Transcendência E Imanência Em Cavaleiro De Copas (2015), De Terrence Malick
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
“Um estranho numa terra estranha”: transcendência e imanência em Cavaleiro de Copas (2015), de Terrence Malick "Stranger in a strange land": transcendence and immanence in Knight of Cups (2015), by Terrence Malick Sander Cruz CASTELO1 RESUMO: Investigam-se como os polos do sagrado são expressos no filme Cavaleiro de Copas (Knight of Cups, EUA, 2015), de Terrence Malick. Para tanto, analisa-se como a transcendência e a imanência são apresentadas na obra mediante a sua forma (enredo, personagens, tempo, espaço e narradores) e estilo (mise-en- scène, cinematografia, montagem e som). Baseia-se, teórica e metodologicamente, em textos sobre análise fílmica (BORDWELL; THOMPSON, 2013), o sagrado (OTTO, 1997; ELIADE, 1992) e suas manifestações na literatura (WEBB, 2012) e no cinema (VADICO, 2010; 2015), especialmente no filme em estudo (HAMNER, 2016; BARNETT, 2016; CASTELO, 2017abc). Descobriu-se que, além da natureza, instância tradicional do 365 sagrado na filmografia de Malick, sua artificialização, isto é, a cultura (material ou imaterial), avulta, igualmente, como polo potencial do sagrado no filme. Conclui-se que, em Cavaleiro de Copas, a cultura, como a natureza, assombra e fascina, é majestosa e protetora, indiferente e calorosa, diversa e igual. PALAVRAS-CHAVE: Sagrado. Imanência. Transcendência. Filme “Cavaleiro de Copas” (2015). Terrence Malick. ABSTRACT: It is investigated how the poles of the sacred are expressed in the film Knight of Cups (EUA, 2015), by Terrence Malick. In order to do so, it is analyzed how transcendence and immanence are presented in the work through its form (plot, characters, time, space and narrators) and style (mise-en-scène, cinematography, editing and sound). It is based theoretically and methodologically on texts on film analysis (BORDWELL; THOMPSON, 2013), the sacred (OTTO, 1997; ELIADE, 1992) and its manifestations in literature (WEBB, 2012) and cinema (VADICO, 2010; 2015), especially in the film under study (HAMNER, 2016; BARNETT, 2016; CASTELO, 2017abc). It has been discovered that in addition to nature, which is a traditional instance of the sacred in Malick's filmography, its artificialization, that is, culture (material or immaterial), also appears as a potential pole of the sacred in the film. One concludes that in Knight of Cups, culture, like nature, haunts and fascinates, is majestic and protective, indifferent and warm, diverse and equal. KEYWORDS: Sacred. Immanence. Transcendence. Movie "Knight of Cups" (2015). Terrence Malick. 1 Universidade Estadual do Ceará (UECE) – Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC). Professor adjunto do Curso de História e do Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em História e Letras (MIHL). Pós-doutorando no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (UAM), sob a supervisão do Prof. Dr. Luiz Antonio Vadico. Quixadá –Ceará –Brasil. CEP: 63.900- 000. E-mail: [email protected].. Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 365-372, jan./abr. 2018. Introdução Para Eugene Webb, o sagrado se expressa por meio de dois polos, um, transcendente, outro, imanente. O primeiro é a sua “fonte”, o segundo, o seu “veículo” (WEBB, 2012, p. 17- 8). Inspirado em Rudolf Otto (1997) e Mircea Eliade (1992), autores referenciais sobre o tema, Webb afirma que sua manifestação provoca diferentes sensações, a depender do polo que se sobressai. Afirmando-se o polo transcendente, sofremos de assombro/terror e de iniquidade. Pontificando o polo imanente, somos despertados para a salvação, o perdão, o renascimento e a participação no sagrado (WEBB, 2012, p. 19). Dado o sagrado ser mais uma “experiência” do que um “conceito”, a literatura seria um suporte privilegiado dele, por conjugar razão e emoção (WEBB, 2012, p. 9; 15-6). O poderio técnico e estético do cinema lhe assegura, igualmente, notável (e crescente) expressividade na representação do sagrado (VADICO, 2015). A “hierofania fílmica” não se exprime somente no “campo do filme religioso”, apresentando-se, também, no “cinema autoral”, por meio de “Filmes que Dialogam com o Campo do Religioso” (VADICO, 2010, p. 191-192). A filmografia de Terrence Malick, caracterizada pela busca incessante do sagrado, exemplifica-o. Investiga-se, logo, como os polos do sagrado são expressos no filme Cavaleiro de Copas (Knight of Cups, EUA, 2015), antepenúltimo longa-metragem do diretor2. Para tanto, analisa-se como a imanência e a transcendência são apresentadas na obra mediante a sua forma (enredo, personagens, tempo, espaço e narradores) e estilo (mise-en-scène, cinematografia, montagem e som). Baseia-se, teórica e metodologicamente, em textos sobre análise fílmica (BORDWELL; THOMPSON, 2013), o sagrado (OTTO, 1997; ELIADE, 366 1992) e suas manifestações na literatura (WEBB, 2012) e no cinema (VADICO, 2010; 2015), especialmente no filme em estudo (HAMNER, 2016; BARNETT, 2016; CASTELO, 2017abc).3 Imanência e transcendência no âmbito da narrativa Cavaleiro de Copas aborda a busca de roteirista hollywoodiano (Rick) pelo sentido da vida, preenchida com relacionamentos amorosos fugazes, problemas familiares e insatisfação profissional4. O filme se inicia com um prólogo, no qual se ouve a narração, em voz over, do título completo de O peregrino (1678), do pastor batista John Bunyan: “O processo do peregrino, deste mundo ao que está por vir, dado sob a similaridade de um sonho, onde se 2 Terrence Malick é autor dos seguintes longas: Terra de ninguém (Badlands, EUA, 1973), Cinzas do paraíso (Days of heaven, EUA, 1978), Além da linha vermelha (The thin red line, EUA, 1998), O novo mundo (The new world, EUA/RU, 2005), A árvore da vida (The tree of life, EUA, 2011), Amor pleno (To the Wonder, EUA, 2012), Cavaleiro de Copas (Knight of Cups, EUA, 2015), Voyage of time: life's journey (EUA, 2016) e De canção em canção (Song to song, EUA, 2017). 3 Reelabora-se, nesses parágrafos, resumo expandido de comunicação feita no XXI Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual, realizado em 2017, em João Pessoa-PB (CASTELO, 2017b). 4 A sinopse oficial do filme, divulgada em uma reportagem, define o protagonista deste modo: “Como o cartão de tarô do título, Rick é facilmente entediado e precisa de estimulação externa. Mas o Cavaleiro de Copas é também um artista, um romântico e um aventureiro” (JAGERNAUTH, 2015, tradução nossa). No original: “Like the tarot card of the title, Rick is easily bored and needs outside stimulation. But the Knight of Cups is also an artist, a romantic and an adventurer”. Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 365-372, jan./abr. 2018. descobre o modo como ele funciona, sua perigosa jornada, e sua chegada a salvo na terra desejada”. Depara-se, então, com súmula do cotidiano desnorteado do protagonista em Los Angeles, sob a exposição, pelo seu pai, do “Hino da Pérola”, do apócrifo e gnóstico Atos de Tomé (sec. III).5 Seguem-se oito segmentos, intitulados com cartas de tarô específicas: o primeiro, “A Lua”, trata da relação de Rick com uma jovem gótica, Della; o segundo, “O enforcado”, de sua ação mediadora e apaziguadora junto a Barry, o problemático irmão, e ao pai, Joseph, os três assombrados pelo provável suicídio de Billy, o outro irmão; o terceiro, “O eremita”, passa-se numa festa em mansão hollywoodiana, cujo anfitrião, Tonio, procura convencê-lo da superioridade do hedonismo como filosofia de vida; o quarto, “Julgamento”, relata o seu relacionamento passado e atual com Nancy, ex-esposa; o quinto, “A torre”, é voltado para seu envolvimento com Helen, uma modelo budista; o sexto, “Sacerdotisa”, trata de seu namoro com uma stripper, Karen, com quem faz uma viagem a Las Vegas; o sétimo, “A morte”, aborda seu caso com Elisabeth, uma mulher casada, que aborta filho provável deles e com quem visita templo budista; o oitavo, “Liberdade”, foca no seu relacionamento, agora sólido, com Isabel, uma jovem, com quem decide coabitar e gerar um filho. Esses e outros personagens dividem a narração, mediante vozes em over, que substituem a voz in no filme, a (auto)reflexão e a rememoração impondo-se ao diálogo, isto é, a interioridade à exterioridade. As vozes de Rick e de Joseph predominam: a primeira interroga pelo sentido da existência e a segunda lhe responde com correção de rumo, encorajamento e exemplo em direção ao transcendente 6 . Vozes de religiosos também o assistem na sua busca, legitimando o sofrimento humano e o amor como pontes para o sagrado: além do pastor John Bunyan e do evangelista Tomé, ouvimos um padre (Zetlinger), um monge budista (Christopher), outro evangelista (Lucas) e um salmista (Lucas). Além de 367 Suhrawardi, ele é auxiliado por outro filósofo, Platão, cujo idealismo inspirou o iluminacionismo daquele (MARCOTTE, 2016). Umas mais, outras menos, vozes femininas são também invocações do sagrado, por meio da veneração da vida. Mesmo um personagem como Tonio, que procura convencer Rick de que a vida se reduz ao plano da imanência ou da natureza, sinaliza, enviezadamente, para a transcendência. (CASTELO, 2017c). Hamner, de seu lado, identifica três “guias” masculinos (Joseph, Christopher e Zeitlinger), que “parecem defender a voz de Deus ou a verdade ou a divindade” (HAMNER, 2016, p. 266, tradução nossa)7. Já as personagens femininas seriam guias para a “eternidade”, sugerindo a Rick “encontrar a pérola nos olhos dos outros e entender os olhos como abertura para a alma”8 (HAMNER, 2016, p. 267, tradução nossa). A autora defende que Cavaleiro de Copas, ao contrário de Amor pleno (To the Wonder, 2013), filme anterior do cineasta, expressaria visão da natureza sobre a graça, cuja 5 O filme também se inspirou em A tale of the western exile, escrito no séc. XII pelo filósofo islâmico Suhrawardi (BRIGMAN, 2016). 6 A frase que intitula o artigo é proferida por ele: “(...) A pérola. Sussurrando. Chamando. Cada homem. Cada mulher. Uma guia. Um Deus. Você vive exilado. Um estranho numa terra estranha. Um peregrino. Um cavaleiro. Encontre o seu caminho da escuridão para a luz”.