Dados Gerais
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
3. O território de ocupação tradicional dos Karajá e Javaé segundo os registros escritos dos séculos 16, 17, 18 e 19 – Bandeirantes e aldeamentos no Brasil Colônia A invasão dos brancos ao território indígena foi prenunciada pelos “antigos” (hỹkỹna mahãdu) quando o pássaro wòòtòkò, um tipo de pomba (“pombinha-da-nossa- senhora”), antes desconhecido, começou a chegar na região. A imagem daquele pássaro estranho foi considerada pelos Javaé como Tori dàdà, um “presságio negativo sobre os brancos”. Fénelon Costa (1978) registrou uma versão Karajá desse prognóstico. Até o fim do século 19, a história do contato dos Javaé e Karajá com a sociedade nacional fez parte de um mesmo processo geral de colonização do Araguaia, embora tenha sido vivenciada pelos dois grupos em graus diferenciados, com os Karajá servindo de intermediários entre os Javaé e os não-índios. Só a partir do século 20, os Javaé passam a ter uma experiência de contato direto e permanente com os não-índios, cuja história, já abordada em Toral (1981, 1992, 1999), Rodrigues (1993) e Bonilla (1997, 2000), é caracterizada por circunstâncias relativamente diferentes das enfrentadas pelos vizinhos Karajá. Por essa razão, apresentarei nos dois próximos itens, separadamente, a história de cada um dos dois grupos a partir do início do século 20, incluindo tanto fontes escritas quanto a memória oral nativa. Há em vários autores reconstruções históricas elaboradas com maior ou menor profundidade sobre as relações de contato entre os Karajá e a sociedade envolvente1. Neste item, a história da colonização do vale do Araguaia nos séculos 17, 18 e 19 e da presença indígena é narrada de modo a incluir também os dados específicos a respeito dos Javaé, usualmente negligenciados. No que diz respeito aos Karajá propriamente ditos, constataremos que são inúmeros os registros confiáveis sobre a sua antiga existência em toda a extensão do médio Araguaia. E que há também muitos dados informando sobre a sua 1 Ehrenheich (1948), Krause (1940-1944), Tavener (1966), Chiara (1970), Bueno (1975, 1987), Fénelon Costa (1978), Donahue (1992), Toral (1981, 1992), Lima Filho (1994), Pétesch (1992, 2000), Bonilla (1997, 2000), Schiel (2002, 2005), Portela (2006), Almeida (2006c). 116 ocupação histórica inquestionável na porção setentrional da Ilha do Bananal e arredores, objeto específico deste estudo. No que se refere aos Javaé, os registros históricos escritos evidenciam a ocupação incontestável do interior da Ilha do Bananal, especialmente a sua porção oriental, e afluentes da margem direita do Rio Javaés, assim como a existência de aldeias no norte da ilha. Não é difícil enxergar no relato Javaé sobre os ataques dos Torihuhu (os brancos muito antigos) aos vários povos que habitavam a Ilha do Bananal uma versão nativa dos ataques dos bandeirantes registrados por documentos de época. Há registros da existência de diversos povos indígenas, a maior parte atualmente extinta, habitando dentro da Ilha do Bananal e arredores na época da chegada dos colonizadores, como os Tapirapé, Xavante, Mangariruba, Cururu, Craya, Gradaú, Tessemedú, Amadú, Guayá-Guasú, Capepuxi, Coroá, Coroá-mirim, entre outros, além dos Javaé e Karajá2. O Padre Aires de Casal (1945:338), que escreveu sua “Corografia Brasílica” em 1817, cita como “convizinhos” dos Xavante que moravam no norte da Ilha do Bananal os Carajás, os Noroguagés, os Pochetys, os Appynagés, os Cortys e os Xerentes. É inevitável a comparação com as referências do mito Javaé à existência de vários grupos indígenas diferentes na Ilha do Bananal e arredores, que seriam em grande parte extintos ou expulsos pelas guerras internas e, posteriormente, pelos brancos que usavam grandes espadas e armas de fogo. O mito também menciona o tempo em que os Xavante e Tapirapé teriam morado dentro da ilha (os primeiros no local chamado Watxi Hãwa, entre as aldeias Marani Hãwa e Imotxi), fato mencionado na tradição oral Karajá (Toral, 1992) e na literatura3. Expedições de bandeirantes paulistas, vindos do sul, e de missionários jesuítas, vindos do norte, mapearam o território goiano no século 174. A primeira bandeira que se tem registro em Goiás, segundo Americano do Brasil (1961), é a de Sebastião Marinho, que lá chegou em 1592 em busca de escravos indígenas. Depois vieram as bandeiras de 1596, quando se atingiu o Rio Tocantins (assim conhecido pelos missionários do Pará, mas chamado de Paraupava pelos bandeirantes paulistas), e as de 1607 e 1608. Em seu estudo sobre o bandeirismo, Brasil (1961) mostra que a bandeira de 1615 foi a última registrada na época, pois os exploradores paulistas deslocaram-se para o sul do país e para Minas Gerais. 2 Pizarro e Araújo (1948), Silva e Souza (1849), Chaim (1974). 3 Ver Aires de Casal (1945), Chaim (1974), Baldus (1970), Wagley (1988). 4 Ver Alencastre (1864), Serafim Leite (1943), Brasil (1961), Chaim, (1974), Ferreira (1977), Palacin (1994). 117 Só na segunda metade do século 17 iniciam-se novas entradas nas vastas terras de Goiás. Seguem-se as bandeiras de 1665, 1668, 1670, 1671, 1674. Rodrigues Ferreira (1977), por sua vez, sustenta que a primeira bandeira feita nessa região foi a de Domingos Luí Grou Antônio de Macedo, de 1590 a 1593. Baseado nas informações dadas na Língua Geral pelos índios capturados, o bandeirante trouxe notícias pela primeira vez da lendária Lagoa de Paraupava, cujo ouro passou a ser cobiçado por todos os sertanistas paulistas do final do século 16. Após um maior conhecimento do território, no começo do século 17 os bandeirantes já sabiam que a imensa lagoa nada mais era que a imensa ilha fluvial, inundável durante parte do ano, do Rio Paraupava, nome como ficou sendo conhecido o Rio Araguaia na época5. Ou seja, a Lagoa de Paraupava era a atual Ilha do Bananal. O escrivão Pero Domingues participou da bandeira de André Fernandes, realizada de 1613 a 1615, e relatou ao Padre Antônio Araújo, que escreveu sua história, que a grande ilha do Rio Paraupava, com 30 léguas de comprimento e 6 de largura, era habitada pelos índios Caraiúnas ou Carajaúnas, um dos nomes pelos quais os Karajá ficaram conhecidos na literatura até o século 19. Rodrigues Ferreira encontrou evidências que outros moradores de São Paulo já haviam chegado às aldeias dos índios Carajaúnas antes, pois constava no inventário de Lourenço Gomes, de 1611, membro da bandeira de Martim Rodrigues, a posse de diversos índios Carajaúnas. Por volta de 1682 (Silva e Sousa, 1849, Alencastre, 1964), são realizadas as famosas bandeiras de Antônio Pires de Campos, o primeiro a chegar ao Rio Cuiabá, acompanhado do filho primogênito de mesmo nome, ainda muito jovem6; e a de Bartolomeu Bueno da Silva, acompanhado do filho primogênito Bartolomeu Bueno da Silva Filho. Os dois paulistas encontram-se no sertão do Brasil Central, na região do alto Araguaia, e Pires de Campos dá notícia a Bueno dos índios Araé, moradores da região do Rio das Mortes, o maior afluente do Araguaia (ver Mapa n° 8, ao lado), das minas de ouro dos Martírios e da “ilha dos Carajás”7. 5 Paraupava, na Língua Geral, quer dizer “mar cortado”, em referência à seca do Araguaia na época da vazante (Ferreira, 1977:178). 6 O primeiro Antônio Pires de Campos é assim referido de modo mais recorrente na literatura, embora também seja referido como Manuel de Campos Bicudo (Brasil, 1961) ou Manuel Pires de Campos (ver Ehrenreich, 1948). 7 Essas informações constam do famoso roteiro sobre as minas dos Martírios feito por Antônio Pires de Campos, o filho, muitos anos depois da viagem com seu pai (apud Silva e Sousa, 1849:458). 118 Mapa n° 8 119 Segundo Alencastre (1864), historiador da Província de Goyaz, o Rio das Mortes é assim chamado por causa da carnificina de índios Araé e Karajá que Pires de Campos teria perpetrado em sua passagem pela região, tendo levado consigo grande número de cativos para a região do Rio Cuiabá. Bartolomeu Bueno foi em vão atrás dos Martírios, que se transformariam em uma lenda desde então, encontrando na volta para São Paulo amostras de ouro junto aos índios Goya, nas proximidades da atual Cidade de Goiás, dos quais teria recebido o nome Anhanguera antes de acorrentá-los e escravizá-los junto com os Araé. A esta se seguiram uma infinidade de expedições, cujo objetivo eram as minas de metais preciosos. A de 1719, seguindo o roteiro do primeiro Pires de Campos, descobriu ouro nas minas da futura Cuiabá, fundada em 1727. A última grande bandeira em Goiás que se tem registro oficial nos anais paulistas, segundo Brasil (1961), é a célebre expedição do obstinado Bartolomeu Bueno da Silva Filho, o segundo Anhanguera, que se transformaria no “descobridor” da Capitania de Goiás, inspirado nos caminhos percorridos por seu pai. Partindo em 1722, Bueno e seus companheiros encontraram inúmeros grupos indígenas e descobriram ouro no local que ficou conhecido como Serra Dourada, nas cabeceiras do Rio Vermelho, formador do Araguaia, região onde seu pai encontrara os Goyá8. Outras bandeiras continuaram sendo realizadas no século 18, existindo a possibilidade de que o ataque devastador a vários grupos referido nas narrativas míticas dos Javaé tenha sido o realizado pelas bandeiras de Antônio Pires de Campos, o filho do afamado caçador de índios de mesmo nome, como veremos adiante. A outra frente de exploração importante do território goiano eram os missionários jesuítas que partiam de Belém do Pará e subiam os rios Tocantins e Araguaia. Segundo Serafim Leite (1943), que estudou a presença da Companhia de Jesus no Brasil, o primeiro jesuíta que esteve no baixo Tocantins foi Luiz Figueira, em 1636. Em 1653, o célebre Padre Antônio Vieira e outros foram mais além no mesmo rio, chegando acima da cachoeira Itaboca. Esta teria sido “a primeira grande entrada missionária dos jesuítas em toda a Amazônia” (1943:315-316), produzindo também, através dos escritos de Vieira, “o primeiro grande aproveitamento literário de motivos amazônicos”.