A REPRODUÇÃO SOCIAL NA VÁRZEA DO . A RELAÇÃO COM A VÁRZEA COMO ESTRATÉGIA DE REPRODUÇÃO NA COMUNIDADE MIRACAUERA, CAREIRO DA VÁRZEA-AM.

Jônatas de Araújo Matos Universidade Federal do Amazonas - UFAM [email protected]

Fabiana Maria Machado Soares dos Santos Universidade Federal do Amazonas - UFAM [email protected]

Amélia Regina Batista Nogueira Universidade Federal do Amazonas - UFAM [email protected]

Resumo

A base econômica da comunidade Miracauera é a agricultura familiar, onde os atores sociais envolvidos na produção de hortaliças pertencem à família do agricultor, que desenvolve culturas de ciclo curto na várzea Careirense. O objetivo da pesquisa foi identificar os tipos de cultivos, descrever e caracterizar o processo de produção de hortaliças na comunidade Miracauera. Utilizamos a fenomenologia para nos auxiliar na compreensão desse espaço vivido. As comunidades ribeirinhas estabelecem uma relação direta com o rio, retirando dele o seu alimento e utilizando o rio como principal via de deslocamento. O ambiente de várzea é fértil devido às sucessivas deposições de sedimentos que ocorrem durante as inundações periódicas resultantes. O ambiente de várzea também é caracterizado por vários processos de transformação morfológica, como a erosão e a deposição .

Palavras-chave: Reprodução Social. Agricultura Familiar. Várzea Careirense. Fenomenologia. Inundações Periódicas.

Introdução

A base econômica da comunidade Miracauera é a agricultura familiar, onde os atores sociais envolvidos na produção de hortaliças pertencem à família do agricultor, que desenvolve culturas de ciclo curto na várzea Careirense. Nesse ambiente dinâmico e sazonal o homem da várzea se adaptou e se estabeleceu desenvolvendo cultivos e práticas agrícolas que permitem a sua permanência no ambiente de várzea, mesmo enfrentando os efeitos da dinâmica fluvial que ocorre com frequência; a enchente, cheia, vazante e seca, que contribuem para a construção e modificação da paisagem de várzea. O objetivo da pesquisa foi identificar os tipos de cultivos, descrever e caracterizar o processo de produção de hortaliças na comunidade Miracauera. Para este trabalho a

1 metodologia empregada se deu a partir de atividade direta em campo com visitas in locu na comunidade Miracauera, município do Careiro da Várzea – AM para realizar observação direta em campo. A pesquisa é de caráter exploratório e descritivo, para haver a descrição e caracterização da produção de hortaliças em ambiente de várzea e a relação estabelecida entre homem e lugar enquanto meio de produção de hortaliças e apropriação dos recursos do solo do ambiente de várzea. Quanto aos procedimentos técnicos a pesquisa se deu a partir de levantamento de dados secundários com os moradores da comunidade onde foi aplicado um questionário aberto. A pesquisa também foi bibliográfica com leitura a partir de artigos já publicados que abordam a temática do trabalho, periódicos, dissertações, teses e materiais disponíveis na internet e tabulação dos dados em gabinete. Partindo do pressuposto de que os fenômenos “devem primeiro ser vividos para serem compreendidos como eles realmente são” (RELPH, 1979, apud CARDOSO & NOGUEIRA, 2005), foi utilizado como método de abordagem a fenomenologia para entender as relações sociais estabelecidas na comunidade e o modo de produção, por isso tornou-se necessário estar presente no dia-a-dia dos moradores da comunidade Miracauera, considerando o que diz Merleau-Ponty (1996) “o mundo não é aquele que penso, mas aquilo que eu vivo”. Dialogamos também sobre a produção de hortaliças, identificando quais são os principais tipos de cultivos e ouvindo relatos sobre as dificuldades no processo de produção e escoamento da produção de hortaliças, que tem como principal destino a feira da Panair e Moderna. As comunidades ribeirinhas estabelecem uma relação direta com o rio, retirando dele o seu alimento e mantendo uma ligação com as outras comunidades utilizando o rio como principal via de deslocamento. Ressaltando que o ambiente de várzea é fértil devido às sucessivas deposições de sedimentos que ocorrem durante as inundações periódicas, o ambiente de várzea é caracterizado também por vários processos de transformação morfológica, por exemplo, a erosão e a deposição , que ocorrem durante a cheia e posteriormente a vazante. Esses sucessivos depósitos ocorrem durante o período da cheia, quando há o transbordamento do canal fluvial sobre a planície de inundação fluvial, possibilitando o deposito de sedimentos em suspensão que são transportados. Portanto, concomitante a inundação fluvial traz prejuízos e possibilita a fertilização do solo para as atividades desenvolvidas no ambiente de várzea.

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Os tipos de cultivos no ambiente de várzea da comunidade Miracauera

A área de estudo está inserida na Bacia Sedimentar do Amazonas na seqüência cretáceo-terciário com formação de depósitos aluviais. O Careiro da Várzea, de acordo com Brandão et al (2009) “em sua extensão territorial apresenta 90% de área de várzea e somente 10% de terra-firme”. De acordo com Sausen & Aquino (s/d) quanto à Geologia, “ocorrem dois tipos de litologias: os aluviões, que têm sua origem no Holoceno, correspondem aos depósitos recentes e a formação Solimões, datada do Pleistoceno”. A compartimentação da área de estudo é dividida em quatro unidades de relevo: planícies fluviais (dividida em planície inundável e de inundação), planícies flúvio- lacustres, divisores tabulares e áreas dissecadas em tabuleiros. De acordo com Van Leeuwen et al (1997) apud Brandão et al (2009) faz referência a faixa de terras de várzea próximas a Manaus, que mede 130 Km de comprimento. Estas se limitam desde o município de no médio Solimões até o município de Careiro da Várzea no rio/baixo Solimões/Amazonas. São áreas de solos férteis e com gerações de grupos humanos nativos do local que há mais de três séculos praticam agricultura tradicional. Esse tipo de agricultura “se caracteriza pela utilização intensiva dos recursos naturais, ou seja, a fertilidade natural do solo e a mão-de-obra direta” (GRAZIANO NETO, 1996). A produção de hortaliças vem assegurando a permanência das populações ribeirinhas no interior evitando que haja o abandono das áreas ribeirinhas e ocorra a migração para a cidade de Manaus. Do ponto de vista econômico é considerada uma atividade econômica promissora, garantindo o sustento da família ribeirinha sendo comercializada nas feiras em Manaus, tendo mercado consumidor para a produção de hortaliças. Os moradores da comunidade Miracauera têm na produção de hortaliças em ambiente de várzea uma atividade que garante seu sustento, além de possibilitar a comercialização dessa produção no mercado de Manaus. A partir de observações no Lugar que vive e de acordo com experiências vividas nesse ambiente, o morador da várzea Careirense percebeu algumas peculiaridades desse ambiente, havendo a necessidade de promover técnicas próprias para poder realizar seu cultivo. De acordo com Martins et al (2011) “os moradores da área de várzea observam a escolha da localização de sua casa até os tipos de cultivos ideais para cada período do ano”. Esses conhecimentos foram adquiridos com a experiência do dia-a-dia no

3 ambiente físico em que vive e sua percepção nesse espaço vivido, portanto, valorizando as experiências do morador no seu ambiente e suas relações estabelecidas com o meio

“entendendo este como ser, e o mundo como lugar de vida de cada ser, de cada homem, e entendendo, ainda, que este homem se constrói nessa correlação Ser-Mundo, trazemos esta proposição para a Geografia e podemos pensar que o conhecimento elaborado nesta relação revela uma geograficidade em cada sujeito” (NOGUEIRA, 2001, p. 24).

Os tipos de cultivos que são trabalhados pelos agricultores são adaptados para o ambiente, ou seja, cultivos de ciclo curto para evitar perdas significativas na sua produção. É uma maneira de evitar maiores prejuízos no período da enchente que inunda a planícies de várzea, impossibilitando a prática da agricultura. Dentre as culturas de ciclo curto (figura 1) que foram identificadas na pesquisa em campo destaca-se, pelo grau de importância e freqüência: a cebolinha, a chicória, o cheiro-verde. Essas culturas são vantajosas para os agricultores, com exceção do cheiro- verde, os outros cultivos citados permitem a realização de colheitas sucessivas.

Figura 1: Culturas de ciclo curto

Fonte: MATOS, J. A. 2011.

Esses cultivos garantem a renda da família, pois além de consumirem a própria produção ainda comercializam a mesma, embora ao valor pago pelos atravessadores (agentes de comercialização conforme Fraxe, 2000; Agentes intermediários para Carneiro et al , 2007; Agentes econômicos de acordo com Pinto et al , 2009) não seja

4 satisfatório, pois esses agentes negociam no lugar do agricultor nas feiras, desse modo há uma apropriação dos excedentes.

Técnicas adaptativas no âmbito da produção de hortaliças.

O agricultor da comunidade Miracauera desenvolve os seus cultivos de hortaliças nas áreas do seu terreno com cota altimétrica mais elevadas, as chamadas restingas , que na concepção de Pereira (2007) são “são áreas denominadas como restingas ou lombadas de terras”. Essas lombadas de terras se formas a partir do acúmulo de sedimentos, onde Sternberg (1998) e Cruz (2007) descrevem como “áreas de acreção”. São terrenos que se avoluma durante a enchente e se tornam visíveis após a descida das águas, onde os solos apresentam uma forte deposição de “material particulado trazido pelas águas” (CANTO, 2007). De acordo com Cruz (2009) o ambiente de várzea do complexo Solimões-Amazonas “apresenta uma dinâmica fluvial ativa de erosão (“terras-caídas”) e deposição de sedimentos” (“aterros ”), onde surgem micromeios como os diques marginais conhecido regionalmente como restingas que possuem cota altimétrica mais elevada (várzea alta) alagadas somente nas cheias excepcionais. Nesse ambiente dinâmico “a fertilização das várzeas, áreas que recebem bastantes nutrientes minerais no período da enchente, torna o solo extremamente aproveitável para a prática agrícola” (CARDOSO & NOGUEIRA, 2005). O uso do solo na várzea é determinado pelo nível das águas tanto no período da cheia ou durante a vazante, o que vai determinar qual a plantação que será cultivada, por isso os agricultores das comunidades ribeirinhas desenvolvem um conjunto de práticas, como a escolha da área a ser cultivada, a seleção das culturas e práticas de cultivo que envolve o cultivo misto ou “sítios agroflorestais” de acordo com Cruz (1999). A respeito da adaptação e técnicas utilizadas nesse ambiente que sofre a sazonalidade das águas a tipologia de Homens Anfíbios (FRAXE, 2000) relaciona as peculiaridades adaptativas e os mecanismos desenvolvidos pelos moradores locais, caracterizando o rio como meio de locomoção e contato com outras comunidades e o uso do rio para obtenção de alimentos. As técnicas empregadas, além da seleção das culturas, cultivo misto e escolha da área a ser utilizada, envolvem também o cercado rotativo (figura 2) onde se utiliza o solo por um ou

5 dois ciclos, quando o agricultor percebe a queda na produtividade, essa área é destinada para o curral do gado para receber adubação orgânica, enquanto outra área é utilizada.

Figura 2: Cercado rotativo

Fonte: MATOS, J.A. 2011.

Esse sistema é conhecido na literatura como pousio , onde o solo fica em descanso para ser reaproveitado quando sua capacidade de produção estiver em condições de uso, demonstrando a estratégia dos agricultores em dar continuidades aos seus cultivos sem prejudicar o solo, tendo em vista que precisa dos seus recursos para produzir enquanto reprodução social.

O processo de produção na várzea.

Segundo o Dicionário geológico-geomorfológico (GUERRA, 1975) as várzeas “são terrenos baixos e mais ou menos planos que se encontram juntos às margens dos rios”, constituindo-se o leito maior do rio ou a faixa reprimida. Na linguagem geomorfológica é o leito maior dos rios, sendo utilizado para a agricultura pela fertilidade do solo devido o acúmulo de depósitos sedimentares. Portanto, a planície de inundação fluvial de deposição Holocênica que margeia os rios de águas brancas da Amazônia que está sujeita a inundações sazonais é regionalmente denominada várzea.

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De acordo com Canto (2007) “várzea é a denominação usual para designar as grandes faixas marginais aos rios”. São terrenos de formação sedimentar recente, correspondente aos sedimentos do Cretáceo-quaternários, sendo recobertos periodicamente pelas águas amazônicas. Os solos de várzea desenvolvem-se sobre sedimentos Holocênicos, recentemente depositados onde “o nível elevado do lençol freático e a inundação periódica a que estão sujeitos limitam o processo pedogenético, resultando em solos jovens e, em alguns casos, apenas sedimentos em processo incipiente de pedogênese”. (LIMA, 2001, apud LIMA, et al , 2007). Para Lima et al (2007) “as várzeas são produtos dos rios, especialmente daqueles ricos em sedimentos em suspensão, que inicialmente escavaram seus leitos e, posteriormente depositaram nesses ambiente seus sedimentos,” portanto, removendo ou adicionando sedimentos de uma faixa marginal e depositando na margem oposta. Devido a essa fertilidade ocasionada pelo acúmulo de sedimentos, a várzea se torna aproveitável para a produção de hortaliças e outros cultivos. O morador da comunidade Miracauera vê nesse ambiente a possibilidade de trabalhar o solo e dele promover o seu sustento, evidenciando assim uma ligação com o Lugar, não só de moradia, mas a apropriação desse espaço e dos recursos disponíveis no solo de várzea.

Caracterização da produção de hortaliças na comunidade Miracauera.

O sistema produtivo identificado na comunidade Miracauera é “caracterizado pela agricultura familiar, onde os agricultores utilizam o adubo orgânico” (MATOS & SANTOS, 2010) para auxiliar na produção de hortaliças. As técnicas empregadas ainda são rudimentares e os instrumentos empregados na produção são tradicionais, como o terçado, a enchada, ainda não houve a introdução da mecanização na produção, pois o uso de tratores não é adequado para o solo de várzea. Esse tipo de agricultura também se denomina de tradicional, “onde se caracteriza pela utilização intensiva dos recursos naturais, ou seja, a fertilidade natural do solo” (GRAZIANO NETO, 1996). O trabalho no processo produtivo de hortaliças é manual e não há a utilização de fertilizantes industrializados, constituindo uma agricultura orgânica e um sistema de produção menos agressivo ao meio ambiente bem como uma produção sustentável do

7 ponto de vista sócio-econômico, pois representa a permanência da população ribeirinha local no interior evitando o abandono das áreas de várzea. A produção da comunidade é desenvolvida por meio de culturas para o consumo familiar e também para abastecimento regional das feiras em Manaus. No que tange à divisão do trabalho, os homens trabalham a terra preparando-a e adubando para fazer a plantação de verduras e ficam com a parte mais pesada do trabalho que é cuidar do seu cultivo, enquanto as mulheres são responsáveis pelos trabalhos domésticos. A produção de hortaliças na Comunidade Miracauera é caracterizada por ser familiar, sendo assim, não há necessidade de agregar trabalhadores no processo de produção. Cada unidade de produção produz individualmente, em casos de necessidade há o que se denomina de parceria entre os agricultores, no entanto isso não ocorre com muita freqüência. Essa produção que é cultivada na várzea é fundamental para o sustento das famílias que moram na Comunidade Miracauera, mas ainda é necessário que haja assistência aos agricultores em relação ao melhor aproveitamento do solo, ainda que os agricultores trabalhem em cercados rotativos, o ideal é que houvesse melhorias no processo produtivo agregando valor ao produto final. Dessa maneira seriam minimizadas as dificuldades encontradas pelos agricultores para produção de hortaliças, neste caso citamos o processo de irrigação, que deveria ser implantado o sistema mecanizado possibilitando melhorias e qualidade na produção agrícola da comunidade, uma vez que é a base econômica da mesma.

O ribeirinho do Amazonas: revisão na literatura e aspectos da comunidade Miracauera

Conceituar o morador do ambiente de várzea, neste caso os ribeirinhos, é algo difícil, ou seja, como utilizar critérios que o tipifiquem como tal. Portanto, esta é uma síntese sobre a questão dos ribeirinhos e a historicidade do debate acerca dos conceitos a eles atribuídos. Conforme Cruz (2007) a tarefa de estabelecer conceitos é sempre difícil e nem sempre alcança os objetivos propostos. Os conceitos normalmente buscam estabelecer regras gerais a respeito de determinados assuntos, portanto, o estabelecimento de parâmetros estabelecidos nem sempre condizem com a realidade.

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A comunidade ribeirinha é assim designada pelo fato de os moradores construírem suas casas ao longo da margem dos rios, pois as restingas são as áreas com cotas altimétricas mais elevadas devido ao acúmulo de sedimentos. De acordo com Soares (2005) a definição de ribeirinho é abrangente, pois incluiria, além dos caboclos-ribeirinhos (FRAXE, 2000 e 2007; CRUZ, 2007) todos os agentes sociais situados às margens desses ambientes, como pecuaristas, madeireiros, garimpeiros, hoteleiros, agroindústrias, armadores, frigoríficos etc. Soares (2005) afirma que revisando a bibliografia, percebe-se que recorrentemente são designados ribeirinhos “os habitantes das várzeas” (NEVES, 2003: 47; SCHERER, 2003:96, dentre outros), como auto-evidência, de modo que o atributo geográfico confere e harmoniza a todos como sendo ribeirinhos supondo-os determinados a um modo de vida conferido pela natureza . Cruz (2007) enfatiza que diversos autores têm tentado buscar elementos para caracterização do campesinato, que serão utilizados como apoio na compreensão da produção camponesa na várzea amazônica.O conceito de camponês deve ser compreendido como afirma Shanin apud Cruz (2007): “a exploração camponesa forma uma unidade de produção-consumo que encontra seu principal sustento na agricultura e apoiada, principalmente no trabalho familiar”. Nas comunidades ribeirinhas o trabalho é desempenhado pelos familiares constituindo a agricultura familiar. Na comunidade Miracauera as unidades produtivas utilizam os componentes da família para execução dos trabalhos. A família do agricultor, de acordo com Oliveira (2001) “é o motor do processo de trabalho na produção camponesa”. Apenas quando é necessário o produtor utiliza outras unidades familiares, onde alguns vizinhos são contratados para a colheita no sistema de “diárias” ou “impeleitas” (tipologia regional), isso ocorre quando o produtor tem mais posses e sua produção é maior que a dos demais ou quando a colheita do agricultor é maior que ele possa colher com sua família.

“Já quando a família camponesa não consegue completar totalmente a sua necessidade de trabalho, ela pode ser completada pela ajuda mútua entre os camponeses. Essa prática aparece no seio da produção camponesa sob várias formas; a mais comum é o mutirão , mas pode aparecer também como troca de dias de trabalho entre os camponeses”. (OLIVEIRA, 2001, pg. 56)

Outros autores destacam a questão do camponês designando para estes moradores da várzea termos como “Homens Anfíbios” (FRAXE, 2000) onde esta tipologia é utilizada

9 pelas peculiaridades adaptativas do ribeirinho que habitam dois ambientes: a terra e a água. Oliveira (1991) apud Cruz (2007) em sua pesquisa na região das ilhas, município de Gurupá-PA, identificou dois tipos, que ele denominou de “ribeirinhos” para os moradores de várzea, e “roceiros” para os moradores da terra-firme. Cruz (1999) no trabalho sobre o Careiro da Várzea designa para esses habitantes “caboclos-ribeirinhos”. Witkoski (2006) no seu estudo na calha do rio Solimões-Amazonas denomina os moradores da várzea de “camponeses amazônicos”. Castro (1997) apud Cruz (2007) reconhece como “ribeirinhos”, mostrando a estreita relação desse morador das margens dos rios, lagos, paranás e igarapés com a natureza na região: “Encontramos nos denominados ribeirinhos , na Amazônia, uma referencia, na linguagem, a imagem de mata, rios, igarapés e lagos, definindo lugares e tempos de suas vidas na relação com as concepções que construíram sobre a natureza. Destaca-se como elemento importante no quadro de percepções, sua relação com a água [...]”. (CASTRO, 1997 apud CRUZ, 2007, pg. 7).

Em sua tese Cruz (2007) optou pela designação de “ribeirinho”, onde emprega concomitante com o termo camponês: “camponês-ribeirinho”, pois morar às margens dos rios amazônicos é muito mais que uma posição geográfica, é um complemento da vida, refletindo o modo de vida peculiar na região Amazônica com suas especificidades.

Conclusões

Na comunidade Miracauera identificamos 80 famílias, caracterizadas como nuclear ou conjugal, onde a unidade domiciliar abriga o casal, os filhos e em alguns casos, a família formada por algum filho que casou, mas não saiu de casa, constituindo uma variação de 3-6 pessoa por unidade familiar. No aspecto escolaridade há uma escola gerenciada pelo município, porém, os casais, que são mais antigos não alcançaram o primário completo devido às dificuldades da época quando não havia escola na comunidade, portanto, 85% não concluíram o ensino fundamental, entretanto, todas as crianças e adolescentes que moram na comunidade Miracauera estão regularmente matriculadas e frequentando a escola. O rendimento familiar de cada unidade não foi especificado durante a pesquisa, pois os agricultores não contabilizam seus ganhos, o que vai depender da procura da produção de hortaliças, ainda que indagados os mesmos afirmaram que não fazem as somas dos rendimentos, uma vez que ao receberem o valor pago pela venda das hortaliças de

10 acordo com o agricultores, eles pagam as contas que estão pendentes com o agente de comercialização. A reprodução social no Careiro da Várzea bem como as formas de cultivar e os tipos de cultivo recebem influência direta do regime fluvial. As inundações periódicas que ocorrem nas áreas de várzea limitam o processo de produção de hortaliças, uma vez que o agricultor não consegue produzir durante o ano todo devido à enchente, isso justifica o plantio de hortaliças de ciclo curto, para evitar perdas das plantações. Observando a natureza e aprendendo com os fenômenos presentes no dia-a-dia, o morador da várzea atento às mudanças no meio em que vive, percebeu as peculiaridades da natureza e o comportamento do ambiente ante as mudanças, viu que podia, e na verdade pode se adaptar na várzea e desenvolver atividades econômicas que geram pouco impacto na várzea, a prática da agricultura realizada pela própria família. É o que realmente acontece, pois as técnicas empregadas no cultivo de hortaliças permitem que o agricultor possa armazenar sementes para a próxima plantação. A tipologia de homens anfíbios faz uma alusão ao ambiente de várzea e o homem que habita nas faixas marginais, que ora está sobre o solo, e em outro período convive com a enchente, onde desempenha a pesca artesanal para obtenção de alimentos durante esse período, a pesca artesanal é uma atividade praticada em qualquer momento como alternativa para equilibrar o orçamento. Na época das cheias, mesmo as comunidades cuja atividade principal é agricultura, também desenvolvem a atividade pesqueira como uma alternativa de produção proporcionando uma renda adicional, nesse contexto identificamos na comunidade Miracauera uma Associação de Pescadores Artesanais, demonstrando uma organização social dentro da comunidade onde os agricultores que também desenvolvem a pesca artesanal são cadastrados e frequentam às reuniões da associação para deliberação dos trabalhos da associação, que foi fundada em 2011 com o apoio dos comunitários, vale ressaltar que os associados regulares, que contribuem mensalmente recebem o seguro-defeso durante o período em que há a proibição da pesca de espécies ameaçadas de extinção. O agricultor seleciona as espécies que vai cultivar de acordo com a época do ano, se estiver muito próximo do período da enchente, a plantação não é feita, pois pode provocar danos à plantação e ocasionar gastos sem retorno. Dessa maneira o agricultor vai trabalhando e estabelecendo suas raízes com o Lugar nesse espaço vivido,

11 constituindo uma relação de apego com o Lugar, pois atende as necessidades imediatas do morador na questão de alimentos e sobrevivência. Na comunidade Miracauera a base econômica tem como principais atividades na pecuária (criação de bovino, suínos e aves) e a produção de carne, leite e derivados, na agricultura, destacando-se a produção de mandioca, arroz, abacaxi, batata, cana-de- açúcar, cará, feijão, milho e hortaliças. Na comunidade ainda é possível perceber que boa parte da rotina dos moradores está ligada diretamente com a capital do Estado do Amazonas quando se trata de buscar assistência em saúde, alimentos, estudo e a venda da sua produção. É possível relacionar essa relação simbólica na vida dos moradores da comunidade, pois a cidade de Manaus é próxima possibilitando aos moradores o deslocamento via fluvial para realizar compras, visitar um familiar. Destaca-se aqui a relação que o agricultor estabelece com o ambiente de várzea, respeitando a natureza e retirando dela o que é necessário, sabendo que pode causar consequências. Tendo em vista esse aspecto, a reprodução social do morador da várzea na Comunidade Miracauera depende da própria relação estabelecida com o ambiente, ressaltando o aspecto cultural que existe nessa relação homem e espaço. O morador do ambiente de várzea tem um modo diferenciado na reprodução do seu espaço geográfico considerando suas peculiaridades. A realidade ribeirinha é peculiar e carrega em si especificidades encontradas somente naquele lugar, as condições ambientais influenciam na distribuição espacial e no modo de vida bem como na prática da agricultura, por isso constrói estratégias adaptadas para a sua realidade valorizando suas experiências concretas no lugar, onde nessa relação simbólica o ribeirinho constrói uma relação diária na reprodução social no ambiente de várzea. Com a chegada da energia elétrica na zona rural do município por meio do projeto do Governo Federal “Luz para Todos”, houve uma melhoria para a comunidade, como, por exemplo, a irrigação da plantação com mangueiras e bombas elétricas e abastecer suas casas, que hoje tem banheiro adequado, geladeira e máquina de lavar. Anteriormente a população local precisava comprar gelo para manter os alimentos conservados e o acesso aos meios de informação era por meio de televisores mantidos à bateria que precisava ser recarregada a cada dois dias. Hoje as pessoas da comunidade dispõem de melhores condições de vida, o acesso à comunicação deixou de ser por meio de apenas um telefone publico que era disponibilizado à população, atualmente o acesso

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à telefonia celular é uma realidade que possibilita o contato com familiares no próprio local e também com parentes em Manaus. Na comunidade Miracauera as relações de reprodução social estão relacionadas com o seu cotidiano e pouco a pouco vão sendo introduzidos novos elementos nessa relação, pois a comunidade já possui energia elétrica, com isso foi viabilizada a aquisição de eletrodomésticos e televisores, trazendo uma nova configuração no aspecto socioeconômico com a introdução de bens duráveis e celulares, modificando o aspecto das relações.

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