3. O território de ocupação tradicional dos Karajá e Javaé segundo os registros escritos dos séculos 16, 17, 18 e 19

– Bandeirantes e aldeamentos no Brasil Colônia

A invasão dos brancos ao território indígena foi prenunciada pelos “antigos” (hỹkỹna mahãdu) quando o pássaro wòòtòkò, um tipo de pomba (“pombinha-da-nossa- senhora”), antes desconhecido, começou a chegar na região. A imagem daquele pássaro estranho foi considerada pelos Javaé como Tori dàdà, um “presságio negativo sobre os brancos”. Fénelon Costa (1978) registrou uma versão Karajá desse prognóstico. Até o fim do século 19, a história do contato dos Javaé e Karajá com a sociedade nacional fez parte de um mesmo processo geral de colonização do Araguaia, embora tenha sido vivenciada pelos dois grupos em graus diferenciados, com os Karajá servindo de intermediários entre os Javaé e os não-índios. Só a partir do século 20, os Javaé passam a ter uma experiência de contato direto e permanente com os não-índios, cuja história, já abordada em Toral (1981, 1992, 1999), Rodrigues (1993) e Bonilla (1997, 2000), é caracterizada por circunstâncias relativamente diferentes das enfrentadas pelos vizinhos Karajá. Por essa razão, apresentarei nos dois próximos itens, separadamente, a história de cada um dos dois grupos a partir do início do século 20, incluindo tanto fontes escritas quanto a memória oral nativa. Há em vários autores reconstruções históricas elaboradas com maior ou menor profundidade sobre as relações de contato entre os Karajá e a sociedade envolvente1. Neste item, a história da colonização do vale do Araguaia nos séculos 17, 18 e 19 e da presença indígena é narrada de modo a incluir também os dados específicos a respeito dos Javaé, usualmente negligenciados. No que diz respeito aos Karajá propriamente ditos, constataremos que são inúmeros os registros confiáveis sobre a sua antiga existência em toda a extensão do médio Araguaia. E que há também muitos dados informando sobre a sua

1 Ehrenheich (1948), Krause (1940-1944), Tavener (1966), Chiara (1970), Bueno (1975, 1987), Fénelon Costa (1978), Donahue (1992), Toral (1981, 1992), Lima Filho (1994), Pétesch (1992, 2000), Bonilla (1997, 2000), Schiel (2002, 2005), Portela (2006), Almeida (2006c).

116 ocupação histórica inquestionável na porção setentrional da Ilha do Bananal e arredores, objeto específico deste estudo. No que se refere aos Javaé, os registros históricos escritos evidenciam a ocupação incontestável do interior da Ilha do Bananal, especialmente a sua porção oriental, e afluentes da margem direita do Rio Javaés, assim como a existência de aldeias no norte da ilha. Não é difícil enxergar no relato Javaé sobre os ataques dos Torihuhu (os brancos muito antigos) aos vários povos que habitavam a Ilha do Bananal uma versão nativa dos ataques dos bandeirantes registrados por documentos de época. Há registros da existência de diversos povos indígenas, a maior parte atualmente extinta, habitando dentro da Ilha do Bananal e arredores na época da chegada dos colonizadores, como os Tapirapé, Xavante, Mangariruba, Cururu, Craya, Gradaú, Tessemedú, Amadú, Guayá-Guasú, Capepuxi, Coroá, Coroá-mirim, entre outros, além dos Javaé e Karajá2. O Padre Aires de Casal (1945:338), que escreveu sua “Corografia Brasílica” em 1817, cita como “convizinhos” dos Xavante que moravam no norte da Ilha do Bananal os Carajás, os Noroguagés, os Pochetys, os Appynagés, os Cortys e os Xerentes. É inevitável a comparação com as referências do mito Javaé à existência de vários grupos indígenas diferentes na Ilha do Bananal e arredores, que seriam em grande parte extintos ou expulsos pelas guerras internas e, posteriormente, pelos brancos que usavam grandes espadas e armas de fogo. O mito também menciona o tempo em que os Xavante e Tapirapé teriam morado dentro da ilha (os primeiros no local chamado Watxi Hãwa, entre as aldeias Marani Hãwa e Imotxi), fato mencionado na tradição oral Karajá (Toral, 1992) e na literatura3. Expedições de bandeirantes paulistas, vindos do sul, e de missionários jesuítas, vindos do norte, mapearam o território goiano no século 174. A primeira bandeira que se tem registro em Goiás, segundo Americano do Brasil (1961), é a de Sebastião Marinho, que lá chegou em 1592 em busca de escravos indígenas. Depois vieram as bandeiras de 1596, quando se atingiu o Rio Tocantins (assim conhecido pelos missionários do Pará, mas chamado de Paraupava pelos bandeirantes paulistas), e as de 1607 e 1608. Em seu estudo sobre o bandeirismo, Brasil (1961) mostra que a bandeira de 1615 foi a última registrada na época, pois os exploradores paulistas deslocaram-se para o sul do país e para Minas Gerais.

2 Pizarro e Araújo (1948), Silva e Souza (1849), Chaim (1974). 3 Ver Aires de Casal (1945), Chaim (1974), Baldus (1970), Wagley (1988). 4 Ver Alencastre (1864), Serafim Leite (1943), Brasil (1961), Chaim, (1974), Ferreira (1977), Palacin (1994).

117 Só na segunda metade do século 17 iniciam-se novas entradas nas vastas terras de Goiás. Seguem-se as bandeiras de 1665, 1668, 1670, 1671, 1674. Rodrigues Ferreira (1977), por sua vez, sustenta que a primeira bandeira feita nessa região foi a de Domingos Luí Grou Antônio de Macedo, de 1590 a 1593. Baseado nas informações dadas na Língua Geral pelos índios capturados, o bandeirante trouxe notícias pela primeira vez da lendária Lagoa de Paraupava, cujo ouro passou a ser cobiçado por todos os sertanistas paulistas do final do século 16. Após um maior conhecimento do território, no começo do século 17 os bandeirantes já sabiam que a imensa lagoa nada mais era que a imensa ilha fluvial, inundável durante parte do ano, do Rio Paraupava, nome como ficou sendo conhecido o Rio Araguaia na época5. Ou seja, a Lagoa de Paraupava era a atual Ilha do Bananal. O escrivão Pero Domingues participou da bandeira de André Fernandes, realizada de 1613 a 1615, e relatou ao Padre Antônio Araújo, que escreveu sua história, que a grande ilha do Rio Paraupava, com 30 léguas de comprimento e 6 de largura, era habitada pelos índios Caraiúnas ou Carajaúnas, um dos nomes pelos quais os Karajá ficaram conhecidos na literatura até o século 19. Rodrigues Ferreira encontrou evidências que outros moradores de São Paulo já haviam chegado às aldeias dos índios Carajaúnas antes, pois constava no inventário de Lourenço Gomes, de 1611, membro da bandeira de Martim Rodrigues, a posse de diversos índios Carajaúnas. Por volta de 1682 (Silva e Sousa, 1849, Alencastre, 1964), são realizadas as famosas bandeiras de Antônio Pires de Campos, o primeiro a chegar ao Rio Cuiabá, acompanhado do filho primogênito de mesmo nome, ainda muito jovem6; e a de Bartolomeu Bueno da Silva, acompanhado do filho primogênito Bartolomeu Bueno da Silva Filho. Os dois paulistas encontram-se no sertão do Brasil Central, na região do , e Pires de Campos dá notícia a Bueno dos índios Araé, moradores da região do Rio das Mortes, o maior afluente do Araguaia (ver Mapa n° 8, ao lado), das minas de ouro dos Martírios e da “ilha dos Carajás”7.

5 Paraupava, na Língua Geral, quer dizer “mar cortado”, em referência à seca do Araguaia na época da vazante (Ferreira, 1977:178). 6 O primeiro Antônio Pires de Campos é assim referido de modo mais recorrente na literatura, embora também seja referido como Manuel de Campos Bicudo (Brasil, 1961) ou Manuel Pires de Campos (ver Ehrenreich, 1948). 7 Essas informações constam do famoso roteiro sobre as minas dos Martírios feito por Antônio Pires de Campos, o filho, muitos anos depois da viagem com seu pai (apud Silva e Sousa, 1849:458).

118 Mapa n° 8

119 Segundo Alencastre (1864), historiador da Província de Goyaz, o Rio das Mortes é assim chamado por causa da carnificina de índios Araé e Karajá que Pires de Campos teria perpetrado em sua passagem pela região, tendo levado consigo grande número de cativos para a região do Rio Cuiabá. Bartolomeu Bueno foi em vão atrás dos Martírios, que se transformariam em uma lenda desde então, encontrando na volta para São Paulo amostras de ouro junto aos índios Goya, nas proximidades da atual Cidade de Goiás, dos quais teria recebido o nome Anhanguera antes de acorrentá-los e escravizá-los junto com os Araé. A esta se seguiram uma infinidade de expedições, cujo objetivo eram as minas de metais preciosos. A de 1719, seguindo o roteiro do primeiro Pires de Campos, descobriu ouro nas minas da futura Cuiabá, fundada em 1727. A última grande bandeira em Goiás que se tem registro oficial nos anais paulistas, segundo Brasil (1961), é a célebre expedição do obstinado Bartolomeu Bueno da Silva Filho, o segundo Anhanguera, que se transformaria no “descobridor” da Capitania de Goiás, inspirado nos caminhos percorridos por seu pai. Partindo em 1722, Bueno e seus companheiros encontraram inúmeros grupos indígenas e descobriram ouro no local que ficou conhecido como Serra Dourada, nas cabeceiras do Rio Vermelho, formador do Araguaia, região onde seu pai encontrara os Goyá8. Outras bandeiras continuaram sendo realizadas no século 18, existindo a possibilidade de que o ataque devastador a vários grupos referido nas narrativas míticas dos Javaé tenha sido o realizado pelas bandeiras de Antônio Pires de Campos, o filho do afamado caçador de índios de mesmo nome, como veremos adiante. A outra frente de exploração importante do território goiano eram os missionários jesuítas que partiam de Belém do Pará e subiam os rios Tocantins e Araguaia. Segundo Serafim Leite (1943), que estudou a presença da Companhia de Jesus no Brasil, o primeiro jesuíta que esteve no baixo Tocantins foi Luiz Figueira, em 1636. Em 1653, o célebre Padre Antônio Vieira e outros foram mais além no mesmo rio, chegando acima da cachoeira Itaboca. Esta teria sido “a primeira grande entrada missionária dos jesuítas em toda a Amazônia” (1943:315-316), produzindo também, através dos escritos de Vieira, “o primeiro grande aproveitamento literário de motivos amazônicos”. Em seu relato, Vieira descreve as expedições posteriores aos rios Tocantins e Araguaia e menciona a do Padre Tomé Ribeiro, que teria chegado aos Karajá ainda em 1658, embora frustrada pela morte de

8 Ver Pizarro e Araújo (1948), Silva e Souza (1849), Alencastre (1864) e Palacin (1994).

120 vários membros pelos índios hostis. Seguiram-se as entradas de 1659, 1668 e 1671. Gonçalo de Veras (apud Serafim Leite, 1943:343), comandante da última, escreveu:

“(...) Não posso de deixar de referir o que sucedeu no sertão com os Carajás. Iam eles com 25 canoas bem armados com seus arcos e flechas e outras armas de guerra. Apenas viram chegar os Portugueses, empunharam as armas, e puseram as canoas em posição de guerra, mas logo que advertiram que vinham também Padres da Companhia de Jesus, remando com mais força atiraram os arcos a meus pés e rodearam-nos, e, para darem mostras de sua confiança e generosidade, não tornaram a pegar em armas, vindo oferecer os seus pequenos presentes, aos quais correspondi com os que permitia a minha pobreza.”

Há registros de outras expedições missionárias (Brasil, 1961), mas em 1721-1722 os jesuítas realizariam a última entrada no Tocantins, segundo Serafim Leite (1943), cujo objetivo eram mais os “descimentos” ou remoção de índios do que os aldeamentos em seus locais de origem. Além dos missionários, do Pará partiram também algumas expedições oficiais, como a do Capitão Diogo Pinto de Gaia, a primeira enviada pelo governo local, em 1720, com o objetivo de explorar o Rio Araguaia, e que logrou alcançar a Ilha do Bananal (Baena,1848, Alencastre, 1864). Com a descoberta definitiva do ouro goiano pelo segundo Anhanguera em 1722, fundou-se o arraial de Sant’Ana em 1727, nas cabeceiras do Rio Vermelho. O arraial seria chamado posteriormente de Vila Boa, a primeira capital de Goiás, depois conhecida como Goiás Velho e atualmente como Cidade de Goiás (ver Mapa n° 8). Muitos índios Goyá foram exterminados e outros fugiram da escravidão, enquanto inúmeros “arraiais” foram fundados entre 1730 e 1750 no sertão de Goiás, a partir de então conhecido como “Minas de Goyazes”9. Vários outros grupos indígenas, porém, resistiam e atacavam os invasores, como os Xavante, Canoeiro, Xacriabá e Kayapó. Em 1746, atendendo aos apelos dos colonos, o governo local encarregou o Coronel Antônio Pires de Campos, o filho, da vigilância permanente do território habitado pelos índios. Nesse contexto, realizou-se em 1747 a bandeira de Pires de Campos contra os Kayapó meridionais, quando foi acompanhado de 500 índios Bororo10. Famoso pelas “barbaridades espantosas e grande mortandade” (Silva e Souza, 1849:447), o coronel recebeu dinheiro e o “hábito de Cristo”

9 Ver Silva e Souza (1849), Aires de Casal (1945), Pizarro e Araújo (1948), Alencastre (1864), Brasil (1961), Chaim (1974) e Palacin (1994). 10 Ver Silva e Souza (1849), Alencastre (1864), Brasil (1961), Chaim (1974).

121 como recompensa pelas expedições contra inúmeros grupos indígenas, morrendo flechado em 1751. Após a instalação da Capitania de Goiás em 1749, em pleno ciclo do ouro (1722- 1822), englobando os atuais estados de Goiás e Tocantins depois de ser desmembrada da imensa Capitania de São Paulo, teve início a política de aldeamentos, caracterizada pelo alojamento e catequização dos índios da região em aldeamentos auxiliados por prisões. Na nova política indigenista formulada pelo Marquês de Pombal a partir de 1750, em especial pelo Alvará de 1758, contrastava-se a filosofia segregacionista dos antigos aldeamentos jesuítas da colônia ao propósito oficial de “integrar” e “assimilar” os índios à vida civilizada. A prosperidade econômica dependeria de uma aliança com os índios, do povoamento do território com os seus nativos, da miscigenação e da transformação dos novos cidadãos em útil mão de obra (Chaim, 1974). A concentração de índios em núcleos populacionais controlados pelos colonizadores liberava grandes áreas para as frentes de expansão e os aldeamentos, nas palavras de Carneiro da Cunha (1992:144), “serviam de infra-estrutura, fonte de abastecimento e reserva de mão-de-obra”. A legislação colonial recomendava um tratamento “bondoso e pacífico” (Perrone-Moisés, 1992:122) aos índios aldeados, considerados como homens livres, mas a violação da lei era constante e na prática os índios eram regularmente submetidos a condições de servidão. A literatura mostra que, na segunda metade do século 18, em Goiás, teve lugar uma política que alternava entre o extermínio ou escravização dos índios hostis pelos bandeirantes e o aldeamento dos menos resistentes11. Como lembra Karasch (1992:400), “embora a política oficial de Lisboa proibisse a guerra ofensiva contra os índios e recomendasse tratamento pacífico, os governadores de Goiás e os goianos resistiam aos ataques dos índios com a força e organizavam expedições agressivas (...)”. Em Goiás, a finalidade das bandeiras e dos aldeamentos era liberar as estradas e rios das hostilidades indígenas para o comércio, inclusive de prisioneiros índios, a busca de novas minas de ouro e a obtenção de mão-de-obra para a agricultura e a pecuária que começavam a surgir. A navegação, entretanto, estava oficialmente proibida por ordem real desde 1730 (inicialmente no Rio Tocantins), como forma de se evitar a evasão de ouro em pó por caminhos não controlados pelas autoridades (Alencastre, 1864).

11 Brasil (1961), Chaim (1974), Karasch (1992), Carneiro da Cunha (1992), Palacin (1994), Ataídes (2001).

122 Em seu estudo sobre os aldeamentos indígenas de toda a Capitania de Goiás na segunda metade do século 18, Chaim (1974) mostra que nos anos 50 foram fundados os aldeamentos São Francisco Xavier do Duro (ou Duro), São José do Duro (ou Formiga) e São José de Mossâmedes com os índios Xacriabá e Akroá, entrando em declínio pouco tempo depois (ver aldeamentos no Mapa n° 8). Os maus tratos a que foram submetidos os índios nesses primeiros aldeamentos, sob o rigor de disciplina militar, deram origem a mortandades, fugas e resistência ao trabalho forçado. Os jesuítas opuseram-se à autoridade militar e apoiaram rebeliões indígenas, razão pela qual foram proibidos de administrar os aldeamentos e expulsos da colônia pela carta régia de 1759 (ver Alencastre, 1864, Pizarro e Araújo, 1948). Em 1770, José de Almeida Vasconcelos, depois conhecido como Barão de Mossâmedes, foi nomeado governador de Goiás por influência do Marquês de Pombal. O novo governador retomou com rigor as diretrizes pombalinas, reconstruindo nos anos que se seguiram São José de Mossâmedes, próximo a Vila Boa, e investindo sistematicamente na atração pacífica dos índios para novos aldeamentos dirigidos por leigos. Imbuídos da útil missão civilizadora, emissários do governo foram enviados aos lugares onde os índios ainda eram hostis, fundando os aldeamentos de Nova Beira, D. Maria I, Pedro III ou Carretão e Salinas12. Ao mesmo tempo, novas bandeiras foram estimuladas em razão da decadência do ouro. A infrutífera expedição originada no arraial de Traíras, comandada por José Machado em 1774 (Silva e Sousa, 1849), “partiu para a margem do Araguaya em procura dos célebres Martyrios; mas apenas chegou à ponta meridional da grande ilha, que denominou-se Bananal, onde teve encontro com os carajás e javaez, receiando ir mais adiante atravez de tão numerosas tribus, regressou para Villa Boa” (Alencastre, 1864:263). Nas palavras de Brasil (1961:73), a bandeira trouxe “tão boas informações dos Carajás e Javaés, que o Capitão-General resolveu enviar uma expedição para celebrar com os mesmos um tratado de paz”. Assim, em junho de 1775, o governo local envia outra bandeira à procura dos Araés e do ouro dos Martírios, mas com a missão também de contatar os moradores da Ilha do Bananal (Silva e Souza, 1849, Alencastre, 1864). Na condição de emissário oficial do Capitão-General de Goyazes e acompanhado por mais de 100 soldados, um padre e outras autoridades, o Alferes José Pinto da Fonseca faz penosa

12 Ver Silva e Souza (1849), Cunha Mattos (1979), Aires de Casal (1945), Alencastre (1864) e Brasil (1961).

123 viagem durante 24 dias até chegar à ponta meridional da ilha, onde tenta estabelecer relações cordiais com os habitantes locais e assim liberar o Araguaia para a navegação, apesar da proibição oficial. O alferes torna-se a primeira pessoa a produzir um relato escrito sobre os Karajá e Javaé depois de visitar aldeias e dialogar com eles (Fonseca, 1867). Sua carta oficial informa que os índios estavam traumatizados e assustados em razão das experiências com a bandeira de Antônio Pires de Campos há mais de 20 anos antes. Só depois de muita insistência e persuasão os Karajá aproximaram-se desconfiados de Fonseca, que permaneceu instalado com seu grupo na margem direita do Araguaia, onde o rio se bifurca para formar a Ilha do Bananal. Evitando a princípio que os forasteiros conhecessem suas aldeias, instaladas em lugares escondidos, as negociações e trocas de presentes foram feitas em uma praia do Araguaia por meio de uma intérprete Karajá que havia sido capturada na bandeira de Pires de Campos. Na ocasião, Fonseca ouviu dos próprios Karajá que o bandeirante paulista tratou-os com paz e amizade no início, mas logo depois matou vários índios, aprisionou outros tantos, açoitou-os e conduziu-os acorrentados pelas fazendas que passava, onde trocava os prisioneiros com os moradores por gado e cavalos. Alguns índios fugiram e retornaram às aldeias para contar o acontecido. Sabe-se também que Pires de Campos era oficialmente acompanhado por uma “Companhia de Pedestres”, feita de “soldados do mato” (Chaim, 1974:76, 106) armados basicamente com espadas, fato este salientado na mitologia Javaé13. Em uma das reuniões na praia, Fonseca presenciou o encontro emocionado da intérprete – que não era mais uma cativa – com seus parentes, que choraram e lamentaram o ocorrido ao modo tradicional. A estratégia de pacificação do alferes também incluiu sessões musicais que deixaram os índios fascinados. Na véspera do dia de Santa Ana, o alferes finalmente foi levado a uma aldeia Karajá, depois de vários dias, batizando a ilha como Ilha de Sant’Ana, o seu primeiro nome português. Os Javaé ficaram sabendo das novidades pelos Karajá, com quem tinham relações próximas, e vieram ao encontro do alferes, em busca de paz, em um grande número de canoas. No texto a seguir tem-se a primeira referência escrita à palavra “Javaé”:

13 Ver o relato Kuikuro sobre as bandeiras de Pires Campos no Xingu em Franchetto (1992).

124 “(...) Sabendo a nação Javaê, que tem paz com os Carajás, o modo com que nós os tínhamos tratado, e as utilidades que tinham tirado de nossa amizade, se determinaram vir communicar- nos. (..). E acabados estes cumprimentos, embarcou-se o maioral Carajá com o Javaê, conduzindo-o á minha tolda. Com este pratiquei o mesmo que tinha praticado com o outro, e lendo-lhe uma cópia da carta de V.Ex., fez n’elle ainda maior impressão, e perguntou se aquelle papel era Deus. Brindei-o com os mimos que tinha reservado aos Carajás, desejando que a gloria de V.Ex. não parasse só n’esta nação, podendo também attrahir a vontade das outras: ficaram os Javaês muito satisfeitos, entregando o maioral a sua lança e penacho em penhor de sua amizade, e me disse que estavam promptos para fazerem alliança conosco, pelas boas notícias que lhes davam os Carajás.” (Fonseca, 1867:384-385)

Depois que Fonseca e seus soldados espantaram os Xavante que pilhavam as roças dos Karajá, tanto “Alve Nona” quanto “Acadibu-ani”, os respectivos “maiorais” dos Karajá e Javaé, assistiram a uma missa e prestaram juramentos de fidelidade e vassalagem ao rei de Portugal, ocasião em que o chefe Karajá pediu “ao grande pai dos brancos” (Fonseca, 1867:388) para livrá-los dos Xavante (ver Chaim, 1974). Fonseca (1867:387-388) visitou aldeias Karajá, uma delas com “mais de 2.000 almas”, e relatou que existiam seis aldeias Karajá e três aldeias Javaé, totalizando “9.000 almas”. A principal aldeia Karajá foi batizada de São Pedro do Sul. Segundo Alencastre (1864:275), Fonseca visitou a “grande aldeia dos javaêz, a que o ouvidor Cabral pôz o nome de Ponte de Lima”. As outras aldeias Karajá receberam o nome de Angeja (ou Bananal), que se tornaria a mais freqüentada pelos negociantes, Seabra, ambas situadas perto da extremidade meridional da ilha, Anadia, Lavradio e Lamaçaes, todas três nas margens do Araguaia, mais ao norte; enquanto as outras duas aldeias Javaé foram chamadas de Cunha e Mello, ambas situadas um pouco afastadas das margens do Rio Javaés14. Ao fim de sua missão, o alferes trouxe 5 índios Karajá e Javaé a Vila Boa, onde conheceram pessoalmente o governador Vasconcelos (Alencastre, 1864). Uma outra expedição de 1774 (Cunha Mattos, 1979) ou 1775 (Aires de Casal, 1945:312) nomeou três aldeias dos longínquos Xambioá: Lapa, Almeida e Semancelhe, mas logo os índios “tornaram ao seu natural modo de viver”. Alencastre (1864) relata que, empolgado com os resultados obtidos na Ilha do Bananal, o governador de Goiás enviou no ano seguinte, em 1776, uma expedição de 135 pessoas ao Rio Javaés, por via fluvial, para fundar o presídio de São Pedro do Sul (ver Mapa n° 8). Ao ser nomeado inspetor geral do presídio, o Ouvidor Antônio José Cabral

14 Ver Aires de Casal (1945), Cunha Mattos (1979), Spínola (1999).

125 d’Almeida, que participara da bandeira de Fonseca no ano anterior, organizou outra expedição, ainda no mesmo ano de 1776. Partindo desta vez por via terrestre, do arraial de Traíras, com grande carga de alimentos, o ouvidor tinha a intenção de socorrer o grupo anterior de algum contratempo. Antes de chegar ao seu destino, Cabral soube através de carta do governador da morte do chefe Javaé que havia prestado juramento de vassalagem ao rei. O governador recomendava que o ouvidor influísse na “eleição do futuro cacique”, escolhendo “Abinaré-quê” para tal, o que teria ocorrido logo depois. Ao chegar ao Rio Javaés, o ouvidor ficou “encantado pela perspectiva do lugar” e deu o nome de Nova Beira ao novo aldeamento (1864:276). Nova Beira era o único aldeamento da região do Araguaia na época, tornando-se a sede do grande distrito de Nova Beira, segundo o padre Silva e Souza (1849), que escreveu sobre a Capitania de Goiás em 181215. Ainda segundo Alencastre (1864:288), o governador José de Vasconcellos era um fiel seguidor das diretrizes pombalinas e tratava os índios de Goiás “com a maior brandura”. Assim, em 1778, o cacique “Abinaré-quê”, acompanhado de outros líderes Javaé, visitou a capital Vila Boa para “pedir-lhe um sacerdote” junto ao presídio, sendo logo atendido. No que se refere aos índios aldeados, o próprio governador escreve em relatório de 1778 (apud Alencastre, 1864:309) sobre as “nações dos carajás, javaez e xambioaz”, que compreendiam então “o immenso valor de oito para dez mil almas”: “(...) a experiência tem mostrado não serem feras indômitas, mas sim homens hábeis para toda a educação, estando em própria idade”. O relatório relata as visitas freqüentes dos índios ao presídio São Pedro do Sul com bens para trocar “por facas, tesouras, e contas e todas as espécies de missangas (...)” (apud Alencastre, 1864:309). O aldeamento e o presídio militar durariam poucos anos, uma vez que em 1780 o governador resolve transferir os 800 Javaé e Karajá que ali habitavam para o aldeamento São José de Mossâmedes, o maior e mais importante da capitania. Mossâmedes foi re- fundado em 1775 como um aldeamento modelo, dotado de grande infra-estrutura e para onde os índios seriam levados por meio de convencimento, chegando a abrigar 8.000 índios de diversas etnias em fins do século 18, como os Akroá, Xavante, Karajá, Javaé, Karijó e

15 Há controvérsias quanto a essa data. Segundo Aires de Casal (1945), o aldeamento e o presídio teriam sido fundados no mesmo ano da expedição de Fonseca, em 1775. Baena (1848), por sua vez, cita o ano de 1774 como o de fundação de Nova Beira, enquanto Pizarro e Araújo (1948) fala de 1777 e Silva e Souza (1849) de 1778.

126 Naudez16. A transferência dos Karajá e Javaé para Mossâmedes levou à extinção de Nova Beira e de São Pedro do Sul, dificultando a navegação pelo Araguaia, o que já era uma empresa complicada em razão dos ataques indígenas, dos altos custos, da imensa distância em relação a Belém e das cachoeiras a jusante (ver Palacin, 1994). A política do governador José de Vasconcelos de relações pacíficas com os índios não foi mantida pelos governos que o sucederam após 1778 (Alencastre, 1864). O militar José da Cunha Mattos (1979:43), que escreveu a “Corografia histórica da Província de Goiás” em 1824, relata que o aldeamento Pedro III ou Carretão, ao norte de Goiás Velho, foi fundado em 1786 “para repelir os ataques contínuos dos bárbaros Chavantes e Javaés”, dando a entender que as relações de paz estabelecidas em 1775 com os últimos não mais existiam. Os índios ali aldeados e “subjugados” alcançavam 3.500 pessoas e grande parte morreu de sarampo. Em 1788, foi fundado o aldeamento Salinas na porção meridional do Araguaia, na região do Rio Crixás-Mirim, com os sobreviventes de Carretão. Segundo Cunha Mattos (1979:44), o lugar foi fundado “para habitação dos índios Chavantes e Javaés que se separaram da aldeia de Pedro III, os quais se acham extremamente atenuados e reduzidos hoje ao número de 76, sem indústria, nem civilização”17. O primeiro encontro significativo com os brancos registrado na mitologia foi o ataque dos bandeirantes, quando vários povos foram exterminados. O aldeamento de Nova Beira e o presídio não são mencionados, talvez por sua curta duração, mas pude ouvir da narradora dos mitos, após a narrativa sobre o ataque dos bandeirantes aos povos da ilha, baseada no que seu avô lhe dissera, que índios Javaé e Kyrysatyhy (os Xavante) teriam sido levados para um lugar chamado “Janirataba”, próximo à cidade de Goiás Velho, onde os índios organizaram-se e chegaram a realizar o ritual Iweruhukỹ. Em Janirataba eles foram escravizados, as mulheres estupradas, e depois o local extinguiu-se. É bastante provável que Janirataba seja um outro nome do aldeamento de São José de Mossâmedes18. Chaim (1974:122), referindo-se a Mossâmedes, ainda no fim do século 18, relata que “anos depois, extinguindo-se os Javaé e Karajá, este aldeamento esvaziou-se”, sendo reerguido depois com a transferência de índios Kayapó, que teriam fugido no início do século 19. Em seus

16 Ver Silva e Souza (1849), Aires de Casal (1945), Alencastre (1864), Brasil (1961), Chaim (1974). 17 Ver Silva e Souza (1849), Pohl (1951) e Castelnau (1949). 18 Segundo comunicação pessoal do lingüista Eduardo Rivail Ribeiro, estudioso da língua Karajá, Janirataba provavelmente significaria “aldeia de Jandira”, palavra da Língua Geral de origem Tupi da qual os Karajá e Javaé incorporaram vários vocábulos.

127 escritos de 1812 sobre Mossâmedes, Silva e Souza (1849:494-496) menciona os “Acroás, Javaés e Carajás vindos do Duro, que já se extinguiram”. Saint-Hilaire (1944:118), que visitou os Kayapó de Mossâmedes em 1819, registrou o desaparecimento dos “Carajás e os Javaês” que lá habitaram. Chaim (1974:150-151) conclui que vários motivos levaram a um fracasso generalizado dos aldeamentos goianos no fim do século 18, de modo que no século seguinte “perduram apenas alguns em estado de decadência”. Entre as principais razões, tem-se a má administração, os maus tratos infligidos aos índios a despeito da legislação em contrário, o que resultou em fugas e rebeliões, e a atuação deficiente do clérigo secular, cuja “falta de gabarito moral e religioso” nas atividades de catequese e direção dos aldeamentos contrastavam notavelmente com a atuação dos primeiros missionários jesuítas. No ano de 1824, Cunha Mattos (1979:158-159) informava que “o rio Araguaia (...) está infestado de índios Carajás” e lamentava que as aldeias Karajá e Javaé nomeadas pelas autoridades locais em 1775, algumas tendo servido de fonte de mantimentos para os navegantes, já quase não eram mais freqüentadas pelos moradores da província e que “tudo cahiu em desprezo”. O declínio dos aldeamentos onde viviam os Javaé, especificamente, é demonstrado no livro recente que reúne a documentação histórica sobre os povos indígenas encontrada nos principais arquivos de Goiás (Ataídes, 2001). Pode-se ver a correspondência dirigida a Cunha Mattos em 1823-1824 com a relação dos habitantes remanescentes do aldeamento Pedro III ou Carretão, no qual moravam apenas 9 índios Javaé, em sua maioria mulheres19. No mesmo livro, tem-se o registro feito pelo primeiro jornal goiano, em 1830, sobre a decadência de alguns aldeamentos, incluindo a “Aldeia da Piedade”, de “índios Javaés”, reduzidos a “poucos casais”20. Porto da Piedade é mencionado por Silva e Souza (1849:471) em 1812 e situava-se ao sul da Ilha do Bananal, em lugar alagadiço, entre a foz dos rios Peixes e Crixás-Açu (Couto de Magalhães, 1957, Aureli, 1962a). É notável, entretanto, que até hoje os moradores de Carretão, conhecidos como Tapuios, reconhecem- se como descendentes dos Javaé, Xavante e Kayapó que para lá foram levados em ocasiões diversas (Almeida, 2003).

19 Correspondência dirigida ao Comandante das Armas Raimundo José da Cunha Mattos, 1823-1824 (apud Ataídes, 2001:173-174). 20 Jornal A Matutina Meyapontense, n° 32, de 12.6.1830 (apud Ataídes, 2001:152).

128 Com o término do ciclo do ouro no início do século 19, a antiga Capitania de Goiás iniciou um longo período de acentuada decadência econômica e populacional, caracterizado pela extinção de vários núcleos urbanos, pelo quase abandono da navegação incipiente no Araguaia e por um processo de “ruralização”, de “dispersão atomizada da população pelos campos” (Palacin, 1994:138). Tal estado de miséria e ruínas foi constatado pessoalmente tanto por João Emanuel Pohl (1951), médico e naturalista que viajou pelo interior da Capitania de Goiás em 1819, chegando a visitar aldeias indígenas setentrionais do Rio Tocantins, quanto por Auguste de Saint-Hilaire (1944:303), naturalista francês que viajou pelo Brasil e esteve na porção meridional da capitania no mesmo ano, constatando que “a província de Goiás era uma das que (...) mais índios ainda possuía”. O esvaziamento populacional de brancos e negros foi mais intenso no norte do estado, de modo que os Javaé continuaram vivendo em suas aldeias do interior e arredores da Ilha do Bananal.

– A política dos presídios e a navegação pelo Araguaia no Brasil-Império

O fim do aldeamento Nova Beira e do presídio de São Pedro do Sul em 1780 teve como resultado imediato uma dificuldade maior de navegação na região do Araguaia. Em razão dos ataques indígenas, o Rio Javaés – então conhecido como Furo do Bananal ou braço menor – foi mais utilizado que o Araguaia propriamente dito no fim do século 18 e primeira metade do século 19. Mesmo assim, os Javaé foram preservados de um contato regular com a sociedade nacional por cerca de um século, até as primeiras décadas do século 20, o que Toral (1992:42) atribui a uma atitude “isolacionista” do grupo. Desde o fim do século 18, houve por parte dos governos locais várias tentativas de fomentar o comércio fluvial em direção ao Pará, cujo principal obstáculo eram as hostilidades dos diversos grupos indígenas do Araguaia e Tocantins. Em 1792, a navegação entre Goiás e Pará foi liberada oficialmente, após grande insistência dos governadores locais e depois de mais de 50 anos de proibição (Alencastre, 1864, Brasil, 1961). Como conseqüência, o governo do Pará, contando com o patrocínio de três negociantes locais, organizou uma

129 expedição de reconhecimento da navegabilidade entre as capitais de Goiás e do Pará, com vistas ao estabelecimento de relações de comércio. Segundo o informe do Tenente Coronel Antônio Baena (1848) ao presidente do Pará, tornou-se célebre, então, a expedição de Tomaz de Sousa Villa Real. Este partiu de Belém do Pará (ver Mapa n° 8) para a cidade de Goiás em 1791, retornando em 1793, após ter navegado pelo Furo do Bananal, nome originado de uma fazenda da região. Villa Real registrou a presença de 19 ilhas entre a foz do Araguaia e a Ilha do Bananal, informando que encontrou habitações Karajá a partir da décima nona ilha, no sentido norte-sul. A décima ilha era chamada de “Tanaxiúe” (op.cti.:98), nome derivado do herói mitológico dos Karajá (Kanỹxiwè) e Javaé (Tanỹxiwè). Paralelamente, no mesmo ano de 1791, o governador do Pará conseguiu levar alguns índios Karajá à cidade de Belém, “para saber d’elles se o rio era empecilhado de cachoeiras”, obtendo várias informações do chefe “Auribedú”, que foi escoltado à aldeia de origem no ano seguinte (1848:89). A expedição de Villa Real teve sucesso, mas não encorajava outros navegantes pelo fato de não haver “uma única povoação” em toda a imensa extensão do Araguaia (Alencastre, 1864:339). Brasil (1961) registra as grandes expedições comerciais que se seguiram, de governos diferentes, em 1796, 1800, três entre 1804 e 1809, o surgimento de companhias de navegação nos anos seguintes e o fretamento de barcos a particulares para o comércio fluvial (ver Silva e Souza, 1849). No início do século 19, a política indigenista em Goiás deixou de ser influenciada pela legislação protecionista dos governos portugueses, sob inspiração do Marquês de Pombal, e passou a ser marcada por uma atuação abertamente ofensiva aos índios por parte dos governantes e colonos goianos, legitimada pelo Alvará de 1811, por exemplo, que defendia a sumária extinção dos índios (Chaim, 1974:97 e Karasch, 1992). Uma ordem régia de 1809 isentava de impostos os que morassem às margens do Araguaia e Tocantins, dando a eles o privilégio de escravizar os índios que aprisionassem (Silva e Souza, 1849, Brasil, 1961). Com a diminuição de recursos para a compra de escravos de origem africana, o objetivo explícito dos colonizadores era utilizar a mão de obra indígena tanto na agricultura incipiente, carente de recursos humanos, como na condição de remadores21.

21 O “Ofício dirigido ao Ministro e Secretário do Estado dos Negócios do Império, em 11.3. 1825” (apud Ataídes, 2001:373), estimulava a catequização para transformar os índios do Araguaia e Tocantins em “remeiros”.

130 Saint-Hilaire (1944:304) menciona o “odioso” comércio de índios entre Goiás e Pará em 1819. Estimula-se então a criação de novos aldeamentos e presídios no interior de Goiás, percebidos como núcleos de povoamento “civilizadores”, e às margens do Tocantins e Araguaia, com vistas à navegação, mas agora em um contexto de guerra aberta, expedições punitivas e escravização22. Assim, no que se refere ao Araguaia, em 1812 foi fundado o presídio de Santa Maria – “no meio do grande deserto despovoado” (Silva e Souza, 1849:470) – pelo Capitão-General Delgado de Castilho, ao norte da Ilha do Bananal, onde hoje está Araguacema (ver presídios no Mapa n° 8). O padre Silva e Souza (1849) menciona, na mesma época, a existência de sete aldeias dos “Carajás e Carajaís” no Araguaia. O presídio seria destruído por um ataque devastador em 1813, comandado por uma aliança entre os Karajá, Xavante e Xerente23. Segundo o Capitão Francisco de P. Ribeiro (1848:37), que fez em 1815 uma viagem oficial a fim de estabelecer as fronteiras entre Maranhão e Goiás, os “Carajás e Apinagés” eram mais pacíficos antes, mas as violências que “cruel e injustamente lhes foram feitas nas suas passagens pelas guarnições dos presídios de S. João das Duas Barras e de Santa Maria de Araguaia, os tornaram irreconciliáveis inimigos nossos, e fizeram com que este ultimo presídio fosse há muito pouco triste victima do seu resentimento”. Em sua viagem de 1819 ao norte de Goiás, Pohl (1951:181) ouve dos habitantes locais que, em razão da destruição do presídio, “ninguém ousa navegar o Araguaia” pelo braço ocidental, pois “não permitem as tribos selvagens que seja navegado”. O autor reconhece, entretanto, que “aqui também os brancos deram causa a essas crueldades”. Os “Carajás” são descritos como “tribo muito numerosa” e a respeito dos “Javaés”, Pohl diz, referindo-se aos aldeamentos: “já estiveram na aldeia real e fugiram, tornando-se os mais figadais inimigos dos brancos. Vivem na Ilha do Bananal”. No mito recolhido pelo antropólogo George Donahue (1982) em 1977, os antepassados dos Karajá tinham muito medo dos brancos que passavam pelo Araguaia em grandes barcos, uma vez por mês, e por essa razão escondiam-se dos estrangeiros nas florestas ribeirinhas, evitando o antigo hábito de permanecer acampados nas praias de verão. Um dia os Karajá cercaram o barco em que

22 Ver Carneiro da Cunha (1992) e ofícios (manuscritos) do Procurador da Fazenda de Goiás de 23.4.1811 (apud Ataídes, 2001:237-238). 23 Ver Cunha Mattos (1979), Ehrenreich (1948), Brasil (1961).

131 os brancos morriam e mataram toda a tripulação. Há um lugar no Araguaia chamado tori wydena, “o lugar da armadilha contra os brancos” (1982:60), porque os Karajá sempre matavam os brancos nesse ponto de passagem. Cunha Mattos (1836, 1979) escreve em 1824 que os navegantes da época preferiam a descida pelo Furo do Bananal pelo fato deste ser mais abundante em caça e pesca, por encurtar o caminho e porque assim evitavam encontrar os Karajá e os outros povos ribeirinhos que impediam a passagem das embarcações pelo braço maior. O autor menciona em suas correspondências do mesmo ano os brindes ofertados aos Karajá e Tapirapé na povoação de Salinas com o objetivo de “conservar-mos franca a comunicação com o Pará pelo sobredito Araguaya”24; e propõe que sejam estabelecidos “comboios regulares e sujeitos às leis policiais, para resistirem aos insultos dos bárbaros índios Carajás, Carajaís e Javaés dominantes no furo do Bananal ou ilha de S. Ana, e nas duas margens do Araguaia até o lugar do extinto presídio de Santa Maria” (1979:74-75). Documentos oficiais de 1836 e 1838 mencionam as visitas amistosas e periódicas que os Karajá faziam a Salinas em busca de ferramentas25. A política indigenista oficial da época oscilava, entretanto, como mostra Carneiro da Cunha (1992), de modo que em 1831 uma lei revogou a autorização de confronto direto com os índios de fronteira. Decretos de 1843, 184526 e 1857 (ver Karasch, 1992) incentivaram a fundação de novos aldeamentos ou missões para a catequese e assimilação dos índios, embora na prática a violência contra eles não cessasse. Em conseqüência, como será visto adiante, o governo recorreu novamente aos missionários, revogando a imposição da legislação pombalina de diretores leigos nos aldeamentos. As novas missões contariam a partir de então com a direção de capuchinhos italianos. Em 1845, a navegação pelo grande rio estava há tempos abandonada. No relato sobre a descida que fez pelo Araguaia em 1844, o naturalista francês Francis Castelnau (1949:275) escreve ingenuamente que o braço esquerdo da Ilha do Bananal, ou seja, o Rio Araguaia, “nunca tinha ainda sido explorado”. Castelnau desceu o Araguaia pelo braço menor, que era ainda “a via utilizada pelo comércio” em razão do temor às possíveis

24 Correspondências diversas do Governador José da Cunha Mattos, 1824 (apud Ataídes, 2001:199-200). 25 Ver manuscritos dirigidos ao Inspetor da Tesouraria da Província de Goiás, em 28.5. 1836 e 5.11.1836, e Correio Oficial de Goiaz, de 4.8.1838 (apud Ataídes, 2001:200-201). 26 O “Regulamento das Missões”, o “único documento indigenista geral do Império”, nas palavras de Carneiro da Cunha (1992:139).

132 hostilidades dos Karajá, cujo número era “muito grande”. Procurou as ruínas do aldeamento Nova Beira em vão e não avistou os Javaé, que “vivem nas terras do interior” (1949:304) e cuja aldeia estaria situada “dois dias acima da foz” de um grande rio que desembocava no braço menor. Mas o naturalista teve a rara oportunidade de visitar grandes aldeias Xambioá no baixo Araguaia, uma delas com 1.500 habitantes, cujos habitantes evitavam estranhos e “tremiam” de medo ao avistar armas de fogo (1949:312). Foi também o primeiro a descrever as máscaras secretas destes índios guardadas na Casa dos Homens, das quais tentou obter um exemplar. O governo de Goiás tentou revitalizar o comércio fluvial com a capital do Pará, fundando em 1845 uma sociedade de navegação, dirigida pelo Juiz e Deputado Rufino Theotônio Segurado (Brasil, 1961). Em razão de sua experiência descendo o Rio Tocantins, Segurado foi convidado pelo Presidente da Província de Goiás para realizar novo levantamento das condições de navegação do Araguaia (Ramalho, 1996b). No relato da difícil viagem que fez subindo o Araguaia em 1847 e 1848, entre a sua foz e a do Rio Vermelho, Segurado (1848) descreve tanto o pavor que seus companheiros tinham de encontrar os Karajá na Ilha do Bananal, quanto o temor dos Karajá que o receberam em suas aldeias, embora fossem receptivos aos brindes ofertados. No baixo Araguaia, o juiz encontrou vários Xambioá, com quem estabeleceu trocas amigáveis, chegando a visitar uma de suas aldeias. Os Xambioá portavam armas de fogo e, frente às indagações de Segurado, posicionaram-se contra a instalação de novos presídios na região devido às crueldades sofridas em Santa Maria. Na altura da Ilha do Bananal, o juiz registrou a existência de 9 aldeias Karajá, em algumas das quais teve a oportunidade de dormir e de se alimentar por algumas vezes. Em 1848, foi instituída outra sociedade de navegação pelo Vice-Presidente da Província, durando poucos anos, enquanto a Corte Imperial enviou o Capitão de Engenheiros João B. Moraes Anta para levantar a carta hidrográfica do Araguaia e Tocantins (Brasil, 1961). Mas em 1854, o curso do Araguaia era ainda considerado “desconhecido” em sua maior parte pelos relatórios oficiais (Cruz Machado, 1997a:32). O estímulo à navegação comercial também incluiu retomar a política de aldeamentos em Goiás.

133 No que diz respeito aos índios do Araguaia, em 1845, em cumprimento ao Regulamento das Missões, o Presidente da Província (Ramalho, 1996a) determinou a fundação do aldeamento São Joaquim do Jamimbú pelo missionário capuchinho Frei Segismundo de Taggia, com índios Karajá e Xavante27 (ver aldeamentos no Mapa n° 8). O aldeamento situava-se próximo da foz do Rio Crixás-Açu, em região inundável, a seis quilômetros de Salinas, de modo que pouco tempo depois foi iniciada a construção do aldeamento São José do Araguaia, acima da foz do Rio Crixás-Açu28. O Presidente da Província Ignácio Ramalho (1996a) argumentou na época sobre a necessidade, em prol da navegação, de se fundar outros aldeamentos no antigo presídio de Santa Maria e no braço direito do Araguaia, no lugar então denominado Furo do Bananal, “onde existem índios incitados pela pesca e de fácil catequese (...)”29, referindo-se provavelmente aos Javaé, o que acabou não ocorrendo. Um ofício da presidência da província, em 1855, autoriza pagamento aos missionários capuchinhos para despesas com “viagem e visitas das aldeias além do Araguaia em território dos Javaés”30. No mesmo ano, um relatório oficial relata a expedição fluvial que o missionário Taggia realizou ao Rio das Mortes no ano anterior, acompanhado de índios Karajá e Xavante, conseguindo manter contato com uma distante aldeia Xavante (Cruz Machado, 1997b, Spínola, 2001a). Uma ordem imperial de 29.1.1849 recomendava a fundação de presídios militares para auxiliar a navegação, servindo para o suprimento de alimentos, conserto de barcos e socorro à tripulação (Spínola, 2001a, Brasil, 1961). Era comum instalar os presídios, “praças-fortes com destacamentos militares”, ao lado dos aldeamentos ou missões a fim de combater os índios resistentes e transformar os aldeados em reserva de mão-de-obra (Carneiro da Cunha, 1992:137). Mas devido à ignorância quanto à topografia local, muitas vezes eram escolhidos lugares inadequados, em regiões alagadiças, fazendo-se necessária a transferência dos presídios para outros sítios (Spínola, 2001a). Para estimular o povoamento junto aos presídios do Araguaia, no mesmo ano o governador de Goiás

27 Ver Alencastre (1998a), Pereira (1999) e o Correio Oficial de Goyaz, n° 485, de 16.8.1873 (apud Ataídes, 2001:213). 28 Ver Alencastre (1998a), o “Ofício do Palácio do Governo de Goiás, 12 de novembro de 1863, enviado ao Inspetor da Tesouraria da Fazenda” e correspondência da Repartição Especial das Terras Públicas, 1858-1860 (apud Ataídes, 2001:212). 29 Correspondência do Presidente da Província ao Ministério dos Negócios do Império, 1845-1848 (apud Ataídes, 2001:167). 30 Ofício do Palácio da Presidência de Goiás para o Inspetor da Tesouraria da Fazenda em 14.6.1855 (apud Ataídes, 2001:207-208).

134 concedeu uma série de benefícios aos possíveis moradores, incluindo a isenção de impostos por 20 anos, o que estimulou a transferência de muitas famílias para a região da futura Santa Leopoldina31. Assim, na administração de Olímpio Machado (1996a, 1996b), o Engenheiro Moraes Anta construiu em 1850 os presídios de Santa Leopoldina, no Porto de Manoel Pinto, nas proximidades da foz do Rio Vermelho, e Santa Isabel do Araguaia, na região meridional da Ilha do Bananal, o único na grande ilha (ver Silva Gomes, 1996, Moraes Jardim, 2001). O presídio de Santa Isabel era visitado “por quase todos os Chefes das tribus Carajás”, segundo Silva Gomes (1996:51), Presidente da Província, que também relatou a transferência de 34 índios Karajá de São Joaquim de Jamimbú para as vizinhanças de Santa Isabel. Em 1851, por causa das enchentes, o presídio de Santa Isabel foi transferido para um lugar mais alto, na margem esquerda do Araguaia, a cerca de 15 quilômetros abaixo da foz do Rio das Mortes (Couto de Magalhães, 1998, Moraes Jardim, 2001). O corpo militar de Santa Leopoldina e Santa Isabel foi transferido para o Rio Tocantins em 1853, tendo como conseqüência a desativação dos presídios32. O relatório oficial de 1855 (Cruz Machado, 1997b:34) descreve a existência de 14 aldeias conhecidas nas margens do Araguaia: “7 de Carajás, 4 de Chambioás, e 3 de Carajahys”. O presídio de Leopoldina seria transferido definitivamente para junto da foz do Rio Vermelho em 1856, tornando-se depois a atual cidade de Aruanã (Alencastre, 1998a, Spínola, 2001a). O presídio de Monte Alegre, que foi fundado em 1857 abaixo da foz do Rio Crixás-Açú, alguns quilômetros a leste da margem direita do Araguaia, não durou muito por ter sido instalado em lugar inundável e distante das margens do Araguaia (Alencastre, 1998b, Couto de Magalhães, 1998). Em 1871, o Inspetor Geral dos Presídios recomendava ao Presidente da Província a revitalização do estratégico presídio de Santa Isabel junto aos “mansos” Karajá, o que acabou não ocorrendo (Paes Lemes, 1871:3 apud Cícero de Assis, 1999a)33.

31 Ver Olímpio Machado (1996a, 1996b) e Correio Oficial de Goyaz n° 5, de 31.10.1849 (apud Ataídes, 2001:240). 32 Ver Spínola (2001a), Couto de Magalhães (1957), Brasil (1961). 33 O antigo Presídio de Santa Isabel do Araguaia, de curta duração, foi construído a cerca de 15 km ao norte da foz do Rio das Mortes, em local próximo à atual São Félix do Araguaia. Atualmente, Santa Isabel do Morro é o nome Português da aldeia Karajá Hãwalò, situada na margem direita do Araguaia, cerca de 4 ou 5 km ao norte de São Félix do Araguaia.

135 Em alguns relatórios de presidentes da Província da época (Cruz Machado, 1997b:34)34, há menção a visitas que os Karajá e Xambioá, de “índole pacífica” e “obsequiosos”, faziam aos presídios e à cidade de Goiás em busca de mercadorias, como roupas e ferramentas. Ou então há referência à “hospitalidade” dos Karajá, “afáveis para com os navegantes” e habituados às trocas com os estrangeiros (Alencastre, 1998b:47). Mas as relações dos Karajá e Xambioá com os colonizadores, muitas vezes retratadas como de trocas pacíficas, continuavam marcadas, também, pelos ataques dos indígenas aos invasores do seu antigo território. O presídio de Santa Maria, destruído por uma aliança indígena em 1813, sofreu infrutíferas tentativas de reconstrução em 1852 e 1859, desta vez na margem ocidental do Araguaia, um pouco mais ao sul, quando os “Carajás” e “Carajais” incendiaram as novas construções e expulsaram o capuchinho italiano Frei Francisco Vitto e seus acompanhantes (Alencastre, 1998a:4). Frei Vitto visitou 15 aldeias dos “Carajá” e “Carajahys” em 1852 (Alencastre, 1998b). Coudreau (1897) relata que a Ilha da Mortandade, no Araguaia, tem seu nome originado de um massacre dos Karajá pelos Kayapó em 1859, nas imediações de Santa Maria Nova. O presídio, localizado em posição considerada estratégica, só seria restaurado definitivamente pelo historiador e Presidente da Província José M. P. de Alencastre (1998a, 1998b) em 1861, próximo a uma aldeia Kayapó. Atualmente, Santa Maria é a cidade de Araguacema (ver presídios no Mapa n° 8). O presídio foi atacado novamente em 1862, durante três dias, desta vez por cerca de 800 Karajá, Kayapó e Xambioá reunidos, que, no entanto, foram repelidos (Gomes de Siqueira, 1998). Em 1867, uma canoa com militares de Santa Maria foi atacada pelos Karajá, que tinham reputação de “mansos” em comparação aos Kayapó, ocasião em que mataram alguns membros da tripulação e raptaram uma mulher (Coudreau, 1897:138). Santa Maria, que tinha 690 habitantes em 1871 (Paes Lemes, 1871:3 apud Cícero de Assis, 1999a), estava situada “no centro de tribus indígenas” (Spínola, 2001a:33), no fim da parte calma do Rio Araguaia, para quem desce o Araguaia, pois logo a seguir começam as cachoeiras e travessões de pedras que tornam perigosa a navegação e marcam a transição entre o território Karajá e o Xambioá. O povoado tinha ligação direta, via terrestre, com as cidades do Rio Tocantins, de onde recebia mercadorias, e ao seu redor expandiam-se as

34 Ver Ramalho (1996b), Fleury (1996).

136 frentes agropecuárias vindas de Goiás. Há registros de ameaças de ataques dos índios ao presídio de Santa Maria em 1873 e 1874 (Cícero de Assis, 1999d)35, quando ainda eram comprados como escravos36, e em 1875, quando o missionário Padre Sabino teve que usar a força para se defender dos Karajá (Coudreau, 1897). Em 1882, um relatório oficial (Rodrigues de Moraes, 2001:2) informa que os Kayapó atacaram uma aldeia Karajá situada em uma ilha “fronteira ao presídio de Santa Maria do Araguaya”, ocasião em que morreram 15 índios Karajá. Na “Viagem ao Araguaia” que Couto de Magalhães (1957) realizou em 1863, como Presidente da Província de Goiás, ele menciona o aldeamento Estiva, próximo a Salinas, sob direção de Frei Segismundo de Taggia, com 200 Xavante, Karajá e Canoeiro. No mesmo ano, atendendo às solicitações do missionário, Couto de Magalhães transferiu os habitantes de Estiva, situado em lugar interiorano e inóspito, e de São Joaquim do Jamimbú para São José do Araguaia (atual São José dos Bandeirantes)37. No ano seguinte, obedecendo ao Aviso Imperial de 29.3.64, seriam construídos nas margens do Araguaia os presídios de São José do Araguaia, junto ao aldeamento de mesmo nome, e de São José dos Martírios, o mais setentrional e inóspito, que não durou muito tempo38. Ainda em 1864, foi fundado o presídio de Jurupensem, às margens do Rio Vermelho, o mais próximo da cidade de Goiás, como sede de construções de botes (Pereira, 1999)39. O aldeamento Xambioá, localizado próximo a estes índios, no baixo Araguaia, em trecho de difícil navegação, seria fundado em 1872 por Frei Savino de Rimini, sendo referido então como o mais distante da população branca (Cícero de Assis, 1999c, Spínola, 2001a). No mesmo ano, foi restabelecido o presídio de São José dos Martírios em local um pouco mais ao sul do anterior. Um relatório do Inspetor Geral dos Presídios em Goiás, de 1873 (apud Cícero de Assis, 1999c), informa que o presídio foi fundado pelo Capitão Joaquim Alves de Oliveira depois de muitas dificuldades para chegar à região. E que o

35 Ver também Correio Oficial de Goyaz, n° 484, de 9.8.1873, e Correio Oficial de Goyaz n° 36, de 15.8.1874 (apud Ataídes, 2001:292-293). 36 Correspondência (manuscrito) da presidência para os presídios, 1864-1872, p.118 (apud Ataídes, 2001:291- 292). 37 Ver Spínola (2001a), Karasch (1992), correspondência da Repartição das Terras Públicas, 1858-1860 (apud Ataídes, 2001:212), e ofícios da Diretoria das Rendas Provinciais ao Governo, 1866-1870 (apud Ataídes, 2001:309-310). 38 Ver correspondência da presidência da Província de Goiás ao Ministério da Guerra, 1867-1872 (apud Ataídes, 2001:311), e Brasil (1961). 39 Ver Correio Oficial de Goyás n° 125, de 15.3.1866 (apud Ataídes, 2001:257).

137 capitão encontrou seis aldeias de índios depois dos travessões de pedra existentes no rio, abaixo de Santa Maria, referindo-se provavelmente aos Xambioá, com os quais não conseguiu manter contato. Em 1874, os Xambioá atacaram e mataram, em ocasiões diversas, os soldados de São José dos Martírios que estavam em viagem de barco para Santa Maria; os soldados que faziam a escolta de um militar em viagem; e os soldados que compunham a pequena guarnição do Presídio de São José dos Martírios, o que resultou no envio de reforços militares ao presídio (Cícero de Assis, 1999b, 1999e, 1999f). Em 1882, o presídio seria transferido de lugar mais uma vez (Leite Moraes, 2001). No relatório que fez em 1875 sobre as condições de navegabilidade dos rios Araguaia e Tocantins, encomendado pelo Ministério da Agricultura, o Major Antônio Florêncio P. do Lago (1931) listou as colônias militares que encontrou no Araguaia, no sentido norte/sul: São João do Araguaia (ou São João das Duas Barras), na foz do Araguaia, São José dos Martírios, Xambioá, Santa Maria, São José, Leopoldina e Itacayú, no alto Araguaia. O Major Lago (1931:105) deparou-se com índios “de boa e obediente” índole em sua viagem exploratória, muitas vezes “alugados” por dois ou três anos em troca de uma espingarda, e sugeriu que fossem transformados em colonos para que o governo aproveitasse a fertilidade das terras da região. No vale do Araguaia havia, então, um grande contraste entre o tamanho da população indígena, em número muito maior, apesar de séculos de relações violentas com os colonizadores, e a reduzida população de não-índios, cujas tímidas frentes agropecuárias utilizavam-se dos presídios e aldeamentos como pontos de partida para as regiões adjacentes. No que se refere apenas aos Karajá, Javaé e Xambioá, em 1860, o Presidente da Província da época (apud Alencastre, 1998a:27) estimava a “numerosa família Carajá, que se subdivide com as denominações de Carajás, Carajahys, Javahés, Chambiouás e outras”, em mais de dez mil índios. Um outro relatório oficial de 1862 informa a existência de 4 aldeias Karajá nas margens do Araguaia, ao norte da Ilha do Bananal, e 16 ou 18 aldeias na Ilha do Bananal, além das aldeias Javaé “não longe do braço pequeno ou furo do bananal”40. Ainda segundo o mesmo relatório, os Karajá mantinham relações comerciais com as povoações vizinhas e trabalhavam como remeiros nos serviços de navegação.

40 “Relatório da Repartição dos Negócios da Agricultura, Commércio e Obras Públicas” (1862:36).

138 Em seu famoso livro de 1876, “O Selvagem”, o General Couto de Magalhães (1975:79) escreve que os “Chambioás com os Carajás, Carajaís e Javaés formam uma só nação, com sessenta ou oitenta aldeias espalhadas à margem do Rio Araguaia, desde o furo do Bananal até às Intaipabas41 (...), e com uma população de cerca de sete a oito mil indivíduos”. O Ministro da Agricultura relatava, em 1877, que nos “desertos do Araguaia” havia 4 mil índios catequizados nos presídios e aldeamentos remanescentes, enquanto a população de não-índios da imensa região alcançava apenas 3.170 pessoas, distribuídas em 92 fazendas (apud Karasch, 1992:406). Spínola (1999:33-44) lastimava em relatório oficial de junho de 1879 que “a grande ilha do Bananal, que já foi antigamente povoada, esteja somente occupada por índios bravios”. Em outro relatório do mesmo ano, Spínola lamenta o abandono dos aldeamentos e o retorno dos índios ao “gentilismo”, como no caso dos “selvagens da Ilha do Bananal”42. Nas décadas de 70 e 80 do século 19, os relatórios das autoridades locais fornecem os primeiros registros de aldeias permanentes Karajá, que não se confundem com os aldeamentos oficiais, ao sul da Ilha do Bananal, indicando um movimento de expansão meridional que seria consolidado nos anos seguintes. Os Karajá começaram a se fixar em lugares de moradia permanente na região que sempre havia sido usada para a instalação de acampamentos nas praias de verão e como território de pesca. Cícero de Assis (1999e:38) mencionou em 1874 a existência de aldeias Karajá, “volantes em suas residências”, entre a foz do Rio Crixás e a ponta sul da ilha. Spínola (2001a), pouco tempo depois, descreve que “os Carajás que, durante a secca, aldeão-se em praia fronteira a S. José, vivem em estado selvagem, completamente separados dos habitantes do povoado”. Tais acampamentos provisórios dariam lugar, cada vez mais, a moradias permanentes, em grande parte influenciadas pelas relações de troca com os aldeamentos e presídios instalados pelos colonizadores. Atendendo às ordens oficiais de Aristides S. Spínola, Presidente da Província de Goiás, em 1879 o Engenheiro Joaquim R. de Moraes Jardim (2001) realizou mais uma expedição de estudos hidrográficos e geográficos do Araguaia, no trecho entre Leopoldina e Santa Maria. O engenheiro encontrou 21 aldeias Karajá, com cerca de 600 pessoas no

41 Nome antigo das corredeiras ou travessões de pedra no baixo Araguaia que dificultam a navegação. 42 Ver “Catequese”, pág. 3, informe anexo ao relatório de Spínola (2001a), e Correio Oficial de Goyaz, n° 91, de 31.12.1879 (apud Ataídes, 2001:157-158).

139 total, espalhadas entre os presídios de São José, ao sul da Ilha do Bananal, e Santa Maria, ao norte; e mencionou os “sympathicos e doceis” Javaé encontrados em aldeias Karajá, os quais teriam aldeias no “Furo do Bananal” (2001:15). A despeito dos muitos índios que lá moravam, o longo trecho entre São José do Araguaia e Santa Maria era concebido como um grande vazio demográfico. Na época, cogitava-se reverter a situação fundando outro presídio em algum ponto entre os dois povoados (Spínola, 2001a, 2001b). Em novembro de 1879, em carta dirigida ao Ministro da Guerra, baseada nos estudos de Moraes Jardim, Spínola sugere fundar o novo núcleo na localidade de Santa Isabel do Morro, em razão de sua excepcional localização, à salvo das cheias, no “centro do Império”43. O autor lembrava que:

“(...) Do aldeamento São José do Araguaia ao presídio de Santa Maria, em uma extensão de mais de 800 kilometros, não existe uma só habitação christã. A tribu Carajá domina toda esta grande secção do rio, franca à navegação. (...) A creação do presídio não só serviria para auxiliar immensamente a navegação, como para a catechese dos Carajás, dos Javahés e dos índios habitantes da margem esquerda, que com aquelles vivem em lutas: Cayapós, Chavantes, Tapirapés. Seria, ainda mais, um núcleo de população para a futura colonização da immensa mesopotâmia do Bananal”44.

Santa Isabel, onde existira por pouco tempo o presídio abandonado em 1853, estava localizada a meio caminho entre o alto e o baixo Araguaia, tendo-se como referência o eixo norte-sul; e entre o Rio Xingu e o Rio Tocantins, tendo-se como referência o eixo leste- oeste. O presídio não foi fundado novamente, mas tal posição estratégica no Brasil Central seria apropriada pelos governantes no século 20 para o projeto de ocupação do interior (oeste) do país, como veremos adiante. O próprio Araguaia, situado no centro do país, foi pensado pelos governantes da época como o grande canal de ligação entre o sul (a Bacia do Prata) e o norte (o Rio Amazonas) do Brasil. O General Couto de Magalhães (1957, 1975, 1998), que foi presidente das Províncias de Goiás, Pará e , foi o grande idealizador da utilização do Araguaia para a integração do país. O general conseguiu trazer do ao alto Araguaia – por terra, em 1868 – o primeiro navio a vapor, inaugurado em Leopoldina. Em 29.6.1869, foi celebrado o contrato de navegação a vapor pelos rios Araguaia e Tocantins entre o presidente do Pará e

43“Catequese”, pág. 2, anexo a Spínola (2001a). 44 “Catequese”, pág. 1, anexo a Spínola (2001a).

140 Couto de Magalhães, então diretor de uma empresa de navegação, ligando o presídio de Leopoldina, no alto Araguaia, a Belém do Pará45. Correspondência oficial de 1885 informa que a “navegação do Araguaia e do Tocantins tem contribuído muito para a catequese ao norte da Província. Os selvagens fornecem toda lenha aos vapores em troca de utensílios de ferro (...), permuta assim feita estabelece entre eles e os homens civilizados relações tão amistosas que hoje as tripulações e passageiros percorrem desassombradamente toda extensão desses rios (...)”46. Entre os principais fornecedores de lenha estavam os Karajá, os Kayapó e os Xambioá (ver Gallais, 1942). Embora a navegação pelo Araguaia tenha sido bastante precária no século 19, de sua segunda metade em diante o grande rio foi muito mais freqüentado pelos não índios que o Rio Javaés, o que expôs os vizinhos Karajá e os mais distantes Xambioá a um contato muito maior com a sociedade envolvente. Couto de Magalhães (1957, 1975) também seria nomeado pelo Ministério da Agricultura como Diretor Geral de Catequese no Vale do Araguaia, supervisionando o Colégio Isabel. Criado por ele em 1871, o colégio foi transferido em 1880 para a Fazenda Dumbazinho (Spínola, 2001a), próxima ao lago de mesmo nome na margem ocidental do Araguaia, um pouco ao norte de Leopoldina, que era então a “mais florescente povoação do alto Araguaya”47. O internato, para onde iam índios do presídio de Santa Maria e arredores, principalmente, era o centro da catequese na região e abrigava crianças Karajá, Tapirapé, Kayapó, Xavante e Guajajara, entre outras48. Em 1876, quando o general não mais dirigia a catequese, seriam criadas outras três escolas nos aldeamentos São José do Araguaia, Santa Maria e Xambioá49. O colégio contava com 33 alunos em 1879, 5 dos quais eram Karajá (Spínola, 1999), mas teria o serviço de catequese suspenso em 1888 (Espírito Santo, 2001). Carneiro da Cunha (1992:139-140) lembra que a experiência de Couto de Magalhães junto ao Colégio Isabel, baseada no “abandono da política de concentração e aldeamento dos índios”, seria “a única inovação perceptível” da política indigenista do século 19 depois do Regulamento das Missões, de 1845. O governo tentou estender a outras regiões a idéia do

45 Ver correspondência da Presidência da Província com o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, 1861-1873 (apud Ataídes, 2001:375), Cícero de Assis (1999b, 1999c, 1999d), Ehrenreich (1948) e Brasil (1961). 46 “Correspondência da Presidência da Província com o Ministério da Agricultura, 1883-1885” (apud Ataídes, 2001:162). 47 “Catequese”, pág. 7, anexo a Spínola (2001a). 48 Ver Cícero de Assis (1999a, 1999b, 1999c, 1999f) e “Catequese”, anexo a Spínola (2001a). 49 Correio Oficial de Goyaz n° 61, de 9.8.1876 (apud Ataídes, 2001:156).

141 general (Couto de Magalhães, 1975:27) de criar um “corpo de intérpretes”, a fim de facilitar o processo de assimilação cultural e “civilização” dos índios, cujo objetivo último era a colonização do interior. No fim do século 19, com o fim do Império, entretanto, por várias razões, constata- se a “decadência” de quase todos os aldeamentos e presídios, que “não têm satisfeito os fins de sua creação”50. Em sua correspondência ao Diretor Geral dos Índios, em 1879, Luiz Augusto Crespo (1999:14), Vice-Presidente da Província de Goiás, atendendo a recomendações do Ministério da Agricultura, solicita informações a respeito dos presídios e aldeamentos para extingui-los. Em outro relatório de 1879, Spínola (1999) informa que o presídio de Santa Leopoldina foi extinto pelo Aviso de 10 de março de 1879 do Ministério da Guerra e que faltavam recursos para a catequese, para os aldeamentos e para os presídios remanescentes. Em 1881, recomenda-se oficialmente a extinção dos presídios militares da província, em razão do tratamento improdutivo e cruel dos militares aos índios, e sua substituição por colônias agrícolas, dedicadas à catequese e educação de indígenas e “cristãos”51. Apesar da decadência geral, em 1886 ainda seria retomado o aldeamento de Santa Maria Nova e seriam fundados novos aldeamentos em Dumbazinho e no Rio Caiapó, sob direção de missionários. Havia a intenção de se transferir o presídio e o aldeamento de Santa Maria para o lado ocidental da Ilha do Bananal, o que acabou não ocorrendo (Cruz, 2001). Em 1889, o Ministro da Agricultura relata que o Colégio Isabel havia sido transformado pelos professores em “casa de especulação e opressão para os índios que delle fugiam horrorisados, transmitindo aos seus a má impressão que levavam das suas primeiras relações com a gente civilisada”52. Um missionário dominicano (Gallais, 1942, 1954) que esteve na região na virada do século testemunhou tanto que alguns dos chefes Karajá que falavam o Português tinham sido educados no colégio quanto o declínio generalizado dos presídios do Araguaia em 1901, reduzidos a ruínas. Um relatório oficial de 1904 informa

50 Ver, por exemplo, o Relatório da Secretaria da Presidência de Goiás, de 1879, p. 96 (apud Ataídes, 2001:247), e o Relatório da Coletoria de Tocantinópolis, de 25.6.1884 (apud Ataídes, 2001:252). 51 Ver Ofício do Inspetor Geral dos Presídios, de 21.2.1881 (apud Ataídes, 2001:161). 52 Ofício do Ministro da Agricultura, de 3.8.1889 (apud Ataídes, 2001:359).

142 sobre o fim da catequese patrocinada pelo Estado em Goiás, “tendo sido supprimida a verba consignada no orçamento da União para esse fim”53. Com o relativo isolamento dos Javaé após o fim dos primeiros aldeamentos do século 18, informações a seu respeito eram obtidas por meio dos vizinhos Karajá, com quem sempre mantiveram relações de troca próximas. Em expedição realizada no Araguaia em 1888, o etnógrafo alemão Paul Ehrenreich (1948) – integrante da famosa expedição de Karl Von den Steinen ao Xingu – produz o “primeiro estudo sistemático sobre os Karajá”, nas palavras de Baldus (1948:9), dedicado em sua maior parte à cultura material. O pesquisador foi o primeiro a registrar a diferença entre a fala masculina e a feminina na língua Karajá e a reconhecer as semelhanças culturais entre os Karajá, Javaé e Xambioá, embora não tenha visitado os Javaé. Ehrenreich (1948:26) encontra os Karajá distribuídos em cerca de 15 aldeias, entre os aldeamentos de São José e Santa Maria, e relata que a povoação Karajá próxima a Santa Maria, a mais setentrional, foi destruída por um ataque Kayapó em 1881, evitando a partir de então “estabelecer-se muito além da ponta norte da Ilha do Bananal”. Os Karajá mais meridionais viveriam em aldeias menores e mais espalhadas em razão da “escassez dos meios de subsistência” (1948:34), enquanto as aldeias mais ao norte seriam mais populosas, em alguns casos alcançando 200 habitantes. O autor ouve notícias a respeito de três aldeias Javaé no interior da ilha, estimando os “Javahé, Karajahi e Xambioá” em 4.000 pessoas (1948:25). Ehrenreich menciona o receio dos Javaé em relação a doenças contagiosas e o desejo por instrumentos de ferro, obtidos através dos seus vizinhos Karajá, que por sua vez os recebiam em troca da lenha para os vapores. Um ofício do Ministério da Agricultura de 1889 confirma a existência de três aldeias Javaé na parte central da Ilha do Bananal, descrevendo os habitantes como “pacíficos e dóceis”54. Alguns anos depois, em 1897, o explorador francês Henri Coudreau (1897) subiria em um vapor o Tocantins e parte do Araguaia, até o Rio Tapirapé, contratado pelo Governo do Pará para determinar os limites do estado. O autor comete alguns equívocos, como considerar os Tapirapé como um subgrupo Karajá, além de se referir aos índios com palavras bastante depreciativas, mas descreve com relativa precisão a sua distribuição

53 Semanário Oficial n° 239, de 21.5.1904, ano VIII, Goyaz (apud Ataídes, 2001:361). 54 Ofício de 3.8.1889, apresentado pelo Ministério da Agricultura (apud Ataídes, 2001:67).

143 territorial: os “Carajás” propriamente ditos eram habitantes do braço ocidental do Araguaia, da Ilha do Bananal até Leopoldina; os “Carajás-Chambioás” ou “Chambioás” habitavam ao norte da Ilha do Bananal, até as imediações de São José dos Martírios, aproximadamente; e os “Carajás-Javahés” ou “Javahés” (1897:185), “a fração mais importante da tribo” (1897:110), habitavam o interior da ilha. Coudreau teve contato pessoal apenas com os Karajá setentrionais (que viviam ao norte da foz do Rio Tapirapé) e os Xambioá, subestimando a população total dos Karajá, Xambioá e Tapirapé em apenas 380 pessoas. O autor menciona um ataque dos Xambioá, juntamente com os Xicrin, à missão existente em São José dos Martírios alguns anos antes de sua viagem. No que se refere aos Karajá propriamente ditos, o explorador francês encontrou várias famílias ou aldeias dos Karajá setentrionais entre Barreira de Santana (atual Santa Maria das Barreiras) e a foz do Rio Tapirapé, ponto máximo de sua viagem. Coudreau menciona que parte do grupo dos Karajá instalados em Barreira de Santana teria partido no dia de sua viagem com medo das doenças dos civilizados, e que ao norte da Ilha do Bananal, antes de chegar à confluência do Rio Javaés com o Araguaia, o autor encontrou um grupo de Karajá navegando pelo rio. Na margem oeste do Araguaia, já na altura da Ilha do Bananal, o autor encontrou a aldeia de “Tamanacó”, a aldeia “acima de Furo de Pedra” e a aldeia do “Fecho do Tapirapé” (1897:186). Coudreau refere-se brevemente a aldeias dos Karajá acima de São José do Araguaia, indicando uma expansão do território Karajá um pouco mais para o sul (“Pedro Manco”, no Lago do Varal, “Capichana”, em São José, e “Achichá”, em Coroa de Pedras). Em 1900, restavam apenas os restos dos três vapores do Araguaia, colocados à venda em edital oficial (Couto de Magalhães, 1957), o que resultou na decadência dos poucos povoados ribeirinhos até meados do século 20. No quadro a seguir, temos um resumo dos dados populacionais sobre os Karajá, Xambioá e Javaé entre 1775 e 1897, lembrando que os 9.000 Karajá e Javaé estimados pelo Alferes Pinto da Fonseca, em 1775, já eram os sobreviventes dos massacres anteriores promovidos pelos bandeirantes paulistas; que a variação no número de aldeias Karajá, principalmente, tem relação com a época em que foram observadas, uma vez que os Karajá tendiam a se concentrar em menos aldeias na estação cheia e a se dispersar em um número maior de aldeias nas praias da estação seca; e

144 que as estimativas não têm o mesmo grau de razoabilidade em razão das condições diversas em que foram feitas:

Quadro n° 3 – População Karajá, Javaé e Xambioá nos séculos 18 e 19

Autor Data População N° de aldeias Pinto da Fonseca 1775 9.000 (Karajá e Javaé); uma aldeia 6 Karajá, 3 Javaé Karajá com mais de 2.000 pessoas. Silva e Souza 1812 7 Karajá Castelnau 1844 Grandes aldeias Xambioá, uma delas “algumas” Xambioá com 1.500 pessoas. Segurado 1847 9 Karajá, “algumas” Xambioá Frei Vitto 1852 15 Karajá Cruz Machado 1855 10 Karajá, 4 Xambioá Alencastre 1861 Mais de 10.000 (Karajá, Javaé e Xambioá). Relatório Oficial 1862 22 Karajá Couto de Magalhães 1876 Entre 7.000 e 8.000 (Karajá, Javaé e Xambioá). Moraes Jardim 1879 600 Karajá 21 Karajá Ehrenreich 1888 4.000 (Karajá, Javaé e Xambioá). 15 Karajá, 3 Javaé Bispo Silva 1896 Uma das aldeias Javaé com cerca de 3 Javaé 1.500 pessoas. Coudreau 1897 165 (Karajá), 195 (Xambioá) e 20 6 Karajá, 10 Xambioá e (Tapirapé). 1 Tapirapé

145 4. Os Karajá após 1900

– As primeiras décadas do Século 20: a atuação missionária e do SPI

Nas primeiras décadas do século 20, do ponto de vista dos brasileiros instalados na costa do Brasil, o vale do Araguaia viveu os seus últimos dias de “sertão” desconhecido. Na época, missionários católicos e protestantes e agentes governamentais instalaram-se permanentemente nas proximidades das aldeias Karajá e foram organizadas expedições para o desbravamento e colonização da margem oeste do Araguaia. A partir dos anos 30, seriam fundados os principais povoados junto aos Karajá da Ilha do Bananal. A chegada de missionários, especialmente os de origem protestante, e agentes do Estado nas aldeias Karajá foi determinante para o abandono do antigo padrão territorial de alternância entre as aldeias fixas de inverno e as aldeias provisórias de verão. As agências evangelizadoras e governamentais estimularam também o abandono das aldeias menores em prol da concentração das famílias em poucas e grandes aldeias, o que levou a uma melhoria das condições de saúde e a uma estabilização populacional, por um lado, mas também a uma perda de controle dos Karajá sobre antigas áreas, especialmente as situadas na margem esquerda do Araguaia, e à exacerbação dos conflitos faccionais nas grandes aldeias55. O SPI passaria a encorajar a criação de gado na Ilha do Bananal, uma atividade desconhecida dos Karajá e Javaé, a comercialização do peixe e a mudança dos moradores de pequenas aldeias vizinhas para os postos Getúlio Vargas, na aldeia Santa Isabel, e Heloísa Torres, na aldeia Itxala (na foz do Rio Tapirapé). Os missionários protestantes, por sua vez, estimulariam a mudança dos Karajá de outras aldeias para as aldeias Macaúba e Fontoura. Não por acaso, atualmente as aldeias Santa Isabel, Fontoura, Macaúba e Itxala, além de São Domingos, que tem uma história específica, são as maiores aldeias Karajá. Durante a missão oficial de 1897, Henri Coudreau encontra-se em Barreira de Santana (atual Santa Maria das Barreiras) com Frei Gil Villanova, o missionário da ordem dominicana de origem francesa que desde o ano anterior tentava instalar uma nova missão

55 Ver Tavener (1966), Bueno (1975), Donahue (1982), Toral (1992), Pétesch (2000).

146 para a catequese dos índios da região (Karajá, Javaé, Xambioá, Xavante), em especial os Kayapó56. Baseado em seus levantamentos, o francês indica ao missionário o excepcional sítio, a salvo das inundações periódicas, onde seria fundada por Frei Gil, dias depois, a missão de Conceição do Araguaia (ver Mapa n° 2). Situada ao norte da Ilha do Bananal, a futura cidade atrairia muitas famílias de Goiás, Maranhão e Piauí a partir de 1904, durante o primeiro ciclo da borracha. Quando ainda atuava em Porto Nacional, anos antes, Frei Gil tentara sem sucesso visitar aldeias Xavante no Rio das Mortes e aldeias Javaé, padecendo de grandes dificuldades, na volta, em sua travessia à pé pela região setentrional da Ilha do Bananal durante a estação cheia de 1890 (Audrin, 1946) ou 1891 (Gallais, 1942). Alguns anos depois, em 1896, antes da fundação de Conceição do Araguaia, o Bispo de Goiás, Dom Eduardo Duarte da Silva, e o dominicano Frei Joaquim Mestelan conseguem se encontrar com os desconhecidos Javaé em sua descida a vapor pelo Rio Javaés:

“(...) Na Ilha do Bananal existem três aldéias dos Javaés. A que pudemos visitar está situada em campo amêno, distante do braço menor do Araguáia, por onde descemos, e conta cerca de 1500 indígenas. Era a primeira vez que estes índios recebiam a visita de cristãos, motivo portanto de grande susto que levaram à nossa vista, e que quase nos custou a vida. Presos e condenados a morrer às cacetadas, conseguimos aplacar a ira dos selvagens pela distribuição de muitos presentes. Gratos, os Javaés tornaram-se amigos, nos franquearam sua aldéia, acompanhando- nos depois até o vapor, com os maiores sinais de alegria e satisfação” (relato do Bispo Silva apud Audrin, 1946:142-143).

Demoraria ainda 20 anos, entretanto, para que os missionários de Conceição do Araguaia, desde 1905 sob a chefia de Dom Domingos Carrérot, futuro Bispo de Porto Nacional, retornassem aos Javaé, fato este ainda lembrado pelos mais velhos, como veremos adiante. Quando os padres franceses chegaram a Santa Leopoldina em 1896, com o objetivo de descer o Araguaia e instalar a futura missão, o vilarejo estava em estado de abandono, não existindo mais o presídio e o Colégio Isabel nem a navegação a vapor. O Padre Estevão Gallais (1942, 1954), que esteve na região em 1901, estimou a população Karajá em menos de mil pessoas, e relatou que “o vale do Araguaia é quasi na sua totalidade país selvagem”: a margem esquerda era ocupada apenas por grupos indígenas,

56 Ver Krause (1940b, 1940c), Gallais (1942, 1954), Audrin (1946).

147 principalmente os Karajá, Xavante e Kayapó, e “em um percurso de 180 a 200 léguas, não há sinal de habitações cristãs” (1954:15). Em 1902, Frei Gil Vilanova informou aos seus superiores franceses que pretendia “preparar uma fundação junto aos Carajás da Ilha do Bananal”, onde havia pelo menos dez aldeias, pois “desde há muito que os Carajás se acham em relações conosco” e “seus chefes mais importantes pedem com insistência que nos vamos estabelecer junto a eles” (apud Gallais, 1942:245). Frei Gil faleceu em 1905, mas os dominicanos conseguiriam instalar uma missão muito próxima dos Karajá da ilha fluvial na década de 30, fundando o que se transformaria na atual cidade de (MT). Depois da chegada da missão dominicana de origem francesa em Conceição do Araguaia, vários missionários católicos que viajaram pelo grande rio escreveram sobre os Karajá e Javaé que tentavam catequizar. O missionário Estevão Gallais (1954), por exemplo, viajou de Santa Leopoldina a Conceição do Araguaia em 1901 e relatou que os Karajá tinham aldeias espalhadas entre Leopoldina e Cachoeira Grande, um local situado ao norte de Conceição do Araguaia e que provavelmente era dos Xambioá (1942:178-179):

“(...) Os Carajás são os primeiros índios com que se topa ao descer o Araguaia abaixo de Leopoldina. Fraccionados em avultado número de pequenos grupos, espalham suas aldeias às margens do rio até as imediações de Cachoeira Grande, num espaço de cerca de 300 léguas. Cada uma dessas aldeias compunha-se de um pequeno número de famílias, e é raro um chefe governar mais de trinta ou quarenta súbditos contando com mulheres e crianças. Depois da fundação de Leopoldina e enquanto funcionou o serviço de navegação a vapor, os Carajás das margens do rio estavam em relações contínuas com os civilizados. Encarregavam-se de fornecer combustíveis aos barcos a vapor, que, à falta de carvão, recebiam lenha. (...) Em pagamento recebiam machados, fumo, roupas, sal e outras coisas que lhes conviam. Alguns de seus chefes tinham sido educados no Colégio Isabel e falavam o português. Só contando com os que habitam nas margens do rio, os Carajás não passam de algumas centenas, seguramente menos de um milhar”.

Em 1908, o etnógrafo alemão Fritz Krause (1940-1944) desceu o Araguaia, também de Leopoldina até Conceição do Araguaia, ocasião em que visitou todas as aldeias Karajá existentes. Krause produziu uma rica descrição sobre a ocupação territorial e a cultura material dos Karajá, além de recolher grande quantidade de objetos etnográficos e registrar a viagem através de fotografias que foram publicadas. O autor esclareceu definitivamente que os “Carayahi” ou “Carajahis” da literatura nada mais eram que os próprios Karajá,

148 denominados desde então com a grafia atual. A expedição partiu de Leopoldina em junho, na época das praias (“o verão” local), e encontrou 23 pequenas aldeias Karajá “estáveis” (Krause, 1941b:237) entre Leopoldina, o ponto máximo da expansão meridional do grupo, e um lugar ao norte da Ilha do Bananal, em contraste com os Xambioá e Javaé, que teriam menos aldeias, porém com muito mais habitantes. Algumas das aldeias descritas eram acampamentos provisórios de verão. O autor registrou que os Xambioá viviam no trecho encachoeirado do baixo Araguaia, que se inicia a partir de Santa Maria (atual Araguacema), enquanto os Karajá viviam na parte do rio livre de cachoeiras, entre Leopoldina e Santa Maria, em ambas as margens, embora estendessem suas atividades de pesca e caça a leste e a oeste. Os Karajá dividiam-se entre o grupo meridional, na época já consolidado, que morava entre a foz do Rio Vermelho e a foz do Rio Crixás, com um número de 1 a 4 casas por aldeia, e o grupo setentrional, mais populoso, com uma média de 5 a 6 casas por aldeia, que morava entre a foz do Rio das Mortes e a região ao norte da Ilha do Bananal. Krause (1943b) encontrou cerca de 50 índios Javaé morando junto com os Karajá meridionais e calculou a população total dos Karajá propriamente ditos em apenas 815 pessoas (1941b:238), número que o autor atribuiu à epidemia de sarampo que se alastrara entre os Karajá nos últimos dois anos. Na época de sua viagem, a aldeia Karajá mais meridional era Xixamãdo, junto a Leopoldina, na foz do Rio Vermelho, onde famílias Karajá já estavam morando definitivamente há cerca de 5 anos (desde 1903) e onde cerca de um século depois seria reconhecida a Terra Indígena dos Karajá de Aruanã57. Como observou o próprio Krause (1941b), tal movimento em direção ao alto Araguaia teria sido um produto, em parte, do próprio contato, na medida em que os Karajá buscavam manter relações de troca com os aldeamentos e presídios meridionais para onde foram levados membros do grupo, como São José do Araguaia, Salinas e Leopoldina. No que se refere aos Karajá setentrionais, segundo a sua divisão territorial, o pesquisador alemão avistou e visitou, no sentido sul/norte:

57 Ver Schiel (2002), Lima Filho (2006), Portela (2006).

149 – Uma aldeia de verão um pouco acima da foz do Rio das Mortes; – A grande aldeia do Cacique “Ilk” (Krause, 1940a:227), que pela descrição do local e da quantidade de casas estava nas proximidades da atual aldeia de Santa Isabel; – Uma grande aldeia de fundação recente, com 74 moradores, que pela localização e época de fundação era a atual aldeia Fontoura; – A aldeia de José, com 14 moradores, onde ouviu notícias a respeito da aldeia do Cacique “Korumaré” (1940b:137), junto a um rio da Ilha do Bananal; – A aldeia do Cacique João, de fama violenta; – Uma aldeia na foz do Rio Tapirapé, onde as crianças estavam todas doentes de coqueluche; – A aldeia do Cacique João Cadete, ao lado do local conhecido como Furo de Pedra, situado a cinco quilômetros ao norte da atual cidade de Santa Terezinha; – A aldeia do Cacique Alfredo, não muito distante da última; – Uma outra grande aldeia; – A aldeia do Cacique “Tumanakú” (1940b:146), com seis casas; – A grande aldeia do Cacique “Crisóte”, com Casa dos Homens vivível e onde Krause presenciou uma luta ritual entre os Karajá visitantes e os membros da aldeia; – A aldeia do chefe “Walatá” (1940b:149), a aldeia mais setentrional de todas, situada na Barreira da Princesa (na margem esquerda do Araguaia, oposta à foz do Rio do Coco), ao norte da Ilha do Bananal.

Em sua descida, Krause encontrou vários Karajá a caminho do antigo presídio de Santa Maria, onde normalmente iam realizar trocas comerciais, alguns já em Santa Maria e um grupo que planejava plantar uma roça nas imediações do povoado. No início do século 20, como já disse Tavener (1966) antes, as aldeias meridionais, ao sul da Ilha do Bananal, eram novas e estavam próximas de vilarejos regionais, enquanto as aldeias setentrionais (ao norte do Rio das Mortes) continham a maior parte da população Karajá e estavam situadas, em sua maioria, em sítios de ocupação tradicional. Nas proximidades da aldeia de Walatá, a Barreira da Princesa, Krause deparou-se com a primeira habitação de um brasileiro desde os últimos povoados que deixara para trás, muito distantes, ao sul da Ilha do Bananal. A casa estava localizada em um ponto alto da margem esquerda do Araguaia e era, na época, o ponto máximo de expansão das frentes agro-pastoris vindas do norte. Muitas das aldeias Karajá e das habitações de regionais estavam situadas na margem esquerda do Rio Araguaia. O pesquisador avistou também duas canoas com brasileiros de Conceição do Araguaia que iam até a extremidade norte da Ilha do Bananal para “pescar, secar os peixes e vendê-los em Conceição” (Krause, 1940b:149), hábito que se intensificaria no século 20.

150 Pouco tempo depois da visita de Fritz Krause, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), criado em 1910, organizou uma expedição de reconhecimento à Ilha do Bananal. Francisco de Borja Mandacaru e Araújo assumiu o cargo de Diretor do SPI em Goiás em 21.6.1911 e viajou pelo Araguaia entre novembro de 1911 e agosto de 1912, entre Leopoldina e Conceição do Araguaia, com o objetivo de visitar todos os grupos indígenas ali existentes, incluindo os desconhecidos Tapirapé e Javaé58. Em telegrama enviado ao Ministro da Agricultura em junho de 1911, o então coronel Cândido Rondon, criador do SPI, anunciava a viagem do Inspetor Mandacaru ao Araguaia, definindo os Karajá, Javaé, Xambioá e Tapirapé como “legítimos dominadores do grande rio (Araguaia), cantado por Couto de Magalhães”59. O Diretor do SPI visitou 18 aldeias Karajá nas margens do Araguaia, com cerca de mil habitantes60. Segundo Zoroastro Artiaga (1959:77), organizador do Museu de Goiás, o Inspetor Mandacaru teve muita dificuldade para que “os índios do Bananal aceitassem os seus presentes de roupa. Geralmente eles as queimavam ou as enterravam, receosos de efeito maligno que elas teriam trazido para toda a nação. (...) Os primeiros presentes aceitos foram pequenas harmônicas, vitrolas, machados e facões do mato”. Ainda segundo o autor, “contam que os bugreiros profissionais costumam envenenar bebedouros, deixar para eles panos e roupas que serviram a variolosos. Eram postos em lugares atravessados pelos Carajás para os destruir pela peste com as outras tribos rebeldes”. Em sua descida pelo Araguaia nos anos 20, a partir de Leopoldina e com destino a Conceição do Araguaia, o missionário dominicano francês Marie H. Tapie (1926:104) encontrou o “Capitão Capichão, chefe da pequena aldeia dos Karajá de Santa Leopoldina”, com quem realizou trocas de mercadorias. O missionário e seu grupo avistaram pelo menos três grupos diferentes e amistosos de Karajá entre São José do Araguaia e a barra do Rio Crixás. Na Ilha do Bananal, novos grupos de Karajá, familiarizados com outros missionários dominicanos e interessados em trocas materiais com o grupo, são encontrados entre a foz do Rio das Mortes e a parte setentrional da ilha. Entre outros, o autor menciona o grupo do “Capitão Irqué” (1926:197), a “aldeia do Capitão João” (1926:205), o grupo do “Capitão Tamanaco” (1926:207) e a “aldeia do Capitão Alfred” (1926:215).

58 Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotogramas n° 1, 6 e 9). 59 Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotograma n° 6). 60 Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotograma n° 10).

151 Outro grupo de dominicanos desceu o Araguaia entre dezembro de 1925 e janeiro de 1926, de Leopoldina a Conceição do Araguaia, contornando a Ilha do Bananal pelo Rio Javaés, a fim de se encontrar com os Javaé (Tournier, 1942). O Padre Reginaldo Tournier e os bispos de Porto Nacional (Dom Domingos Carrérot) e Conceição do Araguaia (Dom Sebastião Tomás) encontraram, ao sul da Ilha do Bananal, famílias Karajá ao lado de São José do Araguaia, na época um “amontoado de ruínas” (1942:93). Um pouco abaixo, encontraram a aldeia do “capitão Chiquinho” (1942:94), situada em uma extensa praia “em que se alinham numerosas choupanas carajá” (1942:95). Logo depois de ultrapassarem a ponta norte da Ilha do Bananal, os dominicanos ficam sabendo da existência de um cemitério de brancos, que haviam sido mortos pelos Karajá, no povoado Mirador. No mesmo local, encontram um casal de índios Karajá que moravam em uma aldeia das proximidades, evidenciando a ocupação Karajá ao norte da ilha. Os Karajá da aldeia Fontoura lembram que os primeiros missionários que atuaram entre o grupo foram os padres católicos de Conceição do Araguaia, que forneciam roupas, entre outros bens, para os índios. Os da aldeia Macaúba dizem que os padres vinham todo ano, na época da seca, e batizavam as crianças e os adultos. Eles davam vários presentes, como facões e roupas, e iam até outras aldeias, como as da Barra do Tapirapé. No Morro de Areia, em Santa Terezinha, foi construída uma escola para os Karajá estudarem. Frei Luiz, Frei Pedro e Frei Sebastião, segundo os Karajá de Itxala, eram os padres dominicanos que vinham de Conceição do Araguaia até as aldeias Karajá nas primeiras décadas do século 20. Eles levavam os Karajá de Itxala para achar os Tapirapé, que moravam nas terras interioranas das cabeceiras do Rio Tapirapé. Os padres traziam ferramentas, como facões e machados, e alimentos, como rapadura, para os Karajá e para os Tapirapé. Os Karajá de Itxala dizem que conheceram rapadura, farinha de mandioca e arroz por meio dos dominicanos. A atuação dos padres dominicanos voltou-se com o tempo para a crescente população regional e os índios do Araguaia foram aos poucos deixados de lado. Como lembra George Donahue (1982:62-63), antropólogo norte-americano que pesquisou os Karajá por 11 meses em 1976 e 1977, escrevendo uma tese de doutorado, os missionários protestantes e o próprio governo aproveitaram o vácuo deixado pelos católicos e passaram a exercer influência direta sobre os Karajá durante todo o século 20: “Robert Glass, da União

152 Evangélica sul-americana, de Londres, pesquisou a área em 1906. (...) Em 1917 MacIntyre comprou terra para a missão (...) e na década de 20 o missionário Josiah Wilding estabeleceu uma missão em Macaúba (...). Logo após a morte de Wilding de malária em 1931, terminou a primeira fase do trabalho missionário em Macaúba. A missão durante esse período nunca teve capacidade de atrair os Karajá permanentemente. Eles os visitavam apenas para receber assistência médica”. Glass (apud Donahue, op.cit:68.) estimou a população Karajá de 1906 em 1.100 pessoas. Nos anos 50, a Missão Novas Tribos, de origem americana, restabeleceria o trabalho missionário em Macaúba, mas há registros (Machado, 1947), no entanto, de que o Pastor MacIntyre ainda trabalhava na referida aldeia nos anos 40. A Igreja Adventista do Sétimo Dia iniciou seus contatos com os Karajá em 1927 (Pinheiro, 1994). O Pastor Alvin Allen, que já havia trabalhado no Peru e com índios mexicanos, partiu para o Araguaia com o objetivo de evangelizar os indígenas da região. Em 1928, a União Sul-Brasileira adventista resolveu apoiar o seu trabalho e então o Pastor Allen fundou a sede da “Missão Araguaia” (1994:51) no povoado Piedade, às margens do Araguaia, mas um pouco ao sul da Ilha do Bananal. A sede também foi visitada no ano seguinte pelo General Cândido Rondon, acompanhado pelo chefe do SPI em Goiás. A Missão Araguaia não prosperou em Piedade nos anos que se seguiram e, antes de partir, em 1933, Allen transferiu uma família de adventistas para a aldeia Karajá Fontoura, ocasião em que surgiu a primeira escola desta aldeia. Fontoura tornou-se a sede do trabalho missionário em 1934, embora este tenha sido praticamente desativado durante a segunda guerra mundial. O primeiro posto do SPI na Ilha do Bananal, chamado Posto Indígena Carajás, foi fundado em 1927 pelo Capitão Manuel S. Bandeira de Mello61, colaborador próximo do General Rondon, que o encarregava de tarefas consideradas mais difíceis (Bandeira de Mello, 1982). Como já foi dito, o posto foi situado em um lugar seco nas proximidades de um antigo sítio mitológico Karajá (Wèrè Tòla), mas que na época não era habitado. Na região ao redor havia várias aldeias Karajá, em especial aquelas situadas onde hoje está a cidade de São Félix do Araguaia (fundada em 1941) e junto à foz do Rio das Mortes. Seus moradores foram estimulados a se transferir para o posto, nascendo então a aldeia Santa

61 Microfilme da FUNAI n° 270, fotogramas n° 1219 a 1221.

153 Isabel (Hãwalò), que desde então permanece como a maior aldeia Karajá (ver Mapa n° 2). Em 1928, o posto passou a se chamar Posto Redenção Indígena, mas permaneceu abandonado entre 1931 e 1939 por causa das turbulências políticas relacionadas ao Estado Novo62. Nos anos 40, em razão da visita do Presidente da República, seria renomeado como Posto Indígena Getúlio Vargas. Em 1929, a comitiva do General Rondon, que ia de Cuiabá a Belém do Pará, visitou o Posto Redenção Indígena, onde foi hasteada a bandeira nacional e cantado o hino nacional na presença do convidado ilustre. Em um livro escrito muitos anos depois, Darcy Bandeira de Mello (1982:161), filho do Capitão Manuel e seu auxiliar no posto indígena, relembra os três anos vividos na região e informa a respeito dos Karajá (provavelmente incluindo os Xambioá como parte do grupo):

“(...) Cada aldeia se compõe de 100 cabanas mais ou menos, distantes uma da outra, em média dois quilômetros. No ano a que estou me reportando – 1927 – a totalidade das aldeias abrigava uns 3.000 índios, constituía, realmente, uma grande tribo. (...) Dominavam toda a extensão do rio Araguaia, até a sua foz no Tocantins. (...) Os Carajá não eram ferozes; revelaram-se sempre pacíficos e de boa-índole, longe, porém, de covardia”.

O autor escreve ainda que o posto mantinha “contatos com Missões Religiosas católicas e protestantes” (1982:171) que atuavam na área, representados pelos dominicanos Dom Sebastião Thomaz e Frei José Maria Audrin, pelo salesiano Padre Chevelon, missionário em busca dos Xavante, e pelo pastor protestante Archibald MacIntyre. Este último, ao elogiar o trabalho de proteção realizado pelo SPI, deixou escrito no livro de registros do posto indígena que os índios eram explorados pelas pessoas que se dirigiam às zonas de garimpo no alto Araguaia. Em seu primeiro relato ao Tenente Coronel Alencarliense F. da Costa, encarregado do SPI em Goiás, datado de 27.7.1927, o Capitão Manuel S. B. de Mello63 informou que, de Leopoldina até Santa Isabel, 89 Karajá moravam nas aldeias Dumbá, Cocalinho, São José, Montaria e Praia do Cavalo. Entre Santa Isabel, com 110 moradores, e Furo de Pedra, existiam as aldeias Fontoura, Crumaré, Mato Verde e Furo de Pedra, com cerca de 450 índios, totalizando cerca de 650 Karajá. Mello não havia visitado ainda as aldeias ao norte

62 Ver Ribeiro da Silva (1935), Cunha (1953), Aureli (1962b), Mello (1982). 63 Microfilme da FUNAI n° 270, fotogramas n° 1219 a 1221.

154 de Santa Isabel, que eram maior número que as listadas por ele, mas informa que em Furo de Pedra estava instalada a missão protestante que atuava entre os Karajá setentrionais. No relatório geral do encarregado do SPI em Goiás a respeito das aldeias Karajá, de 1931, informa-se que ao norte do Posto Redenção Indígena, em Santa Isabel, existiam a “antiga Aldeia do ‘Capitão’ Marraú (margem direita)”, a “nova Aldeia Marraú”, a “Aldeia Matto Verde (margem direita)”, o primeiro grupo da “Aldeia Crumaré (margem direita)”, o segundo grupo da “Aldeia Crumaré” e uma aldeia em frente à missão dominicana (Santa Terezinha)64. O relatório menciona a “Missão Protestante Mackintyre” a cerca de 4 km ao sul da missão dominicana, na margem direita do Araguaia. Segundo a interpretação de alguns Karajá de Santa Isabel, recolhida pela pesquisadora Fénelon Costa (1978:24) nos anos 50, o posto do SPI não foi fundado para dar proteção aos índios, mas para dar “proteção aos civilizados”. O posto teria sido fundado em razão do assassinato do “major Basílio” por dois Karajá, depois que um deles perdeu a mulher em uma epidemia de gripe e jurou de morte o primeiro branco que se aproximasse de sua aldeia. O assassino foi “sangrado” (op.cti.:25) pelos regionais após a sua captura, o que causou a dispersão dos Karajá amedrontados. Em 1927, o Capitão Bandeira de Mello buscou os Karajá “em vários aldeamentos, entre eles num situado no rio das Mortes e no de Fontoura, e foi então organizada a aldeia de Santa Isabel”. No relatório escrito em 1.1.1931, o Capitão Manoel B. de Mello fornece pistas de que o SPI incentivou os Karajá de outras aldeias menores a se concentrarem na aldeia Santa Isabel, atendida pelo posto indígena65. O esforço do órgão indigenista incluía também estimular o abandono definitivo dos “miseráveis ranchos de palha”, que tornavam possível a fácil alternância dos Karajá entre as aldeias da estação cheia e as da estação seca, instaladas nas praias. O posto havia sido visitado no ano anterior pelos missionários dominicanos de Conceição do Araguaia, pelo Pastor Alvin Allen, pelos missionários protestantes estabelecidos próximos ao lugarejo Furo de Pedra, por uma médica inglesa e pela antropóloga norte-americana Elizabeth Steen. Havia então um conflito de interesses entre o SPI e os missionários estrangeiros. O funcionário do SPI informava que tentava dar

64 Microfilme da FUNAI n° 342, fotograma n° 009. 65 O posto do SPI em Santa Isabel

155 aos “bons Carajás (...) a verdadeira Proteção, livrando-se da exploração dos catechistas estrangeiros, que infestam esta região, especialmente os adventistas norte-americanos”. Como já foi dito, a aldeia Fontoura, situada em um antigo sítio referido pela mitologia, foi fundada por Haratuma, o Cacique Fontoura, e passou a ser habitada pelos Karajá aproximadamente no fim do século 19. Pouco tempo depois do SPI se instalar em Santa Isabel, teve início em Fontoura um processo de aglomeração dos vários grupos pequenos espalhados na região ao redor, o que contou com o estímulo dos missionários adventistas (ver Almeida, 2006b). Waihore, cunhado de Haratuma, tornou-se o cacique (ixỹwèdu) da aldeia, sendo substituído, após a sua morte, por Kalàriki, que foi o responsável pela iniciativa de convidar as famílias dispersas na região vizinha para morar na aldeia. Ainda na década de 30, os Karajá foram visitados e descritos por jornalistas e escritores paulistas aventureiros que percorreram o Araguaia e seus afluentes, como Hermano Ribeiro da Silva (1935) e Willy Aureli (1962a, 1962b, 1963); pelo casal de franceses Richard e Rayliane de la Falaise (1939); e por antropólogos, como Herbert Baldus (1948, 1970) e o norte americano William Lipkind (1940, 1948). Enquanto os franceses desejavam conhecer os distantes Tapirapé, os jornalistas paulistas tentaram reviver as bandeiras de seus antigos conterrâneos penetrando no temido território Xavante para alcançar a famosa e misteriosa Serra do Roncador, divisor de águas natural entre o Rio Xingu e o Rio Araguaia, então célebre em razão do desaparecimento do Coronel Fawcett em 1925. Havia na época outros grupos tentando entrar no território Xavante a partir das margens do Araguaia, por motivos variados, como os missionários salesianos da Prelazia de Registro do Araguaia em busca dos Xavante (ver Duroure, 1936), os garimpeiros sertanejos em busca de diamantes no alto Araguaia (Villas Bôas & Villas Bôas, 1994, Lima Filho, 2001) e os expedicionários estrangeiros em busca do inglês Fawcett. As terras vizinhas às margens do médio Araguaia, especialmente a margem oeste, eram ainda consideradas “sertão”, território muito pouco conhecido a ser desbravado e colonizado, embora tenha havido expedições de sucesso ao Rio das Mortes, como a de Frei Segismundo de Taggia, em 1855, de caráter missionário (Cruz Machado, 1997b), ou a do Engenheiro José Feliciano R. de Moraes, em 1891, de caráter oficial (Paixão, 2002). No início dos anos 40, segundo os irmãos Villas Bôas (1994:41), integrantes da Expedição

156 Roncador-Xingu, “o grande sertão do Brasil Central, compreendido entre o rio Araguaia e seus afluentes da esquerda, a leste, o Tapajós com seus formadores a oeste, os chapadões mato-grossenses ao sul, e uma linha correspondente aproximada ao paralelo 4 (L.S.), que corta aqueles rios na altura dos seus grandes encachoeirados, com uma área de aproximadamente um milhão de quilômetros quadrados, até poucos anos era a região menos conhecida de todo o continente americano, talvez do mundo”. De um ponto de vista dos brasileiros que viviam na costa, a grande maioria, “a faixa-limite do conhecimento civilizado morria ali mesmo no Araguaia” (1994:24). Hermano Ribeiro da Silva, que comandou a Bandeira Anhanguera em 1937 (ver Brasileiro, 1938 e Mello, 1982), e Willy Aureli, que comandou a Bandeira Piratininga a partir de 1936, tendo alcançado o cume da Serra do Roncador em 1938, navegaram pelo Rio das Mortes, coração do território Xavante, e tiveram ampla divulgação de seus feitos pela imprensa e apoio dos governos federal e paulista. Com exceção de Baldus, todos os outros realizaram expedições ao também muito pouco conhecido território Javaé nos anos 30. Mas era comum nos escritos dos modernos bandeirantes e de outros viajantes enfatizar o forte contraste entre os guerreiros e irredutíveis Xavante e os pacíficos Karajá e Javaé, receptivos ao contato com os forasteiros. Ribeiro da Silva (1935) empreendeu longa viagem junto com dois amigos de São Paulo, em 1932, em barco a remo, pelo Araguaia e afluentes. Na época, garimpeiros exploravam diamantes no Rio das Garças, afluente do alto Araguaia, e o grupo de paulistas pesquisava a existência de minas de metais preciosos em sua jornada, baseados nos antigos registros a respeito dos Araés e das minas dos Martírios. O jornalista registrou com detalhes minuciosos os nomes, a localização e a distância entre todos os vilarejos por que passou. A atual cidade de Santa Terezinha era então apenas o pequeno vilarejo que o dominicano Frei Gabriel estava fundando, naquele ano, com igreja e colégio, em frente a uma aldeia Karajá. Na aldeia já atuava a missão evangélica fundada pelo Pastor Archibald MacIntyre alguns anos antes e comandada por um casal de ingleses, que atendia índios e brancos portadores de hanseníase, sífilis, malária e verminoses. Quando Ribeiro da Silva esteve na Missão Evangelista, um casal de pastores tinha sido enviado a uma aldeia Javaé próxima. Em 1880, conforme o relatório do Presidente da Província (Spínola, 2001a) já citado, não havia uma única povoação de brancos entre São José do Araguaia (atual São

157 José dos Bandeirantes) e Santa Maria (atual Araguacema), trecho fluvial habitado exclusivamente pelos Karajá. Em sua viagem, mais de 50 anos depois, Hermano Ribeiro da Silva (1935:43) encontrou os seguintes povoados habitados por não-índios, em ordem sucessiva, entre Santa Leopoldina e Santa Maria. As duas povoações são até hoje os limites sul e norte dos núcleos de habitação Karajá, aproximadamente, e eram os principais centros de expansão agropecuária nas margens do médio Araguaia na segunda metade do século 19 (ver Mapa n° 2):

Leopoldina (Goiás, atual Aruanã) Cocalinho (Mato Grosso) Sítio “Cixá” (Goiás) São José do Araguaia (Goiás) Piedade (Goiás) São Domingos ou Fazenda Luis Alves (Goiás, atual Luís Alves) Posto Indígena de Santa Isabel (na Ilha do Bananal) Santa Terezinha (Pará) Posto Protestante (na Ilha do Bananal) Furo de Pedra (Pará) Lago Grande (Pará) Barreira de Pedra (Pará) Barreira de Aricá (Pará) Barreira de Campo (Pará) Barreira de Santana (Pará, atual Santa Maria das Barreiras) Santa Maria (Goiás, atual Araguacema)

Havia 20 famílias de Karajá ao lado de Cocalinho e “vários agrupamentos de famílias carajás” acampados em praias ao sul da Ilha do Bananal. Em Santa Isabel, na Ilha do Bananal, “aldeia carajá do capitão Malohá”, havia cerca de 200 índios Karajá e algumas mulheres Tapirapé, “roubadas na luta que se mantiveram há 20 e tantos anos” (Ribeiro da Silva, 1935:105). O autor encontrou ainda, rio abaixo, a “aldeia do Capitão Fontôra” (1935:139); três agrupamentos Karajá em pesca entre Fontoura e a foz do rio Tapirapés; uma aldeia Karajá em frente a Santa Terezinha; alguns Karajá na localidade Furo da Pedra, já no Pará; uma “aldeia populosa” (1935:156) de um grupo que ele julgou ser dos Xambioá, já nas imediações da porção setentrional da Ilha do Bananal; alguns Karajá um pouco abaixo de Lagoa Grande, em cujas proximidades havia várias “embarcações dos carajás, movidos das aldeias para a procura dos ovos das tartarugas e para a caça de anfíbios”; e

158 índios Karajá nus em Barreira de Santana. Em Santa Maria, mais ao norte, o autor ouviu detalhados relatos a respeito de “Faustinão” (1935:174), homem já falecido que era conhecido por ter matado vários Karajá de aldeias próximas da ponta norte da Ilha do Bananal. O jornalista Hermano Ribeiro da Silva testemunhou em 1932 que o Posto Redenção Indígena, em Santa Isabel, estava abandonado. O que restava do posto, onde foram construídos 8 casas de barro e curral, resistia sob os cuidados do regional Benedito Martins – que acompanhou Darcy Bandeira de Mello, Hermano R. da Silva e Willy Aureli em algumas de suas expedições – e sua esposa, que aguardavam o pagamento do serviço pelo governo. O jornalista registrou também que “o sarampo, a coqueluche, a escarlatina, a gripe (...) aqui abatem de quando em quando numerosas vidas, dizimando aldeias. A nação dos carajás, por exemplo, calculada em 10 mil almas há 50 anos atrás, na atualidade reunirá no máximo duas mil” (Ribeiro da Silva, 1935:134). Apesar do decréscimo populacional, o Araguaia foi descrito pelo autor como “o império livre dos carajás, disseminados em muitas aldeias da barranca” (1935:265). Francisco Brasileiro (1938:49), companheiro de Hermano na Bandeira Anhanguera, descreve que os “carajás-javaés”, “selvícolas de índole pacífica”, se esparramavam pelas praias entre Santa Leopoldina e a ponta norte da Ilha do Bananal no período da seca. Em 1934, o criador de gado Lúcio Penna da Luz subiu o Araguaia, vindo de Barreira de Santana (atual Santa Maria das Barreiras), embora de origem nordestina, e instalou-se pioneiramente no local conhecido como Mato Verde, que era o lugar de roça dos índios Karajá da aldeia Hãwalò (da micro-região de Wèrè Hãwa), situada ao lado (ver Baldus, 1948, Lima Filho, 2001). A sede da fazenda transformou-se no vilarejo Mato Verde, ao lado do qual os Karajá moraram na aldeia Krè Hãwa, posteriormente, entre outras aldeias. Décadas depois, Mato Verde transformou-se na atual cidade de Luciara, na margem esquerda do Araguaia, cujo nome foi dado por seus moradores em homenagem ao fundador da cidade. Nos anos 80, depois de sérios conflitos, os Karajá conseguiram retomar parte de sua antiga área e foi demarcada a Terra Indígena São Domingos, vizinha de Luciara. Em 1938, Willy Aureli (1962b:295) encontrou sertanejos locais trabalhando na formação de uma outra fazenda de Lúcio da Luz, que estava se transferindo de Mato Verde

159 para se instalar em região habitada apenas pelos Karajá, nas proximidades da “aldeia de Krumaré”. Um casal de franceses navegou o Araguaia, de Leopoldina a Belém, no começo dos anos 30, com o objetivo de encontrar os desconhecidos Tapirapé. A escritora Rayliane de La Falaise (1939) escreveu um livro sobre os quatro anos de aventuras com o marido pelo interior do Brasil, no qual são reveladas várias informações importantes sobre os Karajá. Em São José do Araguaia, centro da pesca regional do pirarucu na época, os Karajá estavam organizados em equipes sob as ordens de um patrão brasileiro. Em sua viagem rio abaixo, o casal encontra vários grupos Karajá ao sul da Ilha do Bananal a partir de Leopoldina: em São José do Araguaia, na Missão Adventista de Piedade, na aldeia do Capitão Alexandre (uma dúzia de ranchos provisórios em imensa praia de verão), na aldeia do “velho Joaquim” (1939:67), na aldeia do “Capitão Ahahú” (1939:71). Na Ilha do Bananal, os dois franceses visitam a “aldeia de Maloá”, ao lado das ruínas do Posto do SPI, em Santa Isabel, considerada a mais importante das aldeias, com cerca de 200 adultos e 25 casas, e a aldeia Fontoura, onde também atuava a Missão Adventista. Na margem esquerda do Araguaia, o casal hospedou-se no recente povoado de Mato Verde, que se dividia “em três aglomerações humanas bem distintas (...)”: um posto de evangelização salesiano, a “aldeia do Capitão Dranté” (ou Joaquim), e a fazenda de Lúcio da Luz (La Falaise, 1939:123), descrito como um “rei déspota de uma população de vaqueiros que ele explora” (1939:128). La Falaise registrou a existência de outra aldeia Karajá situada em uma praia entre Mato Verde e a foz do Rio Tapirapés. Ainda na margem esquerda do Araguaia, havia a aldeia do Capitão Francisco, nas proximidades de Santa Terezinha, e uma outra aldeia Karajá ao lado do povoado Furo de Pedra. A autora menciona também o posto protestante que atuava entre os índios da Ilha do Bananal, na margem oposta a Santa Terezinha. Passada a ponta norte da grande ilha, o casal encontra um grupo de índios Karajá procurando ovos de tartaruga em uma praia do Araguaia, outro grupo no povoado Barreirinha e uma aldeia Karajá em frente ao povoado Barreira de Campo, descrita como “a última aldeia importante antes de Conceição do Araguaia” (La Falaise, 1939:260). Subentende-se, portanto, que havia outros grupos Karajá, embora menores, depois de Barreira de Campo. Na cidade de Santa Maria, por fim,

160 antigo presídio imperial, eles encontram um grupo de índios Karajá acampados em suas praias. Ainda na década de 30, o salesiano J. Duroure (1936), que esteve no Araguaia em 1935 e contou a história do assassinato dos missionários Jean Baptiste Fuchs e Pierre Sacilotti pelos Xavante, em 1934, estimou a população dos Karajá, Javaé e Xambioá em cerca de duas mil pessoas. Na expedição realizada por Darcy Bandeira de Mello (1982), ex- funcionário do SPI, como integrante da Bandeira Anhanguera, em 1937, o grupo do qual fazia parte também hospedou-se na fazenda de Lúcio da Luz, então vizinha de “duas grandes aldeias de Carajá, todos meus antigos conhecidos e amigos”. Durante os anos de atuação da Bandeira Piratininga, Aureli (1962a:21) constatou que, apesar do “contato com a civilização” há três séculos, os Karajá conservavam “intactos os costumes e ritos”; e que, antes da chegada dos Xavante à região, o grupo morava nas duas margens do Araguaia e também tinha aldeias e cemitérios no Rio das Mortes. Segundo o jornalista que percorreu grandes distâncias no Araguaia várias vezes, “a grande família Carajá vive fracionada em pequenas aldeias. (...) Não é raro encontrar nas praias solitárias do Araguaia, reduzido núcleo de silvícolas: três ou quatro famílias. São os dissidentes dessa ou daquela aldeia” (1962a:31). Também em 1938, o jornalista encontrou quatro ranchos de sertanejos no lugar conhecido como Lago Grande, na margem esquerda do Araguaia, antigo sítio de ocupação Karajá, ao norte de Santa Terezinha. Em 1959, em uma outra viagem realizada pelo autor (1962a, 1963), havia alguns Karajá morando no povoado que se instalou no território indígena. O antropólogo norte-americano William Lipkind (1948) realizou 18 meses de pesquisa entre 1937 e 1939 entre os Karajá, na mesma época em que seu colega da Universidade de Colúmbia, Charles Wagley (1988), esteve entre os vizinhos Tapirapé. Lipkind também fez uma visita de alguns dias a uma aldeia Javaé, embora tenha publicado muito pouco dos dados recolhidos em sua pesquisa como um todo. O autor realizou um censo demográfico a respeito dos três grupos falantes da língua Karajá em 1939, os quais alcançavam cerca de 1510 pessoas. Lipkind encontrou 20 aldeias Karajá entre Leopoldina e a região ao norte da Ilha do Bananal, com uma população total 795 pessoas, além de duas aldeias Xambioá e 8 aldeias Javaé. Em uma carta à diretora do Museu Nacional do Rio de

161 Janeiro, de 1941 (apud Donahue, 1982:179), Lipkind informa o nome das aldeias Karajá existentes na época (sentido sul/norte):

Leopoldina “Mata Korá” São José Ribeirão Dante Luis Alves São Pedro “Gariroba” Santa Isabel Fontoura Mato Verde Manoel Joaquim “Crixote” Jatobá Boca do Tapirapé Cadete Morro de Areia Furo de Pedra “Grisoste” Barreira de Campo Barreira de Pedra Barreirinha

No censo realizado pelos municípios goianos em 1940, segundo o organizador do Museu de Goiás, Zoroastro Artiaga (1959), constatou-se a existência de 706 Karajá, distribuídos em 18 ou 20 aldeias.

– O médio Araguaia depois da Marcha para o Oeste nos anos 40 e 50

O posto do SPI em Santa Isabel foi reativado em 1939 e Lima Filho (2001:41) mostra como a histórica visita do Presidente Getúlio Vargas à aldeia Karajá em 1940, onde ficou por cinco dias em um acampamento de caça e pesca, deu o impulso definitivo à criação da Expedição Roncador-Xingu, que, “oficialmente, tinha a finalidade de abrir vias de comunicação do litoral com o Centro-Oeste e a Amazônia”. Vargas sobrevoou o Rio das

162 Mortes e o território Xavante acompanhado de representantes da imprensa, do Padre Chevelon e do chefe Karajá Watau, que seria convidado pelo presidente para visitar o Rio de Janeiro (ver Artiaga, 1959, Pinheiro, 1994). O Araguaia foi escolhido para ser o ponto de partida do movimento de interiorização do país conhecido como a Marcha para o Oeste (ver Villas Bôas & Villas Bôas, 1994), lançado por Vargas em 1938 e depois retomado por Juscelino Kubitschek com a construção de Brasília. Em 1943, o governo criou a Fundação Brasil Central (FBC), cujo objetivo era o desbravamento e a colonização do Brasil Central, em especial a região do Araguaia e Xingu. A FBC foi responsável pela estrutura de apoio da Expedição Roncador- Xingu, que partiu no mesmo ano de Aragarças (antiga Barra Goiana), nas margens do Araguaia, rumo ao Rio das Mortes e à Serra do Roncador, abrindo o caminho para a colonização efetiva da região. A expedição, comandada em campo pelos irmãos Villas- Bôas, teve continuidade por toda a década de 40, transformando-se na Expedição Xingu- Tapajós nos anos 50. A equipe de vanguarda da colonização executou a abertura de estradas e campos de pouso de aviões que deram origem a núcleos de povoação, além de estabelecer o contato definitivo com os grupos indígenas do Xingu e vale do Teles Pires considerados “arredios” até então. A cidade de São Félix do Araguaia, importante centro regional do médio Araguaia, a cerca de três ou quatro quilômetros ao sul da aldeia Karajá Santa Isabel, originou-se do vilarejo fundado em 1941 por Severiano de Souza Neves, cunhado de Lúcio da Luz. Em razão de conflitos locais, Neves e um grupo de criadores de gado, provenientes do Piauí, deixaram Mato Verde e subiram o Araguaia para morar em um outro lugar à salvo das inundações. Em 1942, o dominicano Dom Sebastião Tomás batizou o lugar com o seu nome atual, dado em homenagem ao santo invocado pelos moradores locais para protegê- los dos ataques dos Xavante (ver Ferreira, 2001, Lima Filho, 2001). São Félix do Araguaia foi construída sobre o sítio recentemente abandonado de uma antiga aldeia Karajá de inverno, cujo cemitério foi tombado oficialmente nos anos 90 por iniciativa do antropólogo Manuel F. Lima Filho. Em 1945, Tilbor Sekelj (1948) realizou uma expedição em território Xavante e depois desceu o Araguaia, a partir de Aragarças, tendo a oportunidade de passar dois meses entre os Karajá da Ilha do Bananal e alguns dias entre os Javaé. A viagem resultou em um

163 artigo com várias informações etnográficas e lingüísticas, que foi apresentado como palestra no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 1946. No artigo estima-se que, nos últimos 20 anos, os Karajá diminuíram a sua população de 3000 para apenas 600 pessoas. No mesmo ano de 1945, os ministérios da Guerra e da Agricultura, em associação como o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI) e o SPI, organizaram uma comissão de investigação para a conclusão da cartografia do Mato Grosso, cujos rios não eram totalmente conhecidos. Othon Machado (1947), militar e médico que participou da “Expedição à Mesopotâmia Araguaia-Xingu”, escreveu um livro com observações sobre os Karajá, os quais encontrou espalhados em 18 aldeias. A mais setentrional estava em Barreirinha e a mais meridional em Aruanã, o novo nome da antiga Santa Leopoldina:

Barreirinha Barreira de Campo Barreira de Pedra Lago Grande Antônio Rosa Furo de Pedra Morro de Areia Tapirapés Jatobá Crisóstomo de Cima Mato Verde Fontoura Santa Isabel Luis Alves Xixá São José Cocalinho Aruanã (antiga Leopoldina)

Os integrantes da expedição ouviram do missionário evangélico Archibald MacIntyre, que ainda atuava em Macaúba, que havia então menos de 700 Karajá. O médico detectou casos de blenorragia, doença venérea que causa cegueira, sarampo, varicela, pneumonias, disenterias mortais, verminoses freqüentes, vários tipos de parasitoses e malária, a principal causa de óbitos.

164 A convite do SPI, um grupo composto de médico (Haroldo Cândido de Oliveira), cinegrafista, jornalistas, engenheiro e dois etnólogos do Museu Paulista (Herbert Baldus e Harald Schultz) realizou uma viagem de investigação a respeito dos índios do Araguaia em julho de 1947, época do ano em que os Karajá abandonavam momentaneamente as aldeias fixas de inverno e se espalhavam pelas praias de verão do Araguaia. Baldus (1948) publicou um artigo com os resultados de sua viagem entre Leopoldina e a foz do Rio Tapirapé, constatando uma diminuição considerável da população Karajá recenseada por ele em 1935. No que se refere ao trecho de sua viagem de 1947, no sentido sul/norte, os Karajá estavam morando em:

– Em uma aldeia ao lado de Leopoldina; – Na praia em frente a Cocalinho; – Em três pequenos acampamentos de verão entre Cocalinho e São José; – Em uma praia perto de Luis Alves; – Na aldeia de Santa Isabel; – Em uma ilha em frente à missão adventista de Fontoura, onde muitos Karajá haviam morrido de malária nos últimos anos; – Na aldeia de Mato Verde, situada na praia da margem esquerda do Araguaia; – Na aldeia Crisóstomo, em praia da margem direita; – Na aldeia Jatobá, também em uma praia da margem direita; – Na aldeia situada na foz do Rio Tapirapé, ao lado do Posto Indígena Heloísa Torres.

Esta última aldeia foi referida pelo autor como parte do grupo dos “Karajá do norte” (Baldus, 1948:153). Mesmo assim, o autor escreveu que o “habitat Karajá” (1970:66) é de Leopoldina a Conceição do Araguaia. No relatório do médico Haroldo C. de Oliveira (1950), ficamos sabendo que os diversos grupos Karajá encontrados tinham condições de saúde diferenciadas. Enquanto os Karajá de Leopoldina, São José e Santa Isabel estavam em melhor estado de saúde que os ribeirinhos, apesar das doenças venéreas diagnosticadas em Santa Isabel, originadas em contatos dos homens Karajá com prostitutas dos vilarejos, os de Cocalinho, Luís Alves e do Posto Indígena Heloísa Torres sofriam de malárias e verminoses crônicas, possuindo um aspecto triste e adoentado. O Posto Indígena Heloísa Torres havia sido fundado pelo SPI no início dos anos 40, na foz do Rio Tapirapés, no mesmo ano da visita do Presidente Getúlio Vargas à Ilha do Bananal, para evitar a penetração de não-índios na região (Baldus, 1948

165 Wagley, 1988). O posto era chefiado por Valentim Gomes, que alguns anos depois seria deslocado pelo órgão indigenista para o Posto Daminana Cunha, criado em 1952 entre os Javaé. O grupo encontrou um antigo cemitério Karajá nas proximidades do posto, contendo inclusive urnas funerárias. Os Karajá setentrionais, instalados atualmente em Macaúba, lembram que o SPI – ao que parece, na segunda metade da década de 40 ou início da década de 50 – estimulou a concentração dos moradores de aldeias vizinhas na aldeia Bidinaò (Antônio Rosa), o que teve curta duração. Os Karajá da foz do Rio Tapirapé, por sua vez, lembram que o SPI, por meio do Posto Heloísa Torres, incentivou a mudança definitiva dos Karajá de outras aldeias, como Uè Bero (Crisóstemo de Cima) e Nana Birè (Morro de Areia), para Itxala nos anos 50 e 60. Na pesquisa de doutorado a respeito da cerâmica Karajá que realizou entre 1952 e 1959, a etnóloga Wilma Chiara (1970) constatou que os Karajá continuavam morando entre Aruanã e Araguacema (nome atual do presídio de Santa Maria), no trecho do Araguaia livre de cachoeiras, e que já havia algumas diferenças culturais entre os Karajá meridionais e os Karajá setentrionais (que não se confundem com os Xambioá). Além disso, a autora aponta em sua tese as diferenças históricas entre os dois grupos, uma vez que os Karajá da ponta norte da Ilha do Bananal e arredores sofriam mais o impacto das frentes de extração de produtos naturais (em especial animais da fauna aquática), enquanto os Karajá da ponta sul da ilha e arredores estavam muito mais expostos à crescente indústria do turismo. Na ocasião, ainda não havia sido retomado o transporte fluvial regular do Araguaia, interrompido na virada do século, e a ligação da população ribeirinha com os centros do sul e do norte era feita apenas por comerciantes independentes, proprietários de barcos a vapor. Segundo a autora, os vilarejos ao norte da Ilha do Bananal tinham vínculos comerciais com Belém, enquanto os vilarejos ao sul da ilha eram ligados a Aruanã (antiga Leopoldina) e a Goiás Velho ou a Goiânia, fundada em 1937, através de uma estrada que chegava até Aruanã. Um Karajá da aldeia São Pedro, no sul da Ilha do Bananal, forneceu a Chiara uma lista com o nome e a localização de 30 lugares tradicionais de aldeias, muitos dos quais não mais ocupados, entre Aruanã e o povoado Furo de Pedra. Aproximadamente na mesma

166 época, em 1958, o pesquisador Mário Ferreira Simões visitou 18 aldeias ou agrupamentos Karajá (Lima Filho & Alvarenga Nunes, 1992), listados no sentido norte/sul:

Furo de Pedra Crisóstomo de Baixo Morro de Areia Barra do Tapirapé Jatobá Crisóstomo de Cima Mato Verde Fontoura Santa Isabel Barreira de Pedra São Pedro Luís Alves Crixás São José dos Bandeirantes Cocalinho Cangas Aruanã Rosário

O grupo mais meridional situava-se nas proximidades da cidade de Aruanã, em um lugar denominado Rosário, enquanto o mais setentrional visitado pelo autor estava ao lado de Furo de Pedra. Na década de 50, aumentou a penetração das frentes pastoris e agrícolas no médio Araguaia, em ambas as margens, tanto em função da “pacificação” dos Xavante como dos efeitos da Marcha para o Oeste. As construções de Goiânia nos anos 30 e a de Brasília no fim da década de 50 inauguraram um novo fluxo migratório no Brasil Central. A instalação de pequenas e grandes fazendas nas duas margens do grande rio ocorreu paralelamente à entrada cada vez maior de posseiros de menor poder econômico na Ilha do Bananal. Wilma Chiara (1970) testemunhou em 1959 a presença de criadores de gado no norte da Ilha do Bananal e Aureli (1963:198-199) descreve que, também em 1959, nas cercanias de São Félix do Araguaia, quase todos os dias chegavam famílias de pobres e famintos sertanejos goianos, expulsos de suas terras de origem, em busca de acolhimento nas margens do Araguaia e nas terras interioranas do Mato Grosso. Na expedição que realizou ao longo de

167 todo o Riozinho, no mesmo ano, a partir de sua foz, Aureli (1963) encontrou vários moradores fixando residência no interior da ilha. Ainda nos anos 50, segundo Chiara (1970), o Araguaia também recebeu o impacto do fluxo de turismo, fortemente influenciado pelo estabelecimento de linhas comerciais aéreas em pequenas cidades do interior, como Aruanã, subvencionadas pelo governo federal. A cidade tornou-se o ponto de partida predileto dos turistas endinheirados interessados tanto nas pescarias e caçadas do grande rio como em conhecer seus famosos moradores indígenas, cuja popularidade era cada vez mais crescente. A autora relata que o chefe do posto do SPI instalado em Aruanã era uma espécie de “agente de turismo” local, fornecendo hospedagem e barcos para os turistas vindos de centros distantes. Em 1950, o SPI obteve ajuda da FAB para religar os postos indígenas longínquos, instalando uma pista de avião na aldeia Karajá Santa Isabel. Desde então, segundo a pesquisadora, pequenos aviões de variados lugares chegavam regularmente com turistas nacionais e estrangeiros à aldeia Karajá, que se tornou um importante centro de venda de bonecas de cerâmica. A missão evangélica Nova Tribos, de origem norte-americana, convenceu os Karajá das pequenas aldeias setentrionais, cuja população já estava bastante reduzida em função das epidemias, a se transferirem definitivamente para a aldeia Macaúba na segunda metade da década de 50. A aldeia foi fundada pelos missionários em um sítio que já havia sido ocupado pelos Karajá em tempos imemoriais. Marielys Bueno (1975, 1987), que pesquisou a aldeia Macaúba entre 1969 e 1985, ouviu vários relatos dos Karajá sobre a desconfiança inicial de seus antepassados em relação aos missionários, os quais acabaram convencendo os grupos setentrionais a se mudarem para a nova aldeia em troca de proteção e cuidado com a saúde. Os missionários deram gado para os índios, com o qual não estavam familiarizados, e os índios tiveram que limpar o mato para abrir roças na nova aldeia. A missão Novas Tribos teve seu trabalho interrompido momentaneamente no início dos anos 70, em função de uma campanha da FUNAI contra o trabalho missionário nas áreas indígenas (ver Bueno, 1975, 1987, Donahue, 1982). Segundo o antropólogo Christopher J. Tavener (1966), que realizou uma viagem de 4 meses às aldeias Karajá em 1966, a maior parte dos moradores de Macaúba veio das aldeias Furo de Pedra e Antônio Rosa, que se extinguiram em meados dos anos 50 após a morte do Cacique Antônio Rosa, e da aldeia de Barreira da Princesa, aos quais se juntaram

168 alguns Javaé. Outros Karajá das aldeias setentrionais, por sua vez, teriam se mudado mais para o sul, em lugares como o Posto Heloísa Torres, a aldeia Karajá Ponta da Ilha (situada na ilha que existe entre Santa Terezinha e Macaúba), Fontoura e outras aldeias mais meridionais. Alguns deles, por fim, teriam se mudado para mais ao norte, como o povoado de Lago Grande e Barreira de Santana. Em sua análise da Marcha para o Oeste, Lima Filho (2001) mostra em detalhes como a Ilha do Bananal e o Araguaia também foram considerados pelo governo de Juscelino Kubitschek (1955-1960) como pontos estratégicos para o processo maior de ocupação do interior do país e de construção da brasilidade. O presidente tinha o objetivo de estabelecer núcleos agrícolas na região para expandir a frente agropecuária e teve a idéia, já no fim do seu governo, de inaugurar um luxuoso hotel na Ilha do Bananal, ao lado da aldeia Karajá Santa Isabel, como forma de estimular o turismo naquele que era considerado um verdadeiro paraíso de caça e pesca. Dentro desse contexto, a ilha foi transformada no Parque Nacional do Araguaia no fim de 1959. O presidente visitou a aldeia Santa Isabel em maio de 1960 e, logo a seguir, foi deflagrada a Operação Bananal, definida por Lima Filho (2001:100) como “o último desdobramento” do plano de metas desenvolvimentista do governo JK. Em poucos meses, a Fundação Brasil Central foi encarregada de construir ao lado da aldeia Santa Isabel o Hotel JK, projetado por Oscar Niemeyer, uma grande pista asfaltada para aviões, uma base militar da Força Aérea Brasileira, um hospital indígena, uma escola primária e a residência oficial onde Juscelino e sua comitiva se hospedavam em suas expedições de caça e pesca, conhecida como Alvoradinha. O hotel e o Alvoradinha, parte do “capricho modernista” (2001:97) de Kubitschek, e a própria Fundação Brasil Central entraram em decadência nos governos militares que se seguiram a partir de 1964, mas a invasão de várias centenas de trabalhadores ao local contribuiu para a expansão de casas, bares, doenças, violência e prostituição na vizinha São Félix do Araguaia, cuja influência foi sentida diretamente pelos Karajá66. Segundo Chiara (1970), muitos dos Karajá que viviam ao sul da Ilha do Bananal mudaram-se para Santa Isabel depois da construção da pista de avião, do hotel, que atraía possíveis compradores de artesanato, e do hospital indígena.

66 Ver Aureli, (1963), Chiara (1970), Tavener (1973), FUNAI (1975), Lima Filho (1994, 2006), Pétesch (2000).

169 O Instituto Lingüístico de Verão (SIL), de origem norte-americana, iniciou sua atuação missionária entre os Karajá em 1958, o que resultou na tradução da bíblia para a língua Karajá e em um grande projeto de alfabetização bilíngüe (Programa de Educação Bilíngüe-Bicultural do Araguaia) nos anos 70 e 80, que teve grande repercussão entre os Karajá e Javaé (ver Maia, 2001a). No censo realizado em 1962 e 1963 pelos lingüistas do SIL, David e Gretchen Fortune (1986), foram encontradas 33 aldeias dos Karajá, Javaé e Xambioá e apenas 900 falantes da língua Karajá. Mas segundo dados do SPI de 1964 (Malcher, 1964:193), a população total dos Karajá, Javaé e Xambioá totalizava cerca de 1200 pessoas e os Karajá moravam em 19 aldeias. A lista a seguir começa do lugar mais meridional e segue rumo ao norte:

Aruanã (Goiás) Cocalinho (Mato Grosso) Tarumã (Mato Grosso) Bandeirante (Goiás) Luiz Alves (Goiás) São Pedro (Ilha do Bananal) Barreira de Xavante (Mato Grosso) Barreira de Pedra (Ilha do Bananal) Santa Isabel (Ilha do Bananal) Fontoura (Ilha do Bananal) Mato Verde (Mato Grosso) Crisóstomo (Ilha do Bananal) Jatobá (Ilha do Bananal) Barra do Tapirapé (Mato Grosso) Rosário (Ilha do Bananal) Santa Terezinha (Mato Grosso) Macaúba (Ilha do Bananal) Barreirinha (Mato Grosso) Lago Grande (Ilha do Bananal)

Algumas informações, no entanto, não eram corretas, pois Barreirinha é mais ao norte de Lago Grande, situada já no Pará, e Lago Grande estava no lado do Mato Grosso. Nos anos 60, incentivadas pelos financiamentos oficiais da SUDAM, imensas propriedades agropecuárias de moradores ricos do sul do país começaram a ocupar a margem oeste do médio Araguaia, como a pioneira Fazenda Suiá-Missú, que chegou ao

170 centro do território dos Xavante setentrionais (atualmente Terra Indígena Marãiwatséde) no começo dos anos 60, tornando-se o maior latifúndio brasileiro nos anos 70 (Rodrigues, 1992); e as grandes fazendas da CODEARA (Companhia de Desenvolvimento do Araguaia) e da Tapiraguaia, alojadas no território dos Tapirapé e Karajá (ver Wagley, 1988) e que impulsionaram o crescimento de Santa Terezinha. Tendo como pano de fundo os governos militares que se instalaram no Brasil, teve início uma série de graves conflitos e disputas pela terra entre os grandes proprietários, de um lado, e os posseiros e índios da região, de outro. Os camponeses e os índios foram apoiados em suas demandas pela Igreja católica, cujo principal representante local deixou de ser a atuação missionária indigenista dos dominicanos de Conceição do Araguaia e passou a ser a ação fortemente politizada da Prelazia de São Félix do Araguaia, envolvida com os ideais da Teologia da Libertação e os movimentos sociais. Na viagem realizada em 1966, antropólogo Tavener (1966) visitou todas as aldeias Karajá, com exceção da aldeia em Aruanã, e verificou a existência de 15 aldeias (com mais de uma família), com um total de 791 pessoas. O autor constatou que praticamente todos os Karajá das aldeias do norte da Ilha do Bananal (entre Santa Terezinha e a ponta norte da ilha, aproximadamente, em ambas as margens do Araguaia) já estavam vivendo em Macaúba. Outros Karajá, entretanto, ainda continuavam vivendo em lugares além da ponta norte da ilha, como Barreira da Princesa, Barreira de Santana e Araguacema. Na lista a seguir, começando do lugar mais setentrional em direção ao sul, tem-se a população de cada lugar:

Araguacema (antiga Santa Maria) - 8 Barreira de Santana (atual Santa Maria das Barreiras) - 6 (Barreira da) Princesa - 23 Lagoa Grande - 12 Santa Terezinha - 18 Macaúba - 147 Ponta da Ilha (refere-se à ilha existente em frente à aldeia de Macaúba) - 16 (Posto) Heloisa Torres - 48 “Crisoste” - 14 Mato Verde - 57 Fontoura - 178 Santa Isabel - 212 Fazenda Teles - 15 Barreira de Pedra - 22

171 Fazenda São Pedro - 15 Aruanã - ?

As três aldeias da Ilha do Bananal ao sul de Santa Isabel (Fazenda Teles, Barreira de Pedra e Fazenda São Pedro) tinham sido fundadas recentemente por moradores de Santa Isabel. E das 8 pequenas aldeias vistas por Krause ao sul da ilha, em 1908, restava agora apenas a de Aruanã. O autor especulou que, provavelmente, a maioria dos moradores das aldeias meridionais se extinguiu em razão de doenças e não em função de migrações, uma vez que havia apenas 5 deles morando em Santa Isabel. Tavener constatou ainda que havia um menor número de regionais brasileiros ao norte da Ilha do Bananal do que ao sul; que 84% da população Karajá estava concentrada então na “seção central do território Carajá” (1966:7), entre as aldeias de Santa Isabel e Macaúba; e que 55% dessa população da zona central estava confinada em apenas duas aldeias, Fontoura e Santa Isabel. O autor (1966: 9) concluiu que, em comparação ao que Krause encontrou em 1908, “as aldeias menores desintegraram-se por meio de um movimento para os centros maiores, para onde os povoados brasileiros ou os serviços sociais e espirituais chegaram”. Os adventistas do Sétimo Dia reativaram seu trabalho em Fontoura após a segunda Guerra Mundial (Pinheiro, 1994). Em 1966 havia missionários de filiações diversas atuando nas aldeias Santa Isabel, Fontoura, Mato Verde e Macaúba, e a mudança de aldeias inteiras para as praias de verão já tinha se tornado rara (Tavener, 1966). Enquanto os missionários da Novas Tribos encorajavam a criação de gado pelos Karajá de Macaúba, o que nunca teve sucesso, os adventistas de Fontoura estimulavam a pesca comercial, atividade mais compatível com as características econômicas e culturais do grupo, além da venda de peles de jacaré e outros animais. Nos anos 60, muitos Karajá mudaram-se para Fontoura, atraídos pela missão (Donahue, 1982), e alguns índios estudaram com os adventistas no interior de São Paulo (Pinheiro, 1994, Pétesch, 2000). Nos anos 70, foram realizados batismos e conversões e, em 1993, formou-se um pastor Karajá adventista, embora o posto missionário tenha sido desativado. Nos últimos anos, os Karajá de Fontoura não aceitaram mais missionários vivendo em sua aldeia. Em 1992, um grupo de Karajá adventistas desmembrou-se da aldeia Santa Isabel e fundou a Aldeia JK, perto das ruínas do antigo hotel de turismo (Lima Filho, 1994, 2001).

172 Em um outro trabalho, Tavener (1973) pesquisou o tema da mudança social entre os Karajá na segunda metade dos anos 60 e testemunhou que, pelo fato de existirem poucos lugares permanentemente secos nas margens do Araguaia, o antigo território Karajá já não possuía mais lugares à salvo da inundação desocupados. Praticamente todos os pontos secos do médio Araguaia estavam ocupados por pequenos povoados, sedes de fazendas dedicadas à criação de gado, cujos donos, em sua maioria, não moravam na região, ou missões. Grande parte das aldeias Karajá estava próxima a algum desses agentes de mudança, com os quais os Karajá procuravam ativamente manter relações de troca, incluindo os postos do SPI nas aldeias. Os rios, lagos e matas outrora livres eram agora considerados como propriedade particular pelos donos de fazenda, que dificultavam o acesso dos Karajá aos recursos naturais do seu antigo território. O autor apontou as falhas da atuação do SPI, que estava então muito mais preocupado com a criação lucrativa de gado na Ilha do Bananal e arredores do que com a proteção efetiva do território indígena das crescentes invasões. Os Karajá já alugavam há tempos o seu trabalho aos “mariscadores”, chamados de “empreiteiros da pesca” por Maria Luísa Fénelon Costa (1978:18-19), que pesquisou a famosa cerâmica Karajá nos anos 50 e 60. Conforme a autora, porém, os pescadores indígenas competiam em condições desfavoráveis com os sertanejos locais, que usavam com melhor perícia a rede de pesca de náilon, recentemente introduzida, e eram assim preferidos pelos compradores de peixe. A venda de produtos artesanais tornou-se uma necessidade para satisfazer as novas necessidades surgidas com o contato. Tavener (1966) menciona que, na mesma época, a antes farta pescaria começava a ficar mais difícil e que os brasileiros, apesar da proibição legal, tinham o horripilante hábito de dinamitar os lagos e afluentes do Araguaia em busca do pirarucu. Os Karajá de então se recusavam a usar tais métodos destrutivos, mas passaram a empregar técnicas novas em função da pesca comercial, que obrigava os homens a se ausentarem por períodos mais longos da aldeia e, assim, dedicar menos tempo às atividades rituais e à agricultura. Em 1966, a Fazenda Teles, onde moravam alguns Karajá, era o centro da pescaria comercial. Fénelon Costa (1978) estimou a população Karajá em pouco mais de 1.000 pessoas em 1968. O antropólogo norte americano George Donahue (1982) pesquisou os Karajá das aldeias Macaúba, Fontoura e da foz do Tapirapé por cerca de 12 meses em 1976 e 1977,

173 concluindo que, apesar de uma primeira aparência de pobreza, acompanhada de casos de alcoolismo e prostituição, o que levou muitos dos viajantes do Araguaia a preverem o fim iminente dos Karajá, incluindo o próprio Tavener (1966), a realidade mais profunda e persistente era que o grupo continuava a existir em suas próprias aldeias e a manter seus costumes e crenças, a despeito de cerca de 400 anos de contato com a sociedade nacional. “Mais significante, embora não seja aparente, é a tenacidade e totalidade com a qual eles continuam a manter uma visão tradicional sobre si próprios e o mundo” (Donahue, 1982:6). Em razão de fatores tanto internos, relativos à cultura Karajá, como externos, o grupo conseguiu o que o autor chama de uma “acomodação independente” (Donahue, 1982:8) em relação à sociedade envolvente, o que não significa ausência de mudanças significativas. Ainda segundo as palavras de Donahue, os Karajá estão adaptados há muitos séculos ao meio ambiente do Araguaia, cujo regime de inundações foi, em certa medida, um impeditivo histórico à colonização mais intensa da região. Por meio da tradição oral Karajá, pode-se concluir definitivamente que o grupo não é novo no Araguaia, onde esteve morando estavelmente por um longo período. Além disso, os índios do Araguaia não sofreram uma demanda de trabalho indígena tão forte como aquela que impactou grupos envolvidos nos ciclos de borracha da Amazônia, por exemplo. Os Karajá não se misturaram com a população brasileira e não foram integrados à população “cabocla” do Brasil rural, apesar de terem sofrido uma perda de mais de 90% da população original desde o início do contato, com conseqüências drásticas para a vida política, ritual e econômica. A população Karajá estabilizou-se por volta do início do século 20, atingindo cerca de 1.500 pessoas na época de sua pesquisa. O SPI foi extinto em 1968 e a FUNAI, o novo órgão indigenista, fundou postos nas aldeias Fontoura e Macaúba no início dos anos 70 (Bueno, 1987, Toral, 1992). No que se refere à presença do Estado, Donahue (1982) testemunhou nos anos 70 que, nas aldeias Karajá, era comum encontrar os restos mal-aproveitados dos investimentos feitos pelo governo em “projetos” sociais e econômicos que não tinham continuidade, tais como tratores e máquinas de costura quebrados, cercas de rebanho bovino caindo e um hotel de turismo deserto. E que há pouco tempo o governo começara a pagar salários aos índios que desempenhavam funções diversas, como os guardas indígenas, agentes de saúde, pilotos de

174 barco etc, além dos “capitães” Karajá, que recebiam salários desde a histórica visita do Presidente Vargas a Santa Isabel. A partir dos anos 80, os Karajá foram estudados de forma mais aprofundada pelos antropólogos André A. Toral (1992), Manuel F. Lima Filho (1994, 2001) e Nathalie Pétesch (1992, 2000). Em 1986, os lingüistas Fortune & Fortune (1986) estimaram em 2.700 os falantes da língua Karajá (Karajá, Javaé e Xambioá). Toral (1992) pesquisou os Karajá, Javaé e Xambioá entre 1978 e 1991, calculando em pouco mais de 2.400 pessoas a população dos três grupos em 1992. O autor visitou todas as aldeias Karajá, com exceção das existentes na então Barreira de Santana (atual Santa Maria das Barreiras), situada no município de Santana do Araguaia, e apresentou o seguinte quadro referente às aldeias (no sentido norte/sul) e sua população nos anos 80:

Karajá setentrionais: Santana do Araguaia – 27 (FUNAI, 1983) Barreira de Campo – 15 (Toral, 1980) Lago Grande – 20 (Toral, 1980) Macaúba – 285 (FUNAI, 1988)

Karajá da região mediana da Ilha do Bananal: Barra do Tapirapé – 81 (FUNAI, 1988) Aldeia Nova (Erehení, no Rio Tapirapé) – 32 (Toral, 1988) São Domingos – 93 (Toral, 1988) Fontoura – 485 (FUNAI, 1988) Santa Isabel – 467 (FUNAI, 1988) Barreira da Mirindiba – 24 (Toral, 1980)

Karajá meridionais: Luiz Alves – 24 (Toral, 1980) Mata Corá – 4 (Toral, 1980) Cocalinho – 5 (Toral, 1980) Aruanã – 26 (Toral, 1980)

Total – 1.588

As aldeias do que Toral chama de “região mediana”, com exceção da aldeia Mirindiba, reuniam a população de antigas aldeias que ainda existiam no começo do século 20: as pequenas aldeias nas proximidades da foz do Rio das Mortes, as aldeias próximas à

175 atual São Domingos e as aldeias de “Crisóstemo I ou Krumare (Uèbero), Crisóstemo II (Tolohoky), Jatobá e Wabe (no Riozinho, interior da Ilha)” (Toral, 1992:24). Segundo o autor, as grandes aldeias Santa Isabel, Fontoura e São Domingos, no entanto, têm origem anterior a 1900. No que se refere aos Karajá meridionais, que chegaram ao sul da Ilha do Bananal atraídos pelos núcleos de colonização do século 19, Toral (1992:29) observou que “a migração rumo sul cessou por volta de 1940, com uma relativa fixação de seus habitantes e, desde então, um contínuo decréscimo no número de aldeias”. Os locais de habitação permanente nos anos 80, em geral ao lado de povoados regionais, com quem disputam a terra para “roças, cemitérios e moradias”, eram em número bem menor que o observado por Krause em 1908. Segundo dados obtidos por mim em 2007, a aldeia Mirindiba, a mais meridional da Ilha do Bananal, foi fundada em 1971 em frente à foz do Rio Cristalino, um ponto estratégico para pescarias, e é considerada pelos Karajá como a sua aldeia mais “misturada”, onde uma maioria de não-índios vive junto com os Karajá. Os Karajá setentrionais, por sua vez, definidos pelo autor como aqueles que moram ao norte da foz do Rio Tapirapé, viviam anteriormente em uma grande quantidade de pequenas e móveis aldeias que deram origem à aldeia Macaúba e aos grupos locais existentes em Lago Grande, Barreira de Campo e “Santana do Araguaia” (Barreira de Santana), encontrados por Toral nos anos 80. “As aldeias que existiram intermitentemente desde o início do século e que lhes darão origem são as (do sul ao norte): Tyteijo, Rosário, Kanana Nabirè (Santa Terezinha), Macaúba (Heryrí), Furo de Pedra, Lago Grande (Renoy), Barreira de Campo (Èhuho), Santana do Araguaia, Berobiò, Conceição do Araguaia; e fora do Araguaia: Jatobá, no rio Javaés e Wabe, no Riozinho, no interior da Ilha” (Toral, 1992:33). Toral lembra ainda que a porção norte da Ilha do Bananal, tanto no passado mais distante como na década de 80, era caracterizada por aldeias de população mista, onde viviam juntas famílias Karajá e Javaé que pescavam nos mesmos lugares. O autor argumenta que o estabelecimento permanente das aldeias setentrionais visitadas por ele nos anos 80 estava relacionado com três fatores preponderantes: as trocas comerciais e o acesso a tratamentos de saúde junto aos novos núcleos regionais e missões; a excelência de locais

176 de pesca e a possibilidade de comercialização de pirarucu salgado; e, por último, o afastamento dos inimigos Kayapó que atacavam as aldeias Karajá. Em 1989, Manuel F. Lima Filho (1994) morou na aldeia Santa Isabel por seis meses, onde pesquisou o ritual de iniciação Karajá. No ano de sua pesquisa, um grupo de 70 pessoas saiu da aldeia Macaúba, em razão de divergências internas, e fundou a aldeia São Raimundo, de curta duração, a alguns quilômetros rio acima, nas proximidades de Inỹsèdyna, o local de origem mítica dos Karajá. Baseado principalmente em dados da FUNAI, de 1990, Lima Filho descreveu todas as 14 aldeias em que os Karajá estavam distribuídos, no sentido sul/norte, e a sua população respectiva (em torno de 1.400 pessoas):

Aruanã – 48 Ilha de Mata Corá – uma família Cocalinho – 5 Karajá perto da cidade de Cocalinho Barreira de Merindiba – um pequeno grupo Karajá junto com alguns ribeirinhos brancos Santa Isabel – 401 Fontoura – 350 São Domingos – 108 Barra do Rio Tapirapé – duas pequenas aldeias Karajá somando 136 pessoas Macaúba – 197 São Raimundo – 70 Lago Grande – 20 Barreira de Campo – 15 Santo Antônio e Maranduba – as duas aldeias do município de Santana do Araguaia somando 40 pessoas

A antropóloga francesa Nathalie Pétesch (1992, 2000) pesquisou os Karajá por 12 meses entre 1985 e 1998 e afirmou que a mitologia Karajá não deixa nenhuma dúvida de que os Karajá consideram o vale do Araguaia como o seu lugar de origem remota. E que os pontos de confluência do Araguaia com seus principais afluentes no território Karajá (foz dos rios Tapirapé, Rio das Mortes, Cristalino, Crixás, Rio dos Peixes e Rio Vermelho) eram os lugares de ocupação permanente que permitiam o controle do acesso aos recursos aquáticos. Em 1998, os Karajá estavam distribuídos em 12 aldeias principais, segundo a autora (2000:36):

Ilha do Bananal Santa Isabel do Morro Fontoura

177 Macaúba Mirindiba

Na altura da ilha (fora) Tytema Itxalá São Domingos Lago Grande Acima da ilha Luis Alvez Aruanã

Abaixo da ilha Santo Antonio Barreira de Campo

Pétesch relata que a mesma “carência administrativa” descrita por Tavener (1973) em relação ao SPI podia ser observada, de modo ampliado, em relação à FUNAI dos anos 90, que teria fracassado em relação aos seus principais objetivos: manutenção da integridade territorial, prestação de assistência médica e garantia de uma economia comunitária auto-suficiente. Com uma degradação crescente das condições econômicas e sanitárias no século 20, incluindo a intensificação do alcoolismo e o surgimento de casos de suicídio, a maior parte dos Karajá dependia da assistência da FUNAI e dos pequenos centros urbanos vizinhos para a sobrevivência. O abandono progressivo da agricultura tradicional praticada pelos grupos domésticos, que muitas vezes a FUNAI tentou substituir pelos projetos comunitários de monocultura, sem sucesso, e o desinteresse pela criação de gado, que o SPI tentou impor, foram acompanhados pela comercialização crescente do peixe e do artesanato nativo, que se tornaram a “principal atividade econômica e fonte de renda” dos Karajá (Pétesch, 2000:26). No que se refere à situação sanitária do grupo, Pétesch identificou uma melhora considerável depois que o Ministério da Saúde assumiu a saúde indígena e construiu poços artesianos nas aldeias, embora as patologias parasitárias, respiratórias (asma e gripe), as doenças sexualmente transmissíveis, a tuberculose e a malária continuassem a vitimar os Karajá. Segundo a autora, praticamente todos os adultos de 30 a 50 anos eram portadores do bacilo de Koch e 80% das pessoas das aldeias mais setentrionais já tinham contraído malária em alguma época da vida. O empobrecimento do regime alimentar contribuía para

178 uma maior vulnerabilidade física do grupo, associada a uma taxa de natalidade baixa, mortalidade infantil elevada e esperança de vida encurtada. A autora considera que as principais transformações vividas pela sociedade Karajá nos anos 90 eram o aumento da “funcionarização” (Pétesch, 2000:35) ou procura de empregos assalariados pelos jovens junto às agências do Estado (FUNAI, órgãos de educação ou saúde); um interesse renovado pela religião protestante, em especial a adventista; e o inchaço das grandes aldeias em razão da tentativa de várias famílias de viver próximas dos vilarejos brasileiros. Como pode ser constatado até aqui, desde o fim do século 19 são inúmeros os registros sobre a presença inquestionável de aldeias Karajá permanentes e transitórias em ambas as margens do médio Araguaia, aqui definido como o longo trecho entre Aruanã, na foz do Rio Vermelho, antiga Santa Leopoldina, e Araguacema, antigo presídio de Santa Maria, aproximadamente (ver mapas n° 2, n° 4 e n° 5). Mas os registros confiáveis sobre a presença antiga dos Karajá em toda a Ilha do Bananal e arredores – que desde 1680, aproximadamente, é conhecida como a “Ilha dos Karajá” – remontam ao início do século 17, pelo menos. E há mais de 200 anos repetem-se os relatos de pessoas que encontraram aldeias e agrupamentos Karajá na altura da porção norte da Ilha do Bananal e ao norte da Ilha do Bananal, muito antes das frentes de expansão da sociedade nacional instalarem-se definitivamente na região. A partir do século 20, intensificam-se as descrições mais detalhadas sobre a localização e os nomes das aldeias, que confirmam sem sombra de dúvida os relatos orais dos Karajá. Há uma impressionante coincidência, em termos gerais, entre o que está escrito e o que é transmitido pela memória oral Karajá, que é muito mais rica em detalhes no que se refere à localização e história das antigas aldeias permanentes de inverno e à extensão do território ocupado pelo grupo.

– Aldeias e população no Século 21

Recentemente, em 2006, a antropóloga Rita Heloísa de Almeida (2006a, 2006b, 2007), da FUNAI (Brasília), realizou um levantamento oficial de dados populacionais e

179 sócio-econômicos em todas as aldeias Karajá entre Aruanã e Macaúba. A pesquisa revelou uma das novas facetas do contato interétnico, que é o número expressivo (156) de índios Karajá morando permanentemente nos centros urbanos regionais, em sua maioria para estudar ou trabalhar, e sobre os quais se sabe muito pouco. Cerca de 40% da população indígena concluiu ou está cursando o ensino fundamental e várias pessoas agora têm diplomas de curso superior ou estão estudando em faculdades. Os Karajá do século 21 continuam a obter renda majoritariamente por meio da pesca comercial e da venda de artesanato, mas há uma procura cada vez maior por empregos assalariados e algumas aldeias, nos últimos anos, como Santa Isabel, Macaúba e as da foz do Rio Tapirapé, têm permitido o aluguel de pastagens naturais situadas nas áreas sob seu controle aos fazendeiros não-índios, assunto a ser retomado. No levantamento feito, constatou-se também a existência de novas pequenas aldeias, como “Hurehawa”, “Nova Tytemã”, “JK”, “Watau”, “Kawixé”, “Teribré”, “Hawalorá” e “Maytyri”, fundadas a partir dos anos 90. Em 2007, foi fundada a aldeia Ibutuna, ao lado de Macaúba. Em praticamente todos os casos, a fundação das pequenas aldeias está associada a conflitos nos locais antigos de moradia. Pode-se perceber que o movimento geral de concentração dos remanescentes Karajá, sobreviventes de epidemias, em poucas e grandes aldeias durante o século 20, na maior parte estimulados pelas agências externas, agora dá lugar a um movimento de relativa dispersão de grupos menores para outras aldeias vizinhas e para os centros urbanos. Atualmente, a FUNAI se relaciona com os Karajá por meio dos seguintes postos indígenas (PIN): PIN Aruanã, vinculado à AER (Administração Executiva Regional) da FUNAI em Goiânia (GO); PIN Santa Isabel do Morro, PIN Fontoura, PIN São Domingos, PIN Tapirapé e PIN Macaúba, vinculados à AER de São Félix do Araguaia (MT); e PIN Santana do Araguaia, situado em Santa Maria das Barreiras (PA) e vinculado à AER de Araguaína (TO). Os quadros ao lado apresentam um resumo dos dados globais sobre a população Karajá nos séculos 20 e 21; e os dados da população Karajá em 2006, por aldeia, provenientes da FUNASA (DSEI Araguaia) e da FUNAI (Almeida, 2006a, 2006b, 2007). No item “cidades ou vilarejos” estão os centros urbanos onde os Karajá vivem atualmente e os números entre colchetes [ ], dos dados da FUNASA, incluem os Karajá que são

180 originários da aldeia em questão, mas que estão morando em cidades ou em aldeias menores vizinhas. Os dados da FUNAI relativos à população dos Karajá setentrionais, dos povoados de Lago Grande e Barreira de Campo e das aldeias Santo Antônio e Maranduba, provêm dos dados de campo que recolhi pessoalmente junto aos moradores ou à FUNAI local (P.I. Santana do Araguaia) em maio de 2007. Note-se, por fim, que há uma disparidade considerável entre os dois levantamentos, cuja razão não sei explicar, uma vez que a lista da FUNASA, mesmo sem incluir os 102 Karajá de Santo Antônio e Maranduba, contém cerca de 200 pessoas a mais.

181 Quadro n° 4 – Distribuição da população Karajá em 2006

Aldeias FUNASA FUNAI Aruanã (Buridina) (GO) [157] (inclui os moradores de Hurehãwa e 98 da cidade de Aruanã) Hurehãwa (GO) 23 Mirindiba (TO) [88] 25 Nova Tytema (TO) 70 69 Watau (TO) 48 30 JK (TO) 60 63 Santa Isabel do Morro (Hãwalò) (TO) [635] 569 Kaxiwè (TO) 24 27 Fontoura (Botõtiry) (TO) [619] 492 Teribrè (MT) 24 São Domingos (Krè Hãwa) (MT) [190] (inclui os moradores da aldeia 149 Teribrè) Itxala (MT) 185 (Karajá e Tapirapé) 191 Hãwalora (MT) 50 (Karajá e Tapirapé) 59 Maitxàri (MT) 108 (Karajá e Tapirapé) 67 Macaúba (Hèryri) (TO) [443] 369 Santo Antônio (PA) 50 Maranduba (PA) 38 Cidades ou vilarejos Aruanã (Buridina) (GO)* 29 Goiânia (GO) 4 Cocalinho (MT)* 31 (Karajá e Guarani) 19 São Félix do Araguaia (Hãwalò) 37 (MT)* Luciara (Krè Hãwa) (MT)* 1 Santa Terezinha (MT)* 12 Lago Grande (Rènowà) (MT)* [44] (inclui os Karajá de Barreira de 21 Campo) Barreira de Campo (Èhyho) (PA)* 14 Redenção (PA) 2 São Miguel do Araguaia (TO) 19 Lagoa da Confusão (TO) 1 Palmas (TO) 10 Brasília (DF) 10 São Paulo (SP) 6 Cidades não especificadas 6 Total 2752 2534

* Sítios de ocupação imemorial ou tradicional Karajá que continuam a ser habitados pelos Karajá a despeito de terem sido transformados em cidades ou vilarejos de não-índios.

182 Quadro n° 5 – População Karajá nos séculos 20 e 21 Autor Data População N° de aldeias Memória Oral Karajá Até o início Mais de 40 do século 20 Padre Gallais 1901 Menos de 1.000 Frei Gil Vilanova 1902 10 Fritz Krause 1908 815 23 SPI (Mandacaru) 1912 1.000 18 SPI (M. B. de Mello) 1927 650 10 Darcy B. de Mello 1927 3.000 Rayliane de La Falaise Começo dos 14 anos 30 Hermano R. da Silva 1932 Menos de 2.000 William Lipkind 1939 795 20 Zoroastro Artiaga 1940 706 18 ou 20 Tilbor Sekelj 1945 600 Othon Machado 1945 18 Pastor McIntyre 1945 Menos de 700 Herbert Baldus 1947 12 Mário F. Simões 1958 18 Fortune & Fortune 1962/1963 Cerca de 900 (Karajá, 33 aldeias (Karajá, Javaé e Javaé e Xambioá) Xambioá) SPI (Malcher) 1964 1.200 (Karajá, Javaé 19 e Xambioá). Tavener 1966 791 15 Fénelon Costa 1968 Mais de 1.000 George Donahue 1977 1.500 Fortune & Fortune 1986 2.700 (Karajá, Javaé e Xambioá) Marielys Bueno 1987 8 principais André Toral Anos 80 1.588 14 Manuel F. Lima Filho 1990 Cerca de 1.400 15 Nathalie Pétesch 1998 2.500 (Karajá, Javaé 12 principais (Karajá) e Xambioá) FUNAI (Rita Almeida)* 2006 2.413 15 aldeias mais centros urbanos FUNASA 2006 2.752 FUNASA 2007 2.927

* O número total não inclui os moradores das aldeias Santo Antônio e Maranduba, que são considerados por Almeida (2007) como parte dos Xambioá ou Karajá do Norte, nem os Karajá de Lago Grande e Barreira de Campo.

183 O quadro seguinte (ver Mapa n° 2) inclui todas as 18 aldeias atuais onde os Karajá estão morando, em quatro estados, e os sítios de aldeias antigas, ocupados por pequenos povoados (Cocalinho, Lago Grande e Barreira de Campo), onde os Karajá ainda vivem, embora agora junto com os não-índios. As datas de fundação das aldeias Buridina, Hurehãwa e Santa Isabel, ou a época em que famílias Karajá começaram a morar no povoado Cocalinho, originam-se de dados da literatura já citada. Todas as outras datas de fundação de aldeias provêm dos meus dados de campo. Os dados de população referem-se ao mês de dezembro de 2007 e provêm da FUNASA, por meio do DSEI Araguaia (Pólo Base Indígena de Goiânia, de São Félix do Araguaia e de Santa Terezinha) e do DSEI Tocantins (Pólo Base Indígena de Santa Fé do Araguaia, que atende aos Karajá do Pará, das aldeias Santo Antônio e Maranduba). Os dados populacionais de Aruanã (aldeia Buridina) incluem os Karajá da aldeia Hurehãwa e da cidade de Aruanã. O censo da FUNASA inclui a população de Barreira de Campo nos dados sobre Lago Grande (total de 39 pessoas), mas eu apresento os dados separadamente, pois estive nas duas aldeias, constatando pessoalmente que os Karajá de Barreira de Campo somam 14 pessoas (incluindo 4 cônjuges não-índios). Não sei informar se nos dados da FUNASA estão incluídos os Karajá que vivem em centros urbanos vizinhos. No entanto, o censo discrimina, pela primeira vez, 92 Karajá morando na cidade de Aragarças (GO), situada às margens do alto Araguaia.

184 Quadro n° 6 – Aldeias Karajá atuais (dezembro de 2007)*

Aldeia Data de Situação atual População atual fundação Aruanã Início do Aldeia na T.I. Karajá de Aruanã I, cercada 190 (Buridina) século 20 pela cidade de Aruanã (GO). Hurehãwa 2006 Aldeia da T.I. Karajá de Aruanã III, no município de Aruanã (GO). Cocalinho Início do Famílias Karajá morando no povoado 40 (Karajá e século 20 Cocalinho (MT). Guarani) Mirindiba 1971 Aldeia na TIPA (TO). 87 Nova Tytema 2000 Aldeia na TIPA (TO). 71 Watau 1997 Aldeia na TIPA (TO). 44 JK 1992 Aldeia no PIA (TO). 63 Santa Isabel 1927 Aldeia na TIPA (TO). 653 (Hãwalò) Kaxiwè 1995 Aldeia na TIPA (TO). 24 Fontoura Segunda Aldeia na TIPA (TO). 612 (Botõiry) metade do século 19 Teribrè 2004 Aldeia na T.I. São Domingos (MT). 50 São Domingos 1983 Aldeia na T.I. São Domingos (MT). 172 (Krè Hãwa) Itxala (nova) Início dos Aldeia na T.I. Tapirapé/Karajá (MT). 204 (Karajá e anos 40 Tapirapé) Hãwalora 1987 Aldeia na T.I. Tapirapé/Karajá (MT). 64 (Karajá e Tapirapé) Maitxàri 1993 Aldeia na T.I. Tapirapé/Karajá (MT). 78 (Karajá e Tapirapé) Macaúba (Hèryri 1956 Aldeia na TIPA (TO). 393 Hãwa) Ibutuna 2007 Aldeia na TIPA (TO). 63 Lago Grande Anterior ao Famílias Karajá morando no povoado de 25 (Rènowà) século 20 Lago Grande (MT). Barreira de Anterior ao Famílias Karajá morando na cidade de 14 Campo (Èhyho) século 20 Barreira de Campo (PA). Santo Antônio 1971 Aldeia na T.I. Santo Antônio, do lado 47 (sul) da cidade de Santa Maria das Barreiras (PA). Maranduba Primeira Aldeia na T.I. Maranduba, do lado (norte) 33 metade do da cidade de Santa Maria das Barreiras século 20 (PA). Total 2.927

* T.I. significa “Terra Indígena”. TIPA significa “Terra Indígena Parque do Araguaia” e refere-se às aldeias situadas na Ilha do Bananal.

185 5. Os Javaé após 1900

– A primeira metade do Século 20: grandes epidemias e perdas populacionais

Como já foi dito no item anterior, em 1908, o etnógrafo alemão Fritz Krause (1940- 1944) desceu o Araguaia e produziu um importante relato sobre os Karajá e Javaé. O pesquisador alemão conseguiu visitar por alguns dias uma pequena aldeia Javaé interiorana no norte da Ilha do Bananal, acompanhado de guias Karajá, onde seria recebido, segundo o seu relato, como o primeiro branco visto pelos moradores (Krause, 1941a, 1943b, 1943c). Krause foi recepcionado pelos Javaé – que já sabiam de sua presença entre os Karajá e o haviam convidado para uma visita – com grande afabilidade e de acordo com o formalismo polido que caracteriza a etiqueta social Javaé, da qual fez parte uma luta ritual entre os visitantes Karajá e os Javaé. O etnógrafo impressionou-se com a limpeza e a riqueza dos moradores, entre 100 e 150 pessoas distribuídas em 5 casas, além da qualidade superior das instalações de moradia e dos adornos utilizados, quando comparados aos dos Karajá. Segundo as informações obtidas in loco, os Javaé morariam em 3 aldeias principais no centro da ilha, uma delas “do tamanho duma cidade” (Krause, 1943b:187), com cerca de 6 fileiras de 20 a 25 casas cada. Contando com outras duas aldeias menores situadas ao sul e ao norte das aldeias centrais, Krause estimou a população Javaé entre 800 e 1000 pessoas. O autor assinalou as relações pacíficas entre os Karajá e Javaé, sustentadas por casamentos e “intensas trocas de mercadorias”, uma vez que os Javaé eram tidos como “ricos em enfeites e gêneros alimentícios”, ao passo que os Karajá tinham acesso em primeira mão aos objetos de ferro, tecidos e miçangas cobiçados pelos Javaé (1943b:188). Dessa visita resultaram importantes informações etnográficas sobre os dois grupos, considerados pelo autor como culturalmente idênticos, apesar das pequenas diferenças observadas. Na já mencionada visita pioneira que o SPI fez ao Araguaia e aos Karajá em 1911/1912, jornais da época, como “O Paiz”, louvaram o feito do Inspetor Francisco Mandacaru em encontrar aldeias dos Javaé, “até então desconfiados e esquivos a todo o

186 contacto com os civilisados”67. O inspetor Mandacaru “foi hóspede de uma poderosa porção de javahés que ficaram tomados de pasmo quando o viram chegar. Foi bem tratado pelos javahés, tratamento que correspondeu com mimos que os filhos da selva recebiam joviais”68. O inspetor do SPI visitou “seis aldeias de Javahés em diversos pontos da Ilha do Bananal, com seiscentos habitantes” no total69. Os Javaé – descritos ora como “exemplo de moral e modêlo de honestidade” ora como “de índole pacífica, muito ordeiros e intelligentes” – receberam roupas para serem fotografados junto à bandeira nacional70. Nas primeiras décadas do século 20, teve início um contato cada vez mais intensivo com a população regional, através de mineradores em busca de cristal de rocha, criadores de gado de origem predominante do Maranhão, Piauí e Goiás, que começaram a penetrar a Ilha do Bananal, e pescadores e caçadores de pele, em especial a de jacaré. Como já disse Toral (1981:72), a atividade mineradora trouxe um “pequeno surto de desenvolvimento” à região, entrando em decadência logo depois e sendo substituída pela pecuária. Em 1990, conheci um dos primeiros moradores não-índios de dentro ilha, que havia chegado ao Rio Jaburu para a atividade pecuária ainda nos anos 30, assim como um fazendeiro da região de Lagoa da Confusão (TO), o Sr. Nilo Sardinha, ex-garimpeiro, que dizia ter sido o que primeiro incentivou os Javaé do Rio Loroti a vender pirarucu salgado e peles de jacaré na década de 40 (Rodrigues, 1993). Toral (1992, 1999) calcula que regatões paraenses entraram na ilha, atingindo o Riozinho e afluentes, nos anos 30, quando então compravam peles de animais dos Javaé em troca de mercadorias pelo sistema de aviamento. O jornalista Hermano Ribeiro da Silva (1935) encontrou quatro barcos de comerciantes paraenses no Araguaia em 1932. A descoberta de cristal de rocha propiciou a fundação de vilarejos na região a leste do Rio Javaés (ver Mapa n° 2), cuja população, com o fim da mineração, passou a viver majoritariamente da agropecuária. A atual cidade de Cristalândia, com cerca de 7.000 habitantes, surgiu na região em que um grupo de garimpeiros descobriu grandes jazidas de cristal de rocha em 1939, fundando o povoado da Chapada, que em 1953 seria batizado de Cristalândia e se tornaria o centro de um município emancipado do grande e antigo

67 Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotograma n° 21). 68 Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotograma n° 9). 69 Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotograma n° 10). 70 Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotogramas n° 10, 11 e 15).

187 município de Porto Nacional. Um dos Javaé mais idosos de Canoanã, atualmente com mais de 90 anos, abandonou a aldeia Wariwari na juventude em razão de conflitos internos e chegou a trabalhar em um dos garimpos da região de Cristalândia por alguns meses. Há registros sobre grupos de Javaé visitando o garimpo de Pium, mais ao norte, em 1946, para realizar trocas com os garimpeiros (Aureli, 1962b). Uma notícia do Jornal do Brasil, de 21.6.1945, informa que “o cacique dos Javaés – Inai Cachirêrê – viajou para o Rio de Janeiro, de avião, a fim de se entender com o General Rondon. Vinha protestar contra um comerciante desta cidade que roubara à sua tribo 2.966 quilos de cristal de rocha”71. O cacique protestou também contra o “rapto de sua própria filha” de uma aldeia da Ilha do Bananal pelos garimpeiros. Formoso do Araguaia, atualmente a maior cidade vizinha dos Javaé, com cerca de 20.000 habitantes, foi fundada em 1949 por descobridores de minas de cristal. A cidade era um pequeno vilarejo até os anos 70, quando começou a se expandir consideravelmente em função de um grande projeto estadual de rizicultura (Projeto Formoso). A partir dos anos 90, o local tornou-se um centro de pesca amadora na região, passando a contar com infra- estrutura turística para tal. A cidade tem o nome do maior afluente da margem direita do Rio Javaés, o Rio Formoso do Araguaia, chamado pelos Javaé de Toriuhu Bero, “Rio dos Antigos Brancos”, porque os primeiros não-índios que chegaram à região vieram dessa direção, ou simplesmente de Tori Bero (“Rio dos Brancos”)72. Dueré é atualmente uma pequena cidade com menos de 5.000 habitantes, mas foi um dos maiores centros de atração de garimpeiros quando foi fundada, em 1950, por outro grupo de mineradores que descobriu jazidas de cristal na região. Segundo os Javaé, os não-índios perguntaram aos próprios Javaé pelo nome do local, recebendo a resposta de que era um lugar “dos Wèrè”, surgindo daí o nome Dueré. Outros nomes que se incorporaram ao vocabulário dos não-índios também derivam da língua Javaé, como o nome do Rio Loroti, outro afluente do Javaés, que é um aportuguesamento da palavra Làràtxi, que designava o rio em questão e a região ao redor. O nome do Rio Verdinho ou Diderrô, um afluente da margem esquerda do Rio Javaés,

71 Recorte de jornal (microfilme da FUNAI n° 382, fotograma n° 662). 72 Os dados históricos sobre as cidades do Tocantins podem ser encontrados no site www.terratocantins.com.br e os dados populacionais (de 2006), no site do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

188 abaixo da foz do Loroti, deriva do nome original que os Javaé dão ao rio, Dejueho (ver no Mapa n° 3 os rios mencionados, incluindo o Rio Dueré). Das cidades vizinhas que foram fundadas nessa época, cito ainda Gurupi, localizada a uma distância maior das aldeias, mas que é um importante centro regional, sede da FUNAI local, à beira da rodovia Belém- Brasília, com cerca de 73.000 habitantes. Gurupi teve início em 1951 com a instalação de um agricultor no local, ao qual juntaram-se garimpeiros remanescentes de Dueré nos anos que se seguiram. Mais recentemente surgiram as cidades Lagoa da Confusão, o núcleo urbano mais próximo dos Javaé setentrionais, com pouco mais de 9.000 habitantes, e Sandolândia, a cidade onde estudam alguns jovens Javaé de Barreira Branca, com menos de 4.000 habitantes. A primeira é um vilarejo turístico, situado às margens de uma pequena lagoa, tida pelos Javaé como o lugar mítico de onde surgiram os Ijèwèhè, ancestrais do herói Tanỹxiwè e dos brancos. Uma maior aproximação dos não-índios foi seguida de muitas mortes nas aldeias, interpretadas pelos Javaé, nos anos 90, como produtos de rubunahakỹ, “grandes feitiços” mortais coletivos causados por comportamentos imorais dos próprios Javaé ou violações aos segredos rituais73. Como já disse Toral (1992), que encontrou apenas 286 Javaé em 1978, os dados indicam “a incrível mortandade verificada no grupo” (Toral, 1983:3, 1981) nos anos que se seguiram, atribuída pelo autor a epidemias de “crupe, sarampo e gripe” entre 1940 e 195074. Em outro texto, Toral (1999:19) situa nos anos 50 o início do consumo cada vez maior de álcool pelos Javaé e os “surtos de malária, catapora, tuberculose, doenças venéreas e gripe, que passam a se tornar crônicos”. Documentos históricos e os relatos mais recentes dos Javaé indicam, entretanto, que as epidemias entre os Javaé começaram antes dos anos 40, possivelmente através do contato com uma equipe de funcionários do SPI em 1930, posterior à do inspetor Mandacaru, e por meio das visitas dos Javaé ao posto do SPI fundado na aldeia Karajá Santa Isabel em 1927. Além disso, o pesquisador alemão Krause (1940a, 1942b) registrou que, em 1906 e 1907, uma grande epidemia de sarampo se alastrara entre os Karajá, entre os quais viviam alguns Javaé. Na viagem feita em 1932 ao Araguaia, o jornalista Hermano

73 A mesma visão sobre a decadência populacional foi relatada a Toral (1992) e é encontrada entre os Karajá (Donahue, 1982). Exemplos de interpretações xamânicas sobre o contato e as epidemias subseqüentes em Albert & Ramos (2000), em especial os artigos de Albert (1992, 2000b), Buchillet (2000) e Baines (2000). 74 Em trabalho mais recente, porém, o mesmo autor (1999) cita dados da FUNAI da época e diz que “o ponto mais negativo” da população Javaé foi o número de 353 pessoas em 1976.

189 Ribeiro da Silva (1935) testemunhou a existência de epidemias de sarampo, coqueluche, escarlatina e gripe que dizimavam aldeias. É mais do que provável que o intenso intercâmbio entre os próprios Karajá e entre os Karajá e Javaé tenha contribuído para alastrar as doenças contagiosas. O médico Haroldo C. de Oliveira (1952), por exemplo, encontrou em 1947-1950 vários casos de tuberculose aguda e deterioração da saúde bucal, além de verminoses e doenças venéreas, entre os Karajá da aldeia Santa Isabel. O médico identificou que algumas dessas doenças contagiosas foram transmitidas pelos Karajá de Porto Luís Alves, que viviam em péssimas condições sanitárias e, junto com os de Cocalinho e do Posto Indígena Heloísa Torres (na foz do Rio Tapirapé), sofriam de malárias e verminoses crônicas. Em 1947, seis Javaé moravam na aldeia Karajá apegada a Leopoldina (Baldus, 1948). Toral (1992) mostra que sempre foi comum, pelo menos no século 20, encontrar alguns Javaé vivendo nas aldeias Karajá. Os Javaé lembram com nitidez das visitas dos funcionários do SPI, registradas em relatórios oficiais dos anos 30, à aldeia Imotxi, no interior da Ilha do Bananal, cujo acesso ainda é bastante difícil na época das chuvas, devido às inundações. A população da aldeia Imotxi foi praticamente dizimada depois que os funcionários do SPI partiram, provavelmente tendo contaminado os Javaé com doenças desconhecidas. Segundo as palavras daquele que traduziu a história contada por José Wèrèkumari, um dos Javaé mais idosos:

“(...) Não teve posto, só veio o pessoal do SPI para morar com os índios. Davam roupa, as coisas de Tori (branco), facão, foice, ferramentas, panelas para mulheres. Passou o verão, começou inverno de novo... porque lá é difícil (de morar). Aí voltaram de novo. Diz que o nome do Tori era... Mauro, antigamente o povo falava ‘Maru’. (Veio) com a família, o irmão dele, Antônio”.

Manuel S. Bandeira de Mello, paulista conhecido como o “Capitão Bandeira” (Bandeira de Mello, 1982:142) e encarregado do Posto Indígena Redenção, situado na aldeia Karajá Santa Isabel, descreve em um relatório oficial de 16.01.1930 a expedição que realizou naquele mês para encontrar os Javaé depois de descer o Araguaia, atingir a ponta

190 norte da Ilha do Bananal e subir o Rio Javaés75. Na época, o SPI tinha dúvidas se os índios que habitavam o interior da ilha eram os Javaé ou os Avá-Canoeiro. O funcionário do SPI e seus guias Karajá foram levados pelos Javaé receptivos e curiosos que encontraram nas margens do Rio Javaés até a antiga aldeia Wariwari, onde encontraram 66 pessoas morando em 8 casas. O “Chefe Uachiracô” e os outros “mostraram-se muito satisfeitos, quando souberam que ia ser fundado um Posto para elles, que pediram para ser logo”. O autor relata que fez uma “distribuição de ferramentas e roupas a todos” e que encontrou um rancho de um outro grupo de 15 pessoas, da “Aldeia do Sorrocam” (provavelmente a aldeia Lòreky), onde já não morava mais ninguém. Mello menciona um total de sete aldeias na ilha, cinco das quais não visitou então por causa da enchente. Os Javaé indicaram um local no Rio Javaés, alto, seco e coberto de matas, para a fundação do novo posto. Em junho de 1930, Darcy S. Bandeira de Mello, filho do Capitão Bandeira e seu auxiliar no Posto Redenção, partiu de Santa Isabel com alguns Karajá e não- índios, por terra, “com o fim único de explorar e abrir caminho pelo interior da ilha, com destino ao local (...) escolhido para a futura fundação do Posto Felicidade Indígena, dos índios Javaé”76. No caminho, às margens do lago onde os Javaé e Karajá costumavam se encontrar, o funcionário do SPI encontrou alguns Javaé da aldeia Imotxi. O chefe do grupo convenceu-os de que era impossível, naquela época, a travessia por terra até o local escolhido para o posto, dada a quantidade de lagos, rios e áreas pantanosas no caminho. Darcy Mello decidiu então aceitar o convite para conhecer a aldeia Imotxi, a mais próxima de Santa Isabel no interior da ilha, onde encontrou “grande fartura” nas roças e foi “festivamente” acolhido, “com verdadeiro carinho e contentamento”. Nos primeiros momentos, porém, os animais de carga “causaram verdadeiro pânico entre as mulheres e meninos, por terem pela primeira vez visto tais animais”. A aldeia, situada em “lugar lindo, livre de inundações”, era composta de seis casas. A equipe tentou mais uma vez, em julho do mesmo ano, atravessar a Ilha do Bananal por terra, de Santa Isabel até o Rio Javaés77. Mas a expedição não alcançou seu objetivo e o Posto Felicidade Indígena nunca foi fundado. No livro que escreveu muitos

75 Microfilme da FUNAI n° 271, fotogramas n° 1968 a 1972. 76 Microfilme da FUNAI n° 380, fotogramas n° 69 a 71. 77 Microfilme da FUNAI n° 380, fotogramas n° 74 e 75.

191 anos depois, recordando os três anos vividos no Araguaia, Darcy Bandeira de Mello (1982:160-161) informa que os Javaé “localizavam-se às margens de córregos e lagos pelo interior da grande ilha, até o braço menor do rio” Araguaia. O autor acentuou o caráter “pacífico” e a “boa-índole” dos Karajá e Javaé, que se visitavam mutuamente com freqüência. O Capitão Bandeira informou oficialmente ao SPI, em 1.1.1931, a quantidade de machados, foices, enxadas, facões, anzóis e linhas de pesca que haviam sido distribuídos aos Javaé no posto de Santa Isabel78. Um relatório geral do Coronel Alencarliense F. da Costa79, encarregado SPI em Goiás, de 5.01.1931, enfatizava a necessidade de reativar a navegação do Araguaia com barcos a vapor, de construir uma estrada cortando a Ilha do Bananal, entre Santa Isabel e o Rio Javaés, para atingir o posto que seria destinado aos Javaé, e menciona as visitas que os Javaé estavam realizando ao Posto Redenção Indígena para “receber ferramentas de lavoura, roupas, outros auxílios materiais e a segurança moral da nossa proteção”80. As incursões do SPI às aldeias interioranas ocorreram aproximadamente na mesma época em que os missionários dominicanos, oriundos da distante Conceição do Araguaia, tentavam catequizar os Karajá e Javaé. Os Javaé ainda lembram quando alguns moradores do Wariwari foram até Imotxi, acompanhados dos missionários que queriam visitar outras aldeias, e encontraram apenas os vestígios dos corpos que foram enterrados pelos sobreviventes depois da partida dos funcionários do SPI. Segundo a memória oral Javaé, os missionários Frei Luiz e Frei Sebastião chegaram na aldeia Wariwari em um batelão, trazendo muitas roupas, facões, fósforos, tesouras, entre outros bens, para os Javaé. Na segunda viagem, depois de visitar algumas aldeias e batizar muitos índios em Wariwari, os missionários obtiveram a autorização de algumas famílias, após grande resistência dos Javaé, para levar três jovens adolescentes com eles para Conceição do Araguaia. Os meninos eram provenientes das aldeias Kyrysa Hãwa, Wyhy Raheto Dijarana e Wariwari. Partiram de Wariwari em junho e chegaram na cidade em outubro, permanecendo no local até abril do próximo ano, quando as famílias respectivas foram buscá-los. Na ocasião, os jovens já estavam aprendendo a ler.

78 Microfilme da FUNAI n° 271, fotograma n° 1942. 79 Microfilme da FUNAI n° 342, fotogramas n° 45 a 93. 80 Microfilme da FUNAI n° 342, fotograma n° 93.

192 Segundo a versão de Audrin (1946), a primeira visita dos missionários de Conceição do Araguaia aos Javaé ocorreu em 1916, quando o Frei Francisco Bigorre foi acompanhado do Frei Sebastião Tomás, vindo de Uberaba. Os missionários tentaram entrar em contato com os Javaé com o objetivo explícito de se opor à “catequese leiga” (1946:143) iniciada pelo “Dr. Mandacaru”, do SPI. Guiados por um índio Karajá, os religiosos encontraram apenas um acampamento provisório de verão nas praias do Rio Javaés, com mais de 30 habitações. Frei Francisco (apud Audrin, 1946:146-147) relatou que:

“(...) Os Javaés ali reunidos eram numerosos e pudemos assim, no prazo limitado de tempo de que dispúnhamos, obter muitas informações preciosas (...). A alguns capitães pudemos aí saudar, prometemos novas e próximas visitas e convidámo-los a chegar até Conceição, afim de conhecerem, como os Carajás, o “Papai Grande” que os esperava. Na hora da despedida escolhemos algumas armas e outros enfeites diversos para nossas coleções e para nossos benfeitores. Deixámo-lhes sobretudo provas de amizade com a distribuição de muitos ‘agrados’ em ferramentas, sal, rapaduras, roupas, além do indispensável fumo. Levamos e conservamos bem viva até hoje a ótima impressão que produziu sobre nós o Capitão principal ‘Ouachirékó’. Esse índio jovem ainda, esbelto e possante, tratou-nos com verdadeira fidalguia, e nos cumulou de presentes e víveres. Até o momento do embarque continuou insistindo para que voltássemos sem muita demora, e prometendo-nos seu auxílio nas excursões projetadas a todas as aldeias do interior da Ilha do Bananal ...”

Os Javaé das aldeias do interior da ilha, no entanto, só seriam visitados alguns anos depois. Em 1925, Dom Domingos Carrérot, bispo de Porto Nacional e antigo responsável pela missão de Conceição do Araguaia, visitou “sucessivamente a aldéia do ‘Muaré’, nas beiras do rio ‘Dedjueó’ (...), – a aldéia de ‘Dorotibéró’, – a de ‘Uaruari’, – e enfim a aldéia de ‘Imutí’” (Audrin, 1946:220). O Padre Reginaldo Tournier (1942), por sua vez, relata em detalhes a penosa viagem que ele e os bispos de Porto Nacional (Dom D. Carrérot) e de Conceição do Araguaia (Dom Sebastião Tomás) realizaram em janeiro de 1926 em busca dos Javaé. Carrérot e Tomás eram os missionários que, em 1914, haviam estabelecido o primeiro contato amistoso com os Tapirapé (La Falaise, 1939, Wagley, 1988). Na viagem de 1926, os missionários partiram de Leopoldina e decidiram descer o Araguaia pelo Rio Javaés, que praticamente não era utilizado na época pelos navegantes por temor aos Avá- Canoeiro. Depois de um naufrágio em que quase perderam a vida, os missionários dominicanos encontraram várias roças que supuseram ser da “aldeia Wary-Wary”, na margem esquerda do Rio Javaés, e a aldeia do “capitão José Muaré” (Tournier, 1942:149),

193 a cerca de 10 km acima da foz do Rio Dejueho (ou Rio Verdinho). O capitão Javaé já falava algumas palavras em Português e já havia sido batizado por outros missionários, chamados pelos Karajá e Javaé de “Papai Grande” (Tournier, 1942:165). Os missionários convidaram o grupo para conhecer Conceição do Araguaia, com a promessa de batismos e distribuição de presentes, e calcularam a população Javaé, com base nas informações obtidas, como algo entre 400 e 500 pessoas. No livro de Tournier há várias fotos dos Javaé em suas aldeias e algumas de uma visita deles a Conceição do Araguaia. Segundo Audrin (1946), na volta a Porto Nacional, o Bispo Dom Carrérot solicitou formalmente ao governador de Goiás que fossem asseguradas aos Javaé as terras por eles habitadas. Na sua última viagem, em 1931, na companhia do dominicano Frei Luiz Palha, um ano depois das expedições dos funcionários do SPI (do Posto Redenção Indígena), Dom Carrérot visitou as aldeias de “Narbéó” e a do “Marrecão” (1946:220-221). Palha (1942) recorda em outro livro que, na última viagem, ele e o bispo visitaram também uma aldeia do Lago do Mamão, onde distribuíram vários presentes e foram os primeiros viajantes a chegar no local montados em cavalos, e outra nas margens do “Uabè” (Wabe, o nome Javaé do Riozinho). As visitas dos dominicanos não tiveram continuidade depois, embora muitas crianças e adultos tivessem sido batizados. Nos escritos de Audrin, Tournier e Palha, há menção aos missionários de nome Sebastião e Luiz, cujas curtas visitas são lembradas ainda hoje por José Wèrèkumari. Em 1930, um outro grupo de missionários também tentou se aproximar dos Javaé com o objetivo de evangelização (ver Pinheiro, 1994). O Pastor Alvin Allen, da Igreja Adventista do Sétimo Dia, havia fundado a Missão Araguaia no povoado de Piedade, ao sul da Ilha do Bananal, em 1928. Dois anos depois, acompanhado de algumas pessoas, o pastor realizou uma viagem por terra ao interior da Ilha do Bananal, chegando faminto e exausto a uma aldeia Javaé, onde foi bem recebido, tendo distribuído presentes e pregado em nome de Deus. Mas como a Missão Araguaia não prosperou nos anos que se seguiram, tendo continuidade apenas entre os Karajá da aldeia Fontoura, e o projeto junto aos Javaé foi abandonado. Retomando os relatos dos próprios Javaé, os poucos remanescentes de Imotxi dividiram-se entre os que mudaram para as margens do Riozinho, fundando a aldeia Wajukabà, e os que foram para Marani Hãwa. As epidemias alastraram-se também nesta

194 última, na mesma época, de modo que cerca de metade da população morreu. Parte dos sobreviventes continuou morando na aldeia, enquanto outros refundaram Hèryrihikỹ (atual Wahuri, ex-Cachoeirinha) às margens do Rio Javaés, no mesmo local onde existiu a aldeia Hèryrihikỹ mencionada pela mitologia (ver Mapa n° 2, sobre as aldeias atuais). Outros ainda foram morar nos lugares chamados Juani e Dikutati, ambos às margens do Rio Jaburu, na porção meridional da Ilha do Bananal. Alguns anos mais tarde, aproximadamente no começo da década de 40, outro grupo de remanescentes de Marani Hãwa fundaria a aldeia Tahakala (atual Barreira Branca), às margens do Rio Javaés. As famílias do Rio Jaburu permaneceram pouco tempo no local, juntando-se algum tempo depois aos moradores da antiga aldeia Lòreky, fundada em tempos mais antigos por moradores do Wariwari, às margens do grande lago mítico Sòhokỹ. Na expedição que fez ao Araguaia em 1932, o jornalista Hermano Ribeiro da Silva (1935) realizou uma expedição terrestre ao território Javaé. Guiado por dois Karajá, entre eles o célebre chefe Watau, anfitrião do Presidente Getúlio Vargas em 1940, Ribeiro da Silva visitou a aldeia Javaé Imotxi, partindo da aldeia Karajá Santa Isabel. Na aldeia, de cerca de 150 pessoas, foi bem recebido pelos “pacíficos” (1935:252) e hospitaleiros Javaé, que no entanto apresentavam “crescida porcentagem de barrigudos opilados por vermes intestinais” (1935:.258). O autor visitou várias casas, observou as roças, notou a abundância de caça e pesca, trocou presentes, tirou fotografias, entrou na Casa dos Homens e escreveu, por fim, que “a tribo espalha-se em uma dúzia de aldeias semelhantes a esta, todas situadas no interior da ilha, nas cercanias dos seus limites do oriente” (1935:258). Quando chegaram de barco a Conceição do Araguaia em fevereiro de 1933, vindos de Leopoldina, os franceses Richard e Rayliane de La Falaise encontraram um grupo de 13 índios Javaé nus na missão dominicana, para o escândalo dos moradores cristãos da cidade. Conduzidos por um velho Karajá da aldeia Santa Isabel, o grupo viera de Imotxi atendendo ao convite que Dom Sebastião Tomás fizera dois meses antes. Alguns índios foram batizados e todos receberam presentes. Rayliane de La Falaise (1939:116), que tentou se aproximar do grupo na ocasião, obteve a informação de que Imotxi, “a Aldeia-Capital”, tinha entre 150 e 160 pessoas, enquanto o resto do grupo “se reparte entre uma dúzia de aldeias secundárias, de uma centena de almas”.

195 Alguns anos depois, Darcy Bandeira de Mello, ex-funcionário do SPI, tomaria parte da Bandeira Anhanguera, organizada por Hermano R. da Silva em 1937. Como parte das expedições, o subgrupo comandado por Mello partiu da fazenda do criador de gado Lúcio Penna da Luz em Mato Verde, na margem esquerda do Araguaia, em direção ao interior da Ilha do Bananal, “com o objetivo de fazer contato com os arredios Javaé, em suas aldeias” (Mello, 1982:253). O fazendeiro forneceu os animais de montaria e acompanhou o grupo guiado pelo Karajá Texibrè, que foi bem recebido pelos Javaé. Como já foi dito, Mato Verde era o nome do local pegado à aldeia Krè Hãwa, dos índios Karajá, onde Lúcio da Luz instalou-se em 1934, e que ficou conhecido posteriormente com o nome atual de Luciara, dado em homenagem ao fundador da cidade (ver Baldus, 1948, Aureli, 1962b). O antropólogo norte-americano William Lipkind (1948), que realizou um censo demográfico, já mencionado, a respeito dos Karajá, Javaé e Xambioá em 1939, estimou em 650 pessoas a população das 8 aldeias Javaé existentes então, embora não tenha visitado todas, situadas no Rio Javaés e no interior da Ilha do Bananal. Na carta dirigida à diretora do Museu Nacional do Rio de Janeiro, de 1941 (apud Donahue, 1982:179), Lipkind informa o nome das aldeias Javaé: “Wariwari, Andeduralu, Tchuode, Waha, Marani Hawa, Imontchi, Wabi, Loroa, Warareona”. No censo realizado pelos municípios goianos em 1940, segundo o organizador do Museu de Goiás, Zoroastro Artiaga (1959), constatou-se a existência de 160 índios Javaé, distribuídos em cinco aldeias, duas grandes e três menores. Tilbor Sekelj (1948), em sua expedição de 1945 ao território dos Xavante e ao Rio Araguaia, adentrou a porção setentrional da Ilha do Bananal por terra e alcançou um grupo de cerca de 20 índios Javaé acampados no Riozinho, dos quais tirou fotografias, calculando em três as aldeias Javaé. Estes são descritos como “puros”, “intactos”, “donos da selva e do rio”, e vivendo tal qual viviam “há centenas de anos” (1948:203), em contraste com os Karajá, que estavam “perdendo” seus costumes. Nessa época, a aldeia Wariwari, mais ao norte, também seria vitimada por um “grande feitiço”, segundo ouvi dos Javaé nos anos 90, embora de menores proporções que aquele que acometeu Marani Hãwa. O explorador paulista Willy Aureli (1962a, 1962b), que havia tentado alcançar os Javaé por via terrestre, sem sucesso, em 1938, circunavegou a Ilha do Bananal em 1945 e 1946, visitou os Karajá, os Tapirapé e os Javaé, encontrando estes últimos, “hospitaleiros”, “mansos” (1962b:210) e de “índole pacífica” (1962b:166), em aldeias a leste e a oeste do

196 Rio Javaés. Acompanhado de guias Karajá, entre eles o famoso Arutana, informante de vários antropólogos no século 20, Aureli encantou-se com a beleza dos Javaé e de seus artefatos, a limpeza das aldeias e a fartura de suas grandes roças, mas constatou que “estavam sendo dizimados por epidemia gravíssima: espécie de peste pulmonar” (1962b:214). Aureli encontrou também quatro casos de Hanseníase. Na ocasião, “famílias inteiras” (1962b:215) já haviam abandonado a antiga aldeia Wariwari, visitada pelo autor, “buscando guarida em outras aldeias distantes e onde o mal ainda não se propagara”. Em outro trecho a respeito da mesma aldeia, Aureli diz que “não encontramos tantos índios, conforme esperávamos. A epidemia que assola o núcleo fizera emigrar a maioria da população e as casas tinham sido destruídas ou simplesmente abandonadas” (1962b:254). O autor (1962b:292) também descreve um episódio anterior em que os Javaé, “pacíficos agricultores”, obtiveram carabinas Winchester e reagiram aos ataques dos Avá-Canoeiro, matando vários deles. No começo da década de 40, em razão de sérios conflitos internos, mencionados também por Toral (1981), os moradores remanescentes da antiga Wariwari dividiram-se entre um grupo que seguiu para as aldeias do Rio Loroti e para Hèdèraluku, fundadas muito antes por moradores de Wariwari, e um grupo de três irmãos e respectivos familiares que se deslocaram rio acima e se instalaram em local bem mais distante, nas margens do grande lago Bèlybyranõra, pouco acima da Barra do Rio Verde. Alguns poucos moradores ainda permaneceram em Wariwari e parte do grupo que se deslocou rio acima juntou-se aos moradores da aldeia Hèryrihikỹ (ou Cachoeirinha). Por volta de 1946, o grupo de Bèlybyranõra decidiu retornar rio abaixo e fundou a aldeia Canoanã (Kanõanõ) na margem direita ou oriental do Rio Javaés, ao lado das pedras míticas onde o líder Kanõanõ ascendeu em tempos antigos. Durante a viagem de volta, o grupo convidou os moradores de Hèryrihikỹ para morar no novo local. Em meados da década de 40, os Javaé refundaram a aldeia Tabàlàna, um pouco abaixo da atual aldeia Wahuri (ex-Cachoeirinha), mas do lado direito do Rio Javaés81. No fim dos anos 50, a atual aldeia Boto Velho foi fundada por sobreviventes de uma epidemia de catapora na aldeia Karalu Hãwa (Lago de Pataca), aos quais se juntou um

81 Levando em consideração a descrição de sua localização espacial, Tabàlàna é a aldeia a leste do Rio Javaés visitada por Aureli (1962b) em 1946, chamada pelo autor de “Tahuelahuâ”.

197 grupo originário da região do Loroti, com quem tinham vínculos de parentesco. Nos anos que se seguiram, aglomeraram-se em Boto Velho os remanescentes de outras aldeias Javaé, em especial os das pequenas aldeias interioranas da porção centro-norte da Ilha do Bananal. A história de Boto Velho, aldeia Javaé que tem ligação mais próxima com a Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé), será vista separadamente e em maiores detalhes na Parte II.

– A segunda metade: a chegada definitiva das frentes pastoris e agrícolas e a retomada do território

Ainda segundo a memória oral dos Javaé, os irmãos Estevão e Lino Passarinho, acompanhados de uma terceira pessoa, moradores do pequeno povoado Veneza (atual Dorilândia), chegaram a Canoanã em 1949 (data mencionada na época aos Javaé), com o objetivo de “amansar os índios”. Eles foram os primeiros não-índios a visitar a aldeia por via terrestre, uma vez que até então não havia nenhum tipo de contato regular com os moradores regionais que estavam começando a se instalar em povoados a leste da ilha, embora os Javaé já soubessem que estavam sendo espionados à distância pelos brancos. Os não-índios que chegavam à Ilha do Bananal até então vinham sempre por via fluvial. Depois desse primeiro encontro, Vicente Mariquinha entrou em acordo com os Javaé e instalou-se ao lado da aldeia, onde criava gado e mantinha um relacionamento amistoso com os índios, enquanto outros regionais procuravam terras dentro da Ilha do Bananal. Como já foi dito, na década de 50 aumentou a penetração das frentes pastoris e agrícolas no médio Araguaia, em ambas as margens, por diversas razões. A instalação de pequenas e grandes fazendas, pertencentes a poderosos grupos econômicos, ocorreu paralelamente à entrada cada vez maior de posseiros de menor poder econômico na Ilha do Bananal, que foi transformada em Parque Nacional em 1959. No mesmo ano, Chiara (1970) testemunhou em uma aldeia Javaé setentrional do Riozinho, dentro da Ilha do Bananal, que um criador de gado tentara trocar as terras ao redor da aldeia com o cacique local, que mal compreendia o Português, por um revólver. Os moradores da aldeia ainda não realizavam transações econômicas em dinheiro, mas já trocavam mantas de pirarucu salgado por mercadorias diversas com comerciantes de Belém. Na expedição que realizou ao longo de

198 todo o Riozinho, também em 1959, a partir de sua foz, Aureli (1963) encontrou vários moradores fixando residência no interior da ilha. No que se refere especificamente à margem leste do médio Araguaia, antigo território Javaé, no começo dos anos 50, um grande fazendeiro originário de Goiânia, de nome Valterlô, segundo os Javaé, comprou uma vasta área na margem direita do Rio Javaés, incluindo as terras ocupadas por Vicente e seus filhos. O fazendeiro conseguiu a ajuda dos próprios índios para a instalação de uma pista de avião próxima ao Rio Formoso do Araguaia. O novo proprietário das terras iniciou o desmatamento do local, a plantação de capim para pasto e instalou um barracão vizinho à aldeia, cujos empregados assediavam sexualmente as mulheres Javaé. Em 1952, o SPI instalou o Posto Indígena Damiana da Cunha no lugar onde existia a aldeia Tahakala (ou Barreira Branca), fundada por remanescentes de Marani Hãwa na beira do Rio Javaés. O posto foi chefiado por João Américo Peret no início (Toral, 1999) e seria chefiado no começo dos anos 60 por Valentim Gomes, regional que atuara como funcionário do SPI entre os Tapirapé, anos antes, para onde fora levado como auxiliar de pesquisa por Charles Wagley (1988) em 1938. Peret informou a Toral (1999) que, nos anos 50, os Javaé de Barreira Branca, com 60 ou 70 habitantes, chegaram a trabalhar em fazendas de arroz nas cabeceiras do Rio Formoso do Araguaia. Nos arquivos da FUNAI (microfilme n° 270), os registros relativos a “guias de remessa” do SPI e “movimento da renda indígena” dão conta que este posto – que incentivava a criação de gado – continuou existindo até 1968, pelo menos, último ano de existência do SPI. Devido aos conflitos gerados em Canoanã, que resultaram em episódios de violência física dos novos moradores contra os índios, alguns Javaé dirigiram-se ao Posto Indígena Damiana da Cunha e prestaram queixas contra os abusos dos funcionários da fazenda. O SPI teria instalado um processo para apurar o ocorrido, ao mesmo tempo em que convidou o grupo para fixar residência em Barreira Branca. Após um pequeno período, entretanto, um pequeno grupo decidiu retornar a Canoanã, sendo aconselhado pelo chefe de posto a se instalar, então, do outro lado do rio (margem esquerda), dentro da Ilha do Bananal, para evitar os confrontos com os não-índios da fazenda. Na versão recolhida por Toral (1981:73), o “fazendeiro conseguiu que os índios saíssem da aldeia” no fim da década de 50, que o fizeram “inconformados com a perda do local”.

199 A nova aldeia, menos de um quilômetro rio acima, foi fundada exatamente no lugar onde antes existiu a aldeia Kanõanõ, do extinto povo Torohoni. Antes disso, um grupo reduzido retornou para a aldeia Cachoeirinha, enquanto algumas famílias Javaé que estavam no Araguaia passaram a morar definitivamente junto aos seus parentes de Canoanã, aumentando o grupo. Assim surgiu a atual aldeia Canoanã, ainda na década de 50, que se tornaria a maior aldeia Javaé na fase pós-contato. Em 31.5.1961, Valentim Gomes escreve ao chefe da 8ª. Inspetoria Regional do SPI, sediada em Goiânia, pedindo providências urgentes após visitar as aldeias Canoanã e Cachoeirinha82. Segundo seu relato, do outro lado do rio, em frente à aldeia Canoanã, estava instalada “uma fazenda de criação de gados, pertencente à Sociedade Anônima Agro Pecuária, possuidora de grande gleba de terra, adquirida do senhor Waldemar Prudente”, originário de Goiânia. Gomes relata que os empregados da fazenda invadiram as terras ao redor da aldeia Canoanã, na Ilha do Bananal, de onde extraíram mais de mil peças de madeira de lei valiosas, como aroeira e cedro, que “foram atravessadas pelo rio para a sede da referida Sociedade”. O funcionário do SPI menciona ainda a existência de outras invasões “não menos graves” e conclui que é “humilhante e de pavor a situação dos Javaés, chegando ao cúmulo de serem proibidos por civilizados de fazerem roças em suas próprias aldeias”. A violência contra os Javaé era freqüente na época, como já enfatizou Toral (1981, 1999), que menciona a extração de madeira de lei ao redor da aldeia Boto Velho. Em outro ofício de 1961, Gomes sugere a necessidade de mudança do Posto Indígena Damiana da Cunha para a aldeia Canoanã, que funcionaria com um “posto avançado de vigilância para evitar a invasão por parte de civilizados”83. Um informe do mesmo Valentim Gomes à 8ª. IR, desta vez de 15.5.1964, relata que, dois dias antes, um índio Javaé havia sido espancado a 18 km de distância do Posto Damiana da Cunha84:

“(...) Foi espancado o índio de nome Luiz, por quatro rapazes, com o fim de manter relações sexuais com a índia sua esposa. Depois de ter dado tiro no índio e espancado, fugiram do local, sem que nós pudéssemos tomar as devidas providências. O índio estava pescando para si, com aviação a crédito adquirida por mim, evitando dos exploradores, mas nem assim os índios ficam

82 Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1328. 83 Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1329. 84 Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1428.

200 em paz desses crimes. Senhor Chefe, há anos que os Javaés vêm sofrendo, sem que os criminosos fossem punidos. Comunico que o posto é desprovido de pessoal, material e recursos para repelir esses abusos”.

Em 1966, um outro chefe do Posto Damiana da Cunha informava à 8ª IR que fazendeiros vizinhos “continuam ameaçando os índios e funcionários, inclusive estão escorraçando o nosso gado”85. A população Javaé do posto era de apenas 44 pessoas em 196686. Em 1967, com o retorno de uma família e a mudança de pessoas de outras aldeias, alcançou 86 pessoas87. Canoanã passaria a contar com a relativa proteção do Estado em 1964, quando o SPI fundou o Posto Indígena Canoanã, onde então moravam 177 índios, com vistas à criação de gado. O encarregado do posto “recentemente criado”, Sallim Costa de Oliveira, escreve em relatório de 30.4.1965, para o SPI, que entre Canoanã e a ponta norte da Ilha do Bananal viviam cerca de 150 índios Javaé “carecidos de assistência”. O chefe de posto diz ainda sobre os Javaé de Canoanã88: “Os índios são bons e ordeiros, bastante trabalhadores, vivendo do marisco, no que são explorados pelos regatões que ali aportam para o marisco de pirarucu e jacaré. Este ano os índios não terão colheita de suas lavouras, pois o gado dos fazendeiros que rodeiam o Sub.Posto invadiu suas roças, depredando-as”. Um outro informe do encarregado do Posto de Canoanã ao SPI, também nos anos 60, relata que fazendeiros estavam soltando o gado nas roças dos índios da aldeia Wariwari e prejudicando a sua alimentação89. Segundo dados do SPI de 1964 (Malcher, 1964:193), os Javaé tinham então 8 aldeias: “Barreira Branca, Morrinho, Cachoeirinha, Canoanã e Ponta da Ilha”, situadas no Rio Javaés, e “Jaburu, Imuti e Lago do Mamão”, no interior da Ilha do Bananal. A aldeia Ponta da Ilha, a mais setentrional, situava-se na foz do Riozinho, que se encontra dentro da área atualmente reivindicada. Baseado no que ouviu dos Karajá durante a sua viagem de 1966, o antropólogo Christopher J. Tavener (1966) calculou a população Javaé em cerca de 200 pessoas, distribuídas nas aldeias Canoanã e Loroti.

85 Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1438. 86 Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1439. 87 Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1470 e 1471. 88 Microfilme da FUNAI n° 272, fotograma n° 933. 89 Microfilme da FUNAI n° 272, fotograma n° 961.

201 Depois da instalação do Posto Indígena Canoanã, de acordo com os Javaé, aos poucos o SPI convidou os moradores da aldeia Lòrèky, não muito distante de Canoanã, os de Cachoeirinha e os remanescentes do Wariwari a se transferirem para o local. Os moradores do Riozinho vieram para Canoanã nos anos 70, quando o órgão indigenista já era a FUNAI. Conforme já relatou Toral (1981:73), em razão da atuação do SPI, da pressão sofrida pelos criadores de gado e das grandes perdas populacionais nas aldeias antigas, os sobreviventes Javaé “começam a se concentrar na aldeia Canoanã. Esse processo de concentração populacional se completou, de certa maneira, em 1973 com a chegada dos que moravam nas aldeias de Jatobá, Ariuari, Lorotí, Marani-hawá, Imotí, Cachoeirinha, Barreira Branca (com a desativação do P.I. Damiana da Cunha) e parte dos que moravam em Barreira da Cruz (Boto Velho)”. O antropólogo Noraldino V. Cruvinel (1976), funcionário da FUNAI, visitou Canoanã em 1976 e calculou a sua população – incluindo outras etnias – em 336 pessoas. Na época estava sendo implantada pelo órgão indigenista uma até então inédita roça coletiva (de arroz e milho), com vistas à comercialização. Toral (1981:76) menciona os outros “projetos de desenvolvimento” iniciados pela FUNAI nos anos 70, como a criação de gado pelos próprios índios, corte e costura ou venda do pirarucu, ressaltando que “nenhum desses projetos conseguiu ser assimilado pelo grupo indígena”. Os Javaé foram estimulados a participar da Guarda Rural Indígena (GRIN), logo desativada. Ainda segundo o autor, em 1979 os Javaé estavam em sua maioria morando na aldeia e Posto Indígena Canoanã, havendo apenas 17 pessoas em Boto Velho e 20 pessoas em Porto Luís Alves, pequeno povoado de não-índios às margens do Araguaia. Em Canoanã, aglutinaram-se “acusados de feitiçaria, homicidas, líderes de facções minoritárias” e o líder de uma facção dominante (1992:48), os quais tiveram que conviver sob a tutela da FUNAI. O processo de reunião dos remanescentes de outras aldeias pressupôs um deslocamento populacional do interior da Ilha do Bananal e arredores (a leste) para as aldeias da beira do Rio Javaés. Na década 70, ao mesmo tempo em que a população Javaé chegava a um número crítico de sobreviventes, tinha continuidade a ocupação tanto da Ilha do Bananal por posseiros quanto da margem direita do Rio Javaés por grandes fazendas de vocação agropecuária. Em 1973, uma violenta frente de atração da FUNAI contatou na região da Mata Azul, a alguns quilômetros da aldeia Canoanã, os Avá-Canoeiro que perambulavam

202 em fuga, há muitos anos, do cerco crescente da sociedade envolvente, tendo adentrado o antigo território Javaé no século 19 (ver Pedroso, 1994, 2006). Os poucos Avá-Canoeiro que sobreviveram ao contato foram instalados pela FUNAI na aldeia Canoanã, de seus inimigos tradicionais, enquanto o grupo BRADESCO adquiria vastas áreas na margem direita do Rio Javaés, nas terras que foram habitadas pelos Javaé e, depois, pelos Avá- Canoeiro. Após a rendição dos Avá-Canoeiro, o grupo BRADESCO instalou a sede da Fazenda Canuanã no mesmo sítio onde existira, quase 30 anos antes, a primeira aldeia Canoanã, cujo cemitério foi destruído pelos tratores da fazenda. Na fazenda surgiu a Fundação BRADESCO, instituição educacional que passou a ter importante impacto na vida dos vizinhos Javaé. Também em meados dos anos 70, seria instalada a sede da Fazenda Capão de Coco, da empresa BRAHMA, dedicada à criação de búfalos, no local onde existira a aldeia Horeni (“coco babaçu”), habitada pelos Javaé até 1971 ou 1972. Uma outra aldeia Javaé abandonada na época, chamada Hawariè, também estava situada nas terras adquiridas pela fazenda na região do Rio Loroti. Em meados dos anos 90, a sede da fazenda Capão de Coco transformou-se em um pequeno vilarejo dentro das terras inundáveis adquiridas pelo INCRA para assentar os posseiros retirados da Ilha do Bananal pela FUNAI, assunto a ser retomado no próximo item. Mais recentemente, a Companhia Brasileira de Agropecuária (COBRAPE), do grupo português Espírito Santo, proprietária de grandes extensões de terra, iniciou em 1996 um grande projeto de produção de arroz e gado de corte na região vizinha à aldeia Wariwari. No novo milênio, a Fazenda Dois Rios, de um grupo de origem norte-americana, instalou-se nas imediações da aldeia Boto Velho, desmatando grandes áreas para a plantação de arroz irrigado e soja. No século 20, as antigas aldeias interioranas foram abandonadas e a margem direita do Rio Javaés seria aos poucos ocupada por fazendeiros, pequenas cidades e, cada vez mais, por grandes latifúndios dedicados à atividade agropecuária. A partir dos anos 70, porém, como já constatara Toral (1992, 1999), teve início a recuperação populacional do grupo, que atingiu cerca de 740 pessoas em 1993 (Rodrigues, 1993) e 1.371 pessoas em julho de 2007 (FUNASA, 2007), e a retomada de antigos locais de moradia dentro da ilha. Assim, Toral e Maia (1983:4) relatam que, em 1979, em razão tanto das tensões políticas em Canoanã quanto do “desejo explícito de controlar a ocupação

203 indiscriminada de seus territórios tradicionais”, um grupo de famílias lideradas por Juraci Javaé deixa Canoanã e dirige-se à mata de São João, onde funda uma nova aldeia com o objetivo de controlar as derrubadas ilegais de não-índios; os de Boto Velho voltam à sua aldeia, no mesmo ano (ver Maia, 1986); e em 1982, “os de Barreira Branca retornam à sua aldeia liderados pelo cacique Jorge Tãhãré”, descendente de um dos fundadores da aldeia. Tempos depois, a FUNAI reativaria o Posto Indígena da aldeia Barreira Branca. Quando cheguei aos Javaé pela primeira vez, em 1990, eles estavam distribuídos nas quatro aldeias mencionadas: Canoanã, a maior de todas, com mais de 500 pessoas, Barreira Branca, São João (Ikòròtòbò) e Boto Velho, todas situadas às margens do Rio Javaés. Nos anos seguintes, a dispersão e retomada territorial teve continuidade, seja em razão do crescimento populacional, de conflitos internos, do esgotamento de recursos naturais (ao redor de Canoanã) ou em função do projeto político de reocupação do território tradicional. Em 1991, moradores de Canoanã, originários de Wariwari, retornaram para o local mítico, fundando a nova Wariwari, situada na beira do Rio Javaés, a cerca de 5 km da antiga aldeia Wariwari90; em 1995, houve o retorno de um pequeno grupo para a aldeia Cachoeirinha, que recentemente passou a ser conhecida como Wahuri, e a tensa tomada do povoado branco Porto Piauí, situado em terras indígenas, que se transformou a partir de então na aldeia Txuiri (Bonilla, 1997, 2000); em 1998, outro pequeno grupo, constituído de um sogro e seus filhos e genros, seguiu para Imotxi, seu local de origem; em 2001, um grupo que morava na nova Wariwari retornou para a antiga Txukòdè e, no mesmo ano, por causa conflitos internos, um grupo de 36 pessoas originário de Barreira Branca tentou fundar a aldeia Taimỹ, na embocadura do Rio Caracol. Entretanto, as difíceis condições de locomoção fizeram com que o grupo desistisse da empreitada e se instalasse na Barra do Rio Verde. O local é um conhecido ponto freqüentado por turistas, banhistas e pescadores amadores na época da seca e há muitos anos era habitado, em suas imediações, por um pequeno grupo de índios Karajá casados em sua maioria com não-índios. Estes últimos fundaram a aldeia Waritaxi, perto da Barra do Rio Verde, em 2002. Também em 2002, um grupo de 30 pessoas originário de Boto Velho, ao qual se juntaram 36 moradores da nova Wariwari, fundou a aldeia Inỹhija (Boa

90 Antes das perdas populacionais pós-contato, a aldeia Wariwari, agora nas margens do Rio Javaés desde 1991, situava-se a alguns quilômetros para dentro da Ilha do Bananal, no lugar chamado Capão de Areia, o qual tive a oportunidade de visitar em junho de 1997.

204 Esperança), com o estímulo da FUNAI, em razão de conflitos na aldeia de origem. Em 2005, uma família residente em Txukòdè fundou a aldeia Wakòtyna em antigo local de moradia na região entre Txukòdè e Boto Velho, com o objetivo explícito de proteger a área de possíveis invasões. Os Javaé permaneceram mais isolados da sociedade envolvente que os seus vizinhos Karajá, é verdade, mas nos últimos tempos têm experimentado transformações visíveis muito aceleradas. Em 1990, havia um certo controle sobre o alcoolismo, restrito a algumas pessoas e a algumas situações especiais. Visitar as pequenas cidades vizinhas ainda era uma aventura que amedrontava a maioria das pessoas, sendo conhecidos por todos os poucos Javaé que, por motivos variados, tinham vivido por mais tempo entre os brancos. A grande maioria das casas era de palha, as roças ainda eram fartas, a luz elétrica originava-se de motores à diesel, durante algumas horas apenas, e somente em Canoanã havia um aparelho de televisão coletivo, objeto de grande curiosidade. Visitas a grandes centros urbanos, como Brasília, eram uma experiência rara de poucas pessoas. Em 1997/1998, já havia luz elétrica permanente em Canoanã, televisores em praticamente todas as aldeias, e já era um hábito instituído que os carros da comunidade levassem os aposentados e respectivos parentes para receber suas aposentadorias mensais e realizar compras de produtos industrializados nas cidades próximas. As visitas às pequenas cidades, seja para tratamento médico ou compras, já não mais assustavam e eram bem mais freqüentes. O alcoolismo tornara-se um mal endêmico em Canoanã, situação que tem se agravado desde então e se alastrado para as outras aldeias, estando associado a praticamente todos os casos de mortes violentas (em razão de conflitos) ou acidentais (como afogamentos ou acidentes de trânsito) das últimas décadas. Bonilla (1997:75) descreve uma situação de forte interdependência econômica, territorial e política entre os Javaé e os brancos em 1996, além de caracterizar como contraditório o tom das relações interétnicas no mundo urbano vizinho, em que os comerciantes são receptivos aos índios, mas “a população de Formoso é em geral hostil e os menospreza”. A autora lembra, inclusive, o assassinato de um Javaé pela polícia local em 1995, ocorrido em Formoso do Araguaia. Em outro texto, Bonilla (2000:12) relata que, “até hoje, a atitude dos Tori diante dos Índios é ambivalente, ora eles louvam a docilidade destes (‘eles são mansos’), ora os acusam de serem os culpados de suas desgraças”.

205 Embora não tenhamos tantos registros detalhados sobre o passado das aldeias Javaé como no caso Karajá, em razão tanto de um maior isolamento dos Javaé quanto das violentas perdas populacionais vividas pelo grupo no século 20, é indubitável que toda a bacia do Rio Javaés, que compreende os afluentes da margem esquerda (na porção oriental da Ilha do Bananal) e da margem direita (em terras fora da ilha, a leste) do rio, é reconhecida como território Javaé pela bibliografia e documentos escritos desde o século 18. Quanto à ocupação da porção norte da Ilha do Bananal, é conveniente lembrar que o primeiro relato mais aprofundado sobre os Javaé, o do etnógrafo alemão Fritz Krause, de 1908, anterior à penetração das frentes agro-pastoris na região, narra em detalhes a sua visita a uma aldeia situada justamente na porção setentrional da grande ilha fluvial.

– Aldeias e população no Século 21

Na virada do milênio, aproximadamente, iniciou-se um processo, até então limitado a alguns casos raros, de mudança de famílias ou indivíduos Javaé para as cidades vizinhas, em especial Formoso do Araguaia, com o objetivo principal de estudar ou trabalhar, embora praticamente não haja índios Javaé trabalhando para a iniciativa privada. Em 2002, um levantamento que fiz sobre os Javaé morando fora das aldeias mostrou que quase cerca de 10% da população total estava vivendo nas cidades próximas, ainda que a maioria retornasse com freqüência às aldeias, surgindo um novo panorama de relações interétnicas. A lista a seguir, com dados populacionais de 2002, está em ordem decrescente de população e inclui os poucos moradores não-índios ou não Javaé das aldeias:

206 Quadro n° 7 – Distribuição da população Javaé em 2002 Aldeias Moradores Moradores Total (2002) permanentes transitórios Canoanã 229 43 272 Txuiri 162 3 165 São João 110 10 120 Barreira Branca 95 14 109 Boto Velho 89 9 98 Wariwari 78 2 80 Boa Esperança 66 66 Txukòdè 44 2 46 Cachoeirinha 34 2 36 Barra do Rio Verde 33 3 36 Imotxi 22 3 25 Total 962 91 1.053

Os “moradores transitórios” são, em sua maioria, crianças Javaé estudando na Fundação BRADESCO, jovens Javaé matriculados em escolas de nível secundário nas cidades vizinhas (Formoso do Araguaia, Lagoa da Confusão, Sandolândia), funcionários da área de saúde (Pólo Base Indígena em Formoso do Araguaia e Base de Apoio na Lagoa da Confusão, ligados à FUNASA) ou pessoas ligadas às associações indígenas. Como se trata de cidades relativamente próximas às aldeias, os Javaé em questão vivem a maior parte do tempo nas cidades, mas costumam retornar às aldeias de origem nos fins de semana, férias e feriados. Nos últimos anos, alguns poucos Javaé começaram a freqüentar cursos de graduação em diferentes faculdades do Estado de Tocantins e Goiás e cada vez mais os jovens estão tentando ingressar em algum curso superior. Em fevereiro de 2005, inaugurou-se o Centro de Inclusão Digital (CID) da aldeia Canoanã, após esta ter recebido da Fundação BRADESCO a doação de 10 computadores, ligados à internet. Poucos anos antes disso, foram instalados telefones públicos em todas as aldeias e alguns indivíduos agora possuem casas na cidade e até carros, antes restritos à posse coletiva. Até a década de 80, apenas dois filhos de um influente cacique tinham estudado na Fundação BRADESCO, escola primária e secundária em regime de internato que atende às crianças e adolescentes de baixa renda da região. Desde meados da década de 90, um número cada vez maior de crianças Javaé é matriculada na escola da fundação todos os anos, sendo comum a expulsão de crianças e jovens Javaé que não se adaptam às novas

207 condições de vida. Também aumentaram consideravelmente os casamentos interétnicos, com mulheres ou homens não-índios, principalmente na aldeia Txuiri, e o número de filhos “mestiços”, o que antes era um grande tabu. Um número cada vez maior de homens Javaé vem trabalhando como funcionários públicos (professores, agentes de saúde, motoristas etc) e recebendo salários, embora a maioria continue vendendo peixe. Pétesch (2000:32) aponta as conseqüências deletérias da “funcionarização” entre os Karajá, tais como exacerbação dos conflitos e disputas internas, dependência crescente de produtos industrializados, contração de dívidas, perda da capacidade produtiva etc. As mulheres Javaé que ocupam funções assalariadas são em número bem menor, mas a fabricação e venda do artesanato de palha e penas, nas cidades vizinhas e para turistas eventuais, têm gerado alguma renda extra para as famílias envolvidas. Todos os idosos agora recebem aposentadorias do Estado, não sendo incomum encontrar cada vez mais jovens em idade produtiva dependentes dessa nova fonte de renda familiar, que tem estimulado uma menor dedicação ao tradicional cultivo das roças. Atualmente, os Javaé estão distribuídos em 13 aldeias (Mapa n° 2), cerca de 115 pessoas vivem nas cidades vizinhas (FUNASA, 2007), e está nos planos de uma família de Canoanã retornar a Marani Hãwa ainda este ano. Com exceção da aldeia Imotxi, que se localiza no interior da Ilha do Bananal, no mesmo lugar referido pela mitologia, todas as outras estão situadas na beira do Rio Javaés, embora a maioria esteja em sítios que já foram ocupados pelos Javaé antes do contato regular com a sociedade envolvente. Os Javaé contam até hoje apenas com o Posto Indígena Canoanã e o Posto Indígena Barreira Branca, vinculados à administração regional da FUNAI em Gurupi (TO). Nos quadros a seguir, temos um resumo dos dados populacionais sobre os Javaé nos séculos 20 e 21 e da data de fundação das atuais aldeias:

208 Quadro n° 8 – População Javaé nos séculos 20 e 21

Autor Data População N° de aldeias Memória Oral Javaé Até o início do século Mais de 40 20 Fritz Krause 1908 Entre 800 e 1.000 5 SPI (Mandacaru) 1912 600 6 Padre R. Tournier 1926 Entre 400 e 500 SPI (M. B. de Mello) 1930 7 H. Ribeiro da Silva 1932 Cerca de 12 R. de La Falaise 1933 Cerca de 12 William Lipkind 1939 650 8 Zoroastro Artiaga 1940 160 5 Tibor Sekelj 1945 3 SPI (Malcher) 1964 8 SPI (Sallim Oliveira) 1965 177 em Canoanã e 150 mais ao norte Christopher Tavener 1966 Cerca de 200 2 FUNAI (N. Cruvinel) 1976 336 em Canoanã André Toral 1978 286 2 Patrícia Rodrigues 1993 740 5 FUNAI (Gurupi) 1998 839 8 FUNAI (Gurupi) 1999 849 8 Patrícia Rodrigues 2002 1.053 11 FUNASA 2005 1.250 12 FUNASA 2007 1.371 13

209 Quadro n° 9 – Distribuição da população Javaé atual (julho de 2007)*

Aldeias Data de fundação Situação atual População atual Boto Velho (Hòròtoro Hãwa) Fim da década de 50 Aldeia na T.I. 132 Inãwebohona. Canoanã (Kanõanõ) Fim da década de 50 Aldeia na TIPA. 301 São João (Ikòròtòbò) 1979 Aldeia na TIPA. 211 Barreira Branca (Tahakala) 1982 Aldeia na TIPA. 133 Wariwari (nova) 1991 Aldeia na TIPA. 115 Wahuri (ex-Cachoeirinha) 1995 Aldeia na TIPA. 42 Txuiri 1995 Aldeia na TIPA. 127 Imotxi 1998 Aldeia na TIPA. 34 Txukòdè 2001 Aldeia na T.I. 74 Inãwebohona. Barra do Rio Verde 2001 Aldeia na TIPA. 24 Boa Esperança (Inỹhija) 2002 Aldeia na TIPA. 30 Waritaxi 2002 Aldeia na TIPA. 18 Wakòtyna 2005 Aldeia na T.I. 15 Inãwebohona. Cidades Próximas Formoso do Araguaia (TO) 101 Gurupi (TO) 14 Total 1.371

* T.I. significa “Terra Indígena”. TIPA significa “Terra Indígena Parque do Araguaia” e refere-se às aldeias situadas na Ilha do Bananal.

Os dados populacionais, relativos ao mês de julho de 2007, são da FUNASA, por meio do Pólo Base Indígena de Formoso do Araguaia (TO) e da Base de Apoio da Lagoa da Confusão (TO). As informações obtidas em campo dão conta que os Javaé vivem em outras cidades do Tocantins também, como as vizinhas Sandolândia e Lagoa da Confusão, além de cidades mais distantes, como Araguaína e Palmas, onde moram alguns estudantes universitários.

210 6. A Terra Indígena

– O reconhecimento oficial

Um marco histórico decisivo para a recuperação populacional dos dois grupos e manutenção parcial do território tradicional Karajá e Javaé seria a criação – pelo Presidente Juscelino Kubitschek – do Parque Nacional do Araguaia em 31.12.1959, instituído pelo Decreto nº 47.570, cuja área correspondia à totalidade da Ilha do Bananal (ver Mapa n° 9, ao lado). Em 1971, a Ilha do Bananal seria dividida entre o Parque Nacional do Araguaia (PNA), ao norte, com 460.000 ha (Decreto nº 68.873, de 5.7.1971), destinado exclusivamente à proteção ambiental, e o Parque Indígena do Araguaia (PIA), com cerca de 1.540.000 ha (Decreto nº 69.263, de 22.9.1971). Em 1973, um novo decreto (71.879, de 1.3.1973) retificaria os limites entre os dois parques [“onde se lia ‘paralelo 10º 5’ de latitude sul, (...) passa-se a ler ‘paralelo 10º 50’ de latitude sul”], de modo que a aldeia Macaúba, dos Karajá, ficaria fora da nova área do Parque Indígena, diminuída para 1.433.000 ha. Nova retificação é feita em 1980 (Decreto nº 84.844, de 24.6.1980), diminuindo mais uma vez a área indígena, que passa a totalizar 1.395.000 ha. Desta vez, corrige-se o erro anterior, incluindo a aldeia Karajá Macaúba na área indígena, mas se deixa de fora a aldeia Boto Velho e região vizinha, dos índios Javaé (ver Mapa n° 9). A aldeia Boto Velho ficou totalmente dentro do Parque Nacional do Araguaia, enquanto a aldeia Macaúba ficou fora. Mesmo assim, os Karajá de Macaúba continuaram sendo afetados, pois praticavam suas atividades de pesca, caça e coleta na área do PNA. Com a sobreposição de uma área de proteção ambiental sobre o território indígena, começa então um longo período de atritos, narrados por Toral e Maia (1983), entre os Karajá de Macaúba e os Javaé de Boto Velho com os fiscais do antigo IBDF, atual IBAMA, que reprimiam a pesca, caça, coleta e a instalação de benfeitorias na aldeia (ver Ricardo, 2004).

211 Mapa n° 9

212 Nos anos 80, segundo Toral (1999), os próprios funcionários da FUNAI pressionaram os Javaé de Boto Velho para que saíssem da área do PNA e se juntassem aos Javaé do Parque Indígena. Em 1983, os moradores de Macaúba e outras aldeias Karajá e os de Boto Velho paralisaram a construção de um posto do IBDF e de uma estrada projetada para cortar a Ilha do Bananal em sua porção setentrional91. O envolvimento dos Javaé de Boto Velho, em separado, na luta pelo reconhecimento oficial de sua terra indígena, juntamente com o fato de que eles estavam espacialmente mais distantes dos Javaé de outras aldeias, deu origem a uma história diferenciada desses Javaé setentrionais. Os moradores de Boto Velho vieram várias vezes a Brasília e escreveram várias cartas aos órgãos envolvidos, com os quais realizaram várias reuniões, o que levou a FUNAI a interditar a “Área Indígena Boto Velho” provisoriamente em 22.5.85, com 145.000 ha (Portaria nº 1875/E), sobreposta ao parque ambiental (ver Mapa n° 9). Entretanto, o ato administrativo não resolveu o problema, ao contrário, de modo que as tensões acirraram-se crescentemente. Nos anos 80, também, após intensa mobilização, os Karajá conseguiram que a FUNAI desse início ao processo de regularização fundiária de terras habitadas tradicionalmente pelo grupo na margem esquerda do Araguaia, como a Terra Indígena Tapirapé/Karajá e a Terra Indígena São Domingos, no Mato Grosso, e a Terra Indígena Santana do Araguaia, no Pará. Em 1999, a Terra Indígena Maranduba, no Pará, foi identificada pela FUNAI e atualmente está nas etapas finais do processo de regularização fundiária. Nos últimos anos, os Karajá obtiveram a identificação oficial da Terra Indígena Cacique Fontoura, no Mato Grosso, demarcada pela FUNAI no início de 2008, e no momento está em curso a revisão de limites da Terra Indígena Karajá/Tapirapé, que inclui áreas na margem esquerda do Araguaia reivindicadas também pelos Karajá de São Domingos há várias décadas. Os Karajá meridionais de Aruanã, por sua vez, conseguiram que a FUNAI desse início ao reconhecimento oficial de suas terras nos anos 90. Em 1998, o Parque Indígena do Araguaia teve a sua demarcação administrativa homologada, ocasião em que o nome da área mudou para Terra Indígena Parque do Araguaia, aqui abreviado para TIPA.

91 Ver Toral e Maia (1983), Lima Filho (1994), Toral (1999), Maia (2002).

213 No que se refere ao conflito dos Karajá e Javaé setentrionais com os órgãos ambientais, somente em 1998 a FUNAI atendeu as antigas reivindicações dos dois grupos e enviou à área um Grupo Técnico, coordenado por André de A. Toral (Portaria n° 941, de 5.10.1998), para realizar uma identificação antropológica, o que resultou na proposta da Terra Indígena Inãwébohona (Toral, 1999), com superfície de 376.545 ha (ver Mapa n° 9). A Terra Indígena Inãwébohona foi declarada pelo Ministério da Justiça como de posse permanente dos Javaé em 20.4.2001 (Portaria n° 359) e foi demarcada durante o ano de 2002 com recursos do PPTAL (Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal). Tendo em vista as pressões do órgão ambiental junto ao Ministério da Justiça contra a homologação da terra indígena, este recomendou, em abril de 2005, que fosse criado um grupo de trabalho com representantes do IBAMA e FUNAI para buscar uma solução para o impasse. Mas após grande mobilização política dos Javaé de Boto Velho e da ANVIB, presidida por Paulo César Huruka (ver foto n° 49), que vieram a Brasília em 2005 e 2006, a embora em regime de dupla afetação, destinando-se à “preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios”. Nasceu então a necessidade de uma atuação em conjunto por parte da FUNAI e do IBAMA. o território indígena dentro da Ilha do Bananal, restando uma área do Parque Nacional do Araguaia, ao norte da ilha, com 177.466 ha, que está legalmente sob domínio exclusivo do IBAMA. Diante das novas demandas dos Karajá e Javaé pelo reconhecimento também dessa área como terra indígena, um novo Grupo Técnico foi designado pela FUNAI em 13.10.2003 (Portaria n° 957). O grupo foi coordenado pelo antropólogo da FUNAI Alceu C. Mariz, que veio a falecer em 2005, não concluindo os trabalhos. Em fins de 2006, o PPTAL e a FUNAI abriram edital para nova identificação da área (ver Mapa n° 9 e carta topográfica), cuja proposta é apresentada aqui.

214 – A invasão da Ilha do Bananal

O médio Araguaia é caracterizado por um regime de inundações periódicas (ver Lima Filho, 1994) que divide o ciclo anual entre a estação da seca (o rio começa a secar em meados de maio, aproximadamente, atingindo o ápice da seca em setembro ou outubro) e a estação da cheia (o rio começa a encher em novembro, aproximadamente, atingindo o ápice da enchente em março ou abril). As inundações produzem o alagamento da Ilha do Bananal e planícies adjacentes às margens dos rios Araguaia e Javaés durante vários meses do ano, tornando impossível a instalação de casas e o tráfego de carros na região inundada. A única alternativa para estes últimos são as poucas estradas aterradas construídas pelo governo local, não existindo até o momento nenhuma estrada deste tipo dentro da Ilha do Bananal, que só é atravessada por carros na seca, de julho a outubro. O regime de inundações foi, em certa medida, um impeditivo histórico à colonização mais intensa da região. As aldeias e suas roças, sedes de fazendas, casas de posseiros e pequenas cidades situam-se nos poucos pontos a salvo das cheias, como Tavener (1966) e Toral (1982) já disseram. Devido às peculiaridades climáticas e ambientais do vale do Araguaia, as savanas periodicamente inundáveis são constituídas de vegetação natural propícia à pastagem. Diferentemente do que ocorre nas áreas não-inundáveis, a Ilha do Bananal tem “clima úmido com pequena ou nenhuma deficiência hídrica” (Atlas do Tocantins, 2001:7), de modo que suas pastagens naturais não secam totalmente durante o período de estiagem. Aproveitando-se dessas facilidades, o próprio SPI introduziu a criação de gado na aldeia Karajá de Santa Isabel no final dos anos 20 (Baldus, 1948). Tavener (1973) relata que, nos anos 60, os funcionários do SPI entre os Karajá dedicavam muito mais atenção à criação de gado, por meio da qual o órgão indigenista esperava obter rendimentos, do que aos índios92. Em entrevista ao à imprensa (Ricardo, 2004:501), o presidente da FUNAI em 1972, General Bandeira de Melo, comentava orgulhoso que “as aldeias e postos da Ilha do Bananal estão num surto de desenvolvimento cada vez maior”:

92 Ver o relatório do chefe do Posto Getúlio Vargas, da aldeia Karajá de Santa Isabel, de 1964, sobre o abate controlado do rebanho bovino do posto para a “compra de utilidades essenciais” (Microfilme da FUNAI n° 271, fotograma n° 1386).

215 “(...) Contou o general que em Santa Isabel do Morro, o pequeno aglomerado perto do campo de pouso (asfaltado), o abatedouro de gado da Funai é todo em azulejo. ‘O açougue também’, completou. (...) Quanto à pecuária, frisou, ‘o rebanho está cada vez mais belo: há de 2.500 a 3 mil cabeças de gado’ (Jornal do Brasil, 31/03/1972)”.

Em 1986, segundo Pétesch (2000), a FUNAI criava 8.000 cabeças de gado para as comunidades indígenas e seus funcionários. A autora também observou que a posse de gado pelas comunidades Karajá, estimulada pelo SPI e, depois, pela FUNAI, serviu para estimular conflitos internos entre as famílias de líderes e o restante da população, o que pode ser estendido aos Javaé. Com a instalação de fazendas dedicadas à agropecuária nas margens do Araguaia e Javaés ao longo dos anos, a ilha tornou-se o refúgio predileto para o gado das fazendas vizinhas durante a estação da seca. A construção de Brasília, nos anos 50, e da rodovia Belém-Brasília (BR-153), nos anos 60 e 70, estimularam de forma irreversível a penetração e ocupação do centro-oeste brasileiro. A partir da década de 60, houve uma intensificação da invasão de criadores de gado na Ilha do Bananal, chegando a tal ponto que, em 9.4.1969, a própria FUNAI, recém-criada, instituiu uma cobrança de taxa pelo uso “das pastagens, aguadas e trânsito de animais” através da Portaria nº 81. O SPI já tinha planos de cobrar pelo “arrendamento” da área em 196393. Segundo Toral (1981:77), “até 1969 os posseiros e arrendatários do Parque pagavam ‘aforamento’ à prefeitura de Formoso do Araguaia”. A criação do Parque Nacional do Araguaia não teve grande efeito prático quanto à proteção ambiental da ilha, pois só os pequenos criadores de gado foram retirados do parque e os brasileiros continuavam a pescar na ilha com redes e dinamite em 1966 (Tavener, 1966). Fénelon Costa (1978:18) calcula que, nos anos 70, havia na ilha “aproximadamente 100.000 cabeças de gado na estação das chuvas e 200.000 durante a estiagem”. O ato da FUNAI contribuiu para legitimar indevidamente a invasão do PNA e do PIA, de modo que o número de invasões aumentou consideravelmente, atingindo seu auge nos anos 80. Na época, dois povoados estavam consolidados dentro da Ilha do Bananal, embora situados nas margens do Rio Javaés: Porto Piauí (antes conhecido como São João do Javaés) e Barreira do Pequi (ao lado da atual aldeia São João) eram habitados por posseiros de baixa renda, em sua maioria dedicados à criação de gado, pesca e agricultura.

93 Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1429.

216 Porto Piauí, o maior deles, chegou a ter cerca de 1.000 pessoas em meados dos anos 90 (Bonilla, 1997, 2000). Segundo dados da SUCAM, havia 11.000 moradores não-índios na Ilha do Bananal em 1990 e, de acordo com a FUNAI (Lima Brito, 2007), 300.000 cabeças de gado utilizavam suas pastagens naturais em 1991. O arrendamento das pastagens é um fenômeno histórico associado mais aos Javaé e ao território que ocupam do que aos Karajá. Na estação seca, o gado entra na Ilha do Bananal mais facilmente através de sua porção oriental, atravessando o Rio Javaés, que é bem mais estreito e raso que o Araguaia, como já havia sido mencionado por Aires de Casal (1945) em 1817. Os moradores não-índios da ilha dividiam-se historicamente entre os posseiros de residência permanente, em sua maioria campesinos de baixa renda, e os “retireiros”. Estes últimos são moradores de residência temporária (dos “retiros”) que entram na Ilha do Bananal todos os anos, quando as águas começam a baixar, na condição de empregados (vaqueiros) das fazendas de médio e grande porte da região, sendo encarregados de cuidar do gado durante a estiagem. O gado é criado “na larga”, solto, e contribui para a introdução de doenças entre os animais silvestres e para a destruição das roças, dos cemitérios indígenas, da vegetação nativa e sua substituição por pragas antes inexistentes. Quando visitei o cemitério da antiga aldeia Wariwari, em 1997, este havia sido tombado recentemente pelo IPHAN a pedido dos Javaé, que colocou uma placa no local, em razão do gado ter pisoteado e quebrado algumas das urnas funerárias ali existentes. Toral (1981:77) descreve o estado de tensão crescente entre os posseiros e os Javaé na década de 70, em especial na aldeia Canoanã, onde os primeiros desmatavam áreas para o plantio de roças e “começavam a formar um verdadeiro cinturão em torno à aldeia”; e também o início da retirada esporádica de posseiros, a partir de 1972, feita pelos funcionários da FUNAI com o apoio dos índios. Em 1976, o chefe do Posto Canoanã, Albertino Soares, promoveu algumas desapropriações e diversas famílias foram “retiradas da área sem indenização e muitas vezes com o uso indevido da violência” (1981:78). O autor (1999:25) afirma ainda que em 1978 os líderes de Canoanã “passaram a controlar a verba dos arrendamentos próximos” da aldeia. Bonilla (1997) registrou a insatisfação crescente dos Javaé com as cercas e porteiras que limitavam o seu trânsito para expedições de pesca dentro da Ilha do Bananal, antes um território livre. Em 1989, um grupo de índios

217 Javaé denunciou a invasão de posseiros junto à Procuradoria Geral da República e o Ministério Público propôs uma Ação Civil Pública, que resultou em uma determinação judicial para que a FUNAI retirasse os invasores, colocasse fim aos contratos de arrendamento irregulares e impedisse a entrada de estranhos ao parque indígena. Em 1990, os Javaé estavam divididos entre os que aprovavam o arrendamento das pastagens, cuja renda era recolhida pelos fiscais da FUNAI e os caciques de algumas aldeias, e aqueles que eram contra o arrendamento. Na época havia forte campanha dos funcionários locais do órgão indigenista contra o fim dos aluguéis (ver Rodrigues, 1993). Em fins de 1991, a FUNAI criou o Grupo de Trabalho Interinstitucional (GTI), por meio da Portaria n° 1296/91, que contou com a participação de várias entidades governamentais e não governamentais, além de representantes dos posseiros e dos índios Karajá e Javaé, destinado a promover estudos e medidas práticas para a remoção, indenização e assentamento dos não-índios fora da Ilha do Bananal. No mesmo ano, foi criada a COMIBA (Comissão Indígena da Ilha do Bananal), associação dos Javaé e Karajá que participou ativamente do processo de evacuação da ilha, apesar da resistência articulada tanto pelos pequenos posseiros quanto pelos grandes proprietários de gado e políticos locais (ver Bonilla, 1997). Durante os anos 90, a FUNAI realizou um levantamento fundiário e deu início à retirada dos moradores não-índios, em colaboração com os índios, o que contribuiu para um agravamento da tensão entre os Javaé e os regionais. Em 1994, segundo o laudo de vistoria e avaliação de benfeitorias realizado pela FUNAI (1994), havia 930 retiros dentro da Ilha do Bananal, com uma população de cerca de 4.650 pessoas94. Parte dos posseiros foi considerada como cliente da reforma agrária e assentada em áreas de antigas propriedades particulares, adquiridas pelo INCRA, situadas em terras vizinhas à Ilha do Bananal, no Estado do Tocantins: antiga fazenda Capão de Côco, da Companhia Brahma na região do Rio Loroti (com 29.000 ha para 413 famílias, segundo Bonilla, 2000:16), e parte da antiga fazenda do grupo BRADESCO, próxima a Canoanã. Nos dois casos, trata-se de área inundável durante a estação das chuvas, em sua maior parte imprópria à moradia permanente, tendo havido uma perda da qualidade de vida dos posseiros. Com o fim das

94 Segundo informações obtidas junto à FUNAI de Gurupi em 2007, a população de não-índios era calculada multiplicando-se o número de retiros por 5, que seria o número médio de pessoas por casa.

218 operações da FUNAI em 1997, a ilha como um todo sofreu um considerável esvaziamento populacional de não-índios na sua porção mediana e setentrional, tendo inclusive havido uma recuperação visível da fauna e flora local em razão disso. Segundo Toral (1999:31), 789 ocupantes da terra indígena “foram considerados como invasores de boa-fé, com direito a indenização”. Apesar do esforço empreendido pela FUNAI, que instalou postos de fiscalização em pontos diversos do Rio Javaés (ver FUNAI, 1999, Lima Brito, 2007), e pelos índios Karajá e Javaé, não se conseguiu retirar todos os moradores não-índios, em especial aqueles de maior renda. Alguns dos moradores que resistiram à desocupação portavam armamento pesado e na porção meridional da ilha, onde ainda vive a maioria dos ocupantes, existem proprietários de casas luxuosas. A decisão judicial em favor da desocupação da ilha gerou uma série de recursos legais por parte dos moradores não-índios ainda nos anos 90, os quais alegaram em sua defesa o pagamento de taxa pelo arrendamento da terra durante décadas, além de questionarem o modo como foram feitas as indenizações aos ocupantes considerados de boa-fé e o valor das mesmas atribuído pela FUNAI. Duzentos e onze moradores não-índios ainda vivem na Terra Indígena Parque do Araguaia amparados legalmente, ainda que de modo provisório. O processo judicial continua se arrastando e, no presente momento (2007), segundo a Procuradoria Federal em exercício na FUNAI de Gurupi, a Justiça está procedendo à reavaliação pericial dos valores da indenização determinados pela FUNAI (ver Porantim, 2007). O momento-símbolo desse processo de recuperação territorial, descrito e analisado em maior profundidade por Bonilla (1997, 2000, 2003), ocorreu durante a retirada tensa, porém sem violência, dos moradores regionais do povoado Porto Piauí em 1995. Na ocasião, índios Javaé e Karajá construíram casas de palha nas ruas do vilarejo e deram prazo de alguns meses para a saída dos não-índios. O movimento de tomada das casas dos brancos, onde os índios passaram a morar desde então, for liderado por Ijahuri Karajá, então presidente da COMIBA. O líder Karajá tinha grande envolvimento com o movimento indígena nacional, tendo participado da fundação da UNI (União das Nações Indígenas) e da ECO-92, e foi apoiado por famílias Javaé, em sua maioria, às quais se juntaram outras famílias Karajá posteriormente. A nova aldeia, considerada uma aldeia “misturada” pela autora (2000:4), pois lá coabitam Javaé, Karajá e brancos casados com índios em maior

219 proporção que nas outras aldeias, é localizada em um sítio referido pela mitologia e é denominada desde então “Aldeia Txuiri”. Aproximadamente na mesma época, os moradores não-índios de Barreira do Pequi também deixaram o lugar. O arrendamento das pastagens para não-índios, contudo, nunca foi totalmente interrompido. Quando a decisão judicial suspendeu os contratos de arrendamento ilegais da FUNAI no início dos anos 90, os Javaé e os Karajá de algumas aldeias, como Santa Isabel (ver Almeida, 2006b), a mais próxima dos invasores do lado Karajá, decidiram continuar cobrando pelo aluguel enquanto os não-índios não fossem totalmente retirados do local. Uma minoria de posseiros de baixa renda não chegou a sair da ilha, continuando a pagar aos índios pelo direito de moradia. Nos últimos anos, embora o grupo como um todo não tenha uma posição unânime em relação a essa questão, os caciques das aldeias Javaé da Terra Indígena Parque do Araguaia têm novamente permitido a entrada periódica de vaqueiros e gado na área indígena. Estes não têm autorização, contudo, para que se fixem em moradia permanente, de modo que os retireiros são impedidos de abrir roças, por exemplo. O CIMI regional (Porantim, 2007) calcula em cerca de 4.500 os não índios morando na TIPA atualmente, número que inclui os moradores fixos e a grande maioria de vaqueiros transitórios. Segundo relatório da FUNAI de Gurupi (Lima Brito, 2007), além dos 211 moradores amparados por decisão judicial, há outros 94 fazendeiros que moram na Terra Indígena Parque do Araguaia com base em acordos mantidos com os índios de algumas aldeias. Em 2006, havia 95.065 cabeças de gado circulando na Ilha do Bananal (ADAPEC, 2006). No caso dos Javaé mais setentrionais, quando a Terra Indígena Inãwébohona foi demarcada, em 2002, sob o regime de dupla afetação, permaneceu, entretanto, o conflito de interesses e competências entre o órgão indigenista e os índios, de um lado, e o IBAMA, de outro, sobre uma mesma terra da União. Os Javaé da aldeia Txukòdè, que ficou dentro da nova terra indígena, resolveram também alugar os pastos de sua área, cujo exemplo foi seguido pelos Javaé de Boto Velho em 2003. A entrada de gado na área foi um componente a mais no histórico de conflitos com o IBAMA, embora nunca tenha havido arrendamento de pastagens na área específica do atual Parque Nacional do Araguaia. Em 2005, o IBAMA obteve uma liminar judicial garantindo a retirada dos não- índios e do gado do Parque Nacional do Araguaia (incluindo a Terra Indígena

220 Inãwèbohona), de modo que os Javaé do norte da ilha entraram em confronto direto com os fiscais do órgão ambiental mais uma vez. Houve então um acordo intermediado por representantes do Ministério Público e da FUNAI para a retirada do gado da área de do Araguaia estão totalmente desocupados de não-índios e bovinos. Apenas alguns Javaé têm gado próprio na Terra Indígena Inãwébohona. Os Javaé de Txukòdè criaram em 2003 a Associação Ilha Verde, presidida por Valter Waxure, que acabou se responsabilizando pelo Projeto de Vigilância, com recursos do PPTAL, da área demarcada. O projeto está sendo implementado também pelos moradores das aldeias Boa Esperança, Wariwari e Boto Velho, em parceria com o PPTAL, que apóia o desenvolvimento de atividades sustentáveis não predatórias (ver PPTAL, 2005 e Cavalleiro, 2005). O dinheiro obtido com o aluguel das pastagens é agora importante fonte de renda entre os Javaé da Terra Indígena Parque do Araguaia. Em 1999, os Javaé criaram a organização indígena CONJABA (Conselho das Organizações Indígenas do Povo Javaé da Ilha do Bananal), da qual participa a maioria das aldeias, tornando-se responsável pelo controle sobre a arrecadação proveniente do arrendamento e pela fiscalização da entrada de bovinos na área95. Em 1998, em razão de nunca terem conseguido a instalação de um posto indígena da FUNAI na aldeia, os moradores de Boto Velho decidiram fundar a Associação Natureza Viva da Ilha do Bananal (ANVIB), que participa do movimento indígena estadual e cujo principal objetivo desde então tem sido firmar convênios ou parcerias com entidades governamentais e a busca de uma autonomia econômica96. Apesar do contato muitas vezes difícil com os criadores de gado locais, os Javaé, com raras exceções, nunca viveram a experiência histórica de trabalhar como empregados das fazendas vizinhas. Em uma situação atípica, a comunidade de Canoanã, nos anos 80, possuía um rebanho de gado – adquirido dos criadores como pagamento pelo uso da terra –

95 Em 2003, a CONJABA firmou convênio com a FUNASA, instância governamental responsável pela saúde indígena, adquirindo o poder de gerenciar a verba respectiva e indicar vários Javaé para as novas funções assalariadas na área da saúde. 96 Tendo como motivo o seu histórico específico de relações com a sociedade nacional, a grande distância em relação ao Pólo Base de Formoso do Araguaia e conflitos internos, os Javaé setentrionais decidiram não fazer parte da CONJABA. O atendimento à saúde nas aldeias Boto Velho e Wakòtyna é feito separadamente pela Base de Apoio da FUNASA instalada na Lagoa da Confusão em 2007, por meio da ONG Projeto Rondon, após de uma série de reivindicações do grupo junto ao Ministério Público e à FUNASA.

221 que era cuidado por vaqueiros regionais, os quais trabalhavam como empregados da comunidade. Atualmente, alguns índios possuem gado próprio, que é criado por vaqueiros não-índios em retiros da ilha. Nas grandes aldeias do lado Karajá da Ilha do Bananal, também há situações diferentes conforme a aldeia no que se refere ao aluguel das pastagens. Segundo informações obtidas em campo, em 2007, a aldeia Santa Isabel, a mais próxima dos invasores, arrecadou aluguel de cerca de 150 retiros instalados na área de sua influência, chegando a um total de 180.000,00 reais. Além disso, a comunidade de Santa Isabel seria proprietária de cerca de 1000 cabeças de gado. Já os Karajá de Fontoura, por sua vez, não alugam pastagens a ninguém. Os Karajá de Macaúba alugavam pastagens no passado, mas a prática foi interrompida por sete anos depois da evacuação oficial da Ilha do Bananal. Recentemente, em 2006, os moradores de Macaúba decidiram solicitar à Procuradoria Federal, em Palmas, solicitação para alugar pastos – na área da Terra Indígena Parque do Araguaia – enquanto não é resolvida a pendência judicial sobre a saída dos não- índios que ainda estão na área meridional da ilha. A solicitação foi atendida e os novos contratos com os fazendeiros são feitos por escrito e têm validade de um ano, podendo ser renovados. A procuradoria impôs, entretanto, e foi aceito, que os contratos terão de ser suspensos definitivamente quando houver a decisão judicial definitiva autorizando a retirada dos não-índios. Agora existem 10 retiros alugados a terceiros e a fiscalização da Ilha do Bananal pelos Karajá de Macaúba (combustível e alimentação) é feita com essa renda. Diferentemente de Santa Isabel, no entanto, a comunidade de Macaúba não tem mais o gado de outrora, que se extinguiu.

222 7. Diferenças e semelhanças históricas entre os Karajá e os Javaé

Há importantes diferenças relativas ao contexto histórico entre os Karajá e Javaé. Os Karajá, que desde os primeiros registros históricos dos séculos 17 e 18 sempre tiveram suas aldeias situadas nas margens do Rio Araguaia, embora em pontos diferentes (ver Toral, 1992), não sofreram o processo histórico de deslocamento da população de aldeias interioranas para a margem do rio, o que acarretou mudanças no padrão de relacionamento dos Javaé com o meio ambiente (ver Costa Júnior, 1999). Por outro lado, os Karajá têm uma experiência de convivência próxima com os não-índios muito mais antiga que os Javaé, responsável tanto pela exacerbação dos efeitos mais deletérios do contato como por um esforço mais antigo, e com resultados mais visíveis, de apropriação dos novos bens, conhecimentos e espaços de poder. Assim, os Karajá têm uma visibilidade nacional muito maior, apesar do processo mais geral de apagamento da presença indígena no imaginário regional (Portela, 2006), e uma maior presença em espaços institucionais importantes. Como alguns exemplos significativos, temos o caso de Watau Karajá, da aldeia Santa Isabel, que acompanhou o Presidente Getúlio Vargas, de avião, ao Rio de Janeiro, onde visitou o Palácio do Catete (ver Pinheiro, 1994), teve fotos suas estampadas nas capas das mais conhecidas revistas nacionais da época (Gutemberg, 1975), negociou a instalação do Hotel JK com Juscelino Kubitschek, em troca de benfeitorias na aldeia, e foi recebido pelo presidente em Brasília, no Palácio do Planalto (Lima Filho, 2001); Ijahuri Karajá, que participou do movimento indígena nacional e ocupou um cargo na Secretaria de Ação Social do Governo de Tocantins a partir de 1992; de Isariri Karajá, que visitou os Estados Unidos em companhia do antropólogo Manuel F. Lima Filho nos anos 90 e é o atual chefe da administração regional da FUNAI em São Félix do Araguaia; e Kõhalue Karajá, que desde 2005 atua como Gerente do Núcleo Indígena da Secretaria de Cidadania e Justiça do Governo do Tocantins e foi empossado recentemente como o representante dos índios do Estado de Tocantins na Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), instalada pelo governo federal em 19 de abril de 2007. Vários Karajá já são formados em cursos superiores, experiência ainda não alcançada por nenhum Javaé, ou já foram eleitos para cargos públicos, o que só um Javaé conseguiu até agora.

223 Na presente década, houve uma crescente inserção dos Javaé em movimentos políticos mais amplos, seja por meio da ida cada vez mais freqüente de representantes indígenas aos centros políticos regionais ou a Brasília, em busca de soluções para questões variadas juntos aos órgãos governamentais, ou por meio da participação no movimento indígena nacional, como na marcha dos 500 anos, em 2000, em Porto Seguro (BA), ou na mobilização “Abril Indígena”, que ocorre todos os anos em Brasília desde 2004. Em 2004, pela primeira vez na história, um Javaé (o presidente da CONJABA, Darci Makurehi) foi eleito como vereador (pelo Partido Liberal) do município de Formoso do Araguaia. Os Javaé passaram a ter uma maior visibilidade no Estado de Tocantins e passaram a ser convidados, por autoridades locais e de outros estados, para solenidades oficiais e apresentações de danças, pinturas, músicas etc, chegando a se orgulhar que suas exibições são consideradas “mais bonitas” que a dos vizinhos Karajá. O tráfego fluvial pelo Araguaia, “uma veia aberta nas terras Karajá” (Lima Filho, 1994:28), trouxe um número muito maior de bandeirantes, missionários, diversos agentes do Estado, pesquisadores de diferentes áreas, exploradores de minérios, aventureiros, jornalistas, comerciantes, turistas e pescadores, entre outros. A fauna aquática e terrestre abundante deslumbrava a todos que viajavam e escreviam sobre o Araguaia, como os jornalistas paulistas Hermano Ribeiro da Silva (1935) e Willy Aureli (1962a, 1962b, 1963), que lá chegaram pela primeira vez na década de 30. A popularidade cada vez maior do Araguaia e dos Karajá (ver Chiara, 1970) atraiu os presidentes da República Getúlio Vargas, em 1940, Juscelino Kubistchek, em 1960, e Costa e Silva, em 1969, que visitaram a aldeia Karajá Santa Isabel com o intuito, a princípio, de pescar e caçar na região. Posteriormente, visitaram a aldeia os governadores Henrique Santillo, de Goiás, em 1988, e Siqueira Campos, de Tocantins, em 1989 (Pinheiro, 1994, Lima Filho, 2006). Como os governantes do século 19 já haviam notado, a aldeia Santa Isabel, dos Karajá, ocupa uma “posição espacial estratégica” (Lima Filho, 1994:25) para adentrar a Amazônia. Por essa razão, Santa Isabel foi fortemente impactada pela ação estatal depois do início da Marcha para o Oeste (Lima Filho, 2001). A construção de uma primeira pista de avião pelo SPI e pela FAB em 1950 transformou a aldeia em um local de visita regular de turistas nacionais e estrangeiros endinheirados e em um centro de vendas de artesanato (Chiara, 1970). Em 1960, o fluxo de não-índios aumentou consideravelmente com a

224 Operação Bananal e as ações da Fundação Brasil Central, que resultaram na instalação do Hotel JK, de um hospital indígena, de um destacamento da Aeronáutica e de uma base área da FAB, desativada somente em 199297. A FBC destruiu casas e roças indígenas da aldeia e contou com o trabalho de seus moradores, que realizaram pequenos serviços (Aureli, 1963). Os Karajá foram convidados para participar da primeira missa oficial de Brasília em 1957 e estamparam a cédula de Cr$ 1.000,00 (um mil cruzeiros) no ano de 1990, como lembra Lima Filho (1994, 2001). Alguns dos aglomerados populacionais do Araguaia transformaram-se em cidades (São Félix do Araguaia, Luciara e Santa Terezinha) situadas em locais muito próximos das grandes aldeias Karajá, acentuando tanto as possibilidades de trocas variadas como o grave problema do alcoolismo. No caso Javaé, não existe nenhum vilarejo ou cidade às margens do Rio Javaés, embora banhistas, pescadores e turistas aglomerem-se em algumas de suas praias no mês de julho, quando o rio já está secando. Os núcleos urbanos da região estão situados a uma distância mínima de 40 km da margem do Rio Javaés em razão tanto das inundações em suas margens como da impossibilidade de navegação durante o período crítico da seca. O impacto maior nas aldeias Javaé se deu menos pela ação do Estado e pela indústria do turismo, que até hoje não tem grande relevância, se comparada ao caso Karajá, que pela penetração de criadores de gado e pescadores profissionais na Ilha do Bananal e arredores. O arrendamento das pastagens esteve sempre mais associado aos Javaé, como já foi dito, embora nos últimos anos as grandes aldeias Karajá (Santa Isabel, Fontoura, Macaúba) também tenham permitido a entrada de gado em terras sob o seu controle enquanto permanece a pendência judicial com os não-índios que ocupam a ilha. Há indícios de que a pesca comercial também foi praticada em maior escala no território Javaé, embora os Karajá de várias aldeias também trabalhem com a pesca comercial do pirarucu e outros peixes98, que são vendidos para comerciantes que chegam às aldeias vindos das cidades mais recentes e próximas do Mato Grosso, por via terrestre, ou das cidades mais antigas e distantes do Pará, por via fluvial, incluindo Belém. Os Javaé historicamente tiveram uma maior acesso aos lagos e rios do interior da Ilha do Bananal,

97 Ver Tavener (1973), Pinheiro (1994), Lima Filho (2001). 98 Ver Schultz (1953), Tavener (1973), Fénelon Costa (1978), Pétesch (2000).

225 vendendo peixes aos comerciantes que chegam à área principalmente por via terrestre, em especial dos estados de Tocantins e Goiás. Como o leito do Rio Javaés seca bastante de julho a outubro, compradores de peixes profissionais ou pescadores amadores podem atravessar o rio de carro em vários pontos e entrar na ilha durante a seca, o que não ocorre no Rio Araguaia. A Fundação Brasil Central não teve nenhuma atuação direta nas aldeias Javaé, que também sempre permaneceram mais distantes do fluxo maior de turistas. Em algumas aldeias Karajá, como Santa Isabel, a maior fonte de renda monetária vem da nacionalmente conhecida e apreciada cerâmica figurativa fabricada pelas mulheres99, que não é mais cultivada entre os Javaé há muitos anos, e que contribui para um outro panorama de relações econômicas e sociais internas100. As missões religiosas protestantes ocuparam o espaço deixado pelos missionários dominicanos e foram muito presentes entre os Karajá até recentemente, tendo imposto “restrições alimentares e culturais” (Lima Filho, 1994:28)101. Elas atuaram em favor da melhoria das condições de saúde, mas também influenciaram decisivamente para que os Karajá abandonassem suas aldeias antigas e se concentrassem em poucas aldeias, o que contribuiu para a perda de áreas de ocupação tradicionais e para a intensificação de conflitos internos. Por outro lado, a atuação política da famosa Prelazia de São Félix do Araguaia, até recentemente comandada por Dom Pedro Casaldáliga, e do CIMI, ambos de origem católica, foi determinante nos anos 70 e 80, em especial, para o processo de reconhecimento oficial das terras Karajá localizadas no Estado do Mato Grosso (Terra Indígena Tapirapé/Karajá e Terra Indígena São Domingos). As organizações religiosas tiveram pouca presença entre os Javaé, comparativamente, apesar do SIL ter treinado monitores bilíngües nos anos 70 e ter traduzido a bíblia para a língua Karajá. Bonilla (1997, 2000) menciona a atuação de

99 Ver Castro Faria (1959), Chiara (1970), Fénelon Costa (1978), Bueno (1987), Lima Filho (1994). 100 Uma única mulher Javaé se dedica à fabricação de bonecas e panelas de barro, com fins comerciais, na aldeia Canoanã. Segundo a explicação que ouvi em 1990, antigamente os Javaé praticavam a arte cerâmica nas aldeias interioranas, incluindo a fabricação de bonecas, que foram vistas por Krause (1940-1944) em 1908, de modo que ainda se encontram urnas funerárias ou restos delas nos antigos cemitérios abandonados (ver Toral, 1999). Wilma Chiara (1970) não encontrou bonecas Javaé na aldeia do Riozinho que visitou em 1959, mas obteve alguns exemplares depois de encomendá-las a uma mulher. Nas novas aldeias pós-contato, como Canoanã, não existe o tipo de barro considerado adequado para tal. 101 Ver Tavener (1973), Bueno (1975), Donahue (1982), Toral (1992), Pinheiro (1994), Pétesch (2000), Cruz (2005).

226 missionários de origem protestante entre os Javaé de Txuiri e, desde meados dos anos 90, o CIMI iniciou e intensificou sua atuação política entre o grupo como um todo. Além das diferenças contextuais entre os Javaé e os Karajá, há também diferenças relativas à história entre os próprios Karajá. Wilma Chiara (1970) constatou nos anos 50 diferentes influências da sociedade envolvente entre os Karajá meridionais e os setentrionais (que não se confundem com os Xambioá). Enquanto os Karajá da ponta norte da Ilha do Bananal e arredores sofriam mais o impacto das frentes de extração de produtos naturais (em especial a fauna aquática), oriundas do baixo Araguaia e de Belém, os Karajá da ponta sul da ilha e arredores estavam muito mais expostos à crescente indústria do turismo, originada no centro e no sul do país, diferença que ainda se mantém. Baldus (1970) considerou os Karajá setentrionais como mais “rudes” e “pobres” em termos de cultura material que os meridionais, enquanto Tavener (1973) enfatizou o contraste entre extração de diamantes e agricultura de subsistência ao sul da ilha e criação de gado ao norte, no que se refere à população ribeirinha, além das diferentes especialidades artesanais de cada aldeia Karajá conforme os recursos disponíveis (buriti ao norte, madeira ao sul etc). Tal divergência era apenas um capítulo a mais em uma história de diferentes frentes de penetração ao território indígena iniciada nos séculos 16 e 17, uma vez que já naquela época havia uma diferença entre os bandeirantes vindos de São Paulo, ao sul, e os jesuítas vindos de Belém, ao norte. Na segunda metade do século 19, o contraste se dava entre as frentes agropecuárias instaladas em Leopoldina, ao sul, e as de Santa Maria e outras localidades do baixo Araguaia e Tocantins, ao norte. Note-se por fim que a população Karajá estabilizou-se no início do século 20, como já havia argumentado Donahue (1982), mantendo-se localizada ao longo do médio Araguaia, onde sempre esteve, ao contrário do que ocorreu com os Javaé, que vivenciaram no século passado um processo dramático de deslocamento territorial e de grandes perdas populacionais. Os dois grupos tinham uma população, cada um, com cerca de 800 pessoas (um pouco mais no caso Javaé) em 1908, segundo Krause (1940-1944). Em 1978, porém, enquanto os Javaé chegavam a menos de 300 pessoas (Toral, 1992), os Karajá alcançavam cerca de 1.500 pessoas (Donahue, 1982). George Donahue chegou à conclusão de que os Karajá sofreram uma perda de mais de 90% da população original desde o início do contato, nos séculos 17 e 18, o que pode ser estendido aos Javaé, apesar de suas

227 peculiaridades históricas. Nos últimos 30 anos, porém, os dois grupos têm recuperado seu contingente populacional de forma acelerada. Atualmente (dezembro de 2007), a população Javaé é de cerca de 1400 pessoas, enquanto a população Karajá alcança quase 3000 pessoas. Apesar das diferenças mencionadas, é notável, entretanto, que existem semelhanças estruturais no modo como os Karajá e Javaé interagem historicamente com a sociedade nacional. Os dois grupos são alguns dos poucos povos indígenas da antiga Capitania de Goiás que sobreviveram às capturas e grandes mortandades promovidas pelos bandeirantes, à política repressora dos aldeamentos, às epidemias trazidas pelos colonizadores em épocas diferentes e à invasão crescente do seu território. Além disso, vários pesquisadores destacam a notável capacidade de resistência cultural dos Karajá e Javaé, que souberam dialogar com as mudanças drásticas impostas pelo contato mantendo aspectos essenciais da estrutura social, ritual e cosmológica anterior102. Tal capacidade relaciona-se em grande parte à sua habilidade cultural e histórica de estabelecer relações pacíficas e de trocas variadas com os povos vizinhos, de modo similar ao que ocorreu no alto Xingu, enfatizando mais o engrandecimento mútuo do que o desejo de conquista ou aniquilamento dos diferentes. A persistência das formas tradicionais não implica em rigidez ou fechamento da estrutura social, mas o contrário, pois existe uma capacidade flexível de incorporar o que vem de fora sem desfazer de modo irreversível a estrutura que foi herdada. Esta se perpetua, a um só tempo, apesar e por causa do Outro. Fenelón Costa (1978) mostrou como, mesmo se levando em conta a situação adversa em que se encontravam, os Karajá do século 20 souberam enriquecer a sua arte cerâmica a partir das novas influências externas, ao invés de permitir o caminho mais fácil da sua descaracterização completa. Bonilla (1997, 2000, 2003), por sua vez, em sua análise do processo de tomada do vilarejo Porto Piauí, em que os índios passaram a morar nas casas dos brancos, em uma “aldeia” sem Casa dos Homens, recusou-se a enfocar o novo espaço em termos de uma etnologia da “aculturação”, como em Bueno (1975, 1987). A autora mostrou convincentemente que os Javaé e Karajá souberam reproduzir a estrutura espacial e cosmológica tradicional no novo

102 Baldus (1948), Lipkind (1940), Fénelon Costa (1978), Donahue (1982), Toral (1992), Pétesch (1992), Lima Filho (1994), Whan (1998), Maia (2001).

228 lugar, ainda que de forma limitada e improvisada, de modo que a tradição inclui também transformação (ver Sahlins, 1985). As transformações como um todo têm sido abruptas e velozes, mas têm ocorrido conjuntamente ao movimento mais geral de recuperação do contingente populacional, de reocupação de parte do território tradicional, o qual os Karajá e Javaé nunca abandonaram, de maior participação na arena política regional e nacional e, mais recentemente, de questionamento crescente quanto às atividades econômicas prejudiciais ao meio ambiente (pescaria comercial em larga escala e arrendamento de pastagens). Tudo isso tem se dado paralelamente a uma revitalização das formas tradicionais de ser. O Hetohokỹ Javaé, por exemplo, ápice do ciclo ritual anual da Dança dos Aruanãs, que era realizado quase todos os anos, em todas as aldeias, teve sua continuidade interrompida por muitos anos após o contato, tendo sido realizado apenas seis vezes entre a década de 50 e 90, somente em Canoanã. Embora os mais velhos digam que os jovens não estão mais interessados como antes na vida ritual, de 1991 até agora, no entanto, com a escolha de um novo chefe ritual, os Javaé realizaram nove rituais de iniciação completos, quatro em Canoanã, um em Wariwari, um em Boto Velho, dois em São João e um em Barreira Branca, além de várias outras versões menores. Quase todas as aldeias têm insistido em construir a Casa dos Homens, centro de uma vida ritual intensa, e continuar realizando a Dança dos Aruanãs, cerimônia que integra toda a coletividade e conecta os Javaé aos ancestrais mágicos do Fundo das Águas. Entre os Karajá, onde a maioria dos observadores externos, incluindo agentes dos próprios órgãos públicos, insiste em enxergar apenas alcoolismo, suicídio e o lixo industrializado que agora faz parte do cotidiano, a vida ritual e a cosmologia que a sustenta se perpetuam notavelmente nas grandes aldeias. Os novos desafios ambientais, sociais, políticos e econômicos têm sido acompanhados da busca de novas soluções por parte da população Karajá e Javaé, que tem dado o exemplo histórico de ser capaz de se reinventar criativamente dentro de um contexto adverso. A concepção nativa de que os humanos (“O Povo do Meio”) ocupam um lugar intermediário no cosmos, entre um extremo associado simbolicamente à continuidade da ordem (rio acima) e outro à transformação da realidade (rio abaixo), não é apenas uma

229 concepção espacial e simbólica, mas antes de tudo uma postura de mediação constante entre a perpetuação da tradição e os novos desafios históricos (ver Rodrigues, 2004, 2005).

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