“Um estranho numa terra estranha”: transcendência e imanência em Cavaleiro de Copas (2015), de

"Stranger in a strange land": transcendence and immanence in Knight of Cups (2015), by Terrence Malick

Sander Cruz CASTELO1

RESUMO: Investigam-se como os polos do sagrado são expressos no filme Cavaleiro de Copas (Knight of Cups, EUA, 2015), de Terrence Malick. Para tanto, analisa-se como a transcendência e a imanência são apresentadas na obra mediante a sua forma (enredo, personagens, tempo, espaço e narradores) e estilo (mise-en- scène, cinematografia, montagem e som). Baseia-se, teórica e metodologicamente, em textos sobre análise fílmica (BORDWELL; THOMPSON, 2013), o sagrado (OTTO, 1997; ELIADE, 1992) e suas manifestações na literatura (WEBB, 2012) e no cinema (VADICO, 2010; 2015), especialmente no filme em estudo (HAMNER, 2016; BARNETT, 2016; CASTELO, 2017abc). Descobriu-se que, além da natureza, instância tradicional do 365 sagrado na filmografia de Malick, sua artificialização, isto é, a cultura (material ou imaterial), avulta, igualmente, como polo potencial do sagrado no filme. Conclui-se que, em Cavaleiro de Copas, a cultura, como a natureza, assombra e fascina, é majestosa e protetora, indiferente e calorosa, diversa e igual.

PALAVRAS-CHAVE: Sagrado. Imanência. Transcendência. Filme “Cavaleiro de Copas” (2015). Terrence Malick.

ABSTRACT: It is investigated how the poles of the sacred are expressed in the film Knight of Cups (EUA, 2015), by Terrence Malick. In order to do so, it is analyzed how transcendence and immanence are presented in the work through its form (plot, characters, time, space and narrators) and style (mise-en-scène, cinematography, editing and sound). It is based theoretically and methodologically on texts on film analysis (BORDWELL; THOMPSON, 2013), the sacred (OTTO, 1997; ELIADE, 1992) and its manifestations in literature (WEBB, 2012) and cinema (VADICO, 2010; 2015), especially in the film under study (HAMNER, 2016; BARNETT, 2016; CASTELO, 2017abc). It has been discovered that in addition to nature, which is a traditional instance of the sacred in Malick's filmography, its artificialization, that is, culture (material or immaterial), also appears as a potential pole of the sacred in the film. One concludes that in Knight of Cups, culture, like nature, haunts and fascinates, is majestic and protective, indifferent and warm, diverse and equal.

KEYWORDS: Sacred. Immanence. Transcendence. Movie "Knight of Cups" (2015). Terrence Malick.

1 Universidade Estadual do Ceará (UECE) – Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC). Professor adjunto do Curso de História e do Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em História e Letras (MIHL). Pós-doutorando no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (UAM), sob a supervisão do Prof. Dr. Luiz Antonio Vadico. Quixadá –Ceará –Brasil. CEP: 63.900- 000. E-mail: [email protected]..

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 365-372, jan./abr. 2018.

Introdução

Para Eugene Webb, o sagrado se expressa por meio de dois polos, um, transcendente, outro, imanente. O primeiro é a sua “fonte”, o segundo, o seu “veículo” (WEBB, 2012, p. 17- 8). Inspirado em Rudolf Otto (1997) e Mircea Eliade (1992), autores referenciais sobre o tema, Webb afirma que sua manifestação provoca diferentes sensações, a depender do polo que se sobressai. Afirmando-se o polo transcendente, sofremos de assombro/terror e de iniquidade. Pontificando o polo imanente, somos despertados para a salvação, o perdão, o renascimento e a participação no sagrado (WEBB, 2012, p. 19). Dado o sagrado ser mais uma “experiência” do que um “conceito”, a literatura seria um suporte privilegiado dele, por conjugar razão e emoção (WEBB, 2012, p. 9; 15-6). O poderio técnico e estético do cinema lhe assegura, igualmente, notável (e crescente) expressividade na representação do sagrado (VADICO, 2015). A “hierofania fílmica” não se exprime somente no “campo do filme religioso”, apresentando-se, também, no “cinema autoral”, por meio de “Filmes que Dialogam com o Campo do Religioso” (VADICO, 2010, p. 191-192). A filmografia de Terrence Malick, caracterizada pela busca incessante do sagrado, exemplifica-o. Investiga-se, logo, como os polos do sagrado são expressos no filme Cavaleiro de Copas (Knight of Cups, EUA, 2015), antepenúltimo longa-metragem do diretor2. Para tanto, analisa-se como a imanência e a transcendência são apresentadas na obra mediante a sua forma (enredo, personagens, tempo, espaço e narradores) e estilo (mise-en-scène, cinematografia, montagem e som). Baseia-se, teórica e metodologicamente, em textos sobre análise fílmica (BORDWELL; THOMPSON, 2013), o sagrado (OTTO, 1997; ELIADE, 366 1992) e suas manifestações na literatura (WEBB, 2012) e no cinema (VADICO, 2010; 2015), especialmente no filme em estudo (HAMNER, 2016; BARNETT, 2016; CASTELO, 2017abc).3

Imanência e transcendência no âmbito da narrativa

Cavaleiro de Copas aborda a busca de roteirista hollywoodiano (Rick) pelo sentido da vida, preenchida com relacionamentos amorosos fugazes, problemas familiares e insatisfação profissional4. O filme se inicia com um prólogo, no qual se ouve a narração, em voz over, do título completo de O peregrino (1678), do pastor batista John Bunyan: “O processo do peregrino, deste mundo ao que está por vir, dado sob a similaridade de um sonho, onde se

2 Terrence Malick é autor dos seguintes longas: Terra de ninguém (Badlands, EUA, 1973), Cinzas do paraíso (Days of heaven, EUA, 1978), Além da linha vermelha (The thin red line, EUA, 1998), O novo mundo (The new world, EUA/RU, 2005), A árvore da vida (The tree of life, EUA, 2011), Amor pleno (, EUA, 2012), Cavaleiro de Copas (Knight of Cups, EUA, 2015), : life's journey (EUA, 2016) e De canção em canção (, EUA, 2017). 3 Reelabora-se, nesses parágrafos, resumo expandido de comunicação feita no XXI Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual, realizado em 2017, em João Pessoa-PB (CASTELO, 2017b). 4 A sinopse oficial do filme, divulgada em uma reportagem, define o protagonista deste modo: “Como o cartão de tarô do título, Rick é facilmente entediado e precisa de estimulação externa. Mas o Cavaleiro de Copas é também um artista, um romântico e um aventureiro” (JAGERNAUTH, 2015, tradução nossa). No original: “Like the tarot card of the title, Rick is easily bored and needs outside stimulation. But the Knight of Cups is also an artist, a romantic and an adventurer”.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 365-372, jan./abr. 2018.

descobre o modo como ele funciona, sua perigosa jornada, e sua chegada a salvo na terra desejada”. Depara-se, então, com súmula do cotidiano desnorteado do protagonista em Los Angeles, sob a exposição, pelo seu pai, do “Hino da Pérola”, do apócrifo e gnóstico Atos de Tomé (sec. III).5 Seguem-se oito segmentos, intitulados com cartas de tarô específicas: o primeiro, “A Lua”, trata da relação de Rick com uma jovem gótica, Della; o segundo, “O enforcado”, de sua ação mediadora e apaziguadora junto a Barry, o problemático irmão, e ao pai, Joseph, os três assombrados pelo provável suicídio de Billy, o outro irmão; o terceiro, “O eremita”, passa-se numa festa em mansão hollywoodiana, cujo anfitrião, Tonio, procura convencê-lo da superioridade do hedonismo como filosofia de vida; o quarto, “Julgamento”, relata o seu relacionamento passado e atual com Nancy, ex-esposa; o quinto, “A torre”, é voltado para seu envolvimento com Helen, uma modelo budista; o sexto, “Sacerdotisa”, trata de seu namoro com uma stripper, Karen, com quem faz uma viagem a Las Vegas; o sétimo, “A morte”, aborda seu caso com Elisabeth, uma mulher casada, que aborta filho provável deles e com quem visita templo budista; o oitavo, “Liberdade”, foca no seu relacionamento, agora sólido, com Isabel, uma jovem, com quem decide coabitar e gerar um filho. Esses e outros personagens dividem a narração, mediante vozes em over, que substituem a voz in no filme, a (auto)reflexão e a rememoração impondo-se ao diálogo, isto é, a interioridade à exterioridade. As vozes de Rick e de Joseph predominam: a primeira interroga pelo sentido da existência e a segunda lhe responde com correção de rumo, encorajamento e exemplo em direção ao transcendente 6 . Vozes de religiosos também o assistem na sua busca, legitimando o sofrimento humano e o amor como pontes para o sagrado: além do pastor John Bunyan e do evangelista Tomé, ouvimos um padre (Zetlinger), um monge budista (Christopher), outro evangelista (Lucas) e um salmista (Lucas). Além de 367 Suhrawardi, ele é auxiliado por outro filósofo, Platão, cujo idealismo inspirou o iluminacionismo daquele (MARCOTTE, 2016). Umas mais, outras menos, vozes femininas são também invocações do sagrado, por meio da veneração da vida. Mesmo um personagem como Tonio, que procura convencer Rick de que a vida se reduz ao plano da imanência ou da natureza, sinaliza, enviezadamente, para a transcendência. (CASTELO, 2017c). Hamner, de seu lado, identifica três “guias” masculinos (Joseph, Christopher e Zeitlinger), que “parecem defender a voz de Deus ou a verdade ou a divindade” (HAMNER, 2016, p. 266, tradução nossa)7. Já as personagens femininas seriam guias para a “eternidade”, sugerindo a Rick “encontrar a pérola nos olhos dos outros e entender os olhos como abertura para a alma”8 (HAMNER, 2016, p. 267, tradução nossa). A autora defende que Cavaleiro de Copas, ao contrário de Amor pleno (To the Wonder, 2013), filme anterior do cineasta, expressaria visão da natureza sobre a graça, cuja

5 O filme também se inspirou em A tale of the western exile, escrito no séc. XII pelo filósofo islâmico Suhrawardi (BRIGMAN, 2016). 6 A frase que intitula o artigo é proferida por ele: “(...) A pérola. Sussurrando. Chamando. Cada homem. Cada mulher. Uma guia. Um Deus. Você vive exilado. Um estranho numa terra estranha. Um peregrino. Um cavaleiro. Encontre o seu caminho da escuridão para a luz”. 7 No original: “The three male guides are Rick's father, the Buddhist teacher, and the Catholic priest, all of whom guide by voice (not by image or body). These male voices seem to stand in for the voice of God or truth or divinity”. 8 No original: “To find the pearl in the eyes of others and to understand the eyes as opening to the soul suggests that the soul really is something „mean‟ for more than the world. This message comes primarily from the women characters”.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 365-372, jan./abr. 2018.

“atração” e “promessa” se efetuariam em três “níveis”: “estrutural”, “processual” e de “conteúdo significante” (HAMNER, 2016, p. 261). No nível estrutural, o prólogo e os oito segmentos baseados no tarô levariam o protagonista da forca à “„liberdade‟, após a „morte‟”:

1 “A Lua” (carta que indica intuição, iluminação vaga e as mensagens dos sonhos): Em que Rick é retirado de sua complacência. 2 “O enforcado” (carta que indica uma encruzilhada, sacrifício ou transição): Em que Rick luta com sua família na sequência da morte de seu irmão Billy e sente-se necessitado de uma nova direção. 3 “O eremita” (carta que indica introspecção e pesquisa de alma): Em que Rick mergulha em conquistas de mulheres e festa de Hollywood, mas também sente sua solidão e falta de propósito. 4 “Julgamento” (carta que indica que é hora de tomar posição): Em que Rick abandona suas conquistas e começa a procurar o que o alimenta nos relacionamentos. 5 “A Torre” (carta sobre mudança, destruição e crise): Em que Rick luta com a violência (masculina) da família e da sociedade e encontra descanso nas amizades com as mulheres. 6 “Sacerdotisa” (carta que sugere intuição visceral, mistério feminino e orientação): Em que Rick segue a orientação de Karen ao passar da fantasia para a realidade. 7 “Morte” (carta que sinaliza perda ou fim): No qual o caso de amor de Rick com Elizabeth () termina quando ela tem um aborto, ponto no qual Rick abraça o sofrimento e trabalha para a reconciliação. 8 “Liberdade” (carta que indica que a alma está ansiosa para ser liberada de restrições e seguir um propósito): Em que Rick encontra “a pérola” na luz dos olhos dos outros, sente-se pronto para lembrar sua busca por propósito, e levanta-se. (HAMNER, 2016, p. 263-264, tradução nossa).9 368

Do nível processual, falar-se-á no próximo tópico. No nível de conteúdo significante, “a atração e a promessa do filme são enquadradas pelas três narrativas de missão (O Peregrino, Fedro de Platão e a fábula de um príncipe enviado para procurar uma pérola) e por uma série desconectada de práticas religiosas” (“leitura de cartas de tarô”, “discussão sobre atenção e distração com um professor Zen”, “visita a um retiro budista”, “uma mulher praticando yoga” e “conversa sobre o sofrimento e a orientação de Deus com um padre

9 No original: “1 „The Moon‟ (a card indicating intuition, vague illumination, and the messages of dreams): In which Rick is knocked out of his complacency. 2 „The Hanged Man‟ (a card indicating a crossroads, sacrifice, or transition): In which Rick fights with his family in need of a new direction. 3 „The Hermit‟ (a card indicating introspection and soul searching): In which Rick plunges into womanizing and Hollywood partying, but also senses his solitude and purposelessness. 4 „Judgment‟ (a card indicating it is time to take a stand): In which Rick quits his womanizing and begins to look for what feeds him in relationships. 5 „The Tower‟ (a card about change, destruction, and crisis): In which Rick wrestles with the (male) violence of family and society and finds respite in friendships with women. 6 „High Priestess‟ (a card suggesting gut intuition, feminine mystery, and guidance): In which Rick follows Karen's guidance in moving from fantasy into reality. 6 „High Priestess‟ (a card suggesting gut intuition, feminine mystery, and guidance): In which Rick follows Karen's guidance in moving from fantasy into reality. 7 „Death‟ (a card that signals loss or ending): In which Rick's love affair with Elizabeth (Natalie Portman) ends when she has an abortion, at which point Rick embraces suffering and works toward reconciliation 8 „Freedom‟ (a card indicating that the soul is longing to be released from restrictions and to follow one's purpose): In which Rick finds „the pearl‟ in the light of the eyes of others, feels ready to remember his quest for purpose, and sets out”.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 365-372, jan./abr. 2018.

católico”) 10 . Tudo se passa como “se Cavaleiro de Copas nos desse apenas a saída do peregrino, apenas seu reconhecimento de que uma jornada perigosa deve ser realizada”11 (HAMNER, 2016, p. 261). Já para Christopher B. Barnett, Rick viveria “crise espiritual”, não obtendo superar o “estágio estético” da existência:

Notoriamente, Kierkegaard divide a existência humana em três “estágios”: o estético, o ético e o religioso. E, sem dúvida, Cavaleiro de copas é um “registro” do estágio estético, onde o ego busca uma sucessão de experiências efêmeras e sensuais à custa de um confronto sério do significado e propósito da vida. (BARNETT, 2016, tradução nossa)12.

Enfim, a busca de Rick pelo amor erótico fugaz, confundido com a da transcendência – amor divino – (CASTELO, 2017c), finaliza com novo casamento e paternidade (polo imanente forte do sagrado). Conflitos familiares e profissionais restam irresolvidos.

Imanência e transcendência no âmbito do estilo a) Mise-en-scène

Como sobredito, o filme se passa em Los Angeles e Las Vegas. Na primeira cidade, o personagem frequenta residências (dele, de amigos e amantes), boates, hotéis, estúdios cinematográficos, edifícios corporativos, museus, antigos clubes, lanchonetes e praias. Ele também percorre as suas highways no seu conversível e anda pelas suas calçadas. Na segunda, 369 ele se faz presente em seus hotéis-cassinos e boates. (CASTELO, 2017a). Essa ambientação urbana e pós-moderna não consegue, contudo, ocultar o ambiente natural, que se faz presente diretamente ou por meio de simulacros: água13 (praias, poças, reservatórios, piscinas, aquários), terra (praia, deserto), vento (aerogeradores, ventiladores),

10 No original: “Third, from the level of signifying content, the pull and promise of the film are framed by the three quest narratives (Pilgrim's Progress, Plato's Phaedrus, and the fable of a prince sent to search for a pearl) and by an unconnected series of religious practices. […] The religious practices include a tarot card reading, a discussion of attention and distraction with a Zen teacher (billed as „Christopher‟ and played by Peter Mathiessen), a visit to a Buddhist retreat of some kind, a woman practicing yoga, and a conversation about suffering and God‟s guidance with a Catholic priest (billed as Fr. Zeitlinger and played by Armin Mueller- Stahl)”. 11 No original: “It is as if KOC gives us only the setting out of the pilgrim, only his recognition that a dangerous journey needs to be undertaken”. 12 No original: “Famously, Kierkegaard divides human existence into three „stages‟: the aesthetic, the ethical, and the religious. And, doubtless, Knight of Cups is a „recording‟ of the aesthetic stage, where the self seeks a succession of ephemeral, sensual experiences at the expense of an earnest confrontation of life‟s meaning and purpose”. Teólogos (como Barnett) parecem ter recebido bem o filme, que portaria reflexão teológica elaborada, não percebida pelos críticos, que o acusaram de esteticismo (estilo em detrimento da narrativa), incompreensível, vazio, formulaico, autoparódico, sexista, elitista etc. Ao filme anterior do cineasta já foram imputados alguns desses adjetivos (BARNETT, 2016). 13 Hamner insiste na onipresença da água no filme. Além da função simbólica (liminaridade), ela exerceria papel “formal e lógico”. Ela “é o corpo do ser em si, a questão que escapa à representação, porque toma a forma ou o fluxo do que está ao seu redor. É a mais visível e mais mutável instauração do filme daimonológico, a atração e a promessa da eternidade” (HAMNER, 2016, p. 269). No original: “Water is the body of being itself, the matter that eludes representation because it takes the shape or flow of what is around it. It is the most visible and most mutable instauration of the film‟s daimonologic, the lure and promise of eternity”.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 365-372, jan./abr. 2018.

animais (domésticos, brinquedos, aviões, helicópteros14), plantas (árvores, prédios, fiação, postes), sol (bronzeamento artificial), lua (postes de iluminação, faróis). A propósito, usam-se tanto a luz natural como a proveniente de objetos de cena. (CASTELO, 2017a). A urbanização parece, pois, enfraquecer o polo imanente do sagrado, na medida em que obscurece a natureza. Rick o procura, contudo, nesta e em seus simulacros. b) Cinematografia

Travellings de acompanhamento e de contorno seguem Rick, ao passo que outros avançam sobre elementos da natureza. Há, contudo, planos fixos de detalhe de partes do corpo humano15 e da natureza. Enquanto planos fechados e primeiros planos exprimem o isolamento e a alienação de Rick, grandes angulares e planos oblíquos denotam a desorientação do personagem. Tomadas subjetivas apresentam a sua visão, mediante planos a partir de seu conversível, câmeras baixas (voltadas para o céu) e tomadas submarinas – que o colocam no mesmo plano de outros animais. (CASTELO, 2017a) A cinematografia acentua, pois, tanto a distância quanto a busca dos polos imanentes do sagrado. c) Montagem

A duração dos planos é curta (alguns são de somente três segundos). Elipses imperam, cortando secamente os movimentos de atores e de câmera antes de sua finalização. A montagem temporal e espacial é minimizada em prol da montagem rítmica e gráfica. Há aceleração (flashforwards) e desaceleração (slow motion) das ações. (CASTELO, 2017a). 370 Aparentemente, o mundo objetivo é tomado como mero decalque da verdadeira realidade, a do mundo subjetivo (CASTELO, 2017a). Os polos imanente e transcendente do sagrado parecem fragmentados e desarticulados, explicitando, segundo Hamner, a divisão da subjetividade de Rick entre a “absorção do mundo” e a “atração da graça” (HAMNER, 2016, p. 262-263). d) Som

O som diegético externo16 atesta o ocultamento da polifonia natural (polo imanente do sagrado) pela urbana. Já o som não diegético contém música erudita secular/sacra17, étnica18, experimental19, eletrônica20, pop21 e rock22 (CASTELO, 2017a). A música popular debilita o

14 Para Hamner, helicópteros, assim como sirenes, trens e trilhos, seriam, no filme, “sinais de alerta”, que nos libertam da “absorção do mundo” (HAMNER, 2016, p. 265-266). 15 Hamner salienta a luz (artificial), a arte e o corpo (das crianças, dos deformados, dos luxuriosos) como simulacros da criação no filme, distraindo-nos da graça. Sobre a arte, especificamente (incluído o cinema), ela afirma: “A arte é, afinal, sobre representação, e a faneroscopia de Malick resiste à representação para apontar para a matriz generativa que forma seu substrato” (HAMNER, 2016, p. 264-265). No original: “Art is, after all, about representation, and Malick's phaneroscopy resists representation in order to point to the generative matrix that forms its substrate”. 16 Já se discorreu, acima, sobre o som diegético interno, exteriorizado por meio das vozes em over. 17 Ralph Vaughan Williams, Hanan Townshend, Wojciech Kilar, Edvard Grieg, Arvo Part, Johann Pachelbel, Claude Debussy, Arcangelo Corelli, Frederic Chopin, Beethoven, Max Bruch e Henryk Górecki. 18 Paul Nyirongo e M. Ashraf. 19 Arsenije Jovanovic, Francesco Lupica, David Parsons, Klaus Wiese, Paul Horn e Tibor Szemzo.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 365-372, jan./abr. 2018.

polo imanente do sagrado, ao tratá-lo como pura natureza. Música erudita, étnica e experimental ressaltam-no, ao contrário, junto com o polo transcendente. De acordo com Hamner, no nível processual, a “atração” e “promessa” de graça se operariam no filme

através de texturas contínuas de imagem e som, da deambulação de Bale no deserto e sua reação à atração física de um terremoto [sentimentos de assombro e iniquidade, relacionados ao polo transcendente do sagrado], das ondas oceânicas repetitivas, dos contrastantes silêncio e clareza das piscinas, e da simbólica atração e promessa de elementos como o nascer do sol, a estrada aberta, o vento, o canto dos pássaros e as cigarras distantes. (HAMNER, 2016, p. 261, tradução nossa).23

Considerações finais

A forma e o estilo singular de Cavaleiro de copas resultam do intento de fomentar o sentimento do sagrado. Para tanto, busca-se investir de transcendência o mundo criado pelo homem, a despeito de ele consistir em simulacro da criação divina. Além da natureza, polo imanente usual do sagrado na cinematografia de Malick, sua artificialização, isto é, a cultura (material ou imaterial), avulta, pois, igualmente, como polo potencial do sagrado. A cultura, como a natureza, assombra e fascina, é majestosa e protetora, indiferente e calorosa, diversa e igual.

371 REFERÊNCIAS

AMOR PLENO. Direção de Terrence Malick. Brothers K Productions/ Redbud Pictures. Estados Unidos: 2012. São Paulo: Paris Filmes, 2013. DVD, 2013. (112 minutos), colorido.

BARNETT, C. B. Knight of Cups (dir. Terrence Malick, 2015). Theology + Movies, 31 jan. 2016. Disponível em: https://theologyandmovies.wordpress.com/2016/01/31/knight-of-cups- dir-terrence-malick-2015/. Acesso em: 12 ago. 2016.

BORDWELL, D.; THOMPSON, K. A arte do cinema: uma introdução. Tradução de Roberta Gregoli. Campinas, SP: Unicamp, 2013.

BRIGMAN, J. Interview: the producers of “Knight of Cups” including Emerson Alumni Sarah Green. Emertainment Monthly, 12 mar. 2016. Disponível em: http://emertainmentmonthly.com/ index.php/31301/. Acesso em: 21 nov. 2017.

20 Biosphere e Burial. 21 Sleep Good. 22 Thee Oh Sees, Explosions in the Sky, Bosco Delrey e White Mystery. 23 No original: “Second, from a processual level, the film's phaneroscopy constructs pull and promise through the ongoing textures of image and sound, from Bale's roaming in the desert and reacting to the physical pull of an earthquake, to the repetitive ocean waves, the contrasting stillness and clarity of swimming pools, and the symbolic pull and promise of elements such as sunrise, open highway, wind, birdsong, and distant cicadas”.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 365-372, jan./abr. 2018.

CASTELO, S. C. “A glória ao nosso redor”: o cinema autoral de Terrence Malick. 2017a. No prelo.

CASTELO, S. C. O sagrado e o profano no filme “Cavaleiro de copas” (2015). In: ENCONTRO SOCINE DE ESTUDOS DE CINEMA E AUDIOVISUAL, 21., 2017, João Pessoa. Resumo expandido. João Pessoa: Socine, 2017b. No prelo.

CASTELO, S. C. “Uma pérola no fundo do oceano”: voz over e sagrado no filme Cavaleiro de Copas (EUA, 2015). São Paulo, Correlatio, v.16, n.1, p. 317-344, 2017c.

CAVALEIRO DE COPAS. Direção de Terrence Malick. Dogwood Films/ FilmNation Entertainment/ Waypoint Entertainment. Estados Unidos: 2015. Los Angeles: Broad Green Pictures, 2015. Versão disponível na Netflix, 2016. (116 minutos), colorido.

ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

HAMNER, M. G. “Remember who you are”: imaging life‟s purpose in Knight of Cups. BARNETT, C. B.; ELLISTON, C. J. (eds.) Theology and the films of Terrence Malick. New York: Routledge, 2016.

JAGERNAUTH, K. Official long synopsis and runtime revealed for Terrence Malick's “Knight of Cups”. IndieWire, 02 fev. 2015. Disponível em: http://www.indiewire.com/2015/02/official-long-synopsis-and-runtime-revealed-for-terrence- 372 malicks-knight-of-cups-267570/. Acesso em: 21 nov. 2017.

MARCOTTE, R. Suhrawardi. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Stanford: Stanford University, 2016. Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/suhrawardi/. Acesso em: 20 nov. 2017. OTTO, R. O Sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Tradução de Walter O. Schlupp. Petrópolis, R. J.: Vozes, 1997.

VADICO, L. A hierofania fílmica. A representação da manifestação do sagrado em dois filmes hollywoodianos: A canção de Bernadette (King, 1948) e O milagre de Fátima (Brahm, 1952). Tríade: comunicação, cultura e mídia, Sorocaba, SP, v. 3, nº 5, p. 145-62, jun. 2015.

VADICO, L. O campo do filme religioso. Revista Olhar, São Carlos, SP, ano 12, nº 23, p. 178-93, ago.- dez. 2010. WEBB, E. A pomba escura: o sagrado e o secular na literatura moderna. Tradução de Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2012.

Recebido em 09/01/2018 Aprovado em 29/04/2018

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 365-372, jan./abr. 2018.