PERFIS MUSICAIS A CANÇÃO COMO MÚSICA DE INVENÇÃO Presidente da República Jair Bolsonaro

Ministro da Cidadania Osmar Terra

Secretário Nacional de Cultura José Henrique Medeiros Pires

FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTES – FUNARTE

Presidente Miguel Proença

Diretor Executivo Reinaldo da Silva Veríssimo

Diretora do Centro de Programas Integrados Maristela Rangel

Diretor do Centro da Música Marcos Souza

Gerente de Edições Oswaldo Carvalho ORGANIZAÇÃO MARCOS LACERDA

PERFIS MUSICAIS A CANÇÃO COMO MÚSICA DE INVENÇÃO Equipe de Edições Carlos Eduardo Drummond Filomena Chiaradia Gilmar Mirandola Jaqueline Lavor Ronca Julio Fado Equipe Coordenação de Música Popular Eulicia Esteves Ana Saramago Aline Mandriola Preparação de originais Tikinet | Caio Ramalho, Caique Zen e Hamilton Fernandes

Revisão Tikinet | Isabella Ribeiro e Andressa Picosque

Capa, projeto gráfico e diagramação web e ePub Tikinet | Julia Ahmed

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) FUNARTE/Coordenação de Documentação e Pesquisa

Ebook Perfis musicais : a canção como música de invenção / Marcos Lacerda (Org.). – : FUNARTE, 2018. 182 p. ISBN 978-85-7507-205-9 1. Música popular – Brasil – História e crítica. I. Lacerda, Marcos. CDD 782.42164098 Sumário

A canção como música de invenção 7 Marcos Lacerda A terceira pessoa em Luiz Tatit 9 Rogério Skylab Vitor Ramil: o artista da “estética do frio” 44 Luís Rubira Um baque 71 Paulo Almeida Céu: no tempo da canção expandida 99 Pérola Virgínia de Clemente Mathias Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s 129 Acauam Oliveira Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico 171 Iracele Vera Lívero de Souza A canção como música de invenção A canção brasileira vem passando por um processo de renovação há décadas, especialmente na sua ambiência mais inventiva. O quadro de referência des- sa nossa nova música de invenção associado à canção popular é bem variado e não mais associado à tríade carioca de época de ouro, e Tropicalismo. Ao contrário, as referências agora são outras, ainda que não se negue o cânone – ele apenas não serve mais como o único parâmetro da criação e da crítica. Dois exemplos significativos são o conjunto de artistas associados à Lira Paulistana ou, se quisermos, à Vanguarda Paulista. Itamar Assumpção, Arri- go Barnabé, Grupo Rumo, entre outros, têm se tornado referência central para quem faz a canção popular mais inventiva hoje no país, e a crítica mais atenta à necessidade de ampliar parâmetros de análise. O mesmo vale para a “estética do frio” de Vitor Ramil, trazendo para a canção popular um conjun- to novo de referências, que vai desde a dimensão geográfica, passando pela literatura, a música do Sul e a poesia das fronteiras do Brasil, muito além da faixa litorânea associada ao Rio de Janeiro e à Bahia. Ambos serão tratados aqui neste conjunto de ensaios. O primeiro através de uma análise da obra de Luiz Tatit, integrande do Grupo Rumo, que estreou sua carreira solo a partir do álbum Felicidade (1997). O ensaio foi escrito pelo compositor, crítico e um dos mais interessantes artistas da canção bra- sileira, Rogério Skylab. O segundo, por sua vez, apresentará Vitor Ramil e a estética do frio, e foi escrito pelo professor de filosofia e crítico Luís Rubira. Além dos ecos da vanguarda da Lira Paulistana e das milongas do Sul do país, temos também que pensar na nova música independente criada a partir dos anos 2000. Nela se destacavam artistas significativos de todo o país. Se- ria injusto citar nomes aqui, devido à quantidade de artistas, mas podemos mencionar álbuns significativos, alguns deles já considerados clássicos con- temporâneos, como nos casos de Encarnado (2014), de Juçara Marçal, São Mateus não é um lugar assim tão longe (2009), de Rodrigo Campos, Eslavosamba (2013), de Cacá Machado, De baile solto (2015), de Siba, Religar (2010), de Leo Cavalcanti, De cara no asfalto (2016), de Paulinho Tó, De ponta a ponta tudo é praia-palma… (2013), de Thiago Amud, e Vagarosa (2009), da Céu, entre muitos outros. Estes dois últimos artistas, Thiago Amud e Céu, foram também tema de en- saios para este livro. O primeiro, escrito pelo notável pesquisador em música

7 A canção como música de invenção popular, Paulo Almeida, apresenta a complexa obra literomusical de Thiago Amud, um dos mais importantes e destacados cancionistas do Brasil hoje; o segundo mostra a organicidade e coerência conceitual da obra de Céu, artis- ta de ponta e, na minha opinião, central para entendermos a canção brasileira contemporânea mais inventiva. Quem escreve o ensaio é a crítica musical e antropóloga Pérola Mathias. Falamos nas vanguardas de São Paulo e do Rio Grande do Sul, na canção bra- sileira contemporânea; faltou falar sobre a movimentação mais importante do Brasil em décadas e que tem na obra do Racionais MC’s seu núcleo de sentido e força poético-formal: o hip hop. O álbum Sobrevivendo no inferno é uma das maiores criações da cultura e da arte no Brasil, comparável ao que de melhor produziu a nossa literatura, as nossas artes plásticas, o nosso cinema e a nossa canção popular. Nele se destaca, em especial, a excelência poético-formal de Mano Brown, um dos artistas/pensadores mais significa- tivos do Brasil e um dos nossos intelectuais mais bem preparados das últimas décadas. É sobre ele o próximo ensaio e quem o escreve é o jovem e não menos bem preparado intelectualmente, Acauam Oliveira. O último ensaio, por fim, sobre Eunice Katunda, escrito por Iracele Lívero, trata da composição e da música erudita no Brasil a partir da análise de uma das nossas mais importantes compositoras. Existe uma longa história da mú- sica brasileira que, muitas vezes, fica em segundo plano, tamanha a força da canção popular no imaginário da crítica. Assim, a importância do ensaio para este livro é muito significativa, uma vez que traz para o centro do debate a música feita no Brasil, para além da canção popular.

Marcos Lacerda

8 A terceira pessoa em Luiz Tatit

Rogério Skylab

Se tenho elo com ela o elo é você Ela é somente aquela de quem eu falo Sempre foi tão discreta, não dá trabalho Está na boa a vida inteira Como pessoa, ela é a terceira Você é que não perdoa Ou é a segunda ou é a primeira

I. Preliminares

1.1 — Procuro retomar na memória o primeiro momento em que me deparei com o som do Grupo Rumo. Naquela época, Arrigo Barnabé, com seu Clara crocodilo, já havia atraído para si as atenções do público. Para um carioca, longe da Lira Paulistana e adjacências, a vanguarda paulistana, pelo menos naquele primeiro momento, chamava-se Arrigo Barnabé. Itamar As- sumpção viria aparecer logo em seguida. E ficaram os dois como referências de quem, como eu, não se situava à margem, mas muito longe dela. Foi num rádio, dentro de um serviço burocrático, que ouvi pela pri- meira vez o Rumo. O nome do grupo já me era familiar; seu principal inte- grante, não. Ouvi “Ladeira da memória”, que por sinal não é de Luiz Tatit. Procuro relembrar a sensação daquela primeira escuta: o frescor, a alegria, o coloquialismo, muito distante da boa e velha MPB. E ficou por isso. O Grupo Rumo, naqueles idos, na cidade maravilhosa, não tinha lá muita ressonância, ao contrário de Arrigo e Itamar. Não esque- çamos que naquela época, meados dos anos 1980, ainda não havia internet, e o rock brasileiro viria a ser a bola da vez. Com o maior estardalhaço nas rádios e na mídia de modo geral, o novo rock brasileiro, sob as bênçãos da abertura política, abafaria a sutileza e o construtivismo daquela nova música paulistana. Foi muito depois que eu retomaria o contato. Dessa vez, com todo o instrumental que a nova tecnologia oferecia. E pude baixar não só os discos do Grupo Rumo como também os trabalhos solo de Luiz Tatit que até aquela época tinham saído. E a sensação foi de maravilhamento.

9 A terceira pessoa em Luiz Tatit

II. Arrigo e Tatit

Muito diferente de quando escutei pela primeira vez o Grupo Rumo, tomei conhecimento de Arrigo Barnabé através de uma fita cassete. Com este, des- bravava-se um novo terreno; tínhamos pela frente um monstro de identidade duvidosa — meio homem, meio mulher; agudos que perfuravam os tímpanos; canção ou quase-canção. Com o Rumo, ao contrário, pisávamos em terreno co- nhecido; reconhecíamos aquilo que ouvíamos; reforçávamos nossa identidade. O que visa este trabalho, entre outras questões, é estabelecer um elo en- tre Arrigo e Tatit, mesmo reconhecendo a profunda diferença entre ambos, e considerá-los como diferentes perspectivas de uma questão comum.

III. A Vanguarda Paulista e Luiz Tatit

3.1 — Com a Vanguarda Paulista retornamos para casa. Deixamos a rua, mas ela não sai de dentro de nós. A rua, o outro, o objeto. Talvez a melhor imagem seja da porta aberta ou da janela, através da qual nos comunicamos com a rua: do lado de dentro olhando pro lado de fora. O duplo se faz pre- sente na música popular brasileira porque dessa vez não nos confundimos mais com o objeto: guardamos uma razoável distância dele. Talvez isso justi- fique a escolha de Luiz Tatit pela semiótica. Mas não é só uma questão de sujeito e objeto. Entra aí também uma questão de medida, de mais e de menos, de aproximação e afastamento, de falta e transbordamento, à qual a primeira música do primeiro disco do Gru- po Rumo faz referência: “Encontro”. Aliás, podemos pensar as três grandes referências da Vanguarda Paulista — Itamar Assumpção, Luiz Tatit e Arrigo Barnabé — pelas respectivas distâncias em relação ao objeto: se o primeiro, entranhado no eu, encontra-se a uma longa distância do exterior (é curiosa a análise que Luiz Tatit faz de Itamar), já Arrigo, o mais tropicalista (não é à toa que Caetano chegou a fazer várias reverências a ele), está quase na rua. E esse “quase” tem muita importância. Luiz Tatit é quem vai se localizar a uma distância razoável do objeto: nem tão próximo, nem tão longe. 3.2 — Tatit, pela metalinguagem com que se revestem suas canções, parece estar mais no campo da epistemologia, do /saber/ com que o sujeito se relaciona com a canção. Daí porque entendemos quando Meira Albach (2012), em sua dissertação de mestrado Em busca do rumo da canção brasileira: a prática e a teoria de Luiz Tatit, de 1974 a 2005, o classifica como nostálgico

10 Rogério Skylab

(há uma perda do objeto, mas diante dele a persona cancional de Tatit em- preende um movimento constante de busca). Albach relaciona essa persona de Tatit ao Pierrô da commedia dell’arte, um tipo fixo, cuja máscara é o palha- ço que nunca ri. A peculiaridade, pois, desse nostálgico, tal como o Pierrô, não será a passividade, o que vai lhe conferir também um efeito cômico, posto que, cego a uma verdade visível, muitas vezes clara para o público, só ele acredita na recuperação desse objeto perdido, propiciando através dessa ingenuidade um humor lírico. É por isso que a persona cancional de Tatit se relaciona com a ausência: ele não vai fazer uma canção no espaço sideral em razão da impossibilidade de fazê-la aqui (impossibilidade que se remete à nostalgia buarquiana e, a um primeiro momento epistemológico e de desconstrução, do Tropicalismo). O personagem tatiano de fato acredita não só em fazer a canção aqui, como, através dela, trazer de volta o sujeito ausente, seja ele Odete, Matilde, Ivone, Sofia, ou o que representa todas elas: o público de massa. Há um descentramento de sua música e da Vanguarda Paulista como um todo em relação à música de mercado, mas isso não significa a sua negação. Walter Garcia (2015), em seu texto “‘Clara crocodilo’ e ‘Nego dito’: dois perigosos marginais?”, nos lembra que estar à margem não sig- nifica estar fora do sistema MPB. Em todo caso, cabe aqui saber quem está sob o foco da análise. Porque se for Itamar, dentro de seu ensimesmamen- to, portanto mais distante do objeto, pode-se até pensar, conforme Gar- cia, que na sua interpretação de “E o Quico?” haveria por parte de Itamar uma certa violência e um distanciamento irônico o que Walter chamaria de desespero do mal-estar (apostar na música ou na canção em tempos de mundialização). É interessante que Walter contrapõe a Itamar a interpretação da mes- ma canção por parte de Juçara Marçal, em seu disco Encarnado, de 2014, ou seja, dentro de uma nova música de vanguarda: intensifica-se a ausência de saída, quando numa instrumentação áspera a cantora introduz uma do- çura irônica na voz, rindo do mal-estar. De qualquer maneira, o perigo é associar a Vanguarda Paulista apenas a Itamar e a Arrigo. Porque em Tatit, a relação com o objeto ou a aposta na canção não terá tom de desespero, muito menos de violência. Ao contrário: há uma afetividade contra todas as evidências que deveriam levar o narrador ao desespero. É o caso de canções como “Felicidade” e “Época de sonho”: “Vê que absurdo, Vera!/E nem é tempo de paixão”. 3.3 — Acho interessante focarmos o quadrado semiótico, ao qual Tatit sempre se remete nos seus ensaios, até como forma de relativizar as

11 A terceira pessoa em Luiz Tatit

diferenças idiossincráticas entre ele, Arrigo e Itamar, tentando dessa forma compreender a estrutura dualista que vai marcar a Vanguarda Paulista, com as variantes de maior ou menor distância do sujeito em relação ao objeto. Esse dualismo entre sujeito e objeto, compreendendo-se entre eles graus de proximidade, eliminaria as definições ontológicas, as quais aca- bam por isolar sujeitos e objetos, atribuindo-lhes traços substanciais. O quadrado semiótico é movido por sinais de + e de −: da plena conjunção segue a não-conjunção, que é algo menor; mas se intensificarmos esse me- nor, chegamos à disjunção, que é o máximo da oposição; entretanto, se diminuirmos essa oposição, chegamos à não-disjunção, que, se for inten- sificada, nos fará retornar ao ponto de origem, do qual partimos: a plena conjunção. Segue-se que a lógica desse quadrado, que o põe em movimen- to, é um mais e um menos, tonicidade e atonicidade. Se até a década de 1990 a semiótica tendia para um processo de atonização dos objetos de estudo, privilegiando a relação em detrimento das oposições (Hjelmslev), após esse período, Claude Zilzeberg, privilegiando o acontecimento, viria a estabelecer uma mudança considerável nos estudos dos signos, atribuin- do maior importância ao processo de tonificação. Nos estudos sobre Guimarães Rosa, Tatit, seguindo seu mestre A. Greimas, segundo o qual o acorde narrativo dosa, no desenrolar sintagmático, as porções de alteridade e identidade, o mesmo ocorrendo para os parâmetros tensivos, irá sublinhar a expressão “soência de sobrevir”, usada no conto “Os cimos”, em Primeiras estórias: captar a intensidade do momento vivido sem perder as balizas da própria identidade, dosando surpresa e espera, acontecimento e sujeito, afinando assim o sentido da forma: nem inopinado, nem excessivamente esperado. 3.4 — No caso de Arrigo Barnabé, há uma diferença em relação a Tatit: tem-se a impressão, considerando o seu primeiro disco, de que o objeto tem a primazia em relação ao sujeito (daí muitos terem relacionado Arrigo ao Tropicalismo). Estamos quase no reino do inopinado. Não é à toa que em várias entrevistas Arrigo manifesta a impressão de que nunca mais repetiria aquela primeira experiência. Por outro lado, a estrutura dual não deixa de estar presente, como vai estar em Itamar e Tatit (a diferença entre eles talvez consista numa questão de proporção, mas a relação entre sujeito e objeto permanece; é uma porta que está aberta para o exterior, sendo essa abertura variável, conforme a dicção de cada um dos três; no caso da bossa nova, a porta mantém-se fechada — é uma música de interior; no caso do Tropica- lismo, “Alegria, alegria” que o diga, trata-se do passageiro da alegria, de um ser em evasão.

12 Rogério Skylab

3.4.1 — André Cavazotti (2000), num texto sobre Clara crocodilo, “O serialismo e atonalismo livre apontam na MPB”, aborda dois aspectos que ratificam a perspectiva dualista; o primeiro diz respeito ao confronto, o ou- tro, à preocupação de afinar o sentido, isto é, construir um paralelismo entre sujeito e objeto. No tocante ao confronto, Cavazotti recorre a Schoenberg, mais especificamente ao Livro dos jardins suspensos, op. 15, de 1908-1909, sobre textos de Stefan George. Para Cavazotti, a perspectiva de Schoenberg sobre atonalismo é contrária a Arrigo: as dissonâncias são emancipadas e as funções harmônicas dissolvidas, mas há uma conotação prospectiva de libertação, de continuidade histórica (algumas obras anteriores do compo- sitor, como no Segundo quarteto de cordas, op. 10, de 1908, a frase que abre o último movimento, “Eu sinto o ar de outro planeta”, já seria indício de uma mudança gradativa de libertação do cotidiano através de um novo mundo de sensações suaves e ternas). Já em Arrigo, o outro planeta, como nos sugere “Sabor de veneno”, vem através de uma invasão: “Não sei se ela veio da lua/ Ou se veio de Marte me capturar/ Só sei que quando ela me beija/ Eu sinto um gosto/ Meio amargo do futuro/ […] Sabor de veneno”. O atonalismo aqui surge como confronto. Por outro lado, e esse é o segundo aspecto abordado por Cavazotti (2000, p. 13),

a agudeza da irritação por parte do ouvinte, provocada pelas difi- culdades de previsão dos eventos (o que gratifica o ouvinte é o apa- recimento de eventos previsíveis e regulares, dando- lhe um senso de controle e de segurança psíquica), é amenizada pelo alto grau de redundâncias no texto musical, resultado de diversas repetições de determinadas sequências de alturas e de padrões rítmicos.

Essa amenização vai estar no coração da Vanguarda Paulista, a distancian- do de um certo dadaísmo muito presente no Tropicalismo. 3.5 — A leitura que Tatit faz de Itamar Assumpção vai fortalecer essa visão. Em “A transmutação do artista” (Chagas; Tarantino, 2006), amenização ou transmutação dá no mesmo. Aqui a análise se dá por uma via diacrônica: há um determinado momento na discografia de Itamar em que testemunha- mos uma mudança. Para sermos mais precisos, na análise de Tatit são locali- zados três momentos: o eu absoluto; o eu instalado no interior das canções; e finalmente o eu múltiplo da música “Vida de artista”. Esse processo, que é acompanhado no desenrolar de sua carreira, se expressa por um gradativo esvaziamento do sujeito. De Beleléu a Sampa midnight, passando pelo inter- mediário Às próprias custas, temos uma primeira trilogia, cujo personagem

13 A terceira pessoa em Luiz Tatit

é o réu transgressor Beleléu, preso à enunciação do cancionista, isto é, ao seu intérprete, cuja presença física, seu corpo e sua voz faziam o personagem diretamente ligado a este. Mas essa forma subjetiva é amenizada a partir de Intercontinental, quando o seu personagem-base passa a estar impregnado nas instabilidades entoativas do canto, nos atrasos e antecipações das vozes de fundo, nos ecos e nas defasagens do acento rítmico, nos fiéis ostinatos quebradiços de baixo e guitarra que apoiavam as linhas melódicas principais (Tatit, 2014, p. 317-318). Esse distanciamento entre autor e personagem é ainda maior quando no disco seguinte, Bicho de sete cabeças, faixa “Estropício”, o novo réu, Des- ventura Martírio Calvário da Cruz, delega sua voz a Jards Macalé. Chamam atenção igualmente, nessa nova trilogia, algumas faixas como “Sujeito a chu- vas e trovoadas”, “Ciúme do perfume” e “Tristes trópicos”, em que o ponto de partida se faz via significante: em vez da organização semântica do tema, também presente e igualmente longe das cenas de atitude do começo de carreira, vamos encontrar ainda na sonoridade dos fonemas o condutor de alguns novos versos. Chegando em Pretobrás, além dessas conquistas atribuídas ao significante e ao encaminhamento melódico regular, que estabilizavam as curvas incons- tantes do canto falado numa forma viável do ponto de vista comercial, não podemos esquecer a nova forma do eu. O volume 1 dessa nova trilogia, que seria completada postumamente, sintetiza todas essas conquistas adquiridas com o passar dos anos, desde as declarações de desabafo como fala solta. Longe de um confronto, trata-se mais de uma equalização de diferentes matizes em busca da medida perfeita entre sujeito e objeto. Esses ajustes, que são uma constante na Vanguarda Paulista, vamos verificar tanto em Tatit quanto em Arrigo. Ajustes que propiciam uma melhor comunicação. 3.6 — Não será outro o motivo da música “Encontro”, que abre o pri- meiro disco do Grupo Rumo: melhor estreia impossível. O reconhecimento só é possível a partir de uma certa distância. É uma questão de medida: muito próximo não dá pra ver a fisionomia; de longe, há um certo grau de incerteza. Curioso que a estrutura da canção é dividida em três partes, uma das quais, a última, é menor que as demais — entretanto, nem no disco do qual faz parte, nem na obra de modo geral, essa estrutura tripla sobressai (o que sempre pre- domina é a canção dividida em duas partes, isto é, cantada duas vezes). O mesmo poderíamos argumentar em relação ao tema: vai permanecer a estrutura dupla (o sujeito e o antissujeito). É o caso de “Ah!”, que se divide entre a necessidade de trocar de palavra e a resistência à troca — no caso dessa música, é tudo duplo, até mesmo a estrutura da canção (dividida em

14 Rogério Skylab

duas partes iguais) e as duas entoações presentes na interjeição: uma linha ascendente, constatando a ordem; e a outra, de linha descendente, figurando uma decepção ou discordância (essas duas entoações vão perpassar o coro, sublinhando a duplicidade). Um outro ponto que podemos observar ao longo do trabalho cancional de Luiz Tatit é a posição do narrador: se há uma predominância do narrador- personagem dirigindo-se diretamente a outro personagem, o que evidencia um processo de comunicação direta e o coloquialismo da fala, por outro lado, essa predominância não se mantém constante, o que pode sugerir uma mudança de registro ou de ênfase. Nos dois primeiros discos, Rumo 81 e Diletantismo, há um grande predomínio desse narrador-personagem — no primeiro disco constatamos 8 incidências num total de 12 faixas, considerando apenas as composições de Luiz Tatit; no segundo, a mesma proporção (nesse estudo, visando sobretudo as composições de Tatit, não consideraremos os discos Rumo aos antigos, Quero passear nem Sumo do rumo). Se compararmos os dois primeiros discos analisados com os dois últi- mos, De nada mais a algo além e Palavras e sonhos, verificamos que o espaço do narrador-personagem diminui: a incidência passa a ser de 4 para 13 em Palavras e sonhos e de 3 para 9 canções feitas em parceria com Arrigo no disco De nada mais a algo além. Em todos os discos, do primeiro ao último, cons- tatamos na relação direta do narrador-personagem com outro personagem uma incidência decrescente contínua. Por outro lado, se analisarmos o uso da terceira pessoa, constatamos uma incidência crescente dos primeiros aos últimos discos: em Rumo 81, 1 para 12; Diletantismo, 1 para 12; De nada mais a algo além, 4 para 9; Palavras e sonhos, 3 para 13. Essa linha crescente pode nos sugerir o aumento da importância do narrador na terceira pessoa. Concomitante a isso, também foi verificado, ao longo de sua discografia, um aumento crescente da primeira pessoa numa espécie de monólogo: se nos primeiros discos não há nenhuma incidência, em De nada mais a algo além a proporção é de 2 para 9, e em Palavras e sonhos é de 3 para 13. Verificamos também outras situações com o narrador-personagem: quando descreve uma ação ocorrida no passado entre ele e outro perso- nagem; quando descreve uma ação e fala com outro personagem; quando descreve outro personagem ou acontecimento; quando descreve um perso- nagem e fala com ele. Em todos esses contextos, o narrador- personagem deixa de assumir a função exclusiva de comunicação direta com outro per- sonagem. Essas funções ganham maior destaque a partir da carreira solo de Tatit, especialmente no disco O meio, quando vamos verificar uma incidência dessas funções mistas em 6 de um total de 13 faixas.

15 A terceira pessoa em Luiz Tatit

Talvez possamos concluir, com esses dados, que há um processo gradual de distanciamento do narrador, muito semelhante ao que nos é sugerido na canção “O encontro”: se nos dois primeiros discos há uma predominância clara do narrador- personagem em comunicação direta com outro persona- gem, assistimos a um processo de distanciamento desse narrador expresso pelas novas funções da narração. Mas esse distanciamento não elimina a rela- ção direta do narrador-personagem, relação essa que dá ao corpo cancional de Luiz Tatit a sua principal característica. É como vimos sugerindo: trata-se mais de um processo de equalização. 3.7 — Regina Machado, em sua dissertação A voz na canção popular: um estudo sobre a Vanguarda Paulista, apresentada em 2007 ao Instituto de Artes da Unicamp para o título de mestre em música, expõe o caráter dualista que vai impregnar essa vanguarda sob a perspectiva do canto:

a necessidade de busca de novos elementos fez com que o referencial estético e técnico-vocal [da Vanguarda Paulistana] fosse transformado e levado a extremos: 1) quer pela estridência da fala e a busca de novas vocalidades que explorassem a expressão dos sentidos através dos sons musicais [estridência e lirismo para a expressão musical]; 2) quer pelo seu coloquialismo, numa busca de execução musical que privilegiasse a entoação através da compreensão da relação música/texto, fixando in- clusive um novo padrão de afinação nessa referência (p. 39-40).

É curioso que, nesses extremos a que chega a técnica vocal, Regina pare- ce ter em vista, primordialmente, Arrigo e Tatit — num determinado ponto do texto, ela associa a nova vocalidade de Itamar às informações já trazidas por Arrigo, acrescidas pela tradição do samba, do batuque de terreiro e da música pop. Mas a cada um dos dois tipos de abordagem vocal aos quais estariam ligados, respectivamente, Arrigo e Tatit, Regina estabelece no in- terior de cada um deles uma nova divisão, à qual cada grupo faria interagir seus elementos entre si: no caso de Arrigo, a performance cênico-dramática e as texturas musicais expressas pelos agudos estridentes; no caso de Tatit, os elementos linguísticos e a expressão da musicalidade a partir do enfoque entoativo, expressão essa que se daria pela aproximação entre a realização vocal melódica e as oscilações das alturas na entoação falada. Estamos no reino das dualidades, do qual só Itamar parece se safar.

3.8 — “Minha cabeça” Quer saber por que eu estou cansado? Cada vez que eu começo a pensar

16 Rogério Skylab

Me vem tudo de vez E eu não penso mais nada

Quer saber como é que eu penso? Quer saber por que eu estou cansado? Cada vez que eu começo a pensar Me vem tudo de vez E eu não penso mais nada

Eu vou pensar um assunto, certo? Um assunto que eu escolho, é claro Então eu faço força, força, força...

E olha o que acontece! Não adianta ter cabeça E la pensa o que quer...

Para, cabeça Assim você me enlouquece Não cansa você?

Minha cabeça, me ajude Pense tudo, tudo com calma Não se exalte Nunca te vi tão possuída, nunca! Você é danada, é mágica

Concentra, reflete Inverte um pouco o raciocínio Nem que dê no mesmo ponto Enfim, você é livre É livre mas não de mim

Na análise de “Minha cabeça” efetuada por Regina Machado, vemos uma divisão da canção em três partes: na primeira parte, de “Quer saber por que eu estou cansado” até “E eu não penso mais nada”, prevalece o enfoque en- toativo, com a debreagem enunciativa presentificando o sujeito (o timbre e o tipo de emissão vocal fortalecem essa presença), enquanto na parte rítmi- ca estamos sujeitos a frases metricamente diferentes umas das outras como efeito do discurso falado, não se submetendo à regularidade padronizada da

17 A terceira pessoa em Luiz Tatit

canção popular; na segunda parte, de “Eu vou pensar um assunto, certo?” até “Ela pensa o que quer”, a linha melódica se restabelece na primeira estrofe, e o padrão entoativo é retomado na segunda estrofe, alternância que é efeito da luta, concluindo-se numa impotência do sujeito (de qualquer maneira, verifica-se uma pequena diferença em relação à primeira parte, já que é to- talmente entoativa); a terceira parte, de “Para, cabeça” até “É livre mas não de mim”, indica uma mudança, subdividida em dois momentos — no pri- meiro, prevalece um padrão entoativo (imperativo), com um aspecto mais firme da voz, secundada por uma outra voz masculina, que dobra a melodia em uma oitava mais baixa; e um segundo momento, que é propriamente o refrão, quando a melodia se estabiliza e a emissão cantada se sobrepõe à falada, a partir de uma voz feminina que entra numa oitava acima, enquanto Luiz Tatit se transfere para a base (a solista, mesmo enfatizando o contorno melódico, não abandona a curva entoativa, complementando a expressão, enquanto no primeiro momento da terceira parte entoação e melodia eram expressas por cantores diferentes). Concomitante a essa análise do canto, a instrumentação vai acompanhar de perto, pelo menos na primeira parte, o padrão entoativo da voz cantada, dentro de um pensamento musical mais contrapontístico que harmônico, enquanto nas duas últimas estrofes da canção, isto é, na sua terceira parte, o acompanhamento se aproxima um pouco mais do padrão presente na canção popular: “os instrumentos realizam um ostinato rítmico, criando uma cama para a realização melódica, destacando a voz da solista isolada à frente e reve- lando o sujeito como dono do pensamento” (Machado, 2007, p. 74). 3.9 — Essa canção, conforme o padrão entoativo e melódico se- guido por Regina Machado (2007), leva de fato a uma divisão em três partes. Já na minha análise, considerando os desenhos melódicos das fra- ses, a divisão métrica e a quantidade de vezes que a canção é repetida, chega-se a uma divisão em duas partes iguais, contendo cada uma delas seis configurações: 2(6-6).

Primeira configuração Quer saber por que eu estou cansado? Cada vez que eu começo a pensar me vem tudo de vez E eu não penso mais nada

Segunda configuração Quer saber como é que eu penso? Quer saber por que eu estou cansado?

18 Rogério Skylab

Cada vez que eu começo a pensar me vem tudo de vez e eu não penso mais nada

Terceira configuração Eu vou pensar um assunto, certo? Um assunto que eu escolho, é claro Então eu faço força, força, força e olha o que acontece! Não adianta ter cabeça Ela pensa o que quer

Quarta configuração Para, cabeça! Assim você me enlouquece Não cansa você?

Quinta configuração Minha cabeça, me ajude, pense tudo, tudo com calma, não se exalte Nunca te vi tão possuída, nunca! Sexta configuração Você é danada, é mágica Concentra, reflete Inverte um pouco o raciocínio, nem que dê no mesmo ponto Enfim Você é livre, é livre, mas não de mim.

Nessa nova leitura, a partir da metrificação, estabelecemos seis estrofes, diferentemente das cinco estrofes apresentadas no estudo de Regina Ma- chado. Cada uma dessas estrofes pode ser comparada a uma célula com sua estrutura própria. Nessa nova leitura, as duas primeiras estrofes são relati- vamente semelhantes, contendo cada uma delas três frases. Vamos encontrar nessa canção três estrofes contendo, cada uma delas, esse mesmo número de frases, que serão constituídas por interrogações que dão um cunho entoati- vo, com uma participação intensa do narrador, produzindo a configuração da debreagem enunciativa, fortalecida pelo timbre e pelos diversos registros vocais que dão corpo físico ao enunciador. A terceira estrofe tem cinco frases, apresentando uma nova estrutura, na qual vale a pena nos fixarmos pelo seu caráter misto: a linha melódica se estabiliza nas duas primeiras frases, e o enfoque entoativo é retornado nas duas últimas, cabendo à frase do meio a junção da melodia e da entoação, porém, de forma separada: “Então eu faço força, força, força/ E olha o que

19 A terceira pessoa em Luiz Tatit

acontece!”. Na primeira metade, a linha melódica estabilizada; na segunda o enfoque entoativo. Cabe pensarmos nessa forma de junção: uma espécie de conjunção disjuntiva, sob o signo da impotência, mais justaposição que síntese, que vai nos remeter a uma nova música de natureza contrapontística, que vem sendo feita recentemente por músicos como Kiko Dinucci, Romulo Fróes e Rodrigo Campos — também integrantes do grupo Passo Torto, tal- vez a melhor expressão dessa nova música. Na quarta estrofe há o retorno do enfoque entoativo com suas três fra- ses, mas na quinta estrofe, com apenas duas, o acompanhamento instrumen- tal aproxima-se do padrão presente na canção popular, e nos deparamos com a linha melódica pura. Na última estrofe há o retorno das cinco frases, mas dessa vez sob uma nova ordem. Estamos propriamente no refrão, com uma nova solista fazendo destacar a melodia, mas sem abandonar a curva entoativa. Uma espécie de síntese conjuntiva, sob o jugo agora do sujeito, que retoma as rédeas. A canção analisada expressa assim o caminho empreendido, o processo de afinação do sentido que podemos testemunhar na discografia não só de Tatit, como também na de Arrigo e Itamar: um gradual abrandamento da situação enunciativa. 3.10 — No texto “João Gilberto e o caráter utópico da bossa nova”, Lo- renzo Mammi (1992) cria a imagem da porta fechada, à qual estaria associa- da a música bossanovista com seus elementos de mundo pessoal e privado. A essa experiência, o autor, quase no final do texto, associa o nome de Marcel Proust, também um apaixonado pelo mundo privado. Segundo essas associações, não seria despropósito lembrarmos o nome de Zé Agrippino, com a sua literatura longe de qualquer viés psicológico e sob o impacto da modernização num país periférico, como relacionado ao Tro- picalismo — o próprio Caetano reconheceria sua importância em “Verdade tropical”. Mas é inevitável, quando pensamos na Vanguarda Paulista, que nos remetamos a Henry James. Porque aqui é a experiência da porta aberta ou da janela entreaberta, do observador devidamente protegido de olhares que o denunciem. Não é mesmo fácil flagrarmos o autor por trás do narrador, mas algumas brechas fazem-no visível, se não de corpo inteiro, ao menos em frações, fragmentos. No caso de Luiz Tatit é ainda mais complicado porque, ao contrário de Arrigo, não são muitas as ocorrências de um narrador na terceira pessoa. Prevalece o narrador-personagem em suas peripécias que nos fazem lembrar o Pierrô da commedia dell’arte, o palhaço que nunca ri. É curioso lembrarmos que Regina Machado identifica no padrão vocal de Luiz Tatit uma essência naïf, talvez até mais forte na sua experiência

20 Rogério Skylab

com o Grupo Rumo, padrão vocal que se caracteriza pela simplicidade, desconhecimento ou ingenuidade. Se pensarmos que essa dicção vocal é inspirada em Noel Rosa e Lamartine Babo, época de ouro da música popu- lar brasileira, a experiência da commedia dell’arte fica justificada: o teatro de revista, com seus esquetes fragmentados, muitas vezes fazendo menção a acontecimentos recentes, que nem faziam parte do texto, era o reduto da música popular da época — tanto Noel quanto Lamartine faziam canções dentro desse contexto, claramente influenciados pela commedia dell’arte. Canções de Tatit como “Haicai”, “Olhando a paisagem”, “Banzo”, “Esboço” e “Felicidade” nos fazem lembrar personagens como Carlitos, Dom Qui- xote, todos representações do Pierrô, palhaço ingênuo que, mesmo sendo motivo de risos, continua a confiar nas pessoas — ingenuamente otimista, lunático e inconsciente da realidade. Em “Banzo”, por exemplo, abre-se uma brecha entre o discurso apa- rente e as intenções ocultas do narrador, levando ao cômico; como se o autor fizesse de seu personagem uma pessoa cega a uma verdade visível para o ouvinte. Nessas horas, o observador tenaz, por trás das cortinas, faz aparecer apenas uma parte de seu rosto. Está no interior do apartamento mas com os olhos voltados para o exterior. Cultiva sua subjetividade inte- ragindo com a cultura objetiva, introduzindo-se no âmbito da experiência. Está sobretudo voltado para o interior, cultivando sua subjetividade, ao contrário do ethos da democracia americana: este, como já dizia Lorenzo Mammi a respeito da música americana, está voltado para o exterior, o qual deve ser cultivado sob a influência e a ação do indivíduo e seus valores essenciais. A Vanguarda Paulista é uma ética de ajustamento, de adaptação e, portanto, é uma forma mais plástica. 3.11 — No livro Todos entoam, destacamos outro texto que vai nos ser- vir para fixar a perspectiva teórica de Luiz Tatit, ao mesmo tempo que nos ajuda a entender as razões de suas escolhas como compositor: “Da tensi- vidade musical à tensividade entoativa” (1999). Sem desconhecer, no que diz respeito à análise da canção, a importância da interpretação do cantor, capaz de provocar desvios no contorno melódico, contorno esse que recebe a mediação da entoação na sua relação com a letra, para Tatit, no entanto, o núcleo de sua análise estaria centrado nas unidades entoativas. Estas seriam como tensividades que dão contorno à fala, os tonemas propriamente ditos, localizados na terminação da curva melódica. E aqui, numa perspectiva bem racionalista, Tatit diz que é quase inalterável: segue-se um padrão lógico de /saber/ do enunciador, que está fora dos incidentes emotivos ou da inquie- tude fiduciária por parte do cantor.

21 A terceira pessoa em Luiz Tatit

Mesmo quando o investimento emocional é intenso, produzindo modificações acentuadas em todo o contexto melódico, as noções de finalização, prossecução e suspensão são preservadas como pon- tos de ordenação indispensáveis para que o enunciatário se oriente no discurso melódico (Tatit, 2014, p. 248).

Aliás, a grande comunicação do formato canção adviria justamente pela es- tratégia persuasiva do cancionista de estabelecer equivalências entre o sistema da língua natural e o sistema da canção, num processo interssemiótico (Tatit sublinha o fato dos contornos entoativos, apesar de serem um universo aberto de possibilidades, estarem restringidos pelo hábito cultural que disciplina as escolhas do falante, de acordo com o conteúdo linguístico a ser transmitido). Se a importância do hábito nos leva a pensar em William James, nos coloca, por outro lado, em confronto com o pensamento de Deleuze e Guat- tari (1977) no livro Kafka: por uma literatura menor. É que, para estes, indo na direção contrária do pensamento que norteia tanto o aprendizado de novas línguas quanto o saber de um cancionista, a importância de Kafka, por exem- plo, vem justamente da interferência de sua língua materna na língua alemã. Essa interferência é que daria ao referido escritor uma posição de diferença e destaque em relação à grande literatura alemã. 3.12 — Esta lembrança do livro de Deleuze e Guattari sobre Kafka nos obriga a pensar sobre o caráter comunicacional que Luiz Tatit faz questão de estabelecer para a canção e do quanto se diferenciava na forma como os tro- picalistas a pensavam. Vale aqui nos remetermos ao texto seminal de Celso Favaretto (2007), Tropicália, alegoria, alegria. Segundo ele, se o mercado freia as inovações, transformando inclusive a música de vanguarda em uma mercado- ria excitante — o que tem interesse passa a ser consumido como extravagância —, ainda assim a mercadoria tropicalista provocaria uma espécie de desloca- mento em relação aos signos institucionalizados. E isso ocorreria pela subver- são do efeito de participação, subversão essa própria da lírica moderna: uma resistência à comunicação fácil, o que não deixa de ser uma prática política: mesmo enquanto mercadoria, investe contra a ordem social estabelecida, sem se restringir a tarefas revolucionárias. E isso se expressa por um trabalho es- pecificamente artístico, que torna a explicitação indireta, produzindo uma lin- guagem de mistura, corroendo as ideologias em conflito e rompendo o círculo do bom gosto ou das formas eleitas, dialetizando assim a produção artística. 3.13 — Retornando à descrição da canção, como um bom racionalista que é, Tatit vai nos mostrar que um cancionista só diz o que diz, ou melhor, só faz o que faz, pressupondo um

22 Rogério Skylab

/saber/ anterior: o das curvas entoativas ou dos tonemas fundamentais do processo entoativo. Se o tonema continuativo dá ao enunciatário a noção de asseveração, é porque o /saber/ do enunciador manifesta-se de forma incompleta, clamando por algum tipo de continuidade: em “Procissão”, de Gil — “eles vivem penando aqui na terra”. Essa asseveração só vai se com- pletar quando a canção continuar: “esperando o que Jesus prometeu” (num movimento de descendência, chega-se a uma noção de finalização através do tonema conclusivo, muito presente em Itamar Assumpção). Mas o enunciador pode anunciar, em vez de um /saber/ completo, um suspense: é quando, após a finalização, apresenta-se uma curva não ascen- dente, ou pelo menos não tão descendente quanto a curva anterior — con- tinuamos a seguir a lógica do menos e do mais na perspectiva da tensividade: é o quadrado semiótico. Essa curva não ascendente, ou pelo menos não tão descendente quanto a anterior, apresenta um enunciador que vacila ou pelo menos não vê conveniência em manifestar seu /saber/: apresenta uma des- cida gradativa própria do tonema suspensivo, dando ao enunciatário uma ideia de hesitação, insinuação, por parte do enunciador na instância da virtu- alização. A curva seguinte é de não descendência, ou ligeiramente ascenden- te, própria das interrogações, apresentando uma noção de prossecução: é um grau de tensividade controlado pelo enunciador no sentido de antecipar, prorrogar ou até mesmo eliminar a urgência da resposta (cresce a tensão de modo gradativo, feito uma escada, própria do tonema continuativo). A essa ascendência, uma outra se sucede, aumentando a tensividade e poden- do atingir limites bastante incômodos, quando, por exemplo, desempenha a função de tonema continuativo numa asseveração. 3.14 — Na música “Depois melhora”, do disco Felicidade, primeiro tra- balho solo de Tatit, temos três partes:

Primeira Parte Sempre que alguém Daqui vai embora Dói bastante Mas depois melhora E com o tempo Vira um sentimento Que nem sempre aflora Mas que fica na memória Depois vira um sofrimento Que corrói tudo por dentro

23 A terceira pessoa em Luiz Tatit

Que penetra no organismo Que devora Mas também depois melhora

Segunda parte Sempre que alguém Daqui vai embora Dói bastante Mas depois melhora E com o tempo Torna-se um tormento, Que castiga, deteriora Feito ave predatória Depois vira um instrumento De martírio duro e lento Uma queda no abismo Que apavora Mas também depois melhora

Terceira parte E vira então Uma força inexplicável Que deixa todo mundo Mais amável Um pouco é consequência Da saudade Um pouco é que voltou A felicidade Um pouco é que também Já era hora Um pouco é pra ninguém Mais ir embora Vira uma esperança Cresce de um jeito Que a gente até balança Enfim Às vezes dói bastante Mas melhora Enfim

24 Rogério Skylab

É só felicidade Aqui agora É bom É bom não falar muito Que piora Enfim É só felicidade.

Transpusemos a letra exatamente como está disposta no site do ar- tista, com a primeira e a segunda parte da letra apresentando a mesma estrutura. Em “Sempre que alguém/Daqui vai embora”, uma curva ascendente chega ao topo, apresentando uma tensividade cujo limite é incômodo, desempenhando a função de tonema continuativo numa asseveração. Ainda assim, não há salto intervalar; os movimentos melódicos são gra- duais. Mas, logo em seguida, a asseveração se completa, expressando as convicções do saber, descrito pela descendência: “Dói bastante/Mas depois melhora”. Temos, portanto, em cada terminação de cada uma des- sas unidades entoativas, o tonema continuativo e o tonema conclusivo (embora-melhora). Em seguida, “E com o tempo/Vira um sentimento/Que nem sempre aflora” apresenta um contorno menos distensivo que o anterior, próprio da não ascendência (estamos no campo do virtual). Ainda assim os mo- vimentos melódicos permanecem graduais, e há um suspense, seguido por uma nova unidade entoativa, desta vez não descendente: “Mas que fica na memória”. Nessas duas curvas há um processo de suspensão que será interrompido na unidade entoativa seguinte: “Depois vira um so- frimento/Que corrói tudo por dentro,/Que penetra no organismo,/ Que devora”. Volta a ação, com um contorno ascendente tensivo e gra- dativo e em cuja terminação teremos um tonema continuativo (devo- ra). A primeira parte da canção é concluída através de uma nova des- cendente, através de um tonema conclusivo, finalizando a asseveração (melhora). Os tonemas dessa primeira parte ficaram assim dispostos: embora-melhora-aflora-consciência-devora- melhora. A segunda parte da canção praticamente repete a estrutura da primeira, começando e terminando numa asseveração completa. A terceira parte da canção apresenta uma nova estrutura: uma assevera- ção, com uma curva ascendente e gradativa, em cuja terminação o tonema continuativo é “embora”:

25 A terceira pessoa em Luiz Tatit

E vira então uma força inexplicável Que deixa todo mundo mais amável Um pouco é consequência da saudade Um pouco é que voltou a felicidade Um pouco é que também já era hora Um pouco é pra ninguém mais ir embora

A partir daí, a curva desce:

Vira uma esperança Cresce de um jeito que a gente até balança Enfim

Ao se completar essa asseveração, várias outras pequenas se sucederão, tendo como tonema continuativo o que era conclusivo na primeira asseve- ração. Dessa forma, talvez pudéssemos subdividir a terceira parte em duas: a primeira contendo uma asseveração completa, e a segunda constituída por várias asseverações:

Enfim Às vezes dói bastante mas melhora Enfim É só felicidade aqui agora É bom É bom não falar muito que piora Enfim É só felicidade

A transformação da dor em alegria se dará após um longo processo, inclu- sive de interiorização ou potencialização. Para chegar no “aqui agora” da terceira parte, foi preciso passar pela “memória” da primeira parte. Há um processo de interiorização, sem grandes saltos melódicos, que garante a transmutação — o que também evidencia um grau de tensividade controlada pelo enunciador. 3.15 — Na questão das letras, o longo repertório de Tatit vai teste- munhar a relação entre sujeito e objeto, ou entre o si mesmo e o outro, explorando todas as variações possíveis dessa relação, inclusive a não rela- ção. A questão do espaço me parece subjacente, como bem indica a música “Encontro”: nem tão longe, nem tão perto. A questão da lonjura indica duas possibilidades: ou o ponto de observação mantém-se a uma distância

26 Rogério Skylab

suficiente que possibilita a descrição do objeto sem envolvimento (não me parece que em Luiz Tatit seja essa uma perspectiva que se sobreponha às demais, ainda que possamos detectar sua ocorrência principalmente em seu último álbum, Palavras e sonhos); ou o distanciamento espacial chega ao ponto de impossibilitar até a descrição do objeto (é o caso de um solipsis- mo, indicando a não relação). Em relação à excessiva proximidade, fazendo do sujeito objeto, e ge- rando um eterno presente que abole o tempo (uma forte característica do Tropicalismo), vamos verificar também algumas dessas ocorrências nas letras de Tatit. Mas o que prevalece será sempre a relação entre sujeito e objeto, mantida através de um certo distanciamento: nessa relação, ora o sujeito vai ser maior que o objeto; ora o objeto será maior. Toda a ideia de espera, de reconhecimento, de reouvir uma canção privilegiando a iden- tidade é um típico caso em que o sujeito prevalece; mas o objeto pode ser maior que o sujeito, provocando susto, paralisando ou modificando o sujeito, que só muito tempo depois consegue decodificar o acontecimen- to. Se em algumas canções vai se privilegiar um ou outro caso, não será pouco frequente, numa só canção, o aparecimento das duas situações, uma se sucedendo à outra, como uma forma de compensar ou buscar um pon- to médio. É o caso da canção “Minha cabeça”, aqui já analisado, de onde extraímos a seguinte fórmula: O>S>O. Na primeira metade da canção, o objeto é maior do que o sujeito (eu não tenho domínio sobre as minhas ideias), mas na segunda metade retoma-se um equilíbrio, a partir da cons- tatação de que as ideias são livres, “mas não de mim”. Variando essa fórmula, podemos chegar a: S>O>S. No disco Diletan- tismo, a canção que fecha o álbum, “Nego, nega”, apresenta duas partes, em que a segunda compensa a primeira, mudando o equilíbrio de forças. Em “Tristeza do Zé”, que consta do disco Palavras e sonhos, a mesma coisa: há um momento em que o sujeito se relaciona muito bem com a falta; e um se- gundo momento em que sucumbe à força do acontecimento potencializado. Mas há também os casos em que apenas um dos lados prevalece. No caso de O>S, ocorre um excesso que o sujeito não se torna capaz de controlar nem de compensar, gerando cenas absurdas e hilárias: é o caso da música “Felicidade”, à qual no disco Rumo ao vivo a plateia responde com gargalhadas homéricas. A mesma situação em “Época de sonho”:

Então fui perguntar: ô, Vera! Vera, o que há com você? Nossa! Vera estava tão entretida

27 A terceira pessoa em Luiz Tatit

Que só cantava, dançava e dizia: “Cê não vê? É que eu estou, enfim, apaixonada!” Vê que absurdo, Vera! E nem é época de paixão.

Aliás, no tocante às mulheres tatianas (já houve quem as tenha compara- do com o público de grande massa), prevalece para o narrador-personagem um mistério, que em muitas situações, pelo menos para o público, não tem mistério nenhum. Em “Olhando a paisagem”, do disco Caprichoso, o narra- dor-personagem passa boa parte da canção tentando entender o que a enig- mática Odete havia aprontado. São personagens femininos sobre os quais o narrador-personagem não tem nenhum controle, dentro da fórmula O>S. Mas a situação contrária também é explorada. Nessas ocasiões, o objeto ou está aquém do esperado, gerando uma certa decepção, ou é reconhecido, apesar das aparentes diferenças. No primeiro caso, em “Acho pouco”, do disco Rumo 81, temos:

Mas não te elogio, né, Cristina Mas não desanima não Basta se enfeitar mais um pouquinho Falta um pouquinho Né, Cristina

No segundo caso, “Raro destaque”, do disco Sem destino:

Já chegou disfarçada Pra me confundir E brincando maldosa Fingiu me ferir Morri! Morri! Morri de rir De ver você não conseguir

Cabe aqui abrir um parêntese e verificar o que o próprio Tatit fala em texto jornalístico sobre a questão de ouvir e reouvir, estabelecendo bem a diferença entre ambos (talvez pudéssemos traduzi-los como “diferença” e “repetição”). 3.16 — Em 31 de dezembro de 2006, Luiz Tatit escreve um texto para O Estado de S. Paulo, no caderno “Aliás”, cujo título é “Música para reouvir”.

28 Rogério Skylab

Ali, Tatit reafirma o sentido da canção: “as canções seguem respondendo ao anseio de desaceleração do ritmo de vida do ouvinte e continuam se con- vertendo em verdadeiros leitmotiven de sua história” (2014, p. 337). Estaria a canção, nesse sentido, trabalhando em prol da identidade, já que o ouvinte buscaria não o novo em si, mas o que pode permanecer. É sob essa perspec- tiva que, bombardeado por informações a toda hora, que mais fragmentam do que unificam o sentido e a identidade, haveria por parte do ouvinte o que Tatit chama de um recurso muito humano de preservação da identidade: o desejo de reouvir canções. Naturalmente, o texto a que me refiro é de 2006, quando a internet já estava a pleno vapor e a tecnologia de gravação permitia que discos fos- sem produzidos com extrema facilidade, gerando, inclusive, uma inflação de novos artistas que certamente teriam dificuldade de se fazerem ouvir. Em outras palavras, e pensando hoje, quando essa situação se torna ainda mais intensificada, ninguém ouve. Nem artistas, que preferem fazer uma nova canção a ouvir ou executar uma antiga (é notável a crítica de João Gilberto a esse respeito), nem público, que prefere reouvir, transitar pelo já conhecido. E se esse processo é compreensível diante da guerra de informações e narrativas que a tudo fragmenta, por outro lado, gera uma passividade, con- tra a qual a Vanguarda Paulista, desde sua origem, se rebelou. E continua se rebelando; basta ver os discos que Luiz Tatit continuou produzindo. O fato é que esse texto jornalístico a que me refiro remete a uma possível contradi- ção que Walter Garcia sublinhou em relação a Itamar Assumpção: de querer cantar na televisão e não querer. E desse modo, ficar à margem da MPB, mas ainda assim dentro dela. A alegria com que Tatit recebeu Zélia Duncan com seu Totatiando só é compreensível à alegria com que Odete foi recebida de volta em “Olhando a paisagem” (independentemente do que ambas tenham aprontado). Mas em “Amor de tônica”, publicado, seis anos depois do texto do Es- tadão, pelo suplemento trimestral da revista Ciência, Tatit vai se remeter a Paulo Leminski, quando este veio a defender, numa determinada época, a reforma da língua portuguesa que previa a eliminação dos acentos nas pro- paroxítonas, gerando assim uma indeterminação da tônica. O que Leminski via com essa indeterminação (“exército” se transformando em “exercito”) era a possibilidade da surpresa, rompendo com a expectativa do público e desestabilizando suas convicções, o que viria a provocar tumultos subjetivos que só seriam aplacados com a assimilação gradativa dos conteúdos a prin- cípio inesperados.

29 A terceira pessoa em Luiz Tatit

Neste texto de Tatit fica claro que não se está submetido a uma ambição totalizante do novo, até porque a surpresa vira espera quando constantemen- te programada para criar novidades em nosso cotidiano, como foram as artes de vanguarda do início do século passado (atonização da surpresa). E talvez possamos entender esses dois textos não como contradição, mas como uma busca da justa medida, assim como viria a ocorrer em suas canções, quando constatávamos, na mesma música, numa parte a supremacia do objeto, na outra a supremacia do sujeito. O inesperado menos ambicioso, inscrito em fragmentos do espaço e circunscrito a períodos efêmeros. 3.17 — Por isso em muitas canções há uma estrutura triádica, que mais sugere um processo de síntese do que propriamente de oposição ou antítese. Mais síntese que justaposição (não há como esquecer a defesa da justaposição por Caetano Veloso em Verdade tropical contra o processo de fusão, uma espécie de samba-jazz, personificado, na época, por Elis Regina e ). O fato é que vicejam exemplos no corpo cancional de Tatit de uma estrutura triádica, ainda que se tratando de uma relação sujeito-obje- to. Logo no primeiro disco, Rumo 81, em sua primeira faixa, “Encontro”, já se reivindica uma perspectiva que não seja nem tão longe, nem tão perto do objeto. 3.17.1 — No disco Diletantismo, “Saudade moderna” indica três espécies de saudades: “do tempo que andávamos juntos”; “do tempo em que nem te conhecia e simplesmente eu desejava estar sozinho”; e uma terceira saudade, uma “saudade moderna”, “de um tempo que absolutamente eu não vivi… Ela incide sobre um tempo que não cabe na história, escapa da consciência e se projeta pra fora” (nem consciência, nem história: algo que escapasse a essas duas categorias, sugerindo uma terceira). No mesmo disco, deparamos com a canção “Mesmo porque”, dando conta de uma terceira pessoa, a per- sonagem da atriz. 3.17.2— Em “Olhando a paisagem”, do disco seguinte, Caprichoso, a ter- ceira pessoa é o autor que faz o narrador-personagem cego ao que está a sua frente, nos levando a desconfiar da veracidade dos seus ditos (uma situação muito semelhante ao que ocorre nos romances de Machado de Assis: o nar- rador não é digno de confiança). A ironia surge dessa situação entre narrador e autor — nesse sentido, Caprichoso talvez seja o mais eivado de ironia. “No decorrer da madrugada”, outra faixa do referido disco, são expostas três perspectivas referentes ao nascer do sol: dos espectadores; do narrador-per- sonagem que desmistifica o espetáculo, em nítida oposição aos adoradores do sol; e uma terceira perspectiva que descreve o objeto, isto é, o espetáculo do nascer do sol, de maneira a produzir uma singularização do objeto.

30 Rogério Skylab

Vale a pena nos remetermos aqui ao texto de Viktor Chklóvski (2013, p. 92), formalista russo, “A arte como procedimento”: Os objetos percebidos diversas vezes começam a sê-lo por um reco- nhecimento; o objeto encontra-se a nossa frente, nós o sabemos, mas não o vemos mais. É por isso que nada podemos dizer sobre ele. Na arte, a libertação do objeto do automatismo perceptivo estabelece-se por meios diferentes… O procedimento de singularização em Leon Tolstói consiste em não chamar o objeto pelo nome, mas descrevê-lo como se o visse pela primeira vez; ademais, ele se vale na descrição não dos nomes geralmente dados às suas partes, mas de outros nomes tomados das descrições corres- pondentes em outros objetos. Na canção, parece até que o narrador-personagem é formado por duas personas diferentes, as quais, juntas aos espectadores do sol, viessem a for- mar um total de três perspectivas diferentes. Vejamos a dupla perspectiva do narrador-personagem:

E de repente, É uma bola que levanta no horizonte Numa fogueira exuberante Enfim, é o sol

À perspectiva realista que se sobrepõe aos adoradores do sol, se insinua uma terceira, no tempo verbal do presente e do gerúndio, não antecedendo o acontecimento e o acompanhando à medida que transcorre. A perspectiva realista abaixa a bola, não só dos adoradores como do próprio narrador, subs- tituindo “a bola que levanta no horizonte numa fogueira exuberante” pelo sol. O referido disco finaliza com “Release”, histórico autoirônico, em que a singularidade do objeto, na forma como é descrito, revela uma duplicidade:

E foi uma mania de Noel e Lamartine Um porre de música antiga todo dia Que alegria! Que alegria!

3.17.3 — No disco seguinte, Rumo ao vivo, a estrutura tríade vai estar presente na tonalidade das vozes em “Trio de efeitos”, nos três personagens que comentam sobre o estado psicológico de “Carlão”, no trio amoroso de “Aurora — o cantochão”, e sobretudo na presença do autor que nos leva a desconfiar do que é dito pelo narrador-personagem (“Banzo”) ou por deter- minado personagem (“Carnaval do Geraldo”).

31 A terceira pessoa em Luiz Tatit

Muitas vezes o narrador-personagem se põe a reclamar diante de uma situação incontrolável, diante da qual ele não tem nenhuma inferência, ain- da que seja ele mesmo o responsável, como se subdividisse em dois. Ainda que não esteja apresentado no texto nenhuma referência a uma divisão em três, esse duplo não deixa de ser uma terceira pessoa. É o caso de “Minha cabeça” e “Felicidade”. A mesma situação pode ocorrer não em relação ao narrador-personagem, mas em relação a outro personagem, como no caso de “Terceira pessoa” do disco Ouvidos uni-vos. 3.17.4 — Continuando a discografia de Tatit, no disco Felicidade, seu primeiro trabalho solo, as duas primeiras faixas, “Eu não sou eu” e “A com- panheira”, reforçam o repertório dedicado à divisão em três: no primeiro, totalmente anti-Rimbaud, eu não sou o outro nem eu mesmo: “Se não sou eu nem sou o outro estou no meio”; na segunda, nem melancolia nem euforia:

Voltou a fria realidade Aquela coisa bem na metade Nunca a metade foi tão inteira Uma medida que se supera Metade ela era companheira Outra metade era eu que era

3.17.5 — Esse terceiro caminho, ao qual a obra de Tatit presta um tributo, em que a relação é mais importante que os termos, vai estar es- tampada com toda força na canção “O meio”, que não só dá nome ao disco, como o abre:

É bom demais estar no meio O meio é seguro pra gente cantar [...] Diria, sem muito rodeio No princípio era o meio E o meio era bom Depois é que veio o verbo Um pouco mais lerdo Que tornou tudo bem mais difícil Criou o natural, criou o artifício Criou o real, criou o fictício Criou o final, criou o início O início que agora deu nisso

32 Rogério Skylab

Na faixa seguinte, “Amor e rock”, a boa medida do amor, nada além e nada aquém, sofre um sério revés — como se o narrador-personagem se pu- sesse a desconfiar de um racionalismo subjacente à justa medida, que pouco ou quase nada tem a ver com a vida real:

Amor desse jeito Amor tão perfeito Amor assim Não tem mais Nem no estoque Então esquece o amor e manda um rock

No mesmo disco, além da regravação de “Trio de efeitos”, uma nova can- ção — “Os três sentidos” — reafirma a vocação do cancionista para a divisão em três: olhar, ouvir, tocar. 3.17.6 — No disco seguinte, Ouvidos uni-vos (uma clara homenagem a Ita- mar Assumpção dos comentários à estética do “Nego Dito” em “Rock de bre- que” é retirado o título do disco, além de “Dodói”, uma parceria inédita entre os dois), vamos nos deparar com “Tom de quem reclama”, uma espécie de ter- ceira pessoa que, segundo o narrador- personagem, coabita o mesmo corpo:

Uma voz que não controlo E que sai da minha boca Eu só falo o necessário Ela é sempre tão barroca Não adianta eu ter cuidado

É o mesmo cenário de “Controlado”: apesar de todos os esforços do nar- rador- personagem, “sempre que apareces do meu lado/ Baixa um anjo des- vairado”. Em “A perigo”, numa atmosfera camoniana, o narrador-personagem, em razão da rejeição da amante, se sente enganado com ela e consigo próprio, tornando-se caçador de si mesmo mais um cenário com três personagens. No mesmo disco, além da canção “Terceira pessoa”, que comentaremos a seguir, “Minta”, em parceria com Ricardo Breim, traz o velho dilema de Fernando Pessoa entre ficção e realidade, o que pode ser uma boa senha para pensarmos a terceira pessoa: “ouvir mentiras em palavras que são de verdade”. Na canção “Terceira pessoa”, as descrições feitas em relação a essa estranha pessoa nos interessa: ausência, imutabilidade, passividade, discrição. Diante da impossibilidade de uma relação direta, só nos remetemos a ela através do

33 A terceira pessoa em Luiz Tatit

outro: “se tenho elo com ela, o elo é você”. Essa terceira pessoa passa longe de uma síntese entre contrários; antes, nos dá a ideia de uma imanência. Talvez possamos pensar que o trabalho de Tatit esteja perpassado por essas duas pers- pectivas: síntese (“Encontro”) e imanência (“Terceira pessoa”). A própria ideia da canção como disfarce da entoação ou fixação do que é por natureza solto pode nos sugerir a entoação como imanente à canção. É interessante o texto “O momento de criação na canção popular”, publicado originalmente em agosto de 1994 nos Anais do IV Congresso Abralic: Literatura e Diferença, porque ali Tatit vai diferenciar com clareza as atividades práticas das atividades artísticas: no primeiro caso, dentro dos processos de comu- nicação do dia a dia, utilizamos a sonoridade da voz para expressar nossos conteúdos internos; já nas atividades artísticas, tendo como foco a canção e o compositor, ao contrário, usamos os conteúdos internos para expressar suas experiências sonoras (estas vêm primeiro). Ao comentar a gênese da canção “Vai passar”, de , Tatit diz (2014, p. 212):

sua gênese artística é eminentemente melódica e o surgimento do sentido da referida canção, como hoje conhecemos, vem de palavras esparsas que não eram mais que expressões em busca

de um sentido… as letras que mais admiramos foram geradas a par- tir de fragmentos incompreensíveis, nascidos de contornos musicais e de sons linguísticos sem qualquer vínculo direto com o sentido final do texto ou com o próprio título da canção. É o som que em geral produz o sentido e não o contrário.

Essa relação de constituição ou de imanência nos remete a um texto de Maurice Blanchot (2010), “O Athenaeum”, em A conversa infinita: a ausência de livro. Comentando o romantismo alemão, movimento anterior aos cursos de estética de Hegel, pensador que acabou por empreender a universalização histórica da arte, levando ao seu declínio com a dissolução do movimento, Blanchot informa sobre um saber mais agudo, saber de margem: nem no mun- do, nem fora do mundo; senhor do todo, mas com a condição de que o todo não contenha nada, seja a pura consciência sem conteúdo, a pura palavra que não pode dizer nada. Uma linguagem tautológica que só se ocupa de si mesma. Nesse aspecto, podemos imaginar uma linguagem não transitiva, que não tem por tarefa dizer as coisas, ou, se o faz, é de forma sutil, discernin- do em seu interior estranha lacuna. Talvez tenha sido esse o nosso desejo

34 Rogério Skylab

na busca, dentro do corpo cancional de Tatit, da terceira pessoa ou de um terceiro espaço: subjacente à comunicação dialogada, comunicação essa que se faz muito presente em suas canções, vislumbrar a forma monológica, a escrita plural, expressando a pluralidade virtual em si mesma, a alternância de pensamentos diferentes e opostos em si mesmos. Em tantos exemplos, pudemos perceber a ironia romântica, quando notávamos que o discurso do narrador-personagem era perpassado por um outro que fazia, daquele, motivos de riso — uma experiência de abertura que não excluía a totalida- de, mas a ultrapassava. Daí porque um certo amor ideal não tem “nem no estoque”, como nos informa “Amor e rock”. A justa medida, presente em canções como “Encontro”, às vezes é abandonada em direção a uma abertura que ultrapassa a própria totalidade. O corpo cancional de Tatit, com suas variadas máscaras indicando a toda hora relações que se excetuam da unidade como se excedem ao conjunto, nos informa sobre a instabilidade da entoação e seus fragmentos. Nesse sentido, trata-se mais do intervalo enquanto princípio rítmico da obra e de sua estrutura: o centro do fragmento está no campo que, com ele, consti- tuirá outros fragmentos. É notável que, em seu último álbum, muito carregado de metalingua- gem, a última canção esteja dividida entre palavras e sonhos: as primeiras, à medida que são lançadas como um lance de dados, efetuam a função de surpreender; e os sonhos têm a função de fazer explodir e renascer o “mundo, você e eu”, dentro do próprio sujeito, a partir do ato de poten- cialização. Dizendo de outra maneira, podemos pensar na fragmentação e na síntese, ou em diferença e repetição, muito embora caiba às primeiras a constituição das segundas. 3.17.7 — Em “Relembrando Nazareth”, faixa do disco Sem destino, lan- çado em 2010 e também repleto de metalinguagem (é curioso o trabalho de Tatit, em grande medida, se caracterizar por um excessivo uso de metalin- guagem e por um paulatino abandono da linguagem dialogal, direta e colo- quial), o texto está dividido em quatro partes, conforme consta no site do artista. Na primeira parte, refere-se à grande quantidade de temas tratados por Nazareth em sua música e à característica de suas notas inclinadas; na se- gunda, ao ajustamento das notas no compasso através do canto por parte do sujeito; na terceira, à transmutação do objeto na relação com o sujeito; e na última, à dor como labirinto onde se chora e ri, através do qual ficamos em dia com a letra e a melodia das canções, e de onde podemos sair um dia. Não deixa de ser um painel da música e do pensamento de Tatit: ajuste e labirinto; síntese e terceira pessoa; experiência e entoação; transmutação.

35 A terceira pessoa em Luiz Tatit

Sobre as hastes inclinadas, próprias da entoação, cabe aqui a observa- ção de Regina Machado (2007) sobre os microtons, que vão dar às canções de Tatit uma falsa impressão de facilidade: são notas precisas, repetidas do mesmo jeito, chegando a fixar intervalos inferiores a um semitom, ins- taurando assim um novo padrão de afinação. Daí a diferença entre canto falado e texto falado, esse último sempre saindo diferente à medida que é repetido. Nas canções de Tatit, principalmente quando integrava o Grupo Rumo, a realização vocal melódica se aproximava das oscilações das alturas na entoação falada. Se todos os vocalistas do Grupo Rumo estavam inte- grados a essa forma especial de cantar, cabe a Ná Ozzetti um papel espe- cial, não só por ter delineado sua vocalidade a partir das composições e do trabalho direto com Tatit, mas também por ter acrescentado informações, inventividade e visão sensível a essas obras — uma parceria estética que deu à cantora sua singularidade. No tocante à performance, vale registrar a expressão desdramatizada de Tatit, que não deixa de estar presente em Ná Ozzetti. Uma desdrama- tização significativa, porque as canções já apresentam situações cheias de humor, de complicações, que serão expressas pelo trabalho de linguagem. Eu diria que a performance de ambos, no tocante aos seus corpos, seus gestuais, suas expressões faciais, beiram o distanciamento da terceira pes- soa. Somos então convidados a testemunhar essa situação muito peculiar: o espaço dos afetos, da relação direta entre narrador-personagem com um outro personagem, da linguagem transitiva, da situação cheia de complica- ções, obrigando o ouvinte a se fixar ao que é contado, sem nenhuma ajuda extra; e o espaço da neutralidade, da ausência de emoções e, de preferên- cia, com pouco acompanhamento, numa perspectiva minimalista. Enfim, uma performance profundamente integrada à composição: uma série liga- da ao sujeito em sua relação com o objeto, incluindo aí tanto a potenciali- zação quanto o acontecimento; e uma outra série ligada à neutralidade da linguagem, ao lance de dados, à terceira pessoa. Dramatizar as canções de Tatit, como Zélia Duncan fez em Totatiando, não é só estar distante do universo do compositor — no que, aliás, não há mal algum; é um outro olhar sobre a obra. O que me parece mais grave nesse processo de dramatização é a reiteração, tirando do público uma perspectiva ativa, de coautoria, o que, no fundo, é um procedimento muito próprio do canto popular midiatizado. A metalinguagem estará muito presente não só em todo trabalho de Tatit, mas no disco Sem destino especialmente. Em “Relembrando Nazareth”, canção já analisada, ao se referir ao grande compositor carioca, em verdade,

36 Rogério Skylab

acaba dando à canção um caráter metalinguístico. E não é apenas reflexão sobre a linguagem de seu trabalho. Também é sobre a própria geração a que esteve ligado Tatit, o que já indica elementos comuns entre seus integrantes. É o caso de “Por que nós?”, que, além de uma ambiguidade semântica próxi- ma da terceira pessoa, refere-se também à Vanguarda Paulista e à resistência que viriam sofrer pela indústria cultural:

Davam-nos rótulos Todos em vão […] Fomos serenos num mundo veloz Nunca entendemos então por que nós Só mais ou menos

Em “De favor”, a ideia de uma tolerância, mais que aceitação, por parte dessa mesma indústria:

Fui viver de favor Nesse seu coração Me alojei num lugar Que é talvez um porão Não tem luz, não tem cor Mas tem ar do pulmão

Em “Dia sim, dia não”, um caráter dualista a que esteve ligada a Vanguar- da Paulista, refletida na sua própria estética:

Dividindo a aflição Com a razão […] Uma porção Melancolia Mas que virou satisfação Mas que virou melancolia

Em “A volta do sabiá”, num diálogo com o “Sabiá” de Chico e Tom, po- rém menos melancólico e mais coloquial e metalinguístico:

Vem cá, sabiá Não dá mais pra adiar É a gente que te aconselha

37 A terceira pessoa em Luiz Tatit

A regressar O que que te deu na telha De não voltar?

De qualquer maneira, mais radical do que se dobrar sobre si mesmo enquanto geração, é a terceira pessoa que se expressa na faixa “Sem destino”, que dá nome ao disco:

Tudo que era o meu destino Na verdade nunca me aconteceu […] Não confio na fortuna jamais Puro por acaso e nada mais

A autonomia da linguagem, perdendo seu caráter representativo, dobra sobre si mesma, restando apenas falar de si. 3.17.8 — Quatro anos depois surge o improvável De nada mais a algo além, como a nos alertar, contra todas as evidências, que havia sim algo em comum naquela geração de artistas, batizada pela imprensa como “Vanguar- da Paulista”. É como se fosse necessário emitir um lance paralelo aos 25 anos da Tropicália. E menos natural do que ela, já que havia um histórico na parceria entre Caetano e Gil, não só na articulação do movimento, como na amizade e na feitura de algumas canções em parceria. Entre Tatit e Arrigo não havia esse histórico. De nada mais a algo além só poderia ser a afirmação da diferença. E isso salta aos olhos quando atentamos para as 9 parcerias inéditas do disco (lembrando que na Tropicália 2, de 12 faixas, apenas 3 canções são assinadas em parceria por Caetano e Gil). Já em De nada mais a algo além, de um total de 14 faixas, Tatit e Arrigo assinam 9 em parceria. Destas, 3 terão arranjo de Arrigo: “Babel”, “Desamor” e “Dora Avante”. Outras 3 faixas dessa parceria terão arranjos de Mário Manga (Premê): “Ano bom”, “Luci Leão” e “Dora Avante”, essa última num arranjo em parceria com Arrigo. Fábio Tagliaferri, originário do Rumo, fará o arranjo de 3 outras faixas: “Tempo meu”, “Baiar um baião” e “De cor”. E Gil Reyes, que trabalhou com Arrigo, ficou com o arranjo de “Frente a frente”. Nas faixas que não tiveram a parceria de ambos, ficou a Jonas Tatit (responsável pelos 3 últimos trabalhos solo de Luiz Tatit) o arranjo de “Doroti” e “Verde louro”, e ao próprio Arrigo as faixas “Valsa do largo” e “Dedo de Deus”. Sem esquecer o arranjo de Hermelino Neder para “Impassível”, sua canção em parceria com Luiz Tatit. O disco tem uma representação muito mais

38 Rogério Skylab

extensa que Tropicália 2. Naturalmente, algumas ausências fazem-se notar e eu destacaria aqui: Paulo Tatit, Ná Ozzetti e Hélio Ziskind. Mas a maior de todas é mesmo a de Itamar Assumpção. Uma presença notável, compondo praticamente um trio com Arrigo e Tatit, é a de Lívia Nestrovski, jovem cantora que vinha recentemente de um trabalho com Arrigo e dona de uma técnica vocal impressionante. Natural- mente, não se trata da mesma escola entoativa da qual faz parte Ná Ozzetti, mas introduz um elemento novo à Vanguarda Paulista. Outro aspecto marcante nessas nove parcerias de Arrigo e Tatit é o jogo de linguagem, mais presente neste disco que nos demais. Apesar de Tatit re- conhecer a importância dos fonemas numa canção, chamando atenção para o jogo do significante, não é difícil observar que nas canções de Itamar, até pela visível influência de Paulo Leminski, esse aspecto é muito mais explo- rado. Ao jogo de linguagem, muito marcante nas parcerias de Arrigo e Tatit, vamos creditar a importância cada vez maior da terceira pessoa. Se o disco abre com o espírito de Arrigo, não só no arranjo como na letra que Tatit soube muito bem expressar (veja o uso do vocábulo “caralho”, im- provável num texto de Tatit), na faixa seguinte, “Ano bom”, nos deparamos com outra lógica. Pois o disco vai estar impregnado dessas duas perspectivas — e tê-las presentes, em vez de contradizê-las, afirma o legado da Vanguarda Paulista: o objeto se opondo ao sujeito numa relação de conflito ou de pre- ponderância (o que nos leva a pensar o trabalho de Arrigo voltado mais para o exterior, isto é, para o mundo dos objetos); e uma relação de equilíbrio entre objeto e sujeito, que se dará pela justa medida ou pela terceira pessoa. Portanto, se em “Babel” “Ser humano deu chabu/foi crescendo errado”, a própria narração expõe uma oposição: “Ser humano é cerebral/cerebral, o caralho!”. Já a outra lógica é da intermediação, que se reflete não só no texto como na linha melódica: ampliação de frequência e duração; vogais pro- longadas dentro de uma tensividade passional (a reinterpretação de “Pierrô apaixonado”, em Rumo aos antigos, já indica essa tendência em Tatit). Dentro dessa perspectiva, expressa por Tatit, de equilíbrio entre sujeito e objeto, va- mos nos defrontar muitas vezes dentro de uma mesma canção com relações que se invertem: numa parte da canção, o objeto é maior do que o sujeito; na outra, o sujeito é maior que o objeto, restabelecendo assim o equilíbrio. Na canção “Tempo meu”, temos no final da primeira parte:

Esqueci da dor Dos desejos Do tempo pouco sobrou

39 A terceira pessoa em Luiz Tatit

No final da segunda parte, inverte-se:

Revivi a dor E os desejos E o tempo se desdobrou

Em “Verde louro”, canção de Luiz Tatit sem parceria, as relações da mú- sica anterior são invertidas: na primeira parte o sujeito é maior que o objeto, e na segunda o objeto é maior que o sujeito. “Tudo que eu canto ele decora/ Tem as minhas letras na memória” (primeira parte). Já na segunda parte:

Perde a cor o seu bico dourado Finge estar à beira de um desmaio Diz que é só um simples papagaio Sei que isso é chantagem mas eu caio Falo o que ele gosta Conto a sua história

A outra relação de equilíbrio se dá na soma entre sujeito e objeto, ex- pressa numa relação de “estar”, manifestada numa intermediação entre o “nada mais e algo além” (“Ano bom”) ou na expressão “baiar o baião”, que os estoicos vão chamar de acontecimento: “Chega de ser! Deixa estar!”. Outra forma de manter o equilíbrio entre sujeito e objeto, presente no disco, é através de um narrador distante que os define, descrevendo a dife- rença entre eles (em “De cor”, na primeira parte temos: “Coração sabe bater de cor”; e na segunda, “Cabeça não diz não/Mas vai pensar e demora”). O ponto em comum entre Tatit e Arrigo é a relação entre sujeito e ob- jeto; a diferença é que o primeiro busca o equilíbrio dessa relação, enquanto o segundo investe num desequilíbrio em favor do objeto. Não é à toa o gran finale em Tatit — inclusive a canção “Essa é pra acabar” investe no fim como um arremate, uma solução, que em Arrigo é difícil de acontecer: Clara croco- dilo investe no sem fim. 3.17.9 — Mas em Palavras e sonhos, seu último disco solo, lançado em 2016, temos uma grande-angular que se afasta, com o objetivo de abranger todo o plano: nos seus primeiros discos estamos fechados sobre o narrador- -personagem, ainda que possamos detectar sutis e irônicos deslocamentos do autor, colocando em dúvida a narração. Esse processo de deslocamento que dá conta da terceira pessoa tende a se intensificar no decorrer de sua discografia, até chegar ao ápice no disco Palavras e sonhos. Aqui nos damos

40 Rogério Skylab

conta, em razão da grande-angular, de três perspectivas do sujeito: em rela- ção próxima com o objeto; numa relação distante com o objeto, sem grande envolvimento do narrador; e sem nenhuma relação com o objeto. A importância da grande-angular é que ela integra as diferentes perspec- tivas ao invés de excluí-las. Logo na primeira faixa, “Mais útil”, ainda que o narrador expresse a sua preferência, estará colocado, lado a lado, o processo de suspirar e de inspirar, via método dedutivo. De qualquer maneira, há a pre- dominância do sujeito que descreve, amparado por uma determinada distância em relação não só ao objeto como em relação a si mesmo: estamos no campo da terceira pessoa. Essa distância reincide em outras faixas, cujos títulos serão designados pela partícula de adição. Em “Das flores e das dores” a grande- an- gular abrange a relação de proximidade e de oposição entre sujeito e objeto. Em “Planeta e borboleta”, assim como em “Palavras e sonhos”, a mesma situação: uma relação de proximidade, quando o sujeito vem sofrer a interfe- rência do objeto; e uma não relação ou um processo de subjetivação. No caso da última faixa, que fecha e dá nome ao disco, temos um caráter duplo, obtido tanto pela grande-angular quanto pelo microscópio. Porque assim como exis- tem “palavras magoadas de tanta paixão”, também existem “palavras idiotas e alguns palavrões”; “uma porção de palavras todas em dúvidas…”, “não sabem se vão ou se não”, e outra porção derramada, “palavras que vão” — duplicidade das próprias palavras a denunciar o deslocamento, a terceira pessoa, em seu próprio interior. A mesma duplicidade que vai se suceder nos sonhos: “Sonho com coisas que acho demais e com outras com as quais sonhar, não sonhar, tanto faz” — um caráter duplo que faz “existir, explodir e renascer o mundo, você e eu”, ao con- trário do caráter duplo das palavras, que “assusta, seduz e surpreende”. Seja pelo método dedutivo (“Mais útil”) ou indutivo (“Tristeza do Zé”), vamos nos deparar com sucessivos deslocamentos, através dos quais não só poderemos captar a intensidade do momento vivido sem perder as balizas da identidade (justa medida), como poderemos, através da terceira pessoa, compreender a essência do deslocamento.

41 A terceira pessoa em Luiz Tatit

Referências bibliográficas

ALBACH, Tatjane Garcia de Meira. Em busca do rumo da canção brasileira: a prática e a teoria de Luiz Tatit de 1974 a 2005. 2012. 174 p. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) — Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. BLANCHOT, Maurice. O Athenaeum. In: ______. A conversa infinita: a ausência de livro (o neutro o fragmentário). Tradução de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2010. v. 3 p. 101-111. BUENO, André. Passáro de fogo no terceiro mundo: o poeta Torquato Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. CAVAZOTTI, André. O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB: as canções do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé. Per musi: Revista Aca- dêmica de Música, Belo Horizonte, v. 1, p. 5-15, 2000. CHAGAS, Luiz; TARANTINO, Mônica. Pretobrás: por que eu não pensei nisso antes? São Paulo: Ediouro, 2006. v. 1. CONTER, Marcelo Bergamin. A máquina abstrata Lo-fi. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 36., 2015, São Paulo. Anais… São Paulo: Intercom, 2015. p. 1-15. Trabalho apresentado no GP Comunicação, Música e Entretenimento do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação. Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2018. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977. FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria, alegria. 4. ed. Cotia: Ateliê Edi- torial, 2007. FORTUNA, Felipe. Esta poesia e mais outra. Rio de Janeiro: Topbooks, 2010. GARCIA, Walter. “Clara Crocodilo” e “Nego Dito”: dois perigosos margi- nais? Antíteses, Londrina, v. 8, n. 15, p. 10-36, jul./dez. 2015. LOPES, Paulo Eduardo. A desinvenção do som: leituras dialógicas do Tropica- lismo. Campinas: Pontes, 1999. MACHADO, Regina. A voz na canção popular brasileira: um estudo sobre a Van- guarda Paulista. 2007. 120 p. Dissertação (Mestrado em Música) — Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.

42 Rogério Skylab

MAMMI, Lorenzo. João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 34, p. 1-8, nov. 1992. MELLO, Luiza Larangeira da Silva. Depois da queda: a representação da cul- tura nacional norte-americana na obra tardia de Henry James (1904-1907). 2010. 220 p. Tese (Doutorado em História) — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, jul. 2010. PIRES, André Monteiro Guimarães Dias. A ruptura do escorpião: ensaio sobre Torquato Neto e o mito da marginalidade. 1999. 111 p. Dissertação (Mestrado em Letras) — Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. TATIT, Luiz. Da tensividade musical à tensividade entoativa. Revista da Anpoll, São Paulo, n. 6-7, p. 149-178, 1999. ______. O momento de criação na canção popular. In: CONGRESSO ABRALIC: LITERATURA E DIFERENÇA, 4., 1994, São Paulo. Anais… São Paulo: Abralic, ago. 1994. p. 551-553. ______. Todos entoam: ensaios, conversas e lembranças. 2. ed., revista e ampliada. Cotia: Ateliê Editorial, 2014. CHKLÓVSKI, Victor. A arte como procedimento. In: TODOROV, Tzvetan. Teoria da literatura: textos dos formalistas russos. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 1. ed. São Paulo: Unesp, 2013. p. 83-108.

43 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

Luís Rubira1

Em sua essência, o que são os Campos Neutrais?

Véspera do inverno. Do Centro de Música da Fundação Nacional das Artes (Funarte) chega um convite para que eu escreva uma biografia sobre Vitor Ramil. Penso em como resumir o ensaio Vitor Ramil: nascer leva tempo, o livro restaurado à moda dos antiquários que foi publicado em 2015 e cuja segunda edição estava em andamento em 2017. Penso em todos os textos de estudiosos do artista a partir de 2005, e em particular no capítulo “Casa, milonga, livro, canção, tempo, Satolep” (a pesquisa de Juarez Fonseca “com acréscimos e remixagens de Vitor Ramil”), que ocupa cinquenta páginas do Songbook lançado em 2013. Penso naquela carta de apresentação sobre a mú- sica de Vitor Ramil que sempre sonhei em escrever para o diretor do progra- ma Musique du Monde do Théâtre de la Ville em Paris. O inverno é um período de pouca iluminação, de dormência. Em al- gumas semanas recebo da Funarte outra calorosa chamada para a edição da biografia. Lembro então a frase que escrevi: “a arte de Vitor Ramil é como a linha do horizonte: ela sempre se desloca quando tentamos alcançá-la”. A temperatura cai. Parece-me impossível resumir em poucas páginas a vida e a obra daquele que é considerado “um dos dez maiores artistas que o Rio Grande do Sul já produziu”, segundo a percepção aguda de Luís Augusto Fischer, estudioso da canção brasileira. Afinal, o que haveria para dizer sobre o músico depois de tantas entrevistas e artigos que surgiram nos jornais e na internet após o disco Satolep Sambatown (2007)? Lembro em particular de dois documentários: daquele que acompanha Vitor Ramil em Buenos Aires

1 Luís Rubira nasceu em , em 1970. Realizou seu doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2009) e estágio de pós-doutorado na Université de Reims Champagne-Ardenne, na França (2014). É professor associado da Universidade Federal de Pelotas, onde desenvolve pesquisas sobre Nietzsche, ética e cultura. É autor de Vitor Ramil: nascer leva tempo (Porto Alegre: Pubblicato Editora, 2015; 2017, 2a edição). Dentre seus livros destacam-se também Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores (São Paulo: Discurso/Barcarolla, 2010), Sepé Tiaraju e a Guerra Guaranítica (São Paulo: Instituto Callis, 2012). É também organizador dos três volumes do Almanaque do Bicentenário de Pelotas (Santa Maria: Pró-Cultura- RS/Pallotti, 2012-2014) e coorganizador de João Simões Lopes Neto. Teatro [Século XIX] (Porto Alegre: Zouk, 2017).

44 Luís Rubira

durante o processo de gravação do disco délibáb (2010), e de Na linha fria do horizonte (2011), no qual o diretor Luciano Coelho faz um percurso temático sobre a “estética do frio” com a participação de músicos do Sul do Brasil, do Uruguai e da Argentina. Na dúvida sobre o que fazer, telefono para Vitor Ramil. Prestes a lançar seu 11º disco, Campos Neutrais, ele está em sua casa, dando novo acabamento aos antigos móveis feitos por seu avô. Conto-lhe da biografia que a Fundação vinculada ao Ministério da Cultura tem interesse em publicar e sobre minha dificuldade em escrever algo sintético. Dias depois, sou recebido genero- samente em sua casa. Enquanto tira o pó dos livros de sua biblioteca, Vitor fala-me sobre o novo disco e sugere-me usar a intuição. Lembro, mais tarde, da máxima de Vauvenargues: “Os grandes pensamentos vêm do coração”. A primavera faz as coisas brotarem, tudo está em ebulição. Em breve, um fenômeno se repete: o Theatro São Pedro em Porto Alegre fica lotado por três noites consecutivas durante as apresentações do músico que há mais de trinta anos sobe no palco e mantém a plateia em silêncio, sob a hipnose de suas canções. Enquanto aguardo o artista entrar em cena, leio, no verso do programa que recebi, um texto que sintetiza o novo álbum:

O primeiro som que se escuta em Campos Neutrais é o de um berim- bau tocado com arco. Logo somam-se a este mais dois berimbaus, tocados à maneira tradicional. Um bombo leguero soa alguns com- passos adiante. A combinação de um instrumento emblemático da Bahia com outro da Argentina, no entanto, não resulta em clichê de fusão cultural, mas numa síntese em essência. Se ao ostinato hipnó- tico dos berimbaus o leguero abre janelas para uma zamba argenti- na, os metais, escritos a partir da percussão e do violão, adicionam a essa sobreposição de paisagens populares os entalhes construti- vos da música contemporânea. Então, de repente tudo é popular e tudo é contemporâneo. A percussão, com outros tambores e efeitos, ainda vai além, sempre muito além, abrindo-se a outras culturas e transcendendo-as, sempre de modo que possamos acompanhá-la enquanto ela nos acompanha. Sob tudo, os violões são uma planície cujas nuances harmônicas e rítmicas alimentam a elaboração de todo o resto (Ramil, 2017).

Durante a apresentação fico impressionado com a força dos metais. Em casa passo a ouvir detidamente cada uma das quinze faixas do novo disco, analisar o conjunto de suas letras e fotografias. Não sei bem por

45 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

que, mas volto a escutar Richard Wagner e Los Hermanos. Faço muitas anotações sobre o álbum e a respeito de Vitor Ramil, mas sinto-me nova- mente paralisado. Decido então reunir partes de textos que já escrevera, artigos publica- dos em jornais locais ou lidos diante do público. Faço um esboço do livro e o envio para Marcos Lacerda, que desde o início fizera questão de uma abordagem sobre Vitor Ramil no contexto do Projeto Pesquisa Musical da Funarte. O verão abrasador chega ao Sul, o livro vai para dentro do frescor de uma gaveta. Numa manhã de outono, repentinamente vem a mim um raio no céu cinza da abstração:

Em sua essência, o que são os Campos Neutrais? Um território de pacificação entre condições extremas. Quando condições extremas, sejam de caráter político ou existencial, ameaçam um território fora ou dentro de nós, é necessário criar um espaço de pacificação onde tudo, todas as contradições, todas as ameaças e esperanças, possam conviver sem serem destruídas pelas extremidades.

Quais são as extremidades que são ameaçadoras? Aquelas que exi- gem de nós uma decisão num determinado momento e num tempo contingente que não é nem o nosso momento nem o nosso tempo determinado. Afinal, como tomar uma decisão que envolve um pro- cesso de identidade, se esta identidade, que ainda não processou os opostos, nem mesmo quer deles se separar, porque pertence a am- bos, é ambos, ainda não se tem a si mesma?

Entre a impossibilidade de conseguir escrever um texto sintético para cada um dos sete primeiros discos de Vitor Ramil e o desejo de valer-me de um tipo de abordagem concisa que eu passara a utilizar a partir de Satolep Sambatown, percebi que no esboço que eu enviara para a Funarte fazia sentido que estivessem reunidos, num território de neutralidade, os diversos modos com os quais tenho abordado o artista da estética do frio. Dilatava-se assim para mim o campo dos possíveis, confirmando os limites do presente ensaio. Se dentro dos limites deste texto introdutório sobre Vitor Ramil o leitor conseguir ampliar sua percepção sobre um dos artistas brasileiros cujas can- ções estão entre as mais belas do país, então talvez possamos juntos começar a compreender aquilo que o próprio músico pontuou na última frase do release de apresentação do disco Campos Neutrais, em 2017 (2017a, p. 15):

46 Luís Rubira

No ensaio A estética do frio (2004), escrevi que no Rio Grande do Sul não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história. Treze anos depois, Campos Neutrais é, artística, cultural, es- piritual e geograficamente, minha melhor ilustração dessa ideia.

A estética do frio, uma introdução

Eu me chamo Vitor Ramil. Sou brasileiro, compositor, cantor e es- critor. Venho do estado do Rio Grande do Sul, capital Porto Alegre, extremo sul do Brasil, fronteira com o Uruguai e a Argentina, região de clima temperado desse imenso país mundialmente conhecido como tropical.

Apresentando seu nome, nacionalidade e profissão, delimitando o territó- rio que habita e a singularidade climática nele presente, esse é o modo com que Vitor Ramil inicia a conferência A estética do frio, proferida em Genebra (Suíça) no ano de 2003. Quase na metade do texto, que adquiriu a forma de ensaio e foi publicado em 2004, ele observa: “Não se poderia encontrar em outra região do país, como ainda hoje não se pode, um povo mais ocupado em ques- tionar a própria identidade que o rio-grandense” (p. 11). O livro, que traz o texto em francês e português, termina com um parágrafo em cujo final o autor escreve: “Somos a confluência de três culturas, encontro de frialdade e tropi- calidade. Qual é a base da nossa criação e da nossa identidade se não essa? Não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história” (p. 28). No ensaio A estética do frio: Conferência de Genebra, que representa um aprofundamento das ideias contidas no texto publicado em 1992 e um resga- te das principais reflexões acerca do tema em circulação nas entrevistas que o artista concedeu ao longo dos anos, além de apresentar a si mesmo e a seu país de origem, Vitor Ramil observa que as ideias referentes à estética que vem elaborando não são normativas, mas fruto de sua intuição e experiência. Em seguida, narra o momento em que teve o insight que o levou a conceber a “estética do frio”; pontua aspectos referentes ao processo revolucionário Farroupilha; explica o que entende por gaúcho (inclusive etimologicamente) e gauchismo (o gaúcho caricatural); reflete sobre a questão da identidade da cultura sul-rio-grandense e como uma indefinição nessa identidade acaba por espelhar uma indefinição musical presente no Rio Grande do Sul, levan- do músicos urbanos a encontrarem dificuldade para se relacionarem com o imaginário regional. Faz ainda observações sobre as diferenças entre o Brasil

47 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

“tropical” e sua região subtropical no que diz respeito às interligações de clima e cultura, bem como sobre a proximidade geográfica e cultural do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a Argentina; convoca posições de Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, Bioy Casares e Italo Calvino em seus argumentos; tematiza as disputas de fronteira no passado e acerca dos povos presentes em seu estado; faz observações sobre o pampa, a melancolia, a milonga (ao falar desse gênero evoca compositores como Atahualpa Yupanqui, Alfredo Zitar- rosa), e explora o vínculo entre a “estética do frio” e a milonga. Essas reflexões, por sua vez, conduzem ao registro de como, sendo ur- bano, Vitor Ramil conseguiu, a partir de sua concepção estética, incorporar o imaginário regional — sendo a obra de 1997 (Ramilonga: a estética do frio) a primeira materialização de suas ideias. Do mesmo modo, ele explica como uma melhor definição em sua identidade cultural acaba por permitir um relacionamento fluido com a cultura e musicalidade presentes no país “tro- pical”, passando a incorporar, de maneira natural, a sonoridade brasileira — motivo pelo qual sua música talvez possa representar uma síntese entre a leveza da bossa nova e a melancolia presente na milonga. A questão da identidade atravessa o conjunto da obra de Vitor Ramil, de seu primeiro disco (Estrela, Estrela, 1981) ao mais recente (Campos Neutrais, 2017), passando pelos ensaios acerca da Estética do frio (incluindo a versão publicada na Islândia, em 2015), e por suas obras literárias Pequod (1995) e Satolep (2008). Na verdade, o problema da identidade impõe-se desde cedo na vida do artista:

Quando eu era pequeno, alinhava o tapete da sala pelas tábuas cor- ridas do chão e ficava longo tempo a observá-lo. Muita gente vivia comigo. Ninguém notava o que eu fazia […]. Um filho caçula pode lutar, sem saber, por suas marcas na casa, por sua identidade. (Ramil apud Assumção, 2002)

Tal busca no menino parece ter se infiltrado não somente no adulto — “Eu me identifico bastante com esta coisa de busca de uma personalidade própria” (Ramil, 1999) —, mas no artista Vitor Ramil (apud Assunção, 2002): “Como artista posso simplesmente ainda ser aquele menino alinhan- do o tapete”.

A gente muda permanentemente. Somos feitos de instantes com- pridos. Não sei se estou me dirigindo a quem eu era, se estou me tornando quem eu era ou apenas reagindo a isso.

48 Luís Rubira

Sou muito apegado aos hábitos. Tanto que voltei para a casa em Pelo- tas, onde vivi minha infância. Recuperei a casa antiga em um traba- lho de reconstrução de mim mesmo. Vivo num processo investigati- vo para retomar minha origem.

Casa antiga exige dedicação. Raspar as madeiras e a história com cui- dado. Existe uma mania e cultura de amar as coisas novas e destruir as velhas. Eu amo as velhas. Se tu estás em um lugar sólido, com o passado, te sentes parte de um processo e andando para frente. (Ra- mil apud Carpinejar, 2005)

Uma indefinição de identidade em uma cultura pode, portanto, agir sobre os indivíduos desta cultura? Pode interferir no processo artístico? Clima, solo, hábitos seriam elementos de unificação cultural? Embora Vi- tor Ramil tenha sublinhado em diversas entrevistas que sua reflexão sobre a “estética do frio” não tem a pretensão de representar a verdade sobre a identidade da cultura sul-rio-grandense e tampouco almeja ser uma teo- ria que esgote o fazer artístico de uma região, o fato é que sua percepção como artista e sua obra acabaram por abrir a discussão de que o Rio Gran- de do Sul é um híbrido de brasilidade e de platinidade (por sua ligação cultural com o Uruguai e a Argentina). O efeito de tal pensamento estético pode ser visualizado, por exemplo, em linguagem cinematográfica, através daquilo que disse o cineasta gaúcho Jorge Furtado, no ano de 2004, no Rio de Janeiro. Quando, no evento O Brasil dos Gaúchos, lhe perguntaram o que era, afinal, esse tal de Rio Grande do Sul, ele respondeu:

Se você posicionar a câmera no Rio Grande do Sul, de costas para o mar, verá, à esquerda, o Prata. E, à direita, o Brasil. Buenos Aires e Rio de Janeiro a uma distância parecida (Fonseca, 2004).

A noção de que o Rio Grande do Sul está “no centro de uma outra histó- ria”, revelada na “estética do frio”, pode também ter sua força de penetração medida quando são encontrados depoimentos como o da argentina María Belén Luaces (2000):

Conheci a existência de um sul do Brasil muito diferente da ima- gem que tinha deste país graças à música […]. Foi graças a Vitor Ramil […] que me acercou, definitivamente, do sentir desse sul do

49 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

Brasil, muito menos mediatizado internacionalmente que o carioca. Ramil alcunhou uma expressão muito singular e afortunada, à qual podemos agarrar para conhecer a música deste sul do qual também nós, os rio-pratenses, formamos parte. “Estética do frio” é a contra- partida para a estética do calor, a qual derrama a noção de Brasil que muitos trazem dentro de si. O sul é diferente. O sul está longe deste calor, climatológica e afetivamente; está mais próximo do pampa, do índio, da milonga e do tango. […] A estética que prima, ou que dá origem ao trabalho dos artistas do Rio Grande do Sul, é a da me- lancolia, do recolhimento, da reflexão, da leveza e, agora também, da sofisticação. O folclore do sul do Brasil, do bombo e do acordeão (lhe chamam gaita), deu um passo ao encontro do que se produz a partir do rock, da canção melódica ou do pop, [em direção] a essas características próprias da cultura que se formou na base do entre- cruzamento das fronteiras entre Brasil, Uruguai e Argentina.

A busca pela identidade, aprofundada na concepção da estética do frio, encontrou recepção numa região do Brasil meridional cuja topografia é constituída pela tropicalidade e pela frialdade. Esta recepção pode ser medi- da há alguns anos por aquilo que disse o músico e compositor uruguaio Jorge Drexler (2005) sobre o significado da obra de Vitor Ramil: “O considero o compositor mais original da minha geração. É um dos poucos artistas de minha região […] que tem uma estética definida”.

De Estrela, estrela a Tambong, um artista em deslocamento

Cada um dos discos de Vitor Ramil tem sua própria singularidade, sua particularidade, sendo qualquer um deles uma obra a ser fruída por si mesma, por excelência. Aqueles que acompanharam sua trajetória artís- tica sabem que seu primeiro álbum (Estrela, estrela, 1981) estava tão em consonância com a música “brasileira” que Vitor chegou a ser considerado no eixo Rio-São Paulo como o “ da nova geração”. Re- conhecido já aos 19 anos em nível nacional como um artista de talento, o que explica que ele não tenha continuado a assumir esta “identidade” como músico “brasileiro”? A compreensão disso não é simples, mas em uma entrevista publicada no jornal argentino Página 12 Vitor Ramil (2015) diz que há pouco tempo encontrara algumas anotações que fizera antes de começar a gravar o seu segundo disco (A paixão de V segundo ele próprio,

50 Luís Rubira

1984), anotações sobre uma “estética implosivista” que consistia em reagir aos próprios trabalhos, numa “determinação de não facilitar, não acomo- dar-se aos caminhos que já foram definidos pelos outros”, pois ele queria “encontrar uma linguagem particular” para suas criações, e isto consistia em “reagir a tudo”, inclusive a si próprio, às concepções que adotava. Ora, isto ajuda a compreender porque, após o lançamento de Estrela, estrela, o jovem Vitor Ramil teve necessidade de ingressar numa espécie de “des- construção” de si próprio como indivíduo e artista para tentar chegar até esta linguagem original que ele buscava. Esta “desconstrução” envolvia um processo de questionamento sobre a própria “identidade”, bem como um percurso interior de “autossuperação”, o qual, por sua vez, irá lentamente materializando-se em suas criações (discos, livros, ensaios). A “estética implosivista”, reação que surgia por uma necessidade interna de resolver um dilema que se impunha ao jovem Vitor Ramil como indivíduo e artista e que, no fundo, era um dilema que estava no núcleo do “complexo cultural rio-grandense” (expressão que o crítico literário Guilhermino César já utilizava no Rio Grande do Sul na década de 1950), resultará alguns anos depois no álbum seminal A paixão de V segundo ele próprio. O crítico musical Juarez Fonseca, um dos primeiros a valorizar o “fenômeno” que então co- meçava a ganhar forma em Vitor Ramil, disse em 1984 a propósito do disco:

Raríssimos discos quebraram o panorama normal, quase burocrático e sem surpresas da música popular brasileira este ano. Raríssimos, no máximo meia dúzia. E entre eles, seguramente, está A paixão de V segundo ele próprio, o segundo LP de Vitor Ramil, saindo quatro anos depois do primeiro. É um disco cheio de música, de palavras, de chaves, símbolos, signos, que reafirma Vitor como um dos mais empolgantes, surpreendentes, criativos e férteis novos músicos bro- tados no Rio Grande do Sul.

Da primeira à última faixa, A paixão deV nos permite uma viagem que começa e termina em Satolep (Pelotas), depois de passar por muitos caminhos. Caminhos: Jorge Luis Borges, a história gaúcha, o con- cretismo, a milonga, o experimentalismo, o lírico, Arnaut Daniel, o gaiteiro cego, campo e cidade, passado e presente, entre outros […].

Vitor Ramil conseguiu realizar um projeto, difícil em muitos sen- tidos, mas felizmente o resultado é brilhante, em todos os sentidos também. Porque seu disco, apoiado em emoções e razões passadas e

51 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

presentes, tem a novidade de alguma coisa que tenha nascido hoje de manhã. Mas só ouvindo mesmo, paciente e atentamente, na sequên- cia, você vai entender bem o que estou dizendo.

É um trabalho que gratifica o ouvinte que busca a surpresa, que ama também a palavra — Vitor é um belo poeta e seu disco, repito, uma das obras mais habitadas de novidade que pintaram no Brasil nos últimos anos.

Obra-matriz, em cujas letras havia expressões como “implodam os sig- nos”, “Eu liberto nas palavras” e “o autoconhecimento é isto tudo aqui”, suas diversas vertentes e influências ganhariam desenvolvimento nos discos pos- teriores, tal como sintetizou o músico Arthur de Faria alguns anos depois:

Ali estava a semente de tudo o que Vitor faria a partir de então […]: milonga a partir de texto de Jorge Luis Borges, pop-song, mini mú- sicas conceituais, chacareiras com guitarras roqueiras, experimentos quase concretistas nas letras, letras com espantosa coloquialidade, letras que não queriam dizer nada. Por trás disto, um oceano nada pacífico de referências muitas vezes até conflitantes (Faria, 2001).

Embora a canção “Ramilonga” já estivesse pronta antes de Vitor Ramil ru- mar para a capital do Rio de Janeiro (Teixeira, 2002), surge em 1987 um disco que se distancia da forma da milonga, mas que, conceitualmente, volta-se para o sul: Tango. Obra que inicia com “Sapatos em Copacabana”, o jovem músico ainda pouco conhecido no centro do país continuará a chamar a atenção no Rio Grande do Sul por meio de outras duas canções: “Joquim” e “Loucos de cara”. “Joquim” é uma recriação de Vitor Ramil a partir da canção “Joey”, de Bob Dylan. Mas o que a tornou rapidamente assimilável entre aqueles que conhe- ceram a letra da canção na década de 1980 é que era a música de um artista sulino que falava aos seus conterrâneos por meio de signos conhecidos por eles (Vitor, por exemplo, já no começo da canção abre na mente do ouvinte a existência de uma “Satolep” que para muitos será a própria cidade de Pelotas, de uma Pelotas profunda: “Satolep/ Noite/ no meio de uma guerra civil”). Ele então não somente elege um músico singular norte-americano, mas adapta a letra da canção inglesa para falar de alguém vinculado à sua cidade e ao seu estado natal, que “sobrevoa o Laranjal”, que é levado preso “para a capital”. Muitos então se reconheceram na canção “Joquim”, não apenas por ela tratar

52 Luís Rubira

de um sujeito incompreendido e injustiçado, mas por este sujeito ser alguém incompreendido e injustiçado no “fim do fundo da América do Sul”. Já “Loucos de cara” expressava a crise de identidade de toda uma geração no Rio Grande do Sul, em particular em Porto Alegre, tão bem explorada por Juremir Machado em seu livro A miséria do cotidiano (1991). Entre o surgimento de Tango (1987) e a tiragem limitada do disco À beça (1995), Vitor Ramil deslocou-se por outros caminhos. Aperfeiçoou o seu do- mínio no palco por meio do personagem “Barão de Satolep”, realizando apre- sentações na capital de seu estado com grande afluência de público. Morando no Rio de Janeiro, teve o insight sobre a “Estética do frio”, cuja primeira versão foi publicada em 1992 na coleção Nós, os Gaúchos (organizada por Luís Augusto Fischer), concepção que mais tarde permitiria a criação de Ramilonga (1997). Percorrendo encruzilhadas, o artista também fazia experimentos com a canção, em música e letra. Dentre seus escritos deste período, encontra-se, por exemplo, a “Letra para ‘Round Midnight’, de Thelonious Monk”, intitula- da “Meia noite, meu amor”, publicada na revista Imã (Ramil, 1993a, p. 40-41):

A cidade se desfez Sombras frias de ninguém Esqueceram pelo chão Rosas molhadas Piso as rosas sem sentir Penso nelas sem saber A cidade se desfez Na neblina sumiu Névoa gelada Quem saberá meus sonhos? Quem me esperará? Névoa Quem chegará? Quem me amará? A cidade se desfez Meia noite, meu amor A cidade se desfez Na neblina sumiu2

2 Nesta mesma revista encontra-se também o poema “Num ônibus”, de Vitor Ramil (1993b, p. 42-46).

53 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

Esta letra de algum modo adiantava temas presentes em futuras canções do artista, e praticamente coincidia com o período no qual ele retorna do Rio de Janeiro para morar na antiga residência de sua infância em Pelotas. Nessa casa da década de 1920, que possui um longo corredor, pátios in- ternos, assoalho de madeira e escaiolas, Vitor escreve a maior parte de sua primeira obra literária, Pequod, publicada em 1995 — ano no qual também entrega ao público o disco À beça, a propósito do qual observa em entrevista concedida naquela ocasião:

O que eu quis fazer com esse disco foi voltar um pouco ao Estrela, estrela, fazer canção. Na base de toda a música brasileira, está a can- ção: tu ouves um Cartola e […] é uma música fantástica! — letra e música, aquele refrão lindo… Então eu pensei: Pô, eu já tenho uma boa estrada, já passei por um monte de experiências, agora eu vou trabalhar a música […]. Pra mim a melodia é muito importante, eu tenho muita facilidade pra fazer. Então por que não fazer? (Ramil, 1995, p. 21)

Dois anos mais tarde, Ramilonga: a estética do frio irá trazer para um “cam- po aberto” algo que estava latente no interior da cultura sul-rio-grandense: o vínculo entre brasilidade e platinidade presente em fenômenos como o clima (frio), um território (pampa), um tipo humano (el gaúcho/o gaúcho), um gênero musical (a milonga). A abertura da percepção para elementos que o extremo Sul do país compartilha com o Uruguai e parte da Argentina, por meio do resgate de poemas de João da Cunha Vargas, Juca Ruivo e do ma- nancial literário de João Simões Lopes Neto (autores que dialogam de forma natural com uma longa tradição histórica e cultural), agregado à forma da concepção musical de Vitor Ramil, foi capaz de fazer despertar sensações presentes em muitas pessoas, atingindo sobretudo aquelas urbanas que tive- ram parentes ou amigos que lidavam no campo e que não se identificavam com as formas caricaturais sob as quais seu legado cultural estava enrijecido:

Eu recebo muitos e-mails de gaúchos que estão fora do país. Tem gente que diz assim: “Eu estou aqui na neve, em Moscou, chorando”. Outro: “Estou aqui em Boston e passando mal”. […] Tu vês que mexe com as pessoas. Tem gente que diz assim: “Puxa, nunca me emocionei com a música regional, eu quase me envergonhava dela e, de repente, eu ouço e me encontro”. Uma outra menina me dis- se que sentia vergonha da música gaudéria, e aí ouviu o Ramilonga

54 Luís Rubira

e sentiu uma espécie de patriotismo. Não é significativo isso: uma pessoa tem vergonha de ser gaúcha e sente patriotismo ouvindo um disco? Tu vês que não está embutido nela um sentimento de sepa- ratista […] e quando eu toco essas músicas no Rio, o pessoal diz: “Não entendi nada do que tu disseste, dessa letra do gaudério, mas delirei”. (Ramil apud Ramos, 1999)

O estado emocional que os ouvintes sentem ao tomar contato com as composições desta obra de Vitor Ramil provém, sobretudo, da forma musi- cal que ele encontrou a partir de sua concepção da estética do frio: a milon- ga. Sobre este gênero musical o artista teceu muitas considerações. Entre as reflexões sobre o tema, eis um trecho bastante conciso em entrevista conce- dida no ano de 2013:

É natural para mim compor milongas. Nada a ver com pesquisas ou resgates culturais, tanto que é o único gênero “gauchesco” que me interessa. Por outro lado, tudo a ver com a lucidez poética e o pensa- mento profundo de Atahualpa Yupanqui; ou com os temas viajantes e extensos da fase elétrica de Miles Davis, no fim dos anos 60, em que baixos-contínuos mais acordes e ritmos recorrentes abrem ca- minho para mil estranhezas; ou com os cromatismos e encadeamen- tos harmônicos do prelúdio de Tristão e Isolda, de Wagner, aquele arrebatamento em espiral, aquele fluxo em que os acordes parecem se diluir e reaparecer uns nos outros. É a forma da milonga, ou antes, a forma como a vejo, que me interessa. Gosto de ritmos hipnóticos, de músicas que evoluem tanto para a frente como para o fundo, que criam simetrias e me permitem escrever de forma lírica e reflexiva. (Ramil apud Fonseca, 2013)

Explorando ao seu modo o ritmo hipnótico da milonga, Vitor Ramil lança no ano de 2000 um disco urbano: Tambong — palavra que contém “os sons de tango, samba, bossa, candombe e milonga” —, obra que seria bem recebida em capitais brasileiras (como Rio de Janeiro e São Paulo) e em cidades do Prata (a exemplo de Buenos Aires e Montevidéu). O crítico Pedro Alexandre Sanches, do jornal Folha de S. Paulo, publicou na ocasião um texto significativamente intitulado “Vitor Ramil filia ‘estética do frio’ ao Brasil”. Nesta entrevista, o artista observava: “No Ramilonga, fiz de pro- pósito esse viés do Caetano, que na verdade é o da bossa nova. O canto regional do Sul, grosseiro e gritado, de gaúcho macho, me incomodava

55 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

muito. Por que não posso cantar de forma leve, delicada? Forcei a barra de cantar ‘joãogilbertianamente’ e mantenho isso em Tambong” (Ramil apud Sanches, 2000). Neste disco Vitor Ramil resgata algumas canções de suas obras anterio- res, em particular de À beça; elas de fato ganham nova forma, filiando-se à “estética do frio” — concepção que continuava a ganhar em desenvolvimen- to. De outra parte, se havia alguma semelhança entre o modo de cantar de Vitor Ramil e o de Caetano Veloso é porque na matriz musical de ambos está aquele que é “um dos artistas brasileiros mais admirados do mundo […] a referência mais marcante de músicos, cantores e compositores brasileiros dos últimos 40 anos” (Mello, 2001, p. 7 e 10). Importante notar, brevemente, que no momento em que Vitor Ramil lança a obra Ramilonga: a estética do frio (1997), Caetano Veloso reconhecia em seu livro Verdade tropical (1997, p. 502) que “A vereda que leva à verdade tropical passa por minha audição de João Gilberto”. As sendas do “tropica- lismo” e da “estética do frio” passam, assim, por João Gilberto, cada uma percorrendo a sua própria órbita, mas ambas conduzindo ao mesmo lugar: a descoberta de linguagens estéticas originais.

Longes, o mais próximo de Vitor Ramil

Horizonte. Eis uma palavra que está na letra da música que abre o sétimo disco de Vitor Ramil. No encarte do CD, ao lado da primeira letra, está a foto da fachada de uma casa em “Satolep” refletida no retrovisor externo de um automóvel. Também no encarte, ao lado da última letra do disco, surge uma foto da região de Rosário do Sul, apreendida de dentro de um veículo, cuja imagem mostra a vastidão do pampa (espelhado, inclusive, no próprio retrovisor interno do carro). Entre estas fotos desfilam outras de lugares dis- tantes, como Paris, Genebra, Roma, Montevidéu, Porto Alegre. Se atentar- mos para o conjunto de fotografias, o conteúdo das letras e a sonoridade da obra, veremos que se trata do disco com maior substância íntima e artística de Vitor Ramil. Apenas para se ter uma ideia: a casa em “Satolep” é aquela em que Vitor morou durante a infância e onde vive há muitos anos com sua es- posa, nascida em Rosário do Sul; os títulos da primeira e da última letras são sugestivos (“O primeiro dia” e “Adiós, goodbye”); a concepção da estética do frio está entranhada na musicalidade de Longes. Horizontes infindos. A exterioridade geográfica que influencia a so- noridade desse disco se chama pampa ou campo aberto, planície, vazio de

56 Luís Rubira

imensidades, plaino, vastidão, imensidão, pradaria, várzea, lugar de gran- des espaços. A musicalidade em várias faixas de Longes causa a impressão de algo que se desloca, percorrendo grandes distâncias. Essas distâncias não são somente as de espaço, mas também as de tempo. Preste-se aten- ção às letras, pois a maioria delas expressa uma carga existencial. Um dos elementos predominantes nesta região interna é a melancolia. Instantes, sentimentos, sensações, lembranças, coisas que escapam, que se distan- ciam no horizonte interior (surgindo de forma difusa, vaga, distorcida) são apreendidas em algumas das letras. Estas estão lapidadas e concisas e deixam indícios, vestígios dos longes que Vitor Ramil percorreu em si mesmo nos últimos anos. Quanto à sonoridade do disco, a milonga não aparece nele de forma isolada como em A paixão de V segundo ele próprio (1984), mas se entranha no violão de Vitor, que explora o lado mântrico e hipnótico destilado deste estilo em várias faixas. O rock presente em Tango (1987) surge, agora, de forma mais refinada. O trabalho efetuado sobre a canção em À beça (1995) e a forma musical condutora de Ramilonga (1997) encontram-se aqui fundi- dos numa só massa. Se a multiplicidade de referências contida em A paixão de V parecia ganhar unidade em Tambong (2000), em Longes ela realmente é atingida. Nascer leva tempo. Ao escutar Longes, prepare-se para ouvir chapas de bronze, coro, piano, percussão, trompas, trombones, orquestra de cordas. Escute a música “De banda” e lembre que Chico Buarque sempre foi uma referência para o letris- ta Vitor Ramil. Ouça “Querência” para perceber a profundidade de João da Cunha Vargas ao apreender a sensação melancólica numa frase que destila filosofia como: “o tempo passou, lá se foi/ E eu não queria que fosse/ Tudo pra mim terminou-se/ Nem eu sou mais o que era”, poema revitalizado por Vitor. Não se surpreenda, ouvindo o disco, se na tela de sua mente você tiver a impressão de estar viajando de carro pelas longas estradas que ligam o Rio Grande do Sul ao território do Prata ou lembrar de horizontes distantes e pessoas que você amou ou ainda ama, coisas que surgem aqui e ali nos longes da existência.

No compasso de Satolep Sambatown

Percepções que agem de modo independente, sentimentos que não cessam; uma onda que não quebra, a estação que é sempre a mesma; o céu interior, a mente ensolarada: no oitavo disco de Vitor Ramil a matéria é

57 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

emocional, o tempo obedece a outro ritmo num espaço feito de substância criativa e imaginária. A começar pelo nome do álbum o terreno é o da invenção: Satolep, a “ve- lha cidade supernova” cujas fundações estão em Pelotas e que para além desta se desenvolve no imaginário de Vitor; e Sambatown, que cresceu no interior de Marcos Suzano a partir do Rio de Janeiro, para abrigar a desconstrução e reinvenção do pandeiro, para dar espaço ao velho e ao novo samba. Satolep Sambatown é o encontro de dois universos imaginários, de dois criadores que há anos perseguem sua própria identidade como artistas. Já pela capa está dado o plano da imaginação, da brincadeira, da reunião em torno de algo interessante. Em seguida, o encarte: sugestivamente linhas que se cruzam; e uma sequência — a distância e o movimento de aproximação; Vitor e Suzano próximos de forma descontraída e se divertindo; e uma reu- nião a três (sempre há um terceiro no disco, participações de Drexler e Katia B, poemas de Prévert e Dickinson). Mas se o espaço é outro, os conceitos também precisam ser desestabilizados para assimilar a obra. Não é um disco de samba, propriamente. Apesar disto, ele está ali: as cores do encarte lembram aquelas que Cartola escolheu para sua escola; na sonoridade funcionam instrumentos e ritmos próprios de sambistas; nas letras existem referências a elementos que já renderam samba (o mar, o sol, a chuva — a velha garoa). Também não é um álbum que tenha em seu horizonte a milonga, embora ela e sua circularidade estejam presen- tes. Tampouco um trabalho de releituras, apesar de nele comparecerem canções de À beça, Tambong e Longes. Para começar a assimilar o disco é preciso ver que tais letras já eram regidas pela reinvenção e outra tem- poralidade: em “Café da manhã” Vitor recriou os versos que Prévert, em “Déjeuner du matin”, havia feito sob a ótica de uma mulher; em “A ilusão da casa” estava o registro: “o tempo é o meu lugar/ o tempo é minha casa”; e não é ao acaso que retorna um poema que diz: “Uma palavra morre/ Quando é dita — / Dir- se-ia — / Pois eu digo/ Que ela nasce/ Nesse dia” (“A word is dead”). Mas se você quiser mesmo entrar no compasso de Vitor Ramil e Marcos Suzano, não estranhe se por momentos a sonoridade levar para o Oriente, afinal as raízes do pandeiro e do violão são anteriores ao samba. Além disso, esqueça este nosso tempo desenfreado do círculo de horas inúteis, e pe- netre numa outra temporalidade. Pense no tempo próprio da fotografia e da memória, lembre-se de que determinados segundos podem durar uma eternidade. É percebendo esse universo de sentimentos, sensações e percep- ções que agem à sua própria revelia que você vai entender a forma e o ritmo

58 Luís Rubira

próprios deste disco. É aí, então, que Satolep Sambatown vai resplandecer em sua cabeça como uma lâmpada de gás.

A projeção de imagens remotas no délibáb de Vitor Ramil

Em Pesth, então capital da Hungria, Mihály Kiss buscou um modo de traduzir para o francês a palavra “délibáb”. Ele elaborava o seu Zsebszótár Franczia-Magyar és Magyar- Franczia e precisava de uma expressão que tradu- zisse o fenômeno que havia em seu país. Quando em 1844 foi publicado o Novo dicionário de bolso de francês-húngaro e húngaro- francês, o verbete “délibáb” surgiu como sinônimo de “fata morgana”. Mihály, assim, voltara sua visão na direção do Sul para fazer referência a um fenômeno percebido no Mediter- râneo, mais propriamente no Estreito de Messina. Navegadores que cruzavam a Calábria e a Sicília contavam, já na Idade Média, que teriam visto castelos fantásticos levitando na bruma. Sem saber como aquilo ocorria, eles atribuíam à fada Morgana o poder de fazer flutuar os palácios. Tratava-se de um fenômeno, visto no mar, semelhante àquele que os húngaros veem na planície. Uma miragem. De um dicionário de 1844 para um guia de viagens francês de 2009, Hélène Bienvenu busca explicar o que é o “délibáb” àqueles que percorrem a Hungria dos dias atuais:

Durante o período mais quente do verão, quando o sol atinge o zê- nite e abarca todo o horizonte, podemos ver os délibáb ou as “figuras do meio-dia”. São miragens produzidas pelo calor, um fenômeno na- tural estranho que pode ser observado sobre as vastas planuras sem limite e que dá a ilusão de vermos a imagem de pequenas cidades distantes […] transformando- se em torres e castelos imaginários. (Bienvenu, 2009)

Um ano antes, no Brasil, Vitor Ramil chamou atenção para o fenômeno ao escrever em sua obra literária Satolep:

Chamam a este fenômeno de délibáb […]. Esta locomotiva e este vagão que vocês veem, tão nítidos, a correr neste horizonte de- sértico, não estão aqui onde parecem estar, mas a pelo menos uns cem quilômetros de distância. Acontece em dias de muito ca- lor. Essa imagem atravessou regiões de atmosferas de densidades

59 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

diferentes e projetou-se assim, clara, plana e não invertida, diante dos meus olhos. Nenhum som a acompanhava. Só depois de muito procurar é que me convenci de que realmente não havia trilhos no lugar. (2008, p. 218-219)

Além disso, Vitor percorreu a Hungria, informou-se sobre o délibáb, in- vestigou a etimologia do termo. Compreendeu que déli quer dizer “do sul”, e báb (que vem da raiz bába) significa “ilusão”. Ilusão do sul. Miragem. Délibáb. Não é por acaso que a palavra húngara nomeia agora o novo disco de Vitor Ramil. Nele estão poemas de Jorge Luis Borges e João da Cunha Var- gas. Separados por fronteiras, ambos voltaram seu olhar sobre hábitos e cos- tumes de la pampa, ambos viram ainda no horizonte espectros do antigo gaucho. E ao lembrar disso, algo ocorre com o ouvinte. Tem-se a impressão de ver cuchillos, que Manuel Flores va a morir, que logo ali na parede está um velho mango “cheio de talha e pontaço”. Diante disso é melhor seguir o con- selho que foi dado a Jorge Drexler em “El sur del sur”: “não vá, a estrada não existe, depois não digas: não me advertiste”. Mas é tarde demais. O ouvinte imaginará alguém indo ao pampa, verá os “punhais de Borges”, chegará em sua mente a lembrança de Borges da Cunha Vargas Ramil. Mas a verdade é que é preciso ouvir o disco. Ecos distantes. Talvez tudo não passe de um délibáb.

Foi no mês que vem: a unidade sonora do esteta do frio

Como na tradição de dança sufi, em que o corpo do bailarino gira em círculo, mas sua consciência permanece imóvel e contemplativa, sem dis- trações, o décimo disco de Vitor Ramil põe em movimento diferentes can- ções elaboradas ao longo de sua carreira, reunidas sob o mesmo espírito rigoroso do artista. Álbum duplo que foi gravado em Buenos Aires, Porto Alegre e Rio de Janeiro, com financiamento coletivo, o compositor escreveu a propósito do disco em junho de 2013: “Sempre muito focado nas questões musicais, olhei para minhas letras e seu mundo e identifiquei, em canções diferentes entre si, traços comuns que, através dos anos, haviam se afirmado como nitidamente meus” (texto de apresentação do disco Foi no mês que vem). Obra com 32 faixas, tudo nela é repetição e, ao mesmo tempo, diferença. Desentranhar músicas de discos anteriores, cada qual com sua pró- pria identidade e contexto, para conferir-lhes uma nova forma, implicava

60 Luís Rubira

necessariamente alterar a ordem espaço-temporal. Pela via da intuição, o conceito que permitia esta alteração se materializa já na capa do novo álbum: o título, que remete à canção presente anteriormente em À beça e depois em Tambong, desestabiliza a linearidade do tempo (vide a conjuga- ção do verbo); a ilustração, uma gravura em metal da artista Nara Amélia, subverte as formas no espaço (seres humanos surgem com pernas, mãos e cabeças de outros animais). No encarte, a única fotografia presente deixa também entrever a passagem do tempo e sua imobilidade: Vitor Ramil está sentado na antessala da casa de sua infância afinando o violão; na parede do escritório imagens de Edgar Allan Poe e dos Beatles, uma placa de Mon- tevidéu, fotos de família; sobre a mesa livros, e ao fundo o piso intacto de ladrilhos hidráulicos e a parede de escaiolas. É a reunião de temporalidades distintas num espaço que permanece sendo praticamente o mesmo; de um artista que no entorno de seus cinquenta anos continua habitando seu mundo particular para conceber suas criações. Para aqueles que acompanham há muito tempo o compositor, escutar o álbum lançado 32 anos após seu primeiro disco (Estrela, estrela), sem es- tranhar a reordenação das músicas (“Ramilonga”, por exemplo, não é mais a primeira faixa, mas a última no lado 1), requer distender as cordas da au- dição (tanto quanto o músico que desde jovem recorreu às cordas soltas de seu violão). Já aqueles que conhecem sua obra de modo fragmentário talvez notem rapidamente a unidade sonora entre as canções. Violão e voz em pri- meiro plano, fundidos em algo hipnótico (como em “A resposta”), as canções contam com participações de artistas já presentes em discos anteriores, bem como de novos convidados, todos a conferir um equilíbrio entre “brasilida- de” e “platinidade” (dentre as vozes, as de Katia B, Milton Nascimento, , Fito Páez, Jorge Drexler, Pedro Aznar; entre os instrumentos, a Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro, Carlos Badia e Carlos Moscar- dini, Marcos Suzano e Santiago Vazquez). Esse período em que o composi- tor, músico e escritor revisitou o conjunto de sua obra resultou também no Songbook Vitor Ramil (2013), livro de partituras com mais de sessenta músicas que inclui fotos de sua carreira e textos de críticos que acompanharam sua trajetória artística, a saber, Celso Loureiro Chaves, Juarez Fonseca e Luís Augusto Fischer. Ao deixar-se conduzir por este “Astronauta lírico” que flutua em sua maturidade (na fotografia do encarte há uma coruja sobre a mesa do escri- tório, símbolo de sabedoria que também aparece no encarte e no selo de um dos discos), detenha-se na canção “Sapatos em Copacabana” e a com- pare com a versão original do disco Tango. Se há 25 anos atrás a bateria,

61 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

a guitarra, o sax alto e os teclados conferiam um tom mais agressivo à letra da música, agora a percussão de Marcos Suzano, a tuba de Santiago Castellani e um “arranjo de tuba inspirado no baixo de Nico Assumpção” fazem soar o ritmo de uma batucada que vai crescendo e que harmoniza a canção com o Rio de Janeiro. É o retrato de um artista que adquiriu sua própria identidade como músico brasileiro. Disco-síntese de uma carreira, a ilustração da capa é capaz de nos entre- gar um pouco mais de seu significado. Nesta gravura em metal cujo título é “A joia falsa do meu câmbio”, há uma palavra inscrita no realejo, palavra que já havia sido utilizada pela artista em 2010 (na “Série Zebar — animal de sacrifício”). Por certo, ao escolher intuitivamente as ilustrações de “seres fantásticos” da artista gaúcha, Vitor Ramil reconheceu que de algum modo sua memória o remetia às ilustrações coloridas da enciclopédia O mundo da criança (Nara Amélia, aliás, escreveu em seu blog em 2012: “Penso que nossos trabalhos são atravessados pelo tempo, por um sentimento nostálgico, e pelo universo de imagens e miragens de Jorge Luis Borges”). A palavra “zebar”, por conseguinte, que de fato significa animal destinado ao “sacrifício” (Schütte, 1929, p. 230), leva-nos à certeza de que algo não mudou em Vitor Ramil. Álbum duplo, ele é concluído com a canção “Satolep” (faixa de abertura do disco A paixão de V segundo ele próprio, a obra-matriz de 1984). Nela soa a máxima: “vencedor é o que se vence”. Ao retornar às canções de seus discos anteriores para rearticulá-las sob uma nova forma, Vitor de fato sacrificou- -se, exigindo novamente muito de si. Exigência que tem seu preço; ela, to- davia, voltou a entregar-nos algo original — algo que nem o tempo é capaz de mudar: a capacidade criativa de um artista que entre o ontem e o amanhã jamais se acomodou no lugar-comum e que em cada obra deixa o registro de sua própria assinatura.

Biografia de Vitor Ramil a partir de sua obra

Mármore polido, estuque, névoa, umidade, pedra. Trilhos, trem, espelhis- mos, paixões, tempo. No princípio eram os caminhos de escaiola, o fluxo em simetria dos ladrilhos, a tentativa de alinhar “o tapete da sala pelas tábuas cor- ridas do chão” (Ramil apud Assumção, 2002). Lá fora havia os “Elementos de composição da fachada: ornato, cimalha, moldura, gradil, gateira”. O nada se encontrava já ali presente: “Platibanda vazada”, “platibanda cega”. Para além da fachada — de sua aparência de imobilidade — estava a articulação dos elemen- tos do telhado: “Caimento, cumeeira, rincão, espigão, iluminação zenital”. A

62 Luís Rubira

sustentação mútua entre o plano de profundidade do telhado e o plano de su- perfície da fachada dependia, por sua vez, de uma estrutura interna e externa na qual se faziam presentes as “Esquadrias”: “sobreverga, verga, moldura, caixi- lho, balcão, consolo” (Secult, 2008, p. 28-31). Lá fora e dentro daquela casa na Rua Dr. Amarante estava já a “cidade magnífica”, a “Velha cidade supernova”, a cidade “rigorosamente planejada”. Mas naquele que alinhava o tapete da sala, pelas tábuas corridas do chão, “a palavra [ainda estava] presa, no silêncio da forma”, estava “isolada em branco, um branco indescritível” (“A paixão de V”). A “palavra presa” que coexistia com “grandes espaços”, onde a voz deslizava “sobre as tijoletas, como uma milonga” (“A paixão de V”). Ressoava já, em algum lugar “do fim do fundo da América do Sul” (“Joquim”) algo “como uma milonga, uma milonga triste” (“A paixão de V”). Nós poderíamos fazer um caminho conceitual rigoroso para tentar dizer quem é o artista que surge com Estrela, Estrela, aquele que para vir-a-ser um corpo celeste gasoso que irradia sua própria luz precisou de uma “estética implosivista” (Ramil, 2015), pulverizando-se em fragmentos numa obra-ma- triz; o jovem compositor que para dar livre curso ao estado liquefeito das suas paixões fez nelas a sua imersão para, depois, emergir lentamente avan- çando por Tango e À beça, até colocar uma baliza em sua arte com Ramilonga e outra com Longes. Nós poderíamos mesmo tentar desenvolver com clareza como ele compõe a canção “Satolep”, como “Satolep” materializa-se em livro e o que leva a nau de Pequod a partir em direção ao Sul — a Montevidéu — e o disco Tambong a rumar desde “el puerto de Buenos Aires” hasta el norte (onde depois o fotógrafo Selbor vai tomar um barco para voltar ao Sul) — paralelismos que também ocorrem, de algum modo, nos discos Satolep Sam- batown e délibáb e culminam em Foi no mês que vem. Nós até mesmo estaríamos dispostos a percorrer novamente o conjunto arquitetônico de sua obra para mostrar que existe ali uma “compatibilidade volumétrica”, mas também uma “compatibilidade tipológica” (Secult, 2008, p. 35). Mas para isso teríamos que penetrar na concisão da obra do artista que possui uma linguagem pró- pria, uma estética original, de modo a mostrar, em sua pureza, que tal como uma estrela que vive de sua própria luz, Vitor Ramil também precisou fazer “reações de fusão nuclear”, precisou, como diz Nietzsche (1994, p. 34), “ter caos dentro de si para poder dar luz a uma estrela dançante”. Mas se per- corrêssemos em profundidade essa “planície de acordes”, então perderíamos certamente em leveza. Mas quem é o artista que já estava “futuramente aqui” (“O primeiro dia”) “muito antes das charqueadas” (“Satolep”) e que mora num quarteirão li- mítrofe ao Sítio do 1º Loteamento, o primeiro núcleo urbano de Pelotas;

63 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

este “astronauta lírico” que habita na Zona ZPPC nº 1? Seu nome completo é Vitor Hugo Alves Ramil. Ele recentemente esteve na Islândia, onde lan- çou uma nova versão de sua “estética do frio”. Aliás, teria seguido, de forma imanente, como uma bússola, os passos daquele outro “Vitor Hugo” — o francês — que em 1822 publicou o seu primeiro romance, intitulado Hans da Islândia, um sobrenatural romance que bem poderia ter sido escrito pelo “Barão de Satolep”? Vitor, que nos limites da zona do primeiro loteamento mora numa casa de “arquitetura eclética de transição”, uma residência quase centenária, com “pátios internos, assoalho de madeira e escaiolas” (Rubira, 2015, p. 30). Uma casa antiga que ele considera como um “ambiente de Sa- tolep” (Ramil, 1995, p. 20). Lugar que sempre foi tão bem cultivado em mú- sica, balé, pintura, tanto por sua mãe, Dalva, quanto por seu pai, Kleber — o engenheiro agrônomo “que conhecia o subterrâneo da cidade, suas galerias, o nome científico de todas as árvores” (Rubira, 2015, p. 270). A casa dos Ramil: “Presença de marcação horizontal e vertical”, “esquadrias com formas variadas e caixilhos trabalhados”, “adornos predominantemente com formas geométricas”, “uso de platibanda bem trabalhada com elementos de forma simplificada” (Secult, 2008, p. 30). Pelotas converge para dentro daquela residência da década de 1920, com seu relógio pendurado na parede marcando lentamente o tempo. Walter Benjamin diria que ela é uma das passagens da cidade: “a voz da voz de Ca- ruso” (“Satolep”), Paolo Uccello, Miles Davis, os poemas de Wallace Stevens, tudo transcorrendo ali, passando sem passar jamais. Casa, que é um sorvedouro de Pelotas, é dela que saem obras com “a simetria que só as aranhas sabem realizar” (Teixeira, 1995). É nela que Vitor Ramil atravessa o ciclo de suas íntimas estações: é afetado pelo “calor abra- sador do norte brasileiro”; vê no seu outono as “folhas secas cobrirem a cal- çada”; percorre os “campos cobertos de geada” para chegar em sua “estética do frio”; ressurge em sua “Primavera da pontuação”. Apesar de tudo, muitos não o conhecem, o que é compreensível, afinal ele não é um artista da in- dústria cultural, “a tevê é um vício esperto”, e ele não tem “nada a ver com isso”. Vitor é apenas um homem comum, que caminha pelas ruas de Satolep, como um Chico Buarque caminhando por Copacabana, como um Atahualpa Yupanqui em Cerro Colorado, como um Dylan anônimo nas ruas “do fim do fundo da América” — do Norte. “Cartas no corredor”, imagens que “rolam no pó da sala”, tudo insistin- do em ficar, “já que existe tanto espaço” nele. Morada de Vitor Ramil: nela há um sótão onde habitam fantasmas que não são entes sobrenaturais: são frases de Emily Dickinson, imagens de Amsterdam, flocos de neve de papel

64 Luís Rubira

de “janelas de um ano que foi”, cuchillos, “grades e sombras de Montevidéu”, planície húngara. “Coisas que procuram o seu lugar”. Ele vive mesmo “em outra dimensão” (“Longe de você”). Este menino que começou a estudar violão clássico aos onze anos e pia- no por volta dos quinze será para sempre um sumidouro em música: Ar- mando Albuquerque, Astor Piazzolla, Caetano Veloso, Egberto Gismonti, Lupicínio Rodrigues, Mercedes Sosa, Milton Nascimento, Beatles, Radiohe- ad… Impossível resumir o universo de influências desta “vida espiral”, desta “nave febril, o carro que vai veloz sob o céu da campanha” (“Século XX”). Esse músico, que quando pequeno foi apelidado de “Tango”, pois diziam que ele era “comprido e triste que nem um tango” (Fonseca, 1987), é também um inquieto em artes e filosofia: Antonioni, Heráclito, Jean-Paul Sartre, Kandinsky, Levinas, Miró, Turner… Ele é também o escritor que aos onze anos ganhou um concurso nacional de contos promovido pela Neugebauer e cujo conjunto da obra nos estimula permanentemente em literatura: Albert Camus, Alejo Carpentier, Antonin Artaud, Arthur Rimbaud, Baudelaire, Breton, Edgar Allan Poe, Euclides da Cunha, Fernando Pessoa, Gerard Man- ley Hopkins, Jacques Prévert, João Vargas, Jorge Luis Borges, Júlio Verne, Marcel Proust, Mário Quintana, Paulo Leminski, Herman Melville, Vladi- mir Maiakóvski (e outros tantos bardos de memórias derramadas). Sorvedouro, uma vertigem. Ele é o escritor de Satolep. Palíndromo da palavra Pelotas, mas também sua passagem: a fonte das Nereidas, o relógio alemão na torre do Mercado Público, a caixa d’água de ferro da Praça Piratinino de Almeida, os postes franceses. Os meios de transporte: os trens que chegavam e partiam da Esta- ção Férrea, o bonde elétrico da Buxton, Guilayn. Os hotéis: , Aliança. A herança culinária portuguesa: os pastéis de Santa Clara (observe-se que, no livro Satolep, João Simões vive com sua mulher num quarto emprestado por sua cunhada — que é doceira). Os cafés: uma des- crição do Café Aquário com seu “ruído de xícaras” que ocupa mais de uma página inicial e ainda outras. E também o registro dos saraus literários da Guarany Filmes. Em sua obra literária, materializada mais de vinte anos depois da canção “Satolep”, Vitor Ramil explora não somente a cultura portuguesa na cidade, mas a presença negra (transparece que ela foi construída por mão de obra escrava e a riqueza de sua herança presente no carnaval da Rua Quinze); francesa (aqui e ali surgem expressões como “voilà!”, “comm’il faut”, “A la cité!” “il faut être toujours ivre”, e um francês será o diretor do Banco de Satolep); a presença alemã (através do Sr. Schild, que conserta telhados); a

65 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

proximidade espanhola (fala-se em “acordeom” ou que um dos personagens, o cubano, teria executado um jardim interno em um casarão espanhol da cidade. Está ali também a casa de tango, “O Sobrado” — tudo remetendo ao elo com o estuário do Prata. Os diferentes personagens de Satolep revezam-se na observação porme- norizada da cidade e nos elogios a sua beleza: o cubano diz que “Satolep é a magia”, que toda ela é “digna das musas”, que a cidade, construída num lugar daqueles, é “uma espécie de licença poética da história”. Simões fala no “aglomerado humano, solitário, erguido num sítio de feições mesopotâ- micas, como que aprisionado pelo canal São Gonçalo e cercado de arroios e correntes de água, que no inverno se derramam por todos os lados, for- mando uma verdadeira polinésia”. O protagonista, por sua vez, é preciso: “O tamanho das aberturas e sua altura, estremada por platibanda e compoteiras, sugeriam solidez; os adornos delicados da fachada eram promessa de beleza e bom acabamento; os respiradouros do porão me faziam imaginar áreas in- ternas e um pátio com caminhos bem cuidados, árvores frutíferas, canteiros de flores e uma gruta”. Ele ainda observa que as “grossas paredes, escaiolas, porões, respiradouros e áreas dessas altas casas de Satolep sempre nos prote- geram um pouco do clima úmido”. Pelotas: esta cópia pálida da realidade, este simulacro do que ela já foi ou- trora, do que ela pode ser, do que, de certa forma, ela está sendo novamente; esta impossível nau de couro cru que tem como epicentro de seus afluentes o Chafariz das Nereidas. Um chafariz que não teve somente função econômica ou estética, mas que foi colocado ali simbolicamente como expressão incons- ciente de uma capital cultural vaidosamente bela. As Nereidas, estas ninfas que não possuem concorrentes em sua beleza. “Pérola do Sul”, “Atenas do Sul”. Ninfas das águas, regime de fluidez. Esta cidade vinculada em suas profundezas com as letras e as artes, que tinha o terreno fértil no início do século XX para a instalação do Conservatório de Música, que gerou em literatura os “Contos gauchescos” e as “Lendas do Sul”. Este lugar que foi construído pela mão de nossos antepassados não só pela vontade de lucro, mas também de conheci- mento e de cultura; esta cidade que vemos, Pelotas: é fluxo, impermanência, recriação — ela está condenada a renascer de suas próprias cinzas, estava des- tinada a fazer surgir o autor de Satolep, a trazer ao mundo o artista que nos fez perceber o Rio Grande do Sul “no centro de uma outra história”.

66 Luís Rubira

Obras de Vitor Ramil

Discografia

RAMIL, Vitor. Estrela, estrela. Rio de Janeiro: Polygram, 1981. 1 disco sonoro. ______. A paixão de V segundo ele próprio. Rio de Janeiro: Som Livre/RBS: Estúdio Sigla, 1984. 1 disco sonoro. ______. Tango. Rio de Janeiro: EMI-Odeon Brasil, 1987. 1 disco sonoro. ______. À beça. Rio de Janeiro: Capacete Records, 1995. 1 CD. Edição limitada. ______. Ramilonga: a estética do frio. Rio de Janeiro: Satolep: Estúdio Cia. dos Técnicos, 1997. 1 disco sonoro. ______. Tango. Rio de Janeiro: Satolep, 1996. 1 CD. ______. A paixão de V segundo ele próprio. Rio de Janeiro: Satolep: Estúdio Cia. dos Técnicos, 1997. 1 CD. Versão revista. ______. Tambong. Buenos Aires: Satolep: Estudio Marina Sound, 2000. 1 CD. Versões em português e espanhol. ______. Longes. Buenos Aires: Satolep: Estudio Marina Sound, 2004. 1 CD. ______. Delibáb. Buenos Aires: Satolep: Estudio Circo Beat, 2010. 1 CD. ______. Foi no mês que vem. Buenos Aires: Satolep: Estudio Circo Beat, 2013. 1 CD. ______. Campos Neutrais. Porto Alegre: Satolep: Estudio Audio Porto, 2017. RAMIL, Vitor; SUZANO, Marco. Satolep Sambatown. Rio de Janeiro: MP,B discos: Universal Music, 2007. 1 CD.

Livros RAMIL, Vitor. Pequod. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995. ______. Pequod. Tradução de Isabella Mozzillo de Moura. Pelotas: Editora Universitária da UFPel: Centro de Integração do Mercosul, 1996. Edição comemorativa da Semana Porto Alegre em Buenos Aires.

67 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio”

______. Pequod. 2. ed. Revisão do espanhol de Isabella Mozzillo de Moura. Porto Alegre: L&PM, 1999. ______. Pequod. Tradução de Luciana Wrege Rassier e Jean-José Mesguen. Paris: L’Harmattan, 2003. ______. A estética do frio: Conferência de Genebra. Porto Alegre: Satolep, 2004. ______. Satolep. São Paulo: Cosac Naify, 2008. ______. Songbook Vitor Ramil. Caxias do Sul: Belas Letras, 2013. ______. A primavera da pontuação. São Paulo: Cosac Naify, 2014. ______. A estética do frio: Conferência de Genebra. Reykjavík: Sagarana, 2015. Versão bilíngue português-islandês. ______. Songbook Campos Neutrais. Apresentação: Fabricio Gambogi. Pelotas: Satolep, 2017.

Referências bibliográficas ASSUMÇÃO, Jéferson. “Quero chegar às pessoas, não ao mercado”, Vitor Ramil. Vox XXI, Porto Alegre, n. 23, p. 12-19, out. 2002. BIENVENU, Hélène. Petit Futé Hongrie. Paris: Nouvelles Éditions de l’Uni- versité, 2009. CARPINEJAR, Fabrício. Voz alinhada ao tapete dos astros. Zero Hora, Porto Alegre, p. 6-7, 23 abr. 2005. Segundo caderno. CHAVES, Celso Loureiro. Canções, na verdade. In: RAMIL, Vitor. Songbook Vitor Ramil. Caxias do Sul: Belas Letras, 2013. p. 267-304. DICKINSON, Emily. Uma centena de poemas. Tradução, introdução e notas de Aila de Oliveira Gomes. São Paulo: T. A. Queiroz: Edusp, 1984. DREXLER, Jorge. Entrevista. [Entrevista concedida a] Renato Mendonça. Zero Hora, Porto Alegre, 1º jun. 2005. FARIA, Arthur de. Vitor Ramil. In: ______. Um século de música no Rio Gran- de do Sul. Porto Alegre: CEEE, 2001. FISCHER, Luis Augusto. Nesta rua passa o universo. In: RAMIL, Vitor. Son- gbook Vitor Ramil. Caxias do Sul: Belas Letras, 2013. p. 7-13. FONSECA, Juarez. O que há de novo chama-se Vitor Ramil. Zero Hora, Porto Alegre, p. 7, 16 set. 1984. Revista ZH.

68 Luís Rubira

______. “A audácia de sempre querer o melhor”. Zero Hora, Porto Alegre, p. 19, 2 ago. 1987. Revista ZH. ______. Vitor Ramil de Banda. Aplauso, Porto Alegre, n. 61, 2004. ______. Casa, milonga, livro, canção, tempo, Satolep. Pesquisa e texto de Juarez Fonseca, com acréscimos e remixagens de Vitor Ramil. In: RAMIL, Vitor. Songbook Vitor Ramil. Caxias do Sul: Belas Letras, 2013. p. 15-76. LUACES, María Belén. Historia de dos ciudades: la pasión de Tango entre Porto Alegre y Buenos Aires. Revista Al Margen, Bariloche, mar. 2000. MACHADO, Juremir. A miséria do cotidiano. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1991. MELLO, Zuza Homem. João Gilberto. São Paulo: Publifolha, 2001. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1994. RAMIL, Vitor. A estética do frio. In: FISCHER, Luís Augusto (Org.). Nós, os gaúchos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992. v. 1, p. 262-270. ______. Meia noite, meu amor. Imã, Rio de Janeiro; Vitória, n. 5, p. 40-41, 1993a. ______. Num ônibus. Imã, Rio de Janeiro; Vitória, n. 5, p. 42-46, 1993b. ______. Vitor Ramil à beça. [Entrevista concedida a] Arthur de Faria. Capa- cete, Porto Alegre, n. 3, dez. 1995. ______. Somos estereótipos. [Entrevista cedida a] César Fraga. Extra Classe, Porto Alegre, ano 4, n. 35, set. 1999. Disponível em: https://www.extra- classe.org.br/edicoes/1999/09/somos-estereotipos/. Acesso em: 16 nov. 2018. ______. Tambong: sem perder tempo, mas sem pressa. [S.l.: s.n.], 2000. Disponível em: http://www.vitorramil.com.br/textos/extras/tambong. html. Acesso em: 16 nov. 2018. ______. Pequena crônica urbana. Zero Hora, Porto Alegre, p. 8, 11 jan. 2003. Segundo Caderno. ______. Longes. Zero Hora, Porto Alegre, p. 6-7, 9 out. 2004a. Segundo Caderno. ______. Pela Satolep de Simões Lopes Neto. Aplauso, Porto Alegre, n. 60, p. 24, nov. 2004b. (Trecho inédito do livro Satolep). ______. Milonga al Sur. [Entrevista cedida a] Juan Ignacio Babino. Página/12, Buenos Aires, 28 jun. 2015. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/

69 Vitor Ramil: o artista da “estética do frio” diario/suplementos/radar/9-10712-2015-06- 29.html>. Acesso em: 16 nov. 2018. ______. Campos Neutrais: release. Pelotas: Nativu, 2017a. Disponível em: http://www.vitorramil.com.br/neutrais-release.pdf. Acesso em: 16 nov. 2018. ______. Campos Neutrais: show de lançamento do CD e do Songbook: 20, 21 e 22 de outubro de 2017, Theatro São Pedro. Porto Alegre, 2017b. Pro- grama do show. RAMOS, Paula. A paixão com todas as letras. Aplauso, Porto Alegre, n. 9, p. 40-42, 1999. RUBIRA, Luís. Longes, o mais perto de Vitor Ramil. Zero Hora, Porto Alegre, p. 2, 20 nov. 2004. Segundo Caderno. ______. No compasso de Satolep Sambatown. Zero Hora, Porto Alegre, 20 out. 2007. Caderno de Cultura. ______. A projeção de imagens remotas no délibáb de Vitor Ramil. PelotasMais, Pelotas, p. 6, 29 mar. 2010. Caderno de Cultura. ______. Vitor Ramil, um artista em deslocamento. IHU On-Line, São Leopoldo, n. 474, ano 15, p. 12-17, 5 out. 2015. ______. Vitor Ramil: nascer leva tempo. Porto Alegre: Pubblicato Editora, 2017. 348 p. SANCHES, Pedro Alexandre. Vitor Ramil filia “estética do frio” ao Brasil. Folha de S.Paulo, São Paulo, 16 out. 2000. SCHÜTTE, Gudmund. Our Forefathers, the Gothonic nations: a manual of the ethnography of the gothic, German, Dutch, Anglo-Saxon, Frisian and Scan- dinavian peoples. Tradução de Jean Young. Cambridge: The University Press, 1929. v. 1. SECULT. Prefeitura Municipal de Pelotas. Secretaria de Cultura. Manual do usuário de imóveis inventariados. Pelotas: Nova Prova, 2008. TEIXEIRA, Jerônimo. A pureza estética das aranhas. Zero Hora, Porto Alegre, p. 1, 7 nov. 1995. Segundo Caderno. TEIXEIRA, Paulo César. Um olhar melancólico ou a estética do frio ou não me venha com milongas. NÃO, Porto Alegre, n. 76, mar. 2002. Disponível em: http://www.nao- til.com.br/nao-76/entrevis.htm. Acesso em: 16 nov. 2018. VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

70 Um baque

Paulo Almeida

Dedico este ensaio à Zoé, que ama a música de Thiago Amud. E à memória de minha avó Dinorah. E meus agradecimentos vão para as mulheres da minha vida: minha mãe Dioneia, minha madrinha Dil, e Janaína, que chegou e mudou tudo. Agradeço ainda à Ruth e Karla, ternas amigas.

O convite para escrever o perfil biográfico de Thiago Amud partiu de Marcos Lacerda. Aceitei de pronto e quase me arrependi. Como escrever uma biografia de alguém tão jovem? Quem se interessaria em ler sobre seu contemporâneo? Haveria ali naquela vida fatos relevantes que justificassem um registro? Thiago Amud é, sem dúvida, um dos grandes de sua geração. Tenho cer- teza de que assinalará seu nome entre os maiores da MPB. Pensando nisso, pensando nesse futuro promissor, arrisquei-me na empreitada de uma bio- grafia primeira que mapeasse com a ajuda de fontes primárias o nascimento do artista. Um documento que servirá aos futuros biógrafos e pesquisadores de sua obra. É, pois, minha modesta contribuição à história da música popu- lar brasileira. Que esse livro ajude aqueles que virão a desbravar a vida de um jovem músico carioca na virada do século XXI. Salve o compositor popular.

A tarde ardia em cem sóis — como ardem todas do verão no Rio de Janeiro. Mas o calor daquela tarde de dezembro arderia pra sempre na me- mória do jovem Thiago Amud. Na sala do apartamento da Urca, onde mora- ra praticamente por toda vida, se concentrava nas invenções linguísticas de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Das lembranças de Riobaldo, Amud é subitamente tragado para a realidade: no quarto ao lado, sua avó. Dona Alda, dava seus últimos suspiros. Alda Mattos dos Santos ficara viúva em 1984. Ex-funcionária da Air France, foi casada com Hayditon de Albuquerque Santos e começara a de- senvolver os primeiros sinais da doença dez anos depois da morte do marido.

71 Um baque

E desde que o Alzheimer começou a apagar-lhe o brilho, Vó Alda ficara em companhia do neto. Ainda estudante, com as tardes livres, o menino recebe- ra com resignação a tarefa de cuidar da avó materna. Após a separação dos pais, em 1991, Thiago e mãe foram morar com a matriarca e com a Tia Márcia. A separação foi um baque na vida do menino. Fechou-se no mundo dos livros e dos discos. Passariam a ser seus compa- nheiros dali pra frente. Junto com o violão. Agora, com o diagnóstico da do- ença da avó, o menino ganhava uma grande responsabilidade e com empenho e carinho se dedicava aos cuidados com da Vó Alda. Foram anos cuidando da avó. Anos de servidão. E mais serviria, se não fora para tão longo amor tão curta a vida.

Quando a esquina bifurca Thiago Amud

Naquela rua brinquei só Improvisando lugares Quem soube do mundo que eu erguia Entre o muro e a escadaria?

Naquela praça intuí Deus Amendoeiras tremiam Foi como um primeiro alumbramento Quem me adivinhava o pensamento?

Meu bairro, meu onde, meu quando Calçadas me atravessando pra além Às vezes, a esquina bifurca E eu dou n’outra Urca: Não mora ninguém

Meu bairro, nem quando nem onde Brincando em mim de esconde-esconde, cadê? Você é um sonho Não passa de um sonho Ou não: quem me sonha é você

Naquela casa gritei: “Vó!” Cigarras desentoavam Qual o nome disso que me arde?

72 Paulo Almeida

Como a morte coube numa tarde?

Meu bairro, meu onde, meu quando Calçadas me atravessando pra além Às vezes, a esquina bifurca E eu dou n’outra Urca: Não mora ninguém

Meu bairro, nem quando nem onde Brincando em mim de esconde-esconde, cadê? Você é um sonho Não passa de um sonho Ou não: quem me sonha é você

Ali, talvez, tenha sido a ruptura mais dura na vida de Amud. O outro baque — a separação dos pais — fora bastante sentido, mas ver a morte de perto parece ter mexido em camadas mais profundas do garoto acostumado às paredes seguras do lar.

Nascença Thiago Amud

O mundo novamente nasceu Senhora dona Recebe o menino que Deus deu Olha o verde na terra Olha o branco na lua Alegria, aleluia Alegria, aleluia

Primeira infância

Nasceu robusto o menino, com 53 centímetros e 4 quilos. A prudência fez com que a franzina Valéria optasse por uma cesariana. Assim, num belo e ensolarado sábado, no dia 26 de abril de 1980, 12h30, Thiago deu seu primeiro suspiro em plena Praça Mauá, no hospital da Pro Matre, sob os cuidados do Doutor Jorge Calil. A gravidez havia sido tranquila. A barriga, cercada de afeto, era cortejada por Ismael, que entoava canções ao violão

73 Um baque

para deleite da futura mãe e do rebento, que se contorcia e chutava ao ouvir as músicas tocadas pelo pai. Valéria Mattos dos Santos Amud era professora e lecionava em Olaria e Paciência bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro. Ismael Amud Filho era comerciante e apaixonado por música. “Meu pai trabalhou na Líder Táxi Aé- reo e de lá partiu para o movimento sindical. Chegou a ser vice-presidente do sindicato dos aeroviários. Depois da queda da URSS saiu do movimento sindical e fez de tudo um pouco”, relembra Thiago. Assim, na segurança da família de classe média, o bebê ia crescendo em Bonsucesso, onde moravam. Sempre foi ninado com canções. Valéria conta que “havia uma em particular que ele adorava: ‘Lá em cima daquele morro, passa boi, passa boiada, passa homem, passa bicho, passa Thiago… passarada!’ E as palavras iam se alternando de acordo com a imaginação da gente. Era ninado em um balanço na sala de estar, em frente a um janelão, que dava para um morro tranquilo e iluminado, hoje área de risco, perigo- sa, chamado Morro do Adeus!” O Morro do Adeus faz parte do Complexo do Alemão, área de inúmeros conflitos e dominada por traficantes e milicianos nas primeiras décadas dos anos 2000. Engraçado perceber que aquela criança que acabara de chegar ao mundo era embalada em frente a um morro com esse nome. Ali, em ple- no subúrbio carioca, no ainda tranquilo bairro de Bonsucesso, a chegada de Thiago Amud imprimiu nova dinâmica à família. Foi uma criança precoce. Com um ano e meio, já se comunicava oral- mente. Desenhava muito e já se notavam esboços de letras e números mis- turados aos desenhos de pessoas e bichos. Durante os passeios, o que mais o atraía eram as letras e números nos quais esbarrava pelos caminhos — nú- meros de casas, cartazes, nomes de ruas e cores, muitas cores. Seu avô materno, Hayditon, para estimular a fala do pequeno, fez uma série de conversas com o neto, que batizou “As conversinhas com Thiago” e que acabaram rendendo mais de dez fitas cassete. Hayditon de Albuquerque Santos, aposentado da Volvo do Brasil, era muito afetuoso. Gostava de esti- mular o neto enquanto estava em sua companhia. Os avós paternos estavam muito presentes na vida do menino também. Seu Ismael Amud se aposentou trabalhando em Furnas e adorava a compa- nhia do neto. Maria Augusta da Silva Amud, funcionária do Ministério da Aeronáutica, tinha uma bela voz, e seu neto sempre gostou de ouvi-la cantar. Aos dois anos, Thiago leu a primeira palavra: BRI-ZO-LA! O aspirante ao Palácio da Guanabara, Leonel de Moura Brizola, despontava nas pes- quisas eleitorais naquele 1982. A televisão focalizou um cartaz na rua e,

74 Paulo Almeida

talvez influenciado pelo áudio, Thiago leu o nome do futuro governador do Rio de Janeiro. A partir desse momento, nenhuma palavra passaria ilesa ao olhar atento daquela criança. Jornais, revistas, livros, anúncios, panfle- tos… nada lhe escaparia. “O que não reconhecia como escrita, o tomava de muita preocupação até conseguir entender e decifrar os códigos das letras”, relembra Valéria. Dos dois anos e meio aos cinco anos de idade, Thiago escrevia em letra bastão e se comunicava com a família através de pequenos bilhetes. Pouco tempo depois, a descoberta de que os algarismos romanos são representados por letras fascinou o menino. Seu pai conta que Thiago não costumava aprontar. Lembra, bem-humo- rado, de um dia chegar do trabalho e encontrar a diarista apavorada. “Ela deu queixa de que Thiago havia riscado todas as paredes da casa. Ele ficou surpreso, acho, com a minha reação. Ri muito. Ele escreveu pelas paredes RA-TA-TA-TA, RA-TA-TA-TA… Disse que era o som da metralhadora do desenho animado que assistiu.” Uma peraltice comum às crianças de três anos, pois. Mas Ismael perde o bom-humor ao lembrar a única vez em que deu um castigo físico no filho: “Eu dei uma palmada nele. Choramos juntos”. Frequentou mais de um colégio na fase pré-escolar. E sempre pedia livros e cadernos para estudar, pois a parte lúdica da pré-alfabetização não lhe sedu- zia. Thiago fazia em casa tudo o que lhe atraía. Vó Alda, Vô Hayditon, falecido quando Thiago tinha quatro anos, e a tia Márcia sempre o estimularam com canções, atividades lúdicas, coordenativas e com muitas respostas ao seu mun- do de perguntas. Jornais e revistas infantis faziam parte do seu dia a dia. Sua mãe lembra com carinho: “Sua primeira infância foi carregada de muitas fantasias sobre mundos infantis e personagens criados por ele. Era tímido e introspectivo, só se soltando quando havia plateia para seus espetá- culos, de autoria própria. Muito criativo, bem novinho idealizou uma cidade fictícia chamada Catapora”. Os estímulos musicais sempre foram naturais em casa. Sua avó materna, Dona Alda, foi aluna de Villa-Lobos. As brincadeiras lúdicas em casa, com a tia Márcia, sempre envolviam música também. Ismael lembra com carinho de escutar três LPs certa vez com Thiago. O menino, então com quatro anos, ficou manuseando as capas dos álbuns enquanto escutavam embevecidos as fugas de Bach e duas sinfonias (a 5ª e a 9ª) de Beethoven. Passeios com o filho pela Urca, canções ao violão, a voz grave falando de política ou cantando… Ismael ia, assim, desenvolvendo a cumplicidade com o filho em formação. Valéria, agora lecionando numa escola pública da Urca, a Minas Gerais, onde Thiago fez a Classe de Alfabetização (CA),

75 Um baque

dividia-se entre o trabalho e as tarefas domésticas, e ia imprimindo a ima- gem de mulher forte e competente no inconsciente do menino. “Nunca vi ninguém trabalhar tanto na vida quanto minha mãe”, orgulha-se Thiago. E completa: “Às vezes eram dois turnos. Ia de uma escola para a outra. Isso fora as aulas particulares”. Tímido, com poucos amigos, mas muito curioso e interessado pelos mais diversos assuntos, o menino cresceu assim, cerca- do de carinho e afeto. Valéria lembra de um fato curioso: “Foi quando procurei uma escola mais tradicional (a pedido dele) e avisei à coordenadora que, embora só tivesse quatro anos e meio, já estava alfabetizado. As professoras se olha- ram com espanto e disseram que era a síndrome da mãe professora… E, nesse meio tempo, Thiago se distraía lendo em voz alta as instruções do extintor de incêndio da secretaria da escola… Foi um espanto geral e uma gargalhada só!” Thiago não gostava da escola. Achava muito chata. O menino não tinha a menor paciência para o ensino formal. Era ótimo aluno, mas achava tudo muito desinteressante. Mas sempre foi rebelde. Brigava contra a instituição, desafiava os professores, não entendia o sistema de provas. “Eu não tô apren- dendo. Eu esqueci o que eu aprendi ano passado, mas eu passei como um dos melhores alunos”, argumentava com o corpo docente. No fundo, era um menino solitário em relação aos amigos da idade. Não gostava de brincadeiras esportivas ou em grupo e preferia ficar com seus livros ou ter a companhia de adultos. Aos seis anos, já completamente alfabetizado, se desinteressou definiti- vamente pela escola, porque não trazia nada de novo. Terminou o primeiro segmento do primeiro grau com excelentes notas, mas sempre preferiu ficar em casa com seus livros, desenhos e criações a participar de passeios com o grupo escolar. Sempre foi muito estudioso, o CDF da turma. Sofreu bullying na época do colégio, nada que fosse muito marcante, mas passou por alguns maus mo- mentos. Era muito querido por alguns professores. Na quinta série, lembra Thiago, alguns alunos o perseguiram durante o ano inteiro. Mudou de escola algumas vezes e as adaptações não foram fáceis. Era visível e latente a inclinação do menino para as artes de uma maneira geral, e seus pais sempre o incentivaram. Acabaram nunca o colocando em aulas específicas porque ele não quis. Seu grande ídolo na infância foi Chico Anysio. O cearense de Maran- guape, falecido em 2012, fez carreira na televisão. Foi humorista, comen- tarista, compositor, pintor, radialista. Criou cerca de 209 personagens e

76 Paulo Almeida

fez enorme sucesso com seus programas. Chico City era o programa pre- dileto do pequeno Thiago. Tudo ali o encantava. “Quando eu era pequeno, me interessava muito por zoologia. Depois eu fiquei fascinado por Chico Anysio”, conta. E lembra ainda: “O fato de ter um cara que fazia vários personagens me encantava. E era muito brasileiro. Foi meu único ídolo de infância”. Algumas gravações do programa aconteciam perto de sua casa, na Urca, nos estúdios da TV Tupi. Thiago fez tocaia na saída de algumas grava- ções e não demorou para conseguir encontrar seu ídolo. Recebeu muitos elogios ao mostrar um desenho com vários personagens do humorista e ganhou o convite para assistir a uma das gravações. Um dos muitos sonhos que viriam a ser realizados. “Tudo que eu tinha que ver na televisão, eu vi na infância.” Aos dez anos criou e dirigiu um espetáculo na festa de formatura da quarta série. A Escolinha do Professor Raimundo foi homenageada com es- quetes e roteiros para todos os personagens representados pelos colegas de classe. Thiago é o Professor Raimundo!

Segundo baque

Quando seus pais se separaram, Thiago tinha apenas 11 anos. Até então, não percebia qualquer distúrbio ou contratempo em casa. A relação dos pais parecia harmoniosa. Não brigavam, não discutiam, se admiravam. A notícia pegou o menino de surpresa. Thiago e a mãe foram morar com a avó e tia. A convivência com a três mulheres trazia certa segurança e conforto. Mas Thiago sentiu muito a separação e a ausência paterna. Se fechou nos livros e em seu mundo imaginal. Até então, seu único problema de saúde fora uma bronquite asmática que o acompanhou até os doze anos. Mas agora o menino de poucos amigos se distanciava também da família e se mostrava recluso e arredio. Thiago parecia não estar preparado para a vida. “Foi um momento de muita dor e muita solidão”, diz ele. “Meus pais se separaram, fui morar com minha mãe, minha avó e mi- nha tia. Logo depois, minha avó adoeceu, ficou com Alzheimer. E eu cuidei dela, dos 14 aos 18, quando ela morreu. Tive uma adolescência muito tran- cada… sem amigos… Era meio punk. Não saía, nem pensava em namo- rar… nem pensava nisso. Havia tanta coisa para fazer em casa, cuidando da minha vó, que não havia tempo para nada.” O violão era um companheiro. Depois, os livros.

77 Um baque

Desamanhecido Thiago Amud

Riso desfeito em pranto Quando a manhã clareia E um lento desencanto vem

Orvalho na candeia Friagem no recanto E o teu quebranto me ardendo na veia

Quando a noite era um manto Quando era a lua cheia Tu me querias tanto bem

Agora que essa madrugada cora E ao meu lado já não tem ninguém

A barra quebra contra minha cara Amanheço mas não sei pra quem

Sobre a cabeça os aviões

Ismael, agora morando na Gávea, costumava receber a visita do filho com frequência. Ampliava o contato com caminhadas ao sol, muita con- versa e alguma música. Havia demorado quase dois anos para apresen- tar sua nova mulher ao filho, com medo da rejeição. Certa tarde, numa dessas caminhadas, Ismael entoou algumas músicas de Caetano Veloso. Os primeiros versos de “Tropicália”, cantados à capela por seu pai, a sucessão de imagens propostas na letra, a melodia sinuosa e elíptica ti- veram enorme impacto no menino. Thiago lembra bem do dia e conta que um mundo se abriu para ele a partir daquele momento. “E no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão.” A dureza desses versos bateu fundo no menino de 12 anos. Caetano Veloso não era uma novidade para Thiago, uma vez que as músicas do compositor baiano fre- quentavam a vitrola da família junto com , Elomar, Chico Buarque, Quinteto Violado, Fagner, entre outros. “Tropicália” ainda não era conhecida do menino — ou talvez ele ainda não tivesse notado a

78 Paulo Almeida

composição. Thiago voltou pra casa e ficou dias remoendo o efeito que aquela canção tinha despertado nele. A partir dali, ele precisava se ex- pressar também através da música. “Eu fiquei absolutamente tocado com aquilo. Quando chegou no verso ‘criança sorridente, feia e morta estende a mão’. Me veio assim na cabeça: puxa, mas isso é uma coisa assim tão diferente, meu pai está cantando uma coisa assim tão diferente. Como pode isso? Me veio a contradição da imagem e violência e o sofrimento da imagem. Me pegou por aí”, diz. E arremata: “Depois eu fui a um show do Caetano, acho que ia fazer 12 anos… O Circuladô. Aquilo foi decisivo. Lembro de ficar uma semana dige- rindo. Aquilo abriu uma perspectiva pra mim de fuga da chatice das coisas”. Logo pediria um violão ao pai. Dias depois, ganha de Cecília, sua ma- drasta, o songbook do Caetano Veloso. E para espanto de todos, Thiago apren- de a tocar sozinho e logo desenvolve habilidade ímpar na construção de acor- des complicados. Ganha, naquele momento, mais um companheiro, além dos livros. Logo, Thiago passaria também a compor. E nunca frequentou aulas particulares ou escola de música na infância. Foi aprendendo sozinho, intuindo e estudando os songbooks que passaram a habitar sua estante junto com os outros livros. Aos poucos foi aprendendo a maneira certa de tocar as batidas, as leva- das que eram sugeridas nos livros do Almir Chediak. Só agora, mais velho, Thiago se dá conta e se espanta com sua forma de aprender violão. “Comecei a compor com 13 anos. Fiz duas músicas e parei. Depois, com 14 anos, fiz mais duas e parei. Apenas com 16 eu compus aquela que considero a primeira música boa, que é ‘Roseiral perdido’”. Thiago lembra orgulhoso: “Ganhei festival do Hélio Alonso. Participei durante quatro anos e ganhei os quatro — o primeiro, em 1995, como melhor letra para a música ‘Fim’; o segundo como melhor mú- sica para ‘Roseiral perdido’; o terceiro como melhor letra novamente; e o quarto como melhor música para ‘Lua mulher’ — uma música boa que ainda toco, assim como ‘Roseiral perdido’”. “Comecei com o ‘Fim’ (risos), a música falava sobre o fim do mundo, quando o destino e o acaso lutavam. Essa música era muito ruim”, lembra ele com bom humor.

Roseiral perdido Thiago Amud

Flores, flores num roseiral perdido

79 Um baque

Cores num roseiral perdido Dádiva de sonhar

Flores, flores num roseiral perdido Cores num roseiral perdido Dúvida de voltar

Procuro pelas rosas na cidade Em frias sementeiras ao relento No sonho vivem plena eternidade No mundo morrem dentro do momento

Se durmo, eu pego o veio da poesia Se acordo, a longa espera é malograda O campo se dissolve à luz do dia Mas torna a vicejar na madrugada

Na hora em que pra sempre é nunca mais Replanto nostalgias, colho ânsias E corro por distâncias imateriais

Enquanto nessa estufa sou cativo E o mundo despetala mais que o sonho Aguardo as rosas do jardim esquivo Brotarem nas cantigas que eu componho

Flores, flores num roseiral perdido Cores num roseiral perdido Dúvida de voltar

Flores, flores num roseiral perdido Cores num roseiral perdido Dádiva de sonhar

Um ano antes da primeira participação de Thiago, uma das juradas foi Maria Bethânia. Tudo por causa do prestígio de Júlio Machado. Júlio Expedito Machado Coelho, professor de história muito querido por seus alunos, era um agitador cultural (muito antes de a expressão virar moda). Carioca, nascido em 1939, ficou famoso como o Xangô do Salgueiro,

80 Paulo Almeida

personagem que encarnou nos desfiles da escola desde 1969 (ano em que conquistaram o campeonato com o enredo “Bahia de todos os deuses”) até o ano de sua morte, em 2007. Júlio organizava o Festival Hélio Alonso com raro empenho para um evento amador. Nas participações de Thiago Amud, por exemplo, os jurados eram Paulo César Pinheiro, Paulinho da Viola, Elza Soares e Elke Maravilha. O Festival, que anos antes revelara nomes como Fátima Guedes e Sandra de Sá, dava agora seu aval àquele menino franzino. E o menino já mostrava vigor em suas composições. “Essas músicas que eu fazia com 17 anos eram músicas já influenciadas por tudo que eu escutava na época: Egberto [Gismonti], Matita Perê [Tom Jobim], muito Milton Nascimento, Toninho Horta. Mas tudo ao meu modo. Nada mui- to diferente do que eu faço hoje. Nessa época eu sentia uma liberdade muito grande.” E sua relação com a música é mesmo muito livre. Não são as estru- turas complexas que o seduzem. Quantidade de acordes não fala sobre a qualidade da música. A música tem que “conduzir alguma emoção, tem que fazer algum sentido, mesmo que seja o sentido do tortuoso. Mas tem que fazer um sentido inteiro. Não pode ser só uma mostra de virtuosis- mo estrutural. Não gosto disso. Nunca gostei. Pra mim, música nunca foi uma parada muito cerebral. Nunca foi. Se fosse, eu comporia muito mais do que eu componho”. Só mais tarde, na faculdade de música, na UniRio, teve aula formal — inclusive de harmonia com o Antônio Guerreiro, que havia sido aluno do maestro Guerra-Peixe. Antes, porém, chegou a fazer o Tepem, curso livre de teoria e percepção musical dado na própria UniRio. Nessa época, Thiago tinha 17 anos. O Tepem não era oficialmente um curso preparatório para o vestibular da UniRio, mas de fato era essa sua função. Desde os treze anos, o ímpeto de Thiago era o mesmo: ser cantor compositor, fazer uma obra.

Plano de carreira Thiago Amud

Vou parafrasear o poeta ao invés de inventar em vão Vou te roubar um beijo sem pejo ao invés de teu coração Vou lapidar uma ova! Vou dar Vou dar uma de mamulengo (lengo lengo lengo…) Vou pra lá, vou pra cá

81 Um baque

Pra Jacarepaguá, pro Jaboatão Vou parar de cantar por amor, vou cantar só por profissão Vou te dar muito orgulho Ou em junho ou em julho vou pintar na televisão Vou amealhar meu primeiro milhão Porque vão bombar meu primeiro refrão No verão

Quando ele pegar Eu te pego, eu te pego, eu te pego Quando ele pegar Eu te pego, eu te pego, eu te pego Quando ele pegar Eu te pego, eu te pego, eu te pego Ai, se eu te pego!

Vou piripaquear de tanto paparazzi no meu jardim Vou piparotear com tanta periguete em meu camarim Vou aprender uns truque, vou inchar os muque Sensualizar no pasquim Vou deixar de juntar cupim Vou demitir a velha consciência Vou parar com essa lenga-lenga (lenga lenga lenga…) Vou reinar no Pará Em Jacarepaguá, em Paramirim Não vou nem me lixar pro intelectuário tupiniquim Vou ser pirateado, perder uns trocado Mas nadar num mar de dindin Vou botar a imprensa de quatro por mim Que o refrão é fraco quando o ‘marquetim’ é ruim

Quando ele pegar Eu te pego, eu te pego, eu te pego Quando ele pegar Eu te pego, eu te pego, eu te pego Quando ele pegar Eu te pego, eu te pego, eu te pego Ai, se eu te pego!

82 Paulo Almeida

O compositor

Thiago acha que a inspiração é fundamental para que a composição co- mece a ser desenvolvida. Não sabe trabalhar “sob encomenda”, embora tra- balhe bastante. Costumam pedir muitas letras para ele. É um compositor extremamente cuidadoso com suas obras. Dedica muito tempo a tratar as letras, a melhorar a melodia, a buscar o melhor acorde. Essa minúcia parece acabar freando seu ímpeto criativo. Ele acaba se revelando um crítico severo de sua obra e por vezes acha que determi- nada canção não precisa ser feita, que não deve ser feita. Cintia Graton, sua mulher, revela que ele “trabalha muito, sempre que está num processo de criação, seja de composição, arranjos ou mesmo ensaiando para shows. Fica muito concentrado no que está fazendo”. Durante a entrevista para este livro, Thiago falou sobre uma composição recente: “estou compondo agora. Estou no meio de uma música. O anticrí- tico. Depois eu descobri que tem um livro do Augusto de Campos com esse nome também. Mas vou manter esse nome mesmo assim. É um galope. Uma caça ao espírito crítico”. E começa a cantarolar: “Pega o espírito crítico/ tá solto pela cidade/ carrega o espírito crítico…”.

Descobertas

Começou a beber com 18 anos. Após entrar na faculdade. Lembra com certo desconforto que “esse período da faculdade começou com um furor de estudo”. Isso foi em 1999, quando entrou para a faculdade de letras na UERJ. As aulas formais — isso não mudou para ele — eram um tédio. Então, fugia da faculdade para ler. Nessa época leu tudo do Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Kafka, Machado de Assis. “Eu ia para a Biblioteca ler. Eu não queria as aulas. Acabava fugindo para a biblioteca da UniRio. E levava meus próprios livros”, conta. E acabou largando a faculdade de letras sem seus pais sabe- rem. Um ano depois, em 2000, entraria para a faculdade de música da Uni- Rio. “Demorei a levar a sério a faculdade. Eu era rebelde demais com isso. Achava um saco. Sempre fui CDF achando um saco. Uma obrigação pesada. Gostava mesmo era de estudar sozinho. Ou com um grupo de estudos. Sala de aula eu acho um saco.” Pouco antes da faculdade de música começou a se enturmar com ami- gos que tinham a música como afinidade primeira. Montou uma banda cha- mada Regonguz, com algumas pessoas que ainda hoje são muito próximas:

83 Um baque

Rodrigo Ponichi, Thomas Saboga e Larissa Goretkin. Essa banda tocava basi- camente composições suas e de Rodrigo. Duas músicas de seu primeiro CD Sacradança são dessa época: “Regonguz” e “Quando existe carnaval”. Foi essa sua primeira banda, formada em 1998/1999.

Regonguz Thiago Amud

— As coisas estavam cheias de Espírito Santo… Regonguz é capaz de ser Outro nome que tem vento Em sertões de tempo lento Viração do ar num centro Redemunho quer dizer

Ou talvez regonguz será A alcunha do capeta Algum boi da cara preta O alfabeto sem a letra A palavra sem lugar

Não está no dicionário Mas também… Pouca coisa lá está No princípio era o Verbo E nem existia dicionário ainda por lá

Regonguzeia, meu bem Faz bem regonguzear Toda palavra que te mete medo Claro que é quase pra te pegar

Voz que espanca o ar Zum zum zum, algaravia Quando espoca em noite fria É que a realegria Toca o Urubuquaquá: (Ei andei andei andá Dei diandá diandei

84 Paulo Almeida

Diandá diandalei Diê diá Ei andá andá andei Dei diandá dendalei danda Ei andei andei lá) — …e fez-se o Alfabeto.

Em 1999, ganha o segundo lugar no Festival Rio Jovem Artista com a música “Lua mulher”. Em 2000, fica com o terceiro lugar com a música “Regonguz”, quando Guinga o reconheceu (o primeiro lugar ficaria com a compositora Paloma Roriz). E esse reconhecimento foi um choque. Já era fã do Guinga e, ao final do festival, o ídolo chama o jovem e diz que queria que “Regonguz” tivesse sido a campeã. Já havia falado isso, no ano anterior, quando a concorrente era “Lua mulher”. A primeira coisa que Guinga per- guntou ao jovem foi se ele ouvia música erudita e se estudava música. E fez um vaticínio: “Sua música é tão boa que talvez você passe fome”. “Me lembro de ter ficado orgulhosíssimo! Pô, o Guinga falou que eu vou passar fome!”, conta Thiago entre risos. Em 2000 começa a namorar Paloma Roriz. Em 2001 conhece alguns novos músicos cariocas: Fernando Vilela e Pedro Sá Moraes. Pedro promovia um sarau no Leblon, num lugar chamado Panorama, toda terça-feira. Thia- go foi aceito no grupo logo na primeira vez que foi ao Sarau. Ali se sentiu acolhido. Tocou seis ou sete músicas e ficou espantado com a receptividade. Era uma época de muita leitura e muita inspiração. Thiago estava compondo bastante. E estava completamente apaixonado por Paloma. No fatídico 11 de setembro de 2001, quando as torres gêmeas desmo- ronam no mais ambicioso e brutal ataque terrorista de que se tem notícia, Thiago e seus parceiros estavam ensaiando para um show chamado “A lira e a lâmina”, que ficou três meses em cartaz numa casa chamada Espírito do Chope, na Cobal do Humaitá. Nessa época, Guinga o convidava para muitas canjas. E, por causa dele, Thiago acabou conhecendo Edu Kneip, que viria a ser seu amigo e parceiro. Edu abria um show do Guinga; Thiago estava na plateia e foi chamado a participar da apresentação. Em 2003, fica muito impactado ao ouvir o CD Alegria dos homens, de Ar- mando Lôbo. “Foi uma coisa que me parecia nova na música brasileira”, lem- bra. Pouco tempo antes, lera uma entrevista que o jornalista Hugo Sukman fizera com o músico. E tudo coincidia com o que ele pensava. As mesmas referências, que passavam por Glauber Rocha e Suassuna, a importância do estudo da música erudita etc. Tudo aquilo, colocado de um jeito meio

85 Um baque

anárquico, acabou por impressionar Thiago. E gerou o desejo de ouvir o CD e conhecer aquele compositor. Um dia, ensaiando com o baixista BJ, acabou pegando emprestado o CD do Armando e resolveu ligar para o celular que estava no encarte. Ali nascia uma grande e intensa amizade. Naquele encontro, Thiago não foi o único a se encantar. A admiração foi mútua. Armando lembra: “De fato, no Brasil eu nunca havia encontrado pessoalmente um músico dentro da tradição da música popular que tivesse os interesses literários que eu tinha, além de uma abordagem mais ácida”. E continua: “Ele tem várias canções excelentes, é bom de música e excelente de letra, aliás, um letrista do quilate de um Chico ou de um Caetano, até mais erudito que os dois, já extrapolando o limite que a canção suporta”. Nos anos de 2003, 2004 e 2005, Armando Lôbo foi sua grande referência. E responsável também pela sua formação intelectual na época. Armando suge- ria leituras; tomavam porres juntos. “Era um troço violento”, lembra Thiago. Em 2004, fundaram a Confraria da Música Livre. Faziam parte do gru- po: o próprio Armando, Pedro Sá Moraes, Fernando Vilela, Paloma Roriz, Marcelo Caldi, Edu Kneip. A Confraria já apontava para um encontro mais profissional, superando um pouco o amadorismo dos encontros anteriores com “A lira e a lâmina” e o “Regonguz”. “Mas não é um período que me dê saudades”, diz Thiago. Entre 2005 e 2006, dois fatos encorajam Thiago a continuar: a primeira parceria com Guinga, “Contenda”; e Simone Guimarães e Milton Nascimen- to gravam uma parceria sua com Thomas Saboga, “Baião de câmara”.

Baião de câmara música de Thomas Saboga, letra de Thiago Amud

...e se quando o grão desabrochar n’outra estação em vez de dar trigo e arroz se abrir pra nós numa canção e então, vier da brotação como de dentro de um sonho um canto que é medonho de tão fundo que ele vai, rachando a terra de onde sai, purificando os frutos como a bênção de um pai? (Broto de voz

86 Paulo Almeida

ceifando a fome seca do sertão. A voz de pão. Harmonia do chão. Alimento farto a quem pedir, unguento santo a se parir jorrando ao léu como se Deus resolvesse existir)

Não assustaria se o chão rasgasse um dia e, ao invés da safra que se esperou irrompessem ecos de plena poesia. Não se espantaria quem semeou. Quem lavrou a terra, o solo arou, pôs água, entendeu da terra o pulso oculto, a invisível vibração, ofertou à terra um coração sem mágoa tomaria a música em sua mão e a repartiria na proporção mais justa com os miseráveis da região:

Mantras vegetais, etéreos grãos de sinfonia, modas cereais e folhas de polifonia. Ai, quanta folia! Uma canção aberta em flor.

E quem quisesse os lucros da colheita teria que enfrentar a multidão armada de alegria e satisfeita, comendo a melodia do baião

Baião, baião, baião...

Nessa época havia também a presença do Antônio Máximo. Juntos, Thia- go, Armando e Antônio criaram o Bandarra, que na definição de Thiago era “um negócio assim de intervenções poéticas, musicais, etílicas… que acon- teceu três vezes só e nunca mais”. “O coletivo se chamava Confraria da Música Livre. Era meio mal estru- turado, pois todo mundo falava o tempo todo e as coisas acabavam sem acon- tecer. Mas foi muito bom o convívio social e intelectual com o pessoal. Além da Confraria, fizemos o grupo multimeios Bandarra, com Antônio Máximo. Fizemos duas ótimas apresentações. Artes combinadas são a noção que mais define minhas propostas musicais; assim, o Bandarra pra mim foi até mais empolgante que a Confraria”, revela Armando Lôbo.

87 Um baque

A amizade com o genial e genioso Armando Lôbo acabou cobrando seu preço. “O preço de uma fidelidade canina a algumas coisas que não me eram caras”, lamenta Thiago. “Como uma condenação total da chamada MPB. Uma iconoclastia em relação à MPB, como se ela fosse uma média cultura que tivesse que ser superada por uma tomada de consciência do artista eru- dito. E é por conta dessa minha vivência nesse âmbito durante muito tempo que até hoje eu sou muito estigmatizado”, diz. E se justifica: “Eu nunca de- fendi propriamente isso. Eu estudava bastante. O Armando, além de estudar bastante, era muito aguerrido. E muito desse aguerrimento dele se colou em mim. Mas foi importante. Foi fundamental para eu me descolar de vá- rias bobagens, vários maneirismos, com os quais já me incomodava. Coisas que estavam muito próximas a mim, mas eu não me identificava. Eu nunca me identifiquei com essa coisa brejeirinha, ‘bondosinha’, que se espera do cancionista abraçado ao violãozinho. Nunca me identifiquei com isso. Eu era organicamente avesso a isso. Desde o começo, eu quis fazer uma coisa que fosse um movimento. Uma mudança na consciência da relação com as coisas da cultura brasileira. Desde o começo eu sempre quis fazer isso! O Arman- do, dez anos mais velho que eu, chegou me influenciando nesse sentido”. Em 2006, Armando Lôbo convida Thiago para participar de seu disco Vulgar e sublime. E em 2008, Thiago o convida para participar do seu primeiro CD, Sacradança. Nessa época, lembra ele, “esboçamos fazer um Duo Amud Lobo, marcamos o show, ensaiamos para o show, que aconteceria na Sala Ba- den Powell. Choveu muito, caiu o [túnel] Rebouças, e o show foi suspenso”. Nunca mais fizeram nada juntos. A partir desse momento, os dois se afastam. Thiago admite que “o Sa- cradança tem alguma influência do Armando. Nem tanto musicalmente, mas principalmente na coragem de ser hermético sem culpa”. O rock progressi- vo, por exemplo, e as guitarras distorcidas, segundo Thiago, estariam fora do radar de Armando Lôbo e se faziam muito presentes ali em Sacradança. Tudo o que filtrava desde a adolescência — Elomar, baião, frevo, caboclinhos, João Cabral, Luiz Gonzaga, Graciliano, Bandeira — estava ali. E tudo aquilo já fa- zia parte do “repertório” de Thiago Amud antes de Armando Lôbo aparecer. Mas diz: “o Armando me fez prestar mais atenção no Gilberto Freyre”. Armando e Thiago foram se afastando após a gravação de Sacradança. O CD, gravado em 2008, levou muito tempo para ser mixado. Quase um ano. E só foi lançado em 2010. Na época do lançamento, eles já não se falavam havia cerca de um ano. Thiago não convida o amigo para o show de lançamento de seu CD. E é uma fase dura. O CD é recebido de modo frio, não há críticas re- levantes, o espaço na imprensa é ínfimo, as casas de show no Rio de Janeiro vão

88 Paulo Almeida

fechando suas portas, e de repente vem o rompimento definitivo com o ami- go. Armando envia um e-mail bem violento para Thiago, que revida também violentamente. Thiago considera esse episódio como sua primeira e verdadeira briga. Anos depois, descobrem ambos que o relacionamento foi sendo minado por intrigas feitas por um músico que andava com os dois na época.

Contenda Guinga e Thiago Amud

Sou a dobra de mim sobre mim mesmo Nesse afã de ganhar de quem me ganha Tento andar no meu passo e vou a esmo Tento pegar meu pulso e ele me apanha Eita, sombra rival que me acompanha Artimanha de encosto malfazejo

Rodopiei, beijei o chão, cambei pra cá Meu mestre rei foi Salomão, camará!

Dou um talho em meu próprio sentimento Pra que o mundo fulgure na clareira Que esse nervo me aviva o sofrimento Que esse olho é motivo de cegueira Ê, presença difusa, desordeira Giro de furacão sem epicentro

Desafiei, puxei facão, ponguei pra lá Vazei no peito esse intrujão, camará!

Evém pernada aí Vem não, foi desvario Evém navalha aí Vem não, foi calafrio A roda vai abrir Quando eu cair Por um fio Camará

Meu sangue arredio, arrevesado

89 Um baque

Arranco e derramo em oferenda

Mas não boto fim nessa contenda Com meu coração esconjurado Camará

Sei de um rosto escondido no espelho Bem depois do cristal iridescente Entro no meu juízo e destrambelho Entro no meu caminho e passo rente Eita, angústia que vai minando a gente Capoeira contra Pedro Botelho

Serpenteei, botei pressão, varei o ar Parei no meio do desvão, camará

Evém pernada aí Vem não, foi desvario Evém navalha aí Vem não, foi calafrio A roda vai sumir Quando eu cair No vazio Camará

Meu corpo erradio, arrebatado Debulho na boca da moenda Mas não boto fim nessa contenda Com meu coração esconjurdo Camará

Voo solo

Em 2008, Thiago conhece sua atual mulher, Cintia Graton. Começam a namorar três meses antes de lançar o Sacradança. Cintia lembra bem como foi o começo: “Fui com a Ilessi e outras amigas assistir ao show no Semente. Era na época em que eles tocavam nas noites de terça, faziam o primeiro bloco e depois abriam o palco para canjas de novos composito- res. Fomos apresentados pela Ilessi, conversamos superficialmente. Nos encontramos em várias circunstâncias, sempre em shows de amigos e no

90 Paulo Almeida

Semente. Depois de um desses encontros ele pediu meu contato para ela e tudo começou”. Cintia já conhecia a música “Contenda” do disco do Guinga, Casa de Villa. A amiga já havia falado dele e do Edu Kneip, que eram grandes composito- res que estavam começando a aparecer. Falou também do projeto deles que acontecia no Semente, o Sonâmbulos — com Thiago, Edu, Mariana Baltar e Sergio Krakowski. Foi a deixa para que ela fosse lá matar a curiosidade. O ano de 2008 é ainda marcado pela decisão de abandonar o ateísmo e se converter ao catolicismo. Naquele ano ele é batizado pela vó Maria Augusta e é também crismado. Comunga pela primeira vez. A cerimônia é celebrada na Igreja Nossa Senhora da Paz, a mesma onde, em 1973, Pixin- guinha morrera em pleno carnaval. Apesar de ser bem recebido entre seus pares, poucos críticos falaram sobre o Sacradança. Somente Tárik de Souza, Aquiles (do MPB4) e Ed Mot- ta — que chegou a comparar Thiago com Frank Zappa — fazem comen- tários relevantes sobre o trabalho. Marcelo Pera, diretor artístico do selo Delira Música e responsável por lançar os dois primeiros discos do jovem músico, diz que não sabe “se temos imprensa especializada atuante com a capacidade de formar opinião como outrora. Mas creio que os profissio- nais mais antigos descobriram [o Thiago] sim”. Lembra com carinho como conheceu o trabalho: “O Thiago foi-me apresentado pelo Armando Lôbo. A partir do Armando, a Delira resolveu apresentar mais trabalhos de novos autores brasileiros. Muitos chegaram até nós. Obviamente, não tínhamos capacidade de lançar tudo que nos agradava. Procuramos enxergar quem tivesse a proposta mais inovadora, e com menos amarras à MPB, que pudes- se romper com certa tradição”. E diz que o trabalho do Thiago “tem grande intensidade no arranjo e na composição. Sua voz firme de colorido clássico faz certo contraponto com isso. Ele traz algo realmente novo como resul- tado. As letras são incomparáveis”. Por isso, continua, é “impratileirável”. “Acho que está mesmo na hora de abandonarmos os gêneros. Com exceção da música superpopular, é tudo muito fragmentado. A música do Thiago não parece existir por uma prateleira ou em busca de um gênero. Obviamente, é um desafio pra ele. Mas é o que é”. Após esses anos de promessa de felicidade, a indiferença ao disco Sa- cradança é recebida com muita dor. Thiago, que tem depressão desde os 20 anos, teve uma crise muito forte. Até então, não tratava clinicamente da doença. Olhando para trás, Thiago percebe que o álcool foi uma tentativa inconsciente de fugir do problema. Bebeu muito durante esses anos que an- tecederam o lançamento de Sacradança.

91 Um baque

Os anos passam num completo ostracismo, mas ele continua compon- do muito e ampliando os pontos de contato com seus pares. Os clipes de “Aquela ingrata” e “Marcha dos desacontecimentos”, que foram feitos para divulgar o disco, davam alguma resposta positiva para Thiago. Mas tudo ainda sem muita energia.

Marcha dos desacontecimentos Thiago Amud

Pra me desanuviar da culpa Condenei a cristandade Conspirei contra a cultura

Quando o peito abriu pra piedade Destilei cinismo ralo Pra poder beber no Baixo

Para me evadir das evidências Repeti relativismos No que fui muito aplaudido

Como o sofrimento me enfadasse Engajei-me numa ONG Dei abraço na Lagoa

Para que o assombro da verdade Não doesse quase nada Reclamei cidadania

Quando uma memória me exigia Contrição ante o sagrado Apertei um baseado Sou da legião, peço passagem

Ponho o rancho na avenida Taco a vida na voragem Para aliviar a consciência Transtornei meu livre-arbítrio

Num instinto de toupeira Como o meu projeto não vingasse

92 Paulo Almeida

Rebelei o baixo-ventre

Descobri-me comunista Pra vogar na crista da história Recortei o meu destino

Como manda o figurino E se a criação me revelasse A mão suprema que a sustenta

Eu tinha um plano de imanência Pra glorificar minha vontade Eu desconstruí o mundo

E pus o mundo na linguagem Quando fulgurou a Parusia Gracejei, pois bem sabia Que era mais uma palavra

Sou da legião, peço passagem Ponho o rancho na avenida Taco a vida na voragem

Novos encontros

As coisas iam muito mal. Até que no final de 2011 nasce o Coletivo Cha- ma. Um momento de felicidade completa. Amud, Thiago Thiago de Mello e André Felix se reuniam semanalmente no bar Palhinha, um pequeno boteco no Largo dos Leões, no Humaitá. Num show do grupo Escambo no bar Semente, Thiago Amud e Edu Kneip foram convidados a participar. O bar Semente era um pequeno estabelecimento na rua Joaquim Silva, em pleno coração da Lapa, e foi responsável por abrigar e dar espaço a boa parte da cena carioca que se formava a partir dos anos 2000. Nesse show do Escambo, estavam na plateia André Félix, Ivo Senra e Cezar Altai. Ao final do show, Thiago Amud sugeriu chamarem Pedro Sá Mo- raes e Marcelo Fedrá para fazerem algo — para que “a gente mude nossa relação com a música”. “Acabou o amadorismo! Acabou a infância. Vamos fazer!”, bradou ao grupo reunido. Foi o estopim para a criação do Coletivo Chama. O grupo passou a se reunir com frequência para falar sobre música,

93 Um baque

literatura, crítica, mercado cultural etc. Nada passava ao largo daqueles olha- res atentos e críticos. Em 2012, seu parceiro Edu Kneip manda um e-mail para o jornalista e crítico de música Leonardo Lichote, do jornal carioca O Globo, questionando a falta de espaço para ele e seus parceiros cariocas. Edu, nessa época, traba- lhava na Livraria da Travessa e foi enfático ao questionar a presença maciça de alguns nomes na mídia que não se revertiam em vendas nas lojas especializa- das. Por que, então, eles também não poderiam ter algum espaço na mídia, uma vez que produziam tanto quanto os queridinhos do momento? Leonardo Lichote percebeu que havia algo realmente interessante e genuíno acontecendo ali, resolveu fazer uma matéria sobre a cena e mar- cou uma entrevista com alguns daqueles compositores. A entrevista aconte- ceu no apartamento do músico Sergio Krakowski e estavam presentes Edu Kneip, Armando Lôbo, Pedro Sá Moraes, Sergio e Thiago Amud. A entrevista, regada a muito vinho, acabou sendo um momento de ca- tarse. Tudo que estivera acumulado durante esses quatro anos estava sendo cuspido ali perante um dos maiores jornais do país. E coisas impublicáveis foram ditas. Comentários de mesa de bar escaparam, e os olhos e ouvidos atentos de Leonardo Lichote não ficaram indiferentes. A matéria de capa, in- titulada “Geração fora do tempo”, publicada no dia 22 de fevereiro de 2012, teve enorme impacto no meio musical. Ninguém ficou indiferente a ela. E as redes sociais repercutiram o alvoroço. Restou aos cinco entrevistados cuidar de se esquivar das críticas, se defender das pedradas e tentar se justi- ficar. Poucas pessoas apareceram para acalmar os ânimos. O estrago estava feito. Dois dias depois, O Globo publicava nova matéria, em resposta à pri- meira, com comentários da classe artística. A partir daí, várias portas seriam fechadas. Os primeiros a darem a eles salvo-conduto foram os integrantes do gru- po mineiro Graveola e o Lixo Polifônico. Minas começava a acenar para Thiago Amud. Tocam juntos. E ele se vê novamente reconfortado. Em 2013, as coisas começam a ficar mais sólidas, e Thiago Amud começa trabalhar no novo disco De ponta a ponta tudo é praia-palma. Com produção de Jr Tostoi, o CD é lançado no final do ano. Logo recebe várias críticas positivas. Ganha capa do Segundo Caderno, suplemento cultural do jornal O Globo, e é eleito (pelo mesmo jornal) como um dos dez melhores CDs do mundo lançados naquele ano. Nesse período, o trabalho de Thiago chega aos ouvidos de Caetano Veloso, que reconhece ali um grande compositor e passa a citar frequentemente Thiago Amud como herdeiro e grande artista.

94 Paulo Almeida

O sucesso de crítica, porém, não se reverte em sucesso de público. Não há espaço para shows e as apresentações do CD são poucas. Apesar dos pou- cos convites e shows para seu trabalho, o Coletivo Chama consegue ter vá- rios projetos aprovados em editais. Isso permite que Thiago Amud circule com seu show pelo Brasil. Por conta dos projetos do Coletivo Chama, co- meça a ter contato com poetas e atores importantes, como Tereza Seiblitz, Emílio de Mello, Elisa Lucinda, Clarice Niskier, Paulo Betti, José Inácio Viei- ra de Melo, entre outros. Em 2014, Thiago realiza uma série de shows no Nordeste e um desses shows, em especial, o toca bastante. O show encomendado para acontecer num centro cultural em Crato, município cearense, estava lotado. E a plateia heterogênea foi uma das mais receptivas e atentas que ele já teve. Após o show, ovacionado, é abordado por muitas pessoas interessadas em saber mais sobre sua obra, sobre seu método de composição, sobre suas influências. Ainda em 2014, faz um show solo no Teatro Sesc Ginástico no Rio de Janeiro. Foi um dos shows mais contundentes do artista, e na plateia estavam Leila Pinheiro, Francis e Olívia Hime, Mariana Baltar e Jorge Salomão. Leila Pinheiro diz que assistiu ao show inteiro como se a ponta de uma faca a em- purrasse contra o encosto da cadeira. No fim desse mesmo ano, realiza uma série de cinco shows no Centro Cultural da Justiça Federal, também no Rio de Janeiro. Todos os shows con- tam com a participação de convidados: Leila Pinheiro, Jr Tostoi, Mariana Baltar e Ilessi, Guinga e o grupo Eco, de Ivo Senra e Lúcio Vieira. Em 2015 Francis Hime grava uma das parcerias com Thiago, “Breu e Graal”. Francis apresentou a melodia para Thiago, que prontamente fez a letra. A música foi gravada no álbum Navega ilumina, lançado em 2015 pela Biscoito Fino.

Breu e graal Música de Francis Hime e letra de Thiago Amud

Onde o grande amor andou? Andorinhou Virou dom sideral Soprou a rosa cardeal Desamanheceu Transpalideceu Na aurora boreal Olhai no céu o vago sinal

95 Um baque

Que o grande amor mandou Aldebarou Pairou paranormal Girou em roda de orbital Encandoideceu Depois se escondeu No eclipse parcial Olhai seu véu de Eurídice astral Cobrindo Orfeu

No carnaval Saturnal anel Ozônio e mel Breu e graal

Memórias do agora

Em 2016 o Coletivo Chama, então formado por Cezar Altai, Thiago Thiago de Mello, Renato Frazão, Fernando Vilela, Sergio Krakowski, Ivo Senra, Pedro Sá Moraes e Amud, entra em estúdio para gravar um trabalho coletivo. O disco, espécie de distopia, é lançado de forma inusitada. Vários formadores de opinião, artistas, cantores, compositores, literatos, poetas, atores, diretores e agitadores culturais são filmados durante a audição do CD e emitem suas opiniões de pronto. O material extraído dali é riquíssimo e propõe uma nova relação com a obra. A leitura crítica do trabalho passa ao largo da crítica convencional dos jornais. 2017 é o ano em que Thiago Amud aprofunda sua relação com os mú- sicos de Minas Gerais, assumindo a curadoria da mostra Cantautores, pro- duz e faz os arranjos do CD de Ilessi e entra em estúdio para gravar seu terceiro trabalho solo, sob a direção artística de seu amigo Ivo Senra. O CD, com 16 faixas, fecha a trilogia iniciada em Sacradança e foi lançado em 2018. Assim como os dois primeiros, o disco foi todo arranjado pelo próprio compositor. Novamente, a ousadia estética ganhou destaque na crítica especializada. O jornal O Globo fez matéria de capa sobre o disco e chamou Thiago de “supertropicalista”. O cinema que o sol não apaga consu- miu mais de 350 horas de estúdio e contou com 73 músicos na execução de suas faixas. Uma das músicas do CD é uma feliz brincadeira de neologismos sobre si mesmo. Thiago parece feliz nesse momento.

96 Paulo Almeida

Autorretrete Thiago Amud

Pálido lastimagro Candango cambaio Logicaótico adiantardo Plenilusco-fusqueimado Libelulanjo caleidoscópio Vazalume estremunhado

Abaporu cobaio Zambeta zangado Ludicolérico alanceado Protoprinspe supersapo Sonambuláporo cornucópio Minotauro anistiado

Thiagonizante Metamorfético infante Maremoto-boy Celancantor popular Hipopotálamo errante Autorretrete aberrante Cidadoido brasilhado Tropicalheado Indócil barbaropata catártico Poetapato Liricolapso encapsulado Andropoide macacabro Ornitonírico semiópio Neurastênio abarrocado

Agnus Dei bastardo Pró-feto priapo Lubricatólico encalacrado Psicopompo episcopado Aristotêmico mitoscópio Verbossauro angustiado

97 Um baque

Tiagonizante Metamorfético infante Maremoto-boy Celancantor popular Hipopotálamo errante Autorretrete aberrante Cidadoido brasilhado Tropicalheado Indócil barbaropata catártico Poetapado Idiossincrético estropiado Debilove girovago Alacricri simulacronópio Pós-conservolucionado

Pálido lastimagro Zambeta zangado Liricolapso encapsulado Psicopompo episcopado Alacricri simulacronópio Pós-conservoluciolibelulanjo caleidoscópio Vazalume estremunhadambuláporo cornucópio Minotauro anistiornitonírico semiópio Neurastênio abarrocaristotêmico mitoscópio Verbossauro angustiago

Recém-casado com Cintia Graton, o músico se divide agora entre au- las de violão e harmonia para jovens e adultos e as composições. Mora em Botafogo, numa pequena rua sem saída, onde é vizinho de Hermínio Bello de Carvalho. Sua mãe, aposentada, continua morando na Urca com a Tia Márcia. O pai mora com a mulher, Cecília, em Bananal e trabalha com reflo- restamento e venda de sementes de árvores. Vô Ismael e Vó Maria Augusta seguem juntos e alegres, apesar das inúmeras recentes internações de Dona Maria, que sofreu mais de um AVC, alguns infartos e é diabética — mas diz todo dia que ama a vida e a família. “Você precisa ver as gargalhadas que ela dá”, diz o neto coruja, que ainda adora ouvi-la cantar e sonha em gravá-la cantando. Pois gente é pra brilhar!

98 Céu: no tempo da canção expandida

Pérola Virgínia de Clemente Mathias

Tendo lançado em 2016 seu quinto disco, Tropix, a crítica musical bra- sileira parece finalmente enxergar em Céu o que ela sempre foi: a cantora e compositora protagonista de seu próprio trabalho. Parece óbvio que seja assim, que o artista seja reconhecido pela própria obra — a não ser que se descubra fraude, charlatanismo ou algo do tipo —, mas não é o que tem acontecido. Quando Céu lançou seu segundo disco em 2009, o álbum Va- garosa, a crítica procurava ali qualquer traço que dissesse que quem dava as coordenadas da sonoridade do disco eram seus produtores, todos homens. Seu canto? De produtor. Seu sucesso? Alçado pelos parceiros. Suas músicas? Não eram canções. Até agora, doze anos se passaram desde o lançamento de seu primeiro disco e mais tantos outros desde que Céu se apresenta como cantora na noite paulistana e que rodou o mundo com sua música e sua ban- da — sempre masculina. Mas é também só agora que a crítica parece ver em Céu mais do que a cantora promessa, a voz fresca da nova geração, e a reconhece pelo conjunto da obra que ergueu. O porquê, ou os porquês, de tanta luta, podemos imaginar vários, mas nenhum que conteste seu talento e o fato de que ela se firmou como um dos nomes proeminentes da nova geração da música brasileira, ainda que não possamos, hoje, definir cânones e protagonistas dentro deste campo como fora possível até meados da déca- da de 1980. A beleza de Céu, que eu traduziria como a consistência de sua obra, é, como ela mesma canta em “Bobagem”, “um belo samba que ainda está por vir”. Em fevereiro de 2006, a Folha de S.Paulo publicou uma matéria in- titulada “A Bolsa de apostas: doze produtores indicam quem deve bom- bar neste ano. A cantora Céu, Mombojó, Instituto e Turbo Trio estão entre os eleitos”. O texto de Adriana Ferreira Silva e Tereza Novaes apontava estes nomes como as novidades do ano, artistas iniciantes e diferentes dos que compõem o “Olimpo” da música popular brasilei- ra — e que também lançavam discos novos naquele ano, como Chico Buarque, e Marisa Monte. Mas entre os “independen- tes” se questionavam: “quem fará o barulho que o Cansei de ser sexy fez ano passado?”. As críticas da Folha de S.Paulo procuraram, para es- crever a matéria, doze produtores para saber quais seriam as tendên- cias na música nacional, considerando os produtores como “aqueles

99 Céu: no tempo da canção expandida

profissionais que acompanham o processo de gravação do artista — que prestam serviço tanto ao indie como ao ‘mainstream’”, trabalhando tanto dentro como fora das gravadoras. Dos doze produtores consulta- dos, cinco apostavam em Céu1. O produtor, que é um agente relativa- mente novo e complexo na dinâmica do mundo musical, é visto pela re- portagem como a figura imbuída de autoridade para legitimar novidades sonoras e carreiras. É interessante notar também que os “independentes” são classificados pelas jornalistas como aqueles que “constroem sua car- reira no boca a boca”. Vanessa Gatti (2015), em seu estudo sobre a nova música brasileira, aponta que a expressão “nova geração da música brasileira” ou “Nova MPB” começou a ser utilizada por artistas, jornalistas e blogueiros no fim da década de 2000 para se referir a um grupo de músicos e compositores que tinham algumas características em comum. Dentre essas características, a autora aponta: a) produção de músicas autorais; b) declaração por parte dos artistas de estarem fazendo música independente; c) estabelecimento de parcerias, trocas e colaborações que instituem uma rede de relações de amizade e tra- balho; d) o fato de frequentarem os mesmos lugares na cidade de São Paulo2. Para Gatti (2015, p. 15): “A Nova MPB muitas vezes se apresenta somente como um grupo de amigos em que a colaboração e troca são aspectos que ajudam a alavancar suas carreiras de maneira coletiva”. E neste grupo estabe- lecido especificamente em São Paulo, apesar de nem todos serem paulistas, Gatti diz que dentre os nomes que aparecem de forma recorrente tanto nas falas dos músicos como nas críticas de jornais e revistas estão Tulipa Ruiz, Tiê, Dudu Tsuda, , Tatá Aeroplano, Mariana Aydar, Andreia Dias, Márcia Castro, Trupe Chá de Boldo, Gustavo Ruiz, Céu, Gui Amabis, Rafael Castro, Anelis Assumpção, Iara Rennó, Filipe Catto, Thiago Pethit, Luísa Maita, O Terno (Martim Pereira, Guilherme d’Almeida e Victor Cha- ves), Leo Cavalcanti, Karina Buhr, Romulo Fróes, Marcelo Cabral, Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Thiago França, Daniel Ganjaman, Curumin, Rodrigo Campos e Criolo.

1 A reportagem não nomeia todos os doze produtores, mas cita alguns como Beto Villares, Apollo 9, Marcelinho da Lua, Pena Schmidt, Zé Gonzales, Daniel Ganjaman, Carlos Eduar- do Miranda e Kassin. 2 A cidade de São Paulo é apontada por Gatti como o cenário da nova música. No entanto, a cena independente é muito mais difusa, tanto em produção quanto em circulação e recepção do que foi a MPB tradicional, por isso é preciso problematizar a questão do lugar.

100 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

Céu tem parceiros que mantém desde o primeiro disco, como Beto Villares, Antonio Pinto, o coletivo Instituto, Gui Amabis, Lucas Martins, os músicos da banda Nação Zumbi, como Pupillo, Dengue e Jorge Du Peixe, Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Rodrigo Campos, Anelis As- sumpção, Thalma de Freitas (estas duas, junto com Céu, formam o trio de vozes Negresko Sis) e Tulipa Ruiz. Além de colaborações nos discos, assi- natura na produção, composições e apresentações em parceria. Quando olhamos para a configuração do campo musical, o papel e as relações entre os músicos acabam ganhando destaque, mas há uma gama de agentes par- ticipando do campo, permitindo sua configuração e funcionamento: pro- dutores, sobretudo, mas também empresários, selos, distribuidoras, casas de show, técnicos de som etc. Há na música contemporânea uma difusão e circularidade dos papéis, influências múltiplas na criação, na composi- ção e na autoria, aspectos que passam cada vez mais a ser coletivos. Neste sentido, é interessante o que a cantora diz em uma entrevista à TPM em janeiro de 2010:

O Vagarosa transpira um sentimento de contemporaneidade. Ele realmente tem o tom de 2009, com as questões de 2009, com a urgência de hoje. E uma coisa muito legal é que ele é feito em rede, buscand o parceiros. Como é que você desenvolveu uma relação com esses parceiros que estão no disco, como o [Fernando] Catatau, o BNegão, o Rodrigo Campos?

Eu acho que é uma coisa minha, de raiz, da minha relação com a mú- sica. Porque música para mim é respiro, é liberdade. E, tipo, compe- tir através dela com outras pessoas, é uma coisa que existe e é o que é. Já passei da fase de contestar isso. […] Sendo assim, acho que São Paulo está abrigando muita gente, não só daqui, mas do Brasil todo. E eu estou muito feliz de estar vivendo nessa geração, porque tem muita coisa boa.

E tem o sentimento de geração, né? O Romulo Fróes tem um pen- samento interessante sobre isso. Ele aponta com muita propriedade que essa é uma geração que não tem uma questão de homogeneizar o som, não é uma geração em que todo mundo pensa igual. Mas uma geração em que todo mundo se ajuda. Tem um pensamento de colaboração, de ajudar a melhorar o trabalho do outro, que é muito novo...

101 Céu: no tempo da canção expandida

É verdade. É uma coisa de tijolo a tijolo, vamô aí! E eu quis isso des- de sempre. Tem a ver com minha relação com a música, mas também tem muito a ver com as minhas escolhas de gravadora. Atualmente estou só na Urban. O meu disco é uma junção de parcerias de micro- -selos, sempre distribuído por uma major. É até engraçado, porque sempre leva o nome da major. Parece que eu estou na major. Mas na verdade são formiguinhas […] Voltar para o trabalho artesanal. […] É a sensação do coletivo, de todo mundo trabalhando junto, porque a coisa fica mais legal. Trabalhando, assim, de uma maneira bacana, com carinho (Céu, 2010).

Céu entra e se estabelece no meio da música brasileira contemporânea e popular com uma sonoridade bastante específica, se a compararmos com os demais nomes citados. Não é possível definir um estilo único para seus discos, pois eles agregam ritmos diversos, encontrados nas pesquisas da can- tora, bem como são fruto destas parecerias firmadas com os produtores. Ao mesmo tempo que os discos de Céu dialogam com os ritmos que formam a música pop contemporânea, eles estão ligados à tradição da música brasilei- ra, do samba à MPB, e remetem a ritmos africanos, latinos e caribenhos. O som de Céu mescla o acústico e o eletrônico, o orgânico e o artificial, e se combina à poesia das letras que em sua maioria falam a partir de um ponto de vista subjetivo das sensações e sentimentos de quem canta. A maioria das faixas de seus discos são canções, sem dúvida. No entanto, a estrutura de suas canções se aproxima mais da categoria criada por José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski de “canção expandida”3. A canção, como o clássico estudo de Luiz Tatit (2002) define, em suas inúmeras especificidades, é aquela que nasce essencialmente da fala. A can- ção combina, em equilíbrio, letra e melodia. Mas é o canto que torna a fala algo ritmado, dando a ela entoação e fazendo-a predominar sobre os cami- nhos que a melodia toma. Quando Chico Buarque (2004) falou sobre o fim da canção, criando a polêmica em torno da ideia de “fim” ou de “morte”, ele na verdade se referia a duas coisas. Uma, à chegada do rap, que usava a palavra de maneira direta para narrar as experiências brutais da dinâmica social da favela, radicalizando o uso do ritmo na fala. No rap, a palavra cantada se afasta da melodia e se aproxima ainda mais da fala cotidiana. E as rimas, que caracterizam o estilo,

3 O termo foi colocado pelos estudiosos em uma aula-show proferida no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, em 2009, intitulada “O fim da canção”.

102 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

reforçam esta proeminência do ritmo. A segunda coisa à qual Chico Buarque poderia estar se referindo era a um tipo específico de canção produzida ao longo do século XX, ligada ao sistema tonal, de melodias cadenciais, com poesias inteiras que narravam um tema específico de seu tempo: a vida urba- na, o amor, o mar etc. É o que caracteriza nosso século da canção, do samba à bossa nova, ao choro-canção e à MPB. Tradição marcada por nomes como Dorival Caymmi e Ary Barroso, e Tom Jobim, Chico Bu- arque e Caetano Veloso. Século que também ficou marcado por ter estabe- lecido, ou se configurado de forma a permitir que fossem estabelecidos, alguns nomes como cânones no cancioneiro popular, como os citados. A canção contemporânea abarca algumas caraterísticas marcantes que a di- ferenciam da tal canção popular brasileira que marcou o século XX. A primeira é a expansão da produção e dos meios de divulgação da música, com uma consequente impossibilidade de estabelecer certos cânones em torno dos quais tal produção gira, como ocorrera até meados da década de 1980. A partir de então há, como afirma Santuza Naves (2010), um deslocamento da hegemonia da MPB — mesmo que entendamos a sigla como uma instituição sociocultural e não como um estilo, como a caracteriza Marcos Napolitano (2005). Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil inauguraram, dentro da tradição da música popular que vinha se estabelecendo desde a era do gra- mofone ao auge do rádio, um novo ciclo cancioneiro: o ciclo da canção críti- ca, como define Santuza Naves, as canções produzidas ao longo da década de 1960, com teor crítico ao regime militar. Já em meados da década de 1980, os compositores passam a abordar outros temas e a se preocupar com a for- ma da canção4, bem como com o ambiente em que era produzida, gravada, distribuída etc. Assim, esse campo se reconfigura com a inserção e ação dos novos agentes, desde a criação até o momento da escuta final pelo público, pelas novas influências sonoras que são incorporadas e, sobretudo, pela força que a produção de diferentes grupos sociais, etários e étnicos ganha. Não apenas a ascensão do rap é uma marca importante nesta mudança, mas também a do funk, do hip hop, do axé, do pagode — ditos os sons locais ou da periferia — e da música eletrônica em geral, que passam a se inserir nos espaços antes consagrados pela música popular intelectualizada. A pre- dominância da fala, a inserção de novos elementos sonoros que deslocam o papel da melodia e dos instrumentos acústicos, e a distribuição pela internet e outras mídias são balizas dessa mudança gradual.

4 Um exemplo marcante deste momento é a consolidação do grupo que ficou conhecido como Vanguarda Paulistana. Ver mais em Gatti (2015).

103 Céu: no tempo da canção expandida

É possível considerar que o que temos hoje no cancioneiro popular é uma prática de canção muito diferente daquela de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, pois temos a voz e o violão dividindo cada vez mais espaço com a criação de texturas, ambiências sonoras e ruídos. Foi querendo caracteri- zar esta mudança que José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski cunharam o termo “canção expandida”, no qual os estudiosos apontam como puderam perceber, ouvindo de Radiohead a Los Hermanos, que as canções não se- guem mais necessariamente narrativas lineares da primeira à última estrofe, mas são compostas por interlúdios instrumentais que não são cantáveis e nem passíveis de execução apenas em instrumentos acústicos. Wisnik, na aula-show sobre o fim da canção, concedida ao Instituto Moreira Salles em 2009 e disponível no site da Rádio Batuta, analisa a canção “Dois barcos”, da banda Los Hermanos, e afirma:

de uma estrofe para outra há uma lagoa sonora em que você entra num espaço de livre associativo, densa de sons por baixo, porque desde o começo os motivos por baixo têm uma espécie de autono- mia, não são só um acompanhamento, são uma espécie de substrato sonoro que está acontecendo.

Ao analisar a canção de Los Hermanos, Wisnik afirma que não é claro o assunto da canção. É possível imaginar do que se fala, mas a letra é construí- da com metáforas sobre metáforas, que criam um lugar difuso para o sujeito ou para o objeto. Assim, a canção se torna um receptáculo de algo em que a textura é mais aparente do que a estrutura. Para Wisnik e Nestrovski, cada pedaço da canção foi (plasticamente) expandido de maneira imprevisível, ao invés de ter uma narrativa obrigatória e musical, com cada sessão cumprindo uma função. Na canção expandida, cada pedaço tem uma autonomia, um tempo autônomo, que não deixa prever o que vem antes — pode ser outra coisa, outra textura, com outros instrumentos. É uma espécie de ambiência sonora e poética mais intuitiva do que as narrativas mais ou menos líricas da bossa nova, por exemplo. Para Wisnik, a canção, mesmo a “expandida”, não chega ao seu fim. Ela se atualiza, se reinventa e encontra novos caminhos com a tecnologia e a poesia contemporânea: são outras formas de fazer canção. Quando Céu lançou seu segundo disco, Vagarosa, em 2009, o crítico Marcus Preto escreveu à Folha de S. Paulo um texto em que dizia

Vagarosa não tem canções. Não é arriscado chutar que todas as faixas que a artista compôs para o disco — e seu trabalho de estreia, de

104 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

2005, tinha essa mesma característica — tenham nascido sempre a partir de um groove, de uma levada, de um “clima” musical. Poucas vezes de uma melodia. Nunca de um verso. É fácil fazer o teste. Basta imaginar estas mesmas músicas despidas, tocadas só ao violão, sem a vestimenta instrumental sofisticadíssima que seus produtores deram a elas depois. Desmoronariam. Isso seria um problema se Céu quisesse, como Diogo [Poças, seu irmão] quer, fazer canções. Não é o caso. Aqui, o conteúdo é a forma. A proposta é uma música irracional, que mais estimule o corpo do que a cabeça, que ganhe o ouvinte pelo tato, pelo suingue (Preto, 2009, grifos meus).

O clima musical que acompanha a maioria das letras de Céu é como paisa- gens sonoras construídas para cada faixa, densas de camadas — como descrito por Wisnik e apontado por Preto. Mas essa não é uma regra, e é sim possível não só imaginar como ver/ouvir as músicas de Céu acompanhadas apenas no violão, basta abrir o YouTube ou rever as versões originais dos covers escolhidos por ela (em todos os discos). A música “10 contados” é, talvez, a mais melodio- sa de suas canções. No programa Pelas Tabelas, em 2009 (poucos dias antes do lançamento de Vagarosa), Céu foi entrevistada junto com Beto Villares, um par- ceiro importante do começo de sua carreira (Beto…, 2011). No estúdio, Céu e Villares falaram sobre como decidiram entrar no mundo da música, sobre o processo criativo de composição e sobre suas parcerias, como surge letra ou melodia primeiro, uma influenciando a outra. As passagens do programa são interessantes justamente para mostrar esse lado orgânico do processo criativo que pode passar despercebido na audição do disco. Em outra ocasião, no programa Zoombido de Paulinho Moska, no Canal Brasil5, em que ele leva um cantor e cria uma versão voz e violão em dueto, sentado num banquinho de frente para o convidado, também podemos ouvir uma recriação acústica de “10 contados”. “10 contados” seria uma exceção? Talvez fosse, se Céu não tivesse re- gravado Martinho da Vila, João Bosco, Nelson Cavaquinho, Jorge Ben Jor e adicionado a seus shows outros clássicos do cancioneiro popular brasileiro. E se não tivesse também cantado com , Zeca Baleiro, Nereu, entre outros. Assim, mesmo com muitas músicas de Céu tendo esta ambiên- cia sonora eletrônica, controlada, com colagens e sons pré-concebidos como essenciais, o contexto apontado por Preto não é absoluto. É possível ver um

5 Disponível em: . Acesso em: 22 nov. 2018.

105 Céu: no tempo da canção expandida

claro diálogo com diferentes tradições musicais, não apenas brasileiras, em todos os discos da cantora. Mas também é possível — e necessário — pensar a caracterização de “canção expandida” em suas composições.

Tempo de amor e sonho

Se fosse preciso escolher um tema predominante na música de Céu, tal- vez fosse possível dizer que muitas de suas músicas falam sobre o amor. Mas Céu não é uma cantora romântica. Ela também canta seu lugar de origem, mas não é possível dizer que faz um retrato de São Paulo ou de seu grupo de amigos e colegas de trabalho, muito menos intenta representar o Brasil ou pintar uma identidade para a nação. Céu invoca seus ancestrais musicais, mas também projeta novos. Todos os temas que aparecem em suas canções parecem estar conectados através de um outro fio condutor, mote para suas reflexões: o tempo. O tempo aparece como reflexão tanto nas letras quanto nas melodias; aparece como ideia, como sujeito e como objeto, fazendo que as experiências contadas existam no e sobre o tempo. Quando Céu invoca a tradição, ali está o laço entre o passado e o pre- sente, um recorte de tempo e acontecimentos que se decide trazer à tona. Os espaços de ação e os lugares descritos por Céu são uma outra dimensão em que as canções os configuram mais como momentos do que como uma extensão material. Assim, identifico o tempo em três eixos nos discos de Céu: no amor; na relação entre tradição e contemporaneidade dos sons, que configura uma flutuação no tempo histórico; e numa espécie de consciência social e individual que surge em suas letras. “Ponteiro” é a canção que deixa mais claro como o tempo é desenvolvido no modelo de composição de Céu, pois é como um ensaio sobre o tempo nos seus diversos sentidos. Sua introdução é uma marcação rítmica de uma batida principal e mais alta do que as outras, tendo um timbre que lembra um pêndulo, mas sem a periodicidade de um. A ele se soma outra batida, menos intensa e mais grave, que soa como o ponteiro dos segundos num relógio de parede — esta batida sim entra com um intervalo rítmico análo- go ao da marcação do relógio. Camadas de samples e batidas são somadas à voz e vão adensando a estrutura da música, sempre aludindo à contagem do tempo, um som parecido com o de uma badalada que começa a se repetir na melodia que a voz de Céu entoa. A letra começa sem um sujeito identificável nos primeiros versos: “Foi que chegou/ se debruçou num minuto que não/ viria mais/ e repousou os olhos num irrequieto ponteiro/ que ignorou/

106 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

aquele sonho que se perdeu/ na tal promessa de um novo dia/ tempo, tem- po, tempo”. O texto tem um caminho só de ida, não tem circularidade, apenas o encadeamento da ideia verso a verso. A repetição se dá justamente quando é cantado o verso que diz “tempo”, palavra que ao ser cantada três vezes forma uma espécie de refrão. O drama da letra está na relação consciente e conflituosa com a inevi- tabilidade da passagem do tempo — relação que é perversa no tempo do capital. O tempo é aqui uma máquina devoradora de sonhos. A ideia da “promessa de um novo dia” não é uma percepção exatamente nova, como já havia sido cantada por Chico Buarque em “Pedro Pedreiro” (1966), uma de suas primeiras canções, cuja letra diz: “Pedro Pedreiro fica assim pensando/ Assim pensando o tempo passa e a gente vai ficando pra trás/ Esperando, esperando, esperando”. A comparação, para além da temática, é interessante para perceber mudanças de paradigmas de composição entre a canção de Chico e a canção “expandi- da” de Céu. A canção de Chico traz a centralidade do violão, que dá ritmo e direção ao trem que Pedro Pedreiro espera, repetidamente, todos os dias, sonhando uma vida melhor, um retorno à terra natal e o filho que vai nascer. A espera de Pedro é contínua, mas repetida. Já na canção de Céu, há angústia na posição de se “debruçar num minuto que não vem”, e a promessa de um novo dia parece desacreditada, pois “tal promessa” parece ter se perdido na batalha diária contra os ponteiros que seguem seu fluxo. Outra diferença fundamental é que não há um personagem definido na música de Céu como há na de Chico, em que sabemos sobre a profissão, a origem social, a famí- lia e os sonhos de Pedro. E mais, na música de Céu, quais sonhos são esses que se perdem? Não é dito e talvez nem importe, porque o protagonista da música é o próprio tempo e não alguém. O tempo é o sujeito principal na construção poética e sonora dessa canção. Em “10 contados”, composição de Céu e Alec Haiat, o tempo é questio- nado no sentido de que o sujeito busca criar uma nova unidade de contagem que se adéque à saudade sentida, baseada nos suspiros dados toda vez que se sente a falta do amor que se foi e, espera-se, deve voltar logo. Toda a letra se desenrola, em consonância com a melodia e com a paisagem sonora da faixa, invocando às “entidades do tempo” — que não são nomeadas — alguma ajuda. E estas respondem: autorizam a suspensão do tempo. A letra não diz até quando nem como se dará esta transformação, mas ela estando autoriza- da, é preciso transformar o tempo regulamentar marcado pelos segundos, minutos e horas. No tempo do amor, ou da saudade, a unidade de tempo é a da agonia expressa em “suspiros”, que serão as balizas para os “contados”.

107 Céu: no tempo da canção expandida

Meu amor não se atrase na volta, não Mandei uma mensagem a jato Às entidades do tempo Já me foi verificado que nem mesmo haverá segundos Que os minutos foram reavaliados e pra cada suspiro serão 10 contados.

“10 contados” é uma música que fala da ausência, é sobre a saudade, mas as músicas de amor do primeiro disco de Céu parecem invocar, ao contrário desta, mais a presença do amor e do amado. Nessa presença é que se cria outro tempo de amor: o do aconchego a dois, mais lento do que o tempo da vida social. “Malemolência” é a faixa título deste tempo em que se busca a pausa, indo contra o ritmo da metrópole, do capitalismo e do trabalho mecanicista. Sua estrutura tem mais ou menos o mesmo tom na construção musical e no ritmo do canto. A voz de Céu entra antes de qualquer instru- mento — no caso, apenas o cavaquinho que a acompanha nos primeiros ver- sos. O sujeito que fala conta uma experiência de aproximação com alguém. Ela repreende, no momento, a ação do outro de se aproximar:

Veio até mim Quem deixou me olhar assim Não pediu minha permissão Não pude evitar Tirou meu ar Fiquei sem chão

Aí somam-se os demais instrumentos e o ritmo dado pelos scratches no refrão que repete: “Menino bonito/ Menino bonito, ai!”. Então é feito um convite de fuga para o par, mas uma fuga que é para dentro da experiência da “malemolência”6:

É tudo o que eu posso lhe adiantar O que é um beijo se eu posso ter o teu olhar?

6 Segundo o dicionário Houaiss online, entre outras acepções, “malemolência” remete ao “jogo de atitudes, gestos, jeito de falar ou mover-se que denota qualidades diversas, mas conside- radas positivas (como a manha, a malícia, a elegância, a destreza) de alguém; molejo; ritmo gingado, característico da interpretação de certos cantores de samba, dançarinos, ou modo característico de portar-se dos antigos malandros”.

108 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

Cai na dança, cai! Vem pra roda da malemolência

A ideia de “malemolência” é fundamental para entender a obra de Céu. O chamado desta canção à “roda da malemolência” é um tema que figura não apenas neste primeiro disco, mas dá nome ao segundo, Vagarosa. No seu dis- co homônimo (2005), em Vagarosa (2009) e em Caravana Sereia Bloom (2012), o amor é uma experiência em que o tempo subjetivo é transmutado pelo sentimento e pela percepção alterada da realidade no sujeito que canta, que o suspende para um outro lugar. Não há pressa nem correria nos discos de Céu. Há o interesse pelo momento, pelo estado de espírito gerado: “Vagaro- sa, me espreguiço e o que sinto/ Feito bocejo vai pegar”. É como se a cantora tentasse falar sobre uma camada do amor que é inexplicável, indemonstrá- vel, mas que pode ser cantada. Essa ideia está no título da canção “Sobre o amor e seu trabalho silencioso”, em que a letra é acompanhada apenas pelo cavaquinho de Rodrigo Campos.

Vai pegar feito bocejo O que só o sentido vê Instigado num lampejo Despertado pelo beijo Que o baile parou pra ver Da marchinha fez silêncio Num silêncio escutei Uma disritmia em meu coração Que se instalou de vez

A faixa é uma vinheta que abre o disco Vagarosa e tem 56 segundos. É um samba em que o sujeito da letra aparece apenas na segunda estrofe. Não há repetições e, portanto, não tem refrão. O amor vem de um contágio que surge do acaso e age na surdina: pega como o bocejo, mas ao invés da letar- gia, o beijo desperta quem quer dormir no ambiente do “baile”. No baile, a marchinha para — seria carnaval? —, e no silêncio, outro som, o do coração descompassado. Mais do que sublimar o tempo, o silêncio marca o ritmo, a pausa e a continuidade expressos na fala. São dois silêncios: a surdina em que o amor age, por debaixo do nosso nariz, quieto; e o silêncio musical, preen- chido pelo ambiente, pelo ruído incessante do mundo. Tudo leva a crer que o amor, que nasceu com o beijo e leva à tal disritmia — seria a paixão? —, finalmente chega, já que ela se “instala”. As rimas são construídas aos finais

109 Céu: no tempo da canção expandida

dos versos, em ideias encadeadas, e desembocam na faixa seguinte. Por isso a canção tem como outro nome “Ou intro Cangote”. Em “Cangote”, “o amor e seu trabalho silencioso” se desenrola não mais no ambiente externo, mas num ambiente íntimo: “Fiz minha casa no teu cangote”. E dali tudo se observa sobre o amado e tudo se sente: “Faz graça de onde fiz meu achego, meu alento/ E nem ligo/ Como pode, no silêncio, tudo se explicar?!/ Vagarosa, me espreguiço/ E o que sinto, feito bocejo, vai pegar”. Aparece aí a expressão que dá nome ao disco, “vagarosa”; é este o estado do sujeito que sente o amor e reflete sobre ele, como esboçado na introdução. Aqui o silêncio, ao invés de constrangedor, é o que habita no espaço dividido pelos amantes. E o verso que iniciou a intro (“vai pegar feito bocejo”) é reformulado, pois o encerramento diz: “e o que sinto” — ou seja, amor — “feito bocejo vai pegar”. “Cangote” acabou sendo uma das músicas mais tocadas do disco Va- garosa e ganhou clipe dirigido pela cineasta Vera Egito. Ao tocar no Jazz Open de Stuttgart em 2010, Céu a apresentou como uma canção de amor diferente:

This next song is a love song but is also a song that talks about that these days we have so many things to do each minute, each second. We have so many information, so many… you know, things to do, and sometimes we forget to do things that is really important for us. And we see our dreams leaving behind. And it is a kind of song de- dicated to laziness, why not? I think laziness sometimes can be really productive (Céu…, 2013).

Em Caravana Sereia Bloom, disco de 2012, essa experiência de vivenciar um tempo diferente do tempo das cidades e metrópoles é criada pelo con- ceito do disco de ser um “road ”. Sua temática principal é a estrada, ambiente que passa a ser a casa da cantora e sua banda. Daí a “caravana”, uma ideia meio circense de perambulação em grupo, montando e desmon- tando equipamentos, figurino etc. Este movimento constante acaba sendo tanto no tempo como no espaço. Soma-se à caravana a ideia da “sereia”, figura mitológica presente na canção de mesmo nome, que é uma história que Céu contava à filha, criando um mundo lúdico, de lendas, inspirada pela presença dela nas turnês. Outros elementos vão se juntando para criar esse clima de viagem pelo sertão que o disco passa, como o “Teju na estra- da”, uma vinheta instrumental que leva o nome de um lagarto. Segundo a própria Céu:

110 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

“[...] Teju é um lagarto. É uma coisa meio cinematográfica, de fron- teira, o lagarto na estrada, aquele tempo seco. Uma parada bem ima- gética, acho que esse disco é todo imagético. Todas as faixas têm uma imagem”. (Veloso, 2012)

A imagem do amor, em consonância com a reflexão sobre o tempo, apa- rece na canção “Amor de antigos”, que é uma levada romântica como a dos bailinhos de cidades do interior. Ao descrever este disco na mesma matéria da revista citada, Céu dizia sobre a faixa:

[...] é meio amor de velhinho, essa coisa bonita. Na história pare- ce que essa pessoa já morreu. Um senhor e uma senhora. Escrevi essa letra há muito tempo, a música saiu rapidinho. (Veloso, 2012)

Os versos da canção invocam memória, lembrança e um amor que não se desfaz. É onde a estrada do disco encontra uma parada, como se sentasse no banco da praça para contar a história:

Vem de longe Da morada da memória Junto construímo história No calor de fim de tarde Eis que arde Na lembrança de outrora Vem comigo mundo afora Em qualquer lugar que eu ande […] E nosso amor foi todo a prova de ebó Não teve um só que separou eu de nhonhô

As demais canções deste disco vão passando — e cantando — uma sen- sação de que a caravana não pode parar; invocam de maneira constante o movimento, seja por imagens de situações ou pela descrição de objetos que o representam. Em “Retrovisor” essa estrada ganha outro significado, a estrada inter- na que carregamos, da nossa trajetória subjetiva, em que habita, dentre tantos sentimentos, a desilusão amorosa. O retrovisor é o elemento cen- tral que dá materialidade à poesia. É no espelho do retrovisor que quem

111 Céu: no tempo da canção expandida

canta passa o não menos emblemático batom vermelho, sem se borrar, evitando olhar para o passado. O retrovisor é justamente o lugar em que é possível olhar pra trás, mas é o elemento do carro que amplia o campo de visão de quem dirige. A canção tem um ritmo que vai descendo; o tom e o ritmo de suas batidas ficam entre um arrocha e uma seresta, no entanto com uma virada de música eletrônica que lhe dá um ar contem- porâneo. Lembra e atualiza as músicas que ouvimos em beira de estrada no Nordeste, como se fosse a trilha de filmes com esta temática, como O céu de Sueli, e Viajo porque preciso, volto porque te amo etc. Talvez por isso mesmo o clipe se passe num lugarejo de Pernambuco, a Ilha de Itamara- cá. “Retrovisor” foi a primeira música do disco a ganhar um clipe, dirigi- do por Renan Costa Lima e Ivan Lopes Araújo. Neste clipe está contida toda a identidade visual do Caravana Sereia Bloom, como a fotografia, a arte e o figurino. Figurino que é destaque porque Céu o utilizou, varian- do algumas peças, mas sempre com o mesmo direcionamento, nos shows da turnê. E foi a primeira vez que sua identidade visual apareceu mais concreta e madura. O que se seguiu daí em diante. Em “Baile de ilusão”, há uma volta ao clima explorado das serestas de interior ou de bailes de beira de estrada — como no ambiente encenado no clipe de “Retrovisor”, quando Céu está numa casa simples, com uma grande caixa de som enfeitada com pisca-piscas, cantando descalça. Em Tropix, disco lançado em 2015, é possível sentir um clima muito mais citadino em algumas canções, em que o amor e o tempo são pensados já de uma outra maneira. “Amor pixelado” reflete, segundo a própria Céu (2016), o amor no tempo das redes sociais. Inclui a ansiedade com a imagem de si criada perante o outro, a preocupação de tornar isto real e, ao mesmo tempo, menos confusa, já que interação virtual — que passa a ser tão real quanto a interação face a face — deixa um espaço maior para ambiguidades e desentendimentos: “Saiba, meu amor/ Quando você for/ Estarei aqui/ Firme como o chão/ Tornando real/ Desatando nós/ Que a distância fez/ Que confundem/ Fazem disso tudo/ Um drama para nós dois/ Como um amor/ Pixelado amor”. “Amor pixelado” é a canção de Céu que mais destoa de uma ideia de tempo do amor se descolar do tempo regulamentar que vivemos, marcado pela unidade das horas. A letra de “Amor pixelado” percebe as balizas que orientam a existência, mas não propõe uma fuga, tampouco um mergulho cego nestas leis. Ao contrário, nomeia o tempo do agora: a era do pixel, da informação, da máquina mediando as esferas do real e do virtual. O sujeito que canta este tempo é alguém sensível e que vive essas leis de modo não

112 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

automático. Aqui não há o estado de paixão e sublimação, há antes uma cons- tatação: o amor pixelado é um drama, o drama contemporâneo.

Tempo histórico: tradição e presente

As influências musicais de Céu aparecem em todos os seus discos muito bem trabalhadas e recriadas pela compositora. Há uma óbvia relação com o samba e a MPB, mas há também uma pesquisa de ritmos latinos, caribenhos e africanos, bem como a presença de sonoridades contemporâneas. Neste sentido, o tempo aparece não como assunto, mas como fundamento e mate- rial para um artesanato sonoro. No primeiro disco, a remissão ao samba é a mais marcante. E a música que faz isso de forma mais explícita é “Samba na sola”, que exalta uma ideia mais ou menos clichê de nacionalidade e símbolos nacionais atrelados à mú- sica: banjo, pandeiro, o famoso trem do malandro que mora na periferia e fica na boemia até mais tarde e a resiliência do povo brasileiro frente às adversidades da vida sofrida no país pobre e violento, mas com o exclusivo “bom samba” da terra.

Brasileiro do banjo e do pandeiro Calço qualquer calo mesmo Como bom guerreiro e lutador Comigo não tem gravata E se acaso pego o trem errado Vou-me embora, mas vou com louvor E com sua permissão Seu internacional Longe de mim Qualquer desfeita pega mal Mas este dom é exclusividade Samba na sola tem nacionalidade

“Mais um lamento” já no título lembra os de morro carioca, pois a palavra lamento é típica das composições do samba, bem como o sentimen- to, sem o qual se diz que não haveria samba. O lamento de Céu vai sendo construído por rimas não diretas nem seguidas entre amor e dor, ritmado pelos scratches do DJ Marco. A canção que começa com os elementos de hip hop, cuja quebra é dada quando entra a voz melodiosa da cantora e os desta- ques do bongô e do trombone, tem uma levada que mais lembra um bolero, adensando-se na medida em que a letra é repetida, somada a um coro de vozes femininas que cantam “ais”, acompanhando a linha principal.

113 Céu: no tempo da canção expandida

Vai ser difícil, vai Encontrar um amor como o seu, ai Como dói no meu peito Seu gosto é bem do jeito que eu gosto Bem do jeito, lamento Que é só mais um lamento entre tantos já feitos Quisera desse jeito lembrar de outros tempos Só pra matar um pouco a saudade Mesmo assim querendo que você não ouça Meu grito aqui de longe Minha dor, meu lamento

Também em seu primeiro disco, Céu regravou a música “Ronco da cuí- ca”, do disco Galos de briga (1976), de João Bosco. Quando gravou a música, Céu não conhecia pessoalmente o compositor. Foi apenas em dezembro de 2006 que eles se conheceram pessoalmente, ao serem convidados para o projeto Tom Acústico, no antigo Tom Brasil, em São Paulo. Em reportagem da Folha de S.Paulo (Evangelista, 2006), a cantora afirmava: “Eu tinha uma banda antes de gravar meu disco solo e cantava muitas músicas do João […] eu não o conhecia pessoalmente e nunca tive a oportunidade de vê-lo ao vivo, mas já dissequei seus discos”. Ao comentar positivamente sobre a gra- vação de sua música por Céu e celebrar o encontro, Bosco, por sua vez, fa- lou: “Ela reconhece a exuberância da música africana e reconhece isso dentro da música brasileira”. É interessante que Bosco diga isto, porque neste seu apontamento sobre a sonoridade de Céu parece estar também alguma razão para a escolha da música regravada, pois as composições de Bosco, sobretu- do as em parceria com Aldir Blanc, também exploram o ritmo, as raízes e a cultura africana que permeiam o cotidiano carioca. “Vinheta Dorival” é um interlúdio instrumental, composto por Beto Villares, que se soma ao ambiente misto entre a música eletrônica e a refe- rência à música brasileira popular. Com referência tão explícita, a segunda feita a Dorival Caymmi neste primeiro disco (como mostrarei mais à frente), fica a pergunta: o que tem de Caymmi neste disco ou na cantora? Identifico mais uma desta referência na canção “Véu da noite”, com ape- nas quatro versos – coisa, aliás, que Céu faz muito; música com letras curtas, poucos versos e uma imagem forte. “Cai o véu/ Noite vem/ Lua cheia que não acalanta/ Ninguém.” É uma espécie de desalento, talvez amoroso, talvez apenas uma melancolia com a vida. Mas de alguma forma remete à canção “Acalanto”, de Caymmi, que mesmo sendo uma espécie de cantiga de ninar,

114 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

inicia-se com os versos: “É tão tarde/ A manhã já vem/ Todos dormem/ A noite também/ Só eu velo/ Por você, meu bem”. A diferença crucial entre uma canção como “Véu da noite” e as canções de Caymmi é, mais uma vez, exatamente o interlúdio sonoro que caracteriza a ideia de canção expandi- da. Por outro lado, alguma semelhança entre as composições de Céu e de Caymmi pode estar no fato de cantarem um tempo diferente do tempo da modernidade, cada um com seus temas e idiossincrasias. Em Vagarosa, Céu grava uma composição sua em dueto com Luiz Me- lodia. O estilo dueto lembra alguns clássicos do cancioneiro popular, como quando Elis Regina e Tom Jobim interpretaram “Águas de março” (1974), Nara Leão e Chico Buarque “Dueto” (1980), e Maria Bethânia e Chico Bu- arque “Sinal fechado” (1975). “Vira-lata” é a música em que — depois da primeira faixa do disco, com o instrumental de cavaquinho de Rodrigo Cam- pos, “O amor e seu trabalho silencioso” — Céu encontra novamente, mais de frente, uma sonoridade que se aproxima do samba ou do choro — sem contar a referência óbvia da participação de Melodia. Em “Vira Lata”, Ro- drigo Campos toca cavaquinho, tamborim e pandeiro. Nos sopros/metais temos flauta, saxofone, trombone, flugelhorn. É, portanto, uma faixa sem guitarra, sem baixo e sem bateria.

(Céu) Quem nunca foi De fino trato Volta pra casa assim Feito um trapo Nada lhe prende E ainda há quem tente E é feita de gato e sapato Sem mais

(Luiz Melodia) Se eu lhe contar Por onde andei Que o sol amanheceu Mais de uma vez Mas ainda assim Não clareou E a saudade bateu e no peito ficou Sem mais Uh, vira-lata (não, eu não sou) Não me importa (vou lhe contar) Quem tu és (quem eu sou) Hoje eu vou Me achar e depois (vem) Me perder Em nós dois (só nós dois)

Ao longo de seus discos, Céu canta ainda mais três versões para músicas nem tão conhecidas do cancioneiro popular brasileiro. Além de “Ronco da cuíca”, de Bosco, “Rosa, menina rosa”, de Jorge Ben Jor, “Visgo da jaca”, do

115 Céu: no tempo da canção expandida

disco Canta, canta, minha gente (1974), de Martinho da Vila, e “Palhaço”, gra- vada no disco Depoimento do poeta (1970), de Nelson Cavaquinho. A música que Céu grava de Ben Jor é do primeiro disco do cantor, Samba esquema novo, de 1963. Pode-se dizer que Céu tem uma história peculiar com o compositor. Quando Vagarosa foi lançado, Céu recém havia dado à luz a sua filha, que se chama Rosa Morena. E antes disso, ainda em 1969, Jorge Ben e compuseram “Carolina Carol bela”, para a mãe de Céu. Em 2017, o projeto Nivea Viva, que anualmente homenageia um compositor brasilei- ro, escolheu Jorge Ben Jor para ser homenageado pela banda Skank e por Céu em shows que rodaram algumas capitais brasileiras. A respeito da esco- lha de seu nome para fazer parte do projeto, Céu disse em entrevista que:

A primeira banda que tive, Sistema PF de Som, era aquele tipo de grupo que tocava de tudo. Fizemos circuito de universidade e festi- nhas e o repertório tinha muito do balanço brasileiro. Lembro-me de que cantava “Umbabarauma”, “O homem da gravata florida” e “Menina mulher da pele preta”. (Céu, 2017)

Por sua vez, Ben Jor (2017), ao falar do resultado do show, declarou sobre a cantora e a banda:

Em todas as músicas eles estão fantásticos. […] Fico muito satisfeito, pois são artistas do mais alto gabarito e que conheço. Sou amigo de longa data da mãe da Céu (a artista plástica Maria Carolina Whi- taker) e sempre acompanhei a carreira dela. O Skank eu vi começar e me considero padrinho do grupo. É um prazer me reunir com artistas que gosto e admiro. A Céu tem uma doçura e uma suavidade na voz marcantes, ao mesmo tempo em que é algo arrebatador. Uma grande cantora, versátil e afiadíssima.

A versão de Céu para “Rosa, menina Rosa” foi gravada pela banda Los Sebozos Postizos, formada pelos integrantes da Nação Zumbi para tocar ex- clusivamente músicas de Jorge Ben Jor. “Palhaço” é um samba de Nelson Cavaquinho, cuja versão para Caravana Sereia Bloom tem Céu acompanhada apenas por seu pai tocando violão e asso- biando. Segundo a cantora, no convite que fez ao pai: “Pedi que fizesse ‘O Pa- lhaço’ totalmente felliniano. E ele entendeu completamente” (Veloso, 2012). Céu é uma das poucas cantoras — pelo menos das que têm destaque no ambiente da música independente — que cantam , como Anelis

116 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

Assumpção e Marietta. Em seu primeiro disco, Céu fez uma versão lo-fi para “Concrete jungle”, de Bob Marley, gravada no disco Catch a fire, de 1973. A escolha parece ser consonante com a construção do clima malemolente e vagaroso de seus primeiros discos, como já dito, que buscam uma quebra com o ritmo cotidiano da cidade. Em seu disco seguinte, a referência segue com maior ênfase em “Cordão da insônia”, que deixa clara essa relação por ter o dub como ritmo predominante e se referir à cidade como “babilônia”. A relação com o ritmo continuou em 2014, quando a cantora saiu em turnê com o show Catch a Fire, em que cantava o disco de Marley na íntegra com sua banda. Na entrevista que a cantora concede à revista TPM, o repórter pergunta como o dub entrou em Vagarosa, ao que ela responde:

Eu sou superfã do dub, superfã das músicas da Jamaica. Não só das mais conhecidas do Marley e tal, mas também dos lados Bs, de coisas bem antigas, do Studio One. Uma coisa que eu procurei, por- que estava sentindo muita falta, era de uma pitada de letargia, sabe? Muito pelo que eu estava vivendo, pela intensidade das coisas, pelas coisas que eu vejo no mundo… hoje em dia que eu acho que está tudo um pouco bagunçado (Céu, 2010).

Em Caravana Sereia Bloom, ela regrava “You won’t regret it”, de Lloyd Robinson e Glen Brown, dois dos grandes nomes da música Jamaicana da década de 1960 aos anos 2000. Mas neste disco há uma abertura maior para ritmos latinos e caribenhos que não o reggae ou o dub — como em “Con- travento”, sobre a qual Céu diz que, quando Gui Amabis e Lucas Santtana a compuseram, sabiam que era o interesse musical dela. Céu cita, por exem- plo, em entrevista à Rolling Stone, que estava escutando as gravações de Eydie Gormé com o Trio Los Panchos7 naquele momento. Quando se trata das referências musicais, Tropix parece dar um pequeno salto no tempo. Quando o disco foi lançado, em março de 2016, a crítica publicada na Folha de S. Paulo foi bem direta, e diferente no tom: “Estranhezas para além da MPB dão corpo ao melhor disco da cantora”. O texto é assi- nado por Thales de Menezes, que afirma que em Tropix Céu tentou elaborar mais ideias sonoras e mesclar menos as referências que permearam os últi- mos discos, como o samba, o reggae e os ritmos latinos em geral, aproxi- mando-se mais de uma ideia disco music.

7 De quem grava a música “Piel canela”, no disco Ao vivo de 2014.

117 Céu: no tempo da canção expandida

Na entrevista já citada, concedida a Charles Gavin para o programa O som do vinil, no Canal Brasil, em 5 de agosto de 2016, Céu conta que o disco tem a ver, como sempre teve, com as coisas que estava pesquisando e ouvin- do no momento da concepção, o post- punk e a música eletrônica, de Kraf- twerk a Blondie. Há uma única regravação de música de outro grupo neste disco de Céu, a faixa “Chico Buarque song”, de Fellini, banda de pós-punk da cena paulista da década de 1980. Nesta entrevista a Gavin, Céu diz também que não era a disco music a grande influência ou mira no momento em que formatava suas ideias para que Pupillo fizesse a pré- produção do disco. A cantora conta que muitas de suas pesquisas começaram por uma paixão que teve pelo arpeggiator, um sin- tetizador que permite a manipulação da ordem e da velocidade de cada nota ou combinação de notas tocadas, como um “autoacompanhamento” que gera padrões musicais de notas suspensas. Foi um instrumento muito utilizado en- tre os anos 1970 e 1980, tanto por bandas estrangeiras quanto na música bra- sileira. Céu cita na entrevista a Gavin uma das primeiras músicas arranjadas e tocadas eletronicamente no Brasil, a faixa “Pessoa”, do cantor Dalto. O arpeggiator é perceptível em todas as faixas do disco. A estética criada pelo som que emite aparece conjugada com as imagens do clipe de “Perfume do invisível”, faixa que abre o disco e que foi também a primeira música de Tropix a ganhar um clipe, dirigido por Esmir Filho, em que Céu aparece sozinha no centro da tela dançando descalça e vestida com o figurino que caracteriza o disco e a turnê . As imagens em preto e branco, como a da capa do disco, sofrem interferências como se estivesse dando um erro na tela da televisão ou do computador — o que é chamado de glitch art, ou seja, um erro que acabou sendo ressignificado como estética e aplicado a diversos trabalhos de arte. Outra informação sobre este disco dada por Céu na entrevista é a de que ela quis que sua gravação fosse mais orgânica que a dos anteriores, e que a banda entrasse em estúdio e tocasse junto, ao invés de gravar os instrumen- tos separadamente e depois ir montando as músicas. Essa organicidade é um dado interessante, pois de fato é perceptível, mesmo com as marcações do arpeggiator, o som de uma única banda de baixo, guitarra, bateria e teclados, sendo tocados por Lucas Martins, Pedro Sá8, Pupillo e Hervé Salters. Isso é bem diferente dos dois primeiros discos, em que há muitos músicos se reve- zando entre as faixas, e cada um dando um pouco de sua identidade, como a própria Céu conta na entrevista citada à revista TPM:

8 Como convidado na faixa “Etílica”.

118 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

Como foi o processo de gravação de Vagarosa? Porque embora seja um disco muito coeso, ele parece ter sido gestado em várias partes, com cada música pedindo uma turma diferente.

Eu tenho um gravador tipo esse [aponta o IC recorder do repór- ter], e ele me acompanha. O que torna difícil dizer exatamente onde começa. Porque tem várias idéias, vários versos e melodias que precisam de tempo. Mas na verdade Vagarosa foi mais sucinto que o primeiro. O primeiro foi um parto. Demorou para saber se não era loucura eu sair compondo. [risos] Vagarosa foi mais na raça. Eu estava grávida, superbarriguda, e trabalhei bastante. Mas quando ela [Rosa Morena] nasceu, fiquei pelo menos uns seis meses só com ela. De- pois voltei para o estúdio. No final, nem foi muito tempo de estúdio com o Vagarosa, deve ter sido uns quatro meses. Na verdade é bas- tante tempo, né? Mas é que no primeiro foram uns mil anos, porque tive que ficar na entressafra da publicidade, gravando quando o Beto [Villares] podia, quando não sei quem podia… Acabaram sendo três anos de estúdio. (Céu, 2010)

Talvez todos estes processos de escolha e pesquisa justifiquem os inter- valos entre os discos da cantora, que não saíram um imediatamente após o outro, demonstrando seu controle sobre a própria produção.

Tempo social: consciência e ser no mundo

As letras das canções de Céu são mais imagéticas do que narrativas e, em geral, tratam mais de sentimentos e sensações do que de sujeitos ou coisas específicas. Esta é uma diferença que pode ser percebida entre o cancioneiro popular formado ao longo das décadas de 1940 e 1950, a MPB dos anos de 1960 e a canção contemporânea. Em Dorival Caymmi, por exemplo, podemos apreender, como desenvolveu Antonio Risério (1993), diferentes “complexos ecológicos” ou culturais a partir de uma criação simbólica sobre o mar, a arquitetura e a vida pré-industrial na cidade de Salvador ou especi- ficamente no bairro de Itapuã, bem como a vida urbana no Rio de Janeiro. E que é diferente da chegada de figuras como Chico Buarque e Caetano Veloso no terreno da música popular, já que estes se configuraram como composi- tores intelectuais, posição nunca almejada por Caymmi em suas letras, que descrevem personagens e seus contextos.

119 Céu: no tempo da canção expandida

A questão crítica que marcou a década de 1960, momento em que a música se tornou locus do debate estético e político, aparece hoje como uma herança que exige da nova geração de músicos um posicionamento diante das questões sociais e culturais de maneira geral. É uma cobrança que vem da crítica e do público, que cria uma expectativa e busca uma identidade no processo de conhecer o posicionamento do artista. No entanto, dentro das inúmeras novas condições de existência artística, colocadas pelo contexto difuso de criação e produção atual, é possível pensar a produção musical como prática social? Há hoje uma maneira com a qual os artistas precisam lidar com o contexto em que estão produzindo? A prática artística deve se traduzir em engajamento? Este é um debate longo, que envolve perceber as nuances sociais e esté- ticas propostas pelos inúmeros ritmos e estilos que compõem a música atual, seus agentes e seus contextos. Não cabe aqui desenvolvê-lo, mas ao pensar as músicas de Céu é importante que este debate seja apontado, pois as com- posições dela abordam — mesmo que timidamente, como todos os outros temas que ela desenvolve — um pouco estas questões. “Roda”, “Rainha” e a versão para a música “O ronco da cuíca”, de João Bosco e Aldir Blanc, canções presentes no primeiro disco da cantora, trazem um olhar crítico voltado para o social, em que a temática amorosa é deslocada. Em “Roda”, a letra diz: “Consciência maior arma/ Mapa pra qualquer lugar/ Tô na área/ Deslizando/ Num concreto a recortar/ Horizonte ali adiante/ Tomou forma geométrica”. É um indicativo de uma postura crítica, mesmo que individual, que mapeia, ainda que de forma figurada, o espaço de ação que se desvela ao longo da letra, e de que ação é essa. Os versos seguintes dizem:

Minha voz é o que me resta e rapidinho Vai ecoar Pelo Vale, na Pompeia De Caymmi eu ouço o mar Villa-Lobos, a floresta Hoje eu vou sacolejar Caiu na roda Ou acorda Ou vai rodar

É através da música, de seu canto e de sua poesia que Céu parece se entender como presença e potência de ação no mundo, a partir de seu lu- gar específico em São Paulo: a Vila Pompeia, região nobre da Zona Oeste, composta pelas ladeiras de onde a vista que alcança é delineada pelos prédios

120 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

no horizonte, antes possível, hoje um recorte “geométrico”. Ali se dá a for- mação de Céu em música brasileira, de Villa-Lobos a Caymmi. Nas muitas entrevistas que já deu, Céu conta ter tido sua primeira educação musical em casa, com os pais — o cantor, compositor e maestro Edgar Poças e a artista plástica Carolina Whitaker. Ambos têm uma relação particular com a músi- ca. Seu pai teve músicas gravadas por nomes como Djavan, Tim Maia, Gal Costa, Roberto Carlos etc. e foi o criador e compositor de todas as músicas da Turma do Balão Mágico no começo dos anos de 1980. Além dos pais, tam- bém o irmão, Diogo Poças, é músico, com dois discos gravados. “Rainha” é uma homenagem crítica, incomum ao cancioneiro. Céu exalta e agradece à África como continente-mãe: “rainha”, “dona da re- aleza”, “mãe da matéria-prima”. E quando canta as qualidades da África, um coro que diz “cadê?” ressoa após cada um dos adjetivos atribuídos à esta grande Mãe, à qual nunca conseguiremos agradecer o suficiente e nos desculpar pela exploração e colonização, mas no máximo reconhecer a grandeza e as contribuições culturais que formam também nossa cultura, sobretudo na música. É uma das faixas mais suingadas do disco, em que a percussão é marcante e o instrumental de trombone e saxofone se estende como um jazz. Em “Rainha” começa a despontar a influência afrobeat de Céu, que aflora ao longo de sua carreira, como fora apontado por João Bosco (Evangelista, 2006). Foi com um tom crítico também que Céu abriu Caravana Sereia Bloom, escolhendo como primeira faixa a canção “Falta de ar”, composição de Gui Amabis, um dos produtores do disco. A música fala sobre o consumo exacer- bado e o modo como, viciados nessa lógica, acabamos não percebendo que estamos destruindo o meio ambiente ao nosso redor, matando a natureza, poluindo os nossos recursos e tornando as cidades insuportáveis: “Isso me dá falta de ar/ Não tem nada a ver com você/ A má qualidade do ar/ Me faz compreender”. A relação entre o humano e a natureza é um tema constante nas canções de Gui Amabis, mas nem sempre ele aparece com um tom de crítica como nesta faixa.

Esse papo que gira aí Que o mundo tem que crescer Crescer até tocar a Lua Em Marte eu vou descer Mesmo que eu tenha criado Um traje especial Que me permita viagens

121 Céu: no tempo da canção expandida

Em modo espacial

A fuga de Terra parece ser a solução encontrada: recomeçar em outro lugar, Marte, por que não? Mas será que tornaremos isto possível? Será que da destruição da Terra tiraremos uma lição para não fazer igual lá? A reflexão final é um tanto pessimista:

Ainda não voo Foguete é osso Pro ser humano Viver é pouco

A ideia espacial ronda algumas das canções de Céu, como “Espaçonave”, parceria com Catatau em Vagarosa, e “A nave vai”, música de Jorge Du Peixe que grava em Tropix. Esta última segue a tendência de letras sem um objeto ou tema definido, de versos abstratos que podem ser sobre a condição de estarmos no mundo como presença, ser e se transformar a cada instante:

Mesmo não dizendo nem Pra onde nem por quê A nave vai levantar voo Mesmo sabendo que o mundo anda sem você A nave vai levantar voo O vento leva pra onde não dá pra ver quem foi De manhã sou um De noite já fui dois Seremos quem somos Ou serei quem sois Lá vou eu de novo Mesmo não dizendo nem pra onde nem por quê A nave vai levantar voo

E nesse caminhar sobre o mundo, buscando encontrar um sentido para a vida ou encontrar-se, estabelecendo uma consciência de si mesmo, algumas canções vão construindo este tempo do habitar. Como “Bubuia” e “Sonâmbu- lo”, do Vagarosa, a vinheta “Fffree” e “Streets bloom” em Caravana. Em “Sonâmbulo”, a postura crítica diante do mundo é também uma re- lação com o tempo, em que as imagens de marcadores deste tic-tac incessan- te aparecem de forma explícita, como havia aparecido em “Ponteiro” e “10

122 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

contados”. Nessa parceria de Céu com Bruno Buarque e Sérgio Machado, dois bateristas, há um estado de oscilação entre a inércia e a correria, em que se fica anestesiado com os canais de informação e alienação da modernidade:

Numa espécie de limbo O sonâmbulo anda feito pêndulo Ora pende dormindo, ora pende contra o tempo E faz deste inimigo, atrasado, correndo Justifica um vazio interno, imenso Fugas mentais ocupam os pensamentos E se torna incapaz de ocupar a si mesmo TVs, zines, jornais, químicas num intento Bloquear os canais Domesticar seus anseios Que é bom desconfiar dos “bons” elementos Feito histórias de Moebius vão tirar sua visão E te dar olhos passivos adequados ao padrão

“Bubuia” é uma parceria de Céu com Anelis Assumpção e Thalma de Freitas. Do encontro das três amigas nasceu essa canção sobre o termo que a cantora explica ser do norte da Amazônia e que ela conheceu através da mãe, na frase “vai na bubuia”. Céu (2010) diz que bubuia é borbulha: “como a borbulha vai nas ondas, ela é grande, ela é baixa, ela passa. É uma gíria para ‘Vai tranquilo’”. A letra tem uma leve relação com a questão social, não no sentido do enfrentamento ou de abordar uma questão coletiva, mas, como já dito, de uma consciência do estar no mundo com outros. Isso fica explicitado nos versos: “Já que não estamos aqui só a passeio/ Já que a vida, enfim, não é recreio/ Eu vou na bubuia, eu vou”. Thalma e Anelis dividem os vocais com Céu, e a faixa tem, na gravação, a guitarra de Fernando Catatau. Do caminho leve que segue, há na faixa “Fffree” do Caravana o gosto de liberdade no movimento pelo caminho traçado. A canção é mais uma das músicas com letras curtas de Céu. O título escrito desta forma, alongando a primeira consoante e a última vogal da palavra em inglês soa como um sus- surro. O primeiro verso diz que “há uma estrada dentro de mim”, o que cria ainda mais uma nuance para os significados da “estrada” no disco.

There is a road inside of me No, no… It’s going to meet

123 Céu: no tempo da canção expandida

My eyes are closed Only witness I have is the wind on my cheek Whispering, whispering: free.

Uma volta à ideia mais concreta de crítica social, como a esboçada em “Rainha” e “Falta de ar”, aparece de forma mais contundente em “Rapsódia brasilis”, faixa de Tropix, em que Céu toca no tema clássico e ainda não resol- vido da herança da escravidão na organização da sociedade brasileira. A letra dá voz a três personagens: a empregada que cuida de uma criança, talvez por mais tempo do que os pais, a “sinhazinha” e os próprios pais da criança, imbu- ídos de uma autoridade de mando sobre o comportamento da empregada. A menina, “sinhazinha”, fica brincando na cozinha, acompanhando a emprega- da doméstica que, apesar de cuidar da menina, sabe que não está autorizada a deixar a criança brincar por ali. É o que diz o trecho que se repete na música:

Há tempo que sinhazinha saiu Da sala discretamente pra cá Menina, é hora de você ir Tô vendo a hora que vão chegar E eu sempre a dizer que aqui não é seu lugar Mas quem conhece sabe do esconderijo que Sinhazinha Gasta teu tempo a brincar Cozinha esse ponteiro a girar E eu sempre a dizer que aqui não é seu lugar Mas quem conhece sabe do esconderijo que Sinhazinha Leva ela pra lá junta as panelinhas Debaixo da mesa À vista não dá Já tô vendo que Hoje tem resenha Que eu não sou mãe dela P’reu não me meter Há tempo que sinhazinha saiu Calada, cruzou a sala e se foi E eu sempre a dizer que aqui não é seu lugar Mas quem conhece sabe do esconderijo que Sinhazinha Já tô vendo que hoje tem resenha Que eu não sou mãe dela P’reu não me meter

124 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

Pode até ser Mas quem cuida dela Vive na cozinha Vendo ela crescer

O uso do termo “sinhazinha” para caracterizar a criança denota esta hie- rarquia, não apenas de classe, mas de raça. “Quem cuida dela” e vive na cozi- nha certamente é uma mulher negra, que abdica da própria vida para servir outra família. A crítica é uma intervenção mais do que necessária e Céu, ain- da que crie uma história mais ou menos lúdica nesta canção dançante e solar, toca no tema ao fechar Tropix, mostrando que o fetiche sobre o país tropical e a América Latina é também sobre a colonização, sobre o racismo latente e a inversão de valores que vivemos.

Conclusão

Os cinco discos lançados até agora por Céu (incluindo o Ao vivo) mos- tram uma carreira que vem se edificando sobre uma obra coesa e consis- tente, tanto pela sonoridade como pela poesia. As letras de Céu flutuam por inúmeros assuntos, mas na imensa maioria das vezes falam das subjeti- vidades do eu-lírico, mesmo quando o sujeito que fala tenta refletir sobre uma realidade exterior à dos seus próprios sentimentos. É possível ver seus discos dentro do universo amplo e denso do que se chamou a “canção ex- pandida”, com as letras e o canto dividindo espaço (às vezes mais, às vezes menos) com os instrumentos e com as ambientações sonoras criadas pelos músicos que somam parcerias com a cantora. Mais de uma vez, no entanto, Céu deixou claro que o principal instrumento de sua composição é a pró- pria voz, cujo timbre é uma das identidades da cantora, que não se parece com nenhuma outra em destaque hoje no Brasil. Mas Céu deixou claro também nestes anos de carreira que é uma artista que se preocupa com a pesquisa musical, com a relação da música com o visual, do figurino à forma como utiliza as mídias. Mesmo com todas estas qualidades, Céu enfrentou uma crítica que, ape- sar de elogiosa, a minimizava em seu esforço pelo simples fato de ser ela uma mulher, compositora e cantora. Acusada de ser uma “cantora de produtor”, as entrevistas de Céu mostram que quem está e sempre esteve no coman- do de suas escolhas estéticas e profissionais foi ela mesma. A questão pode ser vista de outra forma: não é que Céu seja uma “cantora de produtor”,

125 Céu: no tempo da canção expandida

submetida às vontades dos profissionais; é que a configuração do campo mu- sical contemporâneo mudou. A inserção de novos agentes, com novos papéis e espaços dentro do processo de criação, produção e distribuição musical faz com que o campo se torne muito mais coletivo e colaborativo. Foi pensando este contexto que tentei encontrar algo no universo mu- sical de Céu que me desse um denomidador comum para seus discos. E, ao ouvi-los, foi possível perceber que no modo Céu de cantar e compor, sobrepondo sonoridades, explorando ambiências, dialogando com a tradi- ção, expondo sentimentos sobre si e sobre a realidade que a circunda, é uma reflexão sobre o tempo que costura e dá esta unidade à sua obra. Estando a cantora em plena atividade, ainda fazendo shows com a turnê de Tropix, resta esperar (e especular) o que ainda pode vir por aí.

126 Pérola Virgínia de Clemente Mathias

Referências bibliográficas

GATTI, Vanessa Vilas Bôas. Súditos da rebelião: estrutura de sentimento da Nova MPB (2009 — 2015). 2015. 290 f. Dissertação (Mestrado em Socio- logia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. NAPOLITANO, Marcos. MPB: Totem-tabu da vida musical brasileira. In: RISÉ- RIO, Antonio. Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras, 2005. p. 125-132. NAVES, Santuza. Canção popular no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Bra- sileira, 2010. RISÉRIO, Antonio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva, 1993. TATIT, Luiz. O Cancionista: composição de canções no Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2002. WISNIK, José Miguel; NESTROVSKY, Arthur. O fim da canção. Rádio Batuta, Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2009. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2018. (Comunicação Verbal, 29).

Artigos de jornal consultados

EVANGELISTA, Ronaldo. João Bosco encontra Céu em única apresenta- ção. Folha de S. Paulo, São Paulo, E13, 3 dez. 2006. MENEZES, Thales de. Estranhezas para além da MPB dão corpo ao melhor disco de Céu. Folha de S. Paulo, São Paulo, C3, 16 mar. 2016. PRETO, Marcus. Céu toma as rédeas em segundo disco. Folha de S. Paulo, São Paulo, E4, 12 ago. 2009. SILVA, Adriana Ferreira; NOVAES, Tereza. Bolsa de apostas. Folha de S. Paulo, São Paulo, Folha Ilustrada, p. 1, 8 fev. 2006.

Sites consultados BEN JOR, Jorge. Skank e Céu homenageiam Jorge Ben Jor com repertó- rio de sucessos em show especial [26 maio 2017]. Entrevistadora: Mariana

127 Céu: no tempo da canção expandida

Peixoto. Entrevista concedida ao Portal Uai E+. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2018. BETO Villares & Céu no Pelas Tabelas — 1/4. 7’59”. Publicado pelo canal bvilla. 3 maio 2011. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2018. BUARQUE, Chico. O tempo e o artista [26 dez. 2004]. Entrevista concedi- da à Folha de S.Paulo. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2018. CÉU. Na bubuia [14 jan. 2010]. Entrevistador: Guilherme Werneck. Entrevis- ta concedida à revista TPM. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2018. CÉU Jazz Open Stuttgart Live 2010. 56’31”. Publicado pelo canal apare- lhagem-brasil. 17 fev. 2013. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2018. CÉU. Tropix, Céu [5 ago. 2016]. Entrevistador: Charles Gavin. Entrevista con- cedida ao programa O som do vinil. Rio de Janeiro: Canal Brasil, 2016. Dis- ponível em: . Acesso em: 12 nov. 2018. CÉU. Skank e Céu homenageiam Jorge Ben Jor com repertório de sucessos em show especial [26 maio 2017]. Entrevistadora: Mariana Peixoto. Entrevis- ta concedida ao Portal Uai E+. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2018. MALEMOLÊNCIA. In: DICIONÁRIO Houaiss. Disponível em: . Acesso em: 23 nov. 2018. VELOSO, Bruna. Caravana Sereia Bloom. Rolling Stone, São Paulo, 16 fev. 2012. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2018.

128 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s1

Acauam Oliveira

Vim pra sabotar seu raciocínio (“Capítulo 4, versículo 3”)

O objetivo geral deste ensaio é funcionar como uma breve apresentação da obra do grupo Racionais MC’s, buscando compreender, sobretudo, como e por que essa produção se constitui como um dos acontecimentos estéticos mais relevantes da história da música popular brasileira. Tratando-se, contudo, do mais importante e conhecido grupo de rap do Brasil, não seria essa posição algo evidente por si, tornando este ensaio uma obra desnecessária de saída? Sem dúvida, o conjunto formado pelos quatro “pretos mais perigosos do Brasil” (KL Jay, Ice Blue, Mano Brown e Edi Rock) (Caramante, 2013) atualmente goza de grande prestígio e notoriedade. O rap e a cultura hip hop definitivamente ocupam seu lugar no mainstream, a ponto de este ser atualmente o gênero musical mais rentável no mercado norte-americano. No Brasil, nomes como Emicida, Criolo e Karol Conka transitam livremente pelos mais diversos meios de comunicação; multiplicam-se pesquisas, filmes, séries e documentários sobre o gênero; rappers apresentam seus próprios programas de TV, e mesmo os integrantes dos Racionais, outrora radical- mente avessos aos meios de comunicação de maior audiência, têm aparecido em emissoras de grande porte (não sem gerar certa polêmica22) (Garcia, 2013). Ainda que não tenha de todo se livrado do estigma que o acompanha desde sua constituição, cuja matriz é social, é certo que os problemas que atravessam o movimento hip hop atualmente são bem diversos daqueles de seus primórdios, quando, para o Estado e para a opinião pública em ge- ral, basicamente não havia distinção entre rap e criminalidade. Obviamente que o processo de criminalização da periferia e de sua cultura pelo Estado

1 Parte deste ensaio foi publicada originalmente como texto de apresentação do livro Sobrevi- vendo no Inferno, lançado pela Companhia das Letras em 2018. 2 A polêmica deve-se sobretudo ao fato de que essa abertura mais recente em grande parte contraria a postura anterior do grupo, de total recusa a participação em programas da cha- mada grande mídia.

129 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

brasileiro não foi interrompido, tendo em grande medida se transferido para o funk — gênero que atualmente assume o posto de principal trilha sonora afetiva das comunidades periféricas, sendo por isso perseguido e estigmati- zado de diversas formas, que vão desde a proibição de bailes até a prisão e assassinato de funkeiros (Machado, 2017). Entretanto, podemos dizer que o rap conseguiu estabelecer uma espécie de “vitória dentro da derrota”, con- solidando-se enquanto linguagem nacionalmente reconhecida, sem que isso tenha implicado na resolução dos problemas vivenciados pela comunidade periférica e denunciados em suas canções. Esse afastamento relativo entre rap e comunidade periférica, que se dará de diversas maneiras e com dife- rentes graus de intensidade, trará inúmeras questões para o gênero, sendo tematizado pelos Racionais pelo menos desde os anos 2000 (o álbum Nada como um dia após outro dia é a mais densa reflexão crítica já produzida sobre esse processo). De todo modo, o caminho de legitimação do rap em uma comunidade mais ampla de consumidores será um dado irreversível. Apesar disso, como em geral tende a acontecer com obras marginais que adentram determinado circuito mainstream, o processo de incorporação ao cânone tende a obscurecer precisamente aqueles elementos responsáveis pela constituição original da força da obra. Ao se tornar canônica, seu poder de subversão é potencialmente minado. O que é particularmente problemá- tico para um gênero como o rap, cuja radicalidade deriva em grande parte de um comprometimento com certa condição de marginalidade, a um só tempo territorial e estética, a partir de onde desenvolve-se um ponto de vista original (pretos pobres em atitude de revide e cobrança que consolidam um sistema cultural3 próprio com autores, obras e público consumidor), e que irá ressignificar todo o modo de autorrepresentação da música popular até então, em alguns de seus principais elementos: ao invés da tradição me- lódico/entoativa (forjada desde o início do século, e cujo “laboratório” privi- legiado foi o samba), e que pressupõe certo equilíbrio de opostos (melodia e entoação) (Tatit, 1996), um modelo radicalmente entoativo que afirma a irredutibilidade da voz do jovem negro da periferia, que não se presta à universalização da experiência nacional. Ao invés de um ponto de vista lírico de enunciação, calcado na crônica do cotidiano, um modelo épico que faz da multiplicidade das vozes dos cinquenta mil manos o seu ponto de força. Ao invés da aposta na “dialética da malandragem” (Candido, 1970) e na tradição dos “encontros culturais” (Vianna, 1995), a aposta na ruptura e na diferença

3 Baseamo-nos livremente na concepção de sistema literário, tal como formulada por Antonio Candido (1989).

130 Acauam Oliveira

radical entre classes e raça, entendendo a sociedade brasileira como campo de conflito radical (Oliveira, 2015). É necessário, portanto, livrar a obra dos Racionais do olhar forjado a partir do mainstream, de modo a recuperar os principais elementos que configuram sua radicalidade. Só assim seremos capazes de reconhecer sua força enquanto um “acontecimento” — no senti- do dado por Alain Badiou (2015) de um “ato” que faz aparecer no mundo o que antes não existia, reconfigurando as coordenadas do presente, alterando as possibilidades do futuro e transformando nossa visão do passado – que modifica as coordenadas pelas quais a música popular brasileira se reconhece e que, pela lógica estrutural da sociedade, jamais deveria acontecer. Sua po- tência se constitui por meio de sua marginalidade, que reconfigura o sistema. Não se trata aqui, entretanto, de propor a defesa de algum tipo de pu- rismo anticomercial do “verdadeiro rap roots” contra suas versões “merca- dológicas” — variações do velho discurso de desqualificação do presente e mitificação do passado. Sobretudo porque as relações entre hip hop e merca- do são bastante complexas e densas, e só podem ser devidamente cobradas a partir de uma perspectiva interna, construída coletivamente, conforme nos adverte o próprio Brown em “Negro drama”:

Aê, na época dos barracos de pau lá na Pedreira, onde vocês tavam? O que vocês deram por mim? O que vocês fizeram por mim? Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho Agora tá de olho no carro que eu dirijo Demorou, eu quero é mais Eu quero até sua alma

A crítica, no caso, dirige-se não ao rap, mas a um determinado ponto de vista desautorizado pelo movimento hip hop, uma vez que a radicalidade da linguagem dos Racionais MC’s se revela não apenas na originalidade de seu ponto de vista, mas também pelos discursos que desautoriza. Portanto, para certa linha de interpretação que coloca a MPB no patamar mais alto do cânone da música popular brasileira, e que depois de muito custo resolveu “caridosamente” convidar os Racionais a participar da festa, esse livro fun- ciona como um alerta: não é possível enquadrar docilmente essa obra no interior daquela tradição que emerge com a bossa nova — que por sua vez é já uma variação do samba — e desemboca na MPB dos anos 1960 e suas inú- meras variações (Tropicalismo, canção de protesto etc.). Ainda que existam certos pontos de contato (sobretudo pela mediação de nomes como Jorge

131 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

Ben e Tim Maia), e que a qualidade desta produção de fato a coloque em pé de igualdade com os grandes mestres da história da nossa música popular, a relação principal a se destacar é de ruptura. Com o rap vemos emergir uma perspectiva radical que confronta alguns pontos determinantes da tradição de onde emerge a MPB, espécie de efeito colateral do sistema cancional brasileiro que, no limite, apresenta uma concepção radicalmente distinta de seus fundamentos sociais e estéticos. Retomemos, pois, algumas das condições sociais e históricas que estão na base de constituição dessa perspectiva inédita.

Estado genocida e subjetividade periférica

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente (“Capítulo 4, versículo 3”)

Candelária, Vigário Geral e Carandiru

Em 2 de outubro de 1992, o perito Osvaldo Negrini Neto foi convo- cado a apresentar um laudo sobre a tragédia que havia ocorrido na Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru. Sua ideia inicial, em conformidade com a versão oficial, era a de que os detentos haviam morrido em decorrência de um “confronto” com a Polícia Militar. Mas o conjunto de evidências logo o levou a concluir que se tratava de um verda- deiro massacre. Evidências essas que, segundo o perito, estavam “escritas na parede” da prisão:

Todas as celas que eu examinei tinham muito poucos tiros nos cor- redores. No corredor, eu contava dois ou três buracos de balas. Mais de 90% dos tiros estavam dentro das celas. E sempre da porta para o fundo, ou seja, impossível que tenha sido algum tiro dado pelos presos em direção aos policiais militares. E, realmente, não tinha nenhum policial ferido por balas.

132 Acauam Oliveira

Balas de metralhadora, uma vez que as marcas de tiro seguiam quase na mesma linha ao longo da parede e uma pistola ou revólver não segue esse padrão. Ao todo o perito conseguiu contar mais de 450 buracos de bala, algumas delas no chão, como se a polícia “tivesse matado gente que estivesse sentada ou ajoelhada” (Cruz, 2012). Extermínio, puro e simples. O chamado “Massacre do Carandiru”, intervenção assassina da Polícia Militar do Estado de São Paulo que resultou na morte de pelo menos 111 detentos, é considerada a “mais violenta ação da história do já violento sistema prisional brasileiro”4. Esse trauma não superado estará no centro de diversas mudanças estéticas, culturais, políticas e sociais da periferia e do próprio Estado nos anos seguintes. Na mesma época do Massacre do Carandiru, o Brasil foi palco de outros dois acontecimentos que chocaram o mundo (D’Andrea, 2013). Na madrugada do dia 23 de julho de 1993, dois carros com placas cobertas por um plástico preto aproximaram-se das escadarias da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, onde dormiam cerca de setenta crianças e adolescentes em situação de rua. De dentro dele, quatro homens dispararam diversos tiros contra aqueles jo- vens, negros em sua maioria, matando oito crianças e deixando dezenas de feridos. O relato de Wagner dos Santos, um dos sobreviventes, revelou que os envolvidos no massacre, que ficou conhecido como “Chacina da Candelária”, eram todos policiais militares que teriam agido em represália a um episódio da tarde anterior, quando algumas crianças atiraram pedras em uma viatura, quebrando um dos vidros. Cerca de um mês depois, em 29 de agosto de 1993, aproximadamente 36 policiais militares encapuza- dos e sem uniforme invadiram o Bar do Joacir, em Vigário Geral (lotado na ocasião por conta da transmissão da partida entre Brasil e Bolívia, pelas eliminatórias sul-americanas), disparando diversos tiros contra o bar e al- gumas casas da comunidade. Ao todo, 21 pessoas foram mortas: sete no bar, oito em casa e seis na rua. A “explicação” para a atuação do grupo de extermínio seria, novamente, retaliação, pois dias antes alguns traficantes da comunidade teriam assassinado quatro policiais militares suspeitos de envolvimento com o tráfico. Entretanto, na Chacina do Vigário Geral, nenhum dos 21 mortos tinha en- volvimento comprovado com o tráfico. Dos 51 acusados pelo crime, apenas

4 Lembrando que o sistema de justiça do país não reconhece o episódio como massacre. Os documentos oficiais tratam o extermínio como “rebelião”, ou “motim” do Pavilhão 9. Passa- dos mais de 25 anos, nenhuma autoridade competente foi capaz de atribuir responsabilida- des pelo crime, que sequer é reconhecido como tal.

133 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

sete foram condenados pelo Tribunal do Júri, sendo três absolvidos em se- gunda instância. Somente um PM permanece preso e, ainda assim, por ter sido pego em flagrante roubando um banco enquanto estava foragido. E rou- bar banco no Brasil, assim como portar Pinho Sol próximo a manifestações sociais, dá cadeia5. A sucessão de tragédias confirmava, para quem estivesse disposto a ver, que o genocídio ocorrido no Carandiru não só não havia sido um acidente, como se tornava uma norma que estava longe de se restringir apenas às ca- deias do país. Somava-se a isso uma série de outros fatores, como as refor- mas neoliberais que ocasionavam diversos efeitos desastrosos no mundo do trabalho, o aumento vertiginoso dos índices de violência e encarceramento em massa, o refluxo dos movimentos sociais populares e das organizações comunitárias que até então atuavam nas periferias, em especial os trabalhos de base do Partido dos Trabalhadores — que reformulava seu projeto após a derrota nas eleições presidenciais de 1989 — e das Comunidades Eclesiais de Base. Além disso, os índices de violência na cidade de São Paulo chegavam então a níveis catastróficos (D’Andrea, 2013). Longe de se tratar de equívocos ou desvios, a série de episódios trágicos revelava-se um verdadeiro projeto de Estado, baseado no gerenciamento da miséria por meio da violência contra a periferia; um dispositivo de poder que regula o aparelho repressor do Estado e organiza toda rede simbólica e discursiva que atravessa o conjunto da sociedade. Modelo este que pode ser depreendido em toda sua perversidade a partir da análise da curta, porém significativa resposta dada pelo então governador do estado, Luiz Antônio Fleury Filho, quando questionado sobre os eventos daquele 2 de outubro de 1992, que culminariam na morte de 111 presos. Os efeitos de sentido dessa frase, bem como suas implicações que, a despeito de sua brevidade, estão longe de serem banais, serão examinados a seguir.

5 Como comprova o episódio envolvendo a prisão de Rafael Braga, jovem negro que vivia em situação de rua e trabalhava como catador de material reciclável no centro do Rio de Janeiro. No dia 20 de junho de 2013, Rafael Braga foi detido após uma manifestação con- tra o aumento das passagens de ônibus, sob acusação de portar material explosivo utiliza- do na fabricação de coquetéis-molotovs. Além de não estar participando da manifestação (sua prisão foi efetuada durante a dispersão do ato), um laudo do esquadrão antibombas da própria Polícia Civil atestou que os materiais encontrados nas duas garrafas (Pinho Sol e desinfetante) tinham ínfima possibilidade de funcionar como material explosivo. Rafael Braga foi condenado a 11 anos de prisão.

134 Acauam Oliveira

“Quem não reagiu está vivo”

A frase, pronunciada pelo ex-governador Fleury em uma entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo, vinte anos após o Massacre do Carandiru, pre- tende justificar a ação da PM na época6. Seu tom é de absoluta transparên- cia assertiva, enunciada por um sujeito pleno de convicções. Contudo, em relação ao conteúdo, seu sentido é completamente obscuro — tudo nele é mudança de foco e desvio de atenção, a despeito das aparências. Constitui-se assim uma forma paradoxal na qual a mais completa obscuridade é enuncia- da enquanto verdade transparente. Mais do que um exemplo de desfaçatez e cinismo, estamos diante de uma apresentação sucinta do significante ideológico presente no cerne do padrão de atuação do Estado. Vale a pena, pois, examinar em detalhes o enunciado. Note-se inicialmente que, a despeito de seu tom pleno de convicção (que justifica a ação da PM em tom de verdade factual, ou providência di- vina), basicamente todos os elementos que compõem o massacre desapare- cem da frase. Culpados, vítimas e a própria morte desaparecem da oração, organizada a partir de outro sistema que distorce o sentido mais geral dos acontecimentos. Nela, a condição de vida e morte decorre, sobretudo, do reagir, verbo que aqui promove um desvio ideológico decisivo. É por meio dele que o conteúdo principal da ação, bem como seus agentes, deixa de existir. Afinal, reagiu-se ao quê? E a quem? A ação policial não se apresenta e, como tal, não pode ser julgada ou colocada em questão, como se fosse uma condição absoluta, externa ao episódio (deus ex machina), a determinar quem vive e quem morre. Nesta lógica, a ação genocida da polícia militar é antes um dado absoluto, uma solução, do que um problema. Todo peso do enunciado desloca-se, assim, para os detentos. Contudo, como a ação policial não existe, também não existem suas vítimas (ainda que continuem existindo culpados). Contam-se os vivos, fazendo-se ressaltar a eficiência da operação. No fim das contas, ficamos apenas com uma reação sem saber ao certo ao que ou a quem, e alguns sujeitos que permaneceram vivos. Sem polícia. Sem vítimas. Sem massacre. O primeiro efeito obtido com a oração é, portanto, a blindagem da ação policial por meio do desaparecimento do massacre. Longe de constituir mera opinião, a frase tem função performativa, substituindo os acontecimentos

6 A frase, por sua vez, recupera uma fala em que o então governador Geraldo Alckmin justifi- cava nove mortes ocasionadas por uma ação da Rota em 2012 (Manso, 2012).

135 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

por uma fantasia que assume a condição de verdade. Seu principal objeti- vo é apagar os acontecimentos, impossibilitando sua narração. Com isso o massacre se torna um dado inapreensível, ato de fúria divina sem explica- ção7. Não por acaso, os documentos oficiais do sistema de justiça brasileiro chamam o episódio de “rebelião” ou “motim” do Pavilhão 9 do Carandiru. Como bem lembra o filósofo Vladimir Safatle, não estamos diante de um caso particular. Trata-se de um projeto típico de sociedades totalitárias, que teve na Alemanha nazista seu principal laboratório, mas cuja realização mais bem acabada só vem a acontecer, segundo o filósofo, no Brasil. Seu objetivo é produzir uma violência sem traumas, um crime perfeito sem testemunhas, luto ou justiça:

é bem provável que a dimensão realmente nova de Auschwitz esteja em outro lugar. Talvez ela não esteja apenas no desejo de eliminação, mas na articulação entre esse desejo de eliminação e o desejo sistemá- tico de apagamento do acontecimento (Safatle, 2010, p. 237).

Não é por acaso que, diferentemente do que se passou com os criminosos nazistas, até hoje ninguém foi responsabilizado pelos acontecimentos do Ca- randiru. Apesar dos esforços de diversos setores da sociedade civil, todos os processos de responsabilização disciplinar, criminal e civil foram interrompi- dos ou permanecem sem conclusão (Ferreira; Machado; Machado, 2012). Os réus que respondem criminalmente pelo massacre permanecem nos quadros da polícia militar de São Paulo, muitos deles tendo sido promovidos. O coro- nel Ubiratan Guimarães, único condenado pelo episódio, foi absolvido cinco anos depois. A frase do governador não é, portanto, apenas uma maneira cínica de desviar o assunto, e sim uma revelação do modo mesmo como o Estado efetivamente lida com os fatos. Para ele, o massacre não existe. Contudo, resta ainda depreender algo da função desse enunciado. Afinal, o que determina a “consistência” de uma frase tão obscura, que faz desapare- cer todos os termos aos quais aparentemente se refere (vítimas, culpados e o próprio acontecimento)? Note-se que o reconhecimento da farsa não resolve o problema: seria completamente diferente se a frase fosse algo do tipo “não morreu ninguém”, pois nesse caso a relação seria de oposição absoluta do

7 Como “esclarece” o próprio Fleury quando perguntado sobre como com- preendia o episódio: “Eu acho que já estava escrito. Maktub, como falam os árabes. Eu acredito que, se o Ubiratan não tivesse desmaiado, o resultado teria sido outro” (Manso, 2012).

136 Acauam Oliveira

enunciado a seu referente. No caso de “quem não reagiu está vivo” não se trata apenas de negar os fatos, impossibilitando sua nomeação, mas também de legitimar uma determinada perspectiva. O segundo efeito da oração é, portanto, tornar a própria ação policial o parâ- metro último de significação, moldando a realidade a seu horizonte de sentido. Se quem não reagiu está vivo, quem morreu é obviamente culpado. Quem atribui culpa e inocência é a própria morte, que nesse caso é estabelecida de cima para baixo por quem tem a possibilidade/autorização de matar. Encarnada em seus agentes, a morte transforma suas vítimas imediatamente em “elementos” culpados, mera confirmação de uma verdade estabelecida de antemão pela ação policial. Não existe julgamento: se morreu, é porque era culpado. Como essa ação é excluída da frase, a morte aparece de forma absoluta, como um destino inexorável a partir de onde irradia-se toda significação. Maktub. É, pois, a violência policial que funda a Verdade do Estado Brasileiro, sustentada pela produção de cadáveres dos jovens negros de periferia. Por fim, a frase constrói ainda um último efeito, reconhecido novamente no uso perverso do verbo reagir, núcleo ideológico da oração. A condição de sobrevivência deste “quem” depende de ele acatar o sentido do verbo que, a despeito de sua falsidade — um massacre é caracterizado justamente pela impossibilidade de a vítima reagir —, determina sua vida. Nesse movimen- to, a responsabilidade pelo acontecimento passa a ser toda do detento, crian- do-se um mecanismo de culpabilização da vítima. A frase apresenta o detento como alguém que tem uma escolha a tomar (reagir ou não reagir) diante de uma Verdade previamente determinada, sendo inteiramente responsável pe- las consequências de seus atos. Toda a frase é construída como um não-lugar que transforma as ações da PM em condição de verdade dos acontecimentos, frente à qual os sujeitos devem se submeter. Toda responsabilidade é trans- ferida aos detentos como resultado de uma ação que, entretanto, só se rea- liza negativamente. Não-reação, ou seja, aceitação passiva da palavra divina pregada na forma de rajada de metralhadora. O detento é culpado por seu próprio extermínio. A PM é o caminho, a verdade e a morte.

O sujeito periférico

A ação da PM, síntese da violência do Estado, se torna assim um Abso- luto, um acontecimento do qual não se pode escapar, como a força de um destino categórico e inapelável, o qual cabe ao sujeito aceitar. Essa presença determina e esvazia todo o conteúdo: a ação policial não se apresenta, os

137 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

detentos são avaliados a partir de uma impossibilidade e a morte é pura fatalidade. Espécie de sentença de morte que não enuncia seus termos, in- corporando-se aos sujeitos como um destino inapelável cuja movimentação é determinada de fora, como uma ordem divina. De acordo com essa lógica, quem morre é culpado porque cumpre o papel organizado pelo discurso. Entretanto, pode-se dizer que aqueles que permane- cem vivos não são necessariamente inocentes, ou livres: eis a perversidade final desse sistema. Estes estão apenas esperando sua vez, pois é o discurso, e não suas ações, que determina o que o sujeito é ou não. Uma vez que o “inocente” morre, torna-se imediatamente e desde sempre culpado. Sobretudo por conta da opacidade do conceito de “reação”, cujo sentido é determinado sempre a posteriori. Ao ser capturado por essa lógica, tanto quem reage quanto quem não reage está irremediavelmente determinado pelo não-lugar discursivo produzi- do pelo Estado. O sujeito só existe na medida em que confirma esse discurso e, nesse sentido, não tem voz própria. Pois como afirma Spivak (2010) em seu mais famoso ensaio, o subalterno não pode falar. É a partir desse contexto absolutamente adverso, perfeitamente des- crito pelo rapper Eduardo como uma “fantástica fábrica de cadáver”, que irá emergir um ponto de vista inédito, em confronto direto com tal modus operandi. Será a periferia a primeira a perceber que tal padrão discursivo presente na fala do governador não se dirige apenas aos presos ou aos ban- didos, e sim a toda população periférica, que por sua vez é uma espécie de laboratório para o tratamento da população mais pobre no geral. Trata-se, de fato, do próprio modelo de organização do país, que exclui os mais pobres das esferas básicas da cidadania e opera por meio da gestão da miséria, siste- ma que envolve diversos dispositivos como a criminalização de reivindica- ções sociais, o genocídio da população negra, o encarceramento em massa, a cultura do medo etc. (Wacquant, 2001). Também ao morador pobre da periferia só é dada a pseudo-opção reagir/não-reagir, falsa na medida em que a equação só é montada depois dos eventos: como na narração final do “Homem na Estrada”, a versão oficial é sempre “verdadeira”, uma vez que a violência funciona como fundamento da verdade (Avelar, 2011). Partindo de tais condições de barbárie e anomia social, a periferia progressivamente começa a articular diversas estratégias de resistência, criando condições para sair da condição de subalternidade e assumir o papel de sujeito periférico. O termo, desenvolvido pelo sociólogo Tiarajú D’Andrea (2013) em sua tese de doutorado, pretende dar conta de uma série de transformações socio- culturais ocorridas nas periferias de São Paulo a partir da década de 1990 e que produziram uma mudança importante nos sentidos atribuídos ao termo

138 Acauam Oliveira

“periferia”. Até então esses significados eram predominantemente definidos pelos discursos da sociologia marxista e da antropologia ligada aos estudos sobre urbanização brasileira. Mas por essa época a utilização do termo come- ça a mudar de mãos, quando então “uma série de artistas e produtores cul- turais oriundos dos bairros populares começou a pautar publicamente como esse fenômeno geográfico/social e subjetivo deveria ser narrado e aborda- do” (D’Andrea, 2013, p. 45). Esses produtores e artistas foram paulatina- mente irrompendo na cena cultural paulistana, valendo-se especialmente da autoridade que sua condição de pertencimento ao contexto periférico lhes conferia. Progressivamente, o discurso acadêmico sobre o contexto perifé- rico e seus moradores foi sendo substituído por uma pluralidade de sentidos construídos por coletivos políticos e culturais que aos poucos conquistavam maior abrangência social. Desse modo, enquanto o termo passava por um verdadeiro processo de “esvaziamento de sentido” nos meios acadêmicos, era “ressemantizado” pelos próprios moradores, que se apropriavam de seu sentido crítico e lhe acrescentavam novas funcionalidades. Esse processo de apropriação pela periferia de seu próprio conceito será fundamental para a compreensão daquilo que o sociólogo denomina formação do sujeito periférico: uma subjetividade de tipo novo que se forma nas peri- ferias e que irá designar alguém que pertence a uma localidade geográfica específica e se reconhece a partir dessa condição por meio da ação política que o leva a compreender sua posição no mundo. Contudo, é importante ressaltar que, segundo Tiarajú, ainda que pertencer à periferia seja condição para alguém se tornar um sujeito periférico, nem todo morador de periferia se tornará esse sujeito. O sujeito periférico é aquele morador da periferia que assume sua condição de periférico, tem orgulho dessa situação e age po- liticamente a partir dela, assumindo seu lugar com orgulho e direcionando um conjunto de ações no mundo a partir daí. Nesse movimento, acrescenta novos sentidos ao termo “periferia”, que passa a designar não apenas “pobre- za e violência” (embora esses elementos não deixem de existir), mas tam- bém “cultura e potência”, confrontando a lógica genocida do Estado a partir da elaboração coletiva de outro modo de dizer. “Quem reagir fica vivo”. Nesse processo de construção de um novo tipo de subjetividade, a obra dos Racionais MC’s assume particular importância, funcionando como uma espécie de catalisador maior desses debates e questões e configurando-se enquanto um dos mais importantes elementos no processo de estruturação subjetiva desse sujeito. O destaque e a visibilidade conquistados pelo gru- po estão organicamente relacionados à emergência e consolidação de uma nova fala da periferia sobre a periferia que, desde então, não pode mais ser

139 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

ignorada. Após o impacto causado pela emergência de seu discurso no ce- nário cultural brasileiro, o próprio significado do termo “periferia” mudou radicalmente, conforme enfatiza o sociólogo Tiarajú D’Andréa8:

Esse discurso foi eficaz a ponto de modificar o ponto de vista de cien- tistas sociais, de agentes do poder público e de produtores artísticos sobre a periferia. Ou seja, para qualquer formulação sobre o assunto após o momento em que os Racionais MC’s entraram na cena pública, foi necessário ter clareza de que essa fala existia. (2013, p. 24-25)

A construção desse novo paradigma na história da música popular está organicamente relacionada à construção desse novo sujeito que surge nas margens da sociedade brasileira. Mais do que a representação da periferia, o rap representa esses sujeitos apropriando-se de sua própria imagem e cons- truindo para si uma voz que, no limite, muda a própria forma de se enxergar (e vivenciar) a pobreza no Brasil.

Os quatro pretos mais perigosos do Brasil

Eu sou irmão Dos meus trutas de batalha Eu era a carne Agora sou a própria navalha (“Negro drama”)

Quanto vale o show?

No final dos anos 1980, o rap começava a conquistar alguma visibilidade no Brasil. Surgiam os primeiros concursos e bailes, como os da Chic Show,

8 O autor também destaca que a importância do grupo deve ser compreendida no interior de um processo mais amplo de produção cultural da periferia, que buscava então novos modelos de representação que envolviam “a literatura marginal e seus principais autores; os grupos de teatro da periferia; as comunidades do samba; os saraus; as posses de hip-hop; os artistas populares da periferia de diversas expressões; cineclubes e produções audiovisuais periféricas, dentre inúmeras outras expressões artístico-políticas que cresceram em núme- ro, tamanho e abrangência a partir da década de 1990” (D’Andrea, 2013, p. 26).

140 Acauam Oliveira

e nomes como Thaíde & dj Hum começavam a receber, mesmo que de forma incipiente, algum destaque em programas de TV. Foi justamente por essa época, mais precisamente em 1988, que os primos Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue) e Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown), moradores do extre- mo sul de São Paulo, se apresentaram pela primeira vez em um concurso no clube Asa Branca, em Pinheiros, conquistando o primeiro lugar. No outro extremo da cidade, Edivaldo Pereira Alves, vulgo Edi Rock, tam- bém começava a apresentar-se ao lado daquele que se tornaria o mais impor- tante DJ da história do rap brasileiro, Kleber Geraldo Lelis Simões (KL Jay). O sucesso da dupla foi aumentando progressivamente, e em pouco tempo já estava abrindo shows para nomes importantes como Thaíde & DJ Hum e MC Jack. Naquele mesmo ano, o então produtor cultural e ativista político de esquer- da Milton Sales – que conhecia tanto a cena da região da São Bento, frequentada por Brown e Blue, quanto a casa noturna Clube do Rap, na Bela Vista, dominada por KL Jay e Edi Rock – apresentou a ideia de juntar os dois grupos, forman- do o que então passaria a ser conhecido como Racionais MC’s. Além de ser re- conhecido como um dos responsáveis por consolidar o rap em São Paulo nos anos 1980, Milton Sales foi uma figura fundamental para o processo de fortale- cimento da orientação política do grupo (Silva, 2012). “Ele dizia que eu tinha de usar meu talento para mudar as coisas, igual ao Bob Marley fez na Jamaica, lutar pelo oprimido. Era disciplina de esquerda. Ele e Malcolm X foram os caras que me ensinaram as coisas mais importantes de política”, como já declarou Mano Brown (Caramante, 2013). A visão de Milton Sales ajuda a compreender algo do significado que o rap assumiu ao longo de seu processo de consolidação:

Eu não vi mercado na São Bento. Eu vi a possibilidade de criar uma revolução cultural no país, de um movimento que se autogerisse, que produzisse seus próprios discos e que se tornasse

político por meio da música. A música está em todos os lugares. Se ela tem esse poder de mover esse sistema, ela tem também o poder de elucidar. Eu trouxe essa proposta política para o rap. Ele é um movimento musical que pode construir um partido, interferir nas decisões do Estado, sem dar um tiro, só mobilizando gente (Sales apud Rocha; Domenich; Casseano, 2001, p. 136, grifo nosso).

Tal conjunto de ideias forjava um sistema profundamente heterogêneo que envolvia a experiência de viver no limiar das periferias de São Paulo; a influência do hip hop norte-americano; uma perspectiva de organização

141 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

social e formação de consciência por meio da disciplina advinda da militância de esquerda e alguma das ideias do movimento negro internacional, espe- cialmente Malcom X. Esse sistema se faz presente desde as primeiras com- posições do grupo, “Pânico na Zona Sul” e “Tempos Difíceis”, que entraram na coletânea Consciência Black (1988) e, dois anos depois, em seu primeiro disco, Holocausto Urbano (1990), que venderia cerca de duzentas mil cópias e tornaria o grupo conhecido em toda periferia paulistana. Após o EP Escolha o seu Caminho (1992), que contava com apenas duas com- posições (“Negro Limitado” e “Voz Ativa”), o grupo lança aquele que seria um dos grandes discos da história do rap, um marco na história do movimento hip hop e do processo de autorreconhecimento das comunidades periféricas brasi- leiras. Raio X do Brasil (1993) apresentou uma série de mudanças em relação aos trabalhos anteriores, marcando uma nova postura do grupo perante sua comuni- dade, e que progressivamente se consolidaria como uma das mais importantes e radicais realizações culturais da história da música popular feita no Brasil. Mas é com o disco Sobrevivendo no inferno (1997) que os Racionais MC’s alcançam projeção nacional, vendendo cerca de 500 mil cópias segundo os dados oficiais (os dados extraoficiais indicam que essa marca teria ultrapassa- do 1 milhão de cópias). O feito torna- se ainda mais impressionante se levar- mos em consideração o embate direto do grupo com o mercado fonográfico brasileiro em todas as suas ramificações, negando-se a receber premiações, dar entrevistas e divulgar seu trabalho na grande mídia. Nesse trabalho, pro- duzido pela produtora independente Cosa Nostra, pertencente ao próprio Racionais, o grupo alcança sua maturidade estética e ideológica. Somente quinze anos mais tarde seria lançado Nada como um dia após o outro dia (2002), disco duplo que incorporava muitas das experiências particulares dos integrantes do grupo sem, contudo, deixar-se levar por um tom intimista, posto que tais experiências vinham acompanhadas de um processo de reflexão mais amplo sobre as condições de existência no contexto periférico, buscando identificar as dinâmicas próprias do “pro- ceder” dos Vida Loka. Em 2014 é finalmente lançado seu mais recente trabalho até então: Cores e Valores, álbum curto para os padrões do grupo, e que dividiu a opinião de crítica e público.

Os quatro pretos mais perigosos do Brasil

É dessa forma que o grupo se autodenomina em diversas entrevistas concedidas ao longo de seus trinta anos de carreira (Caramante, 2013). E

142 Acauam Oliveira

poderíamos nos arriscar a dizer que, durante muito tempo, não parecia ha- ver exagero em tal definição, a despeito de seu caráter de autopropaganda (que faz parte de sua força, ao contrário do que um modelo de percepção mais purista pode imaginar). Se não os mais perigosos, certamente uns dos mais perigosos pretos do país. Sejamos ainda mais claros: perigosos para certa imagem de Brasil, para um determinado projeto de formação nacio- nal. O fato de eles agora talvez não mais representarem tal perigo, a des- peito de sua importância e valor de referência dentro da cultura brasileira, indica muito mais do que uma transformação de cunho estético: estamos acompanhando a gradual saída de cena de um de nossos últimos projetos culturais verdadeiramente emancipatórios. Mas qual seria, especificamente, o risco que o Racionais MC’s representa para o discurso hegemônico, e cujo impacto foi capaz de provocar reações violentas por parte do Estado (prisões, perseguições, proibições de shows)? É claro que tal risco não tem nada a ver com as acusações de “incitação à vio- lência”, “apologia ao crime” ou outras fórmulas movidas por puro desconhe- cimento ou má-fé. Basicamente é isso o que se tentará demostrar nas páginas seguintes, mas que sinteticamente poderíamos definir da seguinte forma: os Racionais encontraram uma maneira de, posicionando-se ao lado do bandido e definindo- se enquanto sujeitos marginais periféricos, ou seja, enquanto sujei- tos destinados a morrer pelas mãos do Estado, permanecerem vivos. Em con- junto com a comunidade periférica, o grupo ajudou a pavimentar um caminho de sobrevivência para seus irmãos, por meio da palavra tornada arma. Mais do que isso, eles compreenderam que apenas assumindo todas as complexas implicações desse lugar marginal é possível para a periferia construir espaços emancipatórios. A trajetória do grupo consiste, pois, na formalização dos im- passes, contradições e avanços desse projeto a um só tempo estético e social. Uma vez que, como vimos, o fundamento do Estado brasileiro é transforma- ção da violência em Verdade por meio da atuação genocida da polícia, pode-se dizer que o projeto ético-estético do grupo é uma tentativa de negação de um dos pilares que tornam possível o próprio projeto de formação do país. Daí seu grau de periculosidade. Em outras palavras, trata-se de reconhecer no massacre do Carandiru a Verdade maior do Estado brasileiro (assim como os frankfurtianos reconheciam em Auschwitz um laboratório para todo o projeto de civilização do Ocidente) e criar meios para evitar sua repetição. Para captar a radicalidade dessa forma e suas principais implicações, é necessário que nos afastemos inicialmente de alguns lugares-comuns a res- peito do rap e da obra do grupo em particular. Uma dessas concepções é a de que o rap seria a “voz da periferia” por ser um tipo de arte feita por quem

143 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

é de lá, e que por isso “sabe o que acontece” melhor do que ninguém. Como veremos ao analisar os primeiros trabalhos dos Racionais MC’s, é perfeita- mente possível ser morador da periferia, participar do movimento hip hop e, ainda assim, ser contrário aos interesses da sua comunidade. O rap como “voz ativa” periférica não é uma condição natural, algo como um aspecto essencial de quem vive na periferia, e sim o resultado final de um longo processo de elaboração coletiva. A própria concepção do que seja periferia, como vimos, não é um dado da natureza, e sim objeto de disputa discursiva. O rap, portanto, é muito mais do que um discurso sobre a “periferia”, feito por seus próprios moradores: é a própria construção desse conceito como instrumento de autopercepção e sobrevivência. A criação desse conceito, obviamente, não se dá de forma linear, e muito da radicalidade da posição dos Racionais pode ser depreendida a partir da observação dos conflitos e impasses, em certa medida inéditos, formalizados em suas canções. Passemos a seguir à análise de alguns desses aspectos.

O professor autoritário

Salvo engano, o pesquisador Charleston Lopes (2015) foi o primeiro a re- conhecer e problematizar uma mudança de linguagem fundamental na obra dos Racionais MC’s, no sentido de um maior adensamento de sua perspectiva crítica ao longo de seus discos. Dessa forma, ele reconhece uma particularidade impor- tante presente em Holocausto Urbano, que pode ser definida em termos de estru- tura discursiva. Todas as canções desse disco apresentam prioritariamente um discurso argumentativo, e mesmo aquelas que trazem a descrição de alguma cena — “Hey boy”, “Mulheres vulgares” e “Pânico na Zona Sul” —, esta acaba servin- do como uma espécie de “pano de fundo” a partir do qual o sujeito vai desfiar seus argumentos. Basicamente, o foco das canções vai estar mais nos juízos do rapper a respeito dos assuntos por ele denunciados do que nos acontecimentos em si. Seu ponto de vista, estruturado principalmente a partir de juízos e julgamentos, é o meio por onde se tem acesso aos acontecimentos, propostas, críticas, alterna- tivas etc. Essa estrutura é predominante em todas as canções do disco9.

9 “Eu vou lembrar que ficou por isso mesmo/ E então que segurança se tem em tal situação/ Quantos terão que sofrer pra se tomar providência” (“Pânico na Zona Sul”). “Eu digo a ver- dade, você me ironiza/ A conclusão da sociedade é a mesma/ que, com frieza, não analisa, generaliza/ e só critica, o quadro não se altera e você/ ainda espera que o dia de amanhã será bem melhor” (“Beco sem saída”).

144 Acauam Oliveira

Ainda segundo o pesquisador, esse modo de organização narrativa presente em Holocausto Urbano é resultado da posição ocupada pelo ra- pper em relação a sua comunidade, tal como representada pelas canções. Este continuamente oscila entre “ser a voz da periferia”, integrando-se a ela, e ser uma “voz pela periferia” (Lopes, 2014, p. 41), que em alguma medida se separa dela. O efeito geral é o de uma voz que assume certa condição de “verdade” na organização de sua matéria, garantindo uma posição de “distinção” em relação a seu contexto que muitas vezes assu- me um tom moralista. Essa superioridade do ponto de vista é obtida por meio de dois ex- pedientes contraditórios e complementares. Como em toda a obra dos Racionais, Holocausto Urbano estabelece uma diferença muito clara entre um lá, fora da periferia, e um cá, que é a comunidade a partir de onde fala o rapper. A autoridade deste em relação aos que estão do lado de lá decorre de sua relação orgânica com a comunidade, na condição de quem conhece o que se passa do lado de cá: “Então quando o dia escurece/ só quem é de lá sabe o que acontece/ ao que me parece prevalece a igno- rância/ e nós estamos sós/ ninguém que ouvir a nossa voz” (“Pânico na Zona Sul”, grifo nosso). O rapper tem autoridade para falar sobre o que se passa porque vive aquela realidade, sendo portador de uma verdade que está vedada para quem é de fora: “A burguesia, conhecida como classe no- bre/ tem nojo e odeia a todos nós, negros pobres” (“Beco sem saída”). Por outro lado, ao organizar a matéria narrada a partir de um ponto de vista subjetivo, essa realidade periférica da qual o rapper afirma participar não comparece objetivamente nas cenas descritas, o que o coloca em uma posição distanciada, descolada de seu referente não encenado. Para o interlocutor de “lá” a única referência àquela realidade que ele desconhece será o ponto de vista do rapper que, entretanto, se constitui enquanto “verdadeiro” na medida em que faz desaparecer a alteridade periférica, colocando-se na posição de porta-voz desta. A condição de verdade do discurso do rapper decorre dessa posição que “dubla” aquilo que os sujeitos periféricos teriam para dizer, reconfirmando assim a condição de sujeitos sem voz a quem “ninguém quer ouvir”. Precisamente por sua fragilidade, o aspecto mais problemático desse discurso se apresenta quando ele dirige seu tom acusatório para os próprios membros da comunidade, deixando transparecer certo ar de superioridade que, por vezes, se aproxima do mesmo tom de desprezo que destila contra os playboys. Nesses momentos, o discurso de autoridade assume um tom francamente autoritário:

145 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

Mas muitos não progridem porque na verdade assim querem Ficam inertes, não se movem, não se mexem Sabe por que se sujeitaram a essa situação? Não pergunte pra mim, tire você a conclusão Talvez a base disso tudo esteja em vocês mesmos E a consequência é o descrédito de nós negros Por culpa de você, que não se valoriza Eu digo a verdade, você me ironiza […] O quadro não se altera e você Ainda espera que o dia de amanhã será bem melhor Você é manipulado, se finge de cego (“Beco sem saída”, grifos nossos)

O olhar do rapper é construído em oposição a esse lugar ocupado pela “maioria da população”. Seu ponto de vista é o do militante não alienado, que dotado exclusivamente de sua força de vontade não se acomoda diante da opressão e é capaz de agir livremente, escapando dos constrangimentos que atingem o restante da comunidade (“Esse é o meu ponto de vista, não sou um moralista/ deixe de ser egoísta, meu camarada, persista/ É só uma questão: será que você é capaz de lutar?”). O rapper é aquele que luta, que tem coragem, afastando-se nesse movimento dos demais cidadãos comuns, que permanecem “inacreditavelmente” inertes, sem fazer nada (“E hoje o que fazemos/ Assistimos a tudo de braços cruzados/ Até parece que nem somos nós os prejudicados”). Nesse sentido, aproxima-se da periferia a partir de um lugar de superioridade, orgulhoso de possuir uma verdade e mesmo uma cultura que a maioria não possui (“a maioria da população, carente de educação e cultura”). Percebe-se claramente um forte desejo de “liderança” nessa voz. Construída entre dois impulsos contraditórios não articulados — re- presentar e se afastar da periferia —, a “saída” para o ponto de vista nesse momento é elevar sua argumentação à condição de verdade, portadora dos “reais” valores periféricos. Aquilo que aparece enquanto demonstração de força, seu tom autoritário, esconde na verdade uma profunda fragilidade de base que atravessa todo o conjunto. O grau de generalização presente em alguns momentos da argumentação paira sobre o vazio, marcando no próprio corpo do texto a distância do contexto que este afirma representar. Cria-se, nesse sentido, um descompasso formal entre o que a canção exige (um ponto de vista que se legitima por estar próximo à periferia) e o que ela apresenta como resultado — uma voz que marca distância da periferia,

146 Acauam Oliveira

chegando ao limite de reproduzir clichês violentos contra os mais pobres, muito provavelmente produzidos pelo mesmo “sistema branco” ao qual pre- tende se contrapor. Em seus piores momentos o ponto de vista realiza precisamente aquilo que critica nos negros “alienados” e “acomodados”, reproduzindo a opressão e contribuindo para a desunião e fragmentação da sua comunidade. Como nesses versos de “Negro Limitado” em que as críticas raivosas chegam ao limite da ofensa, e o saber que deveria ser compartilhado com a comunidade para a construção de uma identidade coletiva é celebrado enquanto instru- mento de distinção:

Vive contando vantagem, se dizendo o tal Mas simplesmente, falta postura, QI suficiente Me diga alguma coisa que ainda não sei Malandros como você muitos finados contei Não sabe se quer dizer Veja só você, o número de cor do seu próprio RG Então, príncipe dos burros, limitado Nesse exato momento foi coroado10. O pastor marginal

Em 1993, apenas um ano após o lançamento de Escolha o seu Caminho, os Racionais lançam Raio X do Brasil, que apresenta uma mudança radical na postura e na forma estética, que impressiona tanto pela radicalidade quanto pelo salto qualitativo. Se o movimento inicial foi o de elevar seu discurso à posição de verdade proferida por um mestre autoritário, o passo seguinte será o de recuar para junto de seus irmãos, assumindo-se na condição de apenas mais uma das inúmeras vozes periféricas, que se cruzam, tencionam, debatem, num movimento claro de descentralização de poder, em que o rapper recusa a posição de liderança para abraçar sua comunidade. Ele deixa de se representar a partir de um lugar distante de denúncia, que incita a

10 Aliás, é o próprio Brown que anos depois reconhece esse e outros aspectos problemáticos dessas obras iniciais, marcadas por um distanciamento de quem assume um tom de “senhor da verdade”: “Se ouvir [as músicas antigas] vai ver que as palavras… parece que sou meio pro- fessor, meio universitário… tudo quase semianalfabeto, tudo estudou até o primeiro colegial, […] E querendo falar pros caras da área, mas parecendo que nós éramos outros caras.[…] Tem música que eu nem canto porque tenho raiva da letra. ‘Voz ativa’, mesmo, eu tenho raiva da música, não gosto das palavras, do jeito que elas são ditas. Parece um texto de jornalista, eu não sou isso aí! Eu sou um rapper” (Kalili, 1998).

147 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

população a acordar e sair do imobilismo, oferecendo alternativas tão certas quanto abstratas (educação, consciência etc.), para constituir-se enquanto espaço simbólico onde tais alternativas poderão ser pensadas e construídas coletivamente, a partir das contradições presentes no cotidiano. A partir de então os Racionais abandonam a postura de distanciamento reativo, que no limite marcava um afastamento entre os valores do rap e da periferia, para “humildemente” recuar para o lado de seus manos, propondo uma perspec- tiva progressista de incorporação de pontos de vista divergentes, mas unidos pela violência e pobreza, as quais era necessário subverter. O grupo aban- dona aquela posição de autoridade, que cobrava dos “negros limitados” que escolhessem um dos caminhos oferecidos por ele, para ocupar em definitivo a posição de interlocutor. Formalmente essa mudança será marcada pela substituição do discurso argumentativo dos trabalhos anteriores por uma lógica narrativa (Lopes, 2015) de organização discursiva, que caracteriza o ponto de vista épico11. Para apre- endermos melhor essa diferença, comparemos duas cenas — de Holocausto Urbano e Raio X do Brasil, respectivamente — que têm como objetivo geral mostrar a situação de miséria e abandono da periferia:

São chamados de indigentes pela sociedade A maioria negros, já não é segredo, nem novidade Vivem como ratos jogados, homens, mulheres, crianças, Vítimas de uma ingrata herança A esperança é a primeira que morre E sobrevive a cada dia a certeza da eterna miséria O que se espera de um país decadente onde o sistema é duro, cruel, [intransigente (“Beco sem saída”)

Equilibrado num barranco, um cômodo mal acabado e sujo Porém, seu único lar, seu bem e seu refúgio Um cheiro horrível de esgoto no quintal Por cima ou por baixo, se chover será fatal Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou

11 Conforme definição de Walter Garcia (2013a): “Sua estrutura é do tipo épico, não mais do dramático como em ‘Hey Boy’”.

148 Acauam Oliveira

Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas Logo depois esqueceram, filha da puta! (“Homem na estrada”, grifos nossos)

No primeiro exemplo (“Beco sem saída”, de Holocausto Urbano), o in- terlocutor tem acesso à situação descrita apenas por meio dos juízos do rapper, que revela como a sociedade brasileira considera os pretos (“São chamados de indigentes pela sociedade”), como eles vivem (“Vivem como ratos jogados”), e os responsáveis pela situação (“O que se espera de um país decadente/ onde o sistema é duro, cruel, intransigente”). O lugar de “ver- dade” do discurso, que organiza os sentidos do texto, é a própria perspec- tiva do rapper, colocada em primeiro plano. Já no segundo caso (“Homem na estrada”, de Raio X do Brasil), ainda que os mesmos elementos estejam presentes (a denúncia da situação de precariedade da periferia, o descaso e a responsabilidade do Estado), o princípio de organização é radicalmente distinto. Conforme já assinalado pela crítica especializada12, pode-se dizer que o principal recurso estético utilizado nesse caso é a fusão da voz nar- rativa com a do personagem, que organiza a canção “na intersecção entre a ótica desse detento e a fabulação épica do narrador” (Lopes, 2014, p. 73). O efeito é criado pela passagem abrupta da primeira para a terceira pessoa, do “narrador onisciente” para o “discurso indireto livre”, que deliberada- mente confunde os dois lugares (Garcia, 2013a, p. 89). Nos versos iniciais o narrador está em terceira pessoa, como indica o uso do pronome “seu”, (“porém, seu único lar, seu bem e seu refúgio”), mas já no trecho seguinte o ponto de vista muda subitamente para primeira pessoa (“um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou”), a tal ponto que é impossível definir ao certo se a imprecação final contra o descaso do IBGE (“Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas/ Logo depois esqueceram, filha da puta!”) é proferida pelo próprio narrador ou pela personagem. Se em “Beco sem saída” o lugar da “verdade” narrativa é o próprio olhar subjetivo do rapper que organiza a matéria e direciona seus sentidos, em “Homem na estrada” esse ponto de vista deliberadamente se confunde com o da personagem, “comprome- tendo-se radicalmente com o tipo social que este representa, ao mesmo tempo que dele guarda certa distância” (Garcia, 2013a, p. 89). Nesse caso, é a própria cena que oferece um parâmetro de organização dos sentidos, deslocando a primazia absoluta do olhar do narrador, pois, no limite, sequer é possível afirmar a quem pertence essa voz.

12 Em especial os trabalhos já citados de Charleston Lopes (2015) e Walter Garcia (2013a).

149 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

Os ganhos narrativos desse movimento de localização e concentração do olhar são evidentes, fazendo com que as canções abandonem aquele grau de generalização abstrata que fragilizava seu discurso. A partir de então serão apresentados em uma mesma narrativa diversos pontos de vista, avaliados e compreendidos em sua complexidade, sempre a partir de uma perspectiva que se coloca contra as elites. As canções passam a ser estruturadas por cenas dispostas como num palco, conforme definido em “Homem na estrada” (“Esse é o palco da história que por mim será contada”). Seu interlocutor privilegia- do será cada vez menos aqueles que precisariam ser ensinados ou agredidos (boys, racistas, negros limitados, mulheres vulgares, mídia) — cuja presença confirmava a “necessidade” desse discurso — e mais a periferia em toda sua rede complexa de relações. Os Racionais deixam de se dirigir aos de fora para dialogar com seus próprios manos. Diversos pontos de vista serão sistemati- camente representados, compreendidos, sobrepostos e recusados, sem que o caminho correto seja teleologicamente definido de antemão pelos rappers, mas sim julgado a partir da relação estabelecida entre as partes e o todo. Mas será sobretudo a partir de Sobrevivendo no inferno (1997) que o cami- nho escolhido pelos Racionais estará definitivamente ligado ao da periferia. A virada narrativa iniciada em 1993 que, como vimos, corresponde a uma vi- rada ética não menos importante, chega aqui a um grau de amadurecimento e organicidade que faz do disco uma das mais importantes obras da história da canção brasileira. Essa importância está longe de ser puramente estética, ou melhor, dada a especificidade da própria linguagem do grupo, essa quali- dade não pode ser apenas estética. O destaque e a visibilidade conquistados pelos Racionais estão organicamente relacionados à emergência e consoli- dação de uma nova fala da periferia sobre a periferia que, desde então, não pode mais ser ignorada.

Vida Loka cabulosa

Podemos dizer que Sobrevivendo no inferno está naturalmente estruturado como uma espécie de “culto marginal”, em diálogo profundo com os novos agentes cuja influência então aumentava na periferia (sobretudo PCC e neo- pentecostais) (Oliveira, 2015). Após acentuar seu compromisso com os valo- res periféricos através da criação de um ponto de vista coletivo em Raio X do Brasil, os Racionais incorporam agora não apenas os personagens, mas também o tom e a linguagem da quebrada, o modelo de linguagem a partir da qual esses sujeitos organizavam seus princípios conceituais de compreensão da realidade.

150 Acauam Oliveira

“Capítulo 4, versículo 3”, primeiro rap do disco depois da introdução, funciona como uma espécie de apresentação das diversas maneiras que esse sujeito frag- mentário e multifacetado encontra para sobreviver no inferno, tirando de sua tragédia as condições de sua força. Após as estatísticas anunciadas por Primo Preto, que relatam o processo de extermínio do jovem negro de periferia, a base de KL Jay anuncia a entrada em cena do sujeito que vem trazer sua “pala- vra”, nesse caso dirigida contra o seu interlocutor, que provavelmente é de fora da periferia. O objetivo aqui é sair da condição de vítima expressa na introdu- ção, reagindo agressivamente (“Minha intenção é ruim/ Esvazia o lugar/ Eu tô em cima, eu tô afim/ Um, dois pra atirar”). Não há espaço para dúvidas: o ponto de vista se anuncia enquanto o de um bandido violento, pronto para atirar sem dó. O estereótipo do rapper negro como bandido não só é assumido, como reforçado (“eu sou bem pior do que você tá vendo”), confirmando os piores temores da sociedade de bem, que deve mesmo se assustar, pois o negro está partindo para o contra-ataque. A potência dessa perspectiva, que seria banal caso estivesse representada em algum filme de ação hollywoodiano, se deve ao comprometimento real do rap com seus irmãos da vida bandida e com o conjunto de valores do “pro- ceder” (código de ética coletivo que permite ao sujeito “andar pelo certo”)13. Define-se claramente de que lado se está e com quem se caminha, deixando claro que não existe negociação fora de seus próprios termos. O valor pri- vilegiado nessa primeira parte é a atitude de um sujeito que se recusa a bai- xar a cabeça, negando os termos de um sistema que justifica cinicamente as mortes por ele produzidas (“quem não reagiu está vivo”). Contra o cinismo oficial, a convicção dos que sabem que não reagir significa estar morto. Os riscos dessa posição são, contudo, evidentes, e como o próprio rap deixa claro, permanecer nesse lugar do bandido é comprometer-se com um destino inevitavelmente fatal. Por isso, após reforçar esse lugar, inicia-se o processo de sabotagem do raciocínio de seu interlocutor, transitando grada- tivamente da violência de fato para a violência simbólica da palavra (“Minha

13 Conforme nos explica Adalton Marques (2009): “O ‘ter proceder’ é sim estar em consonân- cia com esse complexo conjunto de regras que, aliás, modifica-se ao longo do tempo, mas não só, já que dos ‘caras de proceder’ se espera mais do que conformidade a uma orientação, espera-se que sejam ‘humildes’ e, ao mesmo tempo, que sejam ‘cabulosos’. O ‘humilde’ deve ser entendido exatamente como aquele que ‘não humilha os humildes’. O ‘cabuloso’, por sua vez, é justamente aquele que ‘não leva psicológico’. ‘Dar um psicológico’, expressão de meus interlocutores que serviu de título a uma comunicação, conota a capacidade de um indivíduo produzir cautela ou receio (no limite, medo) num outro com o qual se relaciona, seja através de palavras, de gestos ou de atitudes”.

151 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

palavra vale um tiro, eu tenho muita munição”), sem deixar de compartilhar dos mesmos valores do bandido (“e tem disposição pro mal e pro bem”), mas sem se confundir inteiramente com ele. É assim que o rapper encarna um lugar não previsto pelo sistema, que não é nem o corpo negro descartável do bandido, nem a posição ordeira, e não menos descartável, do trabalhador honesto. É a palavra tornada arma que vai permitir a transição para fora do enquadramento do olhar do outro, e a radicalização dessa ambiguidade será a estratégia adotada pelo rap. A opção pelo caminho da paz não é, portanto, feita em nome do bem-estar de quem ouve do lado de fora da comunidade, pois a revolta continua sendo a mesma do bandido. Mas o rap permite ao preto pobre ocupar um lugar ainda não mapeado, subvertendo os papéis de bandido e vítima por meio de uma estratégia “terrorista”. Na segunda parte da canção (“Faz frio em São Paulo/ pra mim tá sempre bom”) temos uma mudança de interlocutor, que faz o ponto de vista assumir outra postura, seguindo seu processo de sabotagem. O objetivo é ainda tor- nar a imagem do sujeito periférico mais complexa, rompendo agora com as expectativas daqueles que esperam ver apenas comportamentos violentos e agressivos por parte de quem se autodefine como marginal e terrorista. Nes- se momento a canção vai falar especificamente àqueles irmãos que estão per- didos, ovelhas que se desgarram do rebanho violento da fúria negra para se tornar dóceis cordeirinhos (“Viciado, inocente, fudido/ Inofensivo”). Aqui, a postura que se espera no proceder do rapper é a humildade para com seus irmãos, pois o objetivo principal não é excluir, e sim trazê-los para junto dos seus. É nesse sentido que cada uma das críticas feitas ao companheiro virá pontuada por uma reflexão acerca do próprio lugar de enunciação:

Veja bem, ninguém é mais que ninguém Veja bem, veja bem, eles são nossos irmãos também Mas de cocaína e crack, Whisky e conhaque Os manos morrem rapidinho sem lugar de destaque Mas quem sou eu pra falar De quem cheira ou quem fuma Nem dá Nunca te dei porra nenhuma

Percebe-se novamente a profunda diferença dessa perspectiva em relação à postura autoritária dos primeiros discos. As críticas aqui não são feitas em tom de superioridade, como forma de se posicionar acima desses sujeitos. A história que o narrador utiliza para exemplificar seu ponto de vista (uma

152 Acauam Oliveira

trajetória bastante parecida com a apresentada em “Mano na porta do bar”) é bastante elucidativa de seu cuidado. A questão principal é o que representa essa perda — que transforma um guerreiro valoroso em “verme” — para o projeto de redenção da comunidade periférica. A perspectiva de Mano Brown difere radicalmente da expressa pela voz de Ice Blue, que defende a exclusão (“Ei, Brown, sai fora/ Nem vai, nem cola/ Não vale a pena dar ideia nesses tipo aí”). Para o “pregador marginal”, ao contrário, esses sujeitos não devem ser tratados como figuras inferiores, pecadores que devem ser expulsos da comunidade, mas como anjos caídos, outrora valorosos, agora inofensivos, seduzidos por alguma das inúmeras faces do demônio (“Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor/ Pelo rádio, jornal, revista e outdoor/ Te oferece dinheiro, conversa com calma/ Contamina seu caráter, rouba sua alma/ Depois te joga na merda sozinho/ Transforma um preto tipo A num ne- guinho”). O pastor sabe que a única forma de revidar e sair da condição de vítima do sistema é se manter vivo e ficar solto, manter a atitude do bandido sem o ser. Contrariar as expectativas, entrando e saindo dos modelos pre- vistos pelo sistema até causar uma pane geral. E, principalmente, fortalecer a própria comunidade a partir da palavra que indica os modos de caminhar pelo certo (“Minha palavra alivia sua dor/ ilumina minha alma/ louvado seja o meu senhor/ que não deixa o mano aqui desandar”), que nunca são facilmente delimitáveis, pois exigem disposição tanto para negar a violência (mesmo quando ela se justifica: “e nem sentar o dedo em nenhum pilantra”) quanto para reagir violentamente quando necessário (“mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei”). Essa posição claramente contraditória é por onde o sujeito deve caminhar, de acordo com as situações que se apresentam. Eis o princípio da Vida Loka. Contudo, ainda que as opções apresentadas até aqui sejam marcadas pela complexidade, elas são de certo modo evidentes: trata-se de manter uma atitude violenta contra os de cima, e humildade com os manos da própria comunidade. A questão que se coloca na terceira parte da canção, por outro lado, parte da compreensão de que a comunidade periférica é algo ainda a se construir a partir de um contexto de profunda desagregação. Uma comuni- dade por vir. Nesse sentido, o grande problema a se enfrentar é o confronto com o limite objetivo desse projeto: o que fazer com aquele Outro cuja incorporação pode representar o esfacelamento real da própria comunida- de? Os clichês multiculturais de “inclusão” e “tolerância” mostram-se aqui absolutamente ineficientes. Por representar esse conflito-limite em todo seu caráter agônico, a terceira parte da canção será um dos momentos de maior força estética, ética e crítica de toda a obra do grupo.

153 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

Seu ponto de partida será justamente o confronto do sujeito periférico com o “Zé Povinho”, não mais o sujeito que era forte e se perdeu, mas aquele morador da comunidade que pode “explodir sua cara” por nada, e cujo “aco- lhimento” pode significar, portanto, a morte (“tem mano que te aponta uma pistola e fala sério/ explode sua cara por um toca-fita velho”). A comunidade periférica, a fúria negra, ainda não está construída, e qualquer um pode ser morto por menos de cinquenta reais, apenas para fazer avançar o ciclo de destruição com a cocaína. “Sem dó e sem dor/ Foda-se sua cor”. Como se pautar pelos valores divinos em uma comunidade em que o demônio está absolutamente em todo lugar? Note-se que não existe nenhum traço essencialista na concepção de frater- nidade racial expressa pela canção (como costumam equivocadamente apontar aqueles que afirmam que o rap importa categorias raciais norte-americanas que não servem para o Brasil). Essa é fruto de um processo de construção, e não está dada a priori. Sua questão-chave pode ser definida da seguinte for- ma: como ocupar o lugar daquele que te mata — a alteridade absoluta — e construir a partir daí um modelo fraternal de vínculos comunitários? Essa é a questão fundamental para um projeto de sobrevivência da periferia: não só se contrapor à matança externa (polícia), mas também à matança interna (tráfi- co, bandidagem). É por isso que as figuras marginais ocupam o centro desse projeto — a salvação da alma periférica depende do estabelecimento de um projeto de vida para o bandido, que subverta o lugar de corpo “matável” que ele ocupa na sociedade brasileira, mas também sua própria condição enquanto agente da morte. Nesse ponto a canção chega a um verdadeiro impasse, que é ao mesmo tempo o limite real do projeto de rap feito no Brasil (e de toda arte verdadeiramente engajada), cuja resolução depende de uma mudança da própria realidade na qual o sujeito periférico atua. Depois de mostrar como sua palavra serve de arma contra o verdadeiro inimigo e de acalanto para os irmãos perdidos, trata-se agora de enfrentar seu maior desafio: o confronto entre dois pontos de vista irreconciliáveis, que estão do mesmo lado. A questão é absolutamente decisiva, pois ficar ao lado de um (trabalhador ou bandido) implica em assinar a sentença de morte do outro, o que ao final destrói a todos. Diante do impasse que é a figuração do próprio núcleo contraditório do projeto geral de Sobrevivendo no inferno — a construção de uma voz coletiva a partir de um não-lugar — o rapper opta por fazer a única coisa que lhe cabe no momento: não escolher nenhum dos lados. Ao invés de apontar a solução, como aconteceria nos primeiros discos, força ainda mais suas contradições, justamente porque tais respostas não podem ser individuais. Entretanto, isso

154 Acauam Oliveira

não quer dizer que esse sujeito foge da questão, permanecendo confortavel- mente em cima do muro. Ao contrário, trata-se de uma escolha radical pela própria “comunidade que vem” (Agamben, 2013), reconhecendo que esta precisa tanto da retidão do trabalhador quanto da agressividade do bandido. A resposta oferecida, portanto, abre espaço para representar os dois pontos de vista. Não se trata em nenhuma medida de justificar as ações anteriores do bandido contra o trabalhador, mas de criar espaço para a voz desse outro, possibilidade que é oferecida pela palavra divina do rap que, como tal, se torna um lugar onde a partir das diferenças é possível construir um modelo coletivo de enunciação. Mesmo em total desacordo e contradição, a possi- bilidade de um espaço de acolhimento dessas vozes é fundamental para que possam sobreviver. É por isso que canção muda constantemente de perspectiva, construin- do um modelo épico de enunciação. Adota o ponto de vista do trabalhador e tira todas as suas consequências até o limite, para a seguir realizar um salto para a perspectiva do bandido, em que procura compreender também suas motivações, até seu limite. Perdão e compreensão conquistados de forma violenta, numa estrutura narrativa absolutamente complexa. Em vez do re- vide, a canção insiste naquilo que o trabalhador e o bandido, afinal, têm em comum, como o sentimento de revolta, o desejo de vencer e adentrar o rei- no da dignidade. Sentimentos que o rapper, o pai de família e o bandido com- partilham. O caminho proposto pelo rap é o da fraternidade, ali mesmo onde ela parece mais difícil de conquistar, tornando-se, por isso, absolutamente necessária. A comunidade imaginada por meio do ponto de vista coletivo não nega as diferenças, mas reconhece que a única maneira de permanecer vivo é quebrando a lógica de extermínio mútuo. O gesto de condenar um dos campos é, pois, suspenso, e o narrador encarna a figura do bandido para compreendê-la e aproveitar aquilo que traz de vantagem, aprendendo com estes maneiras de combater o verdadeiro inimigo. No final da canção essa identificação com o marginal será também inter- rompida, antes de cruzar seu limite fatal e inevitável (“Mas não, permaneço vivo/ Prossigo a mística/ Vinte e sete anos contrariando a estatística”). No fim das contas o caminho do crime é recusado, mas essa recusa parte de dentro, após um movimento de total identificação, em oposição à recusa genocida da sociedade de bem. Uma recusa que pensa no que é melhor para o trabalhador, mas também para o bandido, por compreender para onde suas escolhas o levam. O rap permite assim incorporar os dois pontos de vista an- tagônicos, reconhecendo neles uma mesma potência a ser direcionada contra os verdadeiros inimigos. Sua força consiste, pois, em apostar na capacidade

155 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

de interrupção do circuito de mortes violentas, oferecendo um caminho para que toda comunidade, sem exceção, possa contrariar as estatísticas. O segredo, é claro, está no apoio mútuo dos mais de cinquenta mil manos.

Ética e estética em “Diário de um detento”

No horizonte do rap está, pois, a construção de um lugar ao lado do bandido que não se confunde com ele, fundando uma nova identidade em um espaço a partir de onde se possa construir uma ordem social mais justa. Ora, tendo em vista que nosso modelo de Estado contraventor justifica sua própria ilegalidade pela produção em massa de corpos descartáveis que não podem ser tratados dentro da legalidade (eis a tautologia constitutiva do po- der soberano, que constitui um corpo “essencialmente” fora da lei — o cri- minoso irrecuperável — para justificar sua própria ilegalidade) (Agamben, 2013), pode-se dizer sem exageros que um projeto que pretende encontrar meios de trazer esses não sujeitos à vida ataca o próprio núcleo negativo que permite a esse sistema existir. Esse projeto, contudo, não será simplesmente proposto pelos raps dos Racionais como uma solução abstrata para os problemas da periferia, pois será examinado em todos os seus limites e contradições. Contradições essas que não são de forma alguma puramente estéticas, mas partem de problemas reais, historicamente colocados. Sobrevivendo no inferno é, nes- se sentido, não apenas o mais bem acabado resultado desse projeto, mas também um questionamento radical da viabilidade de construção de uma consciência periférica, negra e marginal, articulada enquanto discurso pelo rap. Afinal, como é possível criar simbolizações diante do confronto com o Real que faz o sujeito perder todas as suas possíveis referências? Como criar fraternidade e paz entre os “ladrões”, a partir de um contexto de violência extrema, em que todos se matam? Como instaurar um projeto civilizatório a partir da ética violenta do “crime”, que tenha como horizon- te o fim da própria criminalidade? O exemplo mais bem acabado dessa perspectiva que pretende pensar um projeto coletivo de emancipação a partir de um horizonte marcadamen- te aporético é “Diário de um detento”, que não por acaso se encontra exata- mente no meio do disco. O massacre funciona como a imagem mais acabada do modelo social que parece ter substituído o horizonte de integração na- cional da Nova República. O Brasil, se ainda faz sentido usar esse significan- te, é o Massacre do Carandiru, ou, antes, foi substituído por ele, sintoma

156 Acauam Oliveira

contemporâneo da sociedade brasileira. É essa experiência do genocídio da população carcerária, sua transformação em material descartável, que define o lugar e as condições de fala do grupo, dele decorrendo a dupla tarefa de trazer a experiência do horror à consciência, formalizando-a, e de evitar a todo custo sua repetição, mantendo-se vivo. Tomar o Carandiru como paradigma de certo projeto nacional signi- fica dizer que a violência genocida ocupou o espaço da ideia de formação. É por isso que a violência ocupa o primeiro plano no sistema organizado por essa obra, tornando-se o principal elemento regulador das relações. Essa violência aparece de várias formas: violência policial, violência do tráfico, violência de gênero etc. Ela aparece também na linguagem, nas expressões usadas, no tom com que as letras são cantadas. A própria am- bientação de algumas canções é construída de modo a remeter a filmes de terror. De modo que se pode dizer, em consonância com Walter Garcia (2007), que a violência aparece ali como um sistema que organiza o con- junto de relações sociais e estéticas. Quando os Racionais criam uma obra que é toda organizada a partir de relações de violência, eles estão propondo algo de novo na música popular brasileira. Pela primeira vez, de forma sistêmica, o que está em questão não é a definição de uma identidade, seja nacional ou regional. Se o samba, o carnaval, a MPB e o baião são formas complexas de representar a identidade brasileira, o rap vai privilegiar aqueles elementos que tornam essa identida- de impossível. A obra dos Racionais não parte de uma discussão sobre a iden- tidade nacional. Ela é uma reflexão profunda sobre os processos de violência e exclusão que são necessários para se formar um país. É como se as canções voltassem para o processo de colonização e recontassem a história da pers- pectiva dos escravos, ou seja, daqueles que são excluídos da representação da identidade. Como se eles mostrassem que aquilo que faz o Brasil ser o que é são os corpos negros empilhados nas periferias. Uma história vista e contada a partir de suas margens. Sem dúvida, esse esforço, bem apontado por Garcia (2007), de oferecer um retrato complexo da rede de violência que organiza o conjunto das rela- ções sociais no país é um dos principais aspectos dos raps do grupo. Contu- do, existe outro elemento fundamental que, no limite, ressignifica a própria dimensão estética da arte em sua dimensão contemplativa, atravessando-a com um horizonte ético fundamental. Aqui é preciso lembrar que a palavra do rapper pretende não apenas retratar a violência, mas salvar vidas, pro- pondo um modelo radical de engajamento. Para isso, além de relatar o que acontece nas quebradas, sobretudo para “tirar qualquer traço de glamour

157 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

da vida bandida” (Garcia, 2007), o rapper também descreve quais atitudes e caminhos seguir para permanecer vivo e contrariar as estatísticas. Quando bem-sucedido, o resultado oferece mais do que um retrato em raio X do campo de batalha — o que já seria um avanço extraordinário em termos de produção do conhecimento —, mas uma verdadeira estratégia de guer- ra, que passa pela conscientização dos “guerreiros de fé” e pela definição de um padrão ético de comportamento que pauta tanto a relação dos sujeitos periféricos entre si quanto a relação destes com a sociedade. Assim, a forma é julgada também por sua função, dotando a palavra de um aspecto forte- mente performativo. “Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma. Sou terrorista”, diz Mano Brown (1998). Essa dimensão ética é fundamental na produção do grupo e explica diversos aspectos estruturais de sua produção, como a singularidade de sua religiosidade, o tom assertivo de seu discurso, a perspectiva épica, a construção do olhar, a escolha das vozes narrativas, a proximidade com a “ética dos ladrões” etc. Pode-se reconhecer todas as implicações desse compromisso com a coleti- vidade na parte final de “Diário de um detento”, que se distingue radicalmente do restante da composição. Sabe-se que a canção é toda composta a partir dos versos de Jocenir, um dos sobreviventes do massacre, que compunha ver- sos e histórias que circulavam entre os presos, que copiavam trechos, conta- vam novas histórias, aprovando ou desaprovando o conteúdo (Garcia, 2007, p. 189). Todos os detalhes sobre o cotidiano da prisão que integram a música circularam entre os pavilhões, obtendo aprovação geral. Evidentemente que discordâncias quanto aos acontecimentos narrados poderiam gerar consequ- ências e cobranças violentas, sendo portanto necessário se chegar a um acordo coletivo quanto ao resultado. Somente depois dessa aprovação coletiva é que as histórias foram parar nas mãos de Mano Brown, que também teve que obter autorização dos presos para transformá-la em letra. Nesse sentido, pode-se dizer que, mais do que qualquer outro rap do grupo, “Diário de um detento” é efetivamente uma construção coletiva da comunidade carcerária. Seu sistema de valores é comunitário, e está presente não apenas nos conteúdos, mas em seu próprio princípio de organização formal. A parte final da canção, por sua vez, não é mais a descrição do cotidia- no dos presos, mas a narrativa do massacre propriamente dito. É eviden- te, portanto, que esse processo coletivo de elaboração foi efetivamente abortado, uma vez que os presos foram brutalmente exterminados. O ponto de vista que emerge nesse momento forçosamente se individualiza, abalando a dimensão coletiva do relato e trazendo importantes consequ- ências formais.

158 Acauam Oliveira

Ratatatá! sangue jorra como água Do ouvido, da boca e nariz O Senhor é meu pastor, perdoe o que seu filho fez Morreu de bruços no Salmo 23 Sem padre, sem repórter, sem arma, sem socorro Vai pegar HIV na boca do cachorro Cadáveres no poço, no pátio interno Adolf Hitler sorri no inferno! O Robocop do governo é frio, não sente pena Só ódio e ri como a hiena Ratatatá, Fleury e sua gangue Vão nadar numa piscina de sangue (“Diário de um detento”)

Nesse trecho final do diário, a narrativa se trunca e oscila por entre ima- gens desconexas, flashes cinematográficos, metáforas desgastadas, máximas e juízos generalizantes. A linguagem é rebaixada e perde parte de sua dinâ- mica anterior (coletiva). Com a entrada da polícia em cena, o Real irrompe e ameaça romper a narrativa (junto com a vida daqueles que a construíam), que passa a se desenvolver não pela descrição precisa da violência, mas por um conjunto de juízos interpretativos abstratos e imagens alegóricas rebai- xadas (clichês de toda ordem, fragmentos de cultura de massa etc.). As ce- nas de violência aparecem como flashes de imagem sem desenvolvimento: cachorros, gás lacrimogêneo, cadáveres, sangue jorrando. Com a morte real dos detentos, a linguagem perde seu poder de orga- nização da narrativa, que dependia da sobrevivência dos membros da co- munidade. Literalmente, a morte dos detentos impede o relato de existir. A vinculação entre forma estética e matéria social, própria das artes enga- jadas, encontra aqui uma formulação radical. Trata-se de um mecanismo bem diverso daquelas obras cuja força consiste na capacidade de formali- zar “conteúdos sócio-históricos decantados” (para seguirmos a formulação adorniana), que permite reconhecer mecanismos sociais complexos a par- tir de uma lógica de funcionamento organizada a partir de um princípio de autonomia dos materiais. Pode-se dizer que essa condição primeira de qualidade da obra é aqui recortada por outra, que testa o seu conteúdo de verdade em relação a seus propósitos e compromissos, que também se transforma em mecanismo formal. No limite, a canção almeja que sua qualidade estética seja condicionada também pela ética. Daí porque a des- vinculação de ambas as esferas (ética e estética, ou antes, rap e periferia),

159 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

cuja articulação não é um dado a priori, mas conquista formal, acarreta problemas estéticos fundamentais, que serão objetos privilegiados de re- flexão nos próximos trabalhos do grupo.

Quanto vale o show?

O dinheiro tira um homem da miséria Mas não pode arrancar De dentro dele A favela (“Negro drama”)

Derrota dentro da vitória

Nada como um dia após o outro dia foi lançado em 2002 e, em linhas gerais, segue na tentativa de definir e defender o “proceder” do sujeito periférico como forma de assegurar sua sobrevivência. Violência, morte, privação e traição continuam a fazer parte do cotidiano violento cantado pelo grupo, multiplicando os inimigos. Contudo, a mensagem agora assume um teor bem mais individual e subjetivista, substituindo a sobreposição de múltiplas vozes e perspectivas pelo relato de experiências individuais que enfocam a própria relação do sujeito com o mundo. Evidentemente, tal conjunto de re- flexões individuais é ancorado em experiências que compartilham dos valo- res periféricos, e que continuam a pautar a conduta do sujeito, expressando em alguma medida a coletividade de sua quebrada. Melhor dizendo, o disco será precisamente um longo processo de reflexão (um álbum duplo com canções de até 12 minutos) sobre as formas como o sujeito pode manter seu proceder diante dos diversos desafios presentes na “vida loka cabulosa”. Entretanto, ao invés da multiplicação radical de pontos de vista presente em “Diário de um detento”, o disco traz um conjunto mais detido de refle- xões subjetivas sobre o dia a dia de um guerreiro que tem sua fé testada a todo o momento e por todos os lados: as formas de lutar para sair da que- brada, o que significa estar do “outro lado do muro”, o dinheiro como mal necessário, que te domina caso não seja dominado etc. Espécie de consequ- ência, digamos, “imprevista” do processo de incorporação de pontos de vista contraditórios de Sobrevivendo no inferno, o disco apresenta diversas canções em que os sujeitos internalizam essas contradições, investigando-as a partir

160 Acauam Oliveira

da própria experiência que, sobretudo nas letras de Mano Brown, por vezes assumem expressão agônica. Uma das principais questões debatidas pelas letras do grupo passa a ser a capacidade de manter a integridade dos valores guerreiros cultivados até então, ao mesmo tempo que lutam para conquistar cada vez mais espaço do “outro lado” — dinheiro, sucesso, fama. Em suma, a administração “racional” da relação conflituosa entre mundo da fama e valores periféricos. Todo o disco é a um só tempo marcado pela ruptura com a proposta de enunciação coletiva de Sobrevivendo no inferno e pela nova necessidade de definição de uma ética guerreira a partir de uma autocompreensão de ordem subjeti- va. Manter-se periférico à medida que se afasta cada vez mais da periferia. Como o rapper pode seguir lutando o bom combate uma vez que saiu do lado de seus irmãos, sendo o lado de lá da ponte um território rigidamen- te demarcado e que por isso mesmo aceita quaisquer conjuntos de valores (“Dinheiro é puta”), desde que este venha desvinculado de transformações sociais profundas? Como é possível manter a dimensão crítica radical dos valores e princípios gestados na periferia — muitas vezes contraditórios e opacos mesmo para quem os vive cotidianamente — tendo cruzado para o outro lado da ponte? Ou seja, como essa arte pode se manter periférica fora da periferia? A força de Nada como um dia após o outro dia depende não tanto das respostas e caminhos apresentados — são vários e muitas vezes contra- ditórios —, mas da representação estrutural dessa dialética. A ambivalência e a dificuldade por vezes agônica da posição de quem agora participa do universo dos que estão integrados ao sistema, mas segue comprometido com os que estão de fora, assume uma formulação estrutural precisa em “Negro drama”. A canção se divide em duas partes; a primeira cantada por Edi Rock de forma mais contida, e a segunda por Mano Brown de forma mais raivosa e agressiva. Podemos dizer que a diferença entre as dicções deve-se a dois motivos principais: o fato de Mano Brown tratar di- retamente de sua experiência pessoal, o que denota maior grau de envolvi- mento subjetivo e, principalmente, a diferença do interlocutor presente em cada trecho (Oliveira; Segreto; Cabral, 2013). Edi Rock procura travar um diálogo com sua própria comunidade, dirigindo-se prioritariamente a seus “trutas de batalha” e “irmãos de fé” da periferia, ao passo que Brown manda um recado diretamente para o “senhor de engenho” no topo da pirâmide. A relação entre as duas partes se dá de maneira complexa, pois é a se- riedade do compromisso firmado na primeira que garante o grau de contun- dência e verdade do que é dito na segunda, tornando possível a reviravolta radical expressa nos versos “eu era carne/ agora sou a própria navalha”. Nesse

161 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

sentido, “parece haver um maior teor de ‘engajamento’ na primeira parte de ‘Negro drama’, conquanto expressão de uma tendência ao discurso coletivo, e um teor maior de ‘passionalização’ na segunda parte, como expressão de um discurso em que a subjetividade se faz mais presente. Obviamente, estas duas esferas dialogam na voz do rapper” (Oliveira; Segreto; Cabral, 2013, p. 122). Portanto, a própria estrutura cindida de “Negro drama” dramatiza a cisão interna do disco. Na passagem para a segunda parte, em que se reconhece os valores da primeira, o interlocutor muda completamente, determinando inclusive o tom da dicção de cada rapper. Ainda que o rap consiga ocupar os dois espa- ços, a diferença entre eles é radical: um é ocupado pelos “trutas de batalha”, o outro pelo “senhor de engenho”. O rap realiza aqui um movimento que não é possível para periferia, marcando um ponto de separação. Será a partir dessa cisão inscrita na forma que a letra tentará reestabelecer uma ligação, uma operação que será brilhantemente sintetizada pelos versos de Ice Blue: “o dinheiro tira um homem da miséria/ mas não pode arrancar de dentro dele a favela”. A questão é justamente definir no que consiste essa “favela”, tornada agora uma entidade que se separou da vida miserável do gueto, um conjunto de valores éticos que deve pautar a atitude daqueles que se torna- ram “exemplo de vitórias, trajetos e glórias”. Nada mais justo, afinal foram esses valores que tornaram a vitória possível. Ainda que a construção dos valores seja coletiva, a enunciação não o é, e o “negro drama” não deixa de ser também o reconhecimento desse fracasso dentro da vitória.

Crime, futebol, música Caraio, eu também não consegui fugir disso aí

Note-se que a passagem entre a primeira e a segunda parte realiza-se a partir da consciência de um fracasso fundamental que deve ser levado a sé- rio, pois é ela que permite compreender todas as facetas contraditórias do horizonte que a canção nos apresenta. O reconhecimento de que a “vitória” pela música não contradiz o horizonte limitado de expectativa de incorpora- ção da comunidade negra na sociedade brasileira. Ou seja, ser incorporado enquanto artista desvinculado do destino de sua comunidade não rompe com o sistema de integração perversa já previsto pela “cordialidade” brasileira. É nesse sentido que se compreende os diversos pontos contraditórios apresen- tados pela canção: uma vitória (“Tin, tin, um brinde pra mim”) que é também uma derrota (“eu também não consegui fugir disso aí”); uma conquista indi- vidual (“sou exemplo de vitórias/ trajetos e glórias”) que, no entanto, só faz

162 Acauam Oliveira

sentido em relação a um coletivo (“sou irmão dos meus trutas de batalha”); um reconhecimento do que há de valor do lado de lá da ponte (“Cê disse que era bom/ e a favela ouviu/ lá também tem/ whisky, Red Bull/ tênis Nike e fuzil”), mas que continua não servindo para quem veste preto “por dentro e por fora”; o desejo de ascensão cada vez maior (“Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho/ agora tá de olho no carro que eu dirijo/ demorou, eu quero é mais/ eu quero até sua alma”) e a consciência de que essa nunca se realiza de forma plena (“você tá dirigindo um carro/ o mundo todo tá de olho em você, morou/ sabe por quê?/ pela sua origem, morou irmão?”). Pode-se dizer que “Negro drama” é representação da ascensão social do negro periférico enquanto um processo traumático de derrota dentro da vitó- ria, e vice-versa. Uma posição agônica, que assume conotações traumáticas (“O trauma que eu carrego/ pra não ser mais um preto fodido”), tornada formalmente representável a partir da cisão da canção em duas partes que se relacionam sem se conciliar. A canção formaliza e sobrepõe dicotomias de diversas ordens, buscando estabelecer uma dialética complexa entre sucesso e fracasso, ou entre “o sucesso e a lama”, que desloca as representações mais ób- vias e imediatas. A trajetória de sucesso do grupo e a trajetória dos irmãos que não tiveram tanta sorte; a progressiva aceitação do rap pela cultura hegemô- nica e pelo mercado e a perpetuação da miséria de seu contexto de origem; a cada vez mais constante representação da periferia pela cultura de massas e a representação feita pelos próprios sujeitos periféricos; o sucesso temporário em interromper o ciclo suicida de violência e o quanto isso está distante de significar uma integração plena (na verdade, essa sobrevivência é uma vitória contra o Estado). O sucesso tem seus custos, tanto em relação a uma inclusão que nunca se completa (“você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você”) quanto ao afastamento das origens, que fragiliza a dimensão coletiva do rap e causa inveja, revolta e ressentimento em quem não teve a mesma sorte. A própria trajetória vitoriosa do rap, que afirma cada vez mais sua inde- pendência ao conquistar um reconhecimento cada vez maior, comporta uma contradição decisiva: certo afastamento do rap de sua matriz periférica, cuja subjetividade a que dava forma em certo sentido ficou no passado, apesar de os problemas históricos da periferia estarem longe de ser resolvidos. Em muitos sentidos, os antigos padrões emancipatórios parecem ter chegado a certo limite, e a despeito da qualidade dos novos nomes que não cansam de surgir, muito das antigas ideias parece apenas um modo de dizer entre outros, convenções de gênero. A vitória comercial e a afirmação cultural do rap, que lhe garante maior abertura estética, é simultânea a uma mudança da autopercepção musical da periferia — cujo principal sintoma na esfera

163 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

da cultura é a difusão massiva do funk como trilha sonora afetiva do gueto. Chegamos ao fim de um ciclo emancipatório. De todo modo, o conjunto da obra dos Racionais MC’s segue sendo um testemunho vivo daquilo que possuímos de melhor, que brota justamente do lado oposto daquilo que nos torna brasileiros.

Salve

Encerremos por aqui esse percurso que buscou acompanhar algo da tra- jetória dos Racionais MC’s a partir de uma articulação entre forma estética e processo social, no caso, exigido pela própria matéria. Tentamos, assim, recu- perar alguns dos elementos-chave que fazem dessa obra um dos acontecimen- tos culturais mais relevantes da história do país. Na base desse acontecimento, um projeto ético/estético radicalmente comprometido com a sobrevivência dos moradores da periferia e que tem como um de seus princípios a constru- ção de uma consciência coletiva capaz de evitar um novo Massacre do Caran- diru. Desnecessário dizer que tal projeto de sobrevivência periférica entra em confronto direto com o modelo brasileiro de gestão da miséria pela violência do Estado e o quanto pode nos custar seu atual abandono. É absolutamente coerente, portanto, finalizarmos esse texto com a lem- brança dos 111 homens que foram mortos enquanto eram obrigados a levar os cadáveres das celas para outros locais determinados pela PM, ou enquanto passavam por um corredor polonês feito pelos mais de trezentos policiais militares que estavam dentro da Casa de Detenção no Carandiru, no dia 2 de outubro de 1992. A potência do rap serve para nos lembrar que o Brasil não os merece, e que enquanto formos incapazes de realizar esse processo de luto, jamais conseguiremos nos tornar um país que preste.

1. Adalberto Oliveira dos Santos; 2. Adão Luiz Ferreira de Aquino; 3. Adélson Pereira de Araújo; 4. Alex Rogério de Araújo; 5. Alexandre Nunes Machado da Silva; 6. Almir Jean Soares; 7. Antônio Alves dos Santos; 8. Antônio da Silva Souza; 9. Antônio Luiz Pereira; 10. Antônio Quirino da Silva;

164 Acauam Oliveira

11. Carlos Almirante Borges da Silva; 12. Carlos Antônio Silvano Santos; 13. Carlos César de Souza; 14. Claudemir Marques; 15. Cláudio do Nascimento da Silva; 16. Cláudio José de Carvalho; 17. Cosmo Alberto dos Santos; 18. Daniel Roque Pires; 19. Dimas Geraldo dos Santos; 20. Douglas Edson de Brito; 21. Edivaldo Joaquim de Almeida; 22. Elias Oliveira Costa; 23. Elias Palmigiano; 24. Émerson Marcelo de Pontes; 25. Erisvaldo Silva Ribeiro; 26. Estefano Mard da Silva Prudente; 27. Fábio Rogério dos Santos; 28. Francisco Antônio dos Santos; 29. Francisco Ferreira dos Santos; 30. Francisco Rodrigues; 31. Genivaldo Araújo dos Santos; 32. Geraldo Martins Pereira; 33. Geraldo Messias da Silva; 34. Grimário Valério de Albuquerque; 35. Jarbas da Silveira Rosa; 36. Jesuíno Campos; 37. João Carlos Rodrigues Vasques; 38. João Gonçalves da Silva; 39. Jodilson Ferreira dos Santos; 40. Jorge Sakai; 41. Josanias Ferreira de Lima; 42. José Alberto Gomes Pessoa; 43. José Bento da Silva; 44. José Carlos Clementino da Silva; 45. José Carlos da Silva; 46. José Carlos dos Santos; 47. José Carlos Inojosa; 48. José Cícero Ângelo dos Santos; 49. José Cícero da Silva;

165 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

50. José Domingues Duarte; 51. José Elias Miranda da Silva; 52. José Jaime Costa e Silva; 53. José Jorge Vicente; 54. José Marcolino Monteiro; 55. José Martins Vieira Rodrigues; 56. José Océlio Alves Rodrigues; 57. José Pereira da Silva; 58. José Ronaldo Vilela da Silva; 59. Josué Pedroso de Andrade; 60. Jovemar Paulo Alves Ribeiro; 61. Juares dos Santos; 62. Luiz César Leite; 63. Luiz Cláudio do Carmo; 64. Luiz Enrique Martin; 65. Luiz Granja da Silva Neto; 66. Mamed da Silva; 67. Marcelo Couto; 68. Marcelo Ramos; 69. Marco Antônio Avelino Ramos; 70. Marco Antônio Soares; 71. Marcos Rodrigues Melo; 72. Marcos Sérgio Lino de Souza; 73. Mário Felipe dos Santos; 74. Mário Gonçalves da Silva; 75. Maurício Calio; 76. Mauro Batista Silva; 77. Nivaldo Aparecido Marques de Souza; 78. Nivaldo Barreto Pinto; 79. Nivaldo de Jesus Santos; 80. Ocenir Paulo de Lima; 81. Olívio Antônio Luiz Filho; 82. Orlando Alves Rodrigues; 83. Osvaldino Moreira Flores; 84. Paulo Antônio Ramos; 85. Paulo César Moreira; 86. Paulo Martins Silva; 87. Paulo Reis Antunes; 88. Paulo Roberto da Luz;

166 Acauam Oliveira

89. Paulo Roberto Rodrigues de Oliveira; 90. Paulo Rogério Luiz de Oliveira; 91. Reginaldo Ferreira Martins; 92. Reginaldo Judici da Silva; 93. Roberto Azevedo da Silva; 94. Roberto Alves Vieira; 95. Roberto Aparecido Nogueira; 96. Roberto Azevedo Silva; 97. Roberto Rodrigues Teodoro; 98. Rogério Piassa; 99. Rogério Presaniuk; 100. Ronaldo Aparecido Gasparinio; 101. Samuel Teixeira de Queiroz; 102. Sandoval Batista da Silva; 103. Sandro Rogério Bispo; 104. Sérgio Angelo Bonane; 105. Tenilson Souza; 106. Valdemir Bernardo da Silva; 107. Valdemir Pereira da Silva; 108. Valmir Marques dos Santos; 109. Valter Gonçalves Gaetano; 110. Vanildo Luiz; 111. Vivaldo Virculino dos Santos.

167 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2004. ______. A comunidade que vem. São Paulo: Autêntica, 2013. AVELAR, Idelber. De Platão a Pinochet: tortura, confissão e história da verdade. In: ______. Figuras da violência: ensaios sobre narrativa, ética e música popular. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. BADIOU, Alain. A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo, 2015. BROWN, Mano. [Entrevista concedida à revista Showbizz], [S.I], n. 155, jun. 1998. CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estu- dos Brasileiros, São Paulo, n. 8, p. 67-89, 1970. ______. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1989. CARAMANTE, André. Os quatro pretos mais perigosos do Brasil. Entrevista com os Racionais MC’s. Rolling Stone, São Paulo, v. 86, p. 72-81, 2013. CRUZ, Elaine Patricia Cruz. “Nunca vi algo tão desumano”, conta perito ao lembrar massacre. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 1 out. 2012. Disponível em: . Acesso em: 4 mar. 2018. D’ANDREA, Tiarajú Pablo. A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. 2013. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. FERREIRA, Luisa; MACHADO, Marta R. de A.; MACHADO, Maíra Ro- cha. Massacre do Carandiru: vinte anos sem responsabilização. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 94, p. 5-29, nov. 2012. GARCIA, Walter. Diário de um detento: uma interpretação. In: NESTROVSKI, Arthur. (org.). Lendo música. São Paulo: Publifolha, 2007. ______. Elementos para a crítica da estética do Racionais MC’s (1990- 2006). Ideias, v. 4, n. 2, p. 81-108, dez. 2013a. ______. O novo caminho de Edi Rock. Le Monde Diplomatique, São Paulo, ano 7, n. 76, 1 nov. 2013b. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2017.

168 Acauam Oliveira

KALILI, Sérgio. Uma conversa com Mano Brown. Caros Amigos, São Paulo, n. 3, 1998. Especial Movimento Hip Hop p. 16-19. LOPES, Charleston Ricardo Simões. Racionais MC’s: do denuncismo deslo- cado à virada crítica. 2015. Dissertação (Mestrado em Estudos Compara- dos de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. MACHADO, Leandro. Projeto de lei de criminalização do funk repete história do samba, da capoeira e do rap. BBC Brasil, São Paulo, 29 jul. 2017. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2018. MANSO, Bruno Paes. “Quem não reagiu está vivo”, diz Fleury sobre o Carandiru. Estado de S. Paulo, São Paulo, 30 set. 2012. MARQUES, Adalton Jose. Crime, proceder, convívio-seguro: um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões. 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. OLIVEIRA, Acauam Silverio de. O fim da canção? Racionais MC’s como efeito colateral do sistema cancional brasileiro. 2015. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. OLIVEIRA, Leandro Silva de; SEGRETO, Marcelo; CABRAL, Nara Lya Simões Caetano. Vozes periféricas: expansão, imersão e diálogo na obra dos Racionais MC’s. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 56, p. 101-126, dez. 2013. SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; ______. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 237- 252. SILVA, Rogério de Souza. A periferia pede passagem: trajetória social e intelectual de Mano Brown. 2012. 302 p. Tese (Doutorado em Sociolo- gia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.

169 Vim pra sabotar seu raciocínio: a fúria negra periférica dos Racionais MC’s

TATIT, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996. VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: UFRJ, 1995. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos Editora, 2001.

170 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

Iracele Vera Lívero de Souza

Nas décadas de 1930 e 1940, surge no universo musical brasileiro uma jovem e talentosa pianista, muito comentada nos jornais. Por exemplo, o jornalista carioca Ayres de Andrade (1935) ressalta “a sua extraordinária técnica de teclado e a suavidade das interpretações que executa, conjunto de qualidades que a colocam num plano excepcional entre os nossos pianistas”. Outros ainda fazem observações sobre sua performance do Concerto para piano e orquestra de Beethoven: “Ela revela raros dote s de sensibilidade, faz cantar o instrumento, tem grande segurança de ritmo, vida, afinal, na mú- sica que interpreta” (Xavier, 1941). E segue em um jornal argentino: “Si de la Chaconne de Bach brindó una versión de amplias sonoridades y ajustado estilo, así también en las obras de Debussy, Shostakóvich e Prokofieff, por su estrecha identificación con los músicos modernos” (Fontova, 1944). Ou- tro crítico, da Folha da Manhã de São Paulo, diz que “a pianista reúne uma série de qualidades que dificilmente se encontram reunidas numa só pianis- ta, inteligência, plena maturidade artística e extraordinária personalidade” (Quincas Borba, 1943). A maior parte das críticas nacionais e internacionais revela a pianista como um autêntico êxito de crítica e de público. A protagonista desta histó- ria é Eunice Katunda. Mas contar sua história como pianista é como girar em torno de um centro ausente. Suas grandes apresentações como solista em orquestras, ao lado de maestros como Henrique Spedini, Camargo Guarnieri, Ernst Mehlich, Martin Braunwieser e Hermann Scherchen, em concertos solo e em suas primeiras audições de obras contemporâneas, tanto no Brasil como em outros países europeus e latino-americanos, não constam de nenhum registro sonoro. Assim, fala-se da repercussão, que não foi pouca e sem im- portância, mas não da realização sonora que se perdeu para sempre. Possuidora de um domínio técnico absoluto, não só na interpretação dos clássicos como na fiel versão dos modernos (Debussy, Hindemith, Prokofiev, Schoenberg, entre outros), em expressões cuja sinceridade emotiva se unia à exatidão formal, Eunice jamais passava desapercebida com suas aparições públicas. Pelo real mérito de suas qualidades, ela, a quem Villa-Lobos considerou das melhores e mais expressivas intérpretes de sua

171 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

música, atestando-a como exímia pianista na execução de suas obras, com consciência e destacado temperamento1, conseguiu, neste momento, um posto de destaque perante seu público. Diria um poeta que a glória às vezes tem ardis de cortesã, pois tão de- pressa acalenta, sorri, promete, como também despreza o ente fascinado pelo seu fúlgido clarão. Assim a trajetória dessa figura, de clara e majestosa genialidade e fulgor artístico, no entanto, ficou eclipsada historicamente, como intérprete e como compositora. O que de fato conhecemos sobre a trajetória de Eunice Katunda? Os discursos favoráveis da imprensa ao longo de sua carreira como pia- nista, assim como a lembrança afetiva de quem teve a chance de vê-la no palco, contam apenas episódios dessa trajetória. As memórias, mesmo as impressas em jornais, cartas ou depoimentos pessoais, não nos permitem apresentar ainda de maneira total esta grande musicista brasileira. Katunda viveu um período em triunfo, embora sua luta não se detives- se em conquistar o mundo apenas como intérprete, mas também abrisse um caminho diferenciado a ser trilhado como compositora. Entre tantas outras personalidades da música que conheceu, entrementes constituiu uma conexão com os mestres Camargo Guarnieri e Hans-Joachim Koellreutter. O lendário embate entre os dois compositores em São Paulo talvez tenha permitido que a compositora vislumbrasse um rumo novo, uma síntese mais profunda do que a que havia até então atingido. Seja qual for o resultado de suas escolhas, a ori- ginalidade de Katunda não reside na excentricidade de suas experiências com novas técnicas, mas nas combinações dessas com o som das raízes brasileiras, oscilando por vezes entre a simplicidade folclórica e a dissonância. Sob a superfície de suas obras, circula a força da música brasileira.

Os primeiros anos

A partir da instalação da República e do federalismo consagrado na Constituição de 1891, o país viveu um momento consignado historicamente como República Velha, caracterizado pelo predomínio inconteste dos gru- pos agrários e do coronelismo regional que instalou as oligarquias estaduais como poderio de realização federal. Um momento de bastante violência so- cial, crítica e humana, em que a população rural diminui e mesmo migra em

1 Além de uma carta de recomendação, uma fotografia de Villa-Lobos tinha os dizeres: “A minha excelente e consciente intérprete” e assinatura do compositor no final.

172 Iracele Vera Lívero de Souza

quantidades para os agora centros geograficamente definidos como de poder comercial, financeiro e industrial. A região Sudeste, advinda da preponde- rância, interna e externa, da economia cafeeira, ressalta-se, e é nela onde tal preponderância permanece até a Revolução de 1930 e onde localizava-se a capital federal. Durante os anos 1920 o Brasil vai viver uma crise socioeconômica e po- lítica de grandes proporções. Entretanto, já a partir do início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro, capital do país, enfrentava sérios problemas sociais; apesar disso, tomando como modelo a cidade de Paris, a elite carioca pro- curava reagir aos problemas, partindo para a modernização da cidade. Novas avenidas e edifícios estilo belle époque parisiense foram construídos: o Theatro Municipal, inspirado na Ópera Garnier de Paris, hotéis, cinemas e galerias que seriam pontos de encontro entre intelectuais, artistas e políticos. E os modelos parisienses (e franceses) para a modernização e entronização da cidade no mundo civilizado não eram só esses: todo o processo educacional, a educação letrada e boa parte da educação musical eram também francesas. Sem contar, é claro, as artes. Nesse contexto, em 1910, chega ao Rio de Janeiro Maria Grauben Bo- milcar do Monte Lima, vinda de São Paulo, nascida no Ceará em 1889, uma das primeiras mulheres funcionárias públicas no Brasil. Casada com o gaú- cho Rubens do Monte Lima Filho, um violinista amador. Na rua Bambina, nº 110, na cidade do Rio de Janeiro, nasce Eunice do Monte Lima, no dia 14 de março de 1915, às catorze horas. A menina Eunice cresceu ouvindo e reproduzindo ao piano a música que ouvia de um clube vizinho, “Chuveiro de ouro”, uma espécie de gafieira. Eram conhecidos esses movimentos carnavalescos neste período, e em 1917 a cidade do Rio de Ja- neiro estava tomada por clubes dançantes. Contrapostos à imagem europeizante dos salões dançantes dos bairros mais ricos da cidade, supunha-se que estes bailes organizados tinham costu- mes de origem africana. Este convívio proporcionou a Eunice, mais tarde, um gosto especial pela música de cunho popular e ritmos afro-brasileiros. É interessante também observar que, na década de 1920, a sociedade se interessa pelo “saber tocar piano” e por frequentar salas de concertos, tradição já sedimentada na Europa. O meio intelectual mostra-se interessado em pro- jetar o material nacional, e o piano se firma como instrumento de concerto. A cultura europeia se misturava então à corrente cultural predominante, e Eunice viveu o que ela chamou de “preconceitos da época”, manifestados em muitos outros momentos de sua vida.

173 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

A vida carioca podia ser dura para uma menina que gostava de tocar piano. Eunice nunca chegou a terminar o 4º ano do curso primário, visto que suas condições de vida não permitiram, porém se dedicou inteiramente aos estudos ao piano, profissionalizando-se cedo. No rol de seus professo- res consta Mima Oswald, filha do grande compositor e pianista Henrique Oswald, com a qual inicia seus estudos dos 5 anos aos 8 anos; dos 9 aos 12 anos passa a estudar com Branca Bilhar2, professora e compositora, filha de outra figura de proa do Rio na época, Sátiro Bilhar; e, com 13 anos, vai estu- dar com Oscar Guanabarino, permanecendo até 1936. Em seu álbum de recortes, podem ser vistos retratos de seu primeiro re- cital, com 12 anos de idade, no Salão Nobre do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, em 1927. Antes desta data, em 1925, Eunice recebe o se- gundo lugar no 2º Concurso de Jovens Instrumentistas Brasileiros, “Prêmio Chiaffarelli”, na cidade de São Paulo. Desde cedo, fora apresentada ao repertório tradicional, frequentando os concertos, aos sábados e domingos, no Theatro Lyrico e no Theatro Munici- pal do Rio Janeiro, cujas entradas eram garantidas pelo seu então professor e crítico musical do Jornal do Commercio, Oscar Guanabarino. O casamento com o matemático Omar Catunda, em 1934, nos chama atenção pelo fato de Eunice ter realizado na mesma data um concerto no Clube Fluminense do Rio de Janeiro, com grande elogio da crítica, o Concerto Op. 59 de Moszkowski, sob a regência do maestro Spedini. Um crítico da época atesta que a “senhorinha não passou pelo Instituto Nacional de Música”, uma referência nacional, “mas, no entanto, exibe uma técnica transcendente, digna dos grandes virtuoses”. Uma razão para Eunice ter se mudado para São Paulo foi a contratação de Omar Catunda como colaborador na implantação da subseção de mate- mática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, futuro Instituto de Matemática e Estatística, como assistente do italiano Luigi Fantappiè, em uma posição de destaque. De alguma forma, esta mudança proporcionaria uma nova fase na vida de Eunice Katunda. Três anos depois, em 1937, nasce seu primeiro filho, Igor. Em São Paulo, Eunice procura aperfeiçoar-se e passa a ter aulas de teoria, análise e har- monia com Furio Franceschini, tido, à época (inclusive por Mário de An- drade), como o papa da teoria musical no Brasil. Ela também estuda piano

2 Vale ressaltar aqui a grande dedicação feminina aos estudos do piano na época. O Instituto Na- cional de Música do Rio de Janeiro, no período de 1912 a 1921, atribui láurea a 50 alunos; deste total, 41 eram mulheres. Em 1912, entre estes laureados encontra-se Branca de Alcântara Bilhar.

174 Iracele Vera Lívero de Souza

com Marieta Lion, aluna de Luigi Chiaffarelli, do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, professor de Guiomar Novaes e Antonietta Rudge, dentre tantos outros pianistas que fizeram carreira. Esta Escola Chiaffarelli foi de grande relevância na vida musical de São Paulo e do Rio de Janeiro, de modo que Eunice estaria bem encaminhada na sua vida musical. Nesta oportunidade, ela procura aliar a carreira de pianista à maternidade. Posteriormente, em 1942, Eunice vai tomar aulas de composição e pia- no com o compositor Camargo Guarnieri. É importante notar que a formação inicial de Eunice foi permeada pela visão da composição no que se refere tanto à execução como à interpretação musical, o que provavelmente influenciou sua futura trajetória composicio- nal. E, por outro lado, advinda de Branca Bilhar, compositora, de Oscar Gua- nabarino, crítico e pianista comprometido com os processos composicionais e, principalmente, de Camargo Guarnieri, eminente compositor, essa visão era, nesse momento histórico, permeada pela brasilidade, em busca ou em potência, que Eunice desenvolverá por toda sua vida criativa, com seu com- promisso com o folclore nacional e seus importantes estudos (“pesquisas”, como ela queria) sobre as manifestações musicais populares.

Eunice, uma inquieta aprendiz

Hans-Joaquin Koellreutter foi, como de sobejo conhecido, o líder de um movimento e depois de um grupo, o Música Viva, que historicamente dividiu o contexto musical do país em antes e depois do grupo, em razão de que a ele se devem as questões e debates, quando não divisionismos, relativos à vanguarda na música brasileira. Mas Koellreutter foi, também, um importante mentor para Eunice Ka- tunda a partir de 1946, quando ela passou a pertencer ao Grupo Música Viva. Com este músico alemão, radicado no Brasil desde 1937, a pianista teve a oportunidade de conhecer o repertório de música pós-tonal interna- cional (Paul Hindemith, Arnold Schoenberg e Ernst Krenek, por exemplo), incluindo a música serial dodecafônica. Compor é uma tarefa difícil, como talvez dissesse o demônio no Fausto de Goethe. É preciso convencer-se a si mesmo e aos outros da decifração dessa tarefa. A opção pode ser até facilmente feita pelo impulso ou talento de criar, de dizer. Mas sustentar é que são elas: torna-se mais e mais difícil quanto mais se compromete a continuar neste trajeto composicional.

175 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

Eunice Katunda parece ter vivido esses questionamentos demasiadas ve- zes. Sua carreira como compositora atingiu o ponto crítico ao longo da déca- da de 1940 e início dos anos 1950, quando foi celebrada como compositora de vanguarda do Grupo Música Viva e rejeitada pelos então nacionalistas que gostariam de ditar as regras para o gosto musical brasileiro ou, pelo menos, estabelecer um parâmetro de certo e errado para o país em termos musicais. A posição do Brasil, desde a década de 1930, era de grupos modernistas que defendiam intensivamente uma música de expressão nacional, popular e folclórica. Os compositores, preocupados com a comunidade musical e a sociedade, buscavam reutilizar elementos formais de caráter folclórico e popular. Esta modernização principia com os compositores pertencentes ao Grupo Música Viva, que se entregaram à descoberta de novas perspectivas de organização do pensamento musical. Esse foi um momento de intensa re- vitalização artística, tendo como proposta uma sintonia maior com as novas experiências musicais da Europa. Eunice fora ativista do Partido Comunista Brasileiro3, assim como ou- tros intelectuais da época. Com seu casamento com Omar Catunda (motivo pelo qual adota o sobrenome Catunda e, mais tarde, após o divórcio, troca a letra C por K, que a identificará como compositora até sua morte), mu- da-se para São Paulo, retornando mais tarde para o Rio de Janeiro, onde a efervescência do Música Viva já era fato. Eunice viveu intensamente este momento, sendo grande sua participação como intérprete da música nova e como compositora. Os conflitos na recepção de sua música combinavam com os ideais de engajamento político por ela vividos naquele momento. Eunice revoltava-se contra as diretivas estéticas e musicais excessivamente sumárias que, por vezes, transformavam a música em acessível e de fácil compreensão. Discor- dava da divisão entre células femininas e células masculinas, justificada pelo Partido como caracterizando a falta de evolução política da mulher. Estava no Partido porque havia uma ânsia em pertencer a uma coletividade, uma ânsia do ideal coletivo de humanidade fraterna em dividir igualitariamente conhecimento e expressão, emoção e inteligência. Fazia música dodecafô- nica, sim, mas sem o formalismo intransigente da técnica e do rigorismo das quatro formas, por acreditar que esta música era expressão do seu ser, de criatura que luta e que sofre para exprimir algo que tem de ser expresso laboriosamente. Acreditava na expressão “fruto do trabalho”, não o trabalho

3 Eunice filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro em 1936 e, decepcionada, desligou-se em 1954.

176 Iracele Vera Lívero de Souza

que pudesse ser individualizado, mas coletivo, via realização e, assim, co- nhecimento geral e entendimento. Era sua visão de música do povo e para o povo. Era sua expressão da música brasileira. Frente aos debates ocorridos no Brasil em torno do II Congresso Interna- cional de Compositores e Críticos Musicais em Praga (1948), e em confronto com o Partido Comunista, Eunice não aceita como contraditório o fato da música que emprega técnicas dodecafônicas não ser popular e não pertencer às massas. Ela acreditava que a música que empregava tais técnicas não tinha pú- blico simplesmente porque não era divulgada. Eunice tinha consciência da sua época e de que, com a força de um trabalho constante de pesquisa e de busca de expressão, poderia contribuir para um mundo melhor. Para ela, a riqueza de uma obra composicional encerrava uma questão humana. Se um compositor ignorasse estas regras, esta rejeição poderia ser cruel, e a solidão passaria a ser esmagadora. Eunice Katunda tentou apontar um caminho que imprimiria uma expressão brasileira para além das frontei- ras nacionais, um internacionalismo nacional. Eunice viveu estes últimos ideais até pouco tempo depois da “Carta aber- ta aos músicos e críticos do Brasil”, de Camargo Guarnieri, escrita em 1950. A partir de então, a postura de Eunice Katunda perante o dodecafonis- mo tomou outra posição. Orientada pelo engajamento político e convencida pela carta, que condenava a técnica dodecafônica para a composição, consi- derando-a antinacionalista e antipopular, e destacando o folclore brasileiro como um dos mais ricos do mundo, embora amplamente ignorado pelos compositores, Eunice enfatiza sua ruptura com o Música Viva. Entraria Eunice numa nova fase? Nem tanto. A pianista sempre fora pes- quisadora do folclore brasileiro de todas as regiões, haja vista suas palestras sobre o folclore quando esteve na Itália, em 1948. Mas seus estudos se in- tensificaram a partir deste momento. Eunice passa por um período de via- gens pesquisando ritmos e cantigas da capoeira de Angola (Salvador, 1952), ritmos poéticos e melodias de cantadores e violeiros do Nordeste (Alagoas e Bahia, 1956), ritmos e cantigas dos cultos afro-brasileiros (Salvador, 1956), características e particularidades dos ciclos de festas populares em Salvador (Iemanjá, Bonfim, Senhor dos Navegantes, 1957), reisados e pastoris (Ala- goas, 1956), lendas, hábitos e costumes matriarcais, o Opô Afonjá, ritmos e cantigas (Salvador, 1958) e o culto dos eguns, compilação definitiva de melodias e ritmos (Itaparica, 1962). Firmando e reafirmando sua posição, ela escreveria a Pierre Verger:

177 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

Sou uma compositora e pianista brasileira que andei por vários caminhos em busca de minha música. Avancei pela escola dodecafônica e recuei a tempo, reconhecendo que nem ali se encontrava a identidade de minha natureza com a música. E afinal vim encontrar a fonte que sempre me atraíra e que reside no centro mesmo dessa tradição africana que em nós é mais forte que tudo o mais, e que continua viva e pura nos ritmos, nos gestos, na alegria bárbara e pungente desse candomblé baiano. Foi essa descoberta maravilhosa, feita agora na Bahia, exatamente no momento em que necessitava dela, por me encontrar em plena fase de criação4.

Eunice esforçou-se intensamente para absorver a nova estética, adequan- do-a ao que sentia ser sua expressão nacional. Para isso se afastou decidida- mente do dodecafonismo, por meio de uma renúncia pública justificada5. Nem todos podem ser compositores inovadores, mas, ainda assim, a música desta fase de Eunice deixou sua contribuição, mesmo que simbóli- ca, para a vanguarda brasileira. O próprio Koellreutter, em carta de 28 de fevereiro de 1979, escreve a Eunice: “Não concordo com sua observação de que não definiu nada. Encontro, em sua música, uma expressividade de forte cunho pessoal, o que significa definição de um estilo próprio” — ainda que a pianista, a partir de sua ruptura, tenha se dedicado original e pessoalmente à busca do nacional que acreditava existir e, com sua criação, poder transmitir. A Europa foi testemunha do entusiasmo e berço da inspiração de Eunice. Lá apresentou o que melhor sabia do Brasil, realizou audições de música fol- clórica, apresentou cantos de trabalho e de nostalgia, falou sobre as grandes imigrações do Nordeste, dos rituais dos antigos cultos africanos e das danças tradicionais do interior de São Paulo. Para Eunice o folclore sempre foi a essência da alma de um povo.

Eunice e grandes personalidades contemporâneas

O momento do pós-guerra é de grande interesse para a música nova, se considerarmos que diversos compositores europeus, nomeadamente

4 Carta de fevereiro de 1956 dirigida a Pierre Verger, antropólogo francês que Eunice conhe- ceu na Bahia. Cópia do original em posse da autora deste ensaio. 5 Durante o 8º Festival de Juiz de Fora, em meio à comemoração dos quarenta anos do iní- cio das atividades do Música Viva, Eunice desculpa-se publicamente com Koellreutter pelo modo como fez sua ruptura.

178 Iracele Vera Lívero de Souza

franceses, italianos, espanhóis e ingleses, aderiram à técnica dodecafônica em primeiro lugar, e depois ao atonalismo livre e a experimentações que já se realizavam desde as décadas de 1920 e 1930, de maneira desordenada, mas constante e até radical. Entre agosto e setembro de 1948, realizou-se a Biennale di Venezia, dentro da qual ocorriam festivais de música, cursos e outras atividades, como concertos. Convidada, Eunice viaja para esta Biennale como compo- sitora do Música Viva. Nesse período, o contato com a nata composicional e interpretativa europeia era de grande riqueza, pois o ambiente de concertos, festivais de música nova, cursos e discussões era grandemente estimulante para aqueles que dele participavam. À frente desse movimento estava o regente, teóri- co, professor, conferencista, escritor, editor e pioneiro do rádio Hermann Scherchen (1891-1966), grande incentivador e defensor da vanguarda, que promovia com entusiasmo os jovens e promissores compositores, bem como os jovens e promissores intérpretes. Durante o curso de regência com Scherchen, Eunice Katunda conhe- ce Bruno Maderna (1920-1973) e Luigi Nono (1924-1990), estabelecendo relações cordiais de amizade; mas com Luigi Nono uma amizade bem mais estreita, que durou até seu retorno ao Brasil. A amizade entre Katunda e Nono é um tema ainda a ser estudado. É sabido que ele era bem mais novo que Eunice, que ela o teria iniciado no estudo mais profundo da harmonia e que houve colaboração entre os dois em trabalhos composicionais, inclusive os requisitados pelo mestre da Biennale, Scherchen. Após a Biennale, Eunice permaneceu na Itália por mais quase um ano, período no qual pôde aperfeiçoar-se na técnica dodecafônica e serial com Bruno Maderna, além de manter contatos importantes com Luigi Dalla- piccola, Giuseppe Ungaretti e mesmo Francesco Malipiero. Sua posição, enquanto pianista que realizava obras contemporâneas, como compositora engajada na vanguarda que se pronunciava, experimentava e caminhava em direção ao futuro, com a técnica dos doze sons encaminhando o serialismo da segunda metade do século XX, se consolida então. A influência cruzada desses e de outros compositores a transformou ra- pidamente em uma parceira musical, o que continuamente aconteceu até 1949, ano de sua volta ao Brasil. Foi neste ínterim que Eunice e os compositores supracitados trocaram informações sobre textos poéticos que poderiam servir como base para composição de canções. Eunice escrevia poemas e tinha sobre essa expressão certo domínio, de forma que o indicativo deste gosto pela palavra fará da voz

179 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

uma de suas manifestações favoritas. Em grande parte de sua produção entra a voz cantada, essa possibilidade de expansão do poético através da canção de câmara ou da voz e instrumentos, ou da voz em coral, ou ainda da voz e de quaisquer outras formações. Entretanto, 1948 é um ano emblemático por se dar também a realização do Congresso de Compositores em Praga, local onde se irá postular, espe- cialmente através da ideologia zhdanovista, o realismo socialista na música. Em seus depoimentos sobre a viagem à Europa, Eunice Katunda conta que Luigi Nono iniciou sua carreira como regente na Rádio Zürich, com a cantata composta por ela, O Negrinho do Pastoreio, para voz feminina, sobre um poema de Zora Braga (Kater, 2001, p. 61). Quando desta sua permanência na Europa, Eunice conviveu com diver- sos personagens importantes da época, mantendo um bom relacionamento com eles. A pianista encontrou na Itália grandes amizades como, por exem- plo, Giuseppe Ungaretti, com quem manteve correspondência, e Wladimir Vogel, de quem foi hóspede em Ascona, Suíça, e que foi responsável por uma temporada de concertos para ela enquanto permanecia na Europa. Muito do temperamento e das atitudes de Eunice Katunda parece re- sultante de um longo processo de aprendizado, no qual a mulher, a intér- prete e a compositora se uniram para vencer os desafios da vida. Um fato que chama atenção é a forma natural com que Eunice transitava entre os modernistas mais representativos, como os já citados anteriormente. A postura de Eunice era de plena sintonia com as ideias modernas e avança- das que estavam sendo propostas. A década de 1950 foi de vital importância para a produção musical no Brasil. A crise se estabelecia em função da “Carta aberta” e do seu repúdio à infiltração da nova técnica da Segunda Escola de Viena entre os composi- tores da nova geração brasileira. Tratava-se da nova demanda estética, em questionamento aos ideais de um Zhdanov num Congresso de Praga. Eunice Katunda não assumiu de imediato sua postura quanto à “Carta aberta” de Guarnieri. Foram necessários sete meses de reflexão para Eunice assumir seu posicionamento favorável à demanda deste documento público e contrá- rio ao dodecafonismo praticado.

Ambição, ambivalência e trabalho de mulher

Se Eunice Katunda sentiu algum conflito entre seu papel de esposa, mãe e artista, a princípio, isto se resolveu em favor do ser artista.

180 Iracele Vera Lívero de Souza

Em carta redigida aos seus familiares, durante sua temporada na Itália, Eunice escreve que descobriu um mundo sem fronteiras, que é um pou- co de todos e que todos são um pouco dela mesma. Em outro momento escreve que ninguém encontra a chance que estava encontrando naquele momento. Não se sentia mulher, nem mãe nem filha, era um sentimento amplo e impessoal. Continuou dizendo que sentia uma força interna ver- dadeiramente masculina, e que esta força masculina era o que necessitava um regente ou um artista6. Não há questionamentos sobre o sexo frágil, e Eunice lutou consigo mesma para superar o que ainda restava de hesitação dentro dela. Ela tinha poder e autoridade no meio musical e foi sempre admirada pela sua força interna, “masculina”, como ela mesma assume. Era bastante significativo seu papel no meio musical da época. Ela representou uma ligação entre “os no- vos” e Heitor Villa-Lobos, em 1948. Esta designação foi determinada por escrito num documento redigido pelo pianista Arnaldo Estrella, diretamente de Paris, logo após a participação deste no Congresso de Praga. Em 1949 foi convidada pelo musicólogo Renato Almeida a integrar o Conselho Delibera- tivo da Seção Brasileira da Sociedade Internacional de Música Contemporâ- nea (SIMC), no Rio de Janeiro (Kater, 2001, p. 24-25). Embora tenha sido encorajada em seu trabalho como compositora, inú- meras vezes Eunice expressou dúvidas sobre o valor criativo dele. Ou seja, pairava sempre a dúvida da validade ou mesmo do valor intrínseco da com- posição de uma mulher no horizonte dubitativo de Eunice. Fatos pessoais e sociais estariam alimentando sua insegurança. A expectativa ainda prevale- cente era a de que mulheres deveriam manter uma atitude privada e predi- cativos domésticos de toda boa mulher. Deve-se convir que ainda nessa década eram raros os casos de mulheres bem-sucedidas em suas carreiras como pianistas compositoras. Difícil dizer se havia discriminação, uma vez que a atividade de intérprete era mais adota- da pelas mulheres, e a de regente-compositora continuava estancada. Apesar da impossibilidade de contestar o talento e profissionalismo de Eunice Katunda como regente, pianista e compositora, em artigo de 10 de dezembro de 1955, intitulado “Uma dona de casa normal”, Arnaldo Câma- ra Leitão (1955) mostra as garras do seu preconceito social, reafirmando a condição de Eunice como mulher e ressaltando suas qualidades como dona de casa normal, mãe de dois filhos e dotada de atributos culinários. A matéria

6 Carta redigida de Veneza, datada de 3 de Outubro de 1948. Cópia do original em posse da autora deste artigo.

181 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

deixa transparente que a atuação profissional de Katunda não lhe privou dos dotes domésticos, característica de toda boa mulher. Somado a isso, suas inquietações políticas e musicais, manifestadas em documentos da época, podem ter aumentado seu desconforto com a com- posição; embora não pareçam ter afetado suas ambições para uma carreira de concertista. No entanto, apesar de sentimentos alternativos sobre seus poderes criativos, Eunice continuou a compor até 1983, com um período de maior produção nas décadas de 1950 e 1960. Desde muito cedo, Eunice fora encorajada a tocar de ouvido antes mes- mo de ler as notas: transpunha para o piano a música que ouvia do clube vizi- nho. Ela assistiu às apresentações e improvisos no ambiente de Branca Bilhar, sua professora de então, pianista e compositora, sobrinha do violonista Sátiro Bilhar. Improvisava sozinha, habilidade que continuou a desenvolver ao lon- go de sua vida. Harmonia, análise e contraponto foram reforçados quando Eunice tinha 19 anos e, já casada, se mudara para São Paulo. Com carta de apresentação de Oscar Guanabarino, foi estudar com Furio Franceschini, iniciando também seus estudos de composição. Em 1941, na ocasião de sua interpretação do Concerto para piano n. 4, Op. 58 de Beethoven7, no Theatro Municipal de São Paulo, sob a regência do tam- bém compositor Camargo Guarnieri, Eunice passa a ser aluna de composi- ção e de piano do mestre, já que sua orientadora Marieta Lion havia deixado o país. Este momento foi um marco na vida de Eunice, não para sua carreira de concertista, mas de compositora, que se inicia. Em 1944, seu contato com Villa-Lobos e sua atuação como intérprete lhe proporcionaram uma tournée em Buenos Aires, executando de sua autoria as Variações sobre um tema popular, bem como obras de Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e Lorenzo Fernández. Eunice foi educada musicalmente neste ambiente repleto de composito- res, aprendendo o respeito pelo texto musical e a compreensão do brasileiro como fenômeno original e autêntico. Muitos dos seus trabalhos para voz e piano, voz e cordas e piano solo desapareceram. Temos apenas menções destes nos programas de concerto e em seu catálogo de obras (Kater, 2001, p. 85). A maior parte de sua obra ainda se encontra em manuscrito, salvo algumas que foram editoradas por ocasião de trabalhos acadêmicos. Quando Eunice retorna ao Rio de Janeiro, em 1946, uma nova fase se inicia na sua vida musical. Conhecendo Hans-Joachim Koellreutter, passa a estudar

7 Estreia na cidade de São Paulo em 5 de setembro de 1941 (Eunice, 1941).

182 Iracele Vera Lívero de Souza

intensamente contraponto rigoroso, composição, estética musical, orquestra- ção e a produção internacional dos compositores modernos. A pianista passa a ser uma compositora de vanguarda, ao lado de Claudio Santoro e Guerra-Peixe. Eunice conhecia as correntes musicais internacionais de seu tempo. Mui- tas características desta nova corrente de vanguarda poderiam ser ouvidas em suas composições a partir de então: a técnica dos doze sons, as formas em miniatura, o emprego de ritmos com ideias novas, a originalidade formal. Eunice, que neste momento também se viu como intérprete, pode ter tido a ambição, mas não efetivamente o poder crescente dos líderes da escola de vanguarda. Entretanto, foi aceita como um deles. Depois de cruzar fronteiras, dialogando com o repertório de vanguarda, na década de 1950, Eunice se volta para a busca do nacional nas suas com- posições. A pianista foi uma ambivalente em relação ao seu trabalho criativo. Por um lado, a composição no período de vanguarda trouxe-lhe um brilho de satisfação que a deixou motivada; no entanto, o interesse pelas raízes brasileiras sempre esteve presente. Para Eunice nada ultrapassava a alegria da atividade criativa. Por outro lado, a composição lhe suscitava dúvidas, sofrimentos íntimos de realização, amargura de não ser reconhecida. A dualidade de ser e não ser conhecida, ou conseguir ou não criar, e a pouca importância que isso tinha, era extremamente penosa. O curso de regência também foi importante em sua formação, lhe pro- porcionando um trabalho como regente frente à Orquestra da Rádio Nacio- nal de São Paulo e, mais tarde, uma posição de liderança em um programa na Rádio Gazeta. Eunice trabalha nestes momentos sob duas vertentes: pri- meiras audições de compositores contemporâneos de formação erudita e arranjos de músicas de raízes brasileiras. Na década de 1920, o piano, como instrumento de concerto, propor- cionou à mulher a oportunidade de sair da obscuridade, sendo uma das pri- meiras e mais importantes cunhas nessa época. No entanto, a identidade feminina de compositora-intérprete-regente era abafada pela liderança dos homens pianistas compositores. Foram raríssimos os casos de mulheres bem- -sucedidas em suas carreiras como pianistas compositoras e regentes. Deste modo, Eunice Katunda, que contrariava a expectativa cultural da sua época, buscou em sua força masculina a justificativa para tal desempenho8.

8 A posição ocupada por Eunice era incomum para mulheres. Além dela, podemos lembrar de Dinorah de Carvalho, que na década de 1940 ocupou posição semelhante, como dirigente de uma orquestra formada apenas por mulheres.

183 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

A compositora e a obra

Eunice Katunda tem um catálogo com 81 obras registradas, entre as quais constam também obras populares arranjadas, adaptadas e/ou orques- tradas por ela. São peças sinfônicas, ciclos de canções, peças para piano, coro e câmara em diversas formações. Entre os musicólogos, há sempre a tendência de dividir a obra de um compositor em fases, para uma melhor compreensão do pensamento com- posicional. Sabe-se, porém, que isso não contemplará o desenvolvimento integral do músico, e que, muitas vezes, o que se observa em uma fase pode estar também em outra. No entanto, pode-se ver a produção de Eunice Ka- tunda conforme seus conhecimentos adquiridos e influências da época. No primeiro momento, uma fase bem curta, até 1946, enquanto alu- na de Guarnieri, Eunice desenvolve uma forte consciência do nacional e faz do Ensaio sobre a música brasileira, de Mário de Andrade, uma fonte de referência constante. São desta fase Variações sobre um tema popular (ou 13 variações) (1943-44), para piano solo, Lamento arabo (partitura extraviada, 1944), para contralto e cordas, com texto de Ungaretti, e O Negrinho do Pastoreio (1946), uma cantata em quatro atos, que recebeu o prêmio Música Viva para jovens compositores. Variações sobre um tema popular (ou 13 variações) foi composta em São Paulo (c. 1944) e estreada pela própria compositora em Buenos Aires, em setem- bro de 1944, na Casa del Teatro, e em 1965 no Brasil, no Theatro Municipal de São Paulo. Foi o primeiro trabalho composicional de Eunice como discí- pula de Camargo Guarnieri. Trata-se de treze variações sobre o tema folcló- rico “Garibaldi foi à missa”, ainda não publicado. Eunice Katunda carrega deste momento fortes influências das aulas do seu mestre Camargo Guarnieri. Um tema popular, “Garibaldi foi à missa”, é harmonizado sob uma progressão de intervalos crescentes em flagrante pós-tonalidade, um raciocínio que o mestre prezava, para conseguir a eva- são da banalidade.

184 Iracele Vera Lívero de Souza

Com relação às ideias composicionais de Guarnieri, podemos verificar algumas constâncias do mestre. Nas variações que seguem, Eunice emprega o tema de forma contrapontística, com o emprego do cânone, uso das terças paralelas (o que pode ser conhecido como “terças caipiras”), fragmentação do tema, entre outros.

Acredito que, mesmo sendo este um primeiro trabalho, o fato de Eunice tê-lo interpretado em duas ou mais ocasiões indica que a compositora obteve o aval do mestre. Em um segundo momento, Eunice foi membro do Grupo Música Viva, ao lado de Hans- Joachim Koellreutter, Claudio Santoro, Guerra-Peixe e Edino Krieger, com suas ideias de vanguarda na música brasileira. É deste período o contato com compositores da vanguarda europeia como Hermann Scherchen, Luigi Nono, Bruno Maderna e Luigi Dallapiccola, fomentando

185 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

uma certa interinfluência entre vanguarda e o momento nacionalista. Come- ça então, de maneira regular e efetiva, sua atuação como compositora, além de intérprete, atividades que desenvolveu até 1950. Destacam-se Cantos à morte (ou Quatro cantos à morte) (1946) e sua trans- crição para piano, Quatro epígrafes (1948). Também são desta fase, com orien- tação de H. J. Koellreutter, Sonatina (1946), revisada em 1965, para piano; Salmo 82 (1947), para vozes masculinas, fagotes e percussão; as Três líricas gregas (Veneza, 1949), para soprano, contralto, flauta, harpa, violino, viola, violoncelo, vibrafone e tam-tam, sob a orientação de Bruno Maderna; e o Quinteto Schoenberg (ou Omagio a Schoenberg) (1949), peça escolhida para re- presentar o Brasil no XXIV Festival da Sociedade Internacional de Música Contemporânea (Bruxelas, 1950). Um terceiro momento é caracterizado pelo abandono dos ideais de van- guarda e do emprego da técnica dodecafônica em razão da corrente nacio- nalista que veio à tona com toda força através da “Carta aberta” de Camargo Guarnieri e de seu forte e contínuo interesse pelo folclore. De um modo geral, as décadas de 1950 e 1960 darão início a uma fase que se podee chamar de definitiva. As ideias se concretizam, e do ponto de vista do conteúdo são nacionalistas, pois apresentam características do folclore nacio- nal brasileiro, uma vez que Eunice é pesquisadora dessas raízes. As temáticas giram em torno dos ritmos e cânticos da Bahia e de expressões do candomblé, tendo como destaque a formação de música vocal e canção de câmara. Ao longo dos anos, as experiências como regente frente à orquestra da Rádio Nacional fizeram com que Eunice Katunda aprimorasse o seu métier como arranjadora e orquestradora, ao mesmo tempo que a compositora manteve sua linguagem musical característica, com seu fascínio pelas raízes da cultura brasileira. Para piano solo, Eunice compõe Estudos folclóricos (ou Dois estudos folclóri- cos), “I. Canto praiano” e “II. Cantos de reis” (1952), com registro em gravação por Beatriz Balzi, Momento de Lorca (1957), Trovador obstinado (1958), que é uma transcrição, Sonata de louvação (1958) e Duas serestas (partitura extraviada, 1965). Há, ainda, Impressões do candomblé (1958), para dois pianos e atabaque, Sonatina (1965), Seresta em lá (partitura extraviada, 1967), Três momentos em New York (1971), Trenodia al poeta morto (redução para piano do sexteto vocal à ca- pela, 1972), Prelúdios para Carla (foi encontrado apenas o nº 1, 1977), Expressão Anímica (peça de grafia contemporânea, para o Festival de Música Nova de San- tos, 1970), La dame et la licorne: petite suite (seis pequenas peças, 1982), Ma mère l’oye (1982), transcrição para piano solo da obra orquestral de Maurice Ravel,

186 Iracele Vera Lívero de Souza

Cantos de Macunaíma (1983), redução do quinteto vocal, e Quatro momentos de Rilke (1958), com versão para orquestra de cordas. A peça para piano que merece destaque é Sonata de louvação, composta em 1958 e revisada em 1967. No período de criação desta peça, Eunice Ka- tunda mantinha um interesse pelas manifestações musicais da Bahia, o que proporcionou a ela várias viagens a fim de concretizar sua pesquisa com o estudo e coleta de cantos típicos de rituais baianos. Esta sonata é resultado das impressões de sua segunda viagem à Bahia, em 1957: “Por algum tempo a Bahia estará em mim e eu a refletirei em toda bela exteriorização de vida e de emoção”, como ela menciona. Na obra, a tradição da forma sonata dialoga com os temas característicos do folclore. A Sonata de louvação é constituída de dois movimentos: “I. Dos bardos do meu sertão (allegro deciso)” e “II. De acalantos e noite (calmo e triste)”. “De acalantos e noites” apresenta uma melodia simples, com caracte- rística vocal, e à maneira de acalanto — ambiente de monotonia necessária para adormecer uma criança.

187 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

Era inegável a paixão de Eunice Katunda pela voz, e é pertinente ressal- tar que suas canções de câmara talvez sejam sua maior contribuição para a música brasileira. De fato, seu interesse criativo era amplo, e aqui podemos

188 Iracele Vera Lívero de Souza

incluir, como já observado, suas qualidades de poeta, seu grande interesse pela expressão da palavra e voz e sua fixação pela canção nacional. A utilização de temas populares já era habitual na criação de composi- tores brasileiros, mas Eunice foi além disso. Suas canções de câmara (com- posição para voz e piano) aproveitam as constâncias dos temas das raízes brasileiras, sem no entanto se remeter apenas à harmonização. Percebe-se a preocupação com os problemas vocais técnicos e fonéticos, que o compo- sitor deve ter em conta, o que revela um amadurecimento técnico, tanto no aproveitamento do texto como do piano, que não se limita apenas a acompa- nhar o canto, mas, como a canção de câmara de fato exige, participa do todo. A música de câmara de Eunice Katunda é extremamente variada, com diversas formações. Eunice compôs muito para voz e piano, e sua música para coro é bastante significativa como repertório. Formam o conjunto de sua obra com inserção de voz, em diversas formações instrumentais: Lundu da menina (1955); Toada do amor caboclo (peça extraviada, 1955), com texto de Mário de Andrade; Moda do corajoso (peça extraviada, 1955), com versão para canto e piano; A negrinha e Iemanjá (1955), para vozes e orquestra, baseada na lenda nagô compilada por Câmara Cascudo, formada por “I. Cena da feira: pregões”, “II. Cena da feira: o trovador”, “III. Ponto de Iemanjá” e “IV. Em louvor de Oxóssi” (a segunda peça tem uma redução para piano solo sob o título “Trovador obstinado”) Seresta para quatro saxofones (c. 1956), uma versão de Seresta do maior amor (partitura extraviada); Benditos da Mariquinha (1955-56), orquestração, música tradicional do início do século, recolhida pela compositora no sul de Minas Gerais; Lamento do cativeiro (1955-56), orquestração, material tradicional de origem africana; Peixes de prata (partitura extraviada, 1955), orquestração da peça de Gilberto Mendes para canto e piano; La pañaderita (1955-56), para coro misto; Reisado (1955-56), coro misto, material folclórico; Aboio (1955-56), material folclórico com arranjo da compositora; Estro Africano nº 1 (ou Duas cantigas das águas) (1957); Estro Africano nº 2 (ou Águas de Oxalá) (1956-57); Duas devoções nordestinas (1957), material originário do norte do Mato Grosso e do norte da Bahia; Brasilia (ou Cantata Brasilia) (1960), com apenas um tempo; Duas líricas gregas (1961), para canto e piano; Canções à maneira de época (1963), nove peças para canto e piano dedicadas às cantoras Elizeth Cardoso, Elza Soares, Alayde Costa e Elis Regina, com textos de Vinicius de Moraes; Estro romântico (1963), para Alayde Costa e Elis Regina, com texto de Vinicius de Moraes e da própria compositora; Seis líricas gregas (1964); Cantata do soldado morto (ou Canto do soldado morto) (1966), para solistas, coro misto, flautas, oboés, clarinetas, fagotes, trompetes, trombone,

189 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

piano, cordas e percussão, com texto de Rossini Camargo Guarnieri (estreada na III Bienal de Música Contemporânea); Oratório à Santa Cecília (ou Cantata Cecília, 1966); Líricas brasileiras (1955), para canto e piano; Due liriche di Ungaretti (1967), para canto e piano; O filho do homem (1971), para vozes mistas, com texto de Vinicius de Moraes; Seresta à música (ou Ode à Cecília) (1971); Quatro incelenças (ou Quatro cantigas de velório, 1972); Trenodia al poeta morto (1972); Sete líricas brasileiras (1972); Cantos de Macunaíma (1972-73), soprano e quinteto de sopros com texto de Mário de Andrade; Cantos de Macunaíma (1973), para quinteto vocal e percussão, com texto de Mário de Andrade; Música de casamento (1975); Salmo verde (1976), para solistas, coro misto, flauta, dois fagotes, quarteto de cordas e percussão, com texto de Marklos Estate; Ode aos marinheiros (ou Ode aos marítimos, ou Cantata dos marinheiros) (1976), com a mesma formação e sobre texto do mesmo poeta; e Trenodia ao poeta morto (1980), quinteto vocal com texto de Ungaretti. Como uma exemplificação do gosto da compositora pelo uso da voz, cabe falar das suas Quatro incelenças, compostas em 1972. Neste trabalho notamos a aproximação dos ideais de Mário de Andrade – o de aprofundamento através de pesquisas do folclore nacional. Em suas viagens de pesquisa, a compositora manteve contato com este tipo de manifestação popular, as incelenças (excelências ou incelências). Na tradição popular do Brasil, em regiões como o Nordeste, a morte pode ser celebrada com um lamento conhecido por “incelença”, uma ex- pressão cultural materializada no ritual de acompanhamento de um defunto e que se realiza diante de uma morte preparada e assistida. Esta atitude cristã diante da morte foi trazida ao Brasil pelos colonizadores portugueses, clé- rigos que, em ritos religiosos, transmitiram esta prática aos leigos cristãos católicos. Por tradição oral, as incelenças foram repassadas ao longo de ge- rações e se configuram como uma forma de expressão e exteriorização de sentimentos dos vivos em relação aos mortos. Cantada apenas por mulheres, em uníssono, sem acompanhamento instru- mental, as incelenças apresentam uma estrutura rítmica simples, composta de doze estrofes – o número de apóstolos de Cristo. A letra se refere ao momento de separação do mundo dos vivos e retrata o caminho que deve ser percorrido pelo morto com a ajuda dos anjos e santos de proteção e devoção. Por exemplo, embora o texto de “I. Incelença dos cravos e rosas”, de Eu- nice Katunda, seja semelhante ao recolhido por Gonçalves Fernandes e José

190 Iracele Vera Lívero de Souza

Nascimento de Almeida Prado9, a linha melódica registrada por eles difere totalmente da canção da compositora, o que demonstra que a incelença de Eunice não é apenas um arranjo ou variação sobre uma melodia folclórica, mas sim uma criação.

Incelença dos cravos e rosas Uma Incelença que nesta casa achei… Achei cravos e rosas e a flôr da laranjeira. Abram a porta, deixem o vento entrar Que quero ver o céu pra ver os anjos passar Uma incelença que nesta casa achei Achei cravos e rosas e a flôr de laranjeira

Como diria o amigo de Eunice, Guerra-Peixe, o nacionalismo não nasce apenas da inspiração ou da intenção, mas sim do estudo perma- nente das matrizes folclóricas. Eunice compreendeu que a constância do material folclórico e popular em sua obra não se limitava ao compromis- so de engajamento político, mas ao compromisso com ela mesma, como musicista e compositora.

9 Gonçalves Fernandes (1909-1986), especialista em religiosidade popular brasileira, reco- lheu com José Nascimento de Almeida Prado (1947, p. 49) a letra da “Incelença dos cravos e rosas”: “Uma inselencia/ Que nesta casa achei/ Achei cravos e rosa/ E a frô da larangêra/ Abram-se as porta/ Deixai o vento entrá/ Que eu quero vê no céo/ Os anjo passiá”.

191 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

Outras obras com formações variadas: Concerto para piano e orquestra (ou Impressões do candomblé), (partitura ex- traviada, c. 1956), estreada por Silvio Tancredi ao piano; Choros nº 5 (almas brasileiras) (1955), orquestração da música de Heitor Villa-Lobos; A moça fan- tasma (1960), com oscilador de frequência, cristais, cítara, violão, piano, per- cussão e fita magnética, para o Balé de Yanka Rudzka; Cantiga de cego (1964), para viola e piano, e também com versão para violino e piano; A blindman’s song (1967), para violino e piano; e Danças polonesas do século XVII (1978), de autor anônimo, transcritas pela compositora. Obras para violão: Suíte Nazareth (1963), Prelúdio para violão (1972), Duas serestas (1972) e Prelúdio nº1 (1973). Nos anos de 1955 e 1956 as experiências como regente da orquestra da Rádio Nacional e do Coral Piratininga, que ela formou, fizeram Eunice Katunda aprimorar o seu métier de arranjadora e orquestradora, em obras vocais, para solista e coro, mantendo ao mesmo tempo sua linguagem musi- cal característica – seu fascínio pelas raízes da cultura brasileira. Portanto, a posição de compositora em prol da pianista intérprete ganhou força, e Euni- ce pôde concretizar o ideal de propagar as raízes da música brasileira. Ao se desvencilhar desse trabalho de regente, nas décadas de 1960 e 1970, Eunice intensifica sua produção para piano solo. Eunice Katunda constituiu uma obra com muitos e diversificados in- teresses e facetas, com um investimento feito na direção de uma música brasileira, com base nas tradições e em pesquisas do nacional. Obra também congelada no tempo de sua primeira e, muitas vezes, última apresentação, já que a assiduidade com que se a frequenta, embora sem dúvida importante, é quase nenhuma.

Eunice Katunda: um ponto de vista

Muito do temperamento e das atitudes de Eunice Katunda foi retrata- do por comentários de Geni Marcondes, Gilberto Mendes e Vasco Mariz, que mostram como a mulher e a artista se uniram para suplantar os desa- fios da vida. Geni Marcondes, pianista, compositora e arranjadora, casada com Ko- ellreutter e uma das personalidades mais importantes, embora mais escondi- das, desse meio musical onde teve vigência o Música Viva, relata que “Eunice

192 Iracele Vera Lívero de Souza

tinha uma inteligência tão extraordinária, que se ela quisesse poderia ter sido uma poeta, uma grande pintora. Como pianista possuía uma musicalidade intrínseca, que ia muito além da realização técnica. […] tinha uma inteligên- cia abrangente”10. Gilberto Mendes, criador do Música Nova, figura eminente da vanguar- da musical a partir dos anos 1960 e um dos principais compositores da histó- ria da música brasileira, conta que conheceu Eunice Katunda através de sua interpretação de Ludus Tonalis, de Hindemith, em estreia no Brasil: “Nesse momento não falei com ela, mas fui cultivando sua imagem na minha cabeça. Ela era uma mulher interessante e grande pianista. Eu era um compositor desconhecido e ela me tirou do anonimato”. Vasco Mariz, historiador, musicólogo, escritor e diplomata brasileiro, conheceu Eunice em meados de 1940. Em entrevista11, Mariz relata: “Nós éramos jovens, fomos convidados pelo Conservatório Brasileiro de Música a fazer um recital e uma palestra sobre Villa-Lobos. Ela era uma mulher de grande cultura e charme, juntamente a isso uma personalidade fortíssima”12. De fato, ela foi uma pessoa especialmente dotada para qualquer arte. Além de brilhante pianista, tinha facilidade em se expressar pela palavra, em prosa ou poesia, e comunicava- se perfeitamente bem em vários idiomas, tinha um excelente tino crítico e, como se viu, era compositora criativa, produtiva e com grande conhecimento técnico. Entretanto, faltou-lhe sorte no desenrolar de sua vida. Segundo Mariz, Eunice teve quatro quedas em sua vida: a primeira por problemas emocionais (1944), a segunda por um problema de sectarismo político (1950), mais tarde por problemas de saúde e, enfim, em 1969, por um problema financeiro causado pela desonestidade de sua agente nos Estados Unidos, prejudicando-a bastante. Eunice sofreu as consequências de sua época, não só por ser mulher, mas principalmente pelo seu engajamento político, embora sua força e atitude a definam como uma mulher diferenciada para a época. O destino parece ter determinado e conduzido o desenvolvimento de sua carreira. Eunice, dedicada inteiramente à prática do seu instrumento, nunca recebeu educação formal, mas seu conhecimento informal – adquirido

10 Entrevista gravada e concedida à autora deste trabalho em Taubaté, no dia 15 de maio de 2004. 11 Entrevista gravada e concedida à autora deste trabalho no Rio de Janeiro, no dia 20 de julho de 2005. 12 Conforme currículo da compositora (cópia do original em posse da autora deste ensaio), este acontecimento ocorreu em 1947, promovido pelo Ministério de Educação e Cultura e Movimento Música Viva: Série de Cirandas para piano e conferência de Vasco Mariz.

193 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

no convívio com a intelectualidade e sua genialidade lhe proporcionaram um alto nível de formação pessoal. Em 1963, Eunice deu uma entrevista à Folha da Manhã mostrando-se desiludida com a falta de oportunidades e as dificuldades de ser artista no Brasil. Alegou que tinha um concerto programado havia cinco anos no The- atro Municipal de São Paulo, porém a data sempre era alterada quando este se aproximava (Quem..., 1963). Com base na trajetória de vida de Eunice, coube aqui ressaltar os fatos que, juntamente com seu talento, competência e dedicação à música, teriam contribuído ou não para sua vida profissional, numa época em que à mulher ainda estavam destinados os papéis de esposa, mãe, educadora e cuidadora. Em 1965, mesmo desligada do Partido Comunista Brasileiro13, Eunice so- freu perseguição política ao ser impedida de entrar no Theatro Municipal às vésperas de um concerto. Nesse período, Eunice escreve a Koellreutter que se sente marginalizada e que a música parece não ocupar um lugar suficientemen- te forte no contexto social, referindo-se aos estudantes de música da época. Eunice deixou seu talento genial como pianista desperdiçar-se ao longo de sua existência. Por uma razão ou outra, em algum ponto da sua vida, deixou de contrariar o caminho natural que lhe fora traçado com respeito ao papel social da mulher no âmbito da família. Os dilemas de uma inteligência como a de Eunice Katunda podem ser contundentes. A sua busca do verdadeiro, por exemplo, a perseguiu por mui- to tempo. Sobre isso, em conversa epistolar, seu mestre Koellreutter lhe diz:

Não sei, se não seja atrevido procurar encontrar o verdadeiro. Pa- rece-me necessário conformar-se com o fato de que o verdadeiro é algo que nunca chegaremos a compreender, porque somos nós parte do mesmo. Trata-se de ser útil à sociedade em que vivemos. Eis o que importa. E sei que você é capaz de sê-lo. E mais… acho que o nosso meio artístico necessita de sua inquietação.14

Koellreutter tinha muito apreço por Eunice, apoiando-a sempre que po- dia em qualquer situação, inclusive convidando-a a viajar à Índia, onde ele

13 Como já mencionado, Eunice deixa o PCB em 1954, desiludida com os posicionamentos do partido, especialmente em relação à mulher, mas também em protesto contra a invasão da Hungria, acrescendo a esses fatores suas decepções com o autoritarismo vazio de propostas. 14 Carta de Koellreutter a Eunice. Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1979. Cópia do original em posse da autora deste ensaio.

194 Iracele Vera Lívero de Souza

residia, para auxiliá-lo a abrir a primeira escola de música ocidental naquele país – um convite, no entanto, que Eunice declinou. Em um texto intitulado “Autorretrato”, Eunice (apud Kater, 2001, p. 83-84) escreve:

Gosto de minha vida, embora em momentos agasalhe forte inveja em meu coração. Mas aquilo de que tenho inveja nos outros não é mais que irrealização. Fico sempre procurando os objetivos. Sinto amargura, quando vejo que sou de tanto valor quanto outros e não consegui objetivar, em realização, nem a metade do que poderia ter feito. Vejo os outros, e todos estão seguindo seu sulco definido. O meu rio, porém, se dispersa em regatos que só duram uma estação e se perdem nas areias do inútil. Acho que estou sempre esperando al- guém que me tome pela mão e me conduza. Mas isto não é possível.

Um fato que parece, afinal, verdadeiro para a vida desta personalidade genial e tormentosa que foi Eunice Katunda é que, apesar das tribulações, per- seguições, desilusões profissionais, políticas e humanas, foram sua amargura e seus posicionamentos de certa forma revoltados e inconformados com seu tempo e seu entorno que a fizeram falhar miseravelmente naquilo que poderia ter sido uma vida de sucesso e realização — bem como de alguma felicidade, já que para Eunice Katunda esta residia nos momentos e não no todo da vida. Eunice Katunda faleceu em São José dos Campos, ao lado do filho Igor, em 3 de agosto de 1990, aos 75 anos.

195 Eunice Katunda no cenário da música brasileira: um ensaio biográfico-crítico

Referências bibliográficas

ANDRADE, Ayres de. Arte pianistica exepcional. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1935. Seção Concerto. EUNICE Catunda. O Estado de São Paulo, São Paulo, 6 set. 1941. Seção Artes e Artistas. FONTOVA, José Maria. Fué muy aplaudida la pianista E. Catunda. Noticias Graficas, Buenos Aires, 1944. KATER, Carlos. Eunice Katunda: musicista brasileira. São Paulo: Annablu- me, 2001. LEITÃO, Arnaldo Câmara. Amável submissão: Eunice Katunda domina (com a batuta) 40 homens. Radiolândia, São Paulo, 10 dez. 1955. PRADO, José Nascimento de Almeida. Trabalhos fúnebres na roça. São Paulo: Departamento de Cultura, 1947. QUEM ajuda a fazer o Brasil. Folha da Manhã, São Paulo, 29 set. 1963. Folha Feminina. QUINCAS BORBA. Soireè de Gala. Folha da Manhã. São Paulo, 1943. Seção Rádio Gazeta. SOUZA, Iracele Vera Lívero de. Constâncias composicionais entre Guar- nieri e Katunda. In: ENCONTRO DE PESQUISA EM MÚSICA, 5., 2016, Maringá. p. 1-12. Anais… Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2016. XAVIER, Livio. Eunice Catunda. Diário de São Paulo, São Paulo, 1941.

196