Pontifícia Universidade Católica de PUC-SP

Alberto Rodrigues de Freitas Filho

A BATALHA POLÍTICO-MIDIÁTICA DO MOVIMENTO BRASIL LIVRE: mídia, gênero e sexualidade como alvos da desinformação nas redes sociais

Mestrado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital

São Paulo 2019

Alberto Rodrigues de Freitas Filho

A BATALHA POLÍTICO-MIDIÁTICA DO MOVIMENTO BRASIL LIVRE: mídia, gênero e sexualidade como alvos da desinformação nas redes sociais

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Tecnologias da Inteligência e Design Digital — área de concentração em Processos Cognitivos e Ambientes Digitais; linha de pesquisa Design Digital e Inteligência Coletiva, sob a orientação da Profa. Dra. Pollyana Ferrari Teixeira.

São Paulo 2019

Banca Examinadora

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RESUMO

Este trabalho se propõe a analisar como se estabelece uma batalha entre os mediadores tradicionais e os novos mediadores na era da pós-verdade, tendo como exemplo a ação político- midiática do Movimento Brasil Livre (MBL). Ao disseminar narrativas nas mídias sociais, identificadas com uma ideologia ultraconservadora cada vez mais influente na esfera pública, o grupo conquista visibilidade e seguidores em um contexto de guerra cultural. Por meio de análise de discursos, buscamos compreender as motivações do MBL, que tinha como alvo todos os que se propunham ao debate progressista sobre gênero e sexualidade no período abrangido por esta pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE: Mídia, Política, Pós-verdade, Desinformação, Conservadorismo.

ABSTRACT

This paper proposes to analyze how a battle between the traditional mediators and the new mediators is established in the post-truth era, taking as example the political-media action of the Free Movement (MBL). By disseminating narratives in social media, identified with an ultraconservative ideology increasingly influential in the public sphere, the group gains visibility and followers in a context of culture war. Through discourse analysis, we sought to understand the motivations of the MBL, which was aimed at all those who proposed the progressive debate on gender and sexuality in the period covered by this research.

KEYWORDS: Media, Politics, Post truth, Disinformation, Conservatism.

À Alaíde, empregada doméstica, manicure, pedicure, cozinheira, feirante, costureira, dona de casa e mãe amada eternamente.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe, Alaíde Pereira de Freitas (in memoriam), pela alma feminina e guerreira que está impregnada em meu DNA e pelos estímulos à minha formação, desde os meus primeiros rabiscos nas páginas em branco do seu velho caderno de receitas culinárias.

Ao meu pai, Alberto Rodrigues de Freitas, pelos jornais de domingo, pelas revistas em quadrinhos da Turma da Mônica e pelos livros que despertaram meu interesse pela leitura e pela arte de contar histórias.

Ao meu amor e companheiro para todas as horas, Leonardo Geraldo Vaz, que dormiu ao meu lado nas minhas noites mal dormidas, por me forçar a ter momentos de descontração e de relaxamento ao longo desses dois anos de mestrado.

À orientadora e amiga, Pollyana Ferrari Teixeira, pelas palavras de apoio, pela inspiração e, principalmente, pela humanidade, ao me guiar nesse caminho novo que comecei a percorrer na pesquisa acadêmica.

Às demais professoras e aos demais professores da PUC-SP e de outras instituições que me permitiram acessar novas camadas de conhecimento sobre o meu objeto, o que não teria sido possível sem a ajuda delas e deles.

Às funcionárias e aos funcionários da PUC-SP, especialmente à Edna Conti, pelas informações prontamente fornecidas e por todo o auxílio que recebi durante o meu Mestrado.

Às colegas e aos colegas do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo no Estado de São Paulo (Sescoop/SP) e da Cruzeiro do Sul Educacional pelo apoio e pela paciência durante esse período em que dividi meu tempo entre o trabalho e a pós-graduação.

Às amigas e aos amigos por perdoarem a minha ausência em alguns compromissos nesse período e por me apoiarem neste e em todos os outros projetos da minha vida. Sem o amor de tantas pessoas, eu não teria chegado até aqui.

— O que você pensa que é verdade talvez não seja o que eu penso — comentou Hugo: — Somos traduzidos em palavras. As palavras não querem dizer nada. Servem só para formar uma verdade comum a todos, que afinal não é de ninguém.

SABINO

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Batalha de Narrativas no caso Marielle. Fonte: FGV/DAPP...... 22 Figura 2 - Arthur do Val, ligado ao MBL, compra a briga de empresário contra procuradora. Fonte: Facebook...... 80 Figura 3 - Ecossistema da rede do MBL. Fonte: Monitor do Debate Político no Meio Digital...... 87 Figura 4 - Evolução do número de fãs do MBL no Facebook. Fonte: Socialbakers...... 102 Figura 5 - Distribuição das categorias de acordo com a abordagem das extremidades. Fonte: Elaborado pelo autor...... 111 Figura 6 - Postagem do Jornalivre em 11/10/2017. Fonte: Facebook...... 113 Figura 7 - Postagem do Ceticismo Político em 6/10/2017. Fonte: Facebook...... 115 Figura 8 - Postagem do Jornalivre em 28/9/2017. Fonte: Facebook...... 117 Figura 9 - Postagem do Ceticismo Político em 6/11/2017. Fonte: Facebook...... 119 Figura 10 - Postagem do Ceticismo Político em 9/10/2017. Fonte: Facebook...... 121 Figura 11 - Postagem do Jornalivre em 12/9/2017. Fonte: Facebook...... 122

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Tipos de posts coletados pela ferramenta Socialbakers ...... 104 Tabela 2 – Postagens selecionadas para o corpus da pesquisa ...... 105 Tabela 3 - Categorias de análise de discurso ...... 111

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 12 1 DO FATO AO FAKE: REFLEXÕES SOBRE O FENÔMENO DA PÓS-VERDADE 22 1.1 A verdade como construção intersubjetiva ...... 28 1.2 A verdade e a modernidade ...... 33 1.3 Trump e a política da desinformação ...... 38 1.4 O plebiscito do Brexit e a polarização ...... 41 1.5 O Brasil e a política na era do WhatsApp ...... 43 2 A BATALHA ENTRE OS MEDIADORES TRADICIONAIS E OS NOVOS MEDIADORES ...... 48 2.1 Confiança nos mediadores tradicionais em declínio...... 50 2.2 Ressignificando a verdade no jornalismo ...... 55 2.3 O “Momento Waldo” e a política dos memes ...... 61 2.4 A fragmentação da opinião pública: políticas identitárias e guerras culturais ...... 67 3 MBL: UMA ORGANIZAÇÃO POLÍTICO-MIDIÁTICA ...... 76 3.1 MBL: do protesto à ação político-midiática ...... 82 3.2 O ecossistema político-midiático do MBL ...... 85 3.3 A mola reprimida: a direita na mídia ...... 90 3.3.1 Jornalivre ...... 92 3.3.2 Ceticismo Político ...... 94 3.3.3 O Diário Nacional ...... 95 3.3.4 O Reacionário ...... 96 3.4 MBL News e a política transmídia ...... 97 4 METODOLOGIA: DADOS QUALITATIVOS E ANÁLISE DE DISCURSO ...... 101 4.1 Seleção do corpus ...... 103 4.2 Análise de discurso como metodologia ...... 105 4.2.1 Abordagem crítica das extremidades como referencial teórico...... 108 4.2.2 Categorias da análise de discurso ...... 109 4.3 Procedimentos de desconstrução no discurso do MBL ...... 112 4.4 Procedimentos de contaminação no discurso do MBL ...... 116 4.5 Procedimentos de compartilhamento no discurso do MBL ...... 120 5 GÊNERO E SEXUALIDADE NA MIRA DO MBL ...... 123 5.1 Da identidade de gênero à “ideologia de gênero” ...... 127 5.2 Agenciamentos midiáticos heteronormativos...... 129 5.3 A estética alt-right e os discursos de ódio ...... 131 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 136 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 141

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa de mestrado se dedicou a analisar como se configura uma batalha político- midiática, possibilitada pela evolução recente das tecnologias da informação e comunicação (TIC), que agora podem ser e são usadas como armas de combate. Essa batalha não se resume apenas à confrontação ideológica entre direita e esquerda, entre conservadores e progressistas, entre “coxinhas” e “mortadelas”. Embora tenha como pano de fundo um cenário de intensa polarização, esse confronto se estabelece, sobretudo, entre os mediadores tradicionais e os novos mediadores.

De um lado do campo de batalha, estão as organizações midiáticas corporativas ou “hegemônicas”, desafiadas por um cenário de ampla popularização das TIC e de expansão do acesso à no qual qualquer cidadão é, ao mesmo tempo, produtor e consumidor de conteúdo. Do outro lado, grupos “contra-hegemônicos” ou “antissistema” instrumentalizam e ocupam as mídias digitais para estabelecer um contraponto às mídias tradicionais, com as quais disputam atenção, cliques e interações. Em ambos os lados, há praticamente os mesmos interesses em jogo, sejam econômicos, políticos ou pessoais. Na linha de tiro, estão artistas, jornalistas, professores e todos os que se propõem ao debate sobre gênero e sexualidade no contexto analisado. Afinal, de acordo com Hardt e Negri (2005, p. 37), “muitas vezes ao longo da história várias outras esferas sociais têm sido sobrepostas à guerra, para apresentar o inimigo como uma encarnação do mal, algo repugnante ou sexualmente pervertido”.

Assim, o conceito de guerra que exploramos se inspira na obra Multidão: guerra e democracia na era do império, em que os autores discorrem sobre o emprego metafórico da palavra “guerra” para tratar de situações de competição ou conflito em que não há necessariamente o uso de violência letal, a exemplo da política interna de um país, das competições esportivas e da concorrência comercial, entre outras.

Esse emprego metafórico serve para chamar a atenção para os riscos, a competição e conflito que estão envolvidos nessas diferentes atividades, mas também pressupõe uma diferença fundamental em relação à guerra real. Em outros casos, o discurso metafórico da guerra é invocado como manobra política estratégica para conseguir a total mobilização de forças sociais em torno de um objetivo de união que é típico de um esforço de guerra. (HARDT; NEGRI, 2005, p. 34).

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Como em todas as situações de guerra, reais ou metafóricas, os mais vulneráveis são aqueles que estão sujeitos aos mecanismos de dominação e que, muitas vezes, são recrutados para combater em favor de um dos lados dessas disputas. Nesse campo de batalha metafórico, as armas utilizadas são os computadores, smartphones, tablets e outras TIC; as massas se dividem e guerreiam entre si, somando-se a exércitos ou milícias digitais que bombardeiam as redes sociais com informações manipuladas, imprecisas ou falsas. Enquanto sites de redes sociais são utilizados como armas de destruição em massa, a desinformação é usada como munição com um alcance praticamente incalculável, assim como são incalculáveis e imprevisíveis os seus danos.

Para exemplificarmos como age uma das principais forças de combate nessa batalha aqui chamada de político-midiática, esta pesquisa se lança sobre a ação organizada do grupo denominado MBL (Movimento Brasil Livre), caracterizada pelos embates frequentes com os veículos de comunicação tradicionais, especialmente aqueles que o referido grupo afirmava estarem posicionados “à esquerda” do espectro político, como o – o maior conglomerado de mídia do Brasil e um dos maiores do mundo. Na mira do MBL, também estavam veículos como o jornal Folha de S. Paulo, a revista Veja e a revista Carta Capital.

Até mesmo a rede social Facebook, que tem mais de 2 bilhões de usuários em todo o mundo, foi alvo da ofensiva do MBL. O ápice se deu no dia 25 de julho de 2018, quando o Facebook removeu 197 páginas e 86 perfis no Brasil, após uma rigorosa investigação. Foram removidas páginas e perfis ligados ao MBL, enfurecendo os líderes do movimento, que enxergaram nessa medida uma forma de censura. Em comunicado, Nathaniel Gleicher, líder de cibersegurança do Facebook, afirmou que tais páginas e perfis eram parte de uma rede coordenada, “que se ocultava com o uso de contas falsas no Facebook, e escondia das pessoas a natureza e a origem de seu conteúdo com o propósito de gerar divisão e espalhar desinformação”.1

Diante desse cenário, no contexto de um programa de estudos pós-graduados na área de Tecnologias da Inteligência e Design Digital, não temos como objetivo analisar em profundidade a atuação política do MBL, uma vez que nossa pesquisa não se desenvolve no campo das Ciências Sociais ou Ciências Políticas, embora possa se fundamentar a partir de bibliografia comum a essas áreas. Buscamos compreender, prioritariamente, como se estabelece a ação midiática do referido grupo no Facebook, que também se apresenta como

1 Disponível em: . Acesso em: 25 jul. 2018. 14

ação política, na medida em que é instrumentalizada de modo a potencializar a visibilidade e o alcance das pautas políticas que interessam ao MBL e aos seus aliados.

Em nossa concepção, a ação político-midiática de que tratamos neste trabalho é estruturada por meio de um sistema simbólico, nos moldes do que foi descrito por Bourdieu (2014, p. 6). Para o autor, “os símbolos são instrumentos por excelência da integração social: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação”. Portanto, os sistemas simbólicos se apresentam como instrumentos que visam à integração social e ao consenso para a reprodução de uma ordem social, que é condicionada a uma integração moral. “O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2014, p. 4).

É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que a fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a domesticação dos dominados. (BOURDIEU, 2014, p. 7-8).

Por isso, acreditamos que a batalha político-midiática de que tratamos aqui se estabelece, principalmente, no campo simbólico. É nele que se insere o fenômeno chamado de “pós-verdade”, que, ao mesmo tempo em que tenta dar conta de novas manifestações de poder simbólico na esfera pública, ainda se apresenta como um conceito a ser melhor elaborado do ponto de vista teórico e epistemológico. O termo pós-verdade foi elegido em 2016 como a “palavra do ano” pelo Oxford Dictionaries (WORD, 2016). Segundo o dicionário, trata-se de um adjetivo que “expressa ou denota circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e às crenças pessoais”.2 Fortalecido pelo potencial de viralização das redes sociais, o poder simbólico da pós-verdade é exercido por quem se mostra mais capaz de atrair a atenção, os cliques e as interações dos usuários, mobilizando-os em torno de crenças intersubjetivas.

Essas crenças são, muitas vezes, fundamentadas em interesses escusos, desconhecidos ou ignorados pela opinião pública. Seus motivadores ou impulsionadores, baseados ou não em

2 Tradução livre. No original: “an adjective defined as ‘relating to or denoting circumstances in which objective facts are less influential in shaping public opinion than appeals to emotion and personal belief’”. 15

fatos objetivos, podem ser os políticos, os líderes empresariais e os líderes religiosos, entre outros, que detêm grande poder simbólico exercido com o auxílio dos meios de comunicação de massa. Para exemplificar, remontamos à década de 1950, quando executivos da indústria de tabaco se reuniram e decidiram financiar pesquisas que confirmassem que o fumo não era prejudicial à saúde. Assim foi criado o Tobbaco Industry Research Comittee, com a missão de convencer o público de que não havia provas de que o hábito de fumar cigarros causasse câncer, argumento baseado na negação de pesquisas científicas que afirmavam o contrário. (MCINTYRE, 2018, p. 22-23).

A negação da ciência, característica da pós-verdade, também se apresenta no debate sobre as mudanças climáticas que estão elevando as temperaturas no planeta. De acordo com McIntyre (2018, p. 27), “o aquecimento global é talvez o caso mais notório da moderna negação da ciência.” Quem entra em cena para financiar pesquisas que põem em dúvida as evidências científicas sobre mudanças climáticas provocadas pela ação do homem é a indústria de combustíveis fósseis. Entre as organizações envolvidas nesse esforço, estava o think tank Heartland Institute, que tinha entre os financiadores a Exxon Mobil e os irmãos Koch.

Essas campanhas pró-tabaco e pró-petróleo são exemplos de um sistema simbólico baseado na negação da realidade que leva à desinformação, também característica da pós- verdade.3 De acordo com o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.BR),

[...] quando informações são inventadas para produzir lucro ou comprometer a reputação das pessoas passam a influenciar o debate público nas redes e fora delas. Uma característica natural desses conteúdos é que são produzidos de forma organizada e intencional para enganar. (COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL, 2018, p. 38).

Para o CGI.BR, o fenômeno da desinformação é mais amplo do que o atribuído ao termo “notícias falsas”, que, segundo o órgão, já teria caído em desuso. Em nossa abordagem, utilizamos ambos os termos para explicar ou explicitar fenômenos que analisamos nesta pesquisa.4 De todo modo, não discordamos da abordagem do CGI.BR sobre o tema,

3 Embora os termos pós-verdade e fake news sejam utilizados em contextos semelhantes, eles remetem a conceitos diferentes, ainda que interdependentes. O fenômeno da pós-verdade tem como característica gerar um ambiente mais propício à disseminação de notícias falsas, que já eram produzidas e distribuídas muito antes de a pós-verdade estar sob os holofotes. 4 Embora alguns dos personagens políticos tenham se apropriado indevidamente do termo em benefício próprio – especialmente aqueles já reconhecidos como propagadores de informações falsas –, entendemos que o termo fake news está popularizado e é aceito pela opinião pública. 16

especialmente quando o órgão afirma que a desinformação inclui não somente as notícias falsas, “mas também a publicação proposital de uma notícia antiga ou fora de contexto e a mobilização de grandes grupos – ou até mesmo robôs – para reforçar determinados discursos” (COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL, 2018, p. 38). De acordo com Kakutani (2018, p. 11), o problema não se resume às notícias falsas, pois, segundo a autora, “também existe a ciência falsa (produzida por negacionistas das mudanças climáticas e anti-vaxxers, os ativistas do movimento antivacina)” e “a história falsa (promovida por revisionistas do Holocausto e supremacistas brancos)”.5 Ela também menciona os perfis falsos criados por trolls no Facebook e os seguidores e likes falsos, gerados por bots, nas redes sociais.

Com a massificação do uso de novas TIC, o alcance e a velocidade com que a desinformação se dissemina aumentam exponencialmente. E foi nesse contexto que os norte- americanos escolheram, em 2016, como o 45º presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump. Durante a campanha, o então candidato republicano travou uma intensa batalha contra a sua adversária democrata, a senadora Hillary Clinton, marcada pela desinformação, baseada na troca de acusações, frases de efeito, boataria e informações não verificadas. Depois de eleito, Trump continuou apelando à desinformação para contra-atacar os grupos que ele escolheu como inimigos já no primeiro ano de governo. Assim, o presidente “ataca rotineiramente a imprensa, o sistema de justiça, as agências de inteligência, o sistema eleitoral e os funcionários públicos responsáveis pelo bom funcionamento do governo norte-americano” (KAKUTANI, 2018, p. 12).

Entre os vários fatores que podem ter influenciado o resultado da eleição presidencial daquele país, que surpreendeu os EUA e o mundo, está a ação de um exército de apoiadores das pautas conservadoras e anti-imigração, cujo campo de ação se dá, principalmente, nas redes sociais. Entre eles, encontra-se o movimento identificado com a ideologia da “direita alternativa”, Alternative Right ou alt-right, caracterizado pela ação de grupos organizados em torno de pautas conservadoras nas redes sociais, fóruns de discussão, blogs e outras mídias digitais colaborativas. De acordo com Marwick e Lewis (2017, p. 3), esses grupos reúnem subculturas da internet, formadas por conspiracionistas, tecno-libertários, nacionalistas

5 No Brasil, os revisionistas questionam o uso do termo “Ditadura Militar” para descrever o regime de governo que vigorou no Brasil entre os anos de 1964 e 1985. 17

brancos, defensores dos “direitos masculinos”, trolls, antifeministas, ativistas anti-imigração e jovens “entediados”. De acordo com Castells (2018, p. 51-52):

Nesse caldo de cultura floresceram grupos racistas, neonazistas e antissemitas, que haviam ficado na penumbra e viram chegar seu momento. Organizaram- se como alt-right (direita alternativa) e começaram a influir na campanha de Trump através de sua presença em meios de comunicação xenófobos com uma crescente reputação entre os nativistas norte-americanos. Um desses meios foi o Breitbart News. Seu diretor executivo, Steve Bannon, conectou-se com Trump e passou a dirigir a última fase da campanha dele a partir de agosto de 2016.

Embora não se possa atribuir apenas a esses atores os préstimos pela vitória de Trump, estudos recentes revelam que eles foram fundamentais para que a campanha do candidato republicano atingisse essas subculturas que, na maioria das vezes, não são impactadas pelas mídias hegemônicas, uma vez que elas não se situam no campo de interesses desse público. É diante do descrédito das organizações midiáticas tradicionais, somado a essas subculturas, que ganham cada vez mais visibilidade e poder de mobilização por meio das mídias digitais, que também se discute o conceito de pós-verdade. Para muitos desses descontentes, a “verdade” pode e deve ser moldada de acordo com os seus próprios interesses, já que as mídias tradicionais reproduziriam apenas o discurso daqueles que se contrapõem às pautas defendidas por esses grupos em suas redes informais.6

Entretanto, os ataques à verdade não estão limitados aos Estados Unidos. Pelo mundo todo, ondas de populismo e fundamentalismo estão fazendo com que as pessoas recorram mais ao medo e à raiva do que ao debate sensato, corroendo as instituições democráticas e trocando os especialistas pela sabedoria das multidões. (KAKUTANI, 2018, p. 12).

No Brasil, acontecimentos recentes na esfera política, que levaram à eleição do candidato ultradireitista Jair Bolsonaro, com 55,13% dos votos, revelam que também há uma ação organizada de grupos identificados com um discurso neoconservador, reverberado por meio das redes sociais. A diferença já começa na semântica, pois alguns dos grupos brasileiros se apresentam como adeptos do “liberalismo”, embora defendam pautas que guardem mais

6 De acordo com Jasper (2016, p. 106), “redes informais podem crescer, transformando-se em subculturas, com estilos distintos de vestimenta, preferências em matéria de táticas e ideias não compartilhadas pelo restante da sociedade. As subculturas formam um tipo de estufa em que novas instituições morais podem ser encorajadas e vivenciadas, e onde ideias podem ser expressas sem inspirar repressão ou enfrentar o ridículo”. 18

semelhança com o discurso da direita alternativa norte-americana, também apelando – muitas vezes de forma sutil e outras nem tanto – à reafirmação de preconceitos e de outras formas de intolerância para conquistar seguidores e eleitores por meio da disseminação de discursos de ódio. Diante desse cenário, esta pesquisa parte da hipótese de que o campo de ação do MBL e de outros grupos assemelhados, ao travarem uma batalha político-midiática nas redes sociais em defesa das pautas neoconservadoras e, também, às vezes, contra as pautas progressistas, pode ser entendido como um modelo brasileiro que se aproxima da estética política criada pelos adeptos da alt-right.

É a partir dessas proposições que procedemos à análise dos conteúdos que compõem o corpus da pesquisa, publicados na página do MBL no Facebook entre os meses de setembro e novembro de 2017. Por meio de ferramenta de monitoramento de redes sociais, coletamos os dados do nosso corpus e verificamos que, no período analisado, o movimento fortaleceu sua visibilidade nas redes sociais ao promover campanha contra duas manifestações artísticas: a exposição Queermuseu, no Santander Cultural, em Porto Alegre, e a apresentação da performance La Bête, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo.7

Com a postagem de links para websites e blogs que compunham um ecossistema político-midiático, foram divulgadas informações que se propunham a validar e a colocar em evidência as posições intersubjetivas de líderes e seguidores do MBL, que relacionavam sistematicamente essas duas expressões artísticas à prática de pedofilia. Tendo o período em que ocorreram esses episódios como recorte temporal para a nossa análise, tentamos responder à questão que fundamenta o problema da pesquisa: como a ação político-midiática do Movimento Brasil Livre, baseada na distribuição de conteúdo com valor de notícia por meio do Facebook, está alinhada a práticas que possam ser identificadas com a aplicação do conceito de “pós-verdade” na esfera midiática brasileira?

Embora ainda não haja uma grande variedade de estudos que analisem em profundidade a ação político-midiática de grupos como o MBL na internet brasileira, é possível crer que esses movimentos se fortaleceram durante os protestos de junho de 2013, que levaram às ruas milhões

7 A exposição Queermuseu, que abordava temáticas relacionadas à cultura queer, foi realizada pela primeira vez no Santander Cultural, em Porto Alegre, entre os dias 15 de agosto e 10 de setembro de 2017, sendo encerrada pelo Banco Santander 30 dias antes do previsto, após o banco ceder à pressão de políticos e religiosos conservadores. Apenas 16 dias após o encerramento da Queermuseu, em 26 de setembro de 2017, o corpo nu do coreógrafo Wagner Schwartz era manipulado pelos espectadores em uma sala do no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), onde foi gravado um vídeo que mostrava uma criança de aproximadamente cinco anos e sua mãe interagindo com o artista durante a apresentação da performance La Bête.

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de brasileiros nas principais cidades do país contra o aumento das tarifas dos ônibus urbanos municipais. Embora as mobilizações tenham sido encabeçadas pelo Movimento Passe Livre (MPL) – que tinha um viés socialista, mas apartidário –, “grupos conservadores se organizaram na internet para pegar carona nos atos” (SAKAMOTO, 2013, p. 97).

As Jornadas de Junho marcaram o início de uma era em que os acontecimentos políticos mais importantes do país, à direita ou à esquerda, tomam forma nas redes sociais, onde ganham força, visibilidade e adesão, para então ocupar os espaços públicos, de onde realimentam as mesmas redes em que foram gestados. São as “redes de indignação e de esperança” de que trata Castells (2017). Foi delas também que surgiram as manifestações contra a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, as mobilizações pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2015 e 2016 e os protestos contra o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco em 2018.

E como num mundo de redes digitais em que todos podem se expressar não há outra regra além da autonomia e da liberdade de expressão, os controles e censuras tradicionais se desativam, as mensagens de todo tipo formam uma onda bravia e uniforme, os bots multiplicam e difundem frases lapidares aos milhares, e o mundo da pós-verdade, do qual a mídia tradicional acaba participando, transforma a incerteza na única verdade confiável: a minha, a de cada um. (CASTELLS, 2018, p. 28).

É nesse mundo de incertezas, sem controles e sem censura, que o MBL encontrou um terreno fértil nas redes sociais para se firmar como um dos grupos políticos mais influentes do Brasil. Organizado em torno de uma ampla rede que reúne ativistas, blogueiros, executivos e empresários identificados com o pensamento da “nova” direita, o MBL surge aliado a think tanks ultraliberais que atuam no país desde os anos 1980, como o Instituto Mises Brasil, o Instituto Ordem Livre, a seção brasileira do norte-americano Cato, o Instituto Liberal de São Paulo, o Instituto Liberal do Nordeste e o Instituto Mercado Popular, entre outros. De acordo com Rocha (2017), figuras diretamente associadas à “nova direita brasileira”, como Kim Kataguiri e Fernando Holiday (integrantes do MBL), o humorista Danilo Gentili, o YouTuber Arthur do Val (canal Mamãe Falei) e os políticos da família Bolsonaro, “representam apenas a ponta do iceberg de uma rede mais ampla e capilarizada que reúne simpatizantes, militantes e lideranças distribuídos por todo o território nacional”.

Conectados via internet, boa parte daqueles que passaram a compor a nova direita foi sendo formada política e ideologicamente a partir da segunda metade dos anos 2000, época em que começou a ser fundada uma série de 20

novas organizações cuja principal finalidade é disponibilizar arsenal teórico e treinamento político de qualidade com o intuito de conquistar cada vez mais adeptos para seu ideário: os think tanks ultraliberais. (ROCHA, 2017).

Para Antunes (2015), “guardadas as proporções, há vários pontos em comum entre o proselitismo ultraconservador no Brasil e nos Estados Unidos”. Segundo ela, há uma semelhança dos grupos liberais e ultraliberais brasileiros com as ideias do movimento norte- americano Tea Party. Tanto no Brasil como nos Estados Unidos, há “duas vertentes que se entrecruzam: uma, ligada às igrejas neopentecostais, dá ênfase aos ‘valores morais’; outra, liberal, prega cortes nos impostos e na previdência social”.

Tal qual a direita americana, a brasileira ataca a ampliação dos direitos sociais que aqui marcou a transição para a Nova República e a Constituição de 1988. Cultiva a aversão à elite acadêmica e vê as universidades como “antros de Marilenas Chauis” [...]. Outra característica que a direita brasileira compartilha com a americana é a exploração do ressentimento de setores que se consideram prejudicados pela legislação trabalhista, a rede de proteção social para os pobres, as cotas para negros – também nos Estados Unidos, programas destinados a equalizar as oportunidades foram qualificados de “socialistas”. (ANTUNES, 2015).

Rocha (2017) lembra que o MBL chegou a atuar sob o nome de Renova, que depois foi substituído por Movimento Brasil Livre, permitindo ao grupo reativar a página do Facebook abandonada em 2013. Segundo ela, os ultraliberais contribuíram para a fundação e a reativação do grupo, passando a atuar de forma mais ativa na política institucional. Diferentemente dos thinks tanks liberais existentes até 2005, vinculados ao PFL (atual DEM) e ao PSDB, eles buscaram uma inserção partidária ampla, “de modo que, ao mesmo tempo que procuram atuar em partidos tradicionais de direita e centro-direita, como o Partido Progressista (PP), o DEM e o próprio PSDB, também tentam se organizar de forma mais orgânica em outros partidos.”

Como resultado dessa inserção partidária e do alinhamento à política institucional, o MBL teve sua primeira conquista eleitoral relevante em 2016, ano em que um dos principais líderes do movimento conquistou uma cadeira na Câmara Municipal de São Paulo como vereador: Fernando Holiday obteve 48.055 votos concorrendo pelo DEM. Dois anos depois, em 2018, foi a vez de Kim Kataguiri ser eleito como deputado federal com 465.310 votos – sendo o quarto mais votado pelos eleitores paulistas. Já o youtuber Arthur do Val, outro integrante do grupo, foi eleito deputado estadual com 478.280 votos – o segundo mais votado 21

para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Kim e Arthur também concorreram pelo DEM.

Essas vitórias eleitorais expressivas marcaram a chegada do MBL às três esferas do Poder Legislativo: municipal, estadual e federal. Isso nos leva a crer que o grupo, que já se destacava por alcançar números expressivos de interações com os conteúdos por ele postados nos sites de redes sociais, aparentemente já consegue converter curtidas, comentários, compartilhamentos e visualizações em votos na urna eletrônica. Diante dessa constatação, mais do que nunca, é necessário compreender como funciona o sistema simbólico estabelecido pela “nova direita” para conquistar seguidores e eleitores na chamada era da pós-verdade. Nossa pretensão, por meio desta pesquisa, é provocar algumas reflexões e gerar subsídios para que essa compreensão seja possível, ao menos em parte.

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1 DO FATO AO FAKE: REFLEXÕES SOBRE O FENÔMENO DA PÓS-VERDADE

Quarta-feira, 14 de março de 2018. Por volta das 21h30, a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram executados a tiros no interior de um carro na Rua Joaquim Palhares, no bairro do Estácio, . O espaço público mais uma vez se tornava cenário da violência urbana já costumeira no Brasil. Embora, para muitos, não tenha passado de um crime comum, para outros, o crime era mais complexo e tinha motivações mais obscuras do que aparentava. Em meio à polêmica que tomou forma nas redes sociais, houve mais de 2.140.000 menções ao acontecimento na rede social Twitter, entre as 22h do dia 14 de março (dia do crime) e a meia noite do dia 18 de março, segundo a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas.8 Diante de tamanha repercussão, rapidamente, o “público” foi colonizado pelo “privado”. Para Bauman (2001, p. 51), isso acontece quando “o interesse público é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas”.

De acordo com o estudo da FGV, houve três grandes ondas nas redes sociais durante a batalha de narrativas, que se deu a partir da repercussão do assassinato, da divulgação de notícia falsa que relacionava Marielle com o crime organizado e da reação do público ao boato, conforme se vê na Figura 1.

Figura 1 - Batalha de Narrativas no caso Marielle. Fonte: FGV/DAPP.

8 Disponível em: . 23

No caso Marielle, a maior mostra de que o privado colonizou o interesse público foi a divulgação de informações falsas por uma desembargadora do Rio de Janeiro no Facebook. De acordo com checagem realizada pela agência de fact-checking Aos Fatos, Marilia Castro Neves reproduziu informações que circulavam no aplicativo de mensagens WhatsApp afirmando que Marielle “foi casada com um traficante e tinha associação com o crime”.9 O boato também foi reproduzido (e depois apagado) pelo deputado federal Alberto Fraga, do partido Democratas, pelo Twitter.10 Além dessas informações não verificadas, foi amplamente divulgada uma foto em que uma mulher, que se supunha ser Marielle, estava sentada no colo de um homem que seria um traficante conhecido como Marcinho VP. A imagem, assim como os boatos, revelou- se falsa.

O MBL (Movimento Brasil Livre), por sua vez, tornou-se protagonista no caso Marielle, ao replicar a informação falsa no Facebook, alcançando 360.000 compartilhamentos de acordo com reportagem divulgada pelo jornal (CARIELLO; GRILLO, 2018a). A postagem replicada teve origem na página Ceticismo Político, que era ligada ao pseudônimo de Luciano Ayan, utilizado por um dos integrantes do MBL, conforme veremos adiante no capítulo 3. Em 24 de março de 2018, ao identificar que o perfil de Ayan era falso, o Facebook retirou a página do ar.

Na esfera pública, Marielle era uma vereadora de esquerda que combatia e denunciava os abusos das forças policiais contra a população dos morros cariocas. Na esfera privada, era mãe de uma filha, lésbica e casada com a arquiteta Mônica Benício. Ao repercutirem informações falsas nas redes sociais, tentando polarizar o debate a partir de uma versão não verificada dos fatos, a desembargadora, o deputado e até mesmo movimentos políticos que se opõem à esquerda no Brasil (uma vez que o PSOL, partido de Marielle, situa-se nesse campo do espectro político) ignoraram a verdade e se apropriaram de um falso “privado” para influenciar o debate “público”, exatamente o que Bauman (2001, p. 43) considerava como característico de uma modernidade líquida, em sua atividade incessante de “individualização”:

9 Aos Fatos é um dos projetos de fact-checking brasileiros, que funcionam em muitos casos como agências de notícias que se propõem a verificar, principalmente, o grau de veracidade das declarações de autoridades políticas, bem como de seus porta-vozes e partidos, além de outras organizações, figuras públicas e até mesmo de profissionais da imprensa, segundo Diniz (2017). 10 Disponível em: . 24

Para o indivíduo, o espaço público não é muito mais do que uma tela gigante em que as aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processo de ampliação: o espaço público é onde se faz a confissão dos segredos e intimidades privadas. (BAUMAN, 2001, p. 54).

Para o autor, na sociedade líquida, esse mecanismo da individualização, em que o privado predomina sobre o público, leva à desintegração social e da ação coletiva, o que representa uma nova técnica do poder, levando os atores sociais ao desengajamento e à fuga. É, portanto, nas palavras de Bauman, um poder que se exerce de forma cada vez mais fluida, móvel, escorregadia, evasiva e fugitiva. Logo, “qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado” (BAUMAN, 2001, p. 23).

É no seio dessa sociedade líquida, em que as emoções têm mais importância do que os fatos objetivos na compreensão da realidade, que surge o conceito de “pós-verdade”. Para o pesquisador na área de Filosofia e História da Ciência e autor de Post-Truth, Lee McIntyre, a pós-verdade está relacionada a uma forma de supremacia ideológica em que alguns tentam compelir outros a acreditarem em algo, independentemente de haver ou não haver evidências de que esse algo é verdadeiro. Dessa forma, na visão do autor, a pós-verdade pode servir à dominação política (MCINTYRE, 2018, p. 13).

O jornalista britânico Matthew D’Ancona, um dos primeiros a escrever um livro analisando o fenômeno ora chamado de “pós-verdade", também acredita que a depreciação do valor da verdade tem se mostrado mais evidente no campo da política. No título que dedicou ao tema, o colunista do The Guardian analisa dois fatos recentes em que as crenças intersubjetivas teriam sido mais decisivas do que os fatos objetivos, diante de um cenário de excessiva polarização potencializada pelo uso massivo das redes sociais, com fins eleitorais: a eleição do presidente norte-americano Donald Trump e a decisão favorável à saída da Grã- Bretanha da União Europeia por meio do plebiscito denominado Brexit, que analisaremos adiante.

Para D’Ancona (2017, p. 56), no mundo da pós-verdade, a verdade não é determinada por um processo de avaliação racional, ponderação e conclusão: “você escolhe a sua própria realidade, como se estivesse em um bufê”. Isso vale até mesmo para o modo como as informações são produzidas, distribuídas e consumidas por meio de tecnologias de informação e comunicação (TIC), criando um terreno fértil para a veiculação das chamadas fake news. 25

Embora não caracterizem um problema recente, agora podem ser disseminadas em grande escala, com o auxílio dos bilhões de usuários de sites de redes sociais como o Facebook.

Não é por acaso que algumas análises sobre o papel da mídia na disputa da eleição presidencial norte-americana de 2016 apontam para um cenário em que o resultado pode ter sido influenciado pela divulgação massiva de notícias falsas, boatos e informações não verificadas. No artigo “Social Media and Fake News in the 2016 Election”, de Hunt Allcott e Matthew Gentzkow, os autores analisam o possível impacto da exposição dos eleitores a informações enganosas durante a campanha, apresentando a seguinte definição:

Nós definimos como “fake news” as notícias que são intencionalmente e verificadamente falsas e podem enganar os leitores. [...] Nossa definição inclui notícias intencionalmente fabricadas [...] E também inclui várias notícias que se originam em websites que divulgam sátiras, mas que podem ser entendidas como factuais, especialmente quando visualizadas isoladamente nos feeds do Twitter e do Facebook. (ALLCOTT e GENTZKOW, 2016, p. 213-214).11

De acordo com Pollyana Ferrari (2018, p. 51), “notícias falsas não são frutos da tecnologia”, pois “existem relatos de noticiário falso desde o Império Romano”. Não é novidade que a mentira sempre tenha sido disseminada com objetivos políticos na história da humanidade. Porém, recentemente, alerta Ferrari, a distribuição de notícias falsas se transformou em um negócio lucrativo, com o surgimento de agências especializadas na produção de conteúdo sem checagem em diversos países, a partir de 2013. Elas operam “com baixo custo editorial, ou seja, sem investimento em redações, equipes de checagem, editores e, ainda, abusando de bots, algoritmos [...] criados para espalhar fake news” (FERRARI, 2018, p. 62).

Isso acontece, em parte, como resultado das novas possibilidades de mediação trazidas pelas novas TIC, que permitem a qualquer pessoa ou grupo produzir e compartilhar conteúdos nas redes digitais. Assim, há espaço para que novos atores e novos discursos ganhem visibilidade, inclusive na política. O MBL, por exemplo, é um dos grupos políticos que conquistaram bastante espaço com a geração de conteúdos, especialmente aqueles dirigidos ao

11 Tradução livre. No original: “We define ‘fake news’ to be news articles that are intentionally and verifiably false, and could mislead readers. [...] Our definition includes intentionally fabricated news articles […] It also includes many articles that originate on satirical websites but could be misunderstood as factual, especially when viewed in isolation on Twitter or Facebook feeds.” 26

público jovem, para divulgar bandeiras e pautas políticas. De acordo com reportagem do El País veiculada em 2014:

O grupo está voltado para as manifestações anti-PT, mas seu objetivo é gerar conteúdo cultural em blogs, vídeos, campanhas e canais de televisão, por intermédio de uma start-up ainda engatinhando. Seu projeto busca “mudar a linguagem” associada à direita. (MARTÍN, 2014).

Como parte desse esforço, o grupo contou durante muito tempo com uma rede de blogs e sites que simulava um estilo jornalístico, de modo a estabelecer contranarrativas aos fatos divulgados pela grande imprensa e pela esquerda. Em nossa pesquisa, abordaremos quatro desses sites: Jornalivre, Ceticismo Político, Diário Nacional e O Reacionário.12 Embora o MBL negasse ter qualquer vínculo com os produtores desses conteúdos, há evidências de que o grupo tinha relações de proximidade com eles, como veremos no capítulo 3. Segundo Oliveira (2017), algumas notícias compartilhadas por grupos como o MBL são produzidas por seus próprios idealizadores em jornais particulares, “nos quais, com frequência, fazem uso de análises informativas unilaterais – próximas às que criticam nos meios midiáticos convencionais – sobre fatos orbitantes à política brasileira”.

Essas notícias acabam convencendo muitos de que trazem a mais inquestionável verdade, intocada da manipulação e da doutrinação ideológica universitária, presumidamente dominada por esquerdistas detentores de um conhecimento elitista. Por isso, suas notícias estão impregnadas pela pretensão de “história nunca contada” em defesa do povo. Vencer uma “guerra cultural” parece imprescindível para a chamada “nova direita”. (OLIVEIRA, 2017).

Porém, engana-se quem acredita que a veiculação de notícias falsas seja um fenômeno recente. De acordo com Posetti e Matthews (2018), entre os vários acontecimentos históricos que podem ser relacionados com o surgimento das fake news, a invenção da prensa de Gutenberg em 1493 se destaca por ter amplificado a disseminação de informações incorretas e desinformação. No jornalismo, segundo as autoras, um dos primeiros registros que se tem de notícias falsas é atribuído ao jornal The New York Sun, que teria noticiado em 1835 a descoberta de vida na lua com ilustrações de supostas criaturas lunares. Logo, os conflitos,

12 Curiosamente, alguns desses sites já não estão mais disponíveis on-line ou não são mais atualizados após a veiculação de informações pela grande imprensa que atribuíam a eles a divulgação de notícias falsas e a suspensão das respectivas páginas pelo Facebook, por estarem associadas a perfis falsos. 27

mudanças de regimes de poder e catástrofes seriam os marcos da disseminação de desinformação na história da humanidade.

Como as comunicações de um-para-todos se desenvolveram no século XX, especialmente com o advento do rádio e da televisão, as notícias satíricas evoluíram, às vezes sendo confundidas com a realidade nas mentes dos consumidores de notícias. Finalmente, [...] o advento da internet no fim do século XX, seguida pelas mídias sociais no século XXI, multiplicou dramaticamente os riscos de informações incorretas, desinformação, propaganda e embustes. (POSSETTI; MATTHEWS, 2018, p. 1).13

Outros autores também defendem que o uso político de informações sem compromisso com a verdade vem de longa data e ocorre desde o início da civilização. D’Ancona (2017, p. 31) acredita que, na maior parte da história humana, mitos compartilhados e histórias tribais contribuíram mais para a compreensão do comportamento humano do que a avaliação de evidências verificáveis. “Toda sociedade se fundamenta em lendas que a mantêm unida, moldam os seus limites morais e habitam nos seus sonhos de futuro” (D’ANCONA, 2017, p.31). De acordo com o jornalista, essas narrativas coletivas perderam força com o advento da Revolução Científica e do Iluminismo, momentos históricos marcados pela racionalidade, pluralismo e valorização da verdade como a base para a organização social.

A negação da ciência é o caminho para entender a pós-verdade na opinião de Lee McIntyre. Para ele, o que aconteceu com a ciência nas últimas décadas pode ser entendido como prenúncio desse fenômeno: “os resultados científicos são agora abertamente questionados por legiões de não-especialistas que por acaso discordam deles” (MACINTYRE, 2018, p. 17).14 Mais uma vez o privado se opõe ao público, e, conforme veremos adiante, essa depreciação do valor da verdade atinge não somente a ciência, mas também o jornalismo, as instituições políticas e os próprios políticos, que antes eram depositários da confiança do público. Para Rasmussen (2016, p. 26), isso acontece porque “a ênfase hegemônica na razão e na

13 Tradução livre. No original: “As one-to-many communications developed in the 20th century, especially with the advent of and television, satirical news evolved, sometimes being mistaken as the real thing in news consumers’ minds. Finally, [...] the arrival of the internet in the late 20th century, followed by social media in the 21st century, dramatically multiplied the risks of misinformation, disinformation, propaganda and hoaxes”. 14 Tradução livre. No original: “scientific results are now openly questioned by legions of nonexperts who happen to disagree with them”.

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argumentação tende a não incluir interesses que estão de fora do mainstream político e cultural e que possuem pouco ou nenhum poder formal para apoiar seus pontos de vista”.15

1.1 A verdade como construção intersubjetiva

Historicamente, a verdade sempre foi alvo de profundas reflexões, do ponto de vista filosófico, semântico ou epistêmico. Para Michel Foucault (1998), ela pode ser entendida como um “conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados”. Assim, em Microfísica do Poder, o autor defende que a verdade é dependente do poder, pois não existiria fora dele ou sem ele. “A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder” (FOUCAULT, 1998, p. 12). Portanto, cada sociedade estabelece uma “política geral” da verdade, definindo:

[...] os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 1998, p. 12).

De acordo com Foucault, a relação entre o poder e a verdade se estabelece, todavia, na forma de uma “economia política da verdade”, presente em nossas sociedades em diferentes esferas do poder público, com destaque para as instituições que produzem o discurso científico – e para os intelectuais, a quem o autor dirige boa parte das palavras aqui citadas –, além de outros “aparelhos” políticos e econômicos. Na visão dele, essa economia da verdade se apresenta com cinco características (FOUCAULT, 1998, p. 13):

1) “[...] a ‘verdade’ é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem”;

2) “está submetida a uma constante incitação econômica e política [...]”;

3) “é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo [...]”;

15 Tradução livre. No original: “The hegemonic emphasis on reason and argumentation tends to leave out interests which are outside the political and cultural mainstream and in possession of little or no formal power to back their views”. 29

4) “é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação)”;

5)“enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas ideológicas)”.

É por sua relação intrínseca com o poder que a verdade tem papel destacado nas situações de confrontação entre dominantes e dominados, como objeto de disputa nas lutas ideológicas, em um combate “pela verdade” ou “em torno da verdade”. Assim, “[...] por verdade não quero dizer o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar, mas o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 1998, p. 13). Desse modo, na visão foucaultiana, esse não é um combate “em favor da verdade, mas sim do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha”.

Jürgen Habermas, por outro lado, acredita que esse estatuto se dê em torno de um “acordo público alcançado na comunidade de comunicação”:

Com isso, a intersubjetividade do entendimento mútuo substitui a objetividade da experiência. A relação mundo-linguagem torna-se dependente da comunicação entre falantes e ouvintes. A referência vertical ao mundo, própria das representações dos enunciados sobre algo, é por assim dizer, curvada para a horizontalidade do uns-com-os-outros dos membros da comunicação. A intersubjetividade do mundo da vida, habitado em comum pelos sujeitos, toma o lugar da objetividade de um mundo ao qual se opõe um sujeito solitário [...]. (HABERMAS, 2004, p. 238).

Para Habermas (2004, p. 244), sujeitos interagentes e interatores protagonizam os atos de fala, pois “na práxis cotidiana não podemos usar a linguagem sem agir”. Portanto, é necessário haver um entendimento mútuo entre os atores envolvidos, que devem ter como referente um único mundo objetivo e, com isso, estabilizar o espaço público intersubjetivamente partilhado, “do qual pode se descolar tudo de meramente subjetivo” (HABERMAS, 2004, p. 245). Já Foucault (1998, p. 14) defende que “é preciso antes desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento”.

Rorty (apud Habermas, 2004) salienta que “nada pode valer como justificação a não ser por referência ao que já aceitamos” e conclui que o teste da coerência é necessário para quando 30

saímos de nossa linguagem e de nossas crenças. Porém, o significado do conceito de verdade não pode ser esclarecido apenas à luz da coerência, pois, segundo Habermas (2004, p. 243):

enquanto asserções bem justificadas podem se revelar falsas, compreendemos a verdade como uma propriedade “inalienável” dos enunciados. A coerência depende de práticas de justificação que se deixam guiar ora por esses, ora por aqueles critérios.

Essa justificação, portanto, é possível por meio do desenvolvimento da linguagem. Para Yuval Harari (2015), ela é o segredo para que milhares e até milhões de estranhos possam cooperar eficazmente em uma sociedade. De acordo com o autor, foi a partir da chamada Revolução Cognitiva, ocorrida há mais de 70 mil anos, que o homo sapiens pôde conquistar o mundo com o uso de uma linguagem única e versátil. Característica apenas da nossa espécie, essa linguagem é composta por uma série ilimitada de sons e sinais resultando em infinitas frases, cada uma com um significado próprio. Assim se formou uma “comunidade de comunicação” nos moldes a que se referia Habermas, por meio de um acordo público entre os atores sociais.

A diferença é que essas sociedades primitivas teriam começado a se organizar não em torno da verdade objetiva, mas em torno de mitos partilhados de forma intersubjetiva. “Toda cooperação humana em grande escala – seja um Estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados que só existem na imaginação coletiva das pessoas” (HARARI, 2015, p. 36). Para o autor, o homo sapiens é a única espécie capaz de falar sobre coisas que não existem de fato e acreditar nelas como se fossem verdadeiras, pois, segundo Harari (2015, p. 40), “ao contrário da mentira, uma realidade imaginada é algo em que todo mundo acredita e, enquanto essa crença compartilhada persiste, a realidade imaginada exerce influência no mundo”. Esse é um poder semelhante àquele a que se referia Foucault (1998, p. 14), agora manifesto não a partir de um “regime da verdade”, mas por meio de ordens imaginadas intersubjetivas.

Logo, Harari (2015, p. 125) entende por intersubjetivo “algo que existe na rede de comunicação ligando a consciência subjetiva de muitos indivíduos”, pontuando que pouco importa se um único indivíduo muda sua opinião ou morre, pois o fenômeno intersubjetivo apenas desaparecerá ou se transformará se a maioria dos indivíduos desaparecer ou falecer. “Fenômenos intersubjetivos não são fraudes malévolas nem charadas insignificantes. Eles existem de maneira diferente de fenômenos físicos como a radioatividade, mas seu impacto no 31

mundo ainda pode ser gigantesco” (HARARI, 2015, p. 125). Esses fenômenos, portanto, partem da objetividade para a intersubjetividade no processo comunicativo, apropriando-se da linguagem como o meio para alcançar o entendimento mútuo entre os membros de uma comunidade, por meio da interpretação intersubjetiva da realidade, conforme explica Habermas:

O mundo objetivo não é mais algo a ser retratado, mas apenas o ponto de referência comum de um processo de entendimento mútuo entre membros de uma comunidade de comunicação, que se entendem sobre algo no mundo. Os fatos comunicados não podem ser separados do processo de comunicação, assim como não se pode separar a suposição de um mundo objetivo do horizonte de interpretação intersubjetivamente compartilhado, no qual os participantes da comunicação desde sempre já se movem. O conhecimento não se reduz mais à correspondência entre proposições e fatos. (HABERMAS, 2004, p. 234).

Charaudeau (2010, p. 48) afirma que “verdade e crença, tal como a distinção que operamos entre dois tipos de saber, estão intrinsicamente ligadas no imaginário de cada grupo social”. Nesse sentido, o autor nos alerta para a necessidade de diferenciar “valor de verdade” de “efeito de verdade”. Segundo ele, o primeiro se baseia na evidência, enquanto o segundo se baseia na convicção. Assim, o valor de verdade “não é de ordem empírica”, e o efeito de verdade “está mais para o lado do ‘acreditar ser verdadeiro’ do que para o do ‘ser verdadeiro’” (CHARAUDEAU, 2010, p. 49).

O efeito de verdade não existe, pois, fora de um dispositivo enunciativo de influência psicossocial, no qual cada um dos parceiros da troca verbal tenta fazer com que o outro dê sua adesão a seu universo de pensamento e de verdade. O que está em causa aqui não é tanto a busca de uma verdade em si, mas a busca de “credibilidade”, isto é, aquilo que determina o “direito à palavra” dos seres que comunicam, e as condições de validade da palavra emitida. (CHARAUDEAU, 2010, p. 49).

O efeito de verdade se dá, por exemplo, na esfera pública de reconhecimento descrita por Rasmussen (2016, p. 26), que é diferente da esfera pública habermasiana com sua ênfase estética, afetiva e expressionista. Na esfera de reconhecimento, busca-se, “individualmente e coletivamente, atenção e visibilidade por meio de vários meios não ortodoxos, a fim de reunir apoio e confrontar o poder, a fim de efetuar mudanças para o grupo particular”. Em vez de um acordo comunicacional baseado na argumentação e na razão, há aqui uma tendência dos 32

indivíduos e grupos ao conflito de ideias, por meios simbólicos, retóricos e demagógicos. Assim, um acordo público não pode surgir de deliberação, mas de uma tensão no campo simbólico.

Ao invés de argumentar por melhorias contra o pano de fundo dos interesses universais da sociedade, as melhorias são reivindicadas com base nas condições de vida do grupo real. Por essa razão, as formas de apresentar suas interações e reivindicações não são necessariamente argumentativas, mas muitas vezes simbólicas, retóricas, conflituosas e demagógicas. (RASMUSSEN, 2016, p. 26).16

Também podemos associar o efeito de verdade ao que Nietzsche (2007, p. 29) chamava de “acordo de paz”, que se estabelece porque o homem precisa existir socialmente e em rebanho: “esse acordo de paz traz consigo, porém, algo que parece ser o primeiro passo rumo à obtenção daquele misterioso impulso à verdade”. Ao apresentar uma de suas definições da verdade, o autor a relaciona com a ideia de ilusões e metáforas validadas e consolidadas pelo homem:

O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas que se tornaram desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como moedas. Ainda não sabemos donde provém o impulso à verdade pois, até agora, ouvimos falar apenas da obrigação de ser veraz, que a sociedade, para existir, institui, isto é, de utilizar as metáforas habituais; portanto, dito moralmente: da obrigação de mentir conforme uma convenção consolidada, mentir em rebanho num estilo a todos obrigatório. (NIETZSCHE, 2007, p. 37).

Assim, na visão nietzschiana, as relações humanas, que se dão por “necessidade e tédio”, tendem à dissimulação, à mentira e à abstração. A linguagem dá forma às metáforas humanas, que nunca dão conta de toda a verdade, ou seja, não dão conta de expressar a “coisa em si”.

16 Tradução livre. No original: “Rather than arguing for improvements against the backdrop of the universal interests of society, improvements are claimed on the basis of the living conditions of the actual group. For this reason, the forms of presenting their interests and claims are not necessarily argumentative, but often symbolic, rhetorical, confrontational and demagogic”. 33

1.2 A verdade e a modernidade

Como vimos, para Nietzsche (2007) não é possível separar a verdade da mentira na sociedade moderna. Mentir é parte de uma convenção social que se manifesta de forma inconsciente, pois essa inconsciência é que faz da mentira um meio pelo qual se tenta atingir a verdade. O autor defende que o homem “tem uma inclinação imbatível a deixar-se enganar e fica como que encantado de felicidade quando o rapsodo narra-lhe contos épicos como se estes fossem verdadeiros” (NIETZSCHE, 2007, p. 48). Isso porque estabelecemos uma relação de conveniência com a verdade. Segundo o autor, queremos que a verdade tenha consequências agradáveis, somos indiferentes ao conhecimento puro que não produz consequências e nos mostramos hostis às verdades que se mostram prejudiciais e destruidoras.

Talvez por isso, diante das incertezas que pairavam no mundo na virada do século XX para o século XXI, potencializamos o “efeito de verdade” e depreciamos o “valor de verdade”. Foi justamente nessa fase da modernidade que os reality shows se tornaram sucesso de público, oferecendo o “Real” como mercadoria. Para o filósofo esloveno Slavoj Žižek (2003, p. 19), “o momento último e definidor do século XX foi a experiência direta do Real como oposição à realidade social diária – o Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pelas camadas enganadoras da realidade”. Esse momento histórico é marcado, na opinião dele, por uma “paixão pelo Real”.

Crítico do capitalismo cultural norte-americano, cuja expressão máxima é a produção cinematográfica hollywoodiana, Žižek viu nas cenas da queda das torres gêmeas do World Trade Center, transmitidas pela televisão para bilhões de expectadores, uma semelhança com os filmes de ficção: “a imagem exaustivamente repetida das pessoas correndo aterrorizadas em direção às câmeras seguidas pela nuvem de poeira da torre derrubada foi enquadrada de forma a lembrar as tomadas espetaculares dos filmes de catástrofe” (ŽIŽEK, 2003, p. 25). A fantasia norte-americana, que antes adquiria características do Real por meio dos efeitos especiais digitais, transformara-se em realidade em tomadas ao vivo e sem cortes.

Quando ouvimos dizer que os ataques foram um choque absolutamente inesperado, que o Impossível inimaginável acabou acontecendo, deveríamos nos lembrar de outra catástrofe definitiva do início do século XX, o naufrágio do Titanic: também foi um choque, mas já se havia preparado para ele um espaço nas fantasias ideológicas, pois o Titanic era o símbolo do poder da civilização industrial do século XIX. Não se pode afirmar o mesmo em relação 34

aos ataques? Não se tratou apenas do fato de a mídia nos bombardear constantemente com a ameaça terrorista; essa ameaça tinha uma representação libidinal – basta lembrar a série de filmes, desde “Fuga de Nova Iorque” até “Independence Day”. (ŽIŽEK, 2003, p. 30).

Baudrillard (1981, p. 188), autor de Simulacro e Simulação, livro cuja capa aparece em uma das cenas de Matrix, afirma que “viveremos neste mundo que tem toda a estranheza do deserto e do simulacro, com a veracidade dos fantasmas vivos, dos animais errantes e simuladores que o capital, que a morte do capital fez de nós”. Assim, o atentado de 11 de setembro apresentou aos norte-americanos o “deserto do real”, semelhante àquele da cena do filme Matrix que Morpheus apresenta a Neo quando ele acorda na “realidade real”.

Segundo Žižek (2003, p. 29), “o herói, interpretado por Keanu Reeves, se vê numa paisagem desolada cheia de ruínas carbonizadas – o que sobrou de Chicago após uma guerra global”. O autor afirma que esse deserto do real, revelado à população dos Estados Unidos da América após os ataques às torres gêmeas, é o que separa o Primeiro Mundo do Terceiro Mundo, onde ele é permanente e não se mostra apenas em cenas espetaculares de filmes de catástrofe. Ele se mostra como a “coisa em si”, que na atualidade é costumeiramente virtualizada, destituindo-a de suas propriedades malignas: “café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool... E a lista não tem fim: o que dizer do sexo virtual, o sexo sem sexo” (ŽIŽEK, 2003, p. 24-25).

Já não é possível partir do real e fabricar o irreal, o imaginário a partir dos dados do real. O processo será antes o inverso: será o de criar situações descentradas, modelos de simulação e de arranjar maneiras de lhes dar as cores do real, do banal, do vivido, de reinventar o real como ficção, precisamente porque ele desapareceu da nossa vida. (BAUDRILLARD, 1981, p. 154-155).

Também recorrendo a um personagem de Matrix, Christian Dunker (2017) lembra que Cypher decide voltar para o mundo da ilusão por considerar que a “ignorância é uma bênção”, mesmo sabendo que o filé apetitoso – que ele degustava durante a cena em que foi feita essa afirmação – não se tratava de um filé real, ou seja, não se tratava da “coisa em si”. Essa referência, que o autor resgatou de um filme dos anos 2000, relaciona-se intrinsicamente com a ideia de pós-verdade, que o dicionário Oxford nos apresentou em 2016. Para Dunker (2017, p. 11), “uma longa jornada filosófica e cultural foi necessária para que primeiro aposentássemos a noção de sujeito, depois nos apaixonássemos pelo Real, para finalmente chegar ao estado presente no qual a verdade é apenas mais uma participante do jogo [...]”. 35

O autor data o nascimento da pós-verdade a partir do ataque às torres gêmeas, seguido da guerra ao terror, da intolerância religiosa na perseguição aos muçulmanos, das medidas extorsivas de austeridade e ajuste econômico na Grécia, Islândia e Portugal. Ele lembra também a ficção em torno das armas químicas que justificaram o ataque ao Iraque pelo exército norte- americano. Sobre essa tática de desinformação utilizada pelo governo Bush, Castells (2017, p. 219) menciona um relatório que continha um banco de dados com 237 declarações falsas ou enganosas sobre as razões para a ação militar, divulgadas em 125 apresentações públicas diferentes “pelo presidente George Bush, pelo vice-presidente Dick Cheney, pelo secretário de Defesa Donald Rumsfeld, pelo secretário de Estado Colin Powell e pela consultora de segurança nacional Condoleezza Rice”.17

Enquanto a ameaça histórica lhe vinha do real, o poder brincou à dissuasão e à simulação, desintegrando todas as contradições à força de produção de signos equivalentes. Hoje, quando a ameaça lhe vem da simulação (a de se volatilizar no jogo dos signos) o poder brinca ao real, brinca à crise, brinca a refabricar questões sociais, econômicas, políticas. (BAUDRILLARD, 1981, p. 35).

Assim se apresentam as novas técnicas do poder citadas por Bauman (2001, p. 20): “a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação”, que podem ser ilustradas pelas estratégias de ataque nas guerras do Golfo e da Iugoslávia. A furtividade desses ataques é o que Bauman aponta como característica de uma modernidade “pós-panóptica” em que o poder não é mais manifesto a partir de uma torre de controle, mas de qualquer lugar, a qualquer momento. Logo, aqueles que operam as alavancas podem sair do alcance e se tornar inacessíveis instantaneamente. O poder agora “pode se mover com a velocidade do sinal eletrônico – e assim o tempo requerido para o movimento de seus ingredientes essenciais se reduziu à instantaneidade” (BAUMAN, 2001, p. 19).

Na visão de Bauman, a regularidade do mundo era guardada por essas Supremas Repartições, que também definiam os limites entre o certo e o errado. Agora que não estão mais à vista, o mundo se torna uma coleção de infinitas possibilidades. “Há mais – muitíssimo mais – possibilidades do que qualquer vida individual, por mais longa, aventurosa e industriosa que seja, pode tentar explorar, e muito menos adotar” (BAUMAN, 2001, p. 80).

17 Segundo Castells (2017, p. 219), em março de 2004, o Subcomitê da Câmara sobre Reforma Governamental publicou o relatório Waxman a respeito dessas declarações falsas, que “incluíam referências à capacidade nuclear do Iraque, suas conexões com a al-Qaeda e o envolvimento de Saddam Hussein no 11 de Setembro. 36

Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se para sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluídas e tenham “data de validade”, caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o embrião da próxima aventura. (BAUMAN, 2001, p. 81).

Desse modo, os indivíduos são emancipados pelas múltiplas possibilidades de escolha trazidas pelo que Bauman chama de capitalismo leve, que garante a eles o direito de “permanecerem diferentes e de escolherem à vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida adequado” (BAUMAN, 2001, p. 42). O mesmo vale para a verdade, que não mais precisa ser única e incontestável, podendo agora ser definida a partir de escolhas individuais, negociada e substituída por outras verdades, como uma mercadoria.

Para McIntyre (2018, p. 125), mesmo que a noção de verdade já estivesse em escrutínio na pós-modernidade, o ato de desconstruí-la a partir de uma perspectiva crítica, comum àquela época, trazia em si os valores, as histórias e as crenças dos próprios críticos em sua interpretação. “A abordagem pós-moderna é aquela em que tudo é questionado e pouco é levado a sério. Não há resposta certa, apenas narrativa”.18 Porém, na visão de Giddens (1991, p. 13), em vez de termos entrado num período de pós-modernidade, “estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais universalizadas e radicalizadas do que antes”. O autor até admite a existência de uma ordem “pós-moderna”, que difere do que muitos chamam de “pós-modernidade”.

Muitos dos fenômenos frequentemente rotulados como pós-modernos na verdade dizem respeito à experiência de viver num mundo em que presença e ausência se combinam de maneiras historicamente novas. O progresso se torna esvaziado de conteúdo conforme a circularidade da modernidade se firma e, num nível lateral, a quantidade de informação que flui diariamente para dentro, envolvida no fato de se viver em “um mundo”, pode às vezes ser assoberbante. [...] A modernidade é inerentemente orientada para o futuro, de modo que o “futuro” tem o status de modelo contrafatual. (GIDDENS, 1991, p. 92).

18 No original: “This meant that there could be many answers, rather than just one, for any deconstruction. The postmodernist approach is one in which everything is questioned and little is taken at face value. There is no right answer, only narrative”. 37

Outra consequência da modernidade, segundo Giddens (1991), é a crença nos sistemas peritos, sobre o qual depositamos nossa fé em relação a vários aspectos da nossa vida. Entre os peritos, estão os advogados, arquitetos, médicos etc. Segundo o autor, “os sistemas nos quais está integrado o conhecimento dos peritos influenciam muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua” (GIDDENS, 1991, p. 38). Conforme exemplificado por Giddens, podemos conhecer muito pouco sobre os códigos de conhecimento usados pelo arquiteto e pelo construtor da nossa casa, porém, temos fé no trabalho deles a ponto de não sentirmos medo, mesmo considerando a possibilidade de a estrutura desabar. “Há um elemento pragmático na ‘fé’, baseado na experiência de que tais sistemas geralmente funcionam como se espera que eles o façam” (GIDDENS, 1991, p. 39).

Quando há uma crença, as circunstâncias de risco são ignoradas. Já a confiança, segundo Giddens (1991, p. 41), pressupõe alguma consciência sobre os riscos. Desse modo, segundo o autor, “numa situação de crença, uma pessoa reage ao desapontamento culpando os outros; em circunstâncias de confiança ela ou ele deve assumir parcialmente a responsabilidade e se arrepender de ter depositado confiança em algo ou alguém” (GIDDENS, 1991, p. 42). Essa afirmação teve como base a abordagem do sociólogo alemão Niklas Luhmann, que Giddens (1991) considera importante do ponto de vista conceitual, embora não se apresente satisfatoriamente detalhada.

“A confiança é muito mais um estado contínuo [...]. Ela é, como devo sugerir adiante, um tipo específico de crença em vez de algo diferente dela” (GIDDENS, 1991, p. 43). Na chamada pós-verdade, vivemos aparentemente uma situação em que algumas crenças se mostram cada vez mais fortalecidas, enquanto verificamos, por outro lado, um declínio da confiança em algumas instituições, conforme veremos no capítulo 2. De acordo com Kakutani (2018, p. 54), “desde a década de 1960, tem ocorrido uma queda progressiva da confiança nas instituições e nas narrativas oficiais”. Esse colapso, na visão da autora, é também motivado por ideias que se identificam com o amplo cenário pós-moderno. Segundo ela, há muitas linhas diferentes e muitas interpretações diferentes do pós-modernismo.

No entanto, de modo geral, os argumentos do pós-modernismo negam a existência de uma realidade objetiva independente da percepção humana, argumentando que o conhecimento é filtrado pelos prismas de classe, raça, gênero e outras variáveis. Ao rejeitar a possibilidade de uma realidade objetiva e substituir as noções de perspectiva e posicionamento da ideia de verdade, o pós-modernismo consagrou o princípio da subjetividade. (KAKUTANI, 2018, p. 56). 38

A autora aponta ainda que houve uma apropriação dos argumentos pós-modernistas pela direita populista norte-americana, que também adotou o repúdio filosófico da objetividade. Kakutani vê como irônico o fato de que essas são “escolas de pensamento associadas há décadas à esquerda e aos próprios círculos acadêmicos de elite que Trump e companhia desprezam” (KAKUTANI, 2018, p. 53).19

1.3 Trump e a política da desinformação

D’Ancona (2017, p. 64) afirma que herdamos do século passado “um sistema de instituições baseadas em regras e em uma evolução gradual; e uma hierarquia de conhecimento e autoridade, em que entidades representativas interagiam com o Estado”. Para o autor, na chamada era da pós-verdade, esses laços institucionais são desafiados pelo poder viral das mídias sociais, do ciberespaço e dos websites. Assim, na visão do autor, a web teria abolido o abismo antes existente “entre o centro e a periferia, entre o oficial e o marginal”. Para exemplificar esse fenômeno, o jornalista se refere ao chefe de estratégia e ex-conselheiro de Trump, Steve Bannon, que se autoproclama um “leninista de direita”. De acordo com Castells (2018, p. 52), Bannon era um dos líderes do movimento alt-right, os quais tinham influência direta sobre Trump e desempenham um papel importante na ideologia e na política do trumpismo: “ex-marine, graduado em Harvard, rico empresário midiático de Hollywood e executivo de rádio e televisão”.

Outro importante apoiador de Trump citado por D’Ancona é o apresentador de talk- show Alex Jones, responsável pelo site Infowars.com. Jones é um dos muitos personagens que exploraram teorias da conspiração acerca dos democratas, integrando a imensa rede de boatos que circularam em favor do republicano e contra seus adversários na campanha eleitoral de 2016. Entre os principais boatos divulgados pelo Infowars.com durante a campanha presidencial, um deles, além de ter sido compartilhado milhares de vezes, quase terminou em tragédia: o chamado Pizzagate.

19 Há também certa ironia no fato de que, ao criticar as ideias tidas como pós-modernistas, Kakutani culpe a academia pela migração de ideias pós-modernas para o mainstream político. Segundo ela, “a ciência também foi atacada por pós-modernistas radicais, que argumentaram que as teorias científicas são socialmente construídas” (KAKUTANI, 2018, p. 63). 39

De acordo com reportagem de Fisher, Cox e Hermann (2016), publicada pelo jornal The Washington Post, o escândalo teve relação com uma investigação do FBI sobre uma suposta conta de e-mail privada utilizada por Hillary Clinton quando ela atuava como Secretária de Estado norte-americana. A partir dessa informação, uma teoria da conspiração tomou forma em sites de redes sociais como 4chan e Reddit por meio de informações falsas atribuídas a anônimos ou a pseudônimos, afirmando que novos e-mails apontavam para a existência de uma “aliança” de pedófilos que teria Clinton como figura central.

Segundo a reportagem, Alex Jones divulgou essa informação repetidamente no Infowars.com, afirmando também que o chefe de campanha de Hillary, John Podesta, estaria envolvido em rituais satânicos. Além disso, um vídeo do apresentador, enfatizando que a democrata estaria envolvida no assassinato de crianças, alcançou 427.000 visualizações no YouTube. A situação se agravou ainda mais com o vazamento de e-mails de Podesta pelo Wikileaks durante a campanha. Alguns desses e-mails revelaram que ele teria jantado ocasionalmente na pizzaria Comet Ping Pong, localizada na Avenida Connecticut, em um bairro nobre de Washington. Por isso, foi atribuída ao caso a hashtag #pizzagate, que apareceu pela primeira vez no Twitter no dia 7 de novembro de 2017, alcançando centenas e até milhares de postagens no Twitter, por dia, nas semanas seguintes.20

Ainda de acordo com a reportagem, o fato de o dono da Comet Ping Pong, James Alefantis, ter muitos amigos nos círculos democratas e liberais, além de ter realizado uma campanha de arrecadação de fundos para a campanha de Clinton na pizzaria, alimentou ainda mais a teoria da conspiração. Circularam até mesmo informações falsas que relacionavam elementos visuais contidos na placa da fachada da Comet com supostos símbolos que remeteriam à pedofilia e ao satanismo.

Depois de receber ameaças por telefone e pelas redes sociais, e apesar de ter alertado a polícia sobre o fato, a equipe da pizzaria foi vítima de uma teoria da conspiração que cresceu até alcançar proporções extremas, a ponto de representar risco de morte para pessoas inocentes. Em 4 de dezembro de 2016, armado com um fuzil AR-15, Edgar Welch, de 28 anos, invadiu o local e disparou tiros, enquanto vasculhava o estabelecimento em busca de crianças escondidas e de salas secretas para a prática de pedofilia. Ninguém foi ferido e Welch se entregou à polícia

20 Hashtags são palavras-chave utilizadas em redes sociais como Twitter, Facebook e Instagram para indexar vários conteúdos postados sobre um mesmo tópico. 40

sem resistir. Porém, esse acontecimento serviu de alerta para a sociedade norte-americana sobre o potencial destrutivo da desinformação.

Para McIntyre (2018, p. 105), as fake news são criadas com um propósito, que no começo da campanha eleitoral de 2016 poderia ter sido apenas a prática do chamado clickbait, ou caça-cliques, que consiste em divulgar notícias com chamadas provocativas apenas com o objetivo de fazer o leitor clicar e, assim, garantir alguns centavos de receita pelos cliques em links patrocinados. Porém, o autor acredita que as notícias falsas evoluíram do clickbait para a desinformação, migrando de um modelo dedicado aos ganhos financeiros para um que serve à manipulação política. “Alguns dos criadores de fake news começaram a perceber que histórias favoráveis a Trump tinham muito mais cliques do que aquelas favoráveis à Hillary – e que histórias negativas sobre Hillary eram as mais clicadas de todas”.21

Ao mesmo tempo, a campanha de Trump fez um uso perspicaz e maquiavélico das redes sociais e das ferramentas de big data, utilizando informações do Facebook e da Cambridge Analytica (empresa de dados que tem como sócio Robert Mercer, apoiador de Trump e investidor da Breitbart, que se vangloria de suas habilidades em traçar um perfil psicológico de milhões de potenciais eleitores) para direcionar publicidade e planejar os eventos da campanha de Trump. O Facebook revelou que dados de até 87 milhões de pessoas podem ter sido compartilhados indevidamente com a Cambridge Analytica, que usou as informações para prever e influenciar o comportamento do eleitorado. (KAKUTANI, 2018, p. 157).

Esse vazamento de dados pessoais, amplamente noticiado pela imprensa nos Estados Unidos da América e na Europa, foi o pivô de uma crise na imagem da rede social Facebook em 2018, que gerou também prejuízos financeiros com a queda das ações da empresa na bolsa de valores. Nesse contexto, o CEO Mark Zuckerberg foi convidado a prestar esclarecimentos sobre o caso ao Senado norte-americano e ao Parlamento Europeu. O uso indevido da rede social também pode ter favorecido a interferência de trolls russos no debate eleitoral de 2017, que teriam utilizado a rede social para expor cerca de 126 milhões de norte-americanos à desinformação. De acordo com Kakutani (2018, p. 169), “a Rússia está no debate político nos Estados Unidos e na Europa devido à interferência nas eleições presidenciais norte-americanas

21 No original: “Some of the creators of ‘fake news’ began to notice that the favorable stories about Trump were getting more clicks than the favorable ones about Hillary – and that the negative stories about Hillary were getting the most click of all”. 41

de 2016 e numa série de outras eleições em todo o mundo”. Essa suspeita se estende também ao plebiscito do Brexit.

1.4 O plebiscito do Brexit e a polarização

Guardando algumas semelhanças com a campanha eleitoral norte-americana, a disputa eleitoral travada entre os que defendiam a permanência do Reino Unido na União Europeia e os que defendiam a saída do bloco também pode ser encarada como uma batalha da pós- verdade. Enquanto a campanha do Remain teria buscado um maior apelo por meio de fatos, a campanha vitoriosa do Leave.EU teria apelado às emoções, assim como a campanha de Trump. De acordo com D’Ancona (2017, p. 17), os chamados brexiteers entenderam que a campanha deveria apelar à simplicidade e à ressonância emocional, por meio de “uma narrativa que pudesse dar um significado visceral para uma decisão que talvez parecesse técnica e abstrata”.22

Também fundamental para a vitória republicana nos Estados Unidos da América, a retórica anti-imigração foi determinante para o sucesso da campanha favorável à saída da União Europeia. As parcelas da população que apoiaram o Brexit, diante de temores generalizados em relação ao número cada vez maior de refugiados e imigrantes (especialmente os sírios) no território europeu, também apoiavam medidas mais duras de controle da imigração.

De diferentes maneiras, as várias campanhas favoráveis à saída do Reino Unido se contentaram em desencadear expectativas crescentes entre os que escolheram culpar os imigrantes pelos seus infortúnios – reais ou imaginários. Assim foi alimentada a noção perniciosa de que a mobilidade populacional é um jogo de soma zero: aqueles que vêm para o Reino Unido são um bando de aproveitadores, privando os britânicos nativos de lugares nas escolas, moradias, empregos e assistência médica [...]. (D’ANCONA, 2017, p. 21).23

De acordo com Goodwin e Heath (2016), autores do estudo The 2016 Referendum, Brexit and the Left Behind: an aggregate-level analysis of the result, o plebiscito foi realizado no dia 23 de junho de 2016, 43 anos após o primeiro referendo realizado sobre a adesão do

22 Tradução livre. No original: “a narrative that would give visceral meaning to a decision that might otherwise appear technical and abstract”. 23 Tradução livre. No original: “In their different ways, the various Leave campaigns were content to unleash soaring expectations among those who chose to blame their misfortunes – real or imagined – upon immigrants. Thus was nurtured the pernicious notion that population mobility is a zero-sum game: that those who come to the UK are a bunch of freeloaders, depriving indigenous Britons of school places, housing, jobs and healthcare […]”. 42

Reino Unido à União Europeia, em 1975. Naquele ano, 67% dos eleitores decidiram pela permanência no bloco econômico. Na consulta popular mais recente, 51,9% do eleitorado votou pela saída da União Europeia, e 48,1% optou pela permanência. Na opinião dos autores, “o resultado do referendo de 2016 revelou uma sociedade que estava, nas questões relacionadas à União Europeia e à imigração, dividida por classe, faixa etária e geograficamente”.24 (GOODWIN e HEATH, 2016, p. 324).

Essa divisão, característica da pós-verdade e presente nos momentos mais decisivos da história recente, reflete uma polarização ideológica que se manifesta ora como causa ora como efeito da organização autônoma dos usuários das redes sociais. Diante disso, segundo Narayanan et al. (2018), em momentos de crises políticas e militares são compartilhadas quantidades substanciais de notícias, que muitas vezes não são produzidas de forma profissional e que refletem visões polarizadas, amplificadas por meio de plataformas como Twitter e Facebook.

A confiança no noticiário está notavelmente dividida por linhas ideológicas e um ecossistema de notícias alternativas está florescendo, abastecido por extremistas, sensacionalistas, conspirações, comentários mascarados, fake news e outras formas de junk news. Ao mesmo tempo, veículos consagrados como o New York Times e o Washington Post relataram um crescimento no número de assinaturas.25 (NARAYANAN et al., 2018, p.1).

Nesse sentido, os autores lembram que o conteúdo da Russian Internet Research Agency atingiu 126 milhões de cidadãos norte-americanos antes da corrida presidencial de 2016, revelação que se soma a outros relatos e suspeitas de possíveis influências estrangeiras na campanha que elegeu Trump. Somado a isso, há evidências de que houve um aumento da polarização no panorama das notícias como consequência dessa eleição.

No caso do Brexit, Castells (2018, p. 59) aponta que análises estatísticas teriam indicado que “a campanha eleitoral em si não foi determinante para o resultado”. De acordo com o autor, um movimento nacionalista já estava em curso na Inglaterra, assim como também nos Estados

24 Tradução livre. No original: “The result of the 2016 referendum revealed a society which had, on the issues of EU membership and immigration, become divided by social class, generation and geography”. 25 Tradução livre. No original: “there is increasing evidence of a rise in polarization in the US news landscape in response to the 2016 election. Trust in news is strikingly divided across ideological lines, and an ecosystem of alternative news is flourishing, fueled by extremist, sensationalist, conspiratorial, masked commentary, fake news and other forms of junk news. At the same time, legacy publishers like the New York Times and the Washington Post have reported an increase in subscriptions”. 43

Unidos da América. “Os partidários do Brexit centraram sua mobilização num objetivo fundamental, que dominou toda a campanha do referendo: retomar o controle do destino do país pelos próprios britânicos. Ou seja, uma reafirmação da soberania nacional” (CASTELLS, 2018, p. 62). A polarização se intensifica e o “nós” contra “eles” mostra que as disputas eleitorais estão se transformando em guerras culturais.

1.5 O Brasil e a política na era do WhatsApp

Dois anos depois da eleição de Trump e do plebiscito do Brexit, chegou a vez de o Brasil eleger um candidato alinhado às ideias ultraconservadoras. Exaltando o nacionalismo e a família tradicional, a eleição de Jair Bolsonaro também se deu num cenário de intensa polarização e de suspeitas sobre o uso das redes sociais para manipular o debate político por meio da desinformação. De acordo com estudo da organização Avaaz, divulgado pelo jornal Folha de S. Paulo em 2 de novembro de 2018, “98,21% dos eleitores do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) foram expostos a uma ou mais notícias falsas durante a eleição, e 89,77% acreditaram que os fatos eram verdade” (PASQUINI, 2018).

Durante a campanha, o mesmo jornal noticiou que “empresários compraram pacotes em pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp e preparam uma grande operação na semana anterior ao segundo turno” (MELLO, 2018a). Segundo a reportagem, cada contrato teve o custo de até R$ 12 milhões, pagos pelos empresários apoiadores da campanha bolsonarista. Na campanha de Bolsonaro, o aplicativo de mensagem WhatsApp teria sido a principal ferramenta para compartilhar boatos, notícias falsas e contranarrativas em resposta a notícias negativas divulgadas pela imprensa tradicional a respeito do então candidato.

Em setembro de 2018, a reportagem do El País se inscreveu em três dos grupos utilizados com essa finalidade, que publicaram, juntos, mais de 1.000 mensagens por dia. Em pelo menos dois deles, a presença de fake news era mais evidente e mais forte. “Em uma disputa francamente digital e que desafia o poder da propaganda na TV, a capilaridade da campanha de Bolsonaro no WhatsApp é umas das potências da candidatura” (BENITES, 2018). De acordo com a reportagem,

Difusão de mentiras camufladas como notícias, vídeos que tentam desmentir publicações negativas da imprensa, desconfiança das pesquisas e falsos apoios de celebridades à candidatura Jair Bolsonaro. Assim funciona no aplicativo de 44

mensagens WhatsApp uma amostra de grupos públicos de eleitores do presidenciável do PSL. (BENITES, 2018).

Apesar das suspeitas em torno do impulsionamento de disparos de mensagens pago com o chamado “caixa 2”, fato ainda não provado pelas investigações policiais até o momento em que este trabalho é redigido, é possível crer que uma mobilização orgânica dos apoiadores do candidato nas redes sociais tenha sido determinante para a capilaridade da campanha bolsonarista. Há quem atribua aos chamados “grupos de família”, que conectam os integrantes de um mesmo núcleo familiar por meio do WhatsApp, o alcance obtido pelas publicações favoráveis ao candidato do PSL. Pesquisa do Monitor do Debate Político da Universidade de São Paulo, divulgada pelo site BBC Brasil, identificou os grupos de família como o principal vetor de notícias falsas no WhatsApp.

Segundo a pesquisa da USP, o boato dominante no caso de Marielle foram variações de um texto ligando a vereadora a Marcinho VP. Foi recebido por 916 pessoas que responderam ao questionário. Dessas pessoas, 51% responderam ter recebido o texto em grupos de família no WhatsApp; 32%, em grupos de amigos; 9% em grupos de colegas de trabalho e 9% em grupos ou mensagens diretas. (GRAGNANI, 2018).

A capacidade de mobilizar eleitores pelas novas mídias demonstrada por Bolsonaro durante a campanha foi elogiada por Steve Bannon. Em entrevista à Folha de S. Paulo, Bannon afirmou que as mídias sociais foram fundamentais para a eleição de Trump e Bolsonaro, colocando as duas campanhas como experiências bem-sucedidas em que o populismo de centro-direita ascendeu ao poder. Segundo o empresário e estrategista político, “se não fosse pelo Facebook, Twitter e outras mídias sociais, teria sido cem vezes mais difícil para esse populismo ascender, porque não conseguiríamos ultrapassar a barreira do aparato da mídia” (MELLO, 2018b).

Há muitas semelhanças entre Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria, Trump, Matteo Salvini [vice-primeiro ministro da Itália, do partido anti- imigração A Liga], na Itália, Nigel Farage [líder pró-Brexit], no Reino Unido, e Bolsonaro. Claramente, o populismo de centro-direita, conservador e nacionalista, é uma das tendências mais importantes do século 21. Vejo três principais pontos em comum entre esses líderes: em situações muito confusas, conseguem identificar quais são os principais problemas e articular as soluções. Por serem autênticos, eles conseguem se conectar com o público de massa, particularmente com a classe trabalhadora e classe média, de modo muito visceral. E, em terceiro lugar, eles têm carisma. (MELLO, 2018b). 45

Bannon menciona também que a estratégia desses populistas de centro-direita também passa por evitar e desacreditar a mídia tradicional, que “ficou muito ligada às estruturas de poder existentes e passou a reforçar essa estrutura de poder” (MELLO, 2018b). Quando perguntado a respeito de uma investigação no Brasil sobre o envio em massa de mensagens políticas e fake news durante a campanha eleitoral, ele diz que isso deve ser resolvido pela investigação e ressalta, mais uma vez, a capacidade dos populistas de centro-direita de enfrentar e questionar a mídia tradicional. “Antes ela tinha o monopólio das notícias e agora está sendo desafiada por várias fontes de informações. Eu acredito que é melhor ter mais fontes de notícias do que menos” (MELLO, 2018b).

É possível deduzir que o MBL também se identifica com essa estratégia de comunicação descrita por Bannon. A política como narrativa midiática é algo que o grupo desenvolve de forma consistente, desde 2013, para conquistar adeptos e se destacar em meio ao burburinho discursivo das redes sociais. A tática do grupo, como veremos no Capítulo 3, também consistiu em desacreditar a mídia tradicional e os agentes que a representam, como os jornalistas e a classe artística.

Grupos no WhatsApp também se inserem no contexto de organização do MBL. Reportagem da Piauí, divulgada em 2017, revelou algumas conversas de um grupo do aplicativo de mensagens utilizado para arrecadar doações de executivos do mercado financeiro, formado por mais de 150 funcionários do Banco Safra, XP Investimentos e Merrill Lynch. Além de comentar a estratégia eleitoral, o MBL pedia por doações em dinheiro ou milhas aéreas por meio do grupo. Segundo Abbud (2017), a Piauí teve acesso ao histórico de conversas das 13h49 do dia 25 de julho de 2017 às 20h25 do dia 27 de setembro de 2017. “As trocas de mensagens durante esses dois meses renderam 685 páginas de bate-papo que tratam de temas como saúde, segurança pública e educação” (ABBUD, 2017).

Em uma das mensagens, o coordenador do MBL, Renan Santos, explicita a tese defendida pelo grupo, baseada em uma aliança entre setores modernos da economia, agronegócio e evangélicos. Segundo a reportagem, Renan teria dito que essa “é a melhor forma de termos um pacto político de centro-direita, que dialoga com o campo e com a classe C”. (ABBUD, 2017). Além disso, os participantes comentaram sobre a polêmica em torno da Cambridge Analytica, que pode ter influenciado o resultado da eleição nos Estados Unidos da América e o plebiscito do Brexit em 2016.

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Mesmo diante da postura cética de alguns membros, o participante enfatizou: “Isso é muito sério, gente. E podem ter certeza que vai ser usado aqui em 2018. Só espero que o Doria ja tenha fechado contrato de exclusividade com a Cambridge analytica. Rss”. (ABBUD, 2017).

De acordo com reportagem da revista Veja, publicada em 5 de setembro de 2018, “uma investigação sigilosa colheu evidências de que a Cambridge Analytica tinha um plano para interferir ilegalmente nas eleições presidenciais de outubro” (BORGES et al., 2018, p. 42). Porém, em vez de utilizar dados dos usuários do Facebook, como ocorreu nos Estados Unidos da América, seriam utilizados os maiores bancos de dados do país: o INSS, o Bolsa Família e o Poupatempo de São Paulo. Assim, seria possível ter acesso aos cadastros de 77 milhões de brasileiros de quase todos os cantos do país, de todas as idades e de todos os níveis sociais.

Na prática, essas informações, quando acessadas, funcionam como uma vantagem competitiva, ao permitir que um candidato consiga identificar demandas de grupos específicos de eleitores e, em seguida, bombardeá-los com mensagem que prometem exatamente aquilo que eles mais desejam. (BORGES et al., 2018, p. 42).

Na época em que surgiram as primeiras especulações sobre a chegada da Cambridge Analytica ao Brasil, o MBL apoiava uma possível candidatura de João Doria à presidência, quem havia sido eleito prefeito de São Paulo dois anos antes, após derrotar o petista Fernando Haddad no 1º turno. Para viabilizar a candidatura de Doria, o MBL apostava no esvaziamento do PSDB, ao atrair militantes mais jovens do partido para o MBL e isolar os militantes mais antigos, chamados de a “esquerda tucana”. Como veremos no Capítulo 3, a aliança do MBL com Doria não vingou, e líderes do grupo declararam voto em Jair Bolsonaro em 2018. Embora houvesse divergências entre o movimento e o capitão do Exército, ambos têm inimigos em comum: a esquerda e a mídia tradicional.

Em 1º de janeiro de 2019, durante a posse de Jair Messias Bolsonaro como o 38º presidente do Brasil, jornalistas da grande imprensa que cobriam o evento eram hostilizados, enquanto os simpatizantes do presidente eleito rendiam homenagens ao Facebook e ao WhatsApp, mencionando os nomes dessas plataformas como gritos de guerra contra a mídia tradicional. Embora, à primeira vista, manifestações desse tipo não devessem ser levadas a sério, elas são carregadas de todo o simbolismo que marca o atual cenário político e midiático no qual nos encontramos. 47

A queda na credibilidade dos mediadores tradicionais, somada ao surgimento de novos mediadores que têm seu alcance ampliado por meio das redes sociais, abriu espaço para novos olhares e novas versões sobre os fatos. Há quem veja nesse fenômeno o resultado de um esforço para a democratização da comunicação possibilitada pelos meios digitais. Há também quem acredite não haver democracia possível quando os conteúdos das conversações públicas são mediados por plataformas digitais privadas, pertencentes a conglomerados empresariais transnacionais, cujos objetivos principais são a geração de lucros para os acionistas e a manutenção do poder das elites que detêm o capital financeiro mundial.

No Capítulo 2, analisaremos como o modelo de negócio dessas empresas se insere na economia da atenção, em que os cliques e interações dos usuários em conteúdos divulgados nas redes sociais geram resultados financeiros, de onde vêm boa parte do faturamento e do lucro de gigantes da tecnologia como , Facebook e Amazon. Na visão de Pariser (2012), esses players contribuem para um processo de “desintermediação” na rede, minando a influência das mídias tradicionais sobre os leitores e os consumidores. Para isso, utilizam algoritmos de personalização que multiplicam os lucros com a economia da atenção e, ao mesmo tempo, criam um espaço propício para a formação das chamadas bolhas dos filtros. Nesse sentido, também abordaremos as viralidades midiáticas, como os memes e os bots, que têm alterado a cultura e a ação política nos últimos anos.

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2 A BATALHA ENTRE OS MEDIADORES TRADICIONAIS E OS NOVOS MEDIADORES

A grande mídia, também chamada de mídia hegemônica, mídia tradicional ou mídia corporativa, encontra-se no centro da disputa político-midiática de que tratamos nesta pesquisa. Por ser possuidora de um enorme poder simbólico, a grande mídia não teria que, necessariamente, escolher um lado nessa batalha marcada pela polarização. Alvo de ataques originados da extrema direita à extrema esquerda, ela flutua de um lado ao outro do campo de batalha, com um forte arsenal à disposição para atacar em qualquer uma das direções. De fato, ela também é contra-atacada por ambos os lados – embora quase sempre se una a um deles de acordo com os interesses em disputa. Porém, em um cenário de redes de comunicação digital multicêntricas ou acêntricas, a mídia tradicional não é mais a única intermediária possível entre as narrativas midiáticas e o público a que elas se destinam. A esse fenômeno, alguns autores deram o nome de “desintermediação” e de “desmediatização”.

De acordo com Pariser (2012, p. 57), foi a internet que desintermediou as notícias, tirando de cena os intermediários, como os jornalistas e os editores, que eram um dos poucos detentores do poder de definir o que seria ou não noticiado pela grande mídia: “de repente já não precisávamos confiar na interpretação que o Washington Post fazia de um comunicado de imprensa da Casa Branca – podíamos ler o documento por conta própria”. Na opinião do autor, os intermediários desapareceram, não só nas notícias, mas também na música, no comércio e em outros setores.

É uma história sobre eficiência e democracia. Parece bom eliminarmos o perverso intermediário situado entre nós e aquilo que queremos. De certa forma, a desintermediação confronta a própria ideia da mídia. A palavra, afinal, vem do latim e significa “camada do meio”. Ela se posiciona entre nós e o mundo; oferece-nos a possibilidade de saber o que está acontecendo, mas em detrimento da experiência direta. A desintermediação sugere que podemos ter as duas coisas. (PARISER, 2012, p. 58).

Para Han (2018a, p. 36), “a comunicação digital se caracteriza pelo fato de que informações são produzidas, enviadas e recebidas sem mediação por meio de intermediários”. Em linha com o que Pariser escreveu sobre a desintermediação, Han acredita que não são mais necessários mediadores para dirigir e filtrar as informações, ou seja, “a instância intermediária interventora é cada vez mais dissolvida”. Isso também acontece na visão do autor porque 49

também participamos ativamente do processo, não apenas como espectadores passivos como ocorria com as mídias analógicas. “Hoje não somos mais destinatários e consumidores passivos de informação, mas sim remetentes e produtores ativos. [...] Somos simultaneamente consumidores e produtores” (HAN, 2018a, p. 36). É o que o autor chama de “desmediatização”.

Mídias como blogs, Twitter, ou Facebook desmediatizam [entmediatisieren] a comunicação. A sociedade de opinião e de informação de hoje se apoia nessa comunicação desmediatizada. Todos produzem e enviam informação. A desmediatização da comunicação faz com que jornalistas, esses antigos representantes elitistas, esses “fazedores de opinião” e mesmo sacerdotes da opinião, pareçam completamente superficiais e anacrônicos. A mídia digital dissolve toda classe sacerdotal. (HAN, 2018a, p. 36).

Porém, Pariser (2012, p. 58) acredita que há alguma mitologia na história da desintermediação, pois o verdadeiro efeito dela é o de tornar os novos mediadores invisíveis. “Embora o poder tenha se movido na direção dos consumidores, no sentido de que temos uma quantidade exponencialmente maior de escolhas sobre a mídia que consumimos, os consumidores ainda não detêm o poder”. Os novos intermediários ou novos mediadores invisíveis, segundo o autor, são as plataformas de comunicação digital pertencentes a gigantes da tecnologia, como Google, Facebook, Amazon e . “E essas plataformas detêm um enorme poder – tanto poder, em muitos sentidos, quantos os editores de jornais, os selos de gravadoras e outros intermediários que os precederam” (PARISER, 2012, p. 58).

Não é por acaso que as organizações da mídia tradicional estão buscando conquistar espaço e visibilidade nas novas mídias. Segundo Castells (2018, p. 118), “o interesse da crescente mídia corporativa nas formas de comunicação baseadas na internet reconhece a importância do surgimento de uma nova forma de comunicação na sociedade”, à qual o autor se refere como autocomunicação de massa.

A capacidade interativa do novo sistema de comunicação introduz uma nova forma de comunicação, a autocomunicacão de massa, que multiplica e diversifica os pontos de entrada no processo de comunicação. Isso gera uma autonomia sem precedentes para os sujeitos comunicativos se comunicarem amplamente. No entanto, esse potencial para a autonomia é moldado, controlado e restrito pela crescente concentração e interconexão dos operadores de rede e corporações de mídia ao redor do mundo. (CASTELLS, 2017, p. 119).

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Para o autor, a mídia globalizada exerce influência na mídia local, com a importação de programas e canais com presença global como CNN, Fox, ESPN e HBO, entre outros, por diversos mercados em todo o mundo. De acordo com Castells (2017, p. 137), “conglomerados globalizados forçam sua entrada em novos mercados e reprogramam o mercado regional para que ele adote um formato comercial que facilite a conexão com suas redes comerciais”. Há também casos em que o local influencia o global. Corporações globais da mídia, ao superarem barreiras regulatórias para atuar em países como Índia e China, por exemplo, tentam conquistar esses mercados com produtos midiáticos adaptados ao gosto local e que muitas vezes são distribuídos para outros países da rede. “Hoje, a integração vertical das empresas de mídia inclui a internet. As organizações de mídia estão se deslocando para esse meio e fechando parcerias com empresas de internet” (CASTELLS, 2017, p. 128).

Ainda segundo Castells (2018, p. 19), a globalização traz como resultado uma crise identitária que se soma a uma crise de representação de interesses. Talvez por isso, paralelamente ao aumento da concentração midiática por algumas organizações multimídia transnacionais, vimos, nos últimos anos, uma queda da confiança do público na grande mídia, que também é apontada por Pariser (2012, p. 60) como um efeito da desintermediação. As mídias digitais teriam, nas palavras do autor, “desmantelado” a confiança que as empresas de notícias haviam construído.

2.1 Confiança nos mediadores tradicionais em declínio

Ao analisarmos índices de confiança publicados por institutos de pesquisa de opinião pública em 2018, constatamos que a queda da confiança na mídia, embora significativa, ainda foi menor do que a queda na confiança na política e nos políticos. O estudo global Edelman Trust Barometer 2018 revelou que os índices de confiança caíram em todas as instituições no Brasil.26 Segundo o estudo, a confiança no Governo caiu 6 pontos e chegou aos 18%, já a Mídia perdeu 5 pontos e alcançou 43%.27 Esse resultado acompanha uma tendência mundial, pois,

26 “Realizado pela Edelman, agência global de Relações Públicas, o estudo mede os índices de confiança no Governo, Empresas, ONGs e Mídia. A pesquisa ouviu mais de 33 mil pessoas em 28 países, com o trabalho de campo realizado entre 28 de outubro e 20 de novembro de 2017” (EDELMAN, 2018). 27 Uma nova edição do Edelman Trust Barometer foi lançada em 20 de janeiro de 2019. Foram ouvidas cerca de 33 mil pessoas, entre os dias 19 de outubro e 16 de novembro de 2018. Como não houve grande variação em relação aos resultados de 2018 que abordamos, resolvemos manter os dados do estudo do ano anterior, por serem mais representativos do recorte temporal abrangido por esta pesquisa. O estudo de 2019 revela um crescimento

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pela primeira vez, a Mídia (produtores de conteúdo e plataformas) se mostrou como a instituição com menor confiança globalmente. As maiores quedas foram registradas no Brasil, na Índia e nos Estados Unidos da América. Em cada um desses três países, a confiança na Mídia caiu 5 pontos.

A diminuição da confiança nas plataformas digitais (mecanismos de busca e redes sociais) está entre as responsáveis pelo cenário – entre os brasileiros também caiu 5 pontos. A proliferação de notícias falsas ou distorcidas representa papel importante na queda da confiança tanto da Mídia quanto nas outras instituições (Governo, Empresas e ONGs). Sinal disso é que 58% dos brasileiros não sabem diferenciar o que é verdade do que é mentira; 68% não sabem em quais políticos confiar e 48% não sabem em quais companhias ou marcas confiar. E mais: 75% têm medo que as fake news sejam usadas como armas. (EDELMAN, 2018).

De acordo com outro estudo, realizado em 2018 pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), a confiança dos brasileiros nas instituições nunca esteve tão baixa.28 O Índice de Confiança Social (ICS) das Instituições medido pelo Ibope Inteligência em 2018 atingiu 44 pontos, o mais baixo verificado desde o início da série histórica, iniciada em 2009. Chama a atenção que a confiança na instituição “Presidente” no ano das eleições presidenciais alcançou apenas 13 pontos, numa escala de 0 a 100. Conforme o Ibope, um índice tão baixo nunca foi atingido por nenhuma das instituições avaliadas por meio do ICS. A segunda colocação entre as instituições com menor índice de confiança no Brasil ficou com os Partidos Políticos, que atingiram apenas 16 pontos. Congresso Nacional e Governo Federal alcançaram 18 e 25 pontos, respectivamente. De todo modo, houve nos últimos 10 anos, desde o início da série histórica do ICS, uma queda na confiança de quase todas as instituições avaliadas.

Entre as instituições que apresentaram os maiores índices de confiança, o Corpo dos Bombeiros manteve-se no topo do ranking pelo 10º ano consecutivo, com 82 pontos no índice. As igrejas aparecem como a segunda instituição mais confiável, com 66 pontos, 6 a menos do

tímido da confiança no Governo e na Mídia em nível global. O índice de confiança de ambas as instituições cresceu 3 pontos percentuais, de 44% para 47%. No Brasil, a confiança no Governo cresceu 10 pontos, de 18% para 28%, enquanto a confiança na Mídia no país caiu 2 pontos percentuais, de 43% para 41%. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2019. 28 “Realizado desde 2009, sempre no mês de julho, o Índice de Confiança Social (ICS) é medido em uma escala que vai de 0 a 100, sendo 100 o índice máximo de confiança. A pesquisa foi realizada entre os dias 19 e 23 de julho, com 2.002 pessoas a partir de 16 anos, em 142 municípios do país. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos sobre os resultados encontrados no total da amostra” (IBOPE, 2018). 52

que no ano anterior. A confiança nos Meios de Comunicação, por sua vez, alcançou 51 pontos e apresentou uma queda de 10 pontos em relação a 2017. Outro dado que chama a atenção é a confiança registrada no ICS de Pessoas e Grupos Sociais, que mostra a confiança da população nas pessoas e na sociedade em geral. Esse índice é bem maior do que o apresentado pelas instituições, incluindo a mídia. Embora tenha oscilado negativamente três pontos em relação a 2017, a confiança nas pessoas da família atingiu 82 pontos, o mesmo índice alcançado pelo Corpo de Bombeiros, que figura no topo do ranking das instituições. A confiança em amigos, vizinhos e brasileiros de um modo geral permaneceu estável conforme o estudo, com 65 pontos (66 no ano anterior).29

Não sabemos de que modo e até que ponto a desintermediação ou a desmediatização contribui para o declínio da confiança nas instituições, mas é possível deduzir – ao nos depararmos com índices tão elevados de confiança em pessoas próximas, como familiares, amigos e vizinhos – que confiamos cada vez mais em quem se identifica com a nossa realidade e com o nosso presente. Han (2018a, p. 38) afirma que “a desmediatização generalizada encerra a época da representação. Hoje, todos querem estar eles mesmos diretamente presentes e apresentar a sua opinião sem intermediários”. De acordo com Ferrari (2018, p. 52),

O conceito de pós-verdade surge nesta sociedade atual que se move em torno das pessoas, das suas histórias, de seus costumes e de suas experiências de vida. Novos meios e interatores, alta saturação das mídias tradicionais e consumidores cada vez mais imersos na presentificação proporcionada pelas telas fazem com que a metáfora “penso, logo existo” seja alterada para “vivencio, logo existo”.

Assim, cada vez mais conectados ao presente por meio das plataformas de comunicação digital, não precisamos recorrer a intermediários, como a grande mídia e os políticos, para sermos representados. Han (2018) vê esse tipo de representação como um “filtro” que atua seletivamente e de forma exclusiva. Pariser (2012), por sua vez, não crê que os filtros sejam eliminados com a ausência dos intermediários dos quais dependíamos antes. Ao contrário disso, os novos mediadores permitem que essa filtragem se torne ainda mais personalizada, já que a possibilidade de nos relacionarmos com pessoas muito diferentes de nós é cada vez menor na internet ou fora dela.

29 No Edelman Trust Barometer 2018, também encontramos um resultado semelhante, em que a confiança em “Uma pessoa como você” alcança 70%. Embora tenha caído 8 pontos em relação ao ano anterior, a pessoa comum continua sendo o porta-voz mais confiável de acordo com o estudo global. 53

Desse modo, “a chance de entrarmos em contato com pontos de vista diferentes também diminui” (PARISER, 2012, p. 63). Esses filtros de personalização estão presentes nas plataformas digitais e mídias sociais com o intuito de filtrar os conteúdos que acessamos, de acordo com os nossos interesses individuais e os interesses dos grupos sociais dos quais fazemos parte. A partir desses dados, é possível prever o que atrairá nossa atenção e nossos cliques na rede.

São mecanismos de previsão que criam e refinam constantemente uma teoria sobre quem somos e sobre o que vamos fazer ou desejar a seguir. Juntos, esses mecanismos criam um universo de informações exclusivo para cada um de nós – o que passei a chamar de bolha dos filtros – que altera fundamentalmente o modo como nos deparamos com ideias e informações. (PARISER, 2012, p. 14).

O autor afirma que, de certo modo, sempre estivemos propensos a consumir produtos de mídia que mais se identificam com nossos interesses e ignoramos outras opções. Porém, Pariser (2012, p. 14-15) defende que as bolhas dos filtros trazem três novas dinâmicas: primeiro, “estamos sozinhos na bolha”; em segundo lugar, “a bolha dos filtros é invisível”; e, por fim, “nós não optamos por entrar na bolha”. Ao comentar as ideias defendidas pelo autor, Santaella (2018, p. 16-17) afirma que as bolhas de filtros, que ela prefere denominar como “bolhas filtradas”, “são constituídas por pessoas que possuem a mesma visão de mundo, valores similares e o senso de humor em idêntica sintonia”.

O grande problema, nesses casos, encontra-se na invisibilidade do modo como, dentro das redes, os algoritmos funcionam. Empregados pelas poderosas companhias de tecnologias, têm seu design destinado a traçar com precisão o perfil do usuário de modo a desenhar nitidamente a bolha a que pertencem. [...] Os algoritmos são baseados nas próprias escolhas que fazemos, desenham as predileções de que damos notícias nas redes. Portanto, não é mais uma mera questão de demonizar o poder das redes, pois elas não fazem outra coisa a não ser nos devolver o retrato de nossas mentes, desejos e crenças. (SANTAELLA, 2018, p. 16).

Segundo Pariser (2012, p. 79), isso acontece porque nesse processo de formação das bolhas há um fortalecimento do que a psicologia chama de “viés da confirmação”, ou seja, “a tendência a acreditar no que reforça nossas noções preexistentes, fazendo-nos enxergar o que queremos enxergar”. Segundo o autor, a bolha dos filtros amplifica esse viés e favorece o consumo de informações que se ajustam às nossas ideias, fazendo com que se torne mais fácil 54

e prazeroso ver o mundo à nossa maneira e mais difícil se abrir a novas ideias e pensamentos. “É por isso que os defensores de uma determinada linha política tendem a não consumir a mídia produzida por outras linhas” (PARISER, 2012, p. 82).

É o que percebemos quando analisamos os principais acontecimentos políticos ocorridos nos últimos anos, como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos da América, a aprovação do Brexit na Grã-Bretanha e o impeachment de Dilma Rousseff no Brasil. Por meio de uma tática baseada no uso de mídias digitais e sociais, aprofundando a polarização política que marcou esses acontecimentos, grupos com forte apelo político-midiático estiveram em evidência. A ação protagonizada pelos adeptos do Alternative Right nos Estados Unidos da América e pelo Movimento Brasil Livre em nosso país, por exemplo, consiste justamente em produzir mídia, em formatos variados, que se identifique com as ideias propagadas por esses grupos e defendidas por seus seguidores.

Quando muito arraigada devido à repetição ininterrupta do mesmo, a unilateralidade de uma visão acaba por gerar crenças fixas, amortecidas por hábitos inflexíveis de pensamento, que dão abrigo à formação de seitas cegas a tudo aquilo que está fora da bolha circundante. Isso acaba por minar qualquer discurso cívico, tornando as pessoas mais vulneráveis a propagandas e manipulações, devido à confirmação preconceituosa de suas crenças. (SANTAELLA, 2018, p. 15-16).

Além de reafirmar crenças pré-existentes, essa ação político-midiática, sobre a qual ainda nos debruçaremos nos próximos capítulos, tem por objetivo desqualificar outras fontes de informação que não se identificam com o pensamento desses grupos. Os ataques frequentes à grande mídia e aos profissionais que atuam em nome dela são sintomas desse fenômeno. Entre os integrantes mais radicais de grupos polarizados, há quem diga que a grande mídia não é mais necessária frente à grande oferta de mídias alternativas, pois, segundo eles, os mediadores tradicionais não refletiriam os interesses da maioria da população e serviriam apenas a interesses de uma pequena elite econômica e intelectual.

Para McIntyre (2018, p. 93), essa situação também se deve à ascensão das mídias sociais como fonte de notícias, que “ofuscou ainda mais as linhas entre notícias e opinião, à medida que as pessoas compartilhavam histórias de blogs, sites de notícias alternativas e de Deus sabe onde, como se fossem todas verdadeiras”.30 Independentemente de haver ou não uma verdade

30 Tradução livre. No original: “blurred the lines even further between news and opinion, as people shared stories from blogs, alternative news sites, and God knows where, as if they were all true”. 55

factual e objetiva a que possamos recorrer, as redes sociais criam, portanto, um espaço favorável à prática do que Kakutani (2018, p. 140) chama de política tribal, “que importa mais do que os fatos, mais até do que a moral”.

A confiança está basicamente vinculada, não ao risco, mas à contingência. A confiança sempre leva à conotação de credibilidade em face de resultados contingentes, digam estes respeito a ações de indivíduos ou à operação de sistemas. No caso de confiança em agentes humanos, a suposição de credibilidade envolve a atribuição de “probidade” (honra) ou amor. É por isto que a confiança nas pessoas é psicologicamente consequente para o indivíduo que confia: é dado um refém moral à fortuna. (GIDDENS, 1991, p. 44).

Logo, enquanto as bolhas dos filtros nos mantiverem presos a nossas crenças, a confiança nas instituições será afetada. Em uma das definições de Giddens (1991, p. 44), lemos que “a confiança não é o mesmo que fé na credibilidade de uma pessoa ou sistema; ela é o que deriva desta fé. A confiança é precisamente o elo entre fé e crença, e é isto que a distingue do ‘conhecimento indutivo fraco’”. Na pós-verdade, talvez como resultado de um aprofundamento ou agravamento das consequências da modernidade apontadas por Giddens, esse elo está enfraquecido.

2.2 Ressignificando a verdade no jornalismo

O significado do termo pós-verdade apresentado pelo dicionário Oxford, que mencionamos na Introdução desta dissertação, é dado de modo a demarcar uma contraposição entre objetividade e subjetividade. Assim, faz menção a uma situação em que as crenças subjetivas importam mais do que os fatos objetivos na compreensão da realidade. Em nossa leitura, essas crenças subjetivas ganham força a partir da negação da objetividade e dos argumentos baseados na razão. Ao colocarem em xeque a existência de verdades factuais, elas refletem a crítica pós-modernista contra a ideia de uma realidade objetiva. “Ademais, o que é verdade vs o que é inverdade não admite precisão similar àquela do dois mais dois são quatro” (SANTAELLA, 2018, p. 64). O lugar comum nesse debate se dá justamente em torno da contraposição entre verdade ou mentira, verdadeiro ou falso, real ou imaginário.

Ao aderir a esse antagonismo, a mídia tradicional vislumbrou uma oportunidade para recuperar parte da audiência, das assinaturas, dos anúncios e da credibilidade que perdeu nos últimos anos. Nesse sentido, empresas jornalísticas criaram ou apoiaram iniciativas de 56

checagem de fatos, assumindo o desafio de proteger os leitores e a sociedade dos efeitos nocivos das fake news. De acordo com Ferrari (2018, p. 134), “as plataformas de fact-checking têm atraído atenção da mídia e dos leitores para a questão da checagem”. Para a autora, o interesse pelo tema pode ter iniciado uma “mudança de paradigma rumo ao compartilhamento de fatos com credibilidade”.

Não por acaso, grupos suspeitos de divulgar notícias falsas no Brasil reagiram ao movimento de popularização do fact-checking no país. O ápice se deu em maio de 2018, quando a rede social Facebook anunciou parceria com as agências de checagem Lupa e Aos Fatos, em um esforço para identificar fake news. Políticos e grupos identificados com a direita, entre eles o Movimento Brasil Livre, viu na iniciativa uma tentativa de censura. Não demorou para que uma onda de ataques virtuais contra as agências e seus checadores se iniciasse. De acordo com Motta (2018a),

Grupos como o Nas Ruas, Revoltados Online, MBL e expoentes da direita nas redes sociais, como Rodrigo Constantino e Joice Hasselmann, entre outros, consideram que o programa de verificação de informações embute, na verdade, uma tentativa de censura do Facebook à manifestação de ideias de direita em pleno ano eleitoral.

Assim, as agências de checagem também se tornaram alvo da artilharia que esses grupos já vinham utilizando contra os jornalistas e a mídia tradicional. Apesar de terem apelado mais uma vez à desinformação, utilizando-se de notícias falsas, bots e ciber-ataques contra os checadores, a reação dos grupos de direita abriu margem para uma ponderação importante. Embora seja válido o esforço das iniciativas de fact-checking no sentido de combater a desinformação, alçá-las à condição de “guardiãs da verdade” poderia abrir um precedente questionável. Não cremos que elas tivessem essa pretensão, uma vez que seguem diretrizes de atuação muito bem definidas pela International Fact Checking Network (IFCN), que incluem a necessidade de divulgar todas as fontes utilizadas nas checagens e os meios de financiamento do trabalho por elas realizado.

Para avançarmos nesse debate, é importante reconhecer que a verdade factual ou objetiva que alguns atribuem ao fazer jornalístico é praticamente inalcançável, embora a grande imprensa por vezes acredite ser aquela que está mais próxima de alcançá-la. Quando era diretor de redação da Folha de S. Paulo, Otávio Frias Filho escreveu em artigo na Revista USP que “a imprensa profissional, que adota critérios rigorosos para apurar e publicar notícias, continua 57

sendo o farol a iluminar as fronteiras, sempre fluidas, entre o falso e o verdadeiro” (FRIAS FILHO, 2018, p. 44). Eugênio Bucci, por sua vez, escreveu na mesma revista que “a imprensa, ao menos na visão de seus praticantes menos pernósticos, nunca teve a missão de entregar ‘a’ verdade às pessoas, muito menos a verdade com ‘V’ maiúsculo” (BUCCI, 2018, p. 22).

Ambos os argumentos refletem pontos de vista divergentes, embora muito significativos para esse debate, enquanto falam da mídia como instituição. Porém, devemos também voltar o olhar para os jornalistas e para a prática jornalística. Não é possível falar de objetividade ou subjetividade no jornalismo sem levar em consideração os agentes da produção de notícias. Para Cornu (1999, p. 320), o jornalista como sujeito, subordinado a uma ética da informação, “é responsável – pessoalmente responsável! – pela verdade das informações que relata e é seu responsável perante o público”. Não obstante, para Cornu (1999, p. 321), a pretensão da verdade total impõe uma espécie de totalitarismo, e a busca da verdade no jornalismo não escapa a essa tensão.

Pelo ângulo da informação que interessa aos jornalistas, a exigência de verdade levanta um grande número de questões e dá poucas respostas. A observação da prática da informação é fonte inesgotável de ensinamentos quanto ao difícil caminho da verdade. Que florilégio de verdades que não sabemos ver, que não queremos ver, que vemos mas não podemos ou não queremos dizer, que dizemos mas as pessoas não querem ouvir! (CORNU, 1999, p. 321).

O autor afirma que a objetividade muitas vezes é colocada como a qualidade essencial das práticas jornalísticas. Porém, ele esclarece que o trabalho jornalístico é condicionado “pelas escolhas sucessivas do jornalista e da sua redação, pelas fontes e sua influência, pelo público e suas expectativas, pela orientação escolhida pela própria empresa mediática” (CORNU, 1999, p. 328). A discussão sobre a verdade jornalística e sobre a objetividade deve se preocupar, portanto, com a relação entre as três ordens da informação: “a ordem da observação (o acontecimento, os factos), a ordem da interpretação (o sentido, os comentários) e a ordem da narração (o estilo, o relato)” (CORNU, 1999, p. 329). Essas três ordens devem considerar a intervenção do jornalista como sujeito.

No sentido comum, uma informação não é nada mais que isso mesmo. Não é a verdade. Uma informação reflete unicamente um aspecto, um fragmento da realidade. Sofre, está marcada pelo selo do provisório. É notícia do dia, que será enriquecida e talvez contraditada amanhã. Contribui, no entanto, para o aumento do saber. Inscreve-se por isso no projeto do homem que consiste em 58

descobrir de maneira tão completa e precisa quanto possível o universo que o rodeia, a fim de reduzir a incerteza do meio ambiente. (CORNU, 1999, p. 328).

Partindo dessa citação do autor, entendemos que o jornalismo e os jornalistas têm o papel de reduzir as incertezas em um cenário de fluidez e fragmentação da informação. Nessa perspectiva, o papel da imprensa é lidar com essas incertezas, de modo a permitir que os leitores as reconheçam e saibam quando estão expostos a elas. Acreditamos ser esse o propósito que veículos de comunicação e agências de checagem têm ao checar fatos relacionados às incertezas de um ambiente político e institucional polarizado, como o que tivemos durante a campanha eleitoral de 2018.

Quando nos detemos sobre a ação de grupos políticos reconhecidos por práticas que visam à desinformação nas redes sociais, percebemos que o objetivo deles vai na contramão da grande imprensa. Esses grupos se fortalecem por meio das incertezas que eles próprios alimentam, podendo se utilizar para isso de notícias falsas ou de outros artifícios. A tática é desconstruir a imagem dos oponentes, por meio de boatos e informações não verificadas que aprofundam as incertezas sobre eles. Durante a campanha que elegeu Bolsonaro, um boato inverossímil – como o da mamadeira com bico no formato de um órgão sexual masculino – não precisava ser prontamente aceito como verdadeiro pelos que foram expostos a ele. Apenas a incerteza diante da veracidade ou não daquele fato já teve o efeito desejado, fazendo com que ele fosse compartilhado a esmo pelo aplicativo de mensagens WhatsApp a fim de prejudicar o candidato rival.

As mensagens negativas são cinco vezes mais eficazes em sua influência do que as positivas. Portanto, trata-se de inserir negatividade de conteúdos na imagem da pessoa que se quer destruir, a fim de eliminar o vínculo de confiança com os cidadãos. Daí a prática de operadores políticos profissionais no sentido de buscar materiais prejudiciais para determinados líderes políticos, manipulando-os e até fabricando-os para aumentar o efeito destrutivo. (CASTELLS, 2018, p. 27).

Assim como o vídeo viralizado a poucos dias do 2º turno das eleições de 2018, que mostrava o então candidato ao cargo de governador de Estado de São Paulo, João Doria, em cenas comprometedoras. Não havia a certeza naquela época, assim como não há até hoje, de que Doria é o homem que aparece no vídeo participando de uma orgia. Mesmo assim, muitos o compartilharam ao ponto de o conteúdo se tornar viral. A resposta de Doria foi justamente a 59

tentativa de eliminar essa incerteza, enquanto criava outra, afirmando que o vídeo era uma montagem ou um deep fake.

É claro que também há situações em que a grande mídia age para aumentar essas incertezas em vez de reduzi-las. Isso acontece principalmente quando há um apelo ao sensacionalismo ou ao imediatismo dos “furos” divulgados sem a devida apuração e checagem dos fatos. Há também casos em que o jornalismo está sujeito a fraudes de jornalistas irresponsáveis e mal-intencionados, que podem contribuir significativamente para a queda da credibilidade da imprensa. Em caso recente, a revista semanal alemã Der Spiegel se viu envolvida em um grande escândalo jornalístico, a partir da revelação de que Claas Relotius, um dos repórteres mais estrelados do semanário, inventava as histórias que publicava.

É difícil compreender como a prestigiosa revista foi capaz de levar ao topo um repórter que inventava pautas e dizia ter entrevistado gente que nunca viu e visitado lugares onde nunca pisou. Como ninguém – nem seus chefes, nem o departamento de checagem, nenhum colega – percebeu que mais de meia centena de reportagens assinadas por seu jornalista-estrela eram perfeitas demais para serem corretas; que, na verdade, eram uma fraude. (CARBAJOSA, 2019).

Segundo o El País, Relotius era um profissional valorizado dentro da revista porque levava pautas e afirmava ter acesso a fontes exclusivas. Além disso, “suas reportagens eram bem escritas, cheias de vozes, ação e personagens; eram bombons doces demais para que algum chefe questionasse qualquer coisa” (CARBAJOSA, 2019). Por outro lado, a descoberta das fraudes foi possível graças ao trabalho de Juan Moreno, jornalista freelancer da revista alemã, que teve que se esforçar muito para convencer os responsáveis pela publicação sobre as incoerências de uma das histórias de Relotius, intitulada “A fronteira de Jaeger”. A reportagem, que abordava a ação de uma milícia na fronteira do México com os Estados Unidos da América, no Arizona, trazia relato de fontes que sequer tinham sido entrevistadas, uma vez que Relotius não esteve no local. A partir dessa revelação, todas as 60 reportagens que ele escreveu para a Der Spiegel são agora acompanhadas por uma advertência de que podem ser fictícias.

Diante disso, não podemos negar que a mídia tradicional esteja sujeita a erros que acreditamos não serem intencionais, na maioria das vezes. Porém, havendo ou não intenção de errar, quando esses erros vêm à tona, o espaço dedicado às erratas é geralmente menor do que o espaço utilizado para publicá-los. Não foi o caso da revista alemã, que publicou um número especial com uma reportagem de 23 páginas sobre o caso Relotius, admitindo que os alarmes 60

sobre as possíveis fraudes já haviam soado muito antes. “Como quando Relotius pediu aos tradutores da edição internacional que não publicassem suas reportagens em inglês. Ou quando pediu que não divulgassem no site uma foto da edição impressa” (CARBAJOSA, 2019).

Devido à gravidade, o escândalo do “Spiegelgate” serviu de munição para os críticos da grande mídia na Alemanha e nos Estados Unidos, especialmente os da extrema direita, acusarem-na de disseminar notícias falsas.

A esta altura, as verdades se confundem com as mentiras num cipoal que levará muito tempo a ser desenredado. Mas alguns atores políticos já cheiraram sangue e se lançaram à degola. Porque o caso Relotius ocorre num momento em que as forças populistas lutam para desacreditar os meios tradicionais. A extrema direita alemã esfrega as mãos diante de um caso que considera ser a prova definitiva de que a mídia tradicional é praticamente uma fábrica de fake news. O embaixador dos EUA em Berlim, Richard Grenell, o homem forte de Donald Trump na Europa, aproveitou para lançar uma campanha contra a Der Spiegel. Acusa a revista de “antiamericana”, conturbando ainda mais a já desgastada relação entre Washington e Berlim. (CARBAJOSA, 2019).

No Brasil, em áudios do aplicativo de mensagens WhatsApp vazados pelo ex-ministro Gustavo Bebbiano, que foram divulgados no site da revista Veja em 19 de fevereiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro também demonstrou que mantém uma postura de hostilidade em relação à grande mídia. Em um dos áudios trocados com o então ministro da Secretaria-Geral da Presidência, o presidente critica a relação com a grande imprensa, que é alvo de ataques de Bolsonaro desde a campanha eleitoral:

Bolsonaro, sem dizer nada, envia para Bebbiano uma cópia da agenda do próprio ministro na qual consta uma audiência com o vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Globo, Paulo Tonet Camargo. Bebbiano perguntou: “Algo contra, capitão?”. Bolsonaro retrucou: “Inimigo passivo, sim. Agora, trazer o inimigo para dentro de casa é outra história”. O presidente continuou: “Pô, cê tem que ter essa visão, pelo amor de Deus, cara. Fica trazendo o maior cara que me ferrou – antes, durante, agora e após a campanha – para dentro de casa. Me desculpa. Como presidente da República: cancela, não quero esse cara aí dentro, ponto-final”. (PEREIRA, 2019, p. 37).

De acordo com a reportagem, a crise que levou à demissão de Bebbiano revelou que o presidente enxerga conspirações e elege inimigos que não existem. Segundo Pereira (2019, p. 34), “em sua cabeça, as repartições públicas estão infestadas de esquerdistas, a imprensa quer derrubar o governo, a Igreja Católica conspira em nível mundial e há militares pensando em se 61

sentar na cadeira do presidente”. Fiel ao exemplo de Donald Trump, Bolsonaro mantém uma relação hostil com os profissionais dos veículos de comunicação que divulgam informações vistas como prejudiciais ou críticas ao governo. Essa hostilidade também se observa entre os apoiadores do presidente, que rotineiramente questionam a legitimidade da cobertura da imprensa sobre o governo e se mobilizam em ataques orquestrados a perfis de jornalistas nas redes sociais.

2.3 O “Momento Waldo” e a política dos memes

O urso azul Waldo, com um vocabulário chulo e postura radicalmente agressiva contra os adversários, apresenta alguns comportamentos extremos que podemos observar hoje em políticos identificados com a retórica antissistema e populista. Trata-se de um personagem que aparece em “O Momento Waldo”, o terceiro episódio da segunda temporada do seriado britânico de ficção científica Black Mirror. Dirigido por Bryn Higgins e escrito por Charlie Brooker, foi exibido originalmente pelo Channel 4 britânico em 25 de fevereiro de 2013 e distribuído posteriormente pelo serviço de streaming Netflix. Embora tenha sido lançado há mais de 6 anos, o episódio antecipa o debate sobre a política na era da pós-verdade, apresentando um personagem de animação como candidato a uma eleição.

Curiosamente, a ficção também se inicia com a revelação da suspeita de um caso de pedofilia que levou à renúncia de um deputado chamado Jason Gladwell, que teria divulgado fotos pornográficas no Twitter e enviado “correspondência imprópria” para uma adolescente de 15 anos. O acontecimento é repercutido em programa de TV sensacionalista que trata o político como pedófilo. É nesse momento que aparece Waldo, uma espécie de avatar animado, operado por joystick pelo comediante James Salter (Daniel Rigby), que interage em tempo real com o apresentador do programa fictício Tonight for one week only. Embora lembre um personagem de desenho animado identificado com o público infantil, com uma aparência quase inofensiva, o urso azul Waldo faz comentários inapropriados e piadas apelativas demonstrando total desprezo pelo “politicamente correto”.

Waldo faz sucesso e, durante uma entrevista, desagrada o político conservador Liam Monroe (Tobias Menzies) com perguntas constrangedoras. Após a ampla repercussão do fato, em uma jogada de marketing do canal de televisão, decidem colocar Waldo para disputar uma eleição contra Monroe. Instalado em uma van, um telão projeta a imagem do personagem de desenho animado, que vai à rua interagir com o público em uma campanha de perseguição ao 62

candidato conservador. Inicialmente, o político ignora o telão, mas após apelos da plateia formada em volta da van, ele explica que não é possível ignorar Waldo porque não há um Waldo e sim uma imagem dublada por um comediante. Jamie então questiona por que o político está interagindo com o personagem se ele não é real.

Em outra cena, durante um debate em que Waldo aparece no palco em uma tela instalada ao lado dos outros candidatos, Jamie, o comediante, acaba sendo desmascarado por Monroe, que revela detalhes da carreira pouco expressiva que ele teve antes de interpretar o urso azul. De acordo com Monroe, interpretar o papel do “ursinho de pelúcia” é mais fácil do que parece, pois basta debochar e xingar quando a piada não for autêntica. James, no papel de Waldo, por sua vez, responde ao candidato que se sente mais humano do que ele, mesmo sendo um urso inventado com um “pau azul”. É nesse momento que ele dá voz a um descontentamento com os políticos tradicionais, que provavelmente não seria apenas dele. Nas palavras do urso azul, figuras como Monroe são antiquadas e se colocam como superiores quando não são levadas a sério, embora não sejam levadas a sério porque ninguém confia nessa “laia”, que não se importa com nada que esteja fora de suas “bolhas”. O personagem conclui que uma mudança é necessária, porque todos os políticos são iguais, quando estão enganando e fingindo.

Na ficção, Waldo se torna um personagem viral apenas três dias após esse debate acirrado, cujo vídeo teria alcançado mais de 1 milhão de visualizações no YouTube. O dono da emissora, Jack Napier (Jason Flemyng), vê na ascensão da popularidade do avatar a oportunidade de agir contra o status quo, por meio da mobilização dos mais jovens que se identificam com a retórica agressiva e antissistema de Waldo, também vista como autêntica. Afinal, todos sabem que o personagem não é real e, por isso, mostra-se mais real do que todos os outros candidatos, dando voz ao coro de descontentes contra os políticos tradicionais. Jack afirma que o comediante pode fazer algo em um mundo desgastado e que os políticos são desnecessários, já que os smartphones e os computadores permitem que todas as decisões sejam tomadas on-line.

A seguir, em outra cena, os dois conversam com um norte-americano que fala em nome de uma organização chamada “A Agência”, que propõe disseminar globalmente a tecnologia de Waldo como um produto de “entretenimento político global”, em substituição aos políticos humanos que não teriam mais credibilidade. Na visão do “agente”, Waldo poderia ser otimizado por meio de uma nova plataforma que pudesse fornecer uma “mensagem de esperança” para energizar os marginalizados sem espantar a classe média. 63

Essas cenas do episódio de Black Mirror foram descritas neste capítulo por se mostrarem bastante representativas de alguns pontos que abordamos até agora. Embora tenha sido lançado há mais de 5 anos, “Momento Waldo” mostra claramente como os debates e as conversações em torno da política têm se dado em um cenário de baixa credibilidade das instituições e dos políticos, agravado pela radicalização e pela polarização. Além disso, o episódio dá uma mostra de como as TIC podem ser utilizadas para manipular o debate público. As falas do representante da “agência” norte-americana, por exemplo, remetem-nos a uma abordagem que facilmente poderia ser atribuída a Steve Bannon e usada para descrever os métodos da Cambridge Analytica.

“Momento Waldo” apresenta, portanto, características da política na chamada era da pós-verdade. Em alguns países, a ficção toma a forma de realidade e já vemos comediantes e atores terem um papel cada vez mais relevante no debate político, alguns até como líderes partidários ou candidatos. De acordo com matéria divulgada pela Folha de S. Paulo, a onda antipolítica levou o humorista Volodimir Zelenski a ser o favorito à presidência na Ucrânia.

Famoso por suas imitações de políticos, em 2015 ele começou a estrelar a popular série de TV “Servo do Povo”. Nela, ele interpreta um professor que faz um discurso inflamado contra a corrupção na Ucrânia para seus alunos. Um deles o filma, o vídeo viraliza e ele acaba eleito presidente de verdade, com toda a sorte de situação inesperada à frente do país. Aparentemente, Zelenski levou a sério o papel, e em janeiro deste ano entrou na corrida eleitoral. (GIELOW, 2019).

A reportagem destaca que a onda antissistema na Ucrânia se assemelha à que foi verificada na Itália, nos EUA, no Brasil e em outros lugares que passaram por disputas eleitorais recentemente. Em alguns desses locais, despontaram líderes políticos como o comediante Beppe Grillo, fundador do partido populista Movimento 5 Estrelas na Itália. Outro exemplo é o ator satírico Marjan Sarec, que chegou ao poder na Eslovênia como primeiro-ministro em 2018. No Brasil, o comediante Danilo Gentili é considerado um dos principais influenciadores digitais da nova direita que ascende politicamente no país.

Vemos outra predição do futuro (ou de um retorno ao passado) no final do episódio, quando Waldo oferece dinheiro a qualquer pessoa da plateia que se disponha a agredir um oponente. Essa atitude se assemelha à truculência de Trump nos comícios de 2016, quando o então candidato agitava apoiadores para agredirem manifestantes contrários a ele nos eventos da campanha, afirmando que pagaria a conta dos advogados dos agressores. De acordo com 64

Levitsky e Ziblatt (2018, p. 67), “durante a campanha, ele não apenas tolerava manifestações de violência entre seus apoiadores, mas por vezes parecia regalar-se com elas. Trump abraçou apoiadores que agrediram fisicamente pessoas que protestavam contra eles”.

Outro aspecto abordado no seriado e que interessa à nossa discussão é a viralização de conteúdos midiáticos compartilhados por meio das TIC. De acordo com Loveluck (2018, p. 211), o fenômeno viral surge “quando uma informação ou um conteúdo é objeto, de repente, de uma difusão muito ampla e, portanto, ganha uma enorme visibilidade”. Segundo o autor, assistimos ao surgimento de novos modos de contágio social na internet, associados às dinâmicas de compartilhamento de conteúdo na rede. A ideia de contaminação explorada por Loveluck (2018, p. 213) se baseia, portanto, na influência que a biologia exerceu sobre “os discursos e as representações da rede, mediante as teorias da evolução aplicadas à cultura”. É dessa concepção que surge o “meme” como uma abreviação da palavra “minema”, termo da biologia evolucionista que designa uma unidade de imitação.

No entanto, a ideia de meme tem conhecido um grande sucesso no contexto da internet – na medida em que a rede pode ser vista principalmente como uma gigantesca máquina destinada a copiar e difundir informações. Na internet, o meme designa um link ou um site web, um vídeo, uma imagem ou, até mesmo, uma frase que se espalha pela rede mediante simples compartilhamento ou por “mutação” – ou seja, depois de ter sido modificado, transformado, parodiado, “remixado”. (LOVELUCK, 2018, p. 214).

Mais do que um avatar ou personagem de desenho animado, Waldo se apresenta no episódio de Black Mirror como um meme político. Portanto, o seriado se antecipou em abordar outro aspecto da internet que viria a influenciar ainda mais a cultura e o comportamento nas redes sociais nos anos seguintes. Como forma cultural, o meme visa à obtenção de sucesso e visibilidade na rede e é usado para divertir, dar forma a uma expressão e comunicar um sentido. “Assim, todos aqueles que procuram ganhar maior visibilidade visam produzir conteúdos a fim de engendrarem tal circulação” (LOVELUCK, 2018, p. 215).

Durante a campanha que elegeu Trump, os memes foram uma forma cultural muito utilizada pelos grupos da direita alternativa (alt-right) em prol das pautas defendidas pelo candidato. O mesmo fenômeno se deu na campanha eleitoral no Brasil em 2018, quando memes variados foram utilizados para mobilizar o eleitorado, distribuídos principalmente por meio de grupos no WhatsApp, alguns com o intuito de disseminar desinformação. Porém, bem antes de 65

Bolsonaro ser eleito, algumas páginas já se posicionavam como precursoras na distribuição de memes políticos nas redes sociais no Brasil.

De acordo com reportagem do site Vice, até 2016, essas “fábricas” de memes políticos se dividiam em duas correntes: uma mais ideológica, capitaneada pelo Movimento Brasil Livre (MBL); e outra mais apartidária, representada por páginas como “Ajudar O Povo De Humanas a Fazer Miçanga”, “O Legado da Copa”, “O Brasil Que Deu Certo” e a “Corrupção Brasileira Memes (CBM)”. Porém, de dois anos para cá, algumas dessas páginas teriam passado por uma “metamorfose política” e se juntado à nova direita brasileira. “Antes apartidárias, elas passaram a focar numa tiração de sarro com a esquerda e a endeusar figuras da direita, como Jair Bolsonaro” (REIS; FANTINI, 2018).

Conforme a reportagem apurou, a maior parte das páginas de memes políticos no Brasil está diretamente ligada ao MBL, que teria monopolizado as “fábricas meméticas” de direita no país. Segundo Reis e Fantini (2018), fontes consultadas pelo site Vice afirmaram que o grupo “compra outras páginas para manter seu domínio na proliferação de notícias apaixonadas em forma de montagens de fácil assimilação”. Como veremos adiante, os memes se inserem na estratégia político-midiática do MBL para se manter em evidência e até para eleger candidatos ligados ao movimento.

O monopólio que se formou nos bastidores dos memes mais influentes ajudou o MBL a aumentar seus seguidores e a eleger seus próprios políticos. Depois de eleger vereadores em 2016, a fábrica de memes conquistou cargos legislativos em 2018. A “bancada MBL” hoje conta com cinco deputados federais e dois senadores. O grupo também consultou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na tentativa de se formar um partido político. (REIS; FANTINI, 2018).

Os memes políticos são criados e distribuídos com o intuito de chamar a atenção em meio ao burburinho das conversações públicas nas redes sociais e, para isso, precisam causar um ruído mais alto do que os outros conteúdos dispersos na rede. Apresentam-se, portanto, como os fantasmas digitais mencionados por Byung-Chul Han (2018a) em uma perspectiva kafkiana. “A nova geração de fantasmas, a saber, os digitais, se tornam, assim diria Kafka, mais audazes e barulhentos” (HAN, 2018a, p. 96). Nas cenas de Black Mirror, enquanto persegue o deputado conservador, Waldo se apresenta justamente como um fantasma, uma assombração e, por que não, um vírus no processo eleitoral.

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A comunicação digital toma não apenas a forma espectral, mas também viral. Ela é contagiante na medida em que ela ocorre imediatamente em planos emocionais ou afetivos. O contágio é uma comunicação pós-hermenêutica, que não dá verdadeiramente nada a ler ou pensar. Ela não pressupõe nenhuma leitura, que se deixa acelerar apenas de maneira limitada. Uma informação ou um conteúdo, mesmo com significância muito pequena, se espalha rapidamente pela internet como uma epidemia ou pandemia. Nenhuma outra mídia é capaz desse contágio viral. A mídia escrita é lenta demais para isso. (HAN, 2018a, p. 99).

Para explicar como se dá esse contágio, Anna Munster (2013, p. 103) nos fala de uma afetividade em rede que está presente nos conteúdos virais, que ativam a capacidade coletiva (heterogênea) de afetar e ser afetado nas redes online. A autora explica a distinção entre os afetos categóricos e os afetos da vitalidade. Os primeiros dizem respeito a emoções individualizadas e definitivas que são distintas umas das outras, enquanto os segundos não se ajustam a emoções denominadas porque estão em movimento e têm as qualidades dinâmicas da experiência. As campanhas de marketing viral, por exemplo, buscam o afeto definitivo. Já o conteúdo viral compartilhado cotidianamente on-line gera uma afetividade emergente vaga. “As redes alimentam-se desta vitalidade; na verdade, as redes são vírus, ou pelo menos parasitas imateriais, que necessitam de um hospedeiro corpóreo, uma multidão viva” (MUNSTER, 2013, p. 105).31

Exemplos das vitalidades moleculares das redes são vivenciadas todos os dias on-line e off-line, muitas vezes provocando sensações e reações imediatas. Estes chegam em forma de piadas, mash-ups, links de imagem e vídeo que fazem as rodadas de listas de e-mail ou sites de mídias sociais. Em seguida, eles são escolhidos pelos sites “mais quentes” e, de repente, decolam, atraindo milhões de visualizações ou downloads. [...] São as pessoas que fazem as coisas “viralizarem” encaminhando, blogando, enviando mensagens instantâneas, conversando e gerando os links diários para a mídia viral. (MUNSTER, 2013, p. 106).32

31 Tradução livre. No original: “Networks feed on this vitality; in effect, networks are viruses, or at least, immaterial parasites, that requires a corporeal host, a living multitude”. 32 Tradução livre. No original: “Examples of the molecular vitalities of networks are experienced everyday on- and offline, often provoking immediate sensations and reactions. These arrive in the form of jokes, mash-ups, image and video links that do the rounds of email list or social media sites. The then get picked-up by “what’s hot” sites and suddenly take off, attracting millions of views or downloads. […] These are the people who make things ‘go viral’ by forwarding, blogging, instant messaging, chatting, and generating the daily links for viral media”. 67

Os memes políticos são exemplos de conteúdos que buscam provocar sensações e reações imediatas que favorecem a viralização na rede. De acordo com Castells (2018, p. 17), “na realidade, as emoções coletivas são como a água: quando encontram um bloqueio em seu fluxo natural, abrem novas vias, frequentemente torrenciais, até inundar os exclusivos espaços da ordem estabelecida”. Segundo o autor, conforme aprendemos com a neurociência mais avançada, “a política é fundamentalmente emocional” (CASTELLS, 2018, p. 27).

Para Han (2018b, p. 59), há uma confusão conceitual, pois “ora se fala de emoção, ora de sensação, ora de afeto”. O autor defende que o sentimento tem uma profundidade e uma duração narrativa, enquanto o afeto e a emoção não são narráveis. “As emoções são essencialmente mais fugazes e mais curtas do que os sentimentos. O afeto muitas vezes é limitado a um instante” (HAN, 2018b, p. 61). Logo, “o médium digital também é o meio do afeto. A comunicação digital favorece uma descarga imediata de afeto. Já por causa da sua temporalidade, a comunicação digital transporta mais afetos do que sentimentos” (HAN, 2018b, p. 60). Assim é a política dos memes: uma viralidade que se propaga no tempo imediato dos afetos.

2.4 A fragmentação da opinião pública: políticas identitárias e guerras culturais

Como vimos até agora, o advento de novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) transformou a maneira como produzimos e consumimos mídia. Em nossas leituras, observamos que, tanto os mediadores tradicionais quanto os novos mediadores, ora são apresentados como heróis, ora como vilões. Vimos também que, em algumas situações, eles se unem na chamada convergência midiática e, juntos, buscam transformar espectadores passivos em consumidores ativos. Para isso, contam com os algoritmos, os bots, os big data, a computação em nuvem e outros recursos tecnológicos característicos das mídias digitais.

Han (2018b, p. 26) afirma que esses mecanismos nos submetem a um poder do regime neoliberal que assume uma forma sutil, flexível, inteligente e invisível. O autor o chama de “poder inteligente”, que não age contra a vontade dos sujeitos, mas a controla em seu próprio benefício. “O poder inteligente se plasma à psique, em vez de discipliná-la e submetê-la a coações e proibições. Não nos impõe nenhum silêncio. Ao contrário, ele nos convida a compartilhar incessantemente” (HAN, 2018b, p. 27). Ele faz com que nos sintamos livres na medida em que participamos, damos opiniões, comunicamos necessidades, desejos e 68

preferências, revelando detalhes sobre as nossas vidas. Para o autor, essa liberdade e essa afabilidade do poder inteligente escondem uma nova forma de dominação:

Com a aparência liberal e afável que estimula e seduz, o poder inteligente é mais efetivo do que qualquer um que ordene, ameace e prescreva. O “curtir” é seu signo: enquanto consumimos e comunicamos, ou melhor, enquanto clicamos curtir, nos submetemos ao contexto da dominação. O neoliberalismo é o capitalismo do “curtir”. (HAN, 2018b, p. 27).

O poder inteligente abdica da violência porque ela não é mais necessária à dominação, uma vez que vivemos em uma era em que nos expomos voluntariamente sem necessidade de coerção. Essa é, nas palavras do autor, a era da psicopolítica digital, em que “colocamos na rede todo tipo de dados e informações pessoais, sem avaliar as consequências” (HAN, 2018b, p. 22). Nas palavras do autor, o big data se apresenta como instrumento psicopolítico, que permite alcançar um conhecimento abrangente sobre as dinâmicas de comunicação social. “Trata-se de um conhecimento de dominação que permite intervir na psique e que pode influenciá-la em um nível pré-reflexivo” (HAN, 2018b, p. 23).

Susskind (2018, p. 63) salienta que “muitos dos dados no mundo são originados de seres humanos. Às vezes nós deliberadamente os trazemos à existência, como quando usamos nossos dispositivos para gravar e comunicar”.33 Para dar uma dimensão da quantidade de dados que produzimos, o autor estima que, diariamente, enviamos cerca de 269 bilhões de e-mails (36 por pessoa), publicamos 350 milhões de fotos no Facebook e disparamos cerca de 500 milhões de tuítes. “Mesmo quando eles não se mostram ricos em dados, esses atos comunicativos podem captar a vida interna dos seres humanos de uma forma que era impraticável anteriormente”.34 (SUSSKIND, 2018, p. 63). O autor acredita que aqueles que têm o controle sobre essas tecnologias também terão cada vez mais controle sobre nós.

O autor lembra também que o surgimento da internet trouxe uma perspectiva bastante otimista para o futuro da democracia deliberativa. Acreditava-se que o ciberespaço se tornaria um espaço favorável para o debate político, dando às multidões e aos indivíduos a possibilidade de criar e trocar informações sobre política. Porém, segundo o autor, isso não se tornou realidade. Apesar de haver mais oportunidades para que cidadãos comuns tenham voz, não tem

33 Tradução livre. No original: “much of the data in the world originates with human beings. Sometimes we deliberately bring it into existence, as when we use our devices to record and communicate”. 34 Tradução livre. No original: “Even when they don’t seem rich in data, these communicative acts can capture the internal life of humans in a way that was previously impracticable”. 69

havido um aumento da qualidade da deliberação ou do discurso político em geral. Ao contrário disso, a divisão e a desinformação têm caracterizado a política de hoje, talvez ainda mais do que no passado. “Esse é o resultado de quatro ameaças: controle da percepção, realidade fragmentada, anonimato on-line e a crescente ameaça representada pelos bots” (SUSSKIND, 2018, p. 228).35

Na visão de Rasmussen (2016), o debate público mediado pelas mídias digitais e pessoais tende à diferenciação e à fragmentação. “Embora a Internet seja frequentemente vista como um argumento óbvio em favor de modelos deliberativos de democracia, também apresenta alguns desafios sérios, devido à crescente fragmentação e complexidade” (RASMUSSEN, 2016, p. 130).36 O autor reconhece que as mídias digitais permitem que a participação (e a desigualdade) seja crescente, bem como novos pontos de vista e novas soluções. Porém, “é mais difícil ver como elas permitem a consolidação e a visão geral”.37 Susskind (2018) relaciona essa fragmentação da realidade com a política na pós-verdade, em que as mensagens políticas são filtradas e individualizadas. Logo, a informação que um eleitor recebe é diferente da informação que outro eleitor recebe de um dado partido ou candidato. Outro aspecto é que “nossa tendência inata à polarização de grupo significa que os membros de um grupo que compartilham as mesmas visões tendem, com o tempo, a se tornarem mais extremos nessas visões” (SUSSKIND, 2018, p. 231).38

É por isso que a pós-verdade marca o ressurgimento das guerras culturais do fim do século XX, que se deram em torno do debate por direitos de grupos minoritários, através de políticas identitárias e de inclusão social. Ao comentar sobre a polarização nos Estados Unidos, Kakutani (2018, p. 59) afirma que as guerras culturais voltaram com força total com Trump, que teria apelado aos “medos dos eleitores brancos de classe operária, preocupados com um mundo em mudança, ao mesmo tempo lhes oferecia bodes expiatórios – imigrantes, afrodescendentes, mulheres, muçulmanos – como alvos para sua raiva”.

Para Castells (2018, p. 51), essas divisões extremadas não são apenas partidárias, mas, principalmente, identitárias. De acordo com o autor, não foi apenas uma crise das condições de

35 Tradução livre. No original: “This is the result of four threats: perception-control, fragmented reality, online anonymity, and the growing threat posed by bots”. 36 Tradução livre. No original: “While the Internet is often seen as an obvious argument in favour of deliberative models of democracy, it also poses some serious challenges, due to increasing fragmentation and complexity”. 37 Tradução livre. No original: “it is harder to see how they enable consolidation and overview”. 38 Tradução livre. No original: “our innate tendency toward group polarization means that members of a group who share the same views tend, over time, to become more extreme in those views”. 70

vida que motivou a mobilização dos setores que levaram Trump ao poder. “Isso já havia ocorrido com a eleição de Obama. No caso de Trump, a explicação parece antes apontar para a crise cultural de setores populares em desarraigamento” (CASTELLS, 2018, p. 40).

Uma parte da explicação para a força do movimento nacionalista é a importância que a política da identidade ganhou nos Estados Unidos, assim como no resto do mundo. Vários grupos étnicos e culturais (afro-americanos, latinos, chicanos, indígenas americanos, asiáticos de diferentes nações e etnias, mulheres, lésbicas, gays, transexuais e outros múltiplos conjuntos) têm afirmado sua identidade específica e lutado por seus direitos. De repente, os homens brancos perceberam que ninguém falava de sua identidade. E mais, que outras identidades se definiam como contestadoras da identidade supostamente dominante: a identidade patriarcal do homem branco. Que, por ser a identidade alfa, foi superada e negada como identidade. (CASTELLS, 2018, p. 51).

De acordo com reportagem da Folha de S. Paulo, a guerra cultural veio para o Brasil importada dos Estados Unidos da América, havendo hoje uma batalha por corações e mentes em curso. “Ela não se dá nas urnas, mas no imaginário – com uma mistura de pânico moral e estridência – e está ligada de forma íntima à ascensão política de Jair Bolsonaro, recém-eleito presidente” (MEIRELES, 2018). Nos EUA, a guerra cultural teria ocorrido anteriormente no fim dos anos 1980, quando a Universidade Stanford tentou alterar o currículo de um curso de cultura ocidental. A mudança incluiria no currículo autores como a indígena guatemalteca Rigoberta Menchú, cuja história, relatada a uma antropóloga, havia sido publicada em um livro. Segundo Meireles (2018), “foi a senha para os republicanos, com auxílio da imprensa, falarem em derrocada da cultura ocidental no ensino. De repente, era como se Platão e Aristóteles fossem ser banidos para dar lugar a índios semialfabetizados”.

Um ano depois, uma exposição do fotógrafo Robert Mapplethorpe em Washington seria fechada após protestos – sua obra é um retrato hiper- erotizado do underground gay. Uma das reclamações era o uso de dinheiro público para financiar a mostra. Qualquer semelhança com a polêmica no ano passado do fechamento da exposição “Queermuseu”, em Porto Alegre, não é mera coincidência. O Brasil – sintonizado com essa tendência internacional – agora adota a prática. E quem colhe os dividendos eleitorais dela é a direita. (MEIRELES, 2018).

O antropólogo Eduardo Wolff, citado pela reportagem, afirma que a guerra cultural reúne três elementos sob o guarda-chuva da religião: raça, sexualidade ou comportamento. (WOLFF apud MEIRELES, 2018). Do lado da esquerda, há no Brasil uma militância 71

identitária, que se organiza de forma capilarizada na internet, cuja atuação central se dá na luta por representatividade em produtos culturais e midiáticos como nas novelas, livros e filmes. Entre os militantes nesse espectro, há artistas, produtores culturais e intelectuais. “A resposta da direita chegou logo, usando o pânico moral como arma, e a sexualidade virou o principal campo de batalha. Basta ver a luta contra uma suposta ideologia de gênero que estaria infiltrada na sociedade” (MEIRELES, 2018). Nessa guerra, a grande mídia também aparece na mira dos conservadores:

As teses conspiratórias contra a TV Globo, antes comuns em algumas alas da esquerda, agora são apropriadas pela direita. Como resposta às novelas da emissora, despontam os folhetins e filmes bíblicos da Record, entre eles a cinebiografia do bispo Edir Macedo. (MEIRELES, 2018).

Além das novelas e filmes da Record, emissora pertencente à Igreja Universal do Reino de Deus, comandada por Edir Macedo, há também uma rede de canais no YouTube formada por influenciadores digitais que se identificam com o pensamento da nova direita. Alguns desses canais foram indicados nas redes sociais por Jair Bolsonaro aos seus apoiadores, numa tentativa de oferecer alternativas à mídia tradicional, pela qual o presidente não demonstra ter muita simpatia. De acordo com a revista Época, “os seis nomes selecionados por Bolsonaro somam 5.115.255 seguidores apenas no YouTube. Eles são: Embaixada da Resistência, Tradutores de Direita, Olavo de Carvalho, Bernado Kuster, Diego Rox e Nando Moura” (ASSAD; GRINBERG; AGUIAR, 2018).

Embora não citado pelo presidente, o canal do comediante Danilo Gentili, reconhecido como um dos principais influenciadores de direita no Brasil, tem atualmente mais de 648.000 seguidores.39 O canal de outra expoente da direita brasileira, Joice Hasselman, é seguido por mais de 1.160.000 pessoas. A influenciadora foi a segunda mais votada para o cargo de deputada federal no Estado de São Paulo, sendo eleita com 1.078.666 votos, número próximo ao de seus seguidores no YouTube.40 Entre os influenciadores ligados ao MBL, como já

39 O canal no YouTube do programa “The Noite com Danilo Gentili”, exibido às terças-feiras pelo SBT, tem mais de 6.330.000 seguidores. Não entrou na conta dos influenciadores de direita porque não é um canal que trata de conteúdo político e sim de entretenimento, embora o SBT, de propriedade de Silvio Santos, seja um dos canais da grande mídia mais simpáticos ao governo ultradireitista de Jair Bolsonaro. 40 Os números de seguidores aqui apresentados foram verificados em março de 2019 e estão sujeitos a variação, para mais ou para menos, posteriormente.

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mencionamos na Introdução desta dissertação, Kim Kataguiri e Artur do Val também foram eleitos com votações expressivas. No canal “Mamãe Falei”, Artur tem mais de 2.500.000 seguidores, enquanto Kataguiri tem cerca de 405.000.41

De acordo com Karhawi (2016, p. 42), um influenciador produz conteúdos temáticos, com frequência e credibilidade. “Nesse processo, ele deixa de ser um internauta comum e passa a ser encarado como uma mídia autônoma, uma marca”. O termo influenciador, portanto, passa a designar uma categoria de produtor (e curador) de conteúdo, que é mais do que um “blogueiro” ou “vlogueiro”, porque ele pode atuar em diferentes plataformas. O capital simbólico do influenciador está na imagem que ele constrói nas redes sociais. Assim, “os influenciadores não monetizam apenas o conteúdo que produzem em seus blogs, canais no YouTube, mas eles mesmos, em uma dinâmica próxima à da celebridade” (KARHAWI, 2016, p. 41).

O papel dos influenciadores normalmente é abordado da perspectiva do consumo e das marcas, uma vez que eles são considerados formadores da opinião pública e se integram às estratégias de marketing digital e de relações públicas das empresas. De todo modo, a atuação dos influenciadores digitais na política, que interessa à nossa abordagem nesta dissertação, vem crescendo eleição após eleição. Junto a esse crescimento, começam a surgir alguns questionamentos sobre o uso ético da imagem dessas quase celebridades com propósitos eleitorais.

Na campanha de 2018, por exemplo, uma denúncia atribuiu ao Partido dos Trabalhadores a compra de influenciadores digitais para promover candidatos de esquerda, o que poderia caracterizar propaganda eleitoral paga na internet, proibida pela legislação. De acordo com o Huffpost Brasil, o esquema foi denunciado por meio de comentários de influenciadores digitais, em uma sequência (thread) iniciada pela jornalista e militante Paula Holanda, conhecida como @pppholanda no Twitter.42 “Ela contou que foi convidada por uma agência de marketing digital mineira chamada Lajoy a promover em seu perfil conteúdo de esquerda em troca de pagamentos” (FERNANDES, 2018).

Os influenciadores digitais se inserem no contexto da autocomunicação de massa abordada por Castells (2018, p. 27), em que “a dinâmica de construção de uma mensagem simples e facilmente debatível em um universo multiforme conduz à personalização da

41 O canal de Arthur do Val, que concorreu às eleições com o pseudônimo Arthur Mamãe Falei, tem mais seguidores que o canal do próprio MBL, que é seguido por mais de 1.460.000 usuários. 42 Na época da denúncia, o perfil tinha 6.857 seguidores no Twitter e hoje está desativado. 73

política.” É assim que transitamos da fragmentação para o micro-targeting na política. De acordo com Han (2018b, p. 87), “o micro-targeting é aplicado para abordar os leitores com mensagens direcionadas e personalizadas, e assim influenciá-los”.

Nas eleições norte-americanas, big data e data-mining de dados se revelam, de fato, o ovo de Colombo. Os candidatos têm uma visão em 360º dos eleitores. Gigantescas quantidades de dados de diferentes fontes são coletadas, na verdade compradas e conectadas entre si, para que possam produzir perfis eleitorais bem definidos. Com isso, também se adquire uma visão da vida privada e mesmo da psique dos eleitores. [...] O micro-targeting, como prática da microfísica do poder, é uma psicopolítica movida por dados. (HAN, 2018b, p. 86-87).

Além de mensagens personalizadas, segundo Han (2018b), a psicopolítica permite a personalização dos discursos por meio de algoritmos inteligentes que podem realizar prognósticos sobre o comportamento eleitoral. “Os discursos eleitorais individualmente adaptados não diferem muito das propagandas personalizadas. Cada vez mais, votar e comprar, Estado e mercado, cidadão e consumidor se assemelham” (HAN, 2018b, p. 87). O autor acredita que os big data tornam legíveis desejos sobre os quais não estamos conscientes, assim como o marketing faz em relação ao consumo. “De fato, em determinadas situações, desenvolvemos inclinações que escapam à nossa consciência. Muitas vezes, nem sequer sabemos por que de repente sentimos certa necessidade” (HAN, 2018b, p. 88).

Nesse estado de inconsciência provocado pelas novas tecnologias do marketing político, estamos ainda mais sujeitos à manipulação e à desinformação. Estudo da Diretoria de Análises de Políticas Públicas (DAPP) da Fundação Getulio Vargas (FGV), intitulado “Robôs, redes sociais e política no Brasil: estudo sobre interferências ilegítimas no debate público na web, riscos à democracia e processo eleitoral de 2018”, mostra que partidos e movimentos sociais buscam ficar em evidência nas redes sociais, a fim de mobilizar e liderar a opinião pública em torno de um tema, em um determinado momento. Para isso, é necessário influenciar o debate, o que nem sempre é possível sem o uso orquestrado de redes de robôs (botnets). Os chamados robôs sociais (social bots) são contas controladas por software que geram artificialmente conteúdo e estabelecem interações com não robôs. Eles buscam imitar o comportamento humano e se passar como tal de maneira a interferir em debates espontâneos e criar discussões forjadas (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2017, p. 9).

Susskind (2018, p. 232) afirma que os robôs aprendem por meio de inteligência artificial a imitar a conversação entre humanos. “Bots apenas começaram a colonizar o discurso on-line, 74

mas eles estão crescendo rapidamente em importância. Um estudo de 2017 estima que 48 milhões (9 a 15 por cento das contas) no Twitter são bots”.43 (SUSSKIND, 2018, p. 233). O autor alerta que no futuro a forma como percebemos o mundo será cada vez mais determinada pelo que sistemas digitais nos revelam ou nos escondem.

Esses sistemas – serviços de notícias e pesquisa, canais de comunicação, computação afetiva e plataformas de AR – determinarão o que sabemos, o que sentimos, o que queremos e o que fazemos. Por sua vez, aqueles que possuem e operam esses sistemas terão o poder de moldar nossas preferências políticas. (SUSSKIND, 2018, p. 229).44

Embora os sistemas digitais contribuam para que se estabeleçam novas formas de dominação, manipulação e desinformação, é importante notar que eles também são influenciados pelo comportamento humano. No artigo “The spread of true and false news online”, publicado pela revista , Soroush Vosoughi, Deb Roy e Sinan Aral (2018, p. 5) concluíram que “o comportamento humano contribui mais para a disseminação diferencial da falsidade e da verdade do que os robôs automatizados”.45 Cremos, porém, que algumas pessoas podem estar disseminando a desinformação de forma inconsciente, mas certamente há quem o faça de forma consciente, seja com o objetivo de manipular a opinião pública, tumultuar as conversações públicas ou ambos.

Esse segundo perfil pode ser claramente identificado com os chamados trolls. Segundo Marwick e Lewis (2017, p. 4), o termo era usado inicialmente para identificar usuários da internet que agiam deliberadamente para provocar outros usuários e obter uma resposta emocional deles. O estilo de troll mais recente, que esteve muito atuante na campanha que elegeu Donald Trump em 2016, pode ser descrito, segundo as autoras, por quatro propriedades, que são a chave para o entendimento das práticas de manipulação que eles utilizam: (1) o uso de discurso deliberadamente ofensivo; (2) antipatia pelo sensacionalismo na mídia tradicional; (3) desejo de criar impacto emocional nos alvos; (4) a preservação da ambiguidade

43 Tradução livre. No original: “Bots have only just begun to colonize online discourse, but they are swiftly rising in significance. One 2017 study estimates that 48 million (9 to 15 per cent of accounts) on Twitter are bots”. 44 Tradução livre. No original: “These systems – news and search services, communication channels, affective computing, and AR platforms – will determine what we know, what we feel, what we want, and what we do. In turn, those who own and operate these systems will have the power to shape our political preferences”. 45 Tradução livre. No original: “human behavior contributes more to the differential spread of falsity and truth than automated robots do”.

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(MARWICK; LEWIS, 2017, p. 4).46 Para Kakutani (2018, p. 99), Trump se apresenta como um troll, “tanto pelo temperamento quanto pelo hábito. Seus tuítes e provocações desajeitadas são a essência da ‘trolagem’”. Segundo Mello (2018b), “Bolsonaro usa declarações provocativas para conseguir ser ouvido em meio ao barulho, do mesmo jeito que Trump”.

Portanto, também no Brasil há trolls que, a exemplo dos partidários da alt-right norte- americana, transformam as redes sociais em uma arena de disputa político-midiática. Eles são também bastante atuantes nos debates sobre questões identitárias, em torno das quais se dá a guerra cultural que caracteriza o atual cenário político do país. Em um dos lados desse combate, está o Movimento Brasil Livre, que desponta como uma das principais forças políticas da direita brasileira na atualidade. Por isso, não duvidamos de que há trolls atuando a favor do MBL e provavelmente outros atuando contra o grupo, assim como provavelmente há bots, algoritmos, memes e influenciadores digitais nessa ofensiva e contraofensiva. Seja como for, o poder simbólico do MBL, que lhe permite atrair a atenção de milhões de seguidores nas redes sociais, é um fenômeno viral da política do “nós” contra “eles”, que merece ser analisado e, se possível, compreendido em sua essência. É o que tentaremos fazer no capítulo 3, em que refletiremos sobre a ação do grupo, que neste trabalho caracterizamos como político-midiática.

46 De acordo com as autoras, na preservação da ambiguidade se apresenta a Lei de Poe: “Sem uma indicação clara da intenção do autor, é difícil ou impossível dizer a diferença entre uma expressão de extremismo sincero e uma paródia de extremismo” (MARWICK; LEWIS, 2017, p. 4). 76

3 MBL: UMA ORGANIZAÇÃO POLÍTICO-MIDIÁTICA

O MBL (Movimento Brasil Livre) reúne atualmente mais de 3,2 milhões de seguidores no Facebook, quase 1,5 milhão no YouTube e outras centenas de milhares em redes sociais como Twitter e Instagram. Dado o alcance e a relevância que conquistou por meio de uma ação localizada nas redes sociais, o MBL foi tema de reportagens investigativas da grande mídia e tem sido objeto de pesquisas acadêmicas no Brasil.47 Desde o começo, o grupo se pauta pela busca por visibilidade, a qualquer custo. Gohn (2017, p. 46) lembra que a própria sigla do grupo foi criada para “confundir e capturar o lastro de sucesso do MPL (Movimento Passe Livre), movimento distinto”.

O perfil político do MBL situa-se no campo contraditório de ideias que misturam o liberal e o neoconservadorismo. Liberal porque defende o livre mercado e é antiestatista no que diz respeito à forma como interpreta o papel do Estado na sociedade e na economia. O Estado é visto como problema quando regula ou intervém no mercado. [...] Difere, portanto, do MPL (Movimento Passe Livre), localizado no campo autonomista e no espectro do socialismo, que considera o Estado e o mercado como forças de opressão e desigualdade. É neoconservador por ser contra vários direitos sociais e culturais modernos. (GOHN, 2017, p. 46-47).

Nesta dissertação, temos nos referido ao MBL como um movimento político-midiático, diante da impossibilidade de incluí-lo no campo dos movimentos sociais. Também não é possível, por enquanto, referir-se ao MBL como um partido político de fato (embora esteja cada vez mais próximo de assumir essa forma de organização). A nossa análise da ação político- midiática do grupo parte da ideia de “política da mídia” elaborada por Castells (2017a, p. 247), que é a administração da política “na” mídia e “pela” mídia. No contexto histórico abordado pelo autor, “a política é primordialmente uma política da mídia”, em que as mensagens, as organizações e os líderes não podem existir na mente pública sem uma presença midiática. Para Bourdieu (2014, p. 7), “não basta notar que as relações de comunicação são, de modo inseparável, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições)”. Em nosso diálogo com esse autor, partimos do pressuposto de que o poder exercido pelo MBL é um poder simbólico que se estabelece por meio da ação política potencializada e legitimada pela ação midiática. Porém,

47 Optamos por fazer referência ao MBL como grupo (ou coletivo) e não como “movimento social”. Para Maria da Glória Gohn, “o movimento assemelha-se mais a um grupo de pressão, pois não se trata de um movimento social estruturado com bases organizadas” (GOHN, 2017, p. 48). 77

estamos atentos à possibilidade do erro interacionista apontado pelo autor e, portanto, não pretendemos reduzir as relações de força a relações de comunicação em nossa abordagem conceitual.

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. [...] O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras. (BOURDIEU, 2014, p. 11).

Assim, a mídia não é detentora do poder, nem representa um Quarto Poder ou um Quarto Estado. “A mídia constitui o espaço onde as relações de poder são decididas entre atores políticos e sociais. Portanto, quase todos os atores e mensagens precisam passar pela mídia a fim de atingir suas metas” (CASTELLS, 2017a, p. 248). Na concepção do autor, a mídia abarca todo o conjunto de organizações e tecnologias de comunicação, incluindo a comunicação de massa e a definida por ele como “autocomunicação de massa”. Essa última é assim definida porque tem “conteúdo autogerado, emissão autodirecionada e recepção autosselecionada por muitos que se comunicam com muitos” (CASTELLS, 2017a, p. 118). A autocomunicação de massa é o que possibilita a grupos como o MBL uma efetividade na ação político-midiática por eles protagonizada. Ainda segundo Castells (2017a, p. 118), essa nova esfera de comunicação é constituída de redes de computadores, linguagem digital e emissores interativos globalmente distribuídos. Ela também é multimodal, facilitando a digitalização do conteúdo e o acesso a softwares avançados – muitas vezes gratuitos e com código aberto –, permitindo que os conteúdos sejam reformatados e distribuídos pelas redes sem fio. Há ainda “o potencial de possibilitar diversidade ilimitada e produção autônoma da maioria dos fluxos de comunicação que constroem o significado na mente pública” (CASTELLS, 2017a, p. 119).

A luta pelo poder nas sociedades democráticas atuais passa pela política midiática, pela política do escândalo e pela autonomia comunicativa dos cidadãos. Por um lado, a digitalização de toda a informação e a interconexão modal das mensagens criaram um universo midiático no qual estamos permanentemente imersos. Nossa construção da realidade, nosso comportamento e nossas decisões dependem de sinais que trocamos nesse universo. (CASTELLS, 2018, p. 26).

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Essa é a luta que o MBL trava, como um movimento midiático, e não apenas político, opondo-se ao poder exercido pelas maiores empresas e conglomerados midiáticos que atuam no Brasil.48 Na mira do MBL, estão veículos tradicionais como a TV Globo e os jornais O Globo e Folha de São Paulo, entre outros, além de jornalistas, artistas, professores e intelectuais que o grupo caracteriza como representantes da “extrema esquerda”. Na batalha entre a autocomunicação de massa do MBL e a comunicação de massa da grande mídia, travada em um novo ecossistema midiático, em que o usuário já não consegue distinguir a informação da desinformação, o MBL despontou em 2017 como “o principal movimento político virtual brasileiro”.49 Segundo Toledo (2017), o grupo se destacou entre vários que buscavam influenciar o debate público nas redes sociais no país naquele ano. Nas redes sociais, o MBL faz uso de “uma linguagem predominantemente imagética, incluindo também a reprodução de notícias” (BELDA; PERIN, 2017, p. 451). Esse é um modelo do mundo midiático multimodal, em que as mensagens midiáticas que formam opinião devem ser extremamente simples, na visão de Castells (2018, p. 26): “A mensagem mais impactante é uma imagem. E a imagem mais sintética é um rosto humano, no qual nos projetamos a partir de uma relação de identificação que gera confiança”. Segundo Belda e Perin (2017), coletivos como o MBL utilizam as redes sociais como instrumentos de opinião e de engajamento dos seguidores, buscando, assim, conforme sua visão ideológica, “formar, propagar e agrupar opiniões” que se manifestem em sua zona de influência, entre segmentos de público alinhados com essa mesma visão. Para isso, utilizam-se de “imagens e frases de impacto como memes dedicados à interpretação de fatos políticos”. De modo geral, de acordo com os autores, esses grupos mais reforçam os antagonismos políticos do que ajudam na formação de uma consciência de cidadania política que seja “capaz de transcender as orientações partidárias, que leve os internautas a transitarem e a compreenderem matizes políticas em segmentos diversos do espectro ideológico” (BELDA; PERIN, 2017, p. 456).

48 Nesse ponto, o MBL busca estabelecer um contraponto à mídia tradicional, visando constituir um modelo político-midiático próprio, baseado nas redes sociais. Porém, esse modelo não guarda muita semelhança com a ação dos coletivos que ganharam projeção durante a cobertura dos protestos de junho de 2013, como o Mídia Ninja e o Jornalistas Livres, entre outros, que compuseram contranarrativas à cobertura jornalística desses eventos pela mídia hegemônica. 49 O autor chegou a essa conclusão após analisar métricas de redes sociais de grupos que também se projetaram durante as mobilizações pró-impeachment de Dilma Rousseff, entre eles, Avança Brasil, Vem pra Rua e Movimento Contra a Corrupção (MCC), todos identificados com o campo da direita. Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2017.

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Nesse sentido, confrontar jornalistas e veículos de comunicação de massa, taxando-os na maioria das vezes de aliados da “extrema esquerda”, configura um meio pelo qual o MBL expõe e defende algumas de suas bandeiras. De acordo com a Folha de S. Paulo, uma das estratégias do MBL para se firmar como formador de opinião é tentar ocupar o espaço da grande mídia.

Ao mesmo tempo que ataca jornalistas da grande imprensa sob a alegação de que produzem “fake news”, o grupo mantém relação não esclarecida com o “JornaLivre”.50 A publicação de textos apócrifos de viés liberal funciona frequentemente como porta voz não-oficial do MBL. “Roger Scar”, nome fictício, é listado como “editor-chefe” do “jornal”. O site não é registrado no Brasil. Além disso, o MBL apresenta um “jornal” em seu canal no YouTube todos os dias da semana. No “MBL News”, os integrantes leem os acontecimentos diários enquanto emitem julgamentos e fazem piadas. A transmissão é feita ao vivo, o que possibilita aos internautas deixar mensagens. (ALBUQUERQUE, 2017).

Na esfera midiática, a atuação emebelista por vezes se assemelha à atuação de uma agência de comunicação e marketing, a serviço de políticos e empresários alinhados às ideias neoconservadoras que o grupo defende.51 A julgar pela qualidade profissional do conteúdo que dissemina nas redes sociais, o MBL demonstra ter domínio de algumas das principais técnicas e instrumentos de comunicação multimídia e transmídia da atualidade, comumente utilizadas por grandes marcas e empresas. Porém, em vez de consumidores, o objetivo é atrair seguidores (eleitores) e potencializar a visibilidade das pautas próprias ou de terceiros nas redes sociais. Entre os beneficiados por essa ação político-midiática nas redes sociais esteve o empresário Flavio Rocha, dono do Guararapes, grupo têxtil sediado no Estado do Rio Grande do Norte. Após ter sido alvo de ação ajuizada pelo MPT (Ministério Público do Trabalho), que pedia indenização de quase R$ 38 milhões, a empresa reagiu com uma ofensiva nas redes sociais contra a procuradora do trabalho Ileana Mousinho.52 Com o apoio dos emebelistas, a questão foi divulgada nacionalmente e tratada como se fosse uma causa do próprio movimento, como vemos na Figura 4.

50 De acordo com reportagem divulgada no site da revista Vice, em 23 de outubro de 2017, “a relação entre o MBL e o site Jornalivre é um pouco mais do que amigável”. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2018. 51 Aqui usamos livremente o termo “emebelista” como adjetivo de dois gêneros para identificar ações relativas ou pertencentes ao Movimento Brasil Livre, bem como os filiados ao grupo ou simpatizantes. 52 Em nota de desagravo, a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho defendeu a atuação da procuradora no caso Guararapes. Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2018. 80

Figura 2 - Arthur do Val, ligado ao MBL, compra a briga de empresário contra procuradora. Fonte: Facebook.

Em vídeo divulgado no dia 25 de setembro de 2017, o YouTuber Arthur do Val, um dos líderes do MBL, faz a cobertura de um protesto que reuniu trabalhadores da Guararapes em frente à sede do MPT estadual.53 Segundo a versão divulgada no vídeo, os trabalhadores se reuniram em defesa dos próprios empregos, que estariam ameaçados se a multa proposta na ação pelo MPT fosse aplicada. De acordo com dados extraídos a partir da ferramenta de monitoramento de redes sociais Social Bakers, a referida postagem foi patrocinada, ou seja, houve pagamento para que tivesse a visibilidade impulsionada no Facebook. No total, foram registradas mais de 125.000 interações de usuários com o conteúdo patrocinado. Flávio Rocha ainda contaria com o apoio do MBL em outra ocasião. De acordo com reportagem da revista semanal Veja, divulgada na edição do dia 28 de março de 2018:

Kim Kataguiri, o líder do Movimento Brasil Livre (MBL), anunciou que o grupo vai apoiar o empresário Flávio Rocha para concorrer à Presidência da República. Ótimo para o MBL e ótimo para Rocha. Mas é bom que se diga logo: não se trata aqui de um movimento político aderindo a um candidato. Primeiro porque o dono da Riachuelo ainda não é candidato e nem partido tem. Depois porque o MBL, em que pese a tentativa de dedaço de Kim Kataguiri, não é propriamente um movimento político – está bem mais para uma azeitada máquina de marketing do que para uma legenda partidária. (GONÇALVES, 2018, p. 49).

53 Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2018. 81

Alguns meses depois, em 13 de julho de 2018, o empresário anunciou a retirada da candidatura à presidência da República. De acordo com o portal Universo Online, Flávio Rocha agradeceu “aos intrépidos garotos do MBL, que haviam lhe declarado apoio” (MAIA, 2018). Por fim, em setembro, o MBL rompeu com Flávio Rocha.54 Em janeiro do mesmo ano, o grupo já havia rompido relações com o empresário e então prefeito de São Paulo João Doria. Apesar desses reveses frequentes, é possível deduzir que, do ponto de vista eleitoral, o grupo busca converter o engajamento dos usuários nas redes sociais em capital eleitoral, beneficiando os candidatos apoiados pelo MBL ou mesmo os que integram o movimento. Até aqui, nenhuma novidade, já que qualquer grupo político com tamanha visibilidade provavelmente teria o mesmo objetivo.

Se a influência social e cultural do movimento se amplia, particularmente entre as gerações mais novas e ativas, políticos astutos abordarão seus valores e interesses, buscando ganhos eleitorais. Eles os farão dentro dos limites de sua própria lealdade para com seus patrocinadores. Mas, quanto mais o movimento consegue transmitir suas mensagens pelas redes de comunicação, mais a esfera pública da comunicação se torna um terreno contestado e menor é a capacidade dos políticos de integrar demandas e comunicações com ajustes meramente cosméticos. (CASTELLS, 2017b, p. 205).

É por isso que nem todas as pautas defendidas pelo MBL são explícitas quanto à motivação ou o interesse político que as sustentam. Porém, é possível ao observador mais atento perceber como um assunto cotidiano, muitas vezes em evidência no noticiário da grande mídia, adquire contornos políticos na abordagem do MBL nas redes sociais. É claro que nem mesmo a grande imprensa revela eventuais motivações comerciais ou políticas que influenciam o trabalho realizado por ela, mas é exatamente nesse aspecto que a ação político-midiática do MBL se assemelha à da grande mídia que o grupo tanto atacava e criticava no período analisado por esta pesquisa. Enquanto disputam atenção e audiência com as mídias tradicionais ou hegemônicas, os movimentos em rede buscam despertar emoções que superem o medo e a raiva e que conduzam as cidadãs e os cidadãos a um desejo de mudança. Isso é o que Castells (2017b, p. 191) chama de mobilização emocional, “desencadeada pela indignação que a injustiça gritante provoca,

54 No dia 8 de setembro de 2018, o jornalista Lauro Jardim publicou coluna no site do jornal O Globo afirmando que o MBL teria rompido com Flávio Rocha. “Um dos motivos foi uma postagem de Rocha em seu Instagram. Nela, havia uma foto do encontro do dono da Riachuelo com FH com a legenda: ‘aula de sabedoria’. O MBL não aguentou e passou a atacá-lo”. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2018. 82

assim como a esperança de uma possível mudança”, fazendo com que o caldeirão de indignação social e política entre em ebulição.

3.1 MBL: do protesto à ação político-midiática

Alguns anos antes do surgimento do Movimento Brasil Livre, a ação de movimentos ativistas em rede foi determinante para o desencadeamento de fatos políticos vultosos em todo o mundo, do Oriente ao Ocidente. Eles se destacaram por darem voz a uma multidão de descontentes que se insurgia contra as mais variadas formas de opressão das elites políticas e econômicas dominantes. No livro Redes de indignação e esperança, Manuel Castells (2017b, p. 34), afirma que tudo começou na Tunísia, “num lugar totalmente inesperado, em Sidi Bouzid, uma cidadezinha de 40 mil habitantes na empobrecida região central”, ao sul da capital Túnis. A partir desse ponto remoto e quase desconhecido do planeta, o nome de Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante de 26 anos, agora teria entrado para a história como o daquele que mudou o destino do mundo árabe. Segundo o autor, poucas horas depois de Bouazizi ter queimado seu próprio corpo em protesto contra a humilhação a que era submetido pela polícia local, que confiscava repetidamente sua banca de frutas e verduras, centenas de jovens, que já tinham sido humilhados de forma semelhante pelas autoridades, protestaram no mesmo local. “O primo de Mohamed, Ali, registrou o protesto e distribuiu o vídeo pela internet” (CASTELLS, 2017b, p. 35). Assim, a morte de um cidadão tunisiano, que sacrificou o próprio corpo como forma de protesto, transformou-se na fagulha que incendiaria o mundo árabe, na forma de revoltas populares que culminaram na derrubada de ditadores na Tunísia e no Egito, por exemplo. Esse fato deu origem a uma cultura político-midiática que se estabeleceu em vários países, a partir de 2011, caraterizada por grandes protestos e ocupações. Esses movimentos foram engendrados no espaço dos bits e bytes das redes sociais até tomar a forma dos espaços públicos de fato, como as ruas e as praças das cidades, onde milhares e milhões de pessoas se reuniram em protesto. Essas mobilizações, inspiradas na revolução egípcia e na chamada “Primavera Árabe”, também abalaram as estruturas políticas na Europa e no continente americano, com os protestos dos Indignados na Espanha e do Occupy nos Estados Unidos da América, entre outros. No Brasil, as Jornadas de Junho em 2013 aparecem entre os exemplos citados pelo autor, que teriam ocorrido em sintonia com a onda de protestos em escala global, embora não se possa dizer que tiveram as mesmas motivações de outros movimentos globais e que tenham sido 83

organizadas com total autonomia pelos atores sociais envolvidos. Gohn (2017, p. 46) afirma que há algumas relações entre grupos que se manifestaram em junho de 2013 no Brasil e o MBL, a começar pelo EPL (Estudantes pela Liberdade), que chegou ao país em 2012 e participou das manifestações de junho. Kim Kataguiri, futuro líder fundador do MBL em 2014, foi o articulador do EPL nas ruas. “Fundado em 2008 nos Estados Unidos, o EPL é apoiado por redes de fundações de grupos empresariais a exemplo da Atlas Network, de perfil neoliberal moderno” (GOHN, 2017, p. 46). De acordo com Lee Fang (2017), a Atlas Network é chefiada pelo argentino-americano Alejandro Chafuen, que teria se dedicado a combater movimentos sociais e governos esquerdistas na América Latina. Em seu trabalho na defesa do “libertarianismo”, a Atlas reúne uma rede de parcerias com 450 think tanks conservadores em todo o mundo, financiados por doações de bilionários como os irmãos Koch e de grandes empresas por meio de suas fundações. Com o pretexto de defender o livre mercado, essa rede “libertária” teria agido para provocar uma guinada à direita na política dos países latino-americanos, a fim de minar a influência dos governos e políticos socialistas na região (FANG, 2017). Antes de prosseguirmos, é importante salientar que o termo “libertário” apresenta outro significado além do usual e não é apresentado aqui como sinônimo de “liberal”.55 De acordo com Freeman (2005, p. 107), é comum defender o libertarianismo como uma visão liberal. Porém, o autor considera superficial a semelhança do libertarianismo com o liberalismo, embora muitos que ratificam o liberalismo clássico se intitulem como libertários e vice-versa.

[...] no final, os libertários rejeitam instituições liberais essenciais. Corretamente entendido, o libertarianismo assemelha-se a uma visão que o liberalismo definiu historicamente contra a doutrina do poder político privado subjacente ao feudalismo. Como o feudalismo, o libertarianismo concebe o poder político justificado como baseado em uma rede de contratos privados. Rejeita a ideia, essencial ao liberalismo, de que o poder político é um poder público, para ser exercido imparcialmente para o bem comum. (FREEMAN, 2005, p. 107).56

55 Outros movimentos libertários, associados à esquerda e ao socialismo, são os que atuam em defesa de outras liberdades individuais, como a liberdade de gênero e de orientação sexual, entre outras, contra forças que visam à sua opressão. 56 Tradução livre. No original: “in the end, libertarians reject essential liberal institutions. Correctly understood, libertarianism resembles a view that liberalism historically defined itself against, the doctrine of private political power that underlies feudalism. Like feudalism, libertarianism conceives of justified political power as based in a network of private contracts. It rejects the idea, essential to liberalism, that political power is a public power, to be impartially exercised for the common good”. 84

Em todo o mundo, o conteúdo e formato dos projetos políticos, de acordo com Castells (2017a, p. 260), “são cada vez mais decididos com a ajuda de think tanks, grupos que reúnem especialistas, acadêmicos, estrategistas políticos e consultores da mídia sobre a administração da política e a elaboração de políticas públicas”. Concebidos em um cenário de agitação social e política no final dos anos 1960, com apoio financeiro de corporações e movimentos religiosos, já surgiram conectados a grupos conservadores nos Estados Unidos da América. Naquela época, “o movimento pelos direitos civis, as revoltas étnicas urbanas e o surgimento de movimentos sociais contraculturais estremeceram as bases do conservadorismo social e político” (CASTELLS, 2017a, p. 260). Assim, os think tanks apareceram em um contexto de guerra cultural, em que as elites conservadoras norte-americanas buscavam criar instrumentos para transformar ideias em poder político naquele país e no mundo. Essas elites continuam influenciando a política em nível local e global, através do apoio a grupos como o SFL (Students for Liberty), que teria sido beneficiado com recursos financeiros de organizações ligadas aos Irmãos Koch. Segundo Gobbi (2016, p. 58), “o SFL já surge dentro desse conjunto de organizações que possui valores, métodos, histórico e objetivos pré- definidos”. Fundamentalmente, a organização promove a formação e treina jovens talentos propensos ao “libertarianismo” para serem líderes. No Brasil, o EPL (Estudantes pela Liberdade) corresponde à seção brasileira do SFL, e, segundo Gobbi (2016, p. 62-63):

No que se refere à plataforma política, os conteúdos compartilhados tanto pelo SFL, quanto pelo EPL se assemelham. Entre as pautas tradicionalmente associadas à direita encontram-se o fim do salário mínimo e dos direitos trabalhistas, redução do Estado, privatização da educação e defesa do porte de arma por civis. Há também outras pautas tradicionalmente associadas à esquerda, que também fazem parte do universo libertário, como a legalização das drogas e a união civil de casais do mesmo sexo.

De acordo com Gobbi (2016, p. 73-74), a Rede EPL conta com três nós: “possui um movimento de juventude e formação de quadros – EPL, um movimento de massas – MBL e um think tank – Mercado Popular”. Segundo o autor, faltaria uma estratégia de disputa eleitoral a esse desenho. Porém, isso já estava sendo resolvido com a fundação do Partido Novo e a criação da tendência chamada “Livres” no Partido Social e Liberal (PSL). Juliano Torres e Marcel Van Hattem, por sua vez, representando uma parte dos dirigentes do EPL, estiveram envolvidos na construção do Novo. “Outra parte dos dirigentes, a exemplo de Felipe Melo França e Fábio Ostermann, está construindo um projeto político dentro do Partido Social e Liberal, tentando 85

transformar uma legenda fisiológica em um partido político programático” (GOBBI, 2016, p. 73-74). De acordo com informações fornecidas em entrevistas a Gobbi (2016, p. 67-66), o MBL surge em 2013, durante as manifestações das Jornadas de Junho, em que Juliano Torres teria enxergado uma oportunidade para um criar um movimento “libertário” no país. Alguns ex- membros do EPL teriam se envolvido na construção do MBL, que só começou a conquistar visibilidade quando Renan Santos e seu irmão Alexandre começaram a liderá-lo a partir de São Paulo. O MBL inicialmente tinha como objetivo o impeachment de Dilma Rousseff e a derrubada do Partido dos Trabalhadores.

O histórico do MBL é de um movimento em rápida transformação. Apesar de sua origem entre os quadros do EPL, o MBL assumiu a missão de massificar o libertarianismo e, para isso, precisou fazer um discurso com uma estética mais popular e não se manifestar sobre diversos assuntos que ferem o senso comum para poder se aproximar das massas, fortalecer o impeachment de Dilma Rousseff e ter viabilidade eleitoral. (GOBBI, 2016, p. 69).

No dia 15 de março de 2015, os protestos organizados por ativistas do MBL e de outros grupos neoconservadores para pedir o afastamento da presidente levaram mais de 2 milhões de pessoas às ruas, segundo a Polícia Militar.57 Diante da pressão popular, capitaneada pelas mobilizações da direita, o processo de impeachment foi iniciado em 2 de dezembro de 2015 e concluído em 31 de agosto de 2016, quando Dilma foi definitivamente afastada do cargo.

3.2 O ecossistema político-midiático do MBL

Depois de ser muito bem-sucedido nas mobilizações pelo impedimento de Dilma Rousseff, o desafio do MBL era se manter influente. Para isso, precisaram criar ou se apropriar de discursos político-midiáticos, em torno dos quais se lançaram em uma série de ações coordenadas nas redes sociais. Os emebelistas passaram a ocupar cada vez mais as timelines com seus conteúdos mimetizados (ou “memetizados”) na forma de textos, imagens e vídeos. A tática consistia na divulgação de narrativas quase sempre temporárias e fluidas, que se mantinham em evidência enquanto demonstrassem potencial de viralização na rede.

57 De acordo com Gohn (2017, p. 64-65), o total de 1 milhão foi às ruas apenas na capital paulista. Porém, o instituto Datafolha teria contabilizado 210 mil, “a maior manifestação política medida pelo órgão de pesquisa após as Diretas Já, em 1984”. 86

A estratégia de construção de identidade usada pelo MBL no Facebook é bastante útil à expansão do movimento, mas pode gerar um problema interno de baixa coesão identitária. A narrativa do movimento atrai uma audiência que se identifica com o antipetismo e participa de maneira mais livre e com menos organicidade do movimento, mas não necessariamente coaduna com um projeto mais amplo – como a privatização de serviços públicos e a redução do Estado –, que são bandeiras do movimento. Quando o antipetismo começar a decrescer, o MBL terá que desenvolver outras formas de engajamento e outras estratégias de construção de identidade para continuar mobilizando sua base militante e sua audiência menos orgânica. (GOBBI, 2016, p. 94).

Nesse esforço, o MBL também estruturou uma rede composta por blogs e sites de ultradireita, atuantes na divulgação de conteúdo em formato que se assemelhava ao jornalístico. Os links para os textos desses parceiros eram divulgados na página do grupo no Facebook e, apesar de se diferenciarem em alguns aspectos do conteúdo jornalístico tradicional, começaram a adquirir um status de notícia, conferido pela autoridade do grande número de seguidores que interagiam com essas publicações e as compartilhavam como se notícias fossem. É provável que esses conteúdos também tenham sido favorecidos pelas bolhas dos filtros na rede social, sendo acessados e validados principalmente pelos que se identificavam com as pautas defendidas pelo movimento. A preferência pelos sites e blogs “parceiros” também reflete o contraponto que o MBL estabelece em relação à grande mídia. É o que revela levantamento feito por meio da ferramenta de monitoramento de redes sociais Socialbakers entre os dias 10 de setembro e 8 de novembro de 2017. Nesse período, entre os links de notícias postados na página do movimento no Facebook, apenas 22 continham URLs que direcionavam a sites de jornais que figuram entre os 10 primeiros do ranking de circulação da ANJ (Associação Nacional de Jornais), ou seja, apenas 1,65% do total de postagens coletadas no período. O jornal da imprensa tradicional que apresentou maior quantidade de links postados pelo MBL foi a Gazeta do Povo, de Curitiba, com 11 postagens no total, todas remetendo a conteúdo publicado por Rodrigo Constantino, jornalista simpático às causas defendidas pelo grupo. Nesse período, a quase totalidade dos links de conteúdos jornalísticos (ou supostamente jornalísticos) divulgados na página do MBL direcionava para quatro sites: JornaLivre, Ceticismo Político, O Diário Nacional e O Reacionário. Essas páginas eram parte do ecossistema político-midiático que o movimento utilizava para informar e mobilizar seguidores nas redes sociais até meados de 2018. Ortellado e Ribeiro (2018) chamam de ecossistema “as relações intrínsecas que ligam sites de notícias a páginas do Facebook”. Como exemplo de um 87

ecossistema, vemos na Figura 5 o grafo correspondente à rede formada por sites ligados ao MBL, entre eles, os quatro que citamos anteriormente.

Os operadores dos sites hiperpartidários normalmente precisam criar um portfólio misto de sites e páginas de Facebook. Os sites hospedam as notícias e as páginas “semeiam” o link no Facebook, isto é, lançam os conteúdos na mídia social para serem compartilhados pelos usuários polarizados. (ORTELLADO; RIBEIRO, 2018).

Figura 3 - Ecossistema da rede do MBL. Fonte: Monitor do Debate Político no Meio Digital.

Atualmente, esse ecossistema não se encontra como tal, uma vez que, em agosto de 2018, o Facebook tirou do ar 196 páginas e 87 perfis por apresentarem “comportamento não autêntico” na rede social, entre elas, as páginas do Jornalivre e de O Diário Nacional, ambas reconhecidamente vinculadas ao MBL. Não demorou para que a grande mídia noticiasse que a rede social teria derrubado “uma rede de fake news” ligada ao grupo. Segundo reportagem publicada pelo jornal O Globo em 25 de agosto de 2018, “entre os membros do MBL que tiveram páginas derrubadas estão Renato Battista, coordenador do movimento, Thomaz Barbosa, coordenador do MBL no Vale do Paraíba, e Renan Santos, um dos fundadores do grupo” (SALGADO; GRILLO, 2018). Essas páginas não foram derrubadas por veicular fake news, como alguns veículos da grande imprensa noticiaram, mas por terem sido criadas e administradas por perfis falsos. A página do Ceticismo Político já havia sido derrubada anteriormente pelo mesmo motivo, pois estava vinculada a um perfil identificado por um pseudônimo, ou seja, um nome falso, cujo uso viola as regras da rede social. De acordo com reportagem de Cariello e Grillo (2018b) divulgada pelo jornal O Globo em 24 de março de 2018, “o autor do perfil Luciano 88

Ayan, que escreveu o texto mais compartilhado com informações falsas sobre a vereadora Marielle Franco, revelou sua verdadeira identidade”. Carielle e Grillo (2018a), em outra matéria divulgada por O Globo, afirmam que um e-mail enviado pela redação do jornal ao MBL teria reforçado o elo do grupo com o site que amplificou fake news contra Marielle. Segundo os jornalistas, “um e-mail enviado pelo Globo ao MBL, com questões sobre a onda difamatória contra a vereadora executada, foi publicado horas depois na página do Ceticismo Político”. O MBL continuou a negar que mantinha qualquer relação com Luciano Ayan, quem, por sua vez, afirma ter atuado em prol de uma guerra política:

“O perfil Luciano Henrique Ayan é meu pseudônimo. Me chamo Carlos Afonso e atuo na área de tecnologia. Mas nas horas vagas decidi, há mais de 13 anos, estudar métodos relacionados à dinâmica política. Inicialmente, realizava refutações básicas de discursos, mas a partir de 2011 comecei a desenvolver um método para a guerra política. Sinto dizer aos meus oponentes: o método funciona que é uma beleza”, escreveu Carlos Afonso. (CARIELLO; GRILLO, 2018).

Esse “método” se assemelha ao descrito por Ryan Holiday (2012) no livro Acredite, estou mentindo, em que são abordadas técnicas de relações públicas para disseminar mentiras e manipular a mídia. Segundo reportagem da revista Veja, o autor teria sido a inspiração para o nome de guerra do vereador Fernando Silva Bispo, um dos principais líderes do MBL, que foi eleito em 2016 sob a alcunha de Fernando “Holiday”, embora, na versão do vereador, a homenageada seja a cantora Billie Holiday. “Ryan, o escritor, é guru do MBL, e sua obra, a cartilha do movimento. Nela, o americano relata como construiu uma fortuna plantando notícias e manipulando informações em prol de suas causas – não necessariamente nobres” (GONÇALVES, 2018, p. 50). Para Rolnik (2018, p. 160), não é novidade o uso pelo capitalismo da manipulação do discurso, “seja ele verbal ou imagético, por meio da construção de narrativas que demonizam o inimigo da hora, como estratégia macropolítica de poder para viabilizar e justificar seus projetos macropolíticos”. Segundo a autora, essa estratégia vem sendo amplamente utilizada desde a fundação do regime capitalista. Desse modo, a exposição negativa da imagem dos opositores nas redes sociais se coloca como uma arma na guerra político-midiática de que tratamos nesta dissertação. Durante o 4º Congresso Nacional do MBL, realizado em 23 de novembro de 2018, cerca de 800 jovens na casa dos 20 anos participaram da chamada “MBL experience”. De acordo com Motta (2018b), esse foi um nome cool para o que seria uma versão mais atualizada de 89

cursos de formação política de partidos tradicionais. “A estética, contudo, mimetizava o habitat do MBL na internet, evocando memes e frases de efeitos. A ‘experiência’ – mistura de informação com entretenimento – foi dividida em três atos” (MOTTA, 2018b). Segundo o autor, em um deles, os participantes foram orientados para a tática da provocação e para se sobressaírem na sociedade do espetáculo, de modo a ganharem voz no mundo político e ascenderem nas páginas nacionais do movimento. Na visão do MBL, para existir politicamente é necessário ter um adversário. Para aparecer e ser relevante é necessário fazer barulho e provocações (MOTTA, 2018b). Assim, o grupo incentiva a adesão à política dos trolls que descrevemos no capítulo 2.

[...] um dos líderes do movimento, Pedro D’Eyrot, deu uma aula sobre conceitos de comunicação de guerrilha, sobre a existência da sociedade do espetáculo e sobre como, por pragmatismo, todos deveriam aceitá-la. Segundo ele, hoje a política na internet compete com coisas como vídeos de gatinhos, por isso é preciso roubar a atenção do público e também dos adversários políticos. Para tanto é preciso chocar, provocar, irritar a esquerda para que ela contra-ataque e legitime quem a atacou. “Precisa de conflito, precisa de Darth Vader contra Luke Skywalker”, resumiu, citando Star Wars. (MOTTA, 2018b).

Essas provocações podem se dar de forma anônima ou sob a forma de pseudônimos. Gerbaudo (2012, p. 144) explica que muitas contas em redes sociais como Facebook e Twitter são utilizadas sob identidades anônimas ou pseudônimos adotados de forma individual ou coletiva por líderes dos movimentos contemporâneos. O motivo para isto, segundo o autor, é justamente manter o anonimato desses líderes, de modo a validar a ideia de que esses movimentos não têm líderes. Porém, nos bastidores, há um grupo principal operando nessas redes sociais. Ainda de acordo com Gerbaudo (2012, p. 139), os ativistas contemporâneos poderiam dizer que se comunicam de uma maneira e se organizam de acordo com a maneira como se comunicam. Assim, é a comunicação que organiza e não a organização que se comunica. Na visão do autor, “como corolário, ‘comunicadores’ também se tornam automaticamente ‘organizadores’, dada a influência que podem ter através de suas comunicações sobre o desdobramento da ação coletiva” (GERBAUDO, 2012, p. 139). Esse é o papel desempenhado por Kim Kataguiri, Fernando Holiday, Arthur do Val e Renan Santos, como alguns dos líderes mais visíveis do MBL. Assim, comparado a movimentos de outros países, talvez o que mais se assemelhe ao MBL, em alguns aspectos, seja o M5S (Movimento Cinco Estrelas) da Itália. De acordo com 90

Castells (2017b, p. 212.), o movimento-partido foi fundado em 2009 “como veículo de apoio a candidatos em eleições europeias, locais e regionais, contra os partidos políticos tradicionais”. O M5S tem a marca da personalidade do seu líder carismático, Beppe Grillo, um ex-comediante da televisão italiana que se transformou em blogueiro e ativista político. Desse modo, Grillo está para o M5S como Kataguiri e companhia estão para o MBL. Outra semelhança é o fato de que o M5S dirige manifestações de ódio a políticos e à mídia tradicional. Comportamentos agressivos, como queimar livros de autores italianos que criticam o movimento, têm alarmado alguns intelectuais diante de uma conexão possível com a tradição fascista italiana (CASTELLS, 2017b, p. 216).

Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como “porcos intelectuais”, “cabeças-ocas”, “esnobes radicais”, “As universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais. (ECO, 2018, p. 49).

A exemplo do M5S, o MBL pode se transformar em um partido político. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo publicada em 21 de novembro de 2018, o MBL cogita ter uma sigla para chamar de sua. Líderes do grupo afirmam que começar uma legenda do zero seria a última opção, embora não descartem essa possibilidade. “A alternativa mais viável, segundo Kim, seria adotar ‘uma legenda que já exista, mas tenha morrido por causa da cláusula de barreira’” (BALLOUSSIER, 2018).

3.3 A mola reprimida: a direita na mídia

Há uma visão compartilhada por grupos de direita – entre eles, alguns dos quais se apresentam como “liberais” – de que durante muito tempo a grande mídia esteve sob o jugo da esquerda no Brasil. Havia, portanto, de acordo com essa visão, uma demanda reprimida por mídias alinhadas aos conservadores e liberais. Para Barricelli (2014), houve por muitos anos “repressão e censura aos autores, escritores, colunistas, jornalistas, enfim, personalidades ou não, indivíduos com entrada na mídia e visibilidade que assumissem posições conservadoras e/ou liberais”. Segundo o autor, que se apresenta como assessor de imprensa do Instituto Liberal e diretor de Comunicação do Instituto pela Justiça, essa repressão se deu na forma de “campanhas 91

difamatórias, sufocamento político e econômico de veículos midiáticos, ataques de militantes organizados, demonização do pensamento e manutenção e expansão de falácias de interesse da esquerda”. Esse cenário teria começado a mudar com a expansão de formadores de opinião da direita conservadora e dos liberais que conquistaram alguma visibilidade midiática recentemente, resultando na atração de um público de leitores que estaria “ávido” por esse tipo de abordagem.

Em 2013 vimos livros de autores liberais e/ou conservadores entre os mais vendidos, como “O Mínimo que você precisa saber para não ser um idiota” (de Carvalho, Olavo, Editora Record, Rio de Janeiro/RJ, 2013) e “Esquerda Caviar”, do economista Rodrigo Constantino. Também houve a conquista de mais espaço nas grandes mídias, como a entrada do jornalista Reinaldo Azevedo, junto com Rodrigo Constantino (que também entrou para a equipe de colunistas do Blog da maior revista do país: a Veja, que já contava com Reinaldo Azevedo) e do jornalista e sociólogo Demétrio Magnoli no jornal Folha de São Paulo, que já contava com o filósofo Luiz Felipe Pondé. (BARRICELLI, 2014).

O MBL corrobora essa visão, e, segundo um dos coordenadores do grupo, no período pós-redemocratização não havia praticamente direita representada politicamente no Brasil por formador de opinião pública, imprensa ou mesmo na classe política. Assim, haveria uma mola reprimida do “cidadão médio brasileiro” que se via impossibilitado de expressar os seus valores devido à existência de uma “patrulha” que o impedia de fazer qualquer crítica à direita ou à esquerda. Com o advento das redes sociais, abrem-se novos espaços para que esse cidadão entre no debate político e, após ter sido reprimido durante muito tempo, ele naturalmente tende aos extremos, conforme a explicação dada por Kim Kataguiri:

[...] Eu acho que como toda mola quando ela era muito pressionada, a partir do momento que ela se solta ela vai para os seus extremos e começa a tendência ao equilíbrio ao longo do tempo. Essa é pelo menos a análise que eu faço e eu acredito que vá acontecer. O que eu especificamente como líder do MBL tenho que fazer é justamente, primeiro, aproveitar o gancho de rede social para atrair antes de tudo a atenção da pessoa. E isso muitas vezes a gente não consegue fazer o debate e, aliás, nunca a gente consegue fazer o debate profundo de cara no primeiro momento porque a pauta política na internet está debatendo ou, melhor, está competindo com o gatinho fofo, o vídeo do bebezinho que está fazendo graça etc. E você precisa puxar a atenção da pessoa para uma pauta política competindo com esse tipo de conteúdo de puro entretenimento. [...] Mas, uma vez que essa atenção é puxada, o que a gente 92

faz é trabalhar diferentes níveis de aprofundamento de acordo com o interesse do leitor e do usuário da internet [...]. (Informação verbal).58

Esses diferentes níveis de aprofundamento citados pelo coordenador do MBL estão presentes na estratégica político-midiática que analisamos nesta dissertação. Na verdade, são três os níveis de interação com o público das redes sociais que o grupo busca, conforme descrito a seguir. O primeiro nível consiste na publicação de um meme baseado no tripé “notícia-valor- humor”: em primeiro lugar, é elaborado a partir de uma curadoria de notícias que identifica o que pode ser ou não do interesse dos seguidores do grupo em relação ao que foi publicado pela mídia tradicional; em segundo lugar, o meme deve expressar os valores do grupo em relação ao tema em pauta a fim de gerar (ou não) identificação com o público; em terceiro lugar, há um apelo ao humor para que o tema se apresente de forma menos maçante e sirva de gancho afetivo para atrair a atenção dos seguidores. O segundo nível consiste na divulgação de um vídeo com uma explicação mais detalhada sobre um tema abordado pelo grupo nas redes sociais. Ele parte de uma premissa inicial, a ser contestada ou corroborada pelo grupo a partir da exposição de dados e informações que auxiliam o público na compreensão do tema de acordo com o ponto de vista do MBL. Por fim, o terceiro nível consiste na produção de conteúdo em formato de texto ou notícia, que sintetiza o conhecimento produzido sobre o tema para atender aos anseios do público que demanda informações adicionais. Esse público é visto pelo MBL como mais “aristocrático”, composto por pessoas que leem jornal e estão mais relacionadas a uma elite, seja intelectual, cultural ou financeira. É nesse terceiro nível que se situam os conteúdos que analisamos em nossa pesquisa e que eram divulgados até meados de 2018 nos sites que compunham o ecossistema político- midiático que descrevemos anteriormente. A fim de explorar as características e os diferenciais de cada um deles, vamos detalhar adiante a ação político-midiática que desenvolviam à época em que divulgaram os conteúdos que foram coletados para compor o corpus da nossa pesquisa.

3.3.1 Jornalivre

58 Fala de Kim Kataguiri em resposta a uma pergunta da plateia no Abrig Debate, evento realizado pela Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais em 7 de dezembro de 2018, do qual também participaram os deputados federais eleitos Carlos Zarattini e Rodrigo Agostinho. 93

O Jornalivre foi durante muito tempo um dos sites com maior número de links publicados na página do MBL no Facebook. No período analisado por esta pesquisa, foram publicados 664 links, ou 49,7% do total de links divulgados. Dados levantados por meio da ferramenta Similar Web estimam que o domínio “jornalivre.com” teve mais de 2.076.000 visitas entre os dias 10 de setembro e o dia 7 de outubro de 2017, período correspondente a 28 dias, apresentando uma média de 74.143 visitas diárias, sendo que 76,57% dessas visitas foram originadas em redes sociais.59 Embora tenha um formato mais parecido com o de um blog, o nome “Jornalivre” remete imediatamente à junção das palavras “jornal” e “livre. Tendo como slogan “o jornalismo em prol da liberdade”, o site buscava se apresentar com identidade que remetia a um site ou portal jornalístico tradicional. Apesar disso, não era possível identificar a empresa ou organização a que ele estaria vinculado, como ocorre com veículos da imprensa tradicional. O site Vice, em 23 de outubro de 2017, revelou que a relação entre o MBL e o Jornalivre era um pouco mais que amigável. Embora a maioria dos textos publicados no site não seja assinada, a partir da análise do código-fonte de alguns posts no Jornalivre, foram encontrados alguns nomes de usuários ligados ao MBL. “Em uma busca dentro do Jornalivre é possível encontrar os administradores do conteúdo do site, nomes que coincidem com membros do MBL – também responsáveis pelo que é postado no site bastante replicado nas redes do movimento” (VICE BRASIL, 2017).

Entre os autores, surge o nome “renanweik”. Este é um dos nomes de usuários utilizados pelo coordenador nacional do MBL, Renan Santos. Em uma busca rápida é possível conferir que Santos utiliza o mesmo usuário em sua conta do Instagram, por exemplo. [...] Em alguns casos, os textos são assinados com o nome “Rafa Silva”. Este nome também é encontrado assinando publicações de outro autor, identificado no site como “leafar” (“rafael” ao contrário). Embora o nome não entregue, o link da página do autor revela que se trata de Rafael Rizzo. [...] Um terceiro usuário na página do Jornalivre possui o nome “fgalbier”, conta de Francine Galbier. Diferentemente dos outros dois membros do grupo, Galbier chega a assinar alguns dos textos do site. (VICE BRASIL, 2017).

De acordo com as abas disponíveis no menu da página inicial do Jornalivre, os conteúdos podem ser categorizados como “notícias” ou “opiniões”, embora nos textos analisados tenhamos observado que as informações baseadas em fatos verificáveis e aquelas

59 Similar Web é uma plataforma de mensuração de métricas de sites, baseada em web analytics e mineração de dados para marketing digital. Disponível em: . Acesso em: 7 out. 2017. 94

baseadas em opiniões se misturam rotineiramente. Já é possível observar isso nos títulos das matérias, em que a informação principal é acompanhada de um comentário ou interpretação, ainda que sutil. Há também a ausência de declarações de fontes, e muitos dos conteúdos são apenas comentários ou reproduções de informações divulgadas por outros veículos, inclusive da grande mídia, em alguns casos. Outra característica do Jornalivre é basear as informações na repercussão de alguns fatos nas redes sociais, abordados principalmente do ponto de vista de perfis alinhados às ideias da direita. É comum que os textos sejam intercalados com reproduções de imagens de postagens e comentários nas redes sociais, além de áudios (inclusive do WhatsApp) e vídeos incorporados ao corpo da página, que, para o Jornalivre, teriam valor de declaração ou de prova factual dos argumentos abordados em uma “notícia”. Esse recurso também é utilizado atualmente pela grande mídia em seus portais, em que já é comum ver fotos reproduzidas de perfis nas redes sociais, além de reproduções de imagens de posts como parte da narrativa. Não é possível precisar se o Jornalivre foi um dos precursores desse uso das informações das redes sociais, mas podemos afirmar que o site as utilizava à exaustão.

3.3.2 Ceticismo Político

O Ceticismo Político está mais para blog do que para site de notícias, o que fica mais evidente quando se acessa o conteúdo nas páginas na web do que nos posts em redes sociais. No período analisado, foram publicados 305 links para o endereço “ceticismopolitico.com” na página do MBL no Facebook, ou seja, 22,8% do total. A partir dos dados coletados por meio da plataforma Similar Web, estima-se que houve 700.192 visitas ao site entre os dias 10 de setembro e o dia 7 de outubro de 2017, correspondente a 28 dias, apresentando uma média de 25.007 visitas diárias, sendo que 65,9% dessas visitas foram originadas em redes sociais. Com o slogan “análise política para adultos”, o blog mantido pelo consultor de informática Carlos Augusto de Moraes Afonso sob o pseudônimo Luciano Ayan esteve no centro da polêmica sobre a notícia falsa divulgada a respeito da vereadora Marielle Franco, conforme já mencionamos anteriormente. Segundo o portal R7, o responsável pela página é sócio de Pedro D’Eyrot, um dos fundadores do MBL. Carlos Afonso disse à reportagem que a relação dele com o MBL se deu mais por afinidade ideológica e pouco falou sobre os negócios com integrantes do movimento, embora tenha confirmado a sociedade na empresa com D’Eyrot. 95

Assim como no Jornalivre, os textos do blog misturam a abordagem informativa com a opinativa, embora esta última quase sempre prevaleça. Contudo, a linguagem utilizada no Ceticismo Político costuma ser mais agressiva e crítica, especialmente quando faz menção a pessoas que são colocadas como adversárias, por assumirem posições que contrariam às da direita. É comum que artistas e jornalistas apareçam como representantes da extrema esquerda nos textos. No Ceticismo Político, a ênfase na guerra cultural é mais evidente e já se apresenta nos títulos, que por si só já são bastante instigantes e apelativos. Também é comum que se utilizem reproduções da imagem de postagens nas redes sociais intercalando o conteúdo textual, como uma forma de atestar a validade ou a veracidade das afirmações feitas no blog. A novidade aqui está no fato de que os textos reproduzem até trechos inteiros de matérias divulgadas em veículos da grande imprensa e trechos de postagens nas redes sociais como se fossem declarações factuais, simulando um estilo jornalístico opinativo, enquanto se apropria de argumentos alheios em uma espécie de plágio político.

3.3.3 O Diário Nacional

Entre os sites analisados, o Diário Nacional é o que tinha a aparência que mais se aproximava de um portal jornalístico da grande mídia, com direito ao nome da publicação grafada em fonte serifada e em caixa alta, a exemplo dos jornais tradicionais. Talvez aí houvesse a intenção de aproximar o site do modelo jornalístico tradicional, pelo menos na aparência. No período analisado, foi publicado na página do MBL no Facebook o total de 198 links para o Diário Nacional, que corresponde a 14,8% dos links divulgados pelo grupo. O slogan “informação de verdade” se mostra bastante adequado a um contexto em que a veracidade dos conteúdos divulgados pelos sites ligados ao MBL começava a ser questionada. A partir de nossas análises, cremos que o Diário Nacional foi um dos últimos a serem criados para compor o ecossistema político-midiático que mencionamos anteriormente. Não havia ainda dados disponíveis sobre o tráfego de informações no site, por meio da plataforma Similar Web, quando iniciamos a pesquisa. Porém, em 23 de abril de 2018, a revista Época publicou reportagem de capa mostrando com operam os dez maiores sites de notícias falsas do país. O Diário Nacional apareceu em quarto lugar, com média de 815 mil visitantes por mês, segundo levantamento feito pela publicação. “Dentro do grupo dos sites de fake news com interesse político inclinado à direita, o Diário Nacional é abertamente vinculado ao Movimento Brasil Livre” (BORGES, 2018, p. 29). 96

Quando a caravana que levava o ex-presidente Lula pela Região Sul do país sofreu um atentado, o Diário Nacional repercutiu o texto do site O Antagonista afirmando que, segundo “autoridades”, “os disparos devem ter sido feitos a curta distância e com os veículos parados”. A verdadeira perícia concluiu que os tiros foram feitos a cerca de 19 metros de distância. Jornalistas que estavam dentro do ônibus testemunharam a ação e afirmam que ele estava em movimento na hora dos disparos. (BORGES, 2018, p. 29).

Não cremos que a reportagem tenha trazido elementos suficientes para justificar por que o site se encontrava entre os maiores disseminadores de notícias falsas do Brasil, mas concordamos que ele tinha um vínculo com o MBL bastante evidente. Os textos divulgados no Diário Nacional tinham um estilo semelhante ao daqueles publicados no Jornalivre, porém, mostraram-se mais informativos e um pouco menos opinativos, embora fosse comum o uso de adjetivos, especialmente nas menções à esquerda ou aos esquerdistas. Com menos opiniões misturadas às informações baseadas em fatos verificáveis, os textos do Diário Nacional eram mais sintéticos e também reproduziam trechos de textos publicados pela grande mídia e em outros sites de direita, como O Antagonista. É possível crer que o site foi criado para ocupar o espaço que vinha sendo ocupado pelo Jornalivre. Após a revelação de que havia membros do MBL entre os administradores do Jornalivre, a postagem de links para o Diário Nacional na página do Facebook do movimento se tornou mais frequente durante um determinado período. Inicialmente, também não era possível identificar o editor ou responsável pelo conteúdo do Diário Nacional, até que o nome Francine Galbier, a mesma que já havia aparecido entre os administradores do Jornalivre, apareceu como uma das responsáveis pelo site.

3.3.4 O Reacionário

O blog, que tem todos os textos assinados por Eric Balbinus, é o que mais apresenta peculiaridades em relação a outros sites que compõem o ecossistema político-midiático do MBL. É, portanto, o que se mostra mais coerente em relação à sua finalidade, tanto no conteúdo quanto na aparência. Em nosso levantamento, houve 60 links para textos de O Reacionário publicados na página do MBL no Facebook no período analisado, o que corresponde a apenas 4,49% do total. Apesar disso, algumas postagens do blog figuram entre as que tiveram maior número de interações. De acordo com os dados coletados na plataforma Similar Web, chegamos à estimativa de 141.576 visitas entre os dias 10 de setembro e 7 de outubro de 2017, período 97

correspondente a 28 dias, apresentando uma média de 5.056 visitas diárias – 86,7% delas originadas em redes sociais. Eric Balbinus (Balbino) de Abreu, que se apresenta como autor dos textos, expõe claramente na página inicial do blog que é bacharel em Relações Internacionais, pós-graduando em Administração Pública, especialista em Ciência Política e conselheiro do MBL. Durante a gestão de João Doria como prefeito de São Paulo, Balbinus ocupou na administração pública municipal o cargo de supervisor cultural até ser exonerado por Bruno Covas em 26 de junho de 2018. Nessa época, o MBL já havia rompido laços com o ex-prefeito, que foi eleito governador antes de terminar o mandato na prefeitura. Ao expor abertamente a identidade do responsável pelo site, o Reacionário se difere dos demais sites analisados. De alguma forma, cremos que isso se reflete na abordagem que o autor utiliza nos textos, em que também não poupa críticas e agressões a integrantes da esquerda, porém, faz isso em clara consonância com o gênero opinativo. Além disso, os textos se apresentam melhor redigidos e com menos elementos intercalados, como imagens de posts em redes sociais. Basicamente, há uma foto ilustrativa e o texto propriamente dito.

3.4 MBL News e a política transmídia

Às vésperas da campanha eleitoral de 2018, o MBL se viu forçado a modificar o ecossistema político-midiático que havia criado em torno dos sites que mencionamos anteriormente, diante de suspeitas levantadas pela grande imprensa sobre a disseminação de notícias falsas e a derrubada de algumas páginas pelo Facebook. Naturalmente, o grupo reagiu a essas pressões sempre de forma incisiva e insistindo na tese de que teria sido vítima de censura nas redes sociais. Porém, o Facebook não voltou atrás, e a imprensa continuou a divulgar matérias que desvendavam a máquina de guerrilha midiática criada pelo grupo para se manter em evidência. Diante disso, o grupo não recuou e, embora enfraquecido em sua visibilidade midiática, aperfeiçoou a estratégia de comunicação em três níveis que descrevemos anteriormente, evoluindo para um modelo que caminha cada vez mais do cross-media para o transmídia. De acordo com Jenkins (2009, p.135), “uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo”. Scolari (2011) define as narrativas transmídia a partir de duas variáveis:

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1) A história é contada através de várias mídias e plataformas: diferentemente dos contos monomidiáticos, nas narrativas transmídia a história pode começar em um meio e continuar em outros. Pode-se dizer que a história usa o melhor de cada mídia para se contar e se expandir. [...]60 2) Prosumidores também colaboram na construção do mundo narrativo: embora exista uma conta oficial (“canônica”) gerenciada pelo emissor, para essa história criada de cima para baixo (top-down) devem ser adicionadas as histórias criadas a partir de baixo (bottom-up) pelos consumidores agora convertidos em produtores.61

Nessa perspectiva, o novo modelo de divulgação de notícias do MBL evoluiu de uma rede de sites distintos que divulgava as pautas de interesse do grupo (cross-media) para uma rede de múltiplas plataformas que levam o nome do grupo (transmídia). O portal de notícias oficial passou a se chamar MBL News, o mesmo nome do telejornal apresentado ao vivo por integrantes do grupo no YouTube. Assim, o MBL deixou de lado os conteúdos anônimos e agora divulga notícias em um site que leva a assinatura do grupo.

Eis a mina de ouro do grupo, ações que possam ser capitalizadas nas redes sociais. Eles têm o próprio canal de notícias, MBL News, com manchetes à direita [...]. Mas a meta, afirma Holiday, é dar um ar menos moleque ao portal, fornecendo a fonte da informação de materiais publicados. “Antes a gente postava ‘fulano peida na farofa’ para falar de alguém”, lembra. Não que o humor vá sair da sala, diz Kim, que em seu Twitter se descreve como “o mais cabeludo dos 893 líderes do MBL”, além de fã de “Coca-Cola e tripartição do Poder”. (BALLOUSSIER, 2018).

Em uma breve análise, uma vez que o novo portal não se insere no recorte proposto para esta pesquisa, percebemos que os textos se assemelham em alguns aspectos àqueles divulgados no Jornalivre e no Diário Nacional, embora sejam melhor redigidos e assinados por integrantes do movimento; porém, ainda reproduzem conteúdo de outros veículos da grande imprensa e inserem informações de postagens em redes sociais como declarações que normalmente seriam obtidas por meio de entrevistas ou apuração jornalística. Além das notícias, o portal MBL News também apresenta conteúdo assinado por colunistas e abre espaço para divulgação de notícias regionais.

60 Tradução livre. No original: “La historia se cuenta a través de varios medios y plataformas: a diferencia de los relatos monomediáticos, en las narrativas transmedia el relato puede comenzar en un medio y continuar en otros. Podría decirse que el relato aprovecha lo mejor de cada medio para contarse y expandirse”. 61 Tradução livre. No original: “Los prosumidores también colaboran en la construcción del mundo narrativo: si bien existe un relato oficial (‘canon’) gestionado por el emisor, a este relato creado de arriba hacia abajo (top- down) se deben sumar las historias creadas desde abajo (bottom-up) por los consumidores convertidos ahora en productores”. 99

Como parte do esforço transmídia, há ainda a divulgação de vídeos e um podcast, formato que está novamente em evidência e vem se consolidando no jornalismo digital, sendo cada vez mais utilizado por veículos da imprensa tradicional. Segundo Jenkins (2009, p.148), “a convergência das mídias torna inevitável o fluxo de conteúdos pelas múltiplas plataformas de mídia”. Nesse aspecto, o MBL sinaliza que está se profissionalizando cada vez mais em sua abordagem político-midiática. “O ponto essencial é que um envolvimento mais profundo continua sendo opcional – algo que os leitores decidem fazer ou não”. (JENKINS, 2009, p.186). Portanto, os três níveis de aprofundamento das narrativas político-midiáticas do MBL servem a diferentes perfis de seguidores, que podem decidir como consumir o conteúdo produzido pelo grupo. Enquanto isso, os sites O Reacionário e Ceticismo Político continuam sendo atualizados com novas postagens. O blog Ceticismo Político saiu do ar em 2018, logo após a página do Facebook ser derrubada, mas retornou em 2019. O site de O Diário Nacional, pelo que tudo indica, está permanentemente fora do ar. O Jornalivre continua disponível no domínio que utilizava anteriormente, porém, as últimas postagens no site ocorreram em 6 de fevereiro de 2018. Quando esta pesquisa foi iniciada, foi possível perceber quase imediatamente que a ação político-midiática do MBL era caracterizada por fluidez e temporalidade discursiva. Portanto, já era possível prever que o modelo utilizado pelo grupo no momento da coleta dos dados que compõem o nosso corpus poderia mudar a qualquer momento. O MBL começou como um movimento situado nas extremidades, indo na direção da mola reprimida da direita que citamos neste capítulo. Como a mola citada por Kim Kataguiri, o grupo agora busca ir dos extremos ao equilíbrio, uma vez que começa a se identificar mais com a política institucional e porque, nesse momento, as extremidades onde o MBL se situava estão sendo dominadas pela ação político- midiática do governo Bolsonaro. Porém, como nos mostra Mello (2017, p. 24), “o signo das extremidades se faz hoje presente no cotidiano concreto de modo continuado, sem interrupções, não podendo ser considerado, como antes, um estado de exceção”. Como objeto, a ação político-midiática do MBL nos dá a oportunidade de encarar algumas experiências das extremidades que podemos observar nas redes sociais e organizar os nossos sentidos naquele “campo de percepção e sensorialidade” descrito por Mello (2017, p. 26). Ao observamos os processos de “desconstrução, contaminação e compartilhamento” preconizados pela autora, poderemos compreender melhor o fenômeno das extremidades que se apresenta em nosso objeto de pesquisa.

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Observamos, hoje em dia, profundas transformações em curso diante de ressignificações do fenômeno das extremidades, dos modos de viver e de seus reflexos no plano das sensibilidades. Na passagem para os anos 2020, com a globalização em xeque e com o aumento exponencial do medo, da insegurança no mundo e da restrição às liberdades, pensar o estatuto das práticas artísticas e midiáticas a partir da noção das extremidades é, portanto, um desafio para o campo da crítica. (MELLO, 2017, p. 26-27).

Esse é um dos desafios da análise de discurso que se coloca como tarefa para esta pesquisa, cuja metodologia será detalhada no capítulo 4. Partiremos das extremidades em que esses discursos foram produzidos e divulgados por meio do ecossistema político-midiático do MBL. É nessas áreas “limítrofes e fronteiriças interconectadas em múltiplas plataformas, comunidades e linguagens” descritas por Mello (2018, p. 30) que procedemos à nossa análise, buscando compreender como o debate político é desconstruído, contaminado e compartilhado pelo MBL.

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4 METODOLOGIA: DADOS QUALITATIVOS E ANÁLISE DE DISCURSO

Charaudeau (2010, p. 29) define “a comunicação midiática como fenômeno de produção do sentido social”. Segundo o autor, para tentar compreender e explicar a “máquina de fabricar sentido social”, o analista deve observar à distância, aceitando e evidenciando a relatividade das interpretações. Ele vê como arrogância apresentar uma explicação relativa como verdade absoluta e nela acreditar. Porém, seria cinismo fazê-lo sem acreditar. “Entre arrogância e cinismo, há lugar para uma atitude que, sem ignorar as convicções fortes, procure compreender os fenômenos, tente descrevê-los e proponha interpretações para colocá-los em foco no debate social” (CHARAUDEAU, 2010, p. 29).

O discurso de análise que propomos tem as seguintes propriedades: construção racional de seu objeto segundo critérios precisos (construção do corpus), o que permite conferir os resultados das análises; determinação de instrumento de análise que sirva de saber às interpretações produzidas ulteriormente; processo de interpretação que implique uma crítica social, não como ideologia (se a crítica fosse direcionada, perverteria o objetivo científico), mas como processo que faz descobrir o não dito, o oculto, as significações possíveis que se encontram por trás dos jogos de aparências. (CHARAUDEAU, 2010, p. 29).

De acordo com Bardin (2016, p. 125), a escolha dos documentos que poderão compor o corpus da análise acontece na pré-análise, que é a fase de organização propriamente dita. “Geralmente, esta primeira fase possui três missões: a escolha dos documentos a serem submetidos à análise, a formulação das hipóteses e dos objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final”. Ela é composta, segundo o autor, por atividades não estruturadas, “abertas”, “por oposição à exploração sistemática dos documentos” (BARDIN, 2016, p. 216).

Assim, partimos do que o autor chama de leitura “flutuante”, em que o analista tem contato com os documentos a fim de conhecer o texto e se deixar invadir por impressões e orientações. Depois disso, vem a escolha dos documentos em universo demarcado, em que pode ser necessário proceder à constituição de um corpus, ou seja, “o conjunto de documentos tidos em conta para serem submetidos a procedimentos analíticos. A sua constituição implica, muitas vezes, escolhas, seleções e regras” (BARDIN, 2016, p. 126). Entre as regras descritas pelo autor, optamos nesta pesquisa pela regra da homogeneidade, “em que os documentos retidos 102

devem ser homogêneos, isto é, devem obedecer a critérios preciso de escolhas e não apresentar demasiada singularidade fora desses critérios” (BARDIN, 2016, p. 128).

Na formulação das hipóteses e dos objetivos, levamos em consideração algumas métricas de redes sociais, coletadas entre os meses de setembro e novembro de 2017, em que verificamos que o Movimento Brasil Livre conquistou grande visibilidade no Facebook. Nesse período, o grupo se mobilizou massivamente contra duas manifestações artísticas que abordavam temáticas relacionadas ao corpo e à sexualidade: a exposição Queermuseu no Santander Cultural, em Porto Alegre; e a apresentação da performance La Bête no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo.62

Diante do exposto, a hipótese principal é de que o grupo dominou a produção de discursos em torno da repercussão negativa dessas manifestações artísticas nas redes sociais a fim de conquistar mais visibilidade e, consequentemente, mais adeptos. Dados coletados na ferramenta Social Bakers revelam que o número de seguidores do MBL cresceu 6,21% no período analisado, havendo a conquista de 147.016 novos fãs, com picos de crescimento nos dias em que foram publicados alguns dos conteúdos que mais repercutiram sobre a exposição Queermuseu e a performance La Bête. Apesar das variações, a página do MBL iniciou uma trajetória ascendente nesse período, conforme vemos na Figura 4.

MBL - Movimento Brasil Livre Fans Sep 10, 2017 - Nov 08, 2017

Total Fans Fans Overview

2.550.000 2.500.000 Total Fans 2.450.000 2.400.000 2 512 940 2.350.000 2.300.000 Change in Fans

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Figura 4 - Evolução do número de fãs do MBL no Facebook. Fonte: Socialbakers.

62 A exposição Queermuseu abordava a temática da diversidade sexual, apresentando obras que remetiam a práticas como pedofilia e zoofilia. No MAM-SP, o corpo nu do coreógrafo Wagner Schwartz era manipulado pelos espectadores em uma sala do museu, onde foi gravado um vídeo que mostrava uma criança de aproximadamente cinco anos e sua mãe interagindo com o artista durante a apresentação da performance “te”. 103

A fim de compreender a atuação do MBL nas redes sociais, a partir de conteúdos produzidos e divulgados à época em que essas mobilizações ocorreram, iniciamos nosso percurso metodológico com atenção ao modelo de construção de corpus, como princípio alternativo para a coleta de dados qualitativos, proposto por Bauer e Aarts no texto “A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos”. Para os autores, “toda pesquisa social empírica seleciona evidência para argumentar e necessita justificar a seleção que é a base de investigação, descrição, demonstração, prova ou refutação de uma afirmação específica” (BAUER; AARTS, 2002, p. 39).

Bauer e Aarts apresentam, nesse sentido, duas definições para a palavra latina corpus, que, segundo eles, significa simplesmente corpo. Recorrendo ao dicionário, a palavra é definida como: “um corpo de uma coleção completa de escritos ou coisas parecidas; o conjunto completo de literatura sobre algum assunto [...] vários trabalhos da mesma natureza, coletados e organizados” (OXFORD ENGLISH DICTIONARY apud BAUER; AARTS, 2002, p. 44). Outra definição citada é a de Barthes: “uma coleção finita de materiais, determinada de antemão pelo analista, com (inevitável) arbitrariedade, e com a qual ele irá trabalhar” (BARTHES apud BAUER; AARTS, 2002, p. 44). Assim, os autores concluem que “seleção parece menos importante que análise, mas não pode ser separada dela. A arbitrariedade é menos uma questão de conveniência e, em princípio, mais inevitável” (BAUER; AARTS, 2002, p. 44).

4.1 Seleção do corpus

Para iniciar a construção do nosso corpus, coletamos os dados das postagens na página do Movimento Brasil Livre no Facebook com o auxílio da ferramenta de monitoramento de métricas de redes sociais Socialbakers, compreendendo o período de 60 dias corridos como recorte temporal, que se iniciou em 10 de setembro de 2017 e se encerrou em 8 de novembro do mesmo ano.63 A maior parte dos dados estava disponível publicamente e a ferramenta foi utilizada para que a coleta fosse realizada de forma mais organizada e ágil. De acordo com Silva e Stabile:

63 Socialbakers é uma plataforma de monitoramento de redes sociais bastante utilizada como ferramenta de marketing por grandes empresas em 100 países. Para a realização desta pesquisa, foi disponibilizado pela plataforma um período de cortesia equivalente a 60 dias, que possibilitou a coleta dos dados. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2018. 104

Transformar bases de dados em arquivos legíveis por softwares de redes não é algo muito difícil, uma vez que uma lista de conexões tão simples quanto a estrutura “origem-destino” pode ser lida pela maioria dos programas. Extrair os dados das mídias sociais a partir de determinado volume ou em algumas plataformas pode ser bastante trabalhoso. Por isto, existem ferramentas desenvolvidas exclusivamente para extrair, minerar ou “raspar” dados de mídias sociais e sites, gerando como resultado arquivos para serem lidos em outras ferramentas. (SILVA; STABILE, 2016, p. 254).

O arquivo com o conjunto dos dados em questão foi extraído a partir da ferramenta no dia 5 de dezembro de 2017, composto por registros de 2.657 postagens na página analisada, divididas em links, fotos, vídeos e atualizações de status (dentro de um escopo qualitativo de análise), conforme mostra a Tabela 1. Na primeira etapa da seleção dos dados, visamos à homogeneidade do corpus da análise, uma das regras citadas por Bardin (2016) e recomendada também por Bauer e Aarts (2002):

Os materiais devem ser homogêneos, por isso não se deve misturar texto e imagens em um mesmo corpus. Uma boa análise permanece dentro do corpus e procura dar conta de toda a diferença que está contida nele. Em resumo, embora significados mais antigos de “corpo de um texto” impliquem a coleção completa de textos, de acordo com algum tema comum, mais recentemente o sentido acentua a natureza proposital da seleção, e não apenas de textos, mas também de qualquer material com funções simbólicas. (BAUER; AARTS, 2002, p. 45).

Tabela 1 – Tipos de posts coletados pela ferramenta Socialbakers

Tipo Quantidade Links 1.336 Fotos 701 Vídeos 617 Atualizações de status 3 Fonte: Elaborado pelo autor.

Por meio da utilização de filtro no Microsoft Excel, excluíram-se, assim, as postagens de fotos, vídeos e atualizações de status, por estarem fora do campo de interesse desta pesquisa. Permaneceram, portanto, os registros de 1.336 postagens de links coletados na página do Movimento Brasil Livre no Facebook no período analisado, a partir dos quais selecionamos o corpus da pesquisa, em função de dois critérios de relevância relacionados às variáveis que 105

interessam ao estudo aqui proposto. A escolha da “relevância” não foi ao acaso, pois partimos das sugestões de Barthes para o delineamento do corpus, citadas por Bauer e Aarts (2002, p. 55-56) como “úteis” para a seleção qualitativa.

Como primeiro critério de relevância, a partir de variável qualitativa, o link postado deveria direcionar para textos jornalísticos ou supostamente jornalísticos, publicados em páginas de portais ou sites que não fossem prontamente identificados com a grande mídia, nem vinculados a empresas ou conglomerados de empresas de comunicação associadas à Associação Nacional de Jornais (ANJ), à Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER) e à Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT).

Como segundo critério de relevância, a partir de variável quantitativa, foram consideradas relevantes as postagens com maior número de interações no período analisado, estabelecendo-se o mínimo de 10.000 interações para que uma postagem fosse selecionada para análise.64 Considerando essa variável na aplicação de filtro no Microsoft Excel, foram listados, em ordem decrescente, de acordo com o número de interações, os registros de links compostos pelas URLs relacionadas na Tabela 2. Assim, o corpus analisado neste artigo foi delimitado ao total de 173 postagens, distribuídas em seis websites.

Tabela 2 – Postagens selecionadas para o corpus da pesquisa

Total de Total de links Total interações Site URL selecionados de links dos posts para análise analisados Jornalivre 664 82 1.530.784 Ceticismo 305 68 1.363.745 Político O Diário Nacional 198 13 189.798 O Reacionário 60 8 126.503 Jornalivre SC 7 1 13.466 Senso Incomum 1 1 11.099 Fonte: Elaborado pelo autor.

4.2 Análise de discurso como metodologia

64 No Facebook, o número de interações corresponde ao total da soma entre os números de reações, comentários e compartilhamentos. 106

Para analisar os textos contidos em nosso corpus, recorremos à metodologia de análise de discurso que, segundo Sarfati (2010, p. 21), não se reduz ao verbal. De acordo com o autor, é preciso antes separar as noções de discurso (objeto de conhecimento) e texto (objeto empírico). Portanto,

A análise do discurso não trata do texto ou da textualidade em si, e também não tem por vocação dar conta do discurso – totalidade tão abstrata quanto ideal –, mas sim de uma série de textos particulares que é possível, pela descrição, relacionar a esse ou àquele tipo de discurso. (SARFATI, 2010, p. 20).

Para Fonseca Jr. (2005, p. 303), a análise de discurso tem uma estreita ligação com a análise de conteúdo e “procura estabelecer ligações entre as condições de produção do discurso e sua estrutura”, tendo como hipótese geral a ideia de que um discurso é determinado pelas condições de produção e por um sistema linguístico. “Desde que ambos sejam conhecidos, pode-se descobrir a estrutura organizadora ou processo de produção, através da análise da superfície semântica e sintática deste discurso (ou conjunto de discursos)” (FONSECA JR., 2005, p. 303). Outro autor que aborda o tema é Manhães (2005, p. 305), ao lembrar que discurso significa “em curso”, ou seja, em movimento.

Assim, a discursividade implica a compreensão de que a mensagem é construída no interior de uma conversa e é a concretização de um ato. A linguagem é um instrumento de comunicação que está́ sempre em atividade, seja nas relações cotidianas, coloquiais, seja nas interações institucionais, formais. (MANHÃES, 2005, p. 305).

Ao descrever a análise de discurso, o autor faz menção a duas abordagens: a francesa e a inglesa. A primeira, nas palavras do autor, pode ser caracterizada pela “ênfase no assujeitamento do emissor, que se expressaria mediante a incorporação de discursos sociais já instituídos: o religioso, o científico, o filosófico, o mitológico, o poético, ou o jornalístico, o publicitário, o corporativo etc.” (MANHÃES, 2005, p. 306). Já a segunda enfatiza o papel ativo do sujeito, “que utiliza pragmaticamente as palavras para fazer coisas, embora ela não descarte o fato de o sujeito estar obrigado a obedecer a imperativos linguísticos, o que implica um relativo assujeitamento” (MANHÃES, 2005, p. 306). Para o autor, analisar é dividir, ou seja, desconstruir o texto em discursos, em vozes, por meio de uma técnica que consiste em desmontar para perceber como foi montado. Na análise de discurso francesa, que melhor se 107

identifica com a nossa abordagem neste trabalho, isso resulta na identificação dos discursos já instituídos, que foram incorporados pelo sujeito.

Pêcheux (1997, p. 76), autor da escola francesa de análise de discurso, afirma que “um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas”. Portanto, o discurso deve ser tomado, do ponto de vista sociológico, como parte de um mecanismo que pertence a um sistema de normas, como as que derivam de uma estrutura ideológica ou política. O autor cita o exemplo de um deputado que pertence a um determinado partido político, seja do governo ou da oposição, sendo, portanto, o porta-voz do grupo e dos interesses que ele representa.

Ele está, pois, bem ou mal, situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado: o que diz, o que anuncia, promete ou denuncia não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que ele ocupa; a mesma declaração pode ser uma arma temível ou uma comédia ridícula segundo a posição do orador e do que ele representa, em relação ao que diz: um discurso pode ser um ato político direto ou um gesto vazio, para “dar o troco”, o que é uma outra forma de ação política. (PÊCHEUX, 1997, p. 77).

Segundo o autor, isso implica também antecipar o que o outro vai pensar, pois essa antecipação é constitutiva de qualquer discurso. Pêcheux (1997, p. 79) defende ainda a hipótese de que “a um estado dado das condições de produção corresponde uma estrutura definida dos processos de produção do discurso a partir da língua”. Ele supõe que é impossível analisar um discurso apenas como texto, ou seja, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma: “[...] é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção” (PÊCHEUX, 1997, p. 79). Com isso, o autor afirma não pretender uma sociologia da produção do discurso, mas definir elementos teóricos que permitam pensar esses processos discursivos.

Nosso propósito não é, com efeito, o de estimular uma sociologia das condições de produção do discurso mas definir os elementos teóricos que permitem pensar os processos discursivos em sua generalidade: enunciaremos a título de proposição geral que os fenômenos linguísticos de dimensão superior a frase podem efetivamente ser concebidos como um funcionamento mas com a condição de acrescentar imediatamente que este funcionamento não é integralmente linguístico, no sentido atual desse termo e que não podemos defini-lo senão em referência ao mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto de discurso, mecanismo que chamamos “condições de produção” do discurso. (PÊCHEUX, 1997, p. 79).

108

Em situações de dominação, “o objeto de uma sociologia do discurso seria, pois, o de verificar a ligação entre as relações de força (exteriores à situação do discurso) e as relações de sentido que se manifestam nessa situação” (PÊCHEUX, 1997, p. 87).

4.2.1 Abordagem crítica das extremidades como referencial teórico

A fim de possibilitar uma análise das condições de produção de discurso pelo MBL com o devido distanciamento, utilizamos a abordagem crítica das extremidades de Mello (2017, p. 13), que citamos no fim do capítulo 3. “A noção de extremidades é embasada, enquanto ‘caminho de leitura’, em direção à observação de pontos de tensão, situações conflituosas existentes no cerne dos trabalhos em análise”. Assim, a autora propõe a constituição de instrumentais de leitura para “trabalhos que transitam entre arte, práticas midiáticas e experiência contemporânea, interconectados entre múltiplas plataformas, comunidades e linguagens”.

Diferentemente da noção ocidental atribuída às extremidades, que a relaciona a forças opostas, dicotômicas, polarizadas, a presente noção de extremidades é articulada a partir da convivência de forças plurais e complementares. É utilizada como atitude de olhar para as bordas, observar as zonas limites, as pontas extremas, interconectadas em várias práticas artísticas e midiáticas. (MELLO, 2017, p. 13).

Portanto, propomos um olhar distanciado, mas não necessariamente à distância. O analista não se coloca aqui como um observador situado em um extremo (ou polo) oposto, mas como um observador que olha para as bordas, as zonas limites e as pontas extremas, citadas por Mello (2017), em busca da compreensão não enviesada do objeto situado nessas extremidades. Assim, em nossa análise baseada nas extremidades, a prática discursiva se sobrepõe à política, embora ainda esteja inserida no contexto político-midiático de que tratamos nesta dissertação. Em nosso olhar para as condições de produção dos discursos, atentamos para os procedimentos de desconstrução, contaminação e compartilhamento na prática da crítica proposta pela autora, assim descritos por ela:

a) Desconstrução: Segundo Mello (2017, p. 14), “os procedimentos desconstrutivos giram em torno da desmontagem de um significado para se obter outro”, em dois 109

momentos diferentes. No primeiro momento, há a negação de um estado. No segundo momento, seus limites criativos são revertidos, ressignificados e expandidos. b) Contaminação: De acordo com Mello (2017, p. 14-16), “a contaminação é um tipo de procedimento em que uma relação de troca se potencializa a partir de seus contágios”. Assim, segundo a autora:

As operações criativas geralmente partem de uma problemática advinda de um determinado contexto e se associam a outra área. Nela, os significados não se dispersam, nem se diluem, mas, ao contrário, possuem o poder de afetar e contaminar as áreas em diálogo.

c) Compartilhamento: Para Mello (2017, p. 16), o compartilhamento, dentre os procedimentos das extremidades, é o que se situa na ponta mais extrema e descentralizada, onde ocorrem “a transmutação, a partilha, de uma experiência em outra”. Segundo a autora, o compartilhamento age como agenciador de uma proliferação de significados, que diz respeito, por exemplo, “tanto às transformações criativas nos ambientes colaborativos das redes sociais como aos modos de circulação de imagem, som e escrita na arquitetura, nos arquivos digitais e bancos de dados” (MELLO, 2017, p. 16).

Em nossa análise de discurso, consideramos, portanto, os procedimentos de “desconstrução”, “contaminação” e “compartilhamento” como parte do referencial teórico necessário à elaboração do nosso sistema de categorias e à análise propriamente dita. A opção por essa abordagem se deu pela necessidade de analisar um objeto que se situa nos atravessamentos cotidianos que, segundo Mello (2017, p. 26), “colocam em xeque modos como organizamos os sentidos e a presença hoje, trazendo, com isso, fronteiras enunciativas agora traduzidas no plano do sensível”. Esse é o plano do que se expressa como extremidade e nos permite observar a experiência contemporânea redimensionada “como um vetor que aponta para as extremidades”.

4.2.2 Categorias da análise de discurso

110

Para Bardin (2016, p. 148), categorizar é um processo estruturalista realizado em duas etapas. A primeira é o inventário, em que isolamos os elementos. A segunda é a classificação, em que os elementos são repartidos, visando a uma certa organização das mensagens. “A partir do momento em que a análise de conteúdo decide codificar o seu material, deve produzir um sistema de categorias” (BARDIN, 2016, p. 148). Segundo Charaudeau (2010, p. 43), o saber se estrutura e se orienta de acordo com a direção para onde o homem olha: “voltado para o mundo, o olhar tende a descrever esse mundo em categorias de conhecimento; mas voltado para si mesmo, o olhar tende a construir categorias de crença”.

Gibbs (2008, p. 67) recomenda que o analista elabore uma lista de ideias temáticas fundamentais, retiradas da literatura e de pesquisas prévias. Para o autor, “as categorias ou conceitos que os códigos representam podem vir da literatura de pesquisa, de estudos anteriores, de tópicos no roteiro da entrevista, de percepções sobre o que está acontecendo e assim por diante.” Assim, optamos pela abordagem crítica das extremidades de Mello (2017), que serviu de referencial teórico à análise qualitativa de cada um dos 173 textos que compõem o nosso corpus, divulgados no período definido para o recorte temporal desta pesquisa.

Desse modo, tendo em vista os procedimentos de desconstrução, contaminação e compartilhamento que podem ser observados nos conteúdos disseminados por meio do ecossistema político-midiático do MBL no período considerado por essa análise, definimos nove categorias que foram relacionadas na Tabela 3.65 Assim, pudemos estabelecer um sistema de categorias que nos permitiu identificar variáveis fundamentais à compreensão do nosso objeto durante a análise qualitativa.

No que diz respeito à abordagem crítica das extremidades, as categorias A, D, E, F e G se identificam mais com os procedimentos de “desconstrução”, enquanto as categorias B e H se identificam mais com os procedimentos de “contaminação”; por fim, as categorias C e I se identificam mais com os procedimentos de “compartilhamento”. É possível que nessa classificação um mesmo texto possa, ao mesmo tempo, apresentar elementos que apontem para mais de um procedimento das extremidades.66 Porém, consideramos apenas aquele que se

65 Após analisar os textos e codificá-los de acordo com a categoria que melhor se aplicava a cada um deles, procedemos à contagem das quantidades e dos percentuais dos materiais, agrupando-os numericamente em ordem decrescente, de modo a detalhar e organizar melhor o nosso conjunto categorial. 66 É por esse motivo que não definimos desconstrução, contaminação e compartilhamento como categorias, uma vez que não poderíamos atender ao critério de exclusão mútua recomendado por Bardin (2016, p. 151), que estipula que cada elemento não pode existir em mais de uma divisão. 111

mostrou predominante na análise. Na Figura 5, relacionamos e agrupamos as categorias de análise de acordo com os procedimentos das extremidades com que elas se identificam.

Tabela 3 - Categorias de análise de discurso Categoria Quantidade Porcentagem A) Críticas a artistas, jornalistas e professores 43 24,9% B) Conteúdos virais polarizados 33 19,1% C) Conteúdos de terceiros com afinidade ideológica 23 13,3% D) Críticas a adversários políticos 22 12,7% E) Críticas ao debate de gênero e da causa LGBTI+ 15 8,7% F) Críticas à grande mídia 14 8,1% G) Críticas aos Poderes Executivo, Legislativo ou 9 5,2% Judiciário H) Contranarrativas polarizadas 9 5,2% I) Repercussão de trending topics 5 2,9% Fonte: Elaborado pelo autor.

Porcentagens dos textos agrupados de acordo com a abordagem crítica das extremidades

16%

24% 60%

Desconstrução Contaminação Compartilhamento

Figura 5 - Distribuição das categorias de acordo com a abordagem das extremidades. Fonte: Elaborado pelo autor.

É a partir dessas premissas, visando a uma análise das condições de produção de discursos pelo MBL, que descrevemos as observações da nossa análise adiante. Não poderíamos deixar, portanto, de relacioná-las com o contexto político-midiático em que esses 112

discursos foram produzidos, a fim de “tensionar” o nosso objeto em sua elaboração discursiva e perceber como ela desconstrói, contamina e compartilha sentidos.

4.3 Procedimentos de desconstrução no discurso do MBL

Como vimos no gráfico da Figura 5, do total de textos coletados para compor o nosso corpus, 60% estão reunidos em categorias que se identificam com os procedimentos de desconstrução, conforme a abordagem crítica das extremidades. Isso é demonstrado pelo teor de alguns textos disseminados por meio do ecossistema político-midiático de que tratamos no capítulo 3, em que o MBL se coloca em um enfrentamento discursivo intenso contra aqueles que são eleitos inimigos pelo grupo: a grande mídia, os artistas, os jornalistas, os professores, os adversários políticos (de esquerda e de direita), os defensores das causa de gênero e LGBTI+ e integrantes do Três Poderes – especialmente do Poder Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal (STF).67

Para chamar a atenção nas redes sociais, o grupo tem um adversário a ser atacado sempre que possível. No período analisado por esta pesquisa, todos os grupos que citamos anteriormente se tornam adversários em um contexto de mobilização de setores conservadores da sociedade brasileira em torno de pautas relacionadas a costumes, o que já dava mostras de qual seria a tônica dos discursos dos candidatos conservadores na campanha eleitoral de 2018. É assim que, em torno das polêmicas provocadas pela repercussão negativa nas redes sociais da exposição Queermuseu e da performance La Bête, o MBL assume um discurso agressivo para desconstruir os argumentos de todos aqueles que se colocaram como “defensores” dessas manifestações artísticas e contra a posição assumida pelo grupo diante delas. Qualquer um que defendesse a liberdade artística e se posicionasse contra qualquer forma de censura às artes nessa época, na grande mídia ou nas redes sociais, era prontamente tratado como defensor da pedofilia ou até mesmo como “pedófilo”. Aqui vemos o grupo claramente desmontando um significado para obter outro.

A postagem de link com maior visibilidade no período analisado obteve o total de 114.634 interações e foi publicada em 11 de outubro de 2017, direcionando para um conteúdo

67 LGBTI+ aparece neste trabalho como a sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais. O sinal de adição, ao final da sigla, inclui outras orientações sexuais, identidades e expressões de gênero.

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do Jornalivre intitulado: “Internet lança campanha para que ninguém assista à Globo no Dia da Criança”.68 A “nota” não assinada na página do Jornalivre tem apenas dois parágrafos, sugerindo que “internautas” estariam se unindo para boicotar e deixar de assistir à programação da emissora no dia 12 de outubro. O texto não diz quem são, quantos são, a que grupo estariam vinculados, qual ou quais desses internautas estariam organizando o boicote. Apenas menciona que se trata de uma reação a uma reportagem veiculada pela TV Globo no programa dominical “Fantástico” do dia 8 de outubro de 2017, intitulada “Casos recentes de ódio e intolerância têm se espalhado pelo Brasil”, exibida em rede nacional.69

Figura 6 - Postagem do Jornalivre em 11/10/2017. Fonte: Facebook.

De acordo com outro post do Jornalivre compartilhado na página do MBL, com a exibição dessa reportagem no Fantástico, a Globo teria declarado guerra contra a população brasileira.70 O texto do Jornalivre se inicia com a informação de que, para a Globo, todos os que se manifestaram contra os episódios no MAM-SP e no Santander Cultural são

68 Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2018. 69 Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2018. 70 Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2019. 114

preconceituosos e estão manifestando ódio. O grupo termina com uma bravata, afirmando que a emissora caminhará para a falência se continuar nesse caminho. É evidente que esse discurso, além de ter como alvo as manifestações artísticas pautadas no debate sobre gênero e sexualidade, também se manifesta como ataque à grande mídia.

A Globo, ao noticiar o fato, apropria-se de uma polêmica presente nas redes sociais a fim de obter audiência. O MBL, ao desconstruir o fato noticiado pela Globo, também busca obter audiência. Vemos aqui que há uma relação de interdependência, em que o MBL cria ou se a apropria de uma polêmica, dando a ela grande visibilidade nas redes sociais até que ela se torne pauta de interesse da grande mídia. Com a cobertura jornalística da mídia tradicional, essa visibilidade é potencializada e, a partir disso, o MBL se manifesta para desconstruir os argumentos da reportagem e defender posições que se identificam com os valores dos seguidores e apoiadores do grupo. Logo, o MBL se coloca em evidência por meio da tática de provocar o adversário, no caso, a Globo.

Entre as postagens incluídas no corpus analisado, pelo menos 29 delas, ou 16,7% do total, fazem referência direta à TV Globo, sempre de forma negativa. Em meio a essas postagens, surge a figura de “Dona Regina”, uma senhora que foi entrevistada ao vivo na plateia do programa “Encontro”, exibido na programação matinal da TV Globo, que afirmou ser contrária a performances artísticas como La Bête no MAM-SP, por julgá-las inadequadas ao público infantil.71 Essa senhora, alçada à condição de heroína, aparece em diversos posts na página do MBL no período, figurando também como uma espécie de “meme” da campanha do grupo contra a “pedofilia”, conforme vemos na Figura 7 adiante.

Ao tratar os artistas como uma elite que age contra o povo humilde, representado por Dona Regina, o MBL reforça um antagonismo que era mais comumente explorado pelas esquerdas. Assim, considerando que parte do público não seja impactado pelo jornalismo da TV Globo, o discurso do MBL também mira os produtos de entretenimento da emissora, representados pelo elenco de artistas “globais” que atuam ou participam de novelas ou programas de variedades por ela exibidos.72 É por isso que vários artistas ligados à Globo estiveram no alvo da artilharia do grupo nas redes sociais durante esse período. O maior

71 Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2018. 72 Houve postagens de textos que fazem menção a artistas com projeção nacional e internacional, como Fernanda Montenegro, Wagner Moura, Sônia Braga, José de Abreu, Caetano Veloso e Fábio Assunção, entre outros.

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enfrentamento se deu contra aqueles que o grupo chamava de “elite artística”, como menção aos artistas mobilizados em torno do movimento #342Artes, criado no Rio de Janeiro em resposta aos ataques contra a classe artística, capitaneados pelo MBL e outros grupos conservadores nas redes sociais naquela época.73

Figura 7 - Postagem do Ceticismo Político em 6/10/2017. Fonte: Facebook.

Ao travar essa batalha contra a grande mídia, o MBL cria, ao mesmo tempo, um ambiente propício à disseminação de discursos contra o debate sobre gênero e sexualidade, que também é explorado por meio de postagens variadas nesse período. Até mesmo grandes empresas e grandes marcas foram alvos dessas investidas, como a marca de produtos de limpeza Omo – pertencente à multinacional Unilever –, que divulgou um vídeo publicitário em 6 de outubro de 2017 fazendo menção à liberdade de gênero na infância.74 No dia 10 de outubro de 2017, o site Ceticismo Político divulgou postagem em que destaca o posicionamento do músico

73 Em reação às investidas do MBL contra a classe artística, surgiu o movimento #342Artes, liderado pela produtora Paula Lavigne, ex-mulher do cantor e compositor Caetano Veloso. Foi o suficiente para que o artista se tornasse alvo de uma campanha difamatória, que o acusava da prática do crime de pedofilia. Além de alçar a hashtag #caetanopedofilo aos trending topics mundiais, o MBL propagou nas redes sociais que Caetano teria tirado a virgindade de Lavigne quando ela tinha apenas 13 anos. De acordo com uma postagem do MBL, publicada em 8 de outubro de 2017, “a atriz e militante partidária de extrema esquerda, Paula Lavigne confessou, em entrevista para a Playboy em 1998, que perdeu a virgindade aos 13 anos com Caetano Veloso. Ele já tinha 40”. 74 Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2019.

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Kiko, da banda pop KLB, contra a peça publicitária divulgada pela marca Omo.75 Esse é um dos exemplos em que o MBL se apoiou na fala de outros artistas, mais simpáticos às ideias do grupo, para dar voz à desconstrução de argumentos favoráveis ao que os conservadores chamam de “ideologia de gênero”.

Quando um dos adversários do grupo sofre uma derrota, o MBL também age para dar visibilidade ao fato, como um trunfo a ser comemorado, na página do Facebook e por meio de textos nos sites ligados ao grupo. No período analisado, duas postagens chamaram a atenção por destacarem que um jornalista da Folha de S. Paulo e um professor da rede de ensino Anglo no Rio Grande do Sul tinham sido demitidos após se envolverem em embates com o grupo ou com alguns de seus apoiadores. O Ceticismo Político divulgou texto sobre a demissão de Diego Bargas, então repórter da Folha, que se envolveu em polêmica com o comediante Danilo Gentili durante uma entrevista coletiva.76 Já o Jornalivre anunciou a demissão do professor do colégio Anglo, Antônio Carlos Rizzo Neis, que agrediu fisicamente o YouTuber Arthur do Val durante manifestação em Porto Alegre.77

A tática de desconstrução nesses casos visa à vinculação desses inimigos com a esquerda, que não seria mais representada apenas pelos adversários políticos que atuam na política institucional. Assim, o “esquerdismo” se mostra como um mal a ser combatido em todas as áreas em que os agentes têm a possibilidade de formar opinião, como no jornalismo, na educação, na cultura e na arte. Para alcançar esse objetivo, em clara identificação com os procedimentos da desconstrução, o grupo inicialmente nega o discurso do adversário e depois o reverte, o ressignifica e o expande em favor próprio. Até mesmo as palavras “povo” e “elite” ganham outro uso e não dizem mais respeito ao antagonismo que antes se dava prioritariamente nos campos político e econômico. A elite combatida pelo MBL é aquela para a qual o grupo aponta as armas em um contexto de guerra cultural.

4.4 Procedimentos de contaminação no discurso do MBL

75 Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2018. 76 Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2018. 77 Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2019. 117

O total de 42 textos, que corresponde a 24% do corpus analisado por esta pesquisa, está inserido em categorias que se identificam com os procedimentos da contaminação, de acordo com a abordagem crítica das extremidades. Mais uma vez, a repercussão sobre as manifestações artísticas Queermuseu e La Bête aparece em destaque. Porém, agora é potencializada por meio de uma relação de trocas que visa à contaminação da opinião pública, por meio de discursos propagados pelo MBL nas redes sociais.

Nesse contexto, a viralização de um vídeo que mostra uma criança exposta à nudez do ator Wagner Schwartz, sob a supervisão da mãe, foi o vetor de um dos principais contágios promovidos pelo MBL. No período analisado, foram divulgados na página do grupo no Facebook pelo menos dez postagens de textos que condenavam a participação de uma criança na performance La Bête, destacando quase sempre o vídeo ou imagens estáticas retiradas do vídeo (ver Figura 8). Ao expor de forma ostensiva essas imagens, acompanhadas de frases de efeito expressando indignação, o grupo favoreceu a contaminação do debate polarizado nas redes sociais em torno dessas cenas.78

Figura 8 - Postagem do Jornalivre em 28/9/2017. Fonte: Facebook.

78 Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2019. 118

Há também textos que foram publicados por meio dos sites inseridos no ecossistema político-midiático do MBL com o intuito de relacionar a performance no MAM-SP com a exposição no Santander Cultural, encerrada algumas semanas antes. Apesar disso, havia pouca ou nenhuma relação conceitual entre essas duas manifestações artísticas, a não ser pelo fato de que a classificação etária de ambas não restringia totalmente a entrada de crianças nos espaços expositivos. Outro traço comum a ambas é a nudez artística, que se apresentava em algumas obras da Queermuseu e estava presente também na performance La Bête.

A exploração afetiva da indignação que essas cenas provocaram em parte do público nas redes sociais serviu para que o MBL contaminasse o debate com uma pauta política defendida pelo grupo, que pedia a revogação da chamada Lei Rouanet, que fomenta a cultura no Brasil com recursos públicos.79 O grupo iniciou por meio de postagens no Facebook e textos nos sites ligados ao movimento uma campanha em defesa de uma Ideia Legislativa pedindo a revogação da Lei.80 Nesse aspecto, os artistas que se beneficiam dessa legislação são colocados no mesmo patamar que os políticos corruptos. A diferença, de acordo com a visão propagada pelo MBL, é que estariam utilizando recursos públicos não apenas em proveito próprio, mas também para financiar manifestações artísticas que promoviam a pornografia, a nudez, a “erotização infantil” e, por consequência, a “pedofilia”.

Houve claramente a intenção de gerar mais adesão a essa Ideia Legislativa, que basicamente se trata de uma enquete publicada no site do Senado Federal, permitindo aos cidadãos manifestarem apoio a uma proposição. Portanto, o MBL se mobilizou para divulgar essa ideia e obter a adesão do maior número possível de seguidores, enquanto sustentava o discurso contra a “elite artística”. Para se transformar em Sugestão Legislativa e ser analisada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado, ela deveria ser apoiada por mais de 20.000 pessoas, número que foi ultrapassado em quase cinco vezes no período de pouco mais de um mês.81 Esse número, por si só, demonstra a capacidade de mobilização do grupo por meio de seu ecossistema político-midiático.

79 De acordo com o extinto Ministério da Cultura (MinC), “a Lei Rouanet, como é conhecida a Lei 8.313/91, instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). O nome Rouanet remete a seu criador, o então secretário Nacional de Cultura, o diplomata Sérgio Paulo Rouanet”. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2019. 80 Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2018. 81 De acordo com o Senado Federal, “essa ideia recebeu mais de 20.000 apoios e foi transformada na SUGESTÃO nº 49 de 2017. A CDH debateu e decidiu não transformar a sugestão em projeto de lei”. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2019. 119

Outro discurso, percebido em alguns textos das categorias que analisamos neste tópico, reflete o posicionamento do MBL e seus seguidores a respeito da criminalidade e da violência urbana, defendendo a aplicação de penas mais rigorosas pelo Poder Judiciário e o uso da força policial de forma mais incisiva. Nesse contexto, o grupo também defende pautas identificadas com demandas conservadoras, como o armamento de civis e o fim das chamadas “saidinhas” dos presos, ou seja, a saída temporária de presidiários do regime semiaberto. Esse é um debate que se apresenta por si só polarizado, e o grupo agiu para contaminá-lo ainda mais, como vemos na figura 9, que reproduz uma postagem do Ceticismo Político. O texto se posiciona contra a “narrativa desarmamentista”, que teria se dado em torno de um atentado com armas de fogo ocorrido nos Estados Unidos da América em 2017.82

Figura 9 - Postagem do Ceticismo Político em 6/11/2017. Fonte: Facebook.

Ainda nesse contexto, desponta uma das postagens mais apelativas do grupo no período analisado, que mostra cenas de violência explícita e supostos áudios de “bandidos” que estariam apavorados com atuação das Forças Armadas e da Polícia Militar na Rocinha, no Rio de Janeiro. Dado o formato vertical das imagens – que optamos por não reproduzir nesta dissertação, por

82 Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2018.

120

se tratar de cenas muito violentas –, é possível crer que foram registradas com a câmera de smartphones para circularem por meio do aplicativo de mensagens WhatsApp. Posteriormente, teriam sido transformadas em “pauta” pelo Jornalivre.83 Mais uma vez, o discurso propagado nas redes sociais e aplicativos mensageiros contamina a opinião pública, usando o medo da violência para engajar e mobilizar seguidores.

4.5 Procedimentos de compartilhamento no discurso do MBL

Entre os textos que compõem o nosso corpus, 16% foram incluídos em categorias identificadas com os procedimentos de compartilhamento, ainda de acordo com a abordagem crítica das extremidades. Ao todo, foram 28 textos inseridos nestas categorias, que nos permitiram constatar que os discursos do MBL não estão isolados dos discursos de outros atores que partilham das mesmas posições defendidas pelo grupo. Assim, o ecossistema político- midiático do MBL estabelece outras conexões, formando uma espécie de comunidade interligada por nós que se localizam nas pontas mais extremas, onde se dá o agenciamento dos significados presentes na elaboração discursiva que caracteriza o nosso objeto.

O comediante Danilo Gentili representa muito bem um desses nós, que aglutina figuras com algum grau de celebridade e de exposição midiática identificadas com as ideias propagadas pelo grupo. Portanto, os discursos desses aliados são amplificados e reverberados nos sites que analisamos, como se tivessem sido elaborados por encomenda. Na figura 10, uma postagem destaca que Danilo Gentili fez a “elite artística de extrema esquerda derreter feito vampiros na luz do sol”. No texto, o discurso do comediante é abordado com um ar profético, quase mítico.84

83 Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2019. 84 Disponível em: . Acesso em: 21 já. 2018. 121

Figura 10 - Postagem do Ceticismo Político em 9/10/2017. Fonte: Facebook.

Record e SBT, as duas principais concorrentes da Globo, também aparecem nos mesmos espaços de compartilhamento em que se situam os discursos do MBL, uma vez que abordam algumas pautas a partir de uma perspectiva diferente da líder de audiência, estando mais identificadas, portanto, com as posições defendidas pelo grupo. Silvio Santos, apresentador e dono do SBT, aparece em uma das postagens do Jornalivre como um anticomunista convicto, que compara comunistas a presidiários.85 Já a Record aparece como a principal força de combate ao discurso “pró-pedofilia” dos jornalistas, artistas e apresentadores “globais”. Para explorar o antagonismo criado pelo MBL, o Ceticismo Político divulgou texto em que destaca que a hashtag #ParabénsRecord teria figurado entre as mais utilizadas no Twitter após exibição de matéria “detonando elite artística da Globo”.86

Por fim, entre vários exemplos observados na análise, destacamos um que se mostrou muito representativo das conexões que começavam a se estabelecer no contexto da disputa eleitoral que ocorreria no ano seguinte. No dia 12 de setembro de 2017, o Jornalivre destacou

85 Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2019. 86 Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2018.

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vídeo em que Jair Bolsonaro afirmava que a “imoralidade financiada pelo Santander nasceu em 2010”, como vemos na figura 11.87

Figura 11 - Postagem do Jornalivre em 12/9/2017. Fonte: Facebook.

O então deputado federal trazia à tona o discurso que ele defendia contra o chamado “kit gay”, que deu a ele projeção nacional. Em 2018, o “kit gay” foi tema de polêmicas e de notícias falsas, que teriam sido criadas pela campanha que elegeu Bolsonaro presidente da República, com o apoio do MBL.

Verificamos, portanto, que o debate em torno de temas relacionados ao gênero e à sexualidade foi predominante nos discursos produzidos e compartilhados por meio do ecossistema político-midiático do MBL no período analisado. Por isso, acreditamos que essa temática mereça uma discussão à parte, que será brevemente desenvolvida no quinto e último capítulo desta dissertação. Com isso, visamos aprofundar mais uma camada em nossa análise, a fim de explorar uma possível relação entre o discurso do MBL e a os agenciamentos heteronormativos que afetam as minorias sexuais, intensificados em um cenário de polarização e de radicalização discursiva conservadora.

87 Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2019. 123

5 GÊNERO E SEXUALIDADE NA MIRA DO MBL

De acordo com Foucault (1988, p. 42), “o que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado o sexo, a permanecer na obscuridade, mas o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como segredo”. Segundo o autor, desde o século XVIII o sexo provoca uma espécie de erotismo discursivo generalizado. Isso se deu a partir da instituição de uma polícia do sexo, que tem origens monásticas, a fim de regulá-lo por meio de discursos públicos e não mais com o rigor de uma proibição ou penitência. “E tais discursos sobre o sexo não se multiplicaram fora do poder ou contra ele, porém lá onde ele se exercia e como meio para seu exercício [...]. Desenfurnam-no e obrigam-no a uma existência discursiva” (FOUCAULT, 1988, p. 39). É a partir do reconhecimento desse erotismo discursivo que avançamos mais uma camada além da análise de discursos disseminados por meio do ecossistema político-midiático do MBL que analisamos nesta pesquisa. Ao erotizar a performance La Bête, por exemplo, o grupo, ao mesmo tempo em que condena a presença de uma criança no ambiente em que um homem adulto se mostrava nu, também dá ampla visibilidade às imagens gravadas dessa performance. Paradoxalmente, enquanto as censurava, o MBL as exibia ostensivamente, a fim de contaminar a opinião pública com a ideia de que aquela não era apenas uma performance de nu artístico sem conotação sexual. De fato, apenas como manifestação artística, a performance estava destituída desse erotismo, até ser deslocada do contexto e ser erotizada pelo discurso do grupo nas redes sociais. Dizer que uma criança participou de uma performance artística protagonizada por um artista nu é diferente de dizer que uma criança foi vítima de pedofilia ao ser constrangida a tocar em um homem nu. Segundo Ribeiro (2017), em La Bête, o corpo se assemelha a um brinquedo como um corpo lúdico. Porém, segundo ela, houve um “pseudodebate” nessa ocasião que fugia a essa caracterização, pois o corpo nu só é visto com intenção de choque porque o corpo nu é somente sexual. Portanto, se não estamos vestidos, somos predadores ou objetos sexuais. “Essa mesma visão se pode encontrar nos casos de mulheres impedidas de amamentar em público: o seio exposto não poderia, para alguns, ser outra coisa senão carne sexualizada e obscena” (RIBEIRO, 2017).

Na obra, o artista se disponibiliza para manifestação do público, que pode modificar sua posição, atuar sobre ele como se fosse um brinquedo – a ideia se inspira nos Bichos de Lygia Clark, esculturas que podem ser dispostas em várias formações. Que tenham participado algumas crianças nas vezes em que 124

o trabalho aconteceu no Instituto Goethe e no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo é meramente circunstancial (e, sendo assim, reforço: o acesso dos pequenos à apresentação pode ser revisto segundo perspectivas institucionais e educacionais, sem que se censure a exibição em si). É o conceito da obra o que temos de aprofundar. (RIBEIRO, 2017).

Por não compreender ou se negar a compreender esse conceito, o discurso propagado pelo MBL contra La Bête apela ao que Louro (2018, p. 32) chama de “pânico moral”, alimentado a partir da “evidência da sexualidade na mídia, nas roupas, nos shopping centers, nas músicas, nos programas de TV e em outras múltiplas situações experimentadas pelas crianças e adolescentes”. Em relação à Queermuseu, de forma semelhante, esse pânico moral se instala por intermédio daqueles que viram nas temáticas da exposição uma inadequação representada por algumas obras de arte que, segundo eles, faziam apologia à pedofilia, à zoofilia e à pornografia, além de vilipendiarem imagens religiosas. O curador da exposição, Gaudêncio Fidelis (2018), atribui ao MBL as manifestações que duraram dois dias e algumas horas, culminando no fechamento da exposição 30 dias antes da data prevista. O grupo teria ingressado na exposição para produzir vídeos e fotografias, a fim de construir uma narrativa difamatória e moralista, baseada em apenas cinco de um universo de 264 obras. Segundo Fidelis (2018, p. 19), “eles impulsionaram essa narrativa, já produzida, para as redes sociais, acrescentando a elas elementos adicionais, como o uso de robôs, manipulação de algoritmos e posts pagos com o objetivo de ampliar ao máximo a sua difusão”. O curador considera que o grupo promoveu a censura, enquanto o MBL afirmava que tinha como objetivo o boicote ao banco Santander, que patrocinava a realização da Queermuseu com recursos da Lei Rouanet. Visando, porém, a uma diferenciação entre censura e boicote, Fidelis (2018, p. 23) lembra que os membros do MBL entravam no espaço de exposição com câmeras em punho, “abordando pessoas de todas as faixas etárias, inclusive, chamando-as de pedófilos, depravados, ‘admiradores de pornografia’ e infinitas outras qualificações desabonadoras e constrangedoras”, enquanto gravavam vídeos que circulam até hoje nas redes. Assim, segundo o curador, impediam o livre acesso das pessoas à exposição por meio da intimidação, atribuindo às obras uma narrativa falsa para constranger e intimidar a audiência. Logo, “o objetivo final do MBL foi o fechamento da exposição como forma de estabelecer um precedente moral diante da arena pública de que obras de artes tinham um caráter criminoso e/ou imoral” (FIDELIS, 2018, p. 23).

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O processo de censura e fechamento da Queermuseu envolve uma complexa articulação de criação de uma narrativa falsa e difamatória que se mostrou concatenada e com potencial de rápido ajuste e adaptação pelos diversos segmentos envolvidos, a iniciar pelo Movimento Brasil Livre (MBL), ao qual se juntaram fundamentalistas e outros setores da direita e ultradireita brasileira. Por meio desse plano de ataque, foram escolhidas obras específicas que, uma vez tratadas como pura imagem, foram editadas, descontextualizadas e disseminadas pelas redes sociais. (FIDELIS, 2018, p. 45).

Embora o curador atribua ao MBL a responsabilidade por essas manifestações difamatórias, reportagem do site Época revela que a investida conservadora contra a exposição se iniciou com a publicação de um texto no site Locus, intitulado “Santander promove pedofilia, pornografia e arte profana em Porto Alegre”, cuja autoria é atribuída a Cesar Augusto Cavazzola Junior. Dois dias depois, o blogueiro de direita Felipe Diehl visitou a exposição e gravou um vídeo com uma câmera pequena, classificando as obras como “putaria” e “sacanagem”. “Depois de perguntar a funcionários da exposição se eles eram ‘tarados’ ou ‘pedófilos’ e para alguns adolescentes que estavam ali se eles gostavam de pornografia, Diehl foi convidado a se retirar do local” (TAVARES; AMORIM, 2017). O vídeo de Diehl, publicado em 8 de setembro de 2017 viralizou, assim como outro produzido em parceria com o blogueiro Rafinha BK. Desse modo, também agiram para a erotização de conteúdo exposto com finalidade artística. Ao viralizá-lo, contaminaram a percepção do público sobre as obras de arte e as reduziram a imagens fragmentadas, distribuídas pelas redes com o valor de conteúdo erótico. Segundo Tavares e Amorim (2017), diante das restrições à publicação de alguns conteúdos em páginas do Facebook, o WhatsApp foi a plataforma mais utilizada para que grupos se mobilizassem em torno dessa polêmica. Foi assim, afirma a reportagem, que o MBL entrou na história. A primeira postagem do grupo sobre o caso no Facebook ocorreu na tarde de domingo, quando a exposição já havia sido encerrada. “Mas segundo Renan Santos, um dos fundadores do MBL, no WhatsApp a mobilização começou antes. Células do movimento em todo o país receberam avisos sobre a exposição e um foi repassando para o outro” (TAVARES; AMORIM, 2017).

Sem que nenhum membro do MBL visitasse a Queermuseu, eles decidiram espalhar o apelo pelo boicote ao banco. “Eu não preciso ir à exposição, poderia estar na Groenlândia e ser contra o pressuposto do uso de dinheiro público numa exposição que vilipendia imagens religiosas”, diz Santos. Agora, Diehl, que classifica o MBL como um grupo “socialista fabiano” – ou seja, de esquerda moderada –, reclama que o grupo “levou o crédito” que era seu por ter conseguido fechar a mostra. (TAVARES; AMORIM, 2017). 126

Fidelis (2018, p. 17) afirma que a Queermuseu foi “a primeira exposição com uma abordagem exclusivamente queer já realizada no Brasil e a primeira com essa envergadura na América Latina”. Em defesa da sua proposta curatorial, o curador aborda o conceito de um museu do desvio – ficcional, provisório e periférico. O desvio é tratado nessa concepção como a possibilidade de um encontro com o outro, do qual um corpo se aproxima quando se afasta de si mesmo. Quando “essa entidade corporal se movimenta em direção ao outro percorre o caminho desviante, não um atalho, nem um caminho errado. O desvio é a forma desse caminho paralelo ao raciocínio constituído e institucionalizado” (FIDELIS, 2018, p. 11).

O museu do desvio como chamei aqui foi assim pensado para imprimir igualmente uma virada epistemológica acerca da arte e da memória, a fim de instituir uma perspectiva descolonizada do corpo, da cultura e das subjetividades, incluindo o que podemos definir como a “descolonização da forma artística”. Não por outra razão, incidir sobre o centro da heteronormatividade tornou-se uma necessidade primordial, já que ela é hegemônica e colonizou corpos e mentes na mesma intensidade de pensamento, resultando na falta de espaço para reflexão de forma ampla, fora desse universo de reflexão. (FIDELIS, 2018, p. 13).

Nesse sentido, a Queermuseu se mostra como um desvio em direção à necessidade, apontada por Bento (2017), de descolonizar o debate sobre gênero e sexualidade. Para a autora, elas são “categorias analíticas potentes quando não estão isoladas e não são utilizadas como variáveis independentes de contextos econômicos, raciais e nacionais (e outros marcadores da diferença) mais amplos” (BENTO, 2017, p. 24). Nesse sentido, também se mostra necessário questionar a heterossexualidade como padrão dominante, a partir do qual se avaliam todas as outras sexualidades. Segundo Borillo (2010, p. 31), essa é uma forma específica de dominação chamada heterossexismo, “que se define como a crença na existência de uma hierarquia das sexualidades, em que a heterossexualidade ocupa a posição superior”. Essa forma de dominação se dá por uma oposição que leva à visão binária dominante: “ser homem é, em primeiro lugar e antes de mais nada, não ser mulher; além disso ser heterossexual implica, necessariamente, não ser homossexual” (BORILLO, 2010, p. 33). O autor afirma que, no início do século XX, a sexualidade selvagem de indígenas organizados em comunidades autóctones, em que havia alguma tolerância à homossexualidade, era vista como mais próxima do bestialismo do que da afeição, demonstrando uma exuberância que obcecava as mentes coloniais. “De qualquer modo, por meio de uma retórica moralizadora ou de uma 127

linguagem erudita, a lógica discriminatória funciona segundo uma dialética de oposição entre nós civilizados e eles-selvagens” (BORILLO, 2010, p. 36).

5.1 Da identidade de gênero à “ideologia de gênero”

Como vimos, esse debate não pode avançar tendo apenas a sexualidade como ponto de inflexão, pois é preciso propor essa discussão a partir de uma perspectiva identitária. Para Seffner (2011, p. 41), “a produção de identidades de gênero e sexuais está diretamente envolvida com relações de poder na sociedade, que a todo o momento posicionam homens e mulheres numa hierarquia”. Isso explica, por exemplo, por que homens heterossexuais ocupam os postos de maior poder na hierarquia, que são geralmente reservados a eles, embora algumas mudanças já estejam ocorrendo nesse cenário. Porém, nas palavras do autor, não basta falar de homens ou mulheres, pois há sempre outros marcadores de identidade imbricados nessa discussão. A orientação sexual em geral se articula em torno de três posições: homossexual, heterossexual e bissexual. “Quando associamos identidade de gênero e orientação sexual, podemos falar, por exemplo, em homens homossexuais, mulheres heterossexuais e mulheres homossexuais” (SEFFNER, 2011, p. 41). Para avançarmos ainda mais nesse debate, também é importante compreender que as identidades não são fixas, nem mesmo as relacionadas a gênero, como alguns insistem em acreditar. Do ponto de vista cristão, Deus criou o homem e a mulher, portanto, não se adequar a essa visão binária é visto como um comportamento antinatural. Porém, Louro (2018, p. 13), refletindo a abordagem foucaultiana, afirma que é “no âmbito da cultura e da história que se definem as identidades sociais (todas elas e não apenas as identidades sexuais e de gênero, mas também as identidades de raça, de nacionalidade, de classe etc.)”.

Somos sujeitos de muitas identidades. Essas múltiplas identidades sociais, também, podem ser provisoriamente atraentes e, depois, nos parecerem descartáveis; elas podem ser, então, rejeitadas e abandonadas. Somos sujeitos de identidades transitórias e contingentes. Portanto, as identidades sexuais e de gênero (como todas as identidades sociais) têm o caráter fragmentado, instável, histórico e plural, afirmado pelos teóricos e teóricas culturais. (LOURO, 2018, p. 36).

A autora ressalta que algumas transformações na identidade dos sujeitos são relativamente bem aceitas, como uma nova identidade de classe em que, por exemplo, um operário ascende à condição de patrão ou uma camponesa assume a posição de empresária. 128

Porém, quando se trata da identidade sexual e de gênero, essa aceitação é mais restrita. “A admissão de uma nova identidade sexual ou de uma nova identidade de gênero é considerada uma alteração essencial, uma alteração que atinge a ‘essência’ do sujeito” (LOURO, 2018, p. 15). Esse é um dos motivos pelos quais transexuais compõem o grupo mais estigmatizado e o mais sujeito à violência por ódio, entre os representados pela sigla LGBTI+. Judith Butler (2018, p. 38) defende que o gênero é performativo, ou seja, representamos o gênero que nos foi atribuído no nascimento, “e isso envolve, em um nível inconsciente, ser formado por um conjunto de fantasias alheias que são transmitidas por meio de interpelações de vários tipos”. Portanto, a representação do gênero se dá a partir de normas que nos precedem e atuam sobre nós, as quais somos obrigados a seguir. “Perguntar como essas normas são instaladas e normalizadas é o começo do processo de não tomar a norma como algo certo, de não deixar de perguntar como ela foi instalada e representada, e à custa de quem” (BUTLER, 2018, p. 44). Aqueles que se propõem a questionamentos dessa ordem são os primeiros a serem apontados pelos conservadores como disseminadores da “ideologia de gênero”. Contra essa suposta ideologia são promovidas campanhas baseadas no pânico moral, que dão fôlego aos discursos que colocam qualquer debate sobre gênero e sexualidade como inadequado e nocivo, especialmente às crianças. Não é por acaso que um dos pilares do projeto Escola Sem Partido, do qual o MBL é um dos apoiadores mais contundentes, tenha como objetivo restringir a discussão desses temas nas escolas. Na visão de quem apoia o projeto, ela não deve ser realizada no âmbito escolar e sim no âmbito familiar, de acordo com as convicções de cada família. Porém, segundo Prado e Junqueira (2011, p. 59), “um dos locus privilegiados de (re)produção e disseminação e, ao mesmo tempo, de enfrentamento e desestabilização da homofobia é a escola”. Os autores nos alertam para o fato de que a escola e a família figuram como os espaços onde mais se verifica a discriminação homofóbica, uma vez que representam espaços sociais e institucionais onde ocorre a instituição heteronormativa da sequência “sexo- gênero-sexualidade”. Além disso, conforme aponta Quinalha (2019, p. 262), “os setores conservadores tomaram consciência de que o espaço escolar é o epicentro das disputas de valores em nossa sociedade”. Por outro lado, com o objetivo de combater o preconceito e a violência contra a população LGBTI+, o governo federal lançou em 2011 o “Brasil sem Homofobia”. Segundo Quinalha (2019, p. 262), o programa tinha como um dos eixos principais a formação de educadores para tratar de gênero e sexualidade na escola, dando origem ao material educativo “Escola sem Homofobia”, que foi prontamente batizado de “kit gay” pela bancada evangélica. 129

A alegação era de que o material fazia propaganda e apologia da homossexualidade para as crianças em idade escolar. “Diante da pressão, o governo Dilma cedeu e suspendeu a sua distribuição, o que significou, publicamente, um reforço para as alegações do fundamentalismo religioso. Esse é o histórico por trás do maior espantalho moral das eleições de 2018” (QUINALHA, 2019, p. 262). Para Jean Wyllys (2018, p. 29), “o ‘kit gay’ não passa de um delírio homofóbico, já que a homossexualidade não é fruto de proselitismo”. Na opinião do ex-deputado federal, essa foi uma das fake news, entre outras, que garantiram a vitória de Jair Bolsonaro. “Graças à mentira chamada “kit gay”, e por associá-la a mim [...], Bolsonaro deixou de ser apenas um deputado medíocre do baixo clero e passou a ter alguma relevância no cenário político” (WYLLYS, 2018, p. 29).

De um período em que buscávamos formas de assegurar mais cidadania e maior reconhecimento, retrocedemos para uma discussão infantilizada nas eleições baseadas em mentiras como “mamadeiras eróticas” e “kit gay”. A contaminação do debate público sobre gênero e sexualidade por um obscurantismo perverso já produziu consequências no imaginário brasileiro que dificilmente serão revertidas no curto prazo. (QUINALHA, 2019, p. 270).

É evidente que a reação conservadora ao programa “Brasil sem Homofobia” tem raízes no preconceito contra a população LGBTI+, especialmente expressa por setores mais radicais das igrejas evangélica e católica. Porém, é inegável que essa repercussão negativa também se deu com motivações políticas. Na campanha de 2018, “alegava-se, mais uma vez, que os petistas queriam retomar o kit para convencer crianças a serem homossexuais ou travestis, associando essa suposta sexualização precoce inclusive à prática de pedofilia” (QUINALHA, 2019, p. 262).

5.2 Agenciamentos midiáticos heteronormativos

Como vimos, a heteronormatividade está presente no debate sobre gênero e sexualidade, condicionando-o de acordo com padrões que são reproduzidos pela igreja, pelos políticos e pela escola. De acordo com Melo e Vieira (2012, p. 110), também podemos incluir a mídia, com sua linguagem e suas interfaces, como uma instituição que igualmente produz e reafirma discursos heteronormativos, “que são consumidos sem nenhuma problematização por parte dos sujeitos, levando a uma consciência ‘naturalizada’ da realidade”. Assim, segundo os autores, a mídia também participa dos atravessamentos – ligados entre si e permeados pela heteronormatividade 130

dominante – entre sexualidades, sistemas de gênero, entendimentos sobre o corpo e configurações de identidades coletivas.

Como pode se notar, existe uma perspectiva naturalizante e normativa dos sujeitos e dos comportamentos sociais que engendram a produção de sentidos sobre a representação da sexualidade e das relações de gênero, por meio do agenciamento da linguagem midiática na atualidade. Esses fatores são marcantes e de extrema afetação no contexto da identificação identitária, bem como na visibilidade que se é dada a determinado “gueto”, neste caso a homoafetividade. (MELO; VIEIRA; 2012, p. 113).

Esse agenciamento midiático heteronormativo faz com que muitas vezes os próprios homossexuais assumam posturas homofóbicas em relação a outros homossexuais que, “segundo eles, ‘mancham’ a imagem homossexual e impossibilitam a aceitação da classe como ‘normal’ por tais características e atitudes” (MELO; VIEIRA, 2012, p. 115). Não é de surpreender, portanto, que entre os próprios integrantes da comunidade LGBTI+ haja manifestações de homofobia, lesbofobia e transfobia, muitas vezes reproduzindo argumentos heteronormativos. Nesse sentido, há também a homofobia internalizada, que dificulta a aceitação da própria orientação sexual pelo sujeito. Alguns dos chamados “gays de direita”, por exemplo, cujos perfis foram traçados por uma reportagem da revista Época em setembro de 2018, reconhecem-se homossexuais, ao mesmo tempo em que se afirmam católicos e veem a homossexualidade como pecado. Além disso, dizem defender a família tradicional e acreditam que o movimento LGBTI+ foi monopolizado pela esquerda. Entre os entrevistados, está o vereador e líder do MBL Fernando Holiday, que foi eleito se autoproclamando “gay, negro e de direita”. Segundo a reportagem, além de ser católico, Holiday se apresenta como um homossexual abstêmio.

Havia cerca de sete meses, na ocasião da entrevista gravada em seu gabinete, o vereador não se relacionava com outro rapaz. Por não acreditar que exista a “cura gay”, pretende continuar com sua homossexualidade abstêmica. “O fato de eu namorar outro homem é um pecado. O fato de eu ter um desejo constante por outra pessoa do mesmo sexo, mas não fazer isso, não é um pecado. É a única saída em estar na Igreja Católica e ser homossexual.” (THOMAZ, 2018).

A relação com o desejo, portanto, mostra-se bastante simbólica do ponto de vista do objeto que analisamos. Voltando ao exemplo em que o MBL “erotiza” manifestações artísticas, ao mesmo tempo em que as desconstrói, as contamina e as compartilha, atua no campo do desejo para aguçar o interesse dos seguidores pelas narrativas criadas pelo grupo. Assim, o 131

desejo se transforma em impulso, manifestado na forma de curtidas, comentários e compartilhamentos. Segundo Rolnik (2018, p. 74), as xenofobias, as islamofobias, as homofobias, as transfobias, os racismos, os machismos, os chauvinismos e os nacionalismos se relacionam com desejos que levam a ações extremamente agressivas, em que o outro é transformado em bode expiatório. “E esse outro demonizado pode ser uma pessoa, um povo, uma cor de pele, uma classe social, um tipo de sexualidade, uma ideologia, um partido, um chefe de estado etc.” (ROLNIK, 2018, p. 74). A autora afirma que o desejo funciona como uma arma micropolítica:

Em vez da força das armas militares, as armas de que se utiliza o capitalismo globalitário são de duas ordens: a força pulsional e seu porta-voz, o desejo, sua arma micropolítica, articulada com as forças políticas locais mais reativas, sua arma macropolítica. (ROLNIK, 2018, p. 80).

Na perspectiva da autora, as armas macropolíticas estariam relacionadas às forças conservadoras remanescentes de um capitalismo pré-financeirizado, caracterizadas por uma mentalidade arcaica, pré-republicana, colonial e escravocrata. A autora relaciona essas figuras com os deputados ruralistas e donos do agronegócio, além dos deputados evangélicos. Segundo Rolnik (2018, p. 81), esses personagens “são usados como laranjas para fazer o trabalho sujo de expulsão de cena dos políticos progressistas, preparando o terreno para a tomada de poder pelo capitalismo financeirizado, mundial por sua própria natureza”.

5.3 A estética alt-right e os discursos de ódio

No Brasil e no mundo, ascende uma estética política alternativa, que dialoga com o desejo de mudança de parcelas significativas da população, por meio de uma discursividade antissistema agressiva, geradora de imagens e narrativas que visam à desconstrução, à contaminação e ao compartilhamento. A atuação da chamada Alternative Right nos Estados Unidos da América foi determinante para que essa nova estética política tomasse forma, tendo os sites de redes sociais como o locus principal para a ação política coordenada ou orgânica. Segundo Marwick e Lewis (2017, p. 9), “grupos de supremacistas brancos e nacionalistas brancos há muito tempo usam a web na esperança de recrutar novos membros, mas o surgimento da autointitulada ‘alt-right’ aumentou sua visibilidade”.88

88 Tradução livre. No original: “White supremacist and white nationalist groups have long used the web in the hopes of recruiting new members, but the emergence of the self-styled ‘alt-right’ has increased their visibility”. 132

A Alt Right, abreviação de “direita alternativa”, é um movimento de extrema direita relativamente organizado que compartilha o desprezo pelo multiculturalismo liberal e pelo conservadorismo convencional; uma crença de que algumas pessoas são inerentemente superiores às outras; uma forte presença na Internet e o envolvimento de elementos específicos da cultura online; e uma auto-apresentação como sendo nova, moderna e irreverente. Baseada principalmente nos Estados Unidos, a ideologia Alt Right combina o nacionalismo branco, a misoginia, o antissemitismo e o autoritarismo em várias formas e estilos políticos, desde argumentos intelectuais até invectivas violentas. (LYONS, 2017, p. 2).89

De acordo com Marwick e Lewis (2017), o termo alternative right foi cunhado em 2008 por Richard Spencer, criador da publicação AlternativeRight.com e chefe de um think tank nacionalista branco, o National Policy Institute (NPI). Inicialmente, o termo foi usado para descrever visões políticas de direita que não estariam de acordo com o establishment político conservador. Porém, o termo atualmente se mostra impreciso, sendo utilizado para descrever uma cultura de “trolagem”, que também abomina o establishment, usando da ironia, das piadas internas e de falas extremistas para provocar outras pessoas. Por outro lado, também diz respeito a uma agremiação, ainda que superficial, de blogs, fóruns, podcasts e personalidades do Twitter que se unem por ódio ao liberalismo, ao feminismo e ao multiculturalismo. Ambedkar (2017) descreve a estética da alt-right, listando as suas principais características: 1) culto à tradição que idealiza um passado primordial; 2) medo da diferença, seja a diferença sexual, de gênero, religiosa ou racial; 3) culto à masculinidade, que tende a se manifestar em uma obsessão com a política sexual; 4) hostilidade em relação à política parlamentar, à criticidade e à razão; 5) crença na guerra permanente e um culto correspondente da ação pela ação; 6) culto à tecnologia, mas não à razão do Iluminismo e sim por meio de uma fé na tecnologia como forma de conquistar e reafirmar o anti-igualitarismo. É importante observar que algumas dessas características citadas por Ambedkar (2017) se assemelham a características listadas por Eco (2018, p. 44-59) para descrever o que ele chamava de “Ur-Fascismo” ou “fascismo eterno”, tais como: o culto à tradição, o culto da ação

89 Tradução livre. No original: “The Alt Right, short for ‘alternative right’, is a loosely organized far-right movement that shares a contempt for both liberal multiculturalism and mainstream conservatism; a belief that some people are inherently superior to others; a strong internet presence and embrace of specific elements of online culture; and a self-presentation as being new, hip, and irreverent. Based primarily in the United States, Alt Right ideology combines White nationalism, misogyny, antisemitism, and authoritarianism in various forms and in political styles ranging from intellectual argument to violent invective”. 133

pela ação e a transferência da vontade de poder para questões sexuais (que origina o machismo). “Tais características não podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista” (ECO, 2018, p. 44). “O ‘culto da tradição’ surge em movimentos marginais associados à alt-right que defendem o retorno a um passado imaginário em que os homens eram homens, a imigração era limitada e assim por diante” (MARWICK; LEWIS, 2017, p. 12). Não surpreende que, de forma irônica ou sincera, os representantes da alt-right muitas vezes recorram ao imaginário nazista e ao antissemitismo. Portanto, não é difícil perceber que a estética da chamada “direita alternativa” se identifica com uma retórica anti-imigração, explorada por Donald Trump durante a campanha em 2016.

Para os que se veem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. [...] O modo mais fácil de fazer emergir uma conspiração é fazer apelo à xenofobia. (ECO, 2018, p. 50-51).

Segundo Lyons (2017, p. 2), a alt-right usa os memes da internet para “ganhar visibilidade, reunir apoiadores e mirar em oponentes”. Portanto, os memes estão no centro da estética política da direita alternativa norte-americana. Para distribui-los, são utilizados sites de imageboard, como o 4chan e o 8chan, que consistem em fóruns de discussão com texto e imagem, em que as postagens podem ser feitas de forma anônima. Outros tipos de fóruns, baseados em subcomunidades do site Reddit, também são utilizados, sem contar os inúmeros sites e blogs alimentados por direitistas ligados à alt-right. Como verificamos no capítulo 2, os memes também têm um papel fundamental para a distribuição das narrativas criadas por grupos da direita brasileira, como o próprio MBL. Outro exemplo é o vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, que já chegou a compartilhar meme anteriormente publicado no 4chan, associando a homossexualidade à pedofilia. De acordo com Greenwald (2018), Carlos postou uma imagem falsificada no Twitter para afirmar que grupos LGBTI+ estariam agora defendendo a pedofilia. Trata-se de um pôster com a alegação de que o movimento LGBTI+ teria adicionado a letra “P” à sua sigla para incluir 134

os “pedosexuais”. Porém, essa é uma fraude antiga na internet que já foi desmascarada por diversos sites de fact-checking, entre eles, o renomado Snopes.90

O ódio ostensivo aos LGBTs se tornou um eixo central da cada vez mais poderosa família Bolsonaro e dos setores retrógrados do movimento evangélico brasileiro (que não representa de forma alguma todos os evangélicos brasileiros, muitos dos quais são progressistas ou contrários à Bolsonaro por outras razões). [...] Esse último episódio, entretanto, vai muito além de mera homofobia. Bolsonaro, um político eleito, está usado o Twitter, e, de modo indireto, o Instagram, para disseminar para centenas de milhares, se não milhões de pessoas, uma fraude comprovada cujo único propósito é incitar ódio conta LGBTs – num país em que a violência conta LGBTs é uma epidemia e vem sendo incentivada diariamente por esse movimento proto- facista que vem crescendo. (GREENWALD, 2018).

Esse é um exemplo claro de uma situação em que a desinformação é combinada com o discurso de ódio, por meio de uma perfeita simbiose, em que um elemento potencializa o efeito do outro. Vimos essa mesma combinação na divulgação da informação falsa de que Marielle Franco era ligada a um traficante, compartilhada pelo MBL e outras figuras proeminentes da ultradireita. Essa fake news baseou-se no mais puro discurso de ódio fundamentado no racismo, que se manifesta por meio da criminalização sistemática do povo negro e da população das favelas brasileiras. De modo semelhante, associar a pedofilia à população LGBTI+ é também uma forma de criminalização. Em busca de uma definição para “discurso de ódio”, recorremos à abordagem da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Segundo legislação citada por publicação da Unesco, “discurso de ódio refere-se a expressões que defendem o incitamento ao dano (particularmente, discriminação, hostilidade ou violência) com base na identificação da vítima com um determinado grupo social ou demográfico”.91 (GAGLIARDONE et al., 2015, p. 10).

Pode incluir, mas não se limita a discursos que defendam, ameacem ou encorajem atos violentos. Para alguns, no entanto, o conceito se estende também a expressões que estimulam um clima de preconceito e intolerância,

90 Disponível em: . Acesso em: 6 abr. 2019. 91 Tradução livre. No original: “hate speech refers to expressions that advocate incitement to harm (particularly, discrimination, hostility or violence) based upon the target’s being identified with a certain social or demographic group”.

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partindo do pressuposto de que isso pode estimular discriminação, hostilidade e ataques violentos direcionados. (GAGLIARDONE et al., 2015, p. 10).92

Ao discorrer sobre os desafios para combater a proliferação dos discursos de ódio compartilhados on-line, que se tornam cada vez mais comuns, Gagliardone et al. (2015, p. 13- 15) mencionam que as medidas legais aplicáveis a outras mídias se mostram ineficientes e inapropriadas para as mídias digitais. Para começar, o discurso de ódio tende a permanecer por muito mais tempo nas redes, em diferentes formatos e plataformas, podendo ser referenciado infinitamente por meio de links em outros sites. Outra característica é o aspecto itinerante desses conteúdos, que se proliferam mesmo depois de removidos, podendo aparecer novamente na mesma plataforma com um nome de arquivo diferente ou em outros espaços. Por fim, o anonimato dos responsáveis pela disseminação de discursos de ódio também se coloca como um grande desafio. E, mesmo quando os autores são identificados, o caráter transnacional da internet exige uma cooperação jurídica entre diferentes países para que medidas legais sejam tomadas, o que nem sempre acontece. No Brasil, embora não seja possível afirmar que haja grupos plenamente identificados com as ideias da alt-right – ou, pelo menos, não de forma declarada –, é possível deduzir que há aqueles que se espelham ou se inspiram nelas. Em um país marcado pela miscigenação, a ideia de uma supremacia branca não faz muito sentido. Também não se justifica uma retórica anti-imigração, já que o fluxo de imigrantes vindo de outros países atualmente não faz da imigração uma situação tão problemática por aqui. Então, o que resta aos grupos que se identificam, em maior ou menor grau, com o modelo da alt-right norte-americana é tratar como estrangeiros aqueles que pensam e vivem de forma diferente da suposta maioria, como os “esquerdistas”, os “comunistas”, a população LGBTI+, os indígenas e os quilombolas, entre outros.

92 Tradução livre. No original: “It may include, but is not limited to, speech that advocates, threatens, or encourages violent acts. For some, however, the concept extends also to expressions that foster a climate of prejudice and intolerance on the assumption that this may fuel targeted discrimination, hostility and violent attacks”. 136

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando esta pesquisa foi iniciada, o conceito de “pós-verdade” ainda era embrionário, havendo pouca literatura disponível que pudesse auxiliar na compreensão e na análise dos fenômenos político-midiáticos a ele relacionados. Entre os materiais disponíveis, grande parte se relacionava à eleição de Donald Trump e ao plebiscito do Brexit, tendo sido, portanto, majoritariamente produzidos por autores norte-americanos ou britânicos, muitas vezes a partir de uma perspectiva partidarizada por parte daqueles que se opunham a Trump ou ao Brexit. Embora já houvesse indícios de que os efeitos da chamada pós-verdade já eram sentidos na política de outros países, incluindo os latino-americanos e asiáticos, o debate ainda estava colonizado pelas perspectivas dos dois países de língua inglesa.

Àquela época, há cerca de dois anos, esta pesquisa foi iniciada com o desafio de descolonizar a perspectiva da pós-verdade e debatê-la a partir da realidade político-midiática brasileira. Assim, sem ignorar o que havia ocorrido ao Norte do Equador, iniciamos a nossa observação de fenômenos que pudessem ter relação com esse conceito localmente. Embora ele se apresentasse como novo, estava relacionado a práticas e pensamentos que remontam, principalmente, ao século XX e, em certa medida, ao início da civilização ocidental. Não havia, portanto, nada de tão novo ao Sul do Equador, como foi observado. E, mesmo que o prefixo “pós” remeta ao frescor e à novidade trazida pela observação de fenômenos tidos como novos, estamos falando aqui, necessariamente, de um retorno ao passado ou de um aprofundamento de características do passado na política.

Não é por acaso que a retórica dos políticos na chamada era da pós-verdade passe muitas vezes pela negação do presente e pela exaltação do passado. São as vozes que ecoam nas mentes dos cidadãos fixando a ideia de que tudo era melhor quando havia menos imigrantes, quando os militares governavam o país ou quando identidades sexuais fora do padrão heteronormativo ficavam restritas a quatro paredes. Portanto, à medida em que esta pesquisa avançava, ficava mais claro que as explicações que ela buscava estavam, principalmente, no passado. Porém, talvez não em um passado tão distante.

Como sabemos, o Movimento Brasil Livre e outros grupos políticos que estiveram em evidência a partir das manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff são formados em sua maioria por jovens, boa parte deles nativos digitais. Portanto, parece paradoxal analisar a ação político-midiática do MBL com um olhar voltado ao passado. O curioso é observar, a partir da própria perspectiva em que se insere o grupo, um retorno ao conservadorismo 137

travestido de “neoconservadorismo”, de quem é “liberal na economia, mas conservador nos costumes”. Assim, defende-se uma nova política que não rompe totalmente com a velha. A nossa pretensão aqui não é afirmar que uma é melhor do que a outra, mas sim questionar esse status de novidade, que se percebe apenas no uso de novas TIC para mobilizar o eleitorado e manipular a opinião pública. Portanto, a forma pode até ser nova, mas o conteúdo dos discursos se mostra cada vez mais influenciado pelo passado. Essa é uma das principais conclusões a que chegamos por meio desta pesquisa.

Ao reconhecermos que a pós-verdade não trata somente de fenômenos novos, pelo menos não no conteúdo dos discursos e das conversações públicas, concluímos que ela aprofunda divisões que já existiam em outras épocas. Elas podem até ter sido atenuadas em algum momento, mas agora retornam com toda força à esfera pública, potencializadas pelas possibilidades de desconstrução, contaminação e compartilhamento das mídias digitais. Ao criar polêmicas e gerar novas narrativas que se inserem nessa disputa, a desinformação acelera o aprofundamento dessas divisões. Para isso, cria incertezas em torno de crenças intersubjetivas historicamente arraigadas à inteligência coletiva de grupos antagônicos. Informações falsas disseminadas com efeito de verdade são, portanto, desestabilizadoras das crenças intersubjetivas por meio da polarização do debate público. Por isso, a reação natural de quem se situa no campo oposto ao de quem dissemina falsidades é desacreditar tudo o que o adversário diz, mesmo que para isso também tenha que apelar às falsidades. Então, ambos os lados se veem diante de uma armadilha conceitual e discursiva, da qual é quase impossível se desvencilhar.

Para que esta pesquisa também não caia nessa armadilha, uma vez que este pesquisador se situa em campo político oposto ao do grupo cujos discursos foram objeto de análise, o foco da pesquisa se desviou um pouco da problematização em torno das fake news e passou a se situar no ecossistema político-midiático capitaneado pelo MBL, em que podia ou não haver a divulgação de informações falsas. Desse modo, reforçamos que esta pesquisa não teve como objetivo mensurar ou analisar, quantitativa ou qualitativamente, a produção de notícias falsas pelo grupo. Porém, a partir da análise dos conteúdos incluídos no corpus, é possível concluir que o MBL, intencionalmente ou não, criou condições favoráveis à divulgação de informações falsas por meio dos sites e blogs que compunham esse ecossistema no período analisado.

Conforme reportagens da grande imprensa, o grupo de fato atuou para divulgar notícias falsas em algumas circunstâncias. Porém, percebemos que essa talvez não seja a maior vocação do MBL em sua ação político-midiática, pois sabemos que há outros agentes dedicados à 138

divulgação de fake news em grande escala na internet, com motivações muito mais comerciais do que políticas, atuando em escritórios clandestinos a serviço da desinformação. O negócio do MBL, por assim dizer, está mais relacionado à geração de narrativas e memes para influenciar o debate público e provocar os oponentes de modo a se manter em evidência. Nesse esforço, algumas informações falsas ou não verificadas podem ter sido compartilhadas pelo MBL com o objetivo de provocar polêmicas ou chamar a atenção. Como vimos, o objetivo do grupo é se manter influente junto a um público disperso nas redes sociais, cuja atenção é quase toda monopolizada pelos produtos da “sociedade do espetáculo”, como os vídeos virais com gatinhos, bebês etc. Mais do que isso, o MBL atua para converter esse público em seguidores e, posteriormente, em eleitores.

Ao mirar no eleitorado conservador, que se aglutina principalmente em torno das chamadas bancadas da Bíblia (evangélicos), do Boi (agronegócio) e da Bala (armamentistas), o MBL não apenas escolhe um dos lados para se situar na disputa como também busca atingir uma parcela muito expressiva do eleitorado que não se identifica mais com o pensamento e com as políticas da esquerda. Em paralelo, com uma roupagem mais moderna e descolada, transmite a mensagem para os mais jovens de que é possível ser cool sem ser esquerdista. Portanto, a disputa do MBL também é identitária e, por isso, passa pela desconstrução de setores de uma indústria cultural que o grupo julga estar dominada por jornalistas, artistas, professores e intelectuais de esquerda. Para isso, tenta superar também a imagem antiquada e aristocrática que é vinculada aos políticos de direita mais tradicionais. Como, aparentemente, é mais difícil promover transformações culturais entre o eleitorado no curto prazo do que obter dele resultados eleitorais expressivos a cada dois anos, o grupo persegue os dois objetivos concomitantemente.

Do ponto de vista do marketing político, o MBL se mostra bastante arrojado e eficiente, à frente de muitos partidos da chamada velha política. Porém, dela se aproxima quando apela ao discurso do “nós contra eles”, que apenas reafirma e aprofunda as diferenças. Isso é demonstrado, principalmente, nos discursos contra os grupos que o MBL alinha automaticamente à esquerda, como aqueles que se propuseram a defender a exposição Queermuseu e a performance La Bête como manifestações artísticas. A oposição e a campanha do grupo nas redes sociais contra esses dois acontecimentos no campo da arte demonstraram que o MBL esteve empenhado em uma guerra cultural, que não sabemos ao certo se o grupo venceu, dados os processos a que respondeu, sendo obrigado a retirar conteúdos da página no 139

Facebook por decisão judicial ou tendo até mesmo algumas páginas vinculadas ao grupo suspensas.

No caso da Queermuseu, avaliamos que o grupo foi bem-sucedido inicialmente. Porém, ao visitarmos a exposição, depois de ela ter sido reinaugurada na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 16 de agosto de 2018, percebemos que campanhas baseadas no pânico moral têm suas limitações. A polêmica criada em torno da exposição pelo MBL, por outro lado, despertou a curiosidade do público pelas obras e o apoio de setores mais progressistas da sociedade brasileira que se uniram para que a Queermuseu fosse remontada. Para isso, foi realizada a maior campanha de financiamento coletivo do país, que arrecadou mais de 1 milhão de reais por meio de doações de pessoas, além da doação de obras de arte por 70 artistas e a realização de um show de Caetano Veloso com recursos destinados à exposição.

Dessa vez, o MBL não agiu com tanto afinco no combate à exposição, já que não seria possível afirmar que houve financiamento com dinheiro público e também por se tratar de ano eleitoral, quando provavelmente o grupo estava mais empenhado na campanha para eleger alguns de seus líderes que eram candidatos. Como a remontagem da exposição ocorreu em um período que estava fora do nosso recorte temporal, não temos dados de postagens que mostrem como o grupo repercutiu a reabertura da Queermuseu em 2018. Porém, o grupo participou de um tímido protesto no dia da abertura da exposição no Parque Lage, que também foi repercutido pela grande mídia, mas sem tanto alarde.

Durante a visita realizada no dia 15 de setembro de 2018, véspera do encerramento da Queermuseu no Rio de Janeiro, via-se um público bastante diverso circulando nas cavalariças da EAV, onde estavam expostas as obras de 84 artistas – entre eles, Adriana Varejão, Volpi, Lygia Clark e Leonilson. Havia inclusive muitos idosos e crianças de colo acompanhadas pelos pais. Porém, após terminar a visitação, ao utilizar os sanitários do Parque Lage, foi possível ouvir um dos seguranças do lado de fora comentar que o banheiro nunca esteve tão limpo e que só estava assim graças ao dinheiro dos “viados” e da Rede Globo. Nessa fala, por si só, percebemos um importante elemento que havia sido explorado pelo MBL na ocasião da primeira Queermuseu, quando o grupo fazia menção à Globo como disseminadora de valores contrários ao povo brasileiro.

É por isso que não poderíamos concluir sem abordar a batalha do MBL travada contra a mídia tradicional. O embate com a grande mídia protagonizado pelo MBL em 2017 continuou no ano seguinte, embora de forma mais localizada, manifestando-se a cada vez que algum veículo publicava alguma matéria negativa sobre o movimento. Observamos que o jornal O 140

Globo e a revista Época, ambas do Grupo Globo, foram as publicações que mais divulgaram esse tipo de reportagem, especialmente quando foi revelado o envolvimento do grupo com a página que divulgou fake news sobre Marielle Franco e também quando o Facebook suspendeu páginas com perfis falsos que também teriam ligação com o MBL. Após as eleições de 2018, vimos um aumento da indisposição dos ultradireitistas com a grande mídia, especialmente por parte de Jair Bolsonaro, que trata o Grupo Globo e o , duas das principais organizações empresariais do setor de comunicação no país, como inimigos declarados. Ataques semelhantes aos que os sites ligados ao MBL faziam em 2017 são agora verbalizados por um presidente da República contra a grande mídia.

Em 2019, a novidade é que líderes do MBL, especialmente aqueles que foram eleitos para cargos no Legislativo, começam a assumir uma postura menos hostil em relação à imprensa, concedendo entrevistas para alguns dos veículos que eles atacavam no passado, como a Folha de S. Paulo. Desse modo, o grupo tenta ocupar um espaço que a direita mais radicalizada, ligada a Bolsonaro, deixa de ocupar, devido ao antagonismo que o presidente mantém em relação a parte da grande mídia. O MBL, por sua vez, assumindo um discurso mais pacífico e conciliador, pode se consolidar como o porta-voz de uma direita cool e menos radical. Pelo menos, por enquanto. Afinal, como vimos, a ação do movimento é sempre marcada por uma fluidez e por uma temporalidade nas narrativas que não nos permitem prever com exatidão qual será o discurso dele amanhã.

Com esta dissertação de mestrado esperamos, portanto, contribuir para futuras observações, registros e análises de fenômenos que, provavelmente, tornar-se-ão mais frequentes nesse novo cenário político que o Brasil iniciou em 2019. Há muitos motivos para crer que as ações político-midiáticas encabeçadas pelos grupos conservadores ligados à ultradireita brasileira, semelhantes às que analisamos aqui, serão cada vez mais comuns e poderão ser até mesmo aperfeiçoadas. Isso exigirá também um aperfeiçoamento das ações político-midiáticas dos que estão situados no campo progressista nesse debate. É necessário, antes de tudo, reconhecer que os conservadores foram mais eficientes em suas estratégias discursivas nas redes sociais, que geraram a adesão de 57,7 milhões de brasileiros a um projeto político que aponta mais para o passado do que para o futuro, ou seja, um projeto típico da pós- verdade. Além disso, não basta responder às provocações feitas para alimentar o ódio e aprofundar as divisões, essenciais à política do “nós contra eles”. Precisamos fortalecer o “nós” e os “nós” que nos conectam aos outros e a nós mesmos.

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