MULHERES NEGRAS: VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA NO DISTRITO DA VILA BRASILÂNDIA

MARIA ISABEL DE ASSIS

Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais Área de Concentração: Antropologia Social

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2005

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MARIA ISABEL DE ASSIS

MULHERES NEGRAS: Violência e Resistência no Distrito da Vila Brasilândia

Dissertação apresentada a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do titulo de Mestre em Ciências Sociais sob a orientação da Profª Drª Teresinha Bernardo.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo SÃO PAULO 2005 III

Banca Examinadora

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Para meus filhos: Ítalo e William; neta(os): Lais, Vinícius e Nícolas. V

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 1

CAPITULO 1 - ETNOGRAFIA DA REGIÃO PESQUISADA...... 24 O Distrito da Vila Brasilândia descrita por um olhar feminino negro...... 25 Vila Brasilândia: agregação e desagregação...... 37 Periferias e favelas, desterritorialização e segregação...... 50

CAPITULO 2 FRAGMENTOS DA MEMÓRIA E TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS...... 58 A questão do trabalho ...... 76 A morte e a perda...... 92

CAPITULO 3 - VIOLENCIA, GENERO E MEDO NA PERSPECTIVA DAS RELACOES RACIAIS...... 99 Entre o medo e o abandono,...... 109 Violência e medo no cotidiano da periferia...... 119

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 137

PERIODICOS...... 141

ANEXOS...... 142 Aspectos éticos...... Índice distrital de homicídio geral da cidade de São Paulo...... Índice distrital de desenvolvimento humano na cidade de S Paulo

Índice distrital de anos potenciais de vida perdidos na cidade de São Paulo......

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ÍNDICE DE GRÁFICOS

Gráfico 1 Taxa de homicídios praticados pelas polícias civil e militar...... 4 Gráfico 2 Taxa de homicídios entre brancos e negros...... 4

Gráfico 3 Taxa de homicídios entre indivíduos sem antecedentes criminais...... 5

Gráfico 4 Taxa de homicídios segundo sexo...... 5

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ÍNDICE DE MAPAS

Mapa 1 Distribuição de Mulheres Negras chefe de família...... 9 Distribuição da população com rendimento até dois Mapa 2 salários mínimos...... 22 Vulnerabilidade dos setores censitários e locais de Mapa 3 57 homicídio de jovens......

Mapa 4 Distribuição da população negra nas favelas de S.p...... 130

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ÍNDICE DE FOTOS

Foto 1 Vila Brasilândia em 1940...... X Foto 2 Imagem parcial do Distrito da Brasilândia em 1950...... 26 Foto 3 Largo da Igreja Matriz de Vila Brasilândia em 1948...... 31 Foto 4 Largo da Igreja Matriz de Vila Brasilândia e 1ª comunhão,1958 32 Cerimônia de Casamento “Afro” na Paróquia Santo Antonio de Foto 5 36 Vila Brasilândia...... Cerimônia de Casamento “Afro” na Paróquia Santo Antonio de Foto 6 36 Vila Brasilândia......

Foto 7 Largo e Igreja Matriz de Vila Brasilândia em 2004...... 37 Foto 8 Igreja Congregação Cristã no Brasil de Vila Brasilândia...... 38 Foto 9 Igreja Universal do Reino de Deus de Vila Brasilândia...... 39 Foto 10 Rua Parapuã...... 40 Foto 11 Rua Parapuã...... 42 Foto 12 Antiga quadra da Sociedade Rosas de Ouro...... 44 Foto 13 Atual quadra da Sociedade Rosas de Ouro...... 45 Foto 14 Desfile da Sociedade Rosas de Ouro no Sambódromo em SP 45 Foto 15 Imagem parcial do Distrito de Vila Brasilândia em 2003...... 49 Realização de trabalho coletivo entre moradores do Jardim Foto 16 51 Icaraí...... Realização de trabalho coletivo entre moradores do Jardim Foto 17 52 Icaraí......

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RECORTE JORNAL

Recorte 1 - Jornal Boca do Bairro – ano 1 – nº 0 de 23/03 a 24/04/80 ...... 29

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VILA BRASILÂNDIA

21 quilômetros quadrados Total da população, 247.328, População negra, 39,7% Taxa de emprego por habitante, 0,16% Renda média familiar em salários mínimos, 7,38 Chefes de família sem instrução, 10, 04% Chefes de família com 15 anos ou mais de escolaridade, 1,98%. Número de homicídios por cada 100 mil habitantes 92, 311.

Foto nº1 Brasilândia nos anos 40, rua Diogo Veja

1 Fonte: Mapa da Exclusão/Inclusão da Cidade de São Paulo/2000 XI

RESUMO A cidade de São Paulo, além das regiões Norte, Sul, Leste e Oeste, tem seu território dividido em 96 Sub Distritos. A Vila Brasilândia, lugar onde se desenvolveu esta pesquisa, representa um dos maiores distritos desta metrópole. Distante do Centro de São Paulo em aproximadamente 15 quilômetros, e retratada pelos veículos de comunicação como um lugar de violência extremada, cujo estigma acarreta aos seus moradores(as) diversas discriminações como o preterimento na disputa por trabalho. Estudos e pesquisas têm sido realizados na região, com a preocupação de retratar sob diversas óticas a sua ocupação e expansão, assim como a dinâmica das relações locais. A Vila Brasilândia está entre os distritos com maior concentração de negros(as), que segundo o IBGE representa 39,7% da população da cidade de São Paulo. Contudo, esta representação, em algumas localidades deste Distrito atinge cerca de 60% do total de moradores, a qual decorre de diversos fatores. Este fenômeno representa um mecanismo de expulsão dos segmentos com menor poder aquisitivo das áreas consolidadas. Todavia, a oferta de serviços não ocorre na mesma proporção do crescimento acelerado. Neste sentido, esboçar estes contornos numa perspectiva histórica foi necessário porque esta pesquisa se realiza também no sentido de focalizar o processo de acentuação da violência no cotidiano das mulheres negras cuja chefia da família está relacionada a morte violenta do companheiro, residentes no Distrito da Vila Brasilândia. A pesquisa revelou que as interfaces da violência com gênero e raça, contribuem para rum cotidiano conturbado, assim como para desagregação das relações entre as pessoas. Revelou também a maneira que estas mulheres estão sendo absorvidas pela luta pela sobrevivência, sua e de sua família. Mostrou inclusive que apesar das periferias serem apontadas como lócus privilegiado da violência esta não são singulares aos segmentos que a ocupam. Evidenciou que a dinâmica da sociedade moderna além de destituir a população dos elementos agregadores das relações, elabora outros que contribuem para o estabelecimento de uma distância entre os grupos que nela habitam.

PALAVRAS CHAVE – GÊNERO, RAÇA E VIOLÊNCIA. XII

ABSTRACT The city of São Paulo, beyond de regions North, South, East and West, has its territory divided in 96 Sub-Districts. The Brasilândia Village, placwe where if it developed this research, represents one of tehe biggest districts of this metropolis. Distant of the center of São Paulo in approximately 15 kilometers, and portraied for the communication vehicles as a palce of distinguished violence, whose stigma causes to its residents several discriminations as the desadvantage in competition for work. Studies and research have been carried trhough in the region, which the concern to portray under several optics its occupation and expansion, as well as the dynamics of the places relations. The Brasilândia Village is among the districts which bigger concentratio of blacks, that according to IBGE represents 39.7% of São Paulo city populations’s. However, this representation, in same localitie of this District reaches about 60% of the total of inhabitants, which elapses of several factors. This phenomenon represents a mechanism of expulsion of the segments which smaller purchasing power of the consolidade areas. Howevwer, it offers of services does not occur in the same ratio of the sped up up growth. In this direction, to sketch these contours in a historical perspective was necessary because this research if also carries through in the direction to focus the process to enlarge of the violence in the daily one of the black women whose it commands of the family is related the violent death of the friend, residents in the District of the Brasilândia Village. The research disclosed that the interfaces of the violence which gender and race, contributes for difficulty daily, as for disaggregation of the relations between the people. It also disclosed the way that these women are being absorbed for the fight for the survival, its and of its family. It also showed that despite the peripheries being pointed as palce privileged of the violence this is not singular to segments that occupy it. It evidenced that the dinamics of the modern society besides dismissing the population of the elements agregadores of the relations, elaborates others that contribute for the establishment of s distance among the goups that in ihnabit.

WORDS KEY: GENDER, RACE AND VIOLENCE XIII

AGRADECIMENTOS Realizar esta incursão pelos campos do conhecimento só foi possível porque pude contar com apóio incondicional de pessoas de minhas relações pessoais, acadêmicas. Primeiramente agradeço a minha estimada orientadora, Profª Drª Terezinha Bernardo que me acompanha e orienta desde a elaboração do projeto de mestrado, sempre acreditando e incentivando-me. Ao Programa Internacional de Bolsas para Pós-Graduação da Fundação Ford, que me concedeu bolsa integral para que pudesse dedicar-me inteiramente a realização dos estudos e pesquisa de Mestrado. A Equipe da Fundação Carlos Chagas, pelo imenso carinho e dedicação com que cuidou de cada bolsista. Aos pareceristas e orientadores do Programabolsa da Fundação Carlos Chagas, pelo carinho e profissionalismo com que argüiram sobre o projeto. A amiga Profª Drª Maria Nilza da Silva, que prontamente realizou leituras e correção dos meus rascunhos, e, gentilmente cedeu-me os Mapas Temáticos. Ao amigo Profº Dr. Hédio Silva Junior, que na graduação orientou-me nos primeiros passos sobre a questão étnico-racial, apresentando-me a Ministra Matilde Ribeiro a qual auxiliou na definição do sujeito de minha monografia de graduação. Ao amigo Profº Dr. Acácio S. Santos e Profª Eliane H. Gouveia, pela especial atenção e excelente contribuição de sua argüição quando da qualificação para mestrado. A Profª Graziela A. Pavez, pelo permanente apoio, incentivo e orientação para desenvolvimento de estudos sobre relações raciais desde a graduação. A todos os Professores(as) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que de alguma forma contribuíram para o meu desenvolvimento intelectual. A amiga Doraci Lopes, que nos momentos mais difíceis desta jornada foi presença marcante, e confortante durante todo o processo. A minha Irmã, amiga e companheira Maria José de Assis Souza, presença forte e marcante que nunca me faltou, acolhendo-me como minha mãe o faria se ainda estivesse entre nos. XIV

Ao José Luis Cristiano de Souza, meu amado cunhado que prontamente ajudou-me criando estratégias, substituindo minha irmã em alguns dos seus afazeres, para que ela pudesse ajudar-me. Ao inestimável amigo e companheiro Edson Arruda, que não hesitou em deixar sua casa e afazeres para dedicar incansavelmente dias e noites, por horas a fio na correção final dos capítulos desta dissertação. A todos meus irmãos e irmãs, que entenderam a minha distância e ausência durante este estudo. A Luzia Porto, Assistente Social Gerente de Unidade Básica de Saúde, liderança comunitária, amiga e moradora do Distrito da Brasilândia, que além de emprestar seu apartamento para realização de entrevista, pacientemente leu os escrito sobre o bairro auxiliando na sua elaboração. A Nair Madalena e Maria do Carmo, irmãs e companheiras, a 1ª que muito gentilmente emprestou sua casa para realização de entrevista, a 2ª que auxiliou na localização de possíveis interlocutora. Ao Rodolfo, amado, amigo e companheiro, que sempre procurou estar perto mesmo a distância, e com muita paciência e carinho incentivava-me nos momentos de fragilidade e cansaço. Ao líder comunitário Ailton Benedito Calixto, Presidente da Associação de moradores do Jardim Icaraí que incansavelmente acompanhou-me pelo Jardim Icaraí contribuindo para localização de possíveis interlocutoras. A Unidade Básica de Saúde do Jardim Guarani e Igreja de Santo Antônio de Vila Brasilândia que gentilmente cederam-me material sobre História da Brasilândia. Ao CRAVI – Centro de Referência e Apoio a Vítima que emprestou seu arquivo de mulheres atendidas para que pudéssemos eleger os sujeitos da pesquisa. A Casa Brasilândia de atendimento a mulheres em situação de violência, por contribuir com a pesquisa construindo mapas do perfil das mulheres atendida na região e emprestando o espaço para realização de atividade com as mulheres desta pesquisa. A Subprefeitura do Distrito da Brasilândia que gentilmente forneceu importantes informações quantitativas e qualitativas sobre a população local. XV

De maneira muito especial agradeço a cada interlocutora desta pesquisa, que permitiu que eu adentrasse em suas intimidade e gentilmente emprestou-nos sua história de vida, sem as quais este trabalho não seria possível. Aos amigos e companheiros bolsistas e da PUC, que de alguma maneira contribuíram para este trabalho, em especial aos do Núcleo de Estudos sobre Relações Raciais: Memória, Imaginário e Identidade do Depto de Pós-Graduação em Ciências Socais PUCSP. E por fim, mas em primeiro lugar a mais guerreira das mulheres, minha mãe, Dona Benedita in memorian, que com certeza está olhando por mim do“Orum”.

Ora Yeyê-o Oxum! 1

Introdução

Este tema, violência sofrida pelas mulheres negras, chamou-me atenção à medida que desenvolvia trabalho com estas mulheres em “grupo de auto-ajuda”1. Os grupos de auto-ajuda constituíam-se em espaços privilegiados de relatos de histórias de vida e trocas de experiências onde mulheres negras relatavam situações de violências vividas ao longo de suas vidas, que não eram denunciadas nas diversas delegacias de São Paulo. Os principais objetivos destas atividades eram possibilitar às mulheres o compartilhamento de suas experiências e sentimentos, num ambiente saudável e seguro para a (re)construção de uma auto imagem positiva e de identidade no coletivo. Este processo também visava o fortalecimento do potencial organizativo de mulheres negras nas comunidades de base. As atividades com grupos de mulheres negras faziam parte de um projeto desenvolvido pela Organização Não Governamental, Fala Preta - Organização de Mulheres Negras, em São Paulo. Entre as temáticas abordadas nos grupos, a violência revelava-se enquanto pano de fundo, quando não o foco principal dos diversos relatos e debates. A ausência de instrumentos para tratar destes conteúdos instigou-me a aprofundar nos estudos, que ora me dedico. Desde então iniciei leituras e debates em conjunto com outras profissionais no Fórum Paulista Pela Não Violência às Mulheres2, que também trabalham no atendimento às mulheres em situação de violência. Algumas dessas profissionais, preocupadas com a especificidade de cada segmento, buscavam instrumentos para lidar com diversidade de mulheres. Portanto, participar do Fórum Paulista Pela Não Violência às Mulheres, foi importante não apenas no sentido de reunir elementos para ampliar o entendimento sobre a questão, mas também para tomar ciência de nosso conhecimento incipiente diante de uma questão tão complexa. Percebemos que – apesar da violência atingir as mulheres independentemente da

1 Participei das atividades com grupos enquanto estagiária , durante a minha graduação. Em 1997 assumi a coordenação dos diversos grupos da área das Ações Comunitária realizados pela Fala Preta – Organização de Mulheres Negras. Realizávamos encontros quinzenais ou semanal entre mulheres negras. 2 O Fórum Paulista pela não Violência as Mulheres é realizado na Casa Eliana de Gramond, rua Dr. Bacelar nº20 - SP. Trata-se de espaço de diálogo e articulação entre os diversos profissionais que assistem mulheres em situação de violência.

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idade, cor/raça, credo e classe social – entre as mais pobres e negras as proporções e danos são maiores. Os estudos sobre as várias formas de violência proporcionaram, além do conhecimento mais específico sobre o fenômeno, a participação na Pesquisa sobre “Violência Urbana”3 realizada Pela PUC/CRAVE/FAPESP em 2001. Tratava-se de coleta de informações junto a familiares de vítimas de crimes fatais, cujo objetivo era também a elaboração de política de atendimento àqueles familiares. Minha contribuição no estudo consistia, além da coleta de dados, em desagregar os dados através do quesito cor/raça, das vítimas e seus familiares, apresentando aspectos da violência na interface com a origem étnica. Enquanto pesquisadora da Faculdade de Serviço Social da PUC/SP, com bolsa de capacitação técnica da FAPESP, efetuava coleta de dados por meio de entrevistas com as denominadas vítimas indiretas, assim como levantamento das ocorrências nas Delegacias de Polícia e dos processos em poder dos diversos fóruns em São Paulo. Entre as violências narradas instigava-me, de modo peculiar, o aspecto multifacetado da violência sofrida pelas mulheres negras, em especial aquela resultante da morte por homicídio ou latrocínio de seus companheiros. Tornei-me próxima destas mulheres ouvindo narrativas, e elas tornaram-se interlocutoras desta pesquisa. Essa agressão é multifacetada porque, a morte violenta do companheiro traz como conseqüências: primeiro, problemas emocionais graves – pois não é uma perda natural, mas ocasionada por meio de ato hediondo4; segundo, pelas dificuldades econômicas, impostas à família, pois a mesma deixa de ter um salário importante até então provido pelo companheiro. Importante pois sabe-se que em nossa sociedade ele (o salário), é maior, se comparado ao feminino. O ganho masculino, na maioria das vezes é o dobro do feminino5; e terceiro por questões de ordem psicológicas, o homicídio de parentes causa medo, insegurança e outros sentimentos no interior da própria família. Assim, as mulheres das vítimas, muitas vezes, deixam o trabalho, os

3 Pesquisa realizada pela Faculdade de Serviço Social PUCPS/CRAVI/FAPESP, junto às famílias de vítimas de homicídio e Latrocínio na cidade de São Paulo. Objetivo: elaboração de Política Pública de Atendimento a Familiares de Vítimas. 4 Trata-se de crime que provoca reação de grande indignação moral, ignóbil, pavoroso. (Houais,2001) 5 Dados Fundação SEADE, Pesquisa sobre emprego e desemprego – 2003.

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filhos deixam a escola, a família muda de endereço, as vezes de cidade e outras vezes de estado. É interessante pontuar o aspecto econômico, principalmente no que tange as mulheres negras que em grande parte, ao longo da história têm desempenhado o papel de provedoras das famílias, mas que na hierarquia social têm ocupado as piores posições. Pelo fato de estarmos tratando de uma violência abrangente que abarca a mulher e capta toda a família, investigamos sua extensão enfocando como a morte dos companheiros e pais, atingiram-nas e a seus filhos(as). Como estas mulheres passaram a enfrentar a vida? Quais são as mudanças ocorridas em seu cotidiano após a violência sofrida pelos seus parceiros? Percebe-se que a violência que ocorre no espaço público6 repercute diretamente no espaço privado, especialmente em um determinado segmento populacional. Barbosa (2000), confirma este dado quando aponta a morte violenta como a segunda causa mortis entre os homens negros e a quarta entre os homens brancos. O Jornal “Folha de São Paulo” divulga também que os negros são alvo dos homicídios cometidos pelas polícias civil e militar.

6 As diferenciações entre espaço público e privado são sugeridas a partir do espaço comum a todos os cidadãos e cidadãs, sob a guarda e manutenção do Estado; e em oposição a este é o espaço privado, o espaço da Família.

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Nos estudos, do ouvidor da Polícia do estado de São Paulo conforme demonstra o gráfico abaixo, os negros representam 62% das ocorrências, e os brancos 38%7. Gráfico 1

HOMICIDIOS COMETIDOS PELA POLICIA CIL E MILITAR

NEGROS BRANCOS

No que se refere ao total das mortes por homicídios entre brancos e negros, 70% morrem com idade entre 18 a 25 anos.

Gráfico 2

18 A 25 A DEMAIS IDADES

7 Fonte:. Os dados representados nos gráficos referem a estudo sobre homicídios realizado pelo Sociólogo e ex- Ouvidor das Policias Civil e Militar do Estado de São Paulo. Divulgado através do Relatório Anual de Prestação de Contas da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo de 1998

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Com relação aos antecedentes criminais, no total dos homicídios, 57% não possuíam passagem pela polícia.

Gráfico 3

ANTECEDENTES CRIMINAIS

SIM NÃO

Do total de mortes 3% são mulheres e 97% homens Gráfico 4

SEXO-HOMICIDIOS

MULHERES HOMENS

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Reiteramos que esta pesquisa sobre a violência urbana e doméstica no contexto das relações étnicas e de gênero, pretende apreender o sentido e o significado da violência para mulheres negras na faixa etária entre 15 a 49 anos que se tornaram chefes de família devido o homicídio de seus companheiros. Foram selecionadas mulheres nesta faixa etária porque, além de estarem no período reprodutivo, os filhos são dependentes delas, e, segundo o Dossiê da Violência Contra a Mulher8, é o período das suas vidas em que mais sofrem violência. A seleção da amostra ocorreu de modo atípico, dado o caráter do tema a ser investigado. A primeira amostra foi realizada a partir do cadastro da pesquisa realizada pela PUC/CRAVI/FAPESP em 2001, sobre violência urbana. Contudo, devido a questões como mudança de endereço, o medo, e outras relacionadas também ao motivo da morte, não tivemos sucesso na localização de possíveis interlocutoras. O segundo passo na seleção de novos sujeitos, foi feito através do cadastro das mulheres atendidas pelo CRAVI - Centro de Referência e Apoio a Vítima, cujo objetivo é prestar atendimento jurídico, psicológico e social aos familiares de vítimas de morte violenta. Ainda assim, a amostra era insuficiente, pois o número de mulheres entrevistadas não havia atingido o ponto de saturação – método utilizado em pesquisas de História Oral. Assim sendo, solicitamos às lideranças comunitárias que nos apresentassem novos sujeitos, possibilitando reunir um número suficiente de mulheres para a realização da pesquisa. O que buscamos desvelar com a pesquisa, é como as mulheres que se tornaram chefes de família decorrente da morte do companheiro (re)constroem suas vidas e o que gera a invisibilidade ou visibilidade da violência sofrida por estas ao longo de suas vidas, porque é amplamente divulgado pelos estudiosos sobre a questão, que a violência incide na mesma proporção para os diversos segmentos populacionais independente de classe social, etnia/raça, sexo, idade e condição de egresso. O bairro escolhido foi o de Vila Brasilândia porque é de periferia9 e agrega um número significativo de negros se comparados a outras periferias da Grande São

8 O Dossiê da Violência contra a Mulher é um relatório anual, 2001. Elaborado pela Rede Saúde sobre os tipos e a incidência da violência perpetrada contra mulheres. 9 Periferia é aqui entendida como um fenômeno que ocorre nas grandes metrópoles como São Paulo, que decorrente de expressivo crescimento demográfico para além do perímetro urbano, caracterizando uma região com habitações precárias, e baixo rendimento econômico da população.

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Paulo. Além destes motivos, a seleção da Vila Brasilândia ocorreu, porque foi lá que eu nasci e vivi por 33 anos. Assim sendo, conheço e sou reconhecida por pessoas e isso me permite acesso mais fácil ao bairro e às informações ali contidas, porque inspiro confiança. Nas periferias este dado parece ser fundamental. É Clifford Geertz quem legitima a afirmação acima quando diz: ...aprendemos isso quando chegamos a um país estranho, com tradições inteiramente estranhas e, o que é mais, mesmo que tenha um domínio total do idioma do país. Nós não compreendemos o povo(...). Não podemos situar entre eles.(GEERTZ, 1989, p.10) Portanto o fato de a Vila Brasilândia se configurar como um espaço conhecido, facilita a minha pesquisa. Este estudo, sobre as mais diversas formas de violência, focando a sofrida pelos homens negros, jovens e adultos, se faz para evidenciar a relação indireta ou direta das mulheres negras com eles e com a violência, pois estas são suas filhas, irmãs, esposas e mães. Pensar a dimensão da violência sofrida pelas mulheres, no seu aumento, levando-se em conta que atualmente é mais denunciada, relacionando-a ao espaço público é importante porque a violência doméstica foi retirada do contexto público, e é tratada como um fenômeno estritamente doméstico. Fazer essa relação significa restabelecer relação existente entre o espaço público e o privado. O fato de a população conviver cotidianamente com todo de tipo violência – principalmente na favela onde não se pode falar, nem mesmo daquela violência que as mulheres vivem no espaço doméstico, (violência doméstica), onde ninguém quer, “meter a colher”, ou da violência do “não” acesso aos serviços básicos – é que percebemos o quanto é imposto, ou seja, empurrado goela abaixo a “naturalização” deste estado de coisas. Calar diante dessa situação vai além do medo, passa pelo sentimento de que nada vai mudar o rumo das coisas, passa pela ausência de respostas do poder público às demandas dessa população. Neste sentido, as pessoas em suas lutas individuais pela própria sobrevivência, vão sendo tolhidas pela violência que a cada dia é mais banalizada. Além de estas mulheres negras perderem seus parceiros e, portanto tornarem-se muitas vezes a única fonte de sobrevivência familiar, tanto na situação de emprego quanto na de salário, são as que vivem as piores condições da população

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brasileira. As diferenças de emprego e desemprego das mulheres evidenciam que: “(...) Se o sexo discrimina, a situação fica ainda mais desfavorável quando se associa a condição de ser negra. Em 2000, a taxa de desemprego registrada para as mulheres negras alcançou 25,1%, ou seja, de cada 100 trabalhadoras negras um quarto, estava sem emprego, enquanto as não negras correspondiam a 18,9%”.(Fonte: DIEESE/SEADE/PED, 2001) No que diz respeito à ocupação, 67,1% das mulheres negras que estão empregadas são chefes de família10. O Mapa da Exclusão de Aldaíza Spozati, confirma estes dados quando mostra que entre os lares monoparentais, localiza-se o maior grau de exclusão, conformando a feminização da pobreza, redundante dos baixos salários percebidos pelas mulheres.

10 Dossiê da Violência Contra a Mulher, Brasil – 1999

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O mapa abaixo nos auxilia na localização de mulheres negras chefes de família, nas regiões onde se registra os piores IDH11.

Mapa nº 1

Fonte: Fundação IBGE: Censo Demográfico 2000

11 IDH- Índice de Desenvolvimento Humano (Pesquisa que leva em consideração o cruzamento dos dados de longevidade, escolaridade renda percapta)

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Esquemas Teóricos

Certas da complexidade da temática abordada, bem como dos obstáculos a serem enfrentados – por tratar-se de violência de foro intimo que também envolve crimes de morte – priorizamos desenvolver a análise das histórias de vida através dos esboços teóricos da memória. Portanto, a teoria da memória foi a escolhida por se tratar de lembranças da perda de seus parceiros e suas conseqüências nas vidas das mulheres negras, que são narradoras desta dissertação. Salientamos que daremos prioridade às memórias subterrâneas definidas por Michael Pollak. Este conceito é fundamental na análise, à medida que Pollak (1989) o formulou quando pesquisou as mulheres judias que viveram em campo de concentração, ou seja, viveram situações limites. Desta forma, o autor discute este tipo de memória que emerge em determinadas situações, uma vez que é comum aos grupos excluídos, que viveram situações de violência como as mulheres que constituem os sujeitos desta pesquisa. Se as memórias subterrâneas e lembranças existem, é porque de alguma maneira são transmitidas “(...) no quadro familiar em associações, em redes de sociabilidades, afetividade e ou política. Elas são zelosamente guardadas em estruturas de comunicação informais e muitas vezes passam despercebidas pela sociedade englobante.” (POLLAK, 1989, p.8). Em se tratando das mulheres negras, muitas vezes as lembranças não podem ser ditas porque são ainda proibidas, as narradoras sentem-se envergonhadas ou ainda culpadas. Assim, pensamos que Pollak fornecerá a esta dissertação, subsídios teóricos necessários à análise das violências sofridas pelas mulheres que constituem o universo da pesquisa. Neste sentido, os esboços teóricos da memória de Pollak, serão empregados na interpretação de relatos de história de vida, auxiliando no movimento de emersão da memória de mulheres negras, que confinadas ao subterrâneo guardam a cultura e história de um povo. O processo de descortinar as lembranças silenciadas por força de doutrinação ideológica, revela a força da oralidade que mantém viva essa memória atravessando o tempo, passando de geração a geração.

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Referencial teórico:

Além de Pollak, outros autores auxiliarão a análise como Marilena Chauí, Teresa Pires do Rio Caldeira e Heleieth Saffioti. Desta forma, os relatos de histórias de vida serão refletidos e analisados segundo algumas noções concebidas por estes autores, entendendo que a vida das mulheres desenvolve-se pelo conjunto de relações que estabelecem ao longo de suas vidas, sejam no âmbito privado ou público.

Marilena Chauí, ao analisar a ideologia dos mitos fundadores da sociedade brasileira, contribui para o entendimento da “naturalização” da violência e do racismo na vida da população negra em particular das mulheres negras, explicitando como ao longo dos anos foi construída e sustentada a falsa imagem de um Brasil Cordial que também sustenta uma pretensa “Sociedade não Violenta”, que para ser apreendida na sua face racista, é importante o caminho do “revela e encobre”, próprio do mito das sociedades complexas, através da qual justifica as práticas violentas como advindas de um agente externo ao indivíduo violento; a violência é assim localizada no outro. As ambigüidades aqui refletidas, referem-se às ações violentas e criminosas praticadas, sob as mais sutis formas como o paternalismo branco que Chauí diz encobrir a discriminação étnica, ou como o machismo que ressalta as qualidades femininas com aspectos que reforçam um estereótipo de mulher subserviente e doméstica, e ainda a importância de um tipo de família que esconde o abuso sexual de meninas e a violência contra as mulheres. No que se refere às mulheres negras, evidencia uma estrutura histórica ideológica que permite a opressão invisível, a subordinação, a violência intrafamiliar, doméstica e sexual. Portanto, quando Chauí fala sobre mulher e violência, remonta as raízes de construção da identidade feminina, a qual foi construída na heteronomia12, que se opõem à autonomia. Dessa forma a identidade feminina foi circunscrita na incompletude e no mundo privado. Neste sentido, pensar a mulher negra, exige uma reflexão sobre esta problemática. Se a mulher teve inscrita sua identidade no mundo

12 Heteronomia é uma categoria explicativa do desenvolvimento humano, sobre o processo de introjeção do conjunto de valores morais, regras e ordens aprendidas nas relações geracional hierárquica, as quais determinam

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privado, como fica a identidade de mulheres negras que historicamente têm uma atuação no mundo público13, cujos sentidos variam de tempos em tempos? Portanto a linha tênue que há entre o espaço público e privado, nas últimas décadas, assume outras dimensões. Diversos são os caminhos trilhados para a definição destes significados – público e privado. Na sociedade moderna, segundo Betânia Ávila, foi a partir da divisão social do trabalho, a qual foi apresentado com forte estratégia da sociedade capitalista machista contemporânea, empregada para manter e submeter às mulheres ao sistema patriarcal. Neste sentido, a violência que ocorre no interior das casas ou dos muros dos condomínios é tratada pelo conjunto da sociedade como questão de âmbito privado, portando, deve ser resolvido no seio da família. Considerando os espaços públicos e privados, na perspectiva dos territórios, a violência poderá ter menor ou maior impacto. Silva (2000) em Santos (2000) problematiza o espaço e o apresenta como um “conjunto de localizações”, que a depender do investimento que é feito nestas localizações ter-se-á maior ou menor desigualdade. Já o território, na sua especificidade qualifica quem nele habita, ou seja, as pessoas têm seu valor atribuído de acordo com o lugar onde está. Compreender a dimensão social e política do território, passa pelo questionamento da estrutura social que subordina e que é subordinada, dentro de um sistema hierárquico e de poder, cujas perspectivas de análise, especialmente as que abordam a violência e o racismo, vêm desconsiderando. Um território pressupõe a agregação de um conjunto de símbolos e significados nos quais seus habitantes têm liberdade para se expressarem e se manifestarem. Segundo Silva (2004) em Rolnik (2003), “os territórios negros representavam locais de encontro e sociabilidade, pois em outros lugares ele era impedido de expressar-se mais livremente. Eram também locais de resistência às manifestações de violência como as expressões do racismo”. (SILVA, 2004, p.18) Nesta perspectiva, as localidades que anteriormente foram consideradas territórios de negros, em função do progresso sofreu um processo de no comportamento moral e ético do indivíduo. Tal construção é baseada na regra e na coação, característicos nas relações onde um exerce o poder sobre o outro, resultando em subordinação e obediência.(Ventuti Jr., 2002)

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desterritorialização, e seus habitantes foram levados a ocupar lugares onde o tecido urbano sofreu deterioração por ausência de infra-estrutura. Estes espaços geográficos denominados de periferia, passaram a ser lugares ocupados por negros e pobres. Portanto é no sentido desta reflexão que estamos chamando as regiões com alta concentração de negros de lugar; quando não, um não lugar. (Silva, 2004) Teresa Pires do Rio Caldeira vem elucidar como o medo e a violência vêm mudando a paisagem urbana em São Paulo, configurando uma nova forma de viver e se relacionar resultante das grandes transformações decorrentes do crescimento acelerado das grandes metrópoles, que contribuem para aumentar as distâncias entre, periferia e centro, pobres e ricos, negros e brancos acentuando as desigualdades e fortalecendo o racismo. A autora problematiza aspectos da globalização da economia, do neoliberalismo e das novas tecnologias como constitutivos de uma estrutura ideológica que se moderniza e aperfeiçoa os instrumentos de manutenção das desigualdades, e como esta opera no conjunto das relações. Apresenta a configuração espacial e os novos contornos geográficos da cidade que fortalecem as estratégias de divisão dos lugares sociais, bem como sugere uma redefinição do que vem a ser espaço público e privado ditado pelos novos padrões de segregação. Assim, o levantamento dos muros muda o sentido de espaço; dentro dos muros é um espaço “público” privatizado onde o Estado, em tese, não “determina”. Esse caráter de privatização do público estabelece limites ao poder público, repercutindo negativamente entre as camadas mais pobres, porque estes limites ampliam a situação de vulnerabilidade e exposição diante da violência. Apesar da maioria dos(as) estudiosos(as) sobre tema afirmarem que este fenômeno não respeita classe social, etnia, gênero, idade e outros, tem maior impacto entre os segmentos mais empobrecidos. Heleieth Saffioti, desenvolve análise sobre a relação homem/mulher, decodificando as desigualdades presentes nas relações por meio da categoria analítica explicitando as “relações de gênero” enquanto uma construção sócio histórica, a qual atribui papéis diferenciados do ponto de vista da classe social, gênero, etnia e geração, as quais propiciam uma hierarquia de poder de um sobre o outro, fundado em

13 Ver; CARNEIRO, Sueli. Gênero e Raça. Gênero Democracia e Sociedade Brasileira. Fundação Carlos Chagas –

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diferenças. Articula as categorias de forma a apresentar suas interfaces operando na sociedade e determinando o lugar a ser ocupado por cada um(a) que varia de acordo com o pertencimento de cada indivíduo. Salienta ainda que, a partir da dinâmica das relações sociais, uma dessas categorias pode ser mais expressiva com relação às outras. A dialética do processo é muito importante e elucidadora, quando vislumbrada nesta concepção.

Técnica de pesquisa

Para realizar esta dissertação, coletamos histórias de vida de dez mulheres que se tornaram chefes de família, devido à morte violenta de seus companheiros. Os números de histórias de vida coletados referem-se diretamente ao critério do ponto de saturação. Desta forma, consideramos finalizada a coleta, quando os dados foram considerados representativos. Todavia, este estudo não pretende, apenas obter o relato das violências vivenciadas pelas mulheres negras ao longo de suas vidas, mas o sentido e significado destas. Portanto, a História Oral, em termos de história de vida, propicia, mais que qualquer outra técnica, a apreensão dos significados. Essa técnica, aliada ao uso de gravador, (quando autorizado), amplia as possibilidades de apreensão do sentido que os sujeitos querem dar às suas vidas, que auxilia no resgate da memória, e em se tratando da temática da violência. Durante os relatos emergem detalhes que poderiam se perder utilizando outra técnica. Assim, tivemos maior apreensão dos significados com a riqueza dos detalhes, elementos importantes que darão consistência à análise da trajetória dos sujeitos. O critério para seleção dos sujeitos foi estabelecido de maneira a colhermos relatos de mulheres pretas e pardas, que conforme critério da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, (FIBGE), constituem o universo das mulheres negras em idade reprodutiva, cuja chefia de família estivesse relacionada ao homicídio ou latrocínio do companheiro e que residam no Distrito de Vila Brasilândia. As entrevistas foram realizadas em duas ou três etapas, nenhuma delas foi realizada em um único encontro. O segundo encontro, sempre começava com uma

editora 34. São Paulo, 2002

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recordação dos tempos passados cujas memórias afloravam a cada lembrança partilhada, que servia para completarmos e aprofundarmos alguns aspectos não concluídos no primeiro. Tanto entrevistadas quanto entrevistadora, primavam por momentos de trocas anteriores ao início da gravação das histórias de vida e, desta forma, os relatos foram transcorrendo mais espontâneos e completos. Foram realizadas dez entrevistas, que duraram em média 30 horas, sendo sete com mulheres que se auto declararam negras e três brancas. Utilizamos o critério de auto-identificação, e recorremos ao sistema de classificação de cor utilizado pelo IBGE, (branca, preta, parda, amarela e indígena), para melhor situar as interlocutoras no que tange a origem étnica. Todavia, é importante salientar que todas as interlocutoras da pesquisa foram percebidas pela pesquisadora como afro- descendentes. Estamos chamando de afro-descendentes aquelas que apresentaram características de origem negra; quer seja pelo seu fenótipo ou de seus pais. Este aspecto está sendo focado porque, para eleição dos sujeitos, procuramos selecionar mulheres negras de maridos igualmente negros. Mas devido a experiência anterior, na pesquisa realizada pela PUC/CRAVI/FAPESP (2001) sobre violência urbana, percebemos que questões objetivas e subjetivas como a escolaridade e classe social interferem diretamente na auto-identificação dos diversos seguimentos. Entre as mais pobres e com pouca escolaridade há maior possibilidade de uma mulher parda se declarar branca. Há também aquelas que mesmo pobres mas com mais anos de estudos se declararem negras. Neste aspecto, Costa (1983) argumenta que a violência racista em suas manifestações encobre sua face e provoca nos negros a projeção de uma identificação contrária a sua forma, estética e história. Nesta dinâmica, o ideal do negro passa a ser o de embranquecer. Em meio a este desejo, o negro quando nega a sua cor, nega também o corpo e tudo que venha representar o ser negro que ele busca extinguir. Portanto a ideologia do racismo pode submeter o negro a um processo de frustração por não se realizar enquanto sujeito capaz de transformar a própria realidade. (Costa, 1983, p.5) No caso desta pesquisa nos deparamos com duas situações; uma das interlocutoras se declarou branca, e no decorrer do relato nos mostrou várias fotos, de diversos momentos de sua vida, que revelaram uma mulher parda. O seu fenótipo nos

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permitiria afirmar que não se tratava da mesma pessoa, tamanha foi a busca pelo branqueamento. Nessa transformação segundo Costa (1983) ...o sujeito negro possuído pelo ideal de embranquecimento, é forçado a querer destruir os sinais de cor do seu corpo e da sua prole.(Costa, 1983, p.6) A segunda situação que também despertou-nos a atenção, foi o fato de duas irmãs que tiveram seus maridos mortos. Apesar de serem filhas do mesmo pai e da mesma mãe se apresentaram uma como branca e outra como negra. Aquela que se declarara negra apontara a cor do filho como sendo a sua, já a que se declarara branca apresentara apenas a cor da sua pele sem levar em conta a ascendência ou descendência. Neste aspecto, estudos recentes desenvolvidos na região de Minas Gerais demonstram que enegrecer ou embranquecer, depende de variáveis dentre os quais cita; os anos de estudo e poder econômico. “Os autores mencionam a hipótese da mobilidade, segundo a qual um aumento nas condições de vida, (renda/educação), levariam os indivíduos a se reclassificarem ao longo da vida, se movendo das categorias mais escuras para as mais claras no espectro de cor. Portanto, embranquecer seria um sinal de ascensão ou mobilidade. Ainda segundo os mesmos estudos, mais recentemente com o aumento da consciência sobre as questões raciais e a valorização dos negros, suspeita-se de um movimento na direção contrária, sobretudo entre os indivíduos de escolaridade mais elevada. No lugar de “migrarem” para as categorias mais claras, os mesmos passariam, cada vez mais, a se declarar como pretos. Nesse sentido, a declaração de raça/cor seria, antes de mais nada, um ato político”14. Entre as entrevistadas, quatro estão na faixa etária entre 19 e 29 anos, três entre 30 e 40 anos e quatro entre 41 e 50 anos. Observamos que o tempo de coleta dos relatos, estiveram relacionados à idade das interlocutoras, ou seja, entre as mais jovens o tempo de relato foi mais breve que entre as mais velhas, com exceção de uma delas, com 24 anos, cujo tempo de entrevista se aproximou ao das mulheres com idades a cima de 41 anos. Do total das entrevistas, oito foram realizadas na residência das próprias mulheres, e duas em espaços emprestados. Estamos denominando de espaços

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emprestados, residências de moradoras do distrito de Vila Brasilândia. Os espaços foram cedidos para realização de duas entrevistas sendo que uma delas ocorreu em dois diferentes momentos e residências; o primeiro realizou-se numa tarde chuvosa e o segundo dois meses depois em uma manhã de sol. As mutuantes, cientes da importância da pesquisa assim como da dificuldade em localizar um espaço adequado para realizar as entrevistas, bem como da impossibilidade de efetuá-las na residência desta interlocutora devido a presença dos muitos filhas(os), netos e agregados, ofereceu-nos espaço. A primeira parte da entrevista foi realizada no apartamento de uma liderança comunitária negra de classe média15. A entrevista foi interrompida quando a proprietária retornou do trabalho, pois percebemos que a entrevistada havia ficado pouco à vontade com a sua presença. A realização da segunda parte ocorreu dois meses após a primeira. Essa demora se justifica porque encontramos dificuldades em restabelecer contato com a entrevistada, que não possui telefone. Determinadas em concluir ou abandonar o processo de coleta desta história de vida, fomos a sua casa sem aviso prévio, ela recebeu-nos gentilmente como sempre. Ela tinha o rosto consternado por dores ocasionadas pelas ulcera e gastrite, e não tinha dinheiro para a medicação. Lançamos mão do que possuíamos nos bolsos e a ela oferecemos. Imediatamente solicitou a uma de suas filhas que comprasse o remédio. Enquanto a adolescente não retornava com os remédios indagávamos sobre os nossos desencontros, cujas respostas confirmaram nossas suspeitas. Além dos problemas de saúde, dos filhos e seus, evitou nos encontrar porque o padrão econômico da residência cedida deixou-a constrangida, sentiu-se pouco à vontade especialmente quando a pessoa que o emprestou chegou. Depois de medicada, lhe perguntamos se estava em condições de concluir a entrevista naquele momento. Garantimos-lhe que não ultrapassaríamos o período de duas horas. Ela concordou imediatamente, porque desta vez sugerimos que fossemos para a casa de outra mulher que morava na Vila Cardoso, com a qual a entrevistada identificou-se imediatamente, porque além de concentrar famílias de menor poder

14 Miranda, Paula e Caetano, André Junqueira. Como eu me vejo e como ela me vê: um estudo exploratório sobre a consistência das declarações de raça/cor entre as mulheres de 15 a 59 anos no Recife, 2002.

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econômico, ela afirmou conhecer este lugar de vulgo “inferninho”, pois o freqüentou durante a infância e juventude, portanto fazia parte do seu universo. Na segunda situação o fato deveu-se ao medo. A interlocutora agendou a entrevista para sua antiga moradia que fica no quintal da casa de sua mãe. A casa estava praticamente vazia, com poucos móveis que incluíam uma mesa com quatro cadeiras onde nos sentamos. Porém, no segundo encontro, perguntou se eu não poderia ir até sua atual residência, distante dos olhares dos pais, mas sob os olhares dos filhos. Na maioria das entrevistas, foi comum a participação dos familiares, e em alguns casos não foi possível realizar a coleta das histórias de vida somente com a mulher, pois filhos(as), irmãos(ãs) e mães insistiam em participar da conversa. Pensamos que, em alguns momentos impossibilitou a narrativa de determinados fatos, pois nas situações em que foi possível realizar a entrevista com privacidade, as entrevistadas sentiram-se à vontade para narrar detalhes do vivido e sentido, sobre os quais disseram não querer compartilhar com outras pessoas, mesmo com os seus familiares. Buscamos estabelecer alguns procedimentos para realização das entrevistas, pois, em se tratando do tema abordado, as mulheres tendem a relatar fatos que estão mais relacionados à família e ao companheiro morto que sobre si mesmas. No primeiro encontro era recorrente a presença de toda a família, desta forma, o relato tinha a contribuição de um ou dois familiares. Mas no segundo momento agendávamos com a entrevistada em horário que pudéssemos ficar a sós. Em uma das entrevistas, entrevistada e entrevistadora se fecharam no quarto com chaves para tentar impedir que a mãe ouvisse e interferisse no relato da filha, pois o que ela desejava nos relatar, não poderia ser ouvido pelos demais familiares, particularmente pela mãe. Apesar dos esforços, nós a flagramos em pé, junto à porta, quase sem respirar, buscando ouvir a conversa. Segundo a entrevistada, ela queria participar para impedi-la de revelar fatos que depunham contra sua pessoa. Portanto, estrategicamente mudamos o assunto. Quando ela deixou de nos rodear silenciosamente, continuamos o assunto de onde havíamos parado. A filha não deixou

15 liderança comunitária negra de classe média, que além priorizar atendimento humanizado aos economicamente

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de relatar o ocorrido, pois tinha certeza do sigilo das informações confiadas à pesquisadora. Neste caso foi possível recorrer ao isolamento em um dos ambientes da casa para coleta da história, porque se tratava de uma residência ampla com diversos ambientes, diferente da maioria das habitações localizadas no interior da favela. Encontramos muitas dificuldades em agendar entrevistas em particular com mulheres que mudaram de endereço. Para nos aproximarmos, realizamos a primeira visita/entrevista com parentes, estabelecendo longas conversas em que nos permitimos ser indagadas a fim de nos tornarmos conhecidas ao ponto de angariarmos confiança e com isso o contato, telefone e/ou endereço, das mulheres, ou seja, dos sujeitos desta pesquisa. As circunstâncias que levaram as mulheres a mudar de endereço, fazem parte de um conjunto de fatores que incluem o medo. Foi a sensação de medo semelhante à vivida no passado que levou uma das entrevistadas a fazer contato com Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC, para confirmar as intenções da pesquisadora e a seriedade da pesquisa em questão. Não obstante, quando nos encontramos para realização da entrevista, contou-nos que consultou um amigo, o mesmo desenvolvia estudos pós-graduados, e recomendou que nos recebessem. Esta interlocutora disse-nos o seguinte:

...Você sabe que devemos ter cuidado, ainda mais quando se é sozinha, as pessoas acreditam que é boba e quer tirar vantagem. Por isso, você me desculpe, mas tive que ligar para PUC, e, também consultei um amigo que estuda direito, ele disse para eu recebê-la, pois essas entrevistas fazem parte dos estudos de pós-graduação. Para que se possa escrever sobre um tema de pesquisa de mestrado, deve-se colher informações... (Sujeito da pesquisa).

desfavorecidos em sua prática profissional, fora dela desenvolve projetos sociais na comunidade.

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Contudo, o medo não cessa. Cautelosa, a interlocutora concordou em conceder entrevista e agendou nosso encontro para a casa de sua mãe. Quando chegamos à residência, ela tratou de apresentar-nos para toda família antes do início da entrevista. Pensamos que esta foi uma estratégia utilizada para dizer que não estava sozinha naquele momento. O fato não nos surpreendeu, porque, desde o primeiro contato deixou explicito que estava sendo cautelosa porque tinha medo. Ela contou-nos que logo após a morte de seu companheiro, pessoas tentaram se aproximar com intenções duvidosas, por acreditarem que tinha algum dinheiro a receber do seguro de vida de seu falecido marido que era policial militar do corpo de bombeiros. Já no segundo encontro, fomos à sua residência, localizada em um grande condomínio fechado para uma “classe média” da Vila Brasilândia. Em uma gama de situações o sentimento de medo ficou evidente. Reunir grande parte da família no local, dia e hora da entrevista, foi recorrente pela maioria das entrevistadas. No entanto, o fato de algumas mulheres mudarem de endereço no mesmo bairro, cidade ou mesmo de estado, também denota a dimensão do medo na suas vidas. Foi pensando na importância do relato das mulheres que haviam mudado de endereço por ocasião da morte do companheiro, que buscamos estabelecer contato com parentes e vizinhos de três destas, junto aos quais obtivemos informações como:

A sogra informou: “... ela mudou-se para o Maranhão para morar com a mãe...” A dona da casa da qual era inquilina informou: “... ela voltou para o interior onde mora a mãe...” A prima informou que: “... ela está morando em outro bairro, o endereço não sei informar...”

Procuramos localizar as mulheres que mudaram de endereço, e quando perguntávamos a vizinhos ou atuais inquilinos, nenhum afirmou conhecer a referida e sua respectiva família. Os dois casos que mais nos intrigaram, foram aqueles em que

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os atuais inquilinos dos imóveis afirmam estar naqueles endereços, num tempo imediatamente após os homicídios, ou seja, as famílias mudaram-se por ocasião das mortes. Para a maioria das interlocutoras, a entrevista significou além, de uma escuta confiável – para quem ela pôde contar situações jamais confiadas à outra pessoa, nem mesmo na rede familiar - a única possibilidade de falar sobre o assunto16. Alguns fatores foram relevantes para estabelecimento deste vínculo, o exercício de identidade alteridade contribuiu para tal; assim como o cuidado para não molestar os sujeitos. A identificação entre sujeito e pesquisadora ocorreu durante todo o processo pois, as mulheres entrevistadas residiam na região onde a entrevistadora nasceu; e algumas delas estudaram nas mesmas escolas brincaram as brincadeiras de ruas comuns à maioria das jovens pobres da região. Todas as entrevista foram realizadas pela própria pesquisadora, que recorreu aos recursos teóricos necessários para preservar a relação pesquisadora e sujeito da pesquisa. Em se tratando de memória compartilhada sobre o vivido pelas mulheres pesquisadas esse exercício é importante, em particular quando a pesquisadora investiga no próprio local de origem, mais precisamente a Vila Brasilândia onde nasci. Segundo Lozano (1994): ...o historiador oral que busca combinar neste tipo de pesquisa dados estatísticos, reflexão teórica, trabalho empírico e de campo na produção de conhecimento científico, deverá percorrer um caminho que implica, além de um relacionamento mais próximo com os sujeitos da pesquisa, voltar atrás várias vezes reflexivamente, sobre todo o processo, não de forma a apresentar neutralidade, mas para não perder de vista os papéis sujeito e pesquisador. (ACEVES LOZANO, 1994, p.24) A transcrição das histórias de vida foram realizadas por duas pessoas amigas e de confiança. A primeira escolha fora por uma pós-graduada que aprendeu a técnica de transcrição no desenvolvimento de sua pesquisa de mestrado. Apesar de suas habilidades, não possuía a vivência das periferias de grandes metrópoles como

16 Nos encontramos situações, onde parentes e amigos abandonam as pessoas mais próximas do morto porque elas têm medo de falar sobre o assunto pelo fato de causar dor e angustia a família que sofreu a perda. A dor da perda é mais sentida por conta da solidão. Porque, ao contrário do que se imagina os parentes precisam falar sobre o ocorrido.

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São Paulo; conseqüentemente encontrou dificuldades em decodificar determinadas expressões. Em razão disso decidimos que a própria pesquisadora realizaria as transcrições ou procuraria outro técnico. Pensamos que seria interessante uma pessoa que conhecesse a realidade desta periferia para melhor compreensão das gírias, nomes de lugares e aspectos próprios da região pesquisada. Por essa questão transferimos essa tarefa para meu cunhado JL, que por ter nascido e vivido grande parte da sua vida no Jardim Icaraí, foi capaz de entender e decifrar os diferentes códigos locais, bem como preencheu outros requisitos que pensamos ser importante para este trabalho que são: domínio da técnica e ser dotado de postura ética em virtude dos conteúdos acessados. É Geertz (1989) quem afirma a importância em conhecer o lugar pesquisado; assim o pesquisador saberá diferenciar uma piscadela burlesca, de um cacoete ou de um sinal de cumplicidade.

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Este mapa apresenta a distribuição da população com rendimentos de até dois salários mínimos, que coincide com as regiões de maior concentração da população negra nos distritos da São Paulo.

Mapa nº 2

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Capítulo 1

A Vila Brasilândia, descrita por um olhar feminino negro

Realizar uma etnografia é uma tarefa bastante complexa, pois exige estudos e observação exaustivos. (Geertz, 2000) Portanto, o que busco apresentar, é uma interpretação e análise da topografia, espacialidade, territorialidade, remontando aspectos das relações sociais, étnicas e de gênero, no Distrito da Vila Brasilândia. Por meio de lembranças de famílias moradoras, procuramos reconstruir a Vila Brasilândia a partir do final das décadas de 40, 50 e 60. Recuperar a história desse bairro paulistano a partir desta data, decorre da necessidade de pontuar seu desenvolvimento que, naquela década, teve seu território ocupado por famílias que se estabeleceram na região. A sua expansão demográfica mais significativa tem fortes bases na intensificação da industrialização nas regiões circunvizinhas, assim como o inverso, ou seja, a evasão dessas indústrias que também contribui para a expansão demográfica, mas com a deteriorização da qualidade de vida. Por se tratar de estudo sobre histórias de vida, baseado na teoria da memória desenvolvida por Pollak (1989) - que através da lembrança remonta um passado não longínquo, por mulheres que apesar de não terem vivido determinados períodos, relatam, por vezes, fatos que se referem a um tempo vivido por seus pais, como se fossem partes da sua própria existência.

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A Vila Brasilândia está localizada na região Noroeste de São Paulo, e compreende uma área de aproximadamente 21km quadrados com uma população em torno de 254 mil habitantes. Trata-se de um dos maiores distritos, não só em relação à população, mas também no espaço geográfico da zona noroeste da capital paulista. Sua topografia acidentada é caracterizada por vales profundos com áreas alagadiças e altos morros. Vila Brasilândia estabelece limites com os distritos da Freguesia do Ó, ao sul e a oeste; do Jaraguá, a oeste; da Cachoeirinha, a leste, e com os municípios de Caieiras e Mairiporã, na Serra da Cantareira17. Segundo consta em pesquisa realizada sobre a Vila Brasilândia18, essa região entre os anos 1580/1600 era constituída de grandes fazendas de escravos que compreendia uma extensa área que ia desde o bairro da Casa Verde até a Parada de Taipas. Após a abolição da escravatura, grande parte dessas famílias permaneceu na região e algumas foram sendo levadas à periferia da periferia, devido às altas de preços promovidas pelo progresso, especialmente o preço da terra em determinadas áreas, criando o que o CEM vem chamando de “fronteiras urbanas”. Na realidade esse processo repetir-se-ia muitas vezes na cidade na década de 80 e reflete-se no deslocamento dos serviços que existiam na Vila Brasilândia e que vão se estabelecer na Freguesia do Ó e Bairro do Limão por se tratar de bairros com melhor infra-estrutura e circulação financeira. Esse movimento de pessoas e fuga de serviços se realiza concomitantemente com a abertura para o capital internacional e fechamento de pequenas e médias empresas que resultam em desemprego e aumento da exclusão social. Esse fenômeno provoca também o deslocamento de espaços alternativos de lazer, que é confirmando pelo deslocamento da “Escola de Samba Rosas de Ouro” da Vila Brasilândia para se estabelecer na Marginal do rio Tietê próxima à ponte da Freguesia do Ó.

17 Fonte: Pesquisa “O Desejo de Brasilândia”, Coordenada pelo CENPEC/2000 18 Fonte: Pesquisa “O Desejo de Brasilândia”, Coordenada pelo CENPEC/2000

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Vila Brasilândia nos anos 50 Foto nº 2

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No final da década de 6019, a região se expandiu sendo ocupada por famílias que não tinham condições de pagar os custos dos alugueis, dando origem aos Bairros como Damasceno, Carumbé, Santa Terezinha e outros. A região durante muito tempo teve seu desenvolvimento dificultado pela ausência de pontes adequadas para transpor o rio Tietê. Havia apenas uma ponte estreita, construída com madeira, usada para acessar o bairro de Freguesia do Ó. A solução só ocorre no final da década de 50 com a construção da ponte da Freguesia do Ó. A partir deste evento, indústrias começam a se estabelecer em bairros vizinhos, mas nenhuma se estabeleceu na Vila Brasilândia. Os primeiros loteamentos realizados no bairro foram ocupados por famílias de maior posse, enquanto as famílias com menor poder de compra foram se estabelecendo em locais de risco da periferia, como os morros ou áreas alagadiças. A Vila Brasilândia hoje é considerada um distrito20, ela nasce numa divisão dos sítios e chácaras sob forma de loteamentos. A alguns desses foi dado o nome do proprietário. Com relação ao nome “Brasilândia”, segundo um antigo morador, Sr. Eduardo Basílio: “o nome teve origem em função de um dos seus antigos sitiante, o Sr. Brasílio Simões, e sua fundação ocorreu em meados de 1924”. A região surge e se desenvolve como uma possibilidade de moradia para a população de baixa renda no período do fortalecimento da industrialização, por volta dos anos 50 e 60. Tratava-se de uma alternativa para os trabalhadores de bairros próximos como Lapa, Barra Funda e , locais onde se estabelecia uma significativa zona industrial.

19 No Brasil na dec. de 70 o desenvolvimento acelerado provocou uma ocupação desordenada do solo em todo o Estado, desta forma as áreas mais próximas das industrias e que ofereciam habitações a baixo custo, deram origem às periferias. 20 Distrito é definido como área geográfica composta por um ou mais bairros, sob uma determinada administração. ( Houais,2001)

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No final da década de 60 que vai aproximadamente até meados da de 70, segundo antigos moradores, as relações entre vizinhas eram mais solidárias, percebia- se entre os adultos, especialmente entre as mulheres, um acordo tácito no cuidado com as crianças, assim como apoio emocional e material nas horas de dificuldade. Nesse período, a Vila Brasilândia, assim como outras regiões, apresentava variadas situações de criminalidade e fortes demonstrações de amizade. As interlocutoras desta pesquisa, recordam de alguns fatos e práticas muito comuns neste período, que evidenciam esta solidariedade desinteressada. A exemplo: quando morria alguém da vizinhança, sem que fosse necessário a família do falecido(a) pedir, fazia-se uma “lista”, ou seja um abaixo assinado, que era passado de casa em casa para que todas as famílias daquela comunidade pudessem contribuir com o funeral. Solidariedade semelhante acontecia em festas religiosas. Citamos aqui a de “Santo Reis” 21, Folia de Reis ou Reisado. Na Vila Brasilândia ela tem início no final dos anos 40. Celebrada em seis de janeiro simboliza o encontro dos três reis magos com o menino Jesus.

Recorte do jornal BOCA DO BAIRRO - nº 1

21 Festa do Catolicismo Popular realizada pelas Famílias Martins, Assis e Comunidade da Brasilândia no final dos anos 40 até os 80.

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A família Assis e a Martins, ali residentes, com característica matrifocal22, oriunda de Minas Gerais, uma das pioneiras na região, realizava todo ano esta festa que tinha como rito uma peregrinação iniciada em primeiro de janeiro, encerrando no dia seis do mesmo mês com a festa. Os foliões, visitavam a maioria das residências católicas da Vila Brasilândia durante esses seis dias recolhendo donativos. As famílias que não eram possíveis visitar, vinham trazer sua contribuição, que era em dinheiro ou espécies, para preparar bolos, doces, licores ou confecção dos enfeites. A celebração reunia aproximadamente duas mil pessoas ao longo do dia, que comiam, bebiam e circulavam alegres pelas ruas enfeitadas. Apesar da grande participação masculina, eram as mulheres as organizadoras da festa e “embaixadoras” dos cantos. Segundo Bernardo (2003), a construção do cotidiano de mulheres negras é importante para entender o seu papel e contribuição na questão cultural com destaque para o aspecto religioso. Entre outras atividades elas criam filhos(as), contam os “mitos ou estórias” e celebram os ritos. Com a mesma criatividade guerreira: organizam a família, distribuem a renda, partilham do mundo público, nas relações de trabalho. (BERNARDO, 2003, p.15) A partir de diversos relatos, constatamos que o largo desta igreja foi palco das articulações políticas, religiosas, sociais, e filantrópicas como as grandes quermesses realizadas no mês de junho, especialmente no dia 13, a de Santo Antônio. O principal espaço de encontro e de lazer para as famílias nesse período foi o Largo da Igreja de Santo Antônio. As festas do catolicismo popular, folclóricas e religiosas, nesse contexto eram elementos agregadores que fortaleciam as relações de amizade. Tais eventos, além de aproximar as pessoas, significavam a possibilidade de lazer para as diversas famílias da região. Esses eventos que contribuíram para a consolidação da comunidade de Vila Brasilândia, tinham lugar na principal avenida, no largo da Igreja de Sto Antônio. Em virtude das constantes atividades religiosas individuais que ocorriam em torno do cruzeiro, realizou-se no dia 4 de junho de 1942, de acordo com livro ata da igreja, a primeira reunião para discussão da construção de uma igreja naquele local.

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Tais atividades coletivas passam a ser agregadoras da comunidade, que ao longo dos anos realiza festas, quermesses, rifas e bingos para viabilizar a obra. Na coordenação das diversas atividades sempre estiveram mulheres como Dona Maria José e Dona Benedita, que faziam parte de grupo da igreja chamado de “Apostolado da Oração”. Ana Maria, atual liderança religiosa relata que, a participação feminina foi muito intensa e significativa. Com espírito transformador, mulheres negras e brancas, dedicavam grande parte do seu tempo para as obras da igreja que, para além da construção do prédio, ressignificavam as relações através das tarefas realizadas coletivamente pela prática da catequese pelos grupos de oração e de estudos bíblicos.

22 Família tipo nuclear, no que refere a composição, mas diferente na sua centralidade de poder, pois este se centra na figura feminina, mulher.

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Paróquia Santo Antônio de Vila Brasilândia Dez/1958

Foto nº 3

Neste Local, rua Parapuã, exatamente onde está aquele pequeno cruzeiro foi construída a igreja Matriz de Vila Brasilândia.

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Paróquia Santo Antônio de Vila Brasilândia Foto nº 4

A catequista Dona Benedita em pé entre as crianças, que fazem sua primeira comunhão. Sentados: do centro para a direita; pároco Padre João, Dona Maria José Martins e Dona Benedita, catequistas e co-responsáveis pelo levantamento de fundos para a construção da Igreja.

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No que se refere aos movimentos por saúde e creche, esses se dão no mesmo bojo de discussão, ou seja, a partir das demandas trazidas pelas mulheres que tinham que trabalhar fora de casa para o sustento da família, as quais não tinham com que deixar os filhos. Concomitante a essa demanda, a necessidade do cuidado com o seu próprio corpo surgiam como preocupações secundárias. É dessas preocupações e articulações que nascem os movimentos. Apreendemos, a partir desse e de outros processos de organização, o protagonismo feminino que ainda é invisibilizado não só na região como em toda sociedade. Com o advento das CEB´s – Comunidades Eclesiais de Base – os leigos passam a realizar as celebrações não só na paróquia mas também nas comunidades mais distantes. Diversas mulheres jovens e adultas encararam desafios aceitando os ministérios mesmo com a possibilidade das pessoas abandonarem os ambientes quando descobriam que elas eram as “ministras da palavra”, ou seja quem iria celebrar. Essas mesmas ministras da igreja relembram sobre a dificuldade de reunir as mulheres para realizar discussões sobre suas questões específicas. Relembram que para constituir grupos de mães, o fizeram com propósito de fazer trabalhos manuais como tricô e crochê, e em meio às atividades discutiam questões como: saúde reprodutiva, concepção, contracepção, creche para os seus filhos, escola, saúde e segurança. No princípio, somente as atividades faziam com que elas permanecessem nas reuniões. Não foi possível situar o marco das grandes transformações, porque foi um processo. Mas foram pontuados por moradores envolvidos com a comunidade, que é a partir das CEB´s que se firma a participação dos leigos23 na igreja. Desde então, a igreja passa a se preocupar com as questões sociais e os padres se aproximam mais da comunidade. Nesse processo a catequese é renovada, capacitando-se para ministrar ensinamentos religiosos em linguagem acessíveis às crianças e demais segmentos, (até pouco tempo as missas eram realizadas em Latim e os padres ficavam de costa para os fieis). Diferentemente, no final dos anos 70 e começo dos 80 se constituía na região um grupo chamado “Grupo de Consciência Negra”, formado por pessoas de

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diversos credos. Esse se reunia para debater sobre diversos temas, e não integravam os grupos apoiados pela igreja. Esse grupo que se iniciou com cinco pessoas preocupados com a questão racial, buscavam manter sua autonomia para poder receber pessoas dos mais diversos credos. Predominantemente feminino, o grupo recebe o nome de “Grupo de Consciência Negra Luiza Mahim24”, hoje coordenado pela Dona Reni. Um dos grandes estimuladores deste grupo na Vila Brasilândia foi o Padre Jaime25 Na década de 80, o caráter ecumênico do grupo possibilitou a realização de um evento que foi um verdadeiro sucesso. Contou com a presença de umbandistas, evangélicos e católicos; foi sediado pelas “Missionárias Médicas de Maria”, com o apóio de lideranças religiosas Brígida26 católica e a Pastora Bárbara que era da igreja metodista. Foram essas quem inseriram a discussão sobre a saúde da mulher entre as pastorais e demais grupos. Abordava também a questão do que é ser negra(o) e a violência contra a mulher. Ocorre também na década de 80 a eclosão dos movimentos sociais. É nessa perspectiva que a campanha da fraternidade que o grupo de negros, sob a liderança de Maria José, ganha visibilidade e, mais precisamente em 1987 sugerem como tema da campanha da fraternidade: “Ouvi o clamor do povo negro”, sobre o qual houve discussão acirrada em toda a igreja. Por fim, foi eleito para a campanha da fraternidade “Ouvi o clamor deste povo” que só é lançada em 1988. A recusa do tema, provoca um conflito entre os grupos da igreja, e “Ouvi o clamor do povo negro”, é lançado junto com a campanha da fraternidade do ano 1988, por via marginal. Este conflito foi positivo no sentido de despertar nas lideranças negras

23 Os leigos, são pessoas comuns, pertencentes às comunidades que estão engajadas nos movimento da igreja desenvolvendo atividades. 24 Segundo Alzira Rufino, Luiza Mahin, nasceu na África trazida para o Brasil como escrava. Alguns autores afirmam que nasceu em Salvador Bahia 1812. Liderança negra ativa, participante das revoltas contra o regime da escravidão. Mãe de Luiz Gama um dos maiores abolicionistas do Brasil. Liderou com escravos a Insurreição Baiana, a Revolta dos Males – foge de ser presa e vem para o Rio de Janeiro, continuando sua luta pela liberdade. Foi presa e deportada para África. 25 O falecido Padre Jaime - estimulador e precursor de diversas pastorais na Região Norte de São Paulo e conhecido pelo trabalho realizado com a “pastoral carcerária”, a qual trabalhou e fortaleceu a luta pelos Direitos Humanos - fornece ao grupo de consciência negra, que era composto também por brancas(os) um livreto cuja capa tinha escrito “O negro tem valor?”. Este era de uma publicação das Edições Paulinas que provocava reflexões sobre questões cotidianas da população negra. 26 Brígida é uma religiosa que leva para os grupos da Vila Brasilândia a discussão sobre a mulher, principalmente sob a ótica da saúde e sexualidade. O que ela trazia para essa comunidade e paróquia era a visão das mulheres “católicas pelo direito de decidir” sobre o aborto.

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desta comunidade o desejo de se fortalecer e ampliar a discussão para outros segmentos da região, principalmente os leigos. Nesta perspectiva, o pequeno grupo apoiado pelo padre Jaime convida representantes de todos cultos e crenças para ato ecumênico no largo da igreja realizado em 20 de novembro, (dia da consciência negra27), de 1988, (ano em que se comemorou o centenário da abolição da escravidão no Brasil). O sucesso deste evento tornou visível aos negros e negras não apenas a necessidade de se organizarem, mas também as dificuldades que iriam enfrentar para discutir o racismo bem como o sexismo especialmente no âmbito da igreja. Ana Maria, Maria, Maria José e José Luiz, Lideranças Comunitárias, Negras e Religiosas relatam que: “uma das maiores vitórias dos diversos grupos de consciência negra que nasceram por toda a região sobre o nome de Agentes de Pastoral Negro, foi a instituição da ”Pastoral do Negro” no âmbito da igreja”. Já para a comunidade foi a realização de uma cerimônia de casamento de duas fortes lideranças negras religiosas em moldes que buscavam uma aproximação a um modelo negro, “Afro” como se dizia na época. Hoje, após doze anos da realização deste casamento ainda ouve-se comentários como o seguinte:

...Menina, eu não vou esquecer do seu casamento, porque ele deu a oportunidade da gente ser negro bonito como queríamos ser sempre. Nunca tive e ele deu oportunidade da gente usar nossas roupas alegres, bonitas e dançar dentro da igreja. A gente queria fazer isso tudo e não sabia como fazer. Eu lembro que dancei muito, eu pus minha roupa bonita e fiquei muito a vontade. Estava tudo bonito, tinha muito negro e estava tudo muito gostoso. (Sujeito da Pesquisa).

27 Dia nacional de comemoração da morte de Zumbi – líder do quilombo dos Palmares, morto em 20/11/1695.

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A cerimônia do casamento “Afro” que a senhora relata com muita emoção.

Foto nº 5

Foto nº 6

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Brasilândia: agregação e segregação

Durante muitos anos o Largo da Matriz de Vila Brasilândia representou o marco da maioria das festas do bairro e recebia em suas missas a maioria da população. Contudo a igreja católica hoje concorre com outras religiões para ter a atenção dos fiéis. Ao longo da Rua Parapuã encontramos Templos dos mais diferentes cultos. Alguns com certa visibilidade, outros não.

Igreja Santo Antônio de Vila Brasilândia

Foto nº 7

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Congregação Cristã no Brasil Foto nº 8

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Igreja Universal do Reino de Deus Foto nº 9

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No que se refere à divisão do espaço geográfico, a Vila Brasilândia, não é diferente das demais periferias de São Paulo, acomoda nas principais ruas e avenidas um variado e movimentado comércio. A mais antiga rua do bairro, a Parapuã, no passado se constituía numa trilha, era o único acesso para os moradores chegarem ao bairro da Freguesia do Ó, para utilizarem o também único transporte coletivo da região, um ônibus que realizava o percurso Freguesia do Ó / Praça do Correio/Freguesia do Ó. Essa rua conserva, ainda hoje, as características da época de sua inauguração - há décadas - para o trânsito de veículos. Em suas calçadas estreitas, vendedores(as) ambulantes dos mais variados produtos dividem o espaço com os pedestres. A pavimentação da rua favoreceu o estabelecimento e desenvolvimento do comércio local que apresenta um intenso fluxo de pessoas durante o horário comercial, aumentando consideravelmente nos fins de semana.

Foto nº 10 rua Parapuã

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Essa rua, na sua extensão, especialmente no trecho próximo à Igreja Santo Antônio, com o decorrer dos anos tornou-se espaço de realização de festas especialmente as relacionadas ao catolicismo. Eram realizadas procissões, quermesses e festas cujos objetivos eram, a princípio, arrecadar fundos para a construção da atual igreja. Segundo uma antiga moradora, o inicio da sua construção data da década de 50, ela conta que quando tinha cerca de 5 anos, ajudava a carregar tijolos para a obra. Contudo as atividades nesse espaço não se restringiam àquelas organizadas pela comunidade católica. A Rua Parapuã foi palco de desfiles de escolas de samba nos anos 60 e 70. Naquele tempo, nos carnavais de bairros não havia grandes arquibancadas. Cordões separavam o público dos foliões/carnavalescos ou ainda dos desfiles escolares realizados nas datas comemorativas de eventos de nossa história. Jovens de ambos os sexos, encontravam-se formando diversos grupos no largo da paróquia para “paquerar” e conquistar um namorado(a). Hoje, o largo da igreja ganhou um belo e arborizado jardim e foi cercado por altas grades de ferro, impossibilitando o acesso fora dos horários de atividades e missas. As grandes quermesses, deram espaço para festas menores realizadas nos vários salões da paróquia. Percebemos que a Rua Parapuã, em sua extensão, - especialmente no trecho que próximo a Igreja Santo Antônio, - com o decorrer dos anos tornou-se um espaço de realização de todos os tipos de manifestações, mas privilegiava as relacionadas ao catolicismo. No princípio tais eventos visavam arrecadar fundos para a construção da atual igreja. Segundo uma antiga moradora, o início da sua construção data da década de 50, ela conta que quando tinha cerca de cinco anos de idade, ajudava a carregar tijolos para a obra. Contudo, as atividades neste espaço não se restringiam àquelas organizadas pela comunidade católica; essa rua também foi palco de desfiles de escolas de samba nos anos 60 e 70. Apesar de não possuir agências bancárias, a Rua Parapuã não perdeu sua característica de ponto central de comércio, tanto de pontos fixos como ambulantes. Nesse centro de compras, encontram-se os mais variados tipos de comércio, que vão

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desde os grandes supermercados ao verdureiro que com um carrinho de mão oferece sua mercadoria para os transeuntes e também de porta em porta.

Foto nº 11 rua Parapuã

Nessa rua – que alguns chamam de avenida – as pessoas, algumas apressada, transitam com olhares atentos às vitrines das lojas. O movimento de entrada e saída nos estabelecimentos comerciais, se dão no mesmo ritmo verificado no trânsito das calçadas e da via de rolamento. O congestionamento é constante, em especial aos sábados, quando as pessoas, em meio às compras, ocupam os balcões dos bares ou mesas na calçada para uma conversa e uma bebida. Esse vai e vem de pessoas acontece durante o dia, porque diferentemente do passado, raros são os bares que permanecem abertos durante a noite. E, por não ser um lugar com intensa vida noturna as pessoas não se preocupam com a roupa que usam para passear, trajam-se com roupas simples, as mesma que vestem dentro de suas casas. Apesar de receber alguns jovens, os freqüentadores dos bares da Rua Parapuã são na maioria pessoas com idade média ou da terceira idade. Os jovens, em

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grande parte preferem, em especial a noite, ir para salões de baile ou para o Largo da Matriz da Freguesia do Ó. Localizado no bairro de mesmo nome, esse espaço caracteriza-se por reunir um conjunto de bares e restaurantes em torno do largo da Igreja que atraem sua jovem clientela com música ao vivo. Isso ocorre ao mesmo tempo em que na praça oferecem-se shows, feiras culturais e gastronômicas além de outras alternativas de lazer. No passado, a Rua Parapuã abrigou o carnaval da Vila Brasilândia. À época, a Escola de Samba Rosas de Ouro de Vila Brasilândia, nascia como um bloco carnavalesco chamado “Vai quem quer”, que durante muitos anos desfilou pelas ruas do bairro, onde também mantinha sua sede social. A Escola realizava seus ensaios na rua localizada atrás da igreja, conhecida até hoje por todos como a Rua da feira. O ápice dos desfiles ocorria diante do palanque principal, construído para abrigar representantes do carnaval e demais autoridades, quando esses se faziam presentes. E esse palanque ficava em frente da referida igreja. Outras Escolas de Samba como Camisa Verde Branco e Mocidade Alegre proporcionavam um colorido especial à rua em nas vidas dos foliões que aguardavam ansiosos a chegada das festas de Mômo. O Bloco “Vai Quem Quer” nasce em 1963/6428, e a Escola de Samba Rosas de Ouro, nasce deste bloco na Vila Brasilândia em 1971, fundada por um grupo de amigos batuqueiros, dentre eles; Jose Luciano Tomaz da Silva, João Roque, o Cajé e José Benedito da Silva, o Zelão. A Escola teve como presidente o falecido Eduardo Basílio. Durante alguns anos a escola manteve sua sede social (quadra) em uma rua da Vila Brasilândia que recebeu o nome da escola: Rua Rosas de Ouro. Quando a Escola se muda para a Marginal Tietê, próximo à ponte da Freguesia do Ó, muitos foliões deixam de participar do carnaval por diversos motivos. Em primeiro lugar porque as fantasias que eram em grande proporção cedida aos participantes mais pobres passam a ser vendidas. Alguns mais persistentes adquiriam carnês de prestação e pagavam por muitos meses as fantasias. O segundo fator que contribuiu para o afastamento de participantes foi o que algumas pessoas chamaram de “elitização”, foi o ingresso, em grande proporção, de pessoas com maior poder econômico, cuja permanência era incentivada com privilégios como fantasias de

28 Exposição do Carnaval Paulistano – Carnaval em Branco e Negro, Acervo do Centro da Memória da Unicamp.

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destaque e outras, que no plano simbólico ecoava como uma redução da importância da presença de seus nativos, um símbolo de sociabilidade da comunidade. Essa abertura para a “elite” dificultou a participação em grande proporção da comunidade da Vila Brasilândia. Nos primeiros anos após a mudança, ônibus cedidos pela prefeitura conduzia os foliões ao desfile os quais foram sendo reduzidos até a extinção. O mesmo fim teve os desfiles de carnaval realizados na Rua Parapuã. Famílias numerosas, com raras oportunidades de entretenimento se deslocavam para apreciar os diversos desfiles.

Antiga quadra social da escola de Samba Rosas de Ouro na Brasilândia na Rua Rosas de Ouro

Foto nº 12

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Ensaio na quadra social da Sociedade Rosas de Ouro – ponte da Freguesia do O. Foto nº 13

Desfile da Escola de Samba Rosas de Ouro no Sambódromo Paulistano Foto nº 14

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Cabe salientar que a parte da história da Sociedade Rosas de Ouro, que faz menção ao seu nascimento na Vila Brasilândia, não consta da sua biografia localizada no site: www.sociedaderosasdeouro.com.br, a qual buscamos reconstruir a partir de outras fontes como lembrança de antigos moradores e integrantes da referida escola. A expropriação cultural na periferia representa deteriorização nas relações, pois sem os eventos socializadores e agregadores, têm-se ampliado a dessocialização e o individualismo é exacerbado, porque para a população só resta a luta pela sobrevivência, onde a competitividade vem impondo limites às relações de solidariedade e amizade. Todavia, alguns bairros como aqueles constituídos na sua maioria por favelas mais antigas, como o Jardim Icaraí as relações de amizade e vizinhança, preservam aspectos positivos, que são situados por Passetti, como uma reinvenção das relações entre os iguais no âmbito privado, com interesses coletivos, as quais podem-se chamar de solidárias. Essa relação é comum entre as mulheres. Podemos vê-las às portas, sentadas nas escadas das vielas conversando, auxiliando, dividindo não somente problemas, mas alimentos ou coisas materiais como roupas. A articulação de lideranças comunitárias, associação de moradores e ONG´s, tem contribuído para preservação deste modelo de relação. Contudo, é importante salientar que tais articulações e relações não são representativas do conjunto da região. Este enfoque é importante, para percebermos que as mudanças das relações, ocorrem ao mesmo tempo da mudança da paisagem urbana, ou seja, quando se inaugura um novo loteamento ou conjunto habitacional, tem-se as ocupações desordenadas no seu entorno. Este processo as vezes dificulta a percepção de onde inicia os loteamentos ou começam as favelas, pois a estrutura inacabada e precária das habitações são semelhantes para os moradores da periferia. A construção dos Conjuntos Habitacionais – COHAB, acompanham os padrões de construção dos grandes condomínios de classe média, no que tange ao levantamento de muros, assim como a segregação social, porque esse tipo de construção impõe limites às relações, pois amplia as formas de evitação. Segundo Caldeira, esse processo é decorrente, também, do avanço da ciência no desenvolvimento de novas tecnologias, as quais têm proporcionado à cidade

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de São Paulo, além da mudança da paisagem urbana pela construção dos “enclaves fortificados” reproduzidos nas periferias pelas COHAB29, mudança nas relações de vizinhança. A ideologia ultrapassa a dimensão de classe social, pois mesmo nos apartamentos mais simples, em conjuntos habitacionais construídos em sistema de “mutirão30”, são instalados sistema de monitoramento por câmeras de vídeo para controlar os movimento de entrada e saídas de pessoas moradoras ou não do condomínio. Todavia, para os moradores da periferia esses mecanismos de “prevenção à violência” não representam uma vida longe dela. Reconhecemos que, como no passado, hoje as crianças, os jovens e a população adulta que habita a região não possui espaços adequados para lazer. Dois clubes públicos municipais construídos na década de 70 funcionam como alternativa31. Contudo, esses não possuem infra-estrutura nem manutenção adequada para a atender a demanda do distrito de Vila Brasilândia que cresce a cada dia. Desta forma, a maioria das atividades de lazer das crianças e jovens, acontece em espaços de jogos eletrônicos, em bares, em bailes, ou nas ruas com música tocada e cantada por grupos amadores locais. Todavia, hoje os espaços das ruas, principalmente os das periferias, tornaram-se muito perigosos para os jovens, especialmente os negros, pois além do risco de aliciamento ao uso e tráfico de drogas, eles também vêm sendo alvos preferenciais da polícia. No que tange a equipamentos como creche, escolas, hospitais e postos de saúde, a Vila Brasilândia é extremamente carente. A infraestrutura oferecida pelo Estado não acompanha o crescimento da região. Portanto, em se tratando da vulnerabilidade de jovens e homens negros, é necessária uma abordagem do ponto de vista histórico para o entendimento das questões aqui colocadas, e de que maneira essas incidem sobre aqueles hoje.

29 COHAB – Conjunto Habitacional Popular 30 Os mutirões são incentivados e se desenvolvem não apenas como forma de baratear o custo das moradias, mas também como forma de organização popular.

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Distrito da Brasilândia

Foto nº 15

31 CEEFO – Centro Educacional e Esportivo Freguesia do O - CEEBRA - Centro Educacional Esportivo Brasilândia

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Uma estratégia adotada por lideranças das periferias no enfrentamento dessa situação, foi à criação de associações de moradores e parcerias com ONG´s e Universidades para desenvolvimento de projetos sociais envolvendo principalmente a juventude local. As atividades constituem-se, além de ocupação temporária, criação de espaços para pensar a organização da comunidade em torno das suas demandas. As iniciativas nesse sentido são importantes, mas não apresentam alternativas aos problemas enfrentados pelas mulheres negras chefes de famílias, tão pouco possibilita aos jovens, na maioria das vezes seus filhos, uma saída ao risco de morte, o qual incide freqüentemente sobre aqueles com idades entre 15 a 25 anos.

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Periferias, favelas, desterritorialização32 e segregação33

A Vila Brasilândia não oferece muitas alternativas de diversões noturnas e diurnas decorrente de diversos fatores como desemprego, onde não há emprego não circula dinheiro. Podemos perceber uma certa semelhança no comportamento das pessoas nas diversas periferias de São Paulo, aquelas que podem pagar, estão preferindo o lazer dentro de casa ou optam por bares e clubes fechado, enquanto que nas favelas, observa-se a freqüência da população aos botecos improvisados em minúsculos quintais, que se multiplicam a cada dia. Nesses lugares, o comércio, vem se transformando em principal fonte de renda de desempregados(as), da mesma forma que os minúsculos bares, chamados de botecos, em espaço privilegiado de “entretenimento” de desempregados e pessoas de baixa renda. Em alguns desses pontos, o comércio é bem diversificado, podendo-se adquirir gêneros alimentícios, drogas lícitas, (bebidas alcoólicas), e ilícitas, (maconha, cocaína, crack e outros). Os moradores(as) das favelas da Vila Brasilândia, em especial do Jardim Icaraí, realizam trabalhos coletivos buscando melhoria da sua qualidade de vida. Dessa forma, os mutirões são bastante recorrentes para construção e manutenção do saneamento básico e dos acessos para o interior da favela. São caminhos irregulares e estreitos, construídos sobre uma precária rede de esgoto, por onde passam todo tipo de detritos dos barracos, pois nesses lugares o saneamento quase não chega e em alguns lugares não existe. O saneamento básico representa uma série de medidas que tornam uma área sadia, limpa e habitável, oferecendo condições adequadas de vida para uma população.

32 Territorialidade, neste contexto é empregada segundo reflexão desenvolvida por Silva (2004) em Santos, (2000) enquanto um, espaço geográfico que é fragmentado na dinâmica da globalização, que agrega ou não valor, dependendo dos investimentos efetuados. “Milton Santos, compreende o território como um conjunto de lugares e o espaço nacional como um conjunto de localizações que estão em constante mudança. Sua preocupação central é que, nesse conjunto de localizações, os gastos públicos visem os seres humanos e assegurem a cidadania a todos32. Para ele, o território tem finalidades especificas”. (SILVA, 2004,p.51) 33 Segregação é uma prática discriminatória e consiste em separar, geograficamente, indivíduos e grupos, dificultando a utilização de serviços, recusa de empregos, direito de voto e a proibição de miscigenação. Este tipo de discriminação poderia ser exemplificado principalmente pelo apartheid vivido na África do Sul.

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É sobre a rede de esgoto improvisada que os moradores constroem seus barracos deixando livres uns caminhos estreitos – as vielas – por onde circula apenas pessoas, já que o caminhão do gás, a ambulância e outras viaturas não passam como pode ser observado nas imagens abaixo.

Moradores do Jardim Icaraí em trabalho coletivo Foto nº 16

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Obras da rede de esgoto Foto nº 17

Portanto, pensamos que as necessidades coletivas também funcionavam como elementos agregadores, ao passo que essas vão sendo supridas, as pessoas voltam-se para suas lutas individuais. Então percebemos que a presença do Estado nesses aspectos, depende do poder de organização e aglutinação das pessoas em torno das suas demandas. Mas é justamente o desmantelamento do Estado regulador, dos movimentos sociais, bem como dos sindicatos de trabalhadores, que também afeta as organizações de base comunitária. Pesquisas realizadas34, mostram que a Vila Brasilândia tem 21.915 crianças com idades entre zero e três anos, sendo que 9.408 dessas aguardam vagas nas creches. Apontam ainda que está localizado nesse distrito o maior número de crianças de zero a seis anos sem vagas nas creches. Foi recorrente durante as visitas a campo, encontrar crianças pequenas aos cuidados de outras um pouco mais velhas, na maioria

34 Jornal Cantareira, novembro de 2003, com base no senso de 2000.

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das vezes com idade entre oito e dez anos de idade. No entanto este fato não singulariza a Vila Brasilândia – é verificado em todas periferias de São Paulo. A situação que buscamos delinear, é importante no sentido de apreender a luta pela sobrevivência das famílias chefiadas por mulheres. Estudos e pesquisas demonstram que a globalização e as novas formas de produção baseadas em avançadas tecnologias, têm contribuído para um, novo desenho geográfico nas relações sociais que ocorrem na Vila Brasilândia. Neste estudo mostramos que a modernização, na periferia, representa a acentuação da pobreza, principalmente entre as famílias monoparentais chefiadas por mulheres negras, construindo o fenômeno denominado feminização da pobreza. As mudanças referidas, produzidas na sociedade, são percebidas principalmente pela redução de empregos que atinge pessoas com menor grau de escolarização. Essa questão é importante para ampliar o debate sobre as novas formas de segregação social, espacial e racial. Desta feita, as pessoas desempregadas passam a sobreviverem de “bicos”, percorrendo longas distâncias para chegarem ao local de trabalho com salários reduzidos. Tais mudanças produzem impacto nos planos social e econômico que são sentidos nas oportunidades de acesso à educação com qualidade, trabalho e renda35. Segundo Caldeira, os efeitos resultam no aumento da distância entre a periferia e o centro, acentuando as desigualdades, contribuindo para o aumento do preconceito e da discriminação étnica, de gênero e de classe social fortalecendo o racismo. (CALDEIRA,2000, p.28) O caráter simbólico, deste processo dificulta a decodificação dos aspectos políticos ideológicos, pelos seguimentos que mais têm sentido seus efeitos – os pobres, os negros e as mulheres. É Caldeira (2000) quem afirma que as divisões, as mudanças e as distâncias fazem parte da nova paisagem urbana desenvolvida para favorecer as separações, resultando na multiplicação das regras de evitação e de contato e, com isso, os seguimentos empobrecidos têm seus movimentos cada vez mais restringidos. Esta situação contribui para a falta de perspectiva de inserção, mobilidade e ascensão no trabalho, fazendo com que muitos jovens e adultos negros se tornem

35 Dados da Fundação SEADE – Mercado de trabalho segundo cor/sexo, 2003.

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vulneráveis à criminalidade e particularmente presas fáceis tanto para o tráfico quanto ao consumo de drogas. Não se trata de afirmar que ser pobre e morar na periferia seja determinante para viver na criminalidade, mas são fatores que contribuem para isso. Uma pesquisa recente realizada pelo CEM – CEBRAP36 sobre as fronteiras urbanas, categoria utilizada para análise da expansão demográfica nas metrópoles, demonstra que, o Jardim Paraná, localizado no distrito de Vila Brasilândia, visto da sua área mais baixa, revela construções precárias que vão da base até o topo do morro em contraste com a imensa área verde, a Serra da Cantareira37. O demógrafo que desenvolveu este estudo conta, que segundo os moradores, no princípio da ocupação a floresta abrigava uma diversidade de animais. Os macacos que habitavam a mata, durante a noite, retiravam o sapé do telhado dos barracos. Isso ocorre em 1994; cuja atitude o demógrafo explica como resistência à ocupação humana. A ocupação teve início com cerca de 200 famílias, e, hoje se estima que residam 3.000. É esta forma de ocupação que os geógrafos do CEM-CEBRAP estão classificando de “fronteira urbana”. Este conceito é utilizado para explicar o crescimento populacional nas fronteiras da região metropolitana de São Paulo, cujo ritmo foi de 6,3%, ou seja, seis vezes maior que a média brasileira que é 1,6%. As fronteiras urbanas da região metropolitana abrigam cerca de 33% da população. Esse expressivo aumento populacional nessas áreas, decorre também de um fenômeno chamado de “válvula de escape urbana". Segundo Haroldo da Gama Torres, a redução no ritmo de crescimento populacional, não resultou em igual medida na redução da demanda por serviços públicos, ou seja, nas regiões para onde a população migrou, os equipamentos públicos, (de saúde e educação, por exemplo), não acompanharam a expansão; enquanto que nas áreas consolidadas, estes ficam ociosos. Os estudos desenvolvidos sobre a Vila Brasilândia, evidenciam que ela concentra os seguimentos que mais aumentaram em termos populacionais e possuem os piores IDH – Índice de Desenvolvimento Humano. Neste sentido, a pesquisa do CEM aponta para a contribuição das migrações para constituição desse quadro chamado de “inchaço das fronteiras paulistanas”. Dos 2,1 milhões de pessoas que passaram a habitá-las nos anos 90, 703 mil vieram de outras unidades da Federação –

36 CEM – CEBRAP, Centro de Estudos da Metrópole; Centro de Estudos Brasileiro sobre Populações/2004

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destas, 521 mil vieram do Nordeste. Embora representassem apenas 19% da mancha urbana em 1991, as fronteiras receberam 42% dos migrantes interestaduais e 46% de todos os migrantes nordestinos. Esses novos habitantes consolidaram os piores indicadores da mancha urbana. A renda per capita é cerca de um terço em comparação com a cidade consolidada38. O analfabetismo dos chefes de domicílio é três vezes maior. O desemprego é mais acentuado do que no resto da metrópole. A cidade que não pára é a imagem que prevalece nas “fronteiras urbanas”. A área censitária39 a que pertence o Jardim Paraná, na Vila Brasilândia, teve uma taxa de crescimento populacional de 10% ao ano na década de 90, ou seja, dez vezes mais que a média da capital. Os espaços são disputados a palmo. A cidade precária afronta a serra e cerca os cursos de água, que se transformaram em escoadouro do esgoto abundante. Conta- se que, na zona norte dos anos 60, o córrego Cabuçu, hoje contido e malcheiroso – localizado entre as pistas da avenida Inajar de Souza – formava um vale bucólico, onde era bom pescar e lavar roupa”. ( CEM-CEBRAP, 2004)

37 Este detalhamento pode ser observado na foto nº 12, imagem parcial do distrito da Brasilândia. 38 Cidade consolidada é aqui entendida como loteamentos regulares nos bairros mais próximos ao centro de São Paulo. 39 Área censitária é o perímetro a ser pesquisado. Define-se uma gleba, e dentro desta são sorteadas as habitações, ou seja seleciona amostra da pesquisa.

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O mapa abaixo apresenta as regiões de maior vulnerabilidade juvenil das quais a Vila Brasilândia faz parte.

Mapa nº 3

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É neste bairro, ruas, vielas e favelas que moram os sujeitos da minha pesquisa. Mulheres de maridos ausentes como diz Maria Odila40 sobre as mulheres negras, só que a historiadora referiu-se às mulheres do séc XIX, e, o motivo da solidão não era o homicídio dos seus companheiros. Entretanto, hoje, a mesma situação é vivenciada por diferentes motivos e, um deles, segundo Barbosa, decorre da violência urbana. A morte violenta é a segunda causa de óbito entre os homens negros e a quarta entre os homens brancos. Mariano confirma esse fenômeno, quantificando o número de homicídios praticados pelas polícias civil e militar, dos quais 97% das vítimas são do sexo masculino, 3% do sexo feminino; 70% tinham idade entre 18 e 25 anos; 20% tinham idade entre 20 a 35 anos, 5% eram menores de idade, 5% tinham acima de 35 anos, 57% não possuíam antecedentes criminais, 62% das vítimas eram negras e 38% eram brancas. (Fonte: Jornal Folha S.P. de 19/10/99). E, segundo pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, o homicídio é a primeira causa morte entre jovens41 de 15 a 24 anos no Brasil. Segundo Torres (2003), entre 1998 e 2000 ocorriam 43,71 por habitante (em 100.000). Os homicídios entre jovens de 15 a 29 anos são de 94,80 por habitante (em 100.000), ou seja, 61% de todos os homicídios que ocorreram em São Paulo”. (Silva, 2004,p.117) Apresentar dados estatísticos, é importante à medida que esse estudo ocorre para dar visibilidade à violência existente fora do espaço doméstico ou da intimidade mas que atinge diretamente a mulher.

40 Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano e Poder em São Paulo no séc XIX, 1995 41 Silva (2004, p117) em Adorno (2003)

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Capitulo 2

Fragmentos da memória e da trajetória de mulheres negras:

... é a Alessandra, aí ela ficou doente, ela estava com quatro meses... ela ficou doente, teve uma febre, estava com febre e vômito. Aí, levei ela no Pronto Socorro aqui da João Paulo, transferiram ela para o Hospital da Casa Verde, é o Hospital Santa Clara! Lá, não tem o Hospital Santa Clara? Tem a Maternidade Santa Clara e tem o hospital ao lado, e ela ficou internada lá um mês e a visita lá era de 5ª feira. Estive lá numa 5ª feira, fui visitá-la, ela estava de alta, era 5ª feira. Tinham raspado a cabecinha dela, e ela estava alegrinha assim; chorou para vir comigo, eu a peguei e falei: vou ver se no Serviço Social eu arrumo roupa lá? Aí a enfermeira falou assim: ah! Deixe-a hoje aqui, vai ser meu plantão, amanhã você vem buscá-la e já traz a roupinha dela direitinho..., eu sempre fui um coração mole..., eu nunca fui de falar não! Ela falou: ah, deixa? Eu cuido bem dela! Falei: está bom. Então amanhã cedo eu venho buscá-la? Ela falou está bem..., pode deixar, é o meu plantão, e eu passo hoje com ela; é que eu a adoro, é um amor de menina, aí eu deixei. Quando eu fui lá de manhã, não a achei. Perguntei na portaria, fui falar lá no balcão: “ah! ela pegou uma febre muito alta, está no isolamento”. Fui no isolamento, não achei ela, aí eu já me desesperei... pergunta para lá, pergunta para cá... aí chegou um enfermeiro... ele falou o que estava acontecendo: “ a senhora foi ver no necrotério?” Ela está no necrotério? “Ela morreu ontem, é morreu às 05:00 horas da manhã”. Ela estava de alta, estava boazinha, boazinha, boazinha...! Aí, ele falou: “a senhora vai lá, que ela está no necrotério...”, quando eu cheguei no necrotério menina...! Tinham trazido o corpo para lá, num canto tinha uma mesa quadrada e ela estava jogada em cima da mesa enrolada num pano! Um pano branco..., você acredita, que colocaram a minha filha num pano todo manchado? E essa minha irmã que morreu estava comigo; e quando nós a desenrolamos, saía bicho do nariz, dos olhos, tudo. Minha irmã na hora me tirou de lá, ela me tirou de lá, chamou eles e mostrou a situação que estava, porque saía bicho assim pelo nariz, bicho de vareja, acredita? Assim no canto do olho, assim no ouvido sabe. E ela era gorda, bonita... bonita. [...] E como que já estava saindo os bichos? E ela fedendo, estava fedendo e saindo aqueles bichos; mas ela estava bonitinha dando risada e tudo..., precisava ver a alegria dela! E ela dava os bracinhos para mim, precisava ver.

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O retrato que é desenhado a partir de fragmentos da história das mulheres no Brasil, acena para a necessidade de olharmos para a história oficial de forma crítica. A leitura deve ser atenta para se perceber as lacunas, que revelam a ausência da população negra na construção desta história42. Pensamos que estes espaços devem ser preenchidos por memórias individuais que se confirmam e completam no coletivo, especialmente no que tange as mulheres negras, que como guardiãs do conhecimento e sabedoria, transferem oralmente nos grupos de convivência, espaços de afetividade, ou seja, no subterrâneo, onde estão guardadas as memórias coletivas das vivências, experiências, encantos e desencantos que compõem as memórias do grupo. É na memória subterrânea definida por Pollak que estas lembranças se encontram. Sobre elas Pollak discorre que “prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados” (Pollak,1989,p.5). Autores como Soihet (2002) questionam sobre os recentes e incipientes escritos sobre o cotidiano das mulheres negras. Portanto, escrever sobre estes conteúdos tem se tornado um desafio, porque além de não existirem registros que subsidiem esta construção, é necessário cuidado para não imobilizarmos uma história que permanece viva, em movimento, principalmente quando relembrada e contada em grupos de afetividades. Face à necessidade de construir a partir de lembranças, a história de participação dos segmentos historicamente excluídos na sociedade, recorremos a Pollak (1989) que nos auxilia na interpretação de relatos de situações que permanecem somente entre as pessoas do grupo. O fato da memória da população negra viver no subterrâneo é parte do mecanismo de poder. Pois enquanto estas movimentam-se, mas invisíveis ao olhar leigo, as desigualdades e outras injustiças, organizam as relações. É em oposição à continuidade do silêncio sobre o sofrimento causado pelo racismo que o desabafo dessa interlocutora ocorre.

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...eu acho que eles acham que os brancos são muito melhores do que nós que somos de cor..., quer dizer... eles tratam a gente como coisa que não fosse nada porque, tem várias pessoas que têm até nojo de conversar com a gente... passam perto da gente e medem... têm nojo de conversar, têm nojo de chegar perto, o primeiro nome que chama é negro, negro fedido, então eu acho que... sabe... (Sujeito da pesquisa).

Apesar dos poucos argumentos utilizados para expressar sua indignação diante do tratamento recebido ao longo da vida, foi possível perceber a dimensão do trauma que essa mulher sofre. Mesmo que a força da lembrança não ultrapassasse a fronteira do indizível, e que sua tentativa de esquecimento mantivesse o seu silêncio, mesmo assim, seu corpo por meio das suas diversas marcas revelaria a história de vida e luta compartilhada por um número significativo de mulheres negras.

Eu tenho uma dor que me dá de vez em quando... aqui assim. Eu penso que é no coração. Depois dela me fazer subir daquele jeito, me deu um..., depois eu comecei, de vez em quando me dá. Lá vou eu correndo tomar uma água com açúcar. Sabe? Fica aquela dor estranha. Não sei, às vezes se eu tenho um nervoso assim... né? Não dá na hora, mas depois me dá. Me dá aquela dor assim, eu falo assim deixa eu tomar uma água com açúcar para passar esse mal estar, né, essa... essa dor estranha, né? Inclusive, graças a Deus faz tempo que não me dá, faz tempo que não me dá... (Sujeito da pesquisa).

A dor que essa mulher descreve, representa as marcas que se fixaram nela por inteiro, cuja sensação é relatada por outras interlocutoras que viveram situações traumáticas. Para inúmeras mulheres negras a oposição às tentativas de subordinação, tornou-se uma bandeira de luta como um dos caminhos perseguidos na

42 Pensamos ser importante salientar que, segundo Geertz (2000), as interpretações que realizamos sobre as

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desconstrução das desigualdades. Contudo, o processo é lento porque a opressão da mulher na sociedade brasileira parece datar do período do Brasil Colônia, cuja ideologia leva à práticas discriminatórias, das quais as mulheres, e principalmente as mulheres negras estão sujeitas. As mulheres negras escravas, estavam submetidas ao julgo de seus senhores que em troca de uma suposta “proteção” exigiam obediência43. Graham (1992) argumenta que, as mulheres negras eram relegadas à condição de não ser, e, realizavam tarefas domésticas, que incluíam os cuidados com as crianças que não eram as suas, o trato com a lavoura, favores sexuais, demais atividades braçais e outras exigências arbitrárias impelidas de forma a deixar evidente – às subordinadas – quem mandava. O poder do senhor ultrapassava a escrava, abrangia a família e os agregados desta. A autora conta que os maus tratos eram praticados na maioria das vezes de forma a demonstrar força e poder. O açoite, era aplicado por vezes para prevenir qualquer resistência. Ao mesmo tempo em que os castigos eram aplicados para submeter. Provocava nos escravos(as) sentimentos de revolta, de vingança e especialmente o desejo de liberdade. Contemplamos ainda hoje um cenário onde um grande número de mulheres é submetido ao poder masculino. Porém aquelas que não se rendem diante das constantes investidas, enfrentam cotidianamente situações de abuso de poder e violência de todas as formas. Diante desses históricos açoites que perpetuam as violências físicas, morais e sexuais, as mulheres negras em defesa de si, entram e saem de empregos.

...Ele me agarrou, eu estava trabalhando por dia... ele me agarrou. Ele sofreu um acidente, perdeu uma perna, ele estava aposentado e ficava em casa e ele que fazia a comida, a mulher dele tinha problemas de nervos, era mais ele que cuidava da parte da comida. Eu fazia a limpeza, quem cozinhava era ele. Agora, durante a semana não sei como é que ele se virava com a parte da casa. E, um dia o velho veio me agarrar, eu ia passando..., eu passei para ir lá para cozinha, ele

narrativas estão colocadas como um caminho, mas não o único caminho possível, e tão pouco o esgota 43 Ver mais em: GRAHAM, Laudervale. Proteção e obediência, Rio de Janeiro no século XIX – Cia das Letras, 1992.

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estava, não sei se foi no fogão ou na pia, quando eu passei não é que o velho veio me agarrar? Ave Maria, mas me subiu um nervoso! E o medo da mulher ver e falar... pensar que era eu que estava dando em cima do homem, não é? Ela é nervosa, e se ela... eu não sei como é que é o nervoso dela... e ela vem para cima de mim. Aí eu falei: ah, não vai dar certo, não é? Eu passava pela cozinha, prestava atenção se... Quando eu ia para cozinha para lavar os panos, pegar o balde d’água não é? Aí eu ficava prestando atenção se ele estava lá, se ele estava lá, eu falava: ah meu Deus, eu ficava fazendo hora até ele sair, para eu poder ir para cozinha, trabalhei nervosa o dia inteiro! [...] chegou no final do dia, ele vai me dar o dinheiro e eu vou embora! Nunca mais eu voltei. (Sujeito da pesquisa).

Recorrer a autores no sentido de remontar um passado não muito distante da população negra é absolutamente adequado à medida que este estudo estabelece relação direta com o tempo passado presente, no que se refere ao papel e lugar da mulher negra no Brasil. Rachel Soihet (2002) descreve que, a violência contra a mulher fora constante desde o início da nossa sociedade. Ou seja, assim como as do passado, as mulheres negras desta pesquisa também são chefes de família, só que as razões destas é a morte do companheiro. Contudo, percorrem semelhantes caminhos de violência e discriminação quer seja por questões raciais, fatais, econômicas ou pelo conjunto. Evocamos por vezes, a memória da luta das antepassadas estabelecendo relações com o presente, reconhecendo que para fortalecer os propósitos, luta e trajetória destas, é importante situar os avanços como quem passa o bastão em corrida com revezamento em equipe.

...Nessa minha sogra chorou. Mas ela disse que não era ela quem mandava na casa. Ah, porque tinha as coisas dos filhos dela lá, e também porque eles não me queriam lá. Eu acho! E queriam o dinheiro do aluguel, deve ser essas coisas. Ah mas, se eu estivesse lá também, eu acho que não estaria legal. Eu pequei e vim para cá e fiquei aqui. As minhas coisas estavam lá fora e já subi e pronto.

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Comecei a estudar e quando minha filha estava com três meses. Eu fui fazer inscrição, passei mas como ela era muito bebezinha, eles não deixaram eu ficar no mercado. Com seis meses eu entrei no metrô e comecei lá. Só que daí eu tive que parar meu curso porque o horário não batia. “Auxiliar de enfermagem”. Por causa do horário optei pelo serviço, porque eu precisava do dinheiro. (Sujeito da pesquisa).

Repetidos desafios são enfrentados por mulheres para realização de uma vida digna quer seja no passado durante a escravidão e posterior a esta, ou hoje onde elas buscam conciliar maternidade, estudo e trabalho. Apesar dos avanços, o segmento feminino por força da ideologia de gênero, tem um longo caminho a ser trilhado na desconstrução dos papéis e mudança nas relações para a emancipação do conjunto das mulheres. Os diversos papéis que essas mulheres são convocadas a desenvolver, por vezes representam ideais e valores relativos a determinados grupos, em particular daqueles que detém o poder. Todavia, alheias ao ideário, enquanto mulheres negras providenciam a satisfação das necessidades de seus rebentos da mesma forma que o segmento feminino negro tem procurado fazer. Nesta perspectiva, pensamos que não é por acaso que, mesmo compadecendo-se do sofrimento da sua nora, grávida de oito meses, que a mulher citada na narrativa acima não conseguiu impedir os demais filhos e o marido de expulsarem da casa a viúva de seu filho. A fragilidade dessa manifestação contrária à decisões masculina deve ser considerada por diversos ângulos que incluem a questão da dependência econômica. A distância imposta entre as viúvas e a família – seja esta a sua ou do companheiro – foi comum à maioria das entrevistadas, e, segundo Rufino (2004), o fato das mulheres se aliarem por questões de gênero, não representa o mesmo para questões de classe social ou raça. É necessário destacar que, a família que sofre a perda de forma violenta em alguns casos foi tratada como portadora de patologia contagiosa. Portanto, a morte violenta neste contexto, parece assumir um caráter patológico, levando as pessoas a estabelecerem distância dos envolvidos direta e indiretamente com esta, tornando-se alheias ao sofrimento dessas mulheres.

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Pensamos que o cotidiano atribulado tem minado as redes de solidariedades com destaque para as femininas negras, as quais proporcionaram espaço privilegiado de lazer, cultura e organização política da população negra no período escravista e posterior a ele. Na sociedade moderna, o fazer junto tem perdido o sentido, cedendo lugar ao individualismo. Neste modelo de relação assimétrica, o exercício da alteridade quase não se realiza. Dessa forma os valores do “outro” são desprezados em favor do etnocentrismo do grupo que se pretende superior, no caso da Vila Brasilândia e de todo Brasil, a superioridade é vivida e sentida pelo branco.. Essa dinâmica desconsidera a participação dos diversos grupos no processo de produção e organização social. Embora fossem realizados movimentos contrários, segundo Pollak (1989), a memória oficial, através da história é revestida de valores universalistas e prossegue seu processo de suplantação da tradição oral. A predileção pela escrita marginaliza os seguimentos de tradição oral, cuja memória é mantida no seio do grupo. É importante nos lembrarmos deste movimento, para entendermos porque mulheres e negros se calam diante de toda violência vivida, cuja história vem desde as senzalas, passando pelo trabalho, pela favela e que não termina com a morte do seu companheiro e filho. É corroborada por essas questões a invisibilidade da violência, bem como a resistência empreendida no cotidiano destas guerreiras, que nos revelam uma historia contada pelas entrelinhas. O sujeito social, na construção da memória para efetuar o relato oral, rememora os fatos passados através de diálogo com a sociedade onde está inserido. Pollak (1989), ao favorecer o estudo dos excluídos, distinguindo a memória subterrânea, confere às mulheres desta pesquisa o papel de sujeito que interage em seu meio, da mesma forma que é afetado por esse, provocando mudanças construindo a própria história. Pelo fato da memória de grupos minoritários e dominados como o segmento feminino negro, terem sido confinadas ao subterrâneo, acreditou-se que estivessem esquecidas. Mas, com o questionamento sobre os Mitos da Democracia Racial e da Não Violência Essencial, surge uma abertura que, de acordo com Pollak (1989), manifestam-se gerando um movimento intelectual e social reabilitando grupos excluídos como a população negra. Pensamos que as articulações

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de mulheres inseridas nos vários movimentos de mulheres, populares, negros e feministas provocam esse movimento que Pollak relata. É ainda o mesmo autor quem argumenta como o sopro de liberdade de crítica despertou traumatismos profundamente ancorados que ganharam forma num movimento popular. (Pollak, 1989, p.5) Nesta perspectiva, a população negra se organizou em irmandades44, confrarias45, movimentos, associações e mais recentemente em ONG´s, redesenhando a sua história inserindo sua trajetória, particularmente das mulheres negras, na “história oficial” a partir de suas memórias. Este movimento devolve à população negra além de sua dignidade, expressões culturais e religiosas, o papel de sujeito social e histórico. É como afirma Pollak (1989), como brasas sob as cinzas estas permaneceram vivas, e com sopro da resistência começaram a emergir do subterrâneo, questionando a história oficial.

A despeito da importante doutrinação ideológica, essas lembranças durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não através de publicações permanecem vivas. O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. (Pollak, 1989, p.3)

Nesta perspectiva, as memórias de mulheres negras, que anteriormente foram proibidas, remontam suas trajetórias através de relatos do vivido e sentido, uma vez que o movimento negro abriu espaço para que as histórias de vida, resistência e luta dessas, narradas pelo prisma de quem está inserida no processo e, busca alinhavar alguns aspectos relevantes para este estudo. Objetivando a visibilidade das trajetórias, destacamos partes das histórias de vida de mulheres negras situando-as no contexto das relações sociais, raciais e de gênero no passado e presente.

44 Irmandades são associações de cunho religioso, ou melhor, são grupo de irmãos reunidos com em toro de objetivos comuns de caráter social comunitário.

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Reconhecendo a relevância dessas trajetórias, assim como o longo silêncio que ainda cobre este passado, para apreender dimensão da violência no contexto feminino negro, busca-se recuperar aspectos das relações e representações de gênero na sociedade brasileira. Trata-se de uma categoria que buscamos entender em seu caráter relacional que propõe explicar desigualdades estabelecidas, instituídas por uma sociedade de origem patriarcal e escravocrata. Rachel Soihet (2002) recuperou por meio do código penal e dos registros de ocorrências policiais, aspectos do cotidiano das mulheres das classes populares, para as quais a literatura durante muito tempo negou espaço. A autora afirma que no final do século XVIII e início do XIX, havia uma grande preocupação com a valorização do modelo de organização familiar burguês. Tanto o comportamento familiar quanto o feminino eram pressionados nesta perspectiva, buscando coibir possíveis desvios. O que se pretendia era fortalecer o modelo de família nuclear burguesa, cujos padrões deveriam ser seguidos inclusive pelas “classes populares46”. Nestes moldes mulheres das classes privilegiadas eram criadas para o casamento, onde a total obediência ao marido era princípio básico. O enlace era uma estratégia do poder, para reprimir as constantes ameaças aos bons costumes, representados pelas mulheres das chamadas classes populares. Ou seja, as pobres e as negras. Para estas últimas, o matrimônio, além de fugir dos seus padrões culturais, representava um gasto dispendioso, portanto, uma mercadoria fora do alcance de muitas. Não muito diferente da realidade de hoje no que se refere à organização familiar, as famílias, em grande proporção eram chefiadas por mulheres, as quais ao longo da história, foram estigmatizadas e consideradas desorganizadas. A concepção dessas sobre casamento destoava do pensamento da burguesia. Porém, o enquadramento no modelo nuclear fora perseguido em função do regime capitalista que se manifestava por ocasião do término da escravidão. Com estes objetivos, as mulheres eram confinadas aos afazeres domésticos, sob o domínio e julgo de seus maridos. As mulheres pobres e as negras, eram vigiadas e punidas ao menor deslize, pois representavam constante ameaça a moral burguesa e ao pensamento

45 Confrarias são associações laicas que funcionam sobre princípios religiosos, fundada por pessoas comprometidas com o bem estar coletivo. Neste caso com a comunidade negra. 46 Classes populares é apresentada pela autora como sendo os imigrantes pobres e os negros, libertos ou não.

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capitalista47. Devido à concepção destas sobre o matrimônio, a qual feria o modelo estabelecido, segundo Soihet (2002), a violência contra as mulheres fora recorrente de forma exacerbada sobre as mais pobres. Esta violação de direitos é estrategicamente aplicada hoje, porque além de fortalecer a autoridade centrada na figura masculina, corrobora para que as histórias de participação das mulheres e dos negros na sociedade sejam confinadas ao silêncio. A ideologia de gênero segundo Soihet (2002) e Saffioti (2004), em particular a patriarcal, realiza a hierarquia de poder tanto na esfera privada quando pública, e, privilegia o espaço doméstico como feminino e o público como o masculino. Tal diferenciação prevê que, entre as competências atribuídas ao homem, nota-se a capacidade de prover a família em suas necessidades, e à mulher o cuidado para com a casa e os filhos(as). Contudo, entre os obstáculos encontrados pelo poder masculino em subjugar o feminino, tinham como os mais fortes a dificuldade de controle sobre as mulheres das classes populares. Para a maior parcela das mulheres pobres e negras, entre as quais as relações conjugais quando ocorriam eram por amasiamento, o papel de provedor não estava necessariamente localizado na figura masculina. Entre estas, era comum o trânsito no espaço público, principalmente por serem em grande proporção chefes de família. Devido a esse fator, a dificuldade em exercer um controle mais rígido sobre as mulheres das classes populares, resultando em recorrente abuso da violência contra estas. O segmento feminino, em particular o feminino negro, sempre disputou com os homens o mundo público, o do trabalho. Desenvolviam atividades que iam desde domésticas até as mais pesadas consideradas tipicamente masculinas. Porém a coação e a coerção foram empregadas arbitrariamente objetivando a subordinação. Neste sentido, segundo Saffioti (2004), o uso da força física combinada a outras formas simbólicas de dominação são partes constituintes da história desta sociedade na estratégia de opressão. Portanto, gênero não diz respeito apenas a diferenciação de papeis, lugares a serem ocupados ou desigualdades de oportunidades e salários; refere-se também às estratégias para submeter mulheres à

47 A ideologia capitalista entre outras questões, necessitava manter as mulheres nas atividades domésticas, não apenas para desestimular a concorrência com os homens no mercado de trabalho, mas também porque significava mão de obra gratuita.

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obediência masculina, dentro de um conjunto de regras que anula a capacidade da mulher em todos os aspectos. O caráter de transformação dos fenômenos, sugere que a ideologia de gênero deve ser entendida também enquanto resquício do patriarcado que, num passado remoto da história da humanidade defendia a primazia masculina. Percebido como categoria histórica, dada a sua origem, gênero deve ser concebido e evocado por meio de representações e teias de significados que são por vezes exprimidas em identidade subjetivas. (Saffioti, 2004, p. 45) Essa perspectiva de gênero, cuja origem encontra-se na sociedade patriarcal é desenvolvida por Saffioti (2004) de forma a chamar-nos a atenção para a forma como são imbricadas; a primeira enquanto categoria explicativa das relações desiguais, abordadas por vezes sem elo com a segunda. Ambos os conceitos exprimem o processo de dominação dos homens sobre as mulheres. Contudo, quando Saffioti (2004) argumenta sobre o patriarcado, o faz localizando-o na história cujas origens estão na dominação dos homens e o direito masculino do acesso sexual regular a elas... (Saffioti, 2004, p. 53) A reflexão desenvolvida pela autora ancora-se em ideologias, contra as quais as mulheres têm erguido bandeiras. Assim como é importante e elucidativa a incursão realizada por Saffioti (2004) pela história do patriarcado, situando crimes hediondos praticados contra mulheres para demonstrar o poder desta ideologia, é também necessário recorremos à memória oral e a escrita sobre a escravidão no Brasil, para narrar a história da mulher negra nesta sociedade. A história de vidas recuperada pelo movimento da memória que sai do presente, vai ao passado e retorna ao presente, faz com que recuperamos a presença invisível porém marcante das mulheres negras no início da sociedade brasileira. Na perspectiva da teoria da memória de Pollak (1989), que auxilia na reconstrução dos fatos através da memória que, por se tratar de subterrânea, se opõem à história oficial questionando os aspectos ideológicos. Esses recursos teóricos são necessários à medida que alinhavarmos fragmentos dos relatos de história de vida de mulheres negras, a partir da interpretação que essas fazem da sua trajetória e do significado que atribuem à violência. Este movimento, procurará manter interlocução com o mito da democracia racial, enquanto mecanismo de reinvenção da ideologia. A

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abordagem do caráter ideológico, se desenvolve revelando como que em cada novo contexto as relações são reinventadas, provocando mudanças sobre a visão da história e, ao mesmo tempo em que procede a destruição de signos e símbolos, reorganiza seu conteúdo ideológico objetivando prolongar indefinidamente as relações assimétricas. Contudo, a resistência oferecida a tais propósitos provoca conflitos, pois, faz com que as lembranças traumáticas condenadas ao silêncio se manifestem num momento que pode ser entendido como, ... a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas. (Pollak, 1989, p.5) Segundo o mesmo autor, o conflito provocado pela resistência da memória subterrânea e memória oficial, apesar de estarem relacionadas à questão do poder, não estabelece necessariamente uma oposição direta entre estado e sociedade, ou seja, os conflitos são mais facilmente identificados e localizados nas esferas onde a presença popular ou a participação pública se realiza com maior freqüência, conforme exemplifica Soihet (2002) a seguir:

Também era nos largos e nas praças que as mulheres costumava reunir-se para conversar, discutir ou se divertir, da mesma forma que se aglomeravam nas bicas e chafarizes brigando por sua vez. Em grande proporção, responsáveis pela manutenção da família, a liberdade de locomoção e permanência nas ruas e praças era vital para as mulheres pobres, que cotidianamente improvisavam papeis informais e forjavam laços de solidariedade. (Soihet, 2002, p. 367)

Portanto, as mulheres cujas histórias trataremos neste capitulo, segundo Bernardo (2003), inserem-se em um tempo que não se restringe ao passado, presente, futuro ou realiza os três juntos. Dada a semelhança das histórias de vida, nos parece que as interlocutoras desta pesquisa são as mesmas mulheres negras chefes de famílias descritas por Soihet (2002), no final do século XVIII. O relato que se segue revela medidas sociais disciplinares atemporais, recorrentes em períodos de repressão, que permeiam o cotidiano de mulheres negras.

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...E, especificamente sobre as mulheres, recaia uma forte carga de pressão acerca do comportamento pessoal e familiar desejado, [...]. A organização familiar dos populares, assumia uma multiplicidade de formas, sendo inúmeras as famílias chefiadas por mulheres sós. Isso se devia não apenas às dificuldades econômicas, mas igualmente às normas e valores diversos, próprios da cultura popular. A implantação dos moldes da família burguesa entre os trabalhadores era encarada como essencial, visto que o regime capitalista que então se instaurava, com a supressão do escravismo, o custo de reprodução do trabalho era calculado considerando como certa a contribuição invisível, não remunerada do trabalho doméstico das mulheres. Além disso as concepções de honra e casamento das mulheres pobres eram consideradas perigosas a moralidade da nova sociedade que se formava. (Soihet, 2002, p. 362-3)

As estratégias de dominação e de segregação são modernizadas e aperfeiçoadas ao longo da história de tal forma que não são percebidas pelos segmentos alvos com o seu real significado. Se no passado a rua era considerada um espaço marginal para o feminino, as mulheres negras dele se apropriaram como espaço de trabalho e de construção das relações de solidariedade. Da mesma maneira, o casamento fora utilizado para definir quem era portador de moral e decência, atribuíam a este não apenas o aspecto moral mas também o econômico, de forma a manter a população pobre e negra excluídas desse costume burguês. As formas de estabelecer as desigualdades a partir das diferenças vão sendo aperfeiçoadas à medida que a sociedade se dá conta da resistência e capacidade de ressignificação da população negra, de (re)inventar as relações. Em função disso, se reelabora as diferenças em desigualdades como formas de expressar seu conteúdo ideológico. Um dos novos instrumentos pensados para dar fim à marginalização dessa população, é a educação, portanto, manter o segmento feminino e negro fora da escola continua sendo (re)elaborado à medida que estes transpõem as barreiras

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estabelecidas. Ressignificar o espaço da educação hoje, é tão importante quanto foi o da rua para as mulheres pobres e negras no passado.

... ela me “tirava”, então a gente brigava e toda vez eu apanhava, porque ela ia e reclamava para a professora. Eu apanhava de palmatória e ia de castigo, para a diretoria, ficava com as pilhas de livro nas mãos. Até que um dia foi demais; além de eu apanhar na cara da menina, reclamar para a professora, ainda ir de castigo, apanhar de palmatória e ficar lá..! Eu bati na professora, bati na professora sim, Deus que me perdoe, mas não era porque eu era negra que... Eu não me lembro o nome dela! Aí eu bati nela e fugi da escola, não voltei mais a estudar. (Sujeito da pesquisa)

As interlocuções realizadas entre o presente e o passado são significativas porque, contribuem para reflexão sobre os sentidos da violência para as mulheres negras, cuja prática foi sempre instrumento utilizado como de controle das condutas. Sobre essas práticas, o resultado esperado no comportamento do segmento negro era de mansidão e obediência. Ao contrário, a ressignificação da qual são capazes, ampliam-lhe a resistência e potencializa seu espírito de luta. Soihet (2002) desenvolve relevante idéia com respeito à violência “específica da condição feminina”, ao relatar que apesar das similaridades entre mulheres de diferentes classes sociais, as mais pobres apresentavam particularidades, relacionadas a sua forma de vida. Essas mulheres que participavam ativamente no mundo do trabalho e, mesmo em condição de subalternidade, não se enquadravam no perfil atribuído ao sexo feminino. A violência a que eram submetidas, também estava relacionada à esfera pública. Dentre as que estavam expostas, Soihet (2002) ressalta principalmente as perseguições com fins sexuais, as agressões físicas e morais. Assim como no passado, as mulheres negras, narram histórias de violência que apesar de estarem relacionadas à esfera pública e ao mundo do trabalho, são concebidas e tratadas como sendo da esfera privada - como violência doméstica.

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...ele falou assim para mim: eu posso te dar, eu dou esse pagamento que eu estou te dando, eu posso te dar muito mais se você... Quando eu vi que ele estava tremendo eu falei, pensei... eu já sei o que ele vai falar! Eu falei: não senhor, não quero! Eu falei: não quero, não quero e peguei meu dinheirinho e falei: nunca mais! Só que eu fui falar para... Aí, eu trabalhava na casa do filho dele também, lavando e passando. Aí, eles foram perguntar para mim, porque que eu não fui trabalhar mais lá? Eu fui contar e eles não acreditaram! Não, mas... eu trabalhei quatro anos, eu trabalhei mal para caramba, porque, não me sentia bem... Porque eles não acreditaram em mim? a moça não acreditou em mim. Quando ela vinha vindo da casa da mãe dela, ela falou: “... ah, mas eu não acredito nisso, onde já se viu...”, ela falou: “alguma coisa deve ter acontecido. Não é possível que ela não fez nada... como que ele vai falar uma coisa dessas para ela, sem, ela ter...” Ah, sei lá, ela quis falar que eu dei uma entrada, sei lá... [...] porque ele falou... ela pensava... ela pensou assim, ela pensava lá com ela: ... como é que ele foi mexer comigo, falou isso para mim, se eu não dei motivo? Foi isso que ela quis dizer! Eu não respondi nada, mas eu sofria. Eu sofria e falava, puxa vida, por que ela não? Está certo, ela não é obrigada a acreditar em mim, mas puxa vida! (Sujeito da pesquisa)

Para narrar este entre outros episódios semelhantes, a entrevistada sugeriu que fossemos para seu quarto, e, às portas fechadas relatou a situação da qual fora vítima, e se envergonha ao revelar. Este sentimento sobre os ocorridos, e a idéia pré- concebida sobre os mesmos, fazem com que permaneçam no silêncio, e segundo Pollak (1989), esse desejo em esquecer o mal do passado, provoca sentimentos contraditórios. Pensamos que movimento semelhante ocorre com as mulheres desta pesquisa; ao mesmo tempo em que as lembranças traumáticas, por causar dor são confinadas ao esquecimento, em determinado momento passam a ser reconstruídas pela memória e contadas, não apenas enquanto reconstruções factuais, mas como elementos fortalecedores da identidade individual e de grupo. Portanto, as reconstruções por se tratarem de lembranças, recebem um novo colorido no presente. Parece ser a vergonha o forte sentimento que uma entrevistada tem, que percebe-se pelo esforço que realiza para revelar o seu ramo de trabalho que, apesar de estar relacionada a situação vivida no passado, ainda faz parte do seu presente

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não ressignificado. Esta percepção argumenta sobre o fato que, em nenhum momento declarou que seu trabalho consistia em ser garota de programas, mas sugeriu manter encontros com alguns homens com fins sexuais, e que estes lhes pagavam por isso. Recorreu a uma linguagem codificada expressa através de expressões corporal e por sinais. Parece existir alguma semelhança com a reflexão desenvolvida por Pollak (1989) sobre o “silêncio”, e pelas mulheres que sentem vergonha do fato vivido. Esse silêncio é acentuado pela angustia de não encontrar uma escuta que a compreenda, e de ser alvo de críticas e outras formas de punição. Portanto, a vergonha que algumas mulheres demonstraram em revelar determinados episódios, relaciona-se ao receio de serem punidas com duras críticas ou isoladas do convívio da família ou outro grupo de afetividade. Cabe salientar que esse sentimento é percebido na mesma proporção entre as mulheres que foram assediadas sexual e moralmente ou violentadas nos seus locais de trabalho.

...Ela disse: “se você está achando ruim vai embora arruma uma casa”. Eu falei que tudo bem, que eu iria arrumar. E coloquei isso na minha cabeça e fui. Pastei, no primeiro dia não tinha arroz, não tinha nada as amigas que se diziam minhas amigas, falavam que era melhor eu ter o meu canto que o resto eu resolvia, vê se alguma delas veio me dar um prato de arroz na hora em que eu passei aperto? Não apareceu ninguém... ninguém. O que eu fiz? Fui tentar me arrumar, roubar eu não iria. Fui me prostituir, mas com a pessoa certa, não ficar na rua, aonde chega um e chega outro eram pessoas não tão conhecidas mas distante da minha casa. Ele sabia que eu tinha uma filha, e é a conversa de todas que querem se prostituir que diz que tem uma filha e preciso de dinheiro e me ajudava e assim fui me virando. (Sujeito da pesquisa)

Esses relatos revelam a trajetória e o silêncio da memória subterrânea, que acabam por se transformar em verdadeiros tabus. O silêncio protetor que as entrevistadas envolvem nas suas atividades de trabalho, devido à vergonha e receio de serem incompreendidas ou mal interpretadas. É também a essa memória proibida,

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portanto clandestina que Pollak (1989) relaciona o silêncio em que elas ancoram o passado, trata-se de um passado que ao ser rememorado, as vezes gera angústia e dor. Elas foram unânimes em afirmar que éramos escuta privilegiadas, uma vez que estes aspectos de suas vidas não foram relatados ao grupo familiar ou de afetividade. Portanto, fomos as primeiras pessoas para as quais tiveram a coragem de narrar tais fatos. Assim uma outra mulher disse:

...Você quer que eu fale a verdade? Quer saber o que eu estou fazendo também, se estou trabalhando? Mas eu não estou fazendo uma coisa legal. Estou trabalhando em uma clínica de massagem. É igual você falou, é uma profissão mas eu não faço só a massagem. O problema é que eu sou uma filha da mãe! Porque eu não queria isso Mabel! É tipo assim: eu prestei um concurso da Prefeitura e eu passei, só que até esperar e eu preciso de dinheiro. Ai eu fiz minha correria agora estou nisso. Nisso eu comprei meu carro. É feio! Minha mãe sabe, minha família sabe. Quando eu estava com o meu marido eu já tinha começado a trabalhar nisso. Ele descobriu e me tirou. [...] Uma vez ela pegou um anticoncepcional nas minhas coisas e falou: “ah! Isso é para você deitar com os machos”. Mas isso já faz tempo e eu disse que era um negócio para eu fazer para o cabelo e ela: “É seu, você é safada”! Uma vez ela falou-me uma coisa, e eu lhe disse: É melhor ser puta lá fora e ganhar dinheiro, do que ser puta aqui dentro e dando principalmente para os machos dos outros. É, mas hoje ela não fala mais nada para mim. Mas assim eu compro as minhas coisas, se você abrir as gavetas minhas filhas tem roupa. Eu falei que estou fazendo Radiologia? E meu namorado é do interior, ele disse se abrir vaga a gente vai para lá. [...] É complicado porque trabalhar nisso tem que ficar escondendo, mas..., ele é uma ótima pessoa me dá muito carinho trata as minhas filhas super bem, as duas. (Sujeito da pesquisa)

Este relato desvela a capacidade da sociedade em provocar sentimentos ambíguos nas pessoas. Se por um lado a entrevistada revela a necessidade do cuidado com as filhas, que por serem muito pequenas, necessitam de maior atenção – somada à atual deficiência de creches na Vila Brasilândia que a sua maneira procura

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realizar suas responsabilidades – por outro, a própria entrevistada julga, critica e afirma se envergonhar do trabalho que desenvolve, que segundo a mesma, possibilitou cuidar das filhas. Todavia quando é duramente criticada pela mãe, devolve a ela as mesmas críticas relembrando situações depreciativas que a mãe viveu no passado como forma de se eximir da culpa, ou justifica-se condenando o comportamento da mãe. Essa ambigüidade de sentimentos e concepção moral, segundo Pollak (1989), são comuns às pessoas que viveram situações “proibidas” e traumáticas; portanto a contradição surge da necessidade que esta mulher tem em perceber como normal algo que é moralmente proibido. A argumentação do autor sobre o silêncio, se adapta às memórias das prostitutas, devido a repressão moral. Esconder eventos ou reprimir idéias e comportamentos, não diz respeito apenas àquela sociedade em que Pollak desenvolveu estudos sobre a memória. Na sociedade brasileira algumas memórias também foram evitadas. Referimo-nos à memória da população negra no Brasil que vem, desde o período escravista, omitindo o tratamento vergonhoso para com o segmento negro; foram destruídos documentos que contam parte da história e memória deste grupo. Portanto, para essa mulher, não saber onde ancorar a sua realidade, representa um obstáculo para superação do trauma. A sociedade brasileira alenta certa ambigüidade de concepção sobre os comportamentos dos indivíduos, portanto, nega e condena a prostituição ao mesmo tempo em que faz dela um comércio lucrativo. Por força dessa moral, mulheres não revelam as estratégias de sobrevivência que recorrem em situações de crise.

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A questão do trabalho

Para as mulheres desta pesquisa, a morte do companheiro fragiliza e vulnerabiliza toda a família, que às vezes não encontra guarida. Tão logo elas reorganizam suas idéias pós-trauma, passam a procurar trabalho e creche para colocar os filhos de forma a reorganizar a vida. No que concerne à questão do trabalho, no Distrito da Vila Brasilândia, a crise é muito acentuada, este fato parece estar relacionado a estigmatização em função da violência. Portanto, na disputa para conseguir emprego, este se torna mais um critério de preterimento. Uma análise acrítica sobre a questão, confere um sentido mais particular aos fatos, e impede a percepção das mudanças no mundo do trabalho que passa a ser desenvolvido com avançadas tecnologias, exigindo mão de obra qualificada. A dificuldade em conseguir trabalho decorrente dessa desqualificação é percebida pelas pessoas como incapacidade individual. Outro aspecto comum entre as mulheres pobres em relação ao trabalho, refere-se ao cuidado e educação dos irmãos mais novos, para que algumas dessas mães pudessem trabalhar, na maioria das vezes em atividades domésticas48. Assim uma das mulheres narra:

... foi logo quando minha mãe se separou do meu padrasto. Aí estava com sete anos. Minha mãe começou... minha mãe já trabalhava, só que quando ela trabalhava tinha alguém sempre para olhar, ela pagava e tudo, só que depois a situação foi ficando mais difícil, aí eu comecei a cuidar; mas era assim: o horário era de manhã, entendeu? Aí dava tempo, ela trabalhava das 12 às 22 horas, aí nesse intervalo eu olhava... assim. Brincava muito, só não tive muito tempo de estudar, mas com fé em Deus quem sabe..., eu pretendo voltar ainda mas só estudar que eu não tive muito tempo de estudar, porque eu tive sempre que cuidar [...], quando cuidava de um e já estava

48 Em 2000, a taxa de desemprego registrada para as mulheres negras alcançou 25,1%, ou seja, de cada 100 trabalhadoras negras um quarto, estava sem emprego, enquanto as não negras correspondiam a 18,9%”.(Fonte: DIEESE/SEADE/PED, 2001) O trabalho, além da possibilidade de sustentar a família, representa respeito e dignidade. Já para os(as) alijados(as) deste, sentimentos opostos.

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grandinho, já tinha que cuidar de outro, minha mãe já estava grávida, entendeu? (Sujeito da pesquisa)

A situação acima descrita, não é comum apenas ao Distrito da Vila Brasilândia, mas às diversas periferias entre os segmentos empobrecidos. O fato de encontrar crianças pequenas sob os cuidados de crianças pouco maiores, em idade escolar que terminam por abandonar os estudos, dado o volume das atividades e responsabilidades que lhes são atribuídas. Se pensarmos essa questão na perspectiva das desigualdades, perceberemos que estas crianças têm vários períodos de sua vida ceifados, pois em lugar de estudar e brincar, elas ocupam-se em atividades domésticas, quando não auxiliam no orçamento doméstico trabalhando nos semáforos, feiras livres e outros. Tal fato vem ocorrendo em proporções alarmantes e quando chega o momento dessas pessoas se inserirem no mundo do trabalho, não estão qualificadas. Este círculo parece se repetir com maior freqüência entre as famílias pobres, monoparentais, chefiadas por mulheres negras49. Todavia, por maiores que sejam as desigualdades devidas, principalmente, à cor/raça, e, às vezes também pelo sexo, vividas pelas mulheres, a determinação e coragem que elas demonstram e imprimem transforma a sua realidade e história. Portanto, mulheres de maridos assassinados, a cada barreira criam novos meios de sobrevivência. Executam trabalhos, mesmo que estes lhes causem mais dor e sofrimento, conforme nos relata essa interlocutora.

...Não, até hoje minha mãe não casou mais. Aí... as coisas foram começando a ficar difíceis, aí as irmãs do meu pai vieram de Itapira, mas só queriam levar as maiores, queriam deixar os menores com a minha mãe. Minha mãe falou não, meus filhos vão ficar comigo; e ficamos com ela. Ela arrumou um trabalho, meu irmão, o Mariano, começou a trabalhar numa espécie de casa, onde o homem fazia sandálias, sapatos, essas coisas, ele começou a trabalhar ainda menino. Quando chegava sábado e domingo, ela ia para a Lapa para

4962,7% das mulheres negras não terminaram a antigo curso primário, e que as negras analfabetas representavam o dobro das brancas. Dados PNAD (1987)

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pedir pão, pedir as coisas sabe, para gente comer. Lá para cidade pedir pão, pedir as coisas, ia para Pompéia, andava que era só. Triste, sabe! Aí, minha mãe afirmou numa firma e só saiu depois que adoeceu. Ela trabalhava na Praça da Sé. Limpadora exige muito da saúde da pessoa não é? Coitadinha, aí ela adoeceu, mas aí já estávamos todos já mais encaminhados, não é? Mas assim mesmo ainda apertava um pouquinho, está apertando, ainda continua apertado!” (Sujeito da pesquisa).

A desvalorização do trabalho feminino negro expressa-se na baixa remuneração percebida pelas mulheres negras frente aos demais segmentos populacionais, acentuando a pobreza deste. Embora empobrecidas, as mulheres entrevistadas representam a principal fonte de sustento da família materna, ou seja, mesmo anterior à morte do companheiro. Dados do mapa da exclusão revela que grande parte das famílias monoparentais residentes na Vila Brasilândia são chefiadas por mulheres negras. E, em se tratando das famílias negras com residência fixadas anterior aos anos 70 na Vila Brasilândia, a mulher negra ocupa o centro. Essa representação não se realiza na perspectiva da mulher cuidadora do lar, mas da matrifocalidade, de ocupar o ápice da hierarquia familiar. (Bernardo, 2003) Os homens, mesmo presentes, não expressam poder no seio da família. O fato de a mulher ocupar o centro da família é contado por moradoras antigas como situação comum. Elas recordam como estas resolviam os problemas de economia doméstica, controlando inclusive o dinheiro dos companheiros. No período que data dos anos 70-80, uma parcela considerável dos homens tratavam suas esposas por “patroa”, mas essa situação não era representativa do conjunto dos casais, e a violência também fazia parte deste contexto, inclusive a doméstica. É necessário estar atento à rapidez com que a sociedade capitalista reelabora seu conteúdo ideológico, cujas estratégias além de acentuarem as desigualdades e ampliar o grau de segregação. Se anteriormente não havia limites para as violências, que tinha como meio o flagelo do corpo, para controle do comportamento hoje se fere a pessoa de outras maneiras, pelo abandono percebido através da ausência de equipamentos, porque, as mulheres deixam seus filhos(as)

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sozinhos(as) ou aos cuidados de outra criança, devido ao número insuficiente de creches na região50. Os relatos nos permitem referir um cotidiano feminino permeado por violência, contudo essas representações são percebidas no universo das interlocutoras desta pesquisa como dificuldades, barreiras que fazem parte da trajetória de vida de pobres e negros. Segundo Camacho (2003), entre indivíduos sem poder econômico, a associação que é feita sobre a violência, é quase sempre ancorada em concepção de agressão física. Tal percepção, recorrente entre o conjunto da população obscurece a visão diante de tal fenômeno. Percebemos que o presente, não é muito diferente do passado, os debates, discursos e as práticas para desestabilização emocional, econômica, social e política da população negra confirma os discursos racistas e sexistas em defesa dos privilégiados, atribuem ao negro, em especial a mulher negra a incapacidade à mobilidade social, na conformação de arquétipos que sugerem uma suposta incapacidade para o desenvolvimento de diversas atividades qualificadas. O conteúdo simbólico dessas práticas, ficam guardados na memória provocando distúrbios físicos sempre que provocados, conforme narra esta interlocutora.

... Não, não lembro dela, [...] aí depois que passa a dor, eu falo: caramba! Acho que foi daquele tempo lá. Nossa mas foi um baque assim sabe? Só me arrastando pela escada assim, me levou pelo braço e subiu escada. E.. “é assim, olha, você está vendo esse vidro aqui, não é assim, isso aqui você tem que fazer assim, assim, assim! Bom, porque que você não pôs esse aqui? Como é que foi que você limpou?” Assim que ela fez... “O azulejo... aqui no banheiro, como é que você fez aqui essa limpeza desse banheiro? Não é assim! Você não sabe fazer?” Eu não sabia fazer porque eu morei no quê? Em casa de tábua, né? Não tinha vidro para limpar, não tinha azulejo, era o quê? Era a gente limpava... assim, a panelas, naquele tempo era o quê? Era com cinza... não me lembro bem. (Sujeito da pesquisa).

50 Vila Brasilândia tem 21.915 crianças com idades entre zero e três anos, sendo que 9.408 dessas aguardam vagas50 nas creches. Senso IBGE, 2000

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A desqualificação para o trabalho que a entrevistada sofreu pela sua patroa, vem acompanhada de opressão que é empregada de forma a subordinar. A forma como ela foi arrastada escada acima pela patroa, causou-lhe um trauma tão forte e profundo que as marcas ficaram também no corpo, pois ela tem reações físicas todas as vezes que relembra o fato. Mas em alguns momentos essas sensações físicas aparecem mesmo sem as lembranças. O desconhecimento daquela empregadora com relação às condições de vida e habitação dessa e de outras mulheres contribui com sua ignorância frente às péssimas situações vividas pelo segmento populacional que habita locais sem infra- estrutura, pois a rede de água e esgoto não chega ás favelas localizadas nas fronteiras urbanas. Portanto, era praticamente impossível ter conhecimento sobre a maneira como eram feita a limpeza em assoalhos de cerâmica, vidros e paredes com azulejo. Esse ocorrido confirma a forma com que a população pobre e carente vem sendo tratada pela classe dominante despreocupada as origens de suas empregadas. A lembrança – quando provocada – trás uma sensação que mistura angustia, humilhação e dor e vêm à tona como se o fato estivesse se repetindo. A forma como esse corpo rememora o passado é compartilhado por um grande número de mulheres negras. Essa ocorrência representa um fator que contribui em grande proporção para a percepção negativa de si e baixa auto-estima entre as mulheres. Essa maneira como as negras vêm sendo tratadas, remonta a participação das mulheres no trabalho durante a escravidão no Brasil, que a história não retratou. Essa volta ao passado é interessante, porque auxilia o entendimento do tempo presente, que pode atribuir outra coloração a este passado. Nesse período, as mulheres negras já desenvolviam trabalho no espaço da rua. “As negras de tabuleiro”, maneira como eram chamadas as negras vendedoras ambulantes, além de comercializarem diversos produtos, eram obrigadas a se prostituírem e, também entregarem uma generosa parte do valor das vendas para os seus senhores ou senhoras51.

51 Esse percentual diário pago aos senhores/as era chamado de “jornal” (PRIORE, 2000, p.18)

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Portanto, a relação que estabelecemos entre as escravas e as mulheres negras moradoras na Vila Brasilândia, entre outros aspectos, é o do trabalho. Elas se vêm obrigadas a percorrer grandes percursos, a pé ou nos precários transportes da época, com enormes trouxas de roupas para lavar, engomar e passar, equilibradas – com muita graça e firmeza – sobre a cabeça. Era uma atividade52 comum inclusive às antepassadas destas, e é confirmado pelo relato que se segue.

...Nem torneira não tinha, a gente ia buscar água no rio... no meio do mato, deixava as latas bem longe para depois a gente descer lá correndo para vir com a lata na cabeça... não sabia fazer limpeza, assim, essas coisas. (risos) E aí, quando nós viemos para cá, não tinha fogão... Se desse você limpava fogão, limpinho com sabão e tudo. Que, nem detergente acho que não existia naquele tempo... (Sujeito da pesquisa).

As mulheres desta pesquisa relembram suas mães contando que quando não estavam carregando enormes trouxas de roupas na cabeça, traziam volumes enormes e pesados de alimentos para os filhos, os quais eram recolhidos no final de feiras, às portas de supermercados ou pedidos de porta em porta. Para algumas dessas, o resultado do ganho diário permitia uma sobra para ceder ou trocar com alguma vizinha por dinheiro ou produto que tinha necessidade. Por essa capacidade, as mulheres negras sempre foram consideradas uma ameaça pela sua mobilidade e trânsito entre o público e privado pois podiam levar e trazer recados, e a bem da verdade, elas faziam isso e muito mais, pois tinham/têm a capacidade de darem a volta por cima de todos os problemas. Segundo Bernardo(..) a mulher negra apesar de assalariada e de perceber salário inferior ao homem negro, era capaz de prover o sustento de sua família, tal fato pode ser constatado pela narrativa de dona Francisca interlocutora da pesquisa da autora Teresinha Bernardo: ... durante mais de quinze

52 Fonte: Mapa da Exclusão e inclusão, 2000. No que diz respeito à ocupação, 67,1% das mulheres negras que estão empregadas são chefes de família52.

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anos o meu salário dava para ajudar a minha mãe pagar o quarto e comprar comida, não sobrava quase nem para o bonde. Roupas, não é bom falar. Usava roupa usada que as freguesas davam para minha mãe. (Bernardo, 1998, p. 54-55) Este dado corrobora com o fato de que as mulheres negras têm enfrentado e superado dificuldades das diversas ordens na sociedade brasileira. Portanto, as mulheres negras continuam representando ameaça também pela capacidade que possuem em dar um colorido todo especial às dificuldades transpostas, mesmo quando lembradas com dor e lágrimas, afirmam que fazem parte do passado. Uma questão bastante recorrente entre as entrevistadas, que se somam às dificuldades financeiras, refere-se a qualidade do apoio que a família pode oferecer. Destacamos esse fator porque ele está intimamente ligado a ter ou não condições de prover o sustento dessa mulher com seus filhos. Para a maioria das famílias dessa região cuja média salarial é de até dois salários mínimos53.

...aí eles pegaram, e minha sogra falou que ia embora para Pirassununga, aí perguntou se eu queria ir e eu disse que não queria ir e aí eu vim morar com a minha mãe..., e falei assim: olha mãe, então eu vou morar com a senhora. Tinha a minha casa em cima, lá... perto da casa da minha sogra, eu peguei e coloquei uma placa para vender consegui vender e vim aqui para baixo, fiquei morando um tempo com a minha mãe, acho que fiquei morando no máximo dois meses, aí logo eu consegui vender. Aí minha mãe fez um empréstimo na firma e construiu esse cômodo para mim... Construiu esse cômodo, logo, logo, eu coloquei uma placa na minha casa e falei assim: ah! um cômodo não vai dar, e aí estávamos eu e o meu menino, e aí, eu fiquei grávida desse... outro parceiro, e fiquei grávida. Só que aí não deu certo... aí eu peguei e falei: olha mãe, não vai dar certo, aí eu falei assim: mãe, eu vou colocar uma placa na minha casa, porque eu queria alugar minha casa, só que não deu certo porque: casa em favela, se você aluga, você perde seus direitos e como diz o ditado: ‘mulher sem marido você já viu!’ Têm muitos casos assim, entendeu? Aí eu peguei e consegui vender minha casa, de graça, por dois mil reais, que era

53 A Vila Brasilândia está entre os Distritos onde mais de 15% dos domicílios possuem renda até dois mínimos: Fonte: Fundação IBGE: Censo Demográfico de 2000.

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bem feitinha, vendi e construí esse outro cômodo e, agora quero fazer mais um cômodo para frente... (Sujeito da pesquisa).

A necessidade de acumulação, ideologia das sociedades capitalista, está presente entre as relações comerciais, interferindo também nas humanas. Contudo, a narrativa acima ilustra adequadamente como em algumas circunstâncias a questão econômica não sobrepõem ao humano. E esse amparo que algumas mulheres recebem após a morte, torna menos sofrida a perda. A interlocutora relata sobre o apoio recebido da família do companheiro morto e da sua. Essa entrevistada conta que entre ela e a mãe há uma amizade muito forte cultivada desde que era muito jovem, pois foi ela quem ajudou criar os seus irmãos menores. Todavia todo apoio não elimina a amargura e a tristeza pela perda do companheiro. Para algumas dessas mulheres pensar o passado como tempos melhores, é acreditar que o futuro pode ser diferente do presente, particularmente para aquelas que o presente ainda é de necessidades e dificuldades. Nessa perspectiva, as antigas moradoras da Vila Brasilândia, e interlocutoras desta pesquisa, relembram o passado como tempos melhores. Recordam que, mesmo havendo violência, as relações de vizinhança eram diferentes, e as pessoas podiam contar umas com as outras. Essa solidariedade estava relacionada também à necessidade de proximidade entre as pessoas, que decorria de demanda coletiva por infraestrutura, equipamentos e serviços públicos, comuns às diversas periferias de São Paulo. A organização da população era também por uma questão de sobrevivência. Lembremo-nos das construções de moradias em forma de mutirão que, para além de construir casas, aglutinava as pessoas. Por isso, o apoio ao próximo era uma prática cotidiana, conforme ilustra o relato que se segue.

... a gente mesmo vem participando dos mutirões, os tijolos eles deixavam lá em baixo e a gente ia subindo, né? Fazendo aquele mutirão, né? E depois muitas pessoas que trabalhavam aqui. sabiam

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serviço de pedreiro, né? Quem não sabia, eles iam ensinando, e aí foi fechando tudo... foram três meses. É depois que todo mundo se juntou, né?... E tudo... aí nós começamos fazer, né? Com dinheiro do condomínio fomos juntando e deu para a gente fazer. E depois com o pedreiro, cada um foi fazendo os seus prédios, e... estamos aqui. Foram 13 meses, a gente só dava o dinheiro da condução, a gente só pagava a condução. [...] Nesse prédio aí em frente, já tinha gente morando. É que esses prédios aí foram feitos bem antes, acho que já tinha uns seis anos. Mas quando nós viemos aqui tinha pouco tempo que eles estavam morando aqui... sabe? Eles vieram também para terminar. [...] As pessoas faziam comida e a gente comprava né? Marmitex. Depois nós mesmos resolvemos fazer aqui, né? As mulheres. cozinhavam, e a gente comprava comida a dois reais, o cafezinho de manhã a gente não precisava pagar. Aí pagava o almoço, de tarde, tinha um cafezinho pretinho, três horas da tarde. [...] Mas mesmo assim, você viu, 13 meses. Eu fiz isso aqui com o dinheiro do finado que morreu, porque passaram o dinheiro da firma onde ele trabalhava. (Sujeito da pesquisa).

Porém, quando as necessidades coletivas vão sendo sanadas, parece que o indivíduo começa a se preocupar somente com a própria sobrevivência. Esta mudança de comportamento provavelmente está relacionada à modernidade e também ao aumento da violência que é mais banalizada.

...Eu comprei este apartamento para a segurança dos meus filhos, sair do conflito com a minha família e também pelo fato que o meu filho, o Gustavo gostava de ficar lá embaixo, ali entre a Terezinha e o Icaraí onde ele tinha alguns amigos, e neste local já tinha a rede de narcotráfico. [...] E, de qualquer maneira eu não queria mais ficar naquela casa, por causa da lembrança do meu marido. E como a família toda morava lá, o Gustavo o meu filho mais velho estava brigando muito com o meu irmão aquele que minha mãe adotou. Ele é mais jovem que meu filho, e meu irmão foi adotado junto com essa irmã. Então, o Gustavo estava começando a brigar com ele, e isso tinha a interferência da minha mãe, e isso não estava me deixando legal, e por outro lado o Gustavo gostava de ficar muito na rua e lá é periferia. Na época em que eu era pequena, também existia a droga, mas não da forma que tem hoje. Da forma que eu vivia não tinha um

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contato maior com as drogas, e não tinha também essa grande rede. de narcotráfico, essas grandes bocas, as pessoas de fora ficavam realmente de fora e não era envolvida no contexto das drogas. Eu cresci, estudei e brinquei com algumas amigas, brincava e ia para ao bailes nas casas desses amigos, eu não tive essa abertura para os de fora entrar e expandir essa dimensão das drogas. (Sujeito da pesquisa).

A complexidade de símbolos representados na habitação de em um condomínio fechado, tem sido percebido por muitos apenas como uma forma mais segura de morar. O caráter ideológico dificulta a percepção de que o fenômeno representa também fragmentação e individualismo. Portanto, a segurança e certeza com a qual interlocutoras relatam sobre objetivos semelhantes, alcançados por diferentes meios, nos fornece elementos para refletirmos acerca das lutas individuais e coletivas ditadas pelas necessidades de sobrevivência com o máximo de segurança, e redução do grau vulnerabilidade. Todavia, devemos atentar para os diferentes caminhos que estas mulheres percorrem para atingir semelhantes objetivos. A aquisição da sonhada casa própria, longe da violência para criarem seus filhos. Os caminhos são sugeridos pelo poder econômico de cada uma porque, apesar de residirem na mesma região e terem perdido os seus companheiros por morte violenta, e cada uma ter dois filhos para criar; uma compra um apartamento já construído, e a outra constrói em regime de mutirão. As grades, muros e portões surgiram no cenário paulistano na década de 80 como símbolo de status social e poder econômico. Esse símbolo trouxe em seu bojo novos padrões contribuindo para um novo modelo de relação e comportamento, que amplia a distância entre as pessoas e grupos, em especial entre os diferentes, que foram transformados em desiguais. Este fenômeno redesenha o mapa das relações nas grandes metrópoles.

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Esta nova geografia das relações revela-se para a população da região da Vila Brasilândia pela necessidade redobrada de força e resistência para transpor as dificuldades que no passado já eram muitas, são acentuadas hoje pela violência extremada que vem atingindo homens negros, suas mulheres e filhos. A perda e a morte de entes queridos tem sido fato presente no cotidiano de mulheres que tentam não se deixar abater. Não é só a violência para as mulheres negras e pobres, manifesta-se de diversas formas. O relato dessa mulher é exemplar:

...Os trigêmeos, o Luizinho que nasceu primeiro dos trigêmeos. De uma vez só! O que nasceu primeiro..., ele veio para casa porque ele tirou a força dos outros dois que nasceram depois e os outros dois ficaram na estufa. Na Maternidade São Paulo. Na Maternidade São Paulo eles ficaram na estufa, aí quando... e o que nasceu o primeiro veio pra casa comigo, passado uma semana, veio o aviso que eles tinham morrido, os dois que ficaram. O médico e a enfermeira que trabalharam a noite... esqueceram a estufa desregulada, carbonizaram eles todinhos, então morreram com a quentura da estufa! Eles mesmos fizeram o enterro. Nessa época, meu marido estava com esse problema de pulmão, tuberculose, ele tava internado no Hospital em Catanduva. Foi lá que internaram-no, no Hospital. Ele ficou internado em Catanduva e ficou em Bauru, nesses dois Hospitais, e, aí eles mesmos fizeram o enterro, nem sei onde enterraram eles. (Sujeito da pesquisa).

Numa seqüência de tragédias, ela prossegue a narrativa abordando outro doloroso episódio.

...Então, morreu tudo! Aí o Luizinho que nasceu primeiro e que veio pra casa... morreu com pneumonia. Ele estava com cinco meses. Morreu com pneumonia, ele morreu no Hospital . Aí... tive a

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Ritinha, ela teve, ela tomou a vacina contra paralisia, e teve paralisia, e ficou defeituosa não é? Ela ficou com essa parte da perna dela, “cotó”, quando ela sentava, precisava se apoiar para poder levantar, ela também morreu com pneumonia no Hospital Emílio Ribas. Ela ficou no isolamento. Ela morreu com dois anos e meio. (Sujeito da pesquisa).

Conforme vão sendo narradas a seqüência de perdas, o seu comportamento e voz mudam, passando para indignação levando a choro. Pensamos que os relatos não devem ser pensados somente como sugere a entrevistada, enquanto fatalidades. Ela rememora uma realidade permeada por violência que são intensificadas pela má qualidade dos serviços prestados aos segmentos empobrecidos. Assim como as mortes de crianças em hospitais muitas vezes revelam atendimento inadequado, a morte prematura por homicídio entre jovens e adultos também pode ser pensada na perspectiva na falta de investimento em infraestrutura nas periferias por parte do Estado. Apesar da entrevistada perceber a deficiência dos serviços e realizar uma interpretação crítica da realidade do Distrito da Vila Brasilândia, ainda não consegue avançar para o plano da denúncia das arbitrariedades. Falar sobre as lembranças tristes e das perdas ainda é muito doloroso, mas à medida que as entrevistas vão se desenvolvendo, as mulheres rememoram suas histórias indo e vindo conforme o movimento da memória. Uma outra entrevistada conta:

...ah, mas ele era uma pessoa tão boa assim... eu não me conformo até hoje. Pelo o que aconteceu com ele, por ele ser uma pessoa tão boa e a pessoa vir e tirar a vida dele. E, a gente não saber até hoje o motivo, o por quê? Entendeu? A gente não sabe o motivo até hoje! Nem as polícias sabem também até hoje... Teve esse tempo que a gente recebeu uma carta para depor de novo. Um cemitério que eu nunca tinha entrado, tive que entrar... uma delegacia... tudo isso, mas, é como na delegacia eu fui tratada muito bem... não tenho do que

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reclamar entendeu? Só que... uma coisa que eu nunca entrei, eu tive que entrar... um cemitério, uma delegacia, eu nunca tinha entrado... tudo agora... sabe: o meu nome está lá! E assim, e a gente não sabe o motivo até hoje... e eu convivi com... eu conheci ele... antes do... quando eu namorava com ele eu conheci ele dois anos, fiquei namorando com ele dois anos... (Sujeito da pesquisa).

O trauma da perda não está relacionado somente ao episódio da morte, a reboque desta vem questões simbólicas como ter o nome registrado em uma delegacia. Até mesmo a entrada no cemitério pela primeira vez, neste local que representa para muitos a sagrada morada dos mortos. Portanto, apropriar-se da sua história tomando as rédeas da vida nas mãos, foi recorrente a todas as entrevistadas que de alguma forma conseguiram superar o trauma, que passa pela necessidade ressignificar questões como estas para que de alguma maneira consigam superar o trauma. Contudo, a lembrança da morte provoca ainda tristeza e choro entre algumas mulheres.

...Quando... logo que eu o perdi foi duro, foi duro, que emagreci tanto, fiquei ruim mesmo e, correndo atrás dos papéis, que tinha que correr atrás dos papéis para eu receber a pensão do meu filho. E aí, minha sogra me ajudando... no começo foi muito ruim pra caramba, porque até você cair em si... que, aquela pessoa se foi e não vai voltar... você fica meio zonza... e foi assim... logo que ele se foi fiquei meio tonta, fiquei meio balançada aí eu só ficava pensando, pensando nele, aí minha sogra também decidiu ir embora, aí minha sogra pegou e falou assim que ia embora e perguntou se eu queria ir... com ela. Só que eu falei que eu não queria não é? Porque eu tinha a minha mãe e não tinha nenhum parente lá. Eu já tinha ido lá em Pirassununga, eu já tinha ido lá fazer uma visita e tudo, só que lá não tinha parente. É como eu falo; parente mesmo era enquanto eu estava com ele, mas depois que ele chegou a faltar, eles não eram mais meus parentes, só que eu era tão boa e sou boa até hoje, que eu considero eles como minha família também... (sujeito da pesquisa).

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Organização Feminina, estratégias de solidariedade

Pollak tem razão ao dizer que o presente colore o passado. Na realidade, no presente, apesar de tudo, esta mulher está mais feliz, encontrou a paz.. Perceber as coisas boas em meio à dor foi comum à maioria das entrevistadas, especialmente aquelas que tiveram algum apoio. Ao mesmo tempo em que algumas mulheres choram com as lembranças tristes, outras ao olhar para o passado, no lugar de tristezas sentem alegria. Embora alguns destes fragmentos de histórias de vida revelarem um cotidiano de violências vivido por essas mulheres; pensamos ser adequado salientar alguns aspectos que tendem a passar despercebidos. À medida que estas mulheres rememoram, reelaboram e interpretam os fatos. Ao desenvolverem este processo revelavam a necessidade de pensar as perdas e traumas como percalços que fazem parte das vidas das pessoas. A idéia de que mortes como essas, em grande parte evitáveis, não são violências pois fazem parte do cotidiano de mulheres pobres e negras, aparecem como recurso as vezes não articulados que utilizam para continuar vivendo. Assim conta uma entrevistada:

... Caramba! Isso é engraçado depois que ele morreu, aí eu sosseguei de vez, porque eu tinha aquele negócio assim: ah meu Deus do céu! Bom, hoje ela não está lá com ele! Mas quando chegava 6ª feira, eu falava: ah meu Deus! sexta-feira, ela vai passar o final de semana com ele, eu ficava pensando, ela estará lá com ele... aquilo nossa, era um martírio para mim, pensar que ele estava lá com ela... (Sujeito da pesquisa).

Embora alguns destes fragmentos de histórias de vida falem por si, revelando o cotidiano de violências vivido por estas mulheres; pensamos ser

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adequado salientar alguns aspectos que tendem a passar despercebidos aos olhares menos atentos. Estamos nos referindo a interpretação que as narradoras fazem de suas histórias de vida. À medida que estas mulheres rememoram, reelaboram e interpretam os fatos, o desenvolver desse processo revelava-nos a necessidade destas pensarem as perdas e traumas como percalços que fazem parte da vida das pessoas. Conformar a idéia de que mortes como essas, algumas evitáveis não são violência, e que fazem parte do cotidiano de mulheres pobres e negras, pensamos ser um recurso, às vezes articulados pela memória, que utilizam para continuar vivendo. A ambivalência que este sentimento revelam segundo Pollak (1989), o desejo de acomodar um passado que essas mulheres não podem mudar.

...Hoje eu não choro mais não, mas eu levantava assim... hoje, eu parei, eu não sei quanto tempo tem um ano mais ou menos que eu parei, era só eu entrar no banheiro eu começava a conversar, e alguém perguntava: ô Cida o que é isso aí? Ah! estou conversando! Conversar! Eu não tinha amiga, eu conversava sozinha no banheiro. (Sujeito da pesquisa).

Uma outra mulher narra:

...aí eu conheci ele, namorei com ele dois anos, depois..., morei com ele seis anos... e ele era uma ótima pessoa, não tinha do que reclamar, entendeu? Cantava, vivia a vida dele, não bebia, não era drogado... não... não tinha nada disso e a pessoa vir assim do nada e tirar a vida dele e a gente não saber o motivo porque... entendeu? E aí eu fiquei chateada com isso... fiquei chateada e guardei para mim, é tanto que... do meu segundo filho... do meu terceiro filho... o pai dele fala assim... ah Mônica pelo jeito você nunca vai amar ninguém como você amou o seu marido, aí eu falei assim: quem sabe um dia entendeu, porque eu não quero arriscar morar com ninguém, eu tenho medo de morar com alguém... porque eu não quero passar tudo o que eu passei, porque eu gostava muito dele... como diz o ditado... eu já

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falei... eu posso arrumar não sei quantos filhos, mas eu nunca vou esquecer... a pessoa que eu gostei, que eu amei... tem gente que fala assim: ah não, você já arrumou filho, já esqueceu, que não sei o que... como a mãe dele pensa que eu não converso com a mãe dele mais, parei de conversar por causa dos meus filhos, que ela não aceitou... aí tem tudo isso... e aí, o pessoal pensa: ah você já arrumou outros filhos, já não gosta mais... esqueceu, só que não é assim... só eu sei o que eu passei, ninguém sabe mais e as pessoas ficam criticando... tem muitas pessoas que criticam a vida... Então... mas ele foi uma pessoa muito boa, e a gente não sabe o motivo até hoje, pelo que eu passei, só que tem muita gente que pensa: ah... não está nem aí, pelo o que eu penso, só que... as pessoas estão enganadas, eu penso também, eu tenho coração, eu tenho... eu tenho tudo... (Sujeito da pesquisa).

Esse cotidiano atribulado, permeado por violências, mina as forças, bem como a relação entre as mulheres negras. No entanto estas imprimem movimento contrário. Na perspectiva de reunir forças para essas investidas, ativistas dos movimentos negro e de mulheres relembram a luta e resistência de nossos(as) antepassados(as), para situar os avanços. Percebemos que a história das mulheres negras não foi contada nos livros de História, portanto, não é conhecida da grande maioria da população, tanto é que a cada novo contexto que a cada novo contexto necessita ser pontuada parte dessa trajetória. As mulheres negras, após a abolição, organizam irmandades; a exemplo temos a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos homens Pretos que, segundo Andrade (2004) foi criada por mulheres negras por volta de 1903. Essa conquista apesar de ser resultado da luta das mulheres negras, elas não ocuparam posição de poder nestas. As decisões são incumbência masculina, mesmo quando esses homens representem menos de 30% da irmandade. Todavia, as Confrarias e as Irmandades também desenvolveram um papel importantíssimo na época para os libertos, pois fazer parte da Irmandade significava participar de uma vida social mesmo tendo essas organizações um fundo religioso católico sincrético, tornou-se um espaço que disponibilizava um referencial cultural e serviços sociais não oferecidos pelo Estado, e

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parte daí a constituição das primeiras instituições autônoma de negros.(Moura, 1995:37-38). Do ponto de vista da importância da organização, na Brasilândia as ONG´s e Associações de Moradores desenvolvem papel semelhante no sentido de aglutinar a comunidade em atividades sociais, culturais e de trabalho cooperado, assim como as pastorais reúnem grupos para pensarem alternativas para organização das comunidades de base, que incluem a formação política. A participação política e religiosa, além da preservação das relações humanas, contribuiu para a formação de uma consciência crítica. Portanto, envolver as pessoas na dinâmica dos diversos grupos da comunidade na Brasilândia, era também uma forma de potencializar a afetividade entre pessoas. Uma vida de ausências, sem relações de solidariedade, com a presença de um Estado Mínimo para o social, e violento no que tange as ações de policiais, nas periferias, reúnem os elementos essenciais para ampliar a vulnerabilidade das pessoas. É a violência característica das grandes cidades brasileiras.

Mulheres Negras: Organização, Luta e Resistência

Alzira Rufino, militante histórica do movimento de mulheres negras argumenta que, Nas reuniões algumas mais audaciosas, já em contato com o Movimento Geral de Mulheres e Feminista, começavam a reivindicar por maior espaço para as mulheres e denunciavam a tríplice jornada de trabalho em que estavam envolvidas, como mulheres e negras. Sendo assim, duramente criticadas, com pérolas do gênero: isso não tem nada a ver com o nosso movimento; questões específicas não são importantes agora, etc. Os mesmo erros de avaliação e intolerância política que o próprio Movimento Negro Geral enfrentava com as Esquerdas e os Partidos Políticos, quando militantes começaram a entrar em suas fileiras e levantando bandeiras sobre as questões raciais. (Rufino, 2004)

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Os protestos evidenciavam a participação das mulheres negras; no interior dos movimentos feminista e negro, no período de maior efervescência, quando estas para se fazerem ouvir, contestavam a sociedade machista pelo movimento, e, “contra” o movimento porque estes não as contemplavam nas questões étnicas e de classe social. Apesar das feministas acumularem várias conquistas, as diversas bandeiras de luta não eram representativas do conjunto das mulheres. A diversidade de mulheres presente no interior dos movimentos, cujas demandas por vezes diferenciava-se do conjunto – dada a especificidade de cada segmento – redundava em um positivo conflito interno. Neste aspecto, as mulheres negras por sua trajetória que inclui participação no mercado de trabalho, desde o período escravagista até hoje, levantavam bandeiras reivindicando questões, que diferenciavam das propostas pelo conjunto das feministas. As mulheres negras que ao longo da sua trajetória são responsáveis pelo sustento da família, sendo que o mesmo não ocorreu na mesma proporção para as mulheres brancas. Neste sentido, para que as mulheres brancas pudessem se lançar no mundo do trabalho, as mulheres negras ocuparam seus lugares nos afazeres doméstico e no cuidado com seus filhos. Movimento diferente ocorreu com os clubes de mães, que constituídos de donas-de-casa residentes nas periferias de São Paulo, muitas delas do distrito da Vila Brasilândia, organizam-se em torno de diversas bandeiras reivindicando: saúde, educação, creches e outros. Este movimento de luta que acolheu as diversas demanda do conjunto de mulheres em seu interior, alcançou grandes conquistas. A dona Cida, moradora da Vila Brasilândia, liderança dos movimentos das mães e donas de casa relata a forma como a mulheres se organizavam em torno das necessidades coletivas. Relembram também das principais estratégias de aglutinação e discussão política, que ocorriam enquanto faziam crochê, tricô, entre outras atividades manuais. Esse movimento de mulheres mostrou que é possível mudar o rumo da história desde que haja mobilização popular. As formas de desarticulação são reelaboradas em oposição a este movimento, para perpetuar a subordinação das minorias. Nesta perspectiva Chauí (2002) argumenta que o ensino representa não somente acesso ao conhecimento, mas uma estratégia que garante o sistema de privilégios em favor de uma minoria. Para tal, são desenvolvidos mecanismos de

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controle social e político, pois a prática de ensino assim como a da educação estão permeadas por forte conteúdo ideológico que amplia e fortalece as estruturas de poder de ricos sobre pobres; de homens sobre mulheres; de brancos sobre negros e por aí vai. Para a manutenção dos privilégios são perpetradas ações que desarticulam o movimento sem que o grupo perceba. Estas questões tornam-se evidentes, quando o Sr. Ailton, liderança comunitária, nos relata que a diretora de uma escola pública municipal se recusa a emprestar o espaço externo às salas de aula para realização de atividades com os jovens nos finais de semana. Assim como, a Dona Cida, afirma estar a muito tempo buscando um espaço para fazer reuniões com as mulheres. Explicava que mesmo pleiteando junto aos equipamentos do estado; o único lugar que conseguiu através da igreja, foi uma sala minúscula sem banheiro, cuja estrutura precária dificultava a permanência das mães que necessariamente levam consigo os filhos. Segundo a liderança, a precariedade do espaço, levou as mulheres a abandonarem o grupo que se formava. As relações sociais, especialmente as de trabalho no campo das atividades domésticas tende a remontar as práticas violentas que os senhores utilizavam com os escravos. Os conteúdos ideológicos que sustentavam a relação entre senhores e escravos, atravessou o tempo e permanece entranhado no tecido social, sendo reproduzido em diversas esferas, com mais intensidade na do trabalho, resultando em práticas discriminatórias, que possuem teias de significados que na sua ambigüidade são relativistas pois, ao formularem as estratégias da exclusão, definem o perfil das pessoas que devem ser selecionadas para ingressar no mercado de trabalho, nas universidades, cujos critérios são constantemente reelaborados de forma a excluir determinados segmentos. No entanto o significado de exclusão não é compreendido enquanto tal pelos excluídos porque muitas vezes estas mulheres ficam também excluídas dos laços afetivos. Assim, mulheres que afirmam não terem sofrido nenhum tipo de violência além da morte do companheiro, não desejam porém estabelecer relações afetivas, abrem possibilidades para participar de eventos sociais, junto a novos amigos, mas ao mesmo tempo negam a possibilidade de uma vida afetiva com outro homem, não

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apenas em função da independência conquistada, mas pelos percalços da relação conjugal.

... Hoje em dia que marido que vai me aceitar. Primeiro que do jeito que está aqui está bom. Porque, está arrumado, na hora que eu chegar o que eu quiser fazer eu faço. Você viu, eu cheguei correndo fiz uma comida, e eles comeram e acabou. Esta lá dentro, se eu quiser eu pego a minha bolsa e saio, chego meia noite uma hora, e estou vivendo a minha vida, amanhã se eu quiser ir aprender a dançar eu vou. Na sexta-feira, eu vou chegar em casa rápido, porque eu gosto de arrumar tudo, e é assim que eu faço e sábado eu vou ensaiar o desfile de sete de setembro, porque terça feira eu vou desfilar com o pessoal do Correio. (Sujeito da pesquisa).

A abertura para novas relações de amizade, pode significar a ruptura com o passado, ou seja, superação do trauma. Não se pode afirmar que as perdas do passado não serão lembradas, mas segundo Pollak (1989), terão um novo colorido e os sentimentos mais angustiantes abrandados. Romper com este passado de dor, requer das mulheres, em especial das mais pobres e das negras, grandes esforço que passa por abandonar representações que aprisionam as mulheres às obrigações como disse uma entrevistada, que iria viver sozinha em memória do amor pelo companheiro morto. Mas, a ruptura com o passado, pode ser simplesmente superficial, porque outro homem significaria simplesmente um passado violento que elas querem fugir. Assim para estas mulheres, talvez o homem torne-se sinônimo de violência. Outro aspecto importante a ser pensado é na perspectiva da religiosidade feminina, o papel da fé na organização da sua vida. O Distrito da Vila Brasilândia abriga templos dos diversos cultos e crenças. Esses templos que se distribuem pela região da Brasilândia disputam acirradamente a predileção de abundante clientela. Entre as variadas igrejas, se fazem mais presente as neopetencostais, que se expandem na mesma proporção da população nesta periferia.

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Todavia para o processo de superação do trauma, e para a superação da perda, essas religiões parecem que não tem contribuído satisfatoriamente, como relata a interlocutora:

...Eu estava indo à católica, quando este namorado de dezesseis anos morreu. Uma mulher ficou discutindo comigo parei de ir para a igreja. Eu acho que igreja católica é legal, mas é sempre a mesma coisa. Eu não gosto de mesmice. A igreja evangélica eu adoro, mas eu gosto da Batista. Mas, no dia em que meu marido morreu, eu fui lá na quinta-feira, [...] na igreja evangélica e tal. Era legal porque eu estava conhecendo a palavra, e eu adoro ler a Bíblia, todos os dias eu leio o salmo, aí ele falou assim: (o pastor) ele morreu mas você está viva, e você está trabalhando? Mas o que tinha a ver eu estar trabalhando! Aí ele: você vai ajudar a igreja? Pergunta se eu voltei lá? Pergunta se eu fui lá? Eu fiquei tão revoltada com a igreja, [...], e eu estava pedindo muito pelo salmo cento e quarenta e um que é: livrai-me de todo o mal. Mas eu não queria que ele me livrasse desta forma.,(está se referindo ao marido) mas que ele amenizasse porque ele era muito grosso essas coisas. Agora fiquei meio revoltadona com a igreja, aí eu comecei a ler uns livros espíritas, eu gosto... É muito legal. Eu estava lendo o livro da Zíbia Gaspareto.” (Sujeito da pesquisa).

Todavia para o processo de superação do trauma, e para a superação da perda, essas religiões parecem que não tem contribuído satisfatoriamente, como relata a interlocutora É reveladora a busca desta interlocutora por elementos simbólicos que atendam uma demanda espiritual, e ao mesmo lhe traga paz de espírito. Pensamos que deriva da falta de perspectiva a busca por consolo no religioso. Na verdade, os caminhos percorridos pela interlocutora para a satisfação de necessidades que a primeira vista parecem espirituais, mas que transcende a estes, está relacionada a necessidades materiais. Nesta perspectiva, as necessidades materiais objetivas não preenchidas levam a entrevistada a busca nas diversas religiões, que vão sendo preteridas a medida que não lhe dão a resposta procurada.

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Estão localizadas nessa procura, a necessidade e o desejo de mudar sua vida. Portanto, a falta de perspectivas além de gerar um sentimento de impotência diante dos fenômenos sociais, leva grande parcela da população inclusive interlocutoras a depositar sua esperança na religião. Segundo Chauí (1987), essa atitude reflete a desesperança de realização de mudança por seus próprios meios, passando a acreditar que uma mágica aconteça ou um agente divinizado venha a realizar tal mudança. Todavia, as narradoras que afirmaram terem ingressado para cultos evangélicos, falaram que não acalmaram suas angústia. Porém aquelas que buscaram, apenas o auxílio material, como cestas básicas, se sentiram amparadas. Portanto, a peregrinação das mulheres em busca de oportunidades e respeito, tem repercutido de forma positiva Quando essas mulheres cuja trajetória é permeada por alegrias, tristezas, encantos e desencantos, vivenciam situações limite e não são acolhidas; exprimem seus sentimentos às vezes pelo desejo de mudar de vida, casa ou cidade para esquecer o passado. Entretanto, na impossibilidade de realizar tal mudança, mulheres negras como as interlocutoras desta pesquisa prosseguem suas vidas ressignificando os traumas e reinventado as relações com uma criatividade guerreira incomum. A capacidade que o segmento feminino negro tem revelado, a qual lhe permite enxergar o horizonte mesmo quando os percalços decorrentes das desigualdades e racismos ocorrem em proporção tão imensa que elas dizem que a sensação é que não vão sobreviver ao infortúnio. Entendemos que, para visibilizar o papel e contribuição dos povos negros, particularmente das mulheres na sociedade brasileira, é necessário pontuar os entraves avanços destas para se apossar da sua própria vida. Portanto, discorrer sobre a trajetória de mulheres negras na sociedade brasileira é fundamental, porque a medida que destacarmos aspectos interessantes destas ao desenvolvimento deste estudo, pudemos ampliar nossa percepção sobre uma gama de estratégias articuladas pela sociedade englobante para a manutenção das desigualdades cuja interlocução com as categorias de gênero e raça intensificam os efeitos da discriminação nos segmentos feminino e negro especialmente daqueles que moram nas periferias de São Paulo. A dinâmica das relações sociais, tem satisfeito às

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estruturas de poder quando invizibiliza não somente a violência sofrida pelas mulheres negras, mas também os seus grandes feitos. Esse cotidiano atribulado caracterizado pelo constante enfrentamento de desafios, parece constituir em elemento que contribui para opacidade da visão destas bem como da sociedade mais ampla sobre essas questões.

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Capítulo 3

Violência e medo na perspectiva das relações raciais e de gênero

Segundo Chauí, o medo e a esperança são a base de sustentação de um sistema tirano. E: a cultura da culpa desloca o diabo de fora para dentro da consciência, a cultura do medo, alicerçada sobre horror a plebe, opera igual deslocamento. (CHAUI,2002,p.41)

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Para refletir sobre medo e o abandono como situações resultantes da violência, bem como compreender seus diferentes aspectos e amplitude, recorremos às diversas construções teóricas, porque para apreender o resultado é necessário perceber as nuances deste fenômeno na interface com as categorias de gênero e raça. Estas interlocuções são importantes à medida que intensificam a re-elaboração das relações sociais provocando a desagregação destas entre os seguimentos feminino e negro. Neste sentido, pontuaremos e agregaremos a este estudo, representações relacionadas à violência, consideradas necessárias ao desenvolvimento desta análise para apreensão dos significados. O medo decorre da desesperança que nasce em função deste quadro de ausências que resulta das desigualdades sociais e das relações de poder que se expressam nos corpos e nas mentes das pessoas. Esses fatores determinam a qualidade da vida, da morte e os processos de adoecimento dos segmentos empobrecidos. Portanto, quando Chauí (2002), discorre sobre a forma como o preconceito se transforma em senso comum, e é apropriado como instrumento de dominação e controle político por meio da ideologia, que é a responsável pelo sentimento das paixões, medo e esperança, o faz de forma a demonstrar como ela se realiza, e como o medo e a falta de perspectiva levam as pessoas a resignação diante do seu “destino”, o seu destino, repleto de violência. Neste sentido, é adequado conceituar violência, o que não é uma tarefa fácil, pois o termo envolve uma gama de situações reais e simbólicas. Portanto, para abranger a violência aqui discutida, buscamos elencar elementos e representações em especial as violências não reconhecidas enquanto tais pela sua sutileza, como: a fome, a mortalidade infantil, a mortalidade materna, a violência policial, as chacinas, negligência médica, o desemprego, a falta de moradia, as moradias insalubres, o não acesso à educação, a segregação, a discriminação e outras que por vezes não são apontadas como violência por parte das entrevistadas. Na perspectiva de ampliar o entendimento, Chauí (2003) explica que: a violência é a conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação de exploração e de opressão. Isto

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é, a conversão dos diferentes em desiguais, em relação entre superior e inferior. Ainda objetivando o entendimento da questão, a autora define a violência contra a mulher como a correlação de força, na qual o poder de dominação do homem busca submeter a mulher, para impedir a realização dos direitos fundamentais da mesma, ou seja; de liberdade, de autonomia, de ir e vir, se manifestar, opinar e pensar. A concepção ampliada de violência ainda não é percebida pelo conjunto das mulheres, portanto, situações de opressão não são percebidas. Por essas questões, as interlocutoras desta pesquisa relatam, profundamente emocionadas com lágrimas nos olhos, sobre os detalhes da morte de seus companheiros. Frente ao episódio traumático elas se revelam fortes, de forma a amparar os filhos e encaminhar as questões legais, porque na maioria dos casos, foram elas que tiveram que desenvolver todas as ações necessárias. Mas passado esse primeiro momento, elas desabam e remontam as cenas como quem assiste a um filme de terror, e aí se dão conta do que aconteceu de fato, e que estão sós.

... Eu o vi subindo correndo falando: “Fulano, Fulano, me arruma um revolver correndo, arrumei uma treta ali”. Aí o Fulano falou: “Meu, não quero nem saber”. Quando ele virou as costas, os caras começaram: “pá, pá, pá”, (tiros). Era uns cinco caras, e aí eu comecei a gritar. O negrão olhou para mim assim, apontou a arma. Eu: Meu Deus do céu, minha nossa Senhora da Aparecida, aí, os Caras: “vamos, vamos, vamos, corre, corre, corre deixa ela para lá”, aí saíram. [...] foi quando eles pegaram os caras. Aí eu reconheci um... um dos assassinos do namorado. Nessa época que eu conheci meu marido e depois eu descobri que meu marido não era só motorista de táxi, ele mexia com tráfico, essas coisas assim. O pessoal do Paulistano conhecia ele, foram lá na casa dele e falaram: “sua mulher é mulher de malandro?” Então manda ela retirar tudo. Aí eu retirei. (Sujeito da pesquisa).

A seqüência de violências narradas pela interlocutora revela também uma escolha por companheiros que de alguma forma estão envolvidos com a criminalidade. Portanto, a violência representada pelo o homicídio do companheiro, é mais uma das

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tantas que viveram anteriormente que vão somar às anteriores e subseqüentes a morte do companheiro. Desta feita, as mulheres passam a realizar todos os afazeres que anteriormente eram divididos, e diante da total responsabilidade com os filhos, sentem-se amedrontadas. Amedrontadas não apenas por estarem sós, mas com medo de falhar com a educação desses, haja vista que deverão trabalhar mais para ganhar mais e suprir a ausência do ganho masculino – além da perspectiva de não poderem mais contar com a habitual representação dos companheiros.

... Por quê? Porque tudo é você sozinha entendeu? Você vai para o médico sozinha, você... tudo você tem que fazer sozinha, porque o pai desse meu segundo filho não deu assistência... veio dar depois dos sete meses que eu procurei a justiça, então tudo você sozinha, então para mim... eu fui ser mãe com o segundo filho, o primeiro eu sei que eu fui mãe... só que ali eu tinha uma pessoa para dividir todos meus problemas, de casa, de filho... de tudo, estava ali para tudo, porque ele era um pai... É, um companheiro, a gente dividia tudo, aí no segundo eu já fui... eu já criei ele sozinha, então eu acho que eu fui ser mãe mesmo, cair em mim no segundo filho, porque aí como eu falo... eu faço tudo sozinha, eu vou tudo sozinha, se é um médico, eu vou sozinha, eu não dependo de ninguém entendeu? A não ser assim um vizinho... conversar com um vizinho, mas para cuidar mesmo dos meninos só eu sozinha. É, eu sou sozinha entendeu! Agora do terceiro... o terceiro eu, eu arrumei outro filho, o pai está comigo, é como eu falo... mas tudo é a mulher, porque o homem ele só... ele pensa assim, ele trabalha, ele traz o dinheiro então para ele está ótimo, mas eu por ter 24 anos eu me viro sozinha do jeito que eu posso, eu sou assim... (sujeito da pesquisa).

Em virtude dos assassinatos em série e coletivos, nos quais as pessoas mesmo não estando envolvidas com a criminalidade são também alvo. Devido a esse fator, a população de maneira geral tem procurado manter distância destes indivíduos. Porém, esse distanciamento atinge também a companheira e filhos dessas pessoas, que passam a ser vítimas indiretas. Para esse segmento popular, cuja trajetória é atravessada por todo tipo de violência, o isolamento é mais uma.

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Portanto, o medo que envolve não apenas as mulheres desta pesquisa, mas os moradores da Vila Brasilândia, divide-se entre o Estado constituído e o “Estado paralelo”. O primeiro representado através de policiais arbitrários e despreparados e da justiça, o segundo pelo crime organizado e o narcotráfico. As ações desenvolvidas por ambos, por vezes apresentam as mesmas características, ou seja, o mesmo desrespeito no trato com a população. A partir do relato da entrevistada acima, é possível questionar a ausência e a presença do Estado, enquanto que um deveria atuar salvando e guardando vidas, e na construção de equipamentos, não o faz. Diferentemente, se faz presente, na maioria das vezes, pelo “braço forte da lei”. Já o outro, prossegue seu trabalho de manter uma suposta ordem societária, aumentando o medo da população da periferia. O relato abaixo se desenvolve no mesmo sentido que o anterior, revelando o grau de exposição das mulheres quando da morte do companheiro.

... Então, eu estava grávida de sete meses. [...] E ela gritando começou a chamar: “mãe, mãe, mãe”. Minha mãe foi, fechou o portão e puxou ela. A gente subiu e eu fui à janela da minha irmã, que dá de frente para rua e o vi saindo do carro, aí eu falei: “eu não acredito”! E uma moto do lado, aí eu falei: “Nossa não acredito, será que é o “R”? O que está fazendo? Só que ele não estava andando armado. Até achei estranho. Aí quando eu fui descendo as escadas, Mabel, eu parei, começaram mais tiros ali na pracinha, não sei se você reparou, tem uma pracinha ali. Tem até um tiro lá na casa de um senhor, até hoje uma bala que pegou na porta de entrada. Aí o pessoal estava esperando na esquina, porque eu acho que acabaram as balas do revolver, eles saíram porque ele estava se mexendo, porque os tiros pegaram no carro, estilhaçou todo os vidros. [...] eu não sei como que foi, porque é muito esquisito. A moto estava parada do lado do carro dele, quando eu vi. E ele saiu, em direção ao pessoal. Eu não sei o que se passou pela cabeça dele, se era em defender a gente... (Sujeito da pesquisa).

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O trauma e o medo por ter presenciado a morte do companheiro é duplamente maior e aparece no rosto dessa mulher ao rememorar a tragédia, denota o transtorno que viveu não apenas no momento do evento violento, mas posteriormente também. Pois, a esta sempre restou dúvidas se seriam ou não o próximo alvo. Porque, a depender do motivo do assassinato e de quem o pratica, a família toda pode ser morta. Para esta mulher, a impressão que ficou pela forma que o companheiro caminhou desarmado em direção aos seus algozes, foi uma tentativa de impedir que aqueles entrassem na casa onde estava sua família e matassem a todos. Todas as entrevistadas de alguma maneira se referiram a episódios semelhantes. É como se tais eventos tivessem se tornado corriqueiros na periferia. Sugerem ainda que ficar indiferente diante de tanta violência, faz parte de uma estratégia de sobrevivência. Em se tratando da questão do medo resultante da convivência com a violência e por experiências pessoais ou presenciais – seja esta perpetrada pela representação policial ou crime organizado – dimensionar o impacto que estas acarretam sobre os indivíduos requer uma análise mais detida das representações que produz. As conseqüências deste conjunto de violências entre os segmentos feminino e negro, moradores nesse Distrito, são percebidos também pelo descrédito no poder público, representado pelo aparato estatal local. Apesar do mito da democracia racial e da não violência essencial discutidas por Chauí (2003) turvar a visão da população sobre os efeitos na vida dos moradores, lideranças comunitárias da Vila Brasilândia, representam a população dessa comunidade através da participação nos conselhos e fóruns, exigindo do poder público, medidas que visam melhorar as condições de vida na região. As desigualdades são percebidas e sentidas pela população, principalmente pelo tratamento desqualificado dirigido a esta nos diversos serviços. A influência das lideranças e dos movimentos sociais na administração local segundo Caldeira (2000), favorece não apenas a melhoria da infra- estrutura da periferia, dos serviços existentes, mas também a construção de novos equipamentos. Entre as interlocutoras desta pesquisa, foi comum o desejo de mudança para um lugar com melhor infra-estrutura e mais seguro. Do ponto de vista da autora

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do relato acima, segurança está ligada à presença da mãe, mesmo que para isto continue morando dentro da favela, na convivência com os assassinos de seu companheiro. Para outras mulheres, a segurança está relacionada principalmente ao enclausuramento entre muros. Algumas mulheres já realizaram tal desejo, acreditando estarem protegidas dentro dos muros dos condomínios. Para a população em geral, em particular da Vila Brasilândia, os enclaves fortificados representam status social, poder econômico e especialmente segurança. Não diferente do pensamento coletivo, duas das entrevistadas confessaram que conseguiram estabelecer residência em local que acreditam ter mais segurança. Uma mudou-se para um conjunto residencial fechado financiado para famílias de classe média54, na Vila Brasilândia. A segunda mulher, participou durante um ano do mutirão para a construção da COHAB - Brasilândia, onde ganhou o direito a um dos apartamentos. Além da satisfação da conquista da casa própria, ambas sentem-se mais protegidas pelos muros dos condomínios. A última por morar em COHAB – Conjunto Habitacional Popular, que não possui serviços de portaria e vigilância 24horas, possui um sofisticado sistema de câmeras que possibilita monitorar o movimento das pessoas em toda a área comum do condomínio e do interior de cada apartamento, ou daqueles que puderam pagar. Caldeira (2000) explica que: estes novos padrões de moradia cumprem o papel não só de dar a sensação de segurança, mas também de estabelecer limites às relações entre as pessoas. Segundo a autora, esse processo contribui para o aumento do preconceito e da discriminação étnica, de gênero e de classe social; pois,

...tanto simbólica quanto materialmente, essas estratégias operam de forma semelhante: elas estabelecem diferenças impõem divisões e distâncias, constróem separações, multiplicam as regras de evitação e exclusão e restringem os movimentos... assim como, graças a moral da valentia, a imaginação da modernidade reconstrói a divisão social de modo a torná-la não apenas suportável, mas, sobretudo controlável. (CALDEIRA,2001, p.9)

54 A atribuição de classe social, é conferida neste estudo de acordo com o padrão de moradia regulado pelo IBGE enquadrando na classe C dentro de uma variação que vai de A a D.

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Estes pressupostos revelam que em São Paulo, as questões relacionadas à violência, merecem ser analisada à luz das ambigüidades. Não podemos desconsiderar as dimensões políticas, materiais e econômicas. Desta forma, é um equívoco analisar apenas no seu aspecto econômico, é necessário levar em conta o agravamento causado por um plano econômico que foi implementado de forma a atender as necessidades da globalização, que desconsiderou a realidade da grande parte da população, principalmente no que se refere à situação de pobreza, e desigualdade que vive parte significativa dos moradores da periferia. Segundo Ianni (2003), à medida que se recria o capitalismo por meio das globalizações, tem-se uma nova urbanização, a qual, recria as relações que tal qual as formas de produção, apresentam-se fragmentadas. Portanto a acentuação da pobreza, desigualdade e violência são acarretadas por estas. Essa realidade, decorrente da urbanização em curso segundo Ianni (2003), em diferentes gradações produzem divisões, discriminações e as novas formas de segregação, que influencia diretamente no modo de produzir em função do fluxo das tecnologias, assim como na determinação do papel do Estado frente ao mercado produtor e consumidor. Tais prerrogativas são corroboradas por Caldeira (2000), que as discute na perspectiva da contribuição para cidade de São Paulo e outras grandes metrópoles do aumento considerável da violência que, combinada com o medo redunda em nova forma de segregação espacial. As mudanças na paisagem urbana refletem estas transformações, grandes edifícios são construídos por toda a cidade e para todas as classes sociais. Na mesma proporção que este conjunto de transformações provocam mudanças estruturais, de forma rápida e generalizada desagregam as relações promovendo o individualismo. As conseqüências dessa concepção passam a ser mais sentida entre os segmentos mais empobrecidos. Afirmamos isso, dadas às carências já apontadas, conforme demonstram os mapas de distribuição da população pobre, da população negra e de mulheres negras chefes de família em São Paulo. Estas

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ausências somadas a um conjunto de fatores exacerbam o sentimento de medo e abandono por parte da população dessa região.

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Entre o medo e o abandono

O abandono, é uma violência ao mesmo tempo em que é conseqüência de outra. Ou seja, é uma dupla violência. Historicamente as mulheres negras têm vivido situações de abandono, quer seja nas senzalas onde foram impedidas viverem com suas famílias ou hoje como chefes de família por serem seus companheiros assassinados. As perdas não cessam com isso, ainda sofrem pelo abandono da família dos amigos e vizinhos. Percebemos que a morte violenta, provoca nas pessoas receio de se aproximarem das vítimas indiretas. Se no passado a vizinhança, particularmente das periferias se apoiarem nos casos de morte, neste contexto a morte violenta aparece como as análogas doenças das quais as pessoas querem manter distância. É necessário salientar que para algumas mulheres cujos companheiros estavam envolvidos com o narcotráfico, o isolamento ocorria mesmo antes da morte deste. Os relatos que se seguem confirmam esta situação.

...mesmo eu ficando fechada não é, eu ia ver minha mãe, eram cinco minutos... Ele me levava lá, ficava no portão esperando, me levava. Ele explicava o seguinte: esse negócio, então ele levava e já trazia... nós não saíamos assim, para o quintal não, ele não deixava, nem na beirada do muro.[...] Tem a janela do meu quarto e a janela do fundo. A janela do... quarto? É dos meninos..., é porque no tempo do meu marido, nós ficávamos fechados... É... então... eles já acostumaram... ficava a janela fechada, a porta fechada... então acostumamos. (Sujeito da pesquisa).

Para que essas mulheres percebessem as situações violentas, e não apenas questionassem, mas se indignassem com a forma que estão sendo tratadas, necessariamente precisariam experimentar outras formas de relacionamento. Notamos que entre as mulheres que sofreram violências ao longo de sua existência a percepção

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sobre elas está comprometida. Ou seja, se não foi cercada de cuidado, protegida da violência, é provável que tenha dificuldades em reconhecê-la ou denuncia-la. Entendemos que para essa interlocutora fazer valer os seus direitos, é necessário ter ciência destes, pois o conteúdo relatado em sua história de vida revela além do desconhecimento, uma certa resignação com relação ao tratamento que o marido lhe dispensou. Esta suposta conformidade pode ser observada enquanto comportamento esperado de uma mulher negra, resultante da violência que atravessa toda a sua trajetória, e que neste relato revela seu conteúdo mais forte pois, devido à assimilação dessas ações violentas parece que, passam a ser vistas na maioria das vezes, como naturais e mesmo que lhe cause incomodo e desconforto, não se manifesta contra.

[...] eu vivia mais dentro de casa. Nem a Fulana que era a mulher do Fulano quase não..., também vivia mais socada lá para casa dela também. Então, eles ali no corredor, eles não deixavam esse negócio de... mulher estar saindo, estar ficando ali; mas, só eles tomavam conta dos vizinhos, tomavam conta dos seus filhos também.

O enclausuramento que vivia essa mulher, é vivido por tantas outras cujos companheiros não possuem envolvimento com o tráfico. Uma moradora relatou que na realização do seu trabalho como Agente Comunitária de Saúde, em uma das residências por ela visitada, uma mulher, cujos pais e parentes vivem no Norte do país, era mantida cativa por seu marido que, com medo da influência, não permitia que a Agente entrasse em sua residência. Nessas situações denunciar o fato apresentava risco de vida tanto para a mulher aprisionada, quanto para a Agente Essa situação desvela a invisibilidade da violência e a ausência de amparo vivido por mulheres.

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A ocorrência de crime de morte provoca na comunidade um certo pânico, levando as pessoas a se distanciarem das vítimas indiretas, ou seja dos seus familiares. Pensamos que talvez pelo fato dos autores serem em grande parte conhecidos das vítimas, e tal fato representar uma ameaça constante não apenas a família da vítima, mas à comunidade que o cerca. Dizemos isso porque o medo em suas faces pode provocar ao praticante do crime, a necessidade de eliminar todas as possíveis ameaças de revanche, seja ele pessoal e/ou denúncia à autoridade policial. Pelo medo pessoas praticam ações que podem parecer valentia. É por questões como esta, que no momento posterior à morte do companheiro as mulheres com seus filhos foram obrigadas a mudarem o seu local de residência. Diversos e relevantes foram os motivos, sendo que em alguns casos, o retorno para casa da mãe não ocorreu pelo medo ou necessidades materiais como descreve o relato seguinte:

... Aí Mabel, com três dias que meu marido tinha falecido, meu sogro pediu a casa. Eu estava grávida ainda com três meses, ele pediu a casa. Pedi para ele esperar um pouco, porque a minha mãe estava construindo aqui em cima, pedi para ele esperar um pouco. Ai ele falou: “está bem”. Com nove meses, antes de eu ganhar a Arielle ele falou novamente: “dá para você sair da casa por favor!”. Eu estava esperando a Arielle. Ela ainda ia nascer! E ele falou: “você está me atrapalhando e eu atrapalhando você, tira as tuas coisas daqui.” (Sujeito da pesquisa).

Os acontecimentos e sofrimento narrados pelas mulheres entrevistadas, antes e depois da morte do companheiro sublinham a forma como historicamente as mulheres negras vêm sendo tratadas. Em determinadas situações a afetividade, fortalecedora das relações de familiares, de amizade e parentesco, perde o sentido quando a morte violenta entra em questão. Desta forma o sentido de pertencimento cede lugar a luta pessoal pela sobrevivência em detrimento da solidariedade. O

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sentido dado ao crime pelos discursos da mídia, provoca um olhar carregado de preconceito à população pobre da região apontada como violenta.

[...] eu tinha bastante amigas quando eu tinha meu marido... aí quando ele faleceu, logo todo mundo se afastou... teve uma que eu até discuti, porque eu penso assim: só porque eu não tenho marido eu não tenho respeito? [...] elas pensavam assim [...] eu estava de olho no marido dela... entendeu? É tem tudo isso, entendeu? [...] as pessoas falam assim: mulher sem marido não tem respeito, só que eles... eu acho que eles deveriam pensar direito, porque o que aconteceu comigo poderia acontecer com ela também, pode acontecer com ela também, entendeu? [...] meu marido faleceu, eu tinha uma amizade, uma ia na casa da outra, aí logo que ele faleceu... (Sujeito da pesquisa).

O evento da morte por homicídio suscita diversas questões, particularmente o medo por parte da família da vítima e por parte da vizinhança – que como forma de justificar a distância que querem ter da família – recuperam concepções arcaicas, que segregam ainda mais a mulher, como a apresentada abaixo.

... é mulher sem marido, muitos acham que não tem respeito... [...] a pessoa não tem valor, ah não tem marido... ah que não sei o que... querem tirar um barato, só que eu não penso assim, eu penso de outro jeito, do mesmo jeito que a casada tem respeito a solteira também tem que ter entendeu? Então é assim, aí eu tinha amizade, muita amizade... aí logo que meu marido faleceu, minhas colegas de repente começaram a se afastar..., ah! não tem marido aí já fica com medo e com aquela cisma de traição, ou então que vai dar em cima, tem tudo isso, elas pensam assim que elas nunca vão passar pelo que eu passei, ou então que o marido delas vão ser eternos também, só que elas não deviam pensar assim, ao invés delas chegarem e dar um apoio ou uma palavra, não, ali elas já querem julgar você... Então eu penso assim elas não deveriam pensar assim... elas deveriam chegar dar uma palavra, conversar... não julgar a pessoa..., sem... saber de

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nada, sem ver também, que muitas vezes eu fui julgada sem saber de nada, sem ver... entendeu. Elas pensam assim, juntam aquelas rodinhas, e ali começam a julgar as pessoas, sem a pessoa dever, eu acho isso errado também...

Pensamos o medo também enquanto uma manifestação do instinto de autopreservação, e cabe aqui ponderar acerca desse aspecto que vem sendo recorrente pelos moradores desta metrópole que é São Paulo, especialmente pelas pessoas que residem nas periferias, e têm o cotidiano permeado por carências e violências. Salientamos que esses eventos têm sido mais recorrentes nas regiões mais empobrecidas pela falta de infra-estrutura especialmente nas favelas. Segundo Caldeira (2000), com o aumento do crime e do medo, os preconceitos já concebidos pela sociedade sobre os pobres e pretos, são relacionados à fala do crime e exacerba a separação e a distância entre os diversos segmentos sociais. Desta forma, os fantasmas que as pessoas alimentam, aprofundam a distância entre o próprio grupo familiar ou comunidade.

... para trabalhar, eu tinha que colocar os dois na creche; porque minha mãe... não dá para minha mãe olhar, porque minha mãe é oculta. A Débora falou: “nós estamos dando uma carta para você levar na creche que tem uma vaga“. Aí eu fui levar na creche, e, a mulher falou: “não é só você que tem problemas, todo mundo tem“. Na maior ignorância: “aqui está cheio e não é com este papel que vai resolver o seu problema! “ E eu vou brigar? Eu voltei lá e falei, mas não adiantou. (Sujeito da pesquisa).

O número de creches existentes na Vila Brasilândia não supre a demanda daquela população. A desigualdade está presente neste aspecto. Ao compararmos a

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oferta deste serviço nos bairros mais consolidados – dado ao processo de migração dos mais pobres para as periferias – notamos que há vagas ociosas em suas creches. Esta situação de carências aumenta a vulnerabilidade desta mulher, que precisa arrumar um trabalho para reorganizar sua vida. Contudo para conseguir trabalho, a mulher necessita de um local seguro para deixar o filho, mas a quantidade de creches na região deixa de fora 9.408 crianças de 0 a 3 anos55.

... Aí então, aí ainda bem que aqui é da minha mãe e do meu pai né? ainda bem, que eu não pagava aluguel né? Ajuda bastante, porque se não aonde eu ia esta agora. (Sujeito da pesquisa).

A carência de creche nesta região tem causado angustia e medo às mães que delas necessitam para deixar seus filhos. Mas, dado o número insuficiente de vagas, estas saem de casa deixando crianças pequenas sozinhas ou aos cuidados de outras crianças. E em se tratando das mulheres que são chefes de família a situação é mais complexa, pois estas não têm com quem dividir o orçamento doméstico. Portanto, nos momentos em que a mulher mais necessita de ajuda, o Estado deveria garantir, privilegiando-as em programas de amparo à família, pois depende dela a sobrevivência do grupo familiar. Assumir a responsabilidade solitária do cuidados com os filhos hoje em dia, é uma tarefa bastante difícil. A partilha torna o fardo mais leve.

É... e eu não pretendo... eu quero ter meus filhos ali comigo, porque mais tarde eu não quero perder meus filhos para o mundo... não quero mesmo, porque o mundo está aí, tanta coisa acontecendo... esse... ah... cada lugar acontece uma coisa, então eu não pretendo perder os

55 Fonte Jornal da Cantareira, novembro de 2003, com base no senso de 2000.

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meus filhos; como tem vez que... teve uma vez que teve tiroteio na Viela... nossa quando eu ouço por mim eu já fico doida, eu saio gritando os meus filhos, porque eu morro de medo de perder os meus filhos... acho que a coisa mais importante que eu tenho no mundo são os meus filhos, minha mãe e meus irmãos, mas primeiramente é minha mãe e meus filhos, entendeu; que a gente pensa mesmo, é porque cada um tem um modo de pensar, mas... ah eu morro de medo de perder os meus filhos, faço de tudo, é como eu falo: eu já perdi uma pessoa, então eu já conheço não é? Então a gente fica com aquilo na cabeça [...] é como eu falo, a gente cria nossos filhos de um jeito, nós pensamos assim... os nossos filhos vão ser pessoas ótimas, tem tudo isso mas mais tarde a gente não sabe do pensamento deles, porque eles já estão adultos, entendeu... a gente não sabe do dia de amanhã... a gente cria nossos filhos para ser bons... mas a gente não sabe... (Sujeito da pesquisa).

A preocupação com o futuro dos filhos está presente em todos os relatos, mas para aquelas que não conseguiram trabalho que de alguma forma possibilitassem reorganizar suas vidas, o sentimento revelado durante o relato era de muita angustia. Na mesma proporção algumas entrevistadas revelaram sentimentos de desrespeito e humilhação, os quais descortinam aspectos do desafeto humano. Sem pretender isentar o Estado de sua responsabilidade frente a esta questão, desejamos nos adentrar nas relações humanas e de solidariedade; pois não se trata apenas do cuidado com estas e com os filhos neste momento difícil, é a ausência de apoio quando a vida deste grupo familiar encontra-se em risco. Uma questão a ser refletida é que a pobreza num determinado momento tem potencial agregador e de partilha entre as pessoas, noutro distancia as pessoas. Percebemos que submetidas ao um cotidiano de ausências por um longo período, sem muitas perspectivas de um futuro, tem representado motivo de conflitos.

... Aqui não tem ninguém trabalhando! O meu menino que mora comigo, que vai fazer 24 anos, ele é doente, então ele não pode trabalhar. O médico disse que ele não pode trabalhar, que ele é

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deficiente, a Cristina está desempregada, a Tatiane também, então eu pego a cesta básica na Igreja de Itaberaba, na Igreja Católica e recebo outra cesta do “Alimento São Paulo”. [...] A mulher que morava ali em cima, eu continuei tomando conta da menina.. então ela me paga R$ 50,00 por mês para tomar conta da menina e paga mais R$ 20,00 para eu levar o menino na escola e buscar. A única que eu tenho.

Essa realidade demonstra que diferente de partilhar algumas necessidades eventuais, é partilhar problemas e dificuldades cotidianas, estas interferem e dificulta as relações, e quando se estendem por um longo período gera conflito e desconforto no seio da família. Entendemos também que para além da assistência às famílias por meio de cestas básicas, estas estão carente de trabalho para que possam recuperar o orgulho e dignidade que fica estampado nas feições das mulheres que possuem trabalho e renda.

... Aí eu parei de trabalhar. Parei de trabalhar, sai da onde eu trabalhava para poder ficar com ela, porque ela tinha quatro meses. Aí eu tive que parar de trabalhar, aí eu parei, depois de um tempo, ainda bem que foi no tempo que eu tinha colocado o pai do meu filho na justiça, e saiu o dinheiro do atrasado, eu falei: então dá para mim ficar em casa. Agora que eu arrumei este serviço depois de um ano que o Erison ... porque ele me ajudava aqui dentro né, porque já era um dinheiro a menos que eu ia pagar para alguém olhar né, ou se for para olhar um dia vou ter que pagar entendeu. Fora os gastos aqui né?

A questão do trabalho está sendo abordada de diversas perspectivas para dimensionar a importância deste para estas mulheres negras chefes de família. Elas revelam que o trabalho é o caminho adequado para se apropriarem das rédeas da sua vida, ou, seja tornar-se sujeito de sua história. Segundo Ianni (2003), as mudanças na forma de produzir, além de provocar o desemprego, ou seja, impossibilita-las de

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realizar suas vidas, altera a sua participação e relação social, porque elas ficam confinadas ao espaço da casa.(Ianni, 2003, p. ) O caminho percorrido por estas mulheres, exige perseverança para transpor os vário obstáculos. Mas a luta e resistência não são singulares a elas; suas mães também enfrentaram e transpuseram barreiras semelhantes para cuidar de suas proles. Apesar da ausência paterna não estar associada ao assassinato e sim ao abandono, não deixou de ser solitária e penosa.

... Porque o meu pai, quando ele largou da minha mãe, ele deixou agente sem cama. Deixou a minha mãe sem cama. Aí, eu vendo aquilo falei; mãe vai pra minha cama, que eu durmo no chão. E meu pai fez isso. Ele levou a cama embora e deixou minha mãe no chão, aí eu peguei e coloquei minha mãe na minha cama. Meu pai deixou eu e a Fabiana, ele não dava pensão, nem para mim nem para a Fabiana. Mas também já tinha a casa aqui, que ele não brigou nem nada nem discutiu. Deixou pra nós. Só que pensão e o que comer ele não deu pra nós, quem teve que dar foi minha mãe. (Sujeito da pesquisa).

O relato acima apresenta uma diferente perspectiva do medo, trata-se do medo de não conseguir sustentas a família. Este receio parece recorrente entre mulheres de diferentes gerações. Notamos que as histórias se repetem, tanto a mãe quanto a filha passaram por situações comuns. Entretanto, os contextos históricos são diferentes porque, quando a mãe foi abandonada, ainda era possível encontrar trabalho, logo, ela reorganizou sua vida. Hoje, segundo Ianni (2003) com utilização de avançadas tecnologias nos diversos campos e ramos de trabalho, uma grande parte da população não será inserida no mercado de trabalho. Portanto, suas vivências são semelhantes. É certo que mudam as dificuldades junto com as transformações globais, mas vão se repetindo indefinidamente na vida de algumas mulheres.

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Cabe relembrar que o Distrito da Vila Brasilândia está entre os distritos que abrigam um grande percentual de negros (as)56, a população negra no distrito é de 39,7%57 e pelo fato deste distrito58 estar entre os mais pobres, e, em alguns casos entre os mais violentos como o da Vila Brasilândia, não permite dizer que a violência é mais comum entre os negros. E necessário que estudemos o fenômeno da região como um fator que é recorrente nas diversas regiões (periferias), mas que pelo fato de a Vila Brasilândia assim como outros distritos estar carente de serviços, os danos ali são maiores. Se por um lado os serviços abandonam a região, por outro a violência e a presença das drogas especialmente entre os jovens, se intensifica e não respeita os limites da periferia, tão pouco se detém com a fronteira dos altos muros dos condomínios, classe social ou pela cor dos indivíduos, conforme nos relata a interlocutora.

... A única coisa que eu fico meio assim é com droga, porque esses ricos estão se envolvendo muito com droga, usando. O negocio é a periferia porque é o pobre que bebe, que fuma, que cheira, mas não é não. E a gente vê as pessoas se consumindo, e eu sou assim, sou paga para fazer a faxina, vou faço recebo e vou embora. Mas eu fico muito triste quando eu vejo a pessoa se consumindo na droga, mas a gente não pode fazer nada. (Sujeito da pesquisa).

Conforme narra a entrevistada, apesar da violência ser mais recorrente nas periferias de São Paulo, é um evento que faz vítimas também entre as classes privilegiadas economicamente; todavia é importante salientar que entre estes últimos, a violência nem sempre se torna “casos de policia”, segundo Saffioti (2004), a violência no seio das camadas mais abastadas é cercada de sigilo especialmente se for por

56 Ver mapa nº 2, p23, localização da população negra 57 Fonte: IBGE censo de 2000

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abuso incestuoso. Assim sendo, os casos são na maioria das vezes resolvidas por outros caminhos. Já entre a população empobrecida é quase sempre de domínio público.

58 Ver mapa nº 3, p 56, localização dos distritos mais pobres

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Carência, violência e medo

Em São Paulo, o crime organizado, o narcotráfico e o estabelecimento das suas redes, redimensionam o sentido de violência. Moradores da Vila Brasilândia, recordam que no passado, quando se falava em violência, referia-se a furtos, roubo, assaltos, brigas, mas a exacerbação desta e o seu entranhamento no tecido urbano, torna-a diferente daquela que só ocorria com os “outros”. A concepção da violência hoje está também relacionada ao aliciamento para o tráfico e para a drogadição. Se no passado, a maioria dos jovens apresentava postura de recusa diante da oferta de drogas conforme nos relata uma das entrevistadas, hoje, diante da vulnerabilidade destes, tal recusa não ocorre na mesma proporção. Sposito (1994), corrobora com estas prerrogativas quando argumenta que: enfim, não é possível desconhecer as alterações no padrão das relações sociais que ocorrem nas ruas, bairros e cidades, quando o pano de fundo é a agudização da crise social, o crescimento do crime e do tráfico de drogas ao lado da conivência e da corrupção policial. (Sposito, 1994, p.167). Essa vulnerabilidade, segundo uma interlocutora, não era tão latente em sua juventude, o que ajudava a não ceder as diversas ofertas ao consumo de drogas.

Quando eu estudava a noite, antes do prof. Carlos me atropelar, atropelou não, ele bateu e jogou nós. Não, ele foi desviar da turma para cá e pegou a outra lá. Ofereceram-me bolinha, naquele tempo era bola lembra? A menina falou: Você trabalha de dia e estuda a noite. Na época em que eu trabalhava na Drastosa! Aí ela falou assim: “Você tem que tomar bola”. Ela até me mostrou parecia um sagú, né? “Você toma a metade, você vai ver, fica acordada a noite inteira e vai dar para você estudar”. E falei que não queria, nunca ninguém tinha falado de droga para mim e eu não quis, não usei, fumar eu fumava. (Sujeito da pesquisa).

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Nesse contexto, recusar drogas era sinal de decência e integridade. Mas as transformações políticas e sociais imprimem am novas regras aos comportamentos. Hoje, diante da falta de perspectiva decorrente de diversas carências como de emprego e renda, da necessidade de pertencimento, grande parte da população jovem torna-se vulnerável, especialmente quando buscam sentidos para a vida fora do seu eu. Mas, junto com a rapidez das mudanças, as necessidades renovam-se, mudando também o sentido de pertencimento, assim como o de se relacionar entre e intragrupos. Segundo Caldeira (2003): esse conjunto de mudanças resulta em desagregação das relações em todas as esferas, que gera uma individualidade em proporções incomuns de tal maneira que as pessoas ampliam a sua necessidade de autoproteção, redundando no enclausuramento, na construção dos enclaves fortificados e fechamento de ruas como medida de segurança. Contudo, entre os mais pobres, particularmente nas periferias e favelas, a construção desse novo padrão de moradia resulta em danos maiores, porque nos momentos de dificuldade a solidariedade dos vizinhos e amigos auxilia na sua transposição. Porém esse modelo de moradia, impõe limites também às relações. Esse evento que representava elevação no status social, chega à Vila Brasilândia, assim como em outras periferias, trazendo grades nas janelas, muros altos para proteger seu patrimônio e os habitantes das casas, ao mesmo tempo em que distancia os indivíduos. Na medida em que estas mudanças ocorrem, na periferia de São Paulo um fenômeno se realiza aumentando a violência. Nos referimos ao crime organizado e narcotráfico, que vêm sendo denominados de “quarto setor” da economia, pois tem gerado um grande número de “empregos”, e ao mesmo tempo, este processo desenvolve um “Estado Paralelo” que proporciona serviços de segurança e algum investimento em projetos sociais em determinadas comunidades no seu entorno. Esta relação, crime organizado e narcotráfico x geração de “empregos”, possuem uma “ética” muito perversa, pois ao mesmo tempo em que é proporcionado algum bem estar para as famílias através das diversas ações, por outro lado ao aliciar os jovens para os trabalhos da sua rede determinam o seu tempo de trabalho assim como o de vida, ambos muito curtos.

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É porque já tinha feito a “boca” ali perto da casa do Cicrano, era ali, ele já tinha feito a “boca”. De mudar de lá? Nós já tínhamos mudado, lá para o Penteado, e ele me largou lá; e minha mãe, não teve que me trazer de volta? [...] No portão de casa, aí eu tive que pular ele por cima do meu marido, caído assim na poça de sangue assim, para ir na casa da minha mãe, que minha mãe morava mais para frente... (Sujeito da pesquisa).

Apesar da rápida ascensão social que às vezes é proporcionada, ela não representa um deslocamento espacial para além das fronteiras da periferia e da exclusão, pois o seu fim último é a morte ou a prisão. Não apenas o relato, mas, as atuais condições de vida e moradia da interlocutora desta colocação confirmam esse argumento. Percebemos que tanto a polícia, quanto o crime organizado faz dos jovens especialmente os negros seu alvo preferencial. A incidência da violência entre os segmentos empobrecido e negro, não é um evento recente, apesar de estar sendo vizibilizada e questionada nas últimas duas décadas. Portanto, é no sentido de situar o período da mudança não apenas da percepção mas também no sentido da violência para a população da periferia, é que vamos abrir um parêntese. Segundo Martins (2000), ao fim do regime militar foi disseminada a idéia de que a violência toma conta do país. Assim, a ampla divulgação do fenômeno, acarreta na população uma síndrome de viver constantes ameaças como a de ter a residência invadida, a família agredida, de ser assaltado e por aí vai. O autor relata que havia um consenso entre os veículos de comunicação na difusão de uma violência que rondava os indivíduos. A população por sua vez, com medo dessa violência generalizada, arma-se não apenas de muros e grades buscando proteção. É adequado ressaltar que essa proteção tem um preço que é pago especialmente com degradação das relações. O fato de a sociedade brasileira estar experimentando uma violência em proporções alarmantes, não pode ser concebido sem referendar que a mesma foi gestada em base

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igualmente violentas, e que em seu processo histórico tem desconsiderado e buscado anular seguimentos étnicos como o negro e o indígena. Portanto, quando nos referimos ao aumento da violência nas periferias o situamos nas décadas de 70 e 80, é porque neste período realizam-se mudanças significativas na política nacional. Esta localização é necessária no sentido de pontuarmos elementos que contribuíram para as transformações e a suas conseqüências entre os seguimentos empobrecidos, porque segundo Feiguim e Lima (1995), a violência sempre esteve presente na dinâmica da sociedade brasileira como em tantas outras. Da mesma forma que a violência não é uma particularidade do Distrito de Vila Brasilândia - região onde esta pesquisa se desenvolve; ou seja, não é singular aos segmentos pobres e negros, e não particulariza São Paulo. A violência é um fenômeno abrangente que atinge homens e mulheres, adultos e crianças, pobres e ricos e negros e brancos nos diversos Estados brasileiros. Os autores argumentam ainda que o aumento do medo não decorre apenas do aumento da criminalidade, mas também de fatores como a incerteza no futuro, crescimento desordenado das cidades, má distribuição dos equipamentos urbanos e dos recursos de infra-estrutura. (Feiguim e Lima, 1995) Neste sentido, sugerem que o crime apenas potencializa os demais fenômenos próprios da metrópole. A população moradora na Vila Brasilândia tem presenciado ao longo de sua existência, situações de violência e medo. Moradoras da região, relatam com saudades um cotidiano compartilhado que hoje se perdeu. Localizam no tempo e espaço os diversos elementos agregadores das pessoas no bairro. Relembram dos problemas de criminalidade e violência no passado, as quais, no presente recebem uma coloração especial. O significado que esse passado assume, segundo Pollak (1989), são determinados em função do tempo presente. Desta forma, os fatos violentos ocorridos no passado, são lembrados pelos moradores como uma situação localizada, que diziam respeito ao outro, e portanto distante, possível de se conviver. No entanto, as mulheres desta pesquisa relembram de violências físicas permeadas de conteúdo simbólico aplicadas às meninas negras e pobres que segundo a entrevistada fazia parte de uma estratégia de discriminação racial.

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Esse pensamento é compartilhado também por moradores da Vila Brasilândia que discorrem sobre uma violência localizada, porque não estava tão pulverizada e permeada no tecido social quanto hoje. Argumentam também sobre o agravamento da violência na região, está referida a presença do narcotráfico e associada ao crime organizado. Porém não podemos atribuir apenas a estes eventos a causa do agravamento da violência, para além desse fato, existe uma profunda falta de perspectiva a qual decorre de um conjunto de fatores objetivos e subjetivos, pensamos isso porque a violência também está presente entre indivíduos brancos com elevado poder econômico. É importante que a pensemos, associada ao fato de que hoje é mais discutida, diferente do que ocorria no passado. Moradores contam que a criminalidade estava mais localizada, ou seja, sabia-se quem estava envolvido com as drogas ou com roubos. Contudo as pessoas que praticavam roubos, os bandidos como eram chamados, não tinham por hábito roubar ou amedrontar a própria vizinhança. Havia uma ética e hierarquia, que faziam com que respeitassem e às vezes protegessem a região onde moravam, assim como buscavam impedir que outros o fizessem. Portanto, a imagem que alguns moradores fazem dos antigos ladrões – na maioria das vezes – não estão relacionadas às pessoas “do mal”, mas sim à figura do “malandro”, que sempre muito elegantes e galantes despertava admiração das mulheres e inveja dos homens. Neste aspecto cabe relembrar que Pollak (1989) nos fala sobre a ressignificação do passado, que é em função do tempo presente, ou seja, a violência extremada que se vive hoje auxilia nesta visão romântica sobre tempos idos. O Sr. José Luiz, antigo morador da Vila Brasilândia, nos fala sobre a sua percepção olhando para o passado, em função do tempo presente. A violência ocorria, no entanto, em proporções menores. Ele relata que as drogas utilizadas, eram “mais leves” como a maconha ou as chamadas “bolas”. Quando o CRACK é inserido neste contexto, o cenário começa a mudar. A sociedade, de forma a turvar a visão sobre este fenômeno, procura atribuir à pobreza, à estrutura familiar e à mídia a maior parcela de responsabilidade pelo agravamento da violência; e em determinadas situações apontam a “condescendência” da justiça e polícia para com possíveis marginais, acreditando-se

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que policiais mais agressivos, leis e penas mais severas vão dar conta da problemática. Desconsidera os diversos fatores que fazem com que a agressividade inerente aos indivíduos se torne agressão, como a presença forte e ação indiscriminada da policia nas regiões habitadas por uma maioria negra. Da mesma forma que percebemos a presença reduzida do Estado na oferta e manutenção dos equipamentos e serviços destinados a população. Se anteriormente a presença do Estado era mais percebida pelas mãos fortes dos agentes da lei, que segundo relatos, na escuridão da noite fazia com que negros inocentes jovens ou adultos confessassem delitos não praticados, hoje, diante da sociedade eles são presos, julgados, condenados e executados a luz do dia, sem direito a defesa59. Toda essa violência aliada a perda do seu companheiro faz com que os sentimentos de perda e medo acompanhem a mulher negra na sua sofrida trajetória pois, elas deixam o trabalho, os filhos deixam a escola, a família muda de bairro, de cidade de Estado, decorrente do medo.

Eu não quero ficar na casa da minha mãe, eu não suporto este lugar Mabel. Eu não gosto deste lugar. Vim para cá porque não tinha outro lugar para ir. Não suporto aqui, porque tenho lembranças muito ruins. E o mesmo quintal, eu não suporto as pessoas. (Sujeito da pesquisa).

O medo que está implícito na fala dessa mulher decorre de uma seqüência de violências vividas desde a infância sobre as quais alega que a mãe não fez nada

59 “Dentista negro é morto por policiais em São Paulo” Manchete do Jornal o Estado de São Paulo. O dentista Flávio Ferreira Santana foi morto por policiais militares por engano, em São Paulo. O crime aconteceu no ultimo dia 3 de fevereiro, depois que Antonio Alves dos Anjos vítima de um assalto, apontou um rapaz que é negro a três policiais como sendo o provável bandido. Os policiais abordaram o dentista que estava desarmado, e o executaram com dois tiros no peito. Depois forjaram uma prova do crime, colocando uma pistola junto a seu corpo. Mas Antonio Alves do Anjos, não reconheceu Flávio Santana como assaltante, e o fato teria sido omitido do boletim de ocorrência, onde consta que o dentista teria resistido a prisão e atirado contra os policias...” (Estado de São Paulo, 07, fevereiro, 2004) Estes acontecimentos vêm sendo denunciados, pelo conjunto do movimento negro, por estudiosos da questão e autoridades como o sociólogo Benedito Domingos Mariano, ouvidor da Polícia Militar de São Paulo que apontou quantitativamente a execução sumária dos jovens negros em São Paulo.

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para protegê-la. O grau de exposição e o medo que a entrevistada relata ter experimentado passa pelo fato de não ter tido com quem contar. Portanto, a presença da mãe ao invés de apazigua a angustia e a dor, provoca-lhe raiva. O trauma provoca sentimentos como: medo, angustia, raiva, porque essa separação abrupta, ou seja a morte violenta, obriga as mulheres a um recomeço para o qual não estão preparadas e, este reinicio, às vezes ocorre em condições precárias, até miseráveis. Portanto, o relato que se segue também revela em seu conteúdo o pensamento sobre uma violência que de tão cotidiana é apresentada como algo comum. Não deve ser interpretado no sentido da banalização da vida, mas sim no da violência.

Aí, sempre aparece uns... umas pessoas falecidas por aqui, sempre tem um morto... É tudo jovem, entendeu...tudo porque, acho que tudo isso é por causa de droga, porque realmente as pessoas mais novas morrem todas por causa de droga, não é; todos os adolescentes... morrem muito por causa de droga... então ah favela... favela a gente mora porque é o jeito, que acho que muita gente... pensasse mesmo não morava e outra, é um lugar que a gente já tem que pensar assim: os nossos filhos mais tarde, porque é como o ditado, nossos filhos mais tarde, aí tem... vai crescendo, vai crescendo, vai vendo toda essa violência, a gente não sabe o dia de amanhã o que nosso filho vai ser dentro dessa favela, eu penso assim... (Sujeito da pesquisa).

Pensamos que esse conjunto de relatos e fatores nos auxilia na percepção do mito da não-violência, o qual, buscando encobrir os conflitos, opera nas contradições o que torna justificável a realidade por ele próprio negada. Da mesma forma ocorre com a questão racial, ao mesmo tempo em que se nega à existência do racismo, mas não conseguem explicar a presença maciça de negros nas periferias onde estão registrados os piores resultados de IDH. Entretanto, no que tange especificamente às mulheres, historicamente, a violência doméstica e sexual vem somando-se a outras formas de violação dos

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direitos. E, a diferenciação e a discriminação de gênero nos ajudam a perceber outras formas de discriminação. Diferentes papéis e características são atribuídos às pessoas, não apenas com base no gênero, mas também na raça/etnia, na classe social, na idade, na opção sexual etc. As características atribuídas às pessoas pela sociedade, fazem com que as pessoas também sejam colocadas em locais e com papéis determinados, que podem ser tanto da possibilidade de acordo como de conflitos. Diferença entre as mulheres de grupos raciais ou de classe diferentes. Portanto, o lugar ocupado por determinadas mulheres nos conflitos, por vezes dificulta a percepção da dimensão e impacto destes nas suas vidas. Segundo Chauí (2002), o medo e o ódio andam lado a lado, o medo é companheiro de secretos ódios e, crente na força do número, a plebe poderia perder o temor, derrubando que ousa governá-la. O medo em determinadas situações é um grande aliado, pois ele é o termômetro que vai indicar o limite do perigo, e quando a mulher deve se proteger, fugir do risco da agressão ou morte. Por outro lado, este medo provoca comportamento oposto, ou seja, a mulher por medo se submete às agressões que na maioria das vezes é perpetrada por homens por quem nutre afeto ou convive na mesma residência. Buscamos revelar a maneira como as violências de âmbito público e privado se articulam, objetivando visibilizar a violência, considerando que, apesar de ser amplamente propalada enquanto fenômeno que está presente nas diversos estratos sociais, nas relações sociais e raciais, nos espaços públicos e privados focando o impacto sobre os segmentos mais empobrecidos. Pelo sentido do medo sugerido por Chauí (2002), que não localizamos algumas mulheres, sobre a quais obtivemos algumas informações fornecidas pelos atuais moradores ou parentes, quando afirmam que estas mulheres mudaram de endereço logo após a morte de seus companheiros. O relato abaixo representa uma das questão das muitas mudanças de endereço de mulheres negras que perderam seus companheiros; revelam situações de medo vivida por ela e seus filhos que abandonaram tudo para preservarem as suas vidas.

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...É..., a gente não comenta nada não, não comenta nada. Não, nós ficamos na casa da minha mãe dois meses, na casa da minha mãe, porque nós ficamos com medo dos caras irem lá; e... já tinham mandado um recado para mim... que iam lá e iam levar minha televisão... se eu tinha vídeo também, iam levar o vídeo e televisão embora... então, minha mãe pegou tirou de lá, deixou na casa dela e, nós ficamos na casa dela uns tempos, deixamos lá correndo. Depois que nós voltamos para casa, então a gente não comentava a respeito sabe; nada, não conversava não, é assim, foi muito difícil isso. Olha, vou falar! Agora é passado! O mais difícil já passou, é até bomba falaram que iam jogar uma bomba na casa, tinha medo não é?

Para esta entrevistada o amparo da mãe foi fundamental, porque o tempo em que ela ficou em sua casa, parece ter sido importante para que os autores do homicídio de seu marido não a vissem mais como uma possível ameaça, e desistissem de eliminar toda a família. Porém, por maior que seja a solidariedade, dependendo da situação financeira, a família não pode abrigar indefinidamente a viúva e seus filhos. Neste sentido, as necessidades de diversas ordens os obrigam a encarar o medo da morte e voltar para casa. O recomeço é triste, doloroso e pode ser solitário se não for possível contar com os parentes e vizinhos. Para esta família voltar para casa, significa correr alguns riscos, portanto decidem não falar sobre o assunto da morte. Segundo Pollak, o discurso do silêncio é invocado sempre que se tem medo. No caso destas famílias, o medo desperta o sentido de preservação da vida fazendo que se crie um silêncio em torno das circunstâncias que envolveram a morte. Essa atitude dificulta o processo de ressignificação do ocorrido que é estimulado pela lembrança, que realiza a organização dos fatos a serem relatados. Tais fatos serão sentidos em maior ou menor proporção, a depender das condições objetivas e subjetivas da interlocutora no momento do relato. É Pollak que afirma que: distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis as memórias marginalizadas é de saída perceber a que ponto o presente colore o passado. (Pollak, 1989, p.8) Portanto, neste momento falar do passado e das situações de medo, é possível porque presente permite significar as sensações que algumas mulheres pensam pertencer a situações vividas no passado.

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Esse estado de coisas tem preocupado a sociedade, e vem ocupando o centro de estudos e debates. No que tange a sociedade brasileira, a violência, principalmente a veiculada pela mídia sugere uma reflexão enviesada, dificultando uma analise crítica, no sentido de identificar seus agentes e sujeitos alvos; ou seja, quem as pratica e quem por ela é atingido. Ambos se confundem, e dependendo de quem comete a ação, a sensação de desamparo e terror toma conta de toda comunidade. Situações como a relatada abaixo acontece com certa freqüência, e tem provocado pânico entre as famílias de baixa renda.

... já fui várias vezes, e fui maltratada por policial, foi no portão da casa da minha mãe, meu sobrinho estava do lado de fora do portão, [...] parou ele e... mandou eles colocarem as mãos na cabeça, eles puseram, e um dos meus sobrinhos estava com a menininha e com o meu sobrinho no braço, aí eu vim, parei, pus a mão assim no portão e fiquei... olhando, aí um dos policiais me chutou, chutou meu pé e falou: o que é que a senhora está olhando aí! Eu falei para ele: bom, estou olhando meu sobrinho! Porque a senhora é advogada, a senhora vai resolver alguma coisa aqui? Eu falei, não vou resolver nada, mas é meu sobrinho. Porque ele me chutou? (Sujeito da pesquisa).

A arbitrariedade policial é denunciada pelo conjunto da população moradora do Distrito da Vila Brasilândia como demonstração de força e poder, para oprimir e calar a pessoas diante da violência praticada por quem deveria protegê-las. Estes fatos demonstram que, quanto mais pobres forem a mulher e sua família, maior é o medo, pois entre as entrevistadas, apenas uma não mudou de endereço quando da morte do companheiro.

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Mapa nº4

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O silêncio sobre a violência

Conforme desenha o mapa acima, os piores IDH60 incidem freqüentemente sobre as mulheres e negros localizados na periferia. E, é exatamente entre estes segmentos e região que a violência e o medo são mais recorrentes. Neste sentido, quando Marilena Chauí elenca os segmentos portadores do mal por excelência, como sendo também as mulheres e os negros, e conseqüentemente como sujeitos prioritários das mais variadas formas de violência, o faz também sob o prisma da vulnerabilidade e arbitrariedade policial sobre estes. Sob o argumento de se fazer cumprir a Lei e preservar a ordem, ações violentas são amplamente praticadas, como vindas do bem e para o bem, quando são praticadas pelos agentes da ordem. Todavia tais agentes pela violência de suas ações, contrariando o objetivo de proteger, provocam medo na população.

... Olha, para falar a verdade, esses policiais são mais bandidos do que os bandidos, sabe? Porque se solta dinheiro para eles, eles deixam continuar vendendo as drogas deles e fazendo o que têm que fazer. Então quer dizer que são mais bandidos do que..., como o fulano, a semana passada; o fulano, é o mais perigoso que tem lá, né? A maioria toda tem medo dele. E, então ele foi preso, [...] ele e o ciclano, deram 15 mil reais para a polícia e eles foram soltos...

A narrativa desta mulher é corroborada pela prerrogativa de Chauí (2002), pois, assim como a entrevistada, muitas famílias sentem-se acuadas e impedidas de falar a verdade, de denunciar, pois, não sabe em quem depositar confiança. Assim, calar-se diante dos fatos e violências para além de banalização, passa pelo sentimento de que nada vai mudar este estado de coisas.

60 IDH- Índice de Desenvolvimento Humano – SEADE/2003

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... Agora no dia do Fórum eu fui, é muito ruim, você vai tem uma Juíza aqui, o advogado dele com ele, e o promotor na sua frente e um monte de gente atrás assim. E. neste dia, ele estava bem assim, ele ficava olhando para mim. E tive que desmentir tudo, disse que estava escuro e que eu não pude ver. Mas eu quis falar com ele na minha frente mesmo. E, só que ele ficou preso por outras coisas. Por seqüestro relâmpago, estas coisas. E que mais? Quando eu estava trabalhando no Extra, um rapaz que mexe com assalto de carro foi lá no Extra, me falar que estava tudo bem que eu tinha agido certo, mas que o advogado dele não veio conversar comigo, então eu não sabia direito o que era para falar. E ai eu inventei assim na hora, mais ou menos, porque não dava para complicar ele. (Sujeito da pesquisa).

Nessa narrativa não só está presente o medo de expor a verdade pela ausência de proteção da essa família, que no passado foi ameaçada por denunciar o autor do mesmo crime, é preciso considerar também o fato de que as não respostas do Estado as demandas da população gera um sentimento de abandono e descrédito, portanto, nada que ela diga agora vai mudar a sua situação atual, tão pouco muda o passado. Portanto, a necessidade de se proteger, bem como a sentimento de superação do trauma levam esta mulher a negar o depoimento anterior. A situação vivida e relatada pelas interlocutoras confirmando a presença do Estado, através do braço forte da lei, atuando de maneira arbitrária, são percebidas como sendo estes alguns dos mecanismos de manutenção da ordem societária, os quais deveriam garantir a sobrevivência do processo de eliminação do mal. Porém eles se ressignificam à medida que a sociedade avança com a contribuição da ciência e tecnologia. Dessa forma, o medo nesta comunidade revela-se como uma doença social desenvolvido em função das violências sofridas. Neste sentido, é o conjunto de situações vivenciadas que vão dizer de que as pessoas terão medo.

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...Eu estava lá no Posto insistindo para ver se conseguia passar no médico, mas a Dra. Tereza não quer atender-me, porque ela já me encaminhou lá para o Largo da Matriz, lá embaixo. Então, ela diz que agora o meu problema é com a médica, como eu falei para ela: ah eu perdi o encaminhamento, os exames que eu tenho que fazer, de sangue, de urina tudo. Ela falou: “ah eu vou mandar para outro, e aí eu vou fazer outro encaminhamento para lá”, e eu estou esperando, para não voltar lá de novo e eu vou enfrentar a médica não é, apesar de que ela me xinga, mas... Então, aí eu vou enfrentar ela de novo não é? com medo, mas vou. Tem hora, que à noite parece que eu vou morrer, eu falo: meu Deus, meu filho, não me deixa morrer ainda não, deixa estarem todos casados, depois que estiverem todos... não é? Eu fico pensando, mas se não tem tratamento, né? Não ... É verdade, se não tiver fé em Deus, não é? (Sujeito da pesquisa).

Esta narrativa, revela o medo que esta mulher tem de morrer e deixar seus filhos e filhas. A manifestação deste temor decorre de um conjunto de perdas e portanto pode ser entendido como mecanismo de auto preservação. O fato desta mulher ter perdido diversos filhos e uma irmã por ausência de cuidados médicos, gera este temor pela possibilidade do mesmo ocorrer com ela. Contudo, este medo imobiliza e impede que ela insista para obter atendimento médico e exames através de Unidades Básicas de Saúde. O medo é abordado também nessa perspectiva pelo fato da população, recear questionar os serviços prestados porque as vezes são percebidos como uma benesse. Dessa forma recurso são sub-utilizados, porque a comunidade no entorno, tem medo de exigir os cuidados médicos necessários para sua saúde.

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Uma das maiores questões que se coloca diante do retrato da violência, é a quem os populares podem recorrer. Em outros tempos seriamos unânimes em apontar a polícia como órgão protetor dos oprimidos e desvalidos. Todavia, as coisas mudaram, e a população não tem mais certeza de serem os policiais uma representação do bem contra o mal. Da mesma forma a justiça também é colocada em questão porque não tem se empenhado para reverter o processo de depreciação das suas representações, resultando no medo de se apoiar na lei, conforme afirma a interlocutora. Compreendemos que pelo fato de algumas dessas mulheres terem presenciado cenas de crimes, são intimadas a prestar depoimento, ato este que eleva o grau de vulnerabilidade que lhes é comum dado pelas condições de vida e moradia. No entanto, a situação pode evoluir para de risco de vida, a depender dos fatos a serem identificados/confirmados. Neste sentido, Interpretar sentimentos e fatos relatados por estas mulheres é importante considerar que a memória atribui ao passado novos contornos que são determinados pela situação presente. As narrativas de histórias refletiram a ressignificação de situações e conflitos vividos Este enfoque é importante no sentido de denunciar que existe um segmento, o feminino, que tem vivido todo tipo de violência, a do racismo, a doméstica, (anterior à morte do companheiro), a da morte do companheiro, a de assumir a chefia da família e o cuidado com os filhos, (após a morte do companheiro). As ambigüidades aqui apresentadas dizem respeito às ações violentas e criminosas praticadas sob as mais sutis formas de paternalismo branco, que Chauí diz encobrir a discriminação étnica, ou como o machismo, que ressalta as qualidades femininas com aspectos que reforçam um estereótipo de mulher subserviente e doméstica, e ainda a importância da sagrada família que esconde o abuso sexual de meninas e a violência contra as mulheres. No sentido da estética da violência sutil, Milton Santos afirma que as cidadanias mutiladas estão entre as mais perversas formas de violência, pois estas vão ferindo devagar sem deixar hematomas: o indivíduo é ferido na alma, na dignidade, no respeito, na sua condição de ser humano, pois no Brasil, segundo Santos (1996/7), a cidadania é mutilada porque os pobres e os pretos não possuem

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direitos e as classes médias gozam de privilégio. Santos (1996/7), afirma que: os direitos são universais e todos deveriam ter o mesmo, e portanto não existem direitos. Para escamotear o debate sobre a violência, são empregadas diferentes denominações, como a questão das chacinas que ao não serem consideradas e tratadas como assassinato/crime desloca-se o campo dos conflitos e a ação se torna legítima ainda que os jovens mortos sejam inocentes. Chauí (2002), apresenta um outro aspecto que reforça o pensamento de Santos, e também contribui para o entendimento de tais ações. De acordo com o pensamento social contemporâneo, o diabo está neles, eles são os inimigos porque são negros, e esta condição pressupõe serem subversivos. Por outro lado, os policiais, enquanto “cavaleiros cristãos”, ou seja, os representantes do bem, buscam o restabelecimento da ordem através do combate ao mal. (CHAUÌ, 2002). É importante a abordagem realizada por Zanotelli (2003), onde ele chama a atenção para não “criminalizar” por meio de visões enviesadas nas quais a sociedade se funda para estigmatizar um espaço, e os próprios moradores passam a ver o seu lugar de vida como um inferno. Argumentamos sobre este fato porque a população do distrito da Vila Brasilândia tem sido descriminada na procura por emprego, por residir em região com alta incidência de violência. Outro aspecto que potencializa esta situação refere-se ao fato dela concentrar um contingente de 39% de negros, sendo que em alguns locais esse percentual chega a atingir 60%, e, as mortes prematuras focalizarem os jovens entre 15 a 25 anos majoritariamente negros. O conjunto desses dados tem reforçado estigmas sobre esse segmento que é alvo de violência e foco da mídia que propõem uma visão criminalizada dos habitantes e do lugar.

... Ah as coisas... como o ditado... morar na favela a gente mora porque é o jeito, porque se... tem muita gente que acostuma, mas é como eu falo... se eu pudesse, eu não morava, porque aqui é... ai... é um lugar assim meio apagado... tem... de tudo, é como eu falo... tudo de ruim cai dentro da favela... então é assim... ah é... é meninos que usam droga... ah não sei quem mata não sei quem no meio da rua, entendeu? Ah então, é um tipo assim...” (Sujeito da pesquisa).

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Ancora-se também nestas evidências o desejo de diversos moradores – assim como de algumas entrevistadas – de deixar a região. Passam a acreditar que a violência exacerbada é inerente aos habitantes da Vila Brasilândia. Nesta perspectiva, Marilena Chauí (2002), nos explica quais são os segmentos portadores do mal por excelência, assim como revela os sujeitos/alvos prioritários das mais variadas formas de violência como sendo entre outros as mulheres e os negros.

... Com o dinheiro desta pensão eu dei entrada neste apartamento no Tiro ao Pombo. [...] esse apartamento é segurança para meus filhos e para sair do conflito com a minha família. Outro motivo é também que o Gustavo gostava de ficar lá embaixo, ele tinha alguns amigos, e lá já tinha as bocas de tráfico. [...] comprei este apartamento há dois anos, e, da casa que eu morei, só trouxe a cama, os móveis da cozinha o resto comprei tudo novo. (sujeito da pesquisa).

Assim como esta interlocutora buscou num condomínio fechado a possibilidade de proteger a si mesma e aos filhos da violência, e com isso se encerra entre muros, parcela significativa da população também gostaria de alcançar a mesma alternativa, mas para muitos é um desejo difícil de se realizar. Este desejo e o medo, segundo Caldeira (2000): vêm mudando a paisagem urbana em São Paulo, configurando uma nova forma de viver e se relacionar. Ianni (2003) argumenta que: a violência hoje não pode ser entendida distante das transformações e mudanças estruturais que incidem sobre a forma dos indivíduos se relacionarem e pensarem. Temos que a forma de pensar de uma sociedade determina a maneira dela se comportar, e as contradições e ambigüidades – características da mesma neste inicio de século – provocam conflitos que são renovados à medida que as anteriores são superadas. Portanto, é sobre o curso e o impacto deste conjunto de fenômenos que desenvolvemos este estudo, cujo foco

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dirigiu-se para as desigualdades históricas que assolam as mulheres negras, e subtraem destas a possibilidade de uma vida mais humana e completa. Este estudo revelou que estas vivem num sistema de medos dentre os quais não conseguem identificar qual é o maior; de policiais arbitrários, da ausência ou lentidão da justiça, das organizações criminosas, do marido violento, dos filhos enveredarem pelos caminhos da criminalidade, da morte prematura dos entes queridos, de não ter esperança ou de simplesmente esperar. O medo e a esperança – faces de uma mesma moeda – são vivenciados por mulheres negras. Refletir sobre a dinâmica das relações nesta sociedade no sentido de decodificar símbolos que ora se contrapõem – ou se justapõe – é importante na medida em que contribuem para apresentação das contradições existentes, captando momentos ou situações onde estas se manifestam, pois uma só existe na relação com a outra. Portanto, abordar estas ambigüidades representa um desafio, para a apreensão do sentido da violência para as mulheres negras assim como o impacto na vida destas. Queremos então pausar esta pesquisa que se revelou enquanto instrumento para mapear o caminho que devemos nos debruçar para ampliar não apenas o debate mas vizibilizar a violência presente no cotidiano de mulheres negra.

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São Paulo, ...... , ...... de 2004

TERMO DE CONSENTIMENTO

Eu______. Estado civil ______Idade:______Tem filhos: ______Quantos______End.:______nº______Bairro:______Cidade______Cep.:______Telefone:______E-mail:______

Autorizo a Maria Isabel de Assis fazer o uso das informações por mim dadas em entrevista, na elaboração de sua Dissertação de Mestrado, assim como, na publicação de artigos, elaboração de relatórios e outros.

Após a apresentação da pesquisa e o sorteio da pessoa do domicílio a ser entrevistada, solicitar que o(a) entrevistado(a) leia e registre com “sim” ou não” o termo de “Consentimento Informado”. Caso o(a) entrevistado(a) não souber ler, o(a) entrevistador(a) deverá ler o termo de consentimento, pausadamente e assinalar a resposta do(a) entrevistado(a):

Todas as informações recolhidas neste questionário são confidenciais e garantimos o anonimato de todas as suas respostas durante toda pesquisa. Por favor, assinale abaixo se concorda em participar desta pesquisa e responder ao nosso questionário. SIM, concordo em participar da pesquisa [ ] NÃO concordo em participar da pesquisa [ ]”

______Assinatura

143 TABELA 45

ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO 2000 NA CIDADE DE SÃO PAULO

IEX IEX EDUC IEX HOMIC. DISTRITO LONGEVIDADE CHEFE GERAL IEX APVP SOMA IEX DH 2000 1 JARDIM ANGELA -0,92 -0,60 -1,00 -0,65 -3,17 -1,00 2 PARELHEIROS -0,86 -0,64 -0,78 -0,71 -3,00 -0,95 3 GRAJAU -0,91 -0,54 -0,82 -0,65 -2,91 -0,92 4 IGUATEMI -0,88 -0,61 -0,86 -0,50 -2,84 -0,90 5 JARDIM SAO LUIS -0,62 -0,32 -0,89 -0,67 -2,50 -0,79 6 LAJEADO -0,82 -0,56 -0,54 -0,57 -2,49 -0,78 7 GUAIANASES -0,63 -0,37 -0,61 -0,86 -2,47 -0,78 8 CIDADE TIRADENTES -1,00 -0,10 -0,76 -0,51 -2,37 -0,74 9 -0,58 -0,46 -0,65 -0,66 -2,35 -0,74 10 CAPAO REDONDO -0,56 -0,30 -0,79 -0,64 -2,29 -0,72 11 BRASILANDIA -0,42 -0,40 -0,79 -0,68 -2,29 -0,72 12 PEDREIRA -0,84 -0,42 -0,70 -0,34 -2,29 -0,72 13 -0,75 -0,52 -0,51 -0,49 -2,29 -0,72 14 CIDADE ADEMAR -0,44 -0,26 -0,91 -0,67 -2,28 -0,72 15 SAO RAFAEL -0,43 -0,35 -0,82 -0,52 -2,12 -0,66 16 VILA CURUCA -0,61 -0,40 -0,49 -0,52 -2,02 -0,63 17 CAMPO LIMPO -0,43 -0,22 -0,80 -0,54 -1,99 -0,62 18 -0,48 -0,32 -0,61 -0,56 -1,98 -0,62 19 PERUS -0,42 -0,42 -0,44 -0,64 -1,93 -0,60 20 SAPOPEMBA -0,46 -0,31 -0,66 -0,49 -1,92 -0,60 21 -0,48 -0,18 -0,68 -0,57 -1,91 -0,60 22 VILA JACUI -0,53 -0,27 -0,55 -0,54 -1,90 -0,59 23 -0,42 -1,00 -0,42 0,00 -1,84 -0,57 24 CACHOEIRINHA -0,17 -0,27 -0,66 -0,64 -1,73 -0,54 25 -0,54 -0,29 -0,41 -0,48 -1,71 -0,53 26 ITAQUERA -0,33 -0,17 -0,54 -0,64 -1,68 -0,52 27 JARAGUA -0,44 -0,22 -0,40 -0,59 -1,65 -0,51 28 CIDADE LIDER -0,47 -0,18 -0,40 -0,57 -1,63 -0,51 29 SÃO MIGUEL -0,07 -0,26 -0,53 -0,63 -1,50 -0,47 30 SÃO MATEUS -0,35 -0,16 -0,52 -0,45 -1,48 -0,46 31 SE 0,18 0,29 -0,92 -1,00 -1,46 -0,45 32 JOSE BONIFACIO -0,43 0,00 -0,51 -0,40 -1,34 -0,42 33 ANHANGUERA -0,59 -0,35 -0,28 -0,06 -1,29 -0,40 34 ERMELINO MATARAZZO -0,22 -0,17 -0,40 -0,49 -1,27 -0,39 35 RAPOSO TAVARES -0,34 -0,17 -0,42 -0,30 -1,23 -0,38 36 BRAS 0,25 0,15 -0,80 -0,83 -1,23 -0,38 37 RIO PEQUENO -0,07 -0,08 -0,63 -0,42 -1,20 -0,37 38 JACANA 0,17 -0,04 -0,64 -0,57 -1,08 -0,33 39 0,00 0,03 -0,56 -0,55 -1,07 -0,33 40 CANGAIBA -0,08 -0,04 -0,39 -0,52 -1,03 -0,32 41 0,12 -0,14 -0,46 -0,55 -1,03 -0,32 42 TREMEMBE 0,00 -0,10 -0,48 -0,43 -1,01 -0,31 43 0,19 -0,16 -0,54 -0,49 -1,00 -0,31 44 SACOMA 0,04 -0,05 -0,56 -0,39 -0,96 -0,29 45 JAGUARE 0,08 0,01 -0,52 -0,49 -0,92 -0,28 46 0,02 -0,06 -0,37 -0,49 -0,89 -0,27 47 ARICANDUVA 0,05 -0,06 -0,38 -0,45 -0,84 -0,26 48 PIRITUBA 0,05 0,06 -0,40 -0,53 -0,83 -0,25 49 JABAQUARA 0,09 0,07 -0,47 -0,46 -0,77 -0,23 50 SAO DOMINGOS 0,02 0,00 -0,34 -0,37 -0,69 -0,21

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Tabela 44 Índice distrital de homicídio geral 1999 na Cidade de São Paulo

DISTRITO HOMI_1999 IDI IEX 1 JARDIM ANGELA 116,23 28,28 -1,00 2 SE 107,62 26,18 -0,92 3 CIDADE ADEMAR 106,06 25,81 -0,91 4 JARDIM SAO LUIS 103,75 25,24 -0,89 5 IGUATEMI 100,11 24,36 -0,86 6 SAO RAFAEL 96,16 23,40 -0,82 7 GRAJAU 95,62 23,27 -0,82 8 CAMPO LIMPO 93,83 22,83 -0,80 9 BRAS 93,47 22,74 -0,80 10 CAPAO REDONDO 93,02 22,63 -0,79 11 BRASILANDIA 92,31 22,46 -0,79 12 PARELHEIROS 91,52 22,27 -0,78 13 CIDADE TIRADENTES 88,88 21,63 -0,76 14 PEDREIRA 82,09 19,97 -0,70 15 MORUMBI 81,71 19,88 -0,69 16 CIDADE DUTRA 80,64 19,62 -0,68 17 CACHOEIRINHA 77,75 18,92 -0,66 18 SAPOPEMBA 77,68 18,90 -0,66 19 ITAIM PAULISTA 76,82 18,69 -0,65 20 JACANA 76,39 18,59 -0,64 21 RIO PEQUENO 74,51 18,13 -0,63 22 PARQUE DO CARMO 72,70 17,69 -0,61 23 GUAIANASES 72,62 17,67 -0,61 24 SACOMA 67,45 16,41 -0,56 25 ARTUR ALVIM 66,83 16,26 -0,56 26 VILA JACUI 65,67 15,98 -0,55 27 VILA MARIA 64,48 15,69 -0,54 28 ITAQUERA 64,47 15,69 -0,54 29 LAJEADO 64,45 15,68 -0,54 30 SÃO MIGUEL 63,96 15,56 -0,53 31 SÃO MATEUS 62,35 15,17 -0,52 32 JAGUARE 61,95 15,07 -0,52 33 JARDIM HELENA 61,79 15,03 -0,51 34 JOSE BONIFACIO 60,98 14,84 -0,51 35 SOCORRO 59,70 14,53 -0,50 36 VILA CURUCA 59,08 14,37 -0,49 37 TREMEMBE 57,80 14,06 -0,48 38 REPUBLICA 57,11 13,90 -0,47 39 JABAQUARA 57,05 13,88 -0,47 40 VILA MEDEIROS 55,69 13,55 -0,46 41 PARI 54,16 13,18 -0,45 42 PERUS 53,79 13,09 -0,44 43 IPIRANGA 53,55 13,03 -0,44 44 53,02 12,90 -0,44 45 RAPOSO TAVARES 50,74 12,35 -0,42 46 MARSILAC 50,70 12,34 -0,42 47 50,09 12,19 -0,41 48 VILA ANDRADE 50,07 12,18 -0,41 49 VILA LEOPOLDINA 49,61 12,07 -0,41

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Tabela 42 Índice distrital de anos potenciais de vida perdido entre 1994 e 1996 na Cidade de São Paulo - 1999

DISTRITO APVP 94 APVP 99 IMV APVP 99 % IMV APVP 99 IDI/IMV APVP 99 1 MARSILAC 60,84 34,60 -26,24 -43,14 301,70 2 SANTO AMARO 165,94 98,64 -67,30 -40,55 283,65 3 58,35 40,95 -17,40 -29,82 208,60 4 66,05 54,64 -11,41 -17,27 120,78 5 VILA ANDRADE 135,94 116,62 -19,32 -14,21 99,42 6 CONSOLACAO 84,84 74,88 -9,96 -11,74 82,14 7 SÃO MIGUEL 161,00 142,42 -18,58 -11,54 80,74 8 CIDADE TIRADENTES 137,32 121,59 -15,73 -11,45 80,10 9 MORUMBI 116,10 105,11 -10,99 -9,47 66,24 10 LIBERDADE 100,33 91,15 -9,18 -9,15 64,02 11 ERMELINO MATARAZZO 129,95 118,35 -11,60 -8,93 62,43 12 CACHOEIRINHA 156,47 143,67 -12,80 -8,18 57,20 13 ANHANGUERA 48,68 44,70 -3,98 -8,18 57,20 14 MOEMA 42,71 39,48 -3,23 -7,55 52,83 15 TATUAPE 88,18 82,01 -6,17 -7,00 48,98 16 LAPA 76,57 71,39 -5,18 -6,77 47,34 17 CAMPO BELO 95,66 90,96 -4,70 -4,91 34,34 18 GUAIANASES 190,46 181,79 -8,67 -4,55 31,86 19 LAJEADO 138,68 132,42 -6,26 -4,51 31,55 20 87,03 84,72 -2,31 -2,65 18,57 21 SOCORRO 133,64 130,32 -3,32 -2,48 17,37 22 87,46 87,33 -0,13 -0,15 1,05 23 VILA LEOPOLDINA 92,49 92,36 -0,13 -0,14 1,00 24 SAO DOMINGOS 97,57 97,83 0,26 0,27 1,00 25 IPIRANGA 97,94 98,87 0,93 0,95 3,53 26 VILA CURUCA 121,73 122,89 1,16 0,95 3,55 27 GRAJAU 142,81 144,41 1,60 1,12 4,17 28 BRAS 172,82 175,15 2,33 1,35 5,03 29 102,19 103,64 1,45 1,42 5,29 30 AGUA RASA 84,51 85,97 1,46 1,72 6,43 31 SÃO MATEUS 108,34 110,43 2,09 1,93 7,19 32 LIMAO 111,93 114,27 2,34 2,09 7,81 33 REPUBLICA 138,82 142,14 3,32 2,39 8,91 34 BELEM 119,62 122,85 3,23 2,70 10,06 35 JARDIM HELENA 115,64 118,80 3,16 2,73 10,18 36 VILA MATILDE 103,54 106,59 3,05 2,95 10,99 37 JARAGUA 130,48 134,34 3,86 2,96 11,04 38 RAPOSO TAVARES 83,17 85,82 2,65 3,19 11,89 39 45,44 46,93 1,49 3,28 12,25 40 SAUDE 67,33 69,55 2,22 3,30 12,33 41 BARRA FUNDA 113,68 118,35 4,67 4,11 15,32 42 FREGUESIA DO O 104,22 108,63 4,41 4,23 15,79 43 JAGUARA 83,44 87,28 3,84 4,60 17,15 44 SANTANA 65,77 70,35 4,58 6,97 25,99 45 CAMPO GRANDE 90,43 97,34 6,91 7,64 28,49 46 BRASILANDIA 139,26 150,33 11,07 7,95 29,65 47 PARELHEIROS 143,92 156,15 12,23 8,50 31,69 48 IGUATEMI 110,35 120,52 10,17 9,22 34,38 49 JABAQUARA 102,49 112,29 9,80 9,56 35,67 146

51 VILA MARIANA 59,49 65,98 6,49 10,91 40,69 52 PEDREIRA 82,44 91,86 9,42 11,43 42,63 53 BUTANTA 91,03 101,47 10,44 11,47 42,78 54 SANTA CECILIA 81,14 90,79 9,65 11,89 44,36 55 JARDIM ANGELA 129,10 145,01 15,91 12,32 45,96 56 ITAIM PAULISTA 129,22 147,10 17,88 13,84 51,61 57 PERDIZES 55,11 62,74 7,63 13,84 51,63 58 89,17 101,67 12,50 14,02 52,30 59 83,53 95,69 12,16 14,56 54,31 60 VILA SONIA 69,19 79,32 10,13 14,65 54,63 61 PERUS 122,94 143,31 20,37 16,57 61,82 62 MOOCA 81,80 95,36 13,56 16,58 61,83 63 PIRITUBA 107,40 125,45 18,05 16,81 62,69 64 ITAQUERA 122,58 143,59 21,01 17,14 63,93 65 SE 173,18 204,81 31,63 18,27 68,14 66 VILA JACUI 106,32 127,10 20,78 19,55 72,92 67 JOSE BONIFACIO 84,90 102,39 17,49 20,60 76,85 68 68,21 83,46 15,25 22,36 83,42 69 CAMPO LIMPO 102,74 125,97 23,23 22,61 84,35 70 CAPAO REDONDO 117,42 144,05 26,63 22,68 84,60 71 PENHA 86,26 107,55 21,29 24,68 92,05 72 JARDIM SAO LUIS 118,49 148,69 30,20 25,49 95,07 73 CIDADE DUTRA 104,60 131,74 27,14 25,95 96,79 74 VILA PRUDENTE 70,39 88,67 18,28 25,97 96,89 75 SÃO LUCAS 77,01 97,92 20,91 27,15 101,29 76 CIDADE ADEMAR 116,48 148,77 32,29 27,72 103,41 77 VILA MARIA 91,22 117,87 26,65 29,21 108,98 78 JACANA 100,95 130,88 29,93 29,65 110,59 79 ARTUR ALVIM 98,09 127,80 29,71 30,29 112,98 80 SAPOPEMBA 88,88 118,77 29,89 33,63 125,46 81 VILA MEDEIROS 95,14 127,61 32,47 34,13 127,32 82 TREMEMBE 80,53 108,32 27,79 34,50 128,71 83 CURSINO 75,37 102,22 26,85 35,62 132,89 84 PARQUE DO CARMO 96,20 130,61 34,41 35,77 133,42 85 RIO PEQUENO 78,36 106,63 28,27 36,08 134,60 86 CIDADE LIDER 96,39 132,22 35,83 37,17 138,65 87 BOM RETIRO 105,07 144,87 39,80 37,88 141,30 88 CAMBUCI 80,86 111,64 30,78 38,07 142,01 89 CANGAIBA 89,18 123,48 34,30 38,46 143,46 90 PONTE RASA 84,48 117,37 32,89 38,94 145,25 91 SACOMA 72,14 100,37 28,23 39,13 145,96 92 CARRAO 83,22 119,74 36,52 43,89 163,71 93 ARICANDUVA 75,20 110,52 35,32 46,97 175,20 94 SAO RAFAEL 81,59 122,65 41,06 50,32 187,72 95 JAGUARE 69,93 118,26 48,33 69,11 257,79 96 PARI 91,71 164,05 72,34 78,88 294,25 Fonte: IBGE/Contagem 1996 e PROAIM 2000

Mapa da Exclusão/Inclusão Social 2000 - Dinâmica Social anos 90 - PUC/SP - INPE - POLIS

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