O real e o banal no cinema pernambucano contemporâneo Angela Prysthon Universidade Federal de [email protected]

Resumo:

Apresentaremos um breve histórico do cinema produzido no , desde o mítico Ciclo do Recife nos anos 20, passando pelo período vanguardista do Super 8 na década de 1970, pela retomada dos 90 e pela adesão ao mainstream do cinema brasileiro, para enfim chegarmos ao conjunto de filmes (tanto ficções, como documentários) realizados por duas produtoras de jovens cineastas, a Símio Filmes e a Trincheira. O objetivo é investigar como os modos de aproximação ao real e a rejeição tanto do regionalismo, como do ponto de vista alegorizante, moralista e/ou sentimental que de certo modo predominaram nas gerações anteriores, puseram em marcha um conjunto de banalidades, que, paradoxalmente, desafiou a própria noção do banal.

O real e o banal no cinema pernambucano contemporâneo

Talvez uma das chaves mais eficazes para compreender o cinema feito hoje no Recife, sobretudo aqueles filmes realizados por um grupo de cineastas que em sua maioria está chegando agora aos trinta anos, seja a ideia de sensibilidade do banal, sensibilidade esta que vem se tornando cada vez mais recorrente, não apenas no cinema latino-americano, mas no cinema mundial contemporâneo - mais especificamente o que se chamava Terceiro Cinema anteriormente e que talvez seja mais pertinente chamar de cinema periférico. Falar sobre os filmes do Recife do final da década de 2000 pressupõe uma entrada, ainda que breve, na historiografia do cinema da cidade, ou de modo mais amplo, o cinema feito no estado de Pernambuco. O cinema pernambucano vem ocupando um espaço bem relevante na história do cinema brasileiro desde os anos 20, quando foi estabelecido o chamado “Ciclo do Recife” – um dos ciclos regionais mais destacados do cinema silencioso no país e resultado de um esforço coletivo de cerca de 30 cineastas que, de 1923 a 1931, realizariam 13 longas- metragens (nomes como Edson Chagas, Gentil Roiz, Jota Soares e filmes como Retribuição , Jurando Vingar , Aitaré da Praia e A filha do advogado , talvez o mais conhecido desses filmes). O segundo desses ciclos (já na época do cinema sonoro, na segunda metade do século XX, depois de uma primeira metade muito complicada para o cinema da região – poucas películas, filmagens interrompidas) seria o ciclo do Super 8 na década de 1970, com nomes como Firmo Neto, Geneton Moraes Neto e Jomard Muniz de Brito desenvolvendo sobretudo em Recife um cinema alternativo e experimental. O Super 8 gerou cerca de 250 filmes (primordialmente documentários e filmes experimentais) e serviu para formar a geração posterior. Entre 1983 e 1988 foram produzidos quinze filmes (curtas e médias) em 16 e 35 mm, especialmente documentários sobre personagens e temas da região, quase todos financiados com dinheiro público (CONCINE e Embrafilme). Mas foi nos anos 80 que a geração que se consolidaria uma década depois como o establishment do cinema de Pernambuco (os que ficaram conhecidos no resto do país) começou a produzir curtas: Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Cláudio Assis, entre outros. A década de 90 significou, portanto, a inserção mais enfática do cinema de Pernambuco no mainstream cinematográfico brasileiro, sobretudo a partir do filme Baile perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira,1996), primeiro longa-metragem produzido no estado desde a década de 70, desde O palavrão (Cleto Mergulhão, 1972). Baile perfumado marcou em Pernambuco o que se chamou de “Cinema da retomada”, ou seja, a reconstrução da produção cinematográfica brasileira depois do período de enormes dificuldades entre o final dos 80 e início dos 90. Além de restabelecer a indústria do cinema, a “retomada” também significou o reconhecimento da produção de outras regiões que não o Sudeste, os filmes que vinham de fora do “eixo Rio-São Paulo”. Essa emergência de uma filmografia periférica estava associada também a uma afirmação regionalista, mais evidente até na música popular, como no caso do manguebeat.1 No caso de Pernambuco, é importante sublinhar a ênfase regionalista de grande parte dos realizadores que começaram nos 80 e 90: de “O Baile Perfumado” de Paulo Caldas e Lírio Ferreira; passando por Amarelo Manga de Cláudio Assis (2003);

1Manguebeat (ou Manguebit, como preferiam seus fundadores) foi um movimento musical do Recife dos anos 90, com grande influência em outras esferas da cultura como moda, design gráfico e audiovisual. Árido movie (2005) de Lírio Ferreira e Cinema, aspirina e urubus (2006). Tal ênfase regionalista estava conjugada de modo geral a outro traço estético, um naturalismo que tendia ao grotesco, especialmente nas obras de Cláudio Assis e Lírio Ferreira. Sem deixar de ser realista, o cinema mainstream de Pernambuco buscou afirmar uma espécie de sotaque fílmico (Nacify, 2001) através da caricatura, através do estranhamento, através do excesso de caráter local. E é justamente a este localismo folclórico, a este excesso grotesco e caricatural do Nordeste, o elogio do popular “histérico” e até certo ponto da vulgaridade ou ao realismo “vernacular” 2 que de certo modo se contrapõe a sensibilidade do banal apresentada pela nova geração (e também por alguns cineastas da geração anterior que tentam matizar o regionalismo, ainda que operando claramente dentro de suas fronteiras – caso de Paulo Caldas em “Deserto Feliz” e, principalmente, Marcelo Gomes que junto a Karim Ainouz fez “Viajo porque preciso, volto porque te amo”). A produção de jovens cineastas (a maioria não chegou aos trinta anos) abordada aqui (Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro, Daniel Bandeira, Marcelo Lordello e Leonardo Lacca) tenta, ainda que não deixando de apresentar características e temas regionais, romper com o regionalismo da geração anterior, afastando-se do “sertão”, abandonando as conexões com o manguebeat e evitando o road movie (que de certa maneira predominaram nas produções dos anos 90 e da primeira metade dos 2000). Nos filmes deste grupo (e aqui me refiro principalmente às produtoras Símio Filmes e Trincheira Filmes) predominam os documentários e mesmo nas incursões ficcionais há uma inclinação realista. Esta nova geração do Recife adveio da universidade, a maioria deles formada em cursos de comunicação na Universidade Federal de Pernambuco. É o caso de Marcelo Lordello, da Trincheira Filmes, que iniciou sua carreira de diretor com o curta- metragem Garotas de ponto de venda (2007) (FIG.1), que aborda o universo das promotoras de vendas em supermercados do Recife. O filme sutilmente inscreve sua crítica aos contornos mais perversos (e nonsense) do capitalismo transnacional, sendo simultaneamente irônico e delicado, respeitoso e irreverente:

Lordello enfrenta um desafio: tornar personagem um indivíduo que parece apagado pelo

2 “A arte vernacular, não acadêmica, é produzido informalmente por indivíduos que não se reconhecem como artistas, e tem um papel muito importante na estética Manguebeat. Podem ser considerados elementos da estética vernacular os bordados e adereços dos figurinos do maracatu, as padronagens de sacola de feiras, as xilogravuras dos cordéis, etc” (Fonseca, 2005: 30). discurso da marca para a qual trabalha. Olhares distraídos, pés que demonstram impaciência, o momento em que a cabeça voa entre um cliente e outro - o cineasta soube nos oferecer a sensação de que, por trás da fala automatizada da empresa que elas não se cansam de reproduzir, há um sujeito particular, trabalhando e tentando tocar sua vida para frente (Callou, 2008).

FIGs. 1, 2 e 3 Lordello viria a aprofundar o rechaço ao regionalismo e esboçar de modo mais contundente essa poética do banal com outro curta (FIG.2), Nº 27 (2008), desta vez uma ficção sobre um garoto que se tranca no banheiro da escola depois de um ataque de dor de barriga. Através de planos de rigorosa elegância e atuações desafetadas dos adolescentes (quiçá deixando entrever inspirações bressonianas), Nº 27 apresenta um acidente do cotidiano que se converte em catástrofe, mostrando o próprio universo do banal como território do horror. No seu primeiro longa-metragem (FIG.3), Vigias (2010), o diretor retoma o documentário e a intenção de registrar as transformações do capitalismo no Recife, ao acompanhar a jornada noturna de sete vigilantes de edifícios de classe média da cidade da sua chegada ao trabalho até a sua saída. Em Vigias , Lordello amplia suas preocupações com os detalhes do cotidiano, com os tempos estendidos e alongados do real, com as minúcias desimportantes da gente comum, frisando de um lado a aversão à caricatura e ao barroquismo que predominavam no cinema do Nordeste até a primeira metade da década de 2000 e uma adesão aos ventos minimalistas que sopravam desde a década de 90, sobretudo no cinema asiático e latino- americano. Também da Trincheira Filmes, Leo Lacca dirigiu em 2008 o curta-metragem de ficção Décimo Segundo (FIGS. 4 e 5), sobre um rapaz que visita uma amiga (ou ex-namorada, não se sabe ao certo) num apartamento do 12º andar. Esta lhe prepara um café. Neste filme, os efeitos de desdramatização e gestos automáticos servem para construir uma espécie de estrutura que vai dar evidência a cada elemento dos planos do filme. Interessam fortemente a Lacca os longos planos- sequência, a visibilidade total do mínimo.

FIGs. 4 e 5 Um dos exemplos de ficção mais dissonantes, contudo, do cinema feito em Pernambuco– tanto por ser uma espécie de comédia screwball, como pelo pendor para o nonsense do cotidiano – desse nosso recorte recifense seja o longa Amigos de risco (2008), de Daniel Bandeira (FIGs 6 e 7), realizador ligado à Símio Filmes. Um After Hours (Martin Scorsese, 1985) de baixíssimo orçamento ou um Rapado (Martin Rejtman, 1992) mais acelerado, o filme mostra as surpresas da vida ordinária, os sustos do cotidiano, o humor melancólico da urbanidade periférica a partir das desventuras de dois amigos de classe média baixa na noite recifense ao se depararem com um terceiro amigo trambiqueiro. Ainda que trazendo à tona cor local (com os sotaques, os subúrbios e viadutos de Recife, a trilha sonora “típica”) e se alinhando a certa tradição da representação da violência do cinema brasileiro, parece almejar o universalismo da banalidade e o apelo do comum.

FIGs. 6 e 7 Dois outros diretores da Símio Filmes, Marcelo Pedroso e Gabriel Mascaro também parecem encampar o projeto de comentário sobre o Brasil contemporâneo a partir do cotidiano, embora tenham modos diversos de abordá-lo. Realizaram juntos, por exemplo, o documentário de longa-metragem KFZ 1348 (2008) (FIG.8), no qual, a partir de um fusca encontrado num ferro-velho do Recife, mostram a busca por todos os seus oito donos, desde o empresário de São Paulo que o comprou primeiro em 1965 até o dono do ferro-velho, percorrendo várias cidades do país. Pela própria natureza do seu dispositivo e pela sucessão de personagens e situações, o filme não é propriamente minimalista como os outros exemplos mencionados acima, contudo aponta para a mesma sensibilidade do corriqueiro exibida pelos exemplos anteriores, delineia uma leveza de tom sem ostentações desnecessárias ou uma retórica excessiva e adere a um discurso historiográfico alternativo.

FIGs. 8 e 9 Marcelo Pedroso dirigiu sozinho outros documentários, entre eles o média-metragem Balsa (2009) (FIG. 9), a filmagem de um dia numa balsa que leva passageiros e carros de dois pontos distintos do litoral de Alagoas. Incorporando o ritmo do trajeto, o filme se aproxima da lentidão observacional de um cineasta como o chinês Jia Zhang-Ke ou como o argentino Lisandro Alonso deixando irromper um estado de apatia, essa sorte de deriva que no caso de Balsa literalmente “deixa-se balançar por vagas quaisquer” (Barthes, 2003, 375). Entretanto, incursão mais inquietante no universo do banal de Pedroso foi o longa Pacific (2009) (FIG. 10), documentário que reúne footage feito por passageiros de um cruzeiro de classe média a Fernando de Noronha. O filme engendra narrativas a partir do material pré-existente, um material composto por kitsch, sentimentalismo, constrangimento e excesso. Depende completamente de imagens alheias (seu diretor sequer estava no cruzeiro, as imagens foram obtidas por assistentes ao fim da viagem) que primam pela precariedade e pelo clichê amadorístico, porém uma vez reunidas ganham um contorno estranho e também melancólico, parecem mostrar o avesso do banal dentro da própria banalidade.

FIGs. 10 e 11 Para finalizar, temos um exemplo híbrido: Avenida Brasilia Formosa (2010) (FIG. 11), de Gabriel Mascaro, longa-metragem sobre as transformações de uma comunidade pobre da periferia do Recife chamada Brasilia Teimosa. Na primeira metade dos anos 2000, foi construída no bairro uma avenida (a do título), uma construção que acabou significando o ápice de uma intervenção urbana que deslocou seus moradores para um conjunto habitacional em outro subúrbio da cidade. Aludindo direta e insistentemente a algumas formas usuais de espetáculo: reality shows, novelas, música brega, música evangélica, Mascaro construiu uma ficção com os moradores do bairro e sobrepôs os registros documentais destes personagens com momentos nos quais eles atuavam e repetiam diálogos escritos pela equipe de roteiristas. Beatriz Sarlo (2005) fala de uma proliferação de histórias da vida cotidiana, pela multiplicação das memórias individuais, o que ela chama de “virada subjetiva”, especialmente no discurso acadêmico que, inclusive, ampliaria o interesse do público geral por esse discurso. Esse argumento pode ser estendido ao cinema, no qual “histórias mínimas” parecem curiosa e paradoxalmente refletir uma espécie de ressaca da espetacularização da cultura. Nos últimos anos, sobretudo nos festivais mais alternativos, é possível detectar por um lado um cansaço, certo esgotamento das estratégias fílmicas do minimalismo expressivo da década de 2000 (representado em grande parte pelo cinema argentino e oriental). Muitos dos cineastas já se estabeleceram, mais do que isso, foram decretados passés em alguns circuitos da crítica e dos festivais (o caso mais emblemático provavelmente é a recepção majoritariamente negativa do último filme de Lucrecia Martel, La mujer sin cabeza [2008]). A própria discussão sobre o cotidiano, sobre o real e suas apropriações no cinema, tanto o de ficção, como o documentário, dá a impressão de uma superexposição, de um esgarçamento pelo excesso de uso. Por outro, e os filmes do Recife o demonstram exemplarmente, a sensibilidade do banal ainda se constitui como uma sorte de resistência, de embate. Então, parece-nos profundamente necessário avaliar quais os impactos dessa estética de modo mais contundente. Principalmente tendo em conta a última geração que tem assumido e assimilado a influência desses cineastas se não propriamente como precursores, certamente como renovadores desse fascínio com o ordinário a ponto de transformá-lo, da recusa (e muitas vezes a problematização) ao espetáculo mesmo que tematizando-o (como é o caso Marcelo Pedroso com os shows toscos do Pacific ou de Mascaro com a aspirante ao Big Brother e a inescapável trilha sonora brega de Avenida Brasília Formosa ), do elogio às margens e ao obscuro, do desafio à vulgaridade muitas vezes a partir da própria vulgaridade, e, especialmente, do retorno ao âmago do banal para atravessar de modo crítico e original os estereótipos da humanidade.

Bibliografia

Barthes, Roland (2003), O neutro . São Paulo: Martins Fontes. Callou, Hermano (s. d.), “De fato 2 (descrições)”, Disponível em http://www.janeladecinema.com.br/edicoes_anteriores/2008/janelacritica/2008/11/de-fato-2- descries_18.html (acessado em 08 de março de 2011). Jameson, Fredric (1995), As marcas do visível, : Graal. Nacify, Hamid (2001), An Accented Cinema. Exilic and Diasporic Filmmaking. Princeton: Princeton University Press.