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A moda refletida no espelho da MPB Fashion reflects in brazilian popular music mirror

[ FRED GÓES ]

É carioca, prof. doutor da Faculdade de Letras da UFRJ, pós-doutor da Universidade de Tulane, EUA, pesquisador CNPq, Conselheiro titular do Conselho de Cultura do Estado do , compositor letrista, [ 68 ] ensaísta, contista, dramaturgo. Autor de 12 livros e colaborador de revistas culturais especializadas. Tem mais de 60 canções gravadas por renomados intérpretes da MPB.

[resumo] No presente artigo busca-se colocar em foco a recor- rência com que a moda é mencionada nos versos da música popular brasileira, revelando hábitos e costumes da sociedade em diferentes momentos da nossa história , servindo como do- cumento de época.

[ palavras-chave ] moda; música popular brasileira; estudos culturais.

[abstract] The aim in the present article is to focalize how frequent fashion world is present in Brazilian popular music words (rhymes) and how this presence reveals social customs and habits in different moments of our history as a sort of period document.

[key words] fashion; brazilian popular music; cultural studies. A música popular brasileira tem um lugar de grande relevância na for- mação cultural da nossa gente. Fomos educados fazendo um percurso singular, aos saltos, ultrapassando etapas funda- mentais. Analfabetos, iletrados e, por- Os versos da marchinha evidenciam tanto, sem tradição livresca, acabamos que a “Paris tropical” idealizada por Pe- “alfabetizados” pelo rádio que, nos anos reira Passos (o Rio de Janeiro) não perdia 1930 do século XX, era já o mais po- tempo quando o assunto era moda: pular meio de comunicação, ainda que recém-inaugurado na década anterior Tudo à la garçonne (Pedro de Sá (1922). O fato é que somos uma gente Pereira e Américo F. Guimarães) que aprendeu de ouvido, o que sabe é de ouvido e que, com o advento da televi- Hoje no Rio o que está na moda são, nos idos de 1960, transmutou-se de E o que se usa com perfeição ouvinte em telespectador. Fica evidente, Qualquer menina de alta roda por conseguinte, que a relação da gran- Faz um mocinho andar contra a mão de parte da população com a poesia se dá por meio da canção popular e não do Cabelos curtos, bem aparados texto poético literário. Nosso calendário Lindos cangotes nos deixam ver afetivo é costurado por uma trilha sono- Tão sedutores e tão perfumados ra que revela de forma transparente as Que aos gabirus fazem padecer singularidades de cada um de nós. Se é verdade que um segmento da À la garçonne canção faz as vezes da crônica como é É a tal moda de sensação recorrente na marchinha carnavalesca, À la garçonne quando passa em revista os fatos mais Lá na avenida é a toda mão representativos do ano que antecede o [ 69 ] carnaval, podemos, então, afirmar que A mulher moderna, independente, é possível ler, nos versos do cancionei- que buscava se livrar do controle e da ro, aspectos comportamentais diversos dependência do pai e posteriormente do que caracterizam momentos históricos marido, era vista com reservas por um distintos e, conseqüentemente, hábitos expressivo segmento da sociedade. A cotidianos, entre eles a moda. moda dos cabelos curtos na nuca signi- No carnaval de 1925, fez grande su- ficava, em alguns casos, sinal de rebeldia cesso a marchinha de autoria de Pedro como se a adepta ao corte indicasse que de Sá Pereira e Américo F. Guimarães in- ela também poderia igualar-se, usar o titulada Tudo à la garçonne, que atesta o cabelo curto como os rapazes (garçons). quanto o corte do cabelo feminino à altu- O número de canções compostas ra da nuca ganhou ares de escândalo na- por Noel Rosa que trazem traços nítidos quele momento. Antes da transcrição dos da crônica é bastante representativo. versos, vale reproduzir o que nos informa Sempre atento à cena urbana, aos as- Edigar de Alencar no livro O Carnaval ca- pectos circunstanciais da vida cotidiana, rioca através da música. o poeta da Vila Isabel não poderia desa- perceber o valor significativo do código O aparecimento escandaloso do da indumentária, “a boa aparência”, na romance La garçonne (1922), de sociedade. Não é por outra razão que dá Vitor Margueritte, que logo esgo- dimensão poética à pergunta: “com que tou sucessivas edições na França e roupa eu vou?”, no antológico − se espalhou por todo o mundo, re- Com que roupa? (1931). Assumindo a percutiu com intensidade no Brasil, voz de um eu-lírico malandro, nos versos no ano seguinte, quando foi lança- finais, afirma: da a edição brasileira sob o título A Emancipada e como subtítulo o tí- Já estou coberto de farrapo, eu vou tulo original. Tudo era à la garçonne, acabar ficando nu/ Meu paletó virou inclusive o cabelo feminino aparado estopa e eu nem sei mais com que na altura da nuca − grande escân- roupa? Com que roupa eu vou pro dalo na época! (1979, p. 164) samba que você me convidou?

artigo ] FRED GÓES

roupa pra brigar Sou incapaz de machucar uma formiga Não há homem que consiga nos meus músculos pegar Cheguei até a ser contratado Vale ressaltar que a palavra samba, Pra subir em um tablado, na canção, tem sua carga significativa pra vencer um campeão redimensionada, não se limitando à de- Mas a empresa, pra evitar assassinato signação do gênero musical, refere-se ao Rasgou logo o meu contrato quando baile, à festa. Para freqüentar o “samba” me viu sem roupão era fundamental ir bem apresentado. Tarzan (O filho do alfaiate) é outro sam- Na segunda metade de 1930 (1937), ba de Noel emblemático com relação ao o baiano Assis Valente lança com estron- universo da moda. Aqui o poeta chama a doso sucesso o samba Camisa listada, atenção para os ternos com enchimento, gravado por , em que enormes ombreiras que modelavam a si- narra a aventura carnavalesca de um lhueta masculina, dando a impressão de respeitável cidadão (tinha anel de dou- que todos os homens eram espadaúdos tor) que, nos dias de folia, decide “soltar a atletas. Provavelmente, inspirado em sua franga”. Logo no primeiro verso nos é in- própria complexão franzina, faz uso de formado que ele veste uma camisa lista- sua verve satírica para assumir a voz de da, ícone da indumentária do malandro. um indivíduo “fracote” que se faz pas- O que chama a atenção em Camisa sar por um verdadeiro “Tarzan” quando listada, além da citação da famosa mar- vestido com um determinado terno de chinha carnavalesca Mamãe eu quero, casimira. A menção ao tecido e o sub- de autoria de Jararaca (1937), é a cria- título (o filho do alfaiate) são indicativos tividade do folião na montagem de sua preciosos sobre a moda das décadas de fantasia de “Antonieta” composta de [ 70 ] 1920 e 1930, ao período anterior ao prê- uma saia de veludo feita de cortina e t-à-porter, quando a vestimenta mascu- uma combinação, peça do vestuário ín- lina era toda confeccionada à mão por timo feminino atualmente em completo alfaiates e camiseiros e os cortes de te- desuso e que consistia em uma espécie cidos eram, preferencialmente, importa- de vestido leve de alças, na maioria das dos da Inglaterra, no caso das casimiras vezes de cetim, ornado de delicadas ren- e dos tropicais. Transcrevo parte da letra: das, usada sobre a calcinha e o sutiã. Para completar a fantasia, um estandar- Tarzan (O filho do alfaiate) te de cabo de vassoura. (Noel Rosa) Camisa listada (Assis Valente) Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte, Vestiu uma camisa listada nem conheço futebol... e saiu por aí O meu parceiro sempre foi o travesseiro Em vez de tomar chá E eu passo o ano inteiro sem com torrada ele bebeu parati ver um raio de sol Levava um canivete no cinto A minha força bruta reside e um pandeiro na mão Em um clássico cabide, E sorria quando o povo dizia: já cansado de sofrer sossega leão, sossega leão Minha armadura é de casimira dura Que me dá musculatura, Tirou seu anel de doutor mas que pesa e faz doer para não dar o que falar Eu poso pros fotógrafos, E saiu dizendo eu quero mamar e distribuo autógrafos Mamãe eu quero mamar, A todas as pequenas mamãe eu quero mamar lá da praia de manhã Um argentino disse, me vendo Levava um canivete no cinto e um em Copacabana: pandeiro na mão ‘No hay fuerza sobre-humana E sorria quando o povo dizia: que detenga este Tarzan’ sossega leão, sossega leão De lutas não entendo abacate Levou meu saco de água quente pra Pois o meu grande alfaiate não faz fazer chupeta Rompeu minha cortina de veludo pra fazer uma saia Abriu o guarda-roupa e arrancou minha combinação E até do cabo de vassoura ele fez um E sim de rapaz folgado estandarte Para o seu cordão Noel, mais uma vez, dando provas da genialidade de seu sarcasmo, reduz o Agora que a batucada já vai come- malandro de Wilson Batista a um “rapaz çando eu não quero e não consinto folgado”, destituindo-o de todos os aces- O meu querido debochar de mim sórios característicos dos malandros de Porque ele pega as minhas coisas vai então: tamancos, como calçado, o lenço dar o que falar branco no pescoço, o chapéu de lado, Se fantasia de Antonieta e vai dan- que considera um equívoco (uma rata). çar na Bola Preta Ainda que aqui o levantamento de Até o sol raiar repertório seja brevíssimo e tenha como intuito dar o pontapé inicial na relação Da conhecida polêmica musical tra- entre moda e MPB, não se pode furtar vada entre Noel Rosa e Wilson Batista, à observação da recorrência com que a que teve início em 1933, há dois vestimenta masculina freqüenta os ver- (Lenço branco, de Wilson Batista, e a répli- sos do cancioneiro. Não só o malandro ca de Noel Rosa, Rapaz folgado) cujo foco nos dá indicações de época. Os versos da é dirigido para os acessórios que compu- segunda estrofe de Mucuripe (Belchior e nham o traje do malandro, além da cami- Fagner), gravada em 1972 por Elis Regi- sa listada e do terno branco. na, descrevem a roupa da personagem de Em Lenço branco, Wilson Batista, forma bastante fashion, senão vejamos: valorizando a atitude, o jeito de ser do [ 71 ] malandro, indica na primeira estrofe: Calça nova de riscado Paletó de linho branco “Meu chapéu do lado/Tamanco ar- Que até o mês passado rastando/Lenço no pescoço/Navalha Lá no campo inda era flor no bolso/Eu passo gingando/Provo- Sob o meu chapéu quebrado co e desafio/Eu tenho orgulho/Em O sorriso ingênuo e franco ser tão vadio”. De um rapaz novo e encantado Com vinte anos de amor Em Rapaz folgado, Noel replica Wil- son aconselhando-o a vestir-se como um Quem também gravou essa can- homem digno ao afirmar: ção foi Roberto Carlos e, possivelmen- te, por essa razão lembrei-me que ele Rapaz folgado (Noel Rosa) também, em suas composições, dá indicativos da moda. Quem não lem- Deixa de arrastar tamanco bra de pelo menos dois “detalhes”, da Pois tamanco nunca foi sandália canção Detalhes (1970), em que a voz E tira do pescoço o lenço branco lírica ao dirigir-se à amada observa Compra sapato e gravata sobre o fato de ser “cabeludo” e vestir Joga fora esta navalha que te atrapalha um jeans “desbotado”, indicativos que combinam com precisão com a per- Com chapéu do lado deste rata sonagem que dirige um carro potente Da polícia quero que escapes que “ronca”, como mostra o fragmento Fazendo um samba-canção selecionado da letra: Já te dei papel e lápis Arranja um amor e um violão Se um outro cabeludo Aparecer na sua rua Malandro é palavra derrotista E isto lhe trouxer Que só serve pra tirar Saudades minhas Todo o valor do sambista A culpa é sua... Proponho ao povo civilizado O ronco barulhento Não te chamar de malandro Do seu carro artigo ] FRED GÓES

fato de subir e descer do bonde andando, quanto no modo de usar a camisa aberta e uma calça jeans comprada no contra- bando. Diz o trecho selecionado:

A velha calça desbotada Tradição () Ou coisa assim Imediatamente você vai Conheci uma garota que Lembrar de mim... era do Barbalho Uma garota do barulho Observe-se que a indumentária do Namorava um rapaz que romântico apaixonado, cabeludo, ves- era muito inteligente tindo o famoso jeans délavé, que fre- Um rapaz muito diferente qüenta as canções do Rei terá seu visual Inteligente no jeito de complementado em outra letra: Amante pongar no bonde à moda antiga (1980). Agora o apaixo- E diferente pelo tipo nado old fashion que manda flores à De camisa aberta e amada chama a atenção do ouvinte ao certa calça americana destacar: “apesar do velho tênis/ E da Arranjada de contrabando calça desbotada/ ainda chamo de que- E sair do banco e, desbancando, des- rida/ A namorada”. O figurino do cabe- pongar do bonde ludo, além da calça, tem agora tênis ve- Sempre rindo e sempre cantando lhos, o que confere a ele um ar largadão Sempre lindo e sempre, sempre, (low profile) premeditado. É interessante sempre, sempre, sempre perceber que o cabelo longo referido Sempre rindo e sempre cantando por Roberto Carlos tem uma carga se- mântica bastante diversa da “cabeleira Anos mais tarde, 1984, o mesmo [ 72 ] do Zezé”, da marchinha carnavalesca Gilberto Gil lança uma canção, intitulada homônima de autoria de José Roberto Índigo Blue, em que, ainda uma vez, se- Kelly e Roberto Faissal (1963) em que a guindo a linha de identificação do jeans masculinidade do protagonista é posta com a juventude, com a liberalidade do em dúvida só por causa do cabelo (Será jovem, sugere um clima de intenso ero- que ele é/Será que ele é). O questiona- tismo que rola literalmente “debaixo dos mento entrega, sem sutileza, o machis- panos”, ou, para ser mais literal, debaixo mo homofóbico, de então, período que das blusas e blusões. antecede ao boom da contracultura, ao desbunde, ao flower power, ao sex, drugs Índigo blue (Gilberto Gil) & rock and roll. O jeans, que supostamente iguala a Índigo blue, índigo blue todos nós, chegou a ser identificado com Índigo blusão o próprio conceito de liberdade, nos du- Índigo blue, índigo blue ros anos em que imperava a censura, no Índigo blusão início da década de 1970. No rádio e na televisão o jingle das calças jeans U.S. Top Sob o blusão, sob a blusa propagava aos quatro ventos: “liberdade Nas encostas lisas é uma calça velha azul e desbotada que do monte do peito você pode usar do jeito que quiser”. Toque Dedos alegres e afoitos com o qual se identificava instantanea- Se apressam em busca mente a rapaziada cabeça-feita da época. do pico do peito Em 1979, Gilberto Gil traz a públi- De onde os efeitos gozosos co uma canção intitulada Tradição, em Das ondas de prazer se propagarão que ele memora e reconstrói a cidade da Por toda essa terra amiga Bahia de sua meninice a partir da lem- Desde a serra da barriga brança de uma moça, que morava no Às grutas do coração bairro do Barbalho, que conhece na con- dução. O fragmento da letra que aqui in- Índigo blue, índigo blue teressa é o que diz respeito ao namorado Índigo blusão da tal moça. O modo de ser, a sua postura Índigo blue, índigo blue de machão, o seu charme estão tanto no Índigo blusão

Sob o blusão e a camisa Os músculos másculos dizem respeito A quem por direito carrega Essa Terra nos ombros com todo o Eu sonhei que tu estavas tão linda. Em respeito Aquarela do Brasil, ela atravessava o E a deposita a cada dia salão, agora é embalada, “silente”, nos Num leito de nuvens braços do amado que a conduz na valsa suspenso no céu “dolente”. O clima onírico criado por La- Tornando-se seu abrigo martine nos permite vislumbrar a perso- Seu guardião, seu amigo nagem em seu alvo vestido de baile que Seu amante fiel nos remete, de imediato, aos bailes de formatura, de debutantes e às festas de Em 1939, o mineiro 15 anos, celebrações valorizadíssimas compõe uma canção que ganha a di- então. Dizem os versos: mensão de hino: Aquarela do Brasil. A composição é um exemplo eloqüente de Eu sonhei que tu estavas tão linda um tipo de samba, em grande voga no (Lamartine Babo e Francisco Matoso) período ditatorial de Getúlio Vargas, que, com o tempo, cai em desuso, o samba Eu sonhei que tu estavas tão linda exaltação. Projetava-se internacional- Numa festa de raro esplendor mente o Brasil por sua exuberância tro- Teu vestido de baile lembro ainda pical, seu exotismo latino, tendo Carmen Era branco todo branco meu amor Miranda como nossa embaixadora. A orquestra tocou uma valsa dolente Aquarela do Brasil, com sua letra Tomei-te aos braços, fomos grandiloqüente, ressalta lá pelas tantas dançando ambos silentes a graça, a ginga, o charme da mulher E os pares que rodeavam entre nós [ 73 ] brasileira que arrasta pelo salão o seu Trocavam juras, diziam vestido rendado. Dizem os versos: coisas à meia voz Violinos enchiam o ar de emoções Quero ver essa dona caminhando E de desejos uma centena de corações Pelos salões arrastando Pra despertar teu ciúme O seu vestido rendado Brasil! Tentei flertar alguém Pra mim, pra mim, Brasil! Brasil! Mas tu não flertastes ninguém Olhavas só para mim Há nos versos de Ary alguns indi- Vitórias de amor cantei cativos interessantes. O primeiro, o fato Mas foi tudo um sonho, acordei de nomear a mulher como “dona”, ín- dice de classe socioeconômica superior, Enquanto as moçoilas casadoiras já que freqüenta salões e, mais que isso, desfilam seus vestidos de baile nos salões arrasta o vestido rendado. Esse vestido da canção popular, nos salões carnava- que arrasta é longo, de baile e feito de lescos e na movuca dos blocos no fim material nobre, a renda. dos anos 1940 (1949) a grande estrela é Entre as décadas de 1930 e 1960, Chiquita Bacana (Alberto Ribeiro e João eram recorrentes os bailes em que se de Barro - o ). A letra homena- exigia traje a rigor; os homens usavam geia Josephine Baker, bailarina e cantora casacas, smokings e summer jackets e as norte-americana que se tornou a grande mulheres vestido longo de gala, chama- atração dos palcos parisienses nos loucos dos, geralmente, de vestido de baile. Es- anos 1920, quando aparecia em cena su- tes tinham saias largas e rodadas, além mariamente vestida com um saiote de ba- de decotes generosos. Eram freqüentes nanas e que, anos mais tarde, andou por também os corpetes tomara-que-caia aqui, se apresentando no Cassino da Urca. rebordados com pedrarias, canutilhos e Na marchinha carnavalesca, Chiquita Ba- paetês. A “dona” que atravessa os salões cana representa a mulher emancipada, em Aquarela do Brasil é do mesmo seg- dona do seu nariz, que “só faz o que man- mento social da personagem que baila da o seu coração”. Chama também aten- a valsa no sonho-canção de Lamarti- ção o fato de ser a personagem adepta da ne Babo e Francisco Matoso, de 1941: corrente filosófica vanguardista da época, artigo ] FRED GÓES

caia por cima de mim Caia por cima de mim Caia por cima de mim O que é que a baiana tem? Que é que a baiana tem? o existencialismo, como indicação de ser Tem torço de seda, tem! Chiquita uma pessoa atenta às novidades, Tem brincos de ouro, tem! aos modismos. Dizem os versos: Corrente de ouro, tem! Tem pano-da-costa, tem! Chiquita Bacana Tem bata rendada, tem! (Alberto Ribeiro e Braguinha) Pulseira de ouro, tem! Tem saia engomada, tem! Chiquita Bacana lá da Martinica Sandália enfeitada, tem! Se veste com uma Só vai no Bonfim quem tem casca de banana nanica O que é que a baiana tem? Só vai no Bonfim quem tem Não usa vestido, oi! não usa calção Um rosário de ouro, uma bolota assim Inverno pra ela é pleno verão Quem não tem balangandãs Existencialista com toda razão não vai no Bonfim Só faz o que manda o seu coração, ôi! Um rosário de ouro, uma bolota assim Em 1975, lança uma Quem não tem balangandãs paráfrase da Chiquita Bacana, chamada não vai no Bonfim de A filha da Chiquita Bacana que, atua- Oi, não vai no Bonfim lizando a liberação da mãe, é membro do Oi, não vai no Bonfim “Women Liberation Front”. Um rosário de ouro, Voltando às décadas de 1930 e 1940, uma bolota assim [ 74 ] não poderia deixar de mencionar a fa- Quem não tem balangandãs mosa composição de O não vai no Bonfim que é que a baiana tem? (1939) que pela Oi, não vai no Bonfim precisa descrição do traje da baiana serviu Oi, não vai no Bonfim de orientação para que Carmen Miranda o estilizasse, tornando-se, nos anos 1940, É também Caymmi quem, anos uma verdadeira referência fashion. Na mais tarde, compõe um samba cuja música de Caymmi são enumerados todos descrição da indumentária da persona- os elementos e acessórios que compõem a gem é propositadamente indicada como roupa da baiana: brinco, pulseira e corren- alguma coisa de estranha aos padrões te de ouro, pano-da-costa, bata de renda, do bom gosto. Tem como marca chamar saia engomada, sandália enfeitada e um a atenção para um tipo de acessório rosário de ouro com uma bolota assim. muito em voga na época (1940 e 1950), Pela primeira vez no nosso cancioneiro o bolero. O samba se inscreve na série aparece a palavra balangandã. de composições de Caymmi conhecida como sambas urbanos, uma vez que, di- O que é que a baiana tem? ferente da maioria das músicas de sua (Dorival Caymmi) lavra, a temática não focaliza a vida caiçara, praiana, nem o universo baiano. O que é que a baiana tem? Na série urbana, o autor centra a aten- Que é que a baiana tem? ção na cidade e seus personagens. Em Tem torço de seda, tem! Um vestido de bolero, é precisamente a Tem brincos de ouro, tem! moda, o vestido, que ocupa a berlinda. Corrente de ouro, tem! É bem verdade que a combinação pro- Tem pano-da-costa, tem! posta parece um tanto esdrúxula, um Tem bata rendada, tem! casaco/bolero bordô, podendo variar o Pulseira de ouro, tem! tom para o vermelho com saia verde, Tem saia engomada, tem! azul ou branca de veludo. Mas isso se Sandália enfeitada, tem! dá com o intuito de valorizar os atribu- Tem graça como ninguém tos físicos de quem veste a aberração, Como ela requebra bem! como conclui o compositor: “é que de- Quando você se requebrar, baixo do bolero, lero/tem você yayá.” Um vestido de bolero (Dorival Caymmi)

Um casaco bordô Um vestido de veludo Pra você usar Só pra chatear (Príncipe Pretinho) Um vestido de bolero Lero, lero, lero Eu mandei fazer terno Já mandei comprar Só pra chatear Se o casaco for vermelho Com a gola amarela Todo mundo vai usar Só pra chatear Saia verde, azul e branco Mandei bordar na lapela Todo mundo vai usar O nome que não era dela Apesar dessa mistura Só pra chatear Todo mundo vai gostar É que debaixo do bolero Comprei um par de sapato branco Lero, lero, lero Mais sei que ela só gosta de marrom Tem você yayá Só pra chatear, só pra chatear Cada pé de sapato tem um tom Talvez o par perfeito para essa yayá de casaco bordô seja o rapaz descrito Comprei um bangalô pra nos versos de Príncipe Pretinho, prova- chatear lá na favela velmente, composta no fim da década mais vou morar na Lapa perto dela de 1930, intitulada Só pra chatear, em Só pra chatear ... que o personagem monta um figurino “descompensado”, que beira ao absur- Como mencionado anteriormente, do clownesco para chamar a atenção seria possível estender esta conversa da amada. Era ainda no tempo em que por muitas páginas, comprovando que a [ 75 ] a vestimenta masculina estava basica- moda está refletida no espelho da MPB. mente associada ao terno como referên- Melhor porém limitar aqui esta pro- cia padrão. Veja a letra: vocação que poderá se desdobrar em muitas e muitas outras canções. Agora é moda, de , pode ser um ponto de partida, como também o minúsculo e sensacional Biquíni de bolinha amare- linha, famosa versão de Herve Cordovil, em 1960, para “Itsy bitsy teenie yellow polka dot bikini”. Vestido tubinho, de Zé Keti, pode abrir outra vereda. Fico por aqui ouvindo o som da voz da moda diante do espelho da MPB: Existe al- guém mais top do que eu?

REFERÊNCIAS

ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário de música popular brasileira on-line. Disponível em . Acesso em 01 jul. 2008. ALENCAR, Edigar. O carnaval carioca através da música. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

CANÇADO, Beth. Aquarela brasileira. Brasília: Corte, 1995, 6o vol.

CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

COUTINHO, Afrânio. Enciclopédia de Literatura Brasileira. São Paulo: Global. 2001. 2o vol.

GÓES, Fred (Org.) Brasil, mostra a sua máscara. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007. SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Ática, 1999.