UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

NATÁLIA FERREIRA DE CAMPOS

ROMANCES HISTÓRICOS DO SÉCULO XXI E SUA RECEPÇÃO DO FINAL DA REPÚBLICA ROMANA E PRINCIPADO: QUESTÕES SOCIAIS, GÊNERO, SEXUALIDADE E IDENTIDADES

CAMPINAS 2019

NATÁLIA FERREIRA DE CAMPOS

ROMANCES HISTÓRICOS DO SÉCULO XXI E SUA RECEPÇÃO DO FINAL DA REPÚBLICA ROMANA E PRINCIPADO: QUESTÕES SOCIAIS, GÊNERO, SEXUALIDADE E IDENTIDADES

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em História, na Área de História Cultural.

Orientador: PROF. DR. PEDRO PAULO ABREU FUNARI

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA NATÁLIA FERREIRA DE CAMPOS, E ORIENTADA PELA PROF. DR. PEDRO PAULO ABREU FUNARI.

CAMPINAS 2019

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Campos, Natália Ferreira de, 1987- C179a Cam

Romances históricos do século XXI e sua recepção do final da república romana e principado

: questões sociais, gênero, sexualidade e identidades / Natália Ferreira de Campos. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

CamOrientador: Pedro Paulo Abreu Funari. CamTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Cam1. Ficção histórica. 2. História antiga. 3. Representações sociais. 4. Literatura. 5. Gênero. 6. Sexualidade. 7. Roma - História. I. Funari, Pedro Paulo Abreu, 1959-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Twenty-first century historical novels and their reception of late roman republic and the principate : social issues, gender, sexuality and identities Palavras-chave em inglês: Historical fiction Ancient history Social representations Literature Gender Sexuality Rome - History Área de concentração: História Cultural Titulação: Doutora em História Banca examinadora: Pedro Paulo Abreu Funari [Orientador] Glaydson José da Silva Cláudio Umpierre Carlan Gabriella Barbosa Rodrigues Ana Carolina Arruda de Toledo Gurgel Data de defesa: 27-09-2019 Programa de Pós-Graduação: História

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 27 de setembro de 2019, considerou a candidata Natália Ferreira de Campos aprovada.

Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari Prof. Dr. Cláudio Umpierre Carlan Prof. Dr. Glaydson José da Silva Dr.ª Gabriella Barbosa Rodrigues Prof.ª Dr.ª Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós- Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

AGRADECIMENTOS

Nunca soube muito bem como fazer agradecimentos, não por não me sentir agradecida, mas por faltar habilidade com as palavras para expressar o real significado do que sinto. Pode parecer um clichê, porém é inegável que é impossível transmitir o quanto o apoio de todos os envolvidos foi necessário para que esse trabalho pudesse se realizar. Essas pessoas sabem o quanto sou grata pelo papel que tiveram ao longo desses anos em todos os aspectos da minha vida, sejam eles acadêmicos ou emocionais. Esse doutorado é o fechamento de um ciclo, que começou em 2004 quando entrei na Unicamp para fazer a graduação em História. Desde então a Unicamp tem sido minha casa. Agradeço ao meu orientador Pedro Paulo Funari que esteve comigo nessa jornada desde o seu início na graduação e me acompanha desde então. O mesmo pode ser dito dos membros da banca Glaydson José da Silva, Cláudio Carlan, Gabriella Rodrigues e Carô Murgel que de diversas formas estiveram presentes ao longo da minha formação e foram parte importante dela. Preciso agradecer minha mãe, Bernadete por todo o apoio que me deu ao longo de processo e por ser a companheira de todas as horas sem a qual certamente não teria conseguido finalizar a tese. Ao Nivaldo, meu pai, meu irmão Francisco e meu cunhado Gabriel que de uma forma ou outra estiveram presentes ao longo desse período. Agradeço também a companhia dos amigos, às queridas amigas historiadoras que ao longo desses quinze anos foram uma constante na minha vida: Fanny, Ivia, Natália Tiso e Patrícia. E aqueles tão importantes quanto e que fiz amizade ao longo do caminho, Marina, Victor, Tami. Todos sempre dispostos a discutir os temas, fazer sugestões e aguentar os dramas! Destaco aqui o apoio do CNPq (processo no 142456/2014-4) pela bolsa de doutorado que recebi e sem a qual essa pesquisa não teria sido possível. Ao longo da minha carreira acadêmica as diversas agências públicas de fomento à pesquisa foram fundamentais para que pudesse segui-la.

RESUMO O objetivo dessa pesquisa é entender de que forma a sociedade contemporânea se relaciona com o passado, no caso a Antiguidade romana, por meio dos livros de ficção histórica. Para isso, serão utilizados livros publicados nos últimos trinta anos, quando houve uma retomada do interesse tanto pelo romance histórico quanto pela Antiguidade, dando preferência àqueles que foram lançados na última década. A popularidade dessa literatura e a abrangência do público fazem com que esses livros se tornem fontes interessantes para o estudo dos usos do passado pela sociedade contemporânea. Quais seriam os lugares-comuns criados dentro desse gênero literário referentes à representação que fazem do momento histórico sobre o qual estão escrevendo, no caso Roma Antiga? De que forma a representação do período nesses romances históricos criam um passado que perpetua valores e tradições do presente naturalizando-os e, através disso, excluem aqueles que não se adéquam a essas formas de vida? A partir do conceito de usos do passado esse projeto pretende analisar como essas representações da Antiguidade romana criam, legitimam ou contestam certos tipos de comportamento, valores e tradições.

Palavras-chave: Romance Histórico; Roma antiga, Antiguidade clássica; recepção; usos do passado

ABSTRACT The aim of this research is to understand the ways by which contemporary society relates itself with the past, especially Ancient Rome, through historical novels. To that end books published in the last thirty years were chosen, in particular those published in the last decade since there has been a renewed interest both in the historical novel and the classics. The popularity and reach of this kind of literature make these books a very interesting source to understand the reception of Ancient Rome by present day western societies. We will map the commonplace references established by the genre about the historical moment they were trying to portray and how such representations build a past that perpetuates, justifies or challenges present day values and traditions.

Keywords: Historical novel; ancient Rome; classical antiquity; reception; uses of the past

SUMÁRIO Introdução ...... 9 Considerações Teóricas ...... 13 1.1. Antiguidade Clássica ...... 17 1.2. História e Ficção Histórica ...... 19 Capítulo 1: Romance Histórico: Origens e debates ...... 22 1.3. Por que o Romance Histórico? ...... 22 1.4. História, Narrativa e Ficção ...... 24 1.5. História “popular”, não oficial ou pública ...... 26 1.6. O Romance Histórico na Teoria ...... 27 1.7. Paradoxos do romance histórico: Retrospectiva, Nostalgia e Verossimilhança ...... 29 1.8. Estado Nacional, identidades construídas e romance histórico ...... 31 1.9. Questões de Gênero: Romance Histórico “sério” e romance histórico “para mulheres” (Novel x Romance) ...... 33 Capítulo 2: Roma Antiga no romance histórico – uma análise das obras ...... 36 2.1. Autores e Séries: ...... 36 2.2. Questões Sociais ...... 47 2.3. Questões de Escravidão ...... 71 Capítulo 3 – Gênero e Sexualidade ...... 91 2.4. Questões de Gênero ...... 91 2.5. Práticas Sexuais e Representações do Homoerotismo ...... 117 Capítulo 4: Identidades ...... 140 3.1. Ocidente e Oriente, Civilização e Barbárie...... 140 3.2. Visões de Roma ...... 157 Considerações Finais ...... 176 BIBLIOGRAFIA ...... 179 3.3. ROMANCES HISTÓRICOS ...... 179 3.4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 180

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Introdução

O objetivo dessa tese é entender de que forma a sociedade contemporânea se relaciona com o passado, no caso a Antiguidade romana, por meio dos livros de ficção histórica. Para isso, serão utilizados livros publicados nos últimos trinta anos, quando houve uma retomada do interesse tanto pelo romance histórico quanto pela Antiguidade, dando preferência àqueles que foram lançados na última década. A popularidade dessa literatura e a abrangência do público fazem com que esses livros se tornem fontes interessantes para o estudo dos usos do passado pela sociedade contemporânea. Quais seriam os lugares-comuns criados dentro desse gênero literário referentes à representação que fazem do momento histórico sobre o qual estão escrevendo, no caso Roma Antiga? De que forma a representação do período nesses romances históricos criam um passado que perpetua valores e tradições do presente, naturalizando-os e, através disso, excluem aqueles que não se adéquam a essas formas de vida? A partir do conceito de usos do passado esse projeto pretende analisar como essas representações da Antiguidade romana criam, legitimam ou contestam certos tipos de comportamento, valores e tradições. É a partir dos romances históricos que têm como tema Roma Antiga que serão analisadas as apropriações da Antiguidade feitas pela sociedade contemporânea e como elas são produzidas e perpetuadas por tais livros. Aqui será feita uma pequena exposição sobre alguns títulos1 que serão analisados durante a pesquisa. Servem como exemplo dos principais tipos de ficções históricas que tratam do período, e já trazem algumas questões importantes que serão abordadas pelo trabalho. Novamente reforça-se que serão privilegiados livros que foram escritos na última década, pelo aumento do volume de publicações existentes e por serem poucos os estudos que se debruçaram sobre eles. Primeiramente, será apresentada a obra de Robert Harris, autor inglês de uma trilogia em que a história se passa no final da República Romana, chamada Trilogia de Cícero (HARRIS, 2006; 2009; 2015). No entanto, trata-se de uma biografia do orador romano Cícero, contada por seu escravo Tiro. Aliás, é comum que escritores de romances históricos já sejam autores consagrados em outros gêneros. Harris já tinha uma carreira de sucesso como escritor antes de se voltar para a ficção histórica, e também se preocupa em

1 Os títulos e datas de publicação de todos os livros estão detalhados na bibliografia.

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dizer nas “notas do autor” que seu maior débito é para com os vinte e nove volumes de cartas e discursos de Cícero. A segunda série a ser tratada é a chamada Roma Sub Rosa (SAYLOR, 1991; 1992; 1993; 1995; 2004), escrita pelo autor Steven Saylor, americano e que, ao contrário dos outros dois, começou a carreira já escrevendo livros de ficção histórica. Um ponto interessante dessa série, com doze volumes – dos quais serão analisados cinco volumes – é que ela se trata de um romance policial passado na Antiguidade.2 Sua personagem principal é um romano fictício chamado pelo nome de Gordianus the Finder, que é conhecido por ser capaz de “encontrar coisas” e que, no primeiro volume da série, vai ajudar Cícero a desvendar o assassinato de Sexto Róscio3, crime pelo qual o próprio filho dele, e cliente de Cícero, estava sendo acusado de ter cometido. A essas séries juntam-se outros dois livros, escritos pelo brasileiro Max Mallmann. “O Centésimo em Roma”, publicado em 2010, conta a história, que se passa nos tempos de Nero, de Publius Desiderius Dolens, legionário romano que chega à Roma em busca de galgar posições e se tornar cavaleiro. O segundo livro da série, “As Mil Mortes de César”, publicado em 2014, continua a saga de Dolens. O que caracteriza ambos os livros é o tom cômico dado aos eventos e personagens e a visão que o autor tem de Roma. Segundo o autor, seu objetivo é o de contrabalançar a violência da época com humor, num tom que beira o absurdo. Apesar de suas obras abordarem um período histórico um pouco posterior ao das outras séries, a escolha se dá por se tratar de autor brasileiro e assim permitir a comparação e pesquisa da representação da Antiguidade romana no contexto brasileiro. Na série “Imperatriz de Roma” (Imperatriz de Roma), (QUINN, 2010; 2011), o primeiro volume, “Mistress of Rome” (A Concubina de Roma), conta a história de Théa, uma escrava judia vendida para uma rica herdeira romana, Lépida Pollia. Ambas se apaixonarão pelo mais novo gladiador de Roma, Arius “o Bárbaro”. Após Lépida destruir qualquer chance entre o gladiador e a escrava, Thea chamará a atenção do próprio Imperador de Roma, Domiciano. A partir daí ela se encontrará envolta por uma série de intrigas palacianas e conspirações contra o Imperador. No segundo volume, “As Filhas de Roma”, a autora conta a história de quatro mulheres aristocratas como protagonistas. O período onde

2 Aliás, essa junção entre romance histórico e policial é bem comum, especialmente nas histórias que se passam em Roma. 3 Sexto Róscio era cidadão romano da cidade de Améria e morreu assassinado. A defesa de seu filho, acusado do crime, foi o primeiro grande caso advogado por Cícero e que o tornou famoso.

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o romance se desenvolve é o que ficou conhecido como o ano dos quatro imperadores em Roma (entre 68 d.C. e 69 d.C.) e as protagonistas são duas irmãs e duas primas. É importante chamar a atenção para o fato dessa série de romances femininos ser a única da seleção de fontes que conta com mulheres como protagonistas. Cada volume da série possui protagonistas diferentes e se passa em um momento histórico particular de Roma. O que mantém a coesão da série é o interesse da autora em contar a história dessas mulheres e como sobreviviam naquela sociedade. A autora, Kate Quinn, é americana e formada em canto lírico, publicou seu primeiro livro em 2010 e logo entrou para lista de best-sellers do New York Times com essa série. Esses autores foram escolhidos, pois exemplificam bem a variedade de formas que o romance histórico sobre Roma possui. Ao mesmo tempo, todos estão escrevendo sobre o mesmo período4, o que faz com que personagens e eventos se repitam nas três séries. Isso é interessante, pois permite ver de que forma eles estão sendo construídos. Todos também se tornaram sucesso de venda e possuem tradução para o português. Diante disso, uma primeira pergunta a ser feita é: em que eles diferem, em que eles se assemelham? A partir da leitura de diversos romances históricos foi possível perceber que alguns temas específicos se destacaram ao informarem as diversas recepções da Antiguidade romana. Esses temas foram os escolhidos para serem analisados na tese: questões sociais, a escravidão, questões de gênero, práticas sexuais e representações do homoerotismo, ocidente e oriente e visões de Roma. Parecem ser temas-chave em todos os livros que se passam na Roma Antiga. Outro ponto interessante a ser mais aprofundado é como o protagonista dessas histórias geralmente apresenta de forma mais contundente características, pensamentos e ações reconhecidamente “modernas”. Por um lado, talvez isso não seja surpreendente, já que o protagonista tende a ser a personagem com quem os leitores se identificam com mais facilidade. Por outro, isso acaba gerando na história um certo tipo de conflito, ou comparação, entre as atitudes desse protagonista e as outras personagens (a quem são permitidos comportamentos mais exóticos). Nesse momento, a aproximação e o distanciamento entre essas duas épocas se tornam mais claros e a ambiguidade da identificação e da ideia da Antiguidade como “berço da civilização” aparece com toda a força. Um ótimo exemplo disso é que, dificilmente, o protagonista ou

4 Trata-se do período entre século I a.C. e I d.C.

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herói da história tratará mal ou injustamente algum escravo, muitas vezes ficará claro no texto que ele nem mesmo acredita na ideia da escravidão e que, em particular, trata seus escravos como iguais.5 A intenção aqui não é fazer oposição entre uma história acadêmica e uma dita “história popular”, mas tentar vê-las como construções que perpetuam, negam e criam um tipo de memória histórica que tem papel essencial na nossa sociedade. Quando o livro de ficção histórica é escrito ele não parte do nada ou de um lugar onde tudo é possível. É a partir de um diálogo, seja com as fontes históricas, seja com a historiografia ou com o chamado “imaginário popular”. Portanto, os autores desses livros desenvolvem suas histórias tendo em vista todos esses aspectos. Ao mesmo tempo, lidam com a expectativa existente em relação ao que será contado em uma determinada história. Por exemplo, o público, lendo uma história sobre Júlio César, espera encontrar lá alguma referência à famosa frase (ou versão dela) que teria sido dita por ele no momento da sua morte: “Até tu Bruto”. O autor, consequentemente, tem de lidar com essas expectativas, seja confirmando-as ou rejeitando-as. É por meio desses diálogos que as ficções históricas surgem e criam versões que legitimam certas histórias ou desacreditam outras. O objetivo aqui não é determinar nem julgar onde ou de que forma os romances históricos estão certos ou errados em relação a uma suposta “verdade histórica”. O interesse é em entender como essas obras dialogam com o público leitor construindo uma Roma Antiga que é, ao mesmo tempo, crível na sua Antiguidade, mas suficientemente parecida com a sociedade e com certos valores do público atual para que haja, enfim, uma identificação e uma simpatia entre o leitor contemporâneo e as personagens e eventos retratados no texto.

5 Em pelo menos duas séries apresentadas existe um momento em que o protagonista da história de alguma forma demonstra que não pensa como seus pares em relação a escravidão. Harris representa Cícero assim e Sailor representa Gordiano assim.

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Considerações Teóricas Quando Keith Jenkins publicou, em 1991, o livro “A História Repensada”, causou furor no meio acadêmico. Para um livro escrito como “introdução e polêmica”, a reação foi compatível aos desejos do autor6. O desafio proposto por Jenkins é o de repensar novamente uma questão sempre posta aos historiadores: “o que é a História”? (JENKINS, 2004, p. 17). O que é a História? é uma das perguntas mais frequentes que os historiadores têm se colocado, ao menos nesses dois últimos séculos em que a história se constituiu como disciplina e institucionalizou-se. Definir as bases teórico-metodológicas de uma pesquisa histórica é parte fundamental do que pode ser chamado de o “ofício do historiador”. Ainda assim, não existe consenso sobre essa definição, fazendo com que a história seja um conceito em constante disputa. Por muito tempo, os historiadores estiveram preocupados em buscar uma suposta “verdade histórica”, para relatar o que, segundo Ranke, “realmente aconteceu”7. Ainda que tal frase tenha se tornado lugar-comum para criticar um certo modo de se fazer história, ela consegue resumir bem como uma grande parte de historiadores enxergava a disciplina e seu lugar nela. De acordo com essa abordagem, o passado também poderia ser apreendido pela história em sua totalidade; o objetivo do historiador deveria ser, então, ir atrás de evidências e deixar a fonte falar por si mesma (SOUTHGATE, 2005). Ao mesmo tempo, alguns autores, como Jenkins (2004) e Hayden White (1984), afirmam que os historiadores são, em sua maioria, avessos ao estudo teórico da disciplina, escondendo seu apparatus em prol de uma suposta objetividade e neutralidade do saber histórico, ou melhor daquele que detém esse saber, a dizer, o historiador (JENKINS, 2004; WHITE, 1984). Jenkins (2004) vai propor um questionamento bastante interessante aos historiadores. Não mais perguntar-se “o que é a história”, que remete à uma resposta baseada na ontologia e no essencialismo dos conceitos e preocupada em atingir uma verdade. Para ele, a pergunta a ser feita é “para quem é a história”, o que coloca em evidência as disputas e relações de poder existentes na escrita da história. Essa é uma crítica

6 Em artigo recente sobre a recepção de Jenkins na academia, Daddow e Timmins fazem uma analogia inusitada. Jenkins seria visto como uma figura entre Darth Vader (cedendo aos apelos do lado escuro da força) e Dom Quixote (lutando contra inimigos imaginários). DADDOW, Oliver; TIMMINS, Adam. Darth Vader or Dom Quixote: Keith Jenkins in review. The Journal of Theory and Practice (special issue) Rethinking History. Vol. 17, issue 2, 2013. 7 Essa famosa sentença de Ranke encontra-se no livro História dos Povos Latinos e Germânicos 1494 a 1514, publicado em 1824.

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feita não só aos proponentes do positivismo (nesse caso, é comum alegar-se que este tipo de história não é mais feito), mas também aos adeptos do paradigma indiciário proposto por Ginszburg (GINZBURG, 1989, p. 170-179). Esses questionamentos começaram a ser feitos, especialmente, a partir dos anos 1960, em que uma série de rupturas sociais dão voz a segmentos da sociedade antes marginalizados, como mulheres, negros e homossexuais. Essas rupturas também se farão sentir no campo historiográfico (FUNARI, SILVA, 2008). Nesse momento, segundo Roger Chartier (2002), a história, ainda que dominante institucionalmente, encontrava-se ameaçada intelectualmente por outras disciplinas, como a linguística, a sociologia e a psicologia. Para ele, os historiadores reagiram a esses desafios com a emergência de novos objetos que passaram a fazer parte das questões históricas como crenças e comportamentos religiosos, sistemas de parentesco, formas de sociabilidade (CHARTIER, 2002, p. 14). Ainda assim, é interessante notar que as grandes propostas teóricas que acabaram por influenciar sobremaneira os historiadores não vieram de pessoas que possuíam como formação principal a história, mas de filósofos que encontraram nesta um instrumento de questionamento dos pressupostos estabelecidos. Nesse sentido, Michel Foucault vai incentivar que, por meio da história genealógica, deve-se espreitar os acontecimentos onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história, “os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos [...]” (FOUCAULT, 2006, p. 15). Foucault (2006) vem, então, contrapor-se à ideia de uma história obcecada com a busca das origens. Em seu lugar, ele defende a prática de uma história genealógica, fortemente baseada na filosofia nietzschiana8. Para Foucault, essa é a diferença entre a gênese e a genealogia: a primeira vai buscar, em última instância, uma essência que pretende revelar uma verdade primordial e é, de forma impreterível, teleológica (FOUCAULT, 2006, p. 23). A segunda, está preocupada em evidenciar o momento em que práticas, ideias e sentimentos nasceram e surgiram. De acordo com o filósofo francês, tudo tem uma data de nascimento e é justamente isso que deve ser procurado pelo “geneticista”. Este não deve buscar a identidade ainda preservada da origem, mas a discórdia entre as coisas, o disparate

8 É importante notar que as disputas e discussões sobre o significado da história e do saber histórico não seguem uma linha progressiva, evolutiva. As ideias convivem e disputam espaço simultaneamente. Como apresentado aqui, as ideias de Ranke e Nietzsche são contemporâneas.

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(FOUCAULT, 2006, p. 17). É justamente aí que a história se torna necessária, pois, é por meio dela, que será possível contestar a “quimera da origem”. Essa discussão desemboca em outra, central para os historiadores: a da verdade ou da veracidade. Aliás, o tema da verdade é muito caro aos historiadores. Usando a discussão feita por Foucault e também Richard Rorty, Jenkins (2004) afirma que existe uma “naturalização da verdade” no Ocidente. Isso porque, sem essa crença na verdade ontológica, outros conceitos como objetividade, neutralidade e essência perderiam grande parte de sua força. Ele defende, como Foucault, que a “verdade não existe fora do poder e que ela depende de alguém ter o poder de fazê-la verdadeira” (JENKINS, 2004, p. 58). Todas as sociedades possuiriam, então, seus “regimes de verdade”. Esses “regimes de verdade” seriam uma série de normas que, em dada sociedade, são consideradas naturais e, para todos os efeitos, torna-se verdade de facto (FOUCAULT, 2006, p. 23). É preciso fazer, nesse momento, um adendo em relação a esse conceito, especialmente devido às críticas feitas. Ao negar a existência de uma verdade absoluta isso não significa que se esteja afirmando o seu contrário, isto é, que tudo se trata de falsidades. Mesmo porque, nesse caso, ainda se estaria insistindo em conceitos absolutos. Na História, essa “verdade”, entendida agora como historicamente construída, é usada para iniciar, regular ou desacreditar interpretações e age como censora. Outro ponto a ser destacado é a forma como as narrativas históricas dominantes, a partir dessa perspectiva, se travestem de neutras e consideram-se universais enquanto acusam histórias escritas de outros pontos de vista (sejam feminista, negra, marxista) de ideológicas e propagandísticas. Para Jenkins, os historiadores são fundamentais para a reprodução dos padrões sociais vigentes e, por isso, estão “na vanguarda das forças da tutela cultural (de padrões acadêmicos) e do controle ideológico” (JENKINS, 2004, p. 44). A partir dessa perspectiva, o objeto histórico é então entendido como efeito de construções discursivas. O historiador não deve tentar explicar ou revelar o real, o que seria uma impossibilidade, mas sim desconstruí-lo enquanto discurso(s). (RAGO, 2000, p. 293). Para desconstruir suas imbricadas teias de constituição e naturalização, o historiador trabalha o discurso como prática instituinte, criadora de acontecimentos, imagens e referências de comportamento. Isso porque essas relações de poder que instituem os discursos não são repressivas já que, como afirma Foucault, o poder é positivo, ele não é somente repressor, mas criador (FOUCAULT, 2006).

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O objeto do historiador é, por excelência, o passado. Nesse sentido, ele se confunde, muitas vezes, com a própria narrativa histórica que, dessa forma, adquire uma legitimidade difícil de ser contestada, afinal não se questiona o que “realmente aconteceu”. Há uma distinção importante entre passado e história: a história é um dos discursos sobre o passado e, no entanto, é categoricamente diferente dele. Para Jenkins (2004) e White (2005), a historiografia (que aqui se confunde com a própria história, pois uma não existe à revelia da outra) é uma construção linguística e intertextual. Lemos o mundo como um texto e essas leituras são infinitas. Isso não significa que histórias sobre o passado sejam, simplesmente, inventadas, ou seja, mesmo tendo-se conhecimento deste, tais histórias sejam, propositalmente, falsificadas. O passado sempre chega até o presente por meio de histórias, isto é, narrativas. Não existe possibilidade de checar se essas narrativas correspondem a um “passado real”, pois essas narrativas constituem a própria realidade (JENKINS, 2004, p. 11). Deste modo, se o mundo só pode ser apreendido por meio de narrativas, então a realidade em si não passa de um punhado de narrativas e, por consequência, subjetivas. Não há um real absoluto a ser apreendido, pois é ele mesmo, de forma inescapável, subjetivo. Em seu livro, George Orwell (2010) fará uma afirmação que vai ao encontro de todos esses questionamentos apresentados até o momento. Em 1984 ele dirá que, “quem controla o passado controla o futuro, quem controla o presente controla o passado” (ORWELL, 2010). Nesse trecho, ele faz eco ao que historiadores como Benedetto Croce (1938) já tinham afirmado, “Toda história é história contemporânea” (CROCE, 2006, p. 5). Essa afirmação, feita há quase oitenta anos atrás, e a provocação trazida por ela, foi diversas vezes retomada ao longo do século e ainda gera polêmica nos meios acadêmicos. O conhecimento está relacionado ao poder e aqueles com mais poder distribuem e legitimam o conhecimento que caminha ao lado de seus interesses. Jenkins defende que esse relativismo que analisa o poder é libertador (JENKINS, 2004, p. 68). O conceito de usos do passado traz a ideia de que a história é um discurso produzido no presente sobre o passado e, por isso mesmo, diz respeito mais ao momento em que foi escrito que àquele que pretende descrever. Porém, como Renato Pinto (2011) afirma, isso não significa que os estudos no âmbito dos usos do passado digam respeito a trazer o passado para o presente e sim entender de que forma esse passado é representado e reapropriado de diversas maneiras e por diversos atores sociais diferentes, visto que este pesquisador não se preocupa apenas com os discursos acadêmicos sobre o passado (PINTO, 2011, p. 30).

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Se a questão, proposta por Jenkins (2004), “Para quem é a história?” conduz às reflexões acima apresentadas sobre poder, discurso e suas relações com a disciplina histórica e os historiadores, Beverly Souhtgate vai, a partir desse pressuposto, adicionar mais uma questão que, segundo ele, normalmente é evitada pelos historiadores: “Para que serve a história”? (SOUTHGATE, 2005). O autor afirma que tal pergunta pode soar quase como heresia aos ouvidos dos historiadores. No entanto, é fundamental fazê-la, visto que, hoje em dia, questiona-se muito a utilidade da história, em especial como disciplina acadêmica. Para Margareth Rago (2002), os historiadores devem se deparar com sua difícil relação com o passado e os mitos dignificantes que valorizavam a profissão e que não mais encontram respaldo. (RAGO, 2005). Southgate (2005) também destaca o ataque sofrido pelas humanidades em geral e pela história em particular, dispensada como algo obsoleto. O autor propõe, então, repensar qual seria sua justa função: em um mundo que sofreu mudanças, para que serviria uma história que também passou por mudanças? Ao mesmo tempo, critica a justificativa, segundo ele comum, dada por muitos historiadores: o estudo da história como um fim em si mesmo (SOUTHGATE, 2005). Pensar a história a partir da ótica do discurso, da narrativa, dos usos do passado é fazer uma escolha ou, como Jenkins (2004) afirma, uma escolha entre uma história consciente do que está fazendo e uma que prefere omitir-se de suas responsabilidades (JENKINS, 2004, p. 82). Colocar em evidência a relação entre história (e historiadores) e os poderes que a constituem pode fazer com que ela “perca a sua inocência”, já que é dessa forma que os discursos dominantes têm articulado seus interesses. É contrapor-se, de forma consciente, a uma leitura autoritária da história.

1.1. Antiguidade Clássica A área de Antiguidade Clássica não passou incólume por todos esses debates em torno da história e das transformações ocorridas no campo historiográfico. Considerada como um dos campos mais conservadores e tradicionais da disciplina histórica foi (e ainda é) diversas vezes acusada de se encontrar encastelada em uma torre de marfim (GLAYDSON, 2007, p 25), distante da sociedade e da política moderna. Os historiadores Glaydson Silva e Renata Garrafoni (2009) convidam a pensar o “papel desempenhado pelos historiadores da Antiguidade e demais atores do universo intelectual na produção do conhecimento” (GARRAFONI; SILVA, 2009, p. 213). Pensar de que forma um certo imaginário histórico, especialmente da Antiguidade Clássica, está comprometido, em maior

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ou menor grau, com disputas próprias da contemporaneidade. Inspirado por esses debates e tendo como base a obra de Edward Said9, Martin Bernal publica, em 1987, o primeiro volume do livro Black Athena. A obra teria sido uma das que mais provocou controvérsia sobre a Antiguidade grega e teria sido o livro mais discutido sobre a história do mediterrâneo oriental (BERLINERBLAU, 1999, p. 20). Logo na introdução do livro Black Athena, Martin Bernal deixa explícita sua intenção. Afirma que existem dois modelos de interpretação para as origens da civilização clássica: o Modelo Antigo (que admite as influências africanas e semíticas e teria vigorado até o século XVIII) e o Modelo Ariano (que não aceita nenhuma dessas influências e vê a Grécia como uma civilização em grande parte “original”). Esse segundo modelo teria substituído o primeiro durante o século XIX, devido a alguns fatores essenciais que, segundo Bernal, seriam o racismo, a eugenia, o anti-semitismo e o imperialismo (BERNAL, 1987). Ele vai além, “[...] será necessário repensar não só as bases fundamentais da ‘Civilização Ocidental’, mas também reconsiderar a penetração do racismo e do ‘chauvinismo continental’ em toda a nossa historiografia, filosofia e escrita da história” (BERNAL, 1987, p. 02). Aliás, seus críticos não hesitam em acusar Bernal de propor uma “agenda cultural anti-européia” (LEFKOWITZ, Mary; MACLEAN, 1996). Jenkins (2004) afirma que a história é uma das formas como as pessoas constroem suas identidades. Isso também explica a violência e condescendência com que Bernal é tratado pelos seus críticos. Afinal, como o próprio afirmou no Black Athena, é a Civilização Ocidental (ou o que se acreditava sobre ela) que está sendo posta em xeque. Se se aceitar que foi “concebida em pecado” por homens racistas e antissemitas, todo o resto poderá ser questionado. Para Bernal não há como e nem porquê salvar um conceito que possui essa história. Essa identidade ocidental tem como seu mito fundante a Antiguidade Clássica. Sobre isso, Helen Morales (2007) afirma que “aos mitos de diferentes culturas foram dados diferentes valores por meio de sua recepção na chamada cultura Ocidental. Aqueles relacionados à Grécia e Roma se tornaram os mitos do mundo Ocidental” (MORALES, 2007 p. 13). A autora vai destacar a importância de se fazer uma crítica ao uso do termo

9 (SAID, 1990, p. 15) “o orientalismo é um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre “o Oriente” e (a maior parte do tempo) “o Ocidente”. É o discurso [...] por meio do qual a cultura europeia conseguiu administrar – e até produzir – o Oriente política, sociológica, ideológica científica e imaginativamente [...].

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Clássico. Esse termo é problemático, pois no seu significado, está reconhecida e reafirmada uma suposta supremacia cultural sobre os mitos de outros lugares. Para a autora, essa alcunha traz consigo a pretensão de uma certa superioridade e atemporalidade. Mascara-se, com isso, o eurocentrismo dessa tradição. Esse rótulo, herdado e universal, não tem suas origens e significados questionados e, na maioria das vezes, é visto como algo dado. Foi F. A. Wolf, filólogo e crítico alemão que, em 180710, consagrou a definição de Antiguidade clássica como greco- romana, distinguindo-a de outras Antiguidades como a egípcia ou a hebraica (GRAFTON; MOST; SETTIS, 2013 p. 205; HALL, 2011, p. 386). Uma das razões dadas para essa falta de interesse é que o termo “clássico” continua a ser um poderoso selo e sua perda é temida. James Porter afirma que, embora a área sofra atualmente uma série de ataques ela ainda se traduz em “prestígio social, autoridade, satisfações elitistas e poder econômico” (PORTER, 2005, p. 28). Citando Momigliano a “cultura ocidental encontra-se predominantemente enfeitiçada pelo classicismo”. (PORTER, 2005, p. 29). O conceito de clássico não é algo que se manteve estático desde a sua criação, dependendo dos significados dados a ele uma ou outra Antiguidade foi recuperada, épocas diferentes dentro do que se considera Antiguidade Clássica foram escolhidas como seu modelo máximo. Porter dará o exemplo interessante dos mármores do Partenon. Considerados atualmente como símbolos da arte clássica, não foram tão bem recebidos no momento de sua descoberta quando comparados com os mármores do vaticano, a estátua do Apollo de Belvédere e o Laooconte, na época, as réguas pelas quais se mediam o que era considerado “clássico”. Como afirma Porter, “foi só gradualmente, depois de considerável debate, interpretação e eventual validação, para não mencionar raspagem, branqueamento e polimento ‘corretivos’ que os mármores do Partenon adquiriram o brilho que de forma inquestionável carregam agora” (PORTER, 2005, p. 29). Essas questões serão tratadas no capítulo 2.

1.2. História e Ficção Histórica Jerome de Groot (2009b) começa seu livro sobre o romance histórico com uma citação bastante provocativa sobre o gênero: “um ou dois críticos importantes já fizeram essa pergunta: que direito o romance histórico tem em existir?” (DE GROOT, 2009b, p.

10 Friedrich August Wolf: Darstellung der Alterthums-Wissenschaft. Berlim, 1807.

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25). A essa pergunta podemos acrescentar uma outra: qual o papel que esse tipo de literatura exerce na construção de um discurso sobre um determinado período histórico? Enfim, qual a importância desse gênero na forma com que as pessoas se relacionam com o passado? Primeiramente, o mercado de ficção histórica é grande e altamente rentável, especialmente por estar passando por um novo crescimento no interesse do público. Ao mesmo tempo, o alcance desse tipo de literatura é muito maior, seja em audiência e apelo popular, que aquele alcançado pela academia. Dado o seu valor lucrativo, não é de se estranhar a boa vontade com que as editoras lançam inúmeros títulos do gênero a cada ano. (DE GROOT, 2009b, p. 32). Junta-se à essa popularidade renovada da ficção histórica um interesse cada vez maior em estudar e entender as formas com que o passado é apropriado e construído para além das universidades. Apesar disso, o romance histórico divide com a história acadêmica uma ambiguidade inescapável na escrita do passado, muito bem sintetizada por Groot: A História é o outro, o presente é o familiar. Em muitos casos, o trabalho do historiador é explicar a transição entre esses dois estados. O novelista histórico explora de forma similar a dissonância e a deslocação entre o antes e o agora fazendo do passado algo reconhecível, mas, ao mesmo tempo autenticamente familiar (DE GROOT, 2009b, p. 33). David Harlan (2007), em artigo sobre a relação entre a ficção histórica e a história acadêmica, fala dos perigos que os historiadores profissionais correm caso ignorem ou desprezem o que ele chama de “história popular”. Nesse caso, os historiadores podem acabar tornando-se irrelevantes. Para Harlan (2007), uma nova história está sendo produzida fora da academia, por escritores, biógrafos e diretores de cinema e é preciso que os historiadores estejam preparados para lidar com ela. É preciso que os alunos de história sejam ensinados a ser “leitores atenciosos, reflexivos e inventivos de todas as formas pelas quais a sociedade representa o passado para si mesma” (HARLAN 2007, p. 121). Para o autor, essas diferentes formas de produzir o passado se tornaram populares justamente por oferecerem aquilo que a história acadêmica muitas vezes omite ou relega a um segundo plano de sua narrativa. Com isso, o grande interesse existente nesse tipo de literatura é na forma como o escritor de ficção histórica cria “um mundo histórico tão completo que seus leitores se descobrem literalmente vivendo nele, normalmente por diversos dias seguidos” (HARLAN, 2007, p. 121). David Lowenthal (1985), no livro The Past is a Foreign Country, também aborda o tema, discutindo as relações entre história e ficção e quais os atrativos que levam

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o gênero a ser tão popular. Ele afirma que um número muito maior de pessoas entra em contato com o passado através da ficção histórica do que por meio de qualquer outro tipo de história acadêmica. Isso faz com que o passado criado por esses romances seja a principal fonte de conhecimento de muitas pessoas sobre ele, influenciando claramente a forma como elas se relacionam com esse passado (LOWENTHAL, 1985, p. 224). Para Lowenthal (1985), os passados ficcionais podem ser paradigmas do presente ou exóticos em sua diferença, tudo para o prazer do leitor. Ele defende que, ainda assim, os novelistas têm intenções similares aos dos historiadores, “ter a aspiração pela verossimilhança e ajudar os leitores a sentirem e conhecerem o passado” (LOWENTHAL, 1985). Maria Wyke (2002) afirma que, “imagens e textos de Roma vêm sendo adaptados e empregados em uma variedade de mídias para evocar e tornar viva uma Roma tradicionalmente representada como estando na raiz da cultura Euro-Americana” (WYKE, 2002, p. 4). Para a autora, as adaptações da cultura popular mostram a maleabilidade e polivalência das figuras da Roma Antiga. Essas representações podem ser tão variadas quanto a tentativa, em um romance histórico, de mostrar uma suposta versão autêntica da história romana ou a criação de um palácio romano imaginado em Las Vegas, como o Caesar’s Palace. A teoria da recepção também tem tido uma inserção cada vez maior na área dos estudos clássicos. A consequência disso é a mudança de visão sobre os textos antigos, não mais como fontes estáticas, paradas no tempo, mas que estão em constate mudança. Essas fontes não são herdadas pelos historiadores de forma direta, intocadas. Elas também possuem uma história, desde sua criação até os dias atuais, que não deve ser desprezada (MARTINDALE, 2006, p. 24). Essas abordagens dão nova dimensão aos estudos clássicos. Assim como escreve Wyke (2002), “a Antiguidade romana foi e ainda é usada para fazer um comentário sobre o presente. Ao levar preocupações contemporâneas para um passado reconhecido e familiar, permite que o público se identifique e se distancie dele de forma simultânea” (WYKE, 2002).

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Capítulo 1: Romance Histórico: Origens e debates

1.3. Por que o Romance Histórico? Neste trabalho o romance histórico será analisado do ponto de vista da história e não da literatura. Pretende-se como historiadora questionar e entender a participação de discursos não acadêmicos sobre o passado e sua influência na construção de um imaginário histórico na sociedade contemporânea e dessa forma mapear os discursos produzidos dentro do âmbito da ficção histórica/romance histórico e sua relação com problemáticas e discussões contemporâneas sobre o passado. Como a história ficcionalizada – o passado como produção cultural – tem um impacto na imaginação popular? Para isso é necessário olhar para a apresentação histórica em meios que geralmente são ignorados pelos historiadores profissionais e assim examinar as formas com que a História é disseminada e adquirida fora da academia. Muitos historiadores como David Harlan (2007) trazem o debate sobre a relação entre história acadêmica e “amadora” e urgem os historiadores a não ignorarem essa produção enorme. Para Rosenzweig e Thelen (1998) ainda que a história esteja presente em grande parte da vida das pessoas, a forma como ela é apresentada nos livros didáticos e na academia não chega a empolgar e ao mesmo tempo desenvolver uma conexão forte com o passado da mesma forma que a ficção histórica faz. Como nossa sociedade consome sua história é fundamental para entender como os discursos históricos se estabelecem e se legitimam. Como funcionam esses discursos “não oficiais sobre o passado”? Sarah Bond (2017) em seu artigo publicado em resposta aos ataques sofridos por conta de um outro artigo em que discutia as cores das estátuas antigas11, ressalta a influência que a ficcção histórica possui na formação dos próprios historiadores já que: [...] 70% de meus alunos me dizem que estes videogames [de ficção histórica] e filmes como Gladiador (que possui um homem da Nova Zelândia representando o espanhol Maximus) e 300 (que possui representações xenofóbicas de Persas e predominantemente pessoas do norte da Europa como Espartanos) foi o que os levaram a fazer meu curso. Se nós queremos ver mais diversidades em Clássicos, temos que como historiadores públicos mudar a narrativa, falar com produtores de filmes,

11 A historiadora da arte, Sarah Bond, sofreu uma série de ataques de grupos conservadores e até mesmo ameaças de morte por um artigo publicado em 2017 na revista Forbes sobre a policromia das estátuas antigas (BOND, 2017). Isso mostra como essas disputas em torno dos significados e das representações do passado ainda são fundamentais na nossa sociedade e como a Antiguidade ainda possui um lugar especial na formação delas.

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escrever artigos de alcance popular e fazer mais divulgação que enfatize a vasta paleta de tons de pele do mediterrâneo antigo. (BOND, 2017). Marilene Weinhardt (1994) faz um levantamento de como andam os estudos referentes ao Romance Histórico e também se pergunta sobre como esses estudos ocorrem no Brasil. Para ela há pouco destaque à produção ficcional contemporânea nacional, a autora observa que a literatura de ficção brasileira é amplamente ignorada pelos estudos que tratam do tema mesmo aqui no Brasil. (WEINHARDT, 1994, p. 52-54). A autora afirma que mesmo nos diversos estudos que tratam do romance histórico na América Latina, o Brasil não está representado. Assim, “O isolamento da literatura brasileira se dá em todos os quadrantes. Estudos sobre a América Latina realizados nos Estados Unidos praticamente só consideram a produção em espanhol”. (WEINHARDT, 1994, p. 53). Nos anos 1980, intensificou-se a relação entre os estudiosos da ficção e da história. Com isso houve uma série de simpósios e encontros12 que trataram do tema. Porém, ainda assim essa produção é escassa tanto que nesse artigo de 1994, a autora só cita esses dois casos. Já Cosson e Schwantes (2005) fazem uma análise a respeito, entre outras coisas da metaficção13 histórica e, nesse contexto, ele cita um trabalho brasileiro do gênero. Porém ele não faz no seu texto uma reflexão sobre o romance histórico no Brasil. (COSSON E SCHWANTES, 2005, p. 35). Para além da falta de estudos sobre o romance histórico no Brasil, esses poucos trabalhos não estão interessados em analisar as obras que tratam da antiguidade clássica. Mesmo internacionalmente as análises feitas sobre o romance histórico não se debruçaram sobre o tema do uso da antiguidade para a construção de um discurso ficcional da época e suas consequências para a criação de um imaginário da antiguidade.

12 O "Colóquio Narrativa: Ficção e História", realizado no Rio de Janeiro em 1987, organizado por Dirce Cortes Riedel e o "Encontro Internacional sobre Literatura e História na América Latina", em 1991, patrocinado pelo Centro Angel Rama (SP) e organizado por Ligia Chiappini e Flávio Wolf Aguiar. 13 A metaficção histórica “é aquela que desvela o caráter narrativo da história, recusando os pactos de vizinhança que sustentam as divisões entre os dois discursos. Não se trata mais de dividir o território da narrativa entre ficção e história, nem da união de forças para subverter o estabelecido, mas sim, como analisa Linda Hutcheon, de que a literatura e a história agora “partilham a mesma postura de questionamento com relação ao uso comum que dão às convenções narrativas, à referência, à inserção da subjetividade, a sua identidade como textualidade e até seu envolvimento na ideologia” (COSSON E SCHWANTES, 2005, p. 35).

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1.4. História, Narrativa e Ficção Nas últimas décadas a discussão acerca do caráter narrativo do discurso histórico dominou os debates entre historiadores ao mesmo tempo em que passou ao largo do tema, talvez óbvio, do romance histórico. O romance histórico é um gênero desprezado tanto nos departamentos de história quanto de literatura, considerado mera “invenção” por uns e de qualidade duvidável por outros (HAMNET, 2011, p. 9). Essa ignorância e “esquecimento” da ficção histórica, dentro do debate historiográfico, pode estar relacionada às tensões, existentes até hoje e jamais solucionadas, do papel da narrativa na produção do discurso histórico. Hayden White (2005), seguindo Michel de Certeau, afirma que “a história não se tornou ciência moderna porque ela recusa o real, enquanto a ciência moderna está mais interessada no real que na verdade” (WHITE, 2005, p. 147). Para ele, a crise na qual o discurso histórico se encontra, não se deve ao pós-modernismo, sobre o qual recai numerosas vezes essa suposta culpa, mas no fracasso da história em se tornar uma disciplina científica nos moldes do que se entendia por ciência no século XIX. (WHITE, 2005). Para Ina Ferris (1991), a distinção entre história e ficção é uma das mais arraigadas da cultura ocidental moderna, sendo constantemente renegociada e possuindo um equilíbrio precário. Ainda assim, “História e ficção precisam uma da outra, pois a identidade de cada uma delas depende da diferença que existe entre ambas; no entanto cada uma procura se tornar independente ou exercer um domínio sobre a outra” (FERRIS, 1991, p. 139). As afirmativas anteriores fazem um questionamento interessante, pois trazem à tona algumas das diversas características que o discurso historiográfico compartilha com a narrativa do romance histórico. São essas semelhanças e pontos de tensão que serão abordadas nesse capítulo. O caso é que a História e a narrativa literária sempre estiveram intimamente ligadas até que essa relação fosse problematizada, sobretudo a partir do século XIX. É nesse século também que história acadêmica e ficção histórica se tornaram modos paralelos de representar a realidade, sendo notável que é no momento em que a narrativa é expurgada da história que o romance histórico surge como discurso alternativo sobre o passado com uma imensa popularidade. (HAMNET, 2011, p. 1). A noção de que um “passado real” pode ser capturado de alguma forma em um texto histórico é, ela mesma, produto da história. Paul Veyne (1998) afirma que “como o romance, a História também seleciona, simplifica e organiza, resume um século em uma página” (VEYNE, 1998, p. 14). A autora Helen Hughes (1993) faz um debate interessante em torno da questão ao afirmar que a “apresentação da história é tão parte da construção do

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“mito do passado” quanto as “histórias inventadas” (HUGHES, 1993, p. 7-9). Assim, a autora afirma que: Os romances históricos, baseados em uma versão específica da história e até certa extensão validados por ela estão permeados pela ideologia da versão do passado que elas representam; no entanto é essa “história” que funciona como o elemento “verdadeiro” da narrativa e, por isso, como o aspecto menos politizado do texto. (HUGHES, 1993, p. 8). O autor Brian Hamnet (2011) vai ao encontro dessa ideia ao defender a interdependência desses dois campos que tratam do passado14. Para o autor, histórias como as de Walter Scott15 também foram responsáveis por levar a disciplina histórica a afastar-se de um estudo único da política e do poder, já que nos seus romances foi uma das primeiras vezes em que “o povo” teve um papel preponderante na literatura. (HAMNET, 2011, p. 2). Dentro do gênero do romance histórico existem diversos modos de se escrever o enredo e a forma com que os autores da obra acreditam ser a “função da História” influencia e diferencia essas narrativas (HUGHES, 1993, p. 4). Jerome De Groot (2009b) afirma que o trabalho de Scott teve uma influência enorme não só sobre os escritores de ficção, mas também nos historiadores e leitores de sua obra. Para ele, a importância de Scott não se dá apenas por ter sido um dos pioneiros da escrita do romance histórico, mas como seu exemplo de escrita se espalhou rapidamente pela Europa onde foi amplamente imitado e inspirou um número grande de autores. (DE GROOT, 2009b). Ao mesmo tempo, a história que ao longo do século XIX sofreu um processo de profissionalização inaugurou uma nova forma de narrativa sobre o passado em que buscava uma objetividade e total submissão aos fatos cada vez mais distante de uma busca amadora pelo passado. Segundo De Groot (2009b), isso fez com que o romance histórico acabasse entrelaçado com essa disciplina insipiente ao invés de se tornar um ramo do romance literário. As escolhas dos episódios que são retratados na ficção (e porque não na historiografia) também estão carregadas de significados e mesmo comprometimentos políticos explícitos. Segundo Leger Grindon (1994), “Joana d’Arc conta uma história da

14 É muito didático o exemplo de Michel de Cervantes com Dom Quixote, considerado a primeira obra de Romance do mundo. Para Hamnet (2011), Dom Quixote brinca continuamente com as relações ambíguas entre passado e presente, anacronismo e percepções contemporâneas, do olhar nostálgico sobre o passado, entre realidade e fantasia. (HAMNET, 2011, p. 20). 15 Sir Walter Scott (1771 – 1832) nasceu na Escócia, já era um poeta de renome quando escreveu seu primeiro romance e é considerado como o inaugurador do gênero do romance histórico. Suas obras mais famosas incluem Waverley e Ivanhoé.

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França diferente [da que seria contada através de] Maria Antonieta; São Francisco fala de cristianismo a partir de um tom mais ameno que um Martinho Lutero”. (GRINDON, 1994, p. 5). Ao mesmo tempo aquilo que é deixado de fora da ficção histórica ou deixa de ser representado diz tanto quanto o que acaba dentro das páginas dos livros. Essas escolhas trazem algumas questões como: o que torna alguns períodos e tópicos preferidos para os escritores? O que isso diz sobre a sociedade que as produziu?

1.5. História “popular”, não oficial ou pública O que seria essa história, ou mais propriamente dito, histórias, que são criadas, vividas e reproduzidas para além do domínio da academia e dos historiadores? Jerome de Groot (2009a) afirma que, “O entendimento, uso e consumo popular do “passado” são modelos poderosos e paradigmas para as formas com que a sociedade pensa a História” (DE GROOT, 2009a, p.6). A história foi associada à nação, nostalgia, revelação e conhecimento, mas também traz o testemunho pessoal e a experiência própria. É ao mesmo tempo um discurso distante e reverenciado e algo próximo que pode ser mudado e experimentado por vários meios. O autor desenvolve então uma discussão interessante sobre história popular e a visão que os historiadores têm dela. Para ele, a chamada história não acadêmica ou não profissional, é um fenômeno dinâmico e complexo. Assim, Enquanto a história “pública” é cada vez mais discutida pelos historiadores, as consequências de novas formas de se engajar com o passado não foram investigadas com profundidade. Isso é muitas vezes resultado da relutância e desaprovação que os historiadores têm pelos vários tipos de história popular [...] (DE GROOT, 2009a, p. 5). Ainda assim, mesmo as discussões que existem sobre o tema costumam “reclamar” da forma como ela é responsável por “degradar a História”. De Groot (2009a) defende que isso se dá graças a um modelo que encoraja uma divisão binária entre “alta” e “baixa” história. Os estudos feitos sobre o impacto das mídias populares na compreensão histórica, a partir desse modelo, resultou na sua marginalização. O objetivo aqui não é pautar a discussão nesses termos, ou seja, no sentido de serem “boas” ou “ruins” como discurso histórico, mas entende-las dentro de suas especificidades e lugar dentro da sociedade. Antes do ensino profissional da história se estabelecer, o Romance Histórico era a principal forma de entender a história para o público leitor em geral. O que mostra sua importância para a construção de um imaginário histórico. (HAMNET, 2011, p. 5). No

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contexto brasileiro atual, com as mudanças feitas na Base Nacional Comum Curricular, que entrará em vigor a partir de 2021, a disciplina de história passa a não ser mais de disponibilidade obrigatória no Ensino Médio. Com isso, podemos questionar se essas formas não profissionais de história ganharão ainda mais espaço e autoridade frente ao público geral. Já é possível ver algo similar acontecer com a ascensão de youtubers e celebridades16 da internet que estão ocupando espaços de autoridade antes delegados a historiadores profissionais.

1.6. O Romance Histórico na Teoria Não há consenso sobre que obras definiriam o começo do romance histórico, nem mesmo sobre o que seriam as características desse gênero. Essa ambiguidade conceitual que acompanha o romance histórico talvez seja sua característica definidora. Tal como sua companheira acadêmica, o romance histórico também se viu, sempre, em meio a debates sobre fato e imaginação, entre “verdade histórica” e ficção. (COSSON E SCHWANTES, 2005, p. 30). Devido as questões apresentadas anteriormente, o romance histórico é um gênero problemático e sem fronteiras ou identidade claras. Por isso mesmo uma série de estudos clássicos sobre o Romance como os de Mikhail Bakhtin e Raymond Willians ignoram-no quase que por completo (BOWEN, 2002, p. 246). Um dos primeiros estudiosos a analisar o romance histórico de uma perspectiva teórica foi Georg Lukács. Sua obra, “O Romance Histórico” não é inaugural, mas uma continuação da preocupação de Lukács, já posta no livro Teoria do Romance, de analisar o gênero que, para ele, seria a mais próxima da vida e afetada pela crise da modernidade e, portanto, seu melhor representante. (SILVA, 2001). No fundo sua argumentação visa demonstrar por que a experiência histórica, ao se manifestar na literatura no início do século XIX, produziu o romance histórico (SILVA, 2001, p. 98). Lukács vê as origens do romance histórico em dois momentos: no romance social do século XVII e na nova percepção de história que surge na Europa pós-revolução

16 Obras do tipo do “Guia Politicamente Incorreto”, nas suas mais diversas versões, da História do Mundo, da América Latina e do Brasil, escrita por jornalistas contam com um sucesso estrondoso jamais igualado por obras de historiadores. O importante é que a obra se apresenta justamente como uma contestação e provocação à história produzida dentro da academia que seria cheia de distorções e irrealidades. Em 2017 o livro ganhou uma adaptação pelo History Channel, narrada e apresentada por Felipe Castanhari, um popular youtuber, do canal Nostalgia que conta com mais de 10 milhões de inscritos.

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francesa. (BERRIEL, 2011, p. 20). A ideia de processo é fundamental para entender o surgimento do romance histórico dentro de uma visão de história Marxista. O romance Histórico surge então como a ferramenta que faz com que as pessoas, especificamente a burguesia, adquiram uma consciência histórica de si mesmas e passem a se ver como sujeitos históricos com agência própria. Por isso existe uma relação intrínseca entre um passado que está ligado ao presente e olha para o futuro (BOCCARDI, 2009, p. 11). Dessa maneira, o romance histórico não é episódico ou um gênero particular, mas a formalização que o romance assume ao figurar o passado como a pré-história do presente. Para Lukács (2011), Walter Scott foi o principal criador dessa forma, influenciando outros autores como Honoré de Balzac, Alessandro Manzoni e Léon Tolstói, que são relidos e valorizados, segundo o autor, como exemplares casos de apreensão formal da totalidade, o que seria o objetivo final do romance histórico. Scott não está interessado em repetir os grandes acontecimentos históricos, mas “ressuscitar poeticamente quem viveu essas experiências” apresentando em suas obras o mundo do romance que é o mundo da esfera popular. (LUKÁCS, 2011, p. 18). Para Lukács (2011), a importância do romance histórico está em permitir que as pessoas se conectem e sintam empatia por indivíduos históricos e por meio disso adquiram um senso de sua própria especificidade histórica. Como bem evidencia De Groot (2009a): [...] antes disso, a história havia sido aquela do Homem inalterado, imutável e reificado. Lukács postula que a “invenção” de um senso de historicidade, um senso, pós-revolução, de um desenvolvimento contínuo da história como algo não estático. Essencialmente, Lukács está interessado em provar que o tumulto econômico e social criou um senso de progresso dinâmico e, sobretudo, da história como processo. Para Lukács, antes do Iluminismo, a “história” não existia de uma forma que as pessoas comuns poderiam entender. Não existia um senso de mudança ou progresso, o que é, para os marxistas, um dos fundamentos da história. (DE GROOT, 2009a, p. 25). A partir dessa perspectiva Lukács estabeleceu um modelo marxista do gênero baseado no conceito de progresso dialético. Ele é bastante limitador, e por dominar esse campo de estudo foi responsável por excluir, ainda hoje uma série de romances históricos escritos por e para mulheres considerados “menores” ou de nenhum valor (JAMESON, 2007, p. 185). Para Lukács, o que torna um romance histórico é a proveniência da individualidade dos personagens a partir da particularidade histórica do momento representado. É também um gênero essencialmente secular no qual as massas têm uma

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função significativa. Aqueles que não se enquadram nessas características seriam “históricos somente no que se refere a sua escolha puramente casual de tema e figurino” (BOWEN, 2002, p. 247). Weinhardt (1994), afirma que eles não possuiriam a especificidade do tempo e da ação condicionando o modo de ser e de agir das personagens. (WEINHARDT, 1994, p. 49).

1.7. Paradoxos do romance histórico: Retrospectiva, Nostalgia e Verossimilhança O romance histórico apresenta algumas características específicas dentro de sua narrativa que o difere dos demais gêneros e que estão intimamente relacionadas à forma como ele lida com a história: a retrospectiva, a nostalgia e a verossimilhança. Ao contrário de outros tipos de ficção: [...] o que define o romance histórico como gênero é precisamente a interação entre os elementos inventados da narrativa e os históricos. Como romance eles são escritos no âmbito das convenções da ficção em que o autor tem liberdade para inventar um mundo “descomprometido com a realidade”. Como romance histórico, no entanto, eles também se conectam com os esforços coletivos contínuos de representar o passado e convidam comparações com o que já é sabido sobre o mundo histórico de outras fontes [...] Não são “ficções independentes”, elas invocam conhecimentos históricos prévios, ecoando ou contestando outros discursos sobre o passado (RIGNEY, 2001, p. 19 2001). Para Mariadele Boccardi (2009) a retrospectiva é uma das características principais do romance histórico. Cria-se um paradoxo: por um lado o escritor possui um acesso limitado ao seu objeto principal, que é o passado, por outro ele se beneficia de uma suposta onisciência por já conhecer os resultados das ações que está narrando. (BOCCARDI, 2009). A verossimilhança é outro aspecto fundamental do romance histórico. A historiadora Helen Hughes (1993) discute essa questão e como ela se constitui e funciona dentro do romance histórico a fim de promover um efeito “realista” e de identificação (e por consequência a suspensão da descrença). Ela afirma que a ficção histórica usa desses artifícios para validar um conjunto de valores transmitidos por quem o escreve. A forma como a história é colocada no romance histórico, para a autora, é um elemento importante que ajuda o leitor a “engolir” sem perceber, material ideologicamente carregado, sob a égide de que é simplesmente “como as coisas eram”. (HUGHES, 1993, p 20-25).

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Para De Groot (2009a), o principal atrativo do romance histórico como gênero é, justamente, essa dinâmica entre o “autêntico” ou factual e uma experiência/vivência que não pode ser rastreada na história. Os leitores do romance histórico habitam tanto o discurso da história quanto o da ficção e é essa relação que é crucial para o gênero. Ainda assim, é ambígua a relação dos leitores com esse passado “autêntico” presente nas obras pois ele diz respeito a algo que está além do que pode ser verificável do ponto de vista histórico. (DE GROOT, 2009a, p. 223). Esses autores também lidam com a percepção que o público leitor tem de determinado período. Essa percepção, não é única, sem dúvidas, e é fruto de uma série de discursos historiográficos e populares que acabam gerando uma expectativa do que seria a representação apropriada daquele período. A linguagem usada em um romance histórico, caso seja demasiada informal, como por exemplo o uso de linguagem obscena e gírias, é muitas vezes rechaçada pelos leitores por não passar uma “sensação real do período” (GROOT, 2009a, p. 221). Isso é especialmente verdade quando se pensa no período da antiguidade romana. O impacto causado pelas obras de Shakespeare e seu uso permanente nas escolas de países como Estados Unidos e Grã-Bretanha deu um sotaque indubitavelmente britânico a personagens gregos e romanos a ponto de representações diferentes serem repudiadas como caricaturais ou simplesmente falsas.17 Para David Lowenthal (1985) são esses anacronismos da ficção, essas percepções construídas de modo complexo a partir de uma série de representações de determinado período, que permitem ao público fazer a identificação com o passado. (LOWENTHAL, 1985, p. 228). De Groot (2009a) discorre sobre a comodificação da história, transformada em produto pronto a ser consumido e discute a irrelevância, nesses casos, da autenticidade da representação histórica, no sentido em que é a sensação ou aparência de um passado aceito que está sendo utilizado. (DE GROOT, 2009a, p. 9). Para ele, isso mostra o quanto algumas versões do passado estão cristalizadas no imaginário cultural da nossa sociedade a ponto de

17 É possível identificar alguns casos como o do seriado Spartacus (2010-2013) da rede Starz que usava de diversas palavras obscenas, inspiradas naquelas encontradas nos grafites de Pompéia, nos diálogos das personagens. Em entrevista concedida ao site Hollywood Reporter, o diretor e roteirista Steven DeKnight conta que “Até hoje as pessoas ainda chamam minha atenção pelo uso anacrônico de xingamentos no show [...]” (NEDEDOG, 2012). No filme Alexandre (2004) de Oliver Stone, o ator Colin Farell que interpreto u o rei macedônico foi duramente criticado pelo sotaque irlandês usado para interpretar Alexandre. Em entrevista ao site do jornal Metro sobre os dez anos do filme, que foi um dos maiores fracassos de bilheteria de Hollywood, Farell diz, “e talvez eu não devesse ter tido um sotaque irlandês, de acordo com os mais de 7000 comentários que eu li”. (HARDINGHAM-GILL, 2015).

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ser possível evocá-las por meio de algumas referências chave.18 O autor vai enfatizar a importância do lúdico dentro da relação com o passado pensado como produto. A habilidade de saber torna-se menos importante e até mesmo irrelevante frente a habilidade de entreter. (DE GROOT, 2009a, p. 7). Uma das formas que essa comodificação do passado toma é a do patrimônio. Boccardi (2009) defende que está em curso uma substituição da ideia de história acadêmica pela e patrimônio. Para ela existe uma obsessão pelo patrimônio que tem origem em um sentimento de nostalgia e desejo de historicizar o presente. (BOCCARDI, 2009, p. 99). Por meio do patrimônio a história é vivida e não somente aprendida. Assim, O que a indústria do patrimônio produz é, desse ponto de vista, não um item tangível de valor definido, mas sim a experiência, infinitamente reproduzível – e na verdade infinitamente reproduzida do passado cuja versão original está por definição perdida [...] Esse patrimônio é evidência de um “passado de estimação – preservado, restaurado e defendido”, atitudes que sinalizam um passado que foi consagrado na sua diferença em relação ao presente e funciona em contraste a ele. Essa reverência pelo passado se manifesta na forma de uma contemplação nostálgica. (BOCCARDI, 2009, p. 22). A dimensão nostálgica é algo que vai além do terreno literário e da narrativa do romance histórico. Ela forma um elemento significativo da cultura em geral, assim como da expressão popular do interesse no passado. Do ponto de vista político, ela tende a ser ideologicamente conservadora, pois aspira às glórias passadas, no presente, por meio da ficção histórica. Ao mesmo tempo em que projeta no passado uma sociedade sem conflitos em que cada um possuía seu devido lugar e estava contente nele (BOCCARDI, 2009, p. 13, 85), essa busca dos “bons velhos tempos” gera um sentimento de vida entre ruínas e a vontade de conservar um passado tradicional que se perdeu ou está se perdendo ao longo do caminho (HUGHES, 1993, p. 81).

1.8. Estado Nacional, identidades construídas e romance histórico Desde seu princípio, no século XIX, o romance histórico esteve intimamente ligado à construção de uma ideia de nação e estado nacional, isso em suas diversas fases de desenvolvimento. Nesse aspecto, tanto romance histórico quanto historiografia caminham

18 Em 2004, a Pepsi lançou um de seus comerciais mais famosos. Ambientado no Coliseu, traz três super cantoras pop, Britney Spears, Beyonce e Pink como gladiadoras, o comercial conta também com Enrique Iglesias no papel de Imperador, que possui para si todas a latinhas de Pepsi. Ao entrar na arena as gladiadoras/cantoras ao invés de lutarem passam a cantar a música “We Will Rock You” da banda Queen, misturando aí as arenas antiga e moderna.

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lado a lado nos seus interesses e mudanças temáticas. Ambas estão condicionadas às questões, disputas e angústias de sua própria época. Novamente junto à historiografia, o romance histórico contribuiu significativamente ao desenvolvimento de identidades coletivas (nacionais) e também de uma identidade pan-europeia. (HUGHES, 1993, p. 76). Essa relação entre romance histórico e a construção de identidades nacionais se dá dentro de vários temas diferentes: tanto na ideia de construção de um império, quanto na ideia de decadência e dissolução do Estado ou ainda da identidade nacional como forma de construção do sujeito. Essas escolhas temáticas possuem outras consequências diretas que são fundamentais na produção de uma subjetividade e de uma identidade nacional. É o processo de confronto com o que é considerado “estrangeiro” ou o “outro” tanto no passado quanto no presente (BOCCARDI, 2009, p.101). Isso acontece a partir de um processo de diferenciação e exclusão por meio de uma geografia imaginada do passado, de um senso de identidade criado negativamente (a ideia do nós contra eles).19 A percepção do declínio da nação é um ponto essencial da criação desse tipo de romance histórico quando o passado se torna cada vez mais atrativo se comparado ao presente visto como decadente e perdido. Por meio dessas narrativas se produz a “legitimação de uma forma de governo do presente mostrada como o resultado final de um grande desenvolvimento histórico” (BOCCARDI, 2009, p. 25)20. Esse tipo de narrativa não confronta as questões problemáticas do passado nem enfatiza as relações de poder existentes nele mas promove uma higienização do passado em que essas disputas são suprimidas ou então justificadas apenas como algo

19 Quem somos nós no passado? Como ocorre essa identificação? Porque nos identificamos com Leônidas e não com Xerxes, ou melhor porque habitantes de determinada região, como o Oriente Médio são identificados com o persa? 20 Um exemplo bastante explícito disso está no livro “Percy Jackson e o ladrão de raios”, de Rick Riordan. Na história, que se passa no EUA, Percy, um adolescente americano comum descobre ser, na verdade, filho de Poseidon e uma mortal. O trecho a seguir ocorre no momento em que Percy descobre sua origem divina: - Você quer dizer que os deuses gregos estão aqui? Tipo... nos Estados Unidos? - Bem, certamente. Os deuses mudam com o coração do Ocidente. – - O quê? - Vamos, Percy. O que vocês chamam de ―civilização ocidental. Você acha que é apenas um conceito abstrato? Não, é uma força viva. Uma consciência coletiva que ardeu brilhantemente por milhares de anos. Os deuses são parte dela. Você pode até dizer que eles são sua fonte ou, pelo menos, que estão ligados tão intimamente a ela que possivelmente não vão deixar de existir, a não ser que toda a civilização ocidental seja destruída. A chama começou na Grécia. Então, como você bem sabe... ou espero que saiba, já que foi aprovado no meu curso... o coração da chama se mudou para Roma, e assim fizeram os deuses [...] - Eu o desafio a encontrar qualquer cidade americana onde os olimpianos não estejam proeminentes expostos em vários locais. Goste ou não – e acredite, uma porção de gente não gostava muito de Roma também -, os Estados Unidos são agora o coração da chama. São a grande potência do Ocidente. E, portanto, o Olimpo é aqui. E nós estamos aqui.

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“comum naquela época”. Elas se furtam assim, de promover debates acerca de violências e discriminações existentes no período histórico retratado e que em grande parte são ainda problemáticas no presente.21 (HUGHES, 1993, 50-67). Para Lowenthal (1985), dessa forma “o passado deixa de ser um país estrangeiro e, depois de tratado e higienizado, se transforma em nosso próprio país”. (LOWENTHAL, 1985, p. 229).

1.9. Questões de Gênero: Romance Histórico “sério” e romance histórico “para mulheres” (Novel x Romance) A questão da desvalorização do Romance Histórico como literatura está relacionada com seu caráter normalmente associado à “literatura de massa” em oposição à “alta literatura”. Muitos estudos do romance histórico tentam negar essa especificidade do gênero para provar que essas narrativas possuem seu valor e merecem ser analisadas (BOCCARDI, 2009, p. 29). Ao longo de dois séculos o romance histórico passou por momentos de maior ou menor popularidade tendo experimentado após a Segunda Guerra Mundial uma “decadência” generalizada (BOCCARDI, 2009, p. 30). No entanto, o romance histórico sobreviveu e nunca perdeu sua popularidade dentro do gênero de “romance para mulheres”, e por causa dessa associação foi e ainda é desvalorizado (RADWAY, 1991). Nesse sentido é comum que estudos sobre o romance histórico tentem justificar e diferenciar seu objeto de estudo dessas obras ditas “sem valor literário” e na tentativa de tornar o gênero “respeitável” é feita uma divisão entre o romance histórico “de valor” e aquele associado ao gênero do romance para mulheres. Brian Hamnet (2011),22 notadamente, procura fazer tal distinção como forma de legitimar o estudo do romance histórico como obra literária “séria”. O autor afirma que “A literatura histórica romântica não contempla um processo de esclarecimento ou edificante do qual o leitor pode se beneficiar do ponto de vista educacional ou moral” (HAMMET, 2011, p. 8). Em artigo sobre o tema, Perry Anderson

21 Um exemplo interessante é o da série Game of Thrones, de George R. R. Martin, ainda que não se trate de um romance histórico, mas de um livro de fantasia com ambientação histórica inspirada na Idade Média. O livro e sua versão televisiva esteve em meio a polêmicas e debates em torno da representação feminina e da violência à qual todas as mulheres da série estavam submetidas. A justificativa dada foi simplesmente a de afirmar que não poderia ser diferente pois naquela época era assim que as mulheres eram tratadas. Vê -se que a mera ambientação histórica é suficiente para justificar uma série de representações problemáticas, da nossa sociedade, mas que se furtam a fazer tal discussão amparados por um discurso de “autenticidade histórica”. 22 O que é curioso já que nesse mesmo livro, Hamnet (2011) questiona o fato dos departamentos de história e literatura desprezarem o gênero como “menor”.

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(2011), também critica enfaticamente esse tipo de romance histórico chegando inclusive a descrevê-los como “lixo” (ANDERSON, 2011). Foi a partir dos anos 1930 e principalmente depois dos anos 1950 que o romance histórico passou a ser predominantemente um gênero feminino, o que nunca havia acontecido antes. Para Hughes (1993), o foco principal desses romances para as mulheres era a relação entre os sexos e o papel da mulher na sociedade. (HUGHES, 1993, p. 9). Na década de 1980, Janice Radway (1991) fez um estudo pioneiro sobre o romance e suas leitoras, participantes de um grupo de leitura. Nessa pesquisa Radway (1991) descobriu que a preferência daquele grupo era pelos romances históricos. Essa preferência confirma a sobrevivência do romance histórico dentro desse gênero ao longo do século XX. Entre as justificativas dadas pelas leitoras estaria no fato dessas histórias serem mais explícitas que as demais, além de suas heroínas serem mais independentes e rebeldes. (RADWAY, 1991, p. 56). Outra característica interessante é que as leitoras também usavam o caráter histórico dessas narrativas como forma de legitimar a leitura de romances algo extremamente criticado pela sociedade em geral e também pela família dessas mulheres como algo fútil23. Segundo uma das leitoras “você não sente como se estivesse tendo uma lição de história, mas, em algum lugar ali, você teve” (RADWAY, 1991, p. 107). A autora termina citando a reinvindicação feita por Carol Thurthon, também em estudo pioneiro sobre os romances femininos, que os “romances históricos de bolso representavam heróis e heroínas andróginos, desafiavam o valor da masculinidade tradicional e davam novas possibilidades para as mulheres” (RADWAY, 1991, p. 219). Jerome de Groot (2009b) afirma que os livros de aventura, que tem os homens como público alvo, são menos problematizadores que aqueles voltados para mulheres. Assim, A ficção histórica voltada para mulheres também está mais interessada em desafiar e problematizar, em especial por conta da repressão sofrida pelas mulheres, enquanto os romances históricos masculinos podem articular uma masculinidade marginalizada pela classe social, mas que é, ainda assim, bastante articulada, detentora de agência e da capacidade de se expressar. (DE GROOT, 2009b). O autor também nota que existe uma ênfase muito maior nesse tipo de literatura à questão de autenticidade e preocupação com detalhes históricos (DE GROOT, 2009b). Ainda que considerados como “literatura de massa” essas obras não sofrem com os ataques

23 Esse tipo de reação se repete entre todos os produtos voltados ou associados ao público feminino como acontece na música, na televisão e no cinema.

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e a rejeição que a literatura romântica sofre em geral nos meios acadêmicos e fora dele. Boccardi (2009) afirma dentro desse contexto como o romance e a tragédia são modos narrativos dos vencidos e que o realismo é um luxo disponível somente aos vencedores: o passado nesses livros é menos problematizado, pois o presente de seus protagonistas também o são. (BOCCARDI, 2009, p. 35). Para concluir fica esse trecho de Amy Elias, citado por Hayden White (2005) que faz uma reflexão sobre o ressurgimento com força não só do romance histórico, mas de diversas formas de ficção histórica. Para ela: O gênero do romance histórico voltou, foi reavivado e ressurgiu pela mesma razão que diversos outros modos de escrita e gêneros reaparecem de tempos em tempos: como uma resposta simbólica a situações históricas que tornam formas e métodos de representação, explicação e conhecimento canônicos irrelevantes. (WHITE, 2005, p 152). White (2005) também afirma que “não é possível mudar o conteúdo e acima de tudo os valores de um dado discurso sem mudar sua forma, no caso ‘a História’”. (WHITE, 2005, p. 154). Como isso se relaciona com a questão da pós-verdade e nos youtubers que dão “aula de história”? Qual o impacto das fanfictions24 ou livros produzidos de forma independente e que podem ser comercializados de forma direta em plataformas virtuais como a Amazon? Existe uma pulverização inédita na produção de conteúdo e a história e o passado não escapam dessa pulverização. Como os historiadores devem lidar com essas narrativas e como o debate histórico não deve se furtar de fazer esse tipo de análise sob o risco de ser engolido por essa onda?

24 Fanfictions são histórias escritas por fãs que tem como base original os personagens, cenários ou mundo de outras obras literárias, de cinema ou de televisão, sem vínculo com o produtor original do conteúdo.

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Capítulo 2: Roma Antiga no romance histórico – uma análise das obras

2.1. Autores e Séries:

Robert Harris

Robert Harris é um autor britânico, nascido em 1957, na Inglaterra, em família da classe operária. Em Cambridge, cursou literatura inglesa e se tornou jornalista e comentarista político na BBC e, depois, editor político no “The Observer”. Esteve envolvido com o partido trabalhista, especialmente com a ala de Tony Blair do qual foi amigo pessoal, tendo se afastado posteriormente com a indicação de Jeremy Corbyn como presidente do partido. Harris obteve sucesso estrondoso em 1992 com a publicação de seu primeiro romance chamado “Fatherland”, , vendendo mais de um milhão de livros. O livro narra uma história contra factual na qual o autor imagina o que teria acontecido caso a Alemanha nazista tivesse sido vitoriosa na 2a Guerra Mundial. A esse se seguiram outras duas obras: “Enigma” (1995) e “Archangel” (1998), romances ambientados na Inglaterra e na Rússia respectivamente. Segundo Harris, após ter escrito três livros que se passavam nas potências participantes da Segunda Guerra Mundial, seu quarto livro seria dedicado aos Estados Unidos. Em 2003, escreveu seu primeiro romance histórico ambientado na antiguidade romana, chamado “Pompeii”. A ideia de aventurar-se na escrita desse período deu-se após Harris perceber, segundo ele, “que o romance americano, no qual estava trabalhando, sobre uma “potência sob ameaça”, poderia se passar de forma mais produtiva em Roma antiga”. (THEGUARDIAN.COM, 2018). O autor afirma que, ao ler sobre a cidade de Pompéia, decidiu que poderia transformá-la numa alegoria sobre o mundo moderno. Isso vai influenciá-lo sobremaneira na trilogia ciceroniana, que é aqui objeto de estudo.

Trilogia de Cícero

Em 2006, após a publicação de Pompéia, Harris se volta para a escrita da trilogia sobre a vida de Cícero. O interesse em escrever sobre o período é o mesmo que o levou a escrever a obra anterior. Segundo o autor, foi a partir da leitura do livro “”, de Tom

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Holland25, que percebeu como poderia “transpor o que achava interessante na política, e que na Inglaterra, era provinciano demais para o mundo antigo. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 18:10). Fascinado pela política, Harris afirma que o objetivo de escrever a trilogia romana era a de universalizar a política e seus conceitos, para que fosse possível que alguém nos EUA ou em Oxford tivesse o mesmo entendimento sobre eles e se identificasse com sua narrativa26. Para protagonizar a obra, Harris escolhe Cícero, que de acordo com o autor seria uma figura simpática ao público moderno, pois “veio do nada, tinha uma inteligência ímpar, compaixão e construiu seu próprio caminho”27. A obra divide-se em três volumes28. O primeiro livro da série, “Imperium” (2006), narra a ascensão de Cícero, primeiro como advogado no fórum com casos de grande repercussão, como o da acusação contra o ex- governador da Sicília, Caio Verre, acusado de corrupção e culmina na eleição de Cícero para cônsul, em 63 a.C. No segundo livro, “Lustrum” (2009), Cícero é cônsul e precisa lidar com o maior desafio de sua carreira, o que veio a ser chamado de conspiração de Catilina. A derrota aplicada sobre Catilina e seus apoiadores é vista como o apogeu da carreira do

25 A influência de Holland (2003) na obra é grande, especialmente na defesa dessa relação entre “fim da República Romana” e uma ansiedade em torno da aparente decadência do Ocidente e de suas democracias (representadas pela república americana). Essa ansiedade é que circunscreve ambas as obras e os objetos da qual elas tratam, seja o cruzamento do Rubicão pelas tropas de César e a consequente guerra civil; seja a vida de Cícero. Como fica claro nesse trecho: “With fascism, a long tradition in Western politics reached a hideous climax, and then expired. Mussolini was the last world leader to be inspired by the example of ancient Rome. The fascists, of course, had thrilled to its cruelty, its swagger, its steel, but nowadays even its noblest ideals, the ideals of active citizenship that once so moved Thomas Jefferson, have passed out of fashion. Too stern, too humourless, too redolent of cold showers. Nothing, in our aggressively postmodern age, could be more of a turn-off than the classical. Hero-worshipping the Romans is just so nineteenth century. We have been liberated, as John Updike once put it, ‘from all those oppressive old Roman values’. No longer, as they were for centuries, are they regarded as a mainspring of our modern civic rights. Few pause to wonder why, in a continent unimagined by the ancients, a second Senate should sit upon a second Capitol Hill. The Parthenon may still gleam effulgent in our imaginings, but the Forum glimmers barely at all. And yet – we flatter ourselves, in the democracies of the West, if we trace our roots back to Athens alone. We are also, for good as well as ill, the heirs of the Roman Republic. Had the title not already been taken, I would have called this book Citizens – for they are its protagonists, and the tragedy of the Republic’s collapse is theirs. The Roman people too, in the end, grew tired of antique virtues, preferring the comforts of easy slavery and peace. Rather bread and circuses than endless internecine wars. As the Romans themselves recognised, their freedom had contained the seeds of its own ruin, a reflection sufficient to inspire much gloomy moralising under the rule of a Nero or a Domitian. Nor, in the centuries since, has it ever lost its power to unsettle”. (HOLLAND, 2003, p. 17). 26 Essa afirmação já preconiza alguns dos pontos tratados posteriormente sobre o que o autor entende por universal, como os exemplos dados de Oxford e dos EUA. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 18:10). 27 Entrevista com Robert Harris sobre seu livro Imperium. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 05:50). A ideia de Cícero como um outsider e self-made man é fundamental para entender a obra de Harris e sua visão de antiguidade romana. O autor afirma em seu livro Lustrum, “What are the only weapons I possess, Tiro?' he asked me, and then he answered his own question. 'These/ he said, gesturing to his books. 'Words. Caesar and Pompey have their soldiers, Crassus his wealth, Clodius his bullies on the street. My only legions are my words. By language I rose, and by language I shall survive”. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 277). 28 Todos os livros foram traduzidos para o português e publicados pela editora Record.

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político. A ação de executar cidadãos romanos sem julgamento é posteriormente usada por seus inimigos para atacá-lo. O livro termina com Cícero condenado ao exílio e sem esperanças de retorno. No terceiro volume, “Dictator” (2015), ele ainda se encontra exilado e na pior fase de sua vida. O livro narra as tentativas de Cícero de voltar a ter relevância política enquanto vê a república sendo destruída por disputas internas e pela guerra civil entre Júlio César e Pompeu. Por fim, termina com Cícero tendo seu último momento de glória nos discursos feitos contra Marco Antonio e na sequência sua proscrição e morte. Harris escolhe Tiro, escravo de Cícero e seu secretário, para ser o narrador e contar a história. A trilogia emula os três volumes da biografia de Cícero, que teriam sido escritas por Tiro na Antiguidade e posteriormente perdidas. Para o autor, a necessidade de se ter um narrador em terceira pessoa, e não o próprio Cícero contando sua história, é de que “os gênios são melhor observados a partir de uma perspectiva externa”. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 12:40). O autor também faz um paralelo entre a relação de Cícero e Tiro com a de Sherlock Holmes e o Doutor Watson. Harris também admite que a falta de informações sobre o escravo de Cícero tornou-se uma grande vantagem na hora de criar a história, pois “é alguém que estaria plausivelmente ao lado do político romano em todos os momentos, seja no fórum, seja dentro de casa”. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 18:10). O autor celebra ao mesmo tempo a falta de informações sobre Tiro e a profusão delas no caso de Cícero, sem se debruçar ou questionar sobre os significados dessa disparidade. Isso é um ponto essencial para entender a visão que o autor tem da escravidão e como ele abordará esta questão ao longo da narrativa. Afinal, a escravidão é um dos pontos de tensão mais significativos quando se trata de fazer paralelos entre Roma antiga e as sociedades modernas, algo que Harris deixa claro ser seu objetivo com a trilogia. Isso será tratado mais a fundo quando for discutida a representação da escravidão nessas ficções históricas. Os paralelos feitos entre antiguidade e mundo contemporâneo são inúmeros e o próprio autor faz questão de deixá-los evidentes. Harris acredita que o escritor de romance histórico tem tanto interesse no mundo antigo quanto os romancistas contemporâneos. Para o autor, olha-se para o passado “como um espelho para o presente e para o mundo em que vivemos”. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 48:00). A história de Cícero e da queda da República Romana, segundo o autor, torna-se então um sinal de alerta para as democracias europeias e o império americano. O livro adquire então dois aspectos, o nostálgico e o educativo. Ao responder à pergunta de um leitor sobre a relação entre a política na Roma Antiga e a atmosfera política atual, Harris responde que “a trilogia trata da questão do poder

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e de sua natureza destrutiva (por isso precisa ser dividido)”. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 29:30). Para ele, esse tema é atemporal e, da mesma forma, ele insiste na universalidade da experiência romana. O primeiro volume do livro foi escrito em 2006, mas, para o autor, toda a obra é mais relevante atualmente do que na época em que foi escrita. (THEGUARDIAN.COM, 2018). Essa ansiedade de estar vivendo em uma sociedade em colapso se fortalece. Harris faz um paralelo com a sociedade britânica ocidental e afirma que hoje as pessoas sentem que a democracia não é tão sólida quanto era há vinte ou trinta anos atrás. Para ele, as sociedades ocidentais estão passando por um momento de transição e não estão sendo capazes de lidar com diversas pressões, sejam elas tecnológicas, sejam elas migratórias29. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 33:11). Os paralelos entre a vida de Cícero, a decadência da República Romana, a sensação de perda de poder e importância do Ocidente, na visão de Harris, juntam-se para dar vida à narrativa. Isso acontece, porque Harris vê no passado romano a possibilidade de tratar de todos esses temas de forma “desnudada”. Sendo assim, tudo se resume ao “mármore branco e togas”, ou seja, vemos somente as veias e os músculos30. Para o autor, olhando para Roma seríamos capazes de ver “a realidade como ela é” e, portanto, na queda da República Romana vemos nossa própria queda. A pergunta formulada por Harris, que segundo ele foi colocada pela República Romana, se trata de saber se “é possível que um sistema eleitoral, que foi criado tendo como objeto um cidadão/milícia e uma cidade-estado, continue funcionando quando se é um império global com exércitos gigantescos e dinheiro rolando solto para dentro do sistema democrático? Esse sistema pode sobreviver?” (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 34:10).

Steven Saylor

29 Holland (2003), afirma em seu livro “Rubicon” algo similar: “The Roman people too, in the end, grew tired of antique virtues, preferring the comforts of easy slavery and peace. Rather bread and circuses than endless internecine wars. As the Romans themselves recognised, their freedom had contained the seeds of its own ruin”. (HOLLAND, 2003, p. 17). 30 Essa noção de Roma, descrita por Harris, de mármore branco e imponente, reaparecerá na trilogia de Cícero. Entrevista com Robert Harris sobre seu livro Imperium. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 30:50).

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O autor Steven Saylor é americano, nascido no Texas, em 1956. Graduou-se em história pela universidade de Austin, também no Texas. Segundo o autor, ele desejava ser escritor desde muito cedo, quando participou de algumas competições de escrita com sucesso. Saylor, afirma ter sido um voraz consumidor de livros sobre o passado, sejam eles ficções históricas ou não. No entanto, conta que sua principal influência se deu por meio dos vários filmes históricos da era de ouro de Hollywood, dos quais era fã quando criança e adolescente31. Clássicos cinemáticos como Ben-Hur (1959), Espártaco (1960) e especialmente Cleópatra (1963) foram fundamentais para, inicialmente, moldar a visão de Saylor sobre Roma. Logo após terminar a faculdade, vivendo em São Francisco, Saylor passou muito tempo como ativista em grupos de direitos LGBT, tendo trabalhado e escrito para diversas revistas voltadas a esse público durante esse tempo. Nessa época, também escreveu diversos contos eróticos sob o pseudônimo de Aaron Travis. Um ávido leitor de histórias de detetive e mistério, voltou de uma viagem à Roma com a vontade de ler uma dessas histórias que fosse ambientada na Roma Antiga. Não encontrou nenhuma obra desse tipo e, ao ler o livro “Cicero’s Murder Trials”,do historiador Michael Grant sobre os processos envolvendo o assassinato em que Cícero atuou como advogado, decidiu ele mesmo faze-lo. (WRITINGTHEPASTBLOG.BLOGSPOT.COM, 2013).

Roma Sub Rosa

Saylor publicou em 1992, o livro “” (Sangue Romano), primeiro volume do que viria a ser a serie Roma Sub Rosa, que conta atualmente com treze volumes32. A princípio, a ideia era fazer de Cícero uma espécie de Sherlock Holmes e Tiro, seu escravo e secretário, de Dr. Watson. Saylor conta que desistiu de seguir esse caminho, pois percebeu, após ter escrito sessenta e oito páginas da história, que gostaria de ter uma distância maior em relação à Cícero33. Foi assim que nasceu a personagem de Gordiano, o Descobridor. Gordiano é um plebeu romano, que vive na casa herdada de seu pai, no monte Esquilino. Ele trabalha descobrindo “a verdade” e atua como a versão romana do detetive.

31 A influência do cinema na sua obra é grande e até hoje em seu site o autor tem um espaço em que cataloga todos os filmes já feitos sobre antiguidade clássica. 32 O último livro da série, “The Throne of Caesar”, foi publicado em 2018. 33 STEVENSAYLOR.COM. Roman Blood: How the Novel Came to Be Written (and Published). (2016).

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Dessa forma, Gordiano tem contato com diversas figuras e eventos que povoaram o período do final da República Romana. É interessante notar que, pelo menos três dos quatro autores das séries trabalhadas, citam Sherlock Holmes como influência. Na série Roma Sub Rosa isso fica mais explícito, por seguir o gênero de detetive. Harris também cita em entrevistas a dinâmica Sherlock/Watson de seus personagens Cícero/Tiro. Inclusive, o fato de Tiro ser o narrador também aproxima as duas obras. O autor Max Mallmann também cita a influência sherlockiana no enredo do primeiro livro e a dinâmica dos protagonistas Dolens e Nepos como similar à do detetive e médico britânico. Ao contrário de Harris, Saylor parece ter percebido as problemáticas de uma narrativa desse tipo tendo Cícero e Tiro como protagonistas e, com isso, precisar utilizar o ponto de vista deles Por isso mesmo, decide criar seu próprio personagem original. Para o autor, escrever sobre o passado é uma forma de escapismo. Saylor afirma que passar esse tempo no passado é reconfortante, já que é comum que o presente o deixe depressivo. Ainda assim, o autor afirma que o passado não é realmente um lugar melhor que o presente, muito pelo contrário. Tem em mente que, ele e seu marido, não estariam melhor vivendo em outras eras e cita a Alemanha nazista como um exemplo. Essa posição, de alguém que pertence a um grupo excluído da sociedade, faz com que Saylor tenha uma visão que rompe com a mera nostalgia ao se olhar para trás. Ao ser perguntado sobre o que escreveria em seu epitáfio, ele responde com uma definição do que entende ser o romance histórico: “ele escreveu sobre seu tempo ao escrever sobre os tempos antigos”. (SAYLOR. Blood of antiquity, 2007). É interessante que, tanto Saylor quanto os outros autores aqui tratados enfatizam a questão de estarem tão ou mais preocupados com o presente que com o passado que pretendem narrar. O autor afirma que ele está “processando sua própria psique e os tempos em que vive ao olhar para o passado, mas está fazendo isso por meio de espelhos”. (SAYLOR. Blood of antiquity, 2007). A analogia feita por Saylor com os espelhos não é única; Harris, como citado anteriormente, usa essa mesma comparação para descrever seu trabalho. As interpretações dessa metáfora, no entanto, são diversas. Para Harris, olha-se para o passado como um espelho para os dias presentes. Entendido dessa maneira, o passado se torna um modelo e inspiração para as gerações atuais. Ao contrário, em Saylor, os espelhos são usados como uma metáfora de um jogo de ilusões, que partem do presente para o passado e se confundem a partir disso. É uma diferença sutil, mas que diz muito sobre a visão que cada autor tem do passado e da sua relação com o presente, e isso certamente se fará perceber nas narrativas que escolhem escrever.

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Em “Roman Blood” (Sangue Romano), Gordiano é contratado por Cícero para desvendar o caso da morte de Sexto Róscio. O filho de Róscio estava sendo acusado do assassinato do próprio pai e Cícero era responsável por sua defesa. Ao investigar a morte de Róscio, Gordiano descobre que o caso envolve questões bem mais complexas, como as proscrições do ditador Sila. Esse é o primeiro grande caso de Cícero. Em “Arms of Nemesis” (Os Braços de Nemesis), Gordiano vai até Baiae, no sul da Itália, para resolver o mistério de quem matou o proprietário de uma das vilas, Lúcio Licínio, primo de Crasso, e, assim, salvar seus escravos de serem mortos. A história tem como pano de fundo a revolta de Spartacus, ocorrida no ano 72 a.C. Em “Catilina’s Riddle” (O Enigma de Catilina), Gordiano está vivendo no campo, em uma vila rural herdada de um amigo proeminente em Roma. A história se passa durante o consulado de Cícero e tem como tema principal os eventos conhecidos como a conjuração de Catilina. Em “The Venus Throw” (O lance de Vênus), Gordiano se envolve no caso do assassinato de Dio de Alexandria, um dos embaixadores egípcios mandados a Roma para resolver a questão sucessória egípcia. O rei Ptolomeu Aulete, após ter sido expulso do trono egípcio, foi até Roma pedir apoio militar para voltar ao poder. A embaixada enviada de Alexandria pretendia impedir essa ajuda. Gordiano se envolve mais uma vez em um caso de Cícero, o da acusação de Clódia Pulchra contra Marco Célio Rufu, o qual estaria envolvido na morte de Dio e na tentativa de envenená-la. No “The Judgment of Caesar” (O julgamento de César), Gordiano, após a batalha de Farsália entre Pompeu e César, está de volta ao Egito, terra natal de sua esposa Bethesda, que está doente. Lá, ele acaba se envolvendo na guerra civil entre os monarcas, e irmãos, Cleópatra e Ptolomeu. Meto, filho de Gordiano e próximo de César, é acusado de tentar envenenar o general, que também está em Alexandria. Gordiano precisa resolver o mistério de quem foi o responsável por tentar matar César.

Max Mallmann

Max Mallmann, é brasileiro, nascido em 1968, em Porto Alegre, mas vivia no Rio de Janeiro. Cursou Letras por apenas um semestre na UFRGS e, nesta mesma universidade, se formou em direito, apesar de nunca ter exercido a profissão. Antes da publicação da série de romances históricos sobre Roma, Mallmann já era um autor

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reconhecido, com quatro livros publicados. O primeiro livro, “Confissão do Minotauro” (1989), foi um dos ganhadores do prêmio “Nova literatura” do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul. O segundo trabalho, “Mundo bizarro” (1996), foi selecionado pelo Fumproarte, da prefeitura de Porto Alegre, e ganhou o prêmio Açorianos de melhor romance publicado no Rio Grande do Sul. O terceiro, “Síndrome de quimera” (2000), foi um dos dez finalistas do prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e “Zigurate: uma Fábula babélica” (2003), o quarto livro. Mallmann também atuou como roteirista de TV e escreveu para diversos programas da Rede Globo, como nas novelas: Coração de Estudante (2002), Malhação e nos seriados Carga Pesada e A grande Família. Em 2015, o autor foi diagnosticado com um câncer de pulmão e veio a falecer em 2016. Mallmann diz que sempre se interessou por história antiga, mas foi após os eventos de 11/09, com o ataque às torres gêmeas em Nova York, que começou a ler mais sistematicamente sobre o assunto. O autor faz uma observação interessante a esse respeito. Para ele, após os atentados, muita gente passou a se interessar pela antiguidade greco- romana, por fazerem uma analogia entre os dois impérios, romano e americano e as invasões bárbaras. Foi assim que surgiu a ideia de escrever algo que se passasse nesse período. (TV SENADO, tempo:2:00). Além disso, Mallmann observa que quanto mais lia sobre Roma Antiga, mais se diluía a associação feita entre império romano e Estado Unidos e que a queda do primeiro seria um alerta para o segundo. A série, chamada de Desiderius Dolens em função do nome do protagonista possui dois volumes, “O Centésimo em Roma” (2010) e “As Mil Mortes de César” (2014), o terceiro livro da série se chamaria “O Filho da Loba”, porém ficou incompleto devido à morte do autor. A narrativa conta a história de um centurião, chamado Dolens, antiherói e personagem principal do livro, que tem como objetivo subir na vida e se tornar cavaleiro a todo custoEla é ambientada no chamado “ano dos quatro imperadores”, período conturbado da história romana marcado pelas disputas pelo poder, após o suicídio de Nero. O autor Max Mallmann diz que adotou como protagonista um centurião por ser o mais próximo que conseguiu chegar de um homem comum da classe média. Ao ser perguntado sobre a criação dos personagens históricos, que na narrativa parecem muito reais, o autor vai responder que foi por meio da pesquisa em documentos antigos, como Suetônio, que encontrou detalhes, fofocas e características que dão humanidade a esses personagens. Faz, porém, uma observação ao afirmar que, apesar de tudo, sempre tem em mente que esse é “o seu Nero” e não “o Nero”. (TV SENADO, tempo:

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5:50). Isso é uma característica importante da narrativa do autor, que faz questão de deixar claro que os livros são uma versão do passado escritos no presente e apresentam uma das inúmeras possibilidades de serem representados. As semelhanças entre a política romana e a brasileira são evidenciadas. Para o autor os conchavos políticos e as traições são muito parecidas entre a política contemporânea e a romana. Segundo ele, nosso mundo está mais próximo do romano do que o medieval, como por exemplo, na complexidade social e no jogo de aparências. Mallmann afirma ter investido nessas similaridades para chegar até Roma não pelo que ela tem de exótico e distante, mas pelo que ela tem de próximo. A personagem de Dolens, que é protagonista da série, vê sua própria sociedade com senso de ironia, o que dá o tom do livro e de toda a narrativa e, apesar de não estar no topo dela, está sempre no meio dos eventos mais decisivos de seu tempo. Os personagens são, de longe, a parte mais interessante da história: constroem-se aos poucos, apesar de serem muitos. Nas páginas dos livros de Mallmann vemos surgir figuras históricas que são geralmente ignoradas ou tratadas como meros apêndices nas aventuras e loucuras das “grandes personagens”. Mallmann também traz uma certa humanidade a personagens vilificados pela história – antiga e moderna – como Nero e os três imperadores que se seguiram – Galba, Otho, Vitélio. Sem transformá-los em heróis, mas indo além da caricatura que se tornaram.

Kate Quinn

A autora Kate Quinn, nascida em 1981, na Califórnia, se graduou e fez o mestrado em canto lírico pela Boston University. A paixão pela história viria desde a infância, quando a mãe de Quinn, formada em história, contava para a autora, antes de ir dormir, os feitos de Júlio César e Alexandre o Grande, ao invés dos contos de fadas tradicionais. Tornou-se uma autora de best-sellers, tendo já publicado mais de dez livros, todos do gênero de ficção histórica, ainda que nem todos se passem na Antiguidade. O que une as histórias de Quinn é o interesse em olhar para o passado por meio de personagens femininas e entender suas experiências históricas, sejam elas baseadas em pessoas reais, sejam personagens fictícias, que representem as mulheres da época. Ainda no primeiro ano de faculdade, escreveu seu primeiro romance, que viria a ser o volume inaugural da série “The Empress of Rome” (A Imperatriz de Roma).

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“I was a freshman in college when I wrote what was to become my first published book. I was 3000 miles away from home; I knew no one; so I escaped into ancient Rome instead.” (KHAN, 2013). Em 2010 foi publicado o livro “Mistress of Rome” (A Concubina de Roma) e no ano seguinte sua prequel chamada “Daughters of Rome” (As Filhas de Roma), seguidos de “Empress of Seven Hills” (Imperatriz das Sete Colinas) (2012) e “Lady of the Eternal City” (Senhora da Cidade Eterna) (2015). Para Quinn, que diz ter a história como uma de suas paixões, a literatura é uma forma de dividir com o público esta paixão. Para ela, muita gente cresce pensando que história é algo chato e nada além de listas com datas, nomes e lugares. A autora frisa que espera que seus livros mostrem a vida e a humanidade que existiram no passado. Quer trazer a história com reviravoltas irreverentes na trama, para fazer o público rir e chorar. (KATEQUINNAUTHOR.COM). Quinn, assim como os outros autores, ao falar do interesse pelo passado romano, coloca-o em termos de sua proximidade com as sociedades da qual fazem parte. A autora afirma que um dos motivos de escolher Roma Antiga como cenário para seu romance é que ela se encontra ao mesmo tempo distante no tempo, porém próxima culturalmente. E também repete, como também Mallmann o fez, a ideia de que a antiguidade romana é mais familiar para ela e seus leitores do que a idade média. Quinn afirma ainda que uma das funções de um bom romance histórico é aproximar o leitor com o passado, como se tirasse um véu de sua frente. Para a autora, o importancia da ficção é que esta permite enxergar a humanidade das pessoas que viveram no passado, o que muitas vezes é difícil de ser ver na história acadêmica. (MORTON, 2015). Um desses casos é o relacionado às mulheres, que na maioria das vezes, são deixadas de fora do registro histórico e quando aparecem é algo excepcional. Quinn percebe aí uma oportunidade de desenvolver essas figuras históricas e trazê-las novamente para o passado de onde estavam excluídas. Há um ponto interessante sobre a obra de Quinn. Ela não foi publicada por nenhuma editora brasileira, no entanto, encontra-se disponível em português na internet. Existe uma comunidade dedicada a disponibilizar e traduzir livros de romance, que tem o público feminino como alvo e que não estejam em português. O livro de Kate Quinn, “Mistress of Rome”, traduzido como “A Concubina de Roma”, já tem mais de 37000 visualizações. O site dessa comunidade se chama “Multiajuda Romances” e é possível acessá-lo em https://multiajudaromances.com.br. É importante mostrar como essas comunidades se estabelecem para além das instituições oficiais, disponibilizando volumes

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e obras que podem não ser vistos como interessantes pelas editoras, mas possuem um público organizado para ter acesso ao tipo de literatura que os interessa.

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2.2. Questões Sociais Um dos aspectos muito presentes em todas as obras analisadas é o que foi chamado aqui de “questões sociais”. Isto é, a forma com que as diferenças sociais da sociedade romana e entre seus personagens foram tratadas e representadas pelas obras34. A partir dessa caracterização é possível notar como surgem diferentes Romas e diferentes interpretações do legado deixado por ela às nossas sociedades. Assim, as versões de Roma, aceitas ou não, dependem menos da acuidade com que tratam as fontes e mais com o discurso que geram e reproduzem sobre a mesma.

Robert Harris

Começando por Robert Harris, a característica definidora de seu personagem central, Cícero, e que embasará toda narrativa do livro, é a visão que tem do político romano como “self made man” e “outsider” da política romana. É também a forma com que o autor entende Cícero como personificando as qualidades maiores e ideais da sociedade romana, que naquele momento apresenta os últimos sinais de decadência. Em Imperium, Cícero surge como outsider da política romana, que, sem padrinhos e alianças políticas, luta contra o “establishment” da república para conseguir seu espaço, unicamente por meio de sua capacidade35. Desde o início da narrativa se estabelece a sensação de “Cícero contra o mundo”, um cidadão solitário na missão de salvar a república, sempre se negando a tornar- se uma criatura de Crasso, Pompeu e posteriormente César. Para Harris é fundamental estabelecer Cícero como alguém “independente das politicagens romanas”, como se vê no trecho em que ele decide processar Caio Verres36, indo contra o desejo de toda a aristocracia romana e também de Pompeu, do qual tenta, sem sucesso, obter apoio na empreitada: “Come on!” he said with a smile. “Why the long faces? I have not lost yet! And I do not believe I shall lose, either. I had a visit from the Sicilians this morning. They have gathered the most damning testimony against Verres, have they not, Tiro? We have it under lock and key downstairs. And when we do win— think of it! I defeat Hortensius in open court, and all this ‘second-best advocate’ nonsense is finished forever. I assume the rank of

34 Ainda que a questão da escravidão seja também de classe por ter aspectos específicos de abordagem será tratada num item próprio. 35 Novamente citando Tom Holland (2003), ele afirma que o público precisa entender que diferentemente da aristocracia Cícero era um “parvenue” e que só possuía sua retórica como forma de se destacar. Entrevista de Robert Harris a Dr. Peter Jones: A Cicerone to Cicero. (CLASSICSFORALL.ORG.UK, 2017). 36 Caio Verres (120 a.C. – 43a.C.), magistrado romano, governador da Sicília.

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the man I convict, according to the traditional rights of the victorious prosecutor, which means I become a praetorian overnight— so no more jumping up and down on the bank benches in the Senate, hoping to be called. And I place myself so firmly before the gaze of the Roman people that my election as aedile is assured. But the best thing of all is that I do it— I, Cicero— and I do it without owing favors to anyone, least of all Pompey the Great.” (HARRIS, Imperium, 2006, p. 105-106).3738 A primeira disputa que vai se estabelecer é entre Cícero e a aristocracia romana, representada a princípio pela figura de Quinto Hortênsio, considerado na época um dos maiores oradores da cidade. Na série, Harris não faz uma distinção entre aristocracia e nobreza e trata de forma intercambiável os patrícios (aristocratas) e plebeus. Isso gera alguns problemas quando diversos personagens de família plebeia, mas parte da nobreza romana, isto é, cuja família já tinha tido cargos públicos, são considerados patrícios 39. A princípio, pode parecer mero detalhe a mudança operada por Harris, mas mostra como o autor faz uma escolha em simplificar as relações sociais romanas para seus próprios fins, algo que não acontece nas outras séries tratadas na tese. Uma observação quanto às mudanças feitas por Harris é como não prejudicam a legitimidade da obra na visão de críticos e leitores. A acuidade da trilogia é uma das características mais celebradas da narrativa e é recorrente que seja considerada por ambos – leitores e críticos – como “praticamente historiográfica”. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 46:25). Essa é só uma das mudanças que Harris faz ao longo do texto, mas traz também outras questões. Quais narrativas têm legitimidade suficiente por encamparem um determinado discurso que, mesmo mudanças flagrantemente óbvias, como a citada aqui, são desconsideradas, enquanto outras, como será discutido nessa tese, não gozam do mesmo privilégio. A disputa entre Cícero e Hortênsio culmina no processo contra Verres. Para Harris, a aristocracia

37 – Vamos lá – ele falou com um sorriso. – Por que essas caras sisudas? Eu ainda não perdi nada! E não creio que vá perder. Recebi uns sicilianos hoje cedo. Eles conseguiram reunir os testemunhos mais arrasadores contra Verres, não foi Tiro? Temos todo esse material trancado no cofre lá embaixo. E quando ganharmos, já pensaram?! Eu derroto Hortênsio em pleno tribunal, e aí essa história absurda de “segundo melhor advogado” cairá por terra para sempre. Assumo a condição social do homem que incrimino, segundo os direitos tradicionais do promotor vitorioso, o que significa que me torno um pretoriano da noite para o dia. E dessa froma dou um basta a essa história de ficar levantando e sentando dos bancos dos fundos do senado, na esperança de ser notado. E me coloco de forma tão nítida perante os olhares do povo romano que minha eleição para edil estará praticamente assegurada. Mas o melhor de tudo é que sou eu que faço isso tudo. Eu, Cícero. Sem ficar devendo favor algum a ninguém, especialmente a Pompeu, o Grande. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 96). 38 Os trechos citados que foram retirados dos romances históricos encontram sua versão em português nas notas de fim. 39 Como ele faz com Marco Pórcio Catão, famoso por ser de família plebeia e inclusive ter tido o cargo de tribuno da plebe.

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romana é corrupta e Cícero vem lutar contra ela, já que sua base está entre os cavaleiros, associados à uma classe média romana. Com a derrota de Verres, Cícero continua sendo retratado como um antiaristocrata por excelência, em uma cruzada contra seu estilo de vida e costumes corruptos e decadentes: […] he set about dictating the speech he proposed to deliver the next day— a slashing attack on the aristocrats for prostituting their great names, and the names of their ancestors, in defense of such a scoundrel as Verres. […] “We are aware with what jealousy, with what dislike, the merit and energy of ‘new men’ are regarded by certain of the ‘nobles’; that we have only to shut our eyes for a moment to find ourselves caught in some trap; that if we leave them the smallest opening for any suspicion or charge of misconduct, we have to suffer for it at once; that we must never relax our vigilance, and never take a holiday. We have enemies— let us face them; (HARRIS, Imperium, 2006, p. 229).40 O autor não perde a chance de reforçar a todo momento o status de Cícero, como homem novo e outsider, em guerra contra a aristocracia, à qual ele desdenha e sempre que possível insulta. Ao mesmo tempo, Cícero seria o “campeão do povo”, mas não um revolucionário. Cicero was no revolutionary. He never desired to set himself at the head of a mob, tearing down the state: and that would have been his only hope of survival, if he had turned Pompey against him as well as the aristocracy. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 234).41 Essa distinção é fundamental para entender a posição que Harris considera que Cícero ocupa na política romana e porque é ela quem deve servir de exemplo para as sociedades presentes. Cícero vê “os dois lados” da política romana. Ele despreza os aristocratas, porém não tem a menor simpatia pelos populares (Harris traduz o termo por populistas). Dessa forma, Cícero surge como o grande e incansável defensor da república e que só tem os melhores interesses dela como objetivo. He was a hero to both the lower classes and the respectable knights, who saw him as a champion against the rapacity and snobbery of the aristocracy. For this reason, not many grand houses opened their doors to

40 [...] Cícero começou a ditar o discurso que pretendia fazer no dia seguinte: um ataque arrasador aos aristocratas, por prostituírem os próprios grandes nomes, bem como seus ancestrais, em defesa de um delinquente como Verres. [...] – Estamos cientes da inveja e do despeito com que o valor e a energia dos “homens novos” são vistos por determinados “nobres”; de que basta fecharmos os olhos por um instante para nos vermos envolvidos em alguma armadilha; de que, se dermos a mínima abertura para alguma suspeita ou acusação de mau comportamento, sofreremos imediatamente suas consequências; de que não podemos relaxar a vigilância um só minuto, e nunca ter descanso. Temos inimigos: vamos enfrentrá-los [...]. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 190-191). 41 Cícero não era um revolucionário. Nunca desejou estar à frente de uma multidão, derrubando o Estado: e essa seria sua única esperança de sobrevivência, caso ele virasse Pompeu contra ele assim como a aristocracia. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 195).

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him, and we had to endure taunts and even, occasionally, missiles whenever we passed close to the estates of one or other of the great patricians. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 394).42 Cícero representaria assim uma “terceira via”43. A comparação com a corrente política britânica torna-se mais que mera suposição, quando, em entrevista,o próprio autor assume que “há ecos de Tony Blair em Cícero” e que possui extrema desconfiança em relação à ideólogos. Isto leva a outro ponto de sua representação da sociedade romana: se a aristocracia é vista como decadente, o povo não é descrito muito melhor. A plebe, em geral, é vista como massa de manobra, que precisa ser guiada por alguém abnegado como Cícero, pois não sabe quais são seus melhores interesses. No entanto, se a princípio, a aristocracia é representada como extremamente corporativista e disposta a cometer crimes para defender seus membros e privilégios, em última instância, é vista como tendo boas intenções ou de no mínimo não querer destruir a república. O mesmo não pode ser dito sobre a facção denominada de populares (chamada de populistas por Harris), os verdadeiros vilões da trilogia e verdadeiramente perigosos. Caesar responded by organising noisy demonstrations in the street outside Bibulus's home, and by continuing to pass his laws via the public assemblies regardless of what his colleague said. (Cicero wittily remarked that Rome seemed to be living under the joint consulship of Julius and Caesar.) It sounded legitimate when one put it that way - governing through the people: what could be fairer? - but really 'the people' were the mob, controlled by Vatinius, and any who opposed what Caesar wanted were quickly silenced. Rome had become a dictatorship in all but name, and most respectable senators were appalled. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 254, grifo nosso).44 Qual seria a diferença entre o “povo” e a “turba”, na visão de Harris? A turba seria uma mistura da plebe urbana, libertos, cidadãos pobres e escravos. Sua atuação política é sempre deslegitimada e parece estar a serviço daqueles que lhe oferecem maiores

42 Ele era um herói tanto para as classes inferiores quanto para os cavalheiros mais respeitáveis, que o tinham como uma espécie de baluarte da luta contra a ganância e o esnobismo da aristocracia. Por esse motivo, não eram muitas as mansões imponentes que lhe abriam as portas, e tivemos que aguentar ofensas e de vez em quando até objetos que eram lançados contra ele toda vez que passava perto da residência de um ou de outro grande patrício. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 321). 43 Em 1998, a terceira via ficou conhecida como o movimento britânico, encabeçado por Tony Blair, líder do partido trabalhista na época. Ele propunha a reformulação dos ideais da social democracia e uma nova forma de capitalismo. Ficou associada à promoção de ideais neoliberais. 44 César reagiu organizando ruidosas demonstrações na rua diante da casa de Bíbulo e continuando a aprovar suas leis via assembleias públicas, indiferente ao que dizia seu colega (Cícero, espirituosamente, comentou que Roma parecia viver debaixo de um consulado conjunto de Júlio e César). Parecia legítimo, quando se colocava desse modo – governar através do povo? O que poderia ser mais justo? –, mas, na realidade, “o povo” era a turba controlada por Vatínio, e qualquer um que se opusesse ao que César queria era rapidamente silenciado. Roma se tornara uma ditadura em tudo menos no nome, e os senadores mais respeitáveis estavam horrorizados. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 345).

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vantagens. Nesse sentido, para Harris, Públio Clódio Pulchro, um dos mais destacados líderes populares do fim da república e inimigo de Cícero, é o “rei da turba” e o anti-Cícero por excelência. Isto é, alguém disposto a usar qualquer método, inclusive o de provocar revoltas populares. para seus próprios fins. O autor parece desconfiar seriamente de todas as políticas que tenham um “benefício popular” e vê-las como mero instrumento de manipulação política. Nas entrevistas que ele concede sobre a série, isso fica claro. A aprovação da lei, em 58 a.C, que garantia a distribuição de trigo grátis para a plebe romana e a permissão para que os collegiati (associações de bairro) voltassem a se reunir, causa um frenesi de proporções dionisíacas por parte desses grupos: Either the poor will have their share or they will have our heads – and in Clodius they have found a leader […] Poor men, freedmen and slaves alike chased pigs through the streets and sacrificed them without any priests to supervise the rites, then roasted the meat on the street corners. They did not stop their revels as night fell, but lit torches and braziers and continued to sing and dance. (It was unseasonably warm, and that always swells a crowd.) They drank until they vomited. They fornicated in the alleyways. They formed gangs and fought one another till blood ran in the gutters. In the smarter neighbourhoods, especially on the Palatine, the well-to-do cowered in their houses and waited for these Dionysian convulsions to pass. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 285- 286, grifo nosso).45 Clodius had learned how to stimulate the mob as a gigolo might caress his lover. He had them chanting in ecstasy. I could not bear to watch for long. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 291-292).46 Cícero é absolutamente contra a lei de distribuição de trigo, mas se vê “obrigado” a apoiá-la para salvar sua família da turba. A visão que o autor tem dessas leis, que beneficiam a plebe urbana, são extremamente negativas ao longo de toda série e são vistas como meramente “populistas”, tendo como intuito comprar essa camada social descrita como incontrolável e animalesca. Harris vê nessas leis mais um sinal da falência moral do povo romano, que troca sua liberdade e independência por um punhado de trigo grátis.

45 Ou os pobres terão seu quinhão ou terão nossas cabeças... E, em Clódio, eles encontraram um líder. [...] Pobres, libertos e escravos perseguiram porcos pelas ruas e os sacrificaram sem qualquer sacerdote para supervisionar os rituais, depois assaram a carne nas esquinas. Não pararam a folia com o cair da noite, mas acenderam tochas e braseiros e continuaram a cantar e dançar. (Estava normalmente quente, e isso sempre excita uma multidão). Eles beberam até vomitar. Fornicaram nos becos. Formaram bandos e brigaram uns contra os outros até o sangue escorrer pelos fossos. Nas vizinhanças mais elegantes, especialmente no Palatino, os mais abastados se esconderam em suas casas e esperaram que aquela convulsão dionisíaca passasse. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 384-385). 46 Clódio aprendera a estimular a multidão do mesmo modo que um gigolô acaricia sua amante. Ele a mantinha entoando em êxtase. Não consegui olhar por mais tempo. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 393).

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Cicero: Some of us believe it was an ill day when our citizens were granted a free dole of corn in the first place, for it is human nature that what starts as gratitude quickly becomes dependency and ends as entitlement. This is the pass we have reached. I do not say we should rescind Clodius’s law— it is too late for that: the public’s morals are already corrupted, as no doubt he intended. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 60).47 A não ser que Cícero o faça, claro, como na promessa de campanha para cônsul, da extensão da cidadania a todos os habitantes da Gália Cisalpina. Aqueles que vão assistir aos comícios ciceronianos, ao contrário, são descritos como os melhores representantes do ideal de cidadão romano: They had never seen a consular candidate up here before, and in every little town crowds of several hundred would turn out to listen to him [...] the upturned faces of the local farmers gazing in awe at this famous senator on the back of his wagon, with his three fingers outstretched, pointing toward the glory of Rome. I realized then that, for all his sophistication, he was really still one of them— a man from a small provincial town with an idealized dream of the republic and what it meant to be a citizen, which burned all the fiercer within him because he, too, was an outsider. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 396-397).48 A comparação entre povo e turba continua ao longo de toda a série, construindo um discurso que divide práticas políticas desejáveis e quem as pratica daquelas indesejáveis, responsáveis pela destruição do sistema político republicano. Essa distinção fica clara quando Harris opõe as reações a eventos como o assassinato de Clódio por Tito Ânio Milo, em 52 a.C ou o assassinato de Júlio César em 44 a.C.: Milo seemed to think he had the election in the bag. After all, he had rid the state of Clodius, for which most decent people were grateful, and the burning-down of the Senate house and the violence in the streets had appalled the majority of voters. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 140, grifo nosso).49 Quem chora (ou não) por César?

47 Alguns de nós acreditam que foi um dia infeliz aquele em que foi assegurada a nossos cidadãos uma distribuição gratuita de trigo em primeiro lugar, pois é da natureza humana que aquilo que começa como gratidão se torna rapidamente dependência e termina como noção de direito. Foi esse o ponto a que chegamos. Não digo que devemos revogar a lei de Clódio, pois é tarde demais para isso: o moral público já está corrompido, como sem dúvida ele pretendeu. (HARRIS, Dictator, 2017). 48 Nunca antes se vira ali um candidato a cônsul, e em todas as cidadezinhas muitas centenas de pessoas reuniam-se para escutá-lo. [...] os rostos daquela gente da terra olhando, num misto de respeito e temor, aquele senador famoso na traseira de uma carroça, os três dedos estendidos apontando para a glória de Roma à sua frente. Foi então que eu compreendi que, apesar de toda a sofisticação, Cícero continuava send o um deles – um homem de uma cidadezinha provinciana com uma visão idealizada de republica e do que representava ser um cidadão, que fazia entrar em ebulição tudo que havia de mais violento em seu interior porque ele também era um excluído. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 322-323). 49 Milo parecia pensar que tinha as eleições garantidas. Afinal de contas, tinha livrado o Estado de Clódio, pelo que a maioria das pessoas decentes estava agradecida, e a queima da casa do Senado e a violência nas ruas chocara a maioria dos eleitores. (HARRIS, Dictator, 2017).

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The centre of the city was already packed with thousands, women as well as men—not so much the polite citizenry but mostly old soldiers, the urban poor, many slaves, and a large contingent of Jews, who revered Caesar for allowing them to rebuild the walls of Jerusalem. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 276).50 (No caminho para Tusculum) We stayed one night with Matius Calvena, the equestrian, who was in despair over the future of the nation [...] But apart from him, in contrast to the scenes in Rome, we found no one who was not glad to see the back of the Dictator. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 280).51 A representação de qualquer mobilização popular de forma violenta e irracional, assim como a representação dos collegia como versões romanas de organizações criminosas, não são incomuns. Ao contrário, essa é a forma como esses grupos são frequentemente representados na ficção. Um bom exemplo é o da série Roma (HBO-BBC- RAI, 2005-07), que retrata essas organizações como antros de criminosos e prostitutas, que controlavam os bairros de Roma e eram responsáveis por extorquir seus cidadãos. Harris opera dentro deste mesmo campo representativo. Segundo Júlio César Magalhães Oliveira52, esse tipo de representação tem origem nas próprias fontes antigas que chegaram até o presente e foram produzidas por pessoas, como Cícero, que tinham como inimigos os collegia e seus líderes. Harris assume sem nenhuma crítica o ponto de vista ciceroniano, que afirma o seguinte sobre os membros dessas associações: “ou você acha que o Povo Romano é essa gente que recebe salário, que é impelida a agredir os magistrados, que bloqueia o Senado, que só pensa a cada dia em morte, incêndio e roubo? É esse o Povo que só se reúne quando suas lojas estão fechadas? [...] E pensar que o orgulho e a dignidade do Povo Romano [...] possam ser representados por essa turba de homens recrutados entre escravos, mercenários, bandidos e miseráveis!” (De Domo, 29, 89. In: MAGALHÃES DE OLIVEIRA, 2018). Na narrativa de Harris, não há espaço para quem está fora do discurso dominante. Para ele, a política deve se fazer estritamente dentro do Senado, por alguns poucos homens que se dedicam em prol da república, caso contrário há o risco dela ser destruída pelas turbas guiadas por pessoas inescrupulosas que almejam o poder supremo.

50 O centro da cidade já estava apinhado com milhares de pessoas, tanto homens quanto mulheres — não tanto os cidadãos refinados, mas sobretudo ex-soldados, os pobres da cidade, muitos escravos e um grande contingente de judeus, que veneravam César por ter lhes permitido reconstruir as muralhas de Jerusalém. (HARRIS, Dictator, 2017). 51 Passamos uma noite com Mátio Calvena, o equestre, que estava desesperado com relação ao futuro da nação: “Se um homem com o gênio de César não conseguiu descobrir nenhuma saída, quem encontrará uma agora?” Afora ele, contudo, em contraste com as cenas em Roma, não encontramos ninguém que não estivesse satisfeito em ver o ditador pelas costas. (HARRIS, Dictator, 2017). 52 MAGALHÃES, Júlio César. Collegiati: os gângsters da Roma Antiga. História Antiga a partir de baixo, 2018. Disponível em: https://www.subalternos. com/post/collegia-os-gângsters-da-roma-antiga.

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Ao povo, resta somente uma representação que nega qualquer tipo de individualidade ou agência. Para o autor, algo semelhante vem ocorrendo no seio das democracias modernas: O livro fala sobre bilionários inescrupulosos jogando o povo contra a elite para conseguir ganhos e vantagens. Com isso o dinheiro que entra no sistema acaba rachando e quebrando esse sistema. E se fica com a sensação de não se saber mais para que serve a república. Serve de aviso para todas as democracias sobre quão frágil é o sistema. (CLASSICSFORALL.ORG.UK, 2017, tempo: 44:00). Crasso é o melhor representante dessa elite econômica e da aristocracia moralmente corrupta, que imagina ser dona do Estado por direito de nascença. Quer manter seus privilégios a todo custo, mesmo que precise tripudiar sobre os cidadãos comuns. Por isso mesmo, Cícero torna-se seu maior inimigo e todas as suas ações se dão com o objetivo de destruí-lo, já que é a única pessoa que está entre Crasso e o domínio absoluto do Estado. What possible reason would Crassus have for wanting to see such men in power?” “To spite me,” said Cicero, recovering his voice. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 403).53 Todas essas questões podem ser melhor entendidas pelas relações entre Cícero e esses três personagens: Pompeu, Crasso e César, e as relações destes com o que as fontes dizem sobre Cícero. O autor sente a necessidade de encontrar um modo de juntar a visão que quer encampar de Cícero e sua atuação política com aquilo que as fontes dizem sobre o mesmo54. Como consequência, todas as ações de Cícero e dos outros personagens serão vistas e entendidas a partir desse viés, que também leva a uma visão bastante maniqueísta dos eventos narrados. Para manter essa “ilusão” ao longo da trilogia, o autor precisa cada vez mais justificar as ações de Cícero, que são difíceis de serem entendidas pensando-se nele como alguém que age altruistamente e de forma independente de grupos e apoios. Com isso, Harris também exime Cicero da responsabilidade de seus atos mais desabonadores. Na visão do autor, Crasso é, junto de Catilina, o vilão da história, enquanto César vai se tornando aos poucos o antagonista da última parte da trilogia. Enquanto isso, Pompeu, a quem Cícero é “obrigado” a se aliar, é visto como alguém narcisista, apaixonado por si mesmo e ao mesmo tempo um tanto quanto ingênuo; uma pessoa que, em última instância, é inofensiva (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 35). Para que sejam construídos dessa forma, algumas escolhas foram feitas em relação ao que narrar e o que silenciar e na forma

53 Que motivo teria Crasso para querer ver essa gente no poder? – Ele quer me prejudicar – disse Cícero, recuperando a voz. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 328). 54 Entre as fontes antigas usadas pelo autor estão as obras do próprio Cícero (discursos e cartas) além da biografia feita por Plutarco no Vidas Paralelas e texto de Salústio sobre a “conjuração de Catilina”.

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como isso é feito, tanto sobre Crasso quanto Pompeu. Como é inevitável negar que Cícero era aliado e partidário de Pompeu, ele acaba se tornando o “mal menor”. “For all Pompey’s faults, he had shown himself in the end to be willing to obey the law: he had been given supreme power after the murder of Clodius and had then surrendered it; legality was on his side; it was Caesar, not he, who had invaded Italy and destroyed the republic”. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 169).55 Tudo passa a ser justificado, portanto, na narrativa da viagem que faz para Gália Cisalpina. Na campanha para o cargo de cônsul é dito que Cícero recebe “fundos de campanha e não subornos”. Tudo precisa ser explicado para que não reste dúvidas, para os leitores, da condição ilibada do orador romano: He had a well-stocked campaign fund, made up of gifts from his admirers, which he drew on to pay for such expenses as his tour of Nearer Gaul; this money was not bribes, as such, although obviously it was comforting for the donors to know that Cicero was a man who famously never forgot a name. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 413).56 E se algo não pode ser totalmente justificado, é entendido como necessário em prol de um “bem maior”, que é a defesa da República: I have my faults, Tiro – you know them better than any man: no need to point them out - but I am not like Pompey, or Caesar or Crassus. Whatever I’ve done, whatever mistakes I've made, I've done for my country; and whatever they do, they do for themselves, even if it means helping a traitor like Catilina.' He gave a long sigh. He seemed almost surprised at his own principled stand. 'Well, there it all goes, I suppose – a peaceful old age, reconciliation with my enemies, power, money, popularity with the mob . . .' He folded his arms and contemplated his feet. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 245).57 Nenhum caso exemplifica melhor essa visão que o da “conjuração de Catilina”. Desde o início, Catilina é descrito como alguém acometido pela loucura, responsável por todo tipo de crime e sordidez. O segundo volume da série começa com o corpo de uma

55 Apesar de todos os defeitos de Pompeu, ele se mostrara no fim desejoso de obedecer à lei: após o assassinato de Clódio lhe fora dado um poder supremo e depois ele o abdicara de bom grado. A legalidade estava do seu lado; fora César, não ele, que invadira a Itália e destruíra a república. (HARRIS, Dictator, 2017). 56 Ele possuía um fundo de campanha bem fornido, composto de presentes de admiradores, que guardava para financiar despesas como a viagem à Gália Cisalpina: não se tratava exatamente de dinheiro de propinas, embora os doadores com certeza se mostrassem mais à vontade sabendo que Cícero era conhecido por nunc se esquecer de um nome. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 336-337). 57 – Eu tenho meus defeitos, Tiro... você os conhece melhor que qualquer homem: não precisa citá-los... mas não sou como Pompeu ou César ou Crasso. O que quer que eu tenha feito, quaisquer erros que eu tenha cometido, eu os fiz pelo meu país; e o que quer que eles façam é por eles próprios, mesmo que isso signifique ajudar um traidor como Catilina, – Soltou um demorado suspiro. Parecia quase surpreso que seus princípios continuassem de pé. – Bem, lá se vai tudo, suponho... uma velhice tranquila, reconciliação com meus inimigos, poder, dinheiro, popularidade com a multidão... – Cruzou os braços e contemplou os pés. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 333).

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criança sendo encontrado, com marcas de que tinha sido vítima de um ritual de sacrifício humano: His killers must have wanted to inspect his entrails. He was a sacrifice - a human sacrifice. At those words, in that cold, dim place, the hairs on the nape of my neck stirred and spiked, and I knew myself to be in the presence of Evil - Evil as a palpable force, as potent as lightning. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 05).58 O principal suspeito é Catilina, o que é confirmado posteriormente. O ritual havia sido feito como um juramento de lealdade dos conspiradores para com seu chefe. Tiro descreve ter estado na presença do Mal, com letra maiúscula, e é assim que Harris tratará Catilina, como a personificação do Mal. Isso tem a ver com as fontes usadas pelo autor. As catilinárias, um conjunto de quatro discursos proferidos por Cícero contra Catilina, abundam em exemplos de todo tipo de vilania cometido pelo acusado. Mais uma vez, Harris usa as fontes antigas como meras narrativas, sem nenhum tipo de criticidade. Ele está empenhado em construir a imagem de Cícero como a de um grande herói, no entanto é preciso questionar as escolhas feitas pelo autor. Catilina é descrito como um dos maiores assassinos da época das prescrições de Sila, um dos raros momentos em que Harris cita o ditador romano (HARRIS, Imperium, 2006, p. 351). Ao mesmo tempo, Harris omite o fato de que Pompeu, visto como o general bonachão, ganhou, no mesmo período, o apelido de “jovem açougueiro”, graças à sanha com que participou das proscrições. As fontes que o autor escolhe silenciar também dizem muito sobre a história que pretende contar e o passado que pretende recuperar, algo que será visto em diversos outros casos ao longo dessa tese. Para Harris, não fica bem que Cícero tenha um aliado conhecido em certo momento como “açougueiro”. Ao mesmo tempo, em nome da segurança nacional, Cícero comete atos que não coadunam com a imagem que o autor quer passar: posterga as eleições, decide pela execução de cidadãos romanos sem julgamento, etc. Dessa forma, fica claro que, para Harris, tudo é permitido se for feito em “nome da República” por um dos “bons”. Cícero nunca quer fazer nada ilegal, mas as circunstâncias o obrigam a fazê-lo. No entanto, qual república ele está defendendo? Para quem?

58 – Exatamente – disse Otávio. – Os assassinos provavelmente quiseram inspecionar suas entranhas. Foi um sacrifício... um sacrifício humano. Diante dessas palavras, naquele lugar úmido, sombrio, os pelos de minha nuca se eriçaram, e eu soube que estava na presença do Mal – o Mal como uma força palpável, tão poderosa quanto um trovão. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 17).

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Steven Saylor

Na série Roma Sub Rosa, o protagonista é um personagem fictício da plebe romana. Devido a sua profissão, ele acabará tendo contato com as principais figuras históricas do final da República Romana. Ter como narrador alguém como Gordiano permite que o autor faça diversos comentários sobre a sociedade romana, sem precisar se preocupar com o que as fontes e documentos dizem a respeito daquela personagem histórica. Essa opção também diz muito sobre as perspectivas de cada autor sobre Roma e como escolhem expô-la ao público leitor. Tanto Harris, quanto Saylor, estão preocupados em narrar o fim da República Romana, mas como escolhem contá-la e o diagnóstico que dão sobre o caso não poderiam ser mais diferentes. Em primeiro lugar, está a escolha de que episódios históricos narrar. Em “Roman Blood” (Sangue Romano), primeiro volume da série, o público é introduzido ao caso de Sexto Róscio, cidadão romano da cidade de Améria acusado de matar o próprio pai em 80 a.C.. Nesse tempo, Cícero, então um jovem cidadão com pretensões de fazer seu nome no fórum como orador, contrata Gordiano para descobrir a verdade sobre o evento e ajudá-lo na preparação do caso a ser apresentado. Isso situa o início da série durante o período da ditadura de Sila, após o fim da guerra civil entre ele e Gaio Mario. Gordiano e Cícero discutem os novos rumos tomados pela república: “But I see a different Rome, Cicero, that other Rome that Sulla has left to posterity. They say he plans to retire soon, leaving behind him a new constitution to strengthen the upper classes and put the people in their place. And what is that place, but the crime-ridden Rome that Sulla bequeaths to us? (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 43).59 Com isso, Saylor estabelece uma linha temporal, que expõe os problemas que acometem a República Romana, num contexto muito mais amplo que o da guerra civil entre César e Pompeu60. Para além disso, as disputas pelo poder romano são colocadas como mais que simples ambição de homens perversos ou honrados, e vai além da dicotomia de destruir ou salvar a República. Em Saylor, a personagem Sila é o representante da aristocracia

59 Mas eu conheço uma Roma diferente, Cícero, aquela Roma que Sula deixou para a posteridade. Dizem que ele planeia reformar-se em breve, deixando atrás de si uma nova constituição, destinada a reforçar as classes altas e a colocar o povo no seu lugar. E que lugar é esse, senão a Roma devastada pelo crime que Sula nos legou? (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 73). 60 É comum que os eventos do final da república romana sejam colocados como culminando para a eventual derrota de Pompeu por Júlio César e o eventual fim da República com seu assassinato. Na trilogia de Harris é exatamente assim que os acontecimentos são pautados.

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romana, preocupado em manter seus privilégios às custas da participação popular, entendida por esse grupo como perigosa. A noção de que a república deve ser salva é posta na boca de Sila, quando anuncia que deixará a posição de ditador em breve: “Yes, citizens, sad news: In a matter of days I shall announce my retirement from public life. My health fails me; so does my patience. I’ve done what I can to shore up the old aristocracy and to keep the common rabble in their place; let someone else take on the job of saving the Republic. I can hardly wait to begin a new life in the countryside—strolling, gardening, playing with my grandchildren. (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 362).61 Situada nesse contexto, o autor já questiona o significado da república, isto é: Que república? A quem ela serve? De que forma, o discurso sobre o qual a república precisa ser salva não está associado à manutenção de privilégios de uma classe aristocrática? Aliás, salva de quem? De acordo com Saylor, por meio de Sila, a república deve ser salva da multidão, que deveria ser posta em seu devido lugar. Uma simples mudança como essa, já estabelece novas relações com o passado romano, que vão além da mera exaltação de sua perfeição como modelo e da nostalgia de tê-la perdido, como em Robert Harris. A participação popular e suas demandas, longe de serem vistas como sinal de decadência ou de manipulação por pessoas perversas, é entendida como uma luta por direitos, temida pela aristocracia e nobreza, que não admitiam a divisão de poderes. Com isso, o povo também será representado de forma diferente, para além de uma massa anônima que age como bestas irracionais. Os problemas políticos e sociais que assolam Roma são colocados como resultado de questões antigas. A instabilidade não vem das demandas por leis de apelo popular, como a lei agrária e a lei que garante a distribuição de trigo para os cidadãos romanos, nem elas são vistas como reflexo de uma falha moral. Ao contrário, são vistas como resultados das diferenças sociais e da manutenção de privilégios pela classe dominante: "You say the time was not right for such reform," I said. "In Rome, and with the Optimates in control of the Senate, when is it ever the right time for change?" "Nunquam," said Rufus, smiling ruefully: never. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 186).62

61 Sim, cidadãos, notícias tristes: dentro de poucos dias, anunciarei a minha retirada da vida pública; a saúde começa a faltar-me; e também a paciência. Fiz o que pude para resguardar a velha aristocracia e manter no seu lugar a populaça; que outro assuma a tarefa de salvar a República. Estou ansioso por iniciar uma nova vida no campo passeando, jardinando, brincando com os meus netos. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 513). 62 Dizes que não era o momento próprio para esse género de reforma disse eu. Em Roma, e com os Optimates a controlarem o Senado, quando é que será o momento próprio para qualquer mudança? Nunquam disse Rufo, sorrindo pesarosamente: nunca. (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 323).

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Essa visão de povo não se dá somente na representação dos romanos. Mesmo quando está tratando do Egito, nunca esquece de evidenciar as diferenças sociais latentes nessas sociedades, o que torna o passado mais que um bloco estático e monolítico: Ptolemy remained seated on his throne at the center of the barge and ignored the waving throng, but I thought I saw a shadow of a smile on his lips when we heard the cheering spectators cry out his name. Egypt might be torn by civil war, but among the pleasure class of Alexandria, Ptolemy’s claim to the throne was apparently not in dispute. […] As a young man, I had traveled to Canopus standing upright on a barge so crowded I feared it would sink; we passed several of those, and their occupants seemed distinctly less enthusiastic about their monarch than had the diners and gamblers along the waterfront in Canopus. Some of the faces that stared back at us looked positively hostile. (SAYLOR, The Judgment of Caesar, 2004, p.89). Para entender melhor essas disputas é preciso, antes de tudo, analisar a forma como duas personagens históricas são representadas: Cícero e Catilina. Isso porque uma coisa está diretamente relacionada à outra. Ambas as séries, de Harris e Saylor, cobrem o mesmo período histórico e compartilham personagens e eventos, o que permite uma comparação mais detalhada entre eles. Para Harris, Cícero é um outsider, que vem questionar as formas de fazer política viciadas da aristocracia romana, ao mesmo tempo em que teme e despreza a turba urbana. O próprio Cícero é descrito como um jovem de meios substanciais e valores conservadores, que veio à Roma tentar a sorte entre os altos círculos romanos. [...] or perhaps (and so it was, in fact) such an austere house on such an unassuming street might belong to a young bachelor of substantial means and old-fashioned values, a citified son of country parents poised to seek his fortunes among Rome’s higher circles, a young man of stern Roman virtue so sure of himself that even youth and ambition could not lure him into the vulgar missteps of fashion. (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 28).63 Para Saylor, Cícero é mais um representante da classe política, ainda que seja um homem novo. Sua família é privilegiada e não se confunde com a de Gordiano, por exemplo, ainda que ambas sejam plebeias. He (avô de Cícero) doesn’t believe in manumission, no matter how old a slave becomes, no matter how long or how well he serves a master. The Tullius family may have come from Arpinum, but they’re Roman to the

63 [...] ou talvez (e era esse o caso) uma casa tão austera numa rua tão discreta pertencesse a um jovem solteiro de meios substanciais e valores fora de moda, a um filho urbanizado de pais rurais, determinado a procurar fortuna entre os círculos mais elevados de Roma, a um jovem de austera virtude romana, tão seguro de si próprio que nem a juventude nem a ambição poderiam seduzi-lo a dar os vulgares passos em falso que a moda exigia. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 49).

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core. They’re a very stern and old-fashioned family. (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 30, grifo nosso).64 O autor dialoga com a noção de Cícero como alguém idealista e que age sempre em benefício da república, quando coloca na boca de Tiro; seu escravo e secretario; uma resposta ultrajada aos questionamentos de Gordiano, sobre os interesses de Cícero no caso de Sexto Róscio. Tiro afirma que “Cícero é um homem dos mais altos princípios e integridade inquestionável, um homem que fala o que pensa e pensa o que fala, algo raro em Roma” (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 47). Dessa forma, a afirmação, que em Harris funciona como uma descrição das qualidades do orador romano, é relativizada e questionada em Saylor. Ela funciona como uma forma de tratar as fontes antigas, especialmente as que têm Cícero como autor, de forma menos absoluta. Ao retomar sua personagem em outro volume da série, Saylor fará uma descrição de Cícero que enfatiza seu caráter ambíguo ao se perguntar “é um homem honesto ou um oportunista? Homem de princípios, do povo ou apologista da nobreza rica?” (SAYLOR, Arms of Nemesis, 1992, p. 54). O autor foge de representações maniqueístas e prefere contar sua história a partir de pontos de vista diferentes. Faz isso repetidas vezes ao longo da série, sendo que a mais interessante entre elas é a que narra a história de Catilina65. Em “Catilina’s Riddle” (O Enigma de Catilina), Saylor se propõe a narrar a história de uma das conjurações mais famosas da história, a partir de um ponto de vista diferente. Até hoje, no imaginário popular, o nome de Catilina é associado ao de político corrupto e perverso, capaz de qualquer coisa para atingir o poder. A história começa quando Cícero pressiona Gordiano, agora vivendo no campo após ter herdado uma vila66, a hospedar Catilina em sua casa. O agora cônsul romano quer que o protagonista se passe por um simpatizante da causa catilinária, o que Gordiano faz de malgrado, já que a relação entre ele e Cícero está estremecida. Saylor faz algo muito interessante por meio dessa estratégia narrativa. Ele dá voz ao próprio Catilina. Os leitores têm contato com os eventos e os vê

64 O avô de Cícero nunca se teria preocupado com o assunto. Ele não é adepto da alforria, por muito que um escravo envelheça, por muito longa e fielmente que sirva o seu senhor. A família de Túlio poderá ser originária de Arpino, mas é romana até à medula. É uma família muito severa e antiquada. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 53). 65 Saylor faz o mesmo, ainda que em menor grau, com Ptolomeu, rei do Egito e irmão de Cleópatra e com Clódia Pulcra. O autor parece se interessar em repensar figuras vilificadas pelas fontes antigas e olhá -las a partir de uma nova perspectiva. 66 Gordiano se torna cada vez mais desiludido com a política romana e por isso decide deixar a cidade e se fechar em sua vila no campo.

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pelos seus olhos e sua perspectiva. Além disso, o livro conta com um protagonista, que ao longo da narrativa, vai ter verdadeira simpatia pela sua causa e não está automaticamente no campo de Cícero. Dessa forma, Saylor permite que Catilina “responda”, ainda que por meio da ficção, às acusações feitas por seus inimigos e imortalizadas nos discursos proferidos por Cícero67 e na história escrita por Salústio dos eventos. Quando Catilina aparece pela primeira vez é descrito como alguém “extremamente charmoso, de uma força que emanava de dentro e que se manifestava em uma vivacidade que iluminava seu olhar e no sorriso que vinha facilmente aos seus lábios”. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 85). Ao contrário de Harris, que sempre associa Catilina a atos bárbaros, bestiais e monstruosos, como o assassinato de uma criança num ritual de sacrifício humano. Assim, em um jantar entre Catilina e Gordiano, o primeiro comenta sobre a eleição de Cícero para cônsul: "You're not the only one who's become disillusioned with our consul. For years Cicero paraded himself as the fiercely independent champion of reform, a battler against the status quo, the outsider from Arpinum. But when it came his time to stand for consul, he found that I had the constituency for reform already in my hand, so he moved without a moment's hesitation into the opposite camp and made himself a puppet for the most reactionary elements in Rome. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 95).68 E sobre a facção aristocrática que apoia a eleição de Cícero: Oh, their smug self-satisfaction is insufferable! And Cicero has bought into it completely. Cicero, the nobody from Arpinum, without an ancestor to his name. If he only knew what they say about him behind his back … (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 120).69 Saylor inverte a lógica das fontes antigas. Em um livro que trata do consulado de Cícero e do que é considerado um dos pontos mais alto de sua carreira, isto é, a derrota de Catilina e seus apoiadores, quem menos aparece no livro é o próprio Cícero. Ele não aparece de forma direta na narrativa, a não ser em duas ocasiões, e suas ações são narradas a partir de terceiros e indiretamente. Aqui, Catilina definitivamente não é o vilão da história.

67 As catilinárias foram o conjunto de discursos proferidos em 63 a.C. por Cícero em que este denuncia Catilina de estar conspirando contra a república romana. 68 Durante anos, Cícero apresentou-se como o campeão das reformas, um homem ferozmente independente, um lutador contra o statu quo, o forasteiro de Arpinum. Mas, quando chegou a altura de se candidatar a cônsul, percebeu que eu já tinha na mão o eleitorado reformista, pelo que passou sem um segundo de hesitação para o outro campo, transformando-se numa marioneta dos elementos mais reaccionários de Roma. (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 167). 69 Oh, eles incham de auto-satisfação, e são insuportáveis! E Cícero foi totalmente comprado por eles. Cícero, o zé-ninguém de Arpinum, sem antepassados que sustentem o seu nome. Se ele soubesse o que dizem dele... (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 211).

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Saylor convida o leitor a buscar o que está nas entrelinhas das fontes antigas e vê-las como textos com interesses e objetivos, não como meras narrativas do que “realmente aconteceu”. Ver um outro lado, aquele que não teve voz e foi sempre vilificado. Mudar o ponto de vista pelo qual se observa a “conjuração de Catilina” vai levar a uma interpretação diferente do seu significado. A destruição dos valores republicanos vem justamente daqueles que dizem ser tudo permitido para combatê-la: "There's talk in the city of armed revolution," he went on. "Cicero has gotten the Senate to vote him emergency powers—what they call the Extreme Decree in Defense of the State." [...] "The decree is vague. Essentially it gives the consuls powers over life and death that would otherwise have to be granted by the people's Assembly—power to raise an army and send it to battle, and the right to apply what they call unlimited force against citizens in order to protect the state." [...] "However that may be," said Eco "everyone knows Cicero's fellow consul Antonius is useless. If anything, he's in sympathy with Catilina. Which means everything falls on Cicero's shoulders." "Or into his lap," I said. Eco nodded. "At this moment, in theory at least, Cicero has more power than any man since Sulla was dictator." "Then Cicero finally has what he wants," I said. "Sole ruler of Rome!" (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 299).70 O “senatus consultum ultimum”, o decreto final do senado, que deu plenos poderes à Cícero para combater Catilina, é comparado com medidas ditatoriais e como algo fora da normalidade republicana. Para o autor, essas medidas são muito mais um sinal do fim da República Romana e não uma forma de salvá-la. Do mesmo modo, Cícero se torna, então, um agente do fim da república e não seu salvador. Para Saylor, isso é um aviso de como grupos que estão no poder usam do medo e criam bodes expiatórios para passarem leis que retiram direitos do povo. É preciso ter cuidado com quem se coloca como “salvador da nação”. Nos eventos narrados por Catilina, é Cícero quem se torna metaforicamente o verdadeiro “monstro”. "Cicero's prediction has come true. The witnesses see it all. But what have they seen? Two men, already in a precarious position because of their association with me, who arrived at Cicero's door—not with the intention of killing him, but because they were roused from their beds by a summons

70 Fala-se na cidade de uma revolução armada prosseguiu ele. Cícero conseguiu que o Senado votasse atribuir- lhe poderes de emergência, aquilo a que se chama o Decreto Radical em Defesa do Estado. [...] O decreto é vago. Essencialmente, atribui ao cônsul poderes sobre a vida e a morte que noutras circunstâncias teriam de ser concedidos pela Assembleia do Povo... o poder de convocar um exército e de o enviar para a guerra e o direito de aplicar aquilo a que se chama uma força ilimitada contra determinados cidadãos, a fim de proteger o Estado. [...] Seja como for disse Eco toda a gente sabe que António, o colega de Cícero no consulado, é um inútil. Na verdade, ele tem simpatias por Catilina. O que significa que cai tudo sobre os ombros de Cícero. Ou no seu regaço disse eu. Eco acenou com a cabeça. Neste momento, pelo menos em teoria, Cícero tem mais poderes do que qualquer outra pessoa desde que Sula foi ditador. Quer dizer que Cícero tem finalmente aquilo que queria disse eu. É o senhor exclusivo de Roma! (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 509- 511).

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from an anonymous caller, who said that if they valued their lives they had better go at once to the consul's house! Yes, it was Cicero who engineered the whole episode! Everything appeared just as Cicero wished, for of course Cornelius and Vargunteius arrived in an agitated state, fearful and not knowing what to expect, and when they encountered abuse they quickly became abusive and threatening in return. They were duped into playing the part of frustrated assassins, and never knew it until Cicero's speech in the Senate today, when he announced his absurd story of having survived a murder plot and gestured to his so-called reputable witnesses, who all nodded their heads in agreement! The man is a monster. The man is a genius," said Catilina bitterly. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 319).71 Da mesma forma que não é do ponto de vista de Cícero que os eventos são apresentados, a reação a eles também não se dá no Senado. Em Saylor, o povo tem um papel mais importante do que o de massa de manobra ou turba irracional. É nas ruas de Roma que o autor escolhe colocar os pontos de vista diferentes, mostrando uma pluralidade de opiniões em relação às medidas adotadas por Cícero e da influência dos boatos e rumores na opinião pública. "Cicero!" The farmer spat. "Chickpeas turn my stomach sour." "Better that than a barbarian's knife in the stomach, which is what these traitors had in mind for you," snapped the merchant. "Bah, a bunch of lies, as usual," said the farmer. "Not lies," said another man, who stood just in front of me. "The man from the city knows what he's talking about. I live in that house just over there, on the river. The praetor and his men spent the night under my roof, so I should know. They waited in ambush, then trapped the traitors on the bridge and arrested them—" "Yes, you told us your story already, Gaius. Certainly, soldiers arrested some men from Rome, but who knows what it really means?" demanded the angry farmer. "Just wait and see, the whole thing is another scheme concocted by Cicero and the Optimates to bring down Catilina." Several others joined him with a chorus of angry shouts. "And why not?" demanded the merchant. As the crowd grew more animated, his slaves drew around him in a protective ring, like trained mastiffs. "Catilina should already be dead. Cicero's only fault is that he didn't have the fiend strangled while he was still in Rome. Instead, he

71 “A previsão de Cícero realizou-se. As testemunhas assistiram a tudo. Mas o que viram elas? Dois homens, já em situação precária por serem associados comigo, que foram bater à porta de Cícero... não com a intenção de o matarem, mas porque foram levantados da cama por uma convocatória anónima, que dizia que, se tinham amor à vida, fariam bem em ir imediatamente a casa do cônsul! Sim, foi Cícero quem maquinou todo aquele episódio! Tudo aconteceu exactamente como Cícero pretendia, porque evidentemente Cornélio e Vargunteio chegaram agitados, temerosos e sem saberem exactamente o que os esperava, e quando depararam com insultos começaram rapidamente a mostrar-se também insultuosos e agressivos. Foram enganados e levados a desempenhar o papel de assassinos frustrados, e só se aperceberam disso quando hoje ouviram o discurso de Cícero no Senado, em que ele anunciou a sua história absurda de ter sobrevivido a uma conspiração para o assassinar e apontou para as supostas testemunhas respeitáveis, que acenaram com a cabeça expressando o seu acordo! O homem é um monstro. O homem é um génio disse Catilina amargamente. (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 545).

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continues with his plots, and you see where it's led—Romans plotting with barbarians to stage their revolt! It's disgraceful." This set off a round of jeering from the farmer's contingent, and an equally vociferous response from those who agreed with the merchant. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 335).72 Saylor procura sempre colocar os eventos históricos à luz das diferenças sociais romanas e para além do tema de queda ou decadência, como apresentado por Harris. Assim, quando Catilina é declarado inimigo público e Cícero saudado como salvador da república, o autor enfatiza que essa posição não é unanimidade, mas está pautada por questões sociais. Men rushed toward Cicero, calling him the savior of the city. As he left the Forum and walked through the luxurious neighborhood of the Palatine toward his house, rich matrons rushed to their windows to see him and sent slaves to put lamps and torches in their doorways, so that his path was brightly lit. He no longer wore a grim face, but smiled, and waved to the crowd as generals do in their triumphal parades. Thus ended the Nones of December, Cicero's greatest day. To watch the crowd hail him as he ascended the Palatine, one might have believed his triumph was endless and absolute. But when we returned to Eco's house on the Esquiline, we saw no celebrations in the Subura. In its dirty, unlit streets, a sullen silence reigned. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 360).73 De tal modo, eventos futuros como o exílio de Cícero – alguns anos depois em 58 a.C. – e a violência com que ele foi expulso da cidade e sua casa destruída, são enquadrados de outra maneira. Não mais como uma reação animalesca da turba ensandecida

72 Cícero! O agricultor cuspiu para o chão. O grão-de-bico faz-me azia. É melhor que uma faca de um bárbaro espetada no estômago, que era aquilo que os traidores tinham em mente para ti lançou o mercador. Bah, isso é um monte de mentiras, como sempre disse o agricultor. Não são mentiras disse outro homem, que estava mesmo na minha frente. Esse homem da cidade sabe do que fala. Eu vivo naquela casa ali, ao pé do rio. O pretor e os seus homens passaram a noite sob o meu tecto, por isso é natural que eu saiba. Estavam emboscados à espera, apanharam os traidores na ponte e prenderam-nos... Sim, já contaste a tua história, Gaio. É certo que os soldados prenderam alguns homens em Roma, mas quem pode saber o que significa isso exactamente? perguntava o irritado agricultor. Esperem e verão, tudo isso não passa de mais um esquema maquinado por Cícero e pelos Optimates para apanhar Catilina. Vários outros se juntaram a ele num coro de gritos irritados. E por que não? perguntava o mercador. À medida que a multidão se ia animando, os seus escravos iam-se juntando à sua volta como mastins treinados, formando um círculo protector. Catilina já devia estar morto. O único mal de Cícero foi não ter mandado estrangular esse demónio enquanto ele ainda estava em Roma. Em vez disso, ele continua com as suas conspirações e estás a ver onde isso nos levou... romanos a conspirar com bárbaros para encenar uma revolta! É uma vergonha. Isto deu origem a um coro de zombarias do lado do contingente do agricultor e a uma resposta igualmente vociferante por parte daqueles que concordavam com o mercador. (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 571-573). 73 Alguns homens correram para Cícero, chamando-lhe salvador da cidade. Quando ele saiu do Fórum e se dirigiu para sua casa passando pelo luxuoso bairro do Palatino, as matronas ricas correram à janela para o ver e mandaram escravos colocar lamparinas e tochas à entrada das casas, para que o seu caminho estivesse fortemente iluminado. Ele abandonara a sua expressão severa; sorria e acenava à multidão, como fazem os generais nas suas paradas triunfais. E assim terminaram as Nonas de Dezembro, o dia mais grandioso da vida de Cícero. Vendo a multidão aplaudi-lo enquanto descia o Palatino, seria de crer que o seu triunfo era interminável e absoluto. Mas, quando regressámos a casa de Eco, no Esquilino, não vimos comemoraçõ es na Subura, em cujas ruas sujas e mal iluminadas reinava um silêncio sombrio. (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 615).

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em uma orgia dionisíaca, mas sim como revanche política daqueles que foram derrotados com Catilina. Nas notas do autor, ao fim do livro, Saylor afirma que “sua intenção não foi a de reabilitar Catilina e que hoje ele ainda permanece o que deve ter sido no seu próprio tempo: isto é, um enigma”. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 425). É uma afirmação questionável, já que Catilina é mostrado ao longo de toda narrativa como alguém perseguido pelas elites romanas e que apesar de tudo acreditava estar lutando por uma sociedade mais justa, como fica claro no último discurso que ele faz para suas tropas antes da batalha final, contra as forças do senado romano: Keep in mind that our adversaries are not impelled by the same necessity as we are, nor by as just a cause. For you and me, country, justice, and liberty are at stake. They, on the other hand, have been ordered into battle to protect a ruling elite for which they can have little love. We have chosen our glorious course; we have endured exile and hardship; we have proclaimed to the world that we will not return to Rome with our heads bowed in shame, willing to live out our lives as the cringing subjects of unworthy rulers. The men we are to face, on the other hand, have already submitted to the yoke of their masters and closed their eyes to any other course. Which of these armies will show the more spirit, I ask you—those whose eyes are meekly cast down or those whose eyes are on the heavens?" (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 376).74 Ao fim, o título “Catilina’s Riddle” (O enigma de Catilina) é bastante coerente. Afinal, o verdadeiro enigma do livro é o próprio Catilina. Quem seria essa figura que suscitou tantos debates ao longo da história? Criminoso ou revolucionário? Monstro, perverso ou alguém que não seguia os padrões aceitos pela elite romana? Saylor, assume o papel de “advogado do diabo” e apresenta o caso de Catilina, convida os leitores a questionarem a versão da história que conhecem e a se perguntarem se as fontes que temos da antiguidade são – ou devem ser – plenamente confiáveis. Nisso, Saylor questiona a própria historiografia que tratou do período e a forma que escolheram apresentá-la. Todos os momentos chave são vistos do ponto de vista de Catilina e seus seguidores. Quando são

74 Tende em mente que os nossos adversários não são compelidos pela mesma necessidade que nos move, nem por uma causa tão justa como a nossa. Para vós e para mim, estão em causa o país, a justiça e a liberdade. Eles, por seu lado, foram enviados para o campo de batalha para protegerem uma elite governante pela qual não podem ter grande amor. Nós escolhemos o nosso caminho glorioso; suportámos o exílio e as dificuldades, proclamámos ao mundo que não voltaremos a Roma com as cabeças inclinadas de vergonha, dispostos a viver as nossas vidas como súbditos servis de governantes indignos. Os homens com quem vamos confrontar -nos, por seu lado, já se submeteram ao jugo dos seus senhores e fecharam os olhos a qualquer outro caminho. Qual destes exércitos terá maior energia, pergunto-vos eu, o daqueles cujos olhos estão mansamente baixos ou o daqueles cujos olhos se fixaram nos céus? (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 641).

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declarados inimigos públicos estamos com eles em fuga. Assim, normaliza e humaniza as pessoas.

Max Mallmann

As relações sociais narradas por Mallamnn são bastante complexas e fogem um tanto do esquema visto nas últimas duas séries, de classes bem divididas e com aspirações e crenças bem definidas. A primeira diferença começa com o protagonista da história. Como já notado, Desiderius Dolens é um plebeu pobre que seguiu carreira nas legiões. A personagem de Dolens é curiosa, pois ela é um membro do povo e vive à parte da aristocracia. É comum que nas ficções históricas, as histórias girem em torno de personagens aristocratas ou ricos, mesmo, ou talvez especialmente, quando os protagonistas são escravos. Esse é o caso das outras séries trabalhadas na tese. O autor Max Mallmann está interessado em narrar as experiências do povo comum, da vida cotidiana. Ainda que figuras históricas, membros proeminentes da sociedade apareçam e tenham contato com Dolens, elas têm um papel coadjuvante/secundário na trama75. Ao mesmo tempo, as relações entre aristocracia e povo são vistas de uma forma mais fluida que nas outras séries, isto é, há uma convivência diária e próxima, mas sempre informada pela hierarquia e relações de poder estabelecidas. Por exemplo, quando Dolens e seus soldados urbanicianos vão investigar a morte de um senador romano e entram na sua casa, acontece essa conversa entre eles: Do vestibulum, uma porta revestida de bronze muito bem polido conduz a um imenso atrium, no qual Dolens entra pisando leve, incomodamente cônscio do arranhar dos cravos de suas botas no delicado mosaico de peixinhos. Murcus, aparvalhado com o luxo, não percebe que o rangido das cáligas é uma ofensa ao bom gosto da decoração: — Nunca entrei numa casa tão bonita — ele murmura, pasmo. — Eu já, quando criança — diz Dolens. — Mas foi pela porta de serviço, para entregar pão. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 75-76, grifo nosso). A noção da “porta de serviço” é bastante interessante. De que forma a experiência brasileira influencia em como as questões de hierarquia são entendidas em Roma? A porta de serviço também simboliza, não só um lugar físico, mas também social, de como acontece a interação entre as diversas camadas da sociedade romana. É o tipo de

75 No seriado Roma (HBO-BBC-RAI, 2005-07), as personagens dos legionários Titus Pullos e Lucius Vorenus representam as pessoas que vem do povo, algo que ainda é raro na ficção sobre a Antiguidade.

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observação que não se vê em nenhuma das outras séries tratadas na tese e influenciará em como o passado romano é entendido e recuperado. Isso aparece em diversas instâncias, como naquela em que o destacamento de Dolens tem uma altercação com um grupo de jovens aristocráticos, na Subura, que tentavam atacar uma moça: Malfeitorias e arruaças noturnas dos filhos do patriciado sempre foram uma das pragas de Roma [...] Dolens, plebeu parido e criado na Suburra, que era o bairro mais frequentemente assolado pela violência juvenil da aristocracia, odiava desde pequeno esse hábito dos bem-nascidos. E não era a primeira vez, nem seria a última, em que ele punia a violência com violência igual. [...]. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 54). — Ave! — Dolens ergue o braço em saudação. Os rapazes se assustam. São altos, belos e fortes. — Vá cuidar da sua vida! — diz o mais velho deles, que aparenta menos de dezoito anos. — A moça não parece feliz na companhia de vocês. — Ela é puta. — Vocês também são. E eu. E todo mundo. Viver é prostituir-se. Vocês aprenderão quando tiverem mais idade. — Meu pai é senador — o mais velho insiste. — Todos nós somos filhos de senadores. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 53, grifo nosso). A resposta dos rapazes é bastante reveladora, remete imediatamente às desculpas dadas por jovens brasileiros de classe alta ao espancarem uma doméstica e queimarem um índio76. Além de responderem com a famosa frase “você sabe com quem está falando”, que deveria ser suficiente para isentar o grupo de qualquer repercussão. O leitor brasileiro, por certo, identifica facilmente todas essas referências e tornam a Antiguidade Romana mais próxima da nossa realidade. Essas relações são evidenciadas por dois personagens antagônicos. Desiderius Dolens, o plebeu romano que tem como objetivo de vida entrar para a classe dos cavaleiros e que está disposto a tudo para consegui-lo; e Trebelius Nepos, o filho de um alto aristocrata que, após ter ficado manco em um acidente, decide deixar a vida de privilégios para “começar de baixo”, como um soldado raso na legiões. Por meio do caráter satírico da obra, o autor trata essas questões de forma mordaz e faz um comentário sobre as desigualdades passadas e presentes da sociedade. Relações interpessoais são mais importantes do que entre grupos e ideais, não há um sentimento de bem público, como visto em outras séries, as lutas e disputas se dão antes de tudo, por interesses pessoais.

76 Vários casos relatados pela mídia brasileira, como o caso da doméstica: Doméstica foi espancada por bando de classe média da Barra em junho de 2007. Diponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/do mestica-foi-espancada-por-bando-de-classe-media-da-barra-em-junho-de-2007-11519416. E o caso do indío Galdino: Índio é queimado por estudantes no DF. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff210401.htm. Ver Também: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Galdino_Jesus_dos _Santos.

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Publius Desiderius Dolens tinha ambições que, embora lhe parecessem grandiosas, eram bastante prosaicas. Para ele, tornar-se cavaleiro significava quitar as dívidas que tinha e deixar de pagar aluguel. Prover uma velhice confortável à sua mãe e arrumar um bom marido para a irmã. Oferecer uma pensão vitalícia à sua prostituta preferida e premiar com a liberdade a escrava que o criou. Além disso, elevar-se à ordem equestre lhe daria, imaginava Dolens, a ocasião de aparecer diante da esposa, sua amada bárbara germana, como o grande romano com quem ela, supunha ele, imaginou ter se casado [...] (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 71-72). Dolens tem uma relação ambígua com a aristocracia. Tem um ódio que se mistura com inveja e isso vai prevalecer ao longo de toda a narrativa. Apesar disso, nada se compara ao ódio voltado àqueles que saíram de baixo e conseguiram “vencer”, diferentemente dele: Todas as fibras do corpo de Dolens retesam e se enleiam até formar um nó de puro ódio que lhe dói entre as espáduas. Sua velha e aguçada inveja volta-se inteira para aquela figura vistosa: Nymphidius Sabinus, o praefectus praetorianus, não é tão somente o homem que lhe barrara o ingresso na guarda pretoriana; é um filho de escrava que atingira uma posição superior aos mais elevados sonhos que Dolens ousara ter. Como ele conseguira? Quantos teve de matar? Ou terá necessitado apenas de olhos claros, nariz reto e dentes alinhados? Deve sua carreira à fama do pai gladiador? Nascido na ralé romana, mas abençoado com o dinheiro que Marcianus, seu pai, ganhou exibindo músculos para senadores efeminados, Nymphidius teria a mesma sorte no principado de um imperador que, ao contrário de Nero, fosse menos entusiasta dos jogos de arena? O boato que, desde a adolescência, Nymphidius nutre com tanto empenho, de na verdade ser filho de Calígula, terá sido tão determinante em seu sucesso? Em quantas camas de mulheres e homens influentes ele deitou para se tornar o segundo homem de Roma? Quantas vezes lisonjeou os que desprezava, ao mesmo tempo em que traía aqueles que porventura o amaram? Quantas mentiras gentis e sorrisos falsos teve de distribuir? Quantos bons cidadãos arruinou para prosperar? Não há como saber, e nada disso importa; nada, além do fato de que Nymphidius, o filho da escrava que pertenceu a muitos e do gladiador que obteve a liberdade por se portar como besta-fera, Nymphidius, o bastardo que se fez cavaleiro, Nymphidius é praefectus praetorianus; está sobranceiro na tribuna com vermelhos e dourados brilhando no corpo, enquanto Desiderius Dolens, filho e neto de homens livres, embora plebeus, é um mísero centurião achincalhado no bairro onde nasceu por ser “filho de Cesárculo”, está de pé na poeira da praça entre milhares de outros e vive entupido de dívidas. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 114). Como isso se relaciona ao discurso do “self made men” feito em outras séries? Longe da exaltação feita da figura de Cícero em Harris, Dolens é a antítese do “self made men”, é aquele que, apesar de competente, mesmo não sendo nenhum gênio, nunca consegue vencer. E não por qualquer falha sua, ao contrário, não é uma questão de habilidades. Na Roma de Mallmann, subir na vida não é uma questão de habilidades, tudo

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é uma questão de favores e troca de favores, de quem sabe puxar o saco dos poderosos e escolher o lado vencedor. Quando ele, finalmente alcança até mais que seu desejo, tornando- se senador, não é por qualquer mérito seu e sim pelo capricho de Domiciano, filho de Vespasiano, novo imperador de Roma. Agora senador e vivendo na casa de um antigo aristocrata que caiu em desgraça, Dolens e sua família ocupam desconfortavelmente a nova posição: O pater familias, seus parentes e convidados se deitam de lado nos klinai, apoiam-se no cotovelo esquerdo e se servem com a mão direita. Embora seja símbolo de elegância, essa maneira de comer é um tanto incômoda para plebeus acostumados a sentar em banquinhos com um prato de barro equilibrado no colo. Dolens e os seus raramente usam os klinai, preferindo alimentar-se na cozinha, ao pé do fogão, como sempre fizeram. [...] – Honras da aristocracia? – Desidéria reclama. – Faz dois meses que sou irmã de senador e, até hoje, ninguém me convidou para um banquete. ((MALLMANN, As Mil Mortes de César, 2014, p. 303-304). Mallmann enfatiza a diferença de classes. É interessante notar que muito do que se entende por “romano”, como se reclinar no triclinium, é algo referente à uma classe social. A partir daí, é possível questionar sobre o que seria de fato “romano ou não”. Isso acontece ao longo de toda a série. Nepos, o filho de senador que virou legionário, serve a todo momento como ferramenta para explicitar essas diferenças. “Nepos, cujos pendores estoicos sempre o levaram a desprezar as lutas de vida e morte nos anfiteatros, está siderado. Vêm-lhe à mente, com aguda insistência, os versos de Homero que narram a morte de Heitor: — Têi rh’ epi hoi memaôt’ elas’ enkheï dios Akhilleus, Antikru d’ hapaloio di’ aukhenos êluth’ akôkê — ele recita, à meia-voz. — Como é que é? — estranha Murcus. — Só o que me faltava — Atticus resmunga. — Gracinhas em grego. — Não são “gracinhas” — Nepos exaspera-se. — É a Ilíada! Têi rh’ epi hoi memaôt’ elas’ enkheï dios Akhilleus, / Antikru d’ hapaloio di’ aukhenos êluth’ akôkê! — E isso quer dizer...? — Atticus pergunta. Nepos estufa o peito e declama, batendo com a bengala para marcar o ritmo: — “Por lá vibra o golpe da lança de Aquiles, A tenra garganta é o alvo que escolhe.” — Sei... — diz Atticus, perdendo completamente o interesse. — A tradução é minha — Nepos se justifica. — Está um pouco truncada, mas o sentido é esse. — Dolens matou Spiculus com o gládio, não com a lança — Murcus contrapõe.” (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 152-153). As referências que Nepos possui, seja no grego, seja de valores, como o estoicismo, é mostrada como pertencentes a um grupo social específico e não necessariamente representante de toda a sociedade romana. Dolens, também não se conforma por não saber falar bem o grego, ao contrário de Nepos. Quando o autor coloca citações em grego (transliteradas no texto), que Dolens e outras personagens não entendem, cria-se também uma aproximação com os leitores, que dividem esse desconhecimento.

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O autor não dá muita ênfase na representação do povo como grupo, porémchama atenção quando ele decide fazê-lo. Ao narrar o assassinato do imperador Galba, morto nas ruas de Roma, o autor descreve a reação popular: Servius Galba Imperator César Augustus, em sua liteira, desceu o Monte Palatino. Cercavam-no uma coorte de pretorianos, uma chusma de aduladores e alguns escravos [...] O povo curioso que atravancava o Forum rapidamente cercou a liteira. Não se ouviram vaias e nem vivas ao imperador, pois a plebe não queria ser partícipe, queria apenas garantir a melhor visão do espetáculo que se anunciava, fosse o triunfo dos justos, fosse a vitória dos maus ou qualquer espúria combinação dessas duas alternativas. Tragada pelo mar humano, a liteira de Galba ficou à deriva. Não foi aos Rostros, não chegou à Cúria, não alcançou os degraus do Capitólio. Em frente ao Lago Cúrcio, fendeu-se a turba. O povo acorreu aos beirais de templos e basílicas, amedrontado pelo avanço de uma esquadra de pretorianos a cavalo. O imaginifer que carregava a efígie de Galba deixou-a cair e fugiu. A coorte que escoltava a liteira se dispersou, preferindo ser fiel aos colegas de armas que ao imperador. Os escravos liteireiros, para não morrerem sob patas de cavalo ou espadas pretorianas, largaram as traves da liteira, que tombou de lado. Galba, arrancado da liteira como um crustáceo de sua concha, teve tempo de dizer, com voz de mausoléu: “Se acham que minha morte fará bem à República, matem-me de uma vez” [...] (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 299-300, grifo nosso). Aqui o povo não é descrito nem como a turba irracional de Harris, nem como tendo uma pecha revolucionária, como em Saylor. Ao contrário, a característica que define o povo em Mallamnn é sua passividade, não são agentes de mudança, mas meros espectadores. Parece evocar a famosa frase de Aristides Lobo77 que dizia que “o povo assistiu bestializado” à proclamação da república. É o exército o agente principal das mudanças políticas e é pela força que elas ocorrem. Quando se dá o assassinato de Galba, o povo foge com medo de ser pego no meio do conflito. Dolens participa de todas essas mudanças, sempre esperançoso de que com o próximo imperador tudo isso “vai mudar”.

Kate Quinn

A autora Kate Quinn não dá ênfase a esse aspecto na sua narrativa. Ela é repleta de escravos e aristocratas, mas o povo aparece muito pouco ao longo da série. Em geral, eles aparecem somente em momentos de crise, como nos assassinatos dos vários

77 Sobre carta de Aristides Lobo quando da Proclamação de República em 15 de novembro de 1889. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/LOBO,%20Aristides.pdf; https://imagens ehistoria.word press.com/tema-1-republica-velha/carta-de-aristides-lobo/.

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imperadores que ocorreram após a morte de Nero, ou quando estão no Circo Máximo e na arena: He was the hero of the mob, the favorite of the slums, and the plebs of Rome poured their money uncomplainingly into Gallus’s hand so they could pack into shaky stadiums and hang on his every move. They told their children he was a devil, they counted his scars and tabulated his kills; they howled and shivered and came back screaming for more. They whirled him, bloody and tired, to the taverns where he sat showered with wine and hung on by whores, lurking sour and murderous in his lonely corner and coming out of his lethargy only to lash at any fan who pressed too close. The black demon in Arius’s head ran joyously through a knee- deep river of blood and howled its happiness. (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 62-63).78 Nesse sentido, ela não difere das representações tradicionais desse grupo. O povo é uma massa amorfa onde não existe individualidade. Como já foi analisado anteriormente, são retratados como uma força irracional que vive apenas para satisfazer suas paixões. O que acontece em Quinn é que a autora discute essas questões sociais da época através das relações de poder e dos problemas enfrentados a partir do olhar de suas protagonistas, todas mulheres. Mesmo assim, elas são escravas ou aristocratas. Este assunto será desenvolvido com mais profundidade, no item sobre as questões de gênero.

2.3. Questões de Escravidão

Robert Harris

A série de Harris traz como narrador Tiro, escravo e posteriormente liberto de Cícero, que na velhice escreve uma biografia de seu antigo mestre. A história é narrada do seu ponto de vista, por meio de suas memórias. Apesar de se dizer uma biografia, ele não tenta emular o gênero biográfico antigo, como Mallmann fará na sua série. Tendo um escravo como narrador, poder-se-ia pensar que o tema da escravidão fosse constar como um dos principais temas da trilogia. No entanto, é exatamente o contrário que acontece. Tiro

78 Era o herói das pessoas, o preferido dos subúrbios. A plebe de Roma lançava seu dinheiro sem protestar nas mãos de Galo, para poder entrar em anfiteatros instáveis e seguir todos os seus movimentos. Diziam a seus filhos que ele era um demônio, contavam suas cicatrizes e tabulavam suas mortes. Gritavam, animavam e voltavam pedindo mais. Levavam-no, ensanguentado e esgotado, a tabernas nas quais o banhavam em vinho. Sentava-se rodeado de prostitutas, em seu canto solitário, amargurado e ameaçador. Somente saía de sua letargia para atacar a algum admirador que se aproximava muito. O demônio negro que habitava seu interior caminhava alegre sobre um rio de sangue, que chegava até os joelhos, uivando de felicidade. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 31).

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desenvolve-se como uma personagem absolutamente inerte, que existe como mera sombra de Cícero e quase nunca expressa vontades próprias ou opiniões. Como mencionado anteriormente, o autor celebra a falta de informações que se tem de Tiro e vê como um “presente” que se saiba tão pouco sobre ele. Afinal, “seria plausível que estivesse ao lado de Cícero no fórum, no senado e também dentro de casa, ao mesmo tempo não sabemos nada sobre ele, o que é maravilhoso, o que sabemos é que era indispensável à Cícero” (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 18:10). Harris não se pergunta o por que de não se saber nada a respeito de Tiro, enquanto abundam informações sobre Cícero. Faz dele uma figura passiva que vive e pensa em função do seu senhor. Apesar disso, as informações que se tem de Tiro ainda são muitas se comparadas a da maioria dos escravos. Mary Beard cita o livro 16 da obra Ad Familiares como “uma das mais importantes fontes sobre escravidão que sobreviveram do mundo antigo, por consistirem numa série única de cartas escritas de um senhor para seu (ex) escravo” (BEARD, 2006, p. 134)79. Ainda assim, não há nenhuma carta escrita pelo próprio Tiro. É bastante significativo de como a escravidão, na trilogia de Harris será representada, pois Tiro, narrador da história, não se refere nenhuma vez a Cícero, ao longo dos três volumes, por mestre ou senhor. Prefere usar termos neutros, como senador ou posteriormente cônsul. Da mesma forma, Tiro é chamado de “secretário” de Cícero, ao invés de escravo, o que, segundo Beard, também ocorre de maneira frequente na historiografia. (BEARD, 2006, p. 134). É uma forma sutil, porém importante, de demarcar um tipo de relação senhor/escravo que, do ponto de vista do público moderno, acaba por ser entendida como ambígua ou moralmente questionável. Ao mesmo tempo, funciona como forma de isentar e excluir Cícero da tradição escravocrata romana e do que ela implica. Afinal, contrasta com os valores que o autor quer associar à Cícero. A impressão que fica é de que Tiro é mais assessor político e assistente pessoal que escravo: As Cicero and I walked across the Forum, we could see a sizable crowd jostling on its steps to get a view of what was happening inside. I was carrying a document case, but still I cleared a way for the senator as best I could […]. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 60).80

79 Beard vai afirmar que apesar disso o documento é pouco utilizado na discussão sobre escravidão romana, segundo ela, por questões editoriais de como as cartas foram arrumadas em ordem cronológica e não temática, como no manuscrito original. (BEARD, 2006). 80 Enquanto Cícero e eu atravessávamos o fórum, podíamos ver uma multidão expressiva amontoando-se nos degraus para ver o que se passava lá dentro. Eu carregava uma pasta de documentos, mas mesmo assim tentei abrir passagem para o senador da melhor forma que pude [...]. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 59).

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After a while he said, in a very different voice, “Well, I tell you, for my part, I do not propose to die leaving one ounce of talent unspent, or one mile of energy left in my legs. And it is your destiny, my dear fellow, to walk the road with me.” We were standing side by side; he prodded me gently in the ribs with his elbow. “Come on, Tiro! A secretary who can take down my words almost as quickly as I can utter them? Such a marvel cannot be spared to count sheep in Arpinum! (HARRIS, Imperium, 2006, p. 262, grifo nosso).81 Gentlemen,' he said, resting his hand on my shoulder, 'this is Tiro, who has been my chief private secretary since before I was a senator. You are to regard an order from him as an order from me, and all business that it is to be discussed with me may also be raised with him […]. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 31, grifo nosso).82 A discussão sobre a escravidão, para além de momentos pontuais, em que serve para, e nas poucas vezes em que o assunto é citado, como quando se refere à revolta de Spartacus, é de maneira impessoal e apenas descritiva. O autor escolhe mostrar a reação de Cícero e não de Tiro. Esse tipo de representação da escravidão antiga, em especial a romana e grega, encontra respaldo no modo como o assunto é tratado em sala de aula. Um estudo realizado pela Southern Poverty Law Center83, sobre o ensino da escravidão nas escolas americanas, demonstrou que o vocabulário usado para falar sobre o tema induz a uma “visão simplista e higienizada” da escravidão. Com o uso de eufemismos, essa versão higienizada sobre o passado e a escravidão antigas perpetua a ideia de que a instituição em si não foi tão ruim assim. Mary Beard aponta para o perigo de se comprar a narrativa do “escravo feliz”, citando um caso extremo: “The Career of Tiro perhaps provides one of the better excuses for the institution of slavery and manumission” (TREGGIARI, Roman freedmen during the republic, Oxford, 1969. In: BEARD, 2006, p. 131). Na trilogia de Cícero, a escravidão é tratada de maneira muito pontual. O autor usa a temática quando quer demonstrar que uma personagem não é “do bem”. É apenas nesses momentos que Tiro expressa, ao longo do livro, algum tipo de auto reconhecimento de seu status de escravo:

81 Após um certo tempo falou, em tom bem diferente: – Bom, uma coisa eu lhe digo: da minha parte, não estou disposto a morrer deixando uma grama sequer de talento sem ser utilizado, ou um quilômetro de energia em minhas pernas. E a sua sina, meu caro companheiro, é seguir nessa estrada comigo. – Que é isso, Tiro! Um secretário capaz de anotar minhas palavras quase com a mesma rapidez com que as digo? Uma maravilha dessas não pode ser desperdiçada para ficar contando ovelhas em Arpino! (HARRIS, Imperium, 2006, p. 218). 82 – Cavalheiros – disse ele, pousando a mão no meu ombro –, este é Tiro, meu principal secretário particular desde antes de eu ser senador. Vocês devem acatar uma ordem dele como se fosse uma ordem minha, e qualquer assunto que deva ser discutido comigo pode também ser tratado com ele. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 52). 83 Teaching Hard History: American slavery. (SHUSTER, 2018).

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“So really, we must talk with such people?” Catulus sighed. “Well, Cicero perhaps,” he conceded. “But we certainly do not need you,” he snapped, pointing at me […] “I do not want that creature and his tricks within a mile of me, listening to what we say, and writing everything down in his damned untrustworthy way. If anything is to pass between us, it must never be divulged.” “I had no business to feel aggrieved. I was merely a slave, after all: an extra hand, a tool— a “creature,” as Catulus put it. But nevertheless I felt my humiliation keenly. I folded up my notebook and walked into the antechamber, and then kept on walking, through all those echoing, freshly stuccoed state rooms— Venus, Mercury, Mars, Jupiter— as the slaves in their cushioned slippers moved silently with their glowing tapers among the gods, lighting the lamps and candelabra. I went out into the soft, warm dusk […]. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 463).84 Tiro conhece na vila de Lúculo, uma jovem escrava chamada Agathe, lá ele descobre que a moça, capturada em sua vila na Grécia, é obrigada a se prostituir para os convidados de Lúculo. A personagem parece ter sido criada por Harris para demonstrar “os males da escravidão”, já que se trata da única escrava/escravo citada nominalmente além de Tiro. Not necessary, but as she climbed into my bed she assured me it was of her own volition, and so I joined her. We talked between caresses, and she told me something of herself – of how her parents, now dead, had been led back as slaves from the East as part of Lucullus's war booty, and how she could just vaguely remember the village in Greece where they had lived. She had worked in the kitchens, and now she looked after the imperator's guests. In due course, as her looks faded, she would return to the kitchens, if she was lucky; if not, it would be the fields, and, early death. She talked about all this without any self-pity, as one might describe the life of a horse or a dog. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 79-80).85

84 – Quer dizer então que teremos que negociar com essa espécie de gente? – Catulo suspirou. – Bom, com Cícero pode ser – ele concedeu. – Mas nós com certeza não precisamos de você – ele se virou e apontou para mim, [...] – Não quero ver essa criatura e seus truques a uma distância mínima de 1 quilômetro de mim, escutando o que dizemos e anotando tudo com esse maldito método no qual não confio nem um pouco. Se algo vai se passar entre nós, nunca deverá ser divulgado. Eu não tinha motivos para ficar ofendido. Afinal, não passava de um escravo: um apêndice, uma ferramenta, uma “criatura”, como Catulo afirmou. Mesmo assim senti-me tremendamente humilhado. Guardei meu bloco e fui andando até a ante-sala, e dali continuei a caminhar passando por todas aquelas salas, cada uma dedicada a uma divindade – Vênus, Mercúrio, Marte, Júpiter – enquanto os escravos, de sandálias acolchoadas, moviam-se silenciosamente com suas tochas flamejantes por entre os deuses, acendendo luminárias e candelabros. Fui parar do lado de fora, no agradável e acolhedor entardecer [...]. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 376). 85 [...] não era necessário, mas, ao subir em minha cama, ela me garantiu que era sua própria vontade, e fui lhe fazer companhia. Conversamos entre carícias, ela me contou algo a seu respeito – de como seus pais, já mortos, tinham sido trazidos de volta do oriente, como escravos, como parte dos despojos de guerra de Lúculo, e como ela se lembrava apenas vagamente da aldeia na Grécia onde eles tinham vivido. Ela trabalhara em cozinhas e agora cuidava dos hóspedes do imperador. E, na ocasião oportuna, depois que sua beleza se fosse, ela retornaria às cozinhas, se tivesse sorte; se não, seriam os campos e a morte prematura. Falou sobre tudo isso sem autocomiseração, como se fosse alguém descrevendo a vida de um cavalo ou de um cachorro. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 115).

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É importante notar que, mesmo quando Harris dá a palavra para a escrava, a descrição é desapaixonada e desassociada de qualquer consciência de si. A escrava narra sua vida como se estivesse falando de um “cavalo ou cachorro”. A questão é que a narrativa fica por isso mesmo, não há uma reflexão que associe a fala da escrava à uma desumanização promovida pela escravidão. As únicas vezes em que violência ou destrato de escravos aparece na narrativa, ela é associada à indivíduos. O autor parece usar desse artifício como meio de caracterizar o mau caráter dessas personagens. Por exemplo, Tiro janta com outros convidados, o que ele faz de maneira frequente na casa de Cícero. Quando a família de Cícero vai jantar na casa de seu irmão Quinto, Pompônia, sua esposa, não quer admitir a presença do escravo na refeição. This time, to Pomponia’s obvious irritation, he invited me to join them. She did not approve of slaves eating with their masters, and doubtless felt it was her prerogative, not her brother-in-law’s, to decide who should be present at her own table. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 55).86 Dessa forma, a escravidão torna-se uma coisa localizada. O problema não é a instituição em si, mas os maus senhores que abusam do seu poder ou possuem uma falha de caráter. Na narrativa de Harris, os escravos aparecem como força invisível e funcionam como cenário. Mesmo nos momentos em que contam sua história, como no caso de Agathe, o fazem de forma desapaixonada, desumanizada. Quando há indignação, ela vem justamente de Cícero, horrorizado com o que vê nas minas na Sicília, onde condenados são levados junto de escravos para trabalharem. “Promise me,” said Lucius after a while, “that if ever you achieve this imperium you desire so much, you will never preside over cruelty and injustice such as this.” “I swear it,” replied Cicero. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 166).87 Mais uma vez, Cícero é mostrado como um outsider, afinal desconhece as condições terríveis às quais escravos e prisioneiros são submetidos. Ao mesmo tempo, promete que caso venha a ter poder, não presidirá tal injustiça e crueldade. Fica a pergunta, sobre qual injustiça Harris está falando? A romana ou a do tempo presente? Algo similar ocorre, quando Cícero quer convencer Tiro a se arriscar para conseguir descobrir os planos de César e Crasso. O escravo não quer realizar o feito, pois teme a punição caso seja pego,

86 Dessa vez, para óbvia irritação de Pompônia, ele me convidou para me juntar a eles. Ela não aprovava que escravos comessem com seus amos, e sem dúvida pensava ser uma prerrogativa dela, não do cunhado, decidir quem deveria estar presente a sua própria mesa. (HARRIS, Dictator, 2017). 87 – Prometa-me – disse Lúcio depois de algum tempo – que, se algum dia você alcançar esse imperium que tanto deseja, nunca permitirá tamanha crueldade e injustiça. – Eu juro – Cícero respondeu. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 142).

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especialmente a tortura. Cícero trata o medo como bobagem e afirma que “jamais permitiria que isso acontecesse” e que “todos sabem que evidência conseguida sob tortura não é confiável”. Para finalizar, adiciona que faria de tudo para que Tiro não sofresse nada, já que era “mais como um irmão que um escravo para ele”. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 427). É curioso como o autor escolhe usar as fontes antigas. Tudo leva a crer, que Harris conheça a lei romana, que exigia que o depoimento de um escravo só fosse legalmente admitido perante a tortura. Ele, porém, escolhe não só não fazer menção ao fato, como insiste em contradizê-lo. Talvez para não macular a imagem de Roma como uma civilização iluminada, com um sistema político e jurídico a ser emulado. E, mais uma vez, vê-se o vocabulário que nega a escravidão Cicero bem poderia ter dito que Tiro era “quase da família”. Aliás, é curioso o discurso que o autor coloca na boca de Tiro, sem nenhum senso de ironia, sobre as eleições em Roma e a visão de que a república está em franca decadência: This was the old republic in action, the men all voting in their allotted centuries, just as they had in ancient times, when as soldiers they elected their commander. Now that the ritual has become meaningless, it is hard to convey how moving a spectacle it was, even for a slave such as I, who did not have the franchise. It embodied something marvelous— some impulse of the human spirit that had sparked into life half a millennium before among that indomitable race who dwelled amid the hard rocks and soft marshland of the Seven Hills: some impulse toward the light of dignity and freedom, and away from the darkness of brute subservience. This is what we have lost. Not that it was a pure, Aristotelean democracy, by any means [...] Still, it was freedom, as it had been practiced for hundreds of years, and no man on the Field of Mars that day would have dreamed that he might live to see it taken away. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 185- 186).88 Harris, não parece ver qualquer contradição em ter um escravo fazendo essa afirmação. Pelo contrário, parece ter escolhido justamente a Tiro, por ele ser um escravo. Com isso, o autor quer reafirmar que o sistema romano é tão universal que suas possíveis

88 Era a velha república em funcionamento, todos os homens votando em suas respectivas centúrias, tal como em tempos passados, quando eram soldados e elegiam seu comandante. Agora, que o ritual perdera todo o sentido, era difícil transmitir a emoção que aquele evento causava, até mesmo para um escravo como eu, que não tinha permissão para votar. Significava algo maravilhoso – um impulso do espírito humano que emergira meio milênio atrás numa raça indômita que vivia entre as rochas e os pântanos das Sete Colinas: um impulso em direção à luz da dignidade e da liberdade, e para bem longe das trevas da rude subserviência. Foi isso o que perdemos. Não que fosse uma democracia pura, aristotélica, de modo algum. [...] Ainda assim, havia liberdade, como foi praticada durante centenas de anos e nenhum homem do Campo de Marte naquele dia poderia sonhar que viveria para vê-la se perder. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 157-158).

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imperfeições, como a escravidão, são um mero detalhe. Ao afirmar, no final do trecho, “isso é o que nós perdemos”, cria-se um paradoxo Como um escravo pode perder e lembrar com nostalgia de algo que nunca teve? É também uma das inúmeras passagens da trilogia que enfatizam esse sentimento de decadência e fim de uma era89.

Steven Saylor

Logo de início, na cena que abre a série, Gordiano encontra Tiro, que foi à sua casa a mando de Cícero, pois gostaria de contratá-lo para resolver o caso do assassinato de Sexto Róscio. No caminho, eles testemunham uma briga nas ruas da Subura e uma pessoa, identificada como gladiador, acaba ferido. Tiro urge que Gordiano faça alguma coisa, pergunta se ele não vai investigar o caso e pensa que o gladiador deve estar morto. Ao que Gordiano responde: “You don’t know that. The gladiator may recover. Besides, he’s probably just a slave.” I winced at the flash of pain in Tiro’s eyes. (SAYLOR, Roman Blood, p. 23).90 Nessa simples troca, se estabelece várias questões. A primeira delas, sobre o lugar que o escravo ocupa nessa sociedade, além de demarcar as posições ocupadas por Gordiano e Tiro, que ao contrário do analisado em Harris, se reconhece como escravo. Ter essa passagem como uma das primeiras da série já informa como a escravidão será tratada ao longo da narrativa. Ainda assim, os discursos sobre escravidão produzidos pelo autor serão um tanto ambíguos. Saylor tem bastante interesse em discutir os diversos aspectos da escravidão e de como ela demarca as relações entre pessoas livres e escravos. Além do trecho acima, que dá início ao livro, o tema retornará diversas vezes, enfatizando sua importância. Na casa de Crisógono, liberto de Sila e um de seus favoritos, Gordiano, junto de Tiro e Aufilia, escrava da casa, tenta encontrar algumas provas dos crimes do primeiro e acaba por presenciar e participar da seguinte cena: [...] The lean, petulant one snorted and scowled at his food. “For what you want, Aufilia, this room’s too small. Can’t you find an empty room elsewhere with a couch big enough for the three of you?” “Felix!” the other hissed, prodding his companion with his pudgy elbow and gesturing with the other. Felix glanced up and blanched as he noticed the ring on my

89 Essas questões serão melhor abordadas no item que discute como cada autor vê Roma e seu legado. 90 Não sabes ao certo. O gladiador pode recuperar. Além disso, provavelmente não passa de um escravo. Encolhi- me perante o brilho de dor que detectei nos olhos de Tiro. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 41).

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finger. He had thought the three of us were all slaves, looking for a place to have a party of our own. “Forgive me, Citizen,” he whispered, bowing his head. They fell silent, waiting for me to speak. Before, they had been human beings, one of them lean and irritable, the other fat and good- natured, their faces alive in the warm glow as they fed themselves and parried with the girl. In an instant I saw them turn gray and indistinguishable, wearing the identical blank face worn by every slave of every harsh master who ever breathed in Rome. (SAYLOR, Roman Blood, p. 253).91 A perda de identidade é parte da violência e da degradação sofrida pelos escravos e, também, parte intrínseca da escravidão. A perda de humanidade leva à perda de identidade, “a verdadeira identidade do escravo é relegada ao domínio da memória, do passado (RANKINE, p. 40, In: Reading Ancient Slavery, 2011). Ao mesmo tempo em que Saylor deixa claro essa perda, na transformação imediata dos escravos ao se darem conta da presença de um cidadão, ele também mostra que o escravo não se resume à escravidão ao qual está submetido, havendo possibilidade da criação de laços de afetividade entre si. O mais importante é que na narrativa de Saylor os escravos têm nome, são personagens em si e não só em função de outros, como se vê em Harris com a personagem de Tiro. Da mesma forma que faz com as relações entre povo e aristocracia, Saylor está preocupado em demonstrar os contrastes sociais. O autor justapõe a miséria dos escravos nas galés ao luxo das vilas dos romanos ricos na baía de Nápoles. Por meio dessa viagem, de Gordiano em uma galé, ele tem a oportunidade de ver as condições dos escravos fora de um ambiente doméstico: The boy screamed, convulsed and fell again. The oar carried him for another revolution. He somehow found his grip and joined in the effort, every muscle straining. The lash struck again. The drumbeat boomed. The whip rose and fell. Squealing and gasping from the pain, the boy danced like a spastic. His broad shoulders convulsed at the whipmaster's rhythm, out of time with the great machine. His face contorted in agony. He cried

91 [...] O magro e petulante resfolegou e franziu o sobrolho na direção da comida. Para aquilo que pretendes, Aufília, este compartimento é demasiadamente pequeno. Não consegues encontrar um quarto vazio algures, com uma cama suficientemente grande para vocês os três? Félix! sibilou o outro, batendo no seu companheiro com um cotovelo possante e gesticulando com o outro braço. Félix ergueu os olhos e empalideceu quando reparou no anel que eu tinha no dedo. Pensara que éramos todos escravos, à procura de um sítio para uma festa privada. Perdoa- me, Cidadão murmurou, inclinando a cabeça. Ficaram calados, à espera que eu falasse. Antes, eram seres humanos, um deles magro e irritável, o outro gordo e bem-disposto, com os rostos vivos ao calor da luz, alimentando-se e brincando com a rapariga. De um momento para o outro, vi-os tornarem-se cinzentos e indistinguíveis, com a expressão neutra que têm todos os escravos de todos os senhores severos que alguma vez respiraram os ares de Roma. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 363).

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like a child. The whipmaster struck him again and again. (SAYLOR, Arms of Nemesis, 1992, p. 38).92 Esse caso é também curioso, pois mostra a influência que a ficção histórica tem no imaginário geral, criando certos discursos que não são necessariamente corroborados pelas fontes antigas. Os escravos ou condenados ao serviço nas galés é um deles. Apesar de imortalizado, primeiro pelo livro Ben-Hur de Lew Wallace, publicado em 1880 e depois pelo filme de 1959 com Charlton Heston, o uso de escravos em galés romanas era raro, só em casos de emergência, como na guerra púnica. É um exemplo interessante de como a ficção tem o poder de criar “verdades” sobre o passado e de como ficções atuais bebem dessa fonte. No caso de Saylor, que tem como maior inspiração os filmes históricos da época de ouro Hollywoodiana, não é difícil fazer esse paralelo. Qual o custo da escravidão? Como isso se reflete no que pode ser entendido como o “legado de Roma” ou no seu sistema visto como algo a ser emulado? Para além do exemplo das galés, é Catilina, no terceiro volume da série, que pergunta a Gordiano se ele já viu uma mina de prata em funcionamento: “Have you ever seen a mine in operation?" asked Catilina, so close behind me that I gave a start. "No." "I have." His face was somber in the soft light, with no hint of a smile. "You can't really understand the value of a precious metal until you've seen its true worth at the source—the agony and death required to extract it from the earth. Tell me, Gordianus, when does the weight of a hundred men equal less than a pound?" "Oh, Catilina, not a riddle ..." "When they are stripped of their flesh and weighed against a single cup made of pure silver. Imagine all those bones down there gathered up and stacked high upon a great scale. How much silver would it take to strike the balance? A handful, no more than that. Think of it the next time you press a silver cup to your lips. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 117).93

92 O rapaz gritou, convulsionou-se e voltou a cair. O remo obrigou-o a nova revolução. Fosse como fosse, recuperou o ritmo e juntou o seu esforço ao dos outros, com todos os músculos tensos. O chicote voltou a estalar. O tambor ressoou. O chicote ergueu-se e caiu. Guinchando e arquejando por causa da dor, o rapaz dançou espasmodicamente. Os seus ombros largos convulsionaram-se ao ritmo do senhor do chicote, fora de tempo relativamente à grande máquina. O seu rosto contorceu-se de agonia. Chorava como uma criança. O senhor do chicote bateu-lhe mais uma vez, e outra. (SAYLOR, O Abraço de Nemesis, 2003, p. 51). 93 Já viste uma mina a operar? perguntou Catilina, tão perto de mim que eu dei um salto. Não. Eu já. A luz era suave e seu rosto sombrio, sem a sugestão de um sorriso. Ninguém pode compreender verdadeiramente o valor de um metal precioso enquanto não tiver visto o seu valor real na fonte, a agonia e a morte que são necessárias para extraí-lo da terra. Diz-me, Gordiano, quando é que o peso de cem homens é inferior a quinhentas gramas? Oh, Catilina, outro enigma não... Quando eles são despidos da sua carne e o seu peso é comparado com o de uma única taça feita de prata pura. Imagina todos aqueles ossos reunidos e amontoados numa grande balança. Que quantidade de prata seria necessária para equilibrar a balança? Não mais do que uma mão-cheia. Pensa nisso da próxima vez que levares aos lábios uma taça de prata. (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 195).

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É possível comparar esse trecho com um similar de Harris, citado acima, que fala da visita de Cícero às minas da Sicília durante a investigação sobre Verres. Nessa obra, Cícero fica horrorizado e jura jamais participar dessa injustiça, pois procurava por um homem falsamente condenado por Verres. Para esse autor, o problema é a aplicação injusta da lei, uma perversão de seu sentido original. Para Saylor, ao contrário, o sistema funciona exatamente como foi pensado para funcionar e é parte intrínseca dele. Saylor pergunta qual é o custo humano necessário para fazer a sociedade romana funcionar e que muitas vezes é ignorado. Perguntar o que está por trás de algo, como uma taça de prata, é também perguntar quem são essas pessoas que não estão nas fontes clássicas ou só aparecem marginalmente. Essa ideia de que a escravidão é indissociável do passado romano é repetida diversas vezes ao longo de toda a série. Em “Arms of Nemesis” (Os Braços de Nemesis), Gordiano sonha com os escravos que vão morrer, por um deles ter sido acusado de matar seu mestre. Ele questiona Crasso, que responde “essa é a justiça romana e não há nada que você possa fazer sobre isso”. (SAYLOR, Arms of Nemesis, 1992, p. 161). Ao conversar com a pintora Olímpia sobre o mesmo assunto, ela reafirma que isso nada mais é do que “o modo romano de ser”. "Surely, if it was someone here in the house who murdered Lucius, that person cannot stand by and see so many people slaughtered in his stead." "Not people," she corrected, "slaves." "Still—" "And for slaves to die, even ninety-nine slaves, for the benefit of a great and wealthy man—is that not the Roman way?" To that, I had no answer. I left her standing by the pool, staring into its sulphurous depths. (SAYLOR, Arms of Nemesis, 1992, p. 118).94 No mesmo livro, o filósofo Dionísio aproveita de um jantar na vila de Crasso, para fazer um histórico das diversas revoltas de escravos anteriores à de Spartacus. É a forma que Saylor encontra para introduzir informações históricas longas dentro da narrativa. Ele fará isso em outros momentos do texto que serão tratados nos próximos itens. E é assim que Dionísio termina a história de uma das revoltas: Fortunately, two of the slaves betrayed the conspiracy to the praetor in Rome, who gathered a force of two thousand men and rushed to Setia. The leaders of the conspiracy were arrested, but there was a great flight of slaves from the town. Eventually they were all recaptured or slaughtered, but not before spreading terror through the vicinity. The two slaves who

94 Certamente que, se tiver sido alguém aqui da casa a assassinar Lúcio, essa pessoa não aguentará ficar a assistir à carnificina de tantas pessoas, mortas por sua causa. Não são pessoas corrigiu-me ela. São escravos. Ainda assim... É dar a morte a escravos, ainda que sejam noventa e nove, em benefício de um homem importante e abastado não é assim que Roma funciona? Para isso, eu não possuía resposta. Deixei-a ao pé da piscina, olhando para as suas profundezas sulfurosas. (SAYLOR, O Abraço de Nemesis, 2003, p. 175).

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had wisely informed on their fellows were rewarded with twenty-five thousand pieces of bronze and given their freedom." – "Ah!" Gelina, who had been listening, wide-eyed, nodded approvingly. "I like a story with a happy ending." (SAYLOR, Arms of Nemesis, 1992, p. 89).95 As diferenças entre passado e presente na narrativa surgem de forma irônica, chamando atenção para uma moral diferente, ao mesmo tempo em que convida para um questionamento dessa moral e faz uma crítica. Apesar de apresentar uma narrativa que considera fundamental a presença de escravos para a sociedade romana e que são também personagens importantes para a narrativa, Saylor não desenvolve o que isso significa para o escravo em si. Vemos tudo da perspectiva de Gordiano, que é cidadão e livre, mas não vemos do ponto de vista dos escravos. O autor, não consegue fugir do discurso de que o maior problema da escravidão sejam os mestres ruins. Na sua série, as “pessoas ruins” tratam mal seus escravos e as “pessoas boas” os tratam bem e eles são felizes em servi-los. Nesse sentido, os escravos são todos obedientes caso tenham um senhor justo. O autor também não se aprofunda na problemática das relações entre escravos e cidadãos livres. Isso acontece de forma especial em dois casos: entre Gordiano e Bethesda e entre Marco Múmio e Apolodoro. No primeiro livro da série, o autor apresenta Bethesda, escrava egípcia, que Gordiano adquiriu muitos anos atrás em sua viagem para Alexandria, e que vive como sua concubina. Posteriormente, no terceiro volume da série, Gordiano a liberta e se casa com Bethesda, com a qual tem uma filha. Saylor, que em diversos momentos gosta de enfatizar a violência da experiência da escravidão, curiosamente não expõe os problemas éticos desse tipo de relação. Ao contrário, ela é muito romantizada e tratada como um relacionamento como outro qualquer. O mesmo acontece entre Marco Múmio e o escravo Apolodoro. Tudo isso corrobora um discurso de que a escravidão em si não é um problema, mas sim os senhores cruéis que não têm limites. Apesar das afirmações de Saylor sobre esse ser “o jeito romano”, ele associa em todas as instâncias o descontentamento de um escravo com os maus tratos sofridos. Ver a escravidão como um mero problema de moral é uma forma de justificar a dominação, e, de um ponto de vista mais amplo, justificar as conquistas

95 Felizmente, dois dos escravos revelaram a conspiração ao pretor de Roma, que reuniu uma força de dois mil homens e marchou para Sécia. Os chefes da conspiração foram presos, mas deu-se uma grande fuga de escravos da cidade. Acabaram por ser todos recapturados ou chacinados, mas não sem antes espalharem o terror pela vizinhança. Os dois escravos que sensatamente denunciaram os seus colegas foram recompensados com vinte e cinco mil moedas de bronze e a liberdade. Ah! Gelina, que estava a ouvir de olhos muito abertos, acenou com a cabeça em sinal de aprovação. Gosto de histórias com um fim feliz. (SAYLOR, O Abraço de Nemesis, 2003, p. 121).

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de outros povos. Ainda que se evidencie a violência contra o indivíduo não se pergunta o que os levou até lá.

Max Mallmann

Na série do autor Max Mallmann, os escravos não têm uma participação especialmente preponderante, porém ele traz algumas questões contundentes sobre o tema. O primeiro ponto é o papel dos escravos na criação dos filhos dos cidadãos romanos. Essa dimensão doméstica é pouco explorada nas duas séries anteriores e terá mais espaço na narrativa da autora Kate Quinn. A personagem Dolens possui apenas uma escrava, essa se trata de Olímpia, que é alguém responsável por manter a casa em ordem e cuidar da sua família. Um dos objetivos de Dolens, ao se tornar cavaleiro, é o de “premiar com a liberdade a escrava que o criou.” (MALLMANN, Centésimo em Roma, 2010, p. 72). Após um longo tempo sem poder ver a família, quando os reencontra em Siracusa, é Olímpia quem ele vê primeiro e abraça, não sua mãe: Ele sobe a escada sozinho. Nos últimos degraus, é reconhecido: – Patrãozinho! – grita a liberta Olímpia, estendendo os braços para acolhê- lo. Dolens, embora seja muito mais alto que Olímpia e esteja todo paramentado com suas tralhas de guerra, se aninha no peito da ex-escrava como se tivesse seis anos: (MALLMANN, As Mil Mortes de César, 2014, p. 291, grifo nosso). É importante observar o vocabulário usado entre os dois. A relação entre Dolens e Olímpia e seu histórico bebem muito da relação patrão/empregada doméstica brasileiros. O termo patrãozinho, usado de forma comum para se referir ao filho do senhor da casa, traz ao mesmo tempo uma sensação de familiaridade e hierarquia. Mas essa não é a única vez em que essa relação de familiaridade, entre senhor e escravo, é explorada. Quando os escravos de Trebélio Nepo correm o risco de serem executados, por estarem sendo acusados da morte de seu pai, ele diz: — Deixe-me falar do meu problema: nosso tribuno Domiciano, o homem- mosca, quer crucificar todos os escravos da casa do senador Longinus. As mãos de Nepos fecham-se em garra no cabo da bengala. — Já fui informado. — Você acha justo? — Para mim, não são apenas escravos. Entre eles está a mulher que me amamentou, o homem que me ensinou a ler, o meu professor de grego, os meus companheiros de infância... — Terão todos uma morte horrível. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 96). Mallmann, no entanto, consegue escapar do discurso higienizado da escravidão, que equipara a familiaridade entre senhor e escravo como sinal de que há igualdade e

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consentimento em suas relações. Isso porque a afirmação de Nepos, no futuro, se mostrará no mínimo hipócrita. Quando Nepos acredita que um desses escravos sabia que seu pai havia se tornado cristão e que eles mesmos possivelmente também o seriam, não hesita em submetê-los à tortura, fossem eles inocentes ou culpados, para descobrir o paradeiro do bispo cristão romano (suspeito de ser o assassino do pai). Ainda que Nepos afirme que “não são apenas escravos” e que haja um carinho envolvido, isso não preclude que as relações hierárquicas e de poder se mantenham. A pequena tenaz aperta a unha do polegar e a arranca, junto com fiapos de carne. O liberto Zopyros, acorrentado a uma parede da Domus Doloris, grita com todo o ar que tem nos pulmões. Nepos, impassível como uma lápide, observa o trabalho do torturador. — Patrãozinho Nepos! — Zopyros clama, chorando — Eu vi o senhor nascer! — E eu o verei morrer, se você não confessar. Quando mandou prender Zopyros, velho escravo que, no testamento do senador Longinus, fora premiado com a alforria, Nepos argumentou consigo: “Sou um homem bom, mas o exercício da justiça demanda crueldade.” (MALLMMAN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 359). O mais interessante é que a personagem de Nepos não é, na narrativa, nem vilão, nem alguém antagonista. Ao contrário, ele é descrito como alguém que segue de perto os princípios romanos e está sempre questionando as práticas pouco ortodoxas de Dolens. A escravidão, então, não se resume a uma dicotomia entre bons ou maus mestres. O mesmo ocorre na descrição das relações entre mestre e escravo. É revelado que Nepos e Tristanus, seu escravo, são amantes. Sempre deixa claro a relação de poder que existe na relação entre senhores e escravos e não dá espaço para romantizar essas relações: “Fique quieto e durma. O escravo vira para o lado e fecha os olhos. Depois de alguns instantes de silêncio, Nepos não resiste: — Tristanus? — Sim, patrãozinho. — Você me ama? — Meu coração lhe pertence. Nepos se acomoda melhor sobre o travesseiro, até que tem um novo sobressalto: — Você é meu escravo. É óbvio que o seu coração me pertence! Apesar dos protestos e sacudidas de Nepos, Tristanus finge dormir”. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 284). Por meio da ironia, o autor traz à tona os paradoxos envolvidos na representação da antiguidade romana e dialoga com eles. Ao invés de encobrir e disfarçar essas contradições, Mallmann chama atenção para elas e nisso também chama atenção para os limites dessa representação. Por exemplo, com a confusão do suicídio de Nero, Tristanus, que estava preso, é solto da prisão. Nepos pergunta a Dolens: — Tristanus está livre? — “Livre” é uma expressão pouco apropriada, em se tratando de um escravo. Ressalvada essa impropriedade, a resposta é sim. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 131-132).

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É o tipo de paradoxo e ironia, que Harris não parece perceber ou não se interessa em explorar quando coloca um discurso sobre perda de liberdade política na boca de um escravo como Tiro. A liberdade de Tristanus, ainda que apenas da prisão, só foi possível por um “acaso”. No dia da morte de Nero, o destino de um escravo pouco importa: — E o escravo? — Que escravo? — Tenho um escravo do senador Longinus sob custódia. Aquele que fugiu do local do crime. Não me parece útil mantê-lo preso por mais tempo. — Então mate-o. Venda-o. Solte-o. Jogue-o às feras do Circus Maximus. Hoje é um dia em que a História é escrita, Dolens. Não é tempo de pensar em escravos. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 131). O autor faz uma reflexão a respeito do lugar que a história concede aos escravos. Vai de encontro à ideia de que escravos não fazem parte da história ou são um grupo de menor importância no grande esquema das coisas. A História, com H maiúsculo está preocupada com a morte de Nero mais do que com a condição de um escravo. A falta de misericórdia de Nepos, em relação aos escravos que ele mesmo diz terem sido parte da sua vida, serve como forma de causar um mal-estar no leitor. Em especial porque Nepos é ao longo da história a personagem que funciona como um contraponto à Dolens. Alguém que ao contrário do protagonista não está disposto a tudo.

Kate Quinn

Na série “The Empress of Rome” (Imperatriz de Roma), Quinn apresentará dois pontos de vista. Em um dos volumes, uma das protagonistas é uma escrava, Thea, e um gladiador, Ário. No segundo volume, tem-se quatro mulheres aristocratas como protagonistas. Thea é uma escrava judia, capturada em Massada pelas tropas romanas, e além de escrava, também é estrangeira, sendo a única protagonista das séries tratadas que não é romana. Isso dá a ela uma perspectiva diferente das outras personagens. Permite que o mundo romano seja visto sob uma outra ótica e que seja explicado como se a protagonista, assim como os leitores, estivessem vendo-o pela primeira vez. A princípio, ela é uma escrava doméstica, que serve como acompanhante de Lépida Póllia, filha do senhor da casa que é lanista. A autora, a partir da narrativa, cria um diálogo interno entre Thea e o público, que acaba se tornando um comentário da escrava sobre as situações que vivencia: “Thea!” My mistress’s voice. I muttered something rude in a combination of Greek, Aramaic, and gutter Latin, none of which she understood. […] Thea! “Yes, my lady,” I murmured in my purest Greek. A frown flickered

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between her fine black brows. I was better educated than my mistress, and it annoyed her no end. I tried to remind her at least once a week. (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 02-03).96 Esse tipo de diálogo permite que tenhamos duas dimensões distintas: a primeira é o que ela diz para sua senhora, a outra se refere ao que ela está pensando de fato. Com isso, logo de início, os escravos são mostrados como mais que meros objetos passivos. É uma forma interessante de mostrar um tipo de “resistência silenciosa”, mas que garante ao escravo ser visto pelo público como uma pessoa que possui humanidade plena. Alguém com desejos, vontades e opiniões e cuja identidade vai além da condição servil ao qual está submetido. Quando os mestres da casa viajam para outra propriedade, para passar o verão longe de Roma, os escravos abandonam qualquer pretensão de que estão preocupados em manter as aparências. My mistress and her father left the next morning in a welter of wagons and slaves and silver litters, and I was free. Free! The July sun baked me golden brown, the dust rose off the streets and choked my lungs, the sweltering nights gave me my usual nightmares, but I was free. No Lepida to trail with a fan and a handkerchief, no bee-sting jabs from her tongue. No Pollio with his moist hands in dark hallways. No work to do, since the exacting steward ceased tracking our comings and goings and retired to the circus to watch the chariot races all day. The male slaves slipped off to the taverns, the maids tripped out to meet their lovers, and no one cared a jot. (QUINN, Kate, Mistress of Rome, 2010, p. 48-49).97 Leaving the others behind and traveling hard in a two-wheeled carriage (Cicero never went on horseback if he could avoid it), we retraced our route, reaching the villa at Tusculum by nightfall the following day. Pompey’s estate lay on the other side of the Alban Hills, only five miles to the south. The lazy household slaves were stunned to find their master back so quickly and had to scramble to put the place in order. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 264, grifo nosso).98

96 — Thea! — Troou a voz de minha senhora. Resmunguei uma maldição em uma mistura de grego, hebreu e latim das ruas, três idiomas que minha proprietária desconhecia. [...] Thea!— Sim, minha senhora. — Resmunguei em um grego excelente. Ela torceu o rosto franzindo as delicadas sobrancelhas negras. O fato de que eu fosse mais culta a incomodava, sobremaneira. Eu procurava evidenciar isso a ela, pelo menos uma vez por semana. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 2-3). 97 Minha senhora e seu pai partiram no dia seguinte em uma caravana de carros, escravos e liteiras prateadas. Eu era livre, livre! Minha pele morena se abrasava sob o sol de julho, o pó que se levantava nas ruas enchia meus pulmões e as tórridas noites provocavam-me pesadelos, mas era livre. Sem ter que correr atrás de Lépida com um leque ou um lenço, nem receber as punhaladas de sua língua; sem Pollio me acossando com suas suarentas mãos em um corredor escuro; sem trabalho a fazer, já que o estrito mordomo da casa deixou de controlar nossas entradas e saídas, e passava todo o dia no circo assistindo as corridas de bigas. Os escravos de Pollio se refugiavam nas tabernas, as donzelas saíam para encontrar seus amantes e a ninguém importava um nada o que acontecesse. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 26). 98 Deixando todos para trás e acomodando tudo numa biga (Cícero nunca montava se pudesse evitar), nós fizemos o caminho de volta, chegando à vila de Túsculo ao cair da noite do dia seguinte. A mansão de Pompeu ficava no outro lado das colinas Albanas, a apenas uns 8 quilômetros ao sul. Os preguiçosos escravos domésticos ficaram atônitos ao ver o patrão de volta tão cedo e tiveram que se esforçar para pôr a casa em ordem. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 221).

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Duas situações idênticas, mas contadas de pontos de vista diferentes, com resultados bastante diversos. Em Quinn, a ausência dos senhores é usada pelos escravos como momento de menor vigilância e, por isso mesmo, como chance de escapar das tarefas impostas. É mais uma forma de resistência e pessoalidade colocadas pela autora. Em Harris, ao contrário, a mesma atitude dos escravos é chamada de preguiçosa por Tiro. E não é nem uma forma de mostrar a visão que os senhores pudessem ter dos escravos, é dita pelo narrador como uma descrição dos fatos. Essas diferenças vão levar a distintas interpretações da escravidão e de suas repercussões. Para além disso, a questão da perspectiva tem efeitos sobre como certos eventos são entendidos. Por exemplo, os jogos no circo são vistos de duas perspectivas. Thea tem pavor de acompanhar sua senhora aos jogos no circo: The blades crashed. The audience surged forward, straining against the marble barriers, shouting encouragement to the favorites, cursing the clumsy. Waving, wagering, shrieking. Don’t look. Swish, swish, went the fan. Don’t look. “Thea,” Lepida said sweetly. “What do you think of that German?” I looked. “Unlucky,” I said as the man died howling on his opponent’s trident. (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 09).99 ‘Whatever you say.’ Diana took a swallow of wine as the Gate of Life rumbled open again and the purple-cloaked gladiators came out for their fight. ‘I just don’t like to watch animals die.’ Llyn watched the gladiators fling their cloaks aside, pairing off. ‘I don’t like to watch men die, Lady.’ (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 147).100 Aqui, a autora apresenta uma visão que descarta a vida dos gladiadores como menos importantes que a de animais e já coloca seu questionamento quando o bretão Llyn, responde dizendo que ele não gosta mesmo é de ver homens morrerem. Quinn utiliza essa ferramenta narrativa para contrapor duas visões opostas sobre os jogos de gladiadores, que levam em conta a posição social e origem da personagem, isto é, aristocrata e romana, liberto e bretão. Em relação aos gladiadores, a autora desenvolve uma narrativa interessante. Um dos protagonistas, Ário, é um bretão, capturado em uma revolta pelo exército romano

99 Assim que as espadas se chocaram, o público se inclinou sobre as barreiras de mármore, gritando incentivos aos seus favoritos e amaldiçoando os perdedores entre gestos, apostas e gritos. — Não. — Disse-me Lépida. — Segue abanando-me com o leque. Não olhe. — Thea, — ela me perguntou em tom malicioso, — o que lhe parece esse germânico? — Que tem pouca sorte. — Respondi justo quando o homem uivava de dor e morria atravessado pelo tridente de seu competidor. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 6). 100 “Independente do que você diga”, Diana tomou um gole de vinho ao mesmo tempo em que A Porta da Vida se abria de novo com um estrondo e os gladiadores em suas túnicas púrpuras saíam para lutar. “Eu não gosto de assistir animais morrerem”. Llyn olhou os gladiadores jogarem suas túnicas para o lado, dividindo- se em pares. “E eu não gosto de assistir à homens morrerem, Senhora.” (QUINN, As Filhas de Roma, p. 147, tradução própria).

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e transformado em gladiador. A autora explora a posição ambígua ocupada pelos gladiadores em Roma. Tomorrow those powerful men would curl their lips at the sight of the gladiators; tonight they would wax expansive and clap the scarred shoulders with their ringed hands. Tomorrow those elegant ladies would draw their skirts aside from any fighter they encountered on the streets; tonight they would fawn and even flirt. Why not? By tomorrow, these men would likely be dead. (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 36).101 His face started to appear everywhere, painted badly on the sides of wooden buildings around the Colosseum. Crudely chalked graffiti greeted my eyes on alley walls: “Arius the Barbarian makes all the girls sigh!” Vendors hawked garish little portraits on gaudy ribbons. Taverns offered him free wine, and whores offered him free time. Arius, a slave and a barbarian, a man who would be cut up and fed to the lions when he died instead of meeting his gods in a proper tomb. Lower than sewer trash, but so important: His fights would calm the crowds when they grumbled too loudly over the Emperor’s taxes, his presence would titillate the most bored patricians at dinner parties and keep them from scheming, his blood would be sold to epileptics as a cure for their foaming fits, and brides would fight for one of his spears to part their hair on their wedding day and thus guarantee themselves a happy marriage. (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 49-50).102 A autora chama atenção para a posição dos gladiadores, que ao mesmo tempo são considerados heróis e infames na sociedade romana. As pessoas chamadas infames faziam parte de uma categoria jurídica romana que versava sobre a perda de “boa reputação”. Essas pessoas sofriam várias restrições legais, não poderiam defender ou acusar alguém jurídica ou politicamente, além de ter seus corpos sujeitos a castigos, violações e mutilações. (GARRAFONI, Gladiadores na Roma Antiga, 2005, p. 182). Ao mesmo tempo, eram cobiçados e estavam ligados a rituais religiosos. A historiografia sobre os gladiadores geralmente os relegou a um lugar de ambivalência na sociedade. Viveriam na dualidade, parte monstros e assassinos, parte heróis e virtuosos. Quinn dialoga com essa historiografia

101 No dia seguinte aqueles poderosos homens fitariam com desprezo os gladiadores, mas nessa noite se desfaziam em elogios aplaudindo suas costas machucadas com suas mãos cheias de anéis de ouro. No dia seguinte, aquelas elegantes damas afastariam suas saias se cruzassem com um lutador na rua, mas nessa noite os admiravam e inclusive flertavam com eles. Por que não? Provavelmente, no dia seguinte estariam mortos. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 19). 102 Seu rosto começou a aparecer em todas as partes. Mal pintado nas paredes de edifícios de madeira ao redor do Coliseu. Nos becos, meus olhos encontravam as cruas inscrições com Creta : Arius o Bárbaro, o capricho das mulheres. Os vendedores apregoavam ásperos retratos pendurados aos gritos. Nas tabernas o convidavam ao vinho e as prostitutas lhe ofereciam serviço grátis. Arius, um escravo e um bárbaro, um homem que ao morrer seria cortado em partes e dado aos leões, em vez de receber sepultura digna, para ir ao encontro de seus deuses. Mais baixo que um rato de esgoto, mas uma pessoa importante. Seus combates aplacavam as pessoas, quando estas elevavam suas vozes contra os elevados tributos imperiais; sua presença excitava aos mais aborrecidos patrícios nas festas, evitando que conspirassem; seu sangue era vendido aos epiléticos, como cura para seus ataques; as noivas brigavam para que uma de suas lanças partisse seu cabelo no dia de seu casamento, o que garantiria um feliz matrimônio. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 25).

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acerca dos gladiadores. Garrafoni vai questionar esse ponto de vista, argumentando que tais visões são em parte graças as fontes usadas serem em sua maioria textos de uma elite romana em particular, como Cícero, Suetônio e Sêneca. Para ela, isso restringe as ações dos gladiadores à visão de alguns membros da elite e à parte dos espectadores, tirando a possibilidade de entendermos essas pessoas por outros termos, inclusive seus próprios. Por meio da arqueologia e de uma série de grafites é possível conhecer outras representações que vão além da dicotomia assassino/herói. Na série de Quinn, Ário parece cumprir esse papel com perfeição. Isto é, até encontrar Thea. A partir do encontro com a escrava e do seu convívio com ela, Ário deixa a persona, que parece ter sido imposta por seus mestres e pelos anos de escravidão, e começa a construir uma identidade que vai além a de escravo e gladiador. Isso é representado pelo que Ário chama de “demônio”, uma voz que surgiu quando foi vendido para as minas como escravo e o impele a cometer atos de violência. Ele é alguém que vive sem perspectiva, até conhecer Thea e conviver com ela. A troca de experiencias sobre a vida pré-escravidão entre os dois permite a criação de um espaço que consegue estabelecer relações que fogem ao controle de seus senhores e que também os coloca como mais que escrava e gladiador, identidades impostas a ambos pela conquista romana. He reached out. In his head he heard a voice, too low and pleading to be the demon: Don’t hurt her. (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 72).103 A personagem Thea não tem um “demônio” que vive em sua mente, mas possui tendências suicidas e o hábito de se cortar para lidar com as agruras da vida como escrava. O livro começa com ela fazendo pequenos cortes no pulso, para controlar a ansiedade de precisar acompanhar sua senhora aos jogos. A convivência com Ário também tem efeito sobre seus hábitos, que são mudados após a convivência com o gladiador: The freshest of the knife scars on my wrists had faded to clean pink lines, and I was happy. I didn’t even realize I was singing until Lepida poked her head out of her litter and snapped at me. (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 88).104 Ainda que espaços sejam breves, a autora não deixa o público esquecer que os espaços de resistência são poucos e frágeis, pois tanto Thea quanto Ário são obrigados a se separarem devido à Lólia. O objetivo de Quinn ao criar essa narrativa é olhar para os

103 Arius estirou a mão enquanto em seu interior ouvia uma voz muito suave e suplicante para ser a do demônio: Não lhe faça mal. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 35). 104 A última cicatriz que restava no pulso estava se convertendo em imperceptíveis linhas rosadas. Era feliz. Não me dei conta que estava cantando até que Lépida mostrou a cabeça pela liteira e gritou. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 43).

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escravos de uma forma a humanizá-los, vê-los para além de um grupo anônimo e invisível. Pensar em vivências que escapam ao determinismo do “bom escravo”, como o Tiro de Harris, ou o da eterna vítima, daqueles para sempre calados escravos das minas de prata de Saylor. Essa dualidade de representações acontece também quando Quinn trata do assunto da violência sexual à qual os escravos estão sujeitos. Tem o caso de Thea e tem o caso de Trax. Mostra ainda as ambiguidades contidas na narrativa da autora que aparecerá relacionada em outros itens, especialmente na forma como retrata questões de gênero na obra. É um exemplo de como a escolha sobre a partir de qual ponto de vista se escolhe falar muda a perspectiva e como é importante que diversas perspectivas sejam representadas para que os discursos sobre o passado se tornem múltiplos. No livro, “Mistress of Rome” (A Concubina de Roma), em que dois dos protagonistas são escravos, a violência sexual é mostrada como um dos horrores da escravidão. “Ah, Thea. Just what I need.” I stared blurrily at the two Quintus Pollios who beckoned me into the bedchamber and onto the silver sleeping couch. I closed my eyes, stifling a yawn and hoping I wouldn’t fall asleep in the middle of his huffing and puffing. Slave girls aren’t expected to be enthusiastic, but they are expected to be cheerful. I patted his shoulder as he labored over me. His lips peeled back from his teeth like a mule’s during the act of . . . well, whatever you want to call it. “What a good girl you are, Thea.” Sleepily patting my flank. “Run along, now.” I shook down my tunic and slipped out the door. Likely tomorrow he’d slip me a copper. (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 14).105 Já no livro “Daugthers of Rome” (As Filhas de Roma), em que as protagonistas são mulheres da aristocracia, o problema será encarado de maneira diferente. O público acompanha Lólia em busca de um escravo para satisfazê-la e, ainda que seja questionada sobre a ética dessa compra, a narrativa evolui para um romance entre senhora e escravo. Cornelia stopped. ‘Lollia, lovers from your own class are one thing, but bedding a slave? It – well, it demeans you. And them too.’ ‘You wouldn’t say that if I were a man.’ Her cousin tucked a red curl behind her ear. ‘Every husband I ever had took a roll with the slave girls now and then. Slave boys, too.’ ‘That doesn’t make it right.’ ‘Any slave who looks like

105 — Oh, Thea! Justo o que eu precisava. Contemplei a imagem imprecisa e dupla de Quinto Pollio, que me indicou que entrasse em seu dormitório e deitasse em sua cama. Fechei os olhos contendo um bocejo e esperando não adormecer em meio de seus trancos e gemidos. Não se esperavam que as escravas fossem entusiastas, mas que pelo menos se mostre receptivas. Toquei seus ombros enquanto ele se transportava para cima de mim. Seus lábios bramavam como um asno enquanto me fazia. Bem, como queiram chamar. — Que boa garota você é, Thea. — Ele disse e me deu alguns tapinhas no lado do corpo, sonolento. — Ande, vá logo. Baixei minha túnica e saí do quarto. Certamente no dia seguinte ele me daria um ás de bronze. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 9).

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Thrax over there knows he’ll be bought for a bedmate,’ Lollia said, exasperated. ‘He’s probably thanking whatever gods he worships that I bought him and not some middle-aged hag or nasty old senator.’ ‘I’m glad you think so well of yourself,’ Cornelia said, disgusted. (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 49).106 Sem dúvida, as diferenças se dão também por conta de uma questão de gênero, que será melhor explorada no próximo item. Porém, apenas isso não é suficiente para explicar essa contradição. Há, portanto, diferenças entre se escolher contar a história dos senhores ou dos escravos. E isso se torna um problema quando a maior parte das histórias contadas são a da aristocracia e a dos cidadãos romanos.

106 Cornélia parou de repente. “Lólia, amantes de sua própria classe são uma coisa, mas levar para a cama um escravo? Bem, quero dizer ... isso rebaixa a você e ele também”. Você não diria isso se eu fosse um homem”. Sua prima colocou um cacho de cabelo por detrás da orelha. “Todo marido que eu já tive sempre tiveram rolos com as escravas de vez em quando. E com escravos também”. “Isso não torna a situação correta.” “Qualquer escravo que tenha a aparência de Thrax sabe que será comprado para ser um companheiro de cama”, disse Lólia exasperada. “Ele provavelmente está agradecendo seja qual for os deuses que ele cultua que fui eu que o comprou e não alguma velha ou algum velho senador nojento.” “Fico feliz que você tenha a si mesma em tão alta conta”, disse Cornélia indignada. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 49, tradução própria).

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Capítulo 3 – Gênero e Sexualidade

2.4. Questões de Gênero Ao escrever um romance histórico, os autores entram em um diálogo com uma noção de passado, que é dependente da cultura ao qual fazem parte. No caso das mulheres, essas narrativas caminham em uma estreita linha entre as pressões da plausibilidade, – que requer que as expectativas dos leitores, sobre o passado sejam reforçadas –, e a subversão. (HOBERMAN, 1997, p. 3). Para isso, as fontes usadas para se falar sobre o passado e o uso que se faz delas é fundamental. Hoberman, faz uma crítica à Lukacs e Fleishman em que questiona seus trabalhos sobre o romance histórico, na forma com que reforçam a ideia de que é impossível vê-lo do ponto de vista feminino. Para eles, a vida das mulheres seria secreta e, portanto, as informações essenciais para o autor do romance histórico, seriam insuficientes. Em razão disso teriam pouca chance de capturar as grandes mudanças do desenvolvimento histórico essenciais para esse tipo de narrativa. A experiência e vida das mulheres seriam menos suscetíveis que a dos homems em representar a especificidade de um período histórico. Pelo menos, como codificado pela história tradicional. Isso justificaria a exclusão das mulheres do passado. (HOBERMAN, 1997, p. 04). A periodização histórica é parte integral das estruturas narrativas do romance histórico, como a conceitualização de eras coerentes em termos de vestimenta, comportamento e estruturas sociais. E acaba por ser outro problema, quando se quer falar sobre as mulheres no passado. Os historiadores dividiram e categorizaram o passado baseados no entendimento exclusivo da vida masculina e na maior parte das vezes de elite. Dessa forma, é fácil esquecer que as mulheres existiram. A tendência foi definir o passado a partir de atividades como a guerra, riqueza, leis, governos, arte e ciência, das quais as mulheres em grande parte foram excluídas. Com a busca de algo que represente a totalidade histórica, as particularidades da experiência feminina se perdem, o que resulta em uma reinserção da ausência feminina da história. (HOBBERMAN, 1997, p. 05). Isso quer dizer que, as mulheres não têm direito nem à ficção histórica e se tornam alijadas do passado ao precisarem vê-lo a partir do olhar e experiências masculinas.

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Kate Quinn

No livro “Daughters of Rome” (As Filhas de Roma), todas as protagonistas são mulheres, caso único entre as séries tratadas. Kate Quinn conta a história de quatro mulheres aristocratas – duas irmãs e duas primas – enquanto navegam pelo período que ficou conhecido como o ano dos quatro imperadores em Roma (entre 68 d.C. e 69 d.C.). A autora começa o livro narrando o costume romano de nomear todas as meninas de uma família com o mesmo nome gentílico do pai, no feminino. “‘No, me first, I’m the oldest! I’m Cornelia Prima, and that’s my sister, she’s Cornelia Secunda, and that’s Cornelia Tertia and Cornelia Quarta, they’re our cousins—’ Definitely patricians – only patricians had such a complete lack of imagination when it came to naming their daughters. Four girls born to one clan – undoubtedly the Cornelii! – and as was traditional, they’d all just been named Cornelia and then numbered in order.” (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 02).107 Assim, narrativa começa então com essas quatro meninas, – quatro Cornélias – , que a princípio não se distinguem nem pelo nome, não possuem individualidade, personalidade ou história. Parece ser uma metáfora sobre como as mulheres não estão na história oficial ou ficcional. Ao longo do texto, essas personagens vão ganhar seus nomes próprios, que as distinguem. Assim se tornam: Cornélia, – a mais velha mantém o nome de família –, Marcela, Lólia e Diana. As meninas do começo da história crescem e se tornam mulheres com personalidades e aspirações diferentes, das mais tradicionais às mais heterodoxas. Quinn, ao contar a história dessas mulheres dando-lhes individualidade e humanidade, rebate o apagamento que as mulheres parecem fadadas a sofrer. É uma perspectiva bastante inovadora, já que é raro que o passado romano seja visto do ponto de vista feminino. Assim, a periodização é um problema que surge quando se quer falar sobre as mulheres no passado. Quinn inverte essa lógica, ao deslocar a narrativa do passado romano do fórum, do senado, dos acampamentos militares e até mesmo dos palácios para dentro das casas e vilas, para o centro da vida doméstica romana. Ao fazer isso, ela convida o leitor a olhar para o passado de um outro ponto de vista, que tem as mulheres como protagonistas. No

107 “Não, primeiro eu, eu sou a mais velha! Eu sou a Cornélia Prima, e essa é minha irmã Cornélia Segunda, e aquelas são nossas primas Cornélia Terceira e Cornélia Quarta” – Definitivamente eram patrícias – Somente os patrícios tinham tamanha falta de imaginação para nomear suas filhas. Quatro meninas nascidas em um mesmo clã – sem sombra de dúvida dos Cornélii! – e, assim como manda a tradição todas haviam sido simplesmente nomeadas Cornélia e numeradas em ordem. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 02, tradução própria).

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entanto, essa vida doméstica não se reflete em um afastamento dos temas políticos e das disputas de poder ou no foco em assuntos de âmbito meramente “particular”. A autora rechaça essa ideia de uma separação entre as esferas pública e privada e borra as bordas entre as duas. Por exemplo, enquanto Marcela e Cornélia caminham por sua casa, ela vai cumprimentando pessoas e senadores que estão por ali. Cornelia cast a glance over one shoulder to her thronged atrium, noisy with slaves and guards and hangers-on. ‘Piso’s gone to the palace. The Emperor so relies on him, he went to Galba’s side the minute he heard the news—’ [...] ‘What, the news from Germania? The legions going about smashing Galba’s statues—’ ‘Sshh.’ Cornelia took her sister’s arm, moving serenely back through the room. A nod to Galba’s chamberlain; a word to the slaves to bring more wine; a warm greeting for a senator who had taken thousands of sesterces from Otho to speak against Piso in the Senate … (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 57).108 Quinn é a única autora dentre as séries tratadas aqui que passa a dimensão da casa romana para além do ideal da família nuclear burguesa. A autora rompe a dicotomia fórum/casa como lugar de fazer política e lugar de refúgio doméstico, que aparece nos outros autores analisados. Isso, é consequência direta de pensar o passado romano de um ponto de vista diferente. A narrativa de “Daughters of Rome” (As Filhas de Roma) é a de mulheres brilhantes, cada uma a sua maneira, que não podem atingir seu pleno potencial e precisam ficar em segundo plano em relação aos seus pares masculinos, menos competentes, por serem mulheres. É também a história de como essas mulheres criam estratégias e se relacionam com os limites impostos pela sociedade em que vivem. Portanto, Cornélia seria um imperador melhor que seu marido Piso, que fora escolhido como herdeiro de Galba; Marcela seria melhor historiadora e intelectual do que os inúmeros homens que povoam Roma; e Diana seria uma melhor cocheira que os jovens que correm no Circo Máximo. ‘Lady Statilia, how lovely to see you—’ Cornelia moved on to the ladies and praetors and tribunes in Otho’s party, each of whom she knew by name and family, and Piso, who had been hanging awkwardly in the background, was now hanging on his wife’s arm, making himself known to all, and Otho frowned. Especially when he noted the Praetorians at Cornelia’s back too, who scurried to her lifted finger like obedient slaves. ‘Pity Cornelia can’t

108 Cornélia olhou de relance sobre os ombros para seu átrio lotado e barulhento, com escravos, guardas e puxa-sacos. “Piso foi até o palácio. O imperador conta com ele que foi para o lado de Galba assim que soube das notícias – [...] “Quais notícias, as da Germânia? Sobre como as legiões estão quebrando as estátuas de Galba e” – “sshh”. Cornélia pegou a irmã pelo braço movendo-se serenamente pela sala. Um aceno para o camareiro de Galba; uma palavra com os escravos para que trouxessem mais vinho; um cumprimento caloroso para um senador que havia recebido milhares de sestércios de Otho para falar contra Piso no senado ... (QUINN, As Filhas de Roma, p. 57, tradução própria).

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be Emperor,’ Marcella mused aloud to no one in particular, and Otho’s sharp ear caught it. ‘Very true, Lady.’ He gave a bow, eyes raking her face. (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 40).109 Diagrams. Gestures. More quotes. ‘You could write better in your sleep,’ Marcella whispered to Marcus. He choked off a laugh but was silent. Marcella smiled too but felt irritation rising like a bubble. I could write better than this in my sleep, too, she thought resentfully as their host droned on – more Seneca! How original! But Quintus Numerius is the one who gets an audience for his works, and a publisher too. Who would come to hear me read from my histories? (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 94).110 A personagem Marcela talvez seja a mais interessante da série. Ela vive na casa de seu irmão e é casada com Lúcio, um jovem oficial romano que está servindo ao exército nas províncias, descrito como alguém com poucas ambições e entediante, mas ao qual ela está presa. Logo ao ser introduzida, Marcela está escrevendo uma história dos imperadores à maneira de Suetônio. Ao longo da narrativa, o leitor descobre que a romana sonha em ser historiadora, em registrar e ser testemunha dos acontecimentos históricos. Marcella put her pen down, looking at the shelf where a few modest scrolls were immaculately stored. A woman might not be able to influence history, but she could certainly watch it – analyse it – record it. Marcella had already written histories of Rome’s past Emperors, from Augustus the God to Nero the mad. What a descent. Galba could hardly be anything but an improvement on Nero. Nero’s history was the newest on her shelf, still not quite finished – she had just this morning penned his death, with a pleasant sense of impartiality. A historian must never allow personal opinion to colour her writings, after all. Cornelia Secunda, known as Marcella, she had enjoyed jotting down in the mental portrait of herself. A profoundly disinterested and impartial observer of history. (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 23-24).111

109 Senhora Estatília, é ótimo ter lhe encontrado – Cornélia se dirigiu para as outras mulheres, pretores e tribunos da festa de Otho todos os quais ela conhecia pelo nome e família a que pertenciam. Piso, que estava parado desajeitadamente no fundo agora se encontrava nos braços da esposa fazendo-se conhecer por todos ali. Otho franziu a testa. Especialmente quando ele notou a presença dos soldados pretorianos atrás de Cornélia, que corriam até ela como escravos obedientes bastando erguer um dedo. “É uma pena que Cornélia não possa se tornar imperador”. Marcela pensou alto consigo mesma e não escapou aos ouvidos atentos de Otho. “Isso é bem verdade Senhora”. Ele lhe fez uma reverencia ao mesmo tempo em que analisava sua expressão”. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 40, tradução própria). 110 Diagramas, atitudes e mais citações, “você escreveria algo melhor dormindo” Marcela sussurrou para Marco. Ele disfarçou uma risada, mas se manteve em silêncio. Marcela também sorriu, mas sentiu a irritação crescer dentro de si como uma bolha. Eu também poderia escrever algo melhor que isso enquanto durmo, ela pensou ressentidamente enquanto seu anfitrião tagarelava – mais Sêneca! Quão original! Apesar disso, é Quinto Numério que tem uma audiência para seus trabalhos e um editor também. Quem viria para ouvir me ouvir fazendo a leitura das minhas Histórias? (QUINN, As Filhas de Roma, p. 94, tradução própria). 111 Marcela coloca a caneta do lado, olhando a prateleira em que alguns rolos modestos estavam guardados de forma imaculada. Uma mulher pode não ser capaz de influenciar a história, mas ela certamente pode testemunhá-la, analisa-la e registrá-la. Marcela já havia escrito história sobre os imperadores de Roma, do divino Augusto à Nero o insano. Que decadência. Galba dificilmente conseguiria não ser melhor que Nero. A história de Nero era a mais recente na prateleira, ainda inacabada. Nessa manhã mesmo ela havia escrito

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‘I have a love for histories, Caesar – I even write my own.’ ‘Do you?’ He looked faintly surprised. ‘Contrary to popular belief,’ Marcella said tartly, ‘breasts do not preclude a brain.’ (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 96).112 Marcela vai personificar, na narrativa, os questionamentos e pontos de vista da autora, sobre história e sua relação com as mulheres. Há um descompasso, proposital, entre a visão tradicional de uma “história masculina”, que se pretende imparcial, universal e de observadores neutros, e a história que Quinn escolhe contar. Isso é reforçado em outra passagem, em que Marcela sonha acompanhar o exército de Otho, na batalha final contra Vitellius “[…] “a oportunidade de testemunhar a história” Marcela reflete consigo mesma ‘O confronto entre um imperador e um usurpador, exércitos definindo o destino de Roma – seria maravilhoso poder ver isso”. (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 150). Para Marcela, ser testemunha da história envolve batalhas, imperadores e soldados. É um paradoxo, a história, como entendida por Marcela e a qual busca emular, preclude a vida que ela, e suas primas, levam em Roma. Quer dizer que, literalmente, elas estão fora da história. Quinn usa desse artifício para fazer um comentário, dentro da narrativa, sobre a visão tradicional do passado e de que escolheu conscientemente fazer algo diferente. Ao invés de narrar as batalhas e falar dos soldados, ela escolhe olhar para a vida das mulheres em Roma. Marcela participa de um arco narrativo que parte da vontade de escrever sobre a história, passa por ser testemunha ocular dela, até descobrir que ela mesma pode ser sua agente. She sat down on the worn mossy bench, looking out over the city. Rome. She had written Rome’s history in a dozen careful scrolls, but what good were her histories? A woman’s writings could never be published, would never be read. She’d written them anyway, thinking there was nothing else to do. Because women didn’t make history, of course. They could only be the watchers. But now here she was, Lady Cornelia Secunda known as Marcella, looking down at all Rome with three emperors lying dead at her feet. No one else knew they were there – not the husband who despised her, not the sister who made pained expressions about her writing, not the idiot cousins who cared only for lovers and horses. None of them knew.

sobre sua morte, com um prazeroso senso de imparcialidade. Mesmo porque um historiador jamais deveria deixar que suas opiniões pessoais influenciassem seus escritos. Cornélia Segunda, conhecida como Marcela, gostava de acrescentar no retrato mental que fazia de si mesma: uma observadora profundamente imparcial e desinteressada da história. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 23-24, tradução própria). 112 “Eu tenho um interesse por história César – eu até escrevo as minhas próprias versões – “É mesmo?” Ele parecia estar levemente surpreso. “Ao contrário da crença popular”, Marcela disse de forma ácida, “ter seios não exclui a existência de um cérebro”. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 96, tradução própria).

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But I know. [...] Making history was much better than writing it. (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 183, grifo nosso).113 A tomada de consciência da personagem, sobre seu papel histórico, se dá quando ela percebe, que por meio de uma sugestão sua, de um comentário feito ao imperador, influenciou na decisão de Nero em se suicidar. A partir daí, ela fica intoxicada com a ideia de poder interferir nos eventos históricos e passa a manipulá-los. She looked down at her hands, trembling in her lap. Not fear, though: intoxication. She hadn’t known that the terror and the excitement would war so fiercely in her stomach, that her palms would be sweaty, that she’d have to fight to keep her voice level. And she hadn’t known what a wave, what a surge of satisfaction would sweep through her tingling body when she saw the thoughtful glitter in Alienus’s eyes. […] She still looked at her histories from time to time, but the words all seemed lifeless on the page. Why had she ever slaved over those flat, dead accounts? I’m working on something much better than a scroll now. (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 159).114 No entanto, a mulher que decide fazer história, que deixa de ser objeto passivo dela e passa a ser sua agente, não pode escapar impune de ter tal pretensão. Ao final do livro tem-se um clímax, que lembra aqueles das histórias de detetive, quando por fim desmascaram o vilão e culpado do crime. Marcela está cada vez mais afastada de sua irmã e primas, pois tem cada vez menos coisas em comum, e está ocupada interferindo nos destinos de Roma. ‘I’ll tell you.’ Diana crossed the room in two lithe steps. Diana the Huntress they all called her teasingly – but now she was the huntress, stalking her prey. ‘Marcella got bored writing histories, and decided she’d start meddling in the real thing. […] ‘You’re all making too much out of this.’ Marcella put down the comb. ‘So I meddled a little. No more than a hundred other scheming senators were doing, for their own advancement.

113 Ela se sentou no banco velho e cheio de musgo, olhando sobre toda a cidade. Roma. Ela havia escrito a história de Roma em uma cuidadosa dúzia de rolos, mas quão boas eram suas histórias? Os escritos de uma mulher nunca poderiam ser publicados e nunca seriam lidos. Mesmo assim ela os tinha escrito pensando que não havia nada melhor a fazer. Porque, obviamente as mulheres não faziam a história. Poderiam, no máximo, ser testemunhas dela. Mas aqui estava ela, Senhora Cornélia Segunda, conhecida como Marcela, olhando sobre toda a Roma com três imperadores mortos sob seus pés. Ninguém mais sabia que eles estavam lá – não o marido que a desprezava, não a irmã que fazia caras de sofrimento pelos seus escritos, não as primas idiotas que só se importavam com amantes e cavalos. Nenhum deles sabia. Mas eu sei. [....] Fazer história é muito melhor que escrever sobre ela. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 183, grifo nosso, tradução própria). 114 Ela olhou para as mãos tremendo no seu colo. Não de medo: de intoxicação. Ela não sabia que o terror e a excitação iriam disputar tão agressivamente dentro do seu estômago, que as palmas da sua mão estariam suadas e que ela teria que lutar para manter a sua voz moderada. Ela também não sabia a onda que um lampejo de satisfação varreria sobre seu corpo quando viu o brilho pensativo nos olhos de Alieno. [...] Ela ainda olhava ocasionalmente suas histórias de tempos em tempos mas tosas as palavras pareciam sem vida na página. Para que ela havia trabalhado como uma escrava naqueles relatos entediantes e sem vida? Agora estou trabalhando em algo muito melhor que um mero rolo. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 159, tradução própria).

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But you lay the blame for all three Imperial coups at my door?’ ‘You didn’t meddle for your own advancement,’ Diana said, implacable. ‘Or for your own protection. I could understand that. You meddled for fun.’ […] ‘It’s not so much what you did.’ Diana pronounced sentence. ‘It’s that you enjoyed it. You don’t feel sorry. And you don’t feel one straw’s worth of guilt.’ ‘Why should I?’ Marcella picked up the comb again, stroking it through her damp hair. ‘Everything turned out all right.’ (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 335-336).115 Mas nem tudo vai acabar bem para Marcela. Ela perde tudo, inclusive seu nome, significando a completa aniquilação de sua existência como indivíduo. Seu crime foi querer deixar de ser mera espectadora, para se tornar agente da história. Seu castigo foi o de se ver completamente submetida ao papel mais tradicional esperado de uma mulher. O de esposa e mãe, sem possibilidade de escapatória, presa a uma existência sem propósitos, vivida em função dos outros. A fala de Domiciano soa como uma sentença para Marcela: ‘You play everyone, Marcella. You’re very clever at it. I don’t like clever women, but I can put up with your cleverness. Just don’t use it on me. No more little whispers about Titus. He doesn’t concern you, and neither does my father. Your only concern now is me.’ […] ‘You’ll keep my house,’ he said, and one of his heavy hands dropped across her throat. ‘You’ll warm my bed.’ Fingers sinking into her neck. ‘You’ll bear me children.’ Tighter. ‘Those are your duties, Marcella. The duties of a proper Roman matron […] I’ll be Lord and God of Rome, and you’ll be Lady and Goddess. You’d like that, wouldn’t you?’ He brushed a lock of hair off Marcella’s forehead and she flinched, but he didn’t notice. ‘Of course, even the Lady and Goddess of Rome is a wife first. You will concern yourself with maintaining my family and household, not with matters of state. I never take a woman’s advice.’ […] ‘Your new maids,’ Domitian was saying. ‘Dress for dinner, but don’t wear green. I dislike green. Oh,’ he added as an afterthought, ‘and no more of your scribbling. You won’t have time for that now, and it isn’t seemly in a prince’s wife. Your desk is for writing letters only. Naturally I’ll read them before they’re delivered.’ […] You know, I dislike the name Marcella. We’ll have to change it.’ (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 341-343).116

115 “Eu vou te contar.” Com dois passos elegantes Diana cruzou a sala. De brincadeira chamavam-na de Diana a caçadora – mas agora ela era a caçadora, rondando sua presa. “Marcela ficou entediada escrevendo relatos históricos e decidiu que ela começaria a se intrometer na coisa verdadeira [...] “Vocês estão exagerando sobre o caso”. Marcela abaixou a escova que segurava. “Então é verdade que eu interferi um pouco. Nada além do que outras centenas de senadores estavam fazendo, tramando em benefício próprio. No entanto você joga a culpa dos três golpes imperiais sobre mim? “Você não interferiu em benefício próprio”, disse Diana, de forma implacável. “Ou para se proteger”. Isso eu poderia entender. Você interferiu por diversão” [...] A questão não é tanto sobre o que você fez”, Diana pronunciou a sentença”. “É você ter gostado de fazê-lo. Você não se sente arrependida e você não sente nem uma gota de culpa.” “E por que eu deveria? Marcela pegou a escova novamente, penteando seu cabelo molhado. “No fim deu tudo certo”. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 335- 336, tradução própria). 116 Você manipula a todos Marcela e é muito esperta ao fazer isso. Eu não gosto de mulheres espertas, mas posso lidar com sua esperteza. Só não a use comigo. Já chega desses boatos sobre Tito. Ele não é da sua conta e meu pai também não. Agora sua única preocupação é comigo” [...] “Você vai cuidar da minha casa”, ele disse enquanto colocava uma de suas mãos ao redor do pescoço dela. “Vai esquentar a minha cama.” Os

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Esse é o destino das mulheres que ousam querer o poder para si mesmas. Ainda assim, o destino de Marcela não está para sempre selado, pois o livro se trata de um prólogo da primeira obra. Lá o leitor sabe que, apesar do controle exercido por Domiciano, a imperatriz continua lutando para escapar do seu algoz e é fundamental para sua queda117. Um tema que é fundamental para a narrativa de Quinn é a do casamento, tanto que o livro “Daughters of Rome” (As Filhas de Roma) começa e termina com um casamento. A instabilidade política da época, marcada pela troca sucessiva de imperadores em um único ano, encontra paralelo na troca de maridos de Lólia. Para cada imperador novo, há também um novo casamento, com a necessidade de celebração de novas alianças. Mesmo assim, Lólia não é vista como vítima passiva desses casamentos de conveniência, mas como participante ativa, ainda que não com plena independência de escolhas políticas, para manter sua família a salvo. Lólia usa das armas possíveis da sua sociedade e faz o que pode com elas. No mundo das mulheres romanas da série, conquistar maridos e trocá-los funciona como um paralelo feminino ao cursus honorum. Em “Mistress of Rome” (A Concubina de Roma), Lépida, uma jovem ambiciosa, filha de um lanista, sonha “angariar” maridos e assim subir de posição: “Even if he’s old and ugly and hunchbacked, he’s still a senator,” I continued. “And royal. Well, sort of royal. And I don’t have to stay married to him forever—he’ll just be my stepping-stone. Once I’m Lepida Pollia the beautiful senator’s wife, moving about in all the patrician circles with governors and generals to choose from, well, I can take my pick, can’t I?” Propping my chin in my hand. “Oh, I’m just full of plans. I can see everything unrolling out in front of me, exactly the way I want. (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 67).118

dedos apertando seu pescoço” “Você vai gerar os meus filhos”. Apertando mais forte. “esses são os seus deveres Marcela”. Os deveres apropriados a uma matrona romana [...] eu serei Senhor e Deus de Roma e você será Senhora e Deusa. Você adoraria isso, não é?” Ele tirou um cacho de cabelo do rosto de Marcela e ela se encolheu, mas ele não percebeu. “É claro que mesmo a Senhora e Deusa de Roma é antes de tudo uma esposa. Você vai se preocupar em manter minha casa e minha família, não com questões de estado. Eu nunca levo em consideração os conselhos de uma mulher” [...] “Essas são suas novas servas”, disse Domiciano. “Vista-se para o jantar, mas não use verde, não gosto da cor”. Ah, ele adicionou como uma reflexão posterior, “e nada mais de ficar escrevendo. Você não terá mais tempo para isso além de não pegar bem para a esposa de um príncipe. Sua escrivaninha é apenas para escrever cartas. Naturalmente eu as lerei antes que sejam entregues”. [...] Aliás, eu não gosto do nome Marcela, teremos que mudar isso”. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 341-343, tradução própria). 117 Aqui a autora segue o relato de Cassius Dio (67. 15. 2-4) e Suetônio (Dom. 14.1) sobre o fim do imperador, que envolvem a imperatriz no plano para matar Domiciano, ainda que de forma marginal. 118 — E embora seja velho, feio e tenha corcunda, não deixa de ser um senador. — Segui lhe contando. — E um aristocrata, mais ou menos. Além disso, não tenho porque estar casada com ele para sempre. Será meu trampolim. Uma vez que me converta na senhora Lépida Pollio, a formosa esposa do senador, poderei me mover pelos círculos patrícios com governadores e generais entre os quais escolher. Terei onde escolher,

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Ainda assim, o poder dos maridos sobre suas mulheres é enorme, e talvez eles sejam os maiores antagonistas do livro, ou melhor, os homens em geral. Para as protagonistas de Quinn, as mudanças vistas como fundamentais para a história, como as trocas de imperadores, não significam muita coisa. Como nesse diálogo entre Diana e Marcela: ‘A wild little thing perched on a statue – so beautiful. So beautiful she can get away with anything. I’m wishing things would change.’ ‘They have changed. The moment Piso and Galba died, things started to shift. Didn’t you feel it?’ [....] Not for me.’ (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 152).119 O tempo histórico das mulheres talvez seja outro e a autora Kate Quinn explora de maneira interessante essa diferença. Para Diana não importa quem esteja no poder, pois continuará não podendo realizar seu desejo de correr no Circo Máximo. Relacionado ao tema do casamento, a autora dá bastante importância à violência doméstica e sexual sofrida pelas mulheres. Na narrativa de Quinn, ainda que do gênero romance, as mulheres não precisam ser salvas pelos homens, mas precisam ser salvas deles. O caso de Domiciano é o que melhor exemplifica a situação. A característica principal do imperador, que também define seu caráter, é a sua misoginia. Em “Daughters of Rome” (As Filhas de Roma), ele não passa de um adolescente com seus dezessete anos. Logo de início, ele é apresentado como um rapaz com tendências abusivas e obsessivas. Depois de conhecer Marcela em um jantar, Domiciano passa a persegui-la e a estar sempre ao redor dela. Não suporta que ela converse com qualquer outro homem ou dê atenção que não seja para ele. No começo, a jovem fica lisonjeada e até gosta das atenções que recebe do futuro imperador: She’d never had anyone so mad for her. Quite diverting, really. There were whole days Domitian wouldn’t let her out of bed, and even outside lovemaking he always had a possessive hand on her arm or the nape of her neck. He gave her jewels and then threatened to take them back, he mocked her writing and then begged forgiveness, he grew furious when she wandered out for an hour’s walk and accused her of meeting another lover, then dragged her to bed swearing he’d make it all up to her. Marcella quite enjoyed it. (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 338).120

Certo? Apoiei o queixo entre as mãos, e acrescentei: — Ai! Tenho um monte de planos. Já posso ver tudo se concretizando como quero. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 33-34). 119 Uma coisinha selvagem empoleirada em cima de uma estátua – tão linda. Tão linda que conseguiu escapar de tudo. “Eu gostaria que as coisas mudassem”. “As coisas mudaram. No momento em que Piso e Galba morreram as coisas começaram a se transformar. Você não sentiu isso? [...] Não para mim” (QUINN, As Filhas de Roma, p. 152, tradução própria). 120 Ninguém nunca havia estado tão louco por ela assim. Na verdade era um tanto divertido. Em alguns dias Domiciano não deixava que ela saísse da cama e mesmo quando não estavam fazendo amor ele sempre tinha

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No entanto, quando Domiciano consegue seu objetivo, o de se casar com Marcela, tudo muda. O comportamento obsessivo se torna abertamente violento e ele deixa claro que ela não terá qualquer tipo de liberdade121. Em “Mistress of Rome” (A Concubina de Roma), passaram-se mais de dez anos e agora Domiciano é imperador. Entretanto, as características abusivas continuam as mesmas, agora com uma nova vítima, Thea. A escrava chama atenção do imperador ao cantar em uma festa no palácio e logo se transforma em novo objeto de obsessão. As agressões não demoram a começar. Quinn encontra uma forma interessante de retratar um imperador romano porque, ao contrário da representação usual do imperador, decadente e pervertido, usa uma forma própria para caracterizar Domiciano. Seu ódio contra as mulheres não tem a ver com nenhuma loucura, mas com misoginia. Thea encontra a sobrinha de Domiciano, Flávia, que logo percebe as marcas nos seus braços: Oh dear, is that a bruise?” I looked at her sharply, searching for veiled curiosity. But she regarded the blue mark on my wrist without avidity. “I fell out of my litter, Domina.” I pulled down my sleeve. How much did she know about Domitian, this patrician lady in yellow who wore her Flavian charm all around her like perfume from India? How much had her half- sister Julia told her? […] “Ask Ganymede to make you his special salve.” Flavia gestured, and I fell into step beside her as she moved down the street with the blind confidence of one for whom crowds always clear a path. “He makes a lovely-smelling paste that’s very good for cuts and bruises. He was constantly mixing the stuff up for my half-sister Julia. She was always falling out of litters.” I looked at Lady Flavia Domitilla, and her black eyes regarded me shrewd and unblinking from her cheerful Flavian face. I curtsied again. “Thank you, Domina.” (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 233).122 A autora cria redes de sociabilidade feminina contra os homens, que são, ao longo da narrativa, agentes de violência e opressão das mulheres. E é justamente nesse

uma mão possessiva no seu braço ou na base do seu pescoço. Ele lhe dava joias e depois ameaçava toma -las de volta, ele zombava da sua escrita e então pedia perdão, ele ficava furioso quando ela ia dar uma volta e a acusava de ter se encontrado com algum amante e depois a arrastava pra cama jurando que ia se redimir. Marcela devia confessar que estava adorando. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 338, tradução própria). 121 Como fica claro, no trecho citado logo acima, no qual Marcela descobre que suas manipulações, ao final, foram desastrosas para ela. 122 Ai, querida! Isso é um hematoma? Observei-a com seriedade, analisando uma camuflada curiosidade venenosa, mas Flávia examinava a marca azulada de meu pulso, sem mais interesse. — Caí da liteira, domina. — Respondi, baixando manga da palla. Quanto, esta patrícia vestida de amarelo que desprendia o encanto de sua linhagem como um perfume da Índia, saberia sobre Domiciano? Quanto teria lhe contado sua meio -irmã Julia? Herdou os gostos de seu tio, além de seus olhos, senhora? — Peça a Ganímedes que lhe faça seu bálsamo especial. Flávia me fez um gesto e comecei a caminhar ao seu lado, enquanto ela avançava pela rua com a confiança de quem sabe que as pessoas se afastariam, a sua passagem. — Ganímedes faz um unguento que cheira maravilhosamente bem e é muito bom para cortes e hematomas. Sempre o preparava a minha meio-irmã Julia. A pobre caía frequentemente das liteiras. Voltei os olhos para Flávia Domitila e os olhos negros observaram-me, ardilosos e sem piscar, do gracioso rosto imperial. — Obrigado, domina. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 107-108).

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grupo de suporte feminino que encontram sua salvação. Flávia, Júlia, Thea e até Marcela, se unem para derrotar Domiciano. O que as une é o relacionamento abusivo que tiveram com o imperador, sobre o qual, as personagens masculinas – exceto Ário que é escravo – têm uma ótima opinião. Flávia confronta Paulino, seu amigo de infância e braço direito do imperador: “You don’t believe me?” “He’s a man of honor—” “No, he’s not!” she said witheringly. “Lady Flavia, you don’t know what you’re saying.” “I know exactly what I’m saying!” Her voice rose. “Do you think you know him better than me?” “I’ve served him for six years. In the thick of battle—” “Battle!” Flavia spat. “Who cares about battle? I’m his niece! Do you know what I’ve seen? I’ve seen him stab flies out of the air on a pen and watch them writhe until they die. I’ve seen him shoot arrows at slaves until they look like sea urchins. […] He’s a hard man, my uncle; he’s hard and he’s cruel, and he’s cruelest of all to his women.” Paulinus opened his mouth, but Flavia rushed on, her face flushed. “Did you know the Empress used to smile once? Even laugh? Then Domitian got hold of her and she turned into a marble statue covered in emeralds. You played with Julia when you were children, but you just dismissed her as mad when the rumors started to fly. […] And Thea—my God, you’re not the only one who’s served the Emperor for years! She’s served him, too, filled his bed and made his music and paid for it. She hides her son and she hides her scars, but when she’s alone she drains her blood into bowls and thinks about dying. Did you know that, Prefect? No, of course not. But I do, and not because she tells me. I know what to look for, because I’ve known Domitian all my life (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 321).123 A história de vida e morte dos imperadores, das tramas para derrubá-los, passa a ser mais do que a troca de um “mau imperador”, fraco ou degenerado; ou ainda, que não atende aos ideais e práticas republicanas de senadores nostálgicos, mas passa por sua relação com as mulheres e a violência com que as trata. A união entre público e privado, da narrativa de Quinn, acaba por funcionar como uma reintrodução das mulheres nessa história vista

123 — Se contar ao meu tio estará assinando a sentença de morte de Thea. — Não. — Não acredita? — O imperador é um homem de honra. — Não é! — Flávia protestou, furiosa. — Domina Flávia, a senhora não sabe o que diz. — Sei perfeitamente o que digo. — Ela exclamou elevando a voz. — Pensa que o conhece melhor que eu? — Estou há seis anos a seu serviço. No campo de batalha. — No campo de batalha? — Flávia zombou. — A quem importa isso? Sou sua sobrinha. Tem ideia das coisas que vi? Como matava moscas com a ponta e uma pena e observá-las se debater até morrer. Já o vi disparar flechas em escravos até que parecerem ouriços de mar [...] Meu tio é um homem duro, insensível e cruel. E sua crueldade é extrema com suas mulheres. Paulino abriu a boca para protestar, mas Flávia, com o rosto avermelhado pela fúria, o impediu: — Sabia que a imperatriz foi uma jovem sorridente em sua juventude? Que gostava de rir? Mas Domiciano se apropriou dela e a converteu em uma estátua de mármore coberta de esmeraldas. Desde menino, ele brincava com a Julia, mas quando começaram a circular os rumores, deu-a por louca. [...] E Thea. Por Deus, você não é o único que está há anos servindo o imperador! Thea também está. Thea está em sua cama, tocando música. E pagando um alto preço por isso, pois tem que ocultar seu filho e suas cicatrizes. Quando está sozinha, ela enche uma vasilha com o próprio sangue e só pensa em morrer. Sabia de tudo isso, prefeito? Não, claro que não. Mas eu, sim. E não porque ela me tenha contado. Sei o que se pode esperar. Conheci Domiciano toda minha vida. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 147).

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como tipicamente masculina e que relega às mulheres a serem meras coadjuvantes. Com essa narrativa, ela propõe uma versão da história que une essas duas esferas, ao mesmo tempo em que introduz as violências de gênero sofridas pelas mulheres em Roma. Entretanto, apesar da narrativa focar na violência sofrida pelas personagens femininas, ela não está posta de forma fetichizada como acontece em diversas ficções históricas ou com inspirações históricas, por exemplo, como o uso do estupro para desenvolver as personagens femininas. Ao apresentar uma narrativa que rompe com o discurso tradicional do que seria o passado romano, torna-se interessante analisar as reações do público a ela.. Isso pode ser visto nos comentários à trama da série: […] Last complaint: The main characters were completely unrealistic portrayals of women at the time. They had far too much power, attitude, and influence to convince me that they were truly living in ancient Rome. […] (AMAZON.COM, customer review: Daughters of Rome, dec 21, 2011). Em uma conversa entre, a autora e o público da série, uma das leitoras chamou atenção para o fato de ser raro ver Roma Antiga pelo ponto de vista das mulheres e como isso às vezes dificulta se relacionar com a série, isto é, se identificar com esse passado. As próprias mulheres estão tão acostumadas com o apagamento que têm dificuldade em imaginar o passado de qualquer outra forma, pois afinal não é o tipo de Roma que se encontra em Cícero, Virgílio e Ovídio. I'm also struck by how feminine the environment is, which is not the Rome most people are familiar with if they are familiar with Rome, and that may create a distance between expectation and what the reader finds in this book. Not that the women's world didn't exist, but it isn't what you read about in Cicero's letters, Vergil's epic or even Ovid's love poetry, so it takes some courage on Kate's part to imagine that world and take the pieces of historical detail that we do know about women and build them into this feminine feeling world. (GOODREADS.COM. Message 19 by Judith. Jul 20, 2011 01:29pm, 2011). Na mesma entrevista, uma outra leitora também demonstra surpresa em relação à forma como as mulheres são representadas na série e questiona se há “verdade histórica” ou “verossimilhança” nela. É interessante como esse tipo de questão não aparece, ou é raramente mencionada, quando as personagens são masculinas. Também não gera surpresa nem perguntas quando a representação feminina se dá na sua completa submissão à violência com que é tratada ou, ainda, no seu completo apagamento. Um passado romano sem mulheres é aceito e louvado, como é visto nas reações à série de Harris sobre Cícero, considerada “quase historiográfica”. Ao mesmo tempo, uma narrativa sobre o passado

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romano, protagonizada por mulheres que são agente de sua própria história, é vista como fantasiosa demais para ser crível. Algo similar ocorre nas representações do negro na antiguidade clássica, que será tratado em outro item. Quinn responde a esses questionamentos dizendo que “uma mulher tinha tanta liberdade quanto seu pai ou marido permitissem e que, em última instância, a maior parte das mulheres romanas tinham sua vida ditada não tanto pelas leis, mas pelo tanto que seus pais ou maridos escolhiam impô- las” (STARKSTON, 2012), o que aparece com frequência na narrativa. Também faz uma ressalva em outra entrevista, sobre a diferença entre o ideal de esposa romana, obediente e dedicada à família e sob poder do paterfamilia, e a realidade das mulheres, como se vê pelo exemplo de várias romanas poderosas que se encontravam fora da norma. (STARKSTON, 2012). Em entrevista pelo lançamento da versão em audiobook, a narradora do livro chama atenção para a importância de contar essas histórias humanas, que tornam a história interessante e por isso é importante ouvir a história das mulheres, “herstory”124 (AUDIOGALS.NET, 2015). A autora se vê perguntada diversas vezes sobre como as experiencias das mulheres no passado, e também no livro, se relacionam com as experiencias da mulher moderna. É curioso, pois ninguém se pergunta, ou pergunta aos outros autores, o que significava ser homem na antiguidade romana ou, ainda, dos “desafios de ser homem na atualidade”. Isto ocorre pois são vistos como experiências universais e a-históricas125. Esse tipo de narrativa da autora, assim como o de outras mulheres, que como ela escreveram sobre o passado, tem o mérito de trazer o clássico sob a ótica de gênero, e dessa forma expor as narrativas aparentemente neutras do passado, como as experiências masculinas.

Robert Harris

124 Herstory é um termo usado para a história escrita do ponto de vista feminista, especialmente para tirar as mulheres da obscuridade do relato histórico. O termo é um jogo de palavras com o inglês ”history” entendido aqui como ”história dele”, assim, a herstory seria a ”história dela”. Apesar da narradora do audiobook usar o termo ele não é reivindicado pela autora Kate Quinn, que também não declara ter uma proposta feminista na escrita da série. 125 Quem fará esse tipo de pergunta são homens membros de comunidades de extrema direita, como estudado pela classicista Donna Zuckerberg (Not All Dead White Men), e que crescem a passos vertiginosos. Nesse caso o retorno à Antiguidade, ou melhor, a uma interpretação tradicional dela, serve para reafirmar uma supremacia e experiência masculinas supostamente perdidas e que precisa ser retomada para que o homem volte a sua posição de direito. (ZUCKERBERG, 2018).

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Ao analisar alguns romances históricos britânicos, do final do século XIX, que se passam na antiguidade romana, Hoberman afirma que eles manipulam e reforçam ideias cristalizadas sobre papéis de gênero. Homens seriam agentes individuais da história, enquanto as mulheres seriam apenas o veículo por meio do qual seus descendentes vêm ao mundo. (HOBERMAN, 1997, p. 194). Essa noção não ficou limitada ao século XIX e algo muito parecido é encontrado na ficção histórica mais recente. Em primeiro lugar, Harris compartilha a noção de que é impossível falar sobre mulheres no passado. Nisso, está amparado pelo historiador que diz ter sido sua inspiração na escrita da trilogia ciceroniana: Naturally, it is a hazardous and quixotic enterprise to attempt to enter the mindset of a long-vanished age (…) The silence will be one with which the ancient historian is all too familiar, for, to twist the words of Shakespeare’s Fluellen, ‘there is no tiddle taddle nor pibble pabble in Pompey’s camp’. Nor in the peasant’s hut, nor in the slum dweller’s shanty, nor in the field slave’s barrack. Women, it is true, can sometimes be overheard, but only the very noblest, and even those invariably when quoted – or misquoted – by men. (HOLLAND, 2003, p. 21). Na verdade, esse ponto de vista é expresso como se fosse um “senso comum” e justificasse o apagamento não só de mulheres, mas de outros grupos excluídos. É inegável que a falta de fontes é um problema para ter acesso a esses grupos. No entanto, as fontes antigas não se resumem apenas aos textos que sobreviveram à antiguidade, escritos em sua maioria por homens membros de uma determinada elite. A arqueologia permite que se rompa esse ciclo de silêncio, ao inserir uma gama de novas possibilidades a partir da cultura material. O apagamento do passado se torna também um apagamento do presente e uma perpetuação dessas exclusões na sociedade contemporânea. Na série escrita por Harris, as mulheres não aparecem, a não ser esporadicamente e em relação à Cícero. Podem ser divididas em três categorias: matronas, esposas histéricas e femmes fatales. Ao ser perguntado sobre o papel das mulheres na história romana, o autor afirma que elas estavam constritas ao espaço doméstico e agiam por trás dos panos. (BBC.CO.UK, World Book Club, 2017). Essa situação, por si só, parece justificar para o autor a ausência de personagens femininas no livro. Pois, além de serem poucas, na maior parte das vezes não possuem nem diálogo próprio. O leitor as vê apenas por meio do que o narrador, Tiro, fala sobre elas. Primeiro, Terência e Túlia, esposa e filha de Cícero respectivamente. Terência é o modelo de esposa romana, virtuosa, ainda que dura nas suas opiniões. Já Túlia é a “menina dos olhos de Cícero”, quem ele mais amava. No entanto, elas são apenas isso até contrariarem as posições de Cícero, como por exemplo,

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quando o autor descreve o casamento de Túlia com Dollabela. Ele transforma o noivo em um rapaz de 19 anos (fontes dizem que nasceu entre 85-80), sete anos mais jovem que Túlia. E, já nessa jovem idade, teria sido casado anteriormente com outra mulher mais velha: “He was notorious rake, only nineteen – about seven years younger than Tullia – yet remarkably he had already been married once, to a much older woman”. (DICTATOR, 2015, p. 158).126 Um caso interessante de ser tratado é o de Pompônia, casada com Quinto Cícero e irmã de Ático. As brigas entre o casal romano e seus problemas maritais ficaram famosos por estarem presentes em diversas cartas de Cícero, trocadas com seu irmão e seu amigo Ático127. Harris, ao apresentar a disputa entre Quinto e Pompônia, está firmemente ao lado do primeiro, mostrando sempre como a esposa é “estúpida e chata”. Pomponia yawned noisily. “Can we talk about something else? Politics is so dull.” She was a tiresome woman whose only obvious attraction, apart from her prominent bust, was that she was Atticus’s sister. I saw the eyes of the two Cicero brothers meet, and my master give a barely perceptible shake of his head: ignore her, his expression said, it is not worth arguing over. “All right,” he conceded, “enough of politics. But I propose a toast.” He raised his cup and the others did the same. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 52).128 Ele não se interessa em questionar por que Pompônia acharia a política algo chato. Já que, como mulher, teoricamente estava impedida de participar desse sistema como membro pleno. O autor insiste nessa ideia, pois mais adiante, vai retornar ao caso, reforçando a indignação causada em Cícero pela afirmação anterior. É curioso observar que Harris tenha escolhido fazer essa afirmação vir de Pompônia, uma mulher e personagem descrita de forma nada abonadora. Quintus practicing drawing his sword, Pomponia lying down with a headache. (She still maintained that politics was “boring,” which drove Cicero into a quiet frenzy. “Such a stupid thing to say!” he once complained to me. “Politics? Boring? Politics is history on the wing! What other sphere of human activity calls forth all that is most noble in men’s souls, and all that is most base? Or has such excitement? Or more vividly

126 Tratava-se de um notório libertino de apenas 19 anos — cerca de sete anos mais jovem que Túlia —, que, no entanto, de maneira notável, já havia sido casado uma vez e com uma mulher muito mais velha. (HARRIS, Dictator, 2017). 127 Como em Ad Atticus 1.5.2 e 5.1.3-4. 128 Pompônia bocejou ruidosamente. – Não podemos conversar sobre outro assunto? Política é muito chato. Ela era uma mulher entediante, cujo único atrativo óbvio, à parte o busto proeminente, era ser irmã de Ático. Eu notei os olhares dos dois irmãos de Cícero se encontrando e meu senhor balançar visivelmente a cabeça: ignore-a, dizia sua expressão, não vale a pena argumentar com ela. – Está bem – ele assentiu –, chega de política. Mas eu proponho um brinde. – Ergueu a taça e os outros o acompanharam. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 52).

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exposes our strengths and weaknesses? Boring? You might as well say that life itself is boring!”). (HARRIS, Imperium, 2006, p. 262-263).129 Harris parece achar que essa narrativa é particularmente importante, pois a cita diversas vezes em diferentes entrevistas, afirmando, inclusive, que nessa resposta de Cícero há muito dele e de como ele vê o mundo. (CLASSICSFORALL.ORG.UK, 2017). A conclusão implícita que se chega, a partir desse trecho, sobre o lugar reservado às mulheres na história é claro. Se a política é o que torna a vida interessante e as mulheres não estão na política, seja por estarem restritas ao ambiente doméstico, seja porque acham tudo “chato”, o fato destas não estarem presentes na história e no passado tornam-se obviedades, assim legitimando seu apagamento e tornando-o naturalizado. Na personagem de Pompônia, Harris também aproveita para colocar comportamentos vistos por ele como reprováveis, circunscrevendo-os como da alçada dos antagonistas130. O autor, usa dessa estratégia de forma recorrente, não só para caracterizar as personagens antipáticas, mas também quando escolhe tratar algo da sociedade romana que não é visto com bons olhos pelo público moderno131. É uma forma de culpabilizar grupos excluídos, como as mulheres e os escravos, ao mesmo tempo em que exime de responsabilidade a sociedade que cria essas desigualdades. Apesar de Harris desdenhar da afirmação, de que “a política é algo chato”, ele não tem apreço pelas mulheres romanas, que rompem com as normas da sua sociedade e querem participar ativamente da política e não mais apenas “por trás das cortinas”. Um exemplo disso é o caso de Fúlvia. Ela era de uma das famílias plebeias de maior distinção na república e casou-se com três dos principais líderes da facção política dos populares132 da época. Ficou conhecida por ter uma participação política incisiva na carreira dos três. Estava sempre ao lado de Clódio, onde quer que ele fosse, inclusive no Fórum133. Harris, ao narrar os confrontos entre os apoiadores de Clódio e de Milão, descreve Fúlvia como uma

129 Quinto treinava espada, Pompônia se deitara com dor de cabeça. (Ela continuava insistindo em que política era um assunto “chato”, o que tirava Cícero do sério. “Que coisa mais idiota de se dizer!”, ele certa vez se queixou comigo. “A política? Chata? Se a política é a história em movimento! Que outra esfera da atividade humana mexe com o que há de mais nobre nas almas dos homens, e com tudo o que há de mais baixo? Ou que seja tão excitante? Ou que mais vividamente expõe nossas forças e nossas fraquezas? Chata? Seria mais apropriado dizer que a própria vida é que é chata!”). (HARRIS, Imperium, 2006, p. 218). 130 Como citado no trecho em que Pompônia é a única personagem da família e do círculo de amizades de Cícero que tem restrições em dividir o jantar com Tiro. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 55). 131 Como quando Tiro observa que os escravos da propriedade de Túsculo eram ’preguiçosos” como já citado acima. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 264). 132 Respectivamente Públio Clódio Pulcro, Gaio Esribônio Curio e Marco Antônio. 133 Cicero, Pro Milone, 28 e 55.

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"mulher tão feroz, cruel e amante da violência quanto qualquer homem”. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 59). Após os idos de março, já casada com Marco Antônio, Fúlvia aparece no funeral de César e sua presença é suficiente para causar indignação e temor em Cícero: “What a shameless pair of grave-robbers,” Cicero whispered to me, “and how typical of that harpy to be here. Why is she, in fact? Even the widow isn’t here. What business of Fulvia’s is the reading of Caesar’s will?” But that was Fulvia. More than any other woman in Rome—more even than Servilia, Caesar’s old mistress, who at least had the grace to operate behind the scenes—Fulvia loved meddling in politics. And watching her move from visitor to visitor, ushering them towards the room where the will was to be read, I felt a sudden sense of unease: what if hers was the brain behind Antony’s skilful policy of reconciliation? That would put it in a very different light. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 274).134 Não é apenas com Fúlvia que a ideia de mulheres manipuladoras aparece. Ele também não poupa Clódia Pulcra, irmã de Clódio e eventual inimiga de Cícero. Clódia é a perfeita femme fatale, transportada para os tempos romanos. Desde que aparece pela primeira vez, é descrita por termos extremamente sexualizados, toda ação e fala sua têm algum cunho sexual implícito: […] 'Lady Ox-Eyes', Cicero used to call her – which she employed to great effect, giving men flirtatious sidelong glances, or fixing them with beguiling and intimate stares. She had an expressive mouth and a caressing voice, pitched for gossip. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 81).135 […] At any rate, each expressed great pleasure at meeting the other, and when Clodia, with one of her wide-eyed sideways looks, asked in her breathy voice if there was anything – anything at all – she could do for Cicero in her husband's absence [...] (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 81).136 There, Celer's wife Clodia, alluring in a silken robe over her nightdress, and with the musky smell of the bedchamber still upon her, waited to greet him. 'When I heard you were coming clandestinely through the back door I hoped it was to see me,' she said reproachfully, fixing him with her sleepy eyes, 'but now I hear it's my husband you want, which really is too boring of you.' […] (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 108).137

134 — Que dupla desavergonhada de ladrões de túmulo — sussurrou-me Cícero —, e como é típico que essa megera esteja aqui. Por que está, na verdade? Nem a viúva está aqui. Que interesse tem Fúlvia pela leitura do testamento de César? Mas assim era Fúlvia: mais que qualquer outra mulher em Roma — mais até do que Servília, a antiga amante de César, que pelo menos tinha a dignidade de operar nos bastidores —, Fúlvia adorava se intrometer na política. E vendo-a se mover de visitante para visitante, conduzindo-os à sala onde o testamento seria lido, senti uma súbita inquietação: e se ela fosse o cérebro por trás da hábil política de reconciliação de Antônio? Isso a poria sob uma luz muito diferente. (HARRIS, Dictator, 2017). 135 – "Senhora Olhos-de-Boi", Cícero costumava chamá-la – que ela usava com grande efeito, dando aos homens dengosos olhares de esguelha ou encarando-os com ares sedutores ou íntimos. Tinha a boca expressiva e a voz carinhosa, entoada para a fofoca. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 117). 136 De qualquer modo, cada qual expressou grande prazer em conhecer um ao outro, e quando Clódia, com um de seus arregalados olhares de esguelha, perguntou, com sua voz ofegante, se havia alguma coisa – qualquer coisa – que ela pudesse fazer por ele na ausência do marido [...]. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 118). 137 Ali, Clódia, a mulher de Celer, atraente num robe de seda sobre sua camisola e ainda emanando o cheiro almiscarado do dormitório, esperava para cumprimentá-lo. – Quando eu soube que você estava vindo

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Se Clódia é sedutora, seu marido Metelo Celer é descrito como um bom homem, mas completamente ingênuo e que desconhece a reputação da esposa. Para Tiro, ela é “a maior vagabunda de Roma”. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 233). E após o escândalo da Bona Dea138, segundo o autor, Clódia vai até Cícero e tenta seduzi-lo para que não testemunhe contra o irmão. 'Then take another wife said Clodia, and stepping back but still staring at him she quickly untied her cloak and let it fall from her shoulders. Beneath it she was naked. The dark smoothness of her oiled skin glistened in the candlelight. I was standing almost directly behind her. She knew I was watching, yet she no more minded my presence than if I had been a table or a footstool. The air seemed to thicken. Cicero stood perfectly still. Thinking back on it, I am reminded of that moment in the senate, in the chaos after the debate on the conspirators, when a single word or gesture of assent from him would have led to Caesar's death, and the world - our world - would have been entirely different. So it was now. After a long pause he gave the very slightest shake of his head, and, stooping, he retrieved her cloak and held it out to her. 'Put it back on he said quietly. She ignored it. Instead she put her hands on her hips. 'You really prefer that pious old broomstick to me?' 'Yes He sounded surprised by his own answer. 'When it comes to it, I believe I do' 'Then what a fool you are,' she said, and turned around so that Cicero could drape the cloak across her shoulders. The gesture was as casual as if she were going home after a dinner party. She caught me looking at her and her eyes flashed me such a look that I quickly dropped my gaze. 'You will think back on this moment,' she said, briskly fastening her cloak, 'and regret it for the rest of your life. (HARRIS, Lustrum, 2009, p.200-201).139

clandestinamente pela porta dos fundos, pensei que fosse para me ver – disse ela com reprovação, fitando-o com olhos sonolentos –, mas agora soube que é meu marido que quer, o que é muito enfadonho de sua parte. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 152-153). 138 O ocorrido se deu em 62 a.C. durante as celebrações da Bona Dea que nesse ano estavam ocorrendo na casa de Júlio César. Era proibida a presença de homens durante os ritos e Clódio foi pego vestido de mulher ao tentar supostamente se encontrar com a mulher de César. 139 – Então case-se com outra – disse Clódia, e, recuando, mas continuando a olhar para ele, rapidamente desamarrou a capa e deixou que ela escorregasse pelos ombros. Ela estava nua por baixo. A escura maciez de sua pele oleada reluzia à luz da vela. Eu estava parado quase diretamente atrás de Clódia. Ela sabia que eu estava olhando, mas não se importava com minha presença muito mais do que se importaria se eu fosse uma mesa ou um tamborete. O ar pareceu se adensar. Cícero permanecia completamente parado. Pensando no passado, eu me lembrei daquele momento no senado, no caos após o debate sobre os conspiradores, quando uma única palavra ou um gesto de concordância dele teria causado a morte de César, e o mundo – nosso mundo – teria sido inteiramente diferente. Acontecia o mesmo agora. Após uma longa pausa, ele deu a mais leve sacudida de cabeça e, inclinando-se para a frente, apanhou a capa e a estendeu para ela. – Ponha de volta – falou baixinho. Ela o ignorou. Em vez disso, colocou as mãos nos quadris. – Você realmente prefere aquele submisso cabo de vassoura velho a mim? – Sim. – Ele pareceu surpreso com sua própria resposta. – Nesse caso, acredito que prefiro. – Então você é um tolo – disse ela, e virou-se para que Cícero pudesse colocar a capa sobre seus ombros. O gesto foi tão fortuito quanto se ela estivesse indo para casa após um jantar festivo. Ela me pegou olhando-a, e seus olhos me lançaram tal olhar que eu rapidamente desviei a vista. – Você vai

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A cena funciona como forma de demonstrar a força de caráter, capaz de resistir à tentação representada por Clódia. Harris descreve a resistência de Cícero como um momento chave, capaz de mudar a história para sempre. A ameaça de Clódia, que ao final se arrependeria para sempre dessa decisão, serve como prenuncio das disputas entre Clódia, seu irmão e Cícero, que culminariam no exílio do orador. Dessa forma, todas as ações de Clódia perdem qualquer caráter político e os transforma na vingança de uma mulher rejeitada. As fontes, ou melhor, o modo como o autor as usa, são mais uma vez fundamentais para estabelecer a narrativa proposta por Harris. As informações sobre essas duas mulheres, Fúlvia e Clódia, vêm sobretudo de Cícero, de discursos feitos em prol dos seus clientes, e que tinha ambas como um de seus alvos140. Usar essas fontes como se fossem meras narrativas do passado é reafirmar um discurso que corrobora o apagamento das mulheres. E, ao mesmo tempo, vilifica as poucas que aparecem nas fontes, por estarem fora das normas consideradas aceitáveis por parte da sociedade da época. Não há possibilidade de humanidade ou agência para as mulheres em Harris, sejam elas esposas castas, como Terência, ou alienadas como Pompônia, ou ainda, aquelas que rejeitam as expectativas impostas, como Clódia e Fúlvia. Na trilogia de Cícero, as mulheres não falam, só se fala sobre elas.

Max Mallmann

Na série de Desiderius Dolens, também não há muitas mulheres, ainda que elas apareçam muito mais do que na trilogia escrita por Harris. A maior parte delas pertencem ao núcleo da família de Dolens: sua mãe, irmã e esposa. Para além da família, há Rutília, a prostituta por quem Dolens é apaixonado; Eutrópia, a médica de origem grego-parta que depois vai se relacionar com Desidéria, que é a irmã do centurião; e Sálvia Othonis, esposa do senador, cujo assassinato Dolens vai investigar. À exceção de Eutrópia, em grande parte são personagens que aparecem esporadicamente e não se desenvolvem para além das relações que têm com Dolens. Também na maioria das vezes, servem de par romântico e objeto de desejo para o protagonista.

pensar depois neste momento – disse ela, fechando rapidamente a capa – e se arrependerá pelo resto de sua vida. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 275). 140 Aparecem respectivamente nos discursos Pro Caelio e Pro Milone de Cícero.

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Uma passagem interessante que acontece entre Galswith, esposa de Dolens, de origem germânica e a mãe dele, Moderata, demonstra bem vários dos temas tratados até aqui sobre a representação feminina no passado. — Na Germânia — diz Galswinth —, os cães nunca tomam banho. — Seguem o exemplo dos donos — diz Moderata. — Tomo muito mais banho que você — Galswinth retruca. — Eu me lavo, corto as unhas e me depilo. E, quando fico menstruada, eu... — Por favor! — Dolens interrompe. — Não discutam práticas de higiene feminina diante de mim. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 263). Ao pedir que não se discuta as práticas femininas perto dele, o público também fica sem sabe-las, já que a narrativa segue a trajetória de Dolens, personagem masculino. Para além da piada, a história, vida e práticas femininas não têm espaço nem na ficção, são tratadas como “coisa de mulher”, o que torna a obra da autora Kate Quinn realmente interessante e notável. A sexualização das mulheres, mostradas como objeto de desejo, também ocorre aqui, ainda que sem a carga moralista com que aparece em Harris. Mesmo assim, as descrições que objetificam as mulheres e as categorizam como “sedutoras” são bem parecidas. Dolens é chamado para encontrar Salvia Othonis, a jovem esposa do pai de Nepos, que foi assassinado. O centurião vai até ela e a encontra em uma terma: Dolens enfim a reconhece. É Sálvia Othonis, viúva do senador Longinus. A pele cor de lua goteja pérolas de suor. Os cabelos noturnos brilham oleosos em cachos molhados. Os olhos tristes têm o castanho esverdeado de um abismo entre montanhas. Ela não aparenta mais de quinze ou dezesseis anos. E está nua. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 205). A Dolens, que não despregou os olhos do decote de Sálvia desde o momento em que ela veio recebê-los no vestibulum, tanto faz a roupa que ela usa. Se lhe perguntarem, ele não saberá dizer nem mesmo a cor da túnica de Sálvia. Ele já a vira nua, ainda que brevemente. Não consegue mais concebê-la vestida. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 352-353). Mesmo na literatura, as mulheres não escapam do male gaze, termo cunhado por Laura Mulvey, em 1975141, para descrever o tipo de olhar, aos quais as mulheres estavam submetidas nas artes visuais. Para ela, as mulheres no cinema são retratadas tipicamente como objetos e não como agentes donas do olhar, já que na maioria das vezes as obras são contadas de um ponto de vista masculino. Apesar de ter sido criado para o cinema, o conceito do male gaze funciona muito bem ao ser transportado para a literatura e pode-se

141 MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema, Screen, Volume 16, Issue 3, Autumn, p. 6-18, 1975.

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encontrar algo similar ao que ocorre nas artes visuais, como nos trechos citados acima. Para Mulvey, as mulheres são mostradas, ou no caso descritas, como um espetáculo a ser olhado e como estímulo visual. Essas personagens são passivas e estão sob o controle do olhar ativo masculino, as mulheres existiriam somente para o prazer visual. A autora também vai defender que os corpos das mulheres são exibidos como objetos de desejo e construídas como espetáculo de prazer voyeurístico. (MULVEY, 1989). Isso fica ainda mais claro quando, no segundo volume, As Mil Mortes de César (MALLMANN, 2014), Salvia Othonis fica em posição difícil, pois é sobrinha do imperador Otho, que acaba de ser assassinado. Em troca de proteção, Dolens finalmente alcança seu objetivo e exige que a moça tenha relações com ele: Para Dolens, estar na cama com uma filha e viúva de senadores, que também é sobrinha de um imperador morto e além disso é uma jovem beldade de cabelos cor da noite, pele pálida como a lua e olhos verde- pântano, é a realização de suas mais remotas fantasias: uma mulher de sangue nobre, aristocrata da mais pura estirpe! Dolens se sente como um mortal que chegasse ao Olimpo, morada dos deuses, e fosse aceito. Mesmo que não pela porta principal. (MALLMANN, As Mil Mortes de César, 2014, p. 132). A conquista de Dolens é colocada em termos de classe, pois Sálvia é vista como a possível revanche contra a aristocracia, que ele odeia e inveja ao mesmo tempo. A moça romana simboliza tudo o que ele almeja conseguir, mas não consegue, isto é, ascender socialmente. Portanto, possuir uma mulher aristocrata vira “prêmio de consolação”. É interessante comparar esse trecho com um de Kate Quinn, muito similar a esse. Após a vitória de Vitélio, seus comandantes estão à procura de casamentos com mulheres da alta aristocracia. Em “Daughters of Rome” (As Filhas de Roma), isso também é mostrado como uma questão de classe, como um tipo de vingança agora que chegaram ao poder: Fabius guffawed, and Cornelia looked at him. He’s enjoying himself even more than Alienus. She wondered how long Fabius Valens had looked at patrician girls like her, aloof untouchable girls he could never have. He can have us all now, either to take for his own or dispose of as he likes. We’re all his, and we hate it. He likes that. (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 224).142 No entanto, ao contrário de Mallmann, o público vê a situação do ponto de vista de Cornélia, o que faz toda a diferença em como a cena será enquadrada. Aqui, a autora

142 Fábio deu uma gargalhada e Cornélia olhou para ele. Ele está se divertindo ainda mais que Alieno. Ela se perguntou por quanto tempo Fábio Valens tinha olhado para garotas patrícias como ela, distantes e intocáveis que ele jamais poderia ter. Agora ele pode ter a nós todas, seja para ele mesmo seja para dispor delas como preferir. Somos todas suas e odiamos isso. É isso que ele gosta. (QUINN, As Filhas de Roma, p. 224, tradução própria).

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pede que o leitor tenha empatia com a situação da personagem, com a realização de estar sob o poder de um grupo, que as vê como prêmio. A partir da mesma situação, os autores fazem uma escolha entre mostrar o medo de Cornélia ou o êxtase de Dolens. Não é que não possa ser caracterizado dessa forma, porém é inegável que a repetição exaustiva de temas como esse, da violência sexual como uma forma de conquista masculina e a transformação da mulher em objeto passivo de desejo, especificamente quando colocadas em situações históricas, promove uma naturalização da violência contra a mulher e uma estigmatização de como a experiência feminina ao longo da história é entendida. O trunfo da narrativa de Quinn está em trazer uma miríade de personagens femininas, com diversas experiências diferentes, o que, por si só, já questiona essa ideia de um passado único. Outro exemplo de como as mulheres são representadas é o que acontece com Rutília, prostituta que Dolens conhece desde criança e por quem é apaixonado, Lupa Rutília, prostituta da Suburra, era plebeia filha de um tecelão. Seu pai foi levado pela Febre no mesmo ano em que sua mãe morria no parto de um irmãozinho. Aos doze anos, ela era uma criança órfã com um bebê nos braços. Rutília vendeu sua pureza a quem quisesse pagar. Vendeu-se por moedas de cobre, vendeu-se por uma caneca de leite ou por um punhado de farinha de trigo, vendeu-se até por promessas que ela mesma duvidava que fossem cumpridas. Seu irmãozinho morreu antes de completar um ano. Cedo demais. Tarde demais. Rutília nunca mais voltaria a ser a filha do tecelão. Aos quatorze anos, ela recebeu na cama um menino trêmulo, da mesma idade que ela, com um punhado de moedas e o hálito do vinho que bebera para criar coragem. Ele mal sabia o que fazer. Ela era um bicho com dentes e garras. Desiderius Dolens se apaixonou. Rutília foi seu primeiro e mais sincero amor (MALLMANN, As Mil Mortes de César, 2014, p. 114). O autor a usa para dar uma motivação à raiva do centurião e uma razão “inquestionável” para se vingar de Vitélio. Com isso, a mulher só existe em função do homem, para apoiar sua narrativa, seu desenvolvimento e justificar suas ações, não como personagens independentes. Dolens corre para acudir Rutília. Mesmo ferida ela o esbofeteia. – Por que demorou tanto? [...] Ele tenta estancar a hemorragia no peito dela, mas o sangue insiste em lhe escapar por entre os dedos. – Foi só um arranhão – ele mente, mais para si do que para ela. – Você não devia ter vindo – ela esbofeteia de novo, desta vez quase sem forças. – Decida-se: a raiva é porque demorei para chegar ou porque cheguei? Rutília ergue a mão outra vez. Dolens, por reflexo, se retrai. Ela o acaricia. – Meu amor – ela diz –, Vitellius vai matar você. – Nós, da Suburra, não morremos tão fácil. Você me chamou de meu amor? – Chamo qualquer um de meu amor, meu amor. – A mim você nunca havia chamado de meu amor. – Nunca quis mentir para você. – E agora falou a verdade? – Se você me amasse, saberia. – De todas as mulheres que conheci, você é a única que eu amo. – E a esposinha germana? – Casei por luxúria. – O normal é que o homem se deite com a

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esposa por amor e com a puta por desejo, não o contrário. [...] Estou morrendo. [...] – Uma vez você me disse que nós somos brinquedos quebrados. Os aristocratas se cansam de brincar e nos jogam no Tibre. Dolens beija Rutília. Acolhe-a junto ao peito, como se quisesse que o bater do seu coração animasse o coração dela: – Você não será jogada no Tibre. Rutília morre docemente nos braços do homem da sua vida. (MALLMANN, As Mil Mortes de César, 2014, p. 232-233). É um clichê das narrativas e Mallmann, provavelmente, está fazendo referência a esses casos. No entanto, ele não subverte nem faz um comentário sobre o caso, o que leva a uma reafirmação dos papéis tradicionais de gênero. De qualquer forma, o leitor não vê jamais as coisas do ponto de vista feminino. Porém, há um ponto em comum na narrativa de Mallmann e de Quinn. Como Marcela, personagem do romance de Quinn, Dolens acaba influenciando a história e sendo responsável pela morte de três imperadores: — Como foi seu dia? — Galswinth pergunta. — Trabalhoso — Dolens beija Galswinth e, sem nem mesmo tirar a cota de malha ou as grevas, se joga no divã: — Hoje derrubei o imperador. Dolens dá à frase o tempo necessário para aturdir as mulheres da casa. Quando percebe que as quatro o contemplam em silêncio, boquiabertas, ele sorri e se espreguiça, saboreando seu pequeno momento de glória. (MALLMMAN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 122). Nessas duas histórias, as relações de poder se invertem, é uma mulher e um mero centurião os responsáveis por derrubar imperadores, ainda que de maneira indireta, mas ao contrário de Marcela, à Dolens é permitido ter seu pequeno momento de glória.

Steven Saylor

Na série Roma Sub Rosa, a maior parte dos livros têm personagens femininas, com uma maior participação delas, do que foi visto em Harris e Mallmann. Em “The Venus Throw” (O lance de Vênus), pela primeira vez, Gordiano vai entrar em contato com um mundo ao qual ele desconhece, o das mulhres romanas. É interessante, pois de certa forma funciona como uma descoberta, para o protagonista e para os leitores, adentrar nesse mundo até o momento ignorado. O protagonista Gordiano se depara com uma rede de sociabilidade feminina, que ao mesmo tempo é intrigante, porém de difícil acesso. Parece ser uma metáfora que o autor utiliza para descrever a história das mulheres, quase ao alcance, porém elusiva. “We have ways of sharing what we know.” “‘We’?” “We women.” I felt a prickling sensation in my spine, a sense of having had the same conversation before—with Bethesda, when she told me that Clodia and Caelius were no longer lovers, and I asked her how she could possibly

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know such a thing: We have ways of sharing what we know. For an instant I had a glimmer of insight, as if a door had been opened just enough to let me catch a glimpse of an unfamiliar room. Then she started to talk again and the door was shut. (SAYLOR, The Venus Throw, 1995, p. 112, grifo nosso).143 Porém, o caso mais interessante a ser abordado pela pesquisa é o da personagem de Clódia Pulcra, uma das protagonistas do livro “The Venus Throw” (O lance de Vênus). Nesse volume, Saylor narra os eventos relacionados à morte de Dio de Alexandria, líder da embaixada egípcia que fora enviada a Roma em 56 a.C., para resolver a questão da sucessão real no país. O rei Ptolomeu Auletes, que havia sido expulso do trono, recorreu à Roma para que pudesse tê-lo de volta. Por sua vez, os cidadãos de Alexandria queriam impedir que essa ajuda fosse concretizada. No entanto, a embaixada sofreu vários ataques e Dio foi assassinado em Roma. Marco Célio Rufo, um jovem romano de família equestre e antigo pupilo de Cícero, foi acusado por Clódia Pulcra – com quem havia se relacionado – de tentar envenená-la e estar envolvido na morte de Dio. Cícero fez parte da defesa de Célio e é por meio do registro conhecido como “pro Caelio” que se conhece os eventos narrados. Esse se tornou um dos mais famosos exemplos de oratória romana e um dos maiores da carreira de Cícero. Sobre essa questão, Saylor fará com Clódia algo parecido com o que fez com Catilina, ambas figuras históricas bastante vilipendiadas, especialmente a partir de fontes ciceronianas. O autor costuma narrar o que são considerados “momentos chave” da história romana, do ponto de vista do “outro”, isto é, de uma perspectiva diferente daquela tradicional. Como foi discutido anteriormente, a conspiração de Catilina é vista do ponto de vista dele e não de Cícero. Da mesma forma, a estadia de César em Alexandria, após a batalha de Farsália, é contada a partir da visão de Ptolomeu e não de Cleópatra ou mesmo do próprio César. Assim, o público terá contato com a história de Clódia a partir do seu ponto de vista. Essa mudança é fundamental por alguns motivos. As fontes existentes sobre Clódia advêm especialmente dos discursos proferidos contra ela por Cícero ao longo do julgamento de Célio e que a transformaram de vítima do processo em verdadeira ré dele.

143 – Nós temos maneiras de partilhar aquilo que sabemos. –”Nós”? – Nós, as mulheres. Tive uma sensação de formigueiro na espinha, a noção de já ter tido aquela mesma conversa com Betesda, quando ela me tinha dito que Clódia e Célio já não eram amantes, e eu lhe tinha perguntado como é que ela podia saber tal coisa. Nós temos maneiras de partilhar aquilo que sabemos. Por instantes, tive um vislumbre de pressentimento, como se uma porta se tivesse aberto, apenas o suficiente para me permitir captar uma visão momentânea de uma sala desconhecida. Depois, ela recomeçou a falar e a porta fechou-se. (SAYLOR, O Lance de Venus, 2002, p. 191).

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Mudar o foco da história é permitir que as fontes antigas sobre o passado também sejam vistas como tendenciosas e não como narrativas neutras144. Em um diálogo entre Gordiano e seu filho Eco, eles tentam descobrir o que sabem sobre Clódia e separar aquilo que é fato do que é fofoca: “Very well, what do we know about them? And let us be careful to separate fact from slander.” […] “Facts only,” I conceded. “Or at least, anything not a fact must be clearly identified as hearsay,” I amended, realizing that it might otherwise be impossible to talk about Clodia and Clodius at all. […] “What about her? All right, let’s take a look at Clodia. The same rules: truth only, except for gossip identified as gossip—though I think the rule will be even harder to observe with Clodia than with Clodius. I think we’ve probably heard more about her and know less. […] While we’ve both heard plenty of rumors, when it comes down to it, we don’t really know very much at all about Clodia, do we?” (SAYLOR, The Venus Throw, 1995, p. 94-95; p. 100-101).145 A conversa funciona em dois níveis, por um lado é uma estratégia do autor de colocar o leitor a par do que as fontes existentes dizem sobre Clódia: teria tido um caso com o irmão Clódio, teria tido diversos amantes, teria envenenado seu marido. Ao mesmo tempo, por conta do formato do diálogo, que ocorre entre pai e filho, Saylor faz basicamente uma análise dessas fontes e se elas podem ser confiáveis para se conhecer Clódia. E também, se é possível separar o que é fato do que é fofoca e invectiva. Essa pergunta acompanha o protagonista ao longo de toda a narrativa, ainda que o retrato pintado de Clódia seja majoritariamente simpático.

144 Saylor, por exemplo, faz isso ao citar as mulheres que apoiavam Catilina: Who else supports Catilina?" "There are the women, of course." "Women?" "A certain set in Rome—mostly women of high birth who have an appetite for intrigue. His enemies make out Catilina to be hardly more than a pimp for such women, connecting them with his young friends in return for jewels he can sell, or secrets about their husbands. But I suspect that many of these women—wealthy, educated, exquisitely bored—crave power no less than men and know they will never attain it in any ordinary way. Who knows what sort of promises Catilina makes to them? (SAYLOR, Catilina Riddle’s, 1992. p. 273). Ronald Syme, sobre a descrição que Salústio faz de Semprônia, uma das apoiadoras de Catilina: “The fourth character is not Cicero, coolly designated as optimus consul”. [Cat. 43.1], but a woman, Sempronia, of various and resplendent talents, none turned to any good use. Sempronia possessed a masculine understanding, exquisite culture, and a ready wit; certain of her accomplishments displayed more grace than an honest woman needs. Avid, audacious, and extravagant, this lady of quality took what she wanted, careless of reputation: she had boldly repudiated pledges and debts, she had even been privy to murder”. (SYME, Ronald. 2016). 145 – Muito bem, o que sabemos nós acerca deles? E sejamos cuidadosos em separar os factos das calúnias. [...] – Só os factos concedi. Ou então, tudo aquilo que não for um facto deve ser claramente identificado como boato, emendei, apercebendo-me de que, de outra maneira, talvez fosse difícil falar de Clódia e de Clódio. [...] – Então e Clódia? – O que é que tem? Muito bem, vamos analisar Clódia. Com as mesmas regras: só a verdade, a não ser que identifiquemos a coscuvilhice como tal embora me pareça que a regra é ainda mais difícil de observar no caso de Clódia do que no de Clódio. Acho que sobre ela ouvimos dizer mais e sabemos menos. [...] Embora tenhamos ambos ouvido muitos boatos, na realidade não sabemos assim muitas coisas sobre Clódia, pois não? (SAYLOR, O Lance de Venus, 2002, p. 163, 173).

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As I watched Cicero deliver the final oration of the trial—one of the finest of his career, some would later say—I felt as if I were watching a play. Like a play, the action seemed distant from me, the dialogue out of my control; I was a spectator, powerless to stop or alter the course of unfolding events. But a playwright strives to elucidate some truth, whether mundane and comic or grand and tragic. Where was the truth in this strange play? Who was the villain, and who the tragic figure? (SAYLOR, The Venus Throw, 1995, p. 265).146 O autor permite-se então imaginar quem seria essa mulher para além dessas acusações e tenta vê-la sob o prisma da sociedade romana e também a partir dessa visão em relação às mulheres, ou seja, que não suporta ver uma mulher que rompe os padrões sair ilesa e impune. Nesse sentido, Gaio Valério Catulo, um dos mais famosos poetas de língua latina, eternizou em seus versos sua relação com Clódia, por meio do pseudonimo Lésbia. Aqui, Catulo deixa de ser visto como um romântico, que perdeu a amada. E a relação entre poeta e musa tem um lado sombrio: “I thought you loved Clodia. I thought you hated Caelius.” “Which is precisely why I had to help him destroy her.” “You baffle me, Catullus!” “She had to be destroyed. It was the only way. Now I can reclaim her.” [...] “It’s not that I’m proud. But it had to be done. She had to be brought down. She’d become too full of herself, too proud, too arrogant, ever since Celer died and she started running her own household. Now she’s been broken, in the only way it could be done. We took everything that made her strong—her beauty, her pride, her love of pleasure—and turned it against her. Her own ancestors were turned against her, the ones she’s always gloating about! She’ll never be able to brag about the family monuments again without everyone snickering behind her back. She can’t even turn to Clodius, not in public. It’s me she’ll turn to.” (SAYLOR, The Venus Throw, 1995, p. 357).147 Ele é retratado como um homem obsessivo, que não aceita ter sido rejeitado e, por isso, quer destruir a reputação da mulher que ousou fazê-lo. Em alguns aspectos, essa descrição remete à caracterização que a autora Kate Quinn faz do imperador Domiciano e

146 Ao ver Cícero pronunciar a oração final do julgamento uma das melhores da sua carreira, diriam alguns mais tarde -, pareceu-me que estava a assistir a uma peça de teatro. Tal como acontece numa peça, a acção parecia estar distante de mim, o diálogo fora do meu controlo; eu era um espectador, impotente para suspender ou alterar o curso dos acontecimentos que se desenvolviam na minha frente. Mas um dramaturgo procura elucidar alguma verdade, seja ela mundana e cómica ou grandiosa e trágica. Ora, onde estava a verdade, nesta estranha peça? Quem era o vilão, quem era a figura trágica? (SAYLOR, O Lance de Venus, 2002, p. 431). 147 Pensei que amasses Clódia. Pensei que odiasses Célio. E foi precisamente por isso que o ajudei a destruí - la. Tu confundes-me, Catulo! Ela tinha de ser destruída. Era a única maneira. Agora posso tê-la para mim. [...]Não é que me sinta orgulhoso. Mas era preciso fazê-lo. Ela tinha de ser destruída. Estava demasiadamente cheia de si própria, demasiadamente orgulhosa e arrogante, desde que Celer morreu e que ela começou a gerir a sua própria casa. Agora quebrou, e esta era a única maneira de O fazer. Pegámos em tudo aquilo que a tornava forte a beleza, o orgulho, o amor ao prazer e voltámo-lo contra ela. Até os antepassados foram voltados contra ela, aqueles de quem está sempre a gabar-se! Ela nunca mais poderá voltar a referir-se aos monumentos da família sem ouvir alguém fungar nas suas costas. Nem sequer poderá voltar-se para Clódio, pelo menos em público. Será para mim que se voltará. (SAYLOR, O Lance de Venus, 2002, p. 475).

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de sua relação com as mulheres. No fim, Clódia é destruída pela sociedade misógina e pelos homens que estão ao seu redor, inclusive os que dizem amá-la, condenada a sofrer não só durante a vida, mas passar para a história impossibilitada de que sua voz seja ouvida. Apesar de Saylor apresentar os eventos pelo lado de Clódia, o autor não escapa em descreve-la como a perfeita femme fatale, desde a primeira vez em que é apresentada. Nesse sentido, não é muito diferente do que Harris faz, ainda que inverta os signos e a sensualidade de Clódia não seja vista como um sinal de decadência moral. The sudden, unexpected nearness of Clodia’s body was intoxicating. She was so close that I could see her only in sidelong glances, never all at once; like an object held too close before the eyes, she dominated my senses even while she eluded them. In the filtered glow of sunlight through silk curtains, the flesh of her arms and face appeared as smooth as wax, but radiant with an inner warmth. Her stola was as transparent as the one she had worn before, but was of a different shade, a creamy white the exact color of her flesh. As we passed through dappled patches of sunlight and shadow, the illusion that she was naked was sometimes uncanny, until she moved, whereupon the dress moved with a life of its own, as if the shimmering fabric, provoked by her touch, sought to caress all the hidden places of her body. (SAYLOR, The Venus Throw, 1995, p. 133).148 No livro “Murder on the Appian way” (SAYLOR, 1996), essa questão continua ainda mais explícita. Nele, a personagem Clódia dá a entender que queria ter algo com Gordiano, o protagonista da série de Saylor, porém ele a renega. Assim, no fim, quando ele vê que Clódia vai embora, Gordiano entende isso como uma vitória, um triunfo seu, ou seja, ele conseguiu “machucar” Clódia. Por fim, apesar de apresentá-la a partir de um ponto de vista mais complexo, Saylor não escapa desse olhar que sexualiza e objetifica a mulher.

2.5. Práticas Sexuais e Representações do Homoerotismo Qual o papel desempenhado pelas relações homoeróticas romanas na cultura popular moderna? O Ocidente voltou-se diversas vezes para o mundo greco-romano para pensar questões referentes ao desejo. A antiguidade tomou várias formas nesses debates.

148 A súbita e inesperada proximidade do corpo de Clódia era embriagadora. Ela estava tão próxima que eu apenas podia vê-la com olhares de esguelha, e nunca toda de uma vez só; tal como um objecto colocado demasiadamente perto dos olhos, dominava os meus sentidos embora lhes escapasse. Ao brilho filtrado do Sol que passava pelas cortinas de seda, a carne dos seus braços e do seu rosto parecia tão suave como a cera, mas irradiando um calor interior. A estola que trazia vestida era tão transparente como a do dia anterior, mas tinha uma cor diferente, um branco-cremoso que era exactamente da cor da sua carne. Enquanto passávamos por fragmentos manchados de sol e sombra, a ilusão de que estava nua era por vezes inquietante, mas depois ela mexia-se e o vestido ganhava vida própria, como se o tecido brilhante, provocado pelos seus movimentos, procurasse acariciar todos os lugares escondidos do seu corpo. (SAYLOR, O Lance de Venus, 2002, p. 227).

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Algumas vezes, sua alteridade foi vista como valiosa, em outros casos, a distância entre passado e presente se tornou tão pequena que serviu como espelho para validar um reflexo de si mesmos. (BLANSHARD, 2015, p. 256). Para Jennifer Inglehart, a literatura latina, fornece alguns dos exemplos mais conhecidos e influentes de textos que tratam do desejo sexual entre homens, como o Satiricon, de Petrônio. E também algumas das referências e representações mais francas, de práticas homoeróticas, como os textos de Catulo, Juvenal e Marcial. Do ponto de vista histórico, Roma tem muitos exemplos de relações e práticas homoeróticas, em particular nos registros das vidas dos imperadores. Também legou à posteridade muitos exemplos concretos desse conteúdo na cultura material. (INGLEHEART, 2015, p. 08). Como pode ser visto, a difusão dessas práticas sexuais romanas é bastante ampla. Esse talvez seja um dos pontos que mais geram controvérsia ao se voltar para a antiguidade, sobretudo na ficção. Apesar da nossa sociedade não se chocar com o tratamento dado às mulheres, talvez pelos altos níveis de violência ainda praticados contra elas, atualmente as práticas sexuais romanas, ao romperem com a normas sexuais aceitas no presente, levam a inúmeras polêmicas. De toda forma, os autores de ficção histórica precisam escolher como vão lidar com a presença marcante do assunto nas fontes romanas. Os pressupostos romanos, sobre a identidade masculina, baseavam-se em uma oposição binária: os homens penetradores em oposição a todos os outros penetrados. Entre esses últimos, poderiam estar mulheres, rapazes e escravos. A estrutura hierárquica das práticas sexuais está intrinsicamente ligada a questões mais amplas, como as de poder. E tendem a nunca ver como parceiros sexuais aceitáveis, para homens adultos das classes dominantes, aqueles que pertencem ao mesmo grupo social que eles mesmos. Ou são mulheres ou homens que são jovens ou vistos como não completamente masculinos do ponto de vista de gênero. O que está ausente em Roma é o chamado “modelo igualitário” das relações sexuais. Isto é, os parceiros publicamente aceitos para os homens são sempre marcados como significativamente diferentes, mesmo que sejam do mesmo sexo biológico. Algo que desafia os conceitos de homossexualidade e heterossexualidade, que se apoiam no pressuposto de que a única semelhança e diferença realmente significativa está no sexo biológico dos participantes nos atos sexuais. (WILLIAMS, 1999).

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Robert Harris

Na trilogia de Cícero, Robert Harris adota o silêncio como tática. Ao longo da obra só faz duas menções diretas à uma prática sexual entre homens. A primeira, acontece apenas no segundo volume, Lustrum (2009). Ao introduzir Metelo Nepos, general de Pompeu, o narrador da história, Tiro, o descreve como: He was a haughty man, very proud of his handsome features and fine physique. (They say he preferred to lie with men rather than women, and certainly he never married or left issue; but that is just gossip, and I should not repeat it. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 61).149 A segunda menção se dá no contexto, pós assassinato de César, das acusações que Cícero faz nas filípicas contra Marco Antônio: Everyone wanted to read it, not least because it was filled with the most venomous gossip, for example that Antony had been a homosexual prostitute in his youth. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 313).150 Em ambos os casos, o autor associa as relações entre dois homens com fofoca e invectiva, ao mesmo tempo em que faz uma associação dessas práticas à uma identidade sexual que não existiu no período. Foi a partir do final do século XIX, influenciado em especial pelos discursos médicos, que o termo homossexual, empregado pela primeira vez em 1869, pelo escritor húngaro Karoly Maria Kertbeny, veio a progressivamente ser categorizado como um indivíduo à parte, que era definido por sua orientação e práticas sexuais. (TAMAGNE, 2013, p. 424). É curioso que o autor tenha escolhido alguém do qual se sabe muito pouco, como Metelo Nepos, para aludir a uma possível preferência por homens, em oposição às mulheres, sendo que omite outros casos que constam na documentação, como do próprio Júlio César. Ainda que de maneira direta Harris só faça essas duas menções ao longo da série, o autor irá fazer em diversos momentos referências a comportamentos vistos como efeminados, sempre relacionando-os a personagens que são antagonistas ou inimigos declarados de Cícero. Ao descrever Clódio e seus apoiadores, o autor os define dessa forma: [...] when a group of six or seven smirking youths appeared, strolling from the direction of the Palatine, apparently without a care among them. They clearly fancied themselves the height of fashion, and I suppose they were, with their long hair and their little beards, and their thick, embroidered

149 Ele era um homem altivo, muito orgulhoso de suas belas feições e excelente corpo. (Dizem que ele prefere se deitar com homens do que com mulheres, e certamente nunca se casou ou deixou herdeiros; mas isso é apenas fofoca, e não devo divulgá-la.). (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 90). 150 Todos queriam lê-lo, especialmente porque estava cheio dos mais malévolos mexericos. Por exemplo, que Marco Antônio tinha sido um prostituto homossexual na juventude [...]. (HARRIS, Dictator, 2017).

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belts worn loosely around their waists. “By heavens, what a spectacle!” muttered Cicero as they pushed past us, trailing a fragrant wake of crocus oil and saffron unguents. “They look more like women than men!” One of their number detached himself from the rest and climbed the steps to the praetor. Midway up, he paused and turned to the crowd. He was, if I may express it vulgarly, “a pretty boy,” with long blond curls, thick, wet red lips, and a bronzed skin— a kind of young Apollo. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 366-367).151 É interessante notar como Harris usa aqui o vocabulário objetificador e sexualizado, semelhante ao usado para descrever as mulheres. Clódio seria um “rapaz bonito”, com lábios carnudos e vermelhos. Assim como em Metelo, a beleza em um homem é ligada de forma imediata a uma perda de masculinidade e também a práticas consideradas desprezíveis pelo autor. Harris associa o comportamento efeminado a qualquer tipo de desejo sexual por outros homens, algo que não se encontra nas fontes latinas. A Roma criada por Harris possui uma moral sexual idêntica àquela existente nos dias de hoje. As representações dos papéis de gênero e de masculinidade desempenhados por Roma na sua recepção diferiram muitas vezes. Isso dependeu de como Roma foi vista, isto é, se como um modelo para o império britânico, portanto, ocidental, poderoso, viril. Ou associado ao Oriente, como o outro, exótico, feminino e decadente. (INGLEHEART, 2015, p. 34). Ainda que a referência seja sobre livros publicados até o começo do século XX, percebe-se que esse ideal continua presente em obras que são sucesso de público no século XXI. Em Harris isso fica bastante claro e está de acordo com sua visão de Roma como um modelo para o Ocidente, que tem como expoente não mais o império britânico, mas o “império americano”. (THEGUARDIAN.COM, 2018). Essa dicotomia continua ao longo da série ao opor Cícero e os aristocratas à Catilina e aos populares. Assim, Tiro faz a seguinte observação sobre Catilina: His expression was heavy with thought; no doubt he was reflecting that but for Cicero it would have been he in the consul's chair that day. His acolytes took their places behind him – men like the bankrupt gambler Curius, and

151 [...] quando um grupo de seis ou sete rapazes sorridentes surgiu, vindo tranquilamente da direção do Palatino, aparentemente sem qualquer sinal de preocupação. Eles claramente pareciam se sentir na última moda, e imagino que estivessem, com seus cabelos compridos e suas barbichas, e seus cinturões grossos, cravejados, amarrados frouxamente em volta das cinturas. – Céus, que espetáculo é esse! – sussurrou Cícero, enquanto eles passavam por nós, deixando uma trilha perfumada de óleo de cúrcuma e unguento de açafrão. – Eles mais parecem mulheres do que homens! Um deles se destacou do grupo e subiu as escadas em direção ao pretor. A meio caminho, parou e se virou para a multidão. Era, se posso dizer de modo vulgar, “um belo rapaz”, com cabelos louros encaracolados, magro, lábios vermelhos úmidos e pele bronzeada – uma espécie de jovem Apolo. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 299).

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the immense Cassius Longinus, whose flab occupied the space of two normal senators. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 34).152 Logo em seguida, Cícero, agora cônsul, se levanta para atacar a lei de distribuição de trigo: 'It is nothing less', he said, 'than a dagger, pointed towards the body politic, that we are being invited to plunge into our own heart!' His words produced an immediate eruption – of shouted anger and dismissive gestures from the populists' benches and a low, masculine rumble of approval from the patricians'. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 35).153 No trecho acima citado, Harris descreve a aprovação vinda dos patrícios, apoiadores de Cícero, como um barulho baixo e masculino, em oposição aos chamados populistas que “gritavam de raiva com gestos desdenhosos”. Assim, os apoiadores de Catilina são apresentados como jogadores inveterados ou imensos e flácidos. Como foi mostrado anteriormente, Catilina é associado a cultos de sacrifício humano. O autor constrói uma imagem de descontrole moral que se traduz também no físico. Cria-se uma dicotomia entre civilização e barbárie, em que um grupo de efeminados, que odeiam a liberdade democrática, aderem a cultos estrangeiros, e também querem destruir a república, enquanto Cícero e seus partidários representam a razão, a democracia e a virilidade. O último exemplo que se tem no livro é o de Júlio César. Apesar de descrever diversas figuras histórias romanas como efeminadas, a representação que faz de César é mais ambígua. Ao longo da narrativa, o autor vai apresentar o romano como mulherengo, colecionador de casos com as esposas dos figurões da república. He agreed with Catulus that Caesar's ambition was so reckless and gargantuan it might one day become a menace to the republic. And yet,' he mused to me, 'when I notice how carefully arranged his hair is, and when I watch him adjusting his parting with one finger, I can't imagine that he could conceive of such a wicked thing as to destroy the Roman constitution.' (HARRIS, Lustrum, 2009 p. 60).154

152 Sua expressão era marcada por pensamentos; sem dúvida, refletia que, se não fosse por Cícero, ele estaria na cadeira do cônsul naquele dia. Seus acólitos tomaram seus lugares atrás dele – homens como o jogador falido Cúrio e o imensamente gordo Cássio Longino, cuja flacidez ocupava o espaço de dois senadores normais. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 55). 153 – Nada mais é – disse ele – do que uma adaga, apontada na direção do corpo político, que somos convidados a enfiar em nosso próprio coração! Suas palavras produziram uma imediata erupção – de gritos irados e gestos de repúdio vindos dos bancos dos populistas e um baixo burburinho masculino de aprovação vindo da parte dos patrícios. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 57). 154 Quanto a Cícero, este hesitava. Concordava com Catulo que a ambição de César era tão temerária e gigantesca que, um dia, poderia se tornar uma ameaça à república. "Mas", matutou comigo, "quando notei o modo como ele cuidadosamente ajeitava o cabelo, e quando o viacertar o partido com o dedo, não pude

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Harris está citando diretamente Plutarco, que narra o episódio atribuído a Cícero na biografia de César155. A citação é feita sem nenhum contexto e o leitor que desconhece o significado de “coçar a cabeça com um dedo”156, acaba perdendo a referência que o autor latino está fazendo sobre os boatos que corriam, na época de César, sobre ele ser efeminado. Ao mesmo tempo, o autor omite da narrativa a história do suposto caso que César, quando jovem, teria tido com o rei Nicomedes, da Bitínia. O escândalo se daria por César ter desempenhado o papel passivo com o rei. O boato acompanhou César por toda sua vida e consta em pelo menos duas fontes antigas, Suetônio e Cássio Dio157. No triunfo de César, o autor cita as canções dos legionários sobre o general, mas omite justamente a que fala sobre Nicomedes158. Não é por um desconhecimento da fonte que Harris exclui o caso, afinal a citação que usa de Plutarco se encontra próxima ao caso do rei da Bitínia. O autor também não perde a chance de descrever outras personagens dessa forma, mesmo quando a documentação antiga não apresenta essas informações, como no caso de Metelo Nepos. A autora Jennifer Ingleheart (2015, p. 31), afirma que existe uma sobreposição no estereótipo de Roma como sexualmente decadente e licenciosa e o aspecto especificamente homossexual desse estereótipo, isto é, como um marcador dessa decadência e exemplo dela. É o que acontece na trilogia ciceroniana. Apesar de, como diz um review159, não se ver nenhuma das orgias que se espera da Roma Antiga, a conduta sexual não heteronormativa é um marcador da decadência da República Romana e associada àqueles que o autor vê como os responsáveis por sua destruição. Craig Willians, ao analisar a outra obra de Harris sobre Roma, chamada Pompéia, apresenta algumas informações que ajudam a entender a visão do autor sobre o assunto. Nenhuma voz no texto fala explicitamente de forma abertamente homofóbica, como ocorre em trabalhos anteriores, como por exemplo em “Eu, Cláudio”, de Robert

imaginar que ele fosse capaz de uma coisa tão perversa como destruir a constituição romana". (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 89). 155 Plutarco, Caes.4. 156 Coçar a cabeça com um dedo denotaria efeminação, por se tratar de um cuidado excessivo com o penteado elaborado e uma vontade de não estragá-lo, algo que seria próprio das mulheres. (WILLIANS, 1999, p. 130). 157 Suetônio, Iul, 49. e Cássio Dio 43.20.4. 158 Para uma análise detalhada de como Júlio César teve sua masculinidade representada na Antiguidade e suas recepções no presente, consultar: As masculinidades de Júlio César: recepções antigas e midiáticas. (MENEZES, 2018). 159 Interview with Robert Harris: A little bit of politics. (THEGUARDIAN.COM, 2006).

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Graves (1934)160. Ainda assim, o sexo e desejo entre homens neste romance geralmente têm algo de decadente, estrangeiro, violento e repulsivo161. (WILLIANS, 2015, p. 187). O autor vai afirmar que o silêncio é também uma forma de poder e certamente um luxo dos privilegiados. Silenciar sobre as relações entre homens, em especial quando se trata de figuras famosas e vistas como exemplo como César, é higienizar o passado romano daquilo que a nossa sociedade vê como inaceitável. Nessa questão, pode-se fazer um paralelo com a representação das mulheres. Pede-se mulheres submissas e violentadas ao se falar sobre o passado romano, tudo em nome de uma suposta “veracidade histórica”. No entanto, ao se falar sobre práticas homoeróticas, a resposta é inversa, ainda que as fontes sejam bastante profusas sobre o assunto. A “verdade histórica” parece não interessar tanto nesse caso e as exigências sobre “mostrar o passado assim como foi” acabam se invertendo. É um ótimo exemplo de como as fontes antigas são usadas de acordo com os interesses de cada autor e de como a visão dominante da sociedade influencia na interpretação do passado.

Steven Saylor

As discussões das relações entre homens no romance histórico de Steven Saylor são múltiplas e interessantes. O autor é casado com Rick Solomon e se auto identifica como gay. Como apresentado anteriormente, antes da carreira como escritor, Saylor trabalhou em diversas publicações que tinham o público LGBT como alvo. A primeira observação a ser feita, sobre como o autor lida com a questão na narrativa da série, é que o desejo sexual entre homens e rapazes é uma realidade. Desde o primeiro volume, Saylor fará referências tanto pautadas no registro histórico quanto criadas por ele, mas que emulariam relações semelhantes que teriam existido na antiguidade

160 O seriado Eu, Cláudio, produzido pela BBC em 1976, foi apontado em entrevista pelo autor como um de seus programas favoritos sobre Roma. 161 Attilius é um engenheiro que foi designado para fazer uma obra de reparo no aqueduto que leva água até Pompéia. Lá ele encontra Brittius, um dos magistrados da cidade, fazendo uso das termas públicas. O magistrado Brittius é corrupto e só pensa nas suas vantagens pessoais, recusando-se a permitir que o engenheiro interrompa provisoriamente a água para a cidade de Pompéia. A descrição de Brittius, ainda que mais explícita, segue a risca a caracterização que se vê na trilogia ciceroniana. Um homem de moral duvidosa que se manifesta na forma de uma conduta sexual reprovável (aos olhos do autor). “Brittius was on his back and the young slave had obviously been giving him more than a massage for his penis was red and engorged and pointing hard against the fat slope of his belly [...]” (HARRIS, Pompey, 2003, p. 117). “[...] what a picture they looked [...] dripping with water – his water – and Brittius, with his puny hard on, now lost in the flabby folds of his lap. The sickly scented heat was unbearable”. (HARRIS, Pompey, 2003 p. 120). “Your precious baths, Popidius – where Brittius here likes to be wanked off by his little boys”. (HARRIS, Pompey, 2003, p. 259).

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romana. Por exemplo, em “Roman Blood” (Sangue Romano) a história principal gira em torno de Crisógono, liberto e um dos favoritos de Sila, acusado por Cícero de se beneficiar com as proscrições. O protagonista da série, Gordiano, acaba tendo a oportunidade de encontrar-se com Metróbio, ator grego conhecido por ser amante de Sila. Todas essas relações são citadas e tratadas pelas personagens da história de modo casual. O autor, também não chama atenção para elas, dando-lhes um ar de naturalidade. Esse tipo de referência continuará ao longo de toda a série. A distribuição desses casos, de uma forma orgânica pela narrativa, dá a impressão de ser uma prática difundida e aceita na sociedade. I recognized at once the famous female impersonator Metrobius. I had seen him a few times before, never in public and never performing, only in glimpses on the street and once at the house of Hortensius when the great lawyer had deigned to let me past his door. Sulla had taken a fancy to Metrobius long ago in their youth, when Sulla was a poor nobody and Metrobius was (so they say) a beautiful and bewitching entertainer. Despite the ravages of time and all the vagaries of Fortune, Sulla had never abandoned him. Indeed, after five marriages, dozens of love affairs, and countless liaisons, it was Sulla’s relationship with Metrobius that had endured longer than any other. (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 266- 277).162 Nesse trecho, Saylor está citando praticamente verbatim, a passagem da biografia de Sila escrita por Plutarco, em que o autor grego fala do relacionamento do ditador com o ator de teatro163. Já no segundo volume da série, o autor vai apresentar a história de Múmio, cidadão romano e oficial de Pompeu, e Apolônio, escravo de Crasso. Igualmente a relação deles é apresentada e vista pelos personagens como não problemática. É a partir do livro “Catilina’s Riddle” (O Enigma de Catilina), terceiro volume da série, que Saylor começa a explorar com mais ênfase como as relações homoeróticas

162 [...] e reconheci imediatamente o famoso imitador de mulheres, Metróbio. Já o vira algumas vezes, nunca em público e nunca no palco, só de passagem na rua e uma vez em casa de Hortênsio, quando o grande advogado se dignou deixar-me passar da sua porta. Sula tivera uma inclinação por Metróbio há muito tempo, quando ambos eram novos, Sula era um pobre zé-ninguém e Metróbio era (segundo dizem) um ator jovem e encantador. Apesar da devastação produzida pelo tempo e de todos os caprichos da Fortuna, Sula nunca o abandonara. Na realidade, depois de cinco casamentos, de dezenas de casos amorosos e de incontáveis ligações, a relação de Sula com Metróbio tinha afinal durado mais do que qualquer outra. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 381). 163 Plutarco Vida de Sila 2,3 e 36,1. “Nor is it out of place to mention such testimonies in the case of a man said to have been by nature so fond of raillery, that when he was still young and obscure he spent much time with actors and buffoons and shared their dissolute life [...] It was this laxity, as it seems, which produced in him a diseased propensity to amorous indulgence and an unrestrained voluptuousness, from which he did not refrain even in his old age, 4 but continued his youthful love for Metrobius, an actor. 36 1 However, even though he had such a wife at home, he consorted with actresses, harpists, and theatrical people, drinking with them on couches all day long. For these were the men who had most influence with him now: Roscius the comedian, Sorex the archmime, and Metrobius the impersonator of women, for whom, though past his prime, he continued up to the last to be passionately fond, and made no denial of it”. (PLUTARCH, 2006).

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eram vistas em Roma. Segundo Williams (2015, p. 187), o autor usa muito do jargão acadêmico, dos estudos sobre a sexualidade no mundo antigo, para fazer sua reflexão na série. Para isso, ele usa Catilina como exemplo, com quem Gordiano tem uma longa e íntima conversa sobre o tema. Saylor aproveita para, de forma bastante expositiva, descrever as normas sexuais aceitas na antiguidade romana. A escolha de fazê-lo com Catilina, alguém acusado pelas fontes antigas, e em especial por Cícero, de quebrar essas normas, também é interessante. Catilina diz para Gordiano: We both know the Roman way of sexuality: power is everything, even more important than pleasure. Indeed, pleasure as an end in itself is something alien to a good Roman [...] Power rules, and power means penetration. Men possess that power; women do not. Men rule Rome and have made it what it is: an empire bent on conquering all the world, penetrating and subduing every other nation and race." "This seems far from the subject of lust." "Not at all. In such a world the natural proclivities of love are bent; pleasure bows to power. Everything is reduced to penetrating or being penetrated. How simple-minded, how much more suitable to the mechanics of your water mill than the complexities of the human spirit, but there you have it. Penetrate or be penetrated: women have no option in this matter and are thus permanently reduced to an inferior status. On the other hand, any man who submits to being penetrated by another man relinquishes his power and is thought to be no better than a woman, or at least so goes the consensus, though we all know that behind closed doors men tend to do whatever they wish, compelled more by pleasure than prestige. SAYLOR, Catilina’s riddle, 1993 p. 292-293).164 Dessa forma, Saylor coloca em perspectiva a condenação das fontes sobre essas práticas e tenta vê-las pelo lado de quem as teria praticado. Mais uma vez, o autor faz um uso profícuo das fontes antigas, porém sem tratá-las como mera descrição da realidade do passado. O autor quer deixar claro, que apesar dos romanos terem uma noção de sexualidade diferente daquela do presente, isso não quer dizer que “tudo fosse permitido”. Dessa forma, também acaba enfatizando as diferenças entre o que é entendido no presente por

164 Ambos sabemos como encaram os Romanos a sexualidade: o poder é tudo, é mais importante do que o prazer. Na verdade, o prazer como um fim em si mesmo é uma coisa estranha a um bom romano [...] O poder é dominante e o poder significa penetração. Os homens possuem esse poder; as mulheres não. Os homens dominam Roma e fizeram dela aquilo que é: um império interessado em conquistar o mundo inteiro, em penetrar e em dominar todas as nações e todas as raças. Isso parece-me estar muito longe do tema da luxúria. De modo nenhum. Num mundo assim, as tendências naturais do amor são desviadas; o prazer verga-se ao poder. Tudo se reduz a penetrar ou a ser penetrado. Que atitude tão simplista, tão mais adequada aos mecanismos do teu moinho de água do que às complexidades do espírito humano, mas é assim. Penetrar ou ser penetrado; as mulheres não têm alternativas nesta questão e por isso são permanentemente reduzidas a um estatuto inferior. Por seu lado, qualquer homem que se submeta a ser penetrado por outro homem renuncia ao seu poder e é considerado igual a uma mulher, pelo menos é isso que declara o consenso, embora todos saibamos que por trás das portas fechadas os homens têm tendência para fazer o que lhes apetece, mais compelidos pelo desejo do que pelo prestígio. (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 497-499).

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homossexualidade e as práticas da antiguidade romana. Apesar de Saylor salientar a importância das relações de poder nas relações entre homens, ele está menos interessado em destacar essas relações, preferindo tratar de homens livres, ainda que de status diferentes. Isso ocorre mesmo quando introduz na história a relação entre um cidadão romano e um escravo, como no caso citado acima de Marco Múmio e Apolônio. A narrativa não se preocupa em discutir as problemáticas que uma relação, baseada nessas diferenças de poder, teriam sobre seus participantes. Outro personagem fundamental para entender a construção das relações homoeróticas na obra de Saylor é Júlio César. A partir do caso emblemático da suposta relação entre César e o rei da Bitínia, Nicomedes, o autor explorará mais uma vez as complexidades que envolvem essas relações. Saylor faz uma escolha curiosa ao narrar os eventos do general romano em Alexandria, após a derrota de Pompeu em Farsália. Na narrativa do autor, a história entre César e Cleópatra tem uma reviravolta165. O famoso romance entre os dois é complicado pela introdução de um fator: o jovem rei Ptolomeu também está tentando seduzir César para manter-se no trono. É nesse contexto que Gordiano terá uma conversa franca com César, na qual o boato sobre Nicomedes vêm à tona. “They say that Caesar set his sights on a king, when he was young.” The steadiness of my voice was inversely proportionate to the recklessness of my words. Everyone knew the rumors about Caesar and King Nicomedes of Bithynia. His political enemies had used the tale to ridicule him—but most of those men were dead now. Caesar’s soldiers cracked jokes about it—but I was not one of Caesar’s comrades in arms. Still, it was Caesar himself who had opened this avenue of conversation. His response was surprisingly candid. Perhaps, like me, Caesar had reached that point in life when one’s own past begins to seem like ancient history—more quaint than quarrel provoking. “Ah, Nico! When I put on my shoes, I think of my father; when I take them off, I think of Nico. I was nineteen, serving on the staff of the praetor Minucius Thermus in the Aegean. Thermus required the help of King Nicomedes’s fleet; an emissary was needed to go to the king’s court in Bithynia. Thermus chose me. ‘I think the two of you may hit it off,’ he told me, with a glint in his eye. The old goat was right. Nico and I hit it off so well that I tarried in Bithynia even after Thermus sent a messenger to retrieve me. What a remarkable man Nico was! Born to power, sure of himself, with a voracious appetite for life; a ruler not unlike the one that Ptolemy may yet become. What a lot he had to teach an eager, ambitious young Roman who was no longer a boy but not quite a man. When I think of how naive I was, how wide-eyed and innocent!” “It’s

165 É uma forma de apresentar um novo olhar a um dos episódios mais clássicos e recontados da história romana: o de César e sua relação com Cleópatra, algo que Saylor confirma nas notas do autor do livro. “You saw that display by the queen tonight! She and her brother both seem to have the same idea: seduce the man to make an ally of the general.” (HARRIS, Judgement of Caesar, p. 150).

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impossible to think of you as naive, Consul.” “Is it? Alas! The youth whom Nico instructed in the ways of the world has long since vanished—but the man remembers those golden days as clearly as if they just happened. I shut my eyes, and I’m in Bithynia again, without a scar on my flesh and with all my life ahead of me. (SAYLOR, The Judgment of Caesar, 2004, p. 200).166 A relação entre César e Ptolomeu será apresentada a partir do ideal grego da pederastia. O autor, por meio de Gordiano, faz o paralelo, agora inverso, da relação César/Nicomedes. Por muito tempo, a visão de um amor grego idealizado serviu como forma de justificar a tolerância moderna dessas relações, em contraste com a censura dos romanos. Por muito tempo, Grécia e Roma antigas foram agrupadas na recepção, com pouca ou nenhuma distinção entre elas, o que ajuda a explicar o porquê da recepção das relações homoeróticas em Roma serem negligenciadas por muito tempo. (INGLEHEART, 2015, p 23). Ao mesmo tempo, Saylor mostra como a sociedade romana reprova essas relações, ao narrar o episódio do triunfo de César, em que seus soldados cantam versos zombando do general, como era costume nesses desfiles: As the mood grew even more relaxed, the chants grew more ribald, including one about Caesar's youthful dalliance with King Nicomedes of Bithynia: All the Gauls did Caesar conquer, But Nicomedes conquered him. In Gaul did Caesar find his glory, In Caesar, Nico found a queen! The crowd laughed even harder. Caesar's face turned as red as if he had stained it with cinnabar, like the triumphant generals of old. He stepped onto the broken chariot, faced the soldiers, and raised his hands, still clutching the laurel bough and scepter. The men stopped chanting, though they

166 – Dizem que César assestou sua pontaria em um rei, quando era jovem. A firmeza de minha voz era inversamente proporcional à imprudência de minhas palavras. Todo mundo sabia dos rumores sobre César e o rei Nicomedes, da Bitínia. Seus inimigos políticos tinham usado a história para ridicularizá-lo – mas a maioria deles já morrera. Os soldados de César faziam piadas sobre ela – mas eu não era um dos companheiros de armas de César. Ainda assim, o próprio César abrira aquele caminho para a conversa. A resposta dele foi supreendentemente sincera. Talvez, como eu, César tivesse chegado a um ponto da vida em que o passado fica parecendo história antiga – mais curioso do que provocador de discussões. – Ah, Nico! Quando calço os sapatos, penso em meu pai; quando os tiro, penso em Nico. Eu tinha 19 anos, servindo na equipe do pretor Minúcio Termo, no Egeu. Termo requisitou a ajuda da frota do rei Nicomedes; precisavam de um emissário para ir à Corte do rei da Bitínia. Termo me escolheu. “Acho que vocês dois vão se dar muito bem”, disse ele, com um brilho no olhar. O velhote estava certo. Nico e eu nos demos tão bem, que eu permaneci na Bitínia mesmo depois de Termo mandar um mensageiro me buscar. Que homem notável era Nico! Nascido para exercer o poder, confiante em si mesmo, com um voraz apetite pela vida; um governante não diferente do que aquele que Ptolomeu ainda pode se tornar. Quanta coisa ele tinha para ensinar a um ansioso e ambicioso jovem romano que já não era mais um menino, embora também não fosse de todo homem feito. Quando penso no quanto eu era ingênuo, em como tudo me deixava perplexo, e como era inocente! – É impossível pensar em você como sendo ingênuo, cônsul. – É mesmo? Infelizmente, o jovem a quem Nico ensinou as coisas do mundo desapareceu há muito tempo...mas o homem se lembra daquela fase de ouro com uma nitidez tal, que parece que foi ontem. Eu fecho os olhos e estou outra vez na Bitínia, sem uma cicatriz na pele e com a vida inteira pela frente. (SAYLOR, O Julgamento de César, 2007, p. 271-272).

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continued to chuckle and grin while Caesar addressed them. "Soldiers of Rome, I must protest! These songs are amusing, to be sure, and your bravery has earned you the right to indulge in a bit of levity on this day, even at Caesar's expense. But these verses about the king of Bithynia are unfair and unsubstantiated—" "But not untrue!" shouted someone from the ranks farther back, to a burst of laughter. "And untrue!" insisted Caesar. "Most assuredly, untrue. On my honor as a Roman—" "Swear by Numa's balls!" shouted someone. "No, swear by Nicomedes' staff!" shouted someone else. The laughter was deafening. Caesar's face turned even redder. Did he realize how absurd he looked at that moment, a fifty-two- year-old man resplendent in his laurel crown and toga, perched on a broken chariot, attempting in vain to convince his soldiers that he had not been another man's catamite some thirty years ago? The soldiers did not believe him [...]. (SAYLOR, The Triumph of Caesar, 2009).167 César ainda era zombado, mais de trinta anos depois, por causa disso e como isso causava uma certa vergonha, ele nega em público qualquer caso. Saylor, escolhe recontar o episódio a partir de Dio Cassio168, apesar de aparecer também em Suetônio. Somente no relato do primeiro, César tenta se justificar e demonstra ficar abalado pelo canto dos legionários. O autor mostra, que apesar dos boatos e da crença das pessoas de que o caso com Nicomedes foi real, isso não impediu César de alcançar os mais altos postos da república ou a lealdade de seus soldados. Assim, Saylor apresenta a questão do homoerotismo de uma forma complexa na sua relação entre norma, prática e recepção. Apesar de desenvolver o tema a partir de conceitos que estão alinhados com as pesquisas acadêmicas mais recentes sobre a sexualidade romana, é interessante ver que Saylor também introduz e usa algumas fontes antigas, de modo a perceber uma identidade homossexual que está mais próxima do presente que do passado romano: No livro “The

167 O estado de espírito dos soldados foi ficando mais descontraído e os cantos mais obscenos, inclusive um sobre o caso entre César e o rei Nicomedes da Bitínia durante sua juventude: César conquistou a Gália, mas Nicomedes o conquistou. Na Gália César encontrou sua glória e em César, Nicomedes encontrou sua rainha. A multidão riu ainda mais forte. O rosto de César ficou vermelho como se tivesse passado nele zinabre, assim como faziam os antigos generais que triunfavam. Ele subiu na biga quebrada, voltou-se para os soldados e ergueu as mãos que ainda seguravam o galho de louro e o cetro. Os homens pararam de cantar apesar de continuarem a gargalhar e sorrir ironicamente enquanto ele se dirigia a eles. “Soldados de Roma, devo protestar! É claro que esses cantos podem ser divertidos e a bravura de vocês dá o direito de que tenham uma leviandade no dia de hoje mesmo às custas de César. Mas esses versos sobre o rei da Bitínia são injustos e sem substância – “mas não falsos!”, gritou alguém lá do fundo das fileiras provocando uma explosão risos. “E falsos”, insistiu César. “Seguramente falsos. Pela minha honra como romano eu...”. “Jure pelas bolas de Numa!”, gritou alguém. “Não, jure pelo cetro de Nicomedes!”, disse um outro. As risadas eram ensurdecedoras. O rosto de César ficou ainda mais vermelho. Será que ele percebia o quão absurdo era aquele momento? Um homem de cinquenta e dois anos resplandecente em sua coroa de louros e toga, em cima de uma biga quebrada, tentando em vão convencer seus soldados que não havia sido o catamita de outro homem há mais de trinta anos atrás? Os soldados não acreditaram nele [...]. (SAYLOR, O Triunfo de César, 2009). 168 Cassio Dio, História Romana, 43 20.4

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Venus Throw” (O lance de Vênus), Gordiano explica um ataque feito a Pompeu, em que ele é acusado de “coçar a cabeça com um dedo só”: This last was a reference to a not-so-secret sign practiced by the initiated when seeking intimate companionship with their own sex; on certain days at the baths half the clientele seemed to be wandering about scratching their heads with one finger. Such riddles were typical invective of the sort that might have been directed at any politician or general. (SAYLOR, The Venus Throw, 1995, p. 52).169 Assim, como em Robert Harris, Saylor menciona o ato de coçar a cabeça com um dedo só e o associa com o fato de um homem querer se relacionar com outro, sem fazer distinção sobre as práticas associadas ao ato. Essa relação não ocorre nas fontes latinas, que sempre associam o gesto à efeminação e a passividade no ato sexual, independente do gênero. A identificação feita por Saylor, do gesto com um tipo de sinal secreto praticado por iniciados, (o autor não explica no que essas pessoas seriam iniciadas) e sua associação com as termas, reafirma a relação com uma cultura gay contemporânea, especialmente das saunas e da necessidade de códigos secretos. Além disso, é interessante analisar como Saylor descreve e constrói a personagem de Gordiano, seu protagonista. Apesar de Gordiano viver em um mundo em que a relação entre homens e rapazes é considerada normal, ele é um ponto fora da curva. Ele é sempre um observador externo dessas paixões e nunca participa delas. Ao longo dos doze volumes da série, em que as relações homoeróticas têm um espaço proeminente, apenas em um único momento Gordiano vai expressar algo que poderia ser entendido como um desejo por um rapaz e ainda assim é feito de forma ambígua: What would happen if I allowed Catilina himself to visit the farm, as Caelius desired? What sort of effect would that have on Bethesda? Catilina was well into his forties, barely younger than I, but he was famous for having the energy of a man half his age. And for all the insults that had been hurled at him, no one had ever called him ugly. In his own way he was as good-looking as Marcus Caelius, or had been once, for I had not seen him close at hand in many years. Beauty is beauty no matter what the gender. Beauty brings universal pleasure to the eye. . . .These thoughts unfurled and my imagination drifted into a world of pure flesh, as I find

169 Esta última pergunta era uma referência a um sinal usado pelos iniciados quando procuravam a companhia íntima de membros do seu próprio sexo, mas que deixara há muito de ser secreto; havia certos dias em que metade da clientela das termas parecia andar de um lado para o outro a coçar a cabeça só com um dedo. Estas adivinhas eram invectivas típicas do género das que eram dirigidas a qualquer político ou general. (SAYLOR, O Lance de Venus, 2002, p. 99).

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often happens just before sleep. All the words poured from my head like water through open fingers. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 54).170 Outro ponto que Saylor ignora é o da relação entre mulheres e como a sociedade romana vê essas relações de maneira bem diferente daquela entre homens. Esse tópico não é abordado nem mesmo como forma de mostrar que eram malvistas pelas fontes antigas e fazer uma comparação. A exclusão das relações homoeróticas e seu apagamento, seja no âmbito acadêmico, seja na ficção, é ainda maior do que no caso masculino. Tanto que obras como a de Saylor, muito interessadas em explorar o homoerotismo em Roma, não tem nenhum espaço para elas. Por fim, semelhante ao que ocorre no caso da representação feminina, quando foge de um discurso tradicional sobre o passado, a reação do público é semelhante ao se deparar com uma romana antiga em que as normas sexuais são diferentes das praticadas no presente. Highly entertaining, strong literary visualization and strong character development for this genre. The statistically improbable thus quite tedious incidence of gayness that characterized Saylor's earlier novels is absent. For most readers it is both tedious and distracting to feel the author wants us to believe nearly everyone was gay in the ancient world. That distraction was missing from this novel so I am hopeful it will remain absent for future novels. We buy these for a good yarn. It doesn't help the "suspension of disbelief" required to lose yourself in a good novel to wonder why the author wants to write about gay folks all the time in stories that have nothing in particular to do with sexuality. (AMAZON.COM, customer review: The Seven Wonders, 11/12/2018). Cabe pontuar aqui o vocabulário usado pelo comentarista para descrever a obra de Saylor. Primeiro, parte-se do pressuposto de que a pessoa que escreveu o comentário é um extenso leitor da obra, pois cita a série como um todo. Ele alude à “suspensão da descrença”, referindo-se à vontade de um leitor em aceitar como verdadeira as premissas de um trabalho de ficção e chama de “enrolação” a presença de “pessoas gays nos livros”. O comentarista elogia o fato de, nesse volume em particular, o autor ter deixado de lado a “tediosa e estatisticamente improvável incidência de comportamentos gays no mundo

170 O que aconteceria se eu permitisse ao próprio Catilina visitar a quinta, como Célio pretendia? Que género de efeito teria isso sobre Betesda? Catilina já ia bem nos quarenta, era pouco mais novo do que eu, mas tinha fama de ter a energia de um homem com metade da sua idade. E, apesar de todos os insultos de que fora objecto, nunca ninguém lhe chamara feio. À sua maneira, era tão bem parecido como Marco Célio, ou fora, pois há muitos anos que eu não o via de perto. A beleza é sempre bela, seja qual for o género. A beleza traz prazer universal aos olhos... Estes pensamentos foram-se desenvolvendo e a minha imaginação vogou para um mundo de pura carne, como por vezes me acontece antes de adormecer. Todas as palavras fluíam da minha cabeça como água por entre mãos abertas. (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 99).

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antigo”. O comentário é representativo de diversos outros como os vistos nas resenhas sobre o livro “Julgamento de César”, em que mais de uma vez é citado que o autor “insiste demais na prática da pederastia e na possibilidade de César tê-la praticado”. E que, além disso, “degrada o livro e deveria ter sido omitido”, mesmo porque é “historicamente inegável que César sempre negou esses boatos”171. Um outro comentário segue pelo mesmo caminho e sugere que a única razão para o autor incluir “sugestões” de que César era homossexual”17293, o que ele chama de irritante, é o fato de o autor também sê-lo. Claro que nem todos os comentários fazem referência ou questionam a presença de relações homoeróticas no texto e é curioso que a maioria dos que o fazem ainda assim dão uma nota alta para o livro173.

Kate Quinn

No primeiro livro da série “The Empress of Rome” (Imperatriz de Roma), o tema é discutido ainda que não longamente, porém no segundo livro há apenas uma referência, aquela sobre o imperador Galba “gostar de homens belos” (QUINN, Daughters of Rome, 2011, p. 44). Mesmo assim, na Roma criada por Quinn o desejo sexual entre homens também faz parte da narrativa.

171 Review: “One opinion of mine concerning this novel is that it dwells excessively on pederasty and the possibility of Caesar's practice thereof. This is a significant component of this story, and some readers, myself included, could have done without it. There is some language in the novel that seems to indicate Caesar's justification of this practice. This should have been left out in my opinion and degrades an otherwise fine novel. As the author points out, Caesar was dogged by rumors that he sometimes preferred men as partners (this practice was not well-accepted in the Roman Army) due to an incident early in his career. Nonetheless, all indications are that Caesar fought off these rumors, true or not, by his flagrant womanizing throughout the rest of his career. It is historically irrefutable that Caesar never tried to justify the earlier rumors. He denied them. (To this day no one knows if they had any basis in fact and we never will”. (AMAZON.COM. Customer Review: The Judgment of Caesar, 2010). 172 Review: “The other thing I found annoying are the endless suggestions that Ceasar was a homosexual-- rumors of any homosexual activity on Ceasar's part were only spread by his enemies, and those were only from one short time period when he was young. They were never proven and no one knows for sure if it even happened or it was just slander. The author here suggests Ceasar is having relations with King Ptolemy, with his scribe--he even has Ceasar discussing it openly which is complete nonsense. In fact this author seems to feel that most men have homosexual tendencies. Indeed the author seems to feel most men have gay proclivities, [...] Really? I know nothing about this author but will say I have only ever heard such sentiments from gay men--and contrary to what this author may think, most men are not gay (the latest US Census says 1-2% of the US population is homosexual”. (AMAZON.COM. Customer Review: “The Judgment of Caesar”, 2010). 173Algo semelhante ao que aconteceu com o seriado Spartacus (STARZ, 2010-2013), que possui conteúdo homoerótico. Steven DeKnight, produtor e roteirista da série falou em entrevista que diversos fãs vinham até ele dizer que “a série era maravilhosa e que se tirasse a parte gay seria perfeita”. (NEDEDOG, 2012).

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Ela concentra as discussões sobre o homoerotismo em torno da personagem de Paulino, jovem oficial, filho do senador Marco Norbano, que depois será braço direito do imperador Domiciano. Para além disso, faz algumas outras menções que envolvem o gladiador Ário, mas que servem apenas como descrição, ao mesmo tempo em que reafirmam uma masculinidade contemporânea da personagem. Por exemplo, a personagem Lépida, ao se interessar pelo gladiador e ser rejeitada, imagina que o motivo se deva a Ário estar com outra pessoa: Her eyes shot back to me. “He has someone, doesn’t he? Who is she? Some patrician whore? Some boy tribune?” (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 59)174. No mundo em que a romana habita, é possível que o gladiador tenha como amante tanto uma mulher quanto um homem. No entanto, quando algo semelhante acontece do ponto de vista do próprio Ário, o relato é um pouco diferente: After his bouts Gallus rented his presence out at dinner parties where he met governors and legates, charioteers and senators, painted patrician women who took him eagerly to bed and soft-eyed boy tribunes who tried to do the same. (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 161).175 A autora reforça que apesar dos tribunos desejarem ter acesso a Ário, ele não permite que isso aconteça, mesmo que em outros momentos, como discutido no item sobre a escravidão, a autora enfatize a falta de escolha do gladiador. Porém, parece não valer para esse caso em questão. Algo semelhante acontece quando Paulino, destacado em uma legião na Germânia, tem uma conversa com Trajano, futuro imperador, mas que neste momento era apenas um oficial romano. Após uma grande vitória militar, os amigos vão comemorar: “Me, a paper-pusher?” Trajan hooted. “I’m an army man, pure and simple. Let’s get drunk and look for whores. Boys or girls for you?” “Girls,” Paulinus said hastily. “Take my advice.” Trajan grinned again. “Girls may be prettier, but boys are less trouble. Don’t suppose you’d care to—” “No, not my style.” Paulinus was still young and smooth-cheeked enough to get the offer occasionally. Half his friends and most of his superior officers preferred boys to their wives. “Pity. Still want to get drunk?” “Gods, yes.” (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 172).176

174 — De repente, ela cravou os olhos em mim. — Há alguém mais, Certo? Quem é? Alguma raposa patrícia? Um jovem tribuno? (QUINN, A Concubina de Roma, p. 147). 175 Depois dos combates, Galo o alugava para festas e jantares nos quais conheceu governadores, cocheiros e senadores, mulheres patrícias bem adornadas que o levavam para a cama e tribunos de olhos efeminados que desejavam fazer o mesmo. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 75-76). 176 — Eu, um burocrata? — Trajano zombou. — Sou um soldado. Nem mais nem menos. Vamos nos embebedar sair atrás de rameiras. O que prefere, jovens ou garotas? — Garotas. —Paulino respondeu de má vontade. — Ouça isso, — disse Trajano, com um sorriso, — as garotas podem ser mais bonitas, mas os jovens dão menos problemas. Não tem que. — Não. Comigo não. Paulino já estava acostumado a essas propostas. A metade de seus amigos e quase todos seus superiores preferiam a jovens mancebos, à suas esposas. — Uma lástima. Quer se embebedar? — Sim, pelos deuses. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 81).

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Quinn parece querer reafirmar a “heterossexualidade” de seus protagonistas, todas as vezes em que menciona a existência de uma cultura que admitia esse desejo sexual entre homens. Tanto que, à pergunta de Trajano sobre preferir “rapazes ou as garotas”, a autora enfatiza que Paulino responde “rapidamente” que prefere as mulheres. Paulino parece ter medo que o amigo – ou seria o leitor? –, pense que ele pode ter um interesse que não seja estritamente no sexo feminino. A isso, Quinn adiciona uma outra observação, sobre o comandante da Germânia Superior, Lucio Antonio Saturnino, o qual foi responsável por uma revolta que tentou derrubar o imperador Domiciano do poder. Há pouca informação sobre a rebelião ou o que teria levado a ela. (JONES, 2002, p. 144-156). O interessante é perceber de que forma a autora vai enquadrar esse evento histórico na narrativa. “Poor Paulinus,” said the governor, amused. “I’d best send him to bed before Saturninus pounces on him. That’s Saturninus there”— importantly—“governor of Upper Germania, you know. He fancies boys, especially drunken pretty ones like Paulinus. He’ll be gone in another year anyway. Saturninus, that is.” Lappius adjusted his wig, chest swelling as his noble guests watched him chatting so cozily with Rome’s greatest gladiator. “Here’s a tidbit you won’t hear back in Rome, Barbarian. Saturninus will be dunned out of the governorship by year’s end! Domitian doesn’t like boy-fanciers, you see. Imagine that! A pretty youth’s better for buggering than any girl, and you’ll not find more than a handful of men in Rome who don’t agree with me, but for once our Emperor’s one of them. […] Well, it’s a new era, and men like Saturninus are certainly out in the cold.” (QUINN, Mistress of Rome, 2010, p. 162-163).177 A autora Kate Quinn introduz a personagem de Saturnino, inclusive usando de lugares-comuns antigos, como o do “predador gay”178 e apresenta a visão, supostamente compartilhada por Domiciano, de que seria “contra aqueles que amam os rapazes”. A autora vai ainda além, pois, segundo a narrativa, é justamente pelo fato do imperador não gostar “dos amantes de rapazes”, e Saturnino ser identificado como um deles, que seu tempo na Germânia e em Roma, estaria chegando ao fim. Qual seria a “nova era”, aludida por Quinn,

177 — Pobre Paulino. — Comentou o governador, entretido. — Melhor que o envie para a cama antes que Saturnino caia em cima dele. Ali está, Saturnino. É o governador da Alta Germânia Superior, sabe disso. Ele gosta de homens, sobretudo os jovens bonitos e bêbados como Paulino. Enfim, dentro de um ano Saturnino já não estará mais aqui. Lappio ajustou a peruca estufando o peito enquanto seus nobres convidados o observavam conversar tão amigavelmente com o gladiador mais famoso de Roma. — É uma intriga que não ouvirá em Roma, Bárbaro. Saturnino deixará de ser governador no fim do ano. Domiciano não gosta de políticos que tem fraqueza por jovens. Sabe disso. O que lhe parece? Todo mundo sabe que um jovem formoso é bem melhor para foder, que qualquer mulher. Custará encontrar gente em Roma que não concorde comigo, mas implica que nosso imperador é um deles. [...] Bem, são outros tempos, e homens como Saturnino vão se dar mal. (QUINN, A Concubina de Roma, p. 76). 178 Para uma análise de como se dá construção do estereótipo do “predador gay” ver (SIMON, 1998). Sobre essas representações no cinema e na televisão, em especial Hollywood ver o documentário “The Celluloid Closet” (1995).

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sob a qual “homens como Saturnino” não teriam vez? Primeiramente, a autora não menciona como as relações de poder e status influenciavam na percepção das relações homoeróticas em Roma. Depois, a personagem de Paulino faz menção da sua idade e aparência jovial, que justificaria as propostas feitas por colegas, mas a autora não elabora a questão a ponto de diferenciar o comportamento romano do que é exercido no presente. Não há nenhuma fonte que sugira que Domiciano tivesse algo contra quem demonstrasse interesse por outros homens e nem que ele não fosse um deles179. Apesar de mostrar que relações entre homens eram comuns na antiguidade romana, a autora escolhe enfatizar uma perseguição contra essas pessoas, somente pelo fato de apresentarem esse comportamento, ou seja, mais uma vez fazendo um paralelo com o presente. Talvez o mais importante seja o fato de Quinn não mencionar, em nenhum momento, de que forma o desejo entre mulheres poderia se dar naquela sociedade. Mesmo tendo uma narrativa que foca na vida e nas dificuldades das mulheres, a questão do homoerotismo não tem espaço. Em geral, os estudos mais recentes sobre a sexualidade romana, em especial sobre as relações homoeróticas, parecem ter rompido a barreira da academia e entrado no discurso mainstream180. Dessa forma, muitos autores sentem a necessidade de incluir o tema nas suas narrativas. Porém, ao mesmo tempo não querem que isso influencie a história de nenhuma forma significativa. Acaba se tornando um “checkpoint”, uma curiosidade, mas que não muda em nada visões pré-estabelecidas do passado romano e da masculinidade.

Max Mallmann

O autor Max Mallmann não dá muitas explicações em relação à moral sexual romana na série “Desiderius Dolens”, ao contrário do que Steven Saylor faz, como notado acima. As questões das relações homoeróticas aparecem na série de Mallmann durante os diálogos das personagens e dentro da narrativa, normalizada dentro do contexto da época. Dessa forma, pode ser que o leitor se surpreenda ou se questione em relação aos

179 Talvez a autora esteja aludindo ao fato de Domiciano ter proibido a castração de jovens durante seu governo. No entanto, a passagem, narrada por Cassio Dio dá conta de que o próprio Domiciano tinha um eunuco favorito e promulgou a lei apenas para insultar a memória do irmão, Tito, que também teria tido grande apreciação por eunucos. (JONES, 2002, p. 65). Assim, “accordingly, although he himself entertained a passion for a eunuch named Earinus, nevertheless, since Titus had also shown a great fondness for eunuchs, in order to insult his memory, he ordered that no person in the Roman empire should thereafter be castrated”. (67.2.1–3). 180 Aliás, isso também explica a pouca ou nenhuma menção da relação entre mulheres na Roma antiga, pois os estudos clássicos ainda possuem poucos estudos voltados ao assunto.

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comportamentos retratados, enquanto para as personagens da narrativa não há estranhamento. Quando Dolens vai até a casa de seu subordinado Nepos, encontra lá um escravo bretão, chamado Tristanus. O centurião suspeita, erroneamente, que o escravo seja um dos responsáveis pela morte do senador, pai do legionário. Ao defender Tristanus, Nepos vai dizer: — Tristanus e eu somos amantes — Nepos diz. — Eu não perguntei e você não precisava ter contado — Dolens larga uma das cáligas sobre a mesinha dobrável e começa a lustrar a outra. — Mas devo admitir que você tem bom gosto. A carne estrangeira também me apetece. — Não vim para falar disso. — Todos os pelos dele são vermelhos? (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 101). A conversa mantida entre os dois é reveladora de como Mallmann tratará as relações entre homens ao longo da série. Essa questão não fica expositiva como acontece na série Roma Sub Rosa (SAYLOR). Também não dialoga diretamente, dentro da narrativa em si, com as questões historiográficas ligadas ao tema, que é como Saylor trata do assunto em sua série, ainda que, pelo desenrolar da história, fique claro que Mallmann está a par dos debates acadêmicos a respeito das relações homoeróticas. Graças a isso, a relação entre homens não surge como algo especial, como nas outras séries, pois a maior parte das personagens demonstrará em algum momento esse interesse ou tipo de relação. Tanto aqueles vistos como aceitáveis pela norma romana, como entre Nepos e Tristanus, quanto aqueles vistos com censura, como entre Nero e Sporus, eunuco com o qual se casou. De qualquer forma, tudo é apresentado de forma fluida e sem cair na ideia comum de decadência. Por tratar de personagens e períodos que se consagraram como degenerados, pervertidos e decadentes, tanto na documentação antiga como na sua representação moderna ficcionalizada, –é interessante como o autor consegue apresentá-los sem apelar para esses lugares-comuns, ao mesmo tempo em que não recusa ou omite os episódios considerados desabonadores. A naturalização desses comportamentos é fundamental para que isso seja possível. O único refúgio que sobrou a Nero foi a casa de campo do liberto Phaon, perdida nos arrabaldes entre a Via Salária e a Via Nomentana. Para lá ele seguiu a cavalo, com o capuz de um manto grosseiro a esconder-lhe o rosto. Acompanhavam-no Phaon, Epafródito e o eunuco Sporus. Há quem diga que Sporus foi o maior e mais constante amor de Nero. Outros, menos líricos ou talvez mais realistas, afirmam que o jovem eunuco era apenas o brinquedo sexual preferido do imperador. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p.121-122). Nymphidius Sabinus, autoproclamado filho de Calígula, esforçava-se para provar ao Senado e ao povo que era o legítimo herdeiro do Império. Chegou ao ponto de tomar como “esposa” o eunuco Sporus, outrora amante

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de Nero, e com ele se apresentar em locais públicos. Dizem que Sporus desprezava Nymphidius, mas se submetia a ele por medo. O Senado romano, castrado em seus poderes, agia da mesma forma. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 164). Mallmann alude a essas referências de decadência quando Dolens fala que parte do pressuposto que todo aristocrata é um depravado e que ele e os vícios dele só são os compatíveis com seu salário181. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 241). Mas isso o autor diz de forma irônica, pois Dolens almeja alcançar a vida aristocrática, o que coloca em xeque essas afirmações que se tornam mais uma questão de oportunidade do que de moral. Ao mesmo tempo, a forma como representa figuras históricas como Sporus, o cônjuge de Nero, fugindo dos clichês, é muito interessante e humaniza essas figuras que mesmo nas fontes antigas são vilificadas. Para além disso, a questão da sexualidade será permeada por outras esferas, tão ou mais importantes que ela. Dessa forma, o autor mantém fora das atenções a questão do homoerotismo e da sexualidade como algo central ou definidor do caráter dessas figuras históricas, reais ou imaginadas. As relações de poder entre escravo e senhor, entre plebeu e aristocrata são sempre enfatizadas, especialmente nas relações interpessoais. Assim, Otho cumprimenta Dolens com um beijo: — Querido centurião! Finalmente o encontrei — Otho abraça Dolens e tasca-lhe um beijinho nos lábios. Um plebeu, caso se atrevesse a tanto, ganharia, no mínimo, dois ou três sopapos. Mas que fazer com um aristocrata? A Dolens nada ocorre, além de perguntar: — Posso ajudá-lo em alguma coisa? (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 290). Mallmann é o único, dentre os autores tratados na tese, que deixa explicitamente claro que seu protagonista também se relaciona com homens, como também os outros romanos da série. No geral, mesmo em narrativas que exploram e dão ênfase às relações homoeróticas, como visto em Saylor, o protagonista é território proibido. Dessa forma, essas relações são caracterizadas sempre como algo externo, como “o outro”. Isto é, não são vistas como intrínseco à construção da identidade no passado romano. Publius Desiderius Dolens não era belo, embora não fosse desprovido de atrativos. Mesmo assim, o mais comum era que as mulheres, ou sentissem medo de seu olhar insistente, ou se entediassem com seu temperamento melancólico. Posso garantir, com alguma segurança, que a todas que não tiveram medo nem tédio ele possuiu. Foram muitas, quase todas plebeias,

181 Tendo nascido em família plebeia, para Dolens qualquer aristocrata era, necessariamente, um maníaco pervertido e megalômano. Eis, a razão pela qual, ele nunca se abalou com a impudicícia de Nero ou as torpezas de Tigellinus. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 23). Desiderius Dolens estava longe de ser um homem casto, mas experimentara somente a luxúria compatível com seu salário de centurião. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 241).

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bárbaras, escravas ou prostitutas. Suponho que ele também tenha se deitado com alguns homens, mas não era especialmente inclinado a isso. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 83). Nesse próximo trecho é o próprio Dolens quem afirma: O cheiro do suor, o bafo da última taça de vinho, um corpo inerte caído aos meus pés. E o vazio. A sensação insuportável de gratuidade e falta de sentido. É igualzinho a uma foda. A única diferença é que as mulheres e os rapazinhos que eu fodo não morrem. Há até quem se apaixone por mim, embora eu não consiga imaginar por quê. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 289). O autor Max Mallmann, ao colocar seu protagonista como partícipe dessa cultura, retira o homoerotismo da categoria de “Outro” e o coloca como algo indissociável da identidade romana na época. Isso muda a forma como os leitores e o público vão se identificar e se relacionar com as personagens e por consequência com o passado sobre o qual narra182. É também Mallmann, o único autor que explora a relação entre mulheres na sua obra. A princípio, o leitor é apresentado a Eutrópia, uma curandeira de origem dúbia, grega ou parta. A personagem afirma que foi discípula de Locusta, célebre envenenadora e que também foram amantes até uma briga torná-las inimigas. Nepos diz que havia mesmo percebido que Eutrópia era imune aos charmes masculinos e prisioneira dos femininos. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 59). Ao se desenrolar a narrativa, o leitor descobre que a irmã de Dolens, Desidéria, uma romana sem filhos e que ficou viúva precocemente, acaba se encontrando com Eutrópia e assim começa o caso entre as duas: O dia começava quando ela saiu; a noite era alta quando voltou. Terá uma poção, talvez, subvertido suas vontades? Ou quem sabe a aprisionou um encantamento proferido em língua bárbara? O mais provável é que ela tenha simplesmente encontrado quem lhe desse ouvidos. Desidéria, eis o fato, se tornou amante da curandeira Eutrópia. É justo mencionar que as duas, em nome do bom-senso e dos bons costumes, tentaram manter em segredo a paixão profana. Mas os encontros diários sob pretextos cada vez mais tolos, os olhares acesos, as carícias camufladas em público e a troca de bilhetes com epigramas de Safo pouco lugar deixavam para dúvidas. A escrava Olímpia, que nunca vira Desidéria tão feliz, apoiava o inusitado relacionamento e servia de mensageira. Moderata, por sua vez, dizia repetidas vezes que achava bom Desidéria cultivar novas amizades. Era impossível saber se Moderata realmente acreditava que a amizade era casta

182 Outro caso semelhante é o que ocorreu no seriado Spartacus (STARZ, 2010-2013). Na segunda temporada um dos gladiadores, Agron acabou fazendo par romântico com o escravo Nasir. O romance entre os dois causou furor, mesmo que antes outras relações deste tipo tivessem sido mostradas. A diferença é que a personagem em questão, ao longo de toda a primeira temporada, não havia demonstrado nenhuma preferência sexual. Portanto, foi lido como “heterossexual” pelo público. Por ser um personagem popular muitos fãs se identificaram com ele, o que causou consternação entre os mesmos quando passou a se relacionar com outro homem.

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ou se, como boa mãe, apenas fingia ignorar o óbvio. Dolens, menos talentoso nas artes da dissimulação, manifestava sua inconformidade por olhares oblíquos e frases de viés. Ele se recusava a abordar o assunto diretamente, mesmo nas ocasiões em que Desidéria ou Eutrópia o confrontavam. Desnecessário dizer que, se algum homem tivesse o atrevimento de insinuar que a irmãzinha de Dolens dormia com outra mulher, seria morto de modo selvagem. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 265). O caso entre Eutrópia e Desidéria causa um tremendo desconforto na família de Dolens. Ao contrário das relações entre homens, mostradas com naturalidade e entendidas assim pelas personagens, a relação entre as duas mulheres não poderia ter reações mais diferentes. O autor emula as fontes antigas ao citar a paixão entre as duas como “profana” e a tentativa das duas em mantê-la secreta em nome do bom senso e dos bons costumes183. O mesmo Dolens, que admite encontros com rapazes e parabeniza seu subordinado pelo escravo que tem como amante, não aceita que insinuem que sua irmã tenha um caso com outra mulher. Ao fazer essa diferenciação, o autor destaca as diferentes visões encontradas no passado sobre relações homoeróticas e como seu entendimento estava permeado por questões que iam além da dicotomia heterossexual/homossexual do presente. Desidéria e Eutrópia agora são um casal e juntas resolvem adotar um bebê. Para isso, pedem a Dolens que dê o seu nome ao menino para que ele fosse cidadão romano. — Eutrópia e eu — diz Desidéria, e estreita a criança ao peito, ao mesmo tempo em que dardeja olhares de confronto em direção ao irmão e à mãe. — Basta de hipocrisia, por favor. Todo mundo sabe que nós duas somos um casal. — Todo mundo nesta casa — Moderata contrapõe, fazendo sinais para que a filha modere o tom de voz. — Os vizinhos não precisam saber. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 319). — Não quero que meu neto seja criado como grego — Moderata se queixa. — Seu neto? — Dolens retruca. — Mãe, você já aceitou esse absurdo? — Foi mais fácil do que aceitar uma nora germana. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 320). A fala de Moderata remete a um paralelo no presente, em que famílias não aceitam que seus filhos se assumam, pois o importante é manter as convenções sociais. Por fim, Dolens aceita, mas ao falar da criança para os outros legionários o eufemismo se

183 Sobre o assunto, Craig Willians afirma: “In this regard, another preliminary point deserves to be made. There is a noticeable disparity between Roman representations of sexual practices between males and those of sexual practices between females. The poetry of Ovid incisively illustrates the point. In his Metamorphoses, a compendium of Greek mythology designed for a Roman audience, Ovid has Iphis, a girl smitten with desire for another girl, expostulate on the bizarre nature of her passion, plaintively considering the animal world: cows do not yearn for cows, she observes, nor mares for mares (Met. 9.726-34). But the same poem offers no such objections to the existence of sexual attraction between males. On the contrary, it represents male homoerotic passion as an unexceptionable feature of human and indeed divine experience”. (WILLIAMS, 1999, p. 08).

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mantém: “É filho da minha irmã! Adotivo. Ele passa alguns dias lá em casa e outros com a... Com uma parente nossa.” (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 327). A passagem acima também se relaciona com a questão de identidade, pois Moderata não quer que o neto seja criado como grego e justifica sua posição. Ela diz que foi mais fácil aceitar a relação da filha com outra mulher que uma nora germana, esposa de Dolens, para a qual ele comprou a cidadania romana. Mais uma vez, o autor coloca em perspectiva a questão da sexualidade como uma dentre outras questões tão ou mais importantes para os romanos da época. Dessa forma, chama atenção para o fato de que é o presente e as questões dele que elencam relações homoeróticas como uma característica definidora acima de qualquer outra. É interessante destacar que o autor mostra que não é por ser uma relação que está fora das normas e ser criticada pelas fontes antigas, que essas relações não existissem ou devam ser omitidas ao se recontar o passado. Nesse mesmo sentido, Scott Bravmann afirma que da mesma forma que as mulheres, lésbicas e homens gays, individualmente e coletivamente, possuem uma relação não só complexa, mas contraditória com o passado. (BRAVMANN, 1997, p. 40). Jerome de Groot observa que os romances históricos foram muitas vezes usados para reintroduzir comunidades ao passado, resgatando-as de posições marginais, nas quais haviam sido conscientemente colocadas. (DE GROOT, 2009, p. 150). Como o romance histórico, a literatura é um meio pelo qual grupos, que estão à margem da sociedade, podem reivindicar para si um passado do qual estão excluídos (seja na ficção, seja na história). Isso porque há muito pouco espaço para essas narrativas nos meios televisivos ou fílmicos, ou seja, é mais fácil publicar um livro do que fazer uma série televisiva ou filme. Isso vale para a literatura talvez até com mais propriedade que no cinema. O fato de na antiguidade haver protocolos sexuais diferentes da norma atual é que faz com que se possa, por meio da antiguidade, recuperar/imaginar outras possibilidades de vida e relacionamentos, não só para o passado, mas também para o presente. Imaginar um passado diferente é imaginar também um presente e um futuro diferentes. (BLANSHARD, The erotic eye, 2015, p. 257).

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Capítulo 4: Identidades

3.1. Ocidente e Oriente, Civilização e Barbárie Como as narrativas vão lidar com aqueles que não são romanos? Qual a representação feita de lugares como o Egito e a Gália? O que isso diz sobre como esses autores constroem questões de identidade e quais suas relações com o presente? O principal ponto de diferenciação é o feito entre Roma e Oriente. O orientalismo, segundo Said (1990), é o discurso por meio do qual a cultura europeia conseguiu administrar e até produzir o Oriente: política, sociológica, ideológica, científica e imaginativamente. Esse pensamento é baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre “o Oriente” e, na maior parte do tempo, “o Ocidente”. Para Said (1990), o mundo está dividido em dois lados diametralmente opostos: O Ocidente, científico, racional, culto e moral e o Oriente, bárbaro, irracional, anticientífico, culturalmente inferior e imoral. Essa distinção teve um longo histórico na literatura, na arte e na cultura, em geral até os dias de hoje. O Oriente se torna de forma inata, estranho, exótico e animalesco. Nessa condição de “outro”, ele se transforma em uma ficção de tudo aquilo que o Ocidente não é. Uma ficção que serve principalmente para reforçar uma concepção moral que o Ocidente tem de si mesmo. Portanto, a partir do conceito de orientalismo, o Oriente não é meramente o “outro” do Ocidente, mas um “outro” que está colocado como prêmio ou troféu, a ser dominado ou conquistado pelo Ocidente. Quando o Ocidente é a régua pela qual o Oriente é definido, ele jamais poderá ser algo com o qual as pessoas se identifiquem. Definido a partir da sua distância da norma, o Oriente se torna algo a ser possuído. Quando o Oriente se torna “o outro”, as pessoas do Oriente também se tornam “o outro”. Assim, segundo Said, o Orientalismo se torna uma ferramenta de desumanização. (SAID, 1990). Por séculos, o passado clássico ajudou a justificar, sancionar e autenticar o presente britânico. Referências à antiguidade permitiram e continuam permitindo que os ingleses e o mundo de língua inglesa, por todos os períodos de agitação, encontrem nas imagens que constroem do Oriente novos valores e identidades para suprir suas necessidades sociais e políticas imediatas. (TONER, 2013, p. 26).

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Robert Harris

Na trilogia de Cícero, o Oriente não tem uma posição de destaque dentro da narrativa. Porém, sempre que aparece é de forma a mostrar a superioridade romana e a maior oposição é feita entre civilizado e bárbaro. Sem dúvida, o Oriente é visto como parte dos bárbaros, a única diferença entre eles e aqueles que habitam a Gália ou a Germânia é que um dia estes possam vir a se tornarem civilizados. E de fato, a conclusão que se chega na narrativa é que else se tornaram civilizados, enquanto os vindos do Oriente jamais serão verdadeiramente integrados à Roma. A maior parte dos comentários feitos pelo autor durante a narrativa se dá de uma maneira sem cerimônia e descritiva. Ao se referir aos partas, contra os quais Crasso tinha partido para lutar, Tiro declara que “aqueles que conheciam o mínimo das areias traiçoeiras e do povo cruel da Arábia pensavam que o plano era altamente arriscado. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 112). Não difere muito da forma que Tiro, também casualmente, chama um dos mensageiros, contratado para levar as cartas de Cícero, que estava exilado em Ilírico, de “um trapaceiro inveterado, como a maioria das pessoas são naquela parte do mundo” (HARRIS, Dictator, 2015, p. 112), para a seguir descreve o lugar como “uma terra estranha e infértil, de aparência selvagem, como seu povo” (HARRIS, Dictator, 2015, p. 112). Ao encontrar-se na casa de Pompeu com o rei Ptolomeu, que levava sua filha Cleópatra a tiracolo, Cícero e Tiro têm apenas sentimentos de repulsa: Now, as we rattled up the long drive to the villa, we passed several groups of olive-skinned men wearing exotic robes and exercising those sinister yellowish prick-eared greyhounds so beloved of the Egyptians. [...] He was a short, plump, smooth figure, dark-complexioned like his courtiers [...] His perfumed fingers were fat and soft like a baby’s, but the nails I noticed with disgust were broken and dirty. Coyly peering around him with her arms clasped across his stomach was his young daughter. She had huge charcoal-black eyes and a painted ruby mouth—an ageless slattern’s mask even at the age of eleven [...]. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 74).184 Before we left, Ptolemy, as a token of his thanks, presented Cicero with a small and ancient jade statue of a baboon, which he explained was Hedj- Wer, the god of writing. I expect it was quite valuable, but Cicero couldn’t

184 Agora, enquanto percorríamos chocalhando o longo caminho até a vila, passamos por vários grupos de homens de pele cor de azeitona usando trajes exóticos e exercitando aqueles sinistros galgos amarela dos de orelhas erguidas que os egípcios tanto amam. [...] Era uma figura baixa, roliça e glabra, de pele escura, como seus cortesãos [...]. Aqueles dedos perfumados eram gordos e macios como os de um bebê, mas notei, enojado, que as unhas eram quebradas e sujas. Observando timidamente tudo a seu redor, com os braços apertados na barriga de Ptolomeu, estava sua jovem filha. Tinha enormes olhos cor de carvão e uma boca pintada de rubi — uma máscara sem idade de mulher devassa já aos 11 anos [...]. (HARRIS, Dictator, 2017).

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abide it—“What do I want with their primitive mud gods?” he complained to me afterwards, and he must have thrown it away; I never saw it again. (HARRIS, Dictator, 2015 p. 75).185 Pela narrativa, os egípcios não poderiam ser mais diferentes dos romanos e os adjetivos com os quais são descritos pelo autor são sempre negativos. Sua pele é “cor de oliva”, seus cachorros são “sinistros”. Por sua vez, o rei Ptolomeu é descrito por termos efeminados e infantilizados, ao mesmo tempo em que se alude a uma falta de cuidado pessoal, apesar do status real. Tudo passa uma imagem de decadência e o envolvimento dos principais nomes da República Romana com a realeza egípcia sinaliza também a proximidade da decadência da mesma. Se os homens são efeminados, as mulheres, mesmo crianças, são perigosas sedutoras, já apresentando sinais da ruína que os homens romanos encontrarão nos seus braços. Cleópatra, apesar de ter apenas onze anos, já mostra estampada no rosto as marcas “de mulher devassa” que viria a se tornar. Para que não reste dúvidas da inferioridade dos egípcios, o autor apresenta a religião egípcia na forma de um presente que Ptolomeu dá a Cícero – trata-se da imagem do deus da escrita. Ao jogar fora e desprezar o valioso presente do rei, fica simbolizado que Cícero não se deixa seduzir pelas riquezas do Oriente que levam à perdição. O perigo que os egípcios representam, segundo o autor, não é um de ordem militar, mas moral. Outro ponto interessante de observar é como Harris descreve os lugares – excluindo Roma e eventualmente a Grécia – todos selvagens e bárbaros. Assim que Cícero parte em direção a Cilícia, para cumprir seu mandato como procônsul da província, as descrições dos lugares e locais não poderiam ser mais desabonadoras. The poverty exhaustion of the common people, the endless shuffling queues of petitioners in the gloomy basilica and the glaring white-stone forum, the constant moans and groans about customs officials and poll taxes, the petty corruption, the flies, the heat, the dysentery, the sharp stink of goat and sheep dung that seemed always in the air, the bitter-tasting wine and oily spicy food, the small scale of the town and the lack of anything beautiful to look at, or sophisticated to listen to, or savoury to eat [...]. (HARRIS, Dictator, 2010, p. 156).186

185 Antes de sairmos, Ptolomeu, em sinal de agradecimento, presenteou Cícero com uma pequena e antiga estátua de jade de um babuíno, que explicou ser Hedj-Wer, o deus da escrita. Suponho que fosse muito valiosa, mas Cícero não a suportava. — Que quero eu com os primitivos deuses de barro deles? — queixou- se para mim mais tarde, e deve tê-la jogado fora; nunca mais voltei a vê-la. (HARRIS, Dictator, 2017). 186 A pobreza e a exaustão do povo comum, as intermináveis filas de peticionários que se arrastavam na basílica escura e no fulgurante fórum de pedras brancas, os constantes gemidos e resmungos sobre funcionários da alfândega e impostos por cabeça, a corrupção, as moscas, o calor, a disenteria, o fedor azedo de esterco de cabras e ovelhas que parecia impregnado no ar, o vinho amargo e a comida oleosa e picante, a pequena escala da cidade e a falta de algo bonito para ver, sofisticado para ouvir ou saboroso para comer [...]. (HARRIS, Dictator, 2017).

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Para Tiro, lamentos e queixas constantes desses locais se misturam com moscas, desinteria, calor e corrupção mesquinha. A Cilícia não tem nada de bom que possa oferecer, exatamente o oposto de como Roma é ou representa: sofisticação, beleza e sabor. Não há nada no lugar que possa ser de interesse de Cícero. Os locais são dignos de pena, ainda que não sejam poupados das incursões militares romanas. However, he still managed to have a war of sorts. Some of the local tribes had taken advantage of the Parthian crisis to rise in revolt against Roman rule. There was one fortress in particular, named Pindessium, where the rebel forces were concentrated, and Cicero laid siege to it [...] I found the whole adventure distasteful, and so I think did Cicero, for the rebels stood no chance. Day after day we launched arrows and flaming projectiles into the town, until eventually it surrendered and our legionaries poured into the place to ransack it. Quintus had the leaders executed. The rest were put in chains and led off to the coast to be shipped to Delos and sold into slavery. Cicero watched them go with a gloomy expression [...] I can’t say I derive much satisfaction from using all the resources of civilisation to reduce a few barbarian huts to ashes. (HARRIS, Dictator, 2010, p. 157).187 Os termos escolhidos por Harris para falar sobre as campanhas feitas por Cícero, na Cilícia, são interessantes para pensar como ele representa o Oriente e o Ocidente. Mais uma vez, o autor sente a necessidade de afastar o orador de tudo que tenha mesmo a menor possibilidade de manchar a sua reputação de “campeão da liberdade e justiça” ou que permita vê-lo como agressor. A questão do ponto de vista surge mais uma vez. O leitor é convidado a se identificar com Cícero, que apesar de ser o conquistador e estar capturando rebeldes para submetê-los à escravidão, tem uma “expressão sombria”. Todo o caso é descrito como repugnante por Tiro. Cícero coloca a batalha em termos de civilização e barbárie. O tom é condescendente com os rebeldes, que acham ter alguma chance perto do poderio de Roma, apesar da sua óbvia inferioridade em todos os aspectos, não só no militar. Apesar do suposto repúdio de Cícero, isso não o impede de fazer um pedido de triunfo por conta da vitória militar. Bem diferente dos termos que o próprio Cícero colocou sua vitória em carta para Ático, em que lamenta, de forma irônica, não ter conseguido a vitória sobre

187 No entanto, ele ainda conseguiu ter uma espécie de guerra: algumas tribos locais tiraram proveito da crise parta para se levantar em revolta contra o domínio romano. Havia uma fortaleza em particular, chamada Pindéssio, onde as forças rebeldes estavam concentradas, e lá Cícero montou cerco. [...] Toda a aventura me pareceu repugnante, e penso que a Cícero também, pois os rebeldes não tinham chance. Dia após dia lançamos flechas e projéteis em chamas sobre a cidade, até que finalmente ela se rendeu e nossos legionários entraram aos bandos no lugar para saqueá-lo. Quinto mandou executar os líderes. Os demais foram acorrentados e levados até o litoral para serem enviados a Delos e vendidos como escravos. Cícero os viu partir com uma expressão sombria. [...] Mas não posso dizer que sinto muita satisfação em aplicar de todos os recursos da civilização para reduzir algumas choças bárbaras a cinzas. (HARRIS, Dictator, 2017).

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um local que ostentasse um nome de prestígio reconhecido pelos romanos, como a Macedônia188. (PEREIRA, 2012, p. 127). Harris defende um projeto imperial, ao mesmo tempo em que absolve Cícero dos resultados mais abjetos dela. No fim, é simplesmente o que ocorre quando a civilização entra em contato com povos selvagens. A defesa de um “projeto civilizacional” também é posta pelo autor em termos de necessidade para um “bem maior”. Essa inevitabilidade da dominação e colonização do mundo pelos romanos aparece mais uma vez quando gauleses pretendem contratá-lo para processar o ex-governador da província: Fonteius had gone on to make himself extremely rich, in the Verres manner, by extorting various illegal taxes out of the native population. The Gauls had at first put up with it, telling themselves that robbery and exploitation have ever been the handmaids of civilization. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 249).189 Harris faz uma observação curiosa, talvez irônica, sobre como a civilização sempre teve como “aia” o roubo e a exploração. Os gauleses até entendiam isso e viam como “preço a pagar pela civilização” a que foram submetidos190. Ainda assim, é importante ressaltar a diferença nas descrições e caracterizações feitas dos gauleses, daqueles outros provinciais ou povos do “Oriente”. Induciomaro, representante dos gauleses, é descrito como uma “figura de aspecto selvagem, vestida como um bárbaro, com casaco e calças”. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 249). Ausentes daí estão a repulsa, o nojo, a duplicidade, a estranheza. Para o autor existe um tipo certo e um tipo errado de provincial. Um, apesar de selvagem, tem todas as características de alguém que pode vir a se tornar cidadão romano, enquanto o outro – sempre “o outro” – é visto como o tipo errado, que quando é inserido na sociedade romana vai trazê-la à ruína. As implicações modernas dessas comparações são

188 Aqui, (nas montanhas de Amanos), 13 de outubro, infligimos grandes baixas aos inimigos e conquistamos e incendiamos locais militarmente muito bem protegidos, assumindo Promptino o comando durante a noite e eu durante a manhã. Saudaram-me como imperator. Estivemos alguns dias acampados perto de Isso, no exato local onde Alexandre, um general melhor do que tu ou eu, atacou Dario. Ad Atticus. 5.20. 189 Fonteius progrediu até se tornar extremamente rico, à maneira de Verres, extorquindo a população nativa com uma infinidade de impostos ilegais. Os gauleses, de início, não protestaram, dizendo a si mesmos que o roubo e a exploração sempre estiveram a serviço da civilização. (HARRIS, Imperium, 2009, p. 208). 190 Lembra a ironia feita pelos membros do Monty Python no filme, “Vida de Brian” (1979). Nele, o líder de um grupo de rebeldes judeus, ao falar dos males da ocupação romana pergunta: “mas afinal o que é que os romanos já fizeram por nós”? Aqueles que ouvem o discurso, respondem com os muitos aspectos positivos da ocupação romana, como saneamento, medicina, educação, vinho, ordem pública, irrigação, estradas, sistema de água doce, saúde pública e paz. Esse trecho, talvez o mais famoso do filme, é lembrado de forma recorrente para fazer uma apologia ao imperialismo. O que é pouco lembrado é uma cena mais à frente do filme em que Brian, agora preso pelos romanos, divide a cela com outro judeu que, apesar de todas as torturas a que está submetido continua defendendo o governo romano (numa relação quase sadomasoquista). Ele diz a Brian que, com sorte, ele seria condenado a crucifixão, e responde à surpresa do personagem com a seguinte frase: “sim, a cruz, a melhor coisa que os romanos já fizeram por nós”.

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complicadas, especialmente quando o autor deixa claro que o livro trata sobre os riscos que os valores Ocidentais, representados por Reino Unido e EUA, correm no momento atual. (CLASSICSFORALL.ORG.UK, 2017).

Steven Saylor

Dentre os autores tratados na tese, o autor da série Roma Sub Rosa, Steven Saylor, é sem dúvida o autor que mais faz referências ao Oriente. Mesmo porque o protagonista Gordiano tem uma ligação com o Egito, tendo vivido em Alexandria quando jovem. Além disso, ele tem uma escrava egípcia, Bethesda, que depois se torna sua esposa. Os discursos sobre o Oriente, presentes na obra, são múltiplos e um tanto paradoxais. Logo no primeiro livro, Saylor apresenta a personagem de Cecília, uma alta aristocrata romana que é “fascinada por qualquer novo culto oriental que esteja na moda em Roma, quanto mais estrangeiro e bizarro melhor” (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 52). Ela, porém, faz tudo errado. O que Gordiano observa na casa da romana é um amálgama do que se espera ser oriental. [...] chamber that would not have looked too out of place in a high-priced Alexandrian brothel. We seemed to have stepped into a large and overdecorated tent, plush and pillow-strewn, with carpets and hangings everywhere [...] It was from this room that the smell of incense permeated the house. I could hardly breathe. The various spices were being burned without the least sensitivity to their individual proportions and properties [...] Any Egyptian house wife would have known better. (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 54).191 Nesse sentido, a relação que Saylor faz entre Oriente e Ocidente é muito mais nuançada, apresentando diferenças e significados diversos, numa combinação entre o que essas culturas são e o que os romanos interpretam delas. Além disso, ele também enfatiza a influência que os cultos orientais tinham em Roma. O autor insiste nessa ideia do fascínio exercido pelo Oriente em Roma, mas que se traduz em uma junção de estereótipos: All in all he presented the spectacle of an Epicurean gone to seed, and his attempts to recreate the air of a Levantine brothel bordered on parody. When the Romans attempt to mimic the East, they seldom succeed. Grace

191 [...] numa câmara que não estaria excessivamente deslocada num bordel alexandrino de alto preço. Parecia que tínhamos entrado numa tenda enorme e excessivamente decorada, semeada de pelúcias e de almofadas, com carpetes e pendentes em toda a parte. [...] Era a partir desta sala que o odor a incenso permeava a casa. Eu quase não conseguia respirar. As diversas especiarias estavam a ser queimadas sem a menor sensibilidade pelas suas proporções e propriedades individuais. [...] Qualquer dona de casa egípcia saberia que não devia fazer estas misturas. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 85).

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and true luxury cannot be so easily copied, or purchased wholesale. (HARRIS, Roman Blood, 1991, p. 116).192 Nesse caso, o Oriente aparece de maneira interessante, pois são os romanos que o consideram como exótico e não pelo autor, que demonstra através de sua narrativa a sensação “farsesca” dada pela imitação romana. Por meio da personagem de Bethesda, o autor também vai mostrar a visão de outros povos sobre Roma, o que permite que se faça uma reflexão sobre suas ações e valores. The Romans have no style,” I agreed. “No grace. [...] The Romans became much too rich, much too quickly. They are a crude and vulgar people, and they own the world. (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 81).193 Assim, inverte-se a posição apresentada por Robert Harris em relação ao povo da Cilícia. Na narrativa de Saylor, os romanos é que são vulgares e não possuem estilo nem graça. Os povos conquistados não aceitam o domínio romano como algo natural, ao qual deveriam estar gratos. A casa de Gordiano sofre um ataque enquanto ele não está presente. Na sua ausência, Bethesda é atacada e matam o gato que ela possuía. É uma oportunidade para Saylor tratar brevemente da religião egípcia e da sua diferença em relação à romana: Romans have never worshiped animals as gods. Nor are they sentimental about household creatures. How could it be otherwise with a race that esteems human life so very little? [...]. (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 142).194 They threatened my slave, who luckily escaped, and they butchered my cat, which may seem a small thing to you but which would be an omen of catastrophic proportions in a civilized country like Egypt.” (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 196).195 Mais uma vez inverte-se as posições. A religião egípcia, que cultua gatos, não é inferior por causa disso, muito pelo contrário. O autor, ao fazer o protagonista afirmar que “em um país civilizado isso não aconteceria”, reforça essa posição. Saylor joga com a expectativa dos leitores, acostumados a verem romanos como civilizados em oposição aos egípcios. Desta forma, a frase soa como uma ironia e um convite ao leitor para questionar

192 No conjunto, ele tinha o aspecto de um Epicurista falido e as suas tentativas de recrear o ambiente de um bordel levantino bordeavam da paródia. Quando os Romanos tentam imitar o Oriente, raramente são bem sucedidos. Não é fácil copiar ou comprar por atacado a graça e o verdadeiro luxo. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 173). 193 Os Romanos não têm estilo concordei eu. Não têm graça. Especialmente as mulheres. Os Romanos enriqueceram em excesso, e com demasiada rapidez. São um povo rude e vulgar, e são donos do mundo. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 125). 194 Os Romanos nunca veneraram os animais como deuses. Nem são sentimentais acerca das criaturas que têm em casa. Como poderia comportar-se de outra maneira uma raça que tem tão pouca consideração pela vida humana? (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 211). 195 Ameaçaram a minha escrava, que teve a sorte de escapar, e mataram cruelmente a minha gata, o que pode parecer-te uma coisa de pouca importância, mas seria um presságio de proporções catastróficas num país civilizado como o Egito. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 279).

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os pressupostos a que estão acostumados. Aqui não há desprezo nem repulsa por quem cultua “deuses da lama”. É uma estratégia bastante usada por Saylor, colocar na boca de terceiros, de alguém de fora, uma opinião ou impressão dos romanos ou de personagens históricos. Dessa forma, é possível colocar na narrativa diversas posições diferentes e questionar algumas crenças de longa data. Ainda assim, como será demonstrado, não impede que o autor reproduza diversos clichês orientalistas. Isso acontece em especial no livro “The Judgment of Caesar” (O Julgamento de César), que se passa em Alexandria, durante o período em que César esteve lá, após a batalha de Farsália. Ao colocar Gordiano no Egito, o autor parece não conseguir escapar de usar todo tipo de característica orientalista para descrever o ambiente e seus habitantes. Logo de início, após supostamente perder a esposa para as águas do Nilo, Gordiano é capturado pela tropa egípcia: The spy bowed so low that his nose almost touched the ground. As a Roman, I was unused to seeing such displays of servility, which are part of the very fabric of Egyptian life, and indeed, of life in any state headed by an absolute ruler. “Your Excellencies,” the spy hissed, keeping his eyes lowered [...] (SAYLOR, The Judgment of Caesar, 2004, p. 67).196 The two men looked at me—though the term man was not entirely suited to the pale fellow, I thought, as I began to perceive that he was very likely a eunuch—another feature of court life in hereditary monarchies to which Romans are unaccustomed. (SAYLOR, The Judgment of Caesar, 2004, p. 68).197 “Gordanius, Your Excellency.” “Gordianus,” I corrected him. The steady tone of my voice surprised even me. Used to hearing their underlings speak in hushed, toadying voices, Achillas and his companion appeared taken aback to hear a captive speak up for himself while daring to look them in the eye. (SAYLOR, The Judgment of Caesar, 2004, p. 68).198 O autor enfatiza a submissão e subserviência dos egípcios em oposição direta à Gordiano, que demonstra as qualidades exatamente contrárias. Os romanos são necessariamente criaturas livres, para além da escravidão não há um senso de hierarquia social dentro da sociedade. Ainda que Saylor esteja preocupado em mostrar as diferenças

196 O espião curvou-se tanto, que o nariz quase tocou o chão. Como romano, eu não estava acostumado a ver tamanhas demonstrações de subserviência, que fazem parte do tecido da vida egípcia e, na verdade, da vida em qualquer estado chefiado por um governante absoluto. – Excelências – chiou o espião, mantendo os olhos baixos [...]. (SAYLOR, O Julgamento de César, 2007, p. 101). 197 Os dois homens olharam para mim – embora o termo homem não fosse de todo adequado ao sujeito pálido, pensei, enquanto começava a perceber que muito provavelmente ele devia ser um eunuco -, outro detalhe da vida na corte nas monarquias hereditárias ao qual os romanos não estão acostumados. (SAYLOR, O Julgamento de César, 2007, p. 101). 198 – Gordiano, Excelência. – Gordiano – corrige. O tom firme da minha voz surpreendeu até a mim. Acostumado a ouvir seus subalternos falarem em vozes baixas, aduladoras, Áquila e seu companheiro pareceram perplexos ao ouvirem um prisioneiro se defender enquanto ousava olhá-los nos olhos. (SAYLOR, O Julgamento de César, 2007, p. 101).

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sociais em Roma e a disputa pelo poder entre as diversas facções, a principal diferença que se dá é a econômica e não a social. Gordiano, apesar de ser apenas um cidadão comum e plebeu, trata de igual para igual todos os membros da república, sejam eles figuras importantes ou não. Isso também acontece na narrativa de Harris, porém de forma mais aguda, já que mesmo na questão da escravidão essas hierarquias são disfarçadas. Com isso, confronta-se Roma, uma sociedade de cidadãos livres, com a do Egito, de rígidas hierarquias sociais. E isso não é muito diferente da representação do Oriente ainda hoje. Ao comparar como os egípcios e seus escravos são descritos, não há muita diferença, afinal perto de Ptolomeu ou Cleópatra todos são escravos. Em oposição a essa narrativa, Saylor descreve a familiaridade com que Gordiano é tratado por dois garotos seus escravos, que o acompanharam até Alexandria. Estes até se arriscam a fazer uma brincadeira, quando o mestre os ordena a dormir, e perguntam se ele também mandará estrangulá-los caso não durmam, numa referência ao que Ptolomeu fez com um de seus súditos por tê-lo desagradado. (SAYLOR, Judgment of Caesar, 2004, p. 78). O Oriente é mostrado como um cenário desgastado. Como uma sociedade estagnada em que nada muda, povoada por caricaturas viciadas no exótico, no erótico e decadente, aptas apenas para serem oprimidas por déspotas sádicos. (TONER, 2013, p. 230). Isso fica mais claro ao se observar a comparação feita entre as duas cidades, Alexandria e Roma: It would be hard to say which city seems bigger. Rome is a crowded jumble of shops, tenements, temples, and palaces, with one thing built on top of another and no sense of order or proportion, a once-quaint village grown madly out of control, bustling and swaggering with brash vitality. Alexandria is a city of wide avenues, grand squares, magnificent temples, impressive fountains, and secluded gardens. The precision of its Greek architecture exudes an aura of ancient wealth and a passion for order [...] But while the Alexandrians love beauty and precision, the heat of the Egyptian sun induces a certain languor, and the tension between these two things—orderliness and lassitude—gives the city its unique, often puzzling character. To a Roman, Alexandria seems rather sleepy and self-satisfied, and too sophisticated for its own good—sophisticated to the point of world-weariness, like an aging courtesan past caring what others might think. (SAYLOR, The Judgment of Caesar, 2004, p. 92).199

199 Seria difícil dizer qual a cidade que parece maior. Roma é uma lotada confusão de lojas, casas de cômodos, templos e palácios, com uma coisa construída em cima da outra e nenhum senso de ordem ou proporção, uma aldeia outrora graciosa que cresceu alucinadamente fora de controle, alvoroçando-se e jactando-se com atrevida vitalidade. Alexandria é uma cidade de avenidas largas, praças imponentes, templos magníficos, fontes impressionantes e jardins isolados. A precisão de sua arquitetura grega transpira uma aura de riqueza antiga e uma paixão pela ordem [...] Mas apesar de os alexandrinos amarem a beleza e a precisão, o calor do

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Dessa forma, o Oriente é reduzido a visões do deserto, um símbolo do seu atraso. O calor, que leva a languidez e ao ócio, remete à sensualidade, à paixão desmedida. Alexandria é comparada com uma velha cortesã. A própria descrição geográfica remete à sua natureza feminina quando afirma: “a cidade, como uma mulher tem seu próprio perfume, uma mistura de flores, brisa do mar e do ar quente do deserto”. (SAYLOR, Judgement of Caesar, 2004, p. 91). Nem mesmo a sua arquitetura precisa e bela, que o autor não se esquece de chamar de grega, é capaz de tirar Alexandria de seu torpor. Qual vai ser o impacto que o Oriente tem em um homem romano? Quais os perigos que “se deixar seduzir pelo Oriente” trazem para o indivíduo e consequentemente para o que ele representa, isto é, o Ocidente? A personagem de Júlio César, que se vê, a princípio contra sua vontade, cercado em Alexandria, representa bem a forma como o Oriente exerce sua influência perniciosa quanto mais se tem contato com ele. É o que Gordiano vai observar quando fala sobre a noção de justiça egípcia: This is a strange land. Here, justice exists at the whim of those who possess a certain bloodline, and laws are decrees handed down by squabbling rulers. Laws have nothing to do with truth, or justice with proof. Soon it will be the same in Rome, I think; Caesar is taking lessons from these Nile crocodiles and intends to reproduce their habitat along the Tiber. (SAYLOR, The Judgment of Caesar, 2004, p. 196).200 Em outros trechos se vê insinuações parecidas. César está cada vez mais autoritário e com ideias e costumes vindos do Oriente. É com Nicomedes, rei da Bitínia, que César ainda jovem, aprende a reinar. (SAYLOR, The Judgment of Caesar, 2004, p. 235). O autor também insiste que é no Egito que o general romano brinca com a noção de divinização. Ao ficar fascinado com a devoção de dois servos de Cleópatra, que preferem morrer a incriminá-la, César afirma: Men have died for me, yes, but not in the way those two died for their queen. They truly believed her to be a goddess, with the power to grant them everlasting life. Amazing!” There was a note of envy in his wonderment. Would a Roman king ever be able to evoke such total

sol egípcio induz um certo langor, a tensão entre essas duas coisas – ordem e langor – dá à cidade o seu caráter sem par, muitas vezes intrigante. Para um romano, Alexandria parece muito sonolenta e contente consigo mesma, e sofisticada demais para seu próprio bem – sofisticada a ponto de se cansar do mundo, como uma cortesã que envelhece e já deixou de se importar com o que os outros possam pensar. (SAYLOR, O Julgamento de César, 2007, p. 132-133). 200 Estamos num país estranho. Aqui, a justiça existe ao capricho daqueles que possuem uma certa linhagem de sangue, e leis e decretos são transmitidos de geração em geração por governantes em disputa. As leis nada têm a ver com a verdade, ou justiça com a prova. Em breve acontecerá o mesmo em Roma, acho eu; César está tendo aulas com esses crocodilos do Nilo e pretende reproduzir o habitat deles ao longo do Tibre. (SAYLOR, O Julgamento de César, 2007, p. 267).

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devotion and blind self-sacrifice? I found the notion repellent, but Caesar seemed fascinated by the possibility. (SAYLOR, The Judgment of Caesar, 2004, p. 249).201 Assim, César é seduzido pela forma com que Ptolomeu e Cleópatra são tratados como divindades. Mais uma vez, o perigo vem do Oriente para contaminar o Ocidente – ou seus representantes – com conceitos que lhe são estranhos e danosos. Apesar de Saylor produzir discursos diferentes sobre o Oriente, acaba reforçando os piores estereótipos sobre a região quando seu personagem vai ao Egito. Isso diz muito sobre a dificuldade em se ter referências que fujam dessa descrição orientalista ou que não usem dos lugares-comuns do orientalismo.

Kate Quinn

Na série “The Empress of Rome” (Imperatriz de Roma), o Oriente aparece de maneira esporádica. Ainda assim, segue os parâmetros orientalistas de descrição e caracterização como analisados anteriormente. No terceiro livro da série, a personagem Vix, um soldado romano, é enviado para as províncias do Oriente: People liked to say Antioch was the Rome in the east, but I couldn’t see the resemblance. There might be colonnades and aqueducts and arenas all in marble, but it wasn’t anything like Rome. The men wore their hair long and colored their nails like women; Hebrew and Latin and more languages I didn’t even know made a spicy verbal mix in the streets, and I counted more whores in one forum than I ever saw in an entire Roman slum, or maybe that was just how all the women dressed. (QUINN, Empress of the Seven Hills, 2012, p. 2118).202 Ao descrever Antioquia, uma das maiores cidades do império romano e localizada na província da Síria, os adjetivos usados pela autora, – homens efeminados, mulheres equiparadas a prostitutas, – são os mesmo que remetem à caracterização orientalista. Quinn também faz a comparação entre a cidade de Antioquia e Roma e chega

201 Homens têm morrido por mim, sim, mas não da maneira pela qual aqueles dois morreram pela sua rainha. Eles realmente acreditavam que ela fosse uma deusa, com o poder de conceder-lhes a vida eterna. Impressionante! Havia uma nota de inveja naquela perplexidade. Será que algum dia um rei romano seria capaz de provocar uma devoção assim total e um sacrifício de si mesmo tão cego? Achei a ideia repelente, mas César parecia fascinado pela possibilidade. (SAYLOR, O Julgamento de César, 2007, p. 338). 202 As pessoas gostavam de dizer que Antioquia era a Roma do Leste, mas eu não conseguia perceber as semelhanças. Mesmo que lá tivesse colunas, aquedutos e arenas de mármore não era nada como Roma. Os homens usavam o cabelo comprido e pintavam as unhas como as mulheres; Hebraico e latim além de inúmeras línguas das quais eu não conhecia o nome apimentavam as ruas em uma mistura verbal. Também vi lá mais prostitutas no fórum do que eu já vi em uma favela romana, ou talvez fosse assim mesmo que todas as mulheres se vestissem. (QUINN, A Imperatriz das Setes Colinas, p. 2118, tradução própria).

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à conclusão de que nem mesmo as colunas, os aquedutos e as arenas, todos sinais da civilização romana, são capazes de transformar o local em algo parecido a uma sociedade civilizada. Até mesmo a citação das diversas línguas, faladas nas ruas de Antioquia – como o latim, hebraico e muitas outras – serve para mostrar um lugar de misturas de povos em oposição à Roma, um lugar visto como monocultural. Em um outro trecho, a mesma personagem Vix vai afirmar seu desejo de ir até a Pártia, onde teria “Brown women, céus quentes e batalhas quentes também”. (QUINN, Empress of the seven hills, 2012, p. 301). A ideia do calor é quase que indissociável, como um fator de alteridade do Oriente. A cor das mulheres também é uma característica associada ao exótico e a uma suposta sexualidade e sensualidade aflorada. Ao contrário de Roma, onde fica pressuposto que havia mulheres brancas, na Pártia elas seriam “marrons”. Para fechar o combo, o protagonista também menciona que adoraria conhecer a Pártia e que teria houvido falar que lá “as pessoas adoram cobras como deuses”. (QUINN, Empress of the Seven hills, 2012, p. 342). Mais uma vez, evoca a referência de “deuses da lama” em forma de babuíno, ou seja, um lugar irracional, com cultos primitivos e estranhos. O que torna todas essas referências ainda mais complexas são as declarações dadas pela autora ao falar sobre o livro em entrevistas. Quinn é casada com um membro da marinha americana, enviado para o Iraque na chamada “guerra contra o terror”. My third book follows the adventures of a Roman soldier in Parthia – and while I was finishing it up, my husband was deployed to the middle east just a few short miles from the same place my fictional hero was fighting. Two very similar wars, two very similar warriors; the only difference is the two thousand years between them. (BOBIC, An interview with Kate Quinn, 2011). A comparação feita pela autora entre as duas experiências militares é curiosa, pois Quinn afirma que ambos lutam em guerras próximas. Mais uma vez, se estabelece uma dicotomia entre Ocidente e Oriente em um estado de eterna batalha. Além disso, faz a confluência entre Estado Unidos e Roma, como se fossem representantes dos mesmos valores e ideais e principalmente povos, ainda que um esteja “sob a bandeira americana das estrelas e listras e o outro marche sob o estandarte da águia” (STARKSTON, 2012).

Max Mallmann

A questão das identidades e como elas se configuram no passado romano é um tema bastante explorado por Mallmann nos dois livros da série. Ao contrário dos autores

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anteriores, o Oriente não tem um papel predominante na narrativa, pois prefere se concentrar em questões que dizem respeito ao que significa ser romano, ou grego ou “bárbaro” no mundo antigo. A ligação com o Oriente vem por meio de Eutrópia. Desde o princípio, a origem da personagem é colocada em questão. O narrador Nepos afirma que apesar de Eutrópia ser conhecida como originária de Samos, muitos desconfiavam que na verdade ela havia nascido em Éctabana, na Pártia, reino que há séculos era inimigo de Roma. Dessa maneira, Nepos conclui que nunca conseguiu provar a veracidade do boato, mas que de fato ela conhecia muito bem os costumes do Oriente. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010). A personagem Eutrópia é uma curandeira, que tanto Dolens quanto Nepos já conheciam, pois procuraram por ela para ajudar o pai de uma moça, que salvaram na rua do ataque dos jovens patrícios. Ela acaba se tornando uma espécie de confidente de Dolens e depois amante da sua irmã. A origem dúbia de Eutrópia é um fato recorrente ao longo de toda a narrativa e o centurião faz de tudo para pegá-la em um momento desprevenido e descobrir a verdade. – Pegue sua filha no colo, pelo amor de Ohrmazd! A menção ao maior dos deuses do reino da Pártia intriga Dolens. Eutrópia afirma e reafirma ser grega, embora todos que a conheçam desconfiem que ela tenha nascido entre os partas, maiores inimigos de Roma no Oriente. – Pelo amor de quem? – Júpiter – emenda Eutrópia. – Não foi isso que eu ouvi. – Pegue essa coisinha barulhenta. Senão eu a jogo na água. (MALLMANN, As Mil Mortes de César, 2014, p. 296-297). A questão da origem retorna outras vezes, insistindo na ideia de que as pessoas criam para si identidades que sejam mais interessantes e sirvam aos seus objetivos: seja o de esconder uma origem de um povo inimigo de Roma, que dificultaria sua vida, seja o de criar uma origem mais cosmopolita que a original. O importante é que, na antiguidade criada por Mallmann, não há padrões rígidos de nacionalidade ou identidade. Os curandeiros gregos, ou supostamente gregos, como Eutrópia, estão entre os mais renomados da Urbe. Ao contrário dos médicos das legiões, treinados em primeiros socorros no calor das batalhas, esses gregos, ou quase gregos, são menos práticos e, por vezes, mais compassivos. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 155, grifo nosso). — Quatrocentos sestércios — diz o dono da ourivesaria, um liberto egípcio meio grego que nascera em Leontos Oppidum, mas mentia ser de Alexandria. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 277). O autor aponta para questões identitárias mais complexas que as das outras narrativas, as diferenças entre romano e bárbaro, cidadão e não-cidadão se borram, perdem a sua ligação supostamente étnica. Uma Roma em que ser cidadão romano vai além da ideia de ter nascido como um cidadão romano. O uso de termos como: “quase gregos”, “meio

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gregos”, remete à música de Caetano Veloso e Gilberto Gil, “Haiti” (1993)203. Nela discute- se exatamente como o racismo no Brasil ocorre a partir de categorias que são mais complexas do que a simples regra de uma gota (“one-drop rule”), que definia nas colônias britânicas quem seria negro ou não. A questão de construir para si uma origem vista como mais interessante ou mais vantajosa, também lembra como muitos brasileiros constroem sua própria identidade, por exemplo ao se chamarem de meio italianos, meio alemães, meio índios, ou seja, atribuindo para si heranças pouco comprováveis. O tema segue quando a irmã de Dolens, Desidéria, pede que o centurião dê seu nome ao filho, que ela e Eutrópia adotaram: — Onde vocês o acharam? Boiando no Tibre? — Ele foi enjeitado pela filha solteira de um mercador sírio — diz Eutrópia. — Sírio? Vocês me fizeram dar o nome da minha família para um árabe? — Como se nosso nome de família valesse alguma coisa — contrapõe Desidéria. — Para mim, vale. — Vale tanto que você o deu para uma germana. — Ela é romana! Quer ver? Galswinth, cite alguma coisa de Virgílio. Galswinth encara Dolens com enfado e se retira para o quarto, resmungando: — Cada um aguenta seu próprio inferno... — Virgílio disse isso? — Desidéria questiona. — Eneida, verso setecentos e quarenta e três! — Galswinth grita do quarto. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 321). O trecho acima é interessante, pois trata exatamente do significado do que é ser romano. O autor contrapõe a ideia de que seria pior dar a cidadania romana para um sírio do que para uma germana. Assim como Eutrópia nega qualquer acusação de que seja parta, contra todos os indícios, também Dolens insiste em negar que sua esposa seja originalmente germana, quando afirma que Maurúsia (Galwinth) seria romana. Para provar isso, ele pede que ela cite algo de Virgílio, ou seja, ser romano está ligado ao fato de conhecer as obras latinas de renome? Maurúsia, ou melhor Galwinth, responde com um verso do poeta, ao que Desidéria responde “Virgílio disse isso?”. Portanto, a germana conhece Virgílio, mas a romana não. Nesse trecho, o autor faz uma brincadeira que leva o leitor a se questionar sobre o que é considerado “romano” e se isso realmente faz algum sentido ou, ao contrário, se trata-se apenas de convenções que foram sendo construídas ao longo do tempo, como marcadores de uma dita romanidade. Descobrimos que Dolens é casado com Maurúsia (Galswith), uma cidadã romana de origem duvidosa e ela, é mais uma da série de personagens que evidenciam a problemática da identidade romana e a questão da cidadania. Ela é uma germana, que

203 [...] Mas presos são quase todos pretos/Ou quase pretos/Ou quase brancos quase pretos de tão pobres [...]. CAETANO VELOSO E GILBERTO GIL. Haiti. Tropicália 2. CD, Polygram/Philips, Rio de Janeiro, 1993.

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posteriormente descobrimos ser uma menina a qual Dolens poupou do massacre de Bona. A mãe de Dolens não gosta de Maurúsia e a discussão entre elas serve como forma de contrastar os costumes romanos e germanos, ao mesmo tempo em que coloca a questão “civilização/barbárie”, mas subvertendo as partes. Os costumes romanos é que aparecem, em grande parte, como “estranhos” e o leitor deve se questionar quem é o bárbaro ali. Dolens responde à Galswith que, apesar das negações dele. como marido, não renega suas origens germanas: “— Uma autêntica esposa romana jamais faria essa pergunta. — Não sou romana. — É, sim. Paguei para que você fosse romana”. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 50). O centurião pagou para que seu amigo e primus pilus204, Gnaeus Floronius Maurusius, adotasse a germana como filha. A personagem de Maurusius merece ser analisada, pois tem uma característica que o torna único entre todas as obras aqui pesquisadas. Ele é negro. Na verdade, o que o torna único não é o fato de ser negro, mas o único personagem com nome. É notável que, em todas as outras obras tratadas na tese, o único espaço reservado para pessoas negras é o de escravo. Nesse caso, esses escravos não possuem espaço na narrativa ou nem mesmo são personagens que participam ativamente da história. Ao contrário, eles são sempre descritos como em grupo e geralmente tendo a cor como única característica que os distingue, em menções passageiras e sem maiores consequências para o desenvolvimento da narrativa. Acabam funcionado como cenário, para mostrar como Roma de fato conquistou lugares em todo o mundo. Nos últimos anos, diversas polêmicas foram geradas pela presença de negros em representações da antiguidade romana205. Talvez a maior delas é a que envolveu um episódio de um desenho da BBC, postado no seu canal de YouTube em 2017, e voltado para crianças, chamado “The Story of Life”. Nele é mostrada uma família romana que vivia na província da Bretanha. O motivo da ira? O pai, caracterizado como um soldado romano de alta patente, é negro. Bastou isso para que as redes fossem inundadas por acusações de que o desenho se tratava de uma peça de bobagem anacrônica politicamente correta. Canais ligados à extrema direita, mas que ganharam notoriedade por meio de plataformas como o Twitter, acusaram

204 Primus pilus era como o primeiro centurião da primeira centúria da primeira coorte de uma legião romana era chamado. 205 Como nas séries Troy (BBC, 2018); Britannia (SKY, 2018); e o episódio dez, da décima temporada de Doctor Who (BBC, 2017) que se passa no império romano. Exceto por Troy, que escolheu um ator negro para fazer o papel de Aquiles e consequentemente também o de Pátroclo, todos os outros personagens negros representados nesses seriados foram o de legionário romano. Essas representações causaram níveis variados de ultrage e reações negativas. Ao mesmo tempo mostram que existe uma tentativa incipiente de mostrar a antiguidade clássica como um mundo povoado por mais que brancos caucasianos.

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a rede britânica de tentar reescrever a história, para tornar o passado romano multicultural e fingir que a imigração em massa é algo que sempre existiu no Reino Unido. A controvérsia se espalhou pelas redes e jornais do país, envolvendo classicistas renomados como Mary Beard206 (2017), que entraram na discussão e acabaram sofrendo ataques virulentos por defender um passado romano multiétnico. Talvez prevendo o estranhamento e possivelmente rejeição do leitor ao se deparar com Maurusius, o autor discute dentro da narrativa os possíveis questionamentos sobre a presença desse personagem. O passado criado por Mallmann não faz indistinção de cor, o que o torna diferente das outras representações de personagens negras na antiguidade207. Ele, ao contrário, dialoga com as suposições que imagina que seus leitores terão sobre a questão que ele aborda por meio da personagem. Por isso, logo que é apresentado, Maurusius causa confusão entre as personagens da narrativa ao vê-lo pela primeira vez. É importante destacar, no entanto, que Dolens e Galswith não apresentam essa mesma surpresa e, após a introdução da personagem na história, ele é tratado como qualquer outro personagem romano. — Ele diz que é centurião primus pilus. — Como assim, “ele diz”? — As insígnias são de primus pilus. Ele está no comando de uma centúria. E tem um salvo-conduto. — Sobra pouco espaço para dúvida. Não acha? — Mas ele não parece primus pilus. Aliás, não parece romano. Nem um pouco. Isso basta para Dolens adivinhar quem é. Ele se ergue e tenta se desvencilhar o mais rápido que pode da mesinha dobrável: — Deixe-o entrar. Agora! Antecipando-se a Murcus, o visitante entra, resplendente de medalhas. É um homem atarracado e forte, que passou há muito dos cinquenta anos. Por baixo do elmo, a pele negra escancara-lhe a origem africana. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 269-270). — Se isso é uma brincadeira — Moderata sussurra —, é de péssimo gosto. — Não sei do que a senhora está falando. — Seu sogro — Desidéria hesita — não é escurinho demais para ser romano? — Meu sogro é cavaleiro romano. — A legião aceita etíopes? — Desidéria insiste. — Quem disse que ele é etíope? — Ele é negro — diz Moderata. — Negro como um poço de betume. — O sol da Germânia costuma ser muito forte no verão. — Como esse homem — Moderata à custo mantém a voz num tom baixo —, preto desse jeito, pode ser pai da germana loura? — Ela é albina. Mais alguma pergunta? (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 271- 272). A pergunta de Moderata, se o centurião não é “escurinho demais para ser romano”, usando o vocabulário típico do racismo à brasileira, traz à tona essas discussões

206 Ver: Roman Britain in Black and White. (BEARD, 2017). 207 Nos outros exemplos citados, o fato das personagens serem negras não é algo notado dentro das narrativas ou aludido de qualquer outra forma.

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sobre diversidade étnica em Roma. Assim, “A bárbara, que recebera a contragosto o nome Maurúsia, pouco via o pai adotivo e não gostava dele, paradoxalmente por achá-lo “romano demais”. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010 p. 273). Mallmann define bem a ironia ao apresentar a relação entre pai e filha. A germana loura, que se recusa a ser chamada de romana, não gosta de Maurusius, centurião que tem sua cidadania questionada, apesar de sua família tê-la há gerações208, por ser “romano demais”. Mais uma vez, o autor apresenta os paradoxos do que se supões ser romano ou não e questiona a naturalidade com que essas “certezas” sobre Roma são tratadas. Ter Maurusius como cidadão romano e colocar o questionamento sobre ser cidadão ou não, leva os leitores a fazerem o mesmo, a se depararem com uma Roma com a qual não estão acostumados. Leva também a quebrar o discurso de Roma como um lugar de brancos e para brancos, em que as únicas posições ocupadas por outras etnias são a de servos e escravos. E implicações infelizes de que, no presente, seu lugar também é esse. O que parece gerar as reações violentas a esse tipo de representação não tem a ver somente com diversidade étnica no passado romano. A maior preocupação é em afirmar e tirar qualquer possibilidade de que pessoas negras tenham qualquer tipo de presença nesse passado. Aqui vamos além, o que causa incômodo não é nem mesmo a representação de pessoas negras em Roma, apesar das reivindicações de que não há provas da sua existência e de que os romanos não tiveram contato com a África subsaariana. Isso fica claro quando se percebe que na ficção, já há muito tempo, os negros estão presentes na representação da antiguidade. Seja na pintura, seja em filmes de sucesso como Ben-Hur (1959) ou Gladiador (2000). Nenhuma dessas representações causou qualquer tipo de polêmica ou ultraje. O que diferencia esses exemplos do desenho da BBC e do outros citados aqui é que nesses casos os negros estavam fazendo papel de escravos, ao contrário dessas produções. Representar a presença de um negro no passado, que não seja como escravo ou como o

208 Gnaeus Floronius Maurusius, centurião primus pilus, nasceu no extremo norte da África, ao pé das colunas de Hércules, na terra que hoje é a província romana da Mauretânia Tingitana. É de “Mauretânia” que vem o nome “Maurusius”. O bisavô de Maurusius era um mercador que emigrara dos reinos bárbaros da Núbia, ao sul do Egito. O avô se alistou numa ala de cavalaria das tropas auxiliares, tendo participado da invasão de Alexandria ao lado das forças do divino Augustus. Ao terminar seu tempo de serviço com os auxiliares, o avô de Maurusius obteve como prêmio a cidadania romana. O pai, tão logo atingiu a idade mínima, engajou - se nas legiões. Floronius Maurusius, portanto, podia se orgulhar de pertencer a uma família que há três gerações lutava pela defesa do Império. Como qualquer outro núbio, ele tinha o cabelo encarapinhado e a pele bem mais escura que a dos berberes da Mauretânia. Aos olhos romanos, era um “etíope”, palavr a que vem do grego aithíops, “cara queimada”. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 272).

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“outro”/estrangeiro, causa profundo mal-estar nas sociedades – ou em parte considerável dela – que se veem como herdeiras do mundo antigo. A questão da verossimilhança retorna com força ao debate. Não seria crível ter negros representando cidadãos romanos, ainda que seja aceitável que pareçam com o ator australiano Russel Crowe209.

3.2. Visões de Roma

Robert Harris

As opiniões sobre Roma Antiga dos autores de romance histórico aqui pesquisados, expressas dentro e fora da narrativa, , são bastante diversas. Robert Harris não poupa palavras ao falar sobre o que pensa de Roma e nem dos objetivos que tem com a série que escreveu. É fundamental para entender as representações feitas dentro de sua obra, a forma como ele vê o legado romano e a quem ele pertence. A história contada por Harris é a de uma república que, graças a apatia e cobiça de seus cidadãos, acabou sendo responsável por sua própria queda. Roma torna-se assim, ao mesmo tempo, modelo e alerta. O autor estabelece muito precisamente em que partes do passado romano estão uma e outra coisa. Apresentando o eterno paradoxo da ficção histórica, Harris afirma nas notas do autor que o livro se trata de um romance de ficção e não de história. E que, quando as duas divergiram, ele foi fiel à primeira e não à segunda. (HARRIS, Imperim, 2006). Ao mesmo tempo, o autor não cansa de repetir em diversos momentos, ao longo das entrevistas, que sempre quis se manter fiel ao passado e que não queria inventar coisas, se a realidade era mais interessante. (CLASSICSFORALL.ORG.UK, 2107). O autor Robert Harris afirma que sua intenção foi que algum jovem tivesse a sensação de que estava aprendendo algo sobre, como era o mundo (função didática do romance histórico?). Fica então a pergunta: sobre que passado é esse que Harris constrói sua narrativa? Para o autor, o legado romano é sobretudo político e é sobre esse aspecto que se faz necessário recontar o passado. Ele opõe sua narrativa à outras que seriam comuns nos romances históricos e afirma que, ao contrário delas, ele não está interessado em falar sobre escravos, gladiadores ou imperadores. O autor fala em sua entrevista sobre essa questão:

209 Russel Crowe ficou famoso por representar o general romano Maximus Decimus Meridius, da Hispânia, que se tornou gladiador no filme de mesmo nome dirigido por Ridley Scott e lançado em 2000.

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Queria estar dentro da máquina política, como se candidatar? Como os tribunais funcionavam? Diz que isso nunca havia sido feito antes. Escrevem sobre Calígula, mas não sobre a esfera Westwing que se tinha e que isso é bem mais interessante e RELEVANTE para o nosso tempo. (BBC.CO.UK, 2017, tempo: 48:00). Feita de forma um tanto condescendente, essa fala mostra o que Harris entende como digno de ser rememorado e o que para ele é dispensável210. Isso se torna mais claro, ao analisar como ele considera o sistema da República Romana. Para o autor: A República Romana foi incrível. De certo modo eles tinham uma democracia melhor que a nossa. Claro que ela tinha muitas falhas escravos e mulheres não podiam votar e os sistema era armado para privilegiar os ricos, mesmo assim foi um grande desenvolvimento, deve ter sido um espetáculo de se ver. (CLASSICSFORALL.ORG.UK, 2017, tempo: 43:40). Em outro momento, o autor também afirma que, o sistema de pesos e contrapesos e a divisão de autoridade romanos eram fantásticos, como “o acesso que pessoas comuns tinham aos seus líderes e que em alguns aspectos eles tinham uma democracia mais vibrante que a nossa”. (THEGUARDIAN.COM, 2018). Assim, para o autor, mulheres e escravos parecem não fazer parte do grupo que ele considera como “pessoas”. Quer dizer, um mundo feito somente por homens, brancos e socialmente privilegiados, onde não há espaço para nada além da política. Essa visão aparece em diversos momentos da narrativa, como quando Cícero define o que a República Romana significa para ele: I do not say that the younger Caesar is like the elder. But I do say that if we make him consul, and in effect give him control of all our forces, then we will betray the very principle for which we fight: the principle that drew me back to Rome when I was on the point of sailing to Greece—that the Roman Republic, with its division of powers, its annual free elections for every magistracy, its law courts and its juries, its balance between Senate and people, its liberty of speech and thought, is mankind’s noblest creation, and I would sooner lie choking in my own blood upon the ground than betray the principle on which all this stands—that is, first and last and always, the rule of law. (HARRIS, Dictator, 2015, p. 354).211

210 Ele despreza esse tipo de livro, como o da autora Kate Quinn, que considera como bobagem e vai repetir isso em outras entrevistas. (CLASSICSFORALL.ORG.UK, 2017, tempo: 4:00). 211 Não digo que o César mais jovem seja semelhante ao mais velho, mas digo que, se o tornarmos cônsul e lhe dermos efetivamente controle sobre todas as nossas forças, estaremos traindo o próprio princípio pelo qual lutamos: o princípio que me trouxe de volta para Roma quando eu estava prestes a zarpar para a Grécia: o de que a República Romana, com sua divisão de poderes, suas eleições anuais livres para cada magistratura, seus tribunais e seus júris, seu equilíbrio entre Senado e povo, sua liberdade de expressão e pensamento, é a mais nobre criação da humanidade, e eu preferiria jazer no chão sufocando em meu próprio sangue a trair o princípio sobre o qual tudo isso se ergue, que é, em primeiro e último lugar e sempre, o estado de direito. (HARRIS, Dictator, 2017).

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“Rome is not merely a matter of geography,” he would proclaim. “Rome is not defined by rivers, or mountains, or even seas; Rome is not a question of blood, or race, or religion; Rome is an ideal. Rome is the highest embodiment of liberty and law that mankind has yet achieved in the ten thousand years since our ancestors came down from those mountains and learned how to live as communities under the rule of law.” So if his listeners had the vote, he would conclude, they must be sure to use it on behalf of those who had not, for that was their fragment of civilization, their special gift, as precious as the secret of fire. (HARRIS, Imperium, 2006, p. 396).212 Quando olha para Roma, especialmente para seu sistema político e jurídico, Harris parece considerar que é algo bom e admirável a ser emulado. Os grupos que não se beneficiam desse sistema, ou estão excluídos dele – escravos, mulheres, pobres – são vistos como “danos colaterais” aceitáveis, de um sistema que em última instância é bom. Para Harris, o sistema romano é bom, racional e do império da lei. O problema é que na época de Cícero ele foi deturpado e se corrompeu, como no caso do projeto de distribuição de trigo para a população. Ao mesmo tempo, o autor omite eventos anteriores, como a ditadura de Sila e sua relação com os aristocratas, pois vai contra a ideia de que são os agitadores populistas os responsáveis pela decadência da república213. Ele usa também palavras do próprio Cícero, que reforçam a noção de que Roma personifica os ideais de liberdade em oposição ao resto do mundo: “Outras nações podem suportar a escravidão, mas a possessão mais valiosa do povo romano é a liberdade” (HARRIS, Dictator, 2015, p. 328)214. Dessa forma, as palavras de Cícero se tornam verdades absolutas sobre o passado e, assim, as relações que os leitores devem fazer são claras. Isso porque Harris deixa explícito quais são os motivos da relevância de sua obra ser maior naquele momento da entrevista (2018) do que quando foi escrito em 2006. O autor afirma que “sentia um desconforto quando diziam, nos anos 90, que os valores ocidentais iam triunfar, sabia que não era tão certo assim”. (THEGUARDIAN.COM, 2018). Ele não menciona quais seriam esses valores ocidentais, mas fica pressuposto que seriam os esposados por Cícero e que representariam a “essência”

212 – Roma não é meramente uma questão de geografia – ele proclamava. – Roma não se define por rios, ou por montanhas, ou mesmo por mares; Roma não é uma questão de sangue, ou de raça, ou de religião; Roma é um ideal. Roma é a representação mais elevada de liberdade e de justiça que a humanidade atingiu nos 10 mil anos desde que nossos ancestrais desceram dessas montanhas e aprenderam a viver em comunidades sob o império da lei. Portanto, se seus ouvintes tinham direito a voto ele concluía, deveriam tr atar de empregá-lo a serviço dos que não tinham, porque esse era seu fragmento de civilização, seu bem especial, precioso como o segredo do fogo. (HARRIS, Imperium, 2009, p. 322-323). 213 Como quando Cícero fala sobre César: For the first time we tasted life under a dictatorship: there were no freedoms anymore; no magistrates, no courts; one existed at the whim of the ruler. (HARRIS, Dictator, p. 2015). 214 O trecho acima é retirado das Filípicas de Cícero, uma série de discursos proferidos contra Marco Antônio entre os anos de 44 a.C e 43 a.C..

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da República Romana”. Dessa forma, os países ocidentais, entendidos aqui como europeus e os Estados Unidos, são os herdeiros legítimos desse legado e, como os romanos, também sofrem o perigo de perde-lo. Além disso, ao falar sobre as conquistas de César, o autor afirma que o general “conquistou a França e a Grã-Bretanha para o Ocidente, assim como a Inglaterra fez com os Estados Unidos”. (CLASSICSFORALL.ORG.UK, 2017, tempo:40:00). Fica marcada aqui a diferença já apontada no item sobre o Orientalismo, de como Harris tem uma visão positiva do imperialismo. No entanto, ele vê de duas formas a questão: os povos submetidos a ele, como os gauleses que podem vir a integrar o império romano e aqueles que não têm esperanças de integração, como os povos vindos do Oriente. Isso se repete, então, na modernidade. a Inglaterra, agora como representante desses valores, conquista os EUA para o Ocidente, que por sua vez vai continuar na missão “civilizadora”. Quanto àqueles que não podem ser integrados, – ou exterminados como a população indígena americana –, resta serem dominados e controlados para que não destruam as bases da civilização. Para o autor, essa é uma das vantagens de se escrever sobre o mundo antigo, “que nunca nos sentimos superiores a eles, ao contrário eles são superiores a nós em muitas coisas”. (CLASSICSFORALL.ORG.UK, 2017, tempo:14:58). Porém, em relação a qual passado o autor está se referindo? Inclusive ele é bastante condescendente ao falar de gladiadores e imperadores e, ao contrário, certamente não há reverência alguma em relação ao passado “oriental”. As formas com que essa ligação, entre passado romano e presente “Ocidental” vão se construindo, estão além das relações entre os sistemas políticos de um e de outro. A proximidade vai sendo costurada também nos pequenos detalhes, como a descrição do casamento de Túlia, filha de Cícero: I must confess that when Tullia was led down the stairs by her mother, all veiled and dressed in white, with her hair tied up and the sacred belt knotted around her waist, I cried myself [...] Frugi placed the ring on her finger and kissed her very tenderly. We ate the wedding cake and offered a portion to Jupiter. (HARRIS, Lustrum, 2009, p. 100).215 Exceto pela menção da oferta feita a Júpiter, não haveria diferença alguma entre o casamento romano e o tradicional casamento cristão moderno – vestido branco, anel e bolo de casamento. São esses pequenos detalhes que criam sensações de pertencimento e

215 Devo confessar que, quando Túlia foi conduzida escada abaixo pela mãe, toda velada e vestida de branco, o cabelo preso para cima e o cinto sagrado atado em volta da cintura, eu mesmo chorei [...] Frugi coloco o anel no dedo dela e a beijou delicadamente. Comemos o bolo de casamento e oferecemos um pedaço a Júpiter [...]. (HARRIS, Lustrum, 2010, p. 143-144).

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herança, afinal, gauleses não seriam descritos com esses costumes, menos ainda os persas ou qualquer outro povo. No entanto, o mais importante a ser destacado é como Robert Harris, dentre todos os autores analisados nessa tese, é o que maior presença tem entre entidades acadêmicas e fundações associadas ao estudo dos clássicos. Em 2007, o autor foi o presidente da Classical Association, uma sociedade científica britânica fundada em 1903, e que já teve como presidente classicistas como, Moses Finley (1973 - 1974) e atualmente Mary Beard (2018 - 2019). Essa referência é importante, pois confere legitimidade aos discursos produzidos por Harris em relação aos outros autores, que não encontram o mesmo respaldo. E isso está intrinsicamente ligado ao tipo de passado romano que estão recuperando, o qual fica perceptível ao analisarmos a obra Trilogia de Cícero e ao trabalho histórico feito por Harris em geral. Isso também aparece como algo dito pelo público na entrevista do World Book Club (BBC.CO.UK, 2017), ou seja, que é difícil distinguir a ficção/realidade do autor e de que a obra não é puramente histórica. Essa questão também é repetida nas resenhas feitas pelo público e inclusive entre aqueles que não gostaram do livro por ser “histórico demais”, como já citado anteriormente. Para além dos leitores, no evento promovido pela associação Classic for All216, o classicista Peter Jones217, moderador da sessão, também vai afirmar que tem a sensação de que a obra de Harris é acadêmica. Ao comparar as diversas percepções do público em relação às obras analisadas, nota-se que esse discurso histórico, que vê em Roma um passado glorioso, povoada por homens, brancos, heterossexuais da alta sociedade, ainda é dominante. A Roma de Harris, “cheia de templos, jardins e pórticos, com seu mármore branco novo reluzente ao sol” (HARRIS, Dictator, 2015, p. 2188), continua sendo palco do imaginário popular e contra o qual outras visões desse passado são julgadas e comparadas.

Steven Saylor

216 Classic for All é uma organização beneficente, fundada em 2011 que tem como objetivo dar apoio e financiar o estudo de latim, grego e da Antiguidade clássica. Eles dão suporte financeiro para o treinamento de professores na área e ajudam as escolas a adicionar disciplinas relacionadas aos estudos clássicos no currículo. Desde seu início a fundação já doou mais de um milhão de libras para setecentas escolas no Reino unido. (CLASSICSFORALL.ORG.UK. Disponível em: ). 217 Peter Jones foi professor da área de Clássicos na University of Newscastle e é autor de diversos livros sobre a Antiguidade clássica.

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Ao ser perguntado por que Roma Antiga faz tanto sucesso, Saylor responde com uma comparação e afirma que os romanos são “a elite, os Brad Pitts e Angelina Jolies do seu tempo”. (SAYLOR. Blood of antiquity, 2007), fazendo referência ao casal hollywoodiano que dominou as revistas de fofocas e mídias sociais da primeira década do século XXI. Para ele, é esse misto de curiosidade e fascínio, que o passado romano exerce nas pessoas do presente. A escolha de ter como protagonistas personagens criados pelo próprio autor, como Gordiano e sua família, servem como um “substituto” para os leitores. Saylor usa essas personagens para fazer críticas e comentários sobre as figuras históricas romanas, seus atos e costumes, sem precisar dar conta da participação destes nos eventos e seus posicionamentos, como acontece no caso de Cícero, na obra de Harris. Um exemplo é o de Meto, filho de Gordiano, que faz parte do exército de César, e é um de seus soldados devotos. Mesmo assim, em diversos momentos, ele questiona o que entende ser as atrocidades cometidas pelo general na Gália. (SAYLOR, Judgement of Caesar, 2004). Outro exemplo, já tratado na tese, é o de Catilina, em que Saylor questiona as próprias fontes latinas que tratam do assunto. Dessa forma, essas personagens funcionam como comentaristas dos hábitos e costumes romanos. Logo na abertura do primeiro livro da série, Saylor fará uma descrição da cidade de Roma. Ele aproveita a caminhada entre a casa de Gordiano até a casa de Cícero para familiarizar o leitor com a cidade antiga. No other city I know can match the sheer vitality of Rome at the hour just before midmorning. Rome wakes with a self-satisfied stretching of the limbs and a deep inhalation, stimulating the lungs, quickening the pulse. Rome wakes with a smile, roused from pleasant dreams, for every night Rome goes to sleep dreaming a dream of empire. In the morning Rome opens her eyes, ready to go about the business of making that dream come true in broad daylight. [...] Rome is happy to shake off sleep and begin her agenda for the day. Rome has work to do. Rome is an early riser. (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 17).218 A Roma apresentada por Saylor não está longe daquela Nova Iorque da música homônima de Frank Sinatra. Tal qual sua companheira americana, ela é uma metrópole que fervilha com energia, pronta para conquistar o mundo, é de fato a “cidade que nunca dorme”.

218 Não conheço nenhuma cidade capaz de competir com a absoluta vitalidade de Roma na hora que antecede o meio da manhã. Roma desperta espreguiçando-se, satisfeita consigo própria, e inspirando profundamente, a fim de estimular os pulmões e acelerar o pulso. Roma acorda com um sorriso, despertando de sonhos agradáveis, pois todas as noites Roma vai dormir sonhando com o império. Na manhã seguinte, Roma abre os olhos, pronta para se dedicar à tarefa de realizar esse sonho à luz do dia. [...] Roma gosta de sacudir o sono e de se dedicar às tarefas do dia. Roma levanta-se cedo. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 33).

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Desde o início, o autor enfatiza que Roma tem um sonho para o qual trabalha incessantemente: o do Império. No entanto, logo em seguida, o leitor vai descobrir que nem todos dividem igualmente esse sonho, ainda que a princípio pareça ser assim. The countryside falls into the grip of vast landholders. Small farmers struggle to compete, are defeated and dispossessed—they find their way to Rome. More and more I’ve seen it in my own lifetime, the gulf between the rich and poor, the smallness of the one, the vastness of the other. Rome is like a woman of fabulous wealth and beauty, draped in gold and festooned with jewels, her belly big with a fetus named Empire—and infested from head to foot by a million scampering lice.” (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 41).219 Saylor parece interessado em evidenciar as violências cotidianas geradas por um “império em expansão” e uma sociedade extremamente hierarquizada e desigual. Por meio de Gordiano, o autor traz a perspectiva do que seria tido como “normal” por essa sociedade, – e que pode causar estranheza aos leitores –, ao mesmo tempo em que faz um comentário crítico sobre essas práticas. A desigualdade social e o que ela acarreta são temas fundamentais para entender como a antiguidade romana é apresentada nessa série. Ao fazer essas distinções, o autor vai colocar em dúvida quais são os legados deixados por Roma e se realmente valem a pena serem recuperados. Ainda que reproduza uma imagem de uma sociedade caminhando para o desastre, sem ao menos perceber o caminho que estão tomando, da autodestruição, a conclusão que se chega é diferente daquela de Harris. Porém, o desastre que se abaterá sobre a República Romana não é de ordem moral, mas sim, econômico e social. Para Saylor, as disputas do final da república são resultado do embate entre uma aristocracia senatorial, que se recusa a dividir o poder e se torna cada vez mais rica, e uma plebe urbana que não aceita mais ficar fora do jogo. Dessa forma, o sistema político romano será mostrado de maneira um tanto cética, como o autor deixa claro ao descrever em detalhes o sistema eleitoral romano, em uma conversa entre Gordiano e seu filho Meto: And who votes?" "Every citizen but me, I suppose, since I gave it up years ago. Nothing will ever be changed in Rome by voting, because not all votes

219 Os campos vão parar às mãos dos grandes proprietários. Os pequenos agricultores esforçam-se por competir com eles, são derrotados e desapossessados emigram para Roma. Tenho visto alargar-se cada vez mais, nos anos que conto de vida, a distância entre ricos e pobres, o reduzido número de uns, a enorme quantidade dos outros. Roma é como uma mulher fabulosamente rica e bonita, vestida de ouro e adornada de jóias, com o ventre cheio de um feto chamado Império e infestada da cabeça até aos pés por um milhão de piolhos que se afadigam de um lado para o outro. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 69).

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are equal." "What do you mean?" [...] "The votes of a poor man count less than those of a rich one". (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 29).220 Ele enfatiza a desigualdade do sistema eleitoral, que dá muito poder aos ricos de classes abastadas e pouco aos cidadãos pobres e libertos. Ainda assim, esses cidadãos precisam ser cortejados e o são de todas as formas: “Por isso, os cidadãos comuns não são esquecidos; são bajulados, seduzidos, subornados e intimidados de todas as maneiras possíveis, legais e ilegais, desde promessas de favoritismo até corrupção pura e simples, com bandos à solta nas ruas espancando os apoiadores dos rivais”. (SAYLOR, 1993, Catilina’s riddle, p. 29-30). Dessa forma, vai se estabelecer um retrato bastante diferente daquele apresentado em Harris, como, por exemplo, na disputa para o consulado entre Cícero e Catilina. No caso de Saylor, Cícero é mais um disposto a tudo para chegar ao poder. Catilina surge aí não como um monstro, mas alguém que desagrada os interesses das classes conservadoras dominantes. A partir disso, o leitor é apresentado, não mais a uma disputa entre o bem e o mal, ou entre a civilização e a barbárie/tirania, mas entre duas ideias diferentes de Roma e dos caminhos que ela deveria percorrer. A mesmo tempo, o autor vai insistir na inutilidade do voto como meio de mudanças sociais: Eco stared at me sympathetically, for he knew me well enough to know how deeply revolted I was by the idea of immersing myself and my family in a sea of politicians […]. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 199).221 Saylor enfatiza a ideia de que a política é algo “sujo”, que cidadãos comuns, como Gordiano, estão alienados dela, pois não coadunam com tais práticas. Tanto que Gordiano desistiu de votar por convicção, porque “não adianta nada”, e só o faz quando seu filho mais novo insiste. Ainda assim, ele diz que votou em “Nemo”, quer dizer em ninguém, anulando seu voto. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 214). Uma visão de política completamente diferente daquela de Robert Harris. Para Saylor, o sistema político e eleitoral romano é armado para beneficiar a classe dominante, não representa a personificação da liberdade como visto na trilogia ciceroniana. Essa exclusão não é apenas mais um detalhe que não leva a maiores consequências, como na obra de Harris, ao contrário, está no cerne das contradições da sociedade romana. Por isso mesmo que Saylor,

220 E quem é que vota? Todos os cidadãos, excepto eu, que desisti de o fazer há anos. Nunca nada mudará em Roma através dos votos, porque os votos não são todos iguais. O que queres dizer? [...] Os votos dos pobres contam menos que os dos ricos disse eu. (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 59). 221 Eco olhava para mim com simpatia, porque me conhecia suficientemente bem para saber quão profundamente me desagradava a ideia de me ver imerso, juntamente com a minha família, num mar de políticos [...]. (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 345).

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por meio de Gordiano, define o dia das eleições na cidade como “testemunhar Roma no seu pior”. (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993. p. 208). A diferença social também está demarcada na própria geografia da cidade. Assim como os pequenos proprietários rurais estavam perdendo suas terras para grandes latifundiários, Roma também dava mostras da distância cada vez maior entre ricos e pobres. A tensão provocada por essa desigualdade é central para entender o conflito no seio da narrativa de Saylor. A Roma apresentada pela série Roma Sub Rosa não é estática, nem passiva, e o autor faz questão de deixar isso claro, por exemplo, ao falar da mudança social ocorrida no Palatino, que se tornou um bairro de ricos, ou também quando enfatiza a ditadura de Sila. At night, the Palatine is probably the safest neighborhood in Rome. When I was a boy, it was as mixed as any other neighborhood in the city, with rich and poor, patricians and plebeians all crowded together. Then Rome’s empire began its great expansion, and some families became not merely wealthy but phenomenally so, and it was the Palatine, with its proximity to the Forum and its elevation above the less wholesome airs of the Tiber and the cramped valleys, which became their neighborhood of choice. (SAYLOR, The Venus Throw, 1995, p. 39).222 The rare and beautiful things that wealth and power can buy are often only decorations to conceal the way that such wealth and power were attained. (SAYLOR, The Venus Throw, 1995, p. 106-107).223 O autor, nunca deixa de questionar sobre os custos – sejam eles políticos, sociais ou econômicos – necessários para a construção de um império como o romano ou para a riqueza acumulada por alguns deles. Novamente, a questão apresentada a respeito do fim da República Romana não é fruto da perda de valores ancestrais, mas por ser inerentemente desigual. Além disso, desde o início, Saylor enfatiza a violência, os feudos entre famílias aristocratas, deixando para trás a ideia de que o sistema romano fosse superior. Assim, o autor questiona esse sistema diversas vezes quando revela, na narrativa, o que seria visto de forma desabonadora para o público atual. Como no caso em que Gordiano afirma para Tiro como seria resolvida uma briga que ambos presenciaram nas ruas da Subura:

222 À noite, o Palatino é provavelmente o bairro mais seguro de Roma. Na minha infância, era tão misturado como qualquer outro bairro da cidade; aqui viviam, lado-a-lado, ricos e pobres, patrícios e plebeus. Depois, iniciou-se a grande expansão do império romano, e algumas famílias tornaram-se, não apenas abastadas, mas fenomenalmente ricas; o Palatino, dada a sua proximidade do Fórum e a sua distância dos ares menos higiénicos do Tibre e dos vales apertados, transformou-se no bairro de eleição para essas pessoas. (SAYLOR, O Lance de Venus, 2002, p. 77). 223 As coisas raras e belas que a riqueza e o poder podem comprar não passam, muitas vezes, de decorações que escondem o modo como essa riqueza e esse poder foram adquiridos. (SAYLOR, O Lance de Venus, 2002, p. 181).

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The interested parties will seek justice in the usual way: blood for blood. If they don’t care to take on the job themselves—though the stabbed man’s friends hardly look cowardly or squeamish to me—they’ll do what everyone else does, and hire one of the gangs to do it for them. The gang will find the assailant, or the assailant’s brother, and stab him in return; the new victim’s family will hire a rival gang to return the violence, and so on. That, Tiro, is Roman justice.” (SAYLOR, Roman Blood, 1991, p. 23).224 No segundo volume da série, Crasso afirma, de forma idêntica, que “essa é a justiça romana”, para justificar a execução de todos os escravos pertencentes a um senhor assassinado por um deles (SAYLOR, Arms of Nemesis, 1992), ou seja, são dois lados da mesma moeda. Dessa forma, Saylor propõe o entendimento de que essas coisas não são uma “perversão do sistema romano”, como aparece em Harris, mas exatamente como deveriam funcionar, ou seja, com a exclusão de todos esses grupos, que para o autor não são meros “danos colaterais” a serem desprezados. A série de Saylor, ao recontar as últimas décadas da república também está interessada em discutir as razões que a levaram a tal ponto. Não é o abandono dos valores do passado, mas a incapacidade e recusa da aristocracia e de seus apoiadores em aceitarem a mudança. Como nesse trecho, em que Gordiano e Cícero conversam após a derrota militar de Catilina. Cícero faz o discurso da meritocracia e é assim que o autor justifica a posição da personagem, que mesmo sendo um homem novo, apoia a aristocracia. “Change is the enemy of civilization, Gordianus. What is the point of innovation, when things are already in the hands of the Best People? What you might consider progress can only be decay and decadence." "But, Cicero, you're a New Man! You rose from an unknown family to become consul. You stand for change." "To be sure, a newcomer of outstanding gifts may sometimes rise to join the Best, just as a high-born patrician like Catilina may fall into ruin and disgrace. Such is the balance of the gods— ". (SAYLOR, Catilina’s Riddle, 1993, p. 417).225 Essa visão apresentada por Saylor corrobora com as inspirações historiográficas do autor para escrever sua obra. Uma delas é T.P. Wiseman, que ao olhar para o conflito do

224 As partes interessadas farão justiça à maneira habitual: sangue por sangue. Se não quiserem encarregar-se eles próprios disso embora os amigos do homem que foi esfaqueado me não parecessem propriamente cobardes ou escrupulosos, farão aquilo que toda a gente faz, que é contratar um bando para o fazer. O bando há-de descobrir o assassino, ou o irmão do assassino, e apunhalá-lo-á como vingança; a família da nova vítima contratará um bando rival para devolver a violência, e assim sucessivamente. E isto Tiro, é a justiça romana. (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 43). 225 A mudança é inimiga das civilizações, Gordiano. Para quê inovar, quando as coisas estão nas mãos dos Melhores? Aquilo que podes considerar progresso não passaria de retrocesso e decadência. Mas, Cícero, tu és um Homem Novo! Vens de uma família desconhecida e chegaste a cônsul. Tu representas a mudança. Certamente que um recém-chegado com talentos extraordinários pode ocasionalmente ascender e juntar-se aos Melhores, da mesma maneira que um patrício de nascimento como Catilina pode cair na ruína e na desgraça. Tal é o equilíbrio dos deuses... (SAYLOR, O Enigma de Catilina, 2000, p. 709).

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final da república, vai entender que o povo romano tinha uma ideologia política própria, coerente e que os optimates, com sua crença em assassinatos justificáveis, foram responsáveis pela desintegração da república nas guerras civis. (T.P. WISEMAN, 2009). Outra influência é do livro “The education of Julius Caesar” (1986), de Arthur Kahn, descrita pelo autor como uma visão radicalmente revisionista das intrigas políticas no final da república, visto da perspectiva de um cidadão-sobrevivente da república de McCarthy. (SAYLOR, Roman Blood, 1991). Isso também explica a ênfase que Saylor dá à ditadura de Sila, especialmente nos primeiros volumes da série, colocando os problemas da república como maiores e mais antigos do que apenas os que envolveram os membros da guerra civil entre César e Pompeu. E como essas questões são vistas como indo além de meras ambições pessoais, como o autor deixa claro ao final do primeiro volume da série: What matter that Glaucia—giant, lumbering, blood-mad Glaucia—was only a dwarf among giants compared to the Roscii? Or that the Roscii were only children in the lap of a man like Chrysogonus? Or that Chrysogonus was but a toy for Lucius Sulla? Or that Sulla was only an unraveled thread in the gold and blood red scheme that had been woven for centuries by families like the Metelli, who by their tireless plotting could rightfully claim to have made Rome everything it was today? [...] (SAYLOR, Roman Blood, 1992, p. 382).226 Outra questão importante que o autor apresenta em sua narrativa é sobre como o passado pode fascinar e sugestionar quem entra em contato com ele. Gordianus sempre se encanta e depois percebe que as coisas não são tão belas e misteriosas quanto parecem à primeira vista. Na sua estadia em Alexandria, o protagonista visita a tumba de Alexandre onde o corpo mumificado do rei macedônico estaria exposto para turistas visitarem. No entanto, em outro momento, em que Gordiano tem a oportunidade de ver Alexandre de perto, ele nota como essa proximidade faz com que se perceba os sinais de deterioração e, o que parecia glorioso de longe, não tem tanto brilho assim (SAYLOR, Judgement of Caesar, 2004, p. 93; p. 169). Parece fazer aí um paralelo com a própria história e ao espírito de nostalgia que se tem em relação a ela. De longe e à primeira vista tudo parece perfeito, mas ao se aproximar percebe-se que já se vê os sinais de putrefação. Esse é o alerta deixado

226 Que importava que Gláucia gigantesco, pesado, louco por sangue fosse apenas um anão entre gigantes, em comparação com os Róscios? Ou que os Róscios fossem apenas crianças no regaço de um homem como Crisógono? Ou que Crisógono fosse apenas um brinquedo nas mãos de Lúcio Sula? Ou seria Sula que era apenas um fio na teia de sangue, dourada e vermelha, que há séculos era tecida por famílias como os Metelos que, pelas suas conspirações incessantes, tinham razões para reclamar o crédito de ter feito de Roma aquilo que ela era hoje? (SAYLOR, Sangue Romano, 2002, p. 541).

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por Saylor: não se deslumbrar com o passado ou vê-lo como modelo e, para isso, é importante vê-lo de perto para não ser confundido por toda a notoriedade que o cerca.

Max Mallmann

Em um longo artigo para o The Guardian, o filósofo Kwame Appiah227 vai alegar que “não existe uma civilização ocidental”. Na verdade, Appiah está preocupado em fazer um histórico de como aquilo que se conhece e se entende por “civilização ocidental” não passa de uma invenção e, no caso, um tanto moderna. Para ele uma das confusões ao se falar sobre o Ocidente é saber exatamente quem faz parte dele: One reason for the confusions “western culture” spawns comes from confusions about the west. We have used the expression “the west” to do very different jobs. Rudyard Kipling, England’s poet of empire, wrote, “Oh, east is east and west is west, and never the twain shall meet”, contrasting Europe and Asia, but ignoring everywhere else. During the cold war, “the west” was one side of the iron curtain; “the east” its opposite and enemy. This usage, too, effectively disregarded most of the world. Often, in recent years, “the west” means the north Atlantic: Europe and her former colonies in North America. The opposite here is a non-western world in Africa, Asia and Latin America – now dubbed “the global south” – though many people in Latin America will claim a western inheritance, too. This way of talking notices the whole world, but lumps a whole lot of extremely different societies together, while delicately carving around Australians and New Zealanders and white South Africans, so that “western” here can look simply like a euphemism for white. (APPIAH, 2016, grifo nosso). Essa posição ambígua, da América Latina dentro do Ocidente, é fundamental como ponto de partida para compreender de onde o autor Max Mallmann está partindo e com quais discursos está lidando ao escrever sobre antiguidade romana. Isso fica claro pela observação feita pelo próprio autor nas notas do final do livro. Ao contrário dos outros três autores tratados na tese, Mallmann é o único que precisa ou sente que deve justificar sua escolha de tema. Bárbaro contemporâneo, cruzei o portão da Urbe não como quem invade, e sim como quem toma posse. A Roma Antiga não pertence apenas aos habitantes da Roma atual, ou aos italianos, ou aos europeus. Roma está na raiz mais funda da cultura de qualquer pessoa que tenha nascido no lado ocidental do mundo. A Roma mediterrânea de verões opressivos, de mosquitos e malária, a Roma latina, é uma herança que também é minha,

227 https://www.theguardian.com/world/2016/nov/09/western-civilisation-appiah-reith-lecture?fbclid=IwAR 3PbVTHNkhrNCozBV4rkn6VqzY3_E0Dzyck_J9_0Pv9Ifdq0mI0MelMeXM

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e hoje, com a voz e com as palavras que tenho, eu a reivindico. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 416). Porque ele, brasileiro, latino-americano está se aventurando a escrever sobre um passado que muitos dirão não pertencer a ele? Nesse caso, qualquer tentativa de falar sobre o assunto passa pela necessária defesa do autor como mais um dos herdeiros legítimos dessas sociedades. Isso expõe, de forma ainda melhor, como a ideia de Grécia e Roma antigas estão intrinsicamente ligadas à de Ocidente e que por si é representado por países como França, Inglaterra, EUA. Afinal, jamais passaria pela cabeça dos outros autores aqui pesquisados – Harris, Saylor ou Quinn – precisar justificar a razão de escreverem sobre um passado que nenhum deles e nem ninguém questiona pertencê-los. Por si só isso já acarreta diferenças ao se olhar para o passado, ao se falar de uma posição periférica. Isso se percebe em como a Roma de Mallmann surge na narrativa. Assim, a afirmação do autor, sobre qual Roma reivindica, faz eco na narrativa da personagem de Dolens, que de certa forma também faz sua reivindicação sobre Roma ao declarar que: Agora que estou aqui, nenhum aristocrata me expulsará. Mesmo sem esperança de vitória, lutarei, porque Roma não é o Senado nem o imperador. As vielas da Suburra, as tavernas fedorentas, as paredes grafitadas, as casas de jogo e os puteiros: Roma é isso. Roma sou eu. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 338). O autor sempre menciona estátuas e templos pintados, além de grafites de todos os tipos espalhados pela cidade. Como isso afeta ou informa a sua visão de Roma? A Roma de mármore branco e dos grandes oradores e políticos de Harris ou a de revolucionários como de Saylor não interessa a Mallmann, mas sim aquela “suja de senadores puxa-sacos, arrivistas e colorida bregamente”. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010). É também um lugar assolado por problemas urbanos, como incêndios, enchentes e terremotos. O mundo que vai surgindo é aquele de patronos e clientes, do “uma mão lava a outra” e não é tão diferente do congresso brasileiro, do baixo clero228. Troca de favores é como as coisas funcionavam em Roma. Do imperador, ou dos pretendentes a imperador, até aos escravos. A Roma de Mallmann é assolada pela corrupção e pelos interesses pessoais em todos os âmbitos. É assim que apoios são decididos e ações tomadas, um misto de medo de escolher o lado perdedor e vontade de se beneficiar com as trocas de poder. Nesse caso, crenças e ideologias não passam de verniz usados para esconder interesses pessoais. A disputa entre Galba e Nero é um bom exemplo de como o autor narra as ações dos personagens do livro.

228 Em entrevista para a TV senado autor e debatedor falam exatamente sobre o assunto, as similaridades entre Roma e Brasília. (TV SENADO CANAL YOUTUBE, 2014, tempo: 7:00).

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É por acaso, por erro ou por medo que a disputa entre os dois continua. Não é a guerra, ideais ou sentimentos nobres – e as vezes nem tão nobres – que guiam as ações dos homens. Movidos cada um por seus receios, um enviou ao outro mensagens propondo uma rendição honrosa. Tanto um quanto outro, ao ler as cartas do inimigo, julgou estar sendo atraído para alguma emboscada. Assim, graças não à força, mas à tibieza do caráter dos dois oponentes, a rebelião continuou. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 111). Nas outras séries, em geral, temos um maniqueísmo bom/mau, como no caso de Harris, ou, na melhor das instâncias, temos uma relativização ou recuperação de certos personagens históricos, como em Saylor. Já em Mallmann, não existe “lado certo”, nem bom, nem idealista, nem mesmo o do protagonista. Aliás, isso é parodiado na personagem de Nepos, aristocrata que escolheu “abdicar” das vantagens de classe para “começar de baixo” como soldado comum. Ele vive repetindo os ideais associados à república e à ideia de romanidade, mas sempre enfatizando seu caráter ideal e fora da realidade, ou seja, “para inglês ver”. Nepos não é uma pessoa melhor por esposar tais crenças, mas sim ingênuo, na melhor das situações, ou um hipócrita na pior delas, como visto no caso da sua relação com os escravos. Dessa forma, Mallmann questiona os ideais associados à Roma Antiga – também defendidos em textos antigos – e convida o leitor a pensar na relação desses ideais com a vida cotidiana. Quintus Trebellius Longinus, meu pai, jamais crucificou quem quer que fosse. Ele considerava o suplício da cruz um costume bárbaro copiado de povos do Oriente. Quando foi governador na ilha de Chipre, os escravos que cometiam crimes e os estrangeiros rebeldes eram poupados da cruz e jogados às feras. Meu pai alegava que as cruzes com cadáveres putrefatos enfeavam a paisagem; em contrapartida, a morte nas presas de uma fera, além de ser igualmente degradante, proporcionava um saudável divertimento à plebe. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 91). É interessante comparar esse trecho do livro de Mallmann, com a forma com que Harris trata da escravidão e das formas de punição romanas e sua relação com o conceito de civilização e barbárie. E como isso afeta a maneira com que se vê o passado romano e suas repercussões para a sociedade Ocidental atual. Para Harris, são questões “menores” e, ainda que sejam ruins, não maculam a sociedade que a praticava. Este é o oposto da forma com que trata os povos não romanos/gregos, que são definidos por essas práticas abomináveis e a irracionalidade advindas delas. Isso, em menor grau, também aparece em Saylor, no livro “The Judgment of Caesar” (O julgamento de César). Assim, ao contrário de Harris, Mallmann não acredita que há uma perversão dos ideais clássicos por grupos interessados em destruí-los e que o “perigo interno” é um aviso

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que os impérios ocidentais contemporâneos precisam ouvir para sobreviver. E o “perigo interno” visto pelos “donos do poder” romano e que precisa ser controlado são os cidadãos pobres e escravos – mas que também não são idealizados, ao contrário – para que o status quo injusto e desigual seja mantido. Isso fica claro na caracterização dos legionários, especialmente dos urbanicianus, dos quais Dolens faz parte: “— Meu rapaz, agora você é urbaniciano. Sua função não é mais enfrentar selvagens. É reprimir cidadãos desarmados. Tanto faz o escudo que você carrega”. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010 p. 39). Ele também enfatiza o caráter repressor das legiões que se encontram em Roma, que são descritos como funcionários públicos mal pagos, de uma burocracia gigante e incompetente, tentando sobreviver o dia a dia. Essa é só uma das diversas semelhanças que esses legionários terão com a polícia brasileira. Na perseguição a um grupo de cristãos, Dolens quer matar a todos que se encontram encurralados, porém Nepos se opõe, dizendo que foram até lá para prenderem inimigos da república e não matá-los. — Centurião — Nepos se aproxima —, quero registrar meu protesto. Viemos prender inimigos da República, não matá-los. — E seu desejo de vingança, optio, onde foi parar? — Meu desejo é por justiça. — Escreverei no relatório que eles resistiram à prisão. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 369). Essa é uma referência direta aos autos de resistência tão comuns no Brasil e que aproxima ainda mais a figura de Dolens e dos legionários à polícia militar brasileira. Do mesmo jeito que não há honra nas legiões e nem na guerra, sendo um misto de horror, sangue e destruição, também não há dignidade no senado e nos senadores. O trecho abaixo, apesar de longo, exemplifica muito bem a forma como Mallmann vai construir sua narrativa e a forma como escolhe representar o passado romano: — Concidadãos! — Aulus Vitellius alteia a voz, tentando superar a dissonante sinfonia de burburinhos da Cúria Júlia. — Patris familiae. Senadores! Os senadores, sem dar atenção ao orador da vez, continuam matraqueando. No pórtico da Cúria, verdureiros, filósofos, tapeceiros e juristas apregoam produtos e promessas. Vitellius pigarreia alto e encolhe o ventre, querendo mostrar que não se sente intimidado. — Nero, quando mal havia saído da infância, tornou-se nosso princeps — ele prossegue. — Terá praticado maldades? Foi injusto? Há quem diga que sim. Entretanto, é razoável exigir comedimento de alguém tão jovem? A sabedoria é fruto que amadurece devagar. E se Nero, quando vivia dominado pelos ímpetos da juventude, pôde exercer o poder sem que nenhum de nós o contestasse, permitiremos que o Império lhe seja arrebatado agora, que alcançou a maturidade? Nosso imperador tem trinta anos. Poderá conduzir a Urbe por mais tempo que o divino Augustus. E Galba? Caros senadores, Galba é um homem idoso. Seguramente provido, não irei negar, da moderação que acompanha a velhice. Ele não possui, no entanto, o mais remoto vínculo com a família dos césares. É esse o imperador que desejamos? Um

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imperador escolhido nas províncias? Há quem diga que sim. Posso entender os motivos, que são, até certo ponto, bastante razoáveis. A família de Galba figura entre as mais antigas e ilustres de Roma. O próprio Galba é um homem honrado, com muitos e valorosos serviços prestados ao Senado e ao povo. Por outro lado, se Galba pode se tornar imperador, por que qualquer um de nós não poderia? Um repolho podre se esborracha no peito de Vitellius. Os demais senadores riem até engasgar, enquanto Vitellius, atordoado, com o lábio inferior tremendo de indignação, tenta limpar as manchas na toga. — Quem foi? — ele grita, numa voz aflautada pelo ódio. — Quem foi o traidor da pátria? Neste dia tumultuado, três contubernii de legionários urbanicianos cuidam da segurança da Cúria Júlia. No comando, está Desiderius Dolens. — Devemos interferir? — Nepos pergunta, crispando a mão no cabo da bengala. — Sob qual alegação? — Dolens retruca. — Desperdício de hortaliças? O senador Cocceius Nerva, disfarçando o riso, se aproxima de Dolens. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 66-67). A Roma de Mallmann perde sua aura de imponência e ao mesmo tempo se dessacraliza o passado, tornando-o tão banal quanto a contemporaneidade. Claro que está relacionado ao estilo e tipo de história escolhido para ser contada, porém essa escolha já diz muito sobre como se vê o passado e especificamente o passado romano. Mesmo dentro de produções cômicas, como os quadrinhos de Asterix, criada pelos franceses Albert Uderzo e René Goscinny em 1959, a escolha de fazer uma “aldeia que não se rendeu e que resiste aos romanos” é bem diferente da realizada por Mallmann, por exemplo. Numa entrevista, quando perguntado sobre sua narrativa e se ela expressa uma realidade brasileira, o autor afirma que sim e como brasileiro, vivendo no presente, mas falando de uma outra cultura do passado, ele está sem dúvida falando do Brasil. Para além de frisar a influência do presente na construção do passado, Mallmann vai muito além dos outros autores aqui pesquisados, que também falam dessa influência. O brasileiro vai colocar de forma proposital passagens e referências que são facilmente anacrônicas e estão ali para serem assim percebidas. Segundo o autor, ele faz isso para “alertar aos amantes do verdadismo que O Centésimo em Roma, apesar de “baseado em fatos reais”, é ficção”. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010 p. 414). O autor afirma que existem várias maneiras de dialogar com as nossas heranças, “[...] podemos amá-la ou combatê-la. Podemos sofrê-la ou louvá-la. Podemos sublimá-la ou assumi-la". (MALLMANN, As Mil Mortes de César, 2014, p. 310). Ele, no entanto, escolhe não fazer nada disso, mas justamente colocar esses trechos, que ele chama de easter eggs e que fazem o leitor refletir sobre as relações que se estabelecem com o passado e a impossibilidade de recriá-lo da forma como aconteceram.

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Esses anacronismos propositais vão desde citações de frases ou músicas recentes229, até outras relações que levam a uma reflexão maior, como no caso em que coloca na boca de Vitélio a frase de Jarbas Passarinho ao assinar o AI-5: “Às favas todos os escrúpulos de consciência”230. (MALLMANN, As Mil Mortes de César, 2014, p. 321). As sucessões de imperadores, levadas a cabo por legionários e forças militares em momentos de profunda crise institucional, remetem aos inúmeros golpes, antigos e atuais, na legalidade do processo democrático no Brasil. Fica a angústia de Nepos, e do autor, de que “[...] o Senado e o povo são incapazes de resistir ao avanço de qualquer ditadura militar”. (MALLMANN, As Mil Mortes de César, 2014, p. 283). A escolha do ano dos quatro imperadores, como pano de fundo da história, também tem a ver com ser um momento conturbado da história romana: Em menos de dois anos, o destino de Roma e, por consequência, da civilização ocidental, foi definido por traições, homicídios, quarteladas e acasos. Qualquer incidente banal na Cúria Júlia ou palavra impensada dita no Forum mudariam a História do mundo. Esta é a época que escolhi para ambientar a Vita Dolentis. (MALLMANN, O Centésimo em Roma, 2010, p. 401). A ambientação também dá um senso de urgência à história, com uma sensação de fim de uma era e desconhecimento quanto ao futuro. O segundo volume da série se encerra com uma observação bastante “perturbadora”. Após a derrota de Vitélio, as guerras não param. As rebeliões nas províncias explodem e, segundo o autor, quase que Vespasiano vira um imperador sem império. Dolens é chamado para voltar ao exército e combater os rebeldes germanos. Abandonando a família e a filha bebê, sai no meio da noite para se juntar aos soldados e, então, faz uma observação: “Custa caro, muito caro ser romano”. (MALLMANN, As Mil Mortes de César, 2014, p. 304). Para além das glórias, dos grandes monumentos, das conquistas de terra e poder, a pergunta que o autor Max Mallmann deixa ao final é: Qual é o custo de tudo isso? O custo humano, emocional, familiar. Assim,

229 Por exemplo, o autor parodia o começo do “conto das duas cidades” de Dickens. Fazendo um paralelo com a chegada de Vitélio ao poder: Éo melhor dos tempos, o pior dos tempos; é a idade da razão, é o despertar da estupidez; é a época da fé e a da incredulidade; a temporada da Luz, a estação das Trevas; é a primavera da esperança, é o inverno do desespero. Temos tudo diante de nós; nada diante de nós. Estamos todos a caminho do Olimpo, ou todos na beira do Hades. Há os que dizem que vivemos a nova Era de Ouro, mas ninguém aferiu a pureza do metal que nos coube. Há um imperador de queixo pequeno e grande papada, que tem uma esposa insossa e um liberto de mãos macias a quem ele ama; houve um imperador de queixo empinado e baixa estatura, que amou a mulher de outro e se divertia com qualquer criatura que passasse perto. É o ano 822 da fundação de Roma. (MALLMANN, O Centésimo em Roma. 2014, p. 716) 230 Essa frase foi dita em 1968, em Brasília, durante a reunião ministerial convocada pelo ditador militar Costa e Silva para aprovar o Ato Institucional Nº 5. Jarbas Passarinho era na época ministro do trabalho e da previdência social.

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questiona esses valores no passado e antes de tudo os questiona também no presente e se pergunta se realmente valem a pena.

Kate Quinn

É um tanto complexo analisar a visão sobre Roma Antiga contida na série da autora Kate Quinn. Isso porque, a maior parte das coisas que parecem determinantes para se entender o passado romano nos outros autores, simplesmente não está presente nessa obra. Da mesma forma, a autora não parece estar preocupada em falar sobre esses temas nas entrevistas e conversas que concedeu a respeito da sua narrativa. Mais que isso, público e entrevistadores também não parecem estar interessados em abordar esses temas ao questionarem a autora, como nos casos vistos anteriormente. A motivação para isso já é por si só interessante. Então, sobre o que a autora, e seu público, e também seus interlocutores discutem ao tratar da obra de Quinn? Quando se pergunta o que Roma significa, geralmente a resposta está ligada a eventos e personagens, conceitos associados a deveres cívicos, conquistas, sistema político. E isso é o que em certos aspectos excluem, senão todas, a maior parte das mulheres. Nesse sentido, Quinn não fará grandes afirmações dentro ou fora da narrativa sobre Roma ou o significado de ser romano. A própria pergunta parte de uma premissa que exclui a narrativa contada nesses dois livros, mas é especialmente em “Daughters of Rome” (As Filhas de Roma) que a autora se concentra em contar a vida das suas quatro protagonistas. Mais uma vez, surge a questão do reducionismo. Narrativas que tratam de mulheres ficam classificadas como experiencias particulares e individuais, enquanto narrativas que têm homens como protagonistas são lidas e entendidas como experiencias universais, capazes inclusive de representarem uma era ou, como no caso aqui pesquisado, o fim dela. A autora Kate Quinn diz adorar reis e rainhas, mas o que mais a interessa são as pessoas que estão às margens do poder, aquelas que estão ao redor de um imperador no dia a dia. No entanto, os registros históricos oferecem somente alguns detalhes dessas pessoas e elas são pouco notadas. A autora afirma que encontrou diversas figuras como essas e que, apesar da história não dar muitos detalhes, tentou trazer à tona suas paixões e motivações para a narrativa. Nessa questão, ela e Robert Harris estão em lados diametralmente opostos. Assim, fica claro a preocupação da autora sobre quem ela escolhe falar ao olhar para o passado romano.

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Porém, se os grandes questionamentos sobre o significado do passado romano não estão presentes, o que pode ser encontrado ali? É curioso, que em uma entrevista com Robert Harris, é feita a comparação de sua obra com a série americana de drama político “The West Wing”. No caso de Quinn, também é feita uma comparação, mas, no seu caso, a série seria a “Sex and the City” (HBO, 1998-2004) romana. As comparações foram tantas, que a autora escreveu um artigo bem-humorado, fazendo paralelos entre as duas séries. Perhaps that is the real reason Daughters of Rome is reminiscent of “Sex and the City,” all jokes aside. In the end, women face many of the same problems whether they happen to live in modern day, New York or first century Rome. A girl who has gone through a divorce feels just as lousy about it whether the process involved a team of expensive lawyers (modern day), or just moving out of the house (ancient Rome). Both Roman women and modern women faced the agonizing choice of “adoption, abortion, or single motherhood?” when faced with an unwanted pregnancy. A passionate affair with the wrong man is just as confusing and heartbreaking whether the man in question is a married stockbroker with commitment issues, or (gasp) a slave. I guess the problems women face haven't changed so much over the millennia. (QUINN, 2011). Nesse caso, Roma não é sobre políticos ou ideais somente, mas sobre como a experiência feminina no passado romano e no presente são parecidas, independente de quem é imperador ou governante, ainda que isso indiretamente afete a vida dessas mulheres. Assim, a autora apresenta qual é sua motivação em escrever um livro com personagens femininas: I wanted to portray the women realistically, given their social status and upbringing - and upper class Roman women had a number of attitudes that aren't very PC to us today. An acceptance of slavery, for example, and of arranged marriages, and viewing those of lesser social status as lesser citizens. It might be unpalatable, but it's true to their time; I wanted to make them real and not just 21st century feminists dropped down into ancient Rome full of politically correct opinions. So at the beginning, Cornelia is a bit of a prig, and Lollia is a spoiled girl who sees no problem in buying a slave just to have sex with, and maybe you won't like them so much. But all four girls change over the course of the year; they have experiences that force them to re-evaluate the values they grew up with. I didn't like Cornelia very much at the beginning, but liked her by the end. Marcella was the opposite. (GOODREADS.COM, 2011). Dessa forma, a história narrada por Quinn não é só sobre ser vítima, mas sobre como, apesar disso, há escapatória, ainda que não se negue os sofrimentos. A tensão existente no cerne da história é representada por Marcela, como já discutido no item de gênero. É a eterna ambiguidade entre ser mulher e ser um agente histórico, sem perder sua identidade, seja em Roma seja em outros momentos.

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Considerações Finais O mundo em que essa tese começou a ser escrita é radicalmente diferente daquele em que ela está sendo concluída. O mesmo pode ser dito em relação ao estudo das sociedades greco-romanas, em especial no que se refere às formas de sua recepção. A história se tornou mais do que nunca parte central dos debates sobre democracia, identidade e justiça social, e, de fato, muitas vezes a história é o campo de batalha em que essas questões são popularmente debatidas. Quem deveria interpretar o passado e como ele deveria ser escrito e ensinado ainda são objeto de debates. Em um mundo que o conhecimento acadêmico perde espaço, uma disciplina como a história encontra desafios cada vez maiores. Nicola Terrenato vai dizer que “parece que todo passado é um país estrangeiro, exceto por Roma”. (KILLGROVE, 2019) Para ele está aí o princípio que faz com que tudo caminhe para o desastre. É a noção de que Roma antiga, de alguma forma, é como uma vizinha próxima. Isso é visto nas afirmações dos autores tratados nessa tese, ao afirmarem que, apesar da distância temporal ser enorme, nossa sociedade é muito mais herdeira da romana do que da medieval. O que se encontra na Antiguidade Romana que gera tantas questões de pertencimento e herança? A ideia de que Roma se encontra na origem da sociedade ocidental, além de ser vista como modelo. A ficção é uma das maneiras mais poderosas de se construir esse senso de pertencimento. Dentro dos estudos de recepção clássica, o que tem interessado e preocupado os pesquisadores recentemente é a força com que a utilização da Antiguidade por grupos de extrema direita (invariavelmente ligados ao de supremacia branca) têm ganhado nos últimos anos. Esse uso não é novidade, no entanto, as ideias que antes estavam restritas à alguns círculos voltaram a ganhar o mainstream e apresentam sua cara tanto na sociedade em geral quanto na academia. O interesse que grupos de supremacia branca, misóginos, antissemitas e xenófobos apresentam em relação ao passado greco-romano não é exclusividade dos Estados Unidos ou de países da Europa. Aqui, no Brasil, também pode ser visto seu uso como suporte para as bases político-ideológicas do novo governo. No discurso de posse do ministro de relações exteriores, Ernesto Araújo, ao lado das citações bíblicas, também feitas em grego, é a Antiguidade que aparece como legitimadora das visões do novo governo. Isso não é privilégio só do Brasil, em diversos outros países líderes usam de referências do passado grego e romano. O mesmo aparece na

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aula magna que proferiu aos alunos da Academia do Rio Branco, agora em 2019, e já eram parte de textos publicados pelo ministro antes de fazer parte da administração federal. O Ocidente não está baseado em valores, não está baseado em tolerância nem em democracia, está baseado em Platão, Aristóteles, César e Alexandre, São Paulo e Santo Agostinho, Washington e Jefferson, batalhas e milagres, paixões e guerras, a cruz e a espada. O Ocidente tem cara, nome e sangue. Ideais e valores sim, mas esses ideais e valores não estão nos panfletos da Comissão Europeia nem nas decisões de qualquer corte de direitos humanos, estão nas cicatrizes do passado, seus heróis e mártires". (FUNAG.GOV.BR, 2017). Ainda assim, esse é um passado em disputa. Como procurou-se mostrar aqui, as interpretações e usos do passado romano são diversos e variados. Esse passado não pertence somente a esses grupos reacionários. Se o passado romano, que é visto como origem da nossa civilização, é entendido como um lugar de homens, brancos, de certa classe social e isso é o ápice da civilização e algo a ser emulado, o que diz sobre a sociedade que queremos construir nos dias atuais? Até que ponto a história não dá ferramentas para que grupos extremistas, como os da supremacia branca, que ganha cada vez mais adeptos, usem para justificar seu ponto de vista e ideias? Qual a importância de obras historiográficas e ficcionais imaginarem um passado diferente, que rompa com essas narrativas tradicionais e excludentes? Esse é um passado em disputa e mais do que nunca seu significado também está sendo constantemente reinterpretado. Como o romance histórico, a literatura é um meio pelo qual grupos que estão à margem da sociedade podem reivindicar para si um passado do qual estão excluídos, seja na ficção, seja na história. Isso porque não há espaço, ou há muito pouco, para essas narrativas nos meios televisivos ou fílmicos. Ou seja, é mais fácil publicar um livro do que fazer uma série ou filme que fuja das normas consideradas aceitáveis. Por isso mesmo, narrativas como da autora Kate Quinn, focada na vida das mulheres, ou a representação de outras práticas sexuais como em Saylor, que encontram pouca ou nenhuma contrapartida nessas mídias, são importantes. Obras como de Mallmann são interessantes por apresentarem outras versões da antiguidade greco-romana, para além das referências anglo-saxãs e europeias, mais diversa, menos higienizada, que não precise funcionar necessariamente como modelo para o bem ou para o mal das sociedades do presente. A escolha das personagens surge, assim, como fundamental para determinar como o passado será entendido e representado. Sobre quem se escolhe falar, a partir de quem, a história de quem? Isso vale tanto para a ficção quanto para a historiografia. Refletir

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sobre estas escolhas e em como as fontes antigas são usadas é determinante para o tipo de narrativa e de discurso sobre Antiguidade Romana apresentado nessas ficções históricas. Assim, se elas forem tidas como apenas relatos “do que realmente aconteceu” se terá versões bem diferentes do que se forem vistas de forma crítica, como se tentou demonstrar ao longo da tese. Por exemplo, como no caso das representações dos eventos relacionados à Cícero e Catilina, em Harris e em Saylor. Claro que a escolha de como tratar as fontes já revela – e está relacionada – à forma como esses autores entendem ser o lugar da Antiguidade Romana na nossa sociedade e o que entendem ser a função da história. Como visto, o passado, e no caso Roma Antiga, é um lugar que fascinou e continua fascinando um número enorme de pessoas. A recepção dos textos, imagens e cultura material da Antiguidade romana inevitavelmente corre o risco de apropriar o passado com o intuito de autenticar o presente. Explorar as formas com que o passado clássico foi apropriado ao longo do tempo permite mapear os valores e identidades herdados e deserdados, antigos e novos, e assim tentar revelar os usos e abusos do passado clássico.

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