PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Katrin Riato Silva

PERFORMATIVIDADE E CINEMA CONTEMPORÂNEO: PROCEDIMENTOS NAS EXTREMIDADES EM GABRIEL MASCARO

Mestrado em Comunicação e Semiótica

São Paulo 2020

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Katrin Riato Silva

PERFORMATIVIDADE E CINEMA CONTEMPORÂNEO: PROCEDIMENTOS NAS EXTREMIDADES EM GABRIEL MASCARO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação Social e Semiótica, área de concentração Signo e Significação nos Processos Comunicacionais, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Christine Pires Nelson de Mello.

São Paulo 2020

Ficha Catalográfica Sistema para a geração automática de Ficha Catalográfica de Teses e Dissertações com dados fornecidos pelo autor

Katrin Riato Silva

Performatividade e cinema contemporâneo: procedimentos nas extremidades em Gabriel Mascaro

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação Social e Semiótica, área de concentração Signo e Significação nos Processos Comunicacionais.

Aprovada em: _/ / _

BANCA EXAMINADORA

______Prof.ª Dr.ª Christine Pires Nelson de Mello – Orientadora

______

Prof.ª Dr.ª Ana Goldenstein Carvalhaes

______

Prof. Dr. Marcelo Vieira Prioste

O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

This study was financed in part by the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Aos meus pais, Sonia e Jadir, pelo amor incondicional; à minha irmã, Räissa, e ao meu sobrinho, Arthur, pelo amor à vida.

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Sonia e Jadir, pelo incentivo, compreensão e amor incondiconal durante o caminho da pesquisa. À minha irmã, Räissa, por demonstrar que a mudança é sempre possível. Ao meu sobrinho Arthur, pelo amor puro e brincadeiras da vida.

À minha orientadora, Christine Mello, pela sensibilidade, compreensão, estímulo e humildade; por me ensinar que a pesquisa e a arte ainda vivem em nosso país.

A todos os professores, mestres e conselheiros que compartilharam comigo todo o conhecimento e me deram auxílio durante minha jornada de pesquisa. Vocês me inspiram.

Aos meus amigos do colégio, da graduação e os que conheci na PUC-SP, que acompanharam todos os momentos desta pesquisa e me deram força e confiança para continuar, acreditando sempre que eu tinha algo a dizer.

Aos meus alunos. Vocês me ensinam mais do que imaginam, e são minha força para continuar.

A todos os pesquisadores, autores, artistas e diretores que, por meio de suas obras, contribuíram para este estudo.

Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), pela bolsa de estudos e auxílio financeiro. Que este órgão permaneça presente pela importância em promover e realizar estudos sobre o desenvolvimento científico e tecnológico, assim como a formação de pesquisadores no Brasil.

A Victor Cherpinski Rocha (in memoriam), meu amigo da vida toda. Amante das artes, da literatura e do cinema. Meu confidente. Saudades não cabem no que sinto. Há muito de você nessas páginas. Há muito de nós. Dedico a você este estudo.

Desaprender oito horas por dia ensina os princípios. [...] As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul – que nem uma criança que você olha de ave.

(Manoel de Barros, Uma didática da invenção)

In memoriam Victor Cherpinski Rocha

RESUMO

RIATO, Katrin. Performatividade e cinema contemporâneo: procedimentos nas extremidades em Gabriel Mascaro. 2020. 120 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020.

Esta dissertação busca produzir uma reflexão sobre a performatividade dos sujeitos e da imagem, por meio do estudo do cinema brasileiro contemporâneo. O corpus da pesquisa é o filme Avenida Brasília Formosa, do diretor e artista visual Gabriel Mascaro (, PE, 1983). Para isso, articula uma análise a partir do cinema em e dos atravessamentos de novas configurações de produção a partir do fenômeno da brodagem e da produção em rede. Também aborda a performatividade dos sujeitos diante das câmeras através do conceito de persona performática, a convocação do corpo e afetividades no audiovisual, a biopolítica do cotidiano e a produção pós-colonialista como ruptura de narrativa única no cinema. Diante disso, esta pesquisa busca compreender em que medida os processos estéticos do filme estudado posicionam o cinema hoje; os tensionamentos do cinema com outras linguagens nessa obra; e quais procedimentos do filme sinalizam uma constituição do sujeito contemporâneo e suas performatividades. A estrutura teórica tem um caráter interdisciplinar, já que se trata de uma leitura que se localiza nos tensionamentos do cinema com outras linguagens e com fenômenos que desestabilizam a forma cinema, como a presença da linguagem da videoperformance, hibridizações entre imagem amadora e profissional e o modo colaborativo de produção caracterizado pelo fenômeno da brodagem. Em um primeiro momento, busca-se compreender a política audiovisual em Recife e as redes colaborativas a partir de Amanda Custódio Nogueira; as relações micropolíticas e o cotidiano a partir de Michel de Certeau e Tarcisio Torres Silva; o contexto do cinema pós-industrial e do capitalismo imaterial e cognitivo nas análises de Cezar Migliorin, Jean-Louis Comolli, Maurizio Lazzarato, Ilana Feldman e Vladimir Safatle; e o posicionamento pós-colonialista no plano simbólico a partir de Moacir dos Anjos, Suely Rolnik e o movimento manguebeat. Em um segundo momento, aborda os diversos atravessamentos e hibridizações da obra através dos vetores de desconstrução, contaminação e compartilhamento da abordagem das extremidades de Christine Mello, em que se compreende uma subversão do regime de imersão na sala de cinema, hibridizações do cinema com a performance, videoperformance, reality show, rede e linguagem gráfica do videogame e a dissolução da hierarquia nos processos de produção no cinema; e a constituição da presença por meio do conceito de tempo real de Arlindo Machado. Por fim, há a aproximação entre performance e cinema, analisando a construção da persona performática através de Ana Goldenstein Carvalhaes e Renato Cohen; as leituras da performance como centro da produção audiovisual a partir de André Brasil; a ideia de fabulação de Gilles Deleuze; e uma trajetória da performance no cinema.

Palavras-chave: Performatividade. Cinema contemporâneo. Cinema em Pernambuco. Brodagem. Gabriel Mascaro. Abordagem das extremidades.

ABSTRACT

RIATO, Katrin (2009). Contemporary Performance and Cinema: Procedures at the ends in Gabriel Mascaro. 2020. 120 p. Dissertation (Master) – Graduate Studies Program in Communication and Semiotics from the Pontifical Catholic University of São Paulo, São Paulo, 2020.

This dissertation seeks to produce a reflection on the performativity of the subjects and the image, through the study of contemporary Brazilian cinema. The corpus of the research is the film Avenida Brasília Formosa, by the director and visual artist Gabriel Mascaro (Recife, PE, 1983). It also addresses the performativity of the subjects before the cameras through the concept of performative persona, the convocation of the body and affections in the audiovisual, the biopolitics of everyday life and the post-colonialist production as a rupture of a unique narrative in cinema. the tensions of cinema with other languages in this work; and which procedures of the film signal a constitution of the contemporary subject and its performances. The theoretical structure has an interdisciplinary character, since it is a reading that is located in the tensions of cinema with other languages and with phenomena that destabilize the cinema form, such as the presence o f the language of video performance, hybridizations between amateur and professional image and the collaborative mode of production characterized by the phenomenon of budding. At first, we seek to understand audiovisual policy in Recife and collaborative networks from Amanda Custódio Nogueira; micropolitical relations and daily life from Michel de Certeau and Tarcisio Torres Silva; the context of post- industrial cinema and immaterial and cognitive capitalism in the analyses of Cezar Migliorin, Jean-Louis Comolli, Maurizio Lazzarato, Ilana Feldman and Vladimir Safatle; and the post-colonialist positioning on the symbolic plane from Moacir dos Anjos, Suely Rolnik and the manguebeat movement. In a second moment, it approaches the various crossings and hybridizations of the work through the vectors of deconstruction, contamination and sharing of Christine Mello's approach to the ends, which comprises a subversion of the immersion regime in the cinema room, hybridizations of cinema with performance, video performance, reality show, network and graphic language of the video game and the dissolution of the hierarchy in the production processes in the cinema; and the constitution of the presence through the real-time concept of Arlindo Machado. Finally, there is the approximation between performance and cinema, analyzing the construction of the performative persona through Ana Goldenstein Carvalhaes and Renato Cohen; readings of performance as a center of audiovisual production from André Brasil; the idea of fabulation of Gilles Deleuze; and a trajectory of film performance.

Keywords: Performativity. Contemporary cinema. Cinema in Pernambuco. Brodagem. Gabriel Mascaro. Approach from the ends.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Frame de Avenida Brasília Formosa, do diretor Gabriel Mascaro, objeto selecionado para esta pesquisa ...... 17 Figura 2 – Cartaz oficial da obra Avenida Brasília Formosa...... 20 Figura 3 – Lista de Festivais em que a obra foi exibida...... 22 Figura 4 – Foto de Gabriel Mascaro...... 23 Figura 5 – Conjunto das obras de Gabriel Mascaro...... 24 Figura 6 – Bandeira-poema Seja Marginal, Seja Herói de Hélio Oiticica, 1968...... 32 Figura 7 – Frame de Avenida Brasília Formosa, do diretor Gabriel Mascaro, objeto selecionado para esta pesquisa...... 34 Figura 8 – Escultura e monumento ao manguebeat Carne da minha perna, localizado na Rua da Aurora, em Recife. Uma obra coletiva, realizada em 2004 e 2005, por quatro artistas: Augusto Ferrer, Eddy Polo, Jorge Alberto Barbosa e Lúcia Padilha. O caranguejo é tido como símbolo do movimento...... 37 Figura 9 – Frame de A Filha do Advogado, direção de Jota Soares (1926) ... 41 Figura 10- Frame de Retribuição, direção de Gentil Roiz (1923) ...... 41 Figura 11 – Frames de A Górdona Doméstica, direção de Osman Godoy (1972), obra que explorava os espaços entre ficção e experimentação...... 42 Figura 12 – Frames de A Górdona Doméstica, direção de Osman Godoy (1972), obra que explorava os espaços entre ficção e experimentação...... 42 Figura 13 – Baile Perfumado de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1997) ...... 44 Figura 14 – Cartaz Árido Movie...... 44 Figura 15 – Cartaz O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas...... 44 Figura 16 – Cartaz Amarelo manga...... 44 Figura 17 – Cartaz Viajo porque preciso, volto porque te amo...... 44 Figura 18 – Artigo O Novo Cinema de Pernambuco na Revista Ciência e Cultura ...... 46 Figura 19 – Pôsteres da Janela Internacional de Cinema (Edições X e VIII).....48 Figura 20 – Brasília Teimosa – 1975 ...... 50

Figura 21 – Frame em que o participante Fábio assiste à chegada de Lula pelo seu VHS...... 51 Figura 22 – Frame da imagem da câmera de vídeo a que o participante Fábio está assistindo ...... 51 Figura 23 – Capa da revista Time, com Mark Zuckerberg desctacado como Pessoa do Ano em 2010...... 52 Figura 24 – Frame de Avenida Brasília Formosa, do diretor Gabriel Mascaro, objeto selecionado para esta pesquisa ...... 62 Figura 25 – Frame do participante Cauã...... 64 Figura 26 – Frame do participante Fábio...... 64 Figura 27 – Frame do participante Pirambu...... 64 Figura 28 – Frame da participante Débora...... 64 Figura 29 – Frame do vídeo da festa de Cauã feito por Fábio com sua câmera amadora...... 68 Figura 30 – Frame da imagem profissional mostrando o momento em que o participante Fábio está gravando a festa de Cauã...... 69 Figura 31 – Frame do vídeo do aniversário de Cauã editado com um software da época ...... 69 Figura 32 – Frame de Débora conversando com outra participante ...... 71 Figura 33 – Frame de Débora interagindo com outras participantes ...... 71 Figura 34 – Frame do filme Amor, Plástico e Barulho (Renata Pinheiro, 2013) na praia de Brasília Teimosa ...... 72 Figura 35 – Frame do filme Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016), mostrando prédios que atravessam a comunidade de Brasília Formosa ...... 72 Figura 36 – Frame de Débora em meio à paisagem da comunidade...... 73 Figura 37 – Frame que mostra a verticalização da orla lado a lado com a horizontalidade da comunidade...... 74 Figura 38 – Frame da imagem amadora da câmera do participante Fábio, que grava a participante Débora para sua inscrição no reality show Big Brother Brasil (BBB)...... 75 Figura 39 – Frame que mostra uma imagem gráfica de videogame com o nome do participante Fábio escrito...... 77 Figura 40 – Frame de As Aventuras de Paulo Bruscky (Gabriel Mascaro, 2010)...... 77

Figura 41 – Videoperformance Registros (Paulo Buscky, 1979) ...... 79 Figura 42 – Frame de Cauã brincando na orla da Avenida...... 81 Figura 43 – Frame do participante Pirambu tecendo a rede de pesca...... 82 Figura 44 – Frame de Avenida Brasília Formosa, do diretor Gabriel Mascaro, objeto selecionado para esta pesquisa...... 84 Figura 45 – Lygia Clark fazendo a obra Caminhando (1963). Fonte: MoMA.....88 Figura 46 – Fênice, de Vera Holtz (2020). Fonte: Instagram...... 89 Figura 47 – Fênice, de Vera Holtz (2020). Fonte: Instagram...... 89 Figura 48 – Fênice, de Vera Holtz (2020). Fonte: Instagram...... 89 Figura 49 – Frame de Fábio como faxineiro...... 93 Figura 50 – Frame de Fábio como videógrafo...... 93 Figura 51 – Frame de Fábio como garçom...... 94 Figura 52 – Frame de Fábio como bailarino...... 94 Figura 53 – Frame de Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004) ...... 99 Figura 54 – Frame de Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004) ...... 99 Figura 55 – Frame de Eu, um negro, de Jean Rouch...... 106 Figura 56 – Frame de Avenida Brasília Formosa, do artista Gabriel Mascaro, objeto selecionado para esta pesquisa...... 109

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 17

CAPÍTULO 1 CINEMA CONTEMPORÂNEO...... 34 1.1 Cinema Contemporâneo: Experiências a partir de Avenida Brasília Formosa...... 39 1.2 Contexto Histórico: O Novo Cinema em Pernambuco e seus Ciclos...... 41 1.2.1 Ciclo de Recife...... 41 1.2.2 Movimento Super-8...... 42 1.2.3 Retomada do Cinema em Pernambuco...... 43 1.2.4 Novo Cinema de Pernambuco...... 45 1.3 Política de Audiovisual em Recife...... 46 1.4 Contexto Social: O Bairro de Brasília Teimosa ...... 49 1.5 Contexto Estético: Esferas da Performatividade...... 53 1.5.1 Relações Micropolíticas e uma Estética do Cotidiano...... 54 1.5.2 Cinema Industrial e Cinema Pós-industrial ...... 56 1.5.3 Redes Colaborativas e o Fenômeno da Brodagem...... 59

CAPÍTULO 2 GABRIEL MASCARO ENTRE LINGUAGENS...... 63 2.1 Avenida Brasília Formosa...... 63 2.2 A Contaminação das Linguagens...... 66 2.2.1 Análise dos Processos em Torno da Obra...... 68

2.2.2 A Sequência da Festa de Aniversário de Cauã ...... 68 2.3 A Produção de Presença...... 70 2.4 A Verticalização de uma Comunidade...... 71 2.5 Micronarrativas de Si – O Real em Jogo...... 74 2.6 Jogo Entre Linguagens...... 76 2.7 Ecos da Videoarte, Performance e Videoperformance...... 77

CAPÍTULO 3 PERFORMANCE COMO PROCEDIMENTO NAS EXTREMIDADES DO CINEMA CONTEMPORÂNEO...... 84 3.1 A Arte da Performance...... 86 3.2 Videoperformance...... 88 3.3 Performances e Performatividades...... 90 3.4 Personas Performáticas...... 91 3.5 Ritual...... 102 3.6 Sujeitos Performáticos, Vida Performática...... 103 3.7 Exemplos da Performance na História do Cinema...... 105 3.8 Performatividade em Outras Obras Contemporâneas...... 107

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 109

REFERÊNCIAS...... 113

ANEXO...... 120

17

INTRODUÇÃO

Figura 1: Frame1 de Avenida Brasília Formosa, do diretor Gabriel Mascaro2, objeto selecionado para esta pesquisa.

1 Frame: quadro ou imagem fixa de um filme ou vídeo. 2 Gabriel Mascaro (Recife, 24 de setembro de 1983) é cineasta e artista visual brasileiro. 18

INTRODUÇÃO

A realidade contemporânea cíbrida3 vem passando diversas transformações no que tange à arte, cultura e comunicação. O processo de produção de linguagem está ampliando conceitos, e dentro dessa realidade há a necessidade de compreender novos formatos e hibridizações que estão em andamento.

A popularização dos dispositivos portáteis de comunicação sem fio com possibilidade de conexão à internet e a implantação de hotspots que permitem acesso à rede via ondas de rádio (Wi-Fi, wireless fidelity) apontam para a incorporação do padrão de vida nômade e indicam que o corpo humano se transforma, rapidamente, em um conjunto de extensões ligadas a um mundo cíbrido, pautado pela interconexão de redes e sistemas on e off- line. (BEIGUELMAN, 2005, p. 176)

O surgimento de novas plataformas digitais, as redes sociais e a vida acontecendo off-line e on-line sincronicamente criam necessidades, formas de vida e estrutura social engendradas em conexionismos, processos colaborativos, compartilhamentos, novas presenças, o real time e a construção de uma rede agenciadora de experiências compartilhadas. Dentro desse contexto, o cinema é atravessado por essas diversas novas formas, criando outras perspectivas e olhares sobre o que pode ser chamado de cinema contemporâneo. Nesse sentido, o presente estudo busca compreender a produção audiovisual contemporânea, levando em conta um alargamento dos regimes de produção de imagem, que vão além da representação e pulsam presença. Essa produção contemporânea parece basear-se, acima de tudo, no encontro, em modos de estar no mundo, compartilhamento de experiências, ocupações de espaços e mobilizações de forças coletivas. Assim como afirma Bourriaud4, as práticas artísticas no contemporâneo se estabelecem nas relações humanas, e não mais entre homem e objeto, ou homem e transcendência:

Essa história [da arte], hoje, parece ter tomado um novo rumo: depois do campo das relações entre Humanidade e divindade, a seguir entre Humanidade e objeto, a prática artística agora se concentra na esfera das relações inter-humanas, como provam as experiências em curso desde o começo dos anos 1990. (BOURRIAUD, 2009, p. 39-40)

3 O cibridismo é um conceito cunhado pelo arquiteto norte-americano Peter Anders que designa a fusão entre espaços reais e virtuais. 4 Nicolas Bourriaud (Niort, 13 de abril de 1965 ) é curador, historiador e crítico de arte especializado em arte contemporânea . Foi diretor da École Nationale Supérieure des Pretendientes-Artes. 19

Nesse cenário de transformação social e artística, cabe a este estudo pensar: Como esse novo contexto afeta a produção de cinema contemporâneo? Como esses atravessamentos podem ser localizados na imagem produzida pelas novas produções? Quais são os efeitos dessa imagem no espectador? Pretende-se aqui olhar o cinema em sua extremidade, assim como Christine Mello5 o fez em seu livro Extremidades do vídeo, partindo de uma análise que compreende o cinema não por seus elementos específicos ou por sua natureza, mas sim pelo modo como ele é apropriado pela estética contemporânea.

No século XXI, o vídeo é apresentado em suas extremidades como uma trajetória inacabada, em movimento, como vértice criativo de variadas práticas. A visão das extremidades implica analisar menos as especificidades do vídeo como linguagem e mais os modos como a estética contemporânea dele se apropria. (MELLO, 2008, p. 25)

Portanto, a análise aqui apresentada vê o cinema pelas ampliações que este pode gerar, por suas contribuições e modos que ressoa no campo artístico, semiótico – na direção de uma cartografia disforme (MELLO, 2008, p. 26). O cinema, portanto, é visto como um movimento, um gesto de descontinuidade de si próprio, buscando outras interações, novas relações e conexões. O objeto desta pesquisa é o filme Avenida Brasília Formosa, do artista pernambucano Gabriel Mascaro, que teve lançamento em 2010. Como objeto empírico, foram selecionadas sequências do filme, com o intuito de demonstrar a hibridização de linguagens na obra de Gabriel Mascaro, identificando a natureza impura dessas imagens, feitas a partir do vídeo, linguagem gráfica do videogame, alusão à linguagem do reality show6, imagens amadoras e imagens profissionais, que estarão presentes nas análises desenvolvidas no capítulo 2. O

5 Christine Mello (, RJ, 1966) é crítica, curadora e pesquisadora, autora de Extremidades do vídeo (Senac, 2008), coautora de Tékhne (MAB, 2010) e organizadora e autora do livro Extremidades: experimentos críticos (2017). É pós-doutora em Artes pela ECA-USP, doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professora da PUC-SP e da FAAP, em São Paulo. É coordenadora do Grupo de Pesquisa Extremidades: redes audiovisuais, cinema, performance e arte contemporânea, e coordenadora editorial da Coleção Extremidades (editora Estação das Letras e Cores). Como crítica de arte e curadora, trabalhou na Bienal de São Paulo, Videobrasil, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia (Madri), Itaú Cultural, Laboratório Arte Alameda (Cidade do México), Paço das Artes, Sesc São Paulo, entre outros. 6 Reality show ou Reality television é um gênero de programa televisivo originalmente criado nos EUA, baseado na realidade, em que participam cidadãos comuns, e que foca no cotidiano de um grupo de pessoas pré-selecionadas que convivem juntas durante um determinado período e espaço. 20

capítulo 1, que o precede, debruça-se sobre os contextos histórico, social e estético que estão por trás dessa produção. Outro aspecto do objeto, analisado no capítulo 3, é a relação dos sujeitos filmados com a presença da câmera e a performatividade identificada nessa construção entre indivíduo e câmera. Dessa maneira, busca-se uma articulação entre a arte da performance com o cinema e o sujeito contemporâneo.

A obra

O longa-metragem Avenida Brasília Formosa aborda questões acerca do bairro de Brasília Teimosa, situado na zona sul de Recife, capital de Pernambuco. Com a cidade como pano de fundo, o filme articula questões sobre a especulação imobiliária7, fenômeno decorrente de uma grande intervenção urbana em 2004, que resultou na construção de uma avenida à beira-mar.

Figura 2: Cartaz oficial da obra Avenida Brasília Formosa.

7 Especulação imobiliária consiste na formação de estoques de bens imóveis na expectativa de que seu valor de mercado aumente futuramente. A especulação imobiliária aposta na obtenção de maiores lucros no futuro, presumindo que haja uma elevação dos preços dos imóveis. 21

O jogo de construção do filme se baseia em uma invenção compartilhada a partir da construção de conexões entre moradores de Brasília Teimosa, utilizando a Avenida como ponto de encontro. Como escrito no cartaz do filme: “uma via de encontros e desejos”. A obra foi veiculada em diversos festivais, assim como através de streaming8. Isso a caracteriza como um ponto de virada em termos de distribuição digital e difusão de dados, pois, em 2010, esta forma de distribuição digital, que possibilita a ampliação da fruição audiovisual, ainda estava no início de sua popularização e encontrando seu lugar na cultura. Isso a posiciona metodologicamente em um espaço de análise em que é possível observar essas mudanças na multiplicidade em que a obra foi divulgada e consumida. O filme foi distribuído pelo diretor na plataforma YouTube9e pela Vitrine Filmes na plataforma Vimeo10. O filme também participou de festivais nacionais e internacionais, como os notáveis Mostra de Cinema de Tiradentes (MG)11 e Festival Internacional de Cinema de Roterdã (Holanda).12

8 Streaming é uma forma de distribuição digital, em oposição ao download de dados. 9 YouTube é uma plataforma de compartilhamento de vídeos com sede em San Bruno, Califórnia. 10 Vimeo é um site de compartilhamento de vídeo, no qual os usuários podem fazer upload, partilhar e ver vídeos. O Vimeo não permite vídeos comerciais. 11 A Mostra de Cinema de Tiradentes é um festival cinematográfico que acontece anualmente na cidade histórica de Tiradentes, MG. O evento é realizado desde 1997 com patrocínio de empresas públicas e privadas através das leis federal e estadual de incentivo à cultura. Com o objetivo de incentivar e difundir o cinema brasileiro, é aberta a possibilidade de qualquer produção nacional se inscrever para a seleção. 12 Festival Internacional de Cinema de Roterdã é um festival de cinema realizado anualmente em vários cinemas em Roterdã, Países Baixos, no final de janeiro. É um dos cinco maiores festivais de filmes da Europa, ao lado de Cannes, Veneza, Berlim, e Locarno. É um festival aberto para filmes de diversos países. Os filmes são exibidos sem trailer ou propaganda. 22

Figura 3: Lista de Festivais em que a obra foi exibida.

O percurso artístico de Gabriel Mascaro

Gabriel Mascaro (1983, Recife) é artista e cineasta. Vive e trabalha em Recife, Brasil. Formou-se em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco e realizou seu primeiro documentário como diretor em 2008, codirigido por Marcelo Pedroso, chamado KFZ-1348”. De acordo com a biografia em seu site:

Seu trabalho se caracteriza pela leitura crítica do contemporâneo e investiga relações entre micropolítica e cotidianidade a partir de diferentes mídias como filme, instalação e fotografia. Pesquisa narrativas minimalistas e autoficções. Enquanto processo, se vale de re-apropriação narrativa e jogos de inversão de perspectiva.13

Seus trabalhos foram projetados e exibidos em festivais e exposições como o Berlinale, Sundance, Locarno, Toronto, La Biennale di Venezia – Orizzonti, IDFA, Rotterdam, Bienal de São Paulo, Oberhausen, Videobrasil, MACBA – Museu de Arte Contemporânea de Barcelona e o MoMA. Mascaro participou das residências artísticas do Videobrasil no Videoformes (FRA) e no Wexner Center for Arts (EUA).

13 Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2020. 23

Como roteirista, foi premiado pelo Hubert Bals Fund (Holanda) e Cinereach (EUA). Em 2015, foi indicado para o Prêmio PIPA. Seus filmes ganharam mais de 50 prêmios internacionais e, em abril de 2016, teve uma retrospectiva no , em Nova York.

Figura 4: Foto de Gabriel Mascaro.

Sua produção audiovisual é muito heterogênea e conta com a produção de híbridos: Avenida Brasília Formosa (2010), A Onda Traz, O Vento Leva (2012); documentário: KFZ-1348 (2008), Um Lugar Ao Sol (2009), Doméstica (2012); Instalações: Sonho de Deriva (2013), Meu Tempo Livre (2013), Não é Sobre Sapatos (2014); série fotográfica: Desamar (2015); animação: As Aventuras de Paulo Bruscky (2010); e ficção: Ventos de Agosto (2014), Boi Neon (2015) e Divino Amor (2019). 24

Figura 5: Conjunto das obras de Gabriel Mascaro.

Um dos aspectos analisados do corpus, levando em conta a abordagem das extremidades, é a confluência das linguagens, que se encontram em situação de constante tensionamento na obra. Sendo assim, a obra cinematográfica está dentro do território das linguagens híbridas, demonstrando esse processo de intersecção no cinema. O filme também exprime como esses afetos são produzidos através da interação dos indivíduos perante a câmera; como essa relação entre câmera e sujeito é primordial para entender como os corpos filmados performam no filme. Como Christine Mello expressa no capítulo “Corpo e vídeo em tempo real: a videoperfomance”, “Na medida em que não existe a interatividade com o público, 25

com a audiência ou com o outro, a interatividade do corpo do artista é produzida no enfrentamento com a própria câmera de vídeo”. (MELLO, 2008, p. 144) Considerando que esta pesquisa busca produzir uma reflexão sobre a performatividade dos sujeitos e da imagem através do estudo do cinema brasileiro contemporâneo e os procedimentos nas extremidades no cinema, o problema proposto pela presente investigação pode ser expresso nas seguintes perguntas: • Em que medida os processos estéticos do filme Avenida Brasília Formosa posicionam o cinema hoje? • Como observar os tensionamentos do cinema com outras linguagens nessa obra? • Quais procedimentos do filme indicam e sinalizam uma constituição do sujeito contemporâneo? • Quais procedimentos performáticos essa obra suscita?

Justificativa

Para os estudos acadêmicos e investigações científicas no campo da comunicação, do cinema, da semiótica e das novas linguagens audiovisuais, esta pesquisa é relevante, na medida em que busca compreender um cinema que leva em conta os processos de hibridização das linguagens e da performance. A performance se expandiu da arte para o social e, dessa forma, analisar os aspectos performativos de uma obra ou imagem é também analisar a realidade social. O artista e o pensador da comunicação devem se posicionar diante de uma sociedade atravessada pela ubiquidade tecnomidiática14, em que as tecnologias atravessam e constituem o corpo, a política, a economia, a cultura e as sensorialidades individuais e coletivas. A obra aqui analisada contém em seu modo de produção e na rede que cria uma série de problematizações de ordem social, o que permite revelar contradições e tensionar incoerências, capacidades estas que estão no bojo da arte. Um cinema não narrativo vai contra a imersão de corpos e mentes, convocando o espectador a criar e pensar juntamente com os realizadores, como participante da

14 O termo, advindo de Mark Weiser na década de 1990, refere-se à presença direta e constante da informática e tecnologia no dia a dia das pessoas. 26

obra. Dentro do atual contexto da democracia no Brasil15, a convocação do corpo e da consciência para pensar por meio do cinema é uma reafirmação da liberdade de pensamento e artística. A presente dissertação também é uma contribuição para a área de cinema, por criar um processo de exploração artístico e científico fora dos usuais axiomas cinematográficos, de forma a levar em conta os processos de hibridização e de performatividade, conteúdos estes que ainda se encontram nas extremidades da pesquisa em cinema. Esta investigação busca produzir uma reflexão crítica sobre os regimes de presença e procedimentos performáticos no cinema contemporâneo, tendo como corpus a análise do filme Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro.

Para isso, foram estabelecidos alguns objetivos: • Identificar o processo de construção das personas performáticas a partir dos participantes do filme e como estas elaboram seus afetos e subjetividades na presença da câmera. • Detectar a construção do filme como processo e sua convergência com a performance nos aspectos de arte processual e work in progress16, o que promove uma abertura para o erro e o descontrole e permite o encontro e a possibilidade do cotidiano como acontecimento. • Compreender o conceito de rede através do fenômeno da brodagem17, dentro e fora do filme. • Interpretar os contextos estético e social do filme e como eles posicionam o cinema contemporâneo. • Investigar como o hibridismo das mídias e plataformas digitais ressignificam o cinema e a relação do sujeito com as tecnologias. Esses objetivos e a contextualização do cenário em que o filme foi produzido e o que ele reverbera criam algumas hipóteses que esta pesquisa tenta compreender, como:

15 Esta pesquisa foi realizada durante o governo do presidente da República Jair Bolsonaro. 16 Termo que significa trabalho em processo. Para Renato Cohen, “Instaurando outras aproximações com a recepção do fenômeno e com os processos de criação e representação, o procedimento Work In Progress alcança a característica de linguagem determinando a relação única de processo/produto”. (COHEN, 1998, p. 45) 17 Constituição de grupos de cineastas em Pernambuco que operam em um modo colaborativo de produção conhecido localmente como brodagem. (NOGUEIRA, 2014) 27

• O atual movimento do cinema contemporâneo engloba, em grande parte, um posicionamento performático, baseado em encontros, presenças e conexionismos interpessoais. • A ação performática nas artes e no cinema reflete o comportamento do indivíduo contemporâneo, que performa diante dos aparatos tecnológicos e das câmeras. • O cinema contemporâneo apresenta uma configuração horizontal de produção, abarcando as formas de coletivos, produtoras independentes e projetos colaborativos.

Estado da arte

Algumas pesquisas e obras foram utilizadas como pontos nodais para estabelecer o estado da arte. As abordagens aqui eleitas – o cinema contemporâneo e os fenômenos acerca da produção em Pernambuco – foram as que mais contribuíram para o estudo do objeto desta investigação. Para o panorama do Cinema em Pernambuco, a tese de doutorado A brodagem no cinema em Pernambuco, de Amanda Mansur Custódio Nogueira (2014) da Universidade Federal de Pernambuco, foi bem relevante. Essa dissertação objetivou elaborar uma história do cinema em Pernambuco a partir da constituição de grupos de cineastas que se organizaram de modo colaborativo para a produção local, prática conhecida como brodagem. Um autor referência para a presente dissertação foi o professor e pesquisador Cezar Migliorin, organizador do livro Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje (2010) e autor do ensaio “Por um cinema pós-industrial: notas para um debate”

(2011). Migliorin coloca o documentário contemporâneo em um lugar de indefinição e multiplicidade ao trazer para o referido livro diversos autores e pesquisadores com bases teóricas e abordagens distintas sobre a atual produção contemporânea, construindo, assim, uma análise ampla e diversa. Já em seu ensaio, Migliorin traça um panorama da produção contemporânea em contraponto com os realizadores vinculados à tradição do cinema moderno, apontando para o fato de que a sociedade pós-industrial constrói um cinema pós-industrial, no sentido em que as relações produtivas não são mais verticais e materiais, e sim horizontais, colaborativas, 28

cognitivas e imateriais. Desse modo, faz uma análise de como a economia e o capitalismo cognitivo afetam a produção cultural e artística no contemporâneo. Outro artigo de extrema relevância e importância para esta pesquisa foi “Formas do antecampo: performatividade no documentário brasileiro contemporâneo” (2013), de André Brasil, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais. Nele, Brasil parte do regime performativo das imagens para analisar a exposição do antecampo como um traço de performatividade em alguns filmes documentais brasileiros contemporâneos, como Pacific (Marcelo Pedroso, 2009), Os dias com ele (Maria Clara Escobar, 2012) e Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012). O artigo de André Brasil escrito juntamente com Cláudia Mesquita, “O meio bebeu o fim, como o mata-borrão bebe a tinta: notas sobre O céu sobre os ombros e Avenida Brasília Formosa”, foi de extremo valor para o desenvolvimento da ideia de rede dentro e fora da produção fílmica na obra de Mascaro. Os autores convocam a concepção de rede em seu duplo sentido: a rede do filme (produção, organização da equipe) e os efeitos do filme como rede, como fio conector de encontros entre os moradores de Brasília Teimosa.

Como bem apontou Migliorin (2010), o filme compõe, por polinização, uma rede de relações e circulações que guardam em comum o terreno disperso, mas denso, do cotidiano. A noção de rede poderia ser convocada aqui em seu duplo sentido: de um lado, a “rede” do filme (sua escritura) pesca, recolhe eventos e situações cotidianas, dos mais “robustos” aos mais “miúdos”, dos pregnantes de sentido aos insignificantes. De outro, ela articula e conecta, por vizinhança, personagens, eventos e situações, sem submetê-los a uma ordem narrativa coesa, mas produzindo interseções, encontros fortuitos, vínculos precários. (BRASIL; MESQUITA, 2012, p. 10)

A dissertação de mestrado Da entrevista à observação da ação: uma tendência realista-fabular no cinema brasileiro pós-2010 (2019), de Daniel R. Feix, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) com quem pude dialogar pessoalmente no congresso SOCINE 2019, foi esclarecedora e confirmou algumas tendências e mudanças dentro do cinema, que também eram vistas por outros pesquisadores, dando estrutura e valor ao trabalho que estava em curso e criando interlocuções interessantes e valiosas. Para os estudos de performance e conceito de persona performática, foram abordados os autores Renato Cohen e Ana Goldenstein Carvalhaes. 29

A performance, para Cohen, é parte de algo maior, e está localizada na forma como se vê a arte, pois é concebê-la pela sua dimensão pulsativa, em que não há lugar para o fechado e o acabado; é o olhar pela sua característica de obra aberta. Ou seja, alguns aspectos da performance art podem ser observados no filme de Mascaro pela utilização de recursos como a presença de não atores, a não utilização de roteiro, a exploração do cotidiano e a proposição artística que o filme estabelece: ele só ocorre pelo acontecimento do encontro.

A performance está ontologicamente ligada a um movimento maior, uma maneira de se encarar a arte: a live art. A live art é a arte ao vivo e também a arte viva. É uma forma de se ver arte em que se procura uma aproximação direta com a vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado. (COHEN, 2002, p. 38)

A dissertação de mestrado Subjetividade e experiência na obra de Renato Cohen: a persona performática, de Ana Goldenstein Carvalhaes, pelo Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA-USP), colocou luz sobre a relação do sujeito filmado através da construção da persona performática. Para Carvalhaes, esse conceito é construído por meio do agenciamento das relações, aqui observado no filme através de quatro agenciamentos: entre pessoas filmadas e câmera, entre os moradores da comunidade em seus encontros, entre quem filma e a pessoa filmada e entre o espectador e o filme. A persona surge somente a partir da ação, a partir do próprio percurso de gravação e é o constante estado performático do devir.

A persona surge com o próprio ato. Trabalha enquanto anda: no percurso. [...]. Ao mesmo tempo em que é polivalente (é várias pessoas ao mesmo tempo, administra contradições, vive estados diferenciados e transitórios durante a performance etc.), a persona traduz tudo isso em ambiguidade profunda. E pode, através do processo performático, da travessia artística, construir uma experiência consistente. [...] A persona é o estado performático do devir, da transformação constante, que leva à construção e à dissolução, ao outro. (CARVALHAES, 2012, p. 109-111)

Para a análise do corpus, foi escolhida a abordagem das extremidades, de Christine Mello, como possibilidade de leitura para esse objeto descentralizado, pois o filme é tensionado e contaminado por diversas linguagens, e visto em sua dimensão limítrofe, em sua condição de fronteira, por meio de diversos atravessamentos artísticos e midiáticos.

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A noção de extremidades é embasada, enquanto “caminho de leitura”, em direção à observação de pontos de tensão, situações conflituosas existentes no cerne dos trabalhos em análise. Diferentemente da noção ocidental atribuída às extremidades, que a relaciona a forças opostas, dicotômicas, polarizadas, a presente noção de extremidades é articulada a partir da convivência de forças plurais e complementares. É utilizada como atitude de olhar para as bordas, observar as zonas limites, as pontas extremas, interconectadas em variadas práticas artísticas e midiáticas. (MELLO, 2017, p. 13)

Com vistas a compreender o cenário cultural em Pernambuco nesse estudo, utiliza-se a visão pós-colonialista de Moacir dos Anjos, que apresenta a noção de gambiarra para caracterizar as produções culturais e artísticas híbridas, que se colocam contra o processo de homogeneização simbólica. Para Anjos, a gambiarra:

[...] é um termo que pode ser utilizado para caracterizar produções culturais e artísticas híbridas que são geradas, desde um determinado lugar, como modos de posicionar-se frente ao processo de homogeneização simbólica em curso. Produções que, por conta da natureza movente e conflituosa das relações que as fundam, não promovem a completa fusão entre os variados elementos que as compõem, apresentando, de maneira simultânea e não hierarquizada, traços de formações culturais herdadas e de outras que, construídas na esfera cultural dominante, supostamente as acuam. (ANJOS, 2008, p. 30)

A forma cinema x trans-histórica

É importante compreender que a fundamentação teórica deste estudo é de natureza interdisciplinar, já que se trata de uma leitura que se localiza nos tensionamentos do cinema com outras linguagens e com fenômenos que desestabilizam a forma cinema. A forma cinema é o que André Parente denomina, em uma entrevista para a Aniki: Revista Portuguesa da Imagem em Movimento , como a tríade pelo que é conhecido o cinema de linguagem dominante: a sala escura e silenciosa, descendente do teatro italiano; a tecnologia de captura e projeção da imagem em movimento que Thomas Edison e os Irmãos Lumière aprimoraram; e a dimensão discursiva que os cineastas americanos aperfeiçoam na primeira década do século XIX com montagem ao estilo Griffith18. Parente acredita que há um outro modo de se olhar o cinema, a maneira trans-histórica. Essa forma de observação implica em olhar o cinema e as

18 David Llewelyn Wark Griffith, usualmente conhecido por D. W. Griffith (La Grange, 22 de janeiro de 1875 – Hollywood, 23 de julho de 1948) foi um diretor de cinema estadunidense. É apontado por muitos como o mais influente diretor da história do cinema, sendo considerado o criador da linguagem cinematográfica. 31

imagens a partir dos movimentos que criam uma ruptura na forma cinema, reinventado-se e questionando a tríade. Para Parente, “Por outro lado, pensar a imagem como acontecimento implica conhecermos as condições de possibilidade do cinema para além da cristalização desta forma cinema.

Neste sentido, para mim, houve, ao longo da história do cinema, experimentações variadas que dizem respeito ao dispositivo mesmo do cinema: variações ao nível da arquitetura (brinquedos óticos pré- cinematográficos, cinetoscópio, cineorama, sensorama, a videoarte, as instalações, o videogame), da tecnologia (cinema sonoro, cinema colorido, cinema panorâmico, cinema interativo) e do “discurso” (cinema moderno no qual se produz uma disjunção entre imagem e som). (PARENTE, 2014)

Marina Agustoni19, no livro Novas formas do audiovisual, organizado por Lucia Santaella20, reafirma o que André Parente apontou, observando em que momentos o cinema brasileiro foi contra a linguagem dominante do cinema. Um deles é o cinema experimental brasileiro, que, apoiado nas vanguardas e correntes artísticas da Europa, constituía-se de expressividade e afeto para as imagens e sons, não assumindo a narrativa clássica. Essa expressividade é ilustrada pelo conceito imagem-afecção de Deleuze: “Quando os movimentos do filme se liberam inteiramente das situações narrativas, diríamos que elas passam a exprimir a alma do mundo”. (PARENTE, 2012, p.17) Já outra corrente que refutou a forma cinema foi o cinema marginal21, questionando os clichês americanos, rompendo com os paradigmas de forma e conteúdo, sendo um dos mais importantes movimentos do cinema brasileiro. Foi

19 Marina Agustoni Possui graduação em Rádio e TV pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2006) e mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atualmente é docente na Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep. 20 Maria Lucia Santaella Braga (Catanduva, 13 de agosto de 1944) é uma das principais divulgadoras da semiótica e do pensamento de Charles Peirce no Brasil, contando com mais de quarenta livros publicados. Professora titular da PUC-SP com doutoramento em Teoria Literária na PUC-SP (1973) e livre-docência em Ciências da Comunicação pela ECA/USP (1993). É fundadora do CSGames TIDD, Grupo de Pesquisa em Computação, Semiótica e Games do programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital PUC-SP. 21 Cinema marginal (também chamado de cinema de invenção, cinema marginalizado ou udigrúdi) foi um movimento cinematográfico brasileiro que se propagou pelo país entre meados de 1968 e 1973. Surgindo de uma relação paradoxal de diálogo e ruptura com o cinema novo e associado ao movimento revolucionário e de guerrilha, o cinema marginal pregava a ideologia da contracultura, além de criar uma abertura de diálogo lúdico e intertextual com o classicismo narrativo hollywoodiano e as chanchadas. Tendo uma forte relação com o tropicalismo, o cinema marginal também sofreu grande repressão e censura pela ditadura que se instaurava no Brasil devido aos seus filmes extremistas de teor sexual, violento e que seguiam a chamada estética do lixo. Entre seus representantes mais importantes estão Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha, A Mulher de Todos), Júlio Bressane (Matou a Família e foi ao Cinema, O Anjo Nasceu) e Ozualdo Candeias (A Margem, A Herança). 32

criado durante o contexto da ditadura militar, sendo uma resistência através da reflexão das imagens e sons, desobedecendo e negando o treinamento subjetivo que o mainstream operava sobre o espectador. Todos esses movimentos, em algum nível, estavam preparando um espaço para que a videoarte emergisse para questionar o vídeo e a forma cinema.

Figura 6: Bandeira-poema Seja Marginal, Seja Herói, de Hélio Oiticica, 1968.

Os primeiros vídeos da videoarte foram realizados entre 1974 e 1982 e tinham algumas características, como o plano sequência e a discussão sobre a repetição, o tédio e o cotidiano. “[...] em colocar o corpo do artista entre duas máquinas, de modo a produzir uma imagem instantânea, como a de um Narciso mirando-se no espelho”. (MACHADO, 2010) É diante dessa conjuntura que se origina o cinema de bordas brasileiro, caracterizado por baixo orçamento, inventividade e a internet como espaço de exibição. Assim como o cinema institucionalizado, o cinema de bordas é desvalorizado pela historiografia cinematográfica tradicional e pelos críticos, pela sua imprecisão de gênero. Porém, nesse cinema reencontra-se a força do cinema marginal e a indefinição dos filmes trash22, descontruindo uma grande fatia da forma cinema, principalmente por serem exibidos nas redes em streamings, fora do circuito das salas de cinema tradicionais.

22 A definição de filme trash, em geral, refere -se a filme tecnicamente malfeito (propositadamente ou não) tendo geralmente uma ou mais das seguintes características: baixo orçamento, má interpretação dos atores, má pós-produção (edição, dublagem, efeitos especiais), erros técnicos mais ou menos evidentes (por exemplo, o microfone do operador visível na imagem). A estética cinematográfica trash pode ser usada em qualquer gênero de filme ou vídeo, mas é mais usada no terror. 33

Inicialmente, o vídeo foi se tornando mais acessível para a população por ser mais barato que a película, portanto, um movimento inicial de vídeos caseiros foram tomando conta das famílias de classe média e alta nos eventos aniversários e férias, porém a exibição desses era mais particular e a edição do material era inacessível. Já na televisão, o vídeo ainda estava sendo experimentado em seus diversos formatos na programação. A convergência entre vídeo e cinema, então, começou a ocorrer quando surgem as câmeras digitais e os softwares de edição, que baratearam o processo de captação e edição, colocando na mão de qualquer pessoa a possibilidade de ressignificar seus próprios vídeos. Dessa forma, aumentando a capacidade crítica do indivíduo em relação ao cinema e à televisão. Nesse sentido, a linguagem cinematográfica instruiu o indivíduo a retomá-la em outros meios. Outro catalisador da convergência de linguagens foi a Internet, possibilitando o compartilhamento de conteúdo. Por conseguinte, surge uma nova tríade da forma cinema: veiculação na internet, captação e exibição em formato digital e edição “mestiça”(PINHEIRO, 2009). Isso é resultado da contaminação da linguagem cinematográfica, na qual cinema e vídeo já não podem mais ser referidos da mesma forma como Parente conceituou. A tecnologia alterou todos os processos da criação audiovisual, desde sua produção até o consumo:“[...] essa estética emergente estava preparando terreno para a era das hibridações mais abrangentes constitutivas do quarto paradigma da imagem”. (SANTAELLA, 2013, p.155) Com o uso de plataformas de streaming como a Netflix23, as fronteiras entre audiovisual e cinema foram dissolvidas, a ponto de estarmos perante o quarto paradigma da imagem, conforme assevera Santaella. Ele compreende a hibridização das linguagens, a constante ressignificação das imagens e seus atravessamentos no cotidiano. Assimilar, compartilhar e transmutar são movimentos da imagem no quarto paradigma.

23 Netflix é uma provedora global de filmes e séries de televisão via streaming sediada em Los Gatos, Califórnia, e que atualmente possui mais de 160 milhões de assinantes. 34

CAPÍTULO 1

Figura 7: Frame de Avenida Brasília Formosa, do diretor Gabriel Mascaro, objeto selecionado para esta pesquisa.

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CAPÍTULO 1 CINEMA CONTEMPORÂNEO

A reflexão sobre o cinema contemporâneo produzido no presente estudo exige um posicionamento acerca da questão de expressões e vocábulos como “regional”, “nordestino”, “local”, “pernambucano”. Dado que, dentro das discussões a respeito do cinema contemporâneo, aqui contemplaremos uma abordagem daquele produzido em Pernambuco, é necessária uma reformulação da historiografia clássica do cinema nacional, que, para Bernardet (2004), conforme a natureza de sua enunciação, o coloca numa posição subordinada à produção mainstream, hegemônica, no caso, aqui reconhecida como a do eixo Rio-SP no contexto brasileiro. Nesse sentido, tais expressões poderiam legitimar uma falsa ideia de que as produções ditas “regionais” seriam menos relevantes, pois engendra em seu sentido a ideia de que há uma metrópole e reitera o domínio desse eixo, sem questioná-lo. Outra questão importante é que o uso de tais expressões para o cinema contemporâneo pode sugerir a ideia de que a produção audiovisual regional, como a de Pernambuco, seja homogênea, fixando a ideia de que expressões como “cinema pernambucano” aludem a apenas um estilo, uma unidade, um movimento estético único, desconsiderando a diversidade que existe nessa produção. Esses termos, assim como o termo “cinema nacional” (termo também homogeneizador e questionado pelos pesquisadores), são fruto de uma descentralização histórica, em que a lógica de existir um centro econômico e cultural traz a ideia de que existam outros espaços que não são o centro, estabelecendo uma lógica soberana do regional. Por outro lado, alguns diretores, artistas e pesquisadores entendem que esses termos compreendem também uma dimensão coletiva, plural e subjetiva para o que compreendemos como cinema contemporâneo hoje, no sentido em que carregam na palavra uma representação identitária, de pertencimento, simbologias, tradições, ou seja, espaços de memória e afeto. Portanto, nesta investigação compreende-se esses termos em suas contradições, extremidades, ruídos, considerando seu aspecto físico, geográfico, histórico, as diversidades de produção, assim como as relações com o centro, levando em conta que o local em que o filme é gravado, Brasília Teimosa, também é uma dobra do cinema feito em Recife (geograficamente longe da produção central de 36

Pernambuco). Essa descentralização também fará parte da discussão em que as teorias pós-colonialistas são convocadas dentro do debate contemporâneo. É importante compreender também que o presente estudo, a partir da abordagem das extremidades, localiza uma produção cinematográfica descentralizada em termos das questões no plano estético, que são reflexo do social, que questionam, ressignificam e desestabilizam conceitos. Podemos pensar que, a partir da noção de extremidades, há o destaque para compreendermos o cinema contemporâneo como uma experiência interconectada entre múltiplas localidades, comunidades e linguagens. A partir, então, dessa abordagem, tem-se o objetivo de colaborar com o debate sobre o estado da crítica relacionado aos cruzamentos entre arte e práticas midiáticas. O teórico pernambucano e curador de arte contemporânea Moacir do Anjos24, em sua obra Local/global: arte em trânsito, discorre sobre a importância da interconexão entre as duas lógicas espaciais, o local e o global. Para ele, esses dois conceitos não são definidos de forma independente, mas são relacionais, simultâneos e coexistentes. Para Anjos, em um contexto interconectado e tecnológico, global e local são redefinidos. Para ele, a produção local em Pernambuco não pode ser vista de maneira provinciana, e sim como produção de aberturas e conexões entre o local e o global. Nesse sentido, é adequado evocar o conceito de transculturação25. Para Anjos (2005, p. 16), “Mais adequado para descrever os encontros promovidos pela globalização é o termo transculturação, o qual invoca contaminação mútua, em um mesmo tempo e lugar, de expressões culturais antes apartadas por injunções históricas e geográficas”. Esses espaços, em que as formas culturais surgem pelo processo de transculturação e que são ativados pelo processo de globalização e hibridizações, são chamados pelo autor de zonas de contato, espaços em que há interlocuções entre diversas localidades e que são ativados pela condição de abertura e transversalidades.

24 Teórico pernambucano e curador de arte contemporânea da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, onde coordena, desde 2009, o projeto de exposições Política da Arte. Tem experiência na área de Artes Visuais, com ênfase em Teoria da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: arte brasileira, arte e política, cultura contemporânea e globalização. Foi curador da 29ª Bienal de São Paulo (2010). 25 Transculturação é um termo cunhado pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz em 1940, para descrever o fenômeno da fusão e convergência de culturas. A transculturação abrange mais do que a transição de uma cultura para outra; não consiste apenas em adquirir outra cultura ou em perder ou desenraizar uma cultura anterior. 37

Um movimento importante para a contracultura em Recife, que traduz bastante a coexistência do global e do local , reverbera nas artes e no audiovisual em Pernambuco e está diretamente ligada à geração de diretores do cinema contemporâneo, é o manguebeat, que surgiu na década de 1990 em Recife. A própria formação do termo nos remete a essa coexistência e simultaneidade entre o local e o global. Manguebeat vem da junção da palavra “mangue” (manguezal), um ecossistema típico da costa do Nordeste brasileiro, com a palavra “beat”, do inglês, que significa batida, e que também faz alusão ao código binário – bits.

Figura 8: Escultura e monumento ao manguebeat Carne da minha perna, localizado na Rua da Aurora, em Recife. Uma obra coletiva, realizada em 2004 e 2005, por quatro artistas: Augusto Ferrer, Eddy Polo, Jorge Alberto Barbosa e Lúcia Padilha. O caranguejo é tido como símbolo do movimento.

Seu principal idealizador foi Chico Science26, e rapidamente esse movimento musical, que mistura ritmos regionais – como o maracatu – com o rock, hip hop, funk americano e música eletrônica, contaminou outras formas de expressão cultural, como o cinema, as artes plásticas e a moda. A simbologia que o regional carregou e ainda carrega no cinema e nas artes é ressignificada nessa atual produção contemporânea: O regional não é mais algo rigidamente definido, mas é o lugar de enunciação de um embate aberto com o outro, o qual pode assumir formas distintas e mudar ao longo do tempo. Nesse sentido, os limites de uma região qualquer

26 Francisco de Assis França (Olinda, 13 de março de 1966 – Recife, 2 de fevereiro de 1997), mais conhecido pela alcunha de Chico Science, foi um cantor e compositor brasileiro, um dos principais colaboradores do movimento manguebeat em meados da década de 1990. Líder da banda Chico Science & Nação Zumbi, deixou dois discos gravados: Da Lama ao Caos e Afrociberdelia. 38

não podem ser mais definidos como espaços de separação, mas como espaços de contato e de troca. (ANJOS, 2019)

Dentro desses debates, é importante compreender que o presente estudo localiza uma produção cinematográfica descentralizada. A descentralização desloca inúmeras questões no plano estético, assim como no político. Ao falar de um cinema que se localiza numa extremidade cultural, social, econômica e que transgride concepções cristalizadas, não seria possível que esse objeto não fosse atravessado pelas questões pós-colonialistas que perpassam grande parte do debate no contemporâneo. As perspectivas pós-colonialistas procuram descolonizar pensamentos e práticas culturais. De acordo com Simone Pereira Schmidt, em seu artigo “Onde está o sujeito pós-colonial?”:

O pós-colonialismo engloba “uma ampla gama de experiências políticas, culturais e subjetivas, que se deslocam no tempo (pré e pós-colonial) e se situam em diferentes lugares.” Esse conceito contribui para a descolonização – que ainda não acabou e permanece por meio de saberes, culturas etc. Portanto, as nações colonizadas e colonizadoras possuem resquícios profundos do passado colonial em suas experiências. (SCHMIDT, 2009, p. 137)

Nesse sentido, pode-se observar a importância da produção audiovisual descentralizada, pois a descolonização também acontece no plano simbólico. A partir do que foi colocado, essa investigação crítica busca compreender fenômenos e procedimentos no cinema contemporâneo, assim como a performatividade dos sujeitos e da imagem a partir da obra de Gabriel Mascaro. Este capítulo é dedicado a analisar e compreender os contextos histórico, social e estético do cinema realizado no estado de Pernambuco. Posteriormente, será investigado como esse cenário levou ao desenvolvimento de um audiovisual caracterizado por outras configurações de produção, que envolvem:

1) A história do cinema em Pernambuco. 2) A política audiovisual em Recife. 3) O bairro de Brasília Teimosa. 4) O cinema industrial e pós-industrial. 5) As redes colaborativas.

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Esses tópicos nos levarão à outra questão fundamental deste estudo, que é a reflexão sobre o modo como essa conjuntura constrói uma atitude performática que se revela na produção contemporânea de cinema a partir da segunda década do século XXI.

1.1 Cinema Contemporâneo: Experiências a partir de Avenida Brasília Formosa

Lançado em 2010, o filme Avenida Brasília Formosa tem como pano de fundo um grande contexto político, econômico e social; mundial e brasileiro, que apresenta uma conjuntura que revela as extremidades27 na macroesfera social. No plano da política, temos o fim da era Lula, em que o ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva28 deixa o cargo após oito anos de governo, e Dilma Rousseff29 é eleita a primeira mulher presidente do Brasil. No mundo, tem-se ainda efeitos da pós-crise econômica de 200830, em que a soberania americana recua diante dos reflexos da crise; a China conquista o segundo lugar na economia mundial; Julian Assange divulga o WikiLeaks31 em que revela 250 mil documentos secretos da diplomacia norte- americana. Na América Latina, desastres ambientais ocorrem no Haiti e no Chile, que sofrem com terremotos catastróficos; Haiti contabiliza 150 mil mortes no abalo sísmico que é seguido por um surto de cólera.

27 No sentido em que as extremidades permitem um modo de leitura dos espaços e situações que são limítrofes, descontínuas e incertas. Essa noção de extremidades pode, então, ser possibilidade não só de realizar a leitura do contexto social como construir o social, já que a macroesfera também produz ressignificações e atravessa crises. 28 Luiz Inácio da Silva, mais conhecido como Lula (Caetés, 27 de outubro de 1945), é um político, ex- sindicalista e ex-metalúrgico brasileiro, principal fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) e o 35º presidente do Brasil, tendo exercido o cargo de 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011. 29 Dilma Vana Rousseff (Belo Horizonte, 14 de dezembro de 1947) é uma economista e política brasileira, filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT) e a 36ª Presidente do Brasil, tendo exercido o cargo de 2011 até seu afastamento por um golpe em 2016. 30 Crise financeira de 2007-2008 é uma conjuntura financeiro econômica global precipitada pela falência do tradicional banco de investimento estadunidense Lehman Brothers, fundado em 1850. Em efeito dominó, outras grandes instituições financeiras quebraram, no processo também conhecido como ”crise dos subprimes”. 31 WikiLeaks é uma organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia, que publica, em sua página, postagens de fontes anônimas, documentos, fotos e informações confidenciais, vazadas de governos ou empresas.

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No âmbito da tecnologia e cultura, tem-se no início em 2010 a crescente popularização de serviços de streaming resultante da cultura do compartilhamento e a introdução de um novo tipo de consumo de imagens, vídeos e música.

O consumo de mídia se transformou completamente ao longo da última década. Se comprar filmes e músicas (ou piratear) era o padrão no início do século, os anos 2010 chegaram para mudar isso com dois nomes principais: Netflix e Spotify, que catalizaram uma transição para o streaming, aproveitando a considerável melhora da internet no planeta ao longo dos últimos 10 anos. (SANTINO, 2019)

A partir disso, observa-se também no cinema as práticas da cultura do compartilhamento, advento das mídias digitais resultante dos ambientes tecnológicos e híbridos, promovendo uma mudança na produção, recepção e distribuição do material cinematográfico. A partir desse cenário, manifestam-se novos padrões de percepção nos processos comunicacionais e de novas formas de sociabilidade que incorporam a concepção de “cultura” atrelada aos conceitos pertencentes à dimensão da tecnologia, como “cultura da virtualidade real” (CASTELLS, 1999), “cultura da interface” (JOHNSON, 2001), “cultura digital”, “cibercultura”, “cultura da mobilidade” (SANTAELLA, 2003), “cultura da convergência” (JENKINS, 2008). Em comum, esses conceitos integram o impacto das tecnologias digitais na dimensão cotidiana do indivíduo.

[...] “cultura do compartilhamento”, que diz respeito não apenas ao aparato tecnológico que possibilita a sistematização de práticas de produção, distribuição e intercâmbio de conteúdos digitalizados, mas também à incorporação dessas práticas pelos sujeitos sociais e sua posterior apropriação por parte do mercado. Além disso, não se trata de um fenômeno, mas sim um modo de sociabilidade resultante da convergência entre vários aspectos do campo da cibercultura. (ZANETTI, 2011, p. 61)

Outra questão relacionada com a cultura do compartilhamento é a formação de redes colaborativas, a organização entre artistas, que amplia a ideia de espaço artístico.

O compartilhamento do vídeo é o habitat do pós-vídeo, ou o vídeo radicalmente expandido em seu próprio caráter híbrido e no ciberespaço. O conceito de compartilhamento – como uma ponta extrema do meio videográfico – diz respeito a compreender o vídeo em características acentuadamente descentralizadas do núcleo de sua linguagem. (MELLO, 2004, p. 24)

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Aqui a formação dessas redes colaborativas é caracterizada pelo fenômeno da brodagem, que iremos abordar mais profundamente no subcapítulo 1.5.3 – Redes Colaborativas e o Fenômeno da Brodagem).

1.2 Contexto Histórico: O Novo Cinema em Pernambuco e seus Ciclos

1.2.1 Ciclo de Recife

Em Pernambuco, a história do cinema é usualmente dividida em três fases. A primeira, que se situa entre 1923 e 1931, chamada Ciclo de Recife, realizou-se simultaneamente com outras produções regionais do cinema mudo. Nessa época, houve grande produção de filmes de longa-metragem e documentários. A estética ainda era baseada na reprodução de roupas e costumes estrangeiros, porém encontram-se algumas produções que retratam temas cotidianos da sociedade recifense. Destacaram-se, nessa fase: Edson Chagas, Gentil Roiz, Ary Severo e Jota Soares. Essa fase se finda em 1931, devido a diversos fatores econômicos, a concorrência do mercado cinematográfico hollywoodiano e o advento do cinema sonoro de origem norte-americana.

Figura 9: Frame de A Filha do Advogado, direção de Jota Soares (1926). Figura 10: Frame de Retribuição, direção de Gentil Roiz (1923).

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1.2.2 Movimento Super-8

Posteriormente, na década de 1970, acontece o Movimento do Super-8 a partir do barateamento das produções amadoras de cinema. Essa produção é composta de curtas-metragens e tinha um espaço limitado de circulação, restringindo-se aos festivais nacionais de curta-metragem que aconteciam nas capitais brasileiras. Segundo Amanda Mansur, são produzidos mais de 200 filmes, financiados na maioria pelos próprios cineastas, pois o processo era doméstico e era possível filmar, revelar e montar de forma caseira. Esses cineastas provinham, sua grande maioria, da classe média de Pernambuco, que viajava para o exterior e obtinham a Super-8 para gravação de festas e eventos. Em relação à estética e temática:

Entre 1973 e 1983, foram realizados mais de 200 filmes que contavam com as mais variadas propostas estéticas. No entanto, essa produção era dividida em filmes experimentais, que tinham como eixo narrativo temas existenciais urbanos e de crítica da cultura, filmes ficcionais, que tinham bastante influências de filmes clássicos, apesar de todas as limitações técnicas da bitola e da falta de recursos, e documentários que abordavam a cultura nordestina. (SANTOS apud FIGUEIRÔA, p.44, 2014)

Figuras 11 e 12: Frames de A Górdona Doméstica, direção de Osman Godoy (1972), obra que explorava os espaços entre ficção e experimentação.

Entre os superoitistas pernambucanos que se destacaram estão Jomar Muniz de Brito, Geneton Moraes Neto, Fernando Spencer, Celso Marconi, Walderes Soares, Paulo Menelau e Osman Godoy. Aos poucos, o ciclo foi enfraquecendo por variados motivos: a Kodak, empresa que demonstrava um profundo desinteresse em fazer a revelação dos filmes e vendê-los; em 1976, a Cacex32 classificou os equipamentos em Super-8 na lista de mercadorias supérfluas, proibindo a sua importação. Em 1977,

32 Consultoria e Assessoria em Comércio Exterior. 43

passou-se a exigir um depósito compulsório de 100% da mercadoria a importar, o que elevou os custos de maneira assustadora (FIGUEIRÔA, 2000, p. 59). Com esse cenário, filmar em Super-8 ficou muito caro, levando ao declínio desse movimento.

1.2.3 Retomada do Cinema em Pernambuco

Juntamente com retomada do cinema brasileiro33 nos anos 1990, a fase da retomada pernambucana ocorreu especificamente em 1997, com a obra Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas. A força estética desse período foi construída durante os anos 1980, com a influência do grupo Vanretrô:

O grupo Vanretrô surgiu dentro do Centro de Artes e Comunicação (CAC) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) no curso de Comunicação Social, a partir da disposição de uma parte dos alunos de “fazer cinema”. O Vanretrô foi formado em 1985 para realização de um filme. O nome do grupo é uma contração do termo Vanguarda Retrógrada. Essa dicotomia entre a modernidade/tradição, passado/presente, que se observa já no nome do grupo, vai acompanhar a produção posterior dos cineastas (NOGUEIRA, 2009, p. 25)

Em Baile Perfumado, é possível observar os músicos do manguebeat na composição da trilha sonora do filme, manifestando a vontade, na retomada, de aliar cultura regional com cultura contemporânea.

A música de Chico Science atualiza a tradição na fusão que promove entre os ritmos tradicionais e o pop. Os cineastas buscaram os músicos do Manguebeat na composição do filme, pois eles compartilhavam dos mesmos códigos culturais, valores sociais e afeições, ou seja, assim como os mangueboys, os cineastas buscavam um olhar para frente e ao mesmo tempo um olhar para trás, resgatando elementos culturais regionais aliados à linguagem da cultura contemporânea. (CORREIA, 2018, p. 420)

33 A partir de 1995, começa-se a falar numaretomada do cinema brasileiro. Novos mecanismos de apoio à produção, baseados em incentivos fiscais e numa visão neoliberal de cultura de mercado conseguem efetivamente aumentar o número de filmes realizados e levar o cinema brasileiro de volta à cena mundial. O filme que inicia este período é Carlota Joaquina, Princesa do (1995), da diretora Carla Camurati. 44

Figura 13: Frames de Baile Perfumado, direção de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1997).

Essa retomada se mostrou muito frutífera ao longo dos anos 2000, com produções que ganharam prestígio nacional e internacional. Pode-se dizer que o início da produção contemporânea começa nesse período. Alguns exemplos são os filmes O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000), Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2002), Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005), Árido Movie (Lírio Ferreira, 2005), Baixio das Bestas (Cláudio Assis, 2006), Deserto Feliz (Paulo Caldas, 2007) e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (Karïm Ainouz e Marcelo Gomes, 2009).

Figuras 14, 15, 16 e 17: Cartazes dos filmes Árido Movie, O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas, Amarelo Manga e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo.

Porém, o trabalho que se aproximava de um movimento performático no cinema pernambucano, fenômeno que decorreu principalmente da popularização do vídeo nos anos 1980, é destacado por Alexandre Figueirôa e Cláudio Bezerra na obra O documentário em Pernambuco no Século XX, em que destacam o cruzamento de 45

linguagem na produção dos anos 1980, que tem como fonte o trabalho experimental do ciclo do Super-8.

No apagar das luzes dos anos 1980, uma produção independente chamou a atenção por sua originalidade e ousadia estética, Eternamente Ágora (1989), de Alexandre Figuerôa e George Moura, uma exceção no contexto daquela década marcada por uma produção politicamente engajada e mais convencional. O vídeo bebe na fonte experimental do ciclo do super 8 pernambucano. [...]. Do começo ao fim, há um entrecruzamento das linguagens de teatro, cinema e performance, uma espécie de “metadegolagem”. [...]. Eternamente Ágora talvez seja o único documentário conceitualmente performático dos anos 1980. (FIGUEIRÔA; BEZERRA, 2016, p.196-197)

1.2.4 Novo Cinema de Pernambuco

Com o barateamento e acesso às tecnologias digitais, com as novas formas de financiamento (como o crowdfunding34) e o incentivo do Funcultura Audiovisual (a partir de 2007), facilitação da divulgação, distribuição e exibição pelas plataformas e recursos on-line, surgem pequenas produtoras como a Símio Filmes (iniciado como coletivo e formada por Gabriel Mascaro, Daniel Bandeira, Marcelo Pedroso e Juliano Dornelles) e a Trincheira Filmes (formada por Leonardo Lacca, Marcelo Lordello e Tião). Mostra-se, assim, um cenário efervescente e favorável à produção em Pernambuco. Os nomes que se destacam nesse contexto são: Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro, Marcelo Lordello, Leonado Lacca, Tião, Juliano Dornelles, Daniel Aragão, Daniel Bandeira, Pedro Severien, Leonardo Sette. O crítico, professor e curador de cinema em Pernambuco Luiz Joaquim diz em entrevista35 sobre a produção contemporânea: “Há sempre uma audácia estética, um interesse em investigar as possibilidades da linguagem do cinema. Mas há sempre também uma preocupação em questionar, pontuar, aspectos humanos, sociais e políticos”.

34 Financiamento coletivo, também conhecido como crowdfunding, consiste na obtenção de capital para iniciativas de interesse coletivo através da agregação de múltiplas fontes de financiamento, em geral pessoas físicas interessadas na iniciativa. 35 HISTÓRIA do cinema pernambucano: a produção contemporânea – Prof. Luiz Joaquim. Dir. MEIRELLES, Direção Marlom Meirelles. Documentário. 37 min. Digital. Disponível em: . Acesso em: 31 maio 2019. 46

Figura 18: Artigo O Novo Cinema de Pernambuco na Revista Ciência e Cultura.

Algumas obras que se destacam nesse período são: Amigos de Risco (Daniel Bandeira, 2007), O Muro (Tião, 2008), Pacific (Marcelo Pedroso, 2009), As Aventuras de Paulo Bruscky (Gabriel Mascaro, 2010), Um Lugar ao Sol (Gabriel Mascaro, 2009), Eles Voltam (Marcelo Lordello, 2012), Era Uma Vez Eu, Verônica (Marcelo Gomes, 2012), Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012), Boa Sorte, Meu Amor (Daniel Aragão 2013), Eles Voltam (Marcelo Lordello, 2014), Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016), Divino Amor (Gabriel Mascaro, 2019), Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019), entre tantas outras nessa extensa produção.

1.3 Política de Audiovisual em Recife

Vários mecanismos de financiamento colaboraram para a consolidação e prosperidade do cinema em Pernambuco. A prefeitura de Recife criou o Sistema de Incentivo à Cultura (SIC), que opera através de renúncia fiscal, com último edital publicado em 2012. 47

Já na esfera estadual, um importante recurso é o Funcultura36, concebido no ano de 2002. O Fundo recebe recursos da arrecadação do ICMS e, através de editais de seleção pública, financia de forma direta projetos artísticos e culturais. Em 2007, o Funcultura criou um edital do próprio departamento, o Funcultura Audiovisual. Em 2013, foi determinando um valor mínimo anual para esse fundo, de R$ 33,5 milhões, separados em R$ 11,5 milhões para o setor audiovisual, e R$ 22 milhões para os demais setores. Em 2011, o Fundo introduziu o prêmio de roteiros Ary Severo/Firmo Neto, (criado em 1999), dentro da categoria de curta-metragem. Esses editais estaduais possibilitam tanto a realização de filmes de orçamento reduzido, que são produzidos inteiramente com essa verba, como de produções maiores, que juntam a verba desse edital a de outros nacionais, como os do BNDES, da Petrobras e Ancine37. Pernambuco também foi o primeiro estado a possuir uma lei do audiovisual: a Lei nº 15.307, de 2014, que possibilitou ao setor ter uma política de Estado resistente às trocas de gestão. Por meio dela, foi criado o Conselho Consultivo do Audiovisual, que proporciona uma participação legítima da sociedade na elaboração de políticas públicas para o setor.

Seção I Dos Princípios Art. 2º A promoção, o fomento e o incentivo ao audiovisual pelo Estado de Pernambuco, em todas as suas atividades, serão norteados pelos seguintes princípios: I – liberdade de expressão e criação artística, vedada qualquer espécie de censura; II – expressão da diversidade cultural; III – inovação; IV – transparência nos processos de seleção dos produtos incentivados e na destinação dos recursos para o audiovisual; e V – respeito à igualdade de gênero, raça e etnia, e inclusão das diferenças. (PERNAMBUCO, 2014, p. 1)

O estado também dispõe de outras iniciativas voltadas à formação de público para o cinema independente e nacional, como as atividades da Fundaj38, ligada ao Ministério da Educação, que já promoveu e realizou várias mostras e cineclubes.

36 O Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura PE) é o principal mecanismo de fomento e difusão da produção cultural no Estado, e está inserido no Sistema de Incentivo à Cultura (SIC-PE). 37 A Agência Nacional do Cinema é um órgão oficial do governo federal do Brasil, constituída como agência reguladora, com sede na cidade de Brasília, cujo objetivo é fomentar, regular e fiscalizar a indústria cinematográfica e videofonográfica nacional. 38 A Fundação Joaquim Nabuco é uma fundação pública com regime de direito privado vinculada ao Ministério da Educação do Brasil. Sediada no Recife em Pernambuco, foi fundada em 1949 por Gilberto Freyre, com o propósito de preservar o legado histórico-cultural de Joaquim Nabuco, com ênfase nas regiões Norte e Nordeste. 48

Em 1998, a Fundaj inaugurou o Cinema da Fundação, com programação realizada pelo jornalista Luiz Joaquim e pelo cineasta Kleber Mendonça Filho39. Entre as várias atividades promovidas pelo espaço, há a exibição de filmes fora da rota comercial. O Cinema São Luiz, que foi tombado pela Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural de Pernambuco no ano de 2008, também elaborou uma programação de filmes que não estão no circuito comercial, com ingressos a preços mais acessíveis. Além disso, Pernambuco ainda abriga importantes festivais de cinema, que colaboram com a exibição e divulgação dos filmes: Janela Internacional de Cinema de Recife, que completou doze edições em 2019, e o CINE-PE, que, em 2019, estava em sua 23ª edição.

Figura 19: Pôsteres da Janela Internacional de Cinema (Edições X e VIII).

É importante também compreender que outro fator para o desenvolvimento dessa produção é a existência de instituições de formação, como o curso de Cinema

39 Kleber de Mendonça Vasconcellos Filho (Recife, 22 de novembro de 1968) é um diretor, produtor, roteirista e crítico de cinema brasileiro. Os seus filmes O Som ao Redor e Aquarius foram incluídos na respeitada lista dos 10 melhores do ano do jornal norte-americano The New York Times, e o terceiro longa-metragem do cineasta, Bacurau, conquistou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2019. 49

e Audiovisual40 da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e o Centro Audiovisual Norte-Nordeste (Canne), sediado na Fundação Joaquim Nabuco, que viabiliza cursos de capacitação profissional e tecnológica em audiovisual nas regiões Norte e Nordeste.

1.4 Contexto Social: O Bairro de Brasília Teimosa

O filme se passa em Brasília Teimosa, bairro situado na zona sul de Recife, que se originou através da ocupação de uma área antes denominada Areal Novo, iniciada em 1947. É o bairro com maior densidade populacional da cidade41. O nome “Brasília” surgiu em alusão à nova capital do país, que estava sendo projetada nessa época pelo governo Juscelino Kubitschek. Nesse período, os moradores do local persistiram em ficar na região, em um movimento de resistência contra algumas tentativas de expulsão, chegando até a reconstruírem suas casas durante o período da noite, após estas serem demolidas pela manhã. Essa persistência dos moradores consolidou a imagem de “teimosia”, que dá nome ao bairro. O local foi uma das primeiras regiões a serem urbanizadas com recursos do BNH (Banco Nacional da Habitação), por intermédio de um projeto denominado Teimosinho. Esse projeto se fortaleceu em 1982, com a realocação de famílias da Vila da Prata, com intervenções também em 1986 e 1989, mas a região sempre voltou a ser ocupada.

40 O Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPE teve início no primeiro semestre de 2009. O curso nasceu de uma demanda e uma ligação que a UFPE já tinha com ex-alunos que fazem parte da cena artística e cinematográfica em Pernambuco, como o próprio Gabriel Mascaro, Marcelo Pedroso, Lírio Ferreira, Adelina Pontual, Hilton Lacerda e Kleber Mendonça Filho. 41 Cf. informação disponível em: . Acesso em: 24. Jun. 2020. 50

Figura 20: Brasília Teimosa – 1975.

Em 1980, o bairro se tornou a primeira Zeis42 (Zona Especial de Interesse Social), fruto também de uma luta social. Em janeiro de 2003, a comunidade foi escolhida como destino da primeira viagem do então presidente Lula e seus ministros. Ainda no mesmo mês, as palafitas começaram a ser removidas e o processo de urbanização se iniciou. Em 2006, três anos após a visita de Lula, foram entregues ao bairro 224 moradias para os habitantes, e outras 280 já estavam em processo de construção. Também foram investidos R$ 9 milhões na reurbanização da orla de Brasília Teimosa. A visita do presidente Lula a Brasília Teimosa em 2003 constituiu uma sequência do filme em que é possível ver a presença da linguagem do vídeo amador. O participante Fábio assiste na televisão de sua casa a uma fita VHS que mostra a visita de Lula à comunidade. Essas imagens depois se tornam parte da narrativa do filme. A imagem amadora nessa sequência traduz a memória afetiva que o governo Lula provocou na comunidade.

42 Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), também chamadas de Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS) são áreas demarcadas no território de uma cidade, para assentamentos habitacionais de população de baixa renda (existentes ou novos). Devem estar previstas no Plano Diretor e demarcadas na Lei de Zoneamento, quando houver. Podem ser áreas já ocupadas por assentamentos precários, e podem também ser demarcadas sobre terrenos vazios. No primeiro caso, visam flexibilizar normas e padrões urbanísticos (como largura de vias, tamanho mínimo dos lotes, por exemplo) para, através de um plano específico de urbanização, regularizar o assentamento. No caso de áreas vazias, o objetivo é aumentar a oferta de terrenos para habitação de interesse social e reduzir seu custo. 51

Figura 21: Frame em que o participante Fábio assiste à chegada de Lula pelo seu VHS.

Figura 22: Frame da imagem da câmera de vídeo a que o participante Fábio está assistindo.

Já em 2004, é construída a Avenida Brasília Formosa, decorrente de um amplo projeto de requalificação, após a retirada das palafitas, possibilitando o aproveitamento do espaço de 1,3 km como cartão-postal do bairro. Foram construídos parques, academias, quiosques e bares à beira-mar. Com esse novo processo de urbanização e construção da Avenida, a região se torna alvo de interesse por parte do mercado imobiliário, em razão da boa localização e da vista à beira-mar. O geógrafo e professor da Universidade de Pernambuco (UPE) Jorge Araújo acredita que empreiteiras terão uma estratégia para derrubar esta que é uma das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) para viabilizar a construção de imóveis no local. De acordo com Araújo “Por debaixo dos panos, sabemos que já existe a comercialização de casas para construtoras. A luta da comunidade é garantir a posse da terra”. 52

Dentro desse aspecto social, o filme de Mascaro também faz parte da ocupação de Brasília Teimosa. Não se trata de uma ocupação física, mas simbólica. Mascaro ao criar essa proposição dentre os moradores da comunidade, permite o olhar de quem vive nas extremidades de Pernambuco, do Recife, do Brasil, serem vividas através de diferentes experiências e lugares. Seu filme tem a capacidade de ressignificar esse espaço e reafirmar a luta e persistência de seus moradores. Dentro de um lugar de disputa, um dos maiores instrumentos de luta é a imagem. Gabriel Mascaro afirma, em entrevista ao Jornal Rede Brasil Atual (2011), que “Essa noção espacial, essa cartografia, está em bases tênues. É como se fosse riscada com um giz e que irá desaparecer na própria interação das pessoas”. Outro atravessamento em relação ao contexto social do filme reside no panorama tecnológico que o mundo e o Brasil viviam em 2010. Alguns episódios que pontuam uma efervescência no campo da tecnologia são: a chegada dos tablets e iPads no Brasil; o lançamento das televisões 3D – trazendo novos formatos e telas; a chegada do serviço de streaming da Netflix no ano seguinte; a popularização dos smartphones; Apple foi considerada a empresa mais admirada do mundo; a revista Time elegeu Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, Pessoa do Ano.

Figura 23: Capa da revista Time, com Mark Zuckerberg desctacado como Pessoa do Ano em 2010.

Esse aspecto é de relevante importância, pois a presença da tecnologia, a popularização dos dispositivos portáteis e a conexão se dando pela simultaneidade do 53

on-line e do off-line indicam uma transformação do corpo e dos afetos dos indivíduos, concebendo uma cultura cíbrida.

1.5 Contexto Estético: Esferas da Performatividade

Realizado em 2010, o filme de Mascaro está situado em um dado contexto estético das artes e do cinema. Sua própria imprecisão de classificação revela o panorama artístico em que se encontra. Classificá-lo como ficção ou documentário não é um objetivo nesta pesquisa, porém, por motivos metodológicos, iremos entendê- lo em grande parte sob o contexto do documentário contemporâneo, que assume esse lugar de indefinição, multiplicidade, mostrando-se indiscernível. O documentário é o nome de uma liberdade no cinema (MIGLIORIN, 2010, p. 9). Dentro do contemporâneo, esse “documentário” compreende um alargamento dos regimes de imagem, os quais, na produção contemporânea, vão além da representação e pulsam presença. Essa produção contemporânea parece basear-se, acima de tudo, no encontro, nos modos de estar no mundo e no compartilhamento de experiências, ocupações de espaços e mobilizações de forças coletivas.

A busca de uma maneira de abordar o mundo, de estar em contato com outras vidas e outros espaços nunca esteve tão próxima de um problema estético, de uma reflexão sobre os modos de operar essa aproximação, esses encontros entre cenas. Cena do realizador, cena do filmado, cena do espectador, cada cena dialogando com múltiplas e heterogêneas forças. (MIGLIORIN, 2010, p. 10)

Dessa maneira, é importante frisar que a presente pesquisa compreende as múltiplas e simultâneas abordagens sobre o cinema contemporâneo, e tenta sugerir mais um caminho de leitura entre os diversos outros existentes. A multiplicidade de leituras reflete sua multiplicidade de reverberações hoje. Mais do que tudo, o “documentário” mostra e amplia alguns conceitos sobre arte e sobre o indivíduo nele retratado. A partir disso, pode-se observar, na atual produção, alguns indicativos e prognósticos do sujeito contemporâneo e de sua profusão de modos de composição do ser, do sentir e do estar. Todos esses modos se relacionam com o próprio indivíduo, com a sociedade e com as imagens.

54

1.5.1 Relações Micropolíticas e uma Estética do Cotidiano

Outro ponto importante dessa produção é o olhar sobre o cotidiano, lugar em que é possível ver esse indivíduo e sua relação autêntica com a realidade. O historiador Michel de Certeau43 discorre sobre essa ideia em seu conceito de práticas cotidianas. Para ele, algumas práticas dentro de sistemas disciplinares pré- determinados podem reverter a lógica deste. Elas são microrresistências que invertem as relações de força e poder na sociedade e transformam os significados e presenças espaciais exigidos pela ordem urbana. Na atual produção, percebe-se esse efeito por meio do homem comum afirmando sua autenticidade em seu cotidiano. Dessa maneira, Certeau oferece sua obra ao homem ordinário: “Herói comum. Personagem disseminada. Caminhante inumerável que, na existência cotidiana, (re)cria seus espaços por diferentes caminhos”. (CERTAU, 2008, p. 57) Para o autor Tarcisio Torres Silva44, esse pensamento de Certeau está situado no contemporâneo, pois, para ele, essas práticas cotidianas podem ser observadas hoje nas redes de comunicação digital e se refletem no que é produzido nesse espaço. Segundo sua visão, “O uso da tecnologia digital seria uma abertura dentro do sistema que possibilitaria as manifestações de práticas cotidianas”. (SILVA, 2016, p. 21) Nas práticas cotidianas de conversar e ocupar espaços se observam os “modos de falar” e os “modos de se mover”, pelas quais o indivíduo pode impulsionar, contestar. Todo o potencial enunciativo e inventivo do sujeito nas relações alude ao que Certeau denomina de antidisciplina, que se articula ao conceito de vigilância desenvolvida por Foucault45 em Vigiar e punir (1975).

43 Michel de Certeau (Chambéry, 1925 – Paris, 9 de janeiro de 1986) foi um historiador e erudito francês. Intelectual jesuíta, dedicou-se ao estudo nas áreas da psicanálise, filosofia, ciências sociais, teologia, teoria da história, entre outras. Dentre suas principais obras estão a escrita da história (1975) e A invenção do cotidiano (1980). 44 Professor pesquisador em regime de dedicação integral da PUC-Campinas. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Linguagens, Mídia e Arte (mestrado) do Centro de Linguagem e Comunicação. Doutor em Artes Visuais (2013) pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Como pesquisador, atua na confluência das imagens e da tecnologia, com interesse por aspectos sociais, políticos e culturais de fenômenos da comunicação digital. É autor do livro Ativismo digital e imagem: estratégias de engajamento e mobilização em rede (Paco Editorial, 2016). Faz parte da organização geral do evento Redes Digitais e Culturas Ativistas desde 2017. 45 Michel Foucault (Poitiers, 15 de outubro de 1926 – Paris, 25 de junho de 1984) foi um filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France, de 1970 até 1984. Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós- modernista, Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. 55

Essas práticas cotidianas são o espaço no qual são produzidas as imagens da obra aqui analisada. Dentro do universo filmado, a presença da tecnologia, da câmera, é criadora de brechas e fissuras para a manifestação do cotidiano dos indivíduos filmados. Ainda sobre o cotidiano, Cezar Migliorin46, no livro Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje, afirma que no cotidiano pode-se observar a micropolítica em que se engajam os indivíduos, bem como suas relações com o consumo e a imagem. O cotidiano afirma a heterogeneidade dos desejos.

Dizer, por exemplo, que o capitalismo é essencialmente homogeneizador do desejo é ignorar a micropolítica em que estão engajados os sujeitos nas suas relações cotidianas com as imagens ou com o consumo. No cotidiano se esboça a imaginação sobre si e sobre o outro. (MIGLIORIN, 2010, p. 12)

Nesse sentido, a obra que estamos analisando não trabalha com versões fechadas e estereotipadas dos indivíduos. Isso mostra também como a produção contemporânea não olha para a dimensão acabada do sujeito, mas sim suas aberturas e presenças de corpos. Não se trata apenas da escolha das personagens, mas de uma abordagem que se distancia do idealismo ou de um discurso acabado, para estar com os corpos, com os gestos, com as falas, em frequente deriva. (MIGLIORIN, 2010, p. 12). É uma linguagem que transborda a estrutura dos arquétipos – daquele que se estabelece de um morador da comunidade de Brasília

Formosa. Muito da produção atual está baseada no encontro. Comolli, em Sob o risco do real, posiciona esse lugar como um risco, uma abertura.

Os filmes documentários não são somente abertos para o mundo: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo. Eles se apresentam de uma maneira mais forte que eles mesmos, maneira que os ultrapassa e, ao mesmo tempo, os funda. (COMOLLI, 2001, p. 1)

Outros aspectos estéticos dessa produção contemporânea podem ser observados na produção em rede, na aproximação da performance com o cinema (discorrida no capítulo 3), na horizontalização entre pessoas e processos, no crescimento e popularização das redes sociais, na desconstrução da forma cinema e

46 Professor do Departamento de Cinema e membro do Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual na UFF. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. Organizador do livro Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje (2010). 56

na redefinição da figura do autor. Assim como afirma Bourriaud, as práticas artísticas no contemporâneo se estabelecem nas relações humanas, e não mais entre homem e objeto, ou homem e transcendência (divindade).

1.5.2 Cinema Industrial e Cinema Pós-industrial

Essa nova maneira de se produzir cinema está diretamente relacionada com o sistema econômico sob o qual vivemos hoje, denominado por alguns como capitalismo pós-industrial. Migliorin, em seu ensaio “Por um cinema pós-industrial: notas para um debate”, expressa que a forma como vivenciamos o capitalismo hoje está diretamente relacionada com a produção de cinema, que não é mais pautada por uma indústria (relação vertical), e sim estabelecida dentro de relações horizontais:

O cinema pós-industrial se constitui com uma outra estética do set e das produtoras. Grupos e coletivos substituem as produtoras hierarquizadas, com pouca ou nenhuma separação entre os que pensam e os que executam. O que temos visto nos filmes reflete novas organizações de trabalho já distantes do modelo industrial. (MIGLIORIN, 2011, p. 4)

Essa formação é oposta à lógica industrial moderna, verticalizada, onde os sujeitos têm lugar e espaço definidos para ocuparem. Nessa lógica, o cinema é organizado de maneira hierárquica na produção, de modo a haver roteirização e organização prévias, determinadas pela previsibilidade, rejeitando qualquer tipo de desestabilização. Já na atual produção contemporânea, têm-se como alicerce o acontecimento, a produção processual e colaborativa.

[...] uma vez que trabalham o filme dentro de um processo de construção em que o projeto é composto de intenções, encontros, performances, compartilhamentos – e não de roteiro e realização, como prevê a lógica industrial. (MIGLIORIN, 2011, p. 5)

Para o autor, as novas produções cinematográficas carregam as características de um capitalismo pós-industrial: a substituição do trabalho físico pelo imaterial e cognitivo, em que a subjetividade e forças criativas são convocadas a operar no interior do processo produtivo. A produção de imagens está nesse contexto, sendo 57

assim, passível de ser pensada como signo. Para Lazzarato47 (2014, p. 39), “os fluxos de signos são condições de produção tanto quanto os fluxos de trabalho e moeda”.

[...] trata-se de um capitalismo flexível, não hierárquico [...]. Ou seja, o capitalismo contemporâneo torna-se, cada vez mais intensamente, capilarizado à vida ordinária, a seus excessos e suas gratuidades. (BRASIL; MIGLIORIN, 2010, p. 88)

No capitalismo industrial, o valor está no produto e é baseado na lógica da restrição e do controle; enquanto algo tem valor, há algo que não tem. Já no capitalismo pós-industrial, o valor está localizado no que é gerador e propagador: é intensificado pelo compartilhamento. No primeiro, os meios de produção são detidos pela classe dominante; no segundo, os meios são dispersos, deslocados e acessíveis. Assim como afirma Ilana Feldman48, em seu artigo “O apelo realista” (2008), no cerne do capitalismo pós-industrial as ferramentas do audiovisual contemporâneo empregam uma construção de filtros do “real”. Alguns indícios desta afirmação podem ser vistos na popularização das redes sociais e das narrativas que vivemos nessas plataformas, através da “documentarização” das vidas, no sucesso do formato reality show e na propagação da imagem amadora. Essas ferramentas do real junto à experiência do cotidiano nos revelam uma estética atrelada ao capitalismo cognitivo.

O capitalismo contemporâneo, em sua vertente imaterial, cognitiva e biopolítica, tem se constituído por estratégias que deslocam os processos vitais, moleculares e individuais da existência humana para o centro de seus investimentos, capitalizando e reativando, permanentemente, a vida ordinária e a dimensão estética da experiência dos sujeitos. Ao fazer da vida, dos corpos, do imaginário, dos modos de produção subjetiva, da experiência estética, da comunicação e da informação seu núcleo vital e fonte de inesgotável lucratividade, o capitalismo pós-industrial operaria então esteticamente, no seio de um regime de visibilidade, de sensibilidade e de verdade, em que a vida e as imagens, em sua plasticidade e capacidade de invenção, tanto escapam às dominações quanto demandam ser por elas reativadas. (FELDMAN, 2008, p.1)

47 Maurizio Lazzarato (Itália,1955) é um sociólogo e filósofo italiano residente em Paris, onde desenvolve pesquisas sobre a ontologia do trabalho, biopolítica, trabalho imaterial e capitalismo cognitivo. 48 Ilana Feldman é pesquisadora, crítica e realizadora do audiovisual. Atualmente é pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP. É doutora em Cinema pela ECA-USP, com a tese Jogos de cena: ensaios sobre o documentário brasileiro contemporâneo. 58

Dessa maneira, o capitalismo imaterial submerge no que se compreende como experiência do cotidiano, lugar que pode ser entendido como uma proposição artística, mas que também é o lugar próprio da movimentação do capital.

Capitalismo imaterial, imagético e biopolítico, que faz da vida cotidiana e da dimensão estética da experiência (que deixaria de ser domínio restrito da arte) o próprio modus operandi das estratégias de produção e circulação de capital. (FELDMAN, 2008, p. 66)

Vladimir Safatle49, ao ler Deleuze50 e Guattari51, identifica que a sociedade de consumo levou os processos de socialização do desejo para o âmago do capitalismo. Sendo assim, esses processos não dependem mais da repetição da norma e de estereótipos, pois estão desterritorializados. Dessa forma, a flexibilização e as horizontalidades, de alguma maneira, também servem para a manutenção do capitalismo.

O que pode ser entendido como afirmação de que o capitalismo não procurava mais impor conteúdos normativos privilegiados, mas socializar o desejo através de sua desterritorialização violenta, da fragilização de seus próprios códigos, da flexibilização das identidades que ele mesmo produz. (SAFATLE, 2008, p. 18)

Identificado isso, pode-se perceber a importância do audiovisual diante do capitalismo cognitivo e imaterial, pois, em sua dimensão micropolítica e inserido nos fluxos subjetivos, o cinema tem a capacidade de tensionar as formas hegemônicas de poder.

Podemos dizer, assim, que a guerra econômica do capitalismo é uma guerra sensível, uma disputa que se dá na virtualidade, no acontecimento. É nessa disputa sem fora que o documentário encontra e tensiona o capitalismo. (MIGLIORIN, 2011, p. 19)

49 Vladimir Pinheiro Safatle (Santiago do Chile, 3 de junho de 1973) é um filósofo, escritor e músico brasileiro nascido no Chile. Sua produção intelectual centra-se nas áreas de epistemologia da psicanálise e da psicologia, filosofia política, tradição dialética e filosofia da música. 50 Gilles Deleuze (Paris, 18 de janeiro de 1925 — Paris, 4 de novembro de 1995) foi um filósofo francês. Explorou diversos temas filosóficos ecléticos, centrados na produção de conceitos como diferença, sentido, evento, rizoma, etc. 51 Félix Guattari (Villeneuve-les-Sablons, Oise, 30 de abril de 1930 — Cour-Cheverny, 29 de agosto de 1992) foi um filósofo, psicanalista e militante revolucionário francês, famoso por suas colaborações com o filósofo Gilles Deleuze. Entre os conceitos e noções criadas por Guattari estão: Transversalidade, Ecosofia, Caosmose, Desterritorialização, Ritornelo, Singularidade, Produção de Subjetividade, Capitalismo Mundial Integrado, etc. 59

1.5.3 Redes Colaborativas e o Fenômeno da Brodagem

Outro tensionamento que pode ser observado nas produções contemporâneas, dada a não hierarquização vista anteriormente, são as redes colaborativas de produção, fenômeno que, no cinema pernambucano, foi denominado brodagem. Esse fenômeno da brodagem, gíria que é um aportuguesamento da palavra brother (“irmão”, em inglês), demonstra um modo de produção e organização coletiva, local e colaborativa das produções audiovisuais em Pernambuco, que também se estabelece como um sistema afetivo de amizades e favores.

Segundo Amanda Mansur Custódio Nogueira52:

[...] cada cineasta, por si só, estabelece e estreita essas relações, ao aprovar novos projetos, conseguindo emprego para os outros amigos e retribuindo favores. Assim, a manutenção do emprego de cineasta, dentro dessa cena audiovisual na cidade, vem do número e da qualidade das relações estabelecidas. (NOGUEIRA, 2014, p. 49)

O filme Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, e outras produções contemporâneas podem ser localizados dentro desse contexto de cinema realizado de maneira colaborativa, que também é resultado de alguns fatores específicos da cena audiovisual de Pernambuco, como os mecanismos de financiamentos e editais públicos, a utilização de baixo orçamento e uma nova configuração de distribuição e exibição dos filmes. Nesse sentido, é possível localizar essa obra dentro de uma estética relacional, conforme conceito desenvolvido por Bourriaud, que coloca ênfase no vínculo das relações humanas com a arte, do artista com outros artistas e com seu “público”. Nessa estética relacional, há uma valorização das relações constituídas pelos trabalhos em seu processo de realização e de exibição, com o envolvimento de artistas e do público; os encontros dentro e fora do filme efetivam uma elaboração coletiva de sentido. Dessa maneira, o filme se estabelece como uma proposição artística relacional que cria momentos de sociabilidade e que opera dentro do universo das relações humanas, e somente com elas pode existir.

52 Amanda Mansur Custódio Nogueira é professora do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Possui mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco e pós-doutorado na University of Reading, no Reino Unido. É autora dos livros O novo ciclo de cinema em Pernambuco: a questão do estilo, lançado pela Editora Universitária da UFPE (2010), e A aventura do Baile Perfumado, lançado pela CEPE (2016). 60

A brodagem também expressa um caráter contemporâneo da produção artística que vem se configurando ao longo do século XXI, e indica uma desconstrução da hierarquização nos processos de produção fílmica, o que a aproxima de um dos procedimentos englobados na abordagem das extremidades, de Christine Mello. Outro ponto da abordagem das extremidades presente é dado pelo compartilhamento, pela rede de encontros calcada em um modo colaborativo de produção: “Criar espaços de compartilhamento implica criar comunidades. Significa a potência do colaborativo, em que a experiência é compartilhada em rede”. (MELLO, 2017, p. 16) Portanto, a brodagem é um fenômeno pelo qual é possível colocar luz sobre a produção do audiovisual em Pernambuco e pode ser localizada na obra de Mascaro através da constituição de grupos de cineastas que operam em um modo colaborativo de produção, característica que se configura dentro (na própria dinâmica que o filme cria entre os moradores) e fora do filme (nas relações de produção).

Conectar, se colocar em relação com o outro, procurar coimplicações, confrontações com o espaço coletivo; ação no lugar da contemplação, a experiência para alargar o saber, os gestos, as atitudes, os conhecimentos, dinamizar as criações e as conexões, possibilitando a vivência de fenômenos inéditos, o cineasta como conector. (MIGLIORIN, 2011, p. 4)

Essa horizontalidade está presente não somente na produção e na relação construída entre os moradores, mas também dentro dos elementos do filme: a cidade, os objetos e as pessoas apresentam igual importância na composição da obra. A horizontalidade entre esses elementos apresenta também um caráter performático na produção contemporânea, pois a performance é sempre relacional, seja com pessoas, objetos ou espaços em que está inserida. A atriz, performer e pesquisadora Ana Goldenstein Carvalhaes53, ao observar o Teatro do Absurdo54, identifica que a horizontalidade dos elementos que o constituem

53 Ana Goldenstein Carvalhaes é doutora em Psicologia Clínica pelo Núcleo da Subjetividade PUC-SP e mestra em Estética e História da Arte, USP (CAPES). Publicou o livro Persona Performática (Editora Perspectiva, 2012). Bacharel em Comunicação e Artes do Corpo pela PUC-SP, foi docente da Uniso, Teatro Escola Celia Helena, Ebac e FASM. Estudou Ciências Sociais na USP. Participou do Núcleo de Antropologia da Performance e Drama (Napedra) da USP e pertence ao Grupo de Estudos da Performance da PUC-SP. Realizou iniciação científica sob orientação de Renato Cohen. Como performer, desenvolveu uma série de trabalhos, principalmente com o poeta Gabriel Kerhart. É atriz da Cia. Teatral Ueinzz desde 2001, com quem percorreu diversos teatros paulistas e os maiores festivais nacionais, a Bienal de São Paulo, além de experiências cênicas do exterior (Finlândia, Portugal, Holanda e Argentina). Pesquisa principalmente os seguintes temas: performance, work in process, processos criativos e copoiesis. 54 Teatro do Absurdo foi a designação criada em 1961 pelo crítico húngaro radicado na Inglaterra, Martin Esslin (1918-2002), tentando sintetizar uma definição que agrupasse as obras de dramaturgos de diversos países, as quais, apesar de serem completamente diferentes em suas formas, tinham como 61

e a lógica não verticalizada dos quadros e cenas desse movimento teatral são típicas das linguagens que estão em tensionamento: “Esse tratamento horizontal dos elementos é comum a outras linguagens, com ênfase naquelas híbridas”. (CARVALHAES, 2012, p. 34)

Outro aspecto importante da rede colaborativa no cinema é que ela insere uma problemática na figura do autor/diretor. No contemporâneo, essa figura foi se esvaziando até chegarmos a uma dissolução quase total desse papel, que pode ser sentida de forma mais presente na edição do filme. A dissolução da figura do autor/diretor se amplia na medida que a cultura colaborativa e do compartilhamento se consolida. Essa maneira de se produzir audiovisual também foi chamada pelo pesquisador Alex Molleta como cinema de grupo:

[...] os problemas da sua comunidade, da sua rua, do seu quintal podem ser transformados em um vídeo de ficção ou em um documentário digital. Isso é regionalizar o cinema, apropriar-se de uma linguagem artística que por muito tempo permaneceu elitizada e entregá-la à população. Isso é cinema de grupo. (MOLLETA, 2010, p.17)

A partir destas reflexões, é possível perceber e destacar que uma produção audiovisual descentralizada contribui para a noção de uma descolonização simbólica. Historicamente, como vimos, na produção cultural em Pernambuco há a hibridização, a atitude antropofágica, a produção coletiva e a abertura para a tecnologia como importantes e influentes características culturais e artísticas.

ponto central o tratamento inusitado de aspectos inesperados da vida humana. Essas obras estavam focadas em questões existencialistas e tentavam expressar o que acontece quando a existência humana é tida como sem sentido ou sem propósito, resultando na dissolução das comunicações. 62

CAPÍTULO 2

Figura 24: Frame de Avenida Brasília Formosa, do diretor Gabriel Mascaro, objeto selecionado para esta pesquisa.

63

CAPÍTULO 2 GABRIEL MASCARO ENTRE LINGUAGENS

Ao se compreender os contextos histórico, social e estético em Pernambuco, foi possível perceber que a atual produção se caracteriza por hibridizações entre fenômenos e linguagens. A partir disso, este capítulo tem como objetivo entender a obra de Gabriel Mascaro, Avenida Brasília Formosa, por meio da análise de procedimentos que a atravessam. Para esta análise, leva-se em conta a abordagem das extremidades, de Christine Mello, segundo a qual os vetores de desconstrução, contaminação e compartilhamento podem ser observados através das seguintes articulações:

1) O vetor da desconstrução através da subversão do regime de imersão na sala de cinema, produzindo ressignificações relacionadas à experiência estética do cinema contemporâneo. 2) O vetor da contaminação por meio das hibridizações do cinema com a performance, videoperformance, reality show, vídeo, rede e linguagem gráfica. 3) O vetor do compartilhamento através do fenômeno da brodagem e da produção colaborativa.

Com isso, o objetivo deste capítulo é compreender esse objeto em sua condição descentralizada e tensionada por diversos atravessamentos artísticos e midiáticos.

2.1 Avenida Brasília Formosa

Como dito anteriormente, Avenida Brasília Formosa (2010) aborda questões acerca do bairro de Brasília Teimosa, situado na zona sul de Recife. O filme articula questões sobre a especulação imobiliária, assim como estabelece relações entre moradores do bairro. São eles: Fábio (garçom, videografista, dançarino), Débora (manicure e candidata ao BBB), Cauã (uma criança); Pirambu (pescador que foi removido das palafitas em detrimento da construção da Avenida). 64

Figura 25: Frame do participante Cauã. Figura 26: Frame do participante Fábio.

Figura 27: Frame do participante Pirambu. Figura 28: Frame da participante Débora.

O filme se caracteriza como resultado de uma hibridização entre ficção e documentário, vista como efeito de uma interação entre procedimentos performáticos e cinema. Levando em conta a abordagem das extremidades, a obra aqui estudada é vista sob a confluência das linguagens, que se encontram em situação de constante tensionamento. Sendo assim, a obra cinematográfica é observada pelos seus aspectos híbridos, demonstrando esse processo de intersecção no audiovisual. Para Christine Mello, em Extremidades do vídeo, a partir dos anos 1990, com as chamadas novas mídias, há um grande movimento de ressignificação e hibridização entre os meios e as linguagens, característica que a autora remonta à antropofagia brasileira55.

O caráter antropofágico da arte produzida com as novas mídias a partir dos anos 90 no Brasil está associado ao uso de linguagens constantemente apropriadas e ressignificadas umas nas outras. Esses procedimentos são caracterizados tanto pela intensa hibridez, colagem e recombinação entre

55 O movimento antropofágico foi uma manifestação artística brasileira da década de 1920, fundada e teorizada pelo poeta paulista Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral. A utilização do termo “antropofágico” está relacionado à “antropofagia”, que refere-se ao ato de comer ou devorar a carne de outra pessoa. Dentro da história, ela é usada para apontar atos ritualísticos, no qual se acredita que, ao comer a carne de um outro homem, a pessoa estaria adquirindo também as suas habilidades. Trazendo para a realidade do movimento antropofágico, a ideia sugerida por Andrade era basicamente “devorar” essa cultura enriquecida por técnicas importadas e promover uma renovação estética na arte brasileira. 65

meios, imagens, sons e textos (a dimensão remix) quanto pelas trocas estabelecidas entre as mais variadas práticas e ambientes criativos. (MELLO, 2008, p. 209)

É possível convocar a leitura das extremidades de Christine Mello nesse objeto que se encontra descentralizado, tensionado e contaminado por diversas linguagens, e visto em sua dimensão limítrofe, em sua condição de fronteira, com diversos atravessamentos artísticos e midiáticos. Espaço em que há a convivência entre forças distintas.

A noção de extremidades é embasada, enquanto “caminho de leitura”, em direção à observação de pontos de tensão, situações conflituosas existentes no cerne dos trabalhos em análise. Diferentemente da noção ocidental atribuída às extremidades, que a relaciona a forças opostas, dicotômicas, polarizadas, a presente noção de extremidades é articulada a partir da convivência de forças plurais e complementares. É utilizada como atitude de olhar para as bordas, observar as zonas limites, as pontas extremas, interconectadas em variadas práticas artísticas e midiáticas. (MELLO, 2017, p. 13)

Os diálogos entre linguagens nesse filme podem ser observados através da articulação e potencialização do cinema com as linguagens do vídeo, da estética amadora, linguagem arquitetônica, imagens de softwares de edição, linguagem televisiva do reality tv, linguagem gráfica do videogame, videoarte e videoperformance.

Hoje, a percepção da hibridação entre os meios é dominante, assim como sua dupla potencialização. É essa linha de continuidade que nos interessa. O vídeo aparecendo como potencializador do cinema e vice-versa. Podemos destacar cineastas que, mesmo fazendo cinema, já trabalhavam com princípios (a não linearidade, a colagem, o “direto”, a deriva) que se tornariam característicos da videoarte e da linguagem do vídeo. O cinema de Jean-Luc Godard ou os procedimentos do cinema direto (para ficarmos nos anos 60) já traziam algumas destas questões, caras ao novo meio e que iriam influenciar fortemente o moderno cinema brasileiro. Uma linha de continuidade entre cinema e vídeo bem mais longa pode ser traçada, principalmente se pensarmos em processos e procedimentos em vez de suportes. (BENTES, 2007, p. 112)

Todos esses tensionamentos são capazes de revelar a multiplicidade de leituras que esse filme pode receber: um vídeo experimental, um diário gravado de narrativas pessoais, um reality dos moradores da comunidade, um jogo gravado na comunidade, uma experiência compartilhada em tempo real, um documentário performático, um filme-ensaio, uma intervenção urbana, uma ficção. 66

Todos esses caminhos podem ser tomados e revelam a cultura, o sujeito contemporâneo e as linguagens em trânsito, seus processos e as intersecções entre arte, tecnologia e humanidade.

2.2 A Contaminação das Linguagens

Na obra analisada, é possível observar o diálogo com a linguagem do vídeo e os tensionamentos entre imagem amadora e profissional por meio de alguns elementos: as sequências nas quais é exibido o material produzido pela câmera digital do participante Fábio56; o jogo performático presente nos encontros entre moradores, que estabelecem uma produção de presença que resulta das intensidades da comunicação face a face; a rede que se estabelece na produção dos filmes em Pernambuco, e que é caracterizada por grupos de cineastas que atuam de modo colaborativo no processo de produção designado localmente como brodagem; a arquitetura e a verticalidade das imagens através da crítica ao projeto de reurbanização social da cidade e de Brasília Teimosa, reutilizando o espaço da comunidade como canal de reaproximação entre pessoas e afetos, demonstrando a especulação imobiliária e a realocação de famílias resultantes dessa urbanização. Para a observação dessas hibridizações em imagem, partiremos para uma análise do filme e, após, de algumas de suas sequências.

2.2.1 Análise dos Processos em Torno da Obra

A obra de Gabriel Mascaro tem uma estrutura em blocos que não possuem uma conexão linear. Essa conexão é construída a partir da relação estabelecida entre os moradores através da presença da câmera, ou seja, é uma construção coletiva e subjetiva. Dessa forma, não é possível identificar um arco dramático definido da maneira clássica. O trabalho é construído por meio da experiência participativa entre espectador e obra, podendo ser assistido em qualquer ordem ou interpretação. Muito comum no cinema de fluxo, o objetivo maior desse tipo de procedimento é afetar e interagir com quem assiste ao filme. No cinema de fluxo, dá-se preferência a planos

56 O participante Fábio, além de trabalhar em um restaurante, realiza filmagens de diversos eventos, como casamento e aniversário. É ele quem irá produzir o vídeo do aniversário de Cauã e o de Débora para inscrição no reality show Big Brother Brasil (BBB). 67

grandes (plano geral, plano conjunto, plano médio), com movimentação de câmera fixa ou em movimentos lentos (travellings e/ou câmera na mão), sempre com uma longa duração dos planos. Essas características criam a composição do espaço- tempo de uma totalidade do plano, sem que soframos intensamente a brutalidade do corte. Nesse espaço-tempo, a câmera move-se de maneira que parece querer revelar, sugestionar dois espaços: o que está dentro e fora do quadro. A câmera não impõe, mas sugere situações. O acontecimento leva a duração que necessita para chegar ao fim. Inclusive temos a sensação de que não há fim, somente o fluxo de pessoas no cotidiano e da cidade. A transitoriedade é a diretriz que conduz o tempo do filme. A câmera constitui uma relação próxima com os corpos e ambientes. A procura da câmera não é por informações, capazes, talvez, de nos fornecer dados que auxiliem para um encadeamento lógico dos acontecimentos diegéticos. A câmera parece querer habitar aquele espaço-tempo, emanando aquela realidade através de sua presença. É uma câmera-corpo. Assim como Ana Paula Nunes expressa em Cinema, dança e videodança (entre-linguagens):

Também vemos ganhar força cinematografias diversas que têm em comum o desejo de privilegiar o sensorial em vez da narrativa. Em geral, esses filmes contam com uma relação câmera-corpo muito forte potencializada pelas câmeras digitais. O espectador se projeta no filme através de uma câmera móvel, instável, ativa, que dança. Cinema de imperfeição, que imprime uma revalorização da experiência perceptiva […]. (NUNES, 2009, p. 9)

Diante disso, a construção de relações, ou melhor, o encontro, seria o leitmotiv57 do filme. A partir dessa proposição, não há possibilidade de categorizá-lo como ficção ou documentário, em dois sentidos: 1) o filme não é caracterizado por gênero; 2) essa característica é utilizada, ao longo do filme, como um recurso que permite que as interferências do diretor e as relações ali construídas sejam reavaliadas e ressignificadas constantemente. Pode-se observar essa característica pelo ponto de vista adotado pela câmera, que ora parece observar a ação com longos planos gerais em ritmo lento (instiga o espectador a explorar cada aspecto da cena, multiplicando, assim, as interpretações), ora está extremamente ligada às pulsões dos participantes e às suas particularidades cotidianas. Essa perspectiva de observação também se alterna com os pontos de vista

57 Do alemão, “motivo condutor” consiste em um tema ou ideia musical que aparece constantemente no decorrer de uma obra com o objetivo de associá-lo a um personagem, objeto ou ideia. 68

de um observador ou do “diretor”, ou também com a visão do participante Fábio e sua câmera. Essas imagens, em seu aspecto estético, possuem naturezas imagéticas distintas, alternando entre uma imagem “profissional” e “amadora”, mostrando diferentes enunciações e texturas. Outro componente estético a ser aqui destacado é a construção da paisagem do filme, que, através da composição dos elementos da cena, expressa metaforicamente a verticalização da orla como símbolo da especulação imobiliária. Já a paisagem sonora do filme é caracterizada por uma trilha diegética, na qual predomina o ritmo brega58 e os sons da cidade. Há uma variação entre sequências em que predomina o silêncio (que também funciona como ampliador de possibilidades de sentido) e outras em que está presente a discursividade (diálogos e interações entre os participantes).

2.2.2 A Sequência da Festa de Aniversário de Cauã

Pode-se observar o diálogo com a linguagem do vídeo nas sequências em que o material produzido pela câmera digital do participante Fábio é exibido.

Figura 29: Frame do vídeo da festa de Cauã feito por Fábio com sua câmera amadora.

Nesse momento, é possível ver a presença das imagens amadoras de Fábio simultaneamente às captadas pela câmera profissional (do diretor) que filma tanto ele quanto a festa de Cauã. Essa simultaneidade de imagens de naturezas distintas – amadora e profissional – demonstra um dos tensionamentos da linguagem no

58 Brega é um gênero musical brasileiro. Sua definição como estética musical tem sido um tanto difícil, pois não há um só ritmo musical propriamente “brega”. É uma definição muito usada para designar a música romântica popular. 69

filme, que se apresenta pela hibridização entre elas. Pode-se observar também, nessa sequência, o encontro do participante Fábio com o participante Cauã, momento em que a rede de contatos do se filme estabelece.

Figura 30: Frame da imagem profissional mostrando o momento em que o participante Fábio está gravando a festa de Cauã.

É possível observar, posteriormente, a presença da linguagem do software de edição utilizado naquela época, e que demonstra um outro tensionamento para essa imagem amadora.

Figura 31: Frame do vídeo do aniversário de Cauã editado com um software da época.

Esse momento da festa de aniversário de Cauã também revela a imagem em suas diversas temporalidades, simultaneamente. Em primeiro lugar, temos a imagem gravada pela câmera de Mascaro, que demonstra uma pré-imagem da câmera de Fábio. Em segundo, temos a imagem da câmera de vídeo de Fábio, que mostra o momento exato daquele acontecimento e, simultaneamente, tem-se a imagem editada, com a presença da ação do software de edição, que é a imagem da pós- 70

produção. É como se Mascaro quisesse mostrar para nós a gênese da imagem como a consumimos hoje, já manipulada pela ação do software, uma imagem híbrida, criada para ser editada, através de uma lógica do software. O software transfigura-se como nossa interface com o mundo, com os indivíduos, com nossa memória e imaginação. Para Lev Manovich59, o software é hoje o que era a eletricidade no século XX, “uma linguagem universal com a qual o mundo fala e um motor universal por meio do qual o mundo funciona. O software é para o início do século XXI o que a eletricidade e o motor a combustão foram para o início do século XX”. (MANOVICH, 2013, p. 2).

2.3 A Produção de Presença

Outro diálogo entre linguagens pode ser observado na performance que o filme estabelece a partir do encontro entre moradores, criando uma produção de presença que resulta das intensidades da comunicação face a face, construindo uma rede entre as pessoas envolvidas. É a brodagem vista em frente às câmeras. O jogo do filme também acontece nesse momento, em que essas interações – reais ou ficcionais – pouco importam, já que a própria relação, as conexões e o acontecimento são os condutores do filme. Essa presença construída através da câmera constitui um movimento importante para a performance feita para ser apreciada através da câmera, ou seja, uma ação que é provocada e ao mesmo tempo documentada por ela (esse assunto será discutido mais detalhadamente no capítulo 3).

59 Lev Manovich (Moscou, 1960) é crítico de cinema e professor universitário, estabelecido nos Estados Unidos. É pesquisador na área de novas mídias, mídias digitais, design e estudos do software. 71

Figura 32: Frame de Débora conversando com outra participante.

Figura 33: Frame de Débora interagindo com outras participantes.

2.4 A Verticalização de uma Comunidade

Pode-se observar também um intenso diálogo do filme com a arquitetura da cidade através da crítica ao projeto de reurbanização social da comunidade de Brasília Teimosa. Essa comunidade tem um valor simbólico muito expressivo no cinema nacional (CAVANI, 2016), pois foi locação de filmes emblemáticos, como Deus é Brasileiro (Cacá Diegues, 2003), Olhos Azuis (José Joffily, 2010), Amor, Plástico e Barulho (Renata Pinheiro, 2013) e Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016).

72

Figura 34: Frame do filme Amor, Plástico e Barulho (Renata Pinheiro, 2013) na praia de Brasília Teimosa.

Figura 35: Frame do filme Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016), mostrando prédios que atravessam a comunidade de Brasília Formosa.

Dessa forma, temos a reutilização do espaço da comunidade como canal de reaproximação entre pessoas e afetos, indo contra a verticalização da cidade, como pode-se observar em algumas sequências que demonstram a especulação imobiliária e a relocação de famílias resultante da urbanização da comunidade de Brasília

Teimosa. Para o geógrafo Jeff Hopkins, a representação da paisagem tem uma importante função no cinema, pois ela situa o espectador em um lugar cinemático onde valores morais e papéis sociais podem ser sustentados ou subvertidos. A geógrafa Ana Francisca de Azevedo, em seu artigo “Geografia e cinema”, articula a 73

importância das paisagens culturais que o cinema cria: “O cinema, nas suas mais variadas expressões, ajuda a compreender o papel da memória e dos diferentes imaginários geográficos na criação de imagens de lugar e na construção de paisagens”. (AZEVEDO, 2009, p.101). De acordo com Azevedo:

[...] o cinema, então, funciona como ativador na transformação das relações entre os indivíduos e o espaço: ao entrar em contato com a imagem fílmica, o espectador desenvolve uma interação específica com o espaço, e ao vivenciá-lo diretamente, o mesmo já aparecerá emoldurado. (AZEVEDO, 2009, p. 101)

Dessa forma, arquitetura e cinema são linguagens que dialogam de maneira integrada no filme, já que as duas linguagens manipulam a percepção do tempo e espaço. Na obra aqui estudada, tem-se a arquitetura da Avenida e da comunidade de Brasília Teimosa como paisagem cinemática que promove debates relativos ao espaço urbanizado. Entender como a arquitetura e o cinema constroem a percepção e a experiência do espaço é de suma importância para compreender o que Mascaro pretende com a ressignificação que seu filme estabelece sobre a comunidade de Brasília Teimosa.

Figura 36: Frame de Débora em meio à paisagem da comunidade.

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Figura 37: Frame que mostra a verticalização da orla lado a lado com a horizontalidade da comunidade.

É também importante ressaltar que a obra explora e concebe relações na cidade, deslocando o que seria o espaço percorrido do circuito da arte e do cinema, para vivenciar a cidade como uma experiência de subjetivação reflexiva autônoma60 (FOUCAULT, 2004, p. 236), no sentido em que os sujeitos experimentam a cidade a partir de si e das relações ali construídas, para além das ações e práticas institucionais, e não pelas práticas coercitivas,. De uma certa maneira, Mascaro proporciona neste trabalho a possibilidade de cada indivíduo se posicionar, de construir a subjetividade em seu sentido libertador, e não disciplinador. Como Guattari e Rolnik expressam por componentes de subjetivação (1996, p. 135): “qualquer problema importante, inclusive em nível mundial, está fundamentalmente vinculado às mutações da subjetividade nos diferentes níveis micropolíticos”.

2.5 Micronarrativas de Si – O Real em Jogo

De maneira metalinguística, um dos blocos do filme também coloca a apropriação da linguagem televisiva do reality show através das sequências que mostram as imagens da câmera amadora de Fábio gravando a participante Débora, manicure e candidata ao Big Brother Brasil (BBB)61. Nesse momento, temos a

60 Foucault rompe com uma dimensão unicamente individualista da subjetividade para estudá-la em sua dimensão coletiva: “a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade, no qual se relaciona consigo mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 236) 61 Big Brother Brasil (frequentemente abreviado como BBB) é a versão brasileira do reality show Big Brother, produzido e exibido pela Rede Globo. O programa consiste no confinamento de um número variável de participantes em uma casa cenográfica, sendo vigiados por câmeras 24 horas por dia, sem 75

construção de um novo nó na rede do filme, a partir do encontro do participante Fábio com a participante Débora. A utilização dessa linguagem se revela metalinguística, já que a motivação do filme são as narrativas de si, a exploração do cotidiano, a câmera submersa na intimidade, a vida banal e a performance diante das câmeras. A realidade explorada diante desses encontros.

Figura 38: Frame da imagem amadora da câmera do participante Fábio, que grava a participante Débora para sua inscrição no reality show Big Brother Brasil (BBB).

Nessa sequência do filme, pode surgir uma questão: as imagens do vídeo de Débora já existiam previamente ao filme de Mascaro ou foram produzidas para o filme? Isso nos mostra como essas imagens performadas já são imagens presentes nas nossas vidas, imagens que se constituem por uma demanda da mídia, incorporadas em nosso cotidiano. André Brasil aponta essa questão em seu texto “A performance: entre o vivido e o imaginado” (2011):

Em outros casos, este atravessamento se efetiva por meio de imagens midiáticas que, mais do que ilustrativas, emolduram a vida de seus personagens e constituem a própria escritura do filme. Emblemático nesse sentido, Avenida Brasília Formosa, de Mascaro, no qual uma das protagonistas participa de um vídeo que será enviado a Rede Globo, para a seleção do Big Brother Brasil. Este vídeo já existiria fora do filme? Ou foi produzido por demanda do diretor? Importa menos sabê-lo do que perceber, ali, o caráter constituinte destas imagens provenientes da mídia ou a ela endereçadas. (BRASIL, 2011, p. 4)

Portanto, essa questão elucida em como a popularização do formato reality show, consiste na propagação da lógica da indeterminação entre vida real, cotidiano

conexão com o mundo exterior. O nome do programa deve-se ao livro 1984, escrito em 1948 por George Orwell. 76

e ficção, que se realiza sob a forma de jogo, articulado por meio da gestão de vidas e da construção da subjetividade coletiva. Porém, ao se capilarizar na vida, nos desejos, comportamentos dos sujeitos, o formato do reality mostra que pode também indicar e revelar aspectos da sociedade através das microrresistências, das ressignificações na construção das relações sociais, levantando importantes pautas, como foi visto na edição do Big Brother Brasil em 2020, que levantou questões relacionadas à micropolítica presentes no cotidiano dos participantes, como machismo, racismo e classismo explicitados por meio da linguagem, atos e gestos. Dessa forma, esses espaços de indeterminação tensionam não somente aspectos relativos às linguagens, como aspectos sociais.O reality pode ser visto como um dispositivo biopolítico (BRASIL; MIGLIORIN; FELDMAN, 2008):

É preciso que tudo se torne visível para que se possa não mais vigiar e punir - como nas modernas sociedades disciplinares -, mas espiar e premiar, controlar e estimular, constranger e liberar. Binômios paradoxais moduladores da experiência e da vida nas contemporâneas sociedades de controle, vida que tanto escapa às dominações quanto demanda ser por elas reativada, vida que reivindica a possibilidade de se furtar ao olhar alheio ao mesmo tempo em que solicita ser permanente observada. (FELDMAN, 2008, p .4)

2.6 Jogo Entre Linguagens

Outra extremidade do filme é a utilização da linguagem gráfica do videogame através de sequências retiradas da máquina de simulação de dança Pump it Up62, em que o participante Fábio dança na companhia de um grupo de pessoas.

62 Pump It Up é uma máquina de simulação de dança que alcançou extrema popularidade nos anos 2000. 77

Figura 39: Frame que mostra uma imagem gráfica de videogame com o nome do participante Fábio escrito.

Gabriel Mascaro sempre teve interesse em dialogar com essa linguagem e entender como o ambiente do jogo se articula com o cinema Seu web documentário As Aventuras de Paulo Bruscky se passa na plataforma virtual Second Life, um jogo on-line que simula a vida social humana.

Figura 40: Frame de As Aventuras de Paulo Bruscky (Gabriel Mascaro, 2010).

2.7 Ecos da Videoarte, Performance e Videoperformance

É possível também compreender os efeitos da videoarte no cinema através do caráter performático do filme, pela aproximação entre arte e vida, pelo uso do vídeo como expressão estética, pelo caráter experimental da obra e pelo alargamento do plano sensorial do espectador, no sentido em que o filme não produz imersão, mas 78

convoca o espectador para participar das vidas e encontros performados na presença da câmera. Convoca o espectador, pois somos engajados nos processos que partem do filme. Somos público e ao mesmo tempo autores, “atuantes na prática cinematográfica e não apenas sujeitos do espetáculo”. (COMOLLI, 2008, p. 10) Assim como a câmera, que, mesmo fora de quadro, de alguma forma está presente na cena, o espectador é imprescindível na construção da experiência que a obra produz. Ao direcionar um olhar para a cena, por um lado quer acreditar no que vê; por outro, se vê dentro de uma sala escura. Dessa forma, entrelaça-se uma trama híbrida, com presenças virtuais e físicas. Esses tensionamentos colocam o corpo do espectador em sua vitalidade, convocado a participar daquela experiência.

Assim como a projeção de um filme não se desenrola apenas na tela da sala, mas também na tela mental do espectador, o espectador que o cinema supõe não está (apenas) diante do filme, mas no filme, capturado e desdobrado na duração do filme. Não há, portanto, apenas técnica e ideologia [...] há, simultaneamente, a invenção do espectador como sujeito do cinema, sujeito do filme e sujeito da experiência vivida que é a projeção de um filme (COMOLLI, 2008, p. 97).

Uma performance gravada, dentro de uma obra localizada no âmbito do cinema, traz questões sobre seu registro. Podemos ver pelo viés de que o registro de uma performance pode alcançar mais pessoas e disparar experiências em quem entra em contato com esse material, multiplicando seus sentidos, ampliando espaços de interpretação.

O registro materializa a experiência independente dos corpos envolvidos diretamente nela. O registro amplia consideravelmente o público de uma performance, mas de uma maneira específica, já que tais espectadores terão um contato mediado com o acontecimento originário. Sua experiência é mediada. De fato essas imagens de registro podem inclusive tornar-se outra coisa, um dispositivo que dispara experiências em quem entra em contato com ele. (VEIGA, 2016, p. 14) 79

Figura 41: Videoperformance Registros (Paulo Buscky, 1979).

Como exemplo, apresentamos uma imagem da videoperformance Registros (1979), do artista multimídia pernambucano Paulo Bruscky63, que se estabelece a partir da relação corporal com o eletroencefalógrafo, que gera uma série de desenhos/traçados produzidos pela máquina a partir dos sinais emitidos por seu cérebro, que, segundo o artista, oscilavam a partir do seu estado psíquico. Nesse sentido, o processo de comunicação e interatividade produzido no enfrentamento do corpo com a câmera de vídeo pode ser observado através do diálogo com a videoperformance e com a arte conceitual. Bruscky, como um importante artista, não só na cena de Pernambuco, como na cena nacional e internacional, é uma referência presente em trabalhos de cineastas após sua geração. Como artista multimídia, suas obras são base direta da produção aqui analisada. Bruscky é um dos expoentes da arte conceitual no Brasil e um dos principais pioneiros nas diversas manifestações que envolvem arte, tecnologia e comunicação.

63 Paulo Roberto Barbosa Bruscky (Recife, 1949) é um artista multimídia e poeta brasileiro conhecido por sua ampla participação no movimento da arte conceitual brasileira. É um dos pioneiros da videoarte e do filme de artista no Brasil, já realizou cerca de 30 filmes e participou de diversas mostras no Brasil e no exterior. Criou os xerofilmes, que são filmes feitos a partir de sequências xerográficas, abrindo um novo campo para o desenho animado e o cinema experimental.

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Sua prática artística, fundamentada no entendimento de arte como informação, é marcada pelo experimentalismo contínuo, edificando obras plurais compostas por poesias visuais, livros de artista, performances, intervenções urbanas, filmes em Super-8 e obras em novas mídias. Sua produção também é caracterizada pela contestação social e política, decorrente da postura crítica e militante do artista, que teve o início de sua carreira marcada pela ascensão de governos militares, que resultou no estabelecimento de austeros regimes ditatoriais em diversos países latino- americanos, incluindo o Brasil. Mascaro e Bruscky apresentam um grande diálogo, que resultou ainda em uma obra que realizaram juntos, As Aventuras de Paulo Buscky. Em relação a esse projeto, Mascaro, em entrevista ao CEN (Cine Esquema Novo Expandido), expressou:

Eu já havia trabalhado com o artista Paulo Bruscky na videoarte “O Meu Cérebro Desenha Assim 2” e isso nos motivou a fazer algo juntos novamente. A ideia era ir além de um simples registro documental sobre Bruscky, para criar uma experiência visual de confronto com o suporte virtual do Second Life e o próprio universo artístico de Bruscky, incluindo a sua trajetória com os trabalhos ligado à “arte-correio” (Mail ART) e o Fluxus. (CINE ESQUEMA NOVO EXPANDIDO, 2011)

Pode-se observar dentro desse contexto algo parecido com o processo de manifestações artísticas brasileiras produzidas nos anos 1970, na esfera da arte conceitual. Para Christine Mello:

Nessas manifestações, a câmera não meramente registra a ação, ela possui outra função nesses trabalhos. Na medida em que não existe a interatividade com o público, com a audiência, ou com o outro, a interatividade do corpo do artista é produzida no enfrentamento com a própria câmera de vídeo. Desse modo, tais tipos de manifestações são o fruto do diálogo contaminado entre a linguagem do corpo e a linguagem do vídeo, gerando uma síntese, ou a chamada videoperformance. (MELLO, 2008, p. 144)

Por se tratar de um filme, e não de live cinema64, o material é gravado, e não produzido ao vivo, mas contém a presença do tempo real (MACHADO, 1988, p. 67) através do uso do tempo como recurso estético, retomando a vida do material gravado ao criar com o espectador uma relação de participação e divisão da existência das imagens do filme. Christine Mello, em seu texto “Arte nas extremidades”, presente no livro Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro, de Arlindo Machado, expressa:

64 Cinema ao vivo ou live cinema diz respeito à execução simultânea de imagens, sons e dados por artistas visuais, sonoros ou performáticos que apresentam suas obras diante de uma plateia. 81

O vídeo permite captar e exibir a imagem e o som simultaneamente, sendo possível, assim, tanto observar e interagir nas imagens e sons captados quanto deixar o registro fluir em tempo real, sem interrupções da ação. Arlindo Machado reitera que, “no universo da imagem técnica, só o vídeo pode restituir o presente como presença de fato, pois nele a exibição da imagem pode se dar de forma simultânea como a sua própria enunciação. (MACHADO, 1988, p. 67)

Mello expressa que, para Machado, há dois tipos de temporalidade no que tange à transmissão direta de uma mensagem, a do tempo real e a do tempo presente:

É necessário, porém, conforme explica Arlindo Machado, serem distinguidas duas perspectivas diferenciadas da transmissão direta da mensagem no meio eletrônico: a do tempo real, que diz respeito à simultaneidade do tempo simbólico com o tempo de exibição das imagens sons, e a do tempo presente, que diz respeito ao que reconhecemos como o tempo ao vivo, ou à simultaneidade do tempo de emissão com tempo de recepção. (MELLO, 2007, p. 142)

Figura 42: Frame de Cauã brincando na orla da Avenida.

Figura 43: Frame do participante Pirambu tecendo a rede de pesca.

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A leitura a partir das extremidades revela que não é possível falar de um cinema de forma dissociada de outras linguagens, pois o cinema se constrói a partir delas. Dentro disso, o vetor da desconstrução é visto por meio da subversão do regime de imersão na sala de cinema.

Esses procedimentos desconstrutivos nos levam à noção de uma destruição e uma reconstrução da obra, no sentido em que o filme, em um primeiro momento, aparenta ter uma estrutura narrativa tradicional e integrar um circuito padrão de exibição por ter participado de diversos festivais; já em um segundo momento, ele se reconstrói e se ressignifica, pois subverte a lógica do próprio filme: ele não constrói uma narrativa, não apresenta um roteiro fechado, não tem um objetivo claro, não constrói personagens; pelo contrário, expande os limites do filme quando nos deparamos com uma constante criação dada pelas performances dos sujeitos, com o devir, o que desemboca em uma obra que não tem um lugar definido de chegada, pois enfatiza o processo artístico, e isso nos leva a ter uma outra experiência estética. Dessa forma, o processo da desconstrução como vetor de leitura pode ser aplicado a filme, porque parece ser consciente a intenção de Gabriel Mascaro de desmontar e recriar o cinema, de refletir sobre o que é o cinema.

Ao ser exibido em festivais de documentários, a obra desestabiliza o conceito de documentário, de forma que o júri, o espectador que espera um formato, é surpreendido por uma produção que não tem delimitação entre a ficção e o documentário. Ao transgredir esse lugar, seja na montagem do filme ou pela forma como ele é exibido, Mascaro insere a obra em um estatuto de indeterminação.

Podemos dizer que Mascaro dilui não só as fronteiras de linguagem, mas as de gênero; compreende a obra em seu aspecto experimental, descontruído, buscando fundir arte e vida, aproximar a dimensão estética da dimensão cotidiana.

Outro vetor de leitura ligado à abordagem das extremidades que vimos neste capítulo é o da contaminação, em que há a potencialização do cinema a partir do contato com outras linguagens, mais fortemente vista, nesta análise, com a performance. Avenida Brasília Formosa também é contaminada por diversas outras práticas artísticas e midiáticas, como a videoperformance, o reality show, o vídeo, a noção de rede e a linguagem gráfica. Essa contaminação faz com que o filme do 83

Mascaro se abra para outras experiências, além de ampliar o espaço sensorial da obra. Como já asseverado, essa obra pode ter uma multiplicidade de leituras (vídeo experimental, um diário gravado de narrativas pessoais, um reality dos moradores da comunidade, um jogo gravado na comunidade, uma experiência compartilhada em tempo real, um documentário performático, um filme-ensaio, uma intervenção urbana, uma ficção), o que a mostra em seu aspecto tensionado pelas linguagens, e revelam a cultura, o sujeito contemporâneo e as linguagens em trânsito, seus processos e as contaminações entre arte, tecnologia e humanidade. Contaminações não só entre linguagens, mas entre corpo e câmera, produzindo um corpo híbrido. Já o compartilhamento como vetor de leitura coloca em xeque as práticas colaborativas entre o cinema contemporâneo e a performance, aqui vista através do fenômeno da brodagem, rede de cineastas em Pernambuco que atuam de modo colaborativo no processo de produção e que envolve a dissolução de uma hierarquia no cinema e horizontaliza processos de produção.

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CAPÍTULO 3

Figura 44: Frame de Avenida Brasília Formosa, do diretor Gabriel Mascaro, objeto selecionado para esta pesquisa.

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CAPÍTULO 3

PERFORMANCE COMO PROCEDIMENTO NAS EXTREMIDADES DO CINEMA CONTEMPORÂNEO

Ao observar a atual produção de cinema contemporâneo em Pernambuco, pode- se delinear um diálogo desse cinema com a performance. Essa produção está associada ao alargamento de conceitos acerca do cinema moderno. Não somente dentro do âmbito do cinema as imagens contemporâneas se apresentam dentro de uma dimensão performativa. André Brasil, em seu texto “A performance: entre o vivido e o imaginado”, diz que:

A passagem, transfiguração e transformação do mundo vivido em mundo imaginado, do real em ficção, é a contraface do apelo realista que marca fortemente nossas ficções. De fato a relação entre formas de vida e imagem – em suas continuidades e descontinuidades – está no centro da produção contemporânea, seja na mídia ou no cinema. (BRASIL, 2011, p. 2)

É nesse contexto, em que as imagens de ficção são atravessadas pela vida, que o cinema se abre para o mundo, que o “vivido” e o “imaginado” são imanentes, atravessados mutuamente pela aproximação entre arte e vida. Essas imagens estão nas extremidades da ficção com a vida. A partir disso, Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, promove reflexões e apontamentos de como podemos localizar o cinema hoje. Essas aproximações entre cinema e performance consistem na identificação e análise de alguns processos e procedimentos em que essa imagem é constituída: 1) São imagens de natureza acontecimental, já que o jogo do filme é performado no acontecimento. 2) O corpo que é convocado no filme se torna uma intervenção política na medida que o ato de filmar se torna uma ação coletiva. 3) A câmera não tem função de registro; ela mesma provoca, participa e afeta os moradores, diretor e público. 4) O filme se faz na ação ao mesmo tempo em que a instaura. 5) A câmera se torna uma interface performativa.

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Partindo dessas ideias, desenvolvemos neste capítulo uma análise que articula o cinema com a performance, com o acontecimento, com a arte processual, com o work in progress, com a construção da persona performática65. Outros elementos da performance que podem ser observados na produção de cinema contemporâneo e no objeto desta pesquisa são: a temporalidade construída pela própria experiência do filme; a abertura para o erro; a mediação dos corpos por mídias tecnológicas; aproximação com outras práticas artísticas e midiáticas (capítulo 2 deste estudo); a busca pelo processo e não pelo produto final; baixo custo de produção; a ressignificação de corpos, da cidade e das relações entre os moradores da comunidade; questionamento de parâmetros convencionais e tradicionais do cinema; criação de rastros e vestígios, materializando-se, no caso, na obra aqui analisada. Esse cenário aponta para uma produção de filmes híbridos, que evocam uma experiência estética específica.

3.1 A Arte da Performance

A arte da performance é a arte da presença, do instante, da experiência, do corpo. A arte contemporânea desloca os procedimentos artísticos e sociais do Modernismo66. Nesse contexto, instalações67, performances e happenings68 são realizados,

65 Cf. CARVALHAES, 2012. 66 Chama-se genericamente Modernismo (ou movimento modernista) o conjunto de movimentos culturais, escolas e estilos que permearam as artes e o design da primeira metade do século XX. Encaixam-se nessa classificação, entre outros campos culturais, literatura, arquitetura, design, pintura, escultura, teatro e música modernos. O Modernismo no Brasil foi desencadeado a partir da assimilação de tendências culturais e artísticas lançadas no continente europeu no período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial. Essas tendências denominavam-se vanguardas europeias, cujas principais delas foram o cubismo, o futurismo, o dadaísmo, o expressionismo e o surrealismo. 67 Uma instalação é uma manifestação artística contemporânea composta por elementos organizados em um ambiente. Ela pode ter um caráter efêmero (só “existir” no momento da exposição) ou pode ser desmontada e recriada em outro local. Diferentemente do que ocorre tradicionalmente com as esculturas ou pinturas, a mão do artista não está presente na obra como um item notável. Uma instalação pode ser multimídia e provocar sensações: táteis, térmicas, odoríficas, auditivas, visuais, entre outras. 68 O happening (em português, “acontecimento”) é uma forma de expressão das artes visuais que, de certa maneira, apresenta características das artes cênicas. Nesse tipo de obra, quase sempre planejada, incorpora-se algum elemento de espontaneidade ou improvisação, que nunca se repete da mesma maneira a cada nova apresentação. Apesar de ser definida por alguns historiadores como um sinônimo de performance, o happening é diferente porque, além do aspecto de imprevisibilidade, geralmente envolve a participação direta ou indireta do público espectador. 87

ressignificando e problematizando a arte, que se volta para a realidade, o cotidiano, a vida urbana. Desde sua origem até chegar na contemporaneidade, a performance dialoga com modalidades artísticas distintas, como artes plásticas, música, dança, literatura, teatro e, como visto aqui, cinema, desconstruindo as categorizações tradicionais e colocando em questão a própria definição de arte. De natureza experimental, a arte da performance advém da interação entre artistas que trabalham linguagens heterogêneas. A performance, portanto, sempre se apresentou disforme. É uma modalidade que se faz na contaminação com outras linguagens, mídias e tecnologias. A sua manifestação inicia-se nas práticas artísticas experimentais nas décadas de 1960 e 70, podendo ser compreendida a partir do desenvolvimento dos movimentos culturais e artísticos do minimalismo, da arte pop e da arte conceitual, e se torna objeto de pesquisa muito expressivo na pós- modernidade. Os anos 1960 se evidenciaram por uma transformação na esfera artística, marcada pelo fenômeno da desmaterialização da arte. Em “The Dematerialization of the Art”, Lucy Lippard e John Chandler discorrem sobre o desejo dos artistas por obras que evidenciam o processo e indicam uma consequente perda de interesse pelo objeto artístico. Dessa maneira, a obra de arte é desmaterializada em forma de ideia ou de ação. Suely Rolnik69 demonstra esse aspecto da arte através do estudo da produção de Lygia Clark70. Ao analisar a obra de Caminhando (1963)71, Rolnik compreende a proposição artística de Clark pela experiência que a obra promove:

A obra se realizaria nessa experiência, isto é, na temporalidade do gesto daquele que deixaria definitivamente de se reduzir à condição de “espectador” numa relação estéril com um objeto supostamente neutro e situado em sua exterioridade tornada inerte, para viver um espaço

69 Suely Rolnik é psicanalista, curadora, crítica de arte e da cultura e professora universitária. Perseguida pelo regime militar, viveu exilada na França entre 1970 e 1979. Retornou ao Brasil em 1979 e fundou o Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP, onde é professora até hoje. 70 Lygia Clark, pseudônimo de Lygia Pimentel Lins, foi uma pintora e escultora brasileira contemporânea que se autointitulava “não artista”. A poética de Lygia Clark caminha no sentido da não representação e da superação do suporte. Propõe a desmistificação da arte e do artista e a desalienação do espectador, que finalmente compartilha a criação da obra. 71 A origem da obra Caminhando foi um estudo de Lygia para um de seus Bichos: ao fazer um corte numa tira de papel em forma de fita de Moebius, a artista se deu conta de que a obra consiste na própria experiência de cortar aquela superfície e não no objeto que resulta do corte. 88

que se engendra no ato que se opera entre ambos, composto da fusão entre os corpos da mão, do papel e da tesoura. (ROLNIK, 2011, p.2)

Figura 45: Lygia Clark fazendo a obra Caminhando (1963). Fonte: MoMA.

3.2 Videoperformance

A arte desmaterializada inevitavelmente demandou suportes para seu registro. Performances, ações e happenings serão acompanhados pela fotografia e, principalmente, pelo vídeo. Nesse caso, a performance ganha um novo desdobramento, que pode ser chamado de videoperformance. Esse desdobramento ganha novos significados além do registro, ou seja, a performance é feita e articulada através do vídeo. “Muitas vezes a câmera funde uma imagem de um corpo com outro, só com o movimento – isso é uma performance, mas é uma performance da câmera. Se não houvesse a câmera, o artista não poderia fazer. O sentido dela é ser vista em vídeo” (SAMPAIO, 2012, p. 46). O artista e curador de arte Fernando Cocchiarale expõe sua visão sobre a performance em câmera discorrendo sobre Em preparação (1974), de Letícia Parente:

[...] como é que uma performance de Letícia Parente botando esparadrapos nos olhos e desenhando seus olhos poderia ser vista tão em close, com tanta intimidade, se não fosse um vídeo? Como é que as pessoas veriam ao vivo se estivessem a dez metros de distância? Iriam ver um olhinho bem pequeno ou nem veriam, porque o próprio corpo de Letícia, provavelmente, seria um obstáculo. Então aquilo que 89

eu vejo ali é vídeo, mas há uma performance, uma ação direta do artista. (COCCHIARALE, 2007, p. 68)

Na videoperformance, o corpo cria significados ao ser mediado pela câmera. Em um movimento híbrido e horizontal entre tecnologia e performance, o corpo agencia o gesto performático.

Nas videoperformances, há uma espécie de ambiguidade, como se o autor do trabalho e o corpo que atua no interior da obra fossem autônomos. Um corpo enunciado pela máquina é exposto frontalmente por ela: ao mesmo tempo que é a enunciação, a mensagem, é ele também quem, ao vivo, de forma performática, tem o poder de dirigi-la e transformá-la. É nessa síntese, no embate não hierárquico, entre o corpo e tecnologia, que as videoperformances se concretizam. (MELLO, 2008, p. 151)

A partir dessa interação entre corpo e câmera, em um tempo real (MACHADO, 1988, p. 67), concebem-se novos espaços, identidades, memórias corporais. Gera-se a experiência calcada em um tempo não linear e subjetivo, que se cria entre tecnologia e subjetividade Como já dito no capítulo 2, é visto em Avenida Brasília Formosa esse aspecto da videoperformance. Aqueles corpos não são objetificados pela câmera, são agentes ao interagir pelo gesto performático. Para Carvalhaes, esse espaço em que territórios são criados fora de uma narrativa guiada pela causalidade, pela organização tradicional do tempo, é a noção de enviroment (analisado a partir do trabalho de Renato Cohen), como cenário psiquíco e físico (CARAVALHAES, 2012, p. 29). É onde se vivencia a experiência na totalidade do corpo. Podemos ver um exemplo de videoperformance nas redes sociais no perfil da atriz Vera Holtz no Instagram.

Figuras 46, 47 e 48: Fênice, de Vera Holtz (2020). Fonte: Instagram.

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3.3 Performances e Performatividades

É importante entendermos também as diferenças existentes entre o termo performance, muito utilizado no sentido de expressão artística, e performatividade, empregado na concepção crítica, que dilata esse conceito para diversas esferas e linguagens. Inserida na história da arte, como apontado antes, a performance é composta por ações performativas. Entende-se performatividade como a formação de um ato no próprio tempo em que uma dada ação é produzida. Isso pode se expressar no domínio da cultura, da política, da identidade, na expressão de gênero, no social. A performatividade, como vista aqui, pode proporcionar descentralizações entre as linguagens e ser identificada sempre que se olha para os processos no tempo-espaço, na conexão entre arte e vida. Portanto, deslocar a performance de seu âmbito localizado na história da arte para os processos performativos que se encontram, sobretudo, na maneira como produzimos imagem no contemporâneo, é de suma importância. Schechner72, ao apontar contextos em que a performance se apresenta, faz uma lista com oito tipos de situações nas quais podemos observá-la. Compõem a lista schechneriana:

1 nas situações cotidianas “ordinárias” (cozinhar, socializar etc.); 2 na criação das performances artísticas (nas artes); 3 nas ocupações esportivas e recreativas; 4 nas situações de trabalho; 5 nos contextos tecnológicos; 6 nas relações de sexo; 7 nos rituais sacros e profanos; 8 nos jogos. (SCHECHNER, 2013, p. 25)

Pode-se compreender também a partir dessa lista de Schechner que uma leitura de dimensão performativa para fora das expressões artísticas é algo já observado por outros autores, como parte indissociável de nossos cotidianos e rituais.

72 Richard Schechner (Nova Jersey, 1934), um dos fundadores dos estudos da performance, é um teórico da performance, diretor teatral, autor, editor da TDR: The Drama Review e professor universitário na Tisch School of the Arts da Universidade de Nova York. Schechner combina seu trabalho de teoria da performance com abordagens inovadoras para uma ampla gama de performances, incluindo teatro, peças, rituais, dança, música, atrações populares, esportes, política, performance cotidiana. 91

3.4 Personas Performáticas

Um dos procedimentos performáticos do filme pode ser visto através do trabalho de não atores, que se encontram em uma ação performática com a câmera. Dessa forma, neste estudo, há a intenção de aproximações do conceito de persona performática (CARVALHAES, 2012, p. 83) com a obra de Mascaro. Para Carvalhaes, a persona é construída na performance: “Em outras visadas, a performance apresenta-se como forma recorrente e eficaz na ligação entre experiência e modos de vida – em modos de estar – em – cena –, além de construir espaços de alteridade na arte”. (CARVALHAES, 2012, XXIII)

Para a autora, entre o processo e o “estar em cena”, compõe-se a persona performática. No filme analisado, a persona é construída, em um de seus aspectos, pela performance dos moradores de Brasília Formosa diante da câmera. Esses “personagens reais” aqui são vistos também como atores-autores, pois estão em grande parte construindo suas imagens em articulação com a câmera e com o espaço. São quatro pessoas que protagonizam a obra. Cauã, um pequeno morador da comunidade; Fábio, garçom, cinegrafista e bailarino na igreja evangélica; Pirambu, pescador removido em consequência da construção da Avenida; e Débora, manicure e candidata ao Big Brother Brasil. Da maneira como essas pessoas nos são inicialmente apresentadas, aparentemente não possuem nada em comum, a não ser o local em que vivem suas vidas, na comunidade de Brasília Teimosa.

A partir disso, o diretor tece uma rede de encontros que ocasionam processos de comunicação e interatividade produzidos entre corpo e câmera de vídeo, criando, dentro do cotidiano dos personagens, acontecimentos diversos que vão cruzando aos poucos as narrativas desses personagens que conduzem o filme. Acontecimento é entendido aqui como o que rompe com uma organização determinada e com representações estáveis, como uma descontinuidade. Para Carvalhaes, a concepção de persona também é construída por meio do agenciamento das relações entre o eu e o outro, aqui observado entre as pessoas filmadas e câmera; entre os moradores da comunidade em seus encontros; entre quem filma e a pessoa filmada; entre o espectador e o filme. A persona manifesta-se 92

a partir da ação, a partir do próprio percurso de gravação e é o constante estado performático do devir.

A persona surge com o próprio ato. Trabalha enquanto anda: no percurso. [...]. Ao mesmo tempo em que é polivalente (é várias pessoas ao mesmo tempo, administra contradições, vive estados diferenciados e transitórios durante a performance etc.), a persona traduz tudo isso em ambiguidade profunda. E pode, através do processo performático, da travessia artística, construir uma experiência consistente. [...]. A persona é o estado performático do devir, da transformação constante, que leva à construção e à dissolução, ao outro. (CARVALHAES, 2012, p. 109-111)

Nesse sentido, o filme de Mascaro, ao constituir uma obra que atua nas bordas entre cinema e performance, elucida e questiona a concepção de personagem cinematográfico. A persona é ambígua, ela é a coexistência do ator, da personagem, da pessoa; ela é um híbrido, produzindo o estranhamento73, momento em que, no filme, temos o ilusionismo do cinema revelado, colocado. Esse estranhamento também dialoga com a concepção de work in progress, no sentido em que o processo criativo se dá no jogo, no acaso, nas descontinuidades, e ocorre como um processo de pesquisa e de experimentação. É a vivência do acontecimento em cena (CARVALHAES, 2012, p. 45). “O work in progress dá corpo ao trabalho e gera, enquanto modelo, outros mecanismos de recepção, estruturação e permeação com o fenômeno ou seja, provoca outro tipo de experiência” (CARVALHAES, 2012, p. 27).

Os participantes da obra, ao serem convidados a “não representarem”, colocam-se em contato direto com conteúdo de ordem inconsciente, forças, memórias que se corporificam na medida em que o processo de gravação ocorre. Assim como Carvalhaes expressa essa busca da “não representação” no cinema contemporâneo, “Essa preocupação levou também cineastas a procuras semelhantes, em busca de qualidades cênicas, do trabalho com não atores, de presenças diferentes daquelas da representação de atores profissionais, influindo diretamente na linguagem do filme”

(CARVALHAES, 2012, p.58).

73 Para Brecht, o efeito do estranhamento tem como objetivo tornar claro ao espectador que ele está frente a uma obra de arte, de que a representação teatral é uma ilusão. O inquietante, o estranho- familiar ou a inquietante estranheza (originalmente, em alemão, Das Unheimliche) é um conceito freudiano que se refere a algo (ou uma pessoa, uma impressão, um fato ou uma situação) que não é propriamente misterioso mas estranhamente familiar, suscitando uma sensação de angústia, confusão e estranhamento – ou mesmo terror – que remonta àquilo que é desde há muito conhecido. 93

Para a autora, a persona amplia as fronteiras do artista, da pessoa que está em cena, oferecendo, assim, distintas possibilidades de construção e apresentação do eu (CARVALHAES, 2012, p. 83). Nesse sentido, o processo de construção da persona faz emergir múltiplas possibilidades do indivíduo. Aquelas pessoas que acompanhamos em Avenida Brasília Formosa são as possibilidades de quem são, são encontros com os desdobramentos do eu. Essas possibilidades revelam o plural em nós, os desejos, aspirações, tensões. O jogo ali construído possibilita que os participantes tenham contato com o diferente em si e, dessa forma, possibilita que encontremos o diferente em nós. Assim, para Carvalhaes, a construção da persona performática acontece na incorporação da alteridade74. A proposta de colocar os moradores da Avenida Brasília Formosa em contato com o seu cotidiano faz com que emerjam conteúdos de sombra, agenciamento de vivências, em termos cohenianos, um levantamento da mitologia pessoal75. De maneira mais explícita, pode-se perceber no filme o participante Fábio assumindo essas diversas possibilidades de ser.

74 Do latim alterĭtas, alteridade é a condição de ser outro. O vocábulo “alter” refere-se ao “outro” na perspectiva do “eu”. O conceito de alteridade, por conseguinte, é usado em sentido filosófico para evocar o descobrimento da concepção do mundo e dos interesses de um “outro”. 75 “A mitologia pessoal, na linguagem de Renato Cohen, era um trabalho de construção de valor e sentido para as experiências do performer [...] era uma forma de fazer com que as experiências pessoais e a própria ‘pessoa’ de cada um fossem traduzidas para um universo comum, comunicável e artístico. Ao mesmo tempo, o performer criava com isso forças simbólicas, sentidos internos, língua e referências sincrônicas, construindo uma forma específica de responder a situações performáticas, de forma performática.” (CARVALHAES, 2012, p. 91) 94

Figuras 49, 50, 51 e 52: Frames de Fábio como faxineiro, videógrafo, garçom e bailarino.

Percebe-se que as características do cinema contemporâneo hoje dialogam com o pós-dramático. O livro Teatro pós-dramático, de Hans-Thies Lehmann (1999), representa um referencial para debater as práticas contemporâneas no cinema. A partir do delineamento entre o teatro dramático e o teatro pós-dramático, o autor aponta, artística e historicamente, as diferenças entre um teatro baseado no drama e outro, contemporâneo, edificado na performance. “Recorrendo à noção de “arte conceitual” [...] é possível entender o teatro pós-dramático como uma tentativa de conceitualizar a arte no sentido de propor não uma representação, mas uma experiência do real [...] que visa ser imediata: teatro conceitual” (LEHMANN, 2007, p. 223) Para Lehmann, as expressões palpáveis do que ele caracteriza como teatro pós-dramático só se iniciaram a partir da década de 1960 e, com maior intensidade, na década de 1970, na qual, efetivamente, o teatro irá apresentar uma dissolução do drama e da representação da mimese76. Entre as várias reflexões de Lehmann para demonstrar uma concepção pós- dramática da cena, a performance mostra-se como dispositivo significativo para o autor diferenciar o teatro da representação de um teatro conceitual. Este aproxima-se da autorrepresentação, da experiência compartilhada, do corpo.

O tratamento diferenciado dos signos teatrais acaba por tornar fluidas as fronteiras que separam o teatro das práticas artísticas que aspiram a uma experiência real, como a “arte performática”. Recorrendo à noção de “arte conceitual” (tal como floresceu no início dos anos 1970, sobretudo), é possível entender o teatro pós-dramático como uma tentativa de conceitualizar a arte no sentido de propor não uma representação, mas uma

76 Do grego mímesis, “imitação” (imitatio, em latim), designa a ação ou faculdade de imitar; cópia, reprodução ou representação da natureza, o que constitui, na filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte. 95

experiência do real (tempo, espaço, corpo) que visa ser imediata: teatro conceitual. A imediatidade de toda uma experiência compartilhada por artistas e público se encontra no centro da arte “performática”. Assim, é evidente que deve surgir um campo de fronteira entre a performance e teatro à medida que o teatro se aproxima cada vez mais de um acontecimento e dos gestos de autorrepresentação do artista performático – ainda mais quando nos anos 1980 se verifica uma tendência inversa, de teatralização da arte performática. (LEHMANN, 2007, p. 223)

Nesse sentido, o pós-dramático é aquele que compreende e alcança uma heterogeneidade de linguagens, estabelecendo uma certa emancipação da composição dramática. É um movimento que se manifesta por negar o cosmos fictício77 e ilusionista a favor da subjetividade e da presença. Para Lehmann, o ator no pós-dramático “se torna mais presença do que representação, mais experiência partilhada do que comunicada, mais processo do que resultado, mais manifestação do que significação, mais energia do que informação” (LEHMAN, 2007, p. 143). Com isso, podemos aproximar o cinema contemporâneo da visão do teatro pós- dramático de Lehmann, em que a composição da cena já não é mais fundamentada no cosmos ficcional e no conflito psicológico de personagens; expressa-se aqui a ideia de antidramático, e uma primeira aproximação entre performance e teatro. A pesquisadora e crítica francesa Josette Féral78, ao ler Lehmann, compreende o teatro contemporâneo como um teatro performativo. Por entender o pós-dramático como um importante salto no que condiz à análise de outras formas além da representação, Féral entende que Lehmann tenha idealizado o conceito de negar “qualquer tipo de representação”. Para ela, a noção de pós-dramático “[...] constitui um horizonte de espera mais que uma realidade, na medida em que é impossível para uma forma teatral, qualquer que ela seja, de escapar à narratividade e, de fato, à representação” (FÉRAL, 2015, p. 130).

Para Féral, mais do que negar a representação, o teatro contemporâneo apresenta-se na assimilação da presença da performance e da performatividade, em que não só o teatro, como a história da arte, têm sido redefinidos por outros parâmetros e rupturas.

77 Para Lehmann, o cosmos fictício se dá quando o “palco significa o mundo” em seu sentido de representação dramática. 78 Josette Féral é crítica, teórica e professora na École Supérieure de Théâtre de l’UQAM, em Montreal, Canadá, desde 1981. 96

De fato, se é evidente que a performance redefiniu os parâmetros, permitindo- nos pensar a arte hoje, é evidente também que a prática da performance teve uma incidência radical sobre a prática teatral como um todo. Dessa forma, seria preciso destacar também, mais profundamente, essa filiação operando essa ruptura epistemológica nos termos e adotando a expressão “teatro performativo”. (FÉRAL, 2015, p. 117)

Segundo a autora, esses pontos de tensão entre o teatro e outras práticas artísticas estão relacionados também com a dificuldade de determinar o específico do teatro. Dessa forma, ela percebeu que a teatralidade não era somente vista na prática teatral, mas em outras artes, gêneros, situações da vida cotidiana, exigindo uma redefinição do teatro na contemporaneidade.

Na realidade, a questão da teatralidade está vinculada com a dissolução dos gêneros, porque os limites ficaram borrados. Do mesmo modo, as distinções formais entre as práticas se converteram em objeto de investigação. À medida que se tornou mais difícil determinar a especificidade do teatro, se tentou ainda mais defini-la. Não somente porque a teatralidade pode ser encontrada em outros gêneros, mas também porque outras práticas podem ser incluídas no teatro. De modo que o teatro se viu obrigado a definir-se a si mesmo. (FÉRAL, 2003, p. 47)

Nesse sentido, compreende-se que essas teatralidades, performatividades, instauram-se no olhar em processo de quem participa. É um devir dos objetos, das coisas, dos sujeitos. É uma construção sígnica na medida em que há uma ação, é um processo semiótico. Esses significados, presenças, são resultados do que Féral chama de dupla polaridade, em que ator, cena e espectador são resultados de significados em processo, devires.

Portanto, nessa etapa de nossa reflexão, a teatralidade não aparece como uma propriedade, mas como um processo que indica “sujeitos em processo”: aquele que é olhado – aquele que olha. É um fazer, um vir a ser que constrói um objeto antes de investi-lo. Essa construção é resultado de uma dupla polaridade, que pode partir tanto da cena e do ator quanto do espectador. (FÉRAL, 2015, p. 87)

Nessa perspectiva do processo do olhar sobre um acontecimento, a teatralidade envolve um jogo de construção de significação em que realidade, ficção, imaginário, intenções, emergências estão sendo levados em conta. É na afetação mútua que a cena ocorre, dentro do âmbito da experiência. A proposição de Féral, por meio da qual pensamos na articulação entre performatividade e teatralidade e buscamos demonstrar uma possibilidade de leitura a partir desse movimento de investigação, traz uma outra camada de reflexão para 97

este estudo, na medida em que permite entender que teatro e cinema apresentam muitas intersecções e transformações similares, quando se pensa em suas manifestações contemporâneas, seja pelos apontamentos acerca da crise do drama e da representação da dupla polaridade e das questões de recepção, seja pela presença e profusão de linguagens e pelas redefinições que isso acarreta. Também sobre o termo performático, há a classificação proposta por Bill Nichols79, importante estudioso do gênero documentário moderno. Nichols sugere que o documentário abarca seis subgêneros: expositivo, poético, participativo, observacional, reflexivo e performativo, sendo que cada um deles opera com base em convenções que lhe são específicas. Para Nichols, o documentário no modo performático ou performativo:

[...] enfatiza o aspecto subjetivo ou expressivo do engajamento do próprio cineasta com seu tema, e a receptividade do público a esse engajamento. Rejeita a ideia de objetividade em favor de evocações e afetos. Todos os filmes desse modo compartilham características com filmes experimentais, pessoais e de vanguarda, parecido com o Poético, mas com uma ênfase vigorosa no impacto emocional e social para o público. (NICHOLS, 2005, p. 62-63)

A visão de Nichols contribui para a convocação do termo, mas ainda é colocada dentro da discussão em que cinema é classificado dentro da lógica dos gêneros, pela ótica do cinema moderno, segundo a qual há uma certa vontade de se polarizar documentário e ficção. Tanto que Nichols expressa que o modo performático seria o que estaria mais longe do documentário, pois se aproxima intensamente da ficção. Dessa forma, entende-se a contribuição de Nichols, porém sua análise sobre o documentário se mostra em uma perspectiva fechada e demanda uma atualização diante das ressignificações que o cinema apresenta hoje. Ainda sobre o conceito de personagem cinematográfico, o filme elucida não somente a construção dessas personas juntamente com a câmera e com a rede de encontros, mas também revela a insuficiência que o cinema tradicional apresenta de captar os sujeitos inteiramente em sua complexidade e de tipificá-los para um roteiro. Cezar Migliorin elucida isso, identificando na produção contemporânea a fuga de uma funcionalização.

79 Bill Nichols é um crítico e teórico americano de cinema, mais conhecido por seu trabalho pioneiro como fundador do estudo contemporâneo do documentário. Seu livro de 1991, Representing Reality: Issues and Concepts in Documentary, aplicou a teoria moderna do cinema ao estudo do documentário pela primeira vez. 98

Nesse sentido, veremos como diversos filmes estão atentos às vidas que escaparam à funcionalização. Não se trata apenas da escolha dos personagens, mas de uma abordagem que se distancia do idealismo ou do discurso acabado para estar com os corpos, com os gestos, com as falas, em frequente deriva. (MIGLIORIN, 2010, p. 12)

O olhar e a exploração de outros regimes de imagem e produção de presença estão presentes no cinema contemporâneo e, de modo geral, em outras instâncias midiáticas e artísticas. Para Renato Cohen80, a crise da representação e a busca por uma leitura emocional e pelo não verbal demonstra o esfacelamento de paradigmas da modernidade.

Segundo Renato Cohen, paradigmas da modernidade têm uma influência direta nesse contexto: o niilismo, o esvaziamento da palavra e a falência do discurso. A fragmentação do texto também permite aprender seus sentidos ocultos: há um rio fluindo interiormente, encoberto pela semântica das palavras. É a crítica freudiana à linguagem verbal. (CARVALHAES, 2012, p. 70)

O declínio dessa linguagem verbal já é demonstrado em algumas obras que estavam lidando com o esgotamento da entrevista (consolidada por Eduardo Coutinho81). Em seu estudo, Daniel Feix cita o filme de Cao Guimarães82 A alma do osso como um preâmbulo do esgotamento da entrevista para a observação dos gestos:

Trata-se de um documentário de observação, que parece querer encontrar suas ambiguidades e metamorfoses (suas múltiplas faces) no gestual, nos olhares, na realização das tarefas de seu dia a dia em meio ao isolamento. É

80 Renato Cohen (Porto Alegre, R S, 1956 – São Paulo, SP, 2003). Ator, diretor, performer, teórico e pesquisador. Pertence à geração do chamado “teatro das imagens”, que relativiza a importância do texto. Cohen, ao publicar seu primeiro livro, Performance como linguagem (1989), propõe a tese de que a performance é um dos fatores de desconstrução do teatro. Ele defende, para essa modalidade artística, o status de linguagem autônoma. Sugere ideias que provêm, simultaneamente, da literatura, da poesia, das artes visuais, do teatro, da dança e talvez até da música para compreender a nova expressão artística que se revitaliza nos anos 1980. Com sua pioneira investigação, lança termos como persona, mise-en-scène, work in progress – tomada de James Joyce (1882-1941) na época da escritura de seu romance Finnegans Wake (1939) – performance e “performatividade”, palavras frequentemente usadas no teatro, na dança e nas artes. Work in progress na cena contemporânea (1989), seu segundo livro, aprofunda esses estudos. 81 Eduardo de Oliveira Coutinho (São Paulo, SP, 11 de maio de 1933 — Rio de Janeiro, RJ, 2 de fevereiro de 2014) foi um cineasta e jornalista brasileiro. É considerado por muitos como um dos maiores documentaristas da história do cinema do Brasil. Tinha como marca realizar filmes que privilegiavam as histórias de pessoas comuns. Sua obra-prima é Cabra marcado para morrer, que marcou sua carreira como principal documentarista do Brasil. Entre outros trabalhos destacados de sua trajetória estão os documentários Santo forte, Edifício Master, Peões, Jogo de cena e As canções. 82 Cao Guimarães (Belo Horizonte, MG, 1955) é cineasta e artista visual. Suas obras aliam a ideia de tempo cinematográfico à noção de contemplação, comum nas artes plásticas, com especial atenção à beleza prosaica e à potência vital de pequenos instantes do cotidiano. 99

uma espécie de resposta à verbalização característica das entrevistas, que com Coutinho ganharam o país desde a virada do século. (FEIX, 2019, p. 53)

Figura 53: Frame de Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004). Figura 54: Frame de Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004).

Sem a entrevista, não há pergunta (objetiva, evidente) para responder. Há fluxo de corpos e espaços, interações, presença, silêncios, ações. Ainda em Renato Cohen, a presença da performatividade, da pulsão da imagem, é ampliada pelas novas tecnologias e imagens: “Semeia-se uma cena das pulsões, da primeiridade. Operações que são amplificadas pelos novos extensores, sensores e suportes de tecnologia e imagem”. (COHEN apud CARVALHAES, 2012, p. 3-4) Compreende-se também que a ação performática no cinema pode ser feita sob uma leitura da potência do corpo de afetar e ser afetado pelo que o cerca, de maneira relacional; um corpo sempre é afetado e pode afetar, o afeto é produzido no encontro, assim como Espinosa introduziu em sua Teoria dos afetos, também trabalhada por Deleuze e Guattari: “[...] O mais belo é viver nas bordas, no limite do seu próprio poder de ser afetado [...]”. (DELEUZE, 1978) O afeto (affectus ou adfectus em latim) é uma concepção usada em filosofia por Espinosa, Deleuze e Guattari, que indica um estado da alma. De acordo com a Ética III, 3, Definição 3,83 de Espinosa, um afeto é uma mudança ou modificação que ocorre simultaneamente no corpo e na mente. A forma como somos afetados tem a capacidade de diminuir ou aumentar a nossa vontade de ação.

83 Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções. Assim, quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso contrário, uma paixão. (Spinoza, III, 3). 100

Essa afetação também pode ser observada pelo conceito de vitalismo, amplamente discutido pela autora e psicanalista Suely Rolnik, que compreende que esse poder de afetação, essas forças, são imprescindíveis para nossa condição de vivente, pois convocam em nós uma desestabilização que promove a força vital.

O outro tipo de experiência que a subjetividade faz do mundo, a que chamo de “fora do sujeito”, é a experiência das forças que agitam o mundo como um corpo vivo que produz efeitos em nosso corpo na sua condição de vivente. E esses efeitos consistem em outra maneira de ver e sentir o que está acontecendo a cada momento (o que Deleuze & Guattari chamavam de “perceptos” e “afectos”, respectivamente). É um estado que não tem imagem, que não tem palavra. Não é que o mundo como suposto “objeto” nos influencie como supostos sujeitos, mas que o mundo “vive” em nosso corpo no modo de afectos e perceptos. E como esse estado é o de um tipo de mundo larval que não tem imagens nem palavras e é, por princípio, intraduzível na cartografia cultural vigente, uma vez que é exatamente isso que lhe escapa, um atrito é gerado entre os dois. Desse atrito produz uma experiência de desestabilização, de desterritorialização que promove uma inquietude, um mal-estar. (ROLNIK apud POLANCO;PRADEL, 2015, tradução nossa)84

Rolnik entende que a potência de existir entra em processo de criação impelido por forças exteriores que afetam nosso corpo. O corpo convocado procura novas maneiras de se expressar e de existir, pois esteve em contato com forças que o transformaram a partir de uma desestabilização e de sua sustentação. A partir disso, inventa e reinventa um novo gesto, uma nova percepção, novos modos de existir no mundo. Estes últimos elementos se fazem presentes por meio do gesto performático no filme de Mascaro, que acaba trazendo à vida uma nova percepção da comunidade, daquelas pessoas e, em última instância, de nós mesmos. A proposição do diretor dos diversos encontros que se dão ao longo do filme produz as ações performática e, delas, produzem-se alteridades, afetações, linhas de fuga85.

84 Do original: “El otro tipo de experiencia que la subjetividad hace del mundo, al que llamo el “afuera - del-sujeto”, es la experiencia de las fuerzas que agitan el mundo como un cuerpo vivo que produce efectos en nuestro cuerpo en su condición de viviente. Y esos efectos consisten en otra manera de ver y de sentir lo que pasa en cada momento (lo que Deleuze & Guattari llamaron “perceptos” y “afectos”, respectivamente). Es un estado que no tiene imagen, que no tiene palabra. No es que el mundo como supuesto “objeto” influya sobre nosotros como supuestos sujetos, sino que el mundo “vive” en nuestro cuerpo bajo el modo de afectos y perceptos. Y como este estado es el de una especie de mundo larvario que no tiene ni imágenes ni palabras y es, por principio, intraducible en la cartografía cultural vigente, ya que es exactamente lo que escapa a ella, se genera una fricción entre ambos. Dicha fricción produce una experiencia de desestabilización, de desterritorialización que promueve una inquietud, un malestar”. 85 As linhas de fuga para Deleuze e Guattari representam desestratificações absolutas, no sentido em que rompem totalmente com os limites das estratificações estabelecidas. Para o entendimento desse processo são cruciais as noções de corpo e desejo. 101

A construção da persona performática também encontra lugar no afeto, pois a persona amplia os modos de existência do eu, assim como depende do outro, do encontro para se concretizar. O estado corporal e sensorial da persona apoia o tempo real do filme, criando presenças, assim como a presença cria a persona, o perfomer. Dentro desses fluxos do cotidiano e das afetações, pode-se convocar aqui outra obra de Suely Rolnik, Esferas da insurreição (2018), na qual a autora trabalha com alguns conceitos que são pertinentes para a obra de Mascaro, como as concepções de vitalismo, agenciamentos coletivos, o regime das afecções, a resistência pelas micropolíticas, a descolonização do pensamento, a importância do desconforto e da angústia e a presença da subjetividade na obra de arte. A força vital para Rolnik está em uma de suas sugestões para a descolonização do inconsciente. Para ela, a prática vital tem como função “1) Desanestesiar a vulnerabilidade às forças em seus diagramas variáveis, potência da subjetividade em sua experiência fora-do-sujeito; 2) Ativar o saber eco-etológico e expandi-lo ao longo de nossa existência: a experiência do mundo em sua condição de vivente, cujas forças produzem efeitos em nosso corpo, o qual pertence a essa mesma condição e a compartilha com todos os elementos que compõem o corpo vivo da biosfera (ROLNIK, 2018, p.195) Levando em conta que a ação performática do filme se dá através do cotidiano e da ação coletiva dos moradores de Brasília Teimosa, pode-se observar que a subjetividade e as interações corpóreas dos participantes são colocadas em primeiro plano, trazendo o sensorial e as narrativas individuais como primordiais, ativando o saber do corpo, desanestesiando, provocando a vitalidade na obra. Essa é uma maneira de recuperar a força criativa e inventiva do ser humano, colocando essas imagens em diálogo com nossas pulsões e nosso inconsciente, que estão condicionados ao anestesiamento e à colonização. Pode-se entender, por meio da leitura de Rolnik, essas imagens e ações performáticas como resistências micropolíticas. Dessa maneira, as ações e resistências individuais são o lugar das ações micropolíticas, lugar que Rolnik enfatiza tanto em sua obra. Lugar em que a opressão capitalística se debruça sobre a força vital, capturando-a, domesticando-a e neutralizando-a, para que haja um anestesiamento dos corpos e da subjetividade. É costurando pelo caminho inverso que Mascaro expande o filme para as sensorialidades cotidianas, para os fluxos de pensamento, para os desejos e 102

imaginações no âmbito da vida privada, para o enfrentamento dessa subjetividade com a câmera e com aquelas pessoas in loco. Esse enfrentamento dilacera o processo opressivo colonizador, escancarando para nós a realidade, a sensorialidade, as pulsões e o desejo humano.

3.5 Ritual

Portanto, a partir desse contexto, pode-se pensar que a forma performática se aproxima do ritual, que pode ser visto como um fenômeno comunicacional vivido através da experiência que convoca coletivamente um grupo a vivenciar algo que está no campo da incerteza, em um outro tempo. O tempo construído pela experiência. Estudando a videoperformance, Renato Sergio Sampaio86 diz que o ritual é a maneira pela qual se conduz a videoperformance.

O ritual, quando se fala de videoperformance, é o caminho da ação performática a ser traçada pela câmera de vídeo e pela persona. [...]. Tem- se, a partir daí, um guia de ritual que apresenta todos os elementos do hibridismo da linguagem do vídeo e da linguagem do corpo, compondo ambientes e situações, visualmente. (SAMPAIO, 2012, p. 52)

Carlos Alberto Mattos87 também vê uma aproximação da performance com o cinema brasileiro contemporâneo, asseverando que, no processo do ritual, é comum que haja imprecisão, incerteza entre quem são atores, personagens, pessoas “reais”. Esse é um componente que integra as hibridizações da obra e cria um espaço ambivalente.

Nos rituais da performance, a confusão entre atores e personagens é uma constante. [...]. O fato de os atores se tratarem por seus próprios nomes, levarem à cena fragmentos de suas realidades e incorporarem o acaso das filmagens cria uma área cinza na representação, uma hibridez de registros já bastante praticada nas combinações de ficção e documentário. (MATTOS, 2012, p. 13)

86 Renato Sérgio Sampaio é compositor, produtor, cantor e performer. Autor do álbum Transuniversal, lançado pela Onerpm em 2016, também escreveu Videoperformance – aprendendo a ensinar, pela Editora NEA. 87 Carlos Alberto Mattos é jornalista, escritor, pesquisador e crítico de cinema. 103

Esse espaço que transita entre “real” e “ficção” é de extrema importância, pois é um movimento que o cinema faz para si mesmo, questionando seu ilusionismo e a passividade do espectador. Carvalhaes, ao falar de ritual, aproxima Cohen à ideia do Teatro Ritual de Artaud88, no sentido da epifania da cena, dela ser uma possibilidade de aproximação com a vitalidade e com o caos: “[...] surge como uma possibilidade de reconexão com as potências vitais, aproximando-nos, ao mesmo tempo, da instabilidade ameaçadora e do caos”. (COHEN apud CARVALHAES, 1989, p. 38) Nesse sentido, pode-se entender que, na dimensão performativa do cinema, valoriza-se o aspecto do rito, do fazer, da ação, ao invés do mito, do drama.

3.6 Sujeitos Performáticos, Vida Performática

A partir de todo o panorama artístico, movimentos e atravessamentos midiáticos que se encontram na obra, pode-se tentar compreender como se caracteriza esse sujeito que performa diante dos aparatos? Quem são, e quem somos, ao nos gravarmos? O que esperamos desse gesto performático? Seria o performático não somente uma estética dentro do aspecto artístico, mas também do social e das imagens que consumimos diariamente? Provindo do cinema, das redes sociais, o performativo parece ser um estado das imagens e o modo como elas são criadas. Para André Brasil:

Hoje, no âmbito do capitalismo avançado, essa forma por se criar constitui e é constituída por imagens de caráter performativo: de fato, dos shows de realidade aos vídeos pessoais na internet, das redes sociais aos games, dos documentários às experiências de arte contemporânea, a vida ordinária é convocada, estimulada, provocada a participar e interagir, em uma constante performance de si mesma. A imagem – o conjunto de mediações que a constitui – se torna assim o lugar prioritário onde se performam formas de vida. (BRASIL, 2010, p. 3)

Dessa forma, a indeterminação entre “vida real” e “ficção” estaria no centro da produção de imagens no contemporâneo, dissolvendo qualquer categoria que possa determinar tais produções como documentário ou ficção. A vida é solicitada para

88 Antoine Marie Joseph Artaud (1896-1948), conhecido como Antonin Artaud, foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês de aspirações anarquistas. 104

performar em nossas experiências diárias. Para Brasil, o movimento entre “vida real” e “ficção” são construídos de maneira conjunta e simultânea.

Os filmes se criam, desde o início, em mão dupla: de um lado, ficcionalizam- se vidas reais – vidas mais ou menos ordinárias – em uma narrativa de caráter imanente, que levemente se desprende do real sem roteirizá-lo em um gesto demasiado. De outro lado, mas simultaneamente, produz-se algo como uma deriva da ficção, provocada pela deriva da vida ordinária de seus personagens. Assim, nestas obras, a vida ordinária produz ficção – produz imagens – e, em via inversa, se produz nas imagens, é produzida na e pela ficção. (BRASIL, 2011, p. 2)

Assim, é interessante tentar compreender que essas imagens fruto de um gesto performático, de um acontecimento, não são criadas para a performance, mas sim experimentadas pela performance. A experiência do filme é performada em vídeo, pois é um modo de experimentá- la pelo vídeo. E esse modo de experimentar inclui criar visibilidade. Deixar visíveis os modos de ser dos moradores daquela comunidade. Essa intervenção do vivido também é constituinte da luta política daquele espaço, dando lugar para sua reconfiguração por outros olhares. Esse sujeito que se cria diante da câmera, esses corpos criados com a câmera, faz surgir um campo de força. Isso significa em maior âmbito que, colocar a câmera diante daquele acontecimento, é um modo de posicionamento, de reflexão. É uma ação que resulta em um registro, mas leva em conta como aquelas imagens afetam, provocam, participam da luta daquela comunidade. Aquela ação se torna uma forma de performar no acontecimento. Nesse sentido, poderíamos articular essas ideias ao que André Brasil coloca como a possibilidade de vivermos um capitalismo performativo:

Hoje, no âmbito do capitalismo avançado de consumo, não é então essa possibilidade que se coloca em jogo? Não poderíamos dizer justamente de um capitalismo de matiz performático e performativo? De fato, o domínio das aparências intensifica-se como espaço produtivo, espaço de performance: em um maquinismo disseminado, as imagens participam de dispositivos de ativamento, de acionamento, de agenciamento de corpos, subjetividades e ethos. (BRASIL, 2011, p. 11)

105

3.7 Exemplos da Performance na História do Cinema

Uma atitude performática pode ser vista como uma ferramenta na história do cinema, como nos filmes etnográficos de Jean Rouch89 Eu, um negro (1958), A pirâmide humana (1961) e Jaguar (1954), conhecidos também como etnoficções, nos quais já se podem observar as performances, ou hibridizações do “real” com a “ficção”. No filme Mosso mosso – Jean Rouch comme si..., (1999), dirigido por Jean-André Fieschi, vemos este depoimento de Jean Rouch:

Aprendi com os Dogon uma regra incrível, que se transformou na norma da minha vida, que é fazer de conta como fazemos agora. Fazer de conta que o que dizemos é verdade [...] eles narram um mito que nunca aconteceu lá, mas foi em outro lugar, mas eles fazem de conta, e fazendo de conta ficamos mais perto da realidade. Tenho consciência de ter feito de conta a vida toda. Fiz de conta que era engenheiro de estradas, fiz de conta que era ex-combatente. Fiz de conta que lutei na guerra. Fiz de conta etc. E era verdade. (BARBOSA, 2016, p.43)

A partir dele, pode-se perceber que, diante do cotidiano daquelas pessoas e a partir da câmera, os sujeitos ali se reinventam e ressignificam a sua realidade. Para Rouch, a câmera tem uma função geradora, impulsionadora de vivências, existências e ações das pessoas filmadas que não existiriam sem ela. A câmera se torna instauradora da verdade dos sujeitos. Dessa forma, o processo do filmar seria catártico90 entre quem filma e é filmado. O fundamental para Rouch e para a geração do cinéma vérité 91 (o “cinema-verdade”) não é uma verdade “no” cinema, e sim a verdade “do” cinema, aquela “verdade” que só é produzida através do encontro com a câmera e com a construção de relações a partir dela. Desse modo, a câmera deixa de ser somente um instrumento de captação ou registro para tornar-se, simultaneamente, um

89 Jean Rouch (Paris, 31 de maio de 1917 – Níger, 18 de fevereiro de 2004), realizador e etnólogo francês, é um dos representantes e teóricos do cinema direto. Como cineasta e etnólogo, explora o documentário puro e a docuficção, criando um subgênero: a etnoficção. 90 Catarse (do grego κάϑαρσις, kátharsis, “purificação”, derivado de καϑαίρω, “purificar”) é uma palavra utilizada em diversos contextos, como a tragédia, a medicina e a psicanálise. Significa “purificação”, “evacuação” ou “purgação”. Segundo Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um trauma. 91 Cinéma vérité é um estilo de documentário, inventado por Jean Rouch, inspirado na teoria de Dziga Vertov sobre Kino-Pravda. Combina improvisação com o uso da câmera para revelar a verdade ou destacar assuntos ocultos por trás da realidade crua. 106

instrumento de catalisação e de produção das verdades dos personagens. Como já dissera o “mestre dos mestres” Jean Rouch, para quem a ficção era o único caminho para se penetrar a realidade, “a câmera não deve ser um obstáculo para a expressão dos personagens, mas uma testemunha indispensável que motivará sua expressão. (FELDMAN, 2010a, p. 152)

Figura 55: Frame de Eu, um negro, de Jean Rouch.

Em Cinema 2 – Imagem–Tempo de Deleuze, o autor discorre sobre a potência que há no procedimento fabulatório. Para o autor, quanto mais o personagem se inventa, mais real ele é, e esse personagem se revela por meio de seu devir – que por sua vez se deixa ver justamente no processo da fabulação: [...] o que o cinema deve apreender não é a identidade de uma personagem, real ou fictícia, através de seus aspectos objetivos e subjetivos. É o devir da personagem real quando ela própria se põe a “ficcionar”, quando entra em flagrante delito de “criar lendas”, e assim contribui para a invenção de seu povo. A personagem não é separável em um antes e um depois da fabulação; ela é o que reúne na passagem de um estado a outro. Ela própria se torna um Outro quando se põe a fabular – sem nunca ser fictícia. Por seu lado, o cineasta torna-se Outro quando intercede em personagens reais, substituindo as ficções pelas fabulações deles. Ambos se comunicam na invenção de um povo. (DELEUZE, 2007, p. 183)

A interpretação de Deleuze a respeito do tema consiste no fato de que, para o autor, se a objetividade está ligada ao real e à subjetividade, ao ficcional, a contaminação mútua trata, então, de um devir entre essas duas instâncias. Ou seja, para alcançar a função fabuladora é preciso compreender o instante em que a personagem real se põe a ficcionar. Para isso, é necessário que o cineasta 107

também conceda a sua ficção, e que também se coloque a ficcionar. É uma zona de troca e intersecção que a fabulação deleuziana acontece. O que se pode perceber olhando para a tradição do cinema moderno é que a performance, como uma problemática visível e campo a se explorar por parte dos cineastas, artistas e pensadores, torna-se, no contemporâneo, o modo “comum” de produzirmos e consumirmos imagem. Outra observação é que, no contemporâneo, a questão da verdade, da representação da realidade e das contradições que isso implica também atravessam esta pesquisa e o momento em que o termo pós-verdade é convocado. Pode-se dizer que na produção aqui estudada o pós-verdadeiro é incorporado, pois a produção performativa sempre permeia a ideia de indeterminação entre ficção e verdade. Segundo Feldman, “Por todas essas razões, posso dizer que o documentário sempre foi pós-verdadeiro, sempre foi pós-ficcional, sempre esteve para além da dicotomia verdade e ficção, pessoa e personagem, público e privado, autenticidade e encenação (FELDMAN, 2019, p. 2). É importante compreender que essa questão está presente na produção aqui estudada, pois podemos ver a relevância que esse debate tem nas implicações estéticas que o cinema contemporâneo apresenta e com as quais dialoga.

3.8. Performatividade em Outras Obras Contemporâneas

Pode-se perceber que, juntamente com Avenida Brasília Formosa, outras obras contemporâneas utilizaram-se desse mesmo recurso e estão nessa mesma esfera de performatividades, hibridizações entre vida e ficção. Esta lista mostra a relevância dessa discussão, assim como é reflexo da performatividade como centro de produção de vidas e imagens. Seguem alguns exemplos. Moscou (2009), de Eduardo Coutinho; Morro do céu (2009), de Gustavo Spolidoro; Pacific (2009), de Marcelo Pedroso; Estrada para Ythaca (2010), de Guto Parente, Pedro Diógenes, Luiz e Ricardo Pretti; as obras do coletivo audiovisual mineiro TEIA, que produziu A falta que me faz (2009), O céu sobre os ombros (2010) e Girimunho (2011); Serras da desordem (2006), de Andrea Tonacci; Juízo (2008), de Maria Augusta Ramos; 33 (2002) e Filmefobia (2008), de Kiko Goifman; As aventuras de Paulo Bruscky (2010) e Avenida Brasília Formosa (2010), de Gabriel Mascaro; 108

Terra deu, Terra come (2010) e Orestes (2015), de Rodrigo Siqueira; O céu sobre os ombros (2011), de Sérgio Borges; Pan-cinema permanente (2008) e Homem comum (2017), de Carlos Nader; A cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014), de Adirley Queirós; Esse amor que nos consome (2012), de Allan Ribeiro; Olmo e a gaivota (2014), de Petra Costa; A vizinhança do tigre (2014), de Affonso Uchoa; Ela volta na quinta (2015), de André Novais Oliveira; A cidade onde envelheço (2016), de Marília Rocha; Vermelho russo (2016), de Charly Braun; e Baronesa (2017), de Juliana Antunes. Dessa forma, através do diálogo entre performance e cinema que este capítulo procurou delinear, seria consistente a proposição de se pensar o cinema contemporâneo alinhado com os conceitos aqui apresentados em que se observa a presença da dimensão performativa em diversos aspectos da produção audiovisual contemporânea. O rompimento com a tradição dramática, a presença de hibridismos de linguagens (capítulo 2), a ênfase no fazer, na ação e no ritual, a abertura das significações e recepções a partir do olhar e do devir, o pós-dramático, a construção da persona performática, a pós-verdade, ou seja, a performance e a performatividade se evidenciam como elementos desestabilizadores que geram um cinema performativo, como uma das possibilidades de se ler a cena contemporânea. Isso não significa que não haja vestígios, resíduos, rastros do dramático, mas sim que olharmos a produção de cinema a partir da segunda década do século XXI nos leva e entender que há uma predominância e um interesse no que tange a seus aspectos mais performativos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Figura 56: Frame de Avenida Brasília Formosa, do artista Gabriel Mascaro, objeto selecionado para esta pesquisa.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo teve como objetivo produzir reflexões críticas acerca de diversos fenômenos e procedimentos do cinema contemporâneo, em especial identificar o fenômeno da performatividade dos sujeitos e da imagem a partir da obra Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, e também na atual produção contemporânea. Além do performático estar dentro do âmbito artístico, identificou-se que a performatividade também está presente na esfera política, social e das imagens que consumimos diariamente nas redes sociais, na televisão, no audiovisual e no cinema contemporâneo do século XXI. Procurou-se identificar aqui um movimento nessa produção que é baseada em encontros, presenças e conexões. No capítulo 1, foi analisado e compreendido o contexto histórico, social e estético no estado de Pernambuco. Posteriormente, foram investigados como esse cenário levou ao desenvolvimento de um audiovisual caracterizado por um grande fomento da política desta área em Recife; a influência dos movimentos do cinema ao longo da história na geração que surge em meados de 2010; o manguebeat e o fenômeno da brodagem, da produção colaborativa, dos coletivos. A somatória desses elementos resultou no que muitos chamam de o Novo Cinema de Pernambuco, assim como em uma perspectiva de análise dentro do debate no que tange à produção pós- colonialista e pós-industrial. Nesse capítulo, também foram contextualizadas a história e a simbolização de Brasília Teimosa para Pernambuco, assim como para o nosso cinema. A partir dessa análise, apontou-se que histórica, artística e culturalmente há em Pernambuco fortes características que dialogam com a atitude antropofágica, com as hibridizações, produções coletivas e intenso diálogo com a tecnologia. No capítulo 2, levou-se em conta a abordagem das extremidades, de Christine Mello, segundo a qual os vetores de desconstrução, contaminação e compartilhamento foram observados por meio da subversão do regime de imersão na sala de cinema, ressignificando a experiência estética do cinema contemporâneo; as hibridizações do cinema com a performance, videoperformance, reality show, vídeo, rede e linguagem gráfica do videogame; e o compartilhamento através do fenômeno da brodagem e das práticas colaborativas. 111

O objetivo desse segundo capítulo foi compreender a obra de Mascaro em sua condição descentralizada e tensionada por diversos atravessamentos artísticos e midiáticos, as linguagens em trânsito e os processos e as contaminações entre tecnologia, arte e indivíduo. No capítulo 3, foram estabelecidas aproximações entre cinema e performance, que consistiram na identificação e análise de alguns processos e procedimentos presentes na composição da imagem: acontecimento, convocação do espectador, construção da subjetividade, câmera ativa, coletividades e encontros. Partindo dessas ideias, foram desenvolvidas análises relacionando o audiovisual com a arte processual, a videoperformance, o work in progress, a construção da persona performática (CARVALHAES), o teatro pós-dramático (LEHMANN), a força vital (ROLNIK) e o ritual. Também foi observado como a tendência performática pode ser vista no cinema moderno. Dessa forma, é importante ressaltar que a visão do cinema através da performance nos dá ferramentas para enxergar um mundo não polarizado, pois a ação performática é multiplicadora de visões e se dá no conflito, nas ambiguidades, constituindo um pensamento multidisciplinar e plural. Assim, esta pesquisa sugere que, nesse contexto social, histórico e artístico aqui apresentado, uma das possibilidades de leitura do cinema contemporâneo em meados da segunda década do século XXI seria a partir de sua dimensão de cinema performativo. Essa reflexão é um primeiro passo dentro deste assunto, o qual pretendo levar adiante em um futuro doutorado, buscando construir um estudo mais amplo e aprofundado sobre o termo aqui sugerido como cinema performativo, bem como sobre as imagens produzidas nas redes sociais, seu estado performativo e as relações dessas imagens com o audiovisual. Em um mundo pós-pandemia da Covid-19, estenderei a pesquisa para analisar as ressignificações de conceitos como presença, performance e ao vivo. Esta dissertação também tem o intuito de ampliar essa discussão para o público específico de cinema, tentando dissolver possíveis barreiras que existam entre a pesquisa do cinema e a de outras linguagens, assim como fomentar o estudo multidisciplinar para o público da graduação em audiovisual, comunicação e arte. 112

Também se espera aqui uma abertura de diálogo com o cinema contemporâneo em Pernambuco, ampliando ainda mais a discussão a seu respeito, já vasta e extensa, assim como a sua produção. Como se pôde identificar, grande parte da produção de cinema mais expressiva que se realiza atualmente no Brasil lida com as questões de forma, processos, procedimentos e temáticas dentro dos tensionamentos das fronteiras entre veracidade e encenação, vivência e performance, vida e cinema, produzindo com isso efeitos estéticos, políticos e sociais desestabilizadores, que localizam uma produção cinematográfica descentralizada nesses vários planos, que questionam e conceitos. Pudemos aqui, de alguma forma, apontar o cinema contemporâneo como uma experiência interconectada entre múltiplas comunidades, espaços, linguagens, práticas artísticas e midiáticas, que tentam contribuir para o debate do cinema, do audiovisual e do contexto contemporâneo da segunda década do século XXI.

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ANEXO

QR Code de acesso ao filme (Vimeo).