Os Africanos Livres Na Província De Alagoas (1850-1864) Moisés
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EXPERIÊNCIAS ENTRE A ESCRAVIDÃO E A LIBERDADE: OS AFRICANOS LIVRES NA PROVÍNCIA DE ALAGOAS (1850-1864) MOISÉS SEBASTIÃO DA SILVA Uma análise da produção historiográfica alagoana revela que as camadas subalternizadas da sociedade alagoana seguem marginalizadas também quando o assunto é a escrita da História. Especificamente em relação à experiência negra, enquanto a partir de meados dos anos 1980 em termos de Brasil vivenciou-se o surgimento de uma expressiva produção, a qual passou a ser caracterizada como um novo momento da historiografia relativa ao tema – que, hoje, desfruta de um lugar de destaque, sendo um dos mais pesquisados no país –, em Alagoas a mesma permaneceu invisibilizada.1 Composta basicamente por alguns poucos ensaios que têm como data limite de sua produção meados da década de 70 (BRANDÃO, 1988; DUARTE, 1988 [1966]; LIMA JR., 1975), a historiografia alagoana, ainda distante dos ganhos teóricos e metodológicos obtidos na área nos últimos anos, busca dar então apenas os primeiros passos.2 O trabalho que ora se apresenta é, portanto, um desdobramento de um esforço que, na medida das dificuldades da realização de pesquisa histórica no Estado de Alagoas, buscou tocar essa realidade lacunar da historiografia alagoana sobre a escravidão, e que basicamente consistiu em explorar a problemática das fontes para a história da escravidão em Alagoas.3 Foi ali que nos deparamos com alguns acervos documentais e, consequentemente, com o objeto deste nosso trabalho, a categoria sociojurídica africano livre. Criada na campanha para a abolição do comércio atlântico de escravos, essa categoria designava os africanos que Graduado em História pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL; contato: [email protected]. 1 Para uma análise da produção historiográfica alagoana sobre a escravidão e como o seu viés marcadamente senhorial, aristocrático, minimizou a presença negra em Alagoas, ver: (MACIEL, 2008). 2 Da ocasião dessa produção até os dias atuais apenas mais uma obra foi publicada sobre a temática, a saber: (MACIEL, 2011). 3 Referimo-nos aqui ao Projeto de Iniciação Científica Fontes para a história da escravidão em Alagoas (PIBIC- UNEAL/FAPEAL), coordenado pelo professor Dr. Osvaldo Maciel. Esse projeto foi desenvolvido entre os anos de 2008 e 2010, contando com a participação de um bolsista no primeiro ano, e dois no segundo. Com ele foi possível identificar, digitalizar e transcrever alguns acervos documentais, os quais podem ser vistos nos seguintes relatórios: (PEREIRA e MACIEL, 2010; SILVA e MACIEL, 2010 [2º ano]). 2 fossem emancipados por estarem a bordo de navios envolvidos no tráfico ilegal, ou que fossem apreendidos em terra como “„recém-importados‟” (MAMIGONIAN, 2000: 72). Tal categoria existiu em todos os territórios alcançados pela ação britânica (IDEM, 2009: 216- 217) e, no Brasil, aproximadamente 11 mil africanos a integraram, ou seja, foram portadores da condição de “africano livre” (IDEM, 2005: 391). Embora legalmente não fossem escravos, esses africanos foram obrigados a viver um período sob a “tutela” do Estado, sendo distribuídos para servir em instituições e obras públicas e a concessionários particulares. Para o nosso caso, as fontes de que disponibilizamos dão conta de ter havido interceptações de tráfico ilegal no litoral norte de Alagoas e permitem acompanhar e/ou desvendar aspectos da experiência de vida desse grupo social na província de Alagoas ao longo da década de 1850 e o início da seguinte. As linhas a seguir dizem respeito a resultados provisórios de uma pesquisa em andamento sobre o mesmo e que em breve desembocará numa proposta de investigação de mestrado. *** Era o ano de 1856 quando faleceu o africano livre Guilherme, que se achava fazendo o serviço de limpeza e asseio do Correio Geral de Maceió, e o administrador deste estabelecimento então rogava à presidência da província que se dignasse mandar dar-lhe algum dos que se achavam distraídos em outras ocupações públicas da cidade, visto que não achava pessoa alguma que quisesse se encarregar pela diminuta quantia de duzentos réis diários, conforme estava determinado em Aviso de 1846, que então vigia.4 No ano seguinte seria a vez do diretor do Colégio dos Educandos Artífices fazer um pedido semelhante: diante da impossibilidade de ter os serviços do africano livre Benedito em razão da enfermidade que o afligia, tal diretor solicitava a remessa do africano livre Braz, que, há dias, havia se ausentado do mesmo colégio, algo que por outras vezes o africano já tinha praticado. A despeito dessas faltas, o diretor do colégio o requeria, e justificava o pedido alegando que tal africano só tinha o defeito de tornar-se algumas vezes incontinente e cometer algum furto de 4 Requerimento do administrador do Correio Geral da província à presidência, 8/11/1856. O conjunto das fontes relativas aos africanos livres está sob a guarda do Arquivo Público de Alagoas (APA), numa caixa intitulada “Curador de Africanos”, sem classificação alfanumérica. Tendo-se em vista que todas as fontes relativas aos africanos livres aqui trabalhadas estão localizadas nesta mesma caixa e instituição, doravante estas duas informações não mais serão mencionadas nas referências. 3 pequenas coisas que podia pilhar desgarradas pela casa, para o que talvez fosse incitado por não lhe permitirem alguma diária para comida e vestuário, do que havia sido privado por tal diretor, a título de economia à Fazenda Provincial.5 As experiências de trabalhadores como os africanos livres Guilherme, Benedito e Braz – que eram negros e, embora juridicamente livres, não tinham liberdade para escolher onde e quando trabalhar, quase sempre não recebiam remuneração e podiam, ainda, não gozar de mobilidade espacial – apontam para uma temática em plena expansão e para uma dimensão até pouco tempo atrás negligenciada pela historiografia tradicional. Esta, como tem assinalado os trabalhos mais recentes da história do trabalho, direcionou o seu olhar para a experiência dos trabalhadores europeus no processo histórico conhecido como “transição para o trabalho livre”, deixando de lado as relações de trabalho compulsório e a mão-de-obra nacional (IBIDEM: 389-417). Esse, todavia, é um quadro que atualmente se vem buscando superar, e a experiência desse grupo peculiar de trabalhadores tem se mostrado uma via bastante frequentada para se participar do debate acerca das transformações nas relações de trabalho e dos limites da liberdade no século XIX. Antes mesmo da publicação de um trabalho que utilizou de forma pioneira a experiência de trabalho desse grupo social (e de outras categorias de trabalhadores igualmente submetidos a arranjos de trabalho compulsório) para revisitar a “transição para o trabalho livre”, outros autores já haviam chamado a atenção para os limites das interpretações então vigentes e apontado a necessidade de inclusão dos negros (escravos ou ex-escravos) na história do trabalho. Inspirada nas reflexões do historiador marxista britânico Edward P. Thompson sobre a formação da classe operária inglesa, a história social do trabalho tem incursionado numa inflexão em direção à segunda metade do século XIX e, recorrendo à produção mais recente sobre a experiência escrava e sobre o período pós-abolição, vem buscando “caminhos de investigação que possam revelar como experiências acumuladas durante a escravidão por escravos e libertos foram compartilhadas com os trabalhadores livres, antes e depois da abolição”, o que representa outra forma de pensar o processo de formação da classe trabalhadora no Brasil (LARA, 1998: 25-38). 5 Ofício do curador dos africanos livres à presidência da província, 29/12/1857. 4 Com efeito, as pesquisas sobre a experiência dos africanos livres cresceram substancialmente desde a última década, possibilitando que vários aspectos de suas existências, em espaços diversos, se tornassem conhecidos. Uma delas foi justamente uma sobre a qual apenas sinalizamos há pouco e que foi marcante para os rumos que os estudos sobre o tema tomariam: trata-se da tese de doutorado de Beatriz Mamigonian (2002), que, além de contribuir para a historicidade da categoria dentro de uma perspectiva atlântica (apud MOREIRA, 2005: 38-40), utilizou a experiência dos africanos livres para revisitar um tema clássico da historiografia brasileira: a “transição para o trabalho livre”. Conforme observou a autora, essa “transição” não implicou a “substituição” imediata do trabalho escravo por relações de trabalho assentadas no trabalho livre e assalariado. Segundo ela, a experiência com os africanos livres e outros grupos de trabalhadores – como índios, mestiços, negros e pobres livres em geral – “sustenta a idéia de que em vez de uma gradual „transição para o trabalho livre‟, o país experimentou a expansão do trabalho não livre, entre o declínio da escravidão e a expansão de outros arranjos de trabalho forçado” (MAMIGONIAN, 2005: 411).6 Partilhando dessa perspectiva apresentada por Mamigonian acerca das transformações das relações de trabalho e dando continuidade às pesquisas sobre o tema, Alinnie Moreira, em dissertação de mestrado, circunscreveu a análise para examinar os africanos livres em um local de trabalho específico, pertencente ao Estado, a Fábrica de Pólvora da Estrela na província do Rio de Janeiro, entre 1831 e 1870 (MOREIRA, op. cit.). Patrícia Melo Sampaio, autora que atualmente realiza pesquisas sobre o grupo social em tela, por sua vez, tem buscado recuperar a presença do mesmo na Amazônia entre 1854 e 1866, identificar as diferentes modalidades pelas quais ele foi inserido