vinha pra casa pra trabalhar! Do retiro e da reunião das Filhas de Maria era de domingo, mas durante a semana nós ia de manhã, às 6h. E de domingo tinha uma às 5h da manhã, mas nós não participava dessa. Era para gente de mais de longe, que vinha cedo pra depois voltar cedo pra casa. Tinha gente que vinha de longe, porque era missa só na igreja. Depois tinha às 6h e às 9h. De tarde não tinha missa naquele tempo. A tarde nós tinha a hora santa – no primeiro domingo do mês. Ali nós tinha que vir também, às 3h da tarde, de vestido branco... Um dia depois da hora santa a gente bateu esta foto (aí ela me mostra a foto daquele tempo, todas com vestido branco).

Qual era a razão de terem tantas reuniões por mês? O padre informava? Ahh... sim... era feito um relatório de todas as coisas que tinham que ser feitas... tal dia era uma coisa, outro dia outra... Um pouco era pra passar informação, um pouco era pra gente rezar... e participar das coisas todas assim... e dar mais informações pra gente... e dar mais, assim, como catequese... pra gente estar mais por dentro das coisas de Nossa Senhora... desde aquele tempo a gente ia... (gesticula com as mãos).

Com relação a Nossa Senhora... era falar dela ou da história? Da história, da vida dela... como ela era, né... pra gente ser também, um pouco, como imitando... como Nossa Senhora... ser pura de coração, tudo assim... poder servir como ela servia... E isso valeu pra vida da gente! 173

Quanto tempo durava a reunião? Era depois da missa... uma meia hora... a gente fazia aquele encontro, passava as informações, a gente lia a ata e depois era falado no que tinha feito naquela semana... se tinha alguma festa que a gente tinha que ir ajudar na igreja... se tinha alguma adoração que precisava ir... porque naquele tempo tinha que servir o altar, o sacristão... hoje é nós ministros que fizemos.

Então vocês ajudavam a igreja? Sim, ajudava sempre! Não eram todas as vezes, pois muitas não podiam, mas as que eram mais... eram escaladas, às vezes, e aí elas escolhiam turmas para ajudar...

A limpeza da igreja também ficava com vocês? Limpeza da igreja, naquele tempo, nós não fazíamos. Mas tinha uma turma, que era do Apostolado da Oração. Depois que eu casei, eu fiquei um tempo sem... né... porque a gente saiu das Filhas de Maria, aí eu recebi logo a fita do Apostolado, só que eu não participava das atividades todas, né? Mas depois que elas começaram a reorganizar a turma, cada semana ou era o mês – tinha a turma de uma “valada” que ia fazer a limpeza, uma vez por semana – na igreja. Quando chegava o nosso mês, eram quatro semanas, era tudo nós. Tinham as Irmãs, as juvenistas que também ajudavam no cuidado com a Igreja.

Por que tinha que usar a roupa branca e o véu na cabeça? O branco era a pureza, né? Porque a Nossa Senhora é virgem, ela foi mãe, virgem e mãe. Aí tínhamos que usar... as vestes mais decentes, porque era uma moça mais recatada, mais decente. Hoje em dia não tem mais nada disso. Às vezes eu digo para as minhas aqui: esses filhos de vocês, as meninas andam tão “peladas”... ah, no meu tempo! A minha mãe e a minha vó ver uma coisa assim... hoje teriam se escandalizado. A minha mãe dizia sempre... que seria a minha bisavó, a vó dela, eu conhecia ela até... estava bem doente de cama... ela dizia sempre: “Noialtri no, ma fioi dei nostri fioi...” (nós não, mas os filhos dos nossos filhos é que vão ver coisa!)

A senhora como Filha de Maria já contestou alguma norma ou alguma situação imposta na época? Acho que não... eu sempre aceitei tudo, né?

Não usar o véu, por exemplo... 174

Não, não... Eu pra mim o que é pra ser, é sagrado. Como eu digo para elas como ministra agora: eu fiz a promessa de que o padre tinha que me dizer, a senhora não dá mais pra ministra. A senhora tem que se afastar. Senão eu, por mim, não me afastaria nunca. Aí a presidente dos ministros, nossa coordenadora disse: não, você pode atuar bastante, porque você é bem ativa. Eu disse: não sei se por muito tempo eu posso... só que eu não posso me afastar por livre vontade, porque a minha promessa é ficar até que dá. Aí eu falei pro Padre Benno também. Ele disse: a senhora é bem ativa, a senhora deveria continuar. Aí eu tô ficando, né? Só que eu disse: então me dispensem só da igreja, porque tem que subir aqueles degraus e às vezes tem um pouco de dificuldade. Eu sempre levei a comunhão nas casas. Já faz 20 anos que eu levo, principalmente pros doentes. Daí eu sempre atuei na igreja também. Eu disse: agora então me dispensem só das missas na igreja... Padre Benno disse: esse eu posso deixar, mas a senhora pode continuar a entregar a comunhão pros doentes. Esse eu faço. Eu levo, tenho os doentes que eu faço as casas... toda primeira sexta-feira. Já morreu tanta gente... tinha uma velhinha de 93 anos... ela morava aqui em cima... quando eu chegava na casa da filha... ela pegava as minhas mãos e beijava, beijava, beijava... Dona Cecília, o nome dela. Dona Cecília, por favor, o que a senhora está fazendo... Você não sabe o bem que você está fazendo. Continua! Eu não vim para vocês me agradecer, eu vim para cumprir a minha missão. Ela não sabia como me agradecer. Depois ela faleceu, coitada! Teve tantas... bem doentes, que eu chegava... minha tia, morreu com 97 anos, eu chegava, ela dizia: ai, Elvira, que bom que tu vieste!

A senhora foi Filha de Maria... e a sua mãe, sua vó também foram Filhas de Maria? Não lembro da minha mãe ter falado... mas eu acredito que ela tenha sido, porque era da família Tomasi... eram tudo de igreja, que meu Deus, né? Tio Virgílio que era da Banda...

E a Banda tocava quando tinham eventos das Filhas de Maria? Tudo... era tudo a banda que abrilhantava as festas da igreja.

Como era quando a moça queria ser freira? Ela tinha que fazer o pedido, falar para as Irmãs que ela queria ser freira... elas organizavam tudo, falavam com os pais, né? E tinham que ver certo, se era uma coisa certa... aí ela fazia primeiro como juvenista, depois aspirante e depois tinha mais um grau... e tinham todos aqui em Nova Trento (no CEIC – Centro de Encontros Imaculada Conceição). Elas vinham todo dia pra missa pelo caminho, porque o caminho era só pela estrada geral, porque lá trás não tinha... 175 era tudo das Irmãs a parte de trás daquela rua, onde é o colégio... passavam tudo pelo portão da frente, tinha um caminho de entrada... onde hoje é o Banco do Brasil... e ia até lá no convento. Ela laranjeira de um lado e do outro... Nós passávamos as tardes lá! Nós ia à doutrina lá, ia ensaiar...

E a senhora não conseguiu ser freira porque seu pai não queria... Ele não deixou, porque eu era única filha, né? Depois que veio... porque ele não queria deixar eu sair... Eu estudei até o 4º ano no grupo escolar, né? Que era o Lacerda Coutinho! Estudei aí e depois as Irmãs saíram, entraram os professores normalistas... aí veio o diretor, eu me formei na 4ª série, porque naquele tempo a gente estudava até o 4º ano, né? Eu digo: o que vocês fazem em 8 anos, a gente estudava em 4. Hoje em dia eu pergunto: vocês estudam os rios, os afluentes de rio, de cada país da América do Sul, nós tínhamos que saber! As cidades principais... até o 4º ano nós tinha que saber. E a gente pra dar conta, tinha que estudar. Aí o diretor disse pro meu pai: a sua filha era bom que continuasse os estudos, porque ela tem cabeça boa. Mas aí eu tinha que ir pra Tijucas (outra cidade, que fica a 30 km de Nova Trento). Tu acha que ele deixou? Uma moça ir pra Tijucas... se fosse um rapaz ele deixava...

Ah, não podia? Não, porque a moça tinha que cuidar em casa... não é que tinha que cuidar, eles é que cuidavam da pessoa da moça, porque a moça não podia estar exposta. Sabe como é que era, né? A gente tinha que ser uma moça recatada, não podia ser uma moça qualquer... cuidar da pureza da moça, porque tinha que sempre casar virgem... naquele tempo era isso! Os pais se preocupavam com as moças por causa disso... com os moços já não era tanto... Os moços podiam fazer tudo o que queriam, mas as moças tinham que estar ali! Na rédea! (risos)... Só que hoje em dia a gente diz: foi bom, né? A gente aprendeu...

A senhora tem saudades? Como é o sentimento perante este passado? Eu tenho lembranças boas! Sempre que eu falo pros meus filhos... sempre no nome dos meus pais, da minha mãe, do meu pai... meus avós, sempre assim com orgulho. Porque eles passaram pra gente só coisa boa! Hoje eu digo pros filhos: eu tento passar pra vocês, agora vê se vocês passam pros filhos de vocês! A gente tem que conservar isso, né? Aí elas me dizem: mãe, tudo, tudo mesmo hoje é por causa da liberdade hoje em dia... é muita televisão, aprendem de tudo, 176 né? Mas de vez em quando a gente pega os netos – que são tudo mais altos do que eu – eles me pegam no colo. (risos) Eu tive 8 filhos e tenho 16 netos. Meu marido é o W. J. V. É Maria e José (risos). Meus pais: H. J. C. e M. L. T.

Como a senhora conheceu seu marido? Como Filha de Maria era um pouco difícil, né? Ele mandava recado... eu passava e eu era muito envergonhada! Ele dizia: mas porque ela não olha pra gente? E dizia também: essas tranças me levam! (risos)... porque eu usava tranças... E ele de vez em quando me mandava recado, mas eu não respondia... aí foi passando, foi passando...

Ele era Congregado Mariano? Não, ele nunca foi nada... ele tem um irmão dele que é bispo. Bispo de Joaçaba (outra cidade de Santa Catarina). Mas agora ele é bispo emérito, porque vai fazer 80 anos. Mas ele me mandava recado pela Solange, porque ele trabalhava com o pai da Solange. Me mandava recado pela Solange. Ai eu dizia: não sei... vou ver, vou ver... Era tudo recado de boca, nada de papel. Aí depois ele pediu para se encontrar... aí nós se encontramos, aí foi indo, foi indo...

E ele pediu permissão pra namorar com a senhora? Primeiro a gente começou a se encontrar. Só podia ser ou lá na praça (em frente à igreja) ou a gente se via nas festas, e a gente conversava um pouco. Uma vez ou outra ele passava aqui (na casa dela). Se eu tava por perto ele parava... aí ele olhava... (risos)... Aí quando ele chegou mesmo pra namorar, teve que pedir pro meu pai... aí ele vinha em casa namorar... depois ele passou um ano no exército no Rio de Janeiro... aí a gente se escrevia. A gente começou a se conversar com 14 anos. Eu nem era das Filhas de Maria. Mas a gente não era... era uma vez ou outra um recadinho... namorar mesmo com 17 anos só... um ano e meio depois ele foi pro Rio... a gente se escrevia... aí depois logo que ele veio, faleceu o pai dele... mas a gente casou antes (que o pai falecesse). Já vai fazer 59 anos (casados). Casei em 1959. Já faz bastante tempo! Faz bastante tempo que a gente se atura! (risos).

177

3) Alcina114(AIMV), 89 anos. Entrevista concretizada no dia 06/04/2018 – bairro Centro, Nova Trento-SC.

Quando você ingressou nas Filhas de Maria e com que idade? Olha, aquela idade... espera, eu era bem nova... eu tinha uns 16 anos... acho eu... mais ou menos isso. Era nesta faixa.

Quem a incentivou? Seus pais ou a própria Igreja? Ahh, é... eram os pais. Obrigavam. Obrigavam a gente a ir... vai fazer parte das Filhas de Maria! Porque antigamente era só Igreja, né? Nunca que meu pai deixou pra ir num baile ou qualquer coisa... Nunca, nunca!

Os pais obrigavam as meninas... e os meninos? Os meninos eram “cruzadinhos”. Eles eram menores (os meus irmãos). Éramos em 15 filhos. Tinham uns 5 ou 6 antes de mim. Aí então a Iolanda (mais velha), não, tinha o Onildo, mais velho, e morreu logo, depois veio a Iolanda, morreu com 14 anos – deu uma “congestão” de pinhão. Meu pai viajava e trazia pinhão. À noite então eles pegavam, faziam uma fogueira e cozinhavam o pinhão. E não tinha médico naquela ocasião. Só tinha o Guilhermino, um curandeiro... não sabia nem o que era. Então os irmãos participavam desta Cruzada Eucarística.

E a senhora também participou da Cruzada? Não. Eu não cheguei a participar, porque eu fui pro convento. Eu fiquei 5 anos lá. Eu fui quando eu tinha 8 anos. Meu pai começou a colocar na cabeça da gente, né? Aí eu fui me agradando e, fui!

Assim novinha? Sim, assim novinha. Aí eu estudei piano, eu estudei muita coisa lá... e, depois, então, tinha uma freira, que era muito ruim... então ali não deu certo pra mim. Fiquei 5 anos, ainda assim... E tinha a madre Mentrudes, era a presidente ali, né? E cheguei a ver a Madre Paulina (Santa Paulina) quando ela esteve aqui naquela ocasião.

114 Pseudônimo criado para manter em sigilo a fonte. 178

Chegou a conhecê-la? Sim... então... tinha a Irmã Marta também... que era da “Vigolana” (Bairro Vígolo, localizado a 5 quilômetros do centro, onde hoje está o Santuário Santa Paulina). Dessa eu gostava. Mas a outra que era... cuidava das juvenistas, né? Tinha as juvenistas, tinha as postulantes... noviças... era tudo aí... (no CEIC – Centro de Encontros Imaculada Conceição, que no passado se chamava Juvenato São José, onde ocorria a formação das jovens moças na Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, fundada por Santa Paulina).

E aí a senhora saiu.... Porque não deu mais... ela era... parecia ser uma coisa... (muda o tom de voz)... estava sempre em cima de mim! Eu sofri muito com ela (com esta freira). Até quando a Madre Paulina veio, fizeram aquela festa, a turma de São Paulo veio (onde é hoje a sede geral da Congregação) e ela voltou. Porque eu cantava no coral... aí a nossa mestra disse: “quem quiser ir aí visitá-la (a referida Irmã), ela está aí no convento”. Eu disse: “Deus me livre!” E os outros coralistas falaram: “Ui, dona Alcina...” Mas eu disse: “não quero mais nem ver aquela mulher! Ela me prejudicou muito!”

Mas em que sentido? A senhora pode me explicar? Eu não podia fazer nada! Porque a Irmã Maria Julia sempre me convidava para fazer os dramas (as peças de teatro encenadas na cidade), bailados... e essa freira não queria. Eu era convidada porque... eu sempre fazia o papel principal.

E ela não queria que a senhora participasse? Não, não queria que eu saísse (do convento) para participar. Aí a Irmã Maria Julia ia lá e obrigava. Aí havia uma briga com elas duas.

E a senhora saiu com que idade de lá? Eu saí.... eu já tinha.... 13 anos, eu acho.

E a senhora voltou pra casa? Sim, voltei pra casa. E dali então... os meus irmãos começaram a dizer na mesa, principalmente o Danilo e o Nelson: “Pai, agora dá um balaio pra ela, que ela vai pra roça”. Meu pai tinha vacas de leite... a gente morava próximo da casa do Ary Sgrott (antigo prefeito da cidade). Aí eu comecei a chorar... sabe, menina, né? Inexperiente, nova, nunca fui a nada, só ali... então aí eu 179 contei tudo o que passei aí... Depois que eu contei, eles me pediram desculpas... Porque naquela época eu tinha asma e ela achava (a freira) que eu tinha que ir na roça também... pegava o balaio, a enxada e ia... mas tinha épocas que me dava muito forte a asma. Não dava de respirar. E, um dia, eu lembro, “me fiz” que estava dormindo. Eu estava na cama. Mas todo mundo já tinha ido pra roça.

Tinham que trabalhar aí dentro do convento? Sim, sim... aí ela veio fazer a “ronda”. Eu fiz que dormia... mas eu estava com “pianço” (som provocado pelo broncoespasmo), eu estava agoniada, com falta de ar. Eu fiquei muito tempo assim. Depois eu tomei um remédio – 5 vidros de... já esqueci o nome... porque já faz muito tempo... aí eu melhorei! Até engordei um pouco, mas nunca mais me deu! Dizem que na velhice voltava, mas até agora não...

Aí a senhora ficou em casa para depois ingressar nas Filhas de Maria? Eu fiquei trabalhando um pouco... eu fui lá no Lageado (um bairro da cidade)... eu e uma filha do Horácio... nós fomos substituir – porque a gente só fez até a 4ª série, porque não tinha outro... Lá no convento a gente estava, tipo, para ir a São Paulo, para fazer o ginásio, mas aí eu continuei aqui... Então, porque não tinha professores, a gente substituía. A Antônia Deluca foi uma que substituí. Eu fazia isso aí. Mas dali a gente foi namorando e tal... eu casei com 19 anos... dali nasceram os filhos... e aí tudo foi caminhando...

Mas eu gostaria de entender como era esta entrada nas Filhas de Maria... Eles convidavam. Mas até meu pai... quando eu fiz permanente (no cabelo), mas eu não sabia! (exclama forte). Eu fiz permanente para ficar mais prático, né? Aí, então, quando meu pai soube, ele não gostou não... ele quase me colocou pra rua... Quando eu fiz isso eu tinha de 16 pra 17 anos. Era moda na época. E depois eu achava bonito! Sempre gostei do cabelo meio ondulado. Eu sempre fui muito vaidosa quando era mocinha, né? A gente se arrumava bastante! Pode perguntar pra tua mãe... a tua mãe me conhece!

Mas aí a senhora foi expulsa das Filhas de Maria? Sim, fui expulsa pelo Padre José da Poian.

Como acontecia a expulsão? 180

Ele dizia na cara, aí, ó, na reunião. Eu fui pra reunião, né? Na reunião, então, ele falou. Aí a primeira coisa que ele disse: “a Alcina está expulsa das Filhas de Maria”. (a voz muda um pouco neste momento). Aí perguntaram por quê? “Porque ela fez permanente”. Já diziam o motivo na hora. Na cara.

Aí a menina já saía da reunião naquela hora? Saía, saía. Ficava com vergonha, também. Porque naquela época a gente era muito envergonhada. Depois a gente foi pegando... sabe como é, né? Confiança! A gente era muito “tola”... tudo a gente aceitava!

E naquele momento a senhora falou alguma coisa? Não, não disse nada. Peguei e saí. Depois, então, a Helena, que era minha irmã... eles voltaram depois, foram atrás... até passavam aí, aqui na frente tinha o Correio... passava e pegava o folheto, que a minha mãe era assinante da Ave Maria. Era uma revista. Tinha o Eco, a minha mãe era assinante... nós íamos no sótão, né... então ela colocava tudo lá... primeiro ela lia, porque a minha mãe foi professora. (ela quer dizer que eles foram atrás da família para pedir desculpas, mas para ela já era tarde)

Ela chegou a ser Filha de Maria também? Não. A minha mãe era professora lá na Velha (outro bairro da cidade). Era professora mesmo. Elas iam pra Blumenau de carroça para participar das reuniões, porque não tinha carro naquela ocasião. Carro de mola. Até eu tenho, inclusive, uma foto dela aí... usavam chapéu... elas eram chiques! E naquela ocasião, tu vê! Elas formaram também um clube que... tinha jogo do Humaitá (sociedade recreativa da cidade)... e elas iam torcer! Com roupa e tudo... tudo igual! Torcida organizada! O lacinho azul e branco (cores do clube).

E podia assistir aos jogos de futebol? Elas iam. Era tudo “bancada”, tudo aberto. Era só tábua. (descreve onde esta torcida organizada ficava no estádio de futebol)

É que minha vó contava que era proibido assistir aos jogos de futebol... Não... naquela época não era assim. Eu ia assistir aos jogos de futebol. O meu marido jogava também, no Humaitá. O Oscar, o Olderico... eu tenho bastante fotos deles... A gente fazia um “fogo” para “eles ganhar”. Torcida! 181

Mas, continuando... quais eram as principais regras que tinham que ser seguidas pelas Filhas de Maria? Isso aí eu nem lembro mais! Porque depois eu saí... fiquei pouco tempo!

Quanto tempo a senhora ficou nas Filhas de Maria? Mais ou menos um ano.

Mas enquanto a senhora estava na entidade... Nas reuniões, nós tínhamos que estar todas de branco... tinha uma “paramenta” branca, porque eu me lembro que veio o bispo uma vez...aí então deram “pra mim” pra fazer o discurso pro bispo.

Então a senhora tinha bastante oratória? Opa! Eu tenho a foto ali. Toda de branco, com a medalha e a fita azul. Já o Apostolado da Oração é vermelha, né?

E a manga e a saia? Tinha que ser comprida. Bem abaixo do joelho, a manga também... Deus me livre! A Rosita (sua filha) uma vez foi a missa... não sei se ela te contou... e o padre não deu a comunhão pra ela porque ela estava de manga curta. Ela era uma menina ainda. Ela chorou tanto, tadinha... uma paixão! Eu lembro daquela vez! Agora ela está com 66, 67 anos...

A senhora quando recebeu a fita, era feita uma cerimônia? Como era a entrega da fita? Entregavam aí, na Igreja mesmo. Eles faziam uma fila...onde a gente vai tomar comunhão, aí entregavam a fita, colocavam na pessoa. Na minha época eles só “davam”. Só entrava, colocava o nome e davam a medalha.

A senhora foi expulsa por conta do cabelo. Não podia cortar? Eu fiquei pouco tempo aí, porque logo fui expulsa. Dali eu não sabia mais do que tinha acontecido. Nem eu e nem a Helena (irmã dela) não fomos mais. Minha irmã também não quis mais ir, porque ela sentiu a mágoa (pela situação que Alcina passou). Era uma situação, né?

A senhora guardou alguma coisa que ficou até hoje? 182

Não. Só a foto eu tenho.

Não digo de lembranças, mas digo em relação a alguma mágoa... Não, não...a gente perdoa. Eu fui sempre uma pessoa assim, ó, de não guardar, aquela mágoa com a gente. Eu digo: a vida é tão curta, pra que, né? Pra que a gente levar adiante, né? E eu sempre gostei, assim,... e o Oscar (seu marido) também falava – conversávamos muito... eu sempre gostei que a família ficasse unida, de qualquer jeito, seja lá o que for! Mas eu sempre gostei dela unida. E sempre perdoar! Porque nada se leva desta vida! Só se leva o que tu fizeste de bem.

Pergunto isso, porque talvez são valores que, porventura, você tenha passado para os seus filhos... Não... e nem para ir no convento. Porque as meninas até diziam: “ó, mãe, eu gostava de ir pro convento”. Eu dizia: “Deus me livre!” Não incentivei. Sempre dizia, vou amar os meus filhos... o dia que eu casei, eu disse: eu vou amar a família que eu construir, eu vou amar, e eles vão ter liberdade, como eu nunca tive na minha vida. Aqui eu tô, um tipo, prisioneira... e era assim, com todos os filhos (fala em relação aos seus pais, do passado). Porque meu pai era rígido, ele era ruim... em matéria de igreja... pelo amor de Deus! A minha mãe não... minha mãe já era mais... tranquila! Muito boa pra gente... mas, ele? Ele nunca que ficou ali... conversando com a gente... ela sim, a mãe! Mas o meu pai não...

Era assim com as meninas ou com os meninos também? Com tudo!

Tinham os congregados marianos, né? (para os meninos) Sim, mas lá em casa ninguém foi. Eles ficaram, assim, “cruzadinhos”, mas depois foram embora (mudaram de cidade)... O Luiz Alberto pegou emprego e foi embora... trabalhava no governo e viajava muito. O Danilo também... Ele foi estudar para padre também, mas depois não quis mais saber! Desistiu! Uma vez, o Padre José da Poian... porque o Nelson (seu outro irmão) e um Marchi (outra família da cidade) estavam juntos e ficavam aqui na igreja com os padres, ajudavam ali, dormiam ali... e um dia, o Luiz Busnardo ele disse... porque não tinha rádio. O primeiro rádio e a primeira TV quem tinha era o Luiz Busnardo. Ele espalhou: “quem quer ouvir o Papa falar, vou colocar a televisão bem lá em cima da janela – tinha uma casa mais alta – quem quiser escutar, pode vir”. Dessas televisões comuns. Aí eles pegaram – quando os 183 padres estavam dormindo – os dois fugiram, porque tinha um portão grande (na antiga igreja matriz da cidade, chamada Sagrado Coração de Jesus), um portão de ferro, bem grande, na frente. Então eles pegaram, saíram, encostaram, pra depois voltar, e escutaram o Papa falar... Quando voltaram, já era 10 horas, e o padre José da Poian estava atrás do portão escondido com um pau. Ele pegou os dois. O outro fugiu (Marchi), e quem apanhou foi o Nelson (seu irmão). O Nelson foi parar no hospital. Quase morreu. Aí eles queriam que o meu pai “botasse” ele na justiça, aí a mãe não quis. “Não te mete com padre”. Ahh, sim! Ele foi, ficou uns dias no hospital. Estraçalhou ele.

Ele era enérgico? Sim, ele era. Foi ele que me expulsou das Filhas de Maria.

A senhora conheceu alguma outra Filha de Maria que foi expulsa? Não. Não lembro. Faz tanto tempo, né? Tem tanta coisa na cabeça e a gente vai esquecendo. Foi uma época, assim... sei lá! Depois que eu entrei pro coral, aí eu aproveitei a vida! Aí a gente passeava muito! Íamos para Porto Alegre, fomos a Santa Maria... porque o Padre Guido (se ordenou padre e era regente de corais) e aí nós fomos na cidade dele, em Santa Maria.

A senhora já era casada quando foi pro coral? Sim, já era casada. Nós tínhamos o Elói (outro regente), este aí (padre Guido)... e quem começou o coral São Virgílio (coral tradicional da Paróquia São Virgílio) fui eu mesmo! Eu e o Irmão Orlando – não sei se tu chegaste a conhecer! O Orlando cuidava do seminário (dos Jesuítas, que tinha na cidade). E eu comecei com os seminaristas. Eu e o Irmão Orlando nós íamos lá no convento, que tinha o harmônio (similar ao órgão), pra ir lá com os meninos, pra formar um “coralzinho”. Quando tinha a missa, a gente participava. Eu levava a Glória (sua filha), ela tinha 13 anos. A filha da Inês, a Sônia, a Dida, a Teti da Iolanda... tudo da mesma idade, e a Mirela... as quatro vinham comigo... aí foi indo... fomos cantando... depois veio o Irmão Guido, ele era Irmão, começou a estudar em Brusque (cidade próxima a Nova Trento). Estudou em Brusque e, depois, se formou padre, lá em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Aí ele pegou! Pegou a Irmã Rosarita (freira da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, fundada por Santa Paulina) para tocar órgão e ele maestrava. Aí ele pedia pra mim: “a senhora pega, convida umas pessoas que tem uma voz boa, 184 pra formar um coral maior”. Aí ele convidou os homens – tudo casados – e as minhas também eram casadas, algumas solteiras... elas tinham um amor por aquele coral... era a vida! Que elas nunca tinham nada, né? Eu cantava muito... mas eu fui operada, me colocaram uma sonda... então acho que afetou a minha voz. Eu canto hoje, mas num tom mais baixo. Na Igreja não, porque eu tenho medo de cair. Depois que eu fiquei muito doente, aí eu não saí mais. Então eu vejo a missa pela televisão. Eu tenho muito medo. O Oscar caía muitas vezes. A gente vai perdendo o equilíbrio. Eu vou com a minha filha (Glória). Vou no mercado, faço as compras. O Cazinho (seu outro filho) me leva, eu pego um carrinho e aquilo é um apoio pra mim.

(Nessa hora chega seu filho e a entrevista é interrompida. Aí ela aproveita a oportunidade para mostrar seus trabalhos manuais, ponto cruz, crochê... e tabulamos uma conversa informal com seu filho.)

Continuamos minutos depois:

O que a senhora fazia nas horas vagas, quando não estava na igreja? Eu ajudava em casa. Trabalhava em casa. E como eu te falei, como substituta de professora, mas foi pouco tempo também. Quando a pessoa ganhava neném, ficava aqueles 3 ou 4 meses, antigamente era três, a gente ficava ali substituindo, até que ela voltava outra vez.

Eu sei que a senhora ficou pouco tempos nas Filhas de Maria, mas quais eram as principais atividades? Só as reuniões, uma vez por mês. Eu nunca soube de outras atividades, porque eu saí logo. Tinham as orações, geralmente dedicadas à Nossa Senhora.

A senhora lembra de alguma oração? Não. Só a Ave Maria, Pai Nosso, mas outra não.

E como a senhora conheceu o seu marido? Porque geralmente era na igreja... Ele trabalhava com o meu pai. Meu pai tinha caminhão, tinha ônibus... e ele trabalhou de ônibus também. De motorista. Dali a gente foi.... né? (muda o tom de voz)... se conhecendo. E foi o único namorado, mesmo, que eu tive. Namoramos 8 anos. Aquela coisa de criança primeiro e, aí, quando chegou nos 17, aí ficou mais firme, né? Depois ele foi pro exército também. Ele 185 serviu em Blumenau, mesmo na época da guerra (2ª Guerra Mundial). Era o único motorista que tinha no quartel. Era ele que levava os “chefão” por aí... podia comer melhor... porque os outros comiam com.... a turma toda junta! Mas ele comia separado, coisas boas...

É que outras moças que eu entrevistei só se encontravam com os namorados nas festas da Igreja. Comigo também era assim. Nas festas da igreja... não podia se encontrar na rua... Quando fizeram a inauguração da igreja ali (São Virgílio), nós éramos “cruzadinhas”. Arrumaram um “quepe” e a gente trabalhava nas “barraquinhas”, para ajudar a angariar dinheiro para a Igreja. Foi aí que a gente, então, começou a se conhecer. Mas foi tudo muito natural. Aconteceu. Com a Helena (sua irmã) foi a mesma coisa. Todas elas, né? A gente ensaiava também. O Francisco (seu sogro) tinha um “coralzinho”. Então era eu, a tia Emília, a Maria Gessele... nós ensaiávamos aí... a Nair também cantava aí... quando tinham as missas a gente ia cantar no coro, e era o Francisco que coordenava. Uma vez tinha a banda (Banda Musical Padre Sabbatini), outra vez era o coral...

As Filhas de Maria também cantavam? Cantavam! A Helena cantava sempre junto... a Mércia também canta, até hoje, na Igreja de Santa Rita (cidade de Brusque). Todas elas têm voz boa.

A senhora era filha de quem mesmo? Meus pais eram Ângelo e Laura.

E qual a razão de haver tantas reuniões com as Filhas de Maria? Ahh... eles chamavam, tinha que dar a presença... se faltava um pouco de reunião, era expulsa também! Tinha que comparecer nas reuniões. Isso ali eu lembro!

E o que aconteceu com a sua fita quando a senhora foi expulsa? Ahh... parece que eu entreguei (de volta para a Paróquia). Fiquei aborrecida e entreguei tudo.

A senhora lembra por que tinha que usar a roupa branca? Não sei porquê. Mas talvez era porque a imagem tinha que ser limpa, branca, né? Que nem um casamento, né? Tem que ser o vestido branco, né? Assim, pra nós, então, a Filha de Maria, sempre com roupa branca, abaixo do joelho. Cinco dedos abaixo do joelho. Manga comprida, 186 o véu, e olha, beemmmm fechadinho aqui (ela mostra o pescoço). Nada aparecendo. As roupas sempre bem fechadinhas.

Como faziam as roupas antigamente? Tinham costureiras? Quem fazia para mim era a Helena (sua irmã). Ela era a costureira da família. Ela aprendeu com a Filomena Piva. Uma costureira de mão cheia. Que costureira! Mas perfeito! Ela aprendeu com ela!

A senhora como Filha de Maria chegou a contestar alguma outra regra ou alguma norma? Não. Porque tinha gente de mais idade na minha frente. Aquelas discutiam, avaliavam, porque elas tinham mais experiência ali dentro. Nós éramos, tipo, alunas, né? (risos)

Vocês precisavam se confessar? Iiii.. como! Meu Deus! Hoje ninguém mais, né? Acho assim... que aquilo ali não devia, né? Mas era obrigado! E acho que a gente repetia toda vida (risos) – (ela se refere a falar sempre os mesmos pecados). Nós não fazíamos nada, pelo amor de Deus!

De quanto em quanto tempo se confessava? Acho que era todo mês! Senão o padre não dava nem a comunhão! Era obrigado! Tinha um padre, uma vez, velhinho, não sei se você lembra, um alemão, ele falava alto... Brasileiro porco! (falava o padre). Sabe lá o que o homem disse! Mas a gente escutava!

Na missa, tinha que ir quantas vezes na semana? Se dava a gente ia, mas ia mais aos domingos. Uma ocasião era às 5h da manhã a missa. A minha avó tinha a padaria... então ela pegava, vinha gente do interior pra vir a missa, aí ela dava o café, pãozinho pra elas... ela mesma fazia tudo, inclusive o fermento pro pão. Que pão que era! O trigo era puro!

A senhora atuou por muito tempo no teatro, né? Sim, mas foi antes de casar. Fiz muitos dramas. Tocávamos piano a quatro mãos (durante as peças). Acabava um, começava o outro.

Eram sobre o que? 187

Ah... vamos supor um teatro da vida... um conto... quem tinha era Irmã Maria Julia... um tipo de drama, contar a vida de alguém... como os romances...

Quem construía as histórias? Irmã Maria Julia, que preparava tudo!

E o José Poli? (cineasta da cidade) Organizava o salão (São Paroquial). Ele fazia as entradas... Porque tinha o salão, né? Tinham 3 entradas, então ele pegava, assim, um pedaço de forro, bem duro, e colocava até em baixo... ele pintava, desenhava! Quando ele podia colocar flores, ele colocava também. Ele era muito organizado! Ele preparava o salão que era que... era de tirar o chapéu!

E a senhora era sempre a protagonista... É... é... nós entrávamos, quando era chamado, vinha, quem conduzia ficava embaixo... ficava sempre um tomando conta e, quando a gente esquecia qualquer coisa, já tinha alguém para soprar. Lá então ficavam as Irmãs – que era tudo mais com as Irmãs – elas que organizavam – a maioria era as Irmãs. Irmã Cirene, Irmã Benilde, Irmã Maria Julia, a “chefona” era a Irmã Mércia. Lá naquele salão que era do Marinho Erbs, nós fazíamos drama lá e, aí onde os Marchi tem onde eles fazem móveis, né? Ali era uma escola, e embaixo nós fazíamos as peças. Ali era um salão. Enchia de gente. Não tinha outra coisa. O Oscar (seu marido) tinha ciúme. Não queria que eu fizesse teatro. Porque a gente se arrumava bem, né? Ahhh.... era tudo... Nós mesmos nos arrumávamos. Não era como agora que tem, barbaridade lá que, um faz o cabelo, outro faz a sobrancelha... nas novelas lá, né? A gente tinha um pó... a gente era nova, tinha uma pele boa... qualquer coisa realçava. Usava batom, vestidos longos, compridos e curtos. Mas não muito curto também, porque não podia. A maioria era comprido.

No convento, então, a senhora tinha aula de canto, teatro, piano... Tudo, tudo... Eu queria até continuar, quando eu saí... eu fui por um tempo, né? Aí a mãe disse: “olha, Alcina, a gente vai deixar porque nós nunca vamos poder te comprar um piano”. Naquela época era caro, né? Então não convém. Mas, convinha, né? Convinha porque eu podia ter tocado o harmônio... e eu estava bem adiantada! E ensaiávamos cantos, mas de Igreja, né? Bailado... lá tinha um salão, que era onde as juvenistas ficavam, lá a gente fazia os bailados. Dançar mulher com mulher. Aí o pessoal pagava ingresso para assistir. Sempre dava um dinheirinho pra Igreja. Era muito aplaudido. Tinha bastante 188 público, porque todo mundo ficava curioso. Isso ocorria no CEIC, em cima. A Irmã Rosarita, era ela que tocava piano. Aquela Irmã se chamava Clarinda, aquela que me atazanou.

4) Helena115 (IGB), 80 anos. Entrevista concretizada no dia 19/05/2018 – bairro Centro, Nova Trento-SC.

Quando a senhora ingressou nas Filhas de Maria? E com que idade? Primeiro a gente era aspirante. A aspirante recebia a fita verde. Acho que eu tinha 12 anos, porque logo a gente ficou Filha de Maria, um ano depois, acredito. Aí recebemos a fita azul.

Quem a incentivou? Seus pais ou a própria igreja? Ou foi por vontade própria? Eram mais as amigas. Tinham as outras amigas mais velhas, assim, e depois nós tínhamos sempre uma Irmã coordenadora. Na época era a Irmã Amália Medeiros. Ela era de Biguaçu (outra cidade, próxima a Florianópolis) – a família dela era de Biguaçu, né? Mas ela se dava tão bem comigo, meu Deus! Depois com 23 anos eu saí, fui pra Blumenau, trabalhar na fábrica... meu pai não queria deixar nós tudo na roça, né? Nós éramos em 5 irmãs. Eu, Antonieta, a Benta... então nós fomos! Primeiro fui eu, pra morar na casa de velhinhos, assim, parentes do meu pai, que nós chamávamos de “nonno”(avô) e “nonna” (avó) lá. Bem perto do Hospital Santa Isabel. E ali se chamava rua Bom Retiro. Atrás da casa passava o rio do curtume, acho que lá pra adiante tinha, onde eles lavavam os couros de boi, passava aquela água preta...

Então a senhora foi para Blumenau... Sim, só eu, para poder trabalhar na fábrica, né? Trabalhei na fábrica... e a gente morava lá! E depois a nossa coordenadora, não coordenadora - como é? - a regente da fábrica era dona Amália... (fica um tempo pensativa)... ela era casada com o Ricardo Piazza aqui de Nova Trento, a Dona Carolina! Dona Carol, como nós gostávamos dela!

Mas aí a senhora saiu das Filhas de Maria?

115 Pseudônimo criado para manter em sigilo a fonte. 189

Não, não... não saí das Filhas de Maria! Porque quando eu ia sair, me despedi da Irmã, né? Que era nossa coordenadora, aí ela disse: Lá, você segue as Filhas de Maria de lá, porque lá também tem! Então a gente acompanhava lá, sabe? As reuniões... Tinha em outras cidades também. Em Itajaí também tinham as Filhas de Maria, em outros lugares, né?... E aí a gente ficou... eu fiquei 5 anos, porque depois de lá eu saí da casa dessa tia avó, e fui morar numa casa de “alemão”, onde eles me adotaram como filha. Porque eles tinham 4 filhos (2 filhas e dois filhos), mas a filha mais velha tinha a minha idade, e ela estudou, fez faculdade, foi para São Paulo, tudo... eu ficava com eles, mas eu trabalhava na fábrica...

Mas a senhora pagava um aluguel? Não, não sei se a tua mãe sabia disso, ou sabe, que a gente saía de casa e ia trabalhar pela pensão. Ia trabalhar na fábrica e trabalhava de empregada pela pensão. Aí ganhava, como é que eles diziam? Cama, mesa e banho.

A senhora não ganhava salário, então? Não, da casa não. Porque eu trabalhava como empregada. Da fábrica, sim. Das 7h da manhã, tudo, até ajudar a fazer o almoço, lavar a louça... para uma hora pegar a bicicleta e ir... e lá dava medo! Onde eu morava, pra ir pra rua Sulfabril, é na rua Itajaí... Agora mudou tudo, mas naquele tempo não tinha o movimento de carro como tem agora. Porque ninguém iria de bicicleta. A Adelaide Darós – tua prima, tua parente, ela veio depois de mim, ela se arrumou uma casa de “alemão”, onde a gente trabalhava, mas era chique a casa onde ela “tava” também, né?

E quem indicava vocês para estes trabalhos? As casas? A própria chefe da Sulfabril. E como nós era de Nova Trento, e ela era casada com um homem de Nova Trento, Piazza, ela era de família, não de Claraíba (bairro de Nova Trento), mas de Águas Claras (bairro de Brusque). E os donos da Sulfabril moravam numa rua bem pra lá da avenida, porque antigamente faziam as casas nos morros, como agora que eles estão fazendo casas nos morros... lá era assim! E lá foram minhas primas, do Salto, elas foram trabalhar lá, na casa, para depois ir pra fábrica. E a minha irmã Benta trabalhava na casa do prefeito de Blumenau (na época), Doutor Victor Sassi, na frente da casa em que eu morava, tinham as crianças, ela trabalhava o dia todo, e ia de noite pra fábrica. Não, ela ia de manhã, pra tarde estar em casa, pra de noite, se eles tivessem que sair, reuniões assim... Porque nós trabalhávamos em sessão. E a gente tinha que trabalhar, assim, pra dar produção. Ganhava o pagamento conforme a produção. Na costura, da malharia. Malharia Sulfabril. Agora 190 se a gente passa lá, faz anos que não tem mais nada. Era uma fábrica grande. Nós - é que agora não escolhi ainda, mas eu tenho foto das festas de final de ano, dia 10 de dezembro encerrava tudo, aí tinha um pinheiro grande, nós tudo lá... eu tô bem no meio, tô de óculos... eu usava óculos pra ir de bicicleta! Ai, meu Deus, que festa! Depois a gente se despedia e ia tudo embora! Vinha embora! Quem ia pra , Trombudo, eu tinha colega pra tudo o que é canto! E nós vinha pra cá (Nova Trento), pegava o ônibus – era duas horas, duas horas e meia de ônibus, que era estrada de chão – e a gente chegava. Aqui em Nova Trento, o único cara que tinha “limusine” era o Virgílio Tomasi, pai da Cleo. É! Então, se ele estava aí por perto, a gente já ia “pegar” ele. Eu e as minhas irmãs... Carona, mas ele cobrava um pouco, né? Cada uma pagava um pouco... E, depois, pra vir pra fora, ai que tristeza o dia que a gente saía de casa. Ficava uns 10 dias em casa, passava as festas de Natal, tudo, né? Nossa! E depois quando saía de casa, fazia uma choradeira... É! E a gente vinha poucas vezes pra casa.

E a senhora tinha que conciliar... trabalhava nesta casa, ia pra Sulfabril... E além disso, ia pra missa... Sim, sim... ia pras missas de domingo, tudo! A família era Evangélica, né? A minha patroa era Evangélica e ela era coralista. É! E a filha dela que tinha a minha idade, que ainda a gente se comunica, ela tocava violino no grupo dela. E uma vez me levaram pra Igreja deles... eu conheci! Depois, quando o meu patrão faleceu...ele faleceu justamente na época que faleceu a “nonna” (avó) Queca aqui. Eu já tinha o César pequeno, eu acho... Ah não! Quando faleceu a “nonna”... Já tinha os três (filhos), a Cristiane já tinha dois meses... É! A “nonna” morreu dia 4 de agosto, dia do padre... e a Cristiane nasceu no dia 11 de junho. A “nonna” (sogra) vinha sempre domingo de noite aqui, segurar a neném no colo, pra eu fazer a sopa. E daí, naquela semana que faleceu, recebi uma cartinha, porque naquele tempo não tinha telefone, né? Eu recebi uma cartinha dessa minha ex-patroa, que o patrão tinha falecido. Era o Otto George. Uma das filhas deles (mais nova) mora em Porto Alegre, já é avó, tem os filhos grandes. A mais velha nunca casou. Fez faculdade, morou em São Paulo, mas ela gostava muito de mim, trazia lembranças de lá. Ela diz que de todas as empregadas que sua mãe teve, eu era a única que cuidava bem da roupa dela. Tudo passadinha. Lá, naquela casa, se usava guardanapo, tudo engomado, engomadinho, cada um tinha a sua argolinha, com seu nome... era bem chique!

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E a senhora fazia tudo... limpeza... Sim, sim! Mas, uma vez por semana, tinha a diarista, que fazia a limpeza geral! Pra não “carregar” eu, né? . E, depois, a gente descia, era primeiro andar, o segundo já era nossos quartos, descia no porão, onde tinha o meu quarto e o quarto de visitas, quando outro filho que morava fora vinha. E tinha a lavanderia, saía fora da porta, tinha um gramado “grannnnde”... Onde se estendia a roupa. A casa ficava na Alameda (Rio Branco), onde é o campo do Olímpico (Grêmio Esportivo Olímpico), seguindo vai até a rua Herman Huscher. Depois, tinha uma ponte, que a gente passava, pra ir pro Garcia (outro bairro). Eu tinha colegas lá pro Garcia. A gente ia de bicicleta, domingo de tarde.

E quais eram as principais regras que as Filhas de Maria deveriam seguir naquela época? A principal era a missa. Participar das missas todos os domingos. E quando tinham as reuniões, tinha que participar de reuniões. Eram sempre de sábado à noite. É! Porque sábado... às vezes caía sábado, às vezes era domingo, depois da missa. Porque sábado era o dia que a gente não trabalhava na fábrica. Isso em Blumenau. Já aqui em Nova Trento, as reuniões era todo primeiro domingo do mês! E era dia de Hora Santa, às 2h da tarde. Depois “nós ia” comprar picolé, se reunia todas... uma vez batemos foto bem aí... As reuniões eram no 2º domingo do mês, depois da missa, pela manhã. Naquela época a gente ia em jejum na missa pra poder comungar, né? E íamos pra casa depois das 10h, quando terminava a missa das 8h.

E a fome? “Tutti storni” (em italiano, quer dizer, bêbado/a). Cambaleando e conversando... ia em “turminha” pra casa, a pé. Era assim, mas sei lá, era aquela alegria toda, porque a gente participava. E, ah! Tinha assim também: se uma Filha de Maria cortava o cabelo ou fazia permanente, era expulsa. Já aconteceu.

E na sua época a senhora lembra de alguém que foi expulsa? Que cortou o cabelo e foi expulsa.

E por que o cabelo? Não sei porque... o meu cabelo era comprido, liso... 192

Ah! E teve gente que foi espiar o Carnaval, aí onde é a venda do Busnardo agora, né? Antigamente tinha um salão de baile de Carnaval, né? Aí alguém foi lá espiar... e foi contar pro padre, e o padre expulsou.

E como era a expulsão? A senhora lembra? Na reunião, o padre dizia: pessoa tal, tal... você foi espiar no Carnaval. Você não é mais digna de usar a fita. Então aí o padre tirava a fita e não usava mais. Aí o moço disse: então nunca mais também quero usar.

O rapaz? É, porque ele era Congregado Mariano e o padre tirou a fita, porque ele foi só espiar o Carnaval. E teve, não me lembro mais a moça, que fez permanente, que não sabia que era pecado.

E com relação as roupas? Como é que era? Nós tínhamos que estar bem vestida. Nunca que a gente podia usar uma roupa sem manga. Nunca, nunca, nunca! Uma vez eu fui a missa, mas era missa cedo, e como a gente se vestiu cedo, o “degote” do vestido de trás ficou pra frente, e quando eu fui a comunhão, o padre não me deu a comunhão, porque viu que eu “tava” um pouco “degotada” aqui, ó. Única vergonha que eu passei na minha vida.

Tudo com manga comprida, então? Sim, sim!

E é verdade que vocês tinham que usar roupa branca também? Ah, sim! Ah, sim! Pra ir pra reunião, pra aquela Hora Santa, era tudo de branco. Tudo de branco, com a nossa fita azul. E no dia da reunião, que era no segundo domingo do mês, depois da missa também, de branco.

A mesma coisa acontecia em Blumenau? Tinha que usar roupa branca? Não, não. Lá não tinha essa de usar roupa branca. Ninguém usava roupa branca. Mas, nós mesmas, por educação, a gente só usava a fita azul, por amor. A roupa a gente ia com a roupa que podia, que tinha, com uma manga comprida, não até o punho, mas podia ser mais curta, ¾. Uma vez a minha patroa, costureira fina ela... ela me fez um vestido de um molde, de um modelo que ela tirou de uma revista... era um “tubinho” que se usava, né? Eu tinha um corpo bonito! E 193 ela disse assim: “esse aqui vou fazer como ele está aqui, de manga curta!” Não, ele era sem manga e, depois, vinha um casaquinho por cima, né? Ai eu disse pra ela: “ai, não! Sem manga a senhora não faça! Põe uma manga, porque quando eu vou pra casa, meu pai não me deixa ir a missa com este vestido!” Meu pai era rigoroso também! Então ela disse: “mas você não é vó nem bisavó pra andar com manga!” Essa minha patroa morreu ano passado! Dia 13 de maio, meu Deus, faz um ano que ela faleceu. Ela ia fazer 100 anos. Era minha segunda mãe. Ela me visitava aqui...quando nós casamos, a nossa casa era diferente aqui fora, era o terreiro, tudo, tinham as galinhas soltas... e ela vinha pra puxar o César no carrinho, que era meu primeiro bebê, eles adoravam vir aqui! Ele com Fusca dele... limusine ele dizia (risos)! Ele era representante da Aço Fênix... ainda tenho os talheres que eles me deram do casamento! É! Então, como ele ganhava bem, se achava uma gente poderosa...a sala de visita deles era bem grande, como fosse essa cozinha, com uma mesona grande, grande... eu passava cera na casa, tudo, né? E ela de vez em quando tinha o “encontro do chá”... as mulheres chiques fazem o encontro do chá. E ela fazia isso, os encontros na casa dela, outras vezes nas casas das outras...

Então, entre as regras estavam: não cortar o cabelo, não fazer permanente, não andar sem manga... Mas a manga, nos dias “normais”, podia ser até a metade do braço? Eu acho que até a metade do braço nós usava, sim. É! Não precisava ser tão comprida. E na Igreja tinha alguns dias que precisava usar branco, nos outros dias não, podia ser uma roupa normal. Ah, e se usava o véu branco! “La veletta”! Depois de casada, acho que um ano depois, a minha sogra me fez entrar no Apostolado (da Oração). Ganhar a fita do Apostolado. Aí tinha que usar o véu preto – porque era mulher casada, com a fita vermelha. Mas eu não cheguei a usar o véu preto... o que eu ainda tenho guardado é o da minha sogra, muito bonito, muito trabalhado!

Então a roupa branca não era uma obrigação de toda missa. Não, não... só em duas ocasiões: o primeiro domingo do mês, que era dia da Hora Santa, e no segundo domingo do mês para a missa, às 8h, seguido de reunião.

Eram só as Filhas de Maria que participavam dessa missa ou iam também os rapazes? Não, todo mundo. Todo mundo ia à missa. E, depois, sabe onde tem a capelinha do Santíssimo agora, né? Ali atrás, a gente ia por trás, tinha uma porta, e aí tinha uma outra capela – Capela do Bom Conselho – lá era a nossa capela. Não tinha uma rua aberta (como tem hoje) ali atrás. 194

Era só uma estradinha que as freiras passavam. Depois essa capela foi demolida, porque foi feita uma reforma na Igreja e aí... acabaram tirando. Quando eu passo naquela parede ali da Igreja (São Virgílio), eu sempre lembro que aí tinha uma Capela.

O que a senhora fazia nas horas vagas (quando ainda era Filha de Maria)? Eu trabalhava em casa, meu Deus. Na roça e tudo... Nós tínhamos engenho, né? Aqui no Salto. Ali onde tem os Móveis Baraúna. Aquela ali é a nossa casa, que meu pai fez, que ainda está de pé. Que quando a gente era criancinha, nós “morava” no Ribeirão Mesquita. Nós viemos de muda, ali, de carroça, porque meu pai comprou ali de uma gente que foi embora, mas comprou porque a gente estava tudo morando com os “nonnos” (avós). Meu “nonno” fez uma casa grande, porque ele tinha quatro filhos homens, e achava que cada filho, era como na Itália, tinha que morar junto. Cada filho tinha o seu quarto, e as caminhas para as crianças, tudo junto. Aí o meu pai era o mais velho, trabalhava sempre com o “nonno” fora, fazendo casas de madeira, trabalhava de carpinteiro, fazia casas e engenhos. Eles trabalhavam com engenho. Agora tu imaginas quantas vezes nós com luz – que era lamparina de querosene, ajudava meu pai, lá no rancho, fazer aquela engrenagem, que vai pro engenho... já visse um engenho trabalhando? Nós tínhamos engenho de farinha e de açúcar. Engenho de açúcar é aquela “moenda”, tu põe a cana que vai... e tem aquela engrenagem! E o estudo deles, que as vezes nós “se falamos” assim: onde é que foram estudar para fazer isso? Ele aprendeu com o pai dele. Meu “nonno” fazia isso e o meu pai aprendeu... ele e outro irmão, o tio Atílio, que também trabalhava de carpinteiro. Os Bottamedi vinham com o carro de boi, cheio de cana. Lá nos Dalri também. Tudo, quem tinha roça de cana levava as canas para nós produzir o açúcar. Depois era dividido de meio ou de terço. Porque nós “colocava” o trabalho, né? Nós tínhamos que trabalhar pra fazer! Eles só jogavam a cana lá, no monte, lá fora... e era sempre inverno! Visch! Pelo amor, quando me lembro! Trabalhava direito, na roça, com a cana... plantar milho, plantar batata, colher o milho, tudo... de tudo! De tudo a gente fez! Eu lembro uma vez lá no colégio, a Ivone dizia pra mim... a Ivone quando era mais nova, ela foi empregada da Célia116, que era tia dela. E ela disse pra mim: “nós temos tantos títulos!” Títulos de trabalhar, de ser empregada, de tudo, de tudo!

E a senhora aprendeu a costura depois?

116 Uma das entrevistadas desta dissertação. 195

Sim, sim! Porque não era todo mês que se tinha que fazer farinha! Farinha era sempre no mês de maio e junho, que era inverno, quando tinha a mandioca. Época da mandioca, que vinha aquelas “carradas” de mandioca, que o pessoal trazia pra fazer a farinha. E no sábado, então, quando acabava tudo, a minha mãe amassava aquela massa com açúcar, e ela jogava dentro “finocchio” (erva-doce) e fazia o biju. Ela mexia aquele tacho grandão, que era secada a farinha, fazia o biju. Então, domingo de manhã ou domingo de tarde nós ia tudo... vinha a “gurizada”... Sabe que a nossa primeira catequista foi a Palmira, mãe da Maria do Didi, ela foi nossa vizinha... É! Nós aprendemos as primeiras orações com ela e a primeira escola foi com ela. Que quando a gente foi pra escola, a gente teria que ter feito a primeira comunhão, e ter oito anos. E já entrava lá como se fosse no segundo ano, a gente já aprendia bem pra ir pra escola. Que da nossa casa, até a escola do Salto (bairro), na Capela Santo Antônio, são cinco quilômetros.

A senhora estudou até que idade? Eu cheguei a fazer o 4º ano, porque quando a gente foi pra Blumenau, primeira coisa que mandaram, quando meu pai “levou” nós lá fazer a inscrição e tudo, pediram o diploma da escola. E nós não tinha o diploma ainda. Não tinha recebido o diploma, depois que a gente terminou a escola. Acho que eu tinha 12 anos quando terminei de estudar. Porque nós “tinha” o cafezal também pra cuidar. O pai “deixava” nós ficar em casa, pra apanhar café, pra não perder o café, e a gente se atrasava na escola. Lá trabalhava a minha irmã (se aposentou como professora lá), trabalhava a Estelita Borgonovo, meu Deus quantas professoras que passou! Porque quando saiu as freiras, a minha irmã ficou como diretora. Tudo era uma escola pra nós, tudo era aprendizado. E lá na Igreja a gente frequentava também, o Santo Antônio. As Irmãs “fazia” nós mastigar cebola pra abrir bem a boca pra cantar (risos). Nós íamos no coro cantar. A Irmã tocava órgão e nós, de cima, sabe aquela escada “rolante” (uma escada em formato de caracol). Que alegria nós ir lá em cima pra cantar! Acho que eu tinha 12 anos.

Não era Filha de Maria ainda... Não... porque quando terminou a escola, a gente entrou como aspirante (nas Filhas de Maria).

A senhora passou pela Cruzada Eucarística? Eu não cheguei ser da Cruzada Eucarística. Acho que não. Era da fita amarela, né? Porque nós não “pertencia” à Igreja aqui do centro. Eu morava no Salto (outro bairro). Mas interessante que a gente fez a catequese, primeira comunhão, com a dona Palmira, e fizemos a primeira 196 comunhão aqui, na matriz. Caía sempre no dia de Santo Inácio, e era dia de semana. Vinha pra fora, toda feliz, de vestidinho branco, de pé, com a sandalinha na mão... a mãe, porque o pai sempre trabalhava fora... Porque a dona Palmira, que é mãe da Maria do Didi, ela tinha autorização do vigário, que era sempre o bendito Padre Afonso. É! Era um santo pra nós ele, né? Padre José da Poian era um padre mais “brabo”. Mas, o padre Afonso, nossa...

A minha vó já pegou o tempo do José da Poian... Sim! Nossa! Ele ia no púlpito! Fazia o sermão, ela te contou? Meu Deus, ele batia o punho em cima do púlpito. “Brabo”. É! E o padre vigário, que era o Padre Afonso... nossa! Os dois eram juntos. E naquele tempo tinha sempre o “fratello” (Irmão). Irmão marista, era distinto, tinha uma vestimenta. Tinha sempre um. Depois, no final, foi o Irmão “Zéc”, que acho que você também conheceu. Depois foi embora. Aí não teve mais Irmãos aqui. Sempre jesuíta. Tanto é que...não sei! O padre Egídio às vezes comenta, porque o jesuíta nunca teve diácono. E, agora, é que “tão” estudando pra ser diácono, né? O Mauro vai se formar... Porque “tu vê”, lá em São João Batista é Diocesano, aqui é Jesuíta. Lá é diocesano. São João Batista tem seis diáconos. E tem um padre só. E todos ajudam, todos trabalham. O Luizinho, meu irmão, que é viúvo, mora em Tijipió (outro bairro de São João Batista), perto da Igreja, ele é atuante da Igreja, trabalha, pra tudo o que precisa lá, conserto, qualquer coisa, tudo é com ele. E faz parte do coral da Igreja, ele é ministro... tudo isso, né? E lá eles sempre têm diáconos. Sempre, todo domingo, lá, eles têm... como é que chama, o culto!

Então, entre as atividades principais das Filhas de Maria era: a Hora Santa, as reuniões, as missas... tinha mais alguma coisa que vocês tinham que cumprir e participar? Fazer as novenas... Porque antigamente tinham as novenas de Santo Inácio, tinham as novenas da Nossa Senhora, como agora no mês de maio, né? A gente tinha que participar das novenas, sempre! Em casa era a reza do terço. Era sagrada. Todo mundo ajoelhado na cadeira, pegava até no sono, às vezes, né? Cansado! Mas tinha que fazer o terço. Com os pais, a família toda. Ah! Oferecer o dia pra Nossa Senhora. “Oh, Senhora Minha, Minha Mãe...”, isso, todo o dia de manhã, quando a gente acordava!

Como era a oração mesmo? 197

Você não aprendeu a oração? “Oh, Senhora Minha, Minha Mãe, eu me ofereço a vós inteiramente todo o meu ser, minha incomparável Mãe, guardai-me e defendei-me, como Filha de propriedade Vossa, Amém!” Às vezes a gente escuta na televisão também, né? Isso era sagrada esta oração. E a reza do terço. A Hora Santa, mais que a gente fazia aqui, não era só pra escutar uma palestra, era a reza do terço. Os mistérios, tudo... Depois tinha a bênção do Santíssimo, né? O padre vinha com aquela vestimenta “grannnde”! “Botava” aquele manto, pegar o Santíssimo, né? Pra dar a bênção! Que devoção que a gente tinha, meu Deus! Ah! Pra mim parecia que aqueles raios vinham tudo em cima de mim. Tanta fé e devoção! Foi um tempo bom, que a gente não pode esquecer, né? Às vezes eu penso, assim, meu Deus, Cristiane (sua filha), vocês não podem passar um domingo sem ir à missa! O que vocês fazem dessa vida? Trabalho, trabalho, trabalho... de domingo tem encontro com as crianças, tem aqui, tem lá, tem festinha, tudo... mas tem que ter! Lá na casa, no apartamento da Cristiane, quando nós vamos lá, se escuta a paróquia São Camilo, que fica assim, como se fosse daqui lá no Alcides. Bate o sino. Nós descemos do prédio, de pé, eu e o “Lando”, a gente desce, e vai caminhando, caminhando, chega lá. Eu pensei assim, agora que o Vitor (seu neto) fez a primeira comunhão, quem sabe vai encaminhar pra eles irem à missa. Mas ela me disse, sempre pergunto se eles foram a missa, “mãe, o Vitor tinha compromisso, Vitor foi... agora o Vitor tá na perseverança, quando tem catequese”. Uma vez por mês! Esses tempos foram fazer um retiro... daí ficaram fora, levaram ele, pra ver o salão onde eles iam ficar. Tem que levar o colchonete, que eles vão ficar, conhecer a catequista que fica com eles... e, depois, de manhã, eles tinham o café da manhã, esperavam os pais pra missa das 10h, os pais tudo acompanham a missa, pra depois trazer eles pra casa. Tudo isso, foi agora, esses tempos. É! Tudo... mas é... a vida é diferente, né, do que nós, assim, né?

E as reuniões das Filhas de Maria, como eram? É! As reuniões quem falava era o padre, era a presidente, né? No meu último tempo a presidente foi a dona EMCV (Elvira). Eu tenho uma colega, presidente, mora em Florianópolis, nós “se” comunicamos sempre ainda. Ela tem 88 anos, ela não diz a idade, ela é Archer (sobrenome da família), que morava aqui. Ela vem a ser prima da Carminha. Ela morou no Trinta Réis (bairro de Nova Trento). Depois morava aqui, em frente da casa do Aníbal, onde tinha agora a barbearia, ali, não tem? Onde tem a casa do Raul e, na beira da estrada, onde tem a casa que é uma barbearia. Era uma casa de madeira, onde essa mulher morava com os pais dela. Ela era nossa presidente das Filhas de Maria. Nossa! E, ela nunca casou, sempre ficou com a mãe. 198

Depois moraram em Blumenau e, lá em Blumenau, nós “se” encontramos. Ela morava justamente na rua Bom Retiro, onde que nós fomos morar na casa dos meus tios avós, lá, né? Lá a gente se encontrava... depois de lá, não sei porque que ela estudou, era professora, tinha que ir pra Florianópolis. Agora mora em Florianópolis. Tem apartamento. Morreu a mãe, morreu o irmão, que tinha com ela... Ela “tá” sozinha, mas ela ainda sai do apartamento, dirige o carro e vai pra catedral, faz trabalho na catedral... De vez em quando nós “se” comunicamos. Tanto é que ela me mandou um “corte”, um tecido, bonito, pra fazer um traje pra minha festa. Ela trouxe uma vez aqui. A Denize (sua filha) disse: “mãe, já liga lá na costureira pra nós mandar fazer este traje”. Mas, assim, a gente nunca esquece dessas pessoas boas, né? Até falei pra ela da nossa festa... porque a Denize acha de fazer a minha festa de 80 anos aqui em casa, com as minhas vizinhas, minhas irmãs, que “tá” aqui por perto. E, na festa de família, então reúne as duas famílias...

E por que tinha que usar a roupa branca e o véu na cabeça? Não sei porque... acho que pra imitar, como Filhas de Maria, a Nossa Senhora, né? Pelo nome de Filhas de Maria, né? Deve ser por isso! A minha mãe também foi Filha de Maria, de solteira. Ela contava, tudo, como é que era, né? E depois, nunca se podia faltar as procissões. Seja de Corpo de Deus, seja procissão... qualquer procissão que tinha, a gente tinha que participar!

Com roupa branca? Não! Roupa branca, específico mesmo, era no segundo domingo do mês, que era a reunião, e no primeiro domingo do mês, que era dia de Hora Santa. E a fita! A fita não podia esquecer. Tinha que fazer uma roupa com bolso, pra nunca esquecer da fita! Era importante, né?

E a senhora, como Filha de Maria, chegou a contestar alguma regra? Não, não... a única coisa que nós “tinha” medo era passar na frente, aí do Busnardo, que tinha esse salão, e tinha que passar do lado de lá da calçada, porque se a gente passava ali e olhava quem “tava” dançando lá dentro, alguém ia “dedar” a gente, né?

E quem que dançava nessa época? Ahh, “tinha” as Orsi, “tinha” as “mulherada”, gente que dançava. Mas não era Filha de Maria. Tinham mulheres, tinham homens... essas “dançadeira”, as Orsi lá pra baixo (outro bairro da cidade). Meu Deus do céu! 199

Araci, que é mulher do Alcides, ela sempre foi “dançadeira”. Todas elas! Nunca foram Filhas de Maria.

E aprendiam a dançar aonde? É porque tudo quanto era festa que tinha, as festinhas, elas iam dançar. É! Por isso!

E quem promovia estes bailes? Não sei se era o senhor Busnardo ou se ele tinha alugado o “rancho” lá, né?

Alguma regra que você vivenciou e permaneceu com você até hoje? De “blasfêmia”, graças a Deus, não. Porque tem gente, que nem, tem inveja, que “blasfêmia”... Sacraóstia (tipo de palavrão em italiano)! Que nem essas Sartori... Mas sempre fui cuidadosa com vocês, né César? (se direciona para o filho, que entra na cozinha neste momento). Eles sempre participaram das catequeses, tudo... a gente incentivando em casa, foi um bom aprendizado pra gente, né? Eu tenho uma... né? Às vezes o “Lando” diz que eu sou demais, porque a gente liga a televisão às 6h, rezando o terço... depois tem a missa, a gente acompanha a missa, a novena! Aconteceu agora a novena do Pai Eterno... não perco!

O filho, neste momento diz: “Sim, esta coisa de religiosidade, até hoje muito presente. Sempre pergunta se fomos à missa”.

Às vezes eles “acha” ruim, mas não deve achar ruim, não. No domingo ele liga: “foi a missa hoje? Como é? Foram a missa?” Às vezes é o Mateus que me atende (seu neto), o pequeno, se foram a missa! Mas lá, a graça grande, é que no prédio tem missa uma vez por mês, onde ele mora. No salão de festas. Então, o padre... algum casal que começou a trazer o padre... E o Mateus, como ele é bem, puxou a “nonna” (avó) aqui, ele bate à porta de cada apartamento, no prédio, “hoje vai ter a missa”, ele fala. Então, isso faz alguns anos que começaram isso, de rezar a missa. E aí depois, começaram a fazer, pra segurar o povo lá, pra ter contato, convivência, e o padre querer ficar conversando, cada um leva um prato. Fazem uma festa, confraternização. Se tu visses que grande que é, bonito! Mas o que penso da minha religiosidade, né? Eu sempre fui, aí, fervorosa, de ir à missa, porque eu fui ministra (de eucaristia). Ah! Esse curso que eu fiz de teologia, ainda trabalhava no colégio, olha que sacrifício, levar a roupa na sacola, quando chegasse 6h (18h), que terminava meu horário, 19h... 200

Eu quis fazer este curso, de tanto que me convidaram. Foi esta bendita Irmã, que era nossa diretora, ela achou melhor eu fazer o curso, porque ela disse, o padre Benno sempre vinha lá... porque naquela época tinha aula de catequese, ainda, os padres podiam vir, ou vinha a Irmã - Amália Medeiros, minha amiga - ou vinha o padre Benno, a primeira vez que ele veio pra Nova Trento. Faz muitos anos. Ele tinha direito de dar aula de catequese, agora não pode mais, porque misturou muita religião. Então, a Irmã Amália me dizia: “então você vai, porque você tem o dom de ser catequista”. Aí eu disse: “Meu Deus, Irmã, não, não... acho que pra enfrentar, dizer que eu tenho capacidade de ser catequista... não, não!” “Bem, mas então é bom você fazer o curso! Você vai!” É! Mas em casa não queria nem dizer nada pro “Lando”, porque senão... pelo amor! Não me deixava! Mas era uma vez por semana! E daí eu levava a roupa na sacola, me trocava no banheiro dos professores, e eu dizia que eu tinha reunião no colégio, vinha mais tarde. Fazia curso no salão paroquial, lá em cima, naquela escadaria lisa, você lembra? Aí tinha a Nelcia, que era minha amiga, Dona Edite... Nós duas era que nem irmãs! Ela me ajudou muito neste curso de teologia. Por isso que eu entrei de ministra, de tanto ela me incentivar.

Acho que tudo é como tu ganha a educação de casa. De religião, os costumes, tudo, né? Que tem família desestruturada, mulheres “desnorteadas”, que o marido fica “beberrão”, Mas, por que? Porque não sabe levar! Que a gente, graças a Deus, eu e as minhas irmãs, ganhamos tudo marido que combina com a gente! Com as nossas famílias, né? Que nem a Antonieta, casou com o irmão do Alfeu... o Artur da Dete... tudo gente assim... que ele mesmo quer levar ela pra missa! Se ela vai numa missa de sábado com as amigas, mas domingo de manhã ele vai à missa. Então ele quer ir com ela! Quer que ela acompanha! A missa dele é domingo de manhã. Porque sábado, de tardezinha, ele vai “na bocha” (ou “boccia”, jogo italiano com bolas de cimento). Então ela vai à missa com as amigas a pé, porque lá tem a Igreja de São Sebastião (em Camboriú).

E como a senhora conheceu o seu marido? Ah!! Idas e vindas de Blumenau... e a gente passava aqui na frente, ali... e nunca, nunca imaginava que eu ia ter um namorado aqui. Lá também eu nunca tive namorado. Meu único namorado foi esse aqui (diminui o tom de voz pra falar). Mas aí, numa noite de Natal, sabe que antigamente, tinha cinema aqui em Nova Trento! Ali onde é a loja da Terezinha, era uma casa de cinema. Tua mãe, teu pai nunca falaram que foram no cinema ali? Eu não sei se era da polaca... acho que era seu José Poli que passava ali. Eu sei que numa noite de Natal, nós nos encontramos. Porque o “Lando” e o Elizeu andavam muito junto os dois, né? E eu e a Maria do 201

Didi era que nem duas irmãs, sempre juntas. Se uma fazia o vestido rodado, a outra fazia também. Aí nós “tinha” mais... Eu tinha uns 23 anos. Com 25 anos, minha patroa fez uma festa, de bolo, tudo! Chamou as minhas primas. Ainda morava em Blumenau. Trabalhei 5 anos – o tanto que fiquei na Sulfabril. Quando faltava 10 dias pro casamento, que o “Lando” veio me buscar, com o caminhão do Marçal Bottamedi. E nós “se” via a cada dois meses, acredita? Porque o “Lando” trabalhava fora, sempre. Ou uma vez por mês. Ele trabalhava em , trabalhava longe, construindo (era pedreiro)... construiu tantas igrejas, ele! O Elizeu da Polônia, o Mário da Cida... sempre eles trabalhavam fora! Então, só nós “se” escrevia cartinha, porque não se tinha comunicação, como telefone, nada disso, não. A minha patroa tinha telefone lá... e a primeira vez que eu vi televisão foi lá! E que eu vi fogão a gás era lá! E geladeira lá! Porque na nossa casa, “cara di Dio” (cara de Deus), saímos da roça, não se tinha nada disso! Nós “tinha” fogão de lenha, não se tinha geladeira, televisão nem pensar... nada disso! E os únicos que tinha luz elétrica era nós, porque o pai “botou” dínamo... era um aparelho que trabalhava com a roda, a roda do engenho. Ela rodando, ela produzia energia. E, lá fora de casa, que tinha o varal grande, onde nós “estendia” a roupa, o pai “botou” um poste e, com uma manivela, acho que era um truque, que nós “puxava” o fio, abria a água, pra roda “tocar” e acender a luz. Só nós “tinha” luz elétrica lá. Isso era quando a gente era mais nova, depois quando fomos para Blumenau, foi lá que passou o fio da luz elétrica, né?

E os namoros, então, eram na casa dos pais? Sempre! Sempre se encontrava na casa dos pais. Quando nós “se” escrevia, que ele dizia: tal dia, eu vou pra Nova Trento. Mesmo se eles trabalhassem fora, não podiam faltar a festa de São Virgílio (mês de julho), era sagrada. Podia estar meses fora, mas vinha... Aí, eu pegava ônibus e vinha. Nós “vinha” de ônibus, eu e a Benta. Porque a Benta namorava com o Celinho e eu era com o “Lando”. Então, quantas vezes o Celinho veio lá visitar. Mas, o “Lando” era mais tímido. Acho que veio lá (em Blumenau) uma vez! Depois, quando ele veio buscar a mudança, veio com o caminhão do Marçal Bottamedi, porque eu tinha uma cama comprada, guarda-roupa comprado... porque a patroa achava que eu tinha que ter isso, pra quando eu casar, já tenho! Era um guarda-roupa usado, lá da rua Herman Huscher, de uma senhora “alemoa”, que ela tinha comprado um novo, e queria despachar aquele. Eu fui comprando e colocando no quarto, onde eu morava em Blumenau. Antigamente as camas eram de arame, o fundo era de arame, e as cabeceiras era tudo contornado, né? A minha cama era assim. 202

Por isso, foi desmontada a cama pra trazer, desmontar o armário pra trazer... e depois o que eu tinha? Meu enxoval... Foi o “Lando” e o Bento que construíram a nossa casa. Aqui derrubaram uma “casarona” velha que tinha antigamente, que só o teu pai e a tua mãe devem saber. Com aquela “casarona”, fizeram duas casas. E o seu Lauro, vizinho, não queria “dar confiança” pro “nonno” (avô) Tino, pros filhos do “nonno” Tino comprar a casa. Ele vendeu pro Gadino. Esse que vendeu pro “Lando” e pro Bento. Aí eles começaram a fazer a casa. O “Lando” escrevia pra mim, me dizia como estava o andamento da casa... não era grande como é assim. Aqui assim tinha uma janela, jogão à lenha, tinha a cozinha, era bem pequena... aí fora era o terreiro, não tinha nada aí fora. Ali onde tem a garagem agora, ali era o rancho, onde criava o porco, as galinhas...e a vaquinha de leite! Que a vaquinha de leite era lá na estrebaria, pra trás da casa do Padre Egídio, tinha sempre um “ranchão” grande, lá tinham as vacas! Cada um tinha a sua vaquinha. Meu, o que a gente fez!

Seu marido também foi Congregado Mariano? Sim, sempre foi. Sim, sim! Eles também tinham as reuniões. É! Aí, quando a gente veio pra cá, que era começo de setembro, dia 17 de setembro de 1966, nós nos casamos, às quatro horas da tarde. Casamos aqui na matriz. Primeira vez que passou ônibus na nossa rua. O “Lando” contratou o ônibus, porque todos eram “parente”. Se não era de uma família, era de outra. Parentes e amigos, pra trazer pro casamento. Primeira vez que viram o ônibus passar na nossa rua. Primeira vez na vida! Meu Deus! E eu fui de “limusine” (Fusca) com meu patrão. Eu de “limusine” com o meu patrão de Blumenau. Que eles vieram, né?

5) Renzo Maria Grosselli, 66 anos. Entrevista concretizada no dia 07/04/2018 – Centro, Nova Trento-SC.

Na Itália ou no Trentino existiam Filhas de Maria? Sim, sim! Primeiro eu tenho que esclarecer que eu não tenho religião. O assunto é que eu nasci católico e fui batizado, cheguei até os 14 anos recebendo os sacramentos que são normais, comunguei e depois tomei o outro sacramento – crisma. Depois, aos 14 anos, eu caí fora... no sentido que eu já era pequeno, mas já era um livre pensador. Mas, não tenho nada contra. 203

Agora... participei, até coroinha eu fui, durante um ano. Mas agora, depois de 52 anos eu estou fora de tudo isso... Mas o que você fala tinha também na Itália. E, digamos que era porque... na minha juventude, até digamos 12, 15 anos, o Trentino, em 1967, 1968, podia-se definir uma terra onde a agricultura e a cultura camponesa eram ainda a alma desse povo, mas exatamente naqueles anos – anos 1960 – e também no final dos anos 1950, a Itália do norte estava desenvolvendo a segunda revolução industrial. Então a Itália estava saindo rumo à modernidade. Que quer dizer também que com a modernidade a religiosidade muda muito, fica menos importante nas camadas sociais que desenvolve. Então, perdem-se muitas regras, mas também jeitos de ser e funções religiosas e tradições vão se perdendo. Desenvolve-se outro tipo de religiosidade ou muita gente vai caindo fora.

Mas e aquele Trentino de 1870? Em relação às Filhas de Maria? Bom, isso aí eu não sei. Porque não pesquisei em cima disso. Eu posso te dizer é que a religião, naqueles tempos que eles se mandaram da Itália – que migraram da Itália (ou do Tirol italiano, ou Áustria), a religião não era o que é agora, e que foi depois. Era uma parte importante e não definitiva na vida das pessoas e da comunidade. Mas a religião era o centro da vida deles, porque quem mandava no dia a dia não era o “pracinha” ou a polícia, o governo, quem mandava era mesmo, no dia a dia, a regra religiosa que eles tinham dentro. O ano mesmo se desenvolvia no sentido da religião. O ano não era só do Natal ou da Páscoa, mas era o ano dos mortos, dos santos... era o ano das festas religiosas e dos momentos da vida de Jesus Cristo... e eles eram, na grande maioria – esmagadora maioria – crentes firmes! Tanto que entre os nossos, não tinham ladrões, não tinha nada... porque a olhada do padre, e o que o padre mandava, eles faziam. Eu te falei que outro dia, nós fomos aqui gravar – porque quero escrever um livro (um dos meus últimos), e falamos com um senhor e uma senhora, que tem agora mais de 80 anos, falam um dialeto da família dos dialetos trentinos, digamos, ainda quase que perfeito, e a senhora falou que tinha 16 filhos vivos, e mais alguns que ela perdeu... Depois o marido falou direto: “isso também porque os padres mandavam as mulheres fazer filhos seguidamente”, porque isso era a religiosidade naquele tempo, os padres “pesavam”. Eu não sei te dizer se lá no Trentino tinham as Filhas de Maria, mas tenho certeza absoluta (digamos, sem provas) que, se era uma tradição que vinha da estrutura da religião católica, e era, antes na Itália e depois no Brasil, então tinha que ter também lá. Eu poderia te mandar, logo 204 que voltar, eu posso te dizer, falo com amigos historiadores sobre a religião católica e a comunidade católica, e te digo sim. Aqui tinha de sobra, com certeza, porém as mulheres lá eram – e os homens do outro lado – cuidavam do que era o verbo da religião católica, faziam o que os padres aconselhavam, ou entre parênteses, mandavam.

Qual era a congregação que regiam os padres? Jesuítas? Franciscanos? (No Trentino) Eram várias congregações. Digamos que a maioria dos padres – eu tenho quase que certeza – que eles eram padres (como é que vocês falam?), só dependendo não de congregações, e dependendo do bispo local... E naquele tempo, acho, que grande parte deles eram padres que o bispado dirigia... eram padres sem congregações. Apesar que tinham muitas e muitas... Eu sei que já os Franciscanos ou os Capuchinhos entre nós eram muito importantes, sempre, na Itália. Os Jesuítas foram, que variaram com os séculos, porque um certo tempo o papado suspendeu a congregação, porque tinha ficado muito forte, porque competia lá com a lei geral da Igreja, com a vontade dos Papas, depois voltaram... Entre nós (desculpe, que não somos dentro da estrutura da Igreja, nem católicos), sempre se pensou que a congregação dos Jesuítas foi a mais organizada, a mais forte, a mais auto referencial, aquela que durante séculos manifestou liderança ideológica dentro da Igreja, não só ela, mas tem por exemplo nas últimas décadas os espanhóis com umas congregações lá... mais da direita, digamos, tomaram conta de uma parte da Igreja e... tudo bem! E sempre se falou dos Jesuítas como os mais firmes, rígidos – séculos passados – a gente poderia dizer uma coisa que não é científica, que é muito “inelógica”, um pouquinho “vagabunda”, que os Jesuítas foram a direita da esquerda, a espada da esquerda do Papa, os que iam lá na frente e faziam acontecer. Digamos que depois da 2ª guerra mundial, parece que os Jesuítas foram a esquerda do Papa e, tanto que, agora este Papa – que é um Jesuíta – mas que chamou-se de “Francisco”, é muito, não criticado, mas combatido com uma força que a esquerda não “botaria” lá, pela direita da Igreja, e pela cúria de Roma. Está revolucionando, e ele é a única herança, não sei se mundial, porque nós não temos que pensar que a religião católica ou cristã abranja o mundo inteiro, mas a maior liderança mundial (ideologicamente) na área das culturas ocidentais. São culturas, porque a nossa não é a mesma ainda, dos anglo-saxões e outros mais... na cultura ocidental que é cristã, que continua sendo cristã.

Vieram padres junto com os imigrantes para o Brasil? 205

Digamos que houve lá na Igreja Católica Trentina um debate muito forte em cima emigração, dos por quês da emigração e, em cima da pergunta, se era bom ou não emigrar. Este debate lacerou – rasgou – a Igreja Católica Trentina – muito pequena, 400 pessoas ou menos, mas, porém saiu à tona esse debate. Porque foi cravado, foi disputado, num jornal da cúria trentina, “La Voce Cattolica”, nos anos 1874 até 1890. Havia duas partes disputando essa história, esse lema. Uma parte que era dos vigários, especialmente, e dos padres, que eram de origem camponesa e defendiam a possibilidade de emigrar, porque eles diziam duas coisas: uma que é bem católica, que diziam: aqui a religião está acabando, aqui os nossos camponeses pra viver tem que ir durante vários meses do ano para fora, para trabalhar, para depois voltar, as filhas deles vão para as fábricas, de algodão ou de tecidos, pra Bavária, vão para outros lugares e voltam muito mais espertas, muito mais vivas – não querem saber de muita religião não, e algumas delas ficam perdidas por aí. Os homens são chamados seguidamente para combater uma guerra, uma outra houve em 1866, uma guerra da Áustria contra a Alemanha, junto com a França... tudo isso! Então o homem vai lá debaixo do exército, fica desesperado, mas também fica com aquela coisa de blasfêmia, ele volta muito menos... Na realidade, o homem caía fora da comunidade camponesa, abria os olhos e ficava sabendo que a religião também serve o poder, então ele era menos dado a essas histórias. Então, emigrar não era uma coisa ruim. Mas eles, gostaria de dizer, era uma visão católica, mas também religiosa, mas também uma visão de direita (um pouquinho), de interesses para determinadas coisas, mas eles também tinham uma visão progressista (e progressiva) dessa parte do clero Trentino. Que era aquela, olha bem, dizia o líder desse lado da Igreja Católica, que era Dom Lourezo Guedertt, que foi a sair a partir dos anos 1890 ou finalzinho dos anos 1880, parece que a primeira família cooperativa nasceu antes de 1890 – não sei te dizer agora porque não estou aqui com os meus livros e papéis – mas era 1887 ou 1889. E a primeira caixa rural (entre nós se chama), que era de origem católica, foi ele quem fundou, em Santa Croce del Bleggio, e era o logo, logo depois... então, esta fatia de intelectuais orgânicos do jeito que é uma categoria científica, que o Antônio Gramsci propôs à comunidade internacional, nos anos 20, 30 (1900), eles falavam que: olha, bem, também, aqui os nossos pais e as nossas mães são os últimos como importância a que, eles diziam, nobreza, diziam com palavras leves, do jeito que o católico fala para não machucar ninguém, e para não ter os grandes, digamos, graus da Igreja Católica cortando tudo. Eles diziam: o camponês aqui tem que obedecer a todos – era da economia e da sociedade moderna – era muito melhor, talvez, as família pegarem, unidas, com seus filhos e filhas se mandarem para um país e lá poder reconstruir as nossas comunidades católicas, com o padre, com a Igreja (matriz), eles trabalhando (eu digo) e os padres dirigindo. 206

Foi assim: eles ganharam uma parada, no sentido que a história quis que eles se mandassem para a América e pro Brasil. No geral, muitos deles naquele tempo. O Brasil, neste sentido, estava distribuindo terras, com pouco dinheiro se pagava, e a viagem de graça! Então os trentinos ou tiroleses italianos não teriam tido oportunidade de pagar uma viagem dessas. Mas, o que aconteceu, pelo meu jeito de entender as coisas, é que teriam que viajar junto com eles muitos padres, que eu fiquei sabendo que, nas minhas pesquisas, foi um dado certo, é que cinco (me parece) padres, nos de 1870 e 1880 saíram do Trentino junto com esses grupos de emigrantes. O primeiro foi um padre... Aqui em Santa Catarina quem veio junto com eles, não em 1875, mas em 1877... era o Ancângelo Ganarini, que era da Valsugana (uma região do Trentino), então um dos vales que mais teve imigrantes para a prefeitura atual de Nova Trento. Depois saiu um outro padre da Valsugana, dessa vez da cidade de Caldonazzo, quase que na alta Valsugana, o outro era da baixa Valsugana, que era o Padre Baltolomeo Eccher, que foi pro Rio Grande do Sul com a família dele também. E lá ficou definitivamente. Ganarini ficou aqui definitivamente, mas depois de um ou dois aninhos ele se mandou de Nova Trento e foi na cúria de Desterro (Florianópolis) e sempre ficou lá. Depois dele o Delvaz, que tem uma história muito conflitual, no sentido que alguém lá no Trentino tinha acusado ele de ser um mau padre, etc... mas, depois, ele conseguiu dizer que foi uma crítica injusta, etc... deixaram sair.... e se perdeu! Antes dele, houve um padre que no 1874, foi o primeiro, que saiu do Trentino, de Centa San Nicolò, também o lugar do Trentino lá em cima dos Lagos, que foi.... como é o nome dele, está me fugindo neste momento... que foi e ficou lá no Espírito Santo, ficou junto com os imigrantes e morreu lá no Espírito Santo. Depois houve um outro, que seria o quinto padre, o padre Finotti, que saiu do Roveretano, da Vallagarina, que saiu também ele e ficou por muitos anos, e voltando a morrer no Trentino (depois), mas ficou no Rio Grande do Sul. Havia naquele tempo já muitos padres e freiras (também), saindo rumo ao mundo como missionários e missionárias. Já havia pessoas mexendo com os araucanos, no Chile, dos Trentinos... eu lembro do padre Renzi, lembro do padre de Cavalese, que foi lá que se fala também na literatura, de romances chilenos, que falam desse padre, ou desses padres, por exemplo. Na Argentina, mexendo com os índios argentinos. Outras freiras na Índia e em outros lugares. Mas, junto com os imigrantes não foram muitos padres. Eu maliciosamente tenho a minha opinião, que não é uma prova científica: os padres que chegaram junto com os nossos foram heróis. Logo depois, anos 1880, muitos religiosos italianos chegaram nas comunidades italianas 207

– de várias congregações – e também de freiras, e ampararam no sentido religioso as comunidades trentinas. Aqui chegaram, logo, logo, os Jesuítas, mas logo quem foi o primeiro que, no cavalo, vinha visitar e escrever – porque escrevia também na “La Voce Cattolica”, foi o padre Cybeo, que era um padre do Piemonte, dos Jesuítas! E, depois, através dele, começou-se aquela história de ter mais Jesuítas até quando plantaram uma missão dos Jesuítas, que virou uma república Jesuíta – os anos digamos de 1890 para cima, virou uma república Jesuíta, que durou até anos 1940, 1950, e ainda hoje os Jesuítas são por tradição – mais a malícia, que eu te dizia – é que quem chegou aqui foi o católico heroico, digamos, porque ele também ficava dentro da mata junto com os seus. Mas por que cinco, de tantas centenas e milhares de padres e freiras do Trentino emigraram junto? Porque poucos, assim... porque era duro... queria dizer, fazer o que os camponeses faziam, não ter nem a comida certa, não estar numa boa, não estar numa camada... porque os católicos podem dizer o que querem, mas quando lá a camada da esquerda da Igreja Católica Trentina lutou para que eles pudessem emigrar, teria podido, porque a lei deixava. Mas olha que os bispos, ao longo de muitas décadas, se declararam contra a emigração. E não é uma “mentirinha” do historiador ou sociólogo da esquerda, os bispos eram sempre do lado do poder. Os bispos eram eleitos sob indicação do Imperador e, depois, nomeado pelo Papa. Entendeu? Muitas vezes, até o final do século 19, eles eram da nobreza ou da burguesia (depois). Então, eles ouviam muito bem as queixas da classe – no Trentino latifundiário, mais ou menos tinha alguma coisa na nobreza, mas era a Igreja que tinha e tem muita terra no Trentino. Mas, sentia muito bem na pele, que como aconteceu, com muita gente emigrando, subiam os salários dos camponeses – porque nós também tínhamos braçais, e tínhamos gente sem-terra. Porque de 1880 até 1890, 50% das pessoas perderam as terras lá, a pequena propriedade. Então, subia o salário porque iam faltando muitos braços – indo para a América. As queixas das autoridades, nos jornais deles, nos jornais liberais era alta, “pessoal vai embora e deixa aqui a terra, não é isso, deixar aqui o serviço em favor do senhor”, e com seu “salariozinho”, que você está pagando. Então, tinha o lado da esquerda da Igreja, que também no jornal “La Voce Cattolica” combatia a imigração. Por isso que chegaram poucos padres também, mas chegaram.

Mas eles também sabiam dessa realidade difícil de ser enfrentada e por isso também impediam essa vinda? Eles sabiam direto e depois de poucos. Porque tinha um canal muito firme, muito rápido (não muito, mas firme), seguido, contínuo, que eles confiavam, que eram as cartas dos camponeses. 208

Eu até tenho várias cartas, cópias de cartas, que escreviam: “meu irmão, fica lá, aqui é um desastre, aqui dá pra comer, aqui só dá cobra, aqui eu tenho 25 hectares de terra”. Então, eles sabiam... e eles não escutavam jornais ou livros, se não os jornais da Igreja, que porém estava combatido, então eles não sabiam muito bem, mas as cartas eram as informações deles.

E era uma informação fiel, né? Chegaram até – soube-se, sabemos – fazer com que o pessoal pudesse confiar naquelas cartas. Porque aqui aconteceu que muitos dos diretores de colônias, aqui, ao longo do Brasil, logo que o pessoal chegasse, quando ainda eles davam comida e davam coisas para eles, na marra mandavam eles sentar e “botar” uma cartinha e vou te dar também um “dinheirinho”, e a cartinha saía lá e eles davam o papel e a caneta...

Pra dizer que estava tudo bem? Sim! Eles, então... aconteceu, muitas vezes! Na “La Voce Cattolica”, chegando a expedição Tabacchi (na região do Espírito Santo), chegaram duas cartas de duas famílias: uma dizendo que estava dando certo, que eram ricos e felizes, e a outra dizendo que já o Tabacchi tinha morrido, que era uma podridão, que eles estão na selva, que não vai dar mais, que morreram pessoas...

Eram ambíguas as informações, então? Sim, mas eles começaram a ficar “vivos”. Alguém – não é uma maioria – saindo de lá dizia: “olha, essas são as minhas cartas, com esta tipologia, um sinal”, uma coisa que dizia, não pode ser a minha. Se tinham que escrever, porque tinha alguém que mandava neles, eles mandavam com a carta do outro, e o cara desconfiava. Se era o parecer dele mesmo, saía a carta com aquela coisinha, que não era bem um carimbo, mas podia ser uma coisa assim, identificando que aquela era a carta da pessoa.

E essa relação forte, a influência do padre, influenciou essa relação patriarcal perante às mulheres? Sim, totalmente. A mulher na Igreja Católica ou é a Nossa Senhora ou é a Madalena. Fora da Madalena só têm mulheres perdidas. A Madalena gostou e depois voltou... totalmente a visão Católica da mulher é de uma entidade que aceita uma situação de obediência e submissão ao homem, especialmente aos homens que tem o poder, que são os padres. Então a mulher era isso. Tinha duas grandes funções, três talvez: primeiro – trabalhar, trabalhar, trabalhar, que nem o 209 homem. Em segundo lugar, “botar” filhos no mundo, com uma diferença – que era bom não gostar do ato reprodutor, e o homem gostava. Terceiro lugar: a mulher tinha que ser, transmitir aos “meninos” (crianças) e à família, na realidade era a cultura dos pais, o que eles queriam, que era quase o certo, mas nem o sempre o certo, transmitia a religiosidade, que era a cultura deles. Não era uma mentira. E transmitia, para as mulheres, a submissão total aos homens. Tinha uma quarta função das mulheres, dentro da estrutura da Igreja Católica, de serem as servas últimas da estrutura católica, a que mexia com o clero masculino para servir, mas também para servir o povão mais humilde. A maior parte das Congregações Religiosas Femininas, pelo que eu sei, mexeu muito com doentes, mexeu muito com as escolinhas, e coisas assim...

Também para mantê-las cerceadas e controladas por aquele meio... Sim, claro, mas também porque tinham “n” fundadoras de congregações católicas mais esclarecidas, que entenderam que o povo para desenvolver tem que estudar... também entre as congregações masculinas, digamos, os Scalabrinianos, se espalharam pela América inteirinha, muitos deles no Brasil, perto dos imigrantes, e também de jeito progressista. Mas, agora, as freiras também tiveram que servir os padres. Servir também do jeito que a “perpétua” fazia. Perpétua sempre tinha, até poucos anos atrás, sempre tinha uma mulher que ia atrás do padre. Normalmente era uma Irmã, uma parente, uma coisa que não pudesse dar na “cabeça”, que o padre, talvez... ela fazia comida, lavava a roupa, atendia a todas as exigências... era como se fosse uma esposa do padre – só que não tinha que ter, né... Houve anos mais modernos, onde... poucas, não muitas, mas elas foram as mulheres dos padres... e, escondidas, o mundo sabia e não sabia... mas acho que foi a solução melhor, mas sempre o Vaticano dizendo que a lei... não puderam falar, que foi o Cristo que falou, que o padre não tinha que ter mulher. Foi o tal de Concílio, que falou isso. Se o Concílio falou isso, outro podia falar, mas... isso é coisa de Católico, e eu não me meto!

Você acredita que essas questões de cerceamento, de controle permanecem, foram passando de geração para geração? Até chegar a minha geração, por exemplo? Eu acho que muitos valores... Bem, você é uma brasileira, que tem traços culturais miscigenados. Muitos que vem lá da Europa diretamente, pelo fato que essas comunidades ficaram muito fechadas ao longo de décadas. De um século. Mas, também, que logo, devagarinho e, depois, anos 50, rapidamente ficaram condicionadas pela cultura nacional, na escola e, especialmente, depois dos anos 60/70, pela televisão. Novela foi forte que nem Igreja 210 para condicionar as pessoas. Vocês pintam as unhas, que me dá problemas, até as meninas de dois anos, e botam batom e fazem com que essa coisa... A mulher, na comunidade nacional brasileira é, também, por um lado, um objeto. Em grande parte deste país a mulher é um objeto sexual. E na publicidade, na televisão, é direto...Olha, também no mundo... Na Europa com muito mais elegância, mas com a história, que a mulher está se liberando, que são várias épocas, então... uma parte não aceita isso aí - para com isso.

É como se elas se rebelassem a este controle que ocorreu no passado? Rebelaram-se faz tempo, e também uma porção de homens entenderam através de várias ideologias, de esquerda, de liberais, de centro... onde houve grandes mulheres que ajudaram neste sentido... e não podia a Filha de Maria dizer: por uma mulher, você tem que fazer 15 filhos. Porque houve mulheres que falaram: “Faça, vocês!” Mas, digamos, até os anos 50, todos os anos 50, também falar da minha região, no interior do Trentino, nas montanhas da Lombardia, do Friuli, do Vêneto, do Piemonte, a religião tinha uma força (não diria total), mas uma força muito grande, que conseguia combater até as entradas culturais diferentes, que eram comuns, porque os camponeses migravam, voltavam... e traziam, das grandes cidades, de Berlin, ou de Paris, ou de Viena, ou de qualquer outra cidade, conteúdos culturais mais abertos, menos daquela religiosidade muito firme, muito apegada, muito mandada pelo Clero. Eu vou dizer, eu que não sou religioso, vou dizer que a especialidade da religião católica é que Deus tem que ser intermediado pelo clero. Quem te dá confissão é o padre. Outras religiões cristãs, mas não católicas, o padre é o mediador da reza, o mediador... ele tem o nível de poder que é muito menor, porque ele não te confessa. Não é ele que vai te dizer se você vai para o paraíso. Digamos que os católicos inventaram esta história... então, o ditado do Trentino é: nunca falar mal de Deus e dos ministros de Deus. Numa outra tipologia de cristãos, se o padre “bobeia” um pouco, eles podem demitir, mandar embora. Não é um sacrilégio falar mal.

Vou tratar também no meu texto da questão da transplantação. Aí o imigrante tentou “copiar” o que tinha no Trentino... como foi esta transplantação, eles tentaram imitar? Eu sou mais famoso no Brasil do que na Itália – não no Trentino e no Vêneto, mas na Itália, porque eu nunca entrei na academia, eu nunca fui para as universidades, nunca fui professor de universidade, mas a maior contribuição que eu dei à historiografia sobre a imigração, muitos por aí, na Itália (mais do que no Brasil) ficaram “roubando”, sem citar, ideias dos meus livros. Era fácil, porque os meus livros eram editados no Trentino e, quem editou não teria vontade e nem a força de jogar na Itália, e o conteúdo não era ruim e era único. Fui o único historiador 211 que ficou aqui ao longo de anos, procurando nos arquivos, gravando com as pessoas. Tanto assim, houve outros, mas a maior contribuição dos meus livros e do meu trabalho de pesquisa foi a seguinte: lá na Europa, na Áustria do sul e no Trentino houve a vontade de uma parte da Igreja e a firme vontade de uma parte do povo católico sofrido, no auge de uma crise milenar, que jogou o capitalismo dentro dos vales e na agricultura, na sociedade camponesa, houve uma camada de intelectuais orgânicos, como o Antônio Gramsci falaria, e de camponeses e da classe dos camponeses que quis “desplantar” ou desestruturar em pedaços a cultura camponesa daquela tempo, que era cultura católica, que baseava-se em vários lemas, no qual a religião católica era central, desestruturar e ir para a América e reconstruir lá na América. Então, o que nasceu aqui no Brasil, nos primeiros tempos, foi a comunidade fechada, camponesa, que podia ter lá, sem muitas possibilidades de se locomover, porque lá tinham ferrovias, por exemplo. Essas comunidades estavam em crise também, porque a filha ia num serviço numa cidade, o filho ia para o exército... Já aqui, ao longo de umas décadas elas ficaram paradas, porque precisaram trabalhar no mato para ganhar comida, etc... Foi uma revolução conservadora. Normalmente a revolução – essa é a ideia central de Vincere o Morire (seu livro) e de outros livros meus: uma revolução conservadora, que transplantou essas comunidades aqui pro Brasil. Última linha, depois eu acabei: logo, logo o Brasil começou, desde o primeiro minuto, a transformar essas comunidades. Vamos falar de piada, não tinham padres ou tinham poucos padres. Vamos falar em piadas maiores, tinham feras aqui, tinham bichos, não tinha tudo aquilo, nem de plantações que eles tinham lá... Então, logo, logo, seja a natureza brasileira, seja a comunidade brasileira, começou a mudar aos poucos e a transformar essas comunidades. Mas, digamos que, ao longo de um século, essas comunidades ficaram com os maiores conteúdos culturais que foram transportados de lá. Depois a política, os comerciantes, tudo isso mudou o assunto e, agora, essas comunidades são brasileiras, com traços italianos, ou “Talian”. Eu não tenho dúvida e, poderia combater no Brasil e na Itália, para demonstrar isso aí. Ninguém iria me convencer.