A Vinculação Em São Miguel No Reinado De D

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A Vinculação Em São Miguel No Reinado De D III CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES ■ ■ ■ D. MANUEL E A SUA ÉPOCA " l Nobrezas locais e apropriação do espaço: a vinculação em São Miguel no reinado de D. Manuel gjf por José Damião Rodrigues (Universidade dos Açores) III CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES D. MANUEL E A SUA ÉPOCA 435 NOBREZAS LOCAIS E APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO: A VINCULAÇÃO EM SÃO MIGUEL NO REINADO DE D. MANUEL 1. A ocupação humana das ilhas orientais do arquipélago dos Açores teve início entre 1439 e 1443. Contudo, o processo de povoamento de São Miguel só arrancou em definitivo em 1474, após Rui Gonçalves da Câmara ter comprado a ilha ao segundo capitão de Santa Maria e São Miguel. Com Rui Gonçalves da Câmara, filho de João Gonçalves Zarco, primeiro capitão do Funchal, vieram para São Miguel parentes, dependentes e uma nobreza segunda que recebeu terras em regime de dadas e que, na viragem do século XV para o XVI, deu início ao movimento de vin- culação da propriedade. O reinado de D. Manuel, que fora duque de Beja e donatário das ilhas açorianas, coincidiu, de um modo geral, com dois processos fundamentais: a definição do quadro concelhio micaelense, com a criação de diversas vilas entre 1499 e 1522, num desenho da rede administrativa municipal que perduraria até ao Liberalismo e marcaria a etapa inicial da configuração das diversas nobrezas locais; e o começo do movimento de vinculação da propriedade, com a instituição de capelas e morgadios, mecanismo nobiliárquico por excelência da apropriação espa­ cial e da consolidação patrimonial. São estes dois processos, de alguma forma complementares nesta fase, que pretendemos apresentar nesta comunicação. 2. Não é possível descrever, por ausência de documentos, como terão sido os primeiros momentos da construção da vivência concelhia em São Miguel. No en­ tanto, o impulso dado ao povoamento e valorização da ilha após 1474, graças à acção da Infanta D. Beatriz e, sobretudo, após a compra de São Miguel por Rui Gonçalves da Câmara a João Soares, o anterior capitão, parece estar na base do desenvolvi­ mento demográfico e socioeconómico que conduzirá, no final de Quatrocentos e nas primeiras décadas do século seguinte, à emergência das diversas vilas micaelenses. Embora o primeiro núcleo habitacional de São Miguel tenha sido a Povoação, no extremo oriental da ilha, foi Vila Franca do Campo o primeiro concelho. A data da sua elevação a vila é ignorada, mas datará da década de 1470, talvez em momento posterior a 1474. Com efeito, julgamos que o facto do capitão Rui Gonçalves da Câmara ter decidido fixar a sua casa de morada nesse local, transformando o povoado na «cabeça» da ilha, terá contribuído para essa promoção, facilitada pela pertença de Rui Gonçalves da Câmara à casa ducal de Viseu-Beja. Nas décadas finais de Quatrocentos, os ritmos do povoamento e a consequente ocupação e exploração dos solos transformaram progressivamente São Miguel num centro produtor e exportador de cereais, capaz de assegurar a procura resultante da própria expansão do reino 1. Neste contexto, a dinâmica demográfica que se gerou 1 Cf. A. H. de Oliveira Marques, Introdução à História da Agricultura em Portugal, 3.° ed., Lisboa, Edições Cosmos, 1978 [edição original: 1967], p. 254; José Damião Rodrigues, «O s Açores e a Expansão: Bens e gentes no espaço colonial português (Séculos XV-XVIII)», Insulana, Vol. XLIX, 1993, pp. 147-181, maxime pp. 148-149. JOSÉ DAMIÃO RODRIGUES A 436 com a chegada de novos colonos e a instalação de gente de qualidade nos vários núcleos em formação forneceram a base populacional e social para a génese das demais vilas de São Miguel. Em 1499, a outorga do foro de vila a Ponta Delgada, com posterior confirmação em 1507, constituiu uma ruptura com a situação anterior e, nessa perspectiva, podemos considerar que se tratou de um marco institucional decisivo. A autonomi­ zação de Ponta Delgada representou, por um lado, uma diminuição da jurisdição de Vila Franca do Campo e, por outro, a possibilidade dos moradores do novo muni­ cípio se auto-govemarem, no quadro das liberdades e privilégios concedidos 2. Por que é que Ponta Delgada foi elevada a vila? Os acontecimentos que rodeiam a outorga do novo estatuto foram narrados por Gaspar Frutuoso 3 (1522-1591) e João Marinho dos Santos, partindo do texto do cronista, considerou que estaríamos perante um repto lançado por Ponta Delgada a Vila Franca do Campo, «em termos de opção por uma economia sem ou de mercado», visando a integração na econo­ mia-mundo europeia 4. A vitória de Ponta Delgada serviu de exemplo às restantes aldeias da ilha e, no dizer deste autor, a economia de mercado varreu São M iguel5. Ora, parece-nos que mais do que a uma escolha entre «economia de arrecadação» e «economia de mercado», feudalismo e capitalismo, o processo ficou a dever-se ao descontentamento daqueles que, morando em Ponta Delgada, eram obrigados a 2 A respeito do diploma de concessão do foro de vila a Ponta Delgada, algumas observações que nos parecem pertinentes. O documento original, em papel, rompeu-se e esse foi o motivo porque se concedeu o segundo alvará em pergaminho, como testemunha frei Diogo das Chagas, com base na consulta do texto registado no livro do tombo da câmara, hoje desaparecido (Frei Diogo das Chagas, Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores, direcção e prefácio de Artur Teodoro de Matos, colaboração de Avelino de Freitas de Meneses e Vítor Luís Gaspar Rodrigues, Angra do Heroísmo-Ponta Delgada, Secretaria Regional da Educação e Cultura/Direcção Regional dos Assuntos Culturais-Universidade dos Açores/Centro de Estudos Doutor Gaspar Frutuoso, 1989, p. 152). Alguns autores contemporâneos têm defendido, talvez porque a documentação original se perdeu, que não existiram forais nos Açores. Confirmando a competência da investigação de cronistas como frei Diogo das Chagas, a cópia feita pelo morgado João de Arruda de autos de correição realizados em Ponta Delgada no século XVII confirma que, pelo menos até 1692, terá exis­ tido um foral guardado na câmara da cidade. Cf. Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (BPARPD), Fundo José do Canto (FJC), Manuscritos (Mss), 11, fl. 107 v). É certo que o próprio João de Arruda não pensava ser este o foral da câmara, considerando que deveria tratar-se do da alfândega (Idem, fl. 107), mas a forma como o documento é referido parece apontar no sentido de se tratar do texto fundador da autonomia de Ponta Delgada: em 1624, díz-se que «Avia ordenasoins e liuro do foral da Camera [...]» (Idem, fl. 106) e, em 1678, afirma-se «[...] que avia foral na Camera que estaua na mão do escríuam [...]» (Idem, fl. 107). Curiosamente, a data atribuída ao foral é a de 1501. Estando os cronistas de acordo e reconhecida a sua preo-cupação com a autenticidade das informações, confirmada por outras fontes, pensamos que ou João de Arruda se terá enganado ao copiar os assentos de correição ou, então, que os vereadores seiscentistas não conseguiam ler correctamente a letra de inícios de Quinhentos, trocando o «7» pelo «1». No estado actual dos nossos conhecimentos, não podemos avançar mais. 3 Cf. Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, Vol. II, 1981, pp. 70-72. 4 João Marinho dos Santos, «Ponta Delgada - Nascimento e primeira infância de uma cidade», Revista de História Económica e Social, N.° 1, Janeiro-Junho 1978, p. 35. 5 Idem, p. 36, III CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES D. MANUEL E A SUA ÉPOCA 437 deslocar-se a Vila Franca do Campo, sendo «homens nobres e poderosos» 6. Nobreza e poder. Falamos aqui dos valores dominantes na sociedade europeia pré-industrial, uma sociedade rural e tradicional, no seio da qual a posse da terra constituía o fundamento material do poder e da diferenciação social e onde uma hierarquização em «estados» ou «ordens» assentava no reconhecimento de um status e se visualisava na honra e formas de tratamento devidas às pessoas de qualidade 1. É isso que pensamos estar em jogo em 1499. Para os moradores principais de Ponta Delgada, a obrigatoriedade de irem a Vila Franca do Campo em ocasiões solenes constituía uma diminuição do seu estado, da sua honra 8. Não nos esqueçamos de que, em Ponta Delgada, moravam figuras importantes da sociedade micaelense de finais de Quatrocentos, como Fernão do Quental, aparentado com D. Filipa Coutinho, mulher do quinto capitão, Rui Gonçal­ ves da Câmara - segundo Gaspar Frutuoso, este parentesco foi o motivo da fixação de Fernão do Quental e de seu irmão Pêro de Novais em São Miguel e que serviu igualmente de ouvidor senhorial9, ou ainda Pêro de Teve, filho do primeiro almoxa­ rife, Gonçalo de Teve Paim, e irmão do segundo, João de Teve 10. Esta interpretação não pretende negar a importância dos aspectos económicos, nomeadamente do comércio, no desenvolvimento de Ponta Delgada. Consideramos, porém, que, no momento zero da autonomização da nova vila, pesaram mais as reali­ dades de uma sociedade estratificada segundo princípios que atribuem a cada indi­ víduo um conjunto de direitos e de deveres em função do seu estado. A partir de 1499, o município recém-criado iniciou um processo de cresci­ mento 11 que implicaria não só o confronto com poderes preexistentes mas, simulta­ neamente, um reforço da situação adquirida. Estamos perante um movimento de basculação em que Ponta Delgada assumiria, progressivamente, o lugar de «cabeça» da ilha, face à perda de importância da anterior sede do poder. Três momentos são particularmente significativos: em 1515, os lugares de Feteiras, Mosteiros, Capelas e Fenais, até essa data sob a jurisdição de Vila Franca do Campo, passaram a integrar 6 Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Tena, Vol.
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