Diaphora V. 8
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REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL SEÇAO 1 | Artigos Casais que optam por não ter filhos: entre escolhas e expectativas Couples who choose to have no children: between choices and expectations Thais Ramos Mendes1 e Vinicius Tonollier Pereira2 Resumo: O presente estudo teve como objetivo Abstract: The present study aimed to investigate investigar os fatores motivacionais que levam casais the motivational factors that lead heterosexual couples heterossexuais da Grande Porto Alegre a optarem por in Greater Porto Alegre to choose not to have children. não ter filhos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa This is a qualitative exploratory research. The data de caráter exploratório. Os dados foram coletados were collected through a semi-structured interview, através de entrevista semiestruturada, realizadas performed individually, analyzed through discourse individualmente, analisadas através de análise de analysis. A total of 10 participants were enrolled in discurso. Integraram este estudo 10 participantes, this study, totaling 5 couples, aged between 26 and totalizando 5 casais, com idade entre 26 e 51 anos. 51 years. The results are organized in two axes. The Os resultados estão organizados em dois eixos. O first one points out that the discourse of not having primeiro aponta que o discurso de não ter filhos se children approximates a current norm, which is aproxima de uma norma atual, que se constitui de constituted of freedom and detachment. However, the liberdade e desprendimento. Contudo, por outro lado, choice of not having children ends up violating social a escolha por não ter filhos acaba ferindo normas e norms and expectations that are still valid, related expectativas sociais ainda vigentes, relacionadas ao to the traditional family model, which predicts the modelo tradicional familiar, que prevê a existência de existence of children in the course of couples. Thus, filhos no percurso dos casais. Assim, a opção pela não the option for non-maternity and paternity seems maternidade e paternidade parece estar situada entre to be situated between choices and expectations, escolhas e expectativas, fortemente demarcadas por strongly demarcated by social and cultural aspects. aspectos sociais e culturais. Keywords: Childfree couples; Freedom; Stigmatization. Palavras-Chaves: Casais sem filhos; Liberdade; Estigmatização. 1 Psicóloga graduada pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). E-mail: [email protected] . 2 Psicólogo graduado pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Professor e Coordenador do curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) no campus de Gravataí. E-mail: [email protected] . 24 Diaphora | Porto Alegre, v. 8 (1) | jan/jun 2019 Introdução Imaginar a razão para que um casal opte por não ter filhos é, no entanto, um processo complexo e de envolvimento subjetivo, tendo em vista que atu- A partir do século XVIII os casamentos deixam de ser estabelecidos almente existem diversas demandas que atuam como influenciadores sociais, visando apenas o patrimônio familiar e passam a priorizar o afeto entre os econômicos e culturais para um planejamento de vida, como as exigências do casais e estes com seus filhos. Segundo Zornig (2010), o termo parentalidade trabalho, a autonomia feminina, as diversas questões econômicas, o individu- surgiu nos anos 60, sendo utilizado na literatura psicanalítica francesa, indi- alismo que tem sido marca das gerações mais atuais e a própria situação do cando a dimensão de processo e construção no exercício da relação dos pais planeta que gera descrença num futuro próspero (Heckler e Mosmann, 2014). com seus filhos. No entanto, de acordo com Julien (2000, citado por Zornig, Barth (2007) fala que é parte da pós-modernidade o culto ao corpo 2010) e Roudinesco (2003, citado por Zornig, 2010), a relação de aliança ou e a banalização da sexualidade. A este culto ao corpo também pertence de consanguinidade não é capaz de garantir a parentalidade. Isto demonstra um aspecto relevante da contemporaneidade, que pode estar presente nas que atualmente existe uma ruptura entre conjugalidade e parentalidade, influências sobre ter ou não filhos, pois as modificações corporais que ocorrem onde a parentalidade deixa de ser o objetivo principal da estrutura familiar, na gravidez podem se apresentar como fator impeditivo neste contexto de fazendo com que “tornar-se pai” ou “tornar-se mãe” passa a depender muito forma física supervalorizada. Segundo Araújo et al. (2012), as transformações mais da história individual de cada um dos pais e de um desejo de modelo do corpo podem ser referidas como desconfortáveis, geradoras de preocupação familiar nuclear tradicional. e diminuem o desejo sexual. Através da passagem do tempo diversas alterações foram surgindo; no entanto, o papel da mulher mantinha-se diferente ao do homem, mais Despojado dos ornamentos de sua antiga sacralidade, o limitado e inferiorizado. Foi, consequentemente, apenas no período da pós-in- dustrialização que a mulher passou a adquirir certos direitos dos quais estava casamento, em constante declínio tornou-se um modo de con- restringida, tais como o direito ao trabalho não limitado ao cunho doméstico, jugalidade afetiva pelo qual cônjuges — que às vezes escolhem direito ao voto, direito à separação matrimonial, entre diversas outras. Pode-se não ser pais — se protegem dos eventuais atos perniciosos de dizer que foram muitas as conquistas que proporcionaram a mulher moderna assumir papéis na vida familiar contemporânea (Caetano et al., 2016). suas respectivas famílias ou das desordens do mundo exterior. (Roudinesco, 2003, p. 197). Vimos também acompanhando a transformação emancipa- Quanto às desordens que podem ser apresentadas também como tória da mulher, iniciadas com sua entrada no mercado de trabalho aspectos que influenciam a opção por não ter filhos, observa-se, segundo (consequência da Segunda Guerra, quando foram convocadas, Souza e Lima (2007), a violência social que ocorre no Brasil e se expressa nos dada a falta de homens para trabalhar nas fábricas), com sua indicadores criminais e nas altas taxas de homicídio, sendo que as mortes por causas violentas nos centros urbanos brasileiros estão entre as mais altas maior ou igual participação na renda familiar, os movimentos do continente americano. feministas a partir dos anos sessenta e a liberação sexual com Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2017), o Brasil teve o advento da pílula (primeira desvinculação de sexualidade e 61.283 mortes violentas intencionais no ano de 2016, sendo o maior número reprodução). (Muszkat, 2013, p. 287). já registrado pelo país. O que se traduziria em aproximadamente sete pessoas assassinadas por hora. Sendo assim, o medo da criminalidade e da exposição Pensando na imagem de mulher e fazendo um comparativo à submissão a esta pode influenciar na escolha de aderir à maternidade e à paternidade, das esposas dos anos 50 e das muitas “chefes de família” vistas atualmente, visto serem razões importantes neste contexto de insegurança. pode-se dizer que a mulher ganhou bastante em liberdade de expressão; Faz-se necessário realçar que existem casais que optam voluntariamente contudo, a imagem de mãe se mantém atrelada à imagem tradicional de em não ter filhos e outros, involuntariamente. É possível pensar que os casais mulher adulta. As modificações surgem, mas ainda se tem uma visão de que não apresentam problemas orgânicos, mas que ainda assim optaram cuidado com os filhos onde a maternidade é símbolo principal, sendo que a por não terem filhos, seriam aqueles considerados como voluntariamente paternidade fica, consequentemente, posta de lado, mais esquecida, muitas sem filhos; aqueles casais que apresentaram algum fator orgânico que im- vezes sobrecarregando a mulher. Ainda que anteriormente o papel feminino possibilitou esta geração seriam os casais involuntariamente sem filhos. No de trabalho fosse ligado às tarefas domésticas e cuidado aos filhos, com as entanto, é importante ressaltar que, tratando-se de uma escolha feita entre mudanças advindas da modernização a mulher ganhou seu espaço e sua duas pessoas, também há a impossibilidade de ter filhos quando uma das liberdade para poder escolher, inclusive a vontade ou não de ter filhos. A partes não quer ter filhos e a outra parte quer, mas abre mão desta vontade, possibilidade então de tornar-se totalmente independente, sem necessitar assim sendo impossibilitado de tê-lo. (Silva e Frizzo, 2014). de um homem para sobreviver, também abriu a chance de escolher se queria dedicar-se a vida do trabalho, da família, ou de ambos (Caetano et al., 2016). Quanto à relevância desta pesquisa, apesar de ser um assunto abordado Tamanhas modificações foram sentidas diretamente nas proporções que na literatura, atualmente se restringe à realidade europeia e americana; quanto demonstraram os indicadores de casais com filhos que, segundo a Síntese ao Brasil, trata-se de assunto pouco pesquisado, permanecendo escasso de Indicadores Sociais do IBGE de 2015, reduziram 15,9% em dez anos. Já quanto a publicações (Caetano et al., 2016). o número de casais sem filhos no Brasil, em 2014, correspondia a 19,9% Assim, o objetivo do presente trabalho é investigar os fatores motiva- do total de famílias, sendo em 2004 correspondente a 14,7% (IBGE, 2015). cionais que levam casais heterossexuais da Grande Porto Alegre a optarem Diaphora | Porto Alegre, v. 8 (1) |