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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Renata Felisatti Gonçalves Pereira

Elas, outras, algumas

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

São Paulo 2021

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Renata Felisatti Gonçalves Pereira

Elas, outras, algumas

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestra em Psicologia Clínica sob orientação da Profa. Dra. Suely Belinha Rolnik.

São Paulo 2021

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura______

Data______e-mail______

Renata Felisatti Gonçalves Pereira

Elas, outras, algumas

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestra em Psicologia Clínica sob orientação do Profa. Dra. Suely Belinha Rolnik.

Aprovada em: __/__/__

Banca Examinadora

______Profa. Dra. Suely Belinha Rolnik (orientadora) Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)

______Prof. Dr. Peter Pál Pelbart Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)

______Profa. Dra. Rosane Preciosa Sequeira Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

TE amo demais. Você me permite ser quem eu sou. Mesmo sendo muitas. E essas muitas encontram as suas muitas. Je t’aime.

Masi: dentro de mim tem você.

Agradeço às mulheres maravilhosas e aos seres femininos incríveis desta jornada

Masi Torres. Ana Carolina Magarão Silva Costa. Cristhiane Camargo Rocha. Marina Dias. Luciana Nigoghossian Santos. Angela_Xu Barbarulo. Mirian Aikel Mansour. Mariana Brasil. Tatiana Barbosa. Bruna Pacheco. Caroline Margoni. Ana Paula Brieda Gomes. José Cavalhero Simon Jr. John Anthony Mendes Bartholomew. Bel Santos Mayer. Rafaela Campostrini Forzza. Thatiana Santos. Gabriela Cunha Ferraz. Maristela Vendramel Ferreira. Jordana Berg. Bruno Leal. Morena Buser. Fábio Henrique Arevalo. Paula Cobo-Guevara. Maria Eduarda Parizan Checa. Ana Lígia Vitta. Patricia Ermel. Ana Luiza Braga. Maria Luiza Proença de Freitas. Angela Donini. Suely Rolnik. Denise B. Sant’Anna. Peter Pál Pelbart. Rosane Preciosa. Ana Maria Preve. Ana Godoy.

Aos meus pais, Ana Luisa e José Horácio pelo apoio eterno.

Aos meus irmãos, Juliano e Rodrigo, por estarem neste caminho comigo.

À minha mulher, te amo, Masi.

RESUMO

PEREIRA, Renata Felisatti Gonçalves. Elas, outras, algumas. 2021. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2021.

Essa pesquisa foi feita por uma mulher montadora. Trata-se de um pensamento da montagem que busca trazer à tona as vozes de mulheres, as montadoras de cinema e contadoras de estórias pelas imagens e sons. As mulheres, ao longo da história e da história do cinema foram sendo apagadas e suas estórias nunca contadas. Essa pesquisa explicita um modo de pensar, de fazer cinema por meio das estórias de algumas mulheres e da criação de personagens que emprestam as suas vozes e corpos para contar parte dessa estória de forma que a voz seja sempre de uma mulher e de seus processos e relações.

Palavras-chave: Mulheres. Montagem. Cinema. Ficção. Subjetividades.

ABSTRACT

PEREIRA, Renata Felisatti Gonçalves. They, others, some women. 2021. Dissertation (Master’s degree in Clinical Psychology) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020.

This research was done by a woman film editor. This is a thought of montage/editing (process) that seeks to bring out women’s voice, the women film editors and women storytellers through images and sounds. The women, throughout the history and the history of cinema/films, have been erased and their stories never told. This research explains a way of thinking, of making films through the stories of some women and the creation of characters who lend their voices and bodies to tell part of this story, so that the voice is always of a woman and her process and relations.

Keywords: Women. Film Editing/Montage. Cinema/Films. Fiction. Subjectivities.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 12 PRIMEIRA CONVERSA | GRADA E ELA OU DESOBEDIÊNCIAS POÉTICAS ...... 14 SEGUNDA CONVERSA | PETER, PAULA E ELA OU IMAGINAÇÕES ...... 18

UNIVERSO

TERCEIRA CONVERSA | ELAS, EL_S OU PEQUENOS FRAGMENTOS...... 21 CENA INTERNA COZINHA. EXTERNA ESTRADA. INTERNA CASINHA | BATES ...... 25 FRAGMENTO | AGRADO ...... 29 QUARTA CONVERSA | MARGUERITE, FÉLIX, SUELY, A OUTRA E ELA OU RUPTURA DOS SENTIDOS ...... 33 AS MÁQUINAS OU TODA CENA É UMA FICÇÃO ...... 36

AS MÁQUINAS

CENA INTERNA QUARTO | ELLA ...... 40 QUINTA CONVERSA | MORENA, BRUNO, ANA LÍGIA, PAULA, CYNTHIA, FÁBIO, PETER E ELA OU DIVERSAS VOZES ...... 43

A MONTAGEM ...... 48-77 I REFLEXÕES DE UMA MONTADORA ...... 48 II ELAS E A MONTAGEM ...... 49 III O JOGO E ELAS OU...... 52 IV JOGO DE CENA OU JORDANA B...... 55 V ALGUMAS MONTADORAS ...... 59 VI UMA OUTRA GRAMÁTICA SINGULAR DA MONTAGEM ...... 64 VII THE FUTURE AND THE PAST ARE FEMALES OU ESTÓRIAS NÃO CONTADAS ...... 70

SEXTA CONVERSA | ELAS OU FLERTE ...... 78

FRAGMENTO | MULHER REFUGIADA ...... 80

QUARENTENA

SÉTIMA CONVERSA | KUNICHI, PETER, A OUTRA E ELA OU A EXPERIÊNCIA DE TRATAR A IMAGEM COMO TEXTO ...... 84 OITAVA CONVERSA | ELAS OU O CANTO DA SEREIA ...... 86 FRAGMENTO | MULHER AFRICANA ...... 89 CENA INTERNA RÁDIO | NAOME ...... 92 CENA INTERNA CASA | NAOME ...... 94 OUTRA CENA INTERNA RÁDIO | NAOME ...... 96 NONA CONVERSA | SUELY, PETER E ELA OU COMO NASCEU ALICE ..... 98 CENA INTERNA CONSULTÓRIO | ALICE ...... 100 DÉCIMA CONVERSA | PERCI, MIRIAN, ANA LUIZA E ELA OU UMA OUTRA LÍNGUA ...... 104 FRAGMENTO | MULHER VERDE ...... 107 DÉCIMA-PRIMEIRA CONVERSA | AS OUTRAS OU AMOR AO PRIMEIRO AFETO ...... 112 A IMAGEM INCONSCIENTE OU EMBRIÕES DE MUNDOS ...... 119

REFERÊNCIAS [ATRAVESSAMENTOS AFETIVOS] ...... 133

Todo esse texto é inspirado nas mulheres. The world is female, always.

Rosane P.: Então, o que eu não sei, sinceramente, talvez, falando, te ouvindo, ouvindo depois o Peter, a própria Suely, é que, eu não vejo que é um material que fica imperturbavelmente fechado, eu acho que ele vaza, vai ter buracos. Por quê? Porque mesmo ela vai experimentando várias montagens de si.

Suely R.: Trabalhar com a palavra, nomear aquilo que você está sentindo, deslocando a palavra. E quanto mais chegamos perto do afeto na palavra, mais estamos abertas às experiências vivas, às possibilidades de florescer. E em nome do afeto, eu me abro para a experimentação com a outra.

ELA: Como está se sentindo?

INTRODUÇÃO

Yo quiero ser mujer sin modelos que imitar. (María Galindo1)

Nas fogueiras não estavam apenas os corpos de “bruxas”, destruídos; também estava todo um universo de relações sociais que fora a base do poder social das mulheres e um vasto conhecimento que elas haviam transmitido, de mãe para filha, ao longo de gerações.

Somos as netas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar. (Silvia Federici2)

Desde pequena sou fascinada pelos mundos que não são o meu. São os mundos delas. Por isso gosto de ouvir e contar estórias. Você entra em contato com outras narrativas. É um fascínio mesmo pela outra. E quanto mais diversa, mais sedutora. Este trabalho é uma declaração de amor a algumas mulheres. Elas fazem parte de mim. Um corpo feito de poros de afetos produzidos por essas mulheres.

A partir das mulheres que me potencializam a estar e a permanecer viva, a olhar dentro e através, a agir para além de mim mesma, nasce esta escrita. Desde a mulher que me deu a vida, me materializando no mundo, passando pelas mulheres que atravessaram minha infância, as mulheres que namorei, as que transei, as que passaram por mim e deixaram lembranças, feridas, marcas, saudades. As mulheres com as quais só pude sonhar, mulheres-devaneios de minha imaginação, fantasia e pele. E as que hoje estão em minha vida.

1 Galindo, M. Mujeres Creando: No se puede descolonissar sin despatriarcalissar, MACBA Barcelona, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pg8qf9NhcbM. 2 Federici, S. Mulheres e Caça às Bruxas. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 72 e 7. 12

Iminência de um colapso irreversível. De um choro abafado. De uma não-existência. É tanta coisa. Uma náusea, um não caber. Palavras que nunca deveriam ser ditas. O sufocamento de uma projeção. O fim do fim. O meu fim. O fim da mulher. Uma vontade de ir para nunca mais voltar. Gritar o silêncio.

Esta escrita nasce de uma dor e de um amor. Uma dor que finalmente veio à tona. Ao longo de minha existência, aceitei em silêncio desafetos infligidos, pequenos abusos diários, me submeti às opiniões masculinas por achar que elas continham mais saber, me sujeitei a me comportar como uma mulher e nunca tive coragem e estima para falar, por ser mulher. E nasce, principalmente, de um amor e de um desejo profundo de declarar meu amor às mulheres.

Sou a somatória de muitas mulheres – visíveis e invisíveis –, das nossas relações, de sonhos sonhados juntas, de dores vividas, alegrias e afetos trocados. Este texto é uma jornada que fala de amor, acolhimento, resistência, coragem, admiração, conversas, liberdade e ética. É uma tentativa de diálogo com mulheres reais ou não, escritoras, filósofas, biólogas, psicanalistas, aikidoistas, advogadas, curandeiras, bruxas, irmãs, amigas, amantes.... de almas femininas, de corpos femininos, mulheres.

“Gênero, como a beleza, está frequentemente no olhar de quem vê. Na prática, o processo de tornar visível o gênero também é o processo de sua criação”, diz Oyèrónke O.3

Uma tentativa de achar o meu modo de escrita e as palavras que cabem em minha voz, desmanchando formas dadas numa dissertação. Foi preciso criar escudos invisíveis e encontrar aliadas que me protegessem contra certos tipos de ataques da mesmice. Ao longo do texto, nos diálogos, na montagem, nas entrelinhas sente-se a presença dessas aliadas e suas forças.

Contornos, bordas. Ela se colocou vulnerável, mostrou sua fragilidade. Tecido. Obliterar. Já fez silêncio, hoje? Já entrou em transe, hoje? Já escutou jazz, hoje? Já leu uma poesia, hoje? Não? Então, hoje, você não viveu.

3 Oyewùmí, O. La Invención De Las Mujeres. Una Perspectiva Africana Sobre Los Discursos Occidentales Del Género. Bogotá: En la frontera, 2017, p. 23. 13

PRIMEIRA CONVERSA | GRADA E ELA OU DESOBEDIÊNCIAS POÉTICAS

ELA: Quem define o que é, para quem e como?

Grada K.4: Há uma narrativa do que é o conhecimento, do que é a arte, e dos corpos, sexualidades e dos gêneros excluídos, e que cria categorias para desumanizar certos corpos e identificá-los como desviantes, inferiores, insubordinados, aqueles que não podem representar a nação. Essa é uma das dimensões do colonialismo, que é patriarcal, é homofóbico, é toda forma de opressão.

ELA: Enxergo e penso de maneira singular, tenho uma voz própria, embora ainda meio sussurrada. A minha invisibilidade e inaudibilidade, como corpo e voz, me inquietam, criam desejos em mim, desejo de mergulhar nessas outras vozes de muitas mulheres, mulheres que me afetam, desvelá-las, conhecê-las, ouvi-las. As nossas trocas e conversas são dignas de serem ouvidas e precisam ser colocadas no mundo.

Grada K.: Como artista negra todo o teu percurso desaparece muito rapidamente. E há um certo populismo em reduzir tua biografia a um roteiro quase de telenovela, uma coisa bem sensacionalista, que não explica quem tu és, nem a complexidade do teu trabalho.

ELA: Então, não é simplesmente ser ouvida e vista, mas de que maneira. Porque, de repente, você é só um roteiro de telenovela, como você diz, ou ainda uma notícia na seção policial, ou um instrumento de discursos políticos. Os lugares para ocuparmos estão dados e a maneira, a maneira é aquela daqueles que criaram os lugares, as categorias.

Grada K.: Nós temos uma noção muito patriarcal e fálica do que é o conhecimento. Fazemos muitas coisas, mas há uma hierarquia: aquilo que está ligado à academia é o verdadeiro conhecimento e a verdadeira profissão. Depois, nós nos especializamos numa coisa, depois fazemos um mestrado, um doutorado... É uma coisa bem fálica que vai crescendo, crescendo, crescendo. Eu acho a coisa é muito mais cíclica, mais circular, em

4 As falas de Grada K. foram extraídas da matéria de Joana Oliveira. “Grada Kilomba: O colonialismo é a política do medo. É criar corpos desviantes e dizer que nós temos que nos defender deles”. El Pais, 12 de setembro de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/19/cultura/1566230138_634355.html. 14 que nosso conhecimento atravessa muitas diferentes disciplinas e está em diálogo com diferentes formatos. O saber e a arte também são territórios de descolonização.

ELA: Ao me deparar com diversas narrativas, ao longo da minha vida, na escola, na graduação, nas ruas, no cinema, nas artes, nos cursos, nos ônibus, nos encontros, no mestrado, notei que a maioria são de autores, pensadores, homens. Como isso aconteceu? Historicamente, as mulheres sequer iam à escola. Durante muito tempo o lugar delas era somente dentro de casa, nem ler e escrever elas sabiam ou podiam. E, uma vez que aprenderam a ler e a escrever, passaram a fazê-lo, mas aí surge um segundo obstáculo: elas não conseguem atravessar as peneiras. Mesmo em espaços onde há mulheres, muitas delas pensam como os homens, perpetuando essa peneira patriarcal, mantendo-a em funcionamento.

Grada K.: A política do colonialismo é a política do medo. É criar o outro, criar corpos desviantes e dizer que eles são assustadores e terríveis e que nós temos que defender-nos deles como barreiras como passaportes e fronteiras.

ELA: Há muitas mulheres que escrevem, mas não se sabe. Há muitas mulheres que montam, mas não se vê. Há muitas mulheres. Por quê? Porque elas não chegam, não atravessam essa barreira invisível ao mesmo tempo duramente concreta. Há mulheres pensando, escrevendo e criando. Onde elas estão? O que acontece é justamente o silêncio, essa longa e lenta caminhada de uma vida toda. E assim, algo impede que as vejamos e as escutemos. Esses séculos todos foram trabalhados para que apenas os homens fossem vistos e ouvidos. Por mil razões: porque a mulher não tem nada para dizer, porque as mulheres não pensam, e quando pensam, é igual a uma xícara. “Ao longo de 30 anos de vigência da Constituição Federal Brasileira os avanços históricos em favor da igualdade de gênero e da superação de discriminações odiosas, são muito lentos. A expressão: ‘os direitos das mulheres são direitos humanos’, foi cunhada nos anos 90, portanto, muito recente, apesar de comemorarmos mais de cinco décadas da Declaração Universal da ONU”5. Não me coloco contra ninguém, muito menos contra os homens, não é um grito de revolta, talvez seja, mas se for, ele é a favor, a favor e em proveito das mulheres.

5 Rocha, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira. Os direitos da mulher nos 30 anos da Constituição Federal Brasileira. Justiça & Cidadania, 11 de outubro de 2018. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/os- direitos-da-mulher-nos-30-anos-da-constituicao-federal-brasileira/. 15

Grada K.: Desmantelar essas estruturas de poder passa também pela linguagem visual e semântica. Normalizamos palavras e imagens que nos informam quem pode representar a condição humana e quem não pode. A linguagem também é transporte de violência, por isso precisamos criar novos formatos e narrativas. Essa desobediência poética é descolonizar.

ELA: Penso que as linguagens são relações e processos para além da forma e do pensamento. Busco por uma liberdade de escrita que se baseie em regras e construções próprias. É preciso procurar uma consonância com essa desobediência poética que você traz. No meu caso, é uma forma a fugir dessa verticalidade fálica do conhecimento.

Grada K.6: Qual conhecimento é reconhecido como tal? E qual conhecimento não o é? Qual conhecimento tem feito parte das agendas e currículos oficiais? E qual conhecimento não faz parte de tais currículos? A quem pertence este conhecimento? Quem é reconhecido/a como alguém que tem conhecimento? E quem, não é? Quem pode ensinar conhecimento? Quem pode produzir conhecimento? Quem pode performá-lo? E quem não pode? E quem permanece fora, às margens?

ELA: Como classificar os meus dizeres e escritos? Um diário? Uma pesquisa? Um filme? Uma dissertação? Qual o vocabulário adequado? Qual a linguagem certa que torna a sua escrita uma dissertação?

Grada K.7: Uma sociedade que vive na negação, ou até mesmo na glorificação da história colonial, não permite que novas linguagens sejam criadas. A responsabilidade de criar novas configurações de poder e conhecimento. Parece-me que não há nada mais urgente do que começarmos a criar uma nova linguagem. Um vocabulário no qual nós possamos todas/xs/os encontrar, na condição humana. Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E podemos falar de quê? Um novo vocabulário, no qual eu pudesse finalmente encontrar-me. No qual eu pudesse ser eu.

6 Kilomba, G. Memórias da Plantação. Episódios de racismo quotidiano. Lisboa: Orfeu Negro, 2019, p. 50. 7 Ibidem, p. 5, 6, 7, 15 e 32. 16

ELA: Essa escrita nasce desse grande desconforto e dor quando eu não pude ser eu. Ao perceber como as nossas vozes ainda são silenciadas. Portanto, quais são as limitações que um corpo de mulher atravessa para que sua voz, ligada a esse corpo, seja ouvida? Que nossas palavras encontrem ressonâncias e afetos para que juntas, as mulheres, consigam construir uma nova linguagem livre das narrativas patriarcais e dos medos. E que cada uma possa buscar dentro de si mesma a sua própria insurreição.

Grada K.: Gosto de criar instalações em que a audiência vem e não sabe o que é nem como é. Esse momento de confusão é descolonização. É quando começamos a questionar o que é o conhecimento, o que eu sei e o que eu não sei, e porque eu não sei e que relação isso tem com o ato de silenciar e invisibilizar. Na arte, todas as peças são capazes de levantar essas questões.

ELA: Por muitos anos se sentiu invisível. E quanto mais ficava, mais queria ficar. Ser invisível fazia com que pudesse fugir dos rótulos. Ser visível, por ser ela mesma, fazia com que se tornasse alvo. Então, preferiu o invisível. Visível ou invisível, dói.

Grada K.8: A escrita emerge como acto político. Um acto de tornar.

ELA: Nesse momento vem a arte da montagem, um acto, que enquanto corpo, nos torna invisível, mas enquanto voz, nos coloca no mundo. A montagem é uma possibilidade de voz, de construir outras narrativas, de criar ressignificados, de trazer um impacto ontológico, um novo ethos. É preciso ter uma capacidade de sentir, de materializar, de criar outras montagens. Tornar-me narradora.

8 Kilomba, G. Memórias da Plantação. Episódios de racismo quotidiano. Lisboa: Orfeu Negro, 2019, p. 24. 17

SEGUNDA CONVERSA | PETER, PAULA E ELA OU IMAGINAÇÕES

Peter P. P.: Uma espécie assim de sufocamento, é quase um grito, de quem está tentando gritar e não sabe como…é de uma fragilidade muito mais interessante do que essas figuras todas já construídas. Me pergunto se aí não tem um fio que pode ser mais… nem sei que palavra usar.... se é mais vulnerável, mais feminino, ou se não tem nada a ver com isso.

ELA: Sim, frágil. Sinto que todos os encontros com as mulheres, nos Skypes, nas leituras, nas conversas, nas relações, são formas horizontais de nossas fragilidades e de nossos sentidos e afetos, que acredito serem o corpo da minha escrita. Meu encontro com a Grada, no início do texto, já é uma forma de horizontalidade.

Peter P. P.: Agora precisa ver se você consegue se descolar um pouquinho da ideia de personagem, porque isso te prende um pouco, como se você se submeter um pouquinho a uma figura, e talvez o seu foco mais interessante esteja antes, entende? É um chute... pelos fios que foram aparecendo no teu texto e na tua fala. Para não complicar demais, porque tudo isso aqui já é um arco grande, acho que você deveria partir de coisas mais simples e talvez você encontre de fato textos de montadoras que pensam nessa direção também para te ajudar. E deixar um pouco as teorias do feminismo de lado, sabe? Você vai repetir o que outras já disseram, só que pior. E o que é interessante é poder dar expressão ao que só você pode dizer.

ELA: Imaginei Susan Sontag num café, esperando por Annie Leibovitz. O que estaria pensando enquanto espera? Sobre o que conversavam? Fragmentos. A poesia dentro do filme dentro da poesia. Formas e contextos diversos misturados. Criação de novos afetos e olhares. Talvez essa seja a minha desobediência poética.

Peter P. P.: Você vai ter que inventar um pequeno dispositivo de montagem aqui, não existe. Inventar uma maquininha de montagem que inclui texto, inclui foto, que inclui teus encontros amorosos, ou as mulheres que você encontra… o que você quiser… Enfim são muitos elementos que podem entrar. O principal é ter o filtro que é um processo singular, senão entra tudo de qualquer jeito e aí tudo de qualquer jeito é nada.

18

ELA: Outra imagem. Ana Cristina C. fumando um cigarro sentada no chão de seu apartamento. “Toda saudade desobediência. Espaço! Este céu ensurdecedor. Caem pedras de gelo”9. Ela se pergunta se algum dia sua voz será ouvida, no caso, lida. Na página à sua frente, parcialmente em branco, algumas palavras escritas no topo: “Mas poderei dizer-vos elas ousam? Ou vão, por injunções muito mais sérias, lustrar pecados que jamais repousam?”10 E mais para o meio, tecla esse poema, “por afrontamento do desejo. insisto na maldade de escrever, mas não sei se a deusa sobe à superfície. ou apenas me castiga com seus uivos. Da amurada deste barco quero os seios da sereia”11.

Paula C. G.: Acho interessante o livro de Straub e Huillet. É um casal de cineastas europeus, um pequeno livro que é um estudo sobre os filmes. Bom, eles são incríveis… é interessante porque trabalham com estudos preliminares para pensarem filmes… é como uma cartografia com um estudo de imagens, um texto, e depois eles produzem reflexões teóricas, estéticas em relação a essas imagens e aos textos, mas é um trabalho sobre a materialidade tanto da imagem quanto do texto.

ELA: Imaginei Clarice L. vestida de camisa branca masculina, sentada sozinha no sofá de dois lugares e a máquina de escrever no colo. Lispector fumando um cigarro. Lá fora, molhado. Ali dentro, cinza. A cada tragada do cigarro, um pensamento perdido… Ou encontrado?

Peter P. P.: É muito boa essa ideia. De algum jeito é como ter uma visualização possível para o que é uma plataforma que sustenta uma imagem qualquer, mas não é um filme, uma imagem que te inspire de algum filme, que até pode até ser de um filme que você andou montando, um fragmento de texto que você adorou, um comentário que virá de você mesma; você vai construir uma montagem, você vai fazer o trabalho de montadora… mas o copião que vão te entregar é mais ou menos o Universo.

9 Cesar, A. C. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 287. 10 Ibidem, p. 93. 11 Ibidem, p. 27. 19

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TERCEIRA CONVERSA | ELAS, EL_S OU PEQUENOS FRAGMENTOS

Ana G.: Quem tem uma fala semelhante à sua é o biógrafo do Blanchot, quando fala sobre a narrativa, sobre a narratividade. Ele fala a mesma coisa do ponto de vista da escrita. A gente foi ensinada na escola a fazer uma escrita chamada orgânica, que é uma invenção, isso não existe, ela é toda encadeada, é uma linha reta. Isso é a redação escolar: tem que ter começo, meio e fim. E, segundo a professora de redação, segundo todas as professoras de redação desde 1500, a gente tem que escrever sobre uma linha reta. Essa é a narrativa, geralmente cronológica, primeiro veio isso, depois veio aquilo, encadeamento causal, primeiro aconteceu isso aí consequentemente aquilo. Então essa é a escrita que foi e é formatada para todas nós.

Diana P.: Pois é, o Christophe Bident vai fazer uma crítica foda a isso que ele vai chamar de escrita dissertativa, que é o que a gente usa nas teses e nas dissertações, essa escrita dissertativa tem essa narrativização de todas as passagens; todas as passagens são narrativizadas num grau que você não percebe que aquilo foi montado. Isso é escondido. Um pouco na pegada do que você fala, classicamente, sobre a montagem, é que ela permanecesse escondida, que ela não é percebida. Não só se esconde a montagem, esconde-se a sujeira também, esconde-se o ruído, esconde-se muita coisa.

ELA: E, para tirar a montadora dessa invisibilidade, é importante trazer à tona os ruídos, eles são parte do processo da montagem.

Diana P.: Mas a gente não pensa desse modo, a gente não pensa em linha reta. Então, quando a gente escreve, a gente escreve produzindo cenas, pequenos frames. A gente pode chamar de flashes de pensamento, de pequenos fragmentos, algo vem e conseguimos nos demorar ali, uma página, uma folha, uma cena, e aquilo acaba, e é só aquilo... e depois vem outro, e outro.... e não necessariamente eles veem numa sequência, eles veem como quadros (frames). Então nosso trabalho é montar, uma escritora de qualquer coisa é uma montadora.

Rosane P.: Eu pirei e gostei dessa ideia de montar. Eu pensei, legal uma ela e aí você busca um lugar vago em si para fazer um corte num eu insistente que está sempre querendo contar seus segredos, em geral, tediosos. E eu comecei a gostar disso e gosto da 21 sua escritura, eu acho que tem coisas muito interessantes. Me pareceu que são frentes, são três frentes que eu não sei como é que você vai montar e costurar.

Ana G.: A maneira como uma imagem pode entrar, um tanto de palavras que eu tenho arranjadas de um certo modo, girando em torno de um certo eixo, quando de repente eu entro numa imagem giro em torno de um outro… A diversão da criadora/montadora é me fazer perder o chão aqui, ali, é não saber muito bem onde eu estou, e a me pôr a andar de uma maneira que eu não imaginava, me pôr a andar no texto, ler o texto de um modo que eu não imaginava. Isso é para você poder relaxar em relação à escrita, porque é a mesma coisa.

ELA: Caminhando pelo texto e pelas nossas conversas, pude perceber o paralelo do texto com a montagem, e essa forma que busco de não assepsia dos textos. Me lembrei de uma cena do filme neorrealista italiano, Umberto D (1952) de Vittorio de Sica. Na cena da personagem Maria tentando acender um fósforo, ela tenta uma primeira vez e não consegue acender, aí ela tenta uma segunda e a cena inteira é deixada assim, não se corta a primeira tentativa considerando-a um erro, muito pelo contrário.

Gilles D.12: Essa cena se revela com uma nudez, crueza e brutalidade visuais e sonoras que a tornam insuportável, dando-lhe aspecto de sonho ou pesadelo. O neorrealismo como uma arte do encontro – encontros fragmentários, efêmeros, interrompidos.

André B.13: A unidade narrativa do filme não é o episódio, o acontecimento, a surpresa, o caráter dos protagonistas, ela é a sucessão dos instantes concretos da vida, sendo que não se pode dizer que um é mais importante que o outro.

ELA: No caso do neorrealismo, vemos o tempo se manifestar.

André B.14: O neorrealismo procura dividir o acontecimento em acontecimentos menores e estes em acontecimentos menores ainda, até o limite de nossa sensibilidade pela duração.

12 Deleuze, G. Cinema 2. Imagem e tempo. São Paulo: Editora 34, 2018, p. 12 e 14. 13 Bazin, A. O que é cinema? São Paulo: Ubu, 2018, p. 385. 14 Ibidem, p. 386. 22

Ana G.: Algo vem e depois vem outro algo. São cortes-visíveis de um pensamento- imagem [frame] a ser expresso, depois vem outro, não necessariamente são uma sequência, como num sonho.

Gilles D.15: Investida pelos sentidos. Conexão onírica por intermédio dos órgãos dos sentidos, libertos. As personagens são reais, o cenário também, mas não a correlação de ambos, que se aproxima da que existe em um sonho.

Rosane P.: Eu acho que tem um princípio de pensar na montagem, o que que é essa montagem, montar, desmontar e todos os sentidos que essa palavra tenha e aí talvez começar a fazer essa colagem do que te interessa.

ELA: A filha telefona. A conversa para. A mãe pede licença e atende. Não escuto o que falam. Só ouço uns ruídos da cidade. Moto que passa ao fundo. Vez ou outra, uma buzina. Som do Skype. Retomamos. Lemos. Conversamos. Bebemos e rimos. No final, ela era eu e eu era ela. Acompanhou a montagem?

Ana G.: Diferente do filme, em que a montadora tem uma invisibilidade grande e, de saída, a gente atribui tudo à diretora. Então a montadora é absolutamente invisível, embora ela esteja o tempo inteiro lá. Nas dissertações, acontece a mesma coisa, tudo é feito para não vermos o processo, só o “resultado” final. A gente não vê a montagem, tudo é feito para a gente não ver.

ELA: E como essas montadoras criaram, eu não fazia ideia. Elas raramente entram para a história e quando fazem parte da história, são apagadas. Alguns filmes são filmes de ação com cortes rápidos criados por mulheres. , ao montar Tubarão, toda vez que eu achava que devia cortar, não cortava, era a não montagem. Por que os cortes funcionam? O que significa seguir a intuição para montar? Dede Allen foi mandada embora por ser muito “ousada” na montagem de Bonnie & Clyde. As descobertas da montagem não-invisível, da importância da montagem, para muito além do cortar e colar. Um corte que você percebe é uma forma de montar, um corte estranho, rompendo com a continuidade, é um corte. Um corte invisível, é um corte.

15 Deleuze, G. Cinema 2. Imagem e tempo. São Paulo: Editora 34, 2018, p. 16. 23

Patrícia E.: A parábola da montadora: uma visão feminina para o mundo, olhar da mulher para o mundo, costuras que as mulheres fazem do mundo, criação de memórias pelas mulheres.

ELA: O barulho ensurdecedor da obra perfura-lhe os ouvidos, atravessa sua epiderme e funde um ruído infinito. O sexo, o gelo no gim, a obra, os gemidos, tudo uma coisa só.

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CENA INTERNA COZINHA. EXTERNA ESTRADA. INTERNA CASINHA | BATES

Bates sentada na cadeira vermelha da cozinha lendo: ela levanta a cabeça. “A ambulância faz a última curva do parque florestal Chukseong. Ela vê um pássaro preto parecido com um falcão voando em direção às nuvens escuras. Um raio de sol estival ofusca sua visão e ela não consegue mais acompanhar seu voo. Em silêncio, respira profundamente. Olha com ferocidade para as árvores que ardem na beira da estrada, chamas verdes que se agitam como animais selvagens em pé”16. Fecha o livro, entra no carro e cai na estrada. Era dia de semana. Precisava daquele movimento. O destino: uma pequena casinha isolada no meio do mato. Levou um bom tempo para acender o fogo à lenha. A noite estava terrivelmente escura.

Lembrou de sua passagem pelo México. Oaxaca. Incubadora de sonhos. Pela manhã, os sonhos. A noite, os rituais. Xamanismo. Um buraco no meio da terra. Tudo muito quente. Tenda indígena. Entram todas lá. O som do tambor. Fumaça. Pedras na fogueira o dia todo. Água quente com ervas. Sauna sagrada. Um renascer do útero. Viagem. Vi, desvi...... Quatro horas, no escuro total. Sauna com música, com outras mulheres. Outra noite. Outro ritual. Roda da medicina. Círculo de pedras no chão. Pontos cardeais. Ela conversava com as pedras. Uma outra noite, a celebração do Dia dos Mortos. Cemitério. Antepassados. Lápides. Cores. Festa. Comidas. Conversas.

Naquela casa, era a primeira vez que ficava sozinha no meio de coisas tão desconhecidas. Sons estranhos. Um escuro abissal. Começou a ler trechos e notas da estória que estava escrevendo [notas, ruídos, erros à mostra, um processo em evidência]:

Paciência narrativa. Cartografia para pensar um filme: Straub and Hulliet. Desmembrar cenas. Desdobrar em imagem, em texto ao invés de conceituar de fora. Montagem: fragmentos de textos, imagens, reflexões. Diário. Dar expressão ao que só você pode dizer.

16 Kang, H. A Vegetariana. São Paulo: Todavia, 2018, p.171. 25

O que define uma mulher? Ser feminina? Ter um pinto faz de mim uma mulher? Ser masculina? Ter útero faz de mim uma mulher? Ter um homem me define mulher? Ser mãe? Esposa? Ter seios? Vagina? De dentro para fora e de fora para dentro. O que define uma mulher? A biologia? A performance? Afinal, o que faz de uma mulher, uma mulher?

Mulheres (re)existindo à sua maneira

Parte da transcrição da fala da Rosane: Vir com um trabalho que fala de montagem é vir com um trabalho que fala de outras montagens de si, dos afetos, do mundo. Então, é quase assim, é um pretexto maravilhoso para experimentar e ousar fazer outros arranjos. Eu achei que isso era de uma delicadeza.

Suely enquanto conversamos sobre a minha escrita: O que atravessa todas elas?

Maria Eduarda C.: Qual é a continuidade das estórias? Aí me dei conta que eram personagens diferentes e que tinha uma continuidade. E fiquei pensando: o que é que atravessa, que linha em comum atravessa essas personagens e suas estórias. Uma continuidade de algo em comum entre essas personagens. Interseccionalidade. Eu sinto que seu texto traz isso, essa multiplicidade de mulheres. O seu tornar-se mulher é atravessado, não é uma mulher. A mulher não é um lugar identitário, ela não pode ser um conceito fechado, porque ela é justamente aquilo que escapa.

Aspirina. Dor de cabeça. Aspirina. Mais dor de cabeça. Chuva. Enxurrada. Tênis molhado por dentro. Água suja da enxurrada. Ladeira íngreme. Leva tudo. Chuva, muita chuva. Amo a chuva. O verde fica lindo e perfumado depois que ela passa.

Antonio D. N.17: Que fenômeno faz com que a água jorre do solo para a atmosfera com tamanho poder? As árvores. Seios das florestas. Esse rio de vapor que sai da floresta e vai para a atmosfera é muito maior que o do rio Amazonas. Rios são veias; artérias são rios invisíveis, são rios aéreos que são a pulsação, o coração. Floresta: entidade viva.

17 Nobre, A. D. Há um rio sobre nós. TEDxAmazonia, 2010. Disponível em: https://www.ted.com/talks/antonio_donato_nobre_the_magic_of_the_amazon_a_river_that_flows_invisib ly_all_around_us?language=pt-br. 26

Suely R.18: Biosfera: todos os elementos que habitam a biosfera, humanos e não humanos são forças vitais que tomam o corpo e se concretizam temporariamente em determinadas formas por meio de um processo contínuo de criação.

É preciso escrever, escrever, escrever… até que a voz saia para fora. Muita coisa me incomoda na narrativa deles, o tom de voz, os gestos, conteúdo da fala, a superioridade, o tema. O mais insano é que nós, as mulheres, somos, na maioria das vezes, o próprio tema da escrita deles. Eles nos apontam a câmera, nos dissecam, mostram todos os ângulos: close-up, plano americano, plongée, mas a câmera é sempre deles. A hegemonia de um gênero sobre todos os outros irrompe quando o próprio gênero perdeu o sentido.

ELA: O que vem agora? Quem são as personagens? Que estória quero contar?

Adormeceu. Sentiu algo atravessando-a. O mesmo sonho recorrente. México, numa vila chamada Cholula. Lugar quente, abafado, seco, com uma cor forte de terra o tempo todo. Um sol que nunca se escondia. Ela ao lado de uma mulher grávida da vila. Conversavam sobre os cuidados na gravidez enquanto bebiam água. Atrás delas, um pouco afastadas, encontram-se duas outras mulheres. Uma estava deitada com a barriga para cima e seu ventre estava todo aberto. De longe, dava para ver o vermelho escorrendo dela, suando, com muita dor. Ao lado dela, uma outra sussurrava. Todas eram moradoras da Aldeia que cuidavam dela. Era como se ela estivesse perdendo o bebê, morrendo ou.... Ela via aquela mulher por dentro, suas tripas, vísceras e o sangue escorrendo. Tudo muito vermelho. De onde estávamos não dava para ver muito bem. E ela fazia de tudo para que a mulher ao seu lado não olhasse para trás. Buscava de todo jeito entretê-la com palavras, mas dentro dela uma agonia gritava. Sentia a dor da mulher deitada e ao mesmo tempo queria evitar que a mulher ao seu lado visse a cena. Silvia R. C.19 [aparece no sonho recitando um poema]: “El otro lado de la noche es una noche sin noche, sin tierra, sin casas, sin cuartos, sin muebles, sin gente. No hay absolutamente nada en el otro lado de la noche. Es un mundo sin mundo por completo”.

18 Trecho de aula ministrada por Suely Rolnik no Núcleo de Subjetividades do Programa de Pós- graduação em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica São Paulo, 2018. 19 Fala do filme documentário Mar Arriba de Silvia Rivera Cusicanqui, 2016. Disponível em: https://vimeo.com/191010897. 27

Abriu os olhos. Era o escuro transpassando. Ela parou. O ar parou. A noite parou. A vida parou. Ela ficou. Esperou o escuro passar por ela. Só depois de muito tempo respirou.

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FRAGMENTO | AGRADO20

Peter P.P.: Acho que já tem uma voz surgindo aqui com uma, como dizer assim, com uma garra, que vai se adensando, acho que é um texto que está muito habitado.

Outra: Muito, eu entendo, é o Peter quem dá mais pistas de algo que está se passando no seu texto, mas que a ela não percebe.

ELA: Porque ela ficou presa na teoria do corpo, no feminismo, no corpo lésbico, de um tentar encaixar... que não é o meu lugar.

Outra: Exatamente. O que se passa? Esse seu modo de trabalhar, quando você põe esse dispositivo de montagem em funcionamento, e tem alguns componentes que fazem ele funcionar, essa é a maneira como você transa com elas todas. É dessa maneira, e isso é muito legal.

ELA: Lembrei muito quando eu estava pensando no roteiro e somando a isso que você falou..... aquela personagem do Almodóvar, no filme Tudo Sobre Minha Mãe, a Agrado, que é uma espécie de montagem, eu me vi muito nela, nesse lugar. Me sinto essa montagem dessas mulheres todas que me atravessam.

Agrado: Por causas ajenas a su voluntad dos de las actrices que diariamente triunfan sobre este escenario... hoy no pueden estar aquí. Pobrecillas. Así que se suspende la función...A los que quieran se les devolverá el dinero de la entrada, pero a los que no tengan nada mejor que hacer... y pa una vez que venís al teatro/ es una pena que os vayáis. Si os quedáis, yo prometo entreteneros contando la historia de mi vida. Adiós, lo siento, ¿eh? Si les aburro hagan como que roncan, así Yo me cosco enseguida y para nada herís mi sensibilidad, ¿eh? ¡De verdad!

Outra: Que tal trazer ela para o texto?

20 Todas as falas da personagem Agrado são do filme: Tudo sobre minha mãe. Direção: Pedro Almodóvar. Espanha, 1999. 29

ELA: Sim, pensei sobre isso; o lugar da montagem e do afeto que criei por essa personagem.

Agrado: Me llaman la Agrado porque toda mi vida sólo he pretendido hacerle la vida agradable a los demás. Además de agradable, soy muy auténtica.

Agrado: ¡Miren qué cuerpo! Todo hecho a medida...

Clarissa G. e Luiz L.21: A personagem Agrado, mobiliza para desarticular a autenticidade de gênero ao enunciar uma montagem através de uma performance. Pela privação e os efeitos do silenciamento social dos que estão à margem da sociedade, é que irrompe Agrado.

Outra: Esse lugar de não-saber, tente se manter nele, que é o que está te possibilitando experimentar coisas, movimentar coisas. Por isso acho que é importante, mesmo tendo a escuta para as colocações dela, se afastar da demanda que ela faz. E por isso mesmo trazer a Agrado, aquela performance que ela faz, aquela montagem, porque ela é uma montagem. Ela é uma montagem que põe em xeque essa coisa que é o título do texto delas - Performance narrativa multimodal de Agrado em Tudo sobre minha mãe: desarticulando a autenticidade de gênero. Ao afirmar a montagem através de uma performance, Agrado desarticula a autenticidade de gênero para que outras coisas sejam possíveis.

Agrado: Rasgado de ojos, ochenta mil. Nariz, doscientas. Tiradas a la basura porque un año después me la pusieron así: de otro palizón. Ya sé que me da mucha personalidad, pero si llego a saberlo no me la toco Continuo. Tetas Dos. Porque no soy ningún monstruo. Setenta cada una, pero estas las tengo ya superamortizás.

21 Todas as falas de Clarissa G. e Luiz L. foram extraídas do artigo: Performance narrativa multimodal de Agrado em Tudo sobre minha mãe: desarticulando a autenticidade de gênero. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v.16, n.4, p.679-p.708, Belo Horizonte, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbla/v16n4/1984-6398-rbla-16-04-00679.pdf. 30

Clarissa G. e Luiz L.: Agrado é uma contranarrativa, aquela que se apresenta como alternativa à narrativa dominante. Ela se narra ao existir e para existir socialmente. Fissurando os mecanismos por meio dos quais os discursos instauram realidades e formas de agir no mundo. Ao narrar-se, Agrado emerge com sua subjetividade.

ELA: Eu senti assim, como desassossegos dentro de mim. Através da minha escrita quem está falando é uma mulher que ama as mulheres, é uma mulher montadora, mas não quero que isso me limite. Não quero escrever para um gênero ou um tipo de pessoa. Mesmo o texto sendo uma declaração de amor às mulheres. Às vezes, tenho a sensação de que as pessoas querem me colocar em caixinhas, de forma que eu atenda as demandas e necessidades delas. A lógica hegemônica nos anestesia em relação a nós mesmas. eu não pertenço a esse lugar. eu não sou quem eu sou. Eu não pertenço a esse corpo. Estranhamento é angústia, é dor, é não saber.

Clarissa G. e Luiz L: Contemplar uma ‘narrativa autobiográfica’ dentro de uma obra de ficção. Isso seria possível? Entendemos que sim, afinal, o narrar, seja marcadamente autobiográfico ou não, é sempre ficcional. Se partirmos do preceito de que toda narrativa é ficção, narrar autobiográfico também o é. Agrado, por exemplo, se constrói corpóreo- discursivamente ao enunciar sua performance narrativa.

Agrado: Silicona en Labios Frente Pómulos Caderas Y culo. El litro cuesta unas cien mil. Así que echar las cuentas porque yo ya las he perdió. Limadura de mandíbula setenta y cinco mil. Depilación definitiva a laser – porque la mujer también viene del mono. Bueno ¡tanto o más que el hombre! Sesenta mil por sesión. Depende de lo barbuda que una sea lo normal es de 2 a 4 sesiones. Pero si eres folclórica necesitas más, claro...

Judith B.22: O gênero é a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos, no interior de um quadro regulatório altamente rígido, que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência de uma substância, a aparência de uma forma natural de ser.

22 Butler, J. Gender: Trouble: Feminism and the subversion of identity. NY& London: Routledge, 1990, p.33. 31

Agrado: Bueno, lo que les estaba diciendo que cuesta mucho ser auténtica, señora... y en estas cosas no hay que ser rácana porque una es más auténtica cuanto más se parece a lo que ha soñado de sí misma.

ELA: Viver é uma espécie de fronteira, somos todos uma pequena ou grande montagem. A fronteira é uma zona de produção de subjetividades, de atravessamentos do corpo. Tanto Agrado quanto elas buscam romper estereótipos, dissolver apagamentos e ressignificar as experiências. Somos a junção de muitos fragmentos, fragmentos de filme, fragmentos de mulher, fragmentos de imagens justapostas. No final somos todas- fragmentos. Trata-se de uma escrita nascida da montagem de fragmentos, de mulheres, de estórias, de afetos.

Paula C.: Eu tenho uma pergunta para você. A partir do que falaram eu acho que...Você é mulher ou não?

ELA: Às vezes, acho que sim, às vezes acho que eu sou um menino, às vezes acho que eu sou um peixe.

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QUARTA CONVERSA | MARGUERITE, FÉLIX, SUELY, A OUTRA E ELA OU RUPTURA DOS SENTIDOS

Ruptura. A arte convoca a outros olhares e sentidos. Fronteiras e experiências. Ensaios, movimentos em direção à sublimação. Escrita como forma de evitar a loucura e o suicídio. A criação de viver pelo sentir. Ter uma ideia se trata, agora, de um ato de resistência e de amor. Uma voz que luta para perseverar, viver, pulsar. Uma espécie de distração a respeito das atividades úteis, é algo que se insere na experiência humana, é a emoção criadora.

Suely R.23: Mas a ela tem isso, é uma das brigas dela, essa coisa da micropolítica está no corpo dela, e ela está mais acostumada ao discurso mais macro, para isso que existe o Núcleo. Então, pôr sua voz em outra coisa é o trabalho. A dissertação é para fazer essa passagem do macro para o micro, para a sua subjetividade.

Marguerite D.24: Tudo escrevia quando eu escrevia na casa. A escrita estava por todo lado. E quando via os amigos, às vezes mal os reconhecia. Isso torna a escrita selvagem. Vai- se ao encontro de uma selvageria anterior à vida. E sempre a reconhecemos, é aquela das florestas, tão antiga quanto o tempo.

ELA: Eu trouxe algo para você para esse encontro. Desacelerar. Respirar. Pisar na terra. Comer devagar. Escrever.

Outra: O processo de escrever é um processo vital. Qualquer abalo que tenha nesse lugar, onde a vida se desorganiza ou emerge, vai atravessar a escrita. Então as pessoas que não estão escrevendo e estão angustiadas por não estarem escrevendo, não escrevam, porque não é hora, porque estão fazendo outra coisa que é importante para escrever, que é criar as condições da experiência dessa escrita, neste momento.

23 Trecho de aula ministrada por Suely Rolnik no Núcleo de Subjetividades do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica São Paulo, 21 de junho de 2019. 24 As falas de Maguerite D. foram extraídas da revista Polichinello que publicou trechos do livro Escrever traduzido por Rubens Figueiredo, em 29 de abril de 2017. Disponível em: https://revistapolichinelo.blogspot.com/2017/04/escrever-marguerite-duras.html. 33

Roland B.25: Escrever. Engodos, debates e impasses provocados pelo desejo de “exprimir” o sentimento amoroso numa “criação” (particularmente de escrita).

Marguerite D.: Lacan me deixava atordoada. E aquela sua frase: “Ela não deve saber que escreve, nem aquilo que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe.” Esta frase tornou-se, para mim, uma espécie de identidade de princípio, um direito de dizer totalmente ignorado pelas mulheres. A dúvida é escrever.

Outra: É sempre a mesma pergunta: o que é preciso para escrever? A cada vez pode ser algo diferente, a cada texto, a cada momento. E às vezes são coisas simples… às vezes, o importante é mudar de lugar, às vezes, o importante é fazer a mão e não no computador, fazer no meio do barulho ou em silêncio. A cada vez essa pergunta precisa ser recolocada. E a escrita, a formalização dela em palavras, só é possível porque há uma elaboração que cada uma está experimentando na sua relação material com o mundo.

ELA: Qualquer hora você mergulha nesse rio e me conta essa estória.

Outra: Se a gente vive algo tão excepcional que faz com que as palavras disponíveis desapareçam, a gente precisa não escrever, para ter a oportunidade, talvez, de usar outras palavras e talvez fazer de outra maneira. Então não se pode ter pressa. E se tem alguma angústia acompanhando o ler, o escrever, é preciso inventar a maneira de habitar essa angústia, não fugir dela, ela é necessária. É difícil, mas não é mortal. A escrita está lá.

Marguerite D.: É numa casa que a gente se sente só. Mas dentro da casa a gente fica tão só que às vezes se perde. Compreendi que eu era uma pessoa sozinha com a minha escrita, sozinha e muito distante de tudo. Isso durou dez anos, talvez, não sei mais, raramente contei o tempo que passei escrevendo e qualquer outro tempo. [...] Escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e que a encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandona nunca.

ELA: Escrever acontece também na ausência de palavras. Nos apagamentos. Num sopro silencioso. Escrever é montar. Escrever é dor. Escrever é curar. Escrever é libertar-se.

25 Barthes, R. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 157. 34

Escrever é ler. Escrever é olhar pela janela. Escrever é respirar. Escrever é estar sempre só e também acompanhada.

Marguerite D.: E que é apenas dentro dessa casa que fico só. Para escrever. Não para escrever como havia feito até então. Mas escrever livros desconhecidos para mim, e nunca previamente determinados, por mim nem por ninguém. Minha escrita, eu sempre a levo comigo, aonde quer que eu vá, Paris, Trouville. Ou Nova York. Sem sangue, o autor não reconhece mais o seu texto. É uma solidão. É a solidão do autor, a solidão da escrita.

Félix G.26: O espaço da escrita é sem dúvida um dos mais misteriosos que se nos oferece, e a postura do corpo, os ritmos respiratórios e cardíacos, as descargas humorais nele interferem fortemente.

Marguerite D.: Não se pode escrever sem a força do corpo. Essa solidão, para abordá-la, é preciso atravessar a noite. Escrever é também não falar. Não sei por que, estas palavras que acabei de dizer me fazem chorar. Escrever apesar do desespero. Não: com desespero. Estar sozinha com a escrita ainda não semeada. Tentar não morrer por isso.

ELA: corta.

26 Guattari, F. Caososmose. Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 135. 35

AS MÁQUINAS OU TUDO É UMA FICÇÃO

Essas conversas são experiências, trocas de afetos, nas quais o real, o sonho e a imaginação se fundem. Essas mulheres existem? Ou imaginei todas elas? Conversas reais imaginárias, conversas imaginárias reais. Os cortes nos conduzem.

Como juntar materiais tão diversos? É a mesma experiência da montagem. Primeiro você filma, ou no caso, escreve, depois lê, seleciona, tira, põe, edita, vê, ouve, revê e sente. Aplicar os mesmos princípios usados na montagem. Essa é a maneira que estou conseguindo construir um corpo. Transpor a montagem para o texto é um grande desafio. Enquanto a montagem de um filme acontece na horizontal e temos uma visão do todo, a escrita (no computador) acontece na vertical, nos limitando. Mas não é muito diferente de um filme, primeiro produz-se todo material bruto, olha para o mundo através de uma lente, cria imagens e depois editá-las. Neste caso, escrever montando: conversas, fragmentos, personagens.

Uma montagem do século XXI. O que seria? Algo assim como uma montagem sensorial, permeada de narrativas-fragmentos. Está nascendo uma desterritorialização da imagem pela escrita. Qual sentido teria essa montagem? Como serão contadas as estórias no século XXI? Não sei responder essa pergunta. Acho fascinante pensar sobre ela. Algumas intuições: serão construídas a partir de experiências dos sentidos, dos afetos.

A técnica da montagem nasce com processos muito parecidos com uma máquina de costura e muitos cortes eram feitos à mão com tesouras. Mais tarde, teve a passagem da moviola para o computador, e a montagem sofre uma grande mudança de paradigma. Qual será a máquina para montarmos no século XXI?

Me fala um pouco sobre a sua experiência ao ouvir o programa 11 do Máquina de Inscrever27. Por que trazê-la? [ELA ficou um longo tempo em silêncio]. Difícil colocar em palavras essa experiência tão potente de montagem. A limitação das palavras é enorme. A montagem pelo som. Dos áudios, dos cheiros, das imagens, das falas, das

27 Máquina de Inscrever 11º programa da série de Paloma Klisys, 2019. Disponível em: https://soundcloud.com/maquina-inscrever/maquina-de-inscrever-11-programa-da-serie. 36 vozes, dos lugares, das músicas, dos ruídos. Sons abafados, com interferências, com eco, limpos, sujos, da cidade, poesia, sons espaciais. ELA acabou criando um diálogo com o texto. Som de páginas virando. Às vezes para escrever o melhor é não escrever. Sentar na varanda. Caminhar. Fazer uma filha. Pequenas aventuras diversas. Andar descalça na chuva. Cozinhar para si. Andar de skate. Um lápis e um pequeno caderno. Dom Quixote: ver e ouvir coisas, as mais belas, e acreditar nelas. Assim não escrever é escrever. A beleza das coisas simples. ELA pensa a liberdade de colar sons vindos dos mais diversos lugares, sotaques, assuntos, telefonemas, coisas que aparentemente não fazem sentido, podem imprimir em você algo profundo. Somos atingidas pelos sonidos que entram pelos ouvidos. Som? É subversivo, (a)-espacial, intangível. Atravessa paredes. Ocupa espaços. Ar livre. Corpo astral? Experiências. Posturas. Tendências. Modular o corpo astral. Som espacial. Quem são essas pessoas? Fazer movida pelo desejo de fazer. Intuição. Pessoas imaginárias. Em algum momento. Não vão ler. Retalhar o texto? Que bom que tem isso, e que é diferente. Maremotos. Audição fragmentada. É sedutora, entende? Lolola voltei para o Brasil. Acabei de chegar. Como eu faço para falar com você? Tô sabendo que você quer mudar de bar. Atende minha ligação. ELA sabe que é preciso mergulhar nas estórias. Ser porosa. Mistério infindável. Guerreira. Fotografias sonoras. Captação do áudio bruto. Muito barulho de rua. Você viu a pergunta que a mulher fez para mim? A advogada falou... Sensacional lançamento Canaveral. Ecos. Se teu ouvido te ofende, arranca o teu ouvido. Teclas de piano. Vim pra casa sem cigarros. Está mais do que na hora de parar. Teclas da máquina de escrever. Pior, é solidão invertida. 4 horas da manhã. Não posso olhar a janela. É necessário desejar as mulheres. 169 degraus contados e famintos. Perco a escrita porque é necessário limpar o resto da festa. E você? ELA lembra do cheiro de mato molhado. Tum tum tum tum. Leque de plumas de avestruz. Sociologia do fracasso. Carnaval e dublagem. Lua nova. Sangue. Pântano doce. Que terra. Que tribo. Que terra. Que tribo. Que terra. Que tribo. The flowers remain. Diâmetro vermelho. Narciso. Reverso. Lembro de uma vida em horas. Desfecho reverso. Corpo recém- flechado. Memória de vértebras. Bitolas. Acoplagem. Crustáceo. Geleia negra abraçada. Diâmetros estranhos. Milagre da hidráulica. Compostura aparente. ELA lê seu texto em voz alta. Hiato. Ausência. Correria. Solidão. No ritmo do samba. Os círculos me visitam. É preciso escavar outros sons. Reservatório de sentidos. Outra escuta. Sussurro. Habitamos corpos. Florestas. Línguas líquidas. Asas de flores. Lluvia. Insensibles. Vegetacion. Aire. Ventana. ELA, era como se as vozes estivessem dentro dela. Os outros morrem, mas eu não sou os outros, então, não morrerei. Um longo silêncio acontece. 37

Sonhos vivos enterrados sob a terra. Na ficção e na realidade, tudo é ficção. Som de tempestade no mar. Poesia concretista. Zica e a Dona Chica. O jardim é a Amazônia. Para cada olhar a Zica tem um tamanho. ELA parou para escutar a chuva de verão. O que você considera sagrado? Katrina. Tomou um ônibus. Desastres e blues. Nano gafanhotos. Os suicidas não querem morrer. Sem sexo, sem imaginação. Cafetinagem. Libertar o corpo para desejos próprios. Instintos femininos. Amores e pontes. O fogo como mentor. ELA no táxi. Chove. Som de para-brisa. Deusacristina e o waze. A trezentos metros vire à esquerda na avenida. Siga em frente na rua Liberdade. Na rotatória pegue a segunda à esquerda. Som de rádio fora do ar. Montanhas e planícies. Habitar o coração e o desejo.

ELA: Agradeço todos os dias por ser lésbica.

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CENA INTERNA QUARTO | ELLA

Ella em casa sozinha. Havia colocado a vida no bolso detrás da bermuda. Trancada em casa há dias. O fígado partido. O corpo derretido. A alma sangrando. Há dias, não dormia, quase não comia. Vira para um lado. Para outro. Lá fora um vento forte. Nunca gostou de vento. Tudo sai do lugar com ele. Abre o livro de Kuniichi U., escolhe as páginas aleatoriamente, “sua narrativa fragmentada nasce sempre da vida por um fio, da metamorfose e da ambivalência: a mulher que se desumaniza e se descobre mulher, o movimento que teima em se pronunciar no corpo morto, o caos que gera criação... 28” Olhou pela janela e viu seu reflexo. Um corpo sombra. Se tornara a própria dor. Serviu- se de gim. Não acreditava que realmente havia acontecido. A vida anda por si só. Assim como a morte. Eram quatro da manhã. Os silêncios tristes dentro dela sussurravam. Se perdeu dentro. Não conseguia respirar. Não achava o caminho de volta. A cor de uma dor que não passa. Ao longe imaginava a cena: o cigarro queimando entre dois dedos da mão esquerda, na outra, um copo de cristal, metade transparente e metade pintado à mão de um vermelho translúcido. Lindo. Antigo. Foi de sua avó materna. O vento trouxe a chuva. Chuva fina. Escorria na janela. A gota seguia seu caminho natural. Tudo estava escuro. “o escuro que disjunta a voz e a carne, entre a boca que fala e aquela que come e faz um barulho indecifrável, esse escuro é um sinal da parte de fora29”. Não iam mais sair. O burburinho de bar, karaokê, bilhar, o cheiro de fritura… Ella ainda vai ficar sozinha. Muito tempo. Bebeu muito na noite anterior. E na anterior. E na anterior. Não se obrigou a seguir em frente. Experimentou ouvir os sons do entorno. Há dias, os únicos sons vinham de fora. Só uma tristeza pode produzir tamanha presença. Abriu outro livro do Kuniichi U.30, dessa vez quase conseguiu ouvir os sussurros, “o corpo não está separado e, mesmo que desapareça, ainda há algo como uma respiração. A respiração terminada, o ar espiritual expulso. Não é o qi chinês. A humanidade é gasosa, é apenas contorno”. Também já fugi. Corri, gritei, chorei, até atropelar os dias. A música, jazz. A cor, musgo. O tempo, chuva. O sabor, lágrima. O sol começava a nascer. O dia continuou gelado. O telefone não toca mais. Será que deixará de existir também? Outro fragmento em outra página, “o ar em torno de mim, que observava em silêncio uma pequena cobra derretendo,

28 Kuniichi U. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: n-1 edições, 2014, p. 12. 29 Ibidem, p. 113. 30 Kuniichi U. Hijikata Tatsumi. Pensar um corpo esgotado. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 151. 40 avançava com a borboleta em direção ao lugar onde tudo estava fechado”31. Arrepios, febres e suores. Será que só existia quando refletida nos olhos dela? Cada dia sem ela era... Se desfez. “o real dilacera a representação do mundo, infiltra-se no pensamento como uma espécie de violência32”. Um vento bate novamente trazendo seu perfume, as costas arrepiam. Se tornou texto. Uma inexistência fora. Chegou. Subiu a montanha. Um céu azul sublime. O dia continuava gelado. Verde escuro. Árvores centenárias. Orvalhos silenciosos. O aroma da chuva, da terra, vivos. Respirou fundo. Teve vertigem. Caminhou. Espalhou as cinzas. Chorou. Adormeceu. Talvez, estivesse fingindo esquecer- se, evitando os fantasmas de sua vida.

Na tela: A forma como eles rasgam a carne é impressionante enquanto se ouve o grunhido da dor, de uma morte anunciada. O corpo de Ella vibrava, sentia-se viva. Em número maior encurralam o pequeno. Mesmo em maioria e com o triplo do tamanho, precisou da líder para conseguir finalizar. O olhar focado, silencioso, só observando. Aproxima-se lentamente, até que dispara. Ella dispara junto. Nada precisa ser dito e tudo acontece. Simples assim. Na mais perfeita harmonia e violência. Vida e morte. Para alguns a vida é brutalmente curta. Os últimos sons que a criatura ouve acontecem nos dentes de outra criatura. Uma vida alimenta a outra. Roda de Samsara. Ninguém escapa e Ella sabe disso. Leva tempo para criar um verdadeiro rei da selva. A disputa é sempre pelo trono. Plano aberto, movimento em slow, vários felinos. Super close da respiração. A construção da narrativa, música, voz em off e os cortes vão criando o clímax. Os sons da natureza se misturam com o perfume da morte. Ella sente esse perfume e aprecia. Proteger os pequenos. Perpetuar a espécie. Perpetuar a espécie... A carne é rasgada ferozmente, mas consumida aos poucos. Todas comem. Num plano aberto, uma vista aérea da savana, lugar prosaico, poético, quase inocente. Mas o prosaico, o trivial, o ordinário do dia a dia, é cruel. Algo em suspensão. Closes. Vizinhança perigosa. Osso exposto. Revoada. Às vezes, é melhor ser invisível. Como protegê-los, escondê-los do mundo? Pelo. Pele. Patas. Suores. Dentes. Unhas. Ventos. Olhares. Sangue. A sobrevivência depende de ficarem vivas. Um lugar onde o que conta é ficar atento. Alguém sempre vai morrer. Do nada, algo emerge da água. Chifres. Dentes, muitos dentes. Narinas pretas. Espreita. Plano médio. Você sente que a batalha está ganha, se contorce. Mas eis que a suposta presa

31 Kunicchi Uno: Hijikata Tatsumi, op. cit., p. 51. 32 Ibidem, p. 116. 41 surge das águas, viva e salva. Ella se frustra, está se acostumando às mortes. Mais para frente, mudam as protagonistas. A fome aperta. Montagem pura, sentimos o que elas sentem. O filhote fica para trás, sozinho. Sua morte é lenta. Puro alimento. Vemos as vísceras, o sangue vermelho em contraste com o amarelo dourado da pele e o verde da paisagem. O menor ruído pode ser o último. O movimento é preciso. A beleza da natureza não-domesticada, não-subjugada, não-controlada pelo humano. Um mergulho no puramente selvagem. O selvagem é Ella. Ella é o selvagem. Dawn begins death33. Todos se alimentam do grande pedaço de carne sem vida estendido no chão ainda quente. O que antes era pele agora é puro carmim. Observar tão de perto tanto sangue, tanta cor vermelha é fascinante. A velocidade é tudo que ela tem. É tudo que ela precisa. Tudo funciona como numa arena. Olhou a morte de frente muitas vezes. Ela sobreviveu. Ella adormece.

Alguma coisa morre alguma coisa vive

33 Cenas inspiradas na série Império Selvagem. Episódio: A disputa pelo trono. Temporada 3, episódio 4. Fox, produção National Geographic. 42

QUINTA CONVERSA | MORENA, BRUNO, ANA LÍGIA, PAULA, CYNTHIA, FÁBIO, PETER E ELA OU VOZES DIVERSAS

Morena B.: Li as primeiras páginas e fui para o final, depois li debaixo para cima. E isso me alegra e me liberta. Um texto que eu posso ler de baixo para cima ou de cima para baixo. Ou na transversal seguindo os cortes. Me sinto chamada pelo ritmo e isso não é “apenas” uma forma.

Bruno L.: A mulher é um tema, mas também é um endereçamento e tu deixa bem claro no começo que é uma dedicatória, também é um agradecimento, e acho isso interessante de ser demarcado porque aparece no teu texto inteiro essa dedicatória em direção à mulher.

Bruno L.: Outra coisa que eu achei muito legal é a forma como tu vai apresentar as pessoas com quem tu vai conversar, que é a Grada K., a Virginia W., a Silvia F., acho legal a forma como tu coloca assim, e não os dois nomes; já transforma em uma outra coisa. Porque no momento do texto é justamente a fricção entre a leitura dela com esse encontro que já transforma numa outra coisa… que a Silvia F., não necessariamente, ela é a Silvia Federici, mas já é o resultado do teu encontro com ela, pode ser uma apresentação potente, dá um tom autoral teu, que tu é a principal personagem aqui no teu texto.

Bruno L.: Usar ainda mais os elementos da montagem, como o corta, acho que já é um método próprio, teu método da montagem. Ousar ainda mais nisso vai tornar o teu texto ainda mais interessante, com elementos próprios da montagem dentro da escrita. Acho que é uma invenção mesmo. Algo que acaba criando na máquina de escrever.

Ana Lígia V.: Gosto muito do jeito que você escreve, gosto bastante, parece que é uma conversa de fato. Facilita entender o seu caminho, entender o seu percurso, parece que é um diálogo e dá vontade de ler, de te escutar mais.

Ana Lígia V.: Gosto bastante das cenas também, ajudam a entender. Quando você desmembra os diálogos, parece que vai ficando mais claro, não só a voz das autoras, na verdade acho que nem aparece tanto, mas a sua voz aparece bem mais e aí aparece 43 bastante também a sua vulnerabilidade. Parece que essa é a linha que vai meio que surgindo no seu texto.

Ana Lígia V.: Fiquei pensando, por que não fazer um corte invisível que você traz no final do texto? Por que fazer um corte tão duro assim? Porque está tudo na ordem do invisível no seu texto, me dá a sensação. Por que não deixar ir um pouco nessa ordem do invisível também o corte? Sem fazer cortes tão duros. Eu entendo que a ideia é trazer alguma coisa da montagem e eu não entendo nada sobre isso, enfim, é mais como leitora mesmo. Mas por que não, talvez, deixar isso de lado por um momento e tentar fazer esses cortes invisíveis na escrita de algum modo e aí se for o caso depois você introduz isso, não sei? Enfim, isso sou eu pensando.

Paula C. G.: Não sei muito bem como te explicar… bom acho que o conceito de mulher é um pouco complexo, então não fica muito claro para mim se você está... Vou fazer uma interpretação: acho que você gosta das mulheres, você diz que gosta das mulheres, mas acho que é um gostar assim meio desatrevido. Eu gostaria que você transasse com essas mulheres, tipo uma coisa mais do mexer nesse outro corpo que tu gostas.

Paula C. G.: E, depois, eu percebi também que você quer trazer por meio dessa montagem uma coisa mais transversal, se bem que você consiga entrar nesse campo, acho que fica um pouco sem transar com elas. Desculpa minha forma de pensar isso, mas eu percebi isso assim como, falta um entrar nelas, sei lá, discursos, experiências que elas trazem, acho que você tem um interesse.

Cynthia L. V.: Eu concordo com a Paula, se você conseguir entrar ainda mais nisso, aprofundar mais, acho que você vai conseguir falar mais de você, acho que falta um pouco, não sei se talvez um passional no meio, mas parece que você está… parece que você está ainda se desvelando.

Fábio H. A.: Li seu texto nessa madrugada. Entendi bem o que a Paula e a Ana Lígia falaram, mas eu gostei muito, e acho que eu vou a partir do que a Ana disse, que é você está conhecendo essas mulheres e está seduzida, vamos dizer assim, de alguma forma, você coloca no texto que você está afetada, diversas formas de amor, de inspiração, se

44 uma é tesão, a outra te arma para a revolução e assim vai. Agora o próximo passo é o que a Paula está te provocando e eu vou assinar embaixo da provocação da Paula, é você tentar transar com essas mulheres. De alguma forma, desse teu encontro com elas, sair de alguma forma do vislumbre e sair uma criação disso, uma produção.

Fábio H. A.: Nossa como você é sagaz, porque eu lembro das dicas que a Paula e o Peter deram ao fato de você ser montadora, de você trabalhar com cinema e como a gente já vê isso no seu texto, eu que não entendo nada disso, eu amo, eu amei o jeito que você brincou… ali apareceu você mulher cineasta, mas você tá em outro lugar, você não tá fazendo cinema. E como trazer isso que é você. Então esse teu recorte, isso me tocou bastante. Esse teu ato de cortar já é uma forma de criar, de produzir uma coisa nova. Então talvez esse transar que a Paula fala vai entrar nessa parte de você fazer os seus recortes como uma montadora que você é.

Fábio H. A.: E o teu texto está lindíssimo. Eu tô muito orgulhoso. E, Peter, me desculpe, mas ela é minha amiga e eu sou totalmente parcial.

Peter P. P.: E tem alguma censura com esse afeto?

Paula C. G.: Falamos a primeira vez que era com o conceito de mulher, então acho que isso não fica muito claro conceitualmente, sabes? É um pouco isso. Depois eu posso falar mais, mas essas foram as minhas primeiras impressões ao ler o texto. Essas coisas ficaram um pouco…. não são inventadas, tampouco precisa resolvê-las agora. A coisa legal é que você cruzou, começou a entabular os diálogos.

ELA: Acho que a descoberta está vindo junto com a escrita, você vai escrevendo e vai descobrindo, e uma coisa vai transformando a outra. Estou tentando levantar umas questões, por isso, para mim, é muito bom ouvir o que vocês falaram, tudo faz muito sentido. Depois vou refletir e construir coisas a partir desses encontros.

Peter P. P.: Acho que já tem uma voz surgindo aqui com uma garra, que vai se adensando, acho que é um texto que está muito habitado. Ele não parte de grandes teorias nem parte de uma espécie de esfera abstrata, ele parte mesmo de uma necessidade, acho que isso dá

45 para sentir, pelo menos foi a minha impressão, que é um texto que você está precisando escrever. Então não é um exercício gratuito abstrato simplesmente para cumprir tarefa, ou tabela, parece que é algo que vem vindo da víscera e vai ganhando forma. Acho curioso o que você vai enfiando nele, no texto. Primeiro, conversas que não ocorreram, mas que você montou. Antes disso tem o ela. Ela é uma coisa que já dá um salto para a escrita, porque se você dissesse eu, ainda estaria presa demais na tua pessoa, nessa ficção de ser uma pessoa. O ela já te dá uma liberdade. Blanchot diz algo assim que é quando o eu vira ele começa a literatura, a literatura só começa quando a gente se descola desse euzinho, precisa descolar do euzinho para dar passagem para alguma coisa que é a víscera, por exemplo. Então esse é o meu primeiro comentário, esse ela me pareceu muito bem, um dispositivo minúsculo que produz uma espécie de liberdade para inventar. E essa montagem da tua conversa com a Grada, é interessante você tomar frases e conversar com elas num diálogo ou numa espécie de… quer dizer, você a toma como uma interlocutora, uma intercessora. Porque uma coisa é você falar sobre uma autora, outra é você conversar com ela. Eu acho que é uma sacada de lugares numa escrita, são essas duas vozes conversando. Depois tem as transcrições das conversas de orientação que eu acho que está bacana, fiquei surpreso que isso funciona, porque mostra a construção hesitante no início do trabalho e como depois… Eu concordo com o que o Fábio disse, que você muito rápido usou essa ideia de montar um dispositivo de montagem, inventar um dispositivo de montagem, ou seja, uma espécie de transposição da tua arte de montar em imagens para o texto. E achei que funciona também porque, digamos, cada pedaço que você recortou tem uma espécie de tom diferente. O tom inicial é um, o tom da conversa com a Grada é outro, o da orientação é outro, e esse aqui quando você começa a falar das tuas escolhas, que você fez de mulheres, vem essa espécie de enxurrada de nomes, vão chegando assim, e depois um outro tom ainda quando você fala da própria montagem que para mim foi muito interessante.

ELA: Deixar o processo à mostra, como as coisas são construídas, os ruídos, assim como não varrer as folhas que caem das árvores, porque elas não são sujeira.

Peter P. P.: [comentando a versão 27] Você entra na terminologia da montagem, que eu nem conheço, e a partir dali faz uma espécie de inventário das mulheres montadoras e em que medida elas foram… eu não sabia, eu não fazia ideia de que Bonnie & Clyde teve essa montadora e que Lawrence da Arábia, que eu revi semana passada, eu amo esse 46 filme, é maravilhoso. Fiquei surpreso, “ah, então é uma mulher que montou”. Bom, e Um Homem com uma Câmera também. Todos esses exemplos que você deu para mim foram uma total novidade, que elas fossem mulheres, o que já denuncia a minha cegueira, o meu machismo ou essa espécie de silenciamento na cultura do que… Fiquei muito interessado nesse texto. Você está inventando não só o dispositivo, mas uma espécie de linguagem, sem se esforçar. Não é que você não se esforçou, você não está fazendo piruetas para ser novidadeira e isso a gente percebe na primeira frase, se alguém quer ser muito original, esse desejo de ser original você sente no primeiro segundo, mas aqui não é, aqui realmente tem uma certa arte que está se colocando no papel.

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A MONTAGEM

I REFLEXÕES DE UMA MONTADORA

Gosto da ideia de uma outra expressão, uma outra forma de dizer. No princípio ainda buscava, sem saber ao certo como, meios para atravessar um domínio masculino, uma espécie de muro patriarcal, que é o domínio do cinema, usando uma prática, a montagem, que é própria da construção fílmica, agora, em texto.

Montadora. Reflito sobre o que isso significa. Como a montagem me monta e como monto as narrativas, as estórias e as minhas relações com as mulheres. Montar é muito mais do que colar pedaços de imagens [de alguma coisa, de alguém], montar é escolher o que fica e o que sai. É se apropriar da narrativa, dar uma perspectiva a ela. É brincar de esconder e de mostrar. É intuir. É sentir. É ouvir. Partir de um corpo, de uma ideia, de um desconforto, de um deslocamento. As personagens, reais ou não, nascem de um desejo de materializar algo, de ver em palavras, depois, quem sabe, em imagens.

Montar é uma espécie de voyerismo seguro. Agora escrever...

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II ELAS E A MONTAGEM

Meu tempo nessa forma acabou. A nós, não nos é dado o direito ao simples. Só queria ser uma planta. Lindas espadas de São Jorge. Será que são felizes aqui? No meio dessa loucura? Sempre em movimento, engana-se quem pensa que elas estão paradas.

Me pergunta por que as mulheres? Te respondo, por que não?

Pausa, silêncio, passado um bom tempo ela resolve falar.

Amo muito as mulheres por razões diversas. Mesmo as que não conheci ainda. O desejo de estar perto me faz querer estar com elas, ouvi-las, senti-las, abraçá-las. Cœur avec cœur. São experiências: sobre, com, através, dentro. Infinitas, transversais, sensoriais, afetivas. É como experimentar a mim mesma na outra.

No início, pensei em apenas quatro mulheres como forma de me aprofundar nelas. Os encontros ao acaso foram acontecendo e fui percebendo que muitas eram uma possibilidade. E, a cada novo encontro com elas, outras ou algumas, um novo deslocamento acontece.

Chovia torrencialmente. Até a luz da sala estava cinza. O barulho dos ventiladores e da chuva entrecortam a fala de Suely R.: a insurreição é um exercício, a descolonização do desejo é a luta de uma vida. Isso me libertou, me fez perceber que muitas me inspiram, que muitas importam.

Percebo que, quando começo a escrever sobre elas, muitas coisas me vêm, muitos afetos e muitas outras mulheres, mulheres que amo, mulheres apaixonantes, mulheres que ainda não conheci, mulheres. É preciso construir outros sentidos. Outros jeitos de ouvir lendo. Outros mundos, diferente deste que nos impõe uma forma única e hegemônica de narrar. É preciso ser uma voz.

O ato de desmanchamento é um ato para que a vida apareça e as estruturas sejam rompidas. Num lugar rígido e estruturado, como provocar uma desordem?

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Adriana C. (Didi), Ágatha, Agnés V., Agrado, Aidée, Alice, Aline, Amélia, Amora, Amparo, Amy W., Ana Cláudia, Ana Cristina C., Ana G., Ana S., Ana Lígia, Ana Luisa, Ana Luiza, Ana Maria, Ana Paula, Anaïs, Andrea B., Andrea P., Andréia A., Angela D., Angela Xu, Angela Z., Aninha, Anna Leonor, Annie L., Antígona, Ariana, Ariene, Assucena, Bates, Beatriz, Bel, Bell H., Bella, Belle De Jour, Beth, Beyoncé, Bila, Billie H., Bonnie, Bruna MA., Bruna P., Camila (Mi), Cao Liz, Carol A., Carol D., Carol, Carola Q., Carola, Carolina S., Caroline, Cássia E., Cate B., Catherine, Cecília, Chica, Ciça, Cida, Cíntia, Cintia, Cynthia, Clarice L., Cora, Cris C., Cris (Kiki), Cris L., Cris R., Cora, Dainara, Daniela A., Daniela D., Daniela S., Daniela T., Debby, Denise A., Denise M., Denise S., Diana K., Diane P., Dirce, Dona Kiko, Dona Margarida, Drica, Edna, Ella, Ella F., Elídia, Elis Regina, Elis, Elisa, Elza, Erica, Erika, Fabíola, Feca, Fernanda, Fernanda L., Fernanda M., Fernanda T., Fernanda Z., Flavia, Flavinha, Francine, Gabi, Gabriela C. F., Gadi, Gal C., Georgette, Georgea, Georgia, Gil M., Giu, Glória, Grace, Graciela, Grada K., Han K., Hannah A., Helena, Helô, Hilda H., Iemanjá, Isa, Ivana, Jane A., Jaqueline, Jennifer, Jerá, Jess, Joana C., Joana M., Jordana, Josy, Juliana, Juliane M., Juliane, Kamala, Kate W., Kelly G., Lady Gaga, Laura, Lelê, Letícia, Lia S., Lídia, Lika, Liniker, Lorena, Lourdinha, Lu S., Lu H., Luci, Lúcia, Lucy, Luiza, Madonna, Malala, Manu, Manuela, Marcela, Marcia T., Margarete Á., Marguerite D., Mari B., Mari C., Mari M., Mari N., Maria Bethânia, Maria Clara, Maria Eduarda (Duda), Maria Fabíola, Maria Renata, Maria, Marielle F., Marieta S., Marília P., Marina D., Marina R., Marisa M., Maristela, Masi, Mirela, Miriam, Mirian M., Mirian S., Mirta, Mônica M., Mônica Pr., Monica Pz., Monja Coen, Morena, Mylena, Naome, Naomi K., Natália, Natalie P., Nena, Nina S., Núbia, Paola, Patti S., Paty, Patrícia, Paola, Paula, Penélope, Priscilla, Rafaela C. F., Raquel Virginia, Raquel, Regina, Renata, Rosa, Rosane P., Rose, Sabrina D., Sabryna, Sandra, Sandra Tereza, Sarah P., Sarah V., ShellyAna, Silvia C., Silvia F., Silvia M., Silvia, Simone, Sofia C., Sofia, Soninha R., Suely R., Susan S., Susana B., Suzana, Tarina, Tássia R., Tati B., Tati E., Tati P., Tati T., Tatiana N., Teresa Cristina, Tereza R., Thatiana S., Tica L., Ursula L.G., Valeria (Val), Vera L., Vera, Verusckha, Virginia W., Vivi, Vivian, Yansã, Alice in Wonderland...

Por que dessa maneira? Porque é a coisa que me faz sentido, que faz meu corpo vibrar, meu coração celebrar. A forma como vou ligar, conectar mulheres tão diversas numa narrativa multidiversa - as mulheres, as estórias, os encontros, as potências, as lutas, os círculos, as dores, as plantas, os sonhos, as ruínas, os cárceres, as literaturas, as cores, os 50 processos, os corpos, as escolhas, os afetos, as alegrias, os refúgios, os poemas, as lágrimas, as vozes - a montagem é a forma de construir algo que costure todas essas mulheres.

A estória da montagem pelo pulsar (olhar) das montadoras. Qual a jornada das mulheres na montagem? O processo de contar estórias. Estória é a forma de contar a narrativa sufocada e história é a narrativa imposta. O que está por trás das estórias? A força de outras narrativas. Metáforas. Metalinguagens. Poéticas. O movimento da vida transpassando corpos de mulheres, trocando energias, fluxos, onde o ponto de fuga são os encontros com elas. Imagina todas essas imagens acontecendo ao mesmo tempo. Existir numa só dimensão é muito limitante, quando somos muitas camadas.

No início, quando você me perguntou sobre a montagem, fui logo respondendo, a montagem é..... uma colagem, é a arte de contar estórias, é uma forma de ordenar as cenas, mas, nesse domingo, parei para pensar mais sobre as várias coisas da montagem. A possibilidade de ver e ouvir imagens de mulheres, eventos, épocas que não mais se encontram, uma espécie de memória em movimento. Na verdade, tudo não passa de uma ilusão de tempo e movimento, são processos físico-químicos ou digitais colados uns aos outros. E ao mesmo tempo montar é um ato político. Dar vida a uma estória, a uma personagem, a um olhar, a uma voz.

Quando comecei a montar, todos os cortes, os jump cuts, passagens, raccords, fades, elipses, de alguma maneira já tinham sido criados, muitos deles, por mulheres. Uma pequena digressão. Quando era pequena adorava cortar as coisas. Tinha um fascínio pelo ato de cortar, pelos objetos cortantes: tesouras, facas, estiletes, com as próprias mãos. Lembro de ficar horas na cozinha cortando os ingredientes que seriam usados para o almoço: cenoura, batata, maçã, tomate, all kinds of vegetables, meats and fruits. Era essa coisa com a faca mesmo, sabe? O ato de ver as coisas irem se modificando, diminuindo de tamanho, ganhando novas formas. Você já reparou que quando corta algo, ela solta um aroma?

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III O JOGO E ELAS OU...

Assisti pela enésima vez o filme Jogo de Cena34. Separei algumas cenas pelo timecode. Timecode é a posição da cena no tempo do filme:

3:50 - 4:00: Mary: Nós do morro? Lá eu aprendi muitas coisas. Lá eu aprendi a ser gente. Aprendi a ser mulher. Aprendi a ler, a ler um texto, a interpretar.

5:52 - 5:55: Cadeira vazia. Silêncio

18:00 - 18:15: Andrea: choro e silêncio.

19:40 - 21:30: Andrea: mas é porque eu não aguento [...] eu não sei o que eu senti não [...] nessa hora do meu bebê, meu bebê… puta merda.

22:20 - 22:30: Neuza: desde os 8 anos de idade eu me viro.

23:48 - 24:10: Neuza: a gente deu uma trepadinha de galo [...] só sei que foi assim.

28:00 - 28:10: Neuza: resolvi ter a minha filha sozinha […] e ela é muito bonita sabe, muito bonita. Pra eu, que achava assim que ela ia nascer toda desconformada por causa da trepadinha de galo, né? Porque eu achava que o filho pra nascer perfeito tinha que ter aquela relação...

28:28 - 28:38: Neuza: as pessoas acham que porque você se veste assim, você é mulher fácil que vai pegar um homem que vai levar prum motel. Eu acho que isso não tem nada a ver, entendeu?

29:07- 29:15: Neuza: eu sei que eu me amo tanto, eu me adoro tanto, que eu já nem esquento com essa coisa de amor.

34 Todas as falas foram tiradas do filme documentário Jogo de Cena. Direção: Eduardo Coutinho. Brasil, 2007. 52

29:20 - 29:40: Neuza: Hoje eu acordei, tava aquele tempo meio assim, aí eu olhei e falei: poxa São Pedro, eu queria ir bem pra filmagem, eu queria ir bem extravagante, não dá para o senhor mudar esse tempo? São Pedro não mandou o sol pra mim! entendeu?

29:45 - 29:52: Neuza: Já olhou pro céu hoje?

32:40 - 33:20: Fernanda: Aí tia tu não vai matar essa pomba! - Eu? Essa pomba é você, eu vou é te soltar e vrruuummm. Soltou aquela pomba... e aí eu entendi o que era Candomblé, era Freud na prática.

1:09:40 - 01:10:17: Fernanda: daí que eu...... quando eu fiz...... quando eu fiz dezoito anos né?... Que doido cara, muito doido [um grande silêncio e olha fica olhando para baixo]. Daí foi assim quando eu...... quando eu fiz dezoito anos né, eu resolvi...

1:23:09 - 1:23:33: Fernanda: isso foi muito doido porque eu nunca vi o material bruto cortado, editado. Eu não quis ver o material editado, podia até ter pedido, mas eu fiquei achando... aquilo que eu te falei, ela tinha tanta memória quando ela falava de algo, tinha tanta estória, que eu achei que o material bruto era a minha memória.

1:41:32 - 1:42:00: Sarita: se essa rua, se essa rua fosse minha não vou conseguir eu mandava eu mandava ladrilhar com pedrinhas com pedrinhas de brilhante para o meu para o meu amor passar...

Você me pergunta por que essas cenas.

Elas fazem silêncio.

Elas me afetaram de muitas maneiras, as mulheres, as estórias, a liberdade das falas, a montagem e a beleza das cenas. Verdade ou não, elas são pura poesia. É até difícil colocar em palavras quando as coisas te afetam tão profundamente. Quando a Andrea fala “meu bebê, meu bebê, puta merda”, e diz que toda vez que ensaiou a cena em casa, chorou. Que conexão é essa entre duas mulheres que nunca se viram? Que afeto é esse?

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E o jogo onde entra? Elas estão mexendo com o nosso imaginário. Falando coisas que não sabemos com quem aconteceram, nem se aconteceram. O tempo é dado a essas mulheres para falarem, chorarem, cantarem, existirem imageticamente, é mágico, é feminino, é um tempo do sentir, do ser, não do produzir.

Ao mesmo tempo é um jogo entre o cinema documentário e seus mecanismos, é um jogo entre a ficção e o real, entre o real e a imaginação, entre a ficção e a imaginação. A importância da montagem, como ela vai jogando, costurando as falas das personagens, as falas e as mulheres vão se entrelaçando, até que chega um momento que elas se dissolvem umas nas outras, as estórias, as mulheres, as atrizes, as personagens, as falas e as vozes.

E de quem é a estória passa a não ter a menor importância. É a experiência com aquelas mulheres e as estórias que contam. E você vai sendo deliciosamente provocada.

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IV JOGO DE CENA OU JORDANA B.35

Jordana B.: Essa aqui é a minha ilha de edição e aqui é uma montagem que eu tô fazendo.

ELA: Esses são todos frames?

Jordana B.: Sim, em cada ímã desse eu imprimo o frame da cena, escolho o frame representativo daquela cena, às vezes, eu boto um texto aqui embaixo. Mas nesse filme aqui, por acaso, não tem texto, porque é um filme super complexo, em que o texto e a imagem vão ser montados na edição, então eu só tenho a imagem. Transformo no mais lúdico que consigo. Eu faço assim a minha montagem sensorial, na mão, eu tenho um frame na mão, às vezes, eu dou uma pirada, misturo tudo, boto uma cor. Nas bordas desses frames, cada um tem uma cor: laranja, azul e verde, e cada uma delas tem um significado, neste caso, o laranja é a cena da invasão, o verde são cenas na floresta… esse é um filme paraguaio, o azul são cenas dos prisioneiros. Quando você está montando, vai olhando pelas cores, assim você tem uma visão de como está o equilíbrio do seu filme. Por exemplo, eu fiz um documentário que tinha três personagens. Era um cinema direto, três personagens. Um personagem era verde, o outro azul e outro amarelo, e você via o quanto cada um voltava, porque eles não tinham interação entre eles, era só uma cena, outra e outra, típico de cinema direto, eu tenho um verde, amarelo, verde, amarelo, ficou um tempão sem azul.

ELA: Essa coisa das cores, do sensorial, faz muito sentido para mim.

Jordana B.: É... porque a montagem lança mão de várias ferramentas ao mesmo tempo. Contraditórias ou não. Tipo, uma ferramenta matemática, você monta uma coisa matemática, uma coisa visual, uma coisa cromática, você vai casando todos esses recursos, ao mesmo tempo deixando levar o que o filme está dizendo, mas eu aceito muito o ilógico. Não me poupo de estar numa coisa que não tem um sentido assim.... de imediato.

35 Conversa feita por Skype em 22/04/2020. 55

Jordana B.: Vamos falar de Jogo de Cena, Eduardo Coutinho. Vou falar primeiro do processo concreto. A ideia inicial era exatamente essa, pegar pessoas normais, vamos chamar de normais, para elas contarem as suas estórias; esse material iria para uma atriz, para a atriz contar a estória, recontar essa estória, encarnar aquela pessoa. O Coutinho filmou a primeira etapa que foi fazer as entrevistas com as mulheres reais. Montamos essa parte como se estivesse montando um filme, como se o filme fosse só isso. Dona Mariazinha, dona Tereza e tal. Quando a gente acabou de montar isso, tinha tanta força que o Coutinho falou: “mas por que eu vou botar atriz, isso aqui me basta, isso aqui está tão impactante, tão forte.” A gente teve algumas conversas e acabou chegando à conclusão de que isso seria mais do mesmo. Daí voltou-se à ideia da ficção. A gente resolveu que teriam três tipos de relato, a atriz faria o papel da mulher normal, da mulher real, a atriz contaria a sua estória, uma estória sua qualquer, pessoal, e teria uma diferença entre as atrizes conhecidas no Brasil, e as atrizes não conhecidas, que poderiam se passar por pessoas normais. Então, era o desconhecido total, o conhecido total, e uma zona cinza que seriam essas atrizes que não são muito da novela, dos lugares comuns, que tem cara de gente mais normal. Você olha uma Marília Pera, ela nunca é uma pessoa normal, ela tem toda uma... Preparamos para mandar para cada atriz duas coisas: a edição da personagem que tínhamos feito, que a gente queria que ela plasmasse, edição de cinco minutos, dez, sete, oito, e a gente mandou o material bruto também. A Fernanda Torres falou uma coisa que era bem o que representava esse material bruto, era como se fosse a memória da personagem. A Fernanda Torres fazia o papel da Aleta no filme, que é produzir aquele pedaço que a gente escolheu da Aleta, mas ela tinha o material bruto, que é como se fosse a memória dela como Aleta, o material bruto era como se fosse o que não estava mostrado da Aleta no filme, mas que alimentava a Fernanda Torres para ela poder ser aquela Aleta de dez minutos. As atrizes vieram numa segunda leva, gravaram o depoimento da sua personagem, gravaram seu próprio depoimento e o Coutinho pediu uma coisa que praticamente não tinha na montagem, que era que as mulheres contassem a estória daquela personagem em terceira pessoa. Em vez de falar: eu cheguei na minha casa e meu filho não estava ali, era para ela contar na terceira pessoa: ela chegou em casa e não encontrou o filho, aí ela teve um sonho que estava na Santa Casa, e aí os corredores.... E na edição, a única coisa que ficou disso foi de uma atriz que faz a trepadinha de galo, que ela fala assim no final, foi isso que ela disse. Esse pequeno pedaço é um resquício de toda uma camada em terceira pessoa que não ficou no filme, só essa frase. Bom, aí a gente começou uma montagem. 56

Logo no início, a gente se deu conta de que não poderia fazer uma montagem que fosse um pouquinho de uma fala, a outra complementa, corta da pessoa real para atriz, umas completando as frases das outras, isso não daria certo. Isso não ia aguentar dez minutos de filme, ficaria previsível, e entraria num automatismo que logo as pessoas não iam estar prestando atenção, não ia ser real, não ia ser fictício, ia achatar todo mundo numa mesma corrente sem força. A primeira coisa que a gente pensou, não adianta separar, se a gente separar as atrizes famosas do Brasil, que eram Marília Pêra, Andrea Dantas, da sua parceira, o filme ia ficar...., como as pessoas as conhecem, essa é uma atriz, ah ela está repetindo o que eu já ouvi dessa outra mulher aqui que eu não conheço, ia destruir um pouco a ideia de embaralhamento. Então, a gente resolveu que essas duplas andariam juntas, a Fernanda Torres e a Aleta, a Marília e a Sarita, uma das coisas que a gente queria muito, que a gente trabalhou inclusive, era se desligar dessa ideia de quem é a estória, quem é a verdadeira, quem é a falsa. No momento em que a pessoa está com aquela estória, a estória pertence a ela. Assim você vai criando zonas de interpolação. Mas tinha uma questão que se impôs para nós, que era não roubar da personagem o direito de contar seu próprio drama, sua própria dor. Não tratar a dor como uma peça dramatúrgica, que você passa para a outra. A dor não é um artefato dramático. A gente sempre mantinha a fala que considerava importante na boca de quem sofreu.

Não costumo ir ao set de filmagem, nunca na minha vida fui. Não me interesso pelo set de filmagem. Eu não tenho capacidade de ver uma cena que não esteja enquadrada, a não ser através de um enquadre que alguém fez para mim, que alguém escolheu para mim. As pessoas não existem para mim fora da tela, elas são só o que a filmagem me traz. Não me faz apegar a nada e me faz a mais virgem possível com aquelas pessoas, com aquele material bruto.

Minha montagem tem muito que ver com a música e com as figuras de linguagem da música. Eu me utilizo delas. A música, pra mim, é o elemento mais intenso, mais forte, mais determinante da montagem, e o tempo e a música tem isso, a música é formada de divisões, de voltas, de saltos, pra frente, pra trás. É um passeio no tempo. Mais do que os livros que eu li de montagem, de filosofia, de semiótica, é a relação com as línguas, com as palavras das línguas, com a comparação das línguas entre si. Eu tenho uma relação com a montagem muito parecida com a relação com as línguas, não sei bem explicar. Você lê todas as teorias, estuda, quer fazer igual, mas na prática cada filme tem seu 57 próprio manual, não adianta vir com o manual do outro filme, ter o conhecimento teórico ajuda, mas não resolve o teu problema da montagem, você tem que ter uma bagagem, que é uma bagagem que te possibilita se aproximar daquele material, daquele desejo, daquela estória que vai ser contada. E quando você entra no filme com outra abertura, a tua abertura para aquilo possibilita que a voz do filme se sobressaia e diga o que o material está te pedindo, te exigindo que seja feito.

ELA: Foi isso que ela disse.

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V ALGUMAS MONTADORAS

Li um texto sobre montadoras brasileiras chamado cinema de montagem36. Há falas de montadoras e montadores, e, nas delas, elas dizem como se sentem, qual é o processo e as angústias. Me foquei nos textos escritos por elas. Mas aponto um detalhe que me incomodou muito: todos os textos sempre se referem ao masculino, mesmo quando são mulheres falando, diretores, montadores, fotógrafos.

Montadora anônima: trabalho em progresso. 24 de maio: Aceitaram exatamente o cachê que eu pedi, sem nenhuma negociação ou choradeira. Deve ser porque queriam muito que fosse eu a editar esse filme. Não. Burra. Provavelmente aceitaram assim tão rápido porque era muito abaixo. 25 de maio: Me disseram que eram aproximadamente setenta horas de material bruto. E que eram duas câmeras. 30 de maio: Me envia o roteiro por e-mail? Claro. 26 de junho: Começo a ver o material. Caderninho novo, com capa colorida. Pedi para organizar por dia de filmagem. Ainda não sei qual seria o melhor critério, então esse, pra começar, está bom. Começando a ver… hummm. 27 de junho: Entrevistas. Muitas entrevistas. Milhares de entrevistas. 29 de julho Filme, qual filme? São muitos filmes. Muitos assuntos, muito tudo. Não sei pra onde ir. Ligo pro diretor e digo que já vi tudo, que podemos conversar. 1º de agosto: Muitas coisas que não encontrei no material. Quase nada do que ele falou está lá. 3 de agosto: Me vejo de novo só com o material e vazia. Começo a montar as sequências. Abandono o final cut e vou para a mesa pensar na estrutura disso tudo. Não, volto pras sequências, pois a partir delas vou sentir de verdade o filme. Afinal de contas, só estive com o material uma única vez e no fundo não cheguei a dominar seu conteúdo como deveria. 19 de agosto: Match frame. Vamos no bruto checar. Não existe mesmo. Tem um no final, mas o foco está doce. O material é o que é, e não o que ele imaginou. 30 de agosto: Assiste, refaz, assiste, refaz. 5 de setembro: E de repente temos um copião. 30 de setembro: Mais uns ajustes e o filme fica pronto. Faz aí o omf pro som, os quicktimes de referência, etc. 4 de novembro: Volto para o anonimato da minha ilha. Volto para um novo material bruto de duzentas horas. Volto pra minha agonia, onde sou feliz.

36 Todas as falas são extraídas do texto Cinema de Montagem (2015), elaborado pela Caixa Cultural. Disponível em: http://www.caixacultural.com.br/cadastrodownloads1/Cat%C3%A1logo%20Cinema%20de%20Montage m.pdf. 59

Diana Vasconcellos: A sala era muito pequena, nada confortável, cheia de latas de filme com cheiro forte, mas vi que tinha chegado onde todo o trabalho da filmagem fazia sentido. O maior de todos os encantos que o cinema me proporcionou foi o que eu imaginei antes de conhecer: como acontecia a montagem do filme. Decidi ficar. As transformações são complexas na mesma medida em que a nossa relação com imagens, sons e conteúdo estão sofrendo grandes mudanças e alterando a capacidade de atenção e aprofundamento. Contar histórias continua sendo a nossa função. Trabalhar com o tempo que pode ou não ser medido é o maior desafio da montagem. Quanto dura o dia, à noite, os anos, os minutos, um sonho, o susto, a dor, a espera, o medo, o amor? No cinema tudo isso é unidade de tempo inventada. Sempre foi. É fonte inesgotável. Refletir sobre montagem é refletir sobre a percepção do tempo. Montagem é um laboratório permanente, um trabalho de garimpo e também de construção. Enfrentar a sala de montagem é estar disposto a experimentar, ousar, duvidar, mudar de ideia várias vezes por dia e investir fundo na opção mais sedutora e convincente, sem nenhuma garantia de que irá funcionar.

Idê Lacreta: Como vim parar nessa vida de montadora. Depois de dias trancada num quarto, com um pequeno editor cuja velocidade era dada manualmente, uma coladeira e vários pedacinhos de durex já perfurados. Descubro o que é a montagem e fico tão fascinada pelo processo que decido nesse momento não fazer outra coisa. Trabalhávamos em moviolas Steenbeck, que eram mesas de trabalho horizontais, a reprodução em rolos distintos de som e imagem exigia todo um cuidado para que o sincronismo fosse mantido ao longo da edição. O que me fascina: Construir uma história a partir de fragmentos de imagens e sons que – num jogo contínuo de combinações – vão ganhando ritmo, unidade e clareza. O que fica? O que sai? Quais as escolhas que favorecem a construção da narrativa? Quais as escolhas que favorecem a construção de uma personagem, que expressam melhor suas intenções, suas emoções? Decidir a duração dos planos, sua justaposição, a supressão ou acréscimo de falas, a inclusão de música ou novos sons. Tata chamou de “uma partitura de ações cotidianas”. Se é uma cena com estrutura dramática, eu prefiro inicialmente trabalhá-la apoiada apenas nos diálogos e na mise en scène, porque sinto que a música pode disfarçar pontos fracos, esconder falhas e deficiências de construção. A intuição é o que me guia desde o início, e depois a reflexão, a razão. Acredito que um diálogo vai se estabelecendo entre o filme e o montador, que é onde o filme vai se revelando, indicando caminhos.

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Joana Collier: Pensamentos de papel picado. Lembro que a primeira vez que entrei em conexão com o universo cinematográfico foi aos 5 anos em Paris. Minha mãe tinha me levado para assistir A bela e a fera de Jean Cocteau, num cineclube que ficava pertinho da minha casa. Eu me senti imediatamente arrebatada por aquela atmosfera em preto e branco tão instigante quanto amedrontadora. Jordana Berg, foi com ela que eu aprendi a ter método de trabalho, a visualizar e decupar um material bruto. Aprendi a investigar o valor de cada sequência dentro da macroestrutura e a pensar as personagens a partir de sua complexidade. Um bom corte não é um valor absoluto. Depende tanto do material bruto quanto de uma coerência específica dentro da montagem. Por isso, encontrar a linguagem de corte para um filme é muito menos evidente do que parece. Corta-se com o objetivo de conduzir o olhar, existem também cortes que, ao esgarçarem o tempo do plano para além da necessidade de leitura da imagem, provocam a atenção flutuante do espectador, em outros casos, o corte precisa ser brutal, uma ruptura que serve para limpar os olhos do espectador. Para mim, o último fotograma, antes do corte, funciona como a memória do plano anterior e o primeiro fotograma depois do corte, serve para criar uma determinada expectativa em relação ao plano seguinte. E é nessa fricção entre palavras, sons, volumes, cores e movimentos que tanto o ritmo quanto o discurso se constituem. Existem cortes que são tão impactantes que seguem reverberando ao longo de toda a estrutura. Ao longo de uma vida.

Karen Harley: Tornei-me montadora por acaso e aos poucos. Os filmes de arte passavam sábado de manhã num cinema no centro do Recife e nos outros dias da semana, era um cinema pornô. Foi lá que assisti pela primeira vez os filmes de Fellini, Kurosawa, Truffaut, Pasolini. Fiquei com gosto de quero mais. A sensação de espanto que tive ao entrar numa ilha de edição pela primeira vez. Foi aí que comecei a entender o que era de fato montagem ou edição. Achei dificílimo! Como nunca fui de gostar de coisas fáceis, me apaixonei. Me ensinou a ver, a descobrir a potência de uma imagem e a juntá-la com outra. E a ouvir. Me ensinou a ver o ator, prestar atenção em seus olhos e em sua voz, encontrar o seu ritmo. Aos poucos, fui me dando conta que era numa sala escura e fechada que iria passar grande parte da minha vida. Preciso de um tempo sozinha na ilha de edição para poder criar intimidade com o material, ouvir os atores e os silêncios, sentir o ritmo que o filme pede. Não deveria ser uma montagem precisa e sim uma investigação vinda do sentimento e precariedade do personagem. Montar é muito mais trabalhar o filme em sua estrutura geral do que o corte de planos em si. O ritmo dos atores e das imagens, os

61 ruídos e silêncios vão determinar a cadência do filme. As personagens mais interessantes têm camadas e conflitos que muitas vezes se percebem mais no silêncio e nos "erros" do que em seu discurso objetivo. Em geral, os documentários demandam mais tempo de imersão no material bruto para poder achar a estrutura. O filme é, de fato, escrito na montagem, já que o roteiro é uma indicação do que poderá acontecer na filmagem e que nem sempre acontece, para o bem e para o mal. É um processo intuitivo. Penso em Tarkovski quando ele diz que a duração dos planos e o ritmo do filme já estão contidos no material filmado. Cabe ao montador achar esse tempo intrínseco ao filme e permitir que os planos se juntem espontaneamente.

Livia Serpa: Para minha surpresa eu gostei de passar horas no escuro selecionando aqueles fragmentos de filmes. As possibilidades de combinação daquele material rejeitado eram infinitas e foi uma descoberta para mim entender na pratica o quanto o trabalho de montagem é divertido e criativo. Ela perguntou: “- Livia, onde fica o match frame no seu teclado?”. Eu não tinha ideia do que ela estava falando, mas ainda tentei disfarçar e disse: “- Não, eu não uso o match frame”. Ainda me lembro dos caderninhos minúsculos e das canetas coloridas que ela usava para fazer as anotações. Lembro que ia dormir tensa, checando o despertador várias vezes, meu maior medo era perder a hora de manhã. Lembro que a gente se divertia pensando nos cortes. Em Santiago existiam quatro tipos: o corte bom, mas ruim; o corte ruim, mas bom; o corte bom, bom e o corte ruim, ruim. Ela sempre falava pra mim: “Livia você faz o corte muito rápido. Respira antes de apertar a tecla. Coloca mais oito frames, por favor” Todo o bin que eu abria, me questionava: “Tá, por onde eu começo?”. O trabalho de montagem é intuitivo, mas também, extremamente racional e intelectual. Ainda que eu continue achando a intuição a melhor ferramenta da editora. Ainda fico perdida e continuo achando o trabalho de montagem extremamente difícil, mas o pânico inicial ficou sob controle, por enquanto.

Marília Moraes: Lembro sempre de quando eu era criança e minha mãe lia o livro da Cecília Meireles cujo título era: Ou isto ou aquilo. Ela lia aquela poesia repetidas vezes pra mim e eu adorava as estrofes que davam cambalhotas na minha cabeça e em seguida faziam um certo sentido. Ou se tem chuva e não tem sol ou se tem sol e não se tem chuva. Na montagem me deparo com essas escolhas a cada corte. A cada corte penso que se fizesse uma outra opção, o caminho a trilhar seria diferente e, em consequência disso, o filme seria outro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo. E vivo escolhendo o dia inteiro.

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Tenho gostado do pouco, do quase nada. Ele diz muita coisa. Estar na ilha de edição muitas vezes também é lidar com a falta. A linha entre ficção e documentário está cada vez mais tênue, os limites estão se extinguindo e a busca pela emoção e intensidade da história se sobrepõe à divisão entre o real e o imaginário. E é exatamente na ilha de edição que elevamos essa busca à sua mais alta potência. A mistura de todos os elementos a favor da experiência. É ela que deve prevalecer, não só através das narrativas, mas das sensações que o filme pode provocar. Em trezentas horas de material bruto, observei diversas crianças brincando. Durante bastante tempo manipulei as imagens atenta aos gestos, aos silêncios, aos movimentos corporais. Vi a potência, o exercício do desejo, a simplicidade e objetividade de cada ação infantil. O exercício do olhar me trouxe a clareza do quão importante é o estado presente. Essa é mais uma das coisas que me encanta neste ofício, lidar com um universo mais amplo do que o que vai ser mostrado, poder me aprofundar verdadeiramente na matéria, apalpar suas entranhas e a partir disso fazer escolhas que, querendo ou não, carregam um pouco da minha forma de olhar o mundo. E assim, começou então o mergulho em outro universo, mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.

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VI UMA OUTRA GRAMÁTICA SINGULAR DA MONTAGEM

Não se trata de contar uma estória da montagem, de trazer datas, momentos e nem de transcrever termos técnicos, mas sim de fazer uma reflexão a partir de estórias e afetos, teorias diversas, misturadas, resignificadas e montadas. A montagem é um processo de imaginação, imaginar uma estória a partir de um material bruto. É como esculpir, não só o tempo, mas também a gramática.

Depois de muito pesquisar e ainda pesquisando, percebi que muitos livros e filmes contam uma estória da montagem. Existem muitas. A diversidade de estórias: as contadas têm dentro delas as não contadas. Tudo é estória inventada.

Pensamos e sonhamos por corte.

Algumas palavras sobre as teorias da montagem: D. W. Griffith e a montagem paralela, os raccords e a narrativa clássica. A montagem como produção de sentido. A função principal da montagem é narrativa, e a montagem é o que garante o encadeamento dos elementos da ação segundo uma relação, relação de causalidade e/ou temporalidade diegéticas. Sergei Eisenstein traz a montagem dialética como foco, a justaposição de imagens não-infletidas, via na essência do cinema a montagem como construção intelectual e dialética, cinedialética. A montagem não era uma simples colagem de planos, mas sim a arte de expressar e de significar pela relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição origina uma ideia ao expressar algo, produz um sentido que não está presente em nenhum dos dois planos separadamente. Foi Eisenstein quem descobriu a força da montagem e da composição de imagens. O real não tem qualquer interesse fora o sentido que damos a ele, da leitura que se faz dele. O filme não tem como tarefa reproduzir o real sem intervir sobre ele, mas, ao contrário, deve refletir sobre o real atribuindo a ele novos significados. Andrei Tarkovsky e o tempo. Ele despreza totalmente a montagem, diz que o cinema de montagem, com a ideia da justaposição, parece-lhe incompatível com a natureza do cinema. Tarkovsky tem o tempo como foco. Estava convencido de que o principal elemento formal do cinema é o ritmo e não a montagem, como as pessoas costumam pensar. Sentir o ritmo de uma tomada assemelha-se muito ao que sentimos na literatura diante de uma palavra exata. É impossível conceber uma obra cinematográfica sem a sensação de tempo fluindo através das tomadas, mas pode-se 64 facilmente imaginar um filme sem atores, música, cenário e até mesmo montagem. André Bazin e o dentro da imagem, o cinema da transparência. Para Bazin, a vocação ontológica do cinema é reproduzir o real, a montagem como submissão à representação do real. Acreditava que a montagem acrescentava pouco e lembrava ao público que estava assistindo a um filme. No seu manifesto montagem proibida, diz que, quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores de ação, a montagem fica proibida. Ela retoma seus direitos a cada vez que o sentido da ação não depende mais da contiguidade física, mesmo se ela é implicada. A função essencial do filme é mostrar os eventos representados e não deixar ver a si mesma como filme. Nesse sistema, e de modo muito coerente, o que é considerado principal é sempre um evento real em sua continuidade. A montagem também não tem nada a ver com a justaposição de imagens que, quando combinadas, geram um terceiro significado, mas sim com a diversidade da vida percebida.

Este é um parágrafo democrático com diversos pontos de vista sobre a montagem. É legal saber tudo isso, mas não se trata disso.

Há muitos termos e talvez todos eles precisem ser redefinidos. cenas. corpo. corte. decupagem. descontinuidade. dilatação do tempo. dissolve. efeitos. elipse. entre. eterno. experimentações. exportar. fades. fissuras. flashback. fragmentos. fruição. ilha. imagem. imagens não-infletidas. império dos sentidos. importar. jump cut. justaposição. material bruto. memória. métodos. não-linearidade. narração. organizar. paisagem sonora. passagens. plano-sequência. planos. presença. produção de afetos. raccord. ritmo. ruídos. ruptura. selects. sequências. simulacro. sincronizar. som. sound design. takes ou tomadas. tecido narrativo. tempo. timecode. transição. trilha. voice over.

Por que não assim?

Fade out: Esse ir desaparecendo, apagando as montadoras das ilhas e da história. As mulheres sendo desmanchadas. A Silvia F. constrói uma montagem das bruxas, das muitas comunidades de mulheres, da amizade entre elas, dos apagamentos, dos extermínios e da forma como a história das mulheres foi montada com diversos fade outs.

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Fade in: E o aparecimento? Não é uma definição, é uma pergunta, como fazer com que elas reapareçam? De que maneira? Grada K. faz um fade in, traz uma montagem de misturas de culturas, dores e apagamentos, através dos mitos de Édipo e Narciso montando a partir da sua própria linguagem de mulher negra.

Raccord: É o corte invisível. Considerando a invisibilidade da montadora, da montagem e mais da mulher, somos a soma de muitos raccords, assim se mantém a ilusão de continuidade orgânica dos planos históricos montados sucessivamente.

Elipse: Muitos autores e autoras, Arlindo, Flavia, e outros que contam a história dos primeiros cinemas, produzem livros inteiros com páginas e mais páginas sobre o surgimento do cinema e omitem intencionalmente o nome de Alice Guy-Blaché, como se ela fosse pressuposta pelo contexto.

Jump Cut: No início, os primeiros filmes eram montados por mulheres em razão da habilidade delas com as máquinas de costura. A técnica era, a princípio, parecida, e a montagem era vista apenas como algo operacional. Nos anos 1920, a montagem começou a ganhar destaque, a ser vista como algo artístico, e nos anos 1940 as mulheres foram literalmente cortadas para fora e as ilhas tomadas pelos homens.

Corta.

Woody A37: [na ilha] Este não é o nosso filme - diz, intrigado, olhando na extrema esquerda. Cadê o nosso filme?

Sandy: ri e diz: Tem três filmes aí, e são todos nossos.

ELA: [pensando como construir a cena] Na montagem há sempre muitos caminhos, muitas estórias. É uma forma de brincar com o tempo.

37 Lax, E. Conversas com Woody Allen. São Paulo: Cosac Naif, 2008, p. 366. 66

Kuniichi U.38: [no contraluz da imagem] O movimento e a montagem divergem no tempo.

Gilles D.39: [fala olhando para a câmera] Se o cinema não nos dá a presença do corpo, e não pode dar, talvez seja também porque se propõe a outro objetivo: estende sobre nós uma ‘noite experimental’ ou um espaço branco, opera com ‘grãos dançantes’ e ‘poeira luminosa’, afeta o visível com uma perturbação fundamental, e o mundo com um suspense, que contradizem toda percepção natural. Produz assim a gênese de um corpo desconhecido que temos atrás da cabeça, como o impensado no pensamento, nascimento do visível que ainda se furta à vista.

Maurice B.40: [fora do quadro] Tornar visível o invisível. A solidão da experiência da escrita. Ser mesmo penetrado pela decomposição de seu próprio corpo, e ter cada vez a capacidade de reconstruí-lo, mesmo em embrião.

Jean-Luc G.41: [atrás da câmera] Se a filmagem é o olhar, a montagem é o bater do coração. O ritmo vem de uma obrigação e do cumprimento dessa obrigação dentro de um certo prazo. O ritmo vem do estilo, do estilo que a gente tem em face da obrigação. Há pessoas que fogem da prisão com muito estilo.

André B.42: [acendendo um cigarro] A montagem só pode ser utilizada dentro de limites precisos, sob pena de atentar contra a própria ontologia da fábula cinematográfica.

Walter B.43: [entra na sala e fala] Narrar é a facilidade de intercambiar experiências.

Andrei T.44: [filando um cigarro de André B.] Montar um filme corretamente significa permitir que as cenas e tomadas se juntem espontaneamente, uma vez que, em certo sentido, elas se montam por si mesmas. Trata-se, simplesmente, de reconhecer e seguir

38 Uno, K. Gênese de um Corpo Desconhecido. São Paulo: n-1 edições, 2012, p. 116. 39 Deleuze, G. Cinema 2 – Imagem e Tempo. São Paulo: Editora 34, 2018, p. 292. 40 Filme documentário Maurice Blanchot. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QTFUIYtiHXQ. 41 Collier, J. Apostila completa de Montagem, 2016. Disponível em: https://montagem.medium.com/apostila-completa-de-montagem-joana-collier-para-consulta- 747f3100bf52. 42 Bazin, A. A Montagem Proibida. In: O que é cinema? São Paulo: Ubu, 2018, p. 96. 43 Benjamin, W. O Narrador. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 198. 44 Tarkovski, A. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 136. 67 esse padrão durante o processo de juntar e cortar. E aos poucos, porém, manifestar-se-á, lentamente e com clareza cada vez maior, a unidade essencial contida no material.

ELA: [fazendo café] O que você acha desse corte?

Sergei E.45: [entrando na ilha] A montagem não é um meio, mas um fim. Visa exprimir por si mesma, pelo choque de duas imagens um sentido ou uma ideia. Exclui a consideração de um suposto “real”. O “real” só existe a partir de um discurso articulado. Ela se dá pelo conflito.

Andrei T.46: [flashback] Juntar, fazer a montagem é algo que perturba o tempo, interrompe-a e, simultaneamente, dá-lhe algo de novo. A distorção do tempo pode ser uma maneira de lhe dar expressão rítmica. Esculpir o tempo.

Kunichi U.47: [close-up] O tempo parte, finalmente, para fora do movimento através de situações sonoras e visuais puras, é o novo realismo italiano que esboçaria todos os signos da imagem-tempo.

ELA: [abrindo a janela] Kulechov demonstrou que a significação de uma sequência depende exclusivamente da relação subjetiva que o espectador faz de diversos planos colados. Para ele, o todo não é maior do que a soma das partes, mas algo diferente.

Henri B.48: [fora do tempo] O movimento é o que se dá entre esses instantes congelados, isso justamente que o cinema não mostra. O cinema se propõe essa coisa absurda que é sugerir que o movimento possa ser constituído de instantes estáticos, tal como, dois mil anos antes da nossa era, argumentava o pré-socrático Zenão de Eléia, segundo o qual, uma flecha impelida por um arco encontra-se em repouso em cada intervalo mínimo de tempo.

45 Collier, J. Apostila completa de Montagem, 2016. Disponível em: https://montagem.medium.com/apostila-completa-de-montagem-joana-collier-para-consulta- 747f3100bf52. 46 Tarkovski, A. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 144. 47 Uno, K. Gênese de um Corpo Desconhecido. São Paulo: n-1 edições, 2012, p. 114. 48 Machado, A. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas: Papirus, 2018, p. 22 e 23. 68

Sergei E.49: [divagando, subindo a escada] Fragmento é a unidade do filme, às vezes confundido com planos; unidade não de representação, mas de discurso.

ELA: [descendo a escada] Então, para você, a produção de sentido está no encadeamento de fragmentos sucessivos, a partir do modelo de conflito, conflito de fragmento a fragmento, mas também dentro do fragmento.

Sergei E.50: [entrando na ilha] A meu ver a montagem não é uma ideia composta de fragmentos colocados em sequência, mas uma ideia que nasce do choque entres dois fragmentos independentes.

Andrei T.: [escolhendo o plano] Os filmes são como organismos vivos com seu próprio sistema circulatório, que não deve ser perturbado.

Gilles D.51: [plano aberto, indo embora] Dê-me, portanto, um corpo: esta é a fórmula da subversão filosófica. O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo; ao contrário, é aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o impensado, isto é, a vida. É pelo corpo que o cinema se une com o espírito, com o pensamento.

ELA: Depois podemos conversar mais sobre tudo isso?

49 Aumont, J. et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 2018, p. 82. 50 Ibidem, p. 84. 51 Deleuze, G. Cinema 2 – Imagem e Tempo. São Paulo: Editora 34, 2018, p. 275. 69

VII THE FUTURE AND THE PAST ARE FEMALES OU ESTÓRIAS NÃO CONTADAS

Outro dia você me perguntou sobre a história da montagem, na hora fiquei meio sem resposta, gaguejei e percebi que iria te contar a história oficial patriarcal que me contaram, onde só apareciam, praticamente, nomes de homens. Resolvi pesquisar mais a fundo e acabei separando alguns episódios ao longo dessa estória, buscando sempre filmes montados por mulheres. E descobri que elas, na maioria das vezes, eram os grandes talentos por trás dos filmes, sejam como montadoras, diretoras ou pioneiras.

Há uma lista de montadores ao longo da história, todos reconhecidos, registrados e premiados. Porém há uma lista de apagamentos das montadoras. O desejo aqui é trazer as montadoras, as mulheres artistas, as estórias invisibilizadas. Contar a história da montagem, ouvindo a outra versão, a versão delas. Ainda estou à procura de mulheres teóricas da montagem, ao mesmo tempo encontrei muitas que trouxeram, pela prática, uma linguagem da montagem.

No início dos anos 20, muitas mulheres jovens foram contratadas como coletoras de filmes e cortadoras de negativos. Mesmo esse trabalho sendo considerado um trabalho braçal, menor, as mulheres encontraram uma maneira de trazer criatividade para a edição. Os diretores eram mantidos longe da sala de edição, pois rapidamente passavam de um filme a outro, sem ter tempo para a edição. Isso permitiu às montadoras uma liberdade criativa. Como resultado, a edição transformou-se de um trabalho braçal em uma parte crucial do processo de contar estórias. Os homens notaram essa mudança e começaram a buscar carreiras na edição. Enquanto era só um trabalho secundário/menor, eles deixaram que as mulheres fizessem a edição. Mas, quando começaram a perceber quão interessante e criativa era a edição, eles literalmente deram um ‘chega para lá’ nas mulheres, empurrando-as para fora das ilhas e assumindo as salas de edição. Assim, em 1940, a profissão das mulheres cortadoras de filme foi declarada uma profissão em extinção.

Alice Guy-Blaché fez o primeiro filme de ficção, La fée aux choux52/A fada do repolho (1896). Nesse filme, ela traz cenários, cortes, efeitos especiais e uma narrativa, mesmo

52 Filme La fée aux choux. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c_xvf-ZEH7I. 70 que bem curta. Alice foi a primeira a usar muitas técnicas cinematográficas: close-ups, fotogramas coloridos a mão, som sincronizado. Foi produtora e diretora em dois países. Abriu sua própria companhia de cinema, a Solax. Desde muito cedo, ela tinha paixão por explorar a arte que acabava de surgir. Foi assim que, ainda no início do século 20, ela criaria uma linguagem cinematográfica que, anos depois, se tornaria comum: o uso de close-ups em cena para garantir efeito dramático. Usado pela primeira vez no filme Madame a des envies/A madame tem seus desejos (1906), a técnica foi por muito tempo atribuída a Griffith, que só lançaria seu primeiro filme quatro anos mais tarde. Após vinte anos de mundo do cinema, Alice desaparece.

Lois Weber, um de seus primeiros filmes, Suspense53 (1913), é visto até hoje como uma pequena obra de arte. Com 11 minutos de duração, é comparável ao melhor de Hitchcock. Ela foi a pioneira em técnicas como o split screen (dividir a tela) e a dupla exposição, teve seu próprio estúdio por um tempo e, ao lado de Alice Guy-Blaché, foi uma das mulheres que mais contribuíram para as primeiras fases do cinema. Em Suspense, Lois divide a tela em três triângulos para que possamos ver os três personagens ao mesmo tempo. Há um close-up do olho do invasor observando através do buraco da fechadura. Ela usa artifícios que estamos acostumados a ver hoje nos filmes de suspense, como uma cena em que um fio de telefone é cortado com uma faca. A tensão é enorme, graças às técnicas pioneiras de edição cinematográfica. Mesmo se Suspense fosse a única obra de Lois, ainda assim ela seria uma figura importante na história do cinema. Ela morreu sozinha, falida e praticamente esquecida em 1939. O que aconteceu?

Margaret Booth54 montou seu primeiro filme, Fine Clothes, em 1925. Ela ficava até tarde na sala de montagem fazendo experiências com os negativos e as cenas não usadas. Ela praticou a edição com as cenas não utilizadas nos filmes de John Stahl, ficando no estúdio até tarde da noite para fazer experiências com os outtakes. Stahl ficou insatisfeito com a maneira como ele havia editado uma cena e, em vez disso, usou a edição de Margaret. Logo, ela passou a preparar as cenas para o diretor. E em 1923, a que a partir do filme The Dangerous Age (1923), ela começou a receber crédito na tela pela edição

53 Filme Suspense. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zfgiUvBaosg. 54 Hatch, K.. Cutting Women: and Hollywood’s Pioneering Female Film Editors. Women Film Pioneers Project. Columbia University Libraries. Disponível em: https://wfpp.columbia.edu/essay/cutting-women/. 71 de seus filmes. Foram as montadoras mulheres que fizeram a transição para o som. A transição para o som apresentou um desafio particular para Margaret e outras acostumadas a trabalhar com filme mudo. O filme silencioso deu às cortadoras uma boa flexibilidade na seleção e justaposição das imagens. Com a adição de uma trilha sonora, eles perderam essa flexibilidade. Margaret explica a diferença para o filme mudo dizendo: “você poderia jogar o filme de muitas maneiras. Quando veio trilha sonora, tinha que ter cuidado para que estivesse sempre em sincronia”. Foi uma pioneira no estilo clássico de montagem, o corte invisível. Com a chegada do som, vieram os novos especialistas, os homens do departamento de efeitos do estúdio, que interferiam na edição dos primeiros filmes sonoros. Décadas depois, Margaret comenta sobre a interferência deles: “o som era o fundo deles, e todos eles sabiam de tudo. Eles não sabiam absolutamente nada, mas sabiam tudo”.

Elizaveta Svilova55 montou o filme Um homem com uma Câmera56 (1929). Montadora de cinema, diretora, escritora e arquivista, Elizaveta foi uma força intelectual e criativa no início da montagem soviética. Era conhecida pela força de sua montagem e especialmente por casos em que ela apareceu na câmera demonstrando o ato de editar. Por ter trabalhando em filmes que se concentravam na montagem como a força orientadora essencial do cinema, exerceu um papel crucial com a sua experimentação inovadora no início do cinema soviético e na estória do cinema. Sua carreira, que se estendeu muito além de suas colaborações com o marido, Dziga Vertov, avançou significativamente nos primeiros princípios da montagem cinematográfica. Elizaveta começou a trabalhar na indústria do cinema aos 12 anos como aprendiz em um laboratório de cinema, onde limpava, classificava e selecionava filmes e negativos. Esse tipo de trabalho, visto como afim de tarefas domésticas como costura, tecelagem e outras atividades “femininas”, era frequentemente domínio de mulheres na indústria cinematográfica em todo o mundo. Aos 14 anos, Elizaveta foi contratada como editora assistente no estúdio da Pathé, em Moscou, onde cortou e imprimiu fotos até 1918. Ela então se juntou à Goskino, a empresa estatal de produção e distribuição centralizada, em 1922. Lá, gerenciou a oficina de montagem frequentada por montadoras e trabalhadoras de laboratório conhecidas como montazhnitsy. Essas salas, cheias de atividades

55 Molcard, E. Elizaveta Svilova. Women Film Pioneers Project. Columbia University Libraries. Disponível em: https://wfpp.columbia.edu/pioneer/elizaveta-svilova/. 56 Filme Um homem com uma Câmera. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=auFNysJG1v0. 72 barulhentas em lugares como Narkompros e Goskino, foram importantes para um estudo mais aprofundado. Elizaveta assumiu um papel de liderança no grupo Kinoki de Vertov, que defendia um documentário que capturasse a realidade da vida cotidiana na nascente União Soviética. O coletivo Kinoki girava em torno do Conselho dos Três: Vertov, o diretor dos projetos do grupo; Svilova, a editora-chefe; e o irmão de Vertov, Mikhail Kaufman, o principal cameraman/cinegrafista.

Dorothy Arzner foi a única diretora mulher de cinema trabalhando entre 1927 e 1943, e a primeira a dirigir um filme sonoro.

Algumas montadoras: Anne Bauchens, North West Mounted Police (1940), Cecil B de Mille. Viola Lawrence, The Lady from Shangai (1947), Orson Wells. Jolanda Benvenuti, montadora italiana, Stromboli (1950), Roberto Rosselini. Barbara "Bobbie" McLean, All About Eve (1950), Joseph L. Mankiewicz. Marie-Josèphe Yoyotte, montadora francesa, The 400 Blows (1959), François Truffaut.

Jasmine Chasney, Hiroshima Mon Amour (1959), roteiro de Marguerite Duras. O filme Hiroshima Mon Amour, escrito por Marguerite Duras, foi o pioneiro no uso do flashback para imitar flashes de memórias. A técnica flashback nos lembra de maneira, às vezes dolorosa, que memórias persistem dentro de nós, apesar de nossas melhores tentativas de esquecê-las.

Nos anos 1950, Cécile Decugis57, participou, ao lado de René Vautier, no apoio à luta pela independência da Argélia, e, em 1957, dirigiu Les Réfugiés, curta-metragem sobre o deslocamento da população para a Tunísia. Paralelamente, editou os primeiros curtas e longas-metragens de François Truffaut e Jean-Luc Godard. Em 9 de março de 1960, enquanto começava a trabalhar com Truffaut em Tirez sur le pianiste (1960), Cécile Decugis foi presa em Paris. Condenada a cinco anos de prisão por alugar um apartamento para ativistas do FLN (Front de Libération Nationale), ela passou dois anos na prisão de La Roquette, período durante o qual François Truffaut lhe deu assistência financeira. No final dos anos 1960, Cécile se tornou a editora oficial de Eric Rohmer por quinze anos.

57 Eisenschitz, Bernard. Cécile Decugis, editor and filmmaker. II Cinema Ritrovato. Cineteca Bologna. Itália, 2018. Disponível em: https://festival.ilcinemaritrovato.it/en/sezione/cecile-decugis-montatrice-e- regista/. 73

Ela montou o primeiro filme longa-metragem de Jean-Luc Godard, Acossado (1960). Ela foi uma das principais montadoras da Nouvelle Vague. A montagem já havia sido substituída pela câmera em movimento na cena, mas agora a intenção era realizar cortes que quebrassem qualquer continuidade visível. A alteração do tempo dramático e do sentido do material precisaria ser vista como uma experiência, já que a intenção era fazer o espectador não esquecer que se tratava de um filme. Uma das maiores quebras estilísticas nascidas da Nouvelle Vague é o jump cut. A montagem usou o jump cut como ferramenta ideal para a sua anarquia.

Anne V. Coates não planejou ser montadora de filmes. Ela queria ser diretora, mas era uma mulher nascida em 1925, na Inglaterra, e estava tentando entrar em uma Hollywood dominada pelos homens no início dos anos 50. Suas opções eram limitadas. “Quando tentei entrar na indústria, havia apenas alguns empregos abertos para mulheres. Eu não sabia muito sobre edição quando comecei, mas aprendi a amar”. Foi indicada para cinco Oscars, ganhando um, em 1963, por Lawrence da Arábia, de David Lean (1962). O filme foi uma besta/fera para montar. O filme ficou com quase quatro horas de duração. Para esse épico funcionar, precisou ser muito bem montado. No roteiro original, pedia por um dissolve, em que uma cena lentamente se transformava em outra. Anne optou pela correspondência gráfica da chama do fósforo com o calor do deserto amplo, transportando instantaneamente o público para um novo local. É um corte lindo, um corte de correspondência com uma das maiores e mais influentes transições de cena da estória do cinema. Corte de correspondência é um corte rígido - o que significa que a imagem simplesmente muda sem uma dissolução ou um desvanecimento lento - entre duas cenas que são tematicamente ligadas, mas que geralmente são ambientadas em lugares e/ou tempos diferentes. Através do corte do fósforo, Anne conta toda essa estória, de certa forma, em questão de minutos. A câmera amplia o rosto de Lawrence enquanto ele encara a chama ainda acesa na ponta do fósforo. O silêncio se estende por vários segundos, interrompido apenas pela respiração de Lawrence enquanto ele sopra. Imediatamente, a cena muda para o sol escaldante laranja surgindo sobre o deserto aparentemente sem fim - onde grande parte do resto do filme se desenrola. Não é apenas um bom corte, mas também uma narrativa brilhante. Os contrastes das cenas tornam o corte muito impactante. É uma combinação de extremos: a combinação de um close-up da chama do fósforo com o sol surgindo no horizonte, há um salto do micro extremo para o macro extremo. 74

Dede Allen, Bonnie & Clyde (1967), Arthur Penn. Dede era ousada com seu estilo artístico de edição, utilizando audio overlaps [sobreposições de áudio] e jump cuts estilizados, descartando as continuidades convencionais. Suas ideias eram tão provocativas que ela foi demitida de Bonnie & Clyde por Jack Warner, no entanto, Warren Beatty ficou tão impressionado com sua engenhosidade que pagou pessoalmente seu salário para mantê-la no projeto. A contribuição de Dede58 vai muito além da criação de sequências espetaculares. É uma montadora instintiva, “o intelecto e o gosto têm influência, mas trabalho de acordo com o que estou sentindo”, era quase inigualável em sua habilidade de manter o foco na personagem. Ela passou alguns dias no set de Bonnie & Clyde para sentir o que diretor e seu elenco estavam tentando fazer e voltou à sua moviola já com uma noção do que trazer à tona do trabalho de cada ator e atriz. Dede sabia exatamente por quanto tempo manter uma tomada de Beatty para revelar a insegurança por trás da aparência impecável de Clyde e parecia compreender instintivamente que cortes repentinos para uma Dunaway sempre em movimento reafirmariam o espírito inquieto de Bonnie. Além de tudo isso, Dede montou Bonnie & Clyde tendo em mente o ritmo acelerado da estória, assumindo como prioridade a construção da escalada da tensão que leva ao final apocalíptico. Dede tinha grande admiração pela edição sugestiva e quase sensual dos filmes da nouvelle vague. A sequência em que Bonnie vê pela primeira vez o revólver de Clyde, em uma série de tomadas desconexas, dá pistas do apetite sexual de Bonnie e da relação desconfortável de Clyde com o próprio corpo somente através do ritmo ditado pela seleção e pela montagem das tomadas. Dede considera a montagem uma profissão muito empolgante, porque você realmente consegue interpretar outras personagens. Você entra em uma estória, e essa estória se torna real para você.

Outras montadoras: Françoise Bonnot, Z, Costa Gravas (1969). Lyudmila Feiginova, Stalker, The Mirror (1975), Solaris (1972), Andrei Rublev (1966), Andrei Tarkovsky. Em Mirror, Feiginova foi quem propôs que a cena com o gago abrisse o filme. Essa cena foi baseada em uma memória que Andrei teve da casa de sua mãe, era algo que ele assistira na TV. A cena foi originalmente planejada para o meio do filme, mas Lyudmila sugeriu que deveria ser a cena de abertura de Mirror. Hélène Plemiannikov, O Discreto Charme da Burguesia (1972), Luis Buñuel.

58 Harris, M. Cenas de uma Revolução. Porto Alegre: LPM, 2011, capítulo 22, p. 263-271. 75

Verna Fields, Tubarão (1975), Steven Spielberg. Verna e sua habilidade em criar tensão. No processo, há uma sensação de movimento ao contar uma história, há um fluxo em Tubarão, “cada vez que eu queria cortar, não fiz, para que o espectador não tivesse qualquer sentimento de antecipação”. Trata-se de saber exatamente quanto tempo uma cena deve durar, para que a tensão aconteça. Verna, com a troca de perspectivas durante as sequências de ataque do tubarão, é brilhante e aterrorizante, e os cortes para trás e para a frente nesta sequência em particular são absolutamente hipnotizantes. O impacto visceral de Tubarão59, o corte criterioso de Verna foi fundamental para manter seu fluxo. Ela deu ritmo, forma, mistério. A tensão prolongada foi obra dela. Seus cortes ajudaram a esculpir a narrativa com uma maior ressonância emocional, dando urgência extra às motivações dos personagens. Acima de tudo, ela garantiu que a máquina de matar, em algum lugar lá fora no oceano, tivesse uma personalidade distinta e sempre fosse o foco da atenção de todos, independentemente de sua presença imediata ou não, tornando-se uma mancha negra na consciência dos habitantes da cidade. O sucesso fenomenal do filme certamente a ajudou a ganhar o Oscar, mas sua notável realização editorial fala por si. Seu trabalho em Tubarão se mantém até hoje e deixa um legado quase incomparável.

Outras montadoras: , Taxi Driver (1976), Martin Scorsese e Star Wars (1977), George Lucas. Susan E. Morse, Manhattan (1979), Woody Allen.

Thelma Schoonmaker, Touro Indomável (1980), Martin Scorsese. Para Thelma, “muitas pessoas acham que a edição tem que ser invisível, mas nós nunca nos sentimos assim, nós sempre gostamos de dar um tapa na cara do público, se necessário”. A montagem da cena do diálogo entre Deniro e Pesci é incrível, pois todos os takes são improvisados.

Próximas montadoras: Carol Littleton, ET (1982), Steven Spilberg. Sally Menke, Pulp Fiction (1994), Quentin Tarantino. Valdís Óskarsdóttir, o que eu faço montando é contar estórias, Eternal Sunshine of the Spotless Mind (2004), Michel Gondry. Joi McMillon, montadora afro-americana e primeira indicada ao Oscar, Moonlight (2016), Barry Jenkins.

59Bloomfield, Creg. Texto Oscar Horrors: A shark in the edit suit, 2012. Disponível no link http://thefilmexperience.net/blog/2012/10/24/oscar-horrors-a-shark-in-the-edit-suite.html. 76

Retomando: a estória do cinema já nasce com uma mulher, Alice Guy-Blaché60, que em 1896 fez o primeiro filme de ficção, La fée aus choux. Na época, foi uma revolução e ela uma pioneira. Alice tem uma obra superior aos irmãos Lumière, a George Méliès e a Thomas Edison, mas mesmo assim foi mantida na obscuridade. Em 2018, é feito um filme sobre Alice e muitos nunca tinham sequer ouvido falar dela, inclusive vários livros sobre os primórdios do cinema não a citam. Liliane de Kermadec diz o seguinte: “a questão é que Alice Guy-Blaché era mulher”. Para Janeane Geriofalo, “o problema da história é quem está contando”. Ben Kingsley, sobre Alice, diz que “ela é uma genuína contadora de estórias. Seus filmes falam sobre fragmentos da vida. E você percebe, vendo os filmes dela, quão pouco as coisas mudaram”. Nicole Lise Bernheim comenta: “aqui está uma mulher que ajudou a inventar o cinema, e há um silêncio em torno dela”. E Alice por ela mesma: “minha juventude, minha falta de experiência, meu sexo, tudo conspirou contra mim”.

Foi uma mulher que ajudou a inventar o cinema, e o mundo a apagou. O cinema nasceu do apagamento. A história do cinema é um grande fade out.

60 Be Natural: The untold story of Alice Guy-Blaché. Direção: Pamela B.G. EUA, 2018. Todos os trechos entre aspas desse parágrafo foram extraídos desse filme. 77

SEXTA CONVERSA | ELAS OU FLERTE

ELA: O que me afetou na fala dela? Ouvindo e transcrevendo a conversa com a Rafaela, uma conversa feita online, a gente não se abraçou, não sentimos nossos corpos, não tomamos uma cerveja juntas. Houve um enfraquecimento da experiência. O corpo é uma parte muito importante para essa troca. Me inspirei muito nas minhas primeiras impressões sobre elas: mulheres, fortes, encantadoras, apaixonantes, corajosas e repletas de belezas. A conversa é para ouvi-las, senti-las. E essa primeira conversa é como um flerte. Foi isso que ficou pra mim. Um flerte.

Outra: Isso é mais interessante. Ela põe o acento no lugar que interessa a ela, mas o que você faz é flertar com todas.

ELA: E tudo isso me veio porque a fala dela, na hora, não foi fácil de escutar. Gostei da experiência, produziu deslocamentos. Há um flerte, um flerte de um primeiro encontro. Cruzei com ela num seminário, trocamos e-mail, perguntei se ela toparia participar, ela topou. Nunca mais a vi. Mandei e-mail e marcamos uma conversa. Veio a pandemia, conversamos pela tela. E, depois, novamente, nunca mais nos falamos. O impacto dela em mim tem a ver com afeto, um tipo de afeto que não sei explicar.

Rosane P.: Tem uma hora que, é bem legal, tem o verbo transar, que alguém te fala, você tem que transar e aí você diz assim: olha, eu não quero transar com todas as mulheres, não é porque eu sou lésbica que... mas eu acho que esse verbo transar é muito interessante, traçar roteiros múltiplos. O que é legal é que o transar aí não é qualquer imagem, não é qualquer palavra e são mulheres singulares. Acho isso legal, tem uma bossa. Acho que você tem uma bossa. Tem tantas transas. Eu acho que você está falando de camadas de transas, patamares de transa. Acho que é um pouco por aí.

ELA: Sim, algumas muitas mulheres me fascinam, e há um desejo que passa por outro lugar. Cada vez mais tenho vontade de estar perto de mulheres fascinantes, mas isso não faz com que eu queira transar com todas. São sensações e desejos diversos.

Longo silêncio e algo é acessado na memória dela.

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ELA: É para dar curto-circuito nesse circuito de afetos naturalizados para que outros circuitos de afetos germinem.

Outra: À medida que você vai se aproximando dessas mulheres que você elege, algo também vai mudando.

ELA: Estou sendo essas somas.

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FRAGMENTO | MULHER REFUGIADA61

Gabriela C. F.: O dia que foi o primeiro dia do resto da minha vida. O meu foi em 2006. Foi o dia em que as coisas começaram a fazer sentido. Eu tinha 25 anos. Vivia no alto dos meus privilégios, dentro da bolha, em Salvador, lugar de onde eu nunca tinha saído. Noiva, estudando Direito, trabalhando num escritório de advocacia. Até que nada fazia mais sentido. O relacionamento acabou, o escritório não fazia mais parte daquilo que eu queria e resolvi mudar, sair da bolha e ir fazer um mestrado em direitos humanos na França. Eu não sei o porquê, só sei que me sentia no fluxo e esse foi o momento um. Saindo do mestrado, fui pra África, e comecei a trabalhar na República Democrática do Congo, que é o país número um em violência contra a mulher e é um dos piores índices de desenvolvimento humano do mundo. Um país muito complicado, não só pela violência, mas porque, há décadas existe um genocídio nas fronteiras, e muito pouco se fala sobre isso. E ali os meus estereótipos se quebravam todos os dias. Cada dia que eu saía na rua, descobria uma nova realidade. Tudo que eu acreditava, tudo pelo que eu lutava parecia não fazer mais sentido. Todo dia eu era confrontada com novas perspectivas, novas estórias, novas mulheres. Esse foi o momento dois, em que eu comecei a enxergar. Voltando para o Brasil, fui trabalhar em São Paulo: segundas, quartas e sextas trabalhava com pessoas em situação de cárcere, e terças e quintas com refugiados que chegavam em São Paulo. Foi um período muito difícil, com estórias muito densas e eu me confrontava, me encontrava com pessoas que me tiravam da minha zona de conforto, pessoas que me contavam estórias de cruzar fronteiras, fazendo com que eu mesma cruzasse as minhas próprias fronteiras. Eu precisava passar as minhas fronteiras, os meus limites, para entender aquela pessoa que conversava comigo. Eu precisava passar o meu muro para entender aquela pessoa que estava dentro de outro muro.

Gabriela C. F.: Estou trabalhando para a agência da ONU de Refugiados, AQUENU. Gosto do meu trabalho e o meu cargo específico é violência contra as mulheres. Então, eu trabalho com os casos de violência contra a mulher do campo, e o campo aqui é bem grande, são 200 mil refugiados. Ano passado eu tive 678 casos que foram registrados, e que a gente cuidou. Quando saí do Brasil, fui para Moçambique, num campo com seis

61 Conversa feita por Skype em 18/03/2020. TEDxTalks, O que aprendi com as mulheres refugiadas, Gabriela Ferraz, 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lLSKfvLY7Yc&feature=youtu.be. 80 mil, e lá eu cuidava de todos. Hoje, estou neste campo no Quênia, vivo dentro do campo e, agora, com a pandemia, estou há meses em 20m2.

Na minha primeira experiência, fui contratada pelo Médico sem Fronteiras. Fui direto para o Congo, e não tinha a menor ideia. A minha função era legal adviser da operação. E a operação deles é muito grande. É a operação mais antiga do mundo, a operação do Congo. Eu nunca tinha ido para África. Me lembro de colocar no Google e dele não me falar o tamanho da putaria que era no Congo. Cheguei no aeroporto já assim, puta que pariu, que é que estou fazendo aqui. Óbvio que foi super bacana, conheci muita gente, descobri milhões de outras coisas, mas era uma porrada por dia. O jeito de viver, o trabalho, a corrupção deslavada, o medo de sair e correr riscos, a gente foi evacuado duas vezes no tempo em que eu estava lá. Podia estourar uma guerra da noite para o dia.

Fiquei bem traumatizada e voltei pra barra da saia da minha mãe. Fiquei bem quietinha. Tempos depois, voltei para São Paulo para atuar em uma ONG que trabalha com o sistema penitenciário, o feminino. Eles trabalham com mulheres estrangeiras em situação de cárcere. A grande maioria é mula do tráfico, mulheres africanas. Enfim, mulheres que sabiam que estavam sendo mulas, mulheres que não sabiam, mas todas nessa necessidade. E elas ficam abandonadas, sozinhas. Foi quando conheci as meninas. Porque o meu trabalho na Caritas, o sistema de refúgio no Brasil, é um pouquinho diferente dos outros: as entrevistas, quando o refugiado chega, são feitas pela sociedade civil, não pelo governo. Quem fazia as entrevistas era eu. Eu meio que concentrei todas as entrevistas de países de língua francesa. Então, necessariamente, se você chegou ao Brasil entre 2003 e 2015, eu fiz a sua entrevista. Até que recebi um convite para trabalhar no governo com o tema refugiados ainda, mas já na parte de mediação com o congresso, na época a gente estava participando da lei de imigração. Até que teve o golpe.

Uma das coisas que a gente fazia na ONG era pedir para elas escreverem cartas e a gente postava. A família que ficou no país nem sabia que elas tinham sido presas. Porque para pessoa estrangeira presa nem um telefonema é dado. A sua família desaparece. Ninguém sabe onde você está. A gente pegava os telefones e ligava para avisar: olha, infelizmente a sua filha está presa no Brasil. Pedia para a pessoa mandar carta, tentar manter uma comunicação. O sistema penitenciário é uma merda, mas todo mundo tem uma mãe, um pai, uma irmã, que vai levar papel higiênico, absorvente, vai levar comida no domingo. 81

A presa estrangeira não tem ninguém. Só aquele kit ridículo que o governo dá. É o que elas têm.

Silêncios delas.

ELA: Eu fico pensando nesses muitos não-lugares que as mulheres ainda ocupam.

Gabriela C. F.: Uma das coisas que eu aprendi com as meninas: pensa nesse restinho. Esse restinho é preto, esse restinho é pobre, esse restinho é mulher. Digamos a refugiada imigrante: é a exceção da exceção da exceção. E as meninas, quando elas chegaram no Brasil, deixaram muito claro: eu sou africana, eu sou negra, mas eu não vou aceitar esse local que você quer que eu fique. A Maria, uma mulher negra cubana refugiada política. Eu conheci a Maria numa reunião em que estavam vários parceiros, a Caritas chamou ela para falar, e ela bateu na mesa na frente de todo mundo, eu não me lembro o que levantou, mas o comentário dela foi: eu estou no Brasil, eu preciso da sua ajuda, mas eu sou doutora, eu não vou limpar a sua privada. Muitas pessoas falaram comigo na época da chegada dos haitianos, aquele grande fluxo de haitianos, as pessoas falavam comigo querendo ajudar e o ajudar era arranjar emprego para trabalhar na casa deles. Mano, cê nem sabe qual é a formação dessa pessoa? São médicos, professores. Mas a gente bota na caixa, que é a caixa do nadinha, a caixa do restinho, entendeu?

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SÉTIMA CONVERSA | ELAS OU O CANTO DA SEREIA

ELA: Quando eu era criança, pensava que se eu fizesse filmes ou escrevesse livros poderia ser muitas personagens. Lembrando disso, resgatei esse lugar do porquê fazer filmes, do porquê escrever. Experienciar as mulheres pelas trocas, pelos afetos, pelas escutas. Materializando estórias para que não sejam apagadas.

Outra: A experiência que você pode fazer com o roteiro está nessa dimensão de uma revolução particular. “Eu sou o cine-olho. Eu sou o olho mecânico. Eu, máquina, mostro- lhe o mundo como somente eu sou capaz de ver”62 do Dziga Vertov, manifesto de 1923, Kinoks: Uma Revolução. A gente poderia tentar brincar nesse lugar, mostrar um mundo que só você pode ver. Exatamente o que é a própria dissertação, é dizer algo que só você pode dizer.

ELA: As narrativas que nos contam são perversas demais. Talvez eu não entenda o que elas passem, mas eu sinto. É preciso falar da força das mulheres, das suas coragens.

Outra: Se a gente olhar para o volume, ele é todo fragmentado. A gente tem elementos que criam as conexões, mas ele não tem uma linearidade na construção, isso é bem legal. E você vai trazendo as pessoas e vai entrando ali e dizendo coisas. As figuras que você traz, só você pode trazer, tal como você traz, ninguém pode trazer. Tem a ver com certos movimentos seus no mundo, dessas mulheres no mundo e por isso leituras que você faz participam dele, entram ali.

ELA: Esses movimentos…., na Grada, a difícil trajetória dela por ser uma mulher negra. Uma diretora da universidade de Berlim perguntou: você tem certeza de que quer fazer universidade aqui? Presencial mesmo? Não precisa vir, fique em casa. “a casa a que se refere é aqui afirmada como as margens”63. Tipo: você não é bem-vinda aqui. Na Federici, sobre mulheres anciãs na Índia e na África, elas eram caçadas como “bruxas”, por estarem defendendo a terra, como mulheres que ‘atrapalham o desenvolvimento’. Passam a ser

62 Vertov, D. Manifesto de 1923, Kinoks: Uma Revolução. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/01-10/kinoksumarevoulcao.html. 63 Kilomba, G. Memórias da Plantação. Episódios de racismo quotidiano. Lisboa: Orfeu Negro, 2019, p. 60. 84 vítimas de perseguições e muitas vezes assassinadas; ‘como se explica que, ao longo de três séculos, milhares de mulheres se tornaram a personificação do inimigo no meio de nós e do mal absoluto?’64.

Naome: Tem um outro episódio do Lado B em que eu dialogo com a Federici, e algumas das passagens imprimiram em mim um eco infinito. Como essa, por exemplo, “As crueldades mais sádicas já inventadas foram infligidas ao corpo da mulher acusada, que serviu de laboratório ideal para o desenvolvimento de uma ciência da dor e da tortura”65. E tem essa outra também, “enquanto a violência contra as mulheres tem sido normalizada como aspecto estrutural das relações familiares e de gênero, o que se consolidou nas últimas décadas ultrapassa a norma”66.

ELA: Lembrei agora de um texto da Audre Lorde sobre a raiva como uma forma de criação: ‘toda mulher tem um arsenal bem guardado de raiva potencialmente útil contra aquelas opressões, pessoal e institucional, que fez com que aquela raiva existisse. Focadas com precisão elas podem se tornar poderosas fontes de energia a serviço do progresso e da mudança’67.

Naome começa a estalar os dedos e solta uma música e entra a diva Clara Nunes68 Ninguém ouviu. Um soluçar de dor. No canto do Brasil. Um lamento triste. Sempre ecoou. Desde que o índio guerreiro. Foi pro cativeiro. E de lá cantou. Negro entoou. Um canto de revolta pelos ares...

64 Federici, S. Mulheres e Caça às Bruxas. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 62. 65 Ibidem, p.70. 66 Ibidem, p.93. 67 Lorde, A. Os usos da raiva: Mulheres respondendo ao racismo, 1981. Disponível em: https://we.riseup.net/radfem/usos-da-raiva-mulheres-respondendo-ao-racismo-audr. 68 Clara Nunes, O canto das três raças. Álbum: O Canto das três Raças. Compositores: Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte. Produtor: Renato Correa. Gravadora EMI-Odeon. Brasil, 1976. 85

OITAVA CONVERSA | KUNICHI, PETER, A OUTRA E ELA OU A EXPERIÊNCIA DE TRATAR A IMAGEM COMO TEXTO

Era sábado, o calor ensurdecedor. No relógio, onze horas da manhã. Ela caminhava em direção a casa. A luz refletia dura na areia branca e estourava os olhos. As vozes sussurradas quase não se ouviam. A sombra, pequena, era o único lugar possível. Dona Expedita, uma senhora indígena da tribo Tremembé, com quase um século de vida. Desolada, sentada numa cadeira vermelha de plástico com um vestido colorido, a pele cheia de texturas impressas pelo sol. No meio da entrevista, ELA lembra que entrevistar é uma arte, uma arte de escutar. Antes de responder, dona Expedita sempre leva um tempo em silêncio. ELA pensa, era como se as respostas estivessem nesses silêncios. Difícil sensação de ouvir essa voz tão baixinha e não se afetar. No set, duas câmeras, um microfone boom e silêncio. O calor é tanto que até o som é sem ar, afogado. Janiel, neto de dona Expedita, passa ao fundo, seus passos firmes e tranquilos são ouvidos sobre a areia. Os sons das moscas cortam a fala de dona Expedita que já se acostumou com elas, já ELA, nem tanto. Ao fundo, da casinha ao lado, um burburinho de uma voz de mulher e de panelas que parecem preparar o almoço. Um galo passa atrás de dona Expedita. Tudo se mistura. Silêncio poético da paisagem, uma espécie de reverência àquela mulher. Dona Expedida olha para baixo, espera a próxima pergunta, como alguém que precisa falar, e ao mesmo tempo desistiu. ELA observa as poucas roupas no varal um pouco mais atrás de dona Expedita, os coqueiros, a areia branca, as moscas. Janiel traz um coco aberto para ela. É como se a vida voltasse ao corpo dela.

ELA: A experiência de estar na locação, sentir o calor na pele, os olhos cegados pela luz branca. A lembrança me puxou de volta para o ato de escrever, que andava sumido, e para o ato de montar, ampliando meu próprio olhar para a montagem, no sentido de que escrever é montar, montar é escrever. Palavras, sons e imagens justapostas, o desafio é o mesmo, é a construção de novos sentidos a partir do encontro, onde o que muda é a gramática usada. Num primeiro momento eu estava tentando trazer só a entrevista e dessa forma o jeito de montar é um pouco diferente de montar imagem. Na hora de montar, fui separando os trechos, tive que imprimir para poder me achar, como seu eu precisasse de diversas plataformas para poder ver e ouvir. É como eu monto: pela intuição.

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Kuniichi U.69: A falta de gravidade cujo próprio corpo percebe me ensinava os gestos de devorar rapidamente as formas flutuantes num pensamento efêmero.

Outra.: Uma dificuldade deste período da quarentena é essa relação com o corpo. Porque ela produz uma certa imobilização do corpo, muito daquilo que é a expressividade das pessoas inclui o sair, ir ao encontro de outras. Abraçar, tocar, ficou muito complicado, e temos essa sensação engraçada de corpo, e como nos movemos menos parece que estamos em um tempo estranho. Sentimos que o tempo ficou lento, mas é também porque o corpo se move menos. É nítida a relação, para nós, entre movimento e tempo, como se a vivêssemos num filme em que fossemos nós e a paisagem. Faroeste urbano. Talvez, começar mais perto do corpo ajude a mudar isso.

Kuniichi U.70: O cinema com todas as suas operações de montagem e ligação entre os planos, entre as imagens e o som, pode-nos colocar, em níveis diferentes, toda uma série de problemáticas das sínteses orgânicas e das disjunções.

ELA: Ouvindo Krenak, sobre a experiência, ver a experiência por uma tela, não é a mesma coisa de estar lá e sentir na pele a experiência. Mexeu muito comigo. Como montadora, nunca ia às filmagens, nunca encontrava as pessoas. Com o tempo, foi imprimindo em mim um estranhamento, uma ausência. Por isso senti uma necessidade de deslocamento de um corpo-ilha para um corpo-set. O encontro com Dona Expedita trouxe essa experiência. Por que ela importa? Pelo deslocamento como personagem e ambiente.

Kuniichi U.71: O real dilacera a representação do mundo, infiltra-se no pensamento como uma espécie de violência.

ELA: Foi mais fácil escrever esse texto de Itarema, porque eu estava lá. Abaixada de cócoras no sol, para não ficar mais alta que dona Expedita, e ela não se sentir oprimida. Essa é uma percepção quando você quer conversar com alguém apontando uma câmera para ela, você deve sempre estar na mesma altura da entrevistada, um pequeno gesto de acolhimento.

69 Uno, K. Hijikata Tatsumi. Pensar um corpo esgotado. São Paulo: n-1 Edições, 2018, p. 82. 70 Uno, K. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: n-1 Edições, 2014, p. 114. 71 Ibidem, p. 116. 87

Kuniichi U.72: Das disjunções entre a imagem visual e a imagem sonora, entre aquilo que vemos e aquilo que ouvimos, e tudo sai do interstício entre os dois. O efeito da justaposição é para reafirmar a diferença.

ELA: Janiel trouxe um coco no meio da entrevista. Não tem como reproduzir a experiência em si, mas temos como produzir pelas palavras, pelas imagens, pelos sons, pelas descrições, levando o espectador nessa viagem, ou seja, pela arte. Estar com as pessoas e depois escrever sobre essa experiência é o que me cura, me faz sentir viva, faz meu corpo vivo. Talvez esse seja o meu lugar de arte, maior de todos, estar presente. Para isso é preciso que exista uma espécie de abertura à experiência, sempre. E, depois, escrever, procurar as palavras.

Kuniichi U.73: A pontuação de deiscências é um modo elaborado de perceber a parte de fora da língua.

Peter P. P.: Quando você fala do corpo, o Kuniichi Uno, A Gênese de um Corpo Desconhecido, é uma frase que está no Deleuze, que ele diz que o cinema cria um certo corpo desconhecido. Talvez o que ele queira dizer é que o montador cria um certo corpo que nos permite essa outra corporeidade que a gente tem no cinema, que não é esse corpo aqui, físico.

Kuniichi U.74: O interstício entre imagens, entre duas imagens: um espaçamento que faz com que cada imagem se arranque ao vazio e nele recaia. O cinema da imagem-tempo é revelador desse fora dobrado nos componentes do cinema, em seus interstícios.

Kuniichi U.75: O escuro que disjunta a voz e a carne.

ELA: O que significa um corpo de montadora?

72 Uno, K. A gênese de um corpo desconhecido: São Paulo: n-1 Edições, 2012, p.114, 115. 73 Ibidem, p. 113. 74 Ibidem, p. 118. 75 Ibidem, p. 113. 88

FRAGMENTO | MULHER AFRICANA76

Há dois anos, gravei um vídeo com ela dentro da nossa oficina Teatro e Set, e num domingo de março, fizemos nossa conversa por Skype. Na época do filme, Thati disse: sou jornalista, não gosto de falar em público, só gosto de escrever. Acho que é só uma maneira que cada ser humano tem de se expressar. Eu prefiro me expressar escrevendo, porque nunca ouvi uma palavra de apoio. Então, palavra, pra mim, tem um sentido forte, e na escrita tem um sentido maior. Quando me formei em jornalismo, acreditava que podia mudar o mundo. Todo jornalista tinha a obrigação e o dever de falar a verdade, passar para o povo a verdade, defender o povo, sem nenhuma notícia tendenciosa. Mas me decepcionei com o jornalismo, me decepcionei com as pessoas, com os políticos, com o Brasil, então a vontade de falar foi ficando menor e a de escrever foi ficando maior.

Thatiana S.: Tenho uma estória pessoal que tem muito a ver com minha vida profissional. Meus avós são imigrantes, e eu não sei das estórias de onde eles vieram, só sei que eles moravam no bairro da Saúde, uma zona portuária do Rio, numa área chamada Pequena África. Morei com meus avós até os seis anos de idade, e sempre ouvia eles falarem das dificuldades dos refugiados, de ser um imigrante e morar no Brasil. Esqueci de contar um detalhe importante, eu sou carioca. Esse bairro da Saúde foi totalmente reconstruído, eles retiraram todos os moradores primeiros, destruíram os antepassados, apagaram as estórias, removeram todas as pessoas que chegaram ali desde a época da escravidão. Meus avós foram uns deles. Então, eu ouvia muito falar do sofrimento, tudo que eles estavam passando naquele momento, da questão de apagar uma estória. Mas os meus avós existiram. Aos seis anos de idade, voltei a morar com meus pais e depois cresci, me formei, e decidi que um dia ia fazer um documentário sobre refugiados. Depois da morte do meu pai, ele faleceu quando eu tinha dezenove anos. Eu tive uma visão. Uma coisa estranha ter uma visão, porque hoje em dia você diz que teve uma visão e todo mundo olha pra você. Mas eu tive.

Thatiana S.: Fiz um documentário sobre refugiados do Congo no Rio de Janeiro. Ser refugiado não é só vir de um país para outro. Eram quatro protagonistas e todas elas

76 Filmagem feita em São Paulo na Oficina Teatro e Set em 21 de setembro de 2018. E conversa feita por Skype em 8 de março de 2020. 89 tiveram que sair do Congo por causa da guerra. A guerra é um estado, é uma situação que pode acontecer com qualquer país. Nós vivemos uma guerra nesse país aqui, não declarada, mas é uma guerra. Nesse documentário, me fortaleci como neta de refugiados e como africana. Porque eu sou africana. A maioria das refugiadas veio de países africanos, pelos menos as que eu conheço. A África foi tomada, a África foi roubada, a África foi invadida e agora, todos esses países, que de uma certa forma não estão abrindo as portas, estão entendendo o que é você roubar uma identidade, uma cultura. Tudo a ver com a diáspora africana. O que eu falo é força. Nunca estive nessa condição, eu consigo escrever, falar, mas quando você passa por essa condição é diferente. Força, assim como os escravos tiveram. Eu estou aqui porque meus avós, bisavós, tataravós passaram por isso. Eu acho que é força.

Lá no bairro dos meus avós, tem uma menina que faz um tour pelo bairro. Ela vai no Morro da Conceição e conta toda a estória dos escravos que foram desembarcados aqui, os cativos recém-chegados da África. Uma mulher comprou a casa e depois percebeu-se que era um sítio arqueológico. Eles cavaram e acharam arcadas e ossos de décadas, dos escravos que chegavam ali no porto. Ela manteve os ossos ali e resolveu fundar um museu, o Museu Dos Pretos Novos. Esse museu conta toda a estória dos escravos que foram trazidos para cá, da ligação que aquela área tem com as mortes desses corpos negros. O museu é uma questão da resistência. Uma forma de evitar o apagamento de parte da estória dos negros. Toda aquela área ali tem netos e bisnetos de escravos, são pessoas que herdaram ali. Vieram para cá nas condições de imigrantes, descendentes africanos. E a minha avó morava ali numa casa.

Minha relação com a minha mãe como mulher, com o meu lado feminino, libido como força, é tudo que eu não tive, esse espelho, eu não tive dela. E hoje, vejo que ela não teve, por isso que ela não pode me dar. Mas o natural é você acolher isso, porque ela não pode te dar pela própria estória dela. Eu não consigo acolher, tenho raiva disso, tenho raiva. Ela compete comigo, ela tem o poder, uma vontade de controle muito grande e eu tenho horror a controle. Então, toda a nossa estória, desde que eu era criança, que eu lembro, eu não tive essa autoafirmação de mulher negra. Ela veio de amigas com quem eu estudei, de família de amigas, cuja mãe era professora, por exemplo. Meus pais não estudaram muito. Na infância e adolescência, nunca ouvi falar o teu cabelo é crespo, mas é bonito, você tem que entrar ali com a cabeça erguida. Fui aprendendo com a vida. Fui 90 aprendendo, aprendendo, aprendendo... Às vezes, de uma forma um pouco mais brusca, outras de uma forma mais natural, mas você aprende que tem que inserir esse sentimento. Comecei a aprender e, depois de adulta, a me ver como mulher, como negra, como ser. A maneira de gostar do sexo, os relacionamentos, que é muito importante na nossa infância, é muito importante a gente ter o apoio dos nossos pais. Quando a gente não tem, mesmo sabendo que eles não podem dar, é doloroso. Eu estou trabalhando essas potencialidades, aprendendo a usar minha força de mulher negra nos aspectos mais importantes da minha vida: no trabalho, nas minhas relações, e também entender que não é porque a minha mãe não me deu, que eu não tenho. Cresci num conservadorismo muito grande. Tenho muita dificuldade em lidar com pessoas conservadoras, porque a maneira que eu ouvia as coisas foi muito dura e muito cruel, e sempre tive um lado humano muito grande. Cresci numa família assim: mamãe é muito conservadora, então estou trabalhando para me desfazer de certos laços para abraçar aquilo que sempre gostei. Meus amigos e minhas amigas, eles são muito diferentes, e eu amo isso. Ontem, estava fazendo um picnic na Lagoa com um bando de italianos, brasileiros, napolitanas, romanas, e foram diversas conversas. Gente é gente, não interessa de onde você vem, interessa quem você é, como é que você atua na sociedade. Sempre que eu puder, quero ser do mundo. Isso é muito bom pra gente abrir a cabeça. A gente vem com muita coisinha pequena. As coisas principais a gente acaba não abraçando.

Nasci no Rio. Eu não tenho apego por esta cidade. O Rio é provinciano sim. Falta alguma coisa aqui. Eu tenho amigas do Rio que não conhecem ninguém que não seja carioca. Conheço cariocas que só conhecem cariocas. As pessoas, mesmo quando elas viajam, voltam agarradas ao que elas são, e não são experiências, tipo eu atravessei uma montanha e conheci uma pessoa lá da Patagônia, conheci outra lá da Coréia do Sul, não, elas têm uma experiência assim: eu comprei, eu visitei tal lugar, é muito ligado a um status e um elitismo. Você tem que fazer parte de um nicho para conhecer alguém. Você tem que ser alguém, ter uma coisa, estar com uma roupa legal, senão as pessoas não falam contigo. É muita aparência, é muito superficial, por isso que o Rio me lembra...

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CENA INTERNA RÁDIO | NAOME

Naome: hoje vamos começar o primeiro dia do resto de nossas vidas. Uma série sobre uma pandemia de um vírus chamada lado B77. Muitos negam a existência dessa pandemia, outros afirmam que ela é pura ficção científica, alguns poucos estão despertando a consciência para sua real e perversa existência, mesmo ela já durando séculos. Alguns insistem em ignorá-la, contaminando-se mais e mais. O vírus entra pela pele e sai pela boca. Está no ar, respiramos ele diariamente. Aqueles que, inconscientemente, sabem que existe, que está vivo e pulsando, já passou da hora de trazerem para a consciência. Wake up people! O lado B levanta muitas questões e dores sobre todas as esferas, dimensões e corpos.

[entra música, Nina Simone, I put a spell on you78] You know how I feel. It's a new dawn. It's a new day. It's a new life. Dragonfly out in the sun, you know what I mean, don't you know. Butterflies all havin' fun, you know what I mean. Sleep in peace when day is done, that's what I mean. And this old world is a new world....

Deslocamentos dos afetos. Desabamentos epidérmicos. Depuração racial. É urgente ativar a nossa escuta. Escrever para além e por causa do que nossos corpos produzem: suor, sangue, medos, urina, fezes, dores, ódios, pus, feridas, doenças, secreções, raivas e lágrimas. Corpos feitos todos da mesma substância, carne, ossos e pele. Mas quando chega na pele “Eu torcia para aquela criança nascer clara e com olhos azuis. [...] O que que a melanina na pele pode fazer com que uma pessoa tenha uma vida tão diferente da outra? [...] Atrás de um fenótipo tem uma ideia de civilização”79, é o que disse Lia Schucman. Precisamos explodir os muros, arrebentar as correntes de pensamentos, implodir os privilégios simbólicos e materiais, arregaçar os contornos. Linguagem em processo vivo, é preciso renomear as coisas, é muito importante. I can’t breath! Contaminamos o ar da biosfera. Nós, humanos, somos a própria praga/vírus.

77 lado B: lado Branquitude. 78 Nina Simone, I put a spell on you. Álbum: I put a spell on you. Compositor: Jalacy Hawkins. Produtor: Hal Mooney. Gravadora Philips Records. New York, 1965. 79 TEDxTalks, Por que queremos olhos azuis, Lia Vainer Schucamn, 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EC-IywB3dEA&t=4s. 92

[entra música, Sarah Vauhgan, Black Coffee80] ...I'm moanin' all the morning. Moanin' all the night. And in between it's nicotine. And not much heart to fight. Black coffee. Feelin' low as the ground. It's drivin' me crazy. This waitin' for my baby. To maybe come around.

“A branquitude é uma forma de ver o mundo, é uma forma de estar no mundo. É uma identidade racial branca, só que não pensada como raça, não sentida como raça81”, continua Lia Schucman. Alienação branca. Privilégios raciais. Sentimentos de seres universais. Segregações. Fragilidades. Narrativas fantasiosas. Apagamentos. Não- brancos. Fissuras. Naturalizações de si próprios. Marcas na pele. Políticas de morte. Territórios. Feridas. Negação. Pactos narcísicos. “Eu pergunto aos entrevistados se eles tiveram alguma vantagem, todos dizem: sim, nós tivemos vantagens em algum momento. E na sequência, eu pergunto, você é a favor das cotas raciais? E todos dizem, não, somos todos iguais82”, nos fala Lia Schucman.

Somos?

[entra música, Amy Winehouse, Back to Black83] So far removed from all that we went through. And I tread a troubled track. My odds are stacked. I'll go back to black. We only said goodbye with words. I died a hundred times. You go back to her. And I go back to. I go back to us. I love you much. It's not enough. You love blow and I love.... And life is like a pipe. And I'm a tiny penny rolling up the walls inside. We only said goodbye with words. I died a hundred times. You go back to her. And I go back to...

80 Sarah Vaughan, Black Cofee. Álbum: Black Coffee. Compositor: Sonny Burke and Paul Francis Webster. Produtor: Joe McEween. Gravadora Columbia Records. New York, 1948. 81 TEDxTalks, Por que queremos olhos azuis, Lia Vainer Schucamn, 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EC-IywB3dEA&t=4s. 82 Idem 83 Amy Winehouse, Back to Black. Álbum: I put a spell on you. Compositor: Amy Winehouse e Mark Ronson. Produtor: Mark Ronson e Salaam Remi. Gravadora Island Records. New York, Miami e Londres, 2006. 93

CENA INTERNA CASA | NAOME

Enquanto a música toca, vemos Naome saindo da rádio em slow motion e chegando em casa, fechando a porta e caindo no choro. Ia sair com a Bates para jantar, mas mandou mensagem e cancelou. Não conseguiria falar mais nada nesse dia. Colocou um lp na vitrola, sempre ela, Billie Holiday.

[entra música, Billie Holiday, Strange Fruit84] Southern trees bear strange fruit. Blood on the leaves and blood at the root. Black bodies swinging in the southern breeze. Strange fruit hanging from the poplar trees...

Tomou banho. Ficou à vontade. Preparou o jantar. Pensou sobre a estória que escreveria naquela noite. Corta os cogumelos, o alho, cebola e a cebolinha. A maior parte das pessoas liga a tv quando chega em casa, Naome se recusava a consumir estórias débeis, por isso criava as suas próprias. Refogou e preparou o arroz branco só temperado com sal. O som da madrugada de uma quarentena. A moto ao longe. Chove. Prédios isolados, vazios, todos mortos. Corpos e mais corpos. De nada adiantou todo aquele capital, aquela exploração humana, tudo varrido por um minúsculo corpo. Saboreou cada pedaço do seu jantar. Há vários tipos de pandemias, visíveis, invisíveis, micros e macros, e o lado B. Sim, o vírus afeta a todes, e ao mesmo tempo reforça as desigualdades. Muitas realidades se interpõem, deteriorando-se mutuamente. A manga, a delicadeza, o cuidado ao descascar, a finura da casca, o som suave da faca na casca. A pandemia trouxe uma coisa há muito esquecida, que a nossa maior doença enquanto espécie é o lado B. A vida sem pulsão de vida. O ser humano, desumano. A pulsão de morte, viva. Cemitério de sonhos humanos. Cada sonho não realizado se torna um quantum de energia morta. Cada sonho não sonhado é o pesadelo de todes. Você olha para o seu caminho e vê vários pontos apagados, são cadáveres. Covas sem nomes, sem velórios, sem rituais de passagem, sem despedidas, sem abraços. Comeu a manga com a mão. Eu era um animal feliz. Abriu seu caderno de escritos. Morte anunciada. O melhor obituário já escrito, “hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem”85.

84 Billie Holiday, Strange Fruit. Álbum single: Strange Fruit. Compositor: Abel Meeropol. Produtor: Milt Gabler. Gravadora Commodore Records. New York, 1939. 85 Camus, A. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 9. 94

Ouviu a gravação da conversa com dona Antônia, a vizinha da família “amaldiçoada”. Queria ouvir mais a estória dessa família. Anota no seu caderno:

OBITUÁRIO 17. Dona Antônia: A família vizinha da minha casa aqui, sabe? Bem na frente. Dia 7 morreu a mãe de noventa e quatro anos. Dia 9 morreu o filho mais velho de Covid-19. Dia 14 o filho mais novo de sessenta anos, também de Covid-19 e hoje pela manhã a casa deles, em frente à minha, pegou fogo, e o terceiro filho, que estava lá dentro, também morreu. Ainda tem um último filho que hoje estava sem condições de falar qualquer coisa. Uma estória muito triste. Como anunciar essas mortes anunciadas? Fechou o caderno e adormeceu ao som de

[entra música Billie Holiday, Solitude86] In my solitude. You haunt me. With dreadful ease. Of days gone by. In my solitude. You taunt me. With memories. That never die. I sit in my chair. And filled with despair. There's no one could be so sad. With gloom everywhere. I sit and I stare. I know that I'll soon go mad. In my solitude. I'm afraid. Dear Lord above. Send back my love...

86 Billie Holiday, Solitude. Álbum: Solitude. Compositor: Duke Ellington, Eddie Delange e Irving Mills. Produtor: Norman Granz. Gravadora Clef Records. New York, 1956. 95

OUTRA CENA INTERNA RÁDIO | NAOME

Naome: Hoje vamos ao segundo programa da série lado B. Modos de existência, personagens, seus scripts, representações, seus sentidos, subjetividades, ressonâncias e suas forças. A experiência com as outras mudou para sempre o jeito dela de estar no mundo. Tudo começou pelo corpo. Dos abusos e das pequenas violências do dia-a-dia até conseguir imprimir uma voz que ecoa. Outras tonalidades. Desmontagem da palavra. De qual desejo vital, nós mulheres, não podemos abrir mão? Os efeitos deste mundo no corpo delas há séculos. Nossos corpos habitados por diversos embriões de mundo. Vida na condição da experiência humana. Fendas geográficas, rupturas, corpos políticos. É sempre a procura pela voz. Andar descalça na terra. Criar outras conexões. O limite do sufocamento. O fio condutor que tecia, cortado. Uma constante inquietação as habita. E junto com ela, a percepção de como as narrativas patriarcais, perversas, grudaram em nossas células.

[entra música, Madonna, What it feels like for a girl87] Girls can wear jeans and cut their hair short. Wear shirts and boots cause it's okay to be a boy. But for a boy to look like a girl is degrading. Cause you think that being a girl is degrading. But secretly you'd love to know what it's like wouldn't you. What it feels like for a girl...

“O mundo não dizia a ela, como dizia a eles: escreva se quiser, não faz diferença para mim”88. Virginia em seu pequeno teto. Leva-se muito tempo para perceber o que se sofre por ser mulher. Quando era pequena, queria ser menino, pois eles podiam fazer tudo e ocupavam os lugares de poder e destaque. Isso me fez ter certeza de que eles eram melhores. Então, pela lógica, eu também queria ser melhor. A gente sobreviveu como espécie, por causa das comunidades de mulheres. Nos caçar, humilhar, violentar, cuspir e xingar não vai fazer o seu poder fálico ser maior. “As crueldades mais sádicas já inventadas foram infligidas ao corpo da mulher acusada, que serviu de laboratório ideal para o desenvolvimento de uma ciência da dor e da tortura.”89, escreve Federici em seu

87 Madonna, What it feels like for a girl. Álbum: Music. Compositor: Madonna, Guy Sigsworth e David Tom. Produtor: Madonna, Guy Sigsworth e Mark “Spike: Stent. Gravadora Maverick Records. New York, 2001. 88 Woolf, V. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014, p. 78. 89 Federici, S. Mulheres e caça às Bruxas. São Paulo: Boitempo, 2019, p.70. 96 livro. Eu me confundo com a outra. Falar se implicando. Desafiando, Deslocando. A potência da intersecção entre elas, somam-se as diferenças, criam-se novos campos.

A personagem mulher transmutou: virou planta, afeto, voz. A cena ruiu. Saíram da sombra.

As mulheres. As tecelãs da memória. Sabemos que sabemos. Imaginar outras aldeias.

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NONA CONVERSA | SUELY, PETER E ELA OU COMO NASCEU ALICE

Peter P. P.: Eles se juntam? Como se cruza esse roteiro que você está fazendo com essa questão da mulher ou das mulheres, ou não tem junção? Porque você, não está claro se é ou não uma mulher pela resposta que você deu à Paula, se é por aí que junta. E eu estou vendo um vetor feminino, um vetor mulher e um vetor cinema. Os dois se cruzam e eu me pergunto se esse roteiro.... Onde tá o cruzamento entre os dois, roteiro e volume, ou é mais um exercício de invenção?

ELA: A ideia é se cruzarem, se justaporem. Ambas as escritas são sobre as mulheres, tanto o volume como o roteiro. Mulheres, personagens, fragmentos. A criação das personagens vem muito das dores das mulheres. Dores que fui sentindo de dentro das mulheres e foram me fazendo perceber a força delas. Olhar para outra desse lugar. O volume vai trazendo essas dores nas entrelinhas, e que no roteiro viram vozes, ganham corpo. Esta relação está sendo construída, num eterno devir - enquanto os textos e as personagens vão nascendo. As coisas se relacionam muito mais nessas intersecções. No roteiro, há uma personagem que tem uma espécie de ausência de memória em relação a própria vida dela. Ela é uma psicanalista, e lembra toda a vida dos pacientes, mas a sua própria está se dissolvendo. A estória de Alice está se apagando e sendo preenchida pelas estórias de seus pacientes. Alice, talvez, seja a própria dissolução.

Peter P. P.: Bom, hein. Essa ideia é ótima. E ela ir absorvendo as estórias. Isso é maravilhoso, isso é muito bom. Imagina só um analista que reinventa com pedaços, fragmentos das estórias dos pacientes e acaba assim....é muito bom...é muito bom

ELA: É um pouco assim, como a estória das mulheres. As personagens vão nascendo, elas vão se misturando com as mulheres. Ela, peixe. Rafaela, árvore, Angelim, Alice, fade out.

Peter P. P.: Tem já muita coisa aí. E você está em pleno movimento de escrita, pesquisa, conversa e imaginação. Você está na ebulição, no coração... está muito forte. É um movimento de grande intensidade esse que você está mergulhada. Então muitas coisas que talvez tenham te perguntado e para as quais você não tem resposta. É bem possível

98 que, mais adiante surja indiretamente, uma resposta ou outra que nem você esperava, que você não pode antecipar também.

ELA: Ficar no não saber, na angústia, nas dores, nas ressonâncias. Talvez, o que justapõe é da ordem do invisível. A conexão é pelo sentir, pelo intuir. Cortes invisíveis, leituras espaciais, desmanchamentos de certezas. A atuação de forças vivas.

Suely R.: A condição de possibilidade de resistência micropolítica é “sustentar o mal- estar que gera nos processos de subjetivação a introdução de uma diferença, uma ruptura, uma mudança” 90. A criação como forma de existência… A arte pertencente às forças vivas, devolver alma à palavra.91

Alice: Nós temos dois cruzamentos. O volume e o roteiro, eles se cruzam efetivamente em algum ponto. Talvez, eles se cruzem no peixe, na sua própria fala. Porque é a resolução em termos de palavra, é uma resolução bem aberta, aberta a muitas possibilidades. Ali onde as pessoas da vida estão procurando “você é isso ou você é aquilo”, você está dizendo, eu sou essa terceira coisa, talvez. Poder ser qualquer coisa, ser isso e aquilo e aquilo outro, sabe? Mulher, não-mulher, peixe, árvore, planta, pedra, personagem, escapar de um aprisionamento identitário.

90 Rolnik, S. Esferas da Insurreição. São Paulo: n-1 Edições, 2018, p.17. 91 Trecho de aula ministrada por Suely Rolnik no Núcleo de Subjetividades do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica São Paulo, 29 de agosto de 2018. 99

CENA INTERNA CONSULTÓRIO | ALICE92

Alice atendendo o paciente n. 4, sentada na sua cadeira hans wegner comprada há mais de vinte anos numa viagem que fez. Alice está sentada nesta cadeira faz anos e anos e anos. Sentiu como se passasse a vida ali. Estava ausente na sua presença. Nesse momento sentiu nojo, mas, como sempre, por fora, era pura placidez e delicadeza. E quanto mais o paciente falava, mais sua náusea aumentava. Alice, ninguém pode te ajudar. Ninguém pode te salvar. Ninguém pode te fazer esquecer/lembrar. Sentia-se presa numa afasia orgânica, as palavras se dissolviam, nascia uma ruptura, enquanto o paciente vociferava. Alice se perguntava, por que não evitei? Não enfrentei? Não me impus? O paciente jorrava misoginia, falava alto, ofendia. O alvo de sua ira eram sempre as mulheres, “...o ataque contra as mulheres vem, sobretudo, da necessidade de destruir o que não se consegue controlar e degradar aquilo que mais precisa para sua reprodução: o corpo das mulheres”93. Alice dizia a si mesma que bastava tocar a vida, não tinha alternativa. Porém, da dor nasceu uma fenda geográfica. O paciente: se minha mãe gostar dela, eu caso. Alice, permitia. O paciente: mulher é tudo igual, falsa e vagabunda. Alice: o nome dele, Penteu, o paciente, o rei. O paciente: O que propõe? Não vai dizer nada? Sou macho, não me adorno. Alice nua, queimando gelo, vomitando sangue. O paciente: queimem todas na fogueira, bruxas do inferno. Alice se imaginava mastigando as suas palavras, cortando a sua língua débil. Precisava urgentemente de silêncio. Sentia o furor das fêmeas da estória, suas ancestrais, as mulheres que vieram antes de nós. “...as mulheres têm sido vistas, historicamente, como as tecelãs da memória – aquelas que mantêm vivas as vozes do passado e as estórias das comunidades, que as transmitem às gerações futuras e que, ao fazer isso, criam uma subjetividade coletiva e um profundo senso de coesão”94. Um arrepio subiu pelas costas de Alice. Continuou plácida. O paciente jurava, foi ela quem me coagiu, me encantou com sua fala doce e macia. As mulheres fingem ser boazinhas, mas no fundo são perversas, manipuladoras, levianas e sórdidas. Alice, dentro da boca a língua solta cheia de sangue, a mão do ventre prematuro expulsa e mata aquele que se diz um homem ímpio, um homem de bem. A linfa escorre, líquido orgânico do sangue, composto de proteínas e gorduras. O paciente: nós homens precisamos nos proteger, não

92 Inspirado em As Bacantes, Eurípdes. Tr., Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2003. Inspirado em Kang, H. A Vegetariana. São Paulo: Todavia, 2018. 93 Federici, S. Mulheres e caça às bruxas. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 140. 94 Ibidem, p. 84. 100 queiras me infectar com tuas “doenças de mulher”. Alice, à insensatez dos machos tolos. O paciente: as mulheres não recatadas são dadas aos excessos é preciso puni-las. Alice, o suor lhe escorria a cântaros, remordeu os lábios, as peles iam se dobrando umas sobre as outras. O paciente: precisamos de normas e regras para domesticá-las. Lugar de mulher é dentro de casa servindo ao marido. Nesse momento, Alice agarra o paciente firme pelo braço esquerdo. Alice paralisou. Lembrou das inúmeras vezes que sofrera esses ataques; e impondo sua força guardada de séculos, o úmero dele arrancou, rompendo carne, músculos, veias e ligamentos. Costelas nuas por dilaceração. Sangue nas mãos, a carne dele estilhaçada. E tudo isso com a força de uma única mulher. Corpo desmembrado, desfigurado, irreconhecível. Alice apreciava o sangue que escorria de sua boca. Injetava no chão os próprios dedos, lambia o suor da cútis com a língua, a mão nua, os dedos sujos de terra e suor, gotejavam sanguinolentos, um charco de abjetos, desmembravam as memórias de dores, lacerava o invólucro das carnes, mulheres versus machos, o gozo de carne crua depois de séculos de opressão. Danças desenfreadas, rasgos violentos. Corria livre, tudo era movimento, sua cabeça girava em êxtase. Alice, Alice, Alice, O corpo trêmulo, se deu conta da carne crua e mole, seu corpo refletido na poça de sangue e compreendeu, Penteu morreu de insensibilidade poética, de uma espécie de dilaceração bacante, perdeu para sempre a cabeça. Nesse instante um ruído forte lá fora a fez sair do transe, o céu parou por alguns segundos, olhou as horas e disse, seu horário acabou, continuamos semana que vem. O paciente se levanta, Alice também, se despedem. Ele sai. Alice tira o lixo, lava as xícaras, guarda tudo, apaga as luzes e sai. Fim de mais um dia.

No dia seguinte, Alice chega tarde ao consultório, abre a porta e acende a luz. Vê o nome Alice na porta da sala. Alice? Não se lembrava desse nome. Dizem que um nome é tão precioso quanto a própria vida. E quando se esquece o próprio nome, o que se torna? Um copo cai e se estilhaça. Tudo muda. O copo já não é mais um copo. Quanto ao minúsculo fragmento, é uma possibilidade. Essas guinadas de perspectivas povoam o mundo. É assim que ela se sente. Ela vai usando os afetos como essa nova linguagem. Tudo isso enquanto arruma a sala para sua próxima paciente, Georgea.

Arrumando a sala para um outro paciente, Alice para e se pergunta: o que estou fazendo aqui? Preciso sair daqui. Uma floresta toda dobrada no fundo do bolso de sua saia. Alice sai para caminhar pelas ruas da cidade. Uma nota de falecimento vem à sua memória: Ela 101 vindo. Ele vindo. Ela subindo a rua. Ele acelerando na avenida. Ela na pista do meio. Ele na terceira faixa de seis pistas. Ele no sinal vermelho. Ela no semáforo verde. Ao lado dele um ônibus parado, esperando sinal abrir. Ela olha para esquerda e vê o carro crescendo em sua direção. O cruzamento. Alguém morreu? Quem morreu?

Uma tarde. Estava sozinha. Agora ela entendeu que toda aquela cena não fazia mais sentido. A namorada insistiu: Vamos jantar? Estão nos esperando! - Sim, vamos. Mas no fundo sabia que aquela vida tinha acabado, era uma questão de coragem para deixá-la. Sentiu uma dor no corpo. De onde vinha essa dor? Teria feito alguma coisa na véspera? Não se lembrava. Não temos paz nem quando estamos em casa. Uma chuva de cair o mundo. Muita água vinha do céu. Água enfurecida. O telefone toca. Do outro lado da linha perguntam por Alice. Ela responde: Alice não mora mais aqui e desliga.

Ella, Alice, Naome, Georgea, Bates. Qual delas seria? Se lembrou do perfume da mata. Do nada algo emergiu da floresta. Melancolia. O corpo escorre, tônus esvaindo/derretendo. Lembrou-se que precisava mergulhar na piscina.

Alice se lembrou do momento em que tudo começou a se dissolver. Foi de uma hora para outra. Quando percebeu, começou a escrever. Escrever é dizer. Há a coragem de dizer. E ela diz, escrevendo. Lembrou-se da infância. Gostava de jogar bola, e jogava. Desafiava todos e não tinha medo de jogar. Gostava de ganhar, e ganhava. E quando entrava no campo para jogar, só jogava. Se sentia plena e tinha coragem. Onde foi parar essa coragem? Está nascendo uma coragem outra, a de escrever. Aqui o tempo não passa, a floresta não queima e a garganta não dói. Escrever dizendo é trazer todas as vozes para o mundo, deixá-las soltas, livres.

Ella e Alice na consulta de Ella: Quando a escrita começa a vir à tona, algo em mim quer fugir, dói, dá vontade de chorar. Paro, respiro e sinto que é preciso ficar no processo, mesmo com dor. É por a prova essa sensação de que o mundo vai acabar, mas não acaba. - Do que você tem medo, Ella? Às vezes, é preciso ficar um pouco como observadora, igual as crianças ficam, elas falam coisas e ficam observando o que acontece. E se divertindo. Experimenta.

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Bates e Alice na consulta de Bates: A leitura do livro a vegetariana e a dor da rejeição da Georgea, comecei a ter sonhos ‘verdes’. Como se eu estivesse me desmanchando nelas, na Yeonghye e na Georgea. Lendo o livro, senti a dor da alma de Yeonghye, mas quando ela estava no hospital psiquiátrico e foi diagnosticada com anorexia nervosa e esquizofrenia aguda, e o médico disse: precisamos preservar a vida dela. Me perguntei: qual vida? E pensei: esse diagnóstico não poderia estar mais errado. – E a Georgea? Virou planta.

Ella e Alice na consulta de Ella: Noite passada sonhei que estava no fundo do mar, havia algumas mulheres nadando, nuas, dançando. Um fogo atravessava essas mulheres e ao mesmo tempo as conectava. Era uma desordenação muito grande, um movimento interno forte e inacessível para os de fora. Entrar nessa dimensão é entrar num meio desconhecido. Há um embate ali, é a luta pela vida. Todo o movimento que ela faz é contrário a nós. Há um lado obscuro, sem saída. Uma parte do mar nunca penetrada antes, tranquila na superfície, aparentemente, desprovida de paixões. É uma tensão para se compor com o meio. A vida, para perseverar, depende desse sistema de transfiguração. Ancestralidade intempestiva. Estórias construídas sobre fragmentos. É preciso amar muito uma coisa para se compor com ela. É um abrir mão de todo um modo de existência. Tinha mais oxigênio nas águas do que no ar. Quando acordei senti as escamas.

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DÉCIMA CONVERSA | PERCI, MIRIAN, ANA LUIZA E ELA OU UMA OUTRA LÍNGUA

Era sábado, um frio de cortar. No relógio, cinco horas da tarde. Ela caminhava em direção a...

Mirian S.: Parece que é uma aposta de transformação dessa raiva, de canalização para a potência da voz dessa mulher. Essa voz precisa sair, precisa ter esse corpo, precisa falar, essa voz do coletivo dessas mulheres, através desse corpo que foi calado. Então, parece que é a voz que precisa ser amplificada, falar dessa raiva, falar desse apagamento, falar para dizer e transformar. Essa é a força, a voz.

Perci S.: A raiva sempre ficou associada assim, no caso das mulheres, à loucura. É uma desqualificação das motivações – é a histérica.

Mirian S.: E, nesse sentido, é um lugar que é da voz, me parece, que é antes da palavra. Uma voz que vai inventando palavras. E à medida que você cria uma nova língua, uma estrangeira a si mesma, você traz um canal não só de expressão, mas de comunhão com essas vozes coletivas, que é um lugar muito singular em tentar pelas palavras. No sentido de trazer tonalidade, trazer textura, trazer uma massa sonora, trazer as consoantes, e, a partir disso, uma potência vocal coletiva, numa invenção de uma outra língua que independe dos significados. Descolar um pouco a voz do significado, a palavra do significado. Ela tem uma outra potência sem significado. Ela se descola de uma ideia de identidade, inclusive. E se identifica com todas essas mulheres que foram caladas.

ELA: Tenho sentido a raiva como um lugar de criação mesmo, de escrita. As marcas são difíceis de dissolver. Por isso é preciso escrever.

Perci S.: Eu vou fazer uma observação também. É um texto excelente e eu achei excelente também a inversão que você faz, de uma certa tendência mais que comum, normal de se propor um texto que envolve um processo clínico. Tem alguns disparos lá, do paciente, mas quem está no transe mesmo é a Alice, a terapeuta, e isso achei bem interessante.

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Claro, ela está tratando de uma certa experiência de um gozo selvagem também envolvido nisso. Acho que você falou do dionisíaco no início... ELA: A experiência da escrita através da raiva. De permitir que ela venha.

Ana Luiza B.: O seu texto me lembrou muito o texto sobre os usos da raiva da Audre Lorde. Ela distingue os usos da raiva do ódio, da misoginia da qual as mulheres são alvo também, como algo que objetiva a destruição e a morte. Ela faz essa diferenciação desse uso da raiva que seria diferente de uma culpa. Ela fala da raiva como uma ação informada, como possibilidade. Fala também dessa escuta, da escuta do paciente, da sinfonia de fúrias que a gente teve que aprender a orquestrar para que não nos destruam. É interessante pensar a partir da perspectiva, de que as mulheres foram criadas para temer a raiva como aniquilação, a raiva do outro é perigosa, enfim, me convidou a voltar nesse texto porque ele tem uma perspectiva interessante. Ela fala sobretudo dessa apropriação da raiva como uma possibilidade transformadora.

Perci S.: Tem muitas coisas no texto, mas uma coisa que você destacou, até quando você fala também, foi considerando a raiva que dá ocasião à escrita, como se tratava de uma expressão. Essa raiva, ela está no texto e no assunto, e está associada a uma raiva ancestral feminina. Você descreve isso muito bem na experiência da Alice. Me parece um tema bem delicado esse, o da raiva também como expressão, mesmo, a indignação, a revolta. Por mais compreensível, e num certo nível necessário, me parece um tema bastante delicado mesmo. Porque a raiva, assim como essas variantes do que eu falei, elas não deixam de trazer junto aquilo de que elas têm raiva. De certo modo, isso está sendo retomado. Mas quando se falava agora a pouco do acontecimento e de estar à altura dele, do amor fati nietzschiano, claro, sempre é preciso apurar o entendimento disso, mas parece que já não é um lugar da raiva ou da revolta, no meu entender, é o dionisíaco.

ELA: Ouvindo você falar, me lembrei que é um caminho que eu busco muito. Esse lugar, que quando você cria alguma coisa, há uma liberdade, uma liberdade para falar, para matar, para ter raiva, para fazer a inversão que você quiser. São os deslocamentos. A ficção está me ajudando muito a me libertar e a libertar a minha escrita.

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Perci S.: Acho que dentro disso que você está dizendo, tem como o texto termina: deu a hora, fecha o consultório passou só mais um dia, como se tudo voltasse, vamos dizer assim, ao normal, para uma outra ocasião. É o lugar do sonho também.

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FRAGMENTO | MULHER VERDE95

Me surpreende uma mulher querer conversar com outra, que mal conhece. Que conexão é essa entre duas mulheres? De uma mulher que se abre à outra. Uma mulher que enxerga e sente as plantas de forma horizontal, como iguais, com amor e desespero ao ver uma árvore ser cortada, como um objeto à nossa disposição. Me aventurar nesse mundo de relações com mulheres desconhecidas é fascinante. Rafaela faz parte do Projeto Reflora, muito além do repatriamento, lindo demais esse projeto de registrar nossa flora planetária, a memória ancestral de Gaia. Um processo chamado exsicatas. Exsicatas é uma amostra de planta prensada, em seguida seca numa estufa, com temperatura apropriada para o material, e posteriormente fixada em uma cartolina de tamanho padrão (A3) acompanhada de uma etiqueta ou rótulo contendo informações sobre o vegetal, coletor, identificador do material, data de coleta, local, para fins de estudos na área da botânica. As exsicatas, geralmente, são guardadas em herbários, de modo a serem conservadas para as futuras gerações. Os herbários guardam as amostras de plantas do nosso planeta. São a genealogia da Terra. No meu imaginário ela falaria como um Coccia, um homem- branco-europeu-intelectual muitas vezes, com lindas palavras incompreensíveis. Será que os encontros são sobre palavras lindas e incompreensíveis? Ou sobre afetos mútuos? Quais palavras usar para descrever encontros que não têm palavras. Talvez isso seja tudo, encontros e afetos.

Rafaela C. F.: Tenho a felicidade de trabalhar num dos lugares mais bonitos desse país e olhar para as árvores todo dia. Eu vivo entre esses dois mundos, o das plantas mortas, que são as amostras de plantas científicas, e o das plantas vivas, que é como eu as amo de fato. Essas amostras botânicas são a prova da existência de algumas plantas. Quando entrei na faculdade, não sabia muito bem o que eu queria fazer. Mas no segundo período tive a oportunidade de ir para o meio da floresta com uma professora e ela ficava nomeando as plantas. Eu falei: nossa, isso é muito legal. É isso que eu vou fazer o resto da vida. E nunca mais fiz outra coisa. Desde então, trabalho dentro de um herbário. Faço isso até hoje e continuo achando tão legal quanto eu achava anos atrás.

95 Conversa feita por Skype em 19/02/2020. Rafaela Forza no Selvagem Ciclo 2019. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mYgFnssqGrk&t=1219s. 107

Quando fui para a Amazônia pela primeira vez, já tinha mestrado em botânica, já tinha andado por alguns lugares, já conhecia bastante as plantas, mas quando cheguei na Amazônia fui engolida. Não é você que conhece a Amazônia, a Amazônia entra dentro de você, é de uma violência que, quando eu volto, até hoje, eu demoro algumas semanas para voltar. Não é fácil entrar na Amazônia e não é fácil sair da Amazônia. E a Amazônia já não sai mais de dentro de mim. Eu tinha 23 anos quando fui a primeira vez e conheci algumas figuras que nunca tinham existido na minha realidade, os parataxonomistas, os guias de campo. Nenhum botânico anda na Amazônia sem um botânico local que é o parataxonomista, a gente vira uma dupla, eu tenho o meu e essa relação sempre me encantou muito. Foi essa a primeira sensação que eu tive, assim muito jovem, que existiam pessoas que sabiam muito mais de plantas do que eu, porque essas pessoas nasceram dentro da floresta e elas têm uma capacidade de observação, sabem as trilhas pelas árvores, as trilhas na floresta. É uma forma diferente de se guiar no mundo, e as árvores dizem muito, só que a gente não sabe ouvir, a gente não sabe ler o que elas estão dizendo, e quem é criado na floresta sabe. Quando você olha para uma floresta, vê um manto verde, mas não é um manto verde homogêneo, são dezenas de espécies, e você vira um ser atormentado, porque se você não vê aquilo como uma coisa só, você quer saber o que é cada coisa. É assim que eu olho uma floresta.

Duas coisas a gente precisa desconstruir: não é mato e não é sujo. Varrer calçada de folha não é limpar sujeira, por favor, tem que mudar o discurso, aquilo é folha de árvore. A gente tem que mudar a impressão de o que a gente está vendo é um mato que tem que ser limpo. As pessoas falam “eu vou limpar o lugar”. Limpar? Limpar é tirar a planta.

Você não tem medo de ir para a Amazônia? Não, eu tenho medo de cruzar a linha vermelha aqui no Rio de Janeiro. A chance de eu morrer na linha vermelha é muito maior do que na Amazônia. Por que que as pessoas insistem em perguntar se eu tenho medo de ir pra Amazônia? A gente tem que desconstruir isso também, de que a floresta é um lugar perigoso. E essa virou minha missão, mostrar para as pessoas que planta é uma coisa muito legal. A gente come planta, a gente dorme em planta, a gente veste planta, a gente pisa em planta, a gente se senta em planta. A nossa vida é cercada por plantas. Só que isso é tão comum, é tão normal, que a gente esquece de olhar para elas. Por que as pessoas têm mais facilidade de se comover com animais do que com as plantas? Acho que a gente tem que tentar mudar isso. Por que a gente se comove mais com a morte de um animal 108 do que com a queda de uma árvore? Qual a diferença entre um Angelim de 80 metros e uma baleia azul? Esse pensamento tem me acompanhado nos últimos tempos. Como fazer com que as pessoas olhem para as plantas com um olhar um pouco mais delicado, de que elas compõem uma parte bastante importante da nossa vida. No caso da Floresta Amazônica, ela já é muito do jeito que está, porque ela mantém todo o sistema de vida no planeta. Ela precisa ser mais útil do que isso?

Silêncio da Rafaela.

Ver a floresta queimando é uma das piores cenas que você pode ter na vida. Ouvir a motosserra do seu lado é outra das piores coisas. Eu sofro muito pela minha impotência diante da perda da floresta. Sou nascida na roça, interior do Espírito Santo. Sou de Colatina, à margem do Rio Doce. De uma época em que eu estudava de manhã e ia pra roça com meus avós depois do almoço, minha mãe trabalhava de tarde. Essa era minha rotina. A roça dos meus avós ficava a 10 km do centro da cidade. Eu não tenho medo, não me assusto com o mato, com a floresta, ando com muita naturalidade. Pra mim é tão mais intuitivo. Quando eu estou ali, com aquele mundo, é como se eu estivesse no meio da minha família, o que eu mais prezo na vida. Eu não tenho medo daquilo. Quantas pessoas você conhece que morreram de acidente no meio da floresta Amazônica? E quantas você conhece que morreram de bala perdida todo dia?

ELA: Nasci e moro em São Paulo há muitos anos. É uma cidade de rios. Me entristece muito a nossa relação com os rios. O rio é uma coisa viva, e aí você olha todo aquele lixo descartado por nós. É um reflexo do que nós somos.

Rafaela C. F.: Como você pode não querer que o rio que passa no fundo da sua casa esteja vivo? O quintal da minha casa era o Rio Doce. A gente tinha uma cerca de madeira, tinha um portãozinho que a gente abria e chegava no Rio Doce, era um rio enorme. E minha mãe não deixava a gente tomar banho, então a gente fugia para tomar banho no rio. Aquele rio imenso, ela achava que a gente ia morrer afogada. Era proibido tomar banho no Rio Doce, porque ele é um rio muito poderoso, mas a gente fazia isso sempre. E hoje eu faço isso na Amazônia, porque os rios que sobraram estão lá. Eu adoro tomar banho de rio.

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Ter empatia por plantas é uma coisa muito rara nos humanos, acho que é porque elas não choram, não gritam, não fazem barulho, não andam, não sei o que é. Tenho vergonha e dor quando paro na beira de uma árvore de 600 anos que um humano derrubou sem pensar. Como as pessoas não têm vergonha de fazer um negócio desse? [tem um tom de desespero nela]. Tem uma estória recente dos Angelins da Amazônia. É uma estória que mexeu muito comigo [faz um longo silêncio] por conta desse meu sentimento. Quando a gente descobriu essas árvores gigantes, recentemente, me deu esse sentimento. Tem uma cena recente que rodou o mundo: era um coala queimado vivo na Austrália. Fiquei muito mal. Mas a gente queima as árvores gigantes da Amazônia o tempo inteiro, e isso não causa essa comoção nas pessoas. Eu não tô desprezando a comoção por animais. Mas não se comover com o Angelim que está lá há muito tempo, você passar uma motosserra e fazer tábua, e fazer janela, e fazer porta num ser vivo de 600 anos.

Longo silêncio delas.

Demorei anos para ter credibilidade na equipe que anda comigo, que eu conheço planta, que eu sou uma botânica e que eu sei andar no mato, porque eu sou mulher. As mulheres dos meus mateiros, dos meus guias, ficam em casa, elas não vão pro mato. Em várias expedições, tem doze pessoas na equipe e eu sou a única mulher. Quando elas estão nas expedições, são cozinheiras, faxineiras. Entendeu? Então, além de eu ser a única mulher, eu sou a chefe. Eles acham estranho ter uma mulher naquela função, e além dela estar naquela função, ainda manda. Ou seja, essa relação é complexa. Tenho que reafirmar, praticamente, diariamente, que sou uma mulher que faz isso. Tem uma série de atitudes que eu tive que construir, que não é só o conhecimento, para ganhar o respeito deles, eu carrego peso igual, ninguém carrega as minhas coisas. Sei fazer isso muito bem porque fui criada na roça, no meio de um monte de vaqueiro. Então sei como é isso. E meu pai era dono de posto de gasolina, então lidar com homens não é um problema para mim, dar ordem para eles muito menos, mas sou uma exceção no mundo deles. Fui criada numa família matriarcal, por um pai que me ensinou a nunca receber ordem de um homem, então eu consigo, mas isso não significa que é tranquilo.

A Amazônia é o único lugar que dá para você se sentir na última fronteira, por isso amo a Amazônia. Aquela sensação de que ninguém consegue te salvar se você precisar? Eu adoro essa sensação. Não tem celular que pegue, não tem nada que alguém possa fazer, 110 você está há quatro dias de barco de qualquer lugar, é genial. Se você quebrar um pé, vai demorar quatro dias para chegar no hospital. Os sentidos todos abrem, você precisa estar presente. É uma outra coisa, você vira um ser que sente cheiros, que toma mais cuidado, que olha onde tá pisando. É uma outra relação. Por isso você não sente saudades de estar em outro lugar, porque você não pode sentir saudades, tem que estar prestando atenção onde você está. Porque se você esquecer o seu repelente, vai ficar três dias sendo comido por mosquitos. Então tem que pensar que você precisa do repelente. Não é que, ah eu esqueci, vou ali na farmácia e compro. Você realmente liga os sentidos, que é o que os índios têm. Esse senso de direcionamento deles na mata é uma coisa que sempre me impressionou. Onde você vê uma placa e aquilo te indica o lugar, eles veem uma árvore, a gente passou por essa Sapucaia, a gente passou...

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DÉCIMA PRIMEIRA CONVERSA | AS OUTRAS OU AMOR AO PRIMEIRO AFETO

Outra: Você multiplica perspectivas. No caso deste seu trabalho o proveito que você faz das outras perspectivas é muito grande. Você ficou craque em não perder a sua voz. O seu ponto de vista, e em trazer pontos de vistas outros, destes tantos outros que é o Núcleo96. Isso é um aproveitamento muito potente de um funcionamento bem esquizo do próprio Núcleo.

Denise S.: Você produz a escrita na medida em que ela é montada. Você expõe, portanto, o que costumeiramente não se mostra, a montagem do próprio pensamento. Há um segredo. E é ele que me pareceu o mais interessante e original do trabalho. Você inclui- se entre elas, “ela”, e se vê no que ama. Amar naquela que não sou eu, esse risco de me ver desconhecida e de perceber que amar é sempre correr riscos. Você dá o tom: mulheres fortes e corajosas. Não são todas, são estas.

ELA: É um processo, um pouco inverso da vegetariana, ela foi tirando as camadas, até que não sobrou nada, eu estou fazendo um processo inverso, me achando, saindo da invisibilidade, me construindo, tirando camadas capturadas, e germinando sementes de mundos. A vegetarina se perde, eu me achei, me descontruindo o tempo inteiro; ela se dissolve e eu quero ficar bem visível.

Denise S.: As montadoras apagadas, o labor da montagem com nomes femininos esquecidos, reflete as lacunas da força feminina para a existência do mundo. O laboratório permanente da montagem ecoa com este labor. Lembrei de Penélope, tece e desfaz, à espera. Figura apagada diante do Ulisses rei. Nem tanto. Ela “apaga”, desfaz durante a noite o trabalho de tecelagem que realizou de dia, porque quer ganhar tempo. Não é produção o que ela realiza, é a tecelagem de uma astúcia. A maior parte das mulheres do seu texto, mesmo a ingênua, mesmo a sua própria ingenuidade bebem de uma astúcia no sentido grego do termo, ou, se preferir, no sentido já dado pelos orixás que você convoca no texto, Yansã. A astúcia, que muitas vezes foi confundida com feitiçaria, com malícia, com maldade. É uma invenção xamânica, ancestral. Há muitos registros históricos de

96 Núcleo de Subjetividades do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica São Paulo. 112 mulheres astuciosas, e que, ao contrário dos homens, não tiveram protagonismo e foram esquecidas. Seria a astúcia o segredo, a engrenagem do amor?

Virginia W.97: Vi uma mulher hoje como se dizia vi um avião. As mulheres e a ficção? perguntei, entrando em casa.

Denise S.: Então, perguntei-me, e o amor pelas mulheres, como ficou agora, nessa parte da tua própria montagem? De novo um motivo amoroso, o flerte. Mas ele é o começo, ele é um gesto cortês, uma aproximação que ainda não envolveu o contato físico e amplo dos corpos.

ELA: O flerte foi uma grande sacada. Uma planta precisa de outra, assim como uma mulher precisa de outra. Pequenas belezas. Sutilezas. Abraçar os que as torna frágeis e o que as torna frágeis as torna lindas. Liberar nossos sentidos. A fragilidade como potência.

Denise S.: Mas você vai destacar em alguns momentos que as mulheres são o que são em situações de privação, de miséria, de repressão, de inferioridade social. Como é que conseguem, não é mesmo? Parece que é isso que se pode pensar diante de tantas dificuldades contrárias à vida das mulheres. Mas você nem sabe se é mulher ou peixe, ou planta, ou o quê, e isto pouco importa. Então, aqui, e em fugazes momentos em que ela aparece como uma autora que pode ser para além do próprio sexo biológico, ficou a impressão de que há uma dica daquele amor que pontua todo o seu texto, ou, do segredo que o atravessa e dentro dele se oculta e o constitui. Algo que a mulher verde insinua, o amor à Amazônia também mostra, a Vegetariana desesperadamente toca. Talvez o seu amor às mulheres não seja o fim do percurso, talvez elas tenham sido sempre partes da montagem de algo que não pertence a você, nem a elas, e que gostei de ver insinuado no texto, ainda que de forma fugaz.

ELA: Um segredo é sempre aberto às possibilidades. As personagens e as mulheres como imagens jusptapostas. A construção dessas personagens e dessas mulheres é a minha forma de experienciar a vida, e de como elas me afetam. Seja por conversas, amizades,

97 Woolf, V. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014, p. 61. 113 encontros, olhares. Eu fiz essa escolha cênica, personagens e mulheres como aliadas para colocar meus processos no mundo.

Denise S.: Não vou nomeá-lo, é secreto, eu não o descobri, isto é certo; mas talvez você possa falar um pouco, se achar que tudo isso tem algum sentido pra você, sobre o quanto o modo de existência capaz de singularizar alguns existentes - entre eles plantas e mulheres, florestas e cinema - depende incondicionalmente do que você chamou em algum momento de admiração, noutro de coragem, noutro de amor. É disso justamente o que mais precisamos nesse momento pandêmico e cruel, e é exatamente disso que precisamos sempre, não é mesmo?

ELA: O amor por elas só aumenta. É preciso amar para criar. Lembrei do dia que ela tomou ayuaska e entendeu a consciência e voz da planta. Nunca mais foi a mesma. Ficou com a alma verde e floresceu. Estava um céu azul, um lindo dia de inverno. Ficamos em silêncio até o lusco-fusco, até a vista não enxergar mais nada. Sentei-me próxima a janela para ver se alguma luz de fora me iluminava. Mesmo assim continuei escrevendo no escuro.

Ana Maria P.: Vou te dizer sobre a minha leitura, não é uma coisa assim tão simples. Agora de manhã achei que estava um pouco mais preparada, preparada também para sair de uma mesmice em mim, que é escrever sobre, ou é falar de um jeito, do meu jeito. Mas eu preferi fazer uma outra coisa com o teu trabalho que é destacar algumas coisas que eu sublinhei e sublinhei porque elas foram muito importantes pra mim nesse momento. O momento onde eu também estou tentando construir alguma coisa, onde eu estou tentando fazer a minha voz funcionar. Precisei imprimir, não podia ler na tela. Eu estava sem tinta, fui pra Floripa, fui para um lugar, imprimi o teu material. Agora eu vou sentar num lugar bem legal, sentar perto das minhas plantas. Com uma caneta, pegando sol, uma xícara de café. Olha o set de cena. Vou ler porque isso aqui é uma daquelas que sinto que vai fazer encontro, por isso eu posso abraçar.

Ana Maria P.: o que você quiser… Gostei disso, o que você quiser.

Naome: A potência do feminino, para além dos corpos. Está feito o convite. Microfones abertos para todas elas que quiserem colocar sua voz. Poetisas. Montadoras. Advogadas. 114

Sonhadoras. Trans. Belas. Loucas. Coloridas. Mulheres. As palavras deslizam umas sobre as outras. A imaginação da escritora/montadora é provocada. Promover uma desconstrução dos sentidos, uma multiplicidade de sons. Desmontagem da palavra. Montagem de sentidos. No caso delas, deslocamentos, atravessamentos, vozes. Quebrar a forma, liberar as palavras da lógica imposta, dar sonoridade. Sentir.

Ana Maria P.: É como se o Peter te entregasse um presente, uma frase, num parágrafo de conversa muito tranquila, a coisa do inventar um pequeno dispositivo de montagem e depois, para inventar esse pequeno dispositivo de montagem é preciso ter um filtro, que é um processo singular esse filtro. Acho que isso é uma das coisas mais bacanas e difíceis de entender, o processo singular.

ELA: Essa frase do Peter funcionou como uma força norteadora. Quebrei a cabeça para criar esse dispositivo. Mulher, a própria montagem. Encontrar essas mulheres foi como achar o cenário. Mulheres com suas singularidades, paisagens, preparar a cena para filmar. Foram esses encontros que plantaram embriões de transformação. Me deixaram acordada noites e noites. Trazer essas mulheres como aliadas foi pura potência. Estava criada a confraria secreta das mulheres.

Ana Maria P.: A busca por uma forma de desobediência poética. Sabe, o grande copião como universo. Puta sacada isso. E nesse grande universo, que é o seu copião de coisas que são todas as coisas que você recolheu, não são todas as coisas, mas é por onde você vai se enfiar para buscar uma forma de desobediência poética. Algo me parou. Você já reparou que quando corta algo, ele solta um aroma? Puts aí foi foda pra mim. A sacação do corte, sabe? Cortar algo e no cortar esse algo, quando corta depreende do corte, um aroma. Cara, eu me joguei direto na cozinha, cortar algo é liberar desse algo um aroma. Como saber quando cortar?

ELA: As cortadoras/clutters. Adoro colher materiais, falas e depois brincar com elas. A força das palavras delas ecoando em mim. A importância da voz e da fala delas. Uma escuta repleta de afeto. Trazer a casa, a cozinha, o escritório para a minha escrita. Os modos de relação se dão através de ressonâncias intensas. Provocar questionamentos, choques, tensões... São atos de uma vida toda, uma busca por novas existências, novas vozes, vozes próprias. 115

Ana Maria P.: Essa montagem da tua conversa com a Grada é interessante, você tomar frases e conversar com elas num diálogo ou numa espécie de… quer dizer você a toma como uma interlocutora, uma intercessora. Uma coisa é você falar sobre uma autora, outra é você conversar com ela. Eu acho que é uma sacada de lugares numa escrita, são essas duas vozes conversando. Então, essa é a tal da delicadeza que me interessa na leitura, acho que, uma coisa que eu gosto muito é essa possibilidade, é possível montar com tudo, mas tudo não é qualquer coisa, tudo não é uma junção de qualquer coisa que a gente tem, sabe? É preciso esse processo singular de saber o que que se corta, como se corta, como se escolhe, como se decide uma coisa e outra. Então por isso, corte, corte é uma coisa muito difícil né? Pensando agora. É muito difícil fazer um corte. Muita sacada precisa ter para fazer um corte. Se trata de uma vontade, de um processo muito singular de escolher aquilo que vai construindo esse caminho que se quer, o caminho de uma ideia.

ELA: O corte como caminho do afeto, os aromas. O som da faca cortando a manteiga que acabou de sair da geladeira, dura, o fogão aceso, a água fervendo com o ovo dentro batendo nas paredes da panelinha, a maquininha de leite fazendo espuma, silenciosamente, o café, a máquina com muito barulho. O som da água na pia, dos pratos sendo colocados no escorredor. São sons que antes ela nem sabia que existia. Se você prestar atenção, consegue saber pelo som quando a água ferveu.

Bates: Sentamos na pequena mesa da cozinha, cercada apenas por duas cadeiras. A mesma mesa onde que passamos muitas noites. Mesmo num apê tão grande, a cozinha era o lugar de sempre. Conversamos por três horas. Ela foi de uma generosidade de irmã de alma. Falou sobre o pai, o seu nome, o México, a arte, Frida Khalo como vizinha, o vulcão, o nascimento do filho, o isolamento numa terra estrangeira, a vizinha que sofria abuso do marido que a visitava vez ou outra, o mercadinho com os frangos mortos pendurados, as cinzas, o pueblo entre vulcões, à beira da estrada.

Ana Maria P.: É muito interessante, eu amei, eu amei, eu amei isso. Eu comecei a ver a partir da leitura da mulher-verde, um baita encontro com esse trabalho, pra mim um puta encontro. Uma vontade de sair, ir pra rua, pensar e olhar para os jardins que as mulheres constroem, cada mulher é um jardim, cada jardim um universo e cada desenho de jardim uma ideia. Fiquei muito atazanada com esse encontro. De novo eu grudada aqui. Eu não posso ter pressa nunca e tem alguma angústia acompanhando o ler e o escrever, é preciso 116 inventar a maneira de habitar essa angústia e não fugir dela, ela é necessária, é difícil, mas não é mortal. A escrita está lá.

ELA: É sempre sobre os encontros. No momento me sento para escrever. Em silêncio, para escutar as vozes delas. Um passeio por uma floresta com algumas mulheres. Outros ritmos. Outras montagens. Habitar a angústia. É preciso escrever.

Alice: A ausência me diz mais sobre a personagem do que a presença e as entrevistas. A gente vai preenchendo o silêncio. Preenchendo. Preenchendo. Até não existir um único lugar de silencio em toda... Inventemos continuamente de forma artesanal e intuitiva, nos nutrindo das trocas com as outras, para contar nossas estórias.

Ana Maria P.: Gostar, gostar não, deixar ser fragmentado, a afirmação do fragmento. Dizer algo que só você pode dizer, a sua escrita ela diz algo que só você pode dizer, de um jeito que só você pode fazer, é o seu jeito de trabalhar com o afeto. Tem um desmanche do que é escrever, não é do que é escrever, mas do modo de escrever um trabalho de mestrado. É algo pela via das mulheres, junto a isso tem uma desterritorialização, uma perda de uma imagem de escrita, uma noção de dissertação que se desfaz e você a faz funcionar de um outro modo e ao mesmo tempo nos leva a pensar o gênero, mulher, construção de gênero, de mulher, planta.

ELA: Os ruídos ou os chamados erros me fascinam. Eles trazem uma quebra de expectativa, uma rua não varrida das folhas. Como um vagar pela neblina, onde precisamos adentrar para ver. Perder-se, errar-se, é sempre um lugar para se abrir/amar a outra.

Ana Maria P.: Foi ótimo, foi ótimo...voltar lá do final meio que para o começo de novo. E eu tenho a impressão de um ir e vir constante no teu trabalho. A cada parte, a cada fragmento, a cada personagem, a cada ideia de roteiro inacabado ou a cada conversa, a cada texto seu... Tem sempre essa coisa mulher gênero planta montagem. Em alguma ordem, em alguma instância pelas suas razões a gente passa pelos seus temas e ao mesmo tempo passa pela escrita. Então achei super potente. Eu fiquei muito tempo nesse trabalho e acho que ainda vou ficar muito tempo nele, dada a força, não necessariamente só dele, mas da força do encontro que eu fiz com o teu trabalho. 117

ELA: Para nossas vozes é necessária outra forma de criar e sentir. Formas de romper. Subjetividades, personagens, scripts, emoções, representações e sentidos... Escutando-a falar, aquele tom de voz suave e doce, não conseguia não prestar atenção. Elas estavam comigo, dentro de mim. Sou todas elas. As velhas imagens se despedaçando. Foi tudo tão real. O som do jazz. As falas. As descobertas, as estórias apagadas sendo contadas, uma duas três.... Os afetos. Será que não passou de um sonho? Sonhei que conhecia essas mulheres, que nos amamos? Inventei todas elas? São todas personagens de uma grande ficção? Eu trouxe algo para você, para esse encontro. É o pensar sobre o peixe.

Não posso ficar e não posso levar comigo.

Foi isso que ela disse, ao largar a caneta.

118

A IMAGEM INCONSCIENTE ou EMBRIÕES DE MUNDOS98

Do ponto de vista das palavras, cruzou-se o roteiro com a dissertação, as personagens invadiram a dissertação e vice-versa. E, de certa maneira, vamos ficar meio sem saber inclusive quem existe e quem não existe.

E as imagens? Trata-se das intersecções. De respiros. Elas são um chamado a contemplação. Geradas por uma atitude inconsciente e intuitiva. E nas imagens, tem o peixe, “seja um trabalho, minha família... ou meus dedos do pé ou um país estrangeiro. É interessante continuar registrando.... e ver o que a vida é. É uma vida através das lentes”, é o que diz Annie L.99.

As imagens, um simples olhar para elas. Um passeio pelo sentir. Gosto delas assim, como numa sequência de um filme. E aqui você pode vê-las na ordem que desejar.

Pausa: um ficar dentro.

98 As imagens abaixo foram todas produzidas por mim. Algumas fotos que ajudaram a compor as imagens foram colhidas na internet e outras foram fotos tiradas por mim. 99Filme documentário: Annie Leibovitz: Life through a lens. Direção: Barbara Leibovitz. EUA, 2006. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=C5AKqjpPJQ8. 119

01_cortadoras

120

02_2020, 19

121

03_fragilidades fortes

122

04_sutilezas

123

05_melancolia

124

06_Tiktaalik roseae100

100 Coccia, E. A vida das plantas. Uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018, p. 33. 125

07_ñe’e raity (ninho de palavras alma101)

101 Rolnik, S. Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 26. 126

08_family

09_capturing the sound

127

10_ Ajayu (alma102)

102 Fala do filme documentário Mar Arriba de Silvia Rivera Cusicanqui, 2016. Disponível em: https://vimeo.com/191010897. 128

11_Ara yma (o espaço-tempo original103)

12_love tree

103 Werá, K. O trovão e o vento. Um caminho de evolução xamaninsmo tupi-guarani. São Paulo: Polar, 2017, p. 86. 129

13_aikidô encantado

130

Uma fala. Um lugar mulher menino peixe. diversas subjetividades possíveis. No momento me sento para escrever. Em silêncio. No nada. O encontro entre elas.

14_ Amor

131

15_outras estórias

132

REFERÊNCIAS [OU ATRAVESSAMENTOS AFETIVOS]

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KLISYS, Paloma. Máquina de Inscrever. 11º programa da série. 2019. Disponível em: https://soundcloud.com/maquina-inscrever/maquina-de-inscrever-11-programa-da-serie

LEIBOVITZ, Barbara. Annie Leibovitz: Life through a lens. Documentary, Biography. Season 20. Episode 8. American Masters. EUA, 2006. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZvulXR9TUiU&t=715s

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Série Império Selvagem. A disputa pelo trono. Temporada 3. Episódio 4. Produção National Geographic. Exibição: Fox. EUA, 2017.

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Oficina Teatro e Set de filmagem. Realizada em São Paulo, Ipiranga. Filmagem, 2018

138

FILMES / MONTADORAS

ALLEN, Dede. Bonnie & Clyde: Uma rajada de balas. Direção: Arthur Penn. EUA, 1967.

______. Um dia de cão. Direção: Sidney Lumet. EUA, 1975

BENVENUTI, Jolanda. Stromboli. Direção: Roberto Rosselini. Itália, 1950

BERG, Jordana. Jogo de Cena. Direção: Eduardo Coutinho. Brasil, 2007.

CAMBAS, Jacqueline; outros. A marca da pantera. Direção: Paul Schrader. EUA, 1982.

CHASNEY, Jasmine. Hiroshim, meu amor. Direção: Alain Resnais. Roteiro: Marguerite Duras. Paris, 1959.

COATES, Anne V. Lawrence da Arábia. Direção: David Lean. EUA e Inglaterra, 1962.

DECUGIS, Cécile. Acossado. Direção: Jean-Luc Godard. França, 1960.

DEGUCHI, Keiko; outros. Ryuichi Sakamoto: Coda. Direção: Stephen Schible. EUA e Japão, 2017.

FIELDS Verna. Tubarão. Direção: Steven Spielberg. EUA, 1975.

FEIGINOVA, Lyudmila. Stalker, The Mirror, Solaris. Direção: Andrei Tarkovsky. Rússia.

GREEN, Pamela. Be Natural: The Untold Story of Alice Guy−Blaché. Direção: Pamela B. Green. EUA, 2018.

HAUTECOEUR, Louisette. A bela da tarde. Direção: Luis Buñuel. França, 1967.

HRANITZKY, Ágnes. O cavado de Turim. Direção: Béla Tarr e Ágnes Hranitzky. Hungira, 2017.

KRUMEL, Fernanda Franke. Yoga, Arquitetura da paz. Direção: Heitor Dhalia. Brasil, 2017.

LAWRENCE, Viola. The Lady from Shangai. Direção: Orson Wells. EUA, 1947.

LITTLETON, Carol. ET, o extraterrestre. Direção: Steven Spielberg. EUA: 1982.

McLEAN, Barbara "Bobbie". All About Eve. Direção: Joseph L. Mankiewicz. EUA, 1950.

McMILLON, Joy. Moonlight. Sob a luz do luar. Direção: Barry Jenkins. EUA, 2016.

139

MENKE, Sallly. Pulp Fiction. Tempo de violência. Direção: Quentin Tarantino. EUA, 1994.

MERCEDES, Paula. Gyuri. Direção: Mariana Lacerda. Brasil, 2019

MORSE, Susan. Manhatan. Direção: Woody Allen. EUA, 1979.

OSKARSDOTTIR, Valdis. Brilho eterno de uma mente sem lembrança. Direção: Michel Gondry. EUA, 2004

PINEAU, Laurent; VARDA, Agnés. Os catadores e eu. Direção: Agnès Varda. França, 2000.

PLEMIANNIKOV, Hélène. O discreto charme da burguesia. Direção: Luis Buñuel. França, 1972.

REMON, ANA. Pela Janela. Direção: Caroline Leone. Brasil, 2017.

SCHOOMAKER, Thelma. Touro Indomável. Direção: Martin Scorsese. EUA, 1980.

SVILOVA, Elizaveta. Um homem com uma câmera. Direção: Dziga Vertov. União Soviética, 1929.

STRAUSS, Alexandar. Eu não sou seu negro. Direção: Raoul Peck. EUA, 2016.

STENSGAARD, Molly Malene. Melancolia. Direção: Lars Von Trier. EUA, 2011.

VARDA, Agnès. et al. Varda by Agnès. Direção: Agnès Varda; Didier Rouget. França, 2019.

VARDA, Agnès. et al. Os Catadores e Eu. Direção: Agnès Varda. França, 2000.

VERNEAU Janine. Cléo das 5 às 7. Direção: Agnès Varda. França, 1962.

VERNEAU Janine. As duas faces da felicidade. Direção: Agnès Varda. França, 1965.

YOYOTTE, Marie-Josèphe. Os Incompreendidos. Direção: François Truffaut. França,1959.

140

OUTROS FILMES

Alice no país das maravilhas. Produção: Walt Disney. EUA, 1951

Blow-Up. Direção: Michelangelo Antonioni. Itália e Inglaterra, 1966

Did you wonder who fired the gun? Direção: Travis Wilkerson. EUA, 2017.

Fale com ela. Direção: Pedro Almodóvar. Espanha, 2002.

Fakir. Direção: Helena Ignêz. Brasil, 2019.

Ghost In The Shell. Direção: Rupert Sanders. EUA, 2017

Grey Gardens. Direção: Michael Sucsy. EUA, 2009.

Imagem e Palavra. Direção: Jean-Luc Godard. França e Suiça, 2018.

Ladrão de Bicicleta. Direção Vittorio De Sicca. Itália, 1948.

Natureza Selvagem. Direção: Sean Penn. EUA, 2007.

Taxi Driver. Direção: Martin Scorsese. EUA, 1976.

Tudo sobre minha mãe. Direção: Pedro Almodóvar. Espanha, 1999.

The Cutting Edge: The Magic of Movie Editing. Direção: Wendy Apple. EUA, 2004. Disponível em: https://vimeo.com/335100287

141

MÚSICAS

Playlist das músicas citadas na dissertação e mais algumas outras no Spotify. Disponível em: https://open.spotify.com/playlist/56EFkx1Gtm4FEYOOCVs01O?si=B3kJHca0QRm0B LSq801KjQ

HOLIDAY Billie. All of Me. Álbum: Jazz at the Philharmonic. Compositor: Gerard Marks and Seymour Simon. Produtor: Normam Granz. Gravadora Clef Records. New York, 1954.

______. Solitude. Álbum: Solitude. Compositor: Duke Ellington, Eddie Delange e Irving Mills. Produtor: Norman Granz. Gravadora Clef Records. New York, 1956.

______. Strange Fruit. Álbum single: Strange Fruit. Compositor: Abel Meeropol. Produtor: Milt Gabler. Gravadora Commodore Records. New York, 1939.

MADONNA. What it feels like for a girl. Álbum: Music. Compositor: Madonna, Guy Sigsworth e David Tom. Produtor: Madonna, Guy Sigsworth e Mark “Spike: Stent. Gravadora Maverick Records. New York, 2001.

NUNES, Clara. O canto das três raças. Álbum: O Canto das três Raças. Compositores: Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte. Produtor: Renato Correa. Gravadora EMI-Odeon. Brasil, 1976.

SIMONE. Nina. I put a spell on you. Álbum: I put a spell on you. Compositor: Jalacy Hawkins. Produtor: Hal Mooney. Gravadora Philips Records. New York, 1965.

VAUGHAN, Sarah. Black Cofee. Álbum: Black Coffee. Compositor: Sonny Burke and Paul Francis Webster. Produtor: Joe McEween. Gravadora Columbia Records. New York, 1948.

WINEHOUSE, Amy. Back to Black. Álbum: I put a spell on you. Compositor: Amy Winehouse e Mark Ronson. Produtor: Mark Ronson e Salaam Remi. Gravadora Island Records. New York, Miami e Londres, 2006.

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AULAS

Aulas ministradas por Suely Rolnik e Angela Donini no Núcleo de Subjetividades do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica São Paulo, 2018-2020.

Aulas ministradas por Peter Pál Pelbart no Núcleo de Subjetividades do Programa de Pós graduação em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica São Paulo, 2018- 2020.

Aulas ministradas por Denise Sant’Anna no Núcleo de Subjetividades do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica São Paulo, 2018-2020.

Aulas ministradas por João Perci Schiavon no Núcleo de Subjetividades do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica São Paulo, 2019-2020.

SKYPES

Gabriela Cunha Ferraz. Realizado em 18/03/2020

Jordana Berg. Realizado em 22/04/2020

Rafaela Campostrini Forzza. Realizado em 19/02/2020

Thatiana Santos. Realizado em 08/03/2020

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