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Bordando as redes familiares: sociedade, endogamia e homogamia matrimoniais na de Jacarepaguá, (c.1750-c.1800)

Embroidering family networks: matrimonials endogamy and exogamy in Jacarepaguá, Rio de Janeiro (c.1750-c.1800)

Mareana Gonçalves Mathias da Silva Barbosa1

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar o estudo de caso de duas famílias e suas estratégias matrimoniais de homogamia e endogamia matrimonial entre 1750 e 1800, na freguesia rural de Jacarepaguá. Inseridos no Antigo Regime católico português, os personagens apresentados possuem uma forte noção de pertencimento à Monarquia portuguesa e suas regras, que eram observadas por cada um, por suas famílias e seus vizinhos. Visto que se trata de uma paróquia rural, onde os laços são intrinsecamente ligados à moral religiosa, as principais formas de aliança eram a designação de padrinhos de batismo e a escolha familiar de cônjuges para o casamento. Através dos laços familiares, escravos, libertos e livres, conviviam no mesmo espaço e compartilhavam da mesma tradição, assim como inseriam estrangeiros e forasteiros a todo o tempo em sua lógica de funcionamento, a fim de garantir a paz e a boa convivência.

Palavras-chave: antigo regime português; Jacarepaguá; estratégias matrimoniais.

Abstract: This article aims to analyze the case study of two families and their matrimonial strategies of homogamy and endogamy between 1750 and 1800, in the rural parish of Jacarepaguá. Situated in the Old Portuguese Catholic Regime, the characters presented have a strong notion of belonging to the Portuguese Monarchy and its rules, which were observed by each one of them, their families and their neighbors. Since this is a rural parish, where ties are intrinsically linked to religious morality, the main forms of alliance were the nomination of baptismal godparents and the family choice of spouses for marriage. Through family ties, slaves, freed and free, lived in the same space and shared the same tradition, as well as inserting foreigners and outsiders at all times in their logic of functioning, in order to ensure peace and good coexistence.

Keywords: portuguese ancient regime; Jacarepaguá; marriage strategies.

Introdução

Este artigo tem por objetivo demonstrar um estudo de caso sobre as estratégias matrimoniais dos moradores da freguesia de Jacarepaguá, onde habitavam partidistas e foreiros2 entre as décadas de 1750 e 1800. Jacarepaguá localizava-se na área rural do Rio

1 Bacharel, licenciada e mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente cursa o Doutorado na mesma instituição, no Programa de Pós-graduação em História Social. É professora da rede municipal na cidade de Piraí/RJ desde 2015. 2 Partidistas são lavradores de cana que em troca de um pedaço de terra, os partidos, devem entregar parte da cana ao engenho em que estão submetidos. Foreiros, por sua vez, pagam um foro anual para o dono da

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 436 de Janeiro, como quase todas as regiões que não faziam parte das quatro freguesias urbanas: Sé, Candelária, Santa Rita e São José. Para este artigo, escolhemos duas famílias que, por décadas, mantiveram a endogamia e a homogamia familiar matrimonial, ou seja, planejaram casamentos entre membros de suas famílias a fim de manter, conforme a nossa hipótese, o patrimônio material e imaterial adquirido durante séculos entre “iguais” (por isso casamentos homogâmicos).

Para que este artigo fosse escrito, foram utilizadas, basicamente, quatro tipos de documentação; três de natureza paroquial. A mais qualitativa e que contém mais informações foram as habilitações matrimoniais - necessárias para homens e mulheres livres que quisessem se casar frente à Santa Igreja Católica -, as quais contém muitas informações sobre os cônjuges e suas famílias, além de testemunhos e anexos. Além das habilitações matrimoniais, usamos, também, os batismos para compreender o intervalo primogenésico e intergenésico, os quais auxiliam a compreender a permanência – ou não

– de alguns casais na mesma localidade, como é o caso da família a qual escolhemos para o estudo de caso, além da atribuição de nomes e escolha de padrinhos. Por último, alguns

óbitos e testamentos foram utilizados para fazer uma análise primária e correlacional entre a família e o acesso à terra. A partir do cruzamento dessas três fontes paroquiais e do censo3 realizado pelo Conde de Resende, pudemos chegar a algumas conclusões acerca da lógica de funcionamento matrimonial das famílias Oliveira Lobo e Cordeiro de Castro.

Para a melhor compreensão da história que estamos prestes a contar, o presente artigo divide-se em quatro partes. Em primeiro lugar mostraremos brevemente, embora com mais especificidade, a “natureza” das documentações utilizadas; em seguida, faremos

fazenda, cujo valor pode depender da relação que este mantém com o senhor de engenho. Cf. ABREU, Mauricio. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502 – 1700). Rio de Janeiro, Ed. Andrea Jakobsson Estúdio e Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, 2010. V. II. pp. 106-11. 3 Mapa de população feito pelo Conde de Resende nas freguesias do Distrito da em 1797. Mapa descritivo do distrito da Guaratiba, freguesia de Jacarepaguá. 1797. AHU-Rio de Janeiro, cx. 165, doc. 62. O mapa de população apresenta os nomes dos chefes de domicílio, a quantidade de filhos, se eles eram ou não casados, se eram homens ou mulheres, se possuíam escravos ou agregados, o tamanho de sua terra, o que plantavam e a lucratividade anual. Trata-se obviamente, de um retrato estático da freguesia em 1797, o qual precisou ser cruzado com mais documentos para que obtivéssemos uma ideia do funcionamento da sociedade do período.

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 437 uma pequena apresentação da freguesia de Jacarepaguá; enquanto isso, a parte três concentra-se na explicação da organização da sociedade do Antigo Regime monárquico português; a quarta parte dedica-se ao objeto principal de nossa análise, as duas famílias envolvidas na endogamia e homogamia matrimonial; e a última e quinta parte continua a história das famílias Cordeiro de Castro e Oliveira Lobo a partir da comparação com uma localidade ibérica.

Escrevendo sobre o passado colonial: fontes paroquiais e o censo do Conde de Resende

Para que fosse possível representar em palavras a história de duas famílias que viveram há mais de dois séculos atrás, contamos com a análise de documentos paroquiais e com o censo feito em 1797. Por meio do cruzamento desses documentos, pudemos colocar neste artigo, algumas informações, ainda que fragmentadas, sobre essas famílias – fragmentadas porque o passado nunca pode ser reconstruído, tampouco o presente. Desse modo, pudemos apresentar dados sobre como viviam essas famílias no Rio de Janeiro do século XVIII. Entre as informações que encontram-se na habilitação matrimonial estão os registros de batismo dos contraentes (e, portanto, o nome de seus pais e padrinhos e as respectivas naturalidades), que são os que querem se casar, o depoimento deles4, indicando seu local de moradia, suas naturalidades, idades, se são ou não legítimos5, informação sobre as paróquias em que moraram por mais de 6 meses e o certificado da quaresma atestado por um pároco.

4 Em geral, os depoimentos deveriam ser dados ao juiz dos casamentos, que se localiza nas freguesias urbanas. Como Jacarepaguá é uma freguesia rural, não é pouco comum que os contraentes pedissem, pela distância que os depoimentos fossem tomados pelo seu pároco na própria freguesia de Jacarepaguá. Para isso, muitas vezes lançavam mão do artifício do “atestado de pobreza”, dizendo não poder arcar com os custos do deslocamento. 5 Legítimos são filhos que nasceram enquanto os pais eram casados. Naturais são os que tem os dois pais solteiros ou só é declarada a ascendência de um progenitor. Caso os pais se casassem após o nascimento da criança, esta poderia ser considerada legítima por casamento posterior. Embora tenham sido encontrados casos como esses, não eram muito comuns na freguesia.

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Estas são as informações que aparecem em todas as habilitações, a não ser que alguma certidão de batismo não fosse encontrada6 ou se estas informações não existissem, como é o caso de alguns africanos recém-saídos do cativeiro cujos nomes dos pais não consta, uma vez que provavelmente vieram adultos do continente. Nesses casos, era obrigatória a realização de uma justificação de batismo, na qual o contraente deveria apresentar três testemunhas capazes de confirmar que ele fora batizado, fornecendo todas as informações de seu conhecimento referentes ao batismo.

Obedecendo às regras do Concílio de Trento, o casal que desejasse se unir pelo laço sagrado do matrimônio deveria informá-lo ao seu pároco7 e, por sequência, fazer denunciar oralmente os proclames8, ditos em domingos ou dias santos, tanto nas freguesias em que moraram por mais de seis meses quanto nas freguesias urbanas.9 Este proclame gerava um documento por um escrito que deveria ser anexado ao processo, cujo exemplo segue:

Quer casar Francisco Coelho da Silveira, filho legitimo de Domingos Coelho Linhares e Ana Maria da Silveira, natural e batizado na freguesia de Santa Barbara, bispado de Mariana, por ora assistente na freguesia do Santissimo Sacramento com Sebastiana Tereza de Azevedo, filha legitima de José Teixeira de Azevedo e Antonia Maria da Assunção, natural e batizada na freguesia de Nossa Senhora do

6 Uma vez não se encontrando o batismo, era necessário que se chamassem três ou mais testemunhas para atestar a naturalidade, filiação, data e o padre que havia batizado a criança. 7 É importante lembrar que para que o casamento fosse considerado lícito, os contraentes não poderiam ter menos de 14 e 12 anos, respectivamente homem e mulher, a não ser que se mostrassem aptos para tal apesar da pouca idade através de dispensa paroquial. 8 Os que pretenderem casar, o farão a saber a seu Parocho, antes de se celebrar o Matrimonio presente, para os denunciar, o qual, antes que faça as denunciações, se informará se ha entre os contrahentes algum impedimento, e estando certo que não ha, fará as denunciações em tres Domingos, ou dias Santos de guarda contínuos á estação da Missa do dia, e as poderá fazer em todo o tempo do anno, ainda que seja Advento, ou Quaresma, em que são prohibidas as solemnidades do Matrimonio, e se farão na fórma seguinte. Quer casar N. filho de N., e de N. natturaes de tal terra, moradores de tal parte, Freguezia de N. com N. filha de N, e N. naturaes de tal termo, moradores em tal parte, Freguezia de N., se alguem souber que ha algum impedimento, pelo qual não possa haver effeito o Matrimonio, lhe mandamos em, virtude de obediencia, e sob pena de excommunhão maior o diga, e descubra durante o tempo das denunciações, ou em quanto os contrahentes VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Typographia 2 de dezembro de Antonio Louzada Antunes. São Paulo: 1853.Pag. 107. TITULO LXII. Do Sacramento do matrimônio. 9 No começo do século XVIII, observamos que as freguesias urbanas em que os proclames eram feitos se resumiam à Sé e à Candelária, enquanto que, de meados do século em diante, talvez pelo crescimento territorial e em importância do Rio de Janeiro, acrescem-se a essas duas as também freguesias urbanas de Santa Rita e São José.

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Loreto de Jacarepagoa onde satisfez o preceito da quaresma passada e ele na do Santissimo Sacramento.10

Abaixo destas palavras, que deveriam ser repetidas três vezes em cada localidade, o pároco colocava o seu parecer, onde constava que ele o fez em três dias e não surgira impedimento. Nas freguesias que eram a da naturalidade dos contraentes, deste parecer seguia também o traslado do batismo. No caso demonstrado acima, apenas o batismo de

Sebastiana foi traslado, enquanto o de Francisco precisava vir de um local mais distante.

Nestes casos, era comum, por conta dos gastos, que se pedisse um fiador para pagar as custas. Este dado aparece primeiro com um pedido do contraente e, recebida a permissão do juiz dos casamentos, é emitido um termo de fiança, em que consta o nome o fiador11, estado civil, local de moradia, ofício e o tempo que tem para apresentar as ditas certidões, além do valor que será depositado como caução. Em geral, este pedido vem acompanhado de um “atestado de pobreza” emitido pelo pároco da freguesia em que o contraente (ou a contraente) reside:

(...) o suplicante Francisco Coelho da Silveira he soldado do regimento novo da Infantaria desta praça, não tem bens de seo, e só o seo oficio de ferreiro. (...) a suplicante vive em suma pobreza sem bens alguns em companhia de seu pai Jose Teixeira de Azevedo. 12

Pudemos observar, ao longo da análise de 329 habilitações matrimoniais ao longo do século, que os fiadores, em geral, eram homens da cidade. Interessante notar que, no início da centúria, os fiadores eram, em sua maioria, homens de negócio. Talvez por sua maior credibilidade. Conforme se passava o tempo, era mais comum que houvesse fiadores da própria região em que residiam os contraentes, como é o caso apresentado, em que

10 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (daqui em diante ACMRJ). Habilitação Matrimonial (HM) 51452, cx. 2473. Opta-se, neste artigo, por utilizar a escrita original dos documentos. De um lado porque acredita-se que a fidelidade à escrita do período pode trazer informações importantes sobre como a língua portuguesa era utilizada no período em freguesias rurais, e, por outro, o quanto eram mescladas com falas locais e medir a literacia dos párocos e escrivãos, o que pode permitir, futuramente, uma análise comparativa e etimológica da língua. 11 Neste caso, o fiador era Ignacio Teixeira de Sampaio, casado, morador na , em Jacarepaguá, vive de sua lavoura e teve 8 meses para apresentar as certidões de banhos e de batismo do contraente pelo valor de 20 mil réis. HM 51452, cx. 2473. 12 O parecer do contraente foi emitido pelo pároco José Vieira Lima, da freguesia da Sé, em 10/06/1782 e o da contraente pelo pároco Domingos de Azevedo, de Jacarepaguá, em 28/04/1782. HM 51452, cx. 2473.

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 440 acreditamos que o fiador seja parente da noiva, uma vez que tem o mesmo sobrenome da família e reside no mesmo local, o engenho da Tijuca. Podemos creditar este aumento do número de fiadores da própria região de Jacarepaguá ao incremento da população e à consequente extensão dos laços de solidariedade que se estabelecem localmente.

A freguesia de Jacarepaguá na segunda metade do século XVIII

As freguesias13 eram centradas nas igrejas paroquiais, onde as pessoas “faziam contato de forma contínua, ouviam a missa, compareciam a casamentos, batizados e funerais”.14Com o crescimento da vila, foi necessária a sua elevação a paróquia e a separação de Irajá. Vale ressaltar que a feitura de uma igreja se fazia necessária quando existia algum núcleo de povoamento. A paróquia, formada em torno da nova construção, deve ser compreendida pela chave de que esta não só “protege os mortos, assegurando- lhes o além, mas também beneficia os vivos e é a garantia da proteção de Deus”.15 Neste sentido, “todo o paroquiano, conforme as suas posses, tem que contribuir, até os imigrantes

(...), se querem continuar a pertencer à sua comunidade”. A questão da pertença da comunidade e consequentemente, sua manutenção, se apresenta como fundamental para a compreensão das relações entre paroquianos.16

13 De acordo com o dicionário de Bluteau: Parrôchia, ou Parroquia. Freguezia, Igreja Parrochial, governada por Parroco. Deriva-se do Grego Parochos, que quer dizer, Repartidor, ou Hospedeyro de Embayxadores. Antigamente havia um costume, que nas casas em que se hospedava Embayxador, ou enviado Romano, lhe haviaõ dar de raça quanta lenha podesse queymar, & quanto sal podesse comer ele, & sua gente. Então não amassavão o paõ com sal, como agora; pelo que salgavão cada bocado de paõ, comião, como as talhadas de carne, especialmente, que o sal não era simplez, senão composto, como cá sal, e pimenta. O que tinha cuydado de dar aos Ministros Romanos a lenha, & o sal, se chamava Parochus, que (como já dissemos) vai o mesmo que Repartidor. Tocou Horacio este costume na quinta Satyra do primeyro livro aonde diz: Tum Parochi, que debentligna, salemque. A imitação disto chamamos à Igreja de huma colação Parochia, &Parochus, porque não hade levar dinheyro por eles. Pela lenha entenderemos a matéria dos Sacramentos, &e pelo sal, a graça, que sempre acompanha aos Sacramentos, dão-se estes a homens Romanos, que caminhaõ nesta vida debayxo da obediência do Romano Pontifice. 14 SCHWARTZ, Stuart B; LOCKHART, James. A América Latina na época Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 274. 15 SCOTT, Ana Silvia Volpi. Famílias, formas de união e reprodução social no noroeste português. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2012. pp. 223-224. 16 Idem. p. 223.

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Criada em seis de março de 1661, como já dito, a Freguesia de Nossa Senhora de

Loreto e Santo Antônio de Jacarepaguá é a quarta paróquia do Rio de Janeiro a ser fundada. Antes, assim como as freguesias de Campo Grande e Guaratiba, pertencia à jurisdição de Irajá, primeira freguesia rural do Rio de Janeiro, estabelecida em 1644.17

Jacarepaguá alcançou, entre os séculos XVI e XVIII, um incremento constante de engenhos.

Era também, a freguesia com a segunda maior produção de aguardente se comparada às suas vizinhas, sendo a terceira em caixas de açúcar e de alqueires de farinha de mandioca.18

No século XVIII esta freguesia açucareira transformou-se na distante periferia de uma cidade que cada vez mais se converteu no principal porto do Atlântico Sul luso, em função do ouro das Minas Gerais e do tráfico atlântico de escravos. Apesar deste processo, fidalgos da casa real lusa mantiveram engenhos em Jacarepaguá, como os Correa de Sá e

Benevides, que, inclusive, tinham terras vinculadas a seu morgado no local19, assim como estes últimos continuaram a ser objeto de desejo de negociantes enriquecidos.20

17 ARAUJO, Carlos. Jacarepaguá de antigamente. Belo Horizonte: C. Borges Editora, 1995. 18 OLIVEIRA, Victor L. A. Retratos de Família: sucessão, terras e ilegitimidade entre a nobreza da terra de Jacarepaguá, séculos XVI-XVIII. Dissertação de Mestrado. Instituto de História – UFRJ, 2014.p. 55 19 As terras dos Correa de Sá e Benevides vinculadas ao morgado ficavam no Engenho D’Água, primeiramente chamado Engenho da Tijuca. A vinculação pode ser vista no documento que segue: “Instituição do morgado do Excelentíssimo Visconde de Asseca feita em o ano de 1667 aos 27 dias do mes de mayo – D. Victoria faleceo, em 27 de agosto de 1667. Bens vinculados no morgado pertencentes ao Rio de Janeiro O Engenho (...) de agoa chamado São Salvador da Tijuca no dito Engenho com todas suas terras, confrontaçoens, partidos de canas, Escravos e gados, que tem de terras duas legoas de testadas, e do mar para a serra outras duas legoas, Em a restinga de campos que lhe toca, queparte no cume a serra vindo da cidade pella Lagoa para a banda de leste, e da de costas com terras do Engenho de Nossa Senhora do Desterro, que temos nomiado a um de nossos filhos, Irmão de João Correa de Sá, e pella parte do Norte no cume da serra aonde chamão a cruz, parte com terras dos P. P. da Companhia, e da parte do Sul com o mar Logo, (...)do-se as lagoas e restingas e esta (...) o rendimento em oitocentos mil reis – e nada mais nos respeita a estas partes (1 linha ilegível). Tem esta instituissaõ a seguinte (...) a folha 34 verso. E assim queremos por avistar demandas que hao de haver, que nenhua palavras desta instituissam se lhe de outro nenhum (...) diferente do que sam, porquanto he nossa vontade que assim se cumpra e goarde, pela fazermos com toda a clareza e palavras para assim se evitarem demandas, e todas as duvidas, que ao diante pode haver; e com todas estas sancssoens reta ficamos esta nossa instituissam com todas as clauzulas, e tudo o mais que de direito necessario for.” Arquivo do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, seção 8, documento nº 992. Agradeço a Francisco Javier Muller pela cessão da versão digitalizada do documento. 20 SAMPAIO, A. C. J. Na Encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (1650-1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.pp. 57-92.

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Na América lusa, ao contrário das imensas gangs de escravos de Barbados, onde estava a monocultura de açúcar de melhor qualidade do período, as áreas rurais se desdobravam nos chamados partidos de cana, explorados em geral pelo dono do engenho e por lavradores e seus parentes e escravos21. Jacarepaguá contava com oito engenhos e uma engenhoca em 1797. Eram eles os engenhos da Vargem e do , pertencentes aos beneditinos; os engenhos da Taquara e o Novo da Taquara, além do da Serra, pertencente aos Teles de Menezes; o de Fora, o do Rio Grande, dos Sampaio e Almeida; o engenho D’água, dos Viscondes de Asseca e a engenhoca de Covanca, de Felix Muniz de

Aguirre. Algumas regiões se encontravam dentro das delimitações dos engenhos. São elas,

Piabas, que ficava nas terras de São Bento, não sabemos se na Vargem ou no Camorim;

Pavuna, Areal e Barro Vermelho, que se situavam na Taquara e; Retiro, Bananal e o sítio de

Urussanga, sitos nas terras do Engenho D’água.

Além destes sítios, ainda tínhamos as regiões da Ilha do Ribeiro, Cruz das Almas,

Gabinal, Estiva e Tijuca que constavam como sendo local de moradia e diversos chefes de domicílio. A seguir, gráfico elaborado por Victor Oliveira22 para mimetizar a distribuição espacial dos moradores da freguesia:

21 FRAGOSO, João. O capitão João Pereira Lemos e a parda Maria Sampaio: notas sobre hierarquias rurais costumeiras no Rio de Janeiro do século XVIII. In: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de (org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2009. p. 158. 22 OLIVEIRA, Victor. Algumas notas sobre demografia, terras e elites no Recôncavo da Guanabara do século XVIII. In: Revista Latino-Americana de História Vol. 3, nº. 11 – Setembro de 2014. p. 161. Disponível em: http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/457/442 Acesso em: 18/02/2015.

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Gráfico I. Divisão por localidade dos moradores de Jacarepaguá

Dos 252 domicílios que foram assinalados no Mapa de população de Jacarepaguá de 1797, conseguimos rastrear 87 habilitações matrimoniais de seus moradores, o que nos permite visualizar melhor a maneira que era estabelecida a relação do matrimônio com o acesso à terra, muito embora esta parte da pesquisa não seja explorada no presente artigo.

Desse modo, inseridos numa complexa rede de artifícios engendrados por famílias do período, grupos familiares engendravam as estratégias matrimoniais não apenas no momento do ritual do casamento, mas direcionando o destino dos filhos. Assim, um futuro casamento poderia ser selado, inclusive, na designação de padrinhos e em outras alianças estabelecidas antes ou depois do nascimento do filho, uma vez que era eterna, numa sociedade tão hierarquizada, a busca de ascensão social ou manutenção do status na

Monarquia portuguesa.

Na maioria dos casos, a escolha era eminentemente familiar, já que a família era a célula mais elementar desta sociedade23, o que não exclui, entretanto, que casamentos tenham sido realizados por vontade dos nubentes, uma vez que pudemos rastrear casos

23 HESPANHA, A. Imbecillitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Ed. AnnaBlume, 2010.

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 444 de matrimônios realizados sem a autorização do pater familias. Não se pode desprezar, neste sentido, a ação das Leis Pombalinas, denominadas pelo moralista setecentista José

Telles como A Lei da Boa Razão. Nessas, é fácil notar que o poder paterno ganhou maior acento. Vejamos a Lei de 6 de outubro de 1784, incluída na Lei da Boa Razão, que regulava os esponsais. De acordo com esta, os nubentes de até 25 anos não poderiam realizar promessas de casamento caso não tivessem autorização dos pais ou tutores.24 A efetividade desta lei, entretanto, no que se refere às práticas, fica no campo das poucas evidências das quais dispomos, as quais apresentam dados parcos sobre o que efetivamente ocorreu, pois nossos documentos limitam-se a fontes secundárias daqueles que falam. Mesmo os documentos em que há testemunhos, estes são transcritos por um escrivão ou pároco, que elabora a pergunta e pode, sem dúvidas, enviesar a resposta, já que há praticamente uma fórmula, um topos, um lugar comum do qual se constitui a resposta. A coexistência e a complementaridade entre as regras e as práticas, entretanto, é uma de nossas apostas para a Monarquia portuguesa, embora apostemos que em regiões rurais, essas regras poderiam ser mais “afrouxadas” e adaptadas.

Consideramos que a definição familiar do matrimônio a ser realizado fazia parte do conjunto de práticas pertencente à transmissão patrimonial, que entendemos como o conjunto de bens simbólicos e materiais que passavam de uma geração à outra, cuja lógica se pautava pelos hábitos que presidiam a herança, em plano relativamente rígido.25

Como viviam livres e escravos em uma freguesia açucareira: uma breve digressão

É impossível, vale salientar, falar de uma sociedade cuja base econômica era o trabalho escravo sem mencionar escravos. Trouxemos, portanto, um vislumbre sobre a vida de escravizados na freguesia. Em Jacarepaguá havia 2224 habitantes26 em 1797, dos quais

24 TELLES, José Homem Correa. Commentario crítico à Lei da Boa razão. Lisboa: Typographia de Maria da Madre de Deus, 1865. 25 PEDROZA, Manoela. Engenhocas da Moral: redes de parentela, transmissão de terras e direitos de propriedade na freguesia de Campo Grande. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011. p. 96. 26 OLIVEIRA, Victor. Algumas notas sobre demografia, terras e elites no Recôncavo da Guanabara do século XVIII. In: Revista Latino-Americana de História Vol. 3, nº. 11 – Setembro de 2014. Disponível em: http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/457/442 Acesso em: 18/02/2015. p. 155-161.

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1235 (aproximadamente 55%) eram escravos. Destes escravos, a maioria estava concentrada nos 11 engenhos da região. O que queremos chamar atenção, nesta altura do trabalho, é que os escravos e pessoas livres não viviam suas vidas de forma isolada, mas em comum.

Alguns escravos, inclusive, tinham a vida parecida com a dos livres pobres, possuindo uma casa e uma família, gerando vários filhos e trabalhando em sua lavoura, como é o caso dos crioulos Mariana e Francisco, escravos de Tomás da Costa27, que tiveram 6 filhos (5 gestações, sendo uma de gêmeos) entre 1789 e 1799. É muito provável que esta família, em particular, apesar de escravos, gozasse de uma posição privilegiada frente ao restante da escravaria, pois todos os seus filhos foram batizados em livros de batismos de livres, mesmo ambos os seus pais sendo escravos.

Inclusive, seu reconhecimento deveria ser óbvio (porque partimos do pressuposto de que o óbvio, que podia ser observado por todos por vezes era negligenciado pelo pároco, pois não fazia sentido anotar algo que era de conhecimento geral), pois entre as seis crianças batizadas, apenas uma aparece com registro formal de alforria em pia batismal, apesar de todas serem consideradas livres, já que estavam no livro de batismos de livres.

Poderíamos inferir que era um erro do pároco batizar as crianças no livro de livres, mas a verossimilhança nos leva a crer que não foi um erro, mas uma opção por batizar os filhos dos escravos do livro dos nascidos livres - porque era sabido, admitimos como hipótese plausível, que o seu senhor concederia a alforria a eles quando do seu nascimento. O porquê disso, nunca saberemos, mas apenas que seus pais tinham um papel diferenciado entre os demais escravos de Tomás da Costa.

Partilhamos, neste sentido, do conceito proposto de que, através dos laços familiares, os escravos e libertos, convivendo no mesmo espaço, inserindo estrangeiros a todo o tempo em sua lógica de funcionamento, buscariam a paz para sua convivência.

27Claudina, batizada em 22/07/1789, imagem 319 do livro de Batismos de 1750 a 1791 [1794] Jacarepaguá; Ambrosio e Tomasia (gêmeos), batizados em 20/03/1791, imagem 6 do livro de Batismos Mar-1791, Fev- 1802, Jacarepaguá; Maria, batizada em 26/0/1793, imagem 28 do livro de Batismos Mar-1791, Fev-1802, Jacarepaguá; Maria, batizada em 19/02/1796, imagem 57 do livro de Batismos Mar-1791, Fev-1802, Jacarepaguá; Angelo [crioulo], batizado em 10/08/1799, imagem 106 do livro de Batismos Mar-1791, Fev- 1802, Jacarepaguá. Os dois livros estão disponíveis no familysearch.org.

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Alerta, portanto, para a força social da família dentro e fora das senzalas28. O controle senhorial era antes político que físico. Não que inexistisse o castigo corporal, mas a negociação, em vez da punição física, era o efetivo mecanismo de resguardo do funcionamento da hierarquizada sociedade arcaica de Antigo Regime,

o que tornava a constituição de relações parentais em geral, e familiares em particular, estratégias políticas por excelência, voltadas à pacificação da escravaria. Pacificando, organizando a vida do cativeiro, a família amainava os enfrentamentos entre os cativos. (...) Sem se constituir um instrumento direto de controle senhorial, a família escrava funcionava como elemento de estabilização social, ao permitir ao senhor auferir uma renda política. 29

Seja como for, é possível dizer que esta família se manteve estável por, pelo menos,

10 anos30 nas terras em que vivia seu senhor Tomás da Costa, em Jacarepaguá, sem ter especificado no mapa se era foreiro, partidista ou posseiro daquelas terras. Contando mais de 64 anos em 179731, casado, é provável que ele também tenha se estabelecido no local há bastante tempo.

Constatamos, também, que pequena parte da população destas localidades possuía efetivamente o território em que habitava, grupo, grosso modo, formado pelos senhores de engenho e alguns donos, ou seja, parcela pouco significativa da maioria dos fregueses.

Tendo a posse da terra ou não, compreendemos que estas famílias eram geridas por uma lógica camponesa, ou seja, uma unidade econômica que, em seus relacionamentos com a terra32, arrendamento ou compra, busca, com estas transações, alcançar um equilíbrio seja no melhoramento do nível de vida, seja na diminuição do tempo de trabalho. Portanto, o campesinato de que tratamos, opera num sistema de economia em que o objetivo não é a

28 BRÜGGER, Silvia M. J.. Minas Patriarcal. Família e Sociedade (São João del Rei – séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007. passim. 29 FLORENTINO, Manolo; GÓES, Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. p. 175 30 Essa conta foi feita com base no tempo de nascimento de seus filhos. 31 Mapa descritivo do distrito da Guaratiba, freguesia de Jacarepaguá. 1797. AHU-Rio de Janeiro, cx. 165, doc. 62. 32 BACELLAR, C. A. P. Viver e sobreviver em uma vila colonial– Sorocaba, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume . Fapesp, 2001a.

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 447 troca e sim a subsistência, o equilíbrio entre as necessidades da família e o esforço distribuído.33

Neste sentido, a produção interna de gêneros alimentícios para subsistência parece figurar na maioria dos domicílios da freguesia, o que não quer dizer que esta produção não pudesse ser comercializada com outras regiões do recôncavo. Desta maneira, nos atentaremos, para além dos donos, à grande quantidade de famílias foreiras ou partidistas e seus agregados34, visto terem sido os integrantes da nobreza da terra35 alvos de pesquisas significativas na recente historiografia sobre freguesias agrárias36.

As teias das redes sociais: endogamia e homogamia matrimonial

“Matrimonio. Deriva-se do latim mater, porque a mãy pare, e cria os filhos, que saõ fruto do matrimonio. Na Igreja Catholica he hum dos sete Sacramentos,

33 LEVI, Giovanni. Economia camponesa e Mercado de terra no Piemonte do Antigo Regime. In: OLIVEIRA, Mônica.; ALMEIDA, Carla. (orgs.) Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. p. 91. 34 Agregados podem ser caracterizados como um grupo que não mantém nenhum tipo de relação com a terra, estando subordinados, sob diversos tipos de laços de dependência, a uma casa. MACHADO, Cacilda. A Trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p. 50. Cf. também BACELLAR, C. A. P. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA. M. B. N. da (Org.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 2001b. 35 O conceito “de nobreza da terra, no Rio de Janeiro, estaria ligada à antiguidade da família no exercício do poder político-administrativo da cidade e à descendência dos conquistadores”. Nem toda nobreza da terra, porém, possuía o título de nobreza, tendo a ascensão à governança da terra, uma eficácia, sobretudo, local e não reconhecida em todos os territórios do Império, sendo esta elite majoritariamente constituída por conquistadores, aqueles “que, ao longo de duzentos anos, à custa de suas vidas e fazendas serviram à monarquia no domínio da América (...) e que se viam como nobreza de origem imemorial”, achando-se com prerrogativa exclusiva de mando através do acesso aos cargos de vereança e do reconhecimento de seus vizinhos, muitas vezes corroborado pela concessão de mercês régias. FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, J.; ALMEIDA, C.; SAMPAIO, A. (Org). Conquistadores e Negociantes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp. 35-50 36Cf. entre outros, FARIA, Sheila. A Colônia em Movimento, Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.; MACHADO, Cacilda. Op. Cit.; GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798-c.1850). FAPERJ: MAUAD X, 2008. PEDROZA, Manoela. Engenhocas da moral: redes de parentela, transmissão de terras e direitos de propriedade na freguesia de Campo Grande (Rio de Janeiro, século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011.TOSTES, Ana P. C. O lugar social dos homens “pardos” no cenário rural da Cidade do Rio de Janeiro (Recôncavo da Guanabara, Freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, século XVIII). Dissertação de mestrado. UFRJ/IH, 2012. Oliveira, Victor. Op. Cit. AGUIAR, Julia Ribeiro. As práticas de reprodução social das elites senhoriais da freguesia de São Gonçalo: um estudo de caso da família Arias Maldonado (séculos XVII – XVIII). Rio de Janeiro, 2012. Monografia (Graduação em História) – Instituto de História. UFRJ, 2012.;

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sagrado vinculo, e ajuntamento natural de homem, e mulher, feito entre legitimas pessoas, para passar húa vida commua, e inseparável entre os dous. Entre os infiéis há verdadeiro matrimonio em razão de contrato, mas não em razão de Sacramento, e deste, só legitimas pessoas saõ capazes, id est, os que estão bautizados, e tem idade legitima, e uso de razão, sem ter algum impedimento dos quatorze que os Doutores apontão. A essência deste Sacramento consiste em a união dos ânimos dos contraentes, como se colige do matrimonio de muitos santos, que o não consumàrão, e estavão verdadeiramente casados. (...)” Raphael Bluteau. Verbete Matrimonio.37

De acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, o casamento era o sétimo dos sacramentos instituídos por Cristo, sendo, portanto, o último. O casamento, neste sentido, é um contrato de vínculo perpétuo, a união que o homem faz com a mulher, assim como o Senhor com a sua Igreja. O princípio que rege esse sacramento

é o consentimento mútuo e os ministros são aqueles que se casam.38 Entretanto, após o

Concílio Tridentino, ocupou-se a Igreja na matéria de regularizar as práticas maritais, instituindo e regularizando o sacramento, tanto que este não poderia mais ser realizado sem o testemunho de um pároco e nem portas afora da Igreja.

Portugal foi um dos primeiros países a acolher as disposições do Concílio de Trento sobre casamento. Ao requerer a intermediação dos eclesiásticos na cerimônia, reforçou a

Igreja a intervenção no sacramento mutuamente ministrado pelos dois cônjuges. Mas, sobretudo, ao impor o explícito consentimento dos nubentes debilitou inexoravelmente o controle paternal sobre uma dimensão essencial da política das famílias, controle este que seria restabelecido após um dos decretos pombalinos, a Lei de 17 de junho de 1770.

Na freguesia de Jacarepaguá, Manoel Cordeiro de Castro casou-se com Dona

Margarida do Bonsucesso em 175639, antes do decreto de Pombal, portanto. Ainda assim, o pátrio poder dos pais ainda colocava medo na jovem, que fugira para a casa do tio com medo do que seus pais pudessem fazer com ela.40 À infâmia a que se lançou poderia ter

37 Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/matrimonio Acesso em: 12/05/2016 38 VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Typographia 2 de dezembro de Antonio Louzada Antunes. São Paulo: 1853.Pag. 107. 39 ACMRJ. HM. Doc. 54739 Cx. 2574 40 Depoimento da oradora D. Margarida do Bonsucesso: “se acha gravemente infamada com ele precisa casar, foi para a casa do tio com receio que seus pais lhe façam dano”. ACMRJ. HM. Doc. 54739 Cx. 2574

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 449 desgraçado sua vida e levado junto o nome da família. No caso, da família de ambos os nubentes, pois consanguinidade é o que não falta em suas histórias.

O laço sagrado do matrimônio41, portanto, não era o único que os unia. A afinidade entre as duas famílias vinha de longa data. O casal era parente de 4º grau, em razão de possuírem como antepassado comum Maria de Oliveira, que era bisavó de D. Margarida e tataravó de Manoel. De seu primeiro casamento, Maria de Oliveira pariu João Pimenta de

Moraes, avô materno da oradora e, das suas segundas núpcias, nasceu Francisca de

Almeida, bisavó paterna do orador. João Pimenta e Francisca de Almeida eram, portanto, meio-irmãos, como diz a passagem seguinte:

“Em razão de que João Pimenta de Moraes e Francisca de Almeida sam meyo irmaos em razão de ambos serem filhos de Maria de Oliveira e esta ter sido casada duas vezes húa com o coronel Agostinho Pimenta de quem ouverão o dito João Pimenta de Moraes, e outra com Feliciano Madeira de quem ouverão a dita Francisca de Almeida; Porque de João Pimenta de Moraes, nasceu dona Antonia Pimenta e desta nasceu a oradora dona Margarida do Bonsucesso; Que de Francisca de Almeida nasceu Thereza de Jesus e dessa nasceu Christovao Cordeiro de Castro de quem hé filho o orador Manoel Cordeiro (...)”42

Embora as Ordenações previssem pena àqueles aparentados que mantivessem cópula antes da dispensa e as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia tratasse como impedimento a “cognação natural, se são parentes por consanguinidade até o quarto grau”43, o juiz dos casamentos, responsável pela avaliação dos casos e representante da

41 Para mais leituras sobre o casamento no Brasil colonial, cf. BRAGA, Isabel D.O Brasil setecentista como cenário da bigamia. Estudos em homenagem a Luís Antônio de O. Ramos. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004.; CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo colonial: caminhos e descaminhos. São Paulo: Paz e Terra, 2003.; BACELLAR, C. A. P. O matrimônio entre escravos e libertos em São Paulo, Brasil, séculos XVIII e XIX. In: GHIRARDI, M.; SCOTT, A. S. V. (Coord.). Familias históricas: interpelaciones desde perspectivas Iberoamericanas a través de los casos de Argentina, Brasil, Costa Rita, Espana, Paraguay y Uruguay. São Leopoldo, RS: Oikos; Editora Unisinos, 2015. BURMESTER, A. M. O. A nupcialidade em Curitiba no século XVIII. História: Questões e Debates, Curitiba, Ano 2, n. 2, jun. 1981; SCOTT, Ana Silvia. Op. Cit.; NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600 a 1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.; MACHADO, Cacilda. Op. Cit; SILVA, Maria B. N. Sistema de casamento no Brasil Colonial. São Paulo: Edusp, 1984. 42Trecho do processo de impedimento. ACMRJ. HM. Doc. 54739 Cx. 2574 43 Cognação espiritual se são ligados pelo sacramento do batismo, cognação legal se há parentesco por adoção. Cf. VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Typographia 2 de dezembro de Antonio Louzada Antunes. São Paulo: 1853.Pag. 107. TITULO LXII. Do Sacramento do

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Sagrada Igreja Católica, garantiu, apesar do “parentesco de quarto grao mixto com o terceiro de consanguinidade”44, que o casamento fosse efetuado com a observância das penas estipuladas.

Moradores no Rio Grande, localidade duas léguas distante da Matriz do Loreto, os oradores pediram dispensa da pena, que se resumia em serviços à sua Matriz paroquial, rezas e doações. Não obstante ter recusado o pedido do casal, foi concedido por ninguém menos que D. Frei Antonio do Desterro o abrandamento da pena mediante o pagamento de “10 mil réis de pena pecuniária [que] diminuem 2 meses [de serviço à Matriz] a 10 dias.”45

Os casamentos entre membros da mesma família, entretanto, não se restringiria apenas ao enlace do casal Manoel Cordeiro de Castro e D. Margarida do Bonsucesso. Após o casamento, realizado quase um ano após o início do processo, Manoel e Margarida tiveram 6 filhos. Não há notícia de todos, mas 3 reaparecem na documentação46 como nubentes em processos maritais. Nada menos que complexa era a relação de parentelas que decidiam pelo casamento entre consanguíneos. E não apenas em Jacarepaguá.

Distante da afirmação de Maria Beatriz Silva47, segundo a qual os impedimentos por cognação eram condenados ferozmente pela legislação “civil” e pela canônica e o incesto uma linha de divisão entre a “barbárie” e a “civilização”, a ocorrência de casamentos entre parentes é mais complexa e guarda estreita relação com as estratégias familiares de reprodução social e de transmissão de patrimônio, além de serem muito mais do que uma simples ausência de aplicação das normas da Igreja Católica.

De acordo com a autora, as leis que vigoravam no Reino, ou “metrópole”, eram distintas das leis da conquista, ou “colônia”. Na primeira, que seria regulada pelas

Ordenações Filipinas, o crime do incesto era duramente reprimido e, por conta de sua

matrimônio: da instituição, matéria, forma e ministro deste sacramento; Dos fins para que foi instituído, e nos efeitos que causa. 44 Processo de impedimento por consanguinidade de D. Margarida do Bonsucesso e Manoel Cordeiro de Castro. ACMRJ. HM. Doc. 54739 Cx. 2574 45 Parecer do juiz dos casamentos sobre o pedido de isenção da pena do processo de dispensa. ACMRJ – Série HM – Doc. 54739 Cx. 2574 46ACMRJ – Série Habilitações matrimoniais. Localidade: Jacarepaguá. Décadas de 1780 e 1790. Livro de Batismos de livres de Jacarepaguá. Disponível em familysearch.org. 47 SILVA, Maria B. N. Sistema de casamento no Brasil Colonial. São Paulo: Edusp, 1984. pp. 126-127

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 451 população mais integrada e menos dispersa, era mais difícil de ocorrer que nos trópicos, onde as famílias se “encastelavam” e dificilmente mantinham relações que não fossem com consanguíneos. Somado a isso, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia teria adotado penas mais brandas para a referida infração.

No entanto, mesmo para o Reino e outras regiões da Monarquia, o casamento endogâmico parece ser uma realidade que se estende por todas as camadas sociais e, principalmente, nos casamentos aristocráticos, em que a dispersão do patrimônio, tanto material quanto imaterial, colocaria muito a perder. Menos que uma escolha de pessoas bárbaras, a endogamia fazia parte de estratégias matrimoniais definidas no campo familiar.

É fundamental, portanto, reconhecer a centralidade da família enquanto base da sociedade e instrumento de poder.

Comparação com outras regiões católicas ibéricas

Estudando a pequena região de Formentera48, insular província de Espanha, Joan

Bestard Camps49 fornece informações esclarecedoras acerca do estudo de uma população pouco numerosa e o mercado matrimonial. Ao abordar as proibições matrimoniais definidas pela Igreja, afirma que estas não eram levadas da mesma maneira pelas famílias.

Os significados eram distintos, tanto que havia pedidos de dispensa para atendimento do interesse dos próprios grupos familiares, como se pode observar também em Jacarepaguá.

Na tentativa de impedir os casamentos entre “primos”, ou seja, parentes até o quarto grau, a Igreja justificou oficialmente, após o Concílio de Trento, a proibição matrimonial por afinidade tanto pelo caráter moral quanto pelo caráter social. O caráter moral dizia respeito ao fato de que, para unir-se na mesma carne, era necessário não ser consanguíneo, uma vez que seria redundante unir pela carne aqueles que já o eram pelo sangue. Isso diminuiria,

48 Formentera é um município da Espanha na província e comunidade autônoma das Ilhas Baleares, sendo considerada mais próspera ilha da península. 49 CAMPS, Joan Bestard, La estrechez del lugar. Reflexiones en torno de las estrategias matrimoniales cercanas. In: CHÁNCON JIMENEZ, Francisco, FRANCO, Juan Hernández (eds). Poder, Família y Consanguinidade en la España del Antiguo Regimen. Barcelona: Anthropos, 1992.

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 452 inclusive, a quantidade de alianças que se poderia amealhar através deste contrato, pois o número de parentes criados seria diminuto.50

Se a justificação social da união marital afirmava que o matrimônio unia aqueles que não possuíam laços por afinidade consanguínea, não fazia sentido que parentes estivessem envolvidos em um enlace sagrado. Como todos os cristãos são irmãos, o casamento reforçava o sentido de irmandade quando os nós da consanguinidade já haviam se desatado. Expandir as alianças sociais e reafirmar a cooperação entre os católicos era a função social, portanto, do casamento.51

Entretanto, segundo o autor, os pedidos abundantes de dispensa matrimonial por afinidade em Formentera revelam uma diferença entre as regras jurídicas e as práticas. A endogamia, muito embora não possa ser considerada uma prática universal, deve ser analisada em sua importância para as estratégias matrimoniais, tendo em vista que a manutenção dos laços parentais pode garantir os ganhos adquiridos através das gerações.

As histórias da família Cordeiro de Castro, imbricada com a Correa Pimenta e a

Barbosa de Sá, demonstram a endogamia matrimonial entre os paroquianos da “lagoa dos jacarés”. Sendo todas moradoras na localidade do Rio Grande52, importante engenho da freguesia de Jacarepaguá, é válida a hipótese de que era essencial a manutenção do espaço conquistado, ou seja, o acesso à terra. Neste sentido, os casamentos entre consanguíneos poderiam ser uma maneira de assegurá-lo e manter próximos territorialmente as alianças que se faziam virtualmente através do matrimônio. Longe de se tratarem de exceções, estes casamentos fechados devem ser vistos como participantes de uma lógica local de estratégias matrimoniais.53

Dos 3 filhos do casal Manoel e Margarida54, – Teresa Maria de Jesus, José Cordeiro de Castro e Francisco Cordeiro de Castro – dois deles se casam também com parentes

50 CAMPS, Op. Cit. pp. 108-110 51 CAMPS, Op. Cit. pp. 112-113 52 Sobre a freguesia de Jacarepaguá e as estratégias sociais da família Sampaio no engenho do Rio Grande, confira. OLIVEIRA, Victor L. A. Retratos de Família: sucessão, terras e ilegitimidade entre a nobreza da terra de Jacarepaguá, séculos XVI-XVIII. Dissertação. Mestrado em História. Instituto de História – UFRJ, 2014. 53CAMPS, Op. Cit. p. 150 54 Batismos de livres da freguesia de Jacarepaguá. 1750-1800. Disponível em familysearch.org.

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 453 próximos, gerando habilitações matrimoniais com impedimentos análogos aos de seus pais.

Francisco Cordeiro de Castro, o único que não possui impedimento algum em seu casamento55, não tem, entretanto, uma escolha aleatória para seu matrimônio, uma vez que a nora escolhida, Maria Joaquina da Assunção, era prima em primeiro grau do marido de

Teresa Maria de Jesus, Inacio Correa Barbosa, cujos pais eram irmãos56.

A filha mais velha de Manoel e Margarida, Teresa Maria de Jesus, parece ter seguido os passos dos pais. Seu cônjuge, Inacio Correa Barbosa, era seu primo de 2º grau, estando os dois ligados no 3º grau de consanguinidade57. Além disso, antes do início dos proclames, o casal se “conheceu” carnalmente58, gerando um filho natural. Embora as testemunhas do impedimento afirmem que não sabem se o casal teve relações ilícitas com âmbito de facilitar a dispensa, o nascimento de um filho pode ter servido como estratégia para a obtenção da permissão para o casório.

Na maioria dos testemunhos vistos em outros processos que tinham esta pergunta, ao menos uma testemunha costuma afirmar que sabe que não se conheceram carnalmente para facilitar a dispensa e sim por “fraqueza da carne”. Não foi o caso das testemunhas de

Teresa e Inacio, que preferiram afirmar que não tinham conhecimento acerca do assunto.

Embora Teresa e Inacio afirmem “que se conheceram e a oradora pariu um filho varão “que ainda existe”, o que aconteceu por fragilidade e não com ânimo de facilitar a dispensa”, os que se dispuseram a falar sobre o caso parecem “omitir” ou se esquivar do assunto:

Antonio Dias de Azevedo: Conhece muito bem os oradores e sabe porque se acham contratados para casar. Confirma todos os impedimentos. Do 2 [que versa sobre se terem se conhecido carnalmente], acrescenta que não sabe se ocorreu por fragilidade ou para facilitar a dispensa. Do 3 [sobre a pobreza dos cônjuges], o orador tem o ofício de sapateiro ou seleiro; o pai dela tem 5 escravos a trabalhar em terras alheias para sustentar 3 filhas e 2 machos que tem e para pagar dívidas. Jacinto Barbosa de Sá: Conhece muito bem os oradores e saber porque se acham contratados para casar. Confirma todos os impedimentos. Do 2 não menciona a

55 ACMRJ – Série HM – Doc. 41421 Cx. 2202. Ano de 1792. 56 Informações obtidas, principalmente, através do cruzamento entre os matrimônios da família, na ACMRJ e nos assentos de batismos de livres da freguesia de Jacarepaguá entre 1750 e 1800. 57 ACMRJ – Série HM – Doc. 21194 Cx. 1621. Ano de 1784. 58 Processo de impedimento no 3º grau de consanguinidade de Inacio Correa Barbosa e Teresa Maria de Jesus. ACMRJ - Série HM – Doc. 21194 Cx. 1621.

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fragilidade. Do 3 não sabe quantas crianças escravas tem, mas sabe que há, que trabalham em terras alheias; o orador tem ofício e 2 cavalinhos. Manoel Pacheco Freire: Conhece muito bem os oradores e saber porque se acham contratados para casar. Confirma todos os impedimentos. Do 2 não menciona a fragilidade. Do 3 o orador tem ofício e 2 cavalinhos.59

De acordo com Carvalho60, a atividade sexual fora do casamento poderia ocorrer entre pessoas que pretendiam se casar, como é o caso dos nascimentos ilegítimos analisados no Minho, que demonstram a existência de uma atividade sexual generalizada em casais com casamento já acordado. O autor cita ainda as relações sexuais ilícitas subsidiárias dos casamentos em que havia impedimento por relação de parentesco, o que fazia com que muitos casais vivessem sob o mesmo teto aguardando a decisão do juiz de casamentos. Mesmo sendo juridicamente uma união incestuosa, era socialmente aceita pelos olhos vigilantes da comunidade.

É provável que Teresa e Inacio mantivessem moradia na mesma casa enquanto aguardavam o processo de dispensa. Ainda mais porque o pequeno Luis já havia nascido

6 meses antes do início do processo61. Sua condição de filho natural mudaria após o casamento dos seus pais, Luis seria agora um filho legitimado por casamento subsequente.

Os irmãos de Inacio Correa Barbosa, Pedro Barbosa de Sá e , todos filhos de Jose

Correa Pimenta e Maria Barbosa, também tem seus casamentos impedidos por consanguinidade, dos quais obtém a dispensa. Pedro Barbosa de Sá se casaria com a filha de Antonio de Oliveira Lobo, que, por sua vez, também estaria ligado à família Cordeiro de

Castro pelo casamento de sua outra filha, D. Teresa Francisca, já viúva, com o filho de

Manoel Cordeiro de Castro, Jose Cordeiro de Castro.

As filhas de Antonio de Oliveira Lobo, casadas entre as décadas de 1780 e 1790, possuem, todas, impedimento de consanguinidade em seus casamentos62. Estando

59 Testemunhas do processo de impedimento de Inacio Correa Barbosa e Teresa Maria de Jesus. ACMRJ – Série HM – Doc. 21194 Cx. 1621. 60 MONTEIRO, Nuno G. (coord.) MATTOSO, J. (dir.). História da Vida Privada em Portugal. A idade moderna. Lisboa: Círculo de leitores, 2013. p. 118. 61 O processo é de agosto de 1784, enquanto Luis nasceu em fevereiro. 62 ACMRJ. HM. Doc. 86243 Cx. 3393 José Cordeiro de Castro e D. Teresa Francisca; Doc. 21199 Cx. 1621 Inacio Manoel de Sampaio e D. Mariana Rosa de Oliveira; Doc. 14079 Cx. 1414 Pedro Barbosa de Sá e Josefa Maria Lizarda de Oliveira; Doc. 20794 Cx. 1609 Inacio dos Santos Sampaio e Antonia Joaquina de Oliveira.

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 455 impedidas no 2º ou 3º grau de consanguinidade, impossível não pensar nestas famílias como estrategicamente endogâmicas, uma vez que havia um constante incremento de pessoas na freguesia, principalmente nas décadas mencionadas, em que o crescimento demográfico é pujante.

Mesmo o último casamento recuperado da família Cordeiro de Castro não possuindo impedimento por consanguinidade, é impossível ignorar o fato de que a nora escolhida, Maria Joaquina da Assunção, era prima em primeiro grau do marido de Teresa

Maria de Jesus, Inacio Correa Barbosa, cujos pais eram irmãos.

Mais do que uma estratégia para manter os bens indivisos, à custa da diminuição de parentelas, esta grande família pode estar fazendo frente ao crescente número de pardos, uma vez que nenhum deles consta como pardos nos documentos analisados, de batismos, habilitações matrimoniais ou casamentos. Numa parentela em que se multiplicam as donas e os sobrenomes são dos conquistadores quinhentistas do Rio de Janeiro, parece essencial fechar as redes nelas mesmas, garantindo uma grande união entre estas famílias que antes tinham o poder econômico e político e agora perderam o primeiro, repetindo incessantemente sua condição de “pobreza”.

Conclusão

Os atores desta história foram os homens, mulheres e crianças da freguesia de

Jacarepaguá: lavradores, donos, foreiros, partidistas, escravos, pardos, negros, brancos, europeus, forros, livres, capitães... Difícil enunciar todos os qualificativos de uma sociedade que vivia da representatividade social, ou seja, do status sócio-político de seus membros.

Este trabalho nada mais é que o conjunto de fragmentos de representação de vidas que estão sendo aqui reproduzidas, possibilitada pelo intenso cruzamento realizado através do método onomástico e da reconstituição de famílias, mas que não leva em consideração aquelas apenas regulamentadas de acordo com as Leis Católicas.

Embora não sejam membros da nobreza como os personagens estudados por Nuno

Gonçalo Monteiro, em que “a homogamia matrimonial era parte fundamental do modelo

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 456 reprodutivo do grupo”,63 parece que as famílias aqui mencionadas estão tentando garantir sua coesão e unidade enquanto grupo diferenciado dos demais. De acordo com Monteiro, a homogamia era uma forma de “preservar a identidade social” 64 da nobreza, assegurando a exclusividade dos ofícios da monarquia e da remuneração em doações régias. Como não estava em seu horizonte a remuneração régia, esta não era uma preocupação latente entre os habitantes da freguesia de Jacarepaguá, no entanto, era fundamental para eles garantir o privilégio da família adequada de acordo com os padrões morais católicos.

Se este privilégio “é, no concreto, uma das principais condições de acumulação e de transmissão de privilégios, econômicos, culturais e simbólicos”65, não é de surpreender que não se queira que a aliança se estenda para além dos grupos já formados.

Como bem sublinhou Gilberto Freyre, o português que veio para conquistas americanas foi o primeiro entre os “colonizadores modernos” a preocupar-se menos com a pura extração de riqueza mineral, vegetal ou animal para a criação local de riqueza, ao

“prolongamento da vida europeia ou a adaptação dos seus valores morais e materiais a meios e climas tão diversos.” Neste sentido, a sociedade das terras luso-americanas

“desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente (...), não em grupos a esmo instáveis.”66

Este artigo, no entanto, traz apenas algumas amostras das centenas de casamentos que se realizaram em Jacarepaguá ao longo do século XVIII. Matrimônios cujo processo foi preservado e chegou até os dias de hoje para contar uma história que não era exclusiva das famílias citadas. Impedimentos eram comuns no Antigo Regime católico e, sobretudo para uma freguesia rural em que o número de habitantes era consideravelmente pequeno, o casamento entre parentes que “compartilhavam o mesmo sangue” se multiplica e ajuda a desvelar minúcias das representações de práticas que, entre uma norma e outra, ocorriam entre os fregueses.

63 MONTEIRO, Nuno G. Casa e linhagem: o vocabulário aristocrático em Portugal nos séculos XVII e XVIII. in: Penélope – fazer e desfazer a História, no. 12, 1993. p. 611. 64 Idem. p. 613. 65 BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. Campinas: Papirus Editora, 1996. p. 138. 66 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. São Paulo: Global Editora, 2008 [1933]. pp. 78- 79

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 457

Quadro genealógico I. Família Cordeiro de Castro

Fonte: Mapa de população de 1797, Habilitações Matrimoniais de Cristóvão Ana Maria Felix D. Antônia Jacarepaguá (1701-1800) citadas Cordeiro de de Jesus Correa da Pimenta de Castro Cruz Moraes no texto – ACMRJ; Batismos de livres de Jacarepaguá (1750-1800). Acesso em familysearch.org. Acesso em 23/09/2016

Manoel D. Margarida

Cordeiro de do

Castro Bonsucesso ......

José D. Teresa Teresa Inácio Francisco Maria Cordeiro Francisca Maria de Correa Cordeiro Joaquina

de Castro Jesus Barbosa de Castro Assunção

Primos...... Filiação...... Casamento...... Casamentoentre consanguíneos......

Primos de 4º grau Impedimento no 3º grau Primos de 4º grau de consanguinidade Impedimento no 3º grau de consanguinidade

Primos de 1º grau

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Fonte: Mapa de população de Quadro genealógico II. Família Oliveira Lobo 1797, Habilitações Matrimoniais de Jacarepaguá (1701-1800) Francisco de Brites de Cristóvão D. Mariana citadas no texto – ACMRJ; Oliveira Lobo Oliveira Velho de de Sousa Batismos de livres de Araújo Barreto Jacarepaguá (1750-1800). Acesso em familysearch.org. Acesso em 23/09/2016

Antônio de Rita Maria Oliveira Lobo Barbosa

Inácio Manoel de Pedro Sampaio Barbosa de D. Sá Mariana Rosa José D. Teresa Josefa D. Antônia Inácio dos Cordeiro Francisca Maria Joaquina de Santos Oliveira de Castro Lizarda Sampaio

3º grau misto com o 2º de consanguinidade

3º grau misto com o 2º 3º grau de de consanguinidade consanguinidade 3º grau de duplicado consanguinidade Filiação...... Casamento...... Casamento entre consanguíneos...... Primos......

Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021. 459

Gráfico de vizinhança I. Moradia próxima e contígua entre membros da família Oliveira Lobo e Cordeiro de Castro

Manoel Cordeiro de Castro & Dona Margarida do Bonsucesso Domicílio 113 Rio Grande

Inacio dos Santos Sampaio & Inacio Manoel de Sampaio & Dona Antonia Joaquina de Mariana Rosa (Oliveira Lobo) Oliveira (Lobo) Domicílio 110 Domicílio 127 Rio Grande Rio Grande

Fonte: Mapa de população de José Cordeiro de Castro & João Barbosa de Sá Freire & 1797, Dona Teresa Francisca Dona Maria Teresa de Habilitações Matrimoniais de (Oliveira Lobo) Sampaio Jacarepaguá (1701-1800) citadas Domicílio 114 Domicílio 128 no texto – ACMRJ; Batismos de Rio Grande Rio Grande livres de Jacarepaguá (1750-1800). Acesso em familysearch.org. Acesso em 23/09/2016 Pedro Barbosa de Sá & Dona Josefa Maria Lizarda (Oliveira Lobo) Domicílio 125 Rio Grande

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