INTRODUÇÃO GERAL ...... 5

Modelo analítico: Questões de partida, conceitos e hipóteses ...... 11

Objectivos ...... 16

Procedimentos metodológicos ...... 17

Estrutura da tese ...... 31

CAPÍTULO I - CARACTERIZAÇÃO GERAL DA ILHA DE SANTO ANTÃO E ORIENTAÇÕES ESTRATÉGICAS DE DESENVOLVIMENTO EM CABO VERDE...... 33

1. Introdução ...... 33

2. Caracterização histórica ...... 33

3. A organização territorial e administrativa ...... 37

4. Caracterização socioeconómica ...... 39

5. A Organização da Sociedade Civil: As ADC como modelo dominante ...... 48

6. A estrutura do poder e ambiente político ...... 52

7. Potencialidades e constrangimentos ao desenvolvimento de Santo Antão ...... 64

8. As orientações das estratégias de desenvolvimento em Cabo Verde e a participação dos actores externos ...... 69

8.1 Linhas de orientação das estratégias de desenvolvimento de Cabo Verde entre 1991 e 2001 ...... 71

8.2 Linhas de orientação das estratégias de desenvolvimento de Cabo Verde entre 2001 e 2011 ...... 72

8.3 Estratégias de desenvolvimento no contexto internacional: Programa de Ajustamento Estrutural (PAE) e parceiros internacionais ...... 76

8.4 Os efeitos das estratégias de desenvolvimento dominantes e pistas para uma via alternativa...... 79

8.5 Estratégias de desenvolvimento regional/local e rural em Cabo Verde: um olhar a partir da ilha de Santo Antão...... 83

8.5.1 Abordagens teóricas do desenvolvimento do meio rural: subsídio para um debate a partir da realidade cabo-verdiana...... 93

9. Conclusão ...... 97

CAPÍTULO II – CONCEITOS E TEORIAS DAS DINÂMICAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL ...... 101

1 1. Introdução ...... 101

2. Conceitos e teorias sobre o desenvolvimento: transição para as novas perspectivas de desenvolvimento...... 101

3. As perspectivas de desenvolvimento da década de setenta e o seu prolongamento até ao presente: do desenvolvimento (endógeno) local ao desenvolvimento solidário...... 108

4. Os actores sociais de desenvolvimento e suas dinâmicas ...... 126

5. A relação entre actores: interacção, interesses, conflitos e espaço de regulação ...... 128

6. Descentralização, desenvolvimento e democracia ...... 133

7. Conclusão ...... 143

CAPÍTULO III – A ORGANIZAÇÃO SÓCIO-ESPACIAL, OS MODOS DE VIDA E ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA NO ESPAÇO RURAL DA ILHA DE SANTO ANTÃO: LAGOA, RIBEIRÃO E CRUZINHA ...... 146

1. Introdução ...... 146

2. Justificação da escolha de Lagoa, Ribeirão e Cruzinha como unidades de análise ...... 149

3. Enquadramento espacial e sociocultural das unidades de análise: Lagoa, Ribeirão e Cruzinha...... 151

3.1 Lagoa ...... 151

3.2 Ribeirão ...... 156

3.3 Cruzinha ...... 158

4. Modos de vida, estratégias de sobrevivência e mecanismos de reprodução das famílias do meio rural ...... 161

4.1 Estratégias proeminentes de sobrevivência das famílias do meio rural ...... 163

4.1.1 Agricultura ...... 163

4.1.2 Pesca artesanal ...... 177

4.1.3 Criação de gado ...... 200

4.1.4 Empregos público e privado num espaço social em mudança ...... 206

4.2 Estratégias complementares de sobrevivência das famílias no meio rural...... 214

4.2.1 Poupança ...... 215

4.2.2 A solidariedade social e entreajuda ...... 220

2.2.2.1 Do crédito ...... 225

2 4.2.2.2 Das “ajudas” e doações ...... 230

4.2.2.3 Das pensões de reforma...... 232

4.2.3 Jobs, expediente e desenrasque ...... 235

4.2.4 Trabalho de base não contratual ...... 239

4.2.5 A remessa dos (e)migrantes e a opção pela (e)migração ...... 240

5. Conclusão ...... 248

CAPÍTULO IV – AS DINÂMICAS DOS ACTORES SOCIAIS NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO LOCAL EM SANTO ANTÃO: GESTÃO DE APOIOS À HABITAÇÃO SOCIAL, À MOBILIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA E À EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO ...... 251

1. Introdução ...... 251

2. Da gestão de apoios à habitação social ...... 252

2.1 O caso de Lagoa ...... 260

2.2 O caso de Ribeirão ...... 266

2.3 O caso de Cruzinha ...... 269

3. Da gestão de apoios à mobilização e distribuição de água ...... 276

3.1 O caso de Lagoa ...... 279

3.2 O caso de Ribeirão ...... 286

3.3 O caso de Cruzinha ...... 291

4. Da gestão de apoios à educação e formação ...... 293

4.1 O caso de Lagoa ...... 294

4.2 O caso de Ribeirão ...... 299

4.3 O Caso de Cruzinha...... 302

5. Outros domínios de intervenção dos actores sociais no processo de desenvolvimento local 308

6. Conclusão ...... 313

CAPÍTULO V – DIMENSÕES, SENTIDOS E VICISSITUDES DAS DINÂMICAS DE ACTORES SOCIAIS NO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO NO ESPAÇO SOCIAL RURAL SANTANTONENSE ...... 315

1. Introdução ...... 315

3 2. As dimensões da participação dos actores sociais endógenos no processo de desenvolvimento local ...... 316

2.1 A interdependência entre os actores e o redimensionamento do espaço político no meio rural ...... 326

2.2 Dos elementos analíticos da participação social das famílias e ADC ...... 332

3. As lógicas das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local ...... 334

3.1 As lógicas das dinâmicas das famílias ...... 336

3.2 As lógicas das dinâmicas das ADC e ONG: o associativismo como espaço de reprodução das condições de vida ...... 343

3.2.1 As contradições internas das lógicas das dinâmicas das ADC ...... 351

3.2.1.1 A gestão do “excedente” gerado pelo emprego público em Lagoa ...... 353

3.2.1.2 A gestão de água para a rega em Ribeirão ...... 358

3.2.1.3 A gestão da embarcação de pesca em Cruzinha ...... 363

3.3 As lógicas das dinâmicas dos Serviços Desconcentrados do Estado e das Câmaras Municipais ...... 366

4. Os conflitos e espaços de regulação de conflitos entre actores sociais no âmbito das suas dinâmicas...... 369

4.1 As dimensões económicas e sociais dos conflitos ...... 370

4.2 As dimensões políticas e ideológicas dos conflitos ...... 375

4.3 Espaços de regulação de conflitos no meio rural ...... 381

5. Conclusão ...... 384

CONCLUSÃO GERAL ...... 387

Bibliografia ...... 395

4 Introdução geral

No presente trabalho propõe-se realizar um estudo sobre as dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local em Cabo Verde, um assunto que, em nosso entender, integra os domínios da sociologia e antropologia do desenvolvimento, duas áreas do conhecimento das ciências sociais e humanas que desde algum tempo a esta parte vêm ganhando particular relevância, fruto dos contextos económicos, sociais e políticos, hegemónicos na sociedade contemporânea, designadamente a ocidental, cujos efeitos têm suscitado inúmeras abordagens. Contudo, no que à sociologia de desenvolvimento diz respeito, as abordagens proeminentes têm sido focalizadas numa visão sistémica cujo enfoque é colocado na multiplicidade das dimensões que enformam as dinâmicas dos actores sociais. A antropologia de desenvolvimento que se tem definido como [

l’étude empirique multidimensionnelle de groupes sociaux contemporains et de leurs interactions, dans une perspective diachronique, et combinant l’analyse des pratiques et celle des représentations (Olivier de Sardan, 1995: 10) ] concebe o desenvolvimento como um processo de mudança social que decorre de carácter específico do espaço social onde se operam as dinâmicas que o sustentam, sendo que este espaço social deve ser visto como resultado da combinação de múltiplos aspectos. Uma e outra assumem uma perspectiva de análise e de compreensão do desenvolvimento assente no princípio da multidimensionalidade, isto é, admite este fenómeno como resultado da interacção de um conjunto de factores pertencentes a múltiplos domínios que integram a relação social numa sociedade, qualquer que ela seja. E é com base nestas referências que propomos abordar o objecto da nossa investigação, enquadrado num contexto geográfico, histórico, económico, cultural e político específico de Cabo Verde. Trata-se de um país arquipelágico constituído por dez ilhas, situado a cerca de 500 quilómetros da costa ocidental africana, descoberta em 1460 pelos portugueses que o colonizaram até 5 de Julho de 1975, data de sua independência.

5 Nessa altura, Cabo Verde contava com cerca de 283.350 habitantes 1 e apresentava baixos indicadores socioeconómicos, resultado de uma economia bastante débil, devido a um conjunto de factores estruturais decorrentes de natureza geográfica, nomeadamente, a ausência de recursos naturais, insularidade e descontinuidade geográfica, reduzida e irregular pluviosidade e decorrentes também de um elevado índice da pobreza, de insuficiências alimentares, crescente pressão demográfica, etc. A independência ocorreu num cenário em que a economia do país, segundo Grassi (2003:108) estava:

ancorada na estrutura socioeconómica herdada do modelo colonial de desenvolvimento, a qual apresenta um profundo atraso. Na ausência de actividades produtivas do sector público, o sector privado era essencialmente formado pela agricultura, pesca e construção civil segundo moldes tradicionais e obsoletos, dominando uma lógica de subsistência bloqueadora de qualquer processo de acumulação consequente.

Um dos eixos traçados no primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (1982-1985) incidia precisamente na eliminação das sequelas de dominação e exploração coloniais assim como na dissipação de formas de conduta tidas como obstáculos ao progresso económico e cultural, assentes em medidas que pudessem contribuir rapidamente para a promoção da educação pela via de ensino técnico-profissional e ensino superior, promoção da identidade cultural; no reforço da consciência e da solidariedade nacionais e também na eliminação das relações de produção baseadas numa lógica de exploração do homem pelo homem através da modernização dos aparelhos produtivos e administrativos. Era, de igual modo, necessária a implementação de medidas de política que servissem de instrumentos de mobilização do povo à volta da reconstrução nacional; da participação das massas devidamente organizadas e enquadradas; a criação das estruturas necessárias ao estabelecimento de um sistema de planeamento económico e social; a edificação duma economia nacional independente e, por último, o desenvolvimento de relações de cooperação com outros estados e povos. Havia uma plena consciência, de certo modo, generalizada, que ainda havia quase tudo por fazer de forma a inverter o estado de desenvolvimento do país. As consequências que resultaram da lógica do colonialismo e sobretudo daquela que se desenvolveu no

1 Estimado pelo cálculo da média das populações residentes em 1970 e 1980.

6 país constituíam uma séria ameaça às intenções dos governantes e, nesse sentido, era preciso proceder-se à [

liquidação, no essencial das sequelas do colonialismo e criação de condições favoráveis de passagem à segunda etapa, caracterizada como a de desenvolvimento extensivo e de edificação da base económica de reequilíbrio 2 ] aliás, uma orientação, que segundo consta no documento em apreço, vem sendo seguida desde a independência, pois era preciso mitigar os desequilíbrios resultantes das acções implementadas no quadro do colonialismo e resultantes também das próprias condições físico-geográficas. Para isso era necessário apostar na criação de infra-estruturas e no desenvolvimento da base produtiva do país. A situação socioeconómica a que o país estava votado necessitava de uma intervenção de fundo no meio rural. Era então preciso promover uma política orientada para o desenvolvimento rural. Neste sentido, o primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento - PND (1982-1986) realçou a necessidade de praticar políticas que incidissem na promoção de

desenvolvimento equilibrado das culturas irrigadas e de sequeiro no âmbito de um reordenamento do conjunto do espaço rural; desenvolvimento de actividades de produção popular agrícolas ou não nas zonas rurais; lançamento das bases para melhor transformação, distribuição e comercialização dos produtos agrícolas; expansão da produção alimentar de regadio e de sequeiro no âmbito de uma séria estratégia alimentar que tenha por fim último a satisfação mínima das necessidades alimentares através de produtos nacionais; estudo dos mercados agrícolas de exportação e do mercado interno, assim como a política de preços e da comercialização 3.

No entanto, as estruturas agrárias existentes que, diga-se de passagem, emergiram das condições históricas da descoberta e povoamento das ilhas de Cabo Verde 4, não se coadunavam com os objectivos preconizados, razão pela qual se pensou implementar uma reforma agrária. Sobre as estruturas agrárias de então importa reter alguns elementos. Dos 403.300 hectares de terras existentes apenas 101.000 hectares eram cultivados. As restantes parcelas eram constituídas por afloramentos rochosos, lavas,

2 Secretaria de Estado da Cooperação e Planeamento (1983); Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento, Praia, p. 77 3 Ibidem, p. 14 4 Vide Carreira, António (1972), Correia e Silva, António (2001a), Furtado, Cláudio (1993), entre outros

7 solo urbano e uma extensa área de lito-solos inúteis que, quando muito, serviriam para fins silvopastoris (Silva, s/d: 11). Quase metade da área cultivada era explorada em regime indirecto, ou seja, em regime de parceria e arrendamento. A estes, acresce-se ainda o facto de, segundo Silva (s/d: 12), a maioria dos proprietários não investir ou investir muito pouco na agricultura, pese embora vivessem dos rendimentos provenientes dessa actividade. Na sequência disso, e tendo em perspectiva alargar a base produtiva nacional era necessário implementar uma reforma das estruturas agrárias entendida na época como

Um processo global de transformação da estrutura agrária do país que no quadro de desenvolvimento social e económico da nação visa aumentar a produção e a produtividade na agricultura, libertar os que trabalham a terra da dependência das relações socioeconómicas de exploração arcaicas e melhorar a sua situação económica e cultural (Silva, s/d: 36).

Dez anos após a independência, isto é em 1985, o índice de desenvolvimento humano 5 era de 0, 589, conforme os dados do Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas de 2007/2008. O segundo PND, elaborado para o quadriénio 1986-1990, é concebido assente na visão de que era absolutamente necessária uma viragem para um futuro de progresso, aliás, conforme terá proferido o então Primeiro-ministro de Cabo Verde no discurso de apresentação do Programa do Governo na III Legislatura 6 , na medida em que perspectivava-se um crescimento económico impulsionado não apenas pelas transferências externas mas também pelas dinâmicas criadas no próprio país. Assim, este plano considerou como principais orientações políticas: [

apoiar o processo de reforço da democracia como condições fundamentais do desenvolvimento; melhorar a eficácia da administração pública como forma a promoção da rapidez e eficácia assim como aperfeiçoamento da transparência do acto administrativo; valorizar os recursos humanos; desenvolver a produção, tendo por objectivo o aumento das exportações de bens e serviços e criação de emprego, apoiando-se em iniciativas privadas; manter o equilíbrio entre a justiça e o progresso; melhorar a gestão financeira,]

5 O IDH consiste, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, numa medida que sintetiza os diversos índices de desenvolvimento humano. Ou seja, mede os progressos registados, em média, num determinado país, em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: uma vida longa e saudável, medida através da esperança de vida à nascença; nível de conhecimentos, medido através da taxa de alfabetização de adultos (com ponderação de dois terços) e da taxa de escolarização bruta combinada do ensino básico, secundário e superior (com ponderação de um terço); um nível de vida digno, medido através do PIB per capita (PPC em USD). 6 Ministério do Plano e da Cooperação; II Plano Nacional de Desenvolvimento, I Vol. Praia, p. 89.

8 tendo em vista o reforço da dinâmica interna da produção; elevar o nível de satisfação das necessidades básicas da população; melhorar as infra-estruturas de base e controlar os grandes equilíbrios económicos 7. Comparando os dados estatísticos relativos aos indicadores demográficos, económicos, sociais, etc. do período imediatamente a seguir à independência nacional com aqueles que actualmente servem para caracterizar o país, pode-se admitir, sem qualquer tipo de hesitação e sem cair no vício de idealismos, que durante esse período o país conheceu um progresso substancial em múltiplos aspectos de desenvolvimento. Contudo, é preciso admitir também que nem todas as facetas do desenvolvimento foram tão positivas, pois o país continuava a enfrentar um vasto número de problemas. Tomemos, a título de exemplo a taxa da pobreza que, em 2007, era, segundo os dados do Questionário Unificado de Indicadores Básicos de Bem-estar (QUIBB) de cerca de 27%, dos quais cerca de 72% circunscreviam-se no meio rural. É importante frisar no entanto, que, não obstante esse cenário, durante as duas últimas décadas foram executados vários programas de intervenção no meio rural direccionados particularmente para o combate à pobreza e exclusão social e para corrigir as assimetrias regionais, alguns dos quais envolvendo avultados recursos. Referimo-nos concretamente ao Programa PL480 (Food For Peace Program) e o Programa Nacional de Luta contra a Pobreza que têm uma particular relevância na estrutura da abordagem das dinâmicas que visam a promoção de desenvolvimento local em Cabo Verde, com uma grande incidência no meio rural: O PL480 (Food For Peace Program) teve o seu arranque em 1992 e foi desenvolvido pela ONG Norte Americana, ACDI-VOCA (Agriculture Cooperative Development International/Volunteers Overseas Cooperative Assistance) em parceria com a Direcção Geral de Agricultura, Silvicultura Pecuária (DGASP) e no quadro do programa de cooperação entre os Estados Unidos da América e Cabo Verde, agenciado, da parte norte-americana, pela United States Aid (USAID). Orientava as suas acções para a promoção do desenvolvimento assente na participação da sociedade civil através de associações, cooperativas e instituições financeiras em vários países do mundo. O Programa Nacional de Luta Contra Pobreza é orientado pelos pressupostos da descentralização, participação, integração e sustentabilidade e resulta de uma visão

7 Ministério do Plano e da Cooperação; II Plano Nacional de Desenvolvimento, I Vol. Praia, pp. 90-91.

9 estratégica da promoção de desenvolvimento nos países pobres, traçados a partir Declaração e Programa de Acção aprovados na Cimeira para o Desenvolvimento Social (Compromisso V) realizada em Copenhaga, em 1995. Este programa orienta-se, de igual modo, pela necessidade de, entre outras, promover a integração dos pobres no processo de desenvolvimento socioeconómico dos seus países e reforçar a capacidade institucional de planificação, coordenação e seguimento das actividades que resultam do programa de luta contra a pobreza. No caso específico de Cabo Verde, o programa estabeleceu como população alvo as mulheres chefes de família pobres, pessoas desempregadas, particularmente os jovens, famílias que dependem em grande medida dos trabalhos públicos, vulgarmente designado por Frentes de Alta Intensidade de Mão-de-Obra (FAIMO) e pessoas que integram os designados grupos vulneráveis, designadamente os idosos, deficientes, doentes crónicos, etc. São principais financiadores a Associação Internacional para o Desenvolvimento (IDA), o Banco Africano para o Desenvolvimento (BAD), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA), a Cooperação Austríaca, a União Europeia e o próprio Governo de Cabo Verde. O programa encontra-se centrado em três projectos a saber: o Projecto de Desenvolvimento do Sector Social (PDSS), Projecto de Luta contra a Pobreza no Meio Rural (PLPR) e Projecto de Promoção Socioeconómica de Grupos Desfavorecidos (PSGD) 8. No caso específico do PLPR, concebido inicialmente para ser implementado em três fases, está, contudo, a preparar a quarta fase do programa que deve ser implementada entre 2012 e 2015 9. Além do mais, o PL480 e o PNLP, concebidos à luz de modelos de desenvolvimento definidos pelos doadores, são aqueles programas que melhor contribuíram para o crescimento e consolidação das Organizações da Sociedade Civil (OSC) em Cabo Verde particularmente as associações de desenvolvimento comunitário (ADC)10, que

8 Para mais detalhes sobre os subprogramas PLPR e PSGD, remetemos para o ponto 8 do capítulo seguinte. 9 A primeira fase do programa foi implementada entre 2000 e 2003, a segunda entre 2004 e 2007 e a terceira entre 2008 e 2012. 10 Este tipo de organização da sociedade civil, só em países lusófonos, incorpora múltiplas designações: associações comunitárias, associações de base, associações de base comunitária, associações comunitárias de base, associações de base local, associações de desenvolvimento comunitário, associações

10 importa já referir começaram a aparecer nos discursos políticos a partir da independência, particularmente com a publicação da Lei nº 78/III/87 sobre as associações. Hoje, segundo os dados da Plataforma das Organizações Não Governamentais, existem em Cabo Verde mais de 200 ONG e cerca de 600 outras organizações sob a forma de ADC (em muito maior escala), organizações socioprofissionais, redes, cooperativas, mutualidades, grupos culturais e recreativas, etc., sendo a larga maioria sedeada na ilha de Santiago 11. As dinâmicas das OSC particularmente desencadeadas pelas ADC estão voltadas para o desenvolvimento local. Concretamente, o desenvolvimento comunitário assenta-se fundamentalmente numa lógica de parceria com outros actores de desenvolvimento, designadamente o governo, as autarquias, as agências de desenvolvimento etc.

Modelo analítico: Questões de partida, conceitos e hipóteses São várias as teorias existentes nos domínios, quer da economia, quer da antropologia e da sociologia, que procuram definir as bases de compreensão da problemática do desenvolvimento em países africanos, designadamente os da África Subsaariana. Por agora vamos fazer referência a algumas apenas. O atraso dos países africanos é globalmente imputado a problemas estruturais, sendo alguns deles legados do colonialismo e neo-colonialismo e outros decorrem dos conflitos étnicos, da instabilidade política e da má governação. A esse respeito Sachs (2006: 450-461) refere, no entanto, que as razões imputadas ao atraso do continente africano reflectem, por vezes, um espantoso manancial de fortes preconceitos, designadamente a violência, as dificuldades em termos de garantia dos direitos de propriedade, a corrupção, o deficit democrático, ou mesmo a falta de valores modernos entendidos como aspectos que compõem a estrutura cultural de um povo que obstaculizam o empreendedorismo e consequentemente o desenvolvimento económico, como o individualismo, a racionalidade, etc. comunitárias de desenvolvimento, associações de desenvolvimento local, etc. Para este trabalho preferimos designá-las por Associações de Desenvolvimento Comunitário (ADC), primeiro porque a maior parte das associações locais existentes em Santo Antão define como um dos domínios específicos de intervenção o desenvolvimento comunitário por um lado e por outro lado define como área geográfica de actuação uma comunidade ou quando muito uma localidade específica e segundo porque são estas as características de associações que integram os actores sociais que determinam o público-alvo neste estudo. 11 Vide Guia das ONG de Cabo Verde, editada pela Plataforma das ONG de Cabo Verde em 2007.

11 Existe, de igual modo, uma vasta literatura abrangendo múltiplas perspectivas de análise das condições de desenvolvimento existentes nos mais diferentes países africanos. Especificamente em relação aos problemas que condicionam os dinamismos em torno do processo de desenvolvimento local em Cabo Verde, também pode-se dizer que existem certamente várias vias que podem fornecer uma perspectiva para a sua análise e compreensão. Para este trabalho consideramos que os contornos das dinâmicas desencadeadas pelos actores sociais no contexto das políticas de desenvolvimento local ou rural poderiam ser um campo de análise interessante de explorar, tendo em vista compreender melhor o alcance das teorias de desenvolvimento num contexto histórico, económico, social, cultural e político específico de um país periférico. E por isso partimos do seguinte questionamento central. Como se caracterizam as dinâmicas de actores sociais no processo de desenvolvimento local em Cabo Verde e em que medida as características específicas dessas dinâmicas contribuem para a transformação social do espaço social rural? Na sequência deste questionamento surgiram algumas outras questões designadamente: Qual é o papel das famílias e das associações de desenvolvimento comunitário (ADC) na indução das dinâmicas de desenvolvimento nas suas comunidades? Como é que se definem as lógicas das dinâmicas dos vários actores sociais no processo de desenvolvimento local e os espaços de interacção entre eles? Quais são as dimensões dos conflitos resultantes da lógica das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local e como é que se definem os espaços de regulação de conflitos entre os actores? Os modelos de desenvolvimento local implementados a partir da década de setenta a esta parte não se revelam de todo eficazes para o cumprimento do desiderato último de um processo de desenvolvimento e que constaram das suas formulações, isto é promover, a satisfação das principais necessidades de todos e a extensão a todos da oportunidade para satisfazer as suas aspirações a uma vida melhor (WCED, 1987: 44), ou ainda promover

o desenvolvimento integral dos recursos naturais e aptidões humanas da região, inicialmente, para a satisfação em igual medida das necessidades básicas de todos os estratos quer da população nacional quer regional, e subsequentemente para o

12 desenvolvimento de objectivos situados além destes. Muitos dos Basic needs services estão organizados territorialmente e manifestam-se muito intensamente ao nível de grupos de pequena escala e comunidades locais ou regionais (Stöhr, e Taylor, s/d: 39).

No entanto, para muitos autores estes modelos, pelo menos nesta perspectiva, fracassaram. Yves Sainsine (2007) refere que vários autores desenvolveram trabalhos centrados na análise dos modelos em questão, dando conta dos efeitos negativos do fenómeno de globalização, no qual se encontram ancorados. Segundo este autor,

Certains mettent l’accent sur l’aggravation des inégalités sociales, économiques et politiques ; d’autres parlent de la provocation des ruptures sociales et politiques ainsi que des disjonctions et des fragmentations dans le développement ; d’autres enfin insistent sur l’émergence de l’hégémonie du marché au détriment du processus démocratique (Sainsine, 2007:16).

De igual modo, Stuart Hall (2003), Samuel P. Huntington (1996) e Jean-François Lyotard (2002), de entre muitos outros, apresentam um ponto de vista crítico em relação aos vários modelos de desenvolvimento que emergiram, sobretudo, a partir da década de setenta e que ainda hoje hegemonizam os discursos e práticas das economias centrais. Ora, perante um facto que parece ganhar cada vez mais maior consenso nas abordagens que vêem dominando actualmente as ciências sociais e políticas, fundado nas limitações dos modelos teóricos para a compreensão das dimensões, sentidos e vicissitudes que enformam um processo de desenvolvimento local, particularmente nas economias periféricas, emerge naturalmente uma questão que a priori se apresenta de extrema complexidade. Qual deve ser a natureza de um modelo teórico que melhor se adequa à compreensão das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local? Desta forma, e ainda que com carácter provisório e de forma breve, tomamos aqui por desenvolvimento local, um processo que integra um vasto conjunto de acções e práticas centrado numa unidade territorial específica, que se apresenta como um espaço social e simbólico, que combinam as esferas produtivas e sociais numa lógica centrada na pessoa em detrimento da lógica do homo economicus (Pecqueur: 2000) visando, desta maneira, melhorar as condições objectivas de vida das populações locais, a partir das suas próprias percepções, num ambiente de liberdade e de democracia e onde, segundo Bara Guèye (2005), as relações de força entre os níveis diferenciados do poder político desempenham um papel importante na decisão do Estado.

13 Por actores sociais, indo um pouco na linha de Alain Touraine (1992) e Crozier e Friedberg (1977), devemos entender um conjunto heterogéneo e multifacetado de indivíduos, grupos de indivíduos ou instituições, de carácter público ou privado, civil ou político, que actuam num campo de interesses diferenciados, e onde as acções assumem simultaneamente dimensões de conflito e de cooperação. Por conseguinte, as dinâmicas dos actores sociais devem ser entendidas como acções ou práticas racionais, portanto, que decorrem de uma estratégia calculada orientadas para a transformação ou reprodução de uma certa ordem dominante. Nesta perspectiva retemos como linhas de orientação teórica e analítica duas dimensões fundamentais: Uma primeira dimensão baseia-se na ideia, segundo a qual, um processo de desenvolvimento focaliza as suas estratégias no território e nas suas potencialidades endógenas (Amaro, 1991), (Pecqueur, 2000) e se orienta da base para o topo (bottom- up), ou seja, protagonizado pelos actores endógenos. Integra esta dimensão a ideia de um processo de “desenvolvimento territorial, participativo e negociado” para realçar a importância deste aspecto na eficácia das dinâmicas de desenvolvimento, e daí também assinalar a ênfase que é colocada na satisfação das necessidades e de melhoria das condições de vida das populações locais como um desiderato a prosseguir, a partir das capacidades das populações locais (Friedmann, 1996). Esta dimensão integra ainda a ideia de que a eficácia de um processo de desenvolvimento local depende do sistema de informação, da capacidade de controlo do mercado, bem como as forças de regulação social que actuam no exterior do mercado, harmonização entre as diferentes instituições, a economia local e factores exógenos que se conseguir implantar (Benko e Lipietz, 1994). De igual modo, assumimos para a análise das dinâmicas dos actores sociais, a ideia de que, conforme defende Amarthya Sen (2000), a riqueza de uma dada unidade territorial reside no acesso das populações aos bens e serviços essenciais como a alimentação, habitação, água potável, educação, saneamento, saúde, etc. Para isso, interessa recorrer à ideia de reapropriação democrática da economia como uma actividade social, onde o Estado deve assumir o papel de promover uma solidariedade baseada em eixos fundamentais da vida das populações e a articulação entre o público e o privado (Laville, 2005). É nesta linha que Paul Singer defende a ideia de economia social que outros preferem designar economia solidária.

14 A segunda dimensão é integrada pelos aspectos que sustentam as teorias de interacção social, particularmente aquelas que partem da ideia de que os actores actuam num campo dominado pelo jogo de interesses, por vezes divergentes, e, consequentemente, susceptíveis de conflito, e daí o conceito de sistema de acção concreta de Crozier e Friedberg (1977). A apropriação destas duas dimensões de análise é fundada na premissa de que o desenvolvimento é antes de mais,

ensemble des processus sociaux induits par des opérations volontaristes de transformation d’un milieu social, entreprises par le biais d’institutions ou d’acteurs extérieurs à ce milieu mais cherchant à mobiliser ce milieu, et reposant sur une tentative de greffe de ressources et/ou techniques et/ou savoirs (Olivier de Sardan: 1995 :7).

Ora, com base neste quadro teórico e analítico vamos adoptar como um dos pressupostos centrais para a condução deste estudo a ideia segundo a qual as dinâmicas dos actores sociais, particularmente aquelas orientadas explicitamente pelo objectivo de promover o desenvolvimento local têm dado grande impulso à transformação do espaço social rural cabo-verdiano. Tal transformação deve-se em grande medida às estratégias que os actores sociais endógenos imprimem como mecanismo de reprodução das suas condições de (sobre) vivência. Assente nesse pressuposto central consideramos outros quatro pressupostos que passaremos a enunciar: 1. As famílias, isoladamente e integradas nas organizações de desenvolvimento comunitário das respectivas comunidades, além de se assumirem elas próprias, como um dos principais responsáveis pela indução das dinâmicas desencadeadas por outros actores sociais, representam-se também como coluna vertebral dessas dinâmicas. 2. As dinâmicas dos actores sociais de desenvolvimento local ocorrem num vasto campo de interesses diferenciados e, por vezes, antagónicos e as dimensões e sentidos a elas inerentes dependem da posição que cada actor social ocupa na estrutura de acção e interacção social do campo onde se encontra inserido. Neste sentido, os espaços de interacção são definidos tendo por base o reconhecimento mútuo dos interesses de cada actor social e a possibilidade da sua potenciação por via da convergência de expectativas.

15 3. Os interesses que alimentam as dinâmicas dos actores sociais locais no processo de desenvolvimento local geram modalidades específicas de conflitos sociais que se desenvolvem a partir de diferentes campos, designadamente político, económico e sociocultural. O campo político decorre da possibilidade de, a partir de acções concretas voltadas para a resolução dos problemas dos cidadãos, mobilizar reconhecimento, respeito e simpatia com vista a capitalização de preferências em contextos eleitorais. Este campo emerge ainda da preferência por uma posição de destaque em níveis diferenciados de poder, que vai desde a liderança de uma organização da sociedade civil, designadamente ADC e ONG, a um lugar no aparelho administrativo do Estado e que está directamente ligado aos resultados alcançados na “luta” que se trava na esfera política. O campo económico tem a ver, basicamente, com a possibilidade de mobilizar recursos financeiros ou materiais provenientes do emprego público ou de outras formas que garantam condições normais de vida. O campo sociocultural resulta das posições que as pessoas assumem em função das expectativas que criam em relação à posição que um familiar, um vizinho ou um amigo poderá ocupar num campo político específico, motivado por causas materiais, designadamente os rendimentos, poder económico, o prestígio social, etc. 4. O campo de regulação de conflitos entre actores reside no reconhecimento mútuo, porém informal, dos interesses específicos de cada uma das partes envolvidas no processo. Nesse quadro, a produção de consenso entre actores sociais é claramente uma estratégia visando reduzir as incertezas em relação aos mecanismos de reprodução das suas posições sociais, ou seja, uma estratégia ancorada numa acção (in) visivelmente concertada.

Objectivos Este estudo foi conduzido com o objectivo de definir, analisar e compreender a trajectória, isto é, as dimensões, os sentidos e as vicissitudes das dinâmicas de actores sociais no processo de desenvolvimento local em Cabo Verde, bem como a lógica de interacção entre os actores nesse processo, no período após à instituição do regime democrático em Cabo Verde, ou seja, a partir do ano de 1991 e a sua relação com as mudanças sociais que vêm ocorrendo nos espaços sociais do meio rural.

16 Como objectivos específicos propusemos analisar os papéis dos actores sociais no processo de desenvolvimento local num contexto de interesses similares e diferenciados; examinar o sentido da indução das iniciativas de desenvolvimento local; compreender as dimensões e a lógica das orientações das múltiplas estratégias de desenvolvimento dos diferentes actores sociais; perceber as lógicas que integram as estratégias dos actores sociais face aos poderes públicos; observar os diferentes campos de interesses dos actores sociais e os conflitos que eventualmente possam daí decorrer; avaliar o grau de complementaridade ou de diversidade das acções desencadeadas pelos actores sociais, e; analisar os espaços de interacção entre os actores locais e compreender a forma como se definem os espaços de regulação de conflitos entre os actores.

Procedimentos metodológicos A presente investigação incide, como anteriormente foi dito, na tentativa de definir, analisar e compreender os múltiplos aspectos das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local em Cabo Verde a partir da abertura política em 1991, centrando-se nas suas dimensões e sentidos bem como nas vicissitudes que delas resultam. Assim, refira-se que as dinâmicas dos actores sociais de desenvolvimento, embora possam assumir características específicas que resultam de particularidades estruturais de uma unidade geográfica determinada, elas enquadram-se num sistema de estratégias e políticas previamente concebido tendo em conta uma realidade muito mais vasta. Nesta ordem de ideia, a sua compreensão passa pela percepção das orientações estratégicas globais de desenvolvimento traçadas pelos governos, a partir dessa data. Apesar de termos tomado explicitamente 1991 como ponto de partida achamos que o cumprimento dos objectivos aqui propostos passa necessariamente pela análise das políticas de desenvolvimento desencadeadas no país a partir da independência nacional, mais concretamente a partir 1982, ano que se inicia a vigência do Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento. Por de trás dessa opção está a ideia segundo a qual o acontecimento político do ano de 1991, pese embora tivesse dado origem a modelos e ideais que representam uma acentuada transformação na estrutura da sociedade cabo- verdiana, em termos de orientações estratégicas e metodológicas do desenvolvimento local e regional, esse marco não representaria, neste campo específico de abordagem,

17 mais que uma continuidade alimentada pelas contingências que decorreram das transformações, designadamente do campo político nacional. Quando falamos de dinâmicas de actores sociais no processo de desenvolvimento local referimos a um conjunto de acções e intervenções concretas encetadas tendo como fim último o progresso e as mudanças sociais, fazendo uma analogia ao conceito de dinâmica social de Auguste Comte. É claro que não pretendemos discutir, neste momento, o conceito de dinâmicas dos actores sociais em torno do desenvolvimento local. Por ora pretendemos apenas relevar a ideia de que as acções e intervenções dos actores sociais se inscrevem em domínios da vida social demasiadamente vastos, para serem operacionalizáveis num estudo enformado pelos condicionalismos específicos de uma tese de doutoramento. Assim sendo, de um conjunto vasto de dinâmicas que integram a participação dos actores sociais no processo de desenvolvimento local vamos privilegiar, fundamentalmente, três eixos: (i) gestão da promoção de habitação social; (ii) mobilização/abastecimento de água e (iii) gestão de apoios à educação e formação profissional. No fundo, constituem como um álibi para se poder chegar à profundeza da trajectória das intervenções dos actores sociais. Para o presente estudo privilegiamos o método qualitativo, como de resto se impunha, tendo em conta, por um lado, a natureza do seu objecto e, por outro, os objectivos traçados. Para além disso, a problemática em estudo apresenta-se como um conjunto de configurações e de representações, cujos sentidos variam, respectivamente, de acordo com as condições preexistentes derivadas de códigos sociais e políticos predominantes e os sistemas de valores dos actores sociais e políticos. A opção pelo método qualitativo justifica-se, de igual modo, tendo em conta a riqueza das informações que lhe é subjacente, aliada a numerosas possibilidades que oferece em matéria de aplicação (Faure, 1982: 375). Trata-se de um estudo essencialmente descritivo, compreensivo e explicativo de uma realidade concreta que ocorre em contextos político, económico, social e cultural específicos, suportados, do ponto de vista epistemológico, na dialéctica de desconstrução e construção que integra os pensamentos de Alain Touraine, Anthony Guiddens, Pierre Bourdieu, etc. e que se assenta numa perspectiva crítica aos discursos dominantes e desmontagem da realidade politicamente construída e reconstrução de uma nova realidade empiricamente verificada, de acordo com aquilo que Alain Touraine

18 propõe como tarefa da sociologia, isto é, a de compreender os novos actores e os seus conflitos em vez de procurar as leis da vida social (Touraine, 1996 : 47) O presente trabalho consiste, do ponto de vista metodológico, num estudo de caso e incide sobre a ilha de Santo Antão. Nesta óptica procuramos aproximar o máximo possível daquilo a que Boaventura Sousa Santos designa por método de caso alargado. Segundo ele, este método se opõe à generalização positivista, pela quantidade e pela uniformização, a generalização pela qualidade e pela exemplaridade. Trata-se de um método que, a partir da escolha de um caso (ou um número limitado de casos), procura incidir a análise dos vectores estruturais – enquadrados na prática social – de maior relevância. Além do mais, segundo o autor, este método

em vez de reduzir os casos às variáveis que os normalizam e tornam mecanicamente semelhantes, procura analisar, com o máximo de detalhe descritivo, a complexidade do caso, com vista a captar o que há nele de diferente ou mesmo de único.

E nesta óptica, citando ainda o mesmo autor, a riqueza deste método:

não está no que há nele de generalizável, mas na amplitude das incidências estruturais que nele se denunciam pela multiplicidade e profundidade das interacções que o constituem [...] o método de caso alargado propõe o salto da imaginação sociológica entre o mais detalhado e minucioso e o mais geral e indeterminado (Santos, 1983: 11-12).

As informações foram recolhidas, por um lado, utilizando técnicas documentais (Almeida e Pinto, 1995: 104); através da pesquisa bibliográfica cujas principais fontes foram os arquivos públicos e documentos oficiais e, por outro, através da utilização de técnicas não documentais, através de observação directa, realização de entrevistas dirigidas ao público-alvo designado, nesse estudo, por actores sociais de desenvolvimento. Para cada unidade de análise escolhemos um (no caso de Lagoa e Ribeirão) ou dois (no caso de Cruzinha) informantes chave. A observação directa foi aplicada com base num plano que integrou visitas às localidades para estabelecer contactos com pessoas ligadas aos projectos de desenvolvimento comunitário e com os responsáveis locais de forma a recolher informações complementares. As entrevistas aplicadas foram do tipo semi-directivo. A opção pela escolha deste tipo de entrevista deveu-se ao pressuposto de que,

19 o entrevistador conhece todos os temas sobre os quais tem de obter reacções por parte do inquirido, mas a ordem e a forma como os irá introduzir são deixadas ao seu critério, sendo apenas fixada uma orientação para o início da entrevista (Ghiglione e Matlon, 1997: 64).

É o tipo de entrevistas comparado à interacção, ou mesmo à conversação invisível referenciado por Olivier de Sardan (S/D), também conhecido por etnográfica, assente em questões descritivas e estruturais (Flick, 2005: 93). Entendemos por actores sociais todos aqueles que actuam, individual ou colectivamente, num dado espaço social, territorial e simbólico, de dimensão local ou regional (ilha), cujos resultados contribuem directa ou indirectamente no processo de transformação e de reprodução de mecanismos de melhoria das condições existenciais dos sujeitos que interagem nesse espaço. A discussão sobre este assunto será retomada mais adiante de forma mais exaustiva. Para o caso desta investigação integram o conceito de actores sociais: famílias, emigrantes, ADC, ONG, agências de desenvolvimento local, organizações religiosas, empresas e cooperativas de consumo, autarquias e serviços desconcentrados do Estado. Tendo em conta a diversidade, mas sobretudo a heterogeneidade dos actores, os guiões das entrevistas foram elaborados de acordo com a especificidade de cada um, em termos de domínios de intervenção e níveis de poder para que se pudesse recolher as informações com maior profundidade e diversidade possíveis. As técnicas de tratamento das informações recolhidas assentaram-se, sobretudo, nas orientações teóricas da análise de conteúdo, um procedimento visto como:

conjunto de técnicas de comunicação visando obter, por procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição das mensagens, indicadores quantitativos ou não que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/percepção destas mensagens (Birdin, 1997: 27).

Assim sendo, na medida em que se trata de um estudo qualitativo, colocamos de parte a preocupação com a representatividade, quer em termos da classificação de actores locais, quer em termos da divisão territorial da ilha. As informações foram recolhidas tendo por base apenas a diversidade, pertinência e profundidade que lhes enformam. Em termos da técnica da pesquisa, os procedimentos se resumiram na revisão da literatura especializada existente e disponível, de âmbito nacional e internacional; colecta e análise de dados secundários sobre os principais campos de investigação:

20 desenvolvimento local, descentralização, dinâmicas de actores sociais locais, participação e cidadania, jogos de interesses e conflitos, gestão e regulação de conflitos. Antes da selecção das unidades de análise e consequentemente a recolha de informações no terreno, fizemos uma primeira missão a Santo Antão, que decorreu entre 24 de Agosto a 14 de Setembro de 2009. Essa missão tinha por objectivo proceder-se ao reconhecimento físico da ilha e recolher informações preliminares para a definição de critérios de selecção das localidades onde a investigação iria incidir-se de forma mais aprofundadamente. Os primeiros dias da missão foram passados no concelho da , mais concretamente na vila da Ribeira Grande. Era necessário proceder-se aos primeiros contactos com algumas pessoas que pudessem dar algumas orientações. O grosso dos serviços desconcentrados do Estado que pareciam mais relacionados com o assunto central da nossa investigação tem a sede regional na Vila da Ribeira Grande, nomeadamente, a Delegação do Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos, a Comissão Regional de Parceiros (CRP) do Programa de Luta contra a Pobreza que coordena localmente todas as acções enquadradas nesse programa, etc. Estabelecemos os primeiros contactos com o coordenador da CRP. Falou-nos de iniciativas das várias Associações de Desenvolvimento Comunitário de Base e informou-nos também sobre as principais ONG que actuam na ilha, designadamente as que trabalham mais directamente com as associações. Uma grande parte das actividades que se desenvolve no quadro das iniciativas locais de desenvolvimento é protagonizada pelas ADC através de contratos-programa que assinam com as ONG, como por exemplo, a Organização das Associações de Desenvolvimento Integrado de Santo Antão (OADISA) que se apresenta como uma organização “chapéu” 12 das associações de desenvolvimento comunitário e outras associações corporativas de Santo Antão, a Comissão Regional de Parceiros, as Autarquias locais, os Serviços Desconcentrados do Estado, etc. Dos encontros tidos com o coordenador da Comissão Regional de Parceiros pudemos elaborar uma pequena lista de localidades onde as iniciativas dos actores sociais, através de dinâmicas que encetam, têm dado um contributo importante na melhoria das

12 Funciona como plataforma das ADC em Santo Antão.

21 condições de vida das populações, assim como algumas outras, cujas condições de vida das populações continuam ainda bastante deficitárias. De um lado temos as localidades de Chã das Furnas e Ribeirão no Concelho de Ribeira Grande, Lajedos, Casa de Meio e Ribeira dos Bodes no Concelho de Porto Novo, Passagem no Concelho de Paul, Lagoa que integra os Concelhos de Ribeira Grande e de Porto Novo e de outro temos Pontinha de Janela no Concelho de Paul e Berlim no Concelho de Porto Novo. Posteriormente estabelecemos contacto com a Delegação do Ministério de Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos que, pela sua natureza, desenvolve directa ou indirectamente (através das Associações Comunitárias de Base) acções que visam melhorar as condições existenciais das populações do meio rural. Desse contacto pudemos obter informações sobre o que se tem feito no quadro do Programa de Desenvolvimento de Agricultura em Santo Antão visando o desenvolvimento do sector e indirectamente desenvolver novas perspectivas dos agricultores em relação ao futuro. Nos dez dias em que permanecemos no concelho de Ribeira Grande aproveitamos ainda para fazer levantamento dos serviços desconcentrados do Estado radicados no concelho bem como outros actores designadamente ONG, operadores económicos, etc. Na segunda fase da nossa missão deslocamos ao concelho de Paul, onde permanecemos apenas um dia, durante o qual visitamos a Vila das Pombas, sede do concelho, para fazer levantamento das instituições ali existentes e deslocamos à localidade de Passagem para verificar as dinâmicas de desenvolvimento existentes. Na última fase da missão permanecemos no concelho do Porto Novo. Visitámos a localidade de Lajedos para constatar in loco o projecto que vem sendo desenvolvido na comunidade impulsionado sobretudo por uma Organização não-governamental, o Atelier Mar, e a localidade da Ribeira das Patas. Visitamos ainda algumas localidades como Pinhão, , Garça, Chã de Igreja e Cruzinha estabelecendo contactos com as populações e líderes associativos locais de forma a verificar se os eixos de análise que privilegiamos inicialmente eram os que suscitam as maiores dinâmicas dos actores locais, mas sobretudo se se encontram internalizadas por esse tipo de actores. No término dessa missão tiramos duas conclusões: primeiro, ficámos cientes de que, afinal, conhecíamos muito pouco sobre a ilha e, segundo, a investigação é uma operação que exige muita paciência, que dispamos de todos os pseudo conhecimentos, que

22 produzamos os nossos próprios conhecimentos em matéria de estratégia de pesquisa. Os manuais são apenas linhas que devem orientar a nossa reflexão sobre como devemos actuar para podermos conseguir atingir os nossos objectivos. A segunda missão decorreu de 29 de Novembro a 3 de Dezembro de 2009 e serviu basicamente para, em primeiro lugar, fixarmos as três localidades onde incidiríamos a nossa pesquisa de forma mais sistemática assim como os três eixos privilegiados de análise e, em segundo lugar, para prepararmos as condições para a missão seguinte que seria de recolha de dados propriamente dita e que decorreu entre 26 de Dezembro de 2009 e 9 de Janeiro de 2010. O processo de recolha de dados abrangeu duas dimensões: entrevistas e observação directa, como de resto fizemos referência. Ora, tendo em conta a heterogeneidade do público-alvo considerado para a presente investigação, dividimo-lo em três níveis: colocamos no primeiro nível as famílias e os emigrantes. Neste nível é preciso distinguir as pessoas que integram uma associação comunitária de base local das que não a integram. No segundo nível, consideramos as ADC, ONG e todas as outras categorias das organizações da sociedade civil. No terceiro nível, integramos os representantes das autarquias locais e serviços desconcentrados do Estado. Por uma questão de estratégia, por conseguinte como forma de sentirmos “legitimados” para conversarmos com as pessoas na comunidade sem grandes constrangimentos, contactamos, em primeiro lugar, os líderes associativos locais, aos quais explicamos pormenorizadamente e de forma mais clara possível os propósitos da nossa visita, seguido de uma entrevista não totalmente centrada nos objectivos da investigação. Essa entrevista visava essencialmente estabelecer uma relação de trabalho que, a pouco e pouco, se transformou numa relação de confiança e de amizade. As entrevistas, seguindo os meandros da investigação propriamente dita, estavam programadas para missões posteriores. Na aldeia de Lagoa iniciamos o trabalho contactando o Presidente da Associação Luz Viva de Lagoa e Compainha (ALVLC) e logo de seguida o Presidente da Associação Recreativa Mãos Unidas de Compainha/Lagoinha (ARMUC). Em Ribeirão, contamos logo de início com o envolvimento do actual e ex líderes da Associação dos Amigos de Ribeirão/Campo de Cão (Ami-Ribeirão). Na primeira visita que efectuámos à Cruzinha também contámos na primeira hora com o envolvimento do Presidente da Associação Comunitária Nova Esperança Marítima de Cruzinha (ACNEMC).

23 Essa nossa atitude veio demonstrar-se crucial para os resultados alcançados no fim de cada missão, pois em qualquer das aldeias onde decorreu a nossa investigação, os líderes associativos demonstraram ter uma forte capacidade de influência. Os pormenores relativos à atitude que adoptamos no terreno parecem, à primeira vista, vulgares e, consequentemente, de pouca relevância científica mas constituem procedimentos metodológicos que não podem ser negligenciados na recolha de dados através da observação directa. Antes pelo contrário, deve ser valorizado na medida em que pode condicionar todo o processo da produção de dados. A observação directa foi pensada e executada sobretudo para captar com maior profundidade possível elementos que integram o quotidiano das famílias e sua relação com o processo de desenvolvimento local. Na missão de 26 de Dezembro de 2009 a 9 de Janeiro de 2010 entrámos no terreno pela localidade de Lagoa. Ficámos instalados numa habitação no bairro social, providenciada pelo Presidente da ALVLC. A ideia inicial era começar com as entrevistas logo no dia seguinte. Contudo, a população local estava ainda em festa do Natal pelo que conseguimos fazer apenas uma única entrevista. Desta forma, aproveitamos o dia para percorrermos a localidade acompanhado de um residente tendo em vista dois objectivos essenciais: falar com as pessoas e explicar as razões da nossa permanência na localidade e, ao mesmo tempo, estabelecer uma agenda de entrevistas a ser cumprida a partir do dia seguinte, portanto, segunda-feira, 28 de Dezembro. Permanecemos na localidade de Lagoa até ao dia 2 de Janeiro de 2010. Uma das preocupações que levámos era procurar fazer o maior número possível de entrevistas. As entrevistas deviam ter em consideração além da questão de género, a faixa etária da população. Contudo, esse objectivo não foi de todo alcançado, tendo em conta que se tratava de uma primeira incursão à localidade, com a agravante de se tratar de uma localidade do meio rural, em que as pessoas são muito reservadas em relação aos visitantes. Essas situações acabaram por inibir as nossas iniciativas em contactar as senhoras, designadamente as mais jovens. Sendo a primeira incursão era preciso eliminar todos os riscos de uma interpretação destorcida sobre os propósitos da nossa presença na comunidade. Realizámos ao todo 17 entrevistas, de entre as quais apenas quatro foram dirigidas a indivíduos do sexo feminino e, de entre elas, apenas uma tinha idade inferior a 35 anos.

24 A missão à localidade de Ribeirão ocorreu de 2 a 9 de Janeiro de 2010. Ficámos instalados em casa dos pais de um ex-presidente da Associação Comunitária local. Durante a nossa permanência foi-nos possível realizar 12 entrevistas. Dos entrevistados constam 3 indivíduos do sexo feminino e 9 do sexo masculino. A média de idade ronda os 42 anos. A quarta missão realizou-se entre 26 de Fevereiro e 13 de Março de 2010 e destinou-se à localidade de Cruzinha. Porém, pernoitamos uma vez em cada uma das outras unidades de análise com objectivo de consolidar a nossa ligação às comunidades. De salientar que em Cruzinha, ao contrário do que se verificou nas outras duas localidades, não houve o problema de entrevistar as senhoras. Sem querer encontrar uma explicação para este facto importa, contudo, dizer que se trata de uma localidade piscatória, cujos modos de vida são diferentes dos das outras localidades e que, além do mais, o povoamento é mais concentrado. A quinta missão realizou-se entre 5 a 17 de Junho de 2010. O objectivo era estreitar os laços com as comunidades e, ao mesmo tempo, rever os dados anteriormente recolhidos, observar novos cenários em épocas e contextos diferentes. Ao fim dessa missão havíamos realizado um total de 79 entrevistas, sendo 60 delas dirigidas às famílias, 6 a presidentes das ADC, 6 a representantes das ONG, 1 a representante de uma rede de associações da região norte (RASSOL), 4 a representantes dos serviços desconcentrados do Estado, 2 a presidentes de Câmaras Municipais. Por localidades, das 60 entrevistas dirigidas às famílias, 26 foram efectuadas em Cruzinha, 17 em Lagoa e 17 em Ribeirão. Por género, entrevistámos 14 senhoras e 46 homens. Em termos da faixa etária, foram entrevistadas 17 pessoas com idade compreendida entre 20 e 35 anos e 6 tinham idade superior a 60 anos, sendo 2 delas tinham mais de 78 anos. Nota-se um nítido enviesamento em relação ao peso dos jovens e das mulheres no conjunto das entrevistas efectuadas. Sobre isso convém sublinhar três considerações metodológicas que nos parecem importantes: A primeira consideração tem a ver com o facto de as famílias entrevistadas terem sido escolhidas de forma aleatória mas cumprindo alguns critérios-chave previamente definidos, como a condição de integrar ou não uma organização civil local, ser ou não beneficiária directa de algumas dinâmicas de desenvolvimento local implementadas nas respectivas comunidades.

25 Mesmo sem estabelecer com rigor os parâmetros da estratificação do nosso público- alvo, procurámos ter sempre em consideração a sua representatividade em função do grupo etário e do sexo. A segunda consideração tem a ver com facto de, no final do processo de aplicação das entrevistas, ter emergido uma situação de distorção em termos da representatividade do grupo-alvo não negligenciável. Isto é, as percentagens dos jovens e mulheres são nitidamente inferiores às percentagens dos adultos e homens. E, por fim, a terceira consideração, para dizer que, se é certo que a questão da representatividade não era para nós um aspecto epistemológico e metodológico fundamental para definirmos os procedimentos da nossa pesquisa, na medida em que privilegiámos a profundidade das questões, não é menos verdade que essa distorção nos tenha surpreendido. Daí parecer-nos ter surgido uma questão que deve merecer uma reflexão e que tem a ver com a hipótese de que é a própria natureza, ou os enjeux das dinâmicas de desenvolvimento local que ocultam determinados actores como jovens e mulheres. Se essa hipótese tem alguma razão de ser, como parece que tem, então surge naturalmente uma questão sobre como é que se pode explicar o fenómeno de ocultação dos actores no processo de desenvolvimento local no meio rural cabo-verdiano, uma questão que poderá ser respondida oportunamente. A sexta e última missão de recolha de dados realizou-se de 2 de Agosto a 4 de Setembro de 2010. Ela foi programada tendo como propósitos de fundo, refinar alguns dados anteriormente recolhidos e complementar outros; fazer algumas entrevistas, designadamente a actores sociais que integram o terceiro nível da população alvo da pesquisa e que não tinha sido possível fazer anteriormente e, por último, corrigir a sub- representatividade dos jovens e das mulheres na estrutura do nosso público-alvo. O processo da realização desta tese colocou-nos sistematicamente em prova quanto a técnicas de ruptura com as pré-noções resultantes das nossas vivências. Era preciso fazer exercícios constantes de separar a investigação das nossas convicções políticas, como era também preciso minimizar os riscos de os nossos interlocutores nos associarem a priori a formas de pensar e de agir estandardizadas que, caso acontecesse, os levaria a fazer o uso das suas pré-noções para interagirem connosco e, consequentemente, desvirtuaria o processo de investigação. Isso porque, importa dizê-lo, quando iniciamos o processo de doutoramento de que resulta a realização desta tese havíamos sido eleitos vereador da Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago. Para além disso, éramos membro da Comissão Politica Nacional do Movimento para a

26 Democracia (MpD) que representava na altura o principal partido da oposição na estrutura política nacional. Algumas vezes, fomos porta-voz do partido, uma função exercida também durante a campanha eleitoral para as eleições autárquicas de 2008 e após termos sido eleitos. Durante esse período, até ao início da segunda metade de 2008, éramos conhecidos como alguém que pertencia aos quadros de um partido político, um estatuto que podia interferir e condicionar os resultados de uma investigação científica. Uma das formas de evitar que os nossos interlocutores interagissem connosco a partir de uma base estereotipada foi a de ocultar esse status, uma estratégia cuja aplicação foi mais fácil nas localidades onde centrámos a nossa investigação. O mais difícil seria passar despercebido entre os representantes dos serviços desconcentrados do Estado, uma vez que, devido ao peso dominante da dimensão política na definição de critérios de ocupação de cargos públicos, os representantes dos serviços do Estado têm afinidades políticas com o partido político no poder. Estando essas pessoas a ocupar uma posição privilegiada na estrutura do Estado e estando essa posição condicionada pela situação política, então é natural que essas pessoas sigam a vida política nacional de forma mais sistemática e intensa e, consequentemente, a probabilidade de sermos reconhecidos é muito grande. Ser visto pelos interlocutores como um oponente ao sistema pode condicionar o processo de recolha de informações e podemos enumerar duas hipotéticas situações que podem disso correr: a indisponibilidade em conceder entrevistas ou facultar informações e filtrar ou mesmo deturpar informações. Perante este cenário, recorremos ao jogo das cores bastante utilizado no campo político cabo-verdiano e protagonizado pelos partidos políticos. Resolvemos adquirir umas t- shirts de cor amarela e usá-las sempre que dirigíamos a uma instituição do Estado para marcar e/ou realizar entrevistas ou ainda para procurar algumas informações. Por uma razão simples. A cor mais representativa do partido no poder (PAICV) é o amarelo e do outro partido (MpD) é o verde. Para as pessoas com um certo grau de ligação a partidos políticos e que vive a política de forma mais intensa e apaixonada a cor tem um peso simbólico bastante significativo. Arriscámos mesmo dizer que hoje em Cabo Verde a maior parte das situações em que se usa o amarelo e verde, seja em que contexto for tem uma certa dose de intencionalidade. Lá onde existe ingenuidade há quase sempre juízo

27 de valor que se direcciona no sentido de conotar a situação com um ou outro partido político. É uma prática bastante reproduzida pelos líderes dos partidos políticos. A opção de usar traje amarelo para as entrevistas com os representantes dos chefes dos serviços desconcentrados do Estado foi sustentada pela ideia de que com essa atitude pudéssemos, à primeira vista, desviar a atenção deles para outras coisas que não a curiosidade em relação à nossa identidade política e achámos que conseguimos efectivamente atingir esse objectivo. Por várias vezes, os nossos interlocutores confrontaram-nos com afirmações do tipo “eu não sei de que partido o senhor é, mas …” ou o “pessoal do partido x ou y é aldrabão” ou “os políticos são ladrões” ou “os políticos não prestam para nada” etc. Não é difícil lidar com atitude das pessoas que fazem tais afirmações. O mais difícil é quando nos perguntam de forma directa, com que partido nos identificamos. Em determinados momentos sentimo-nos embaraçados. Dizer que não nos identificamos com nenhum partido podia não ser suficiente. Porque se calhar elas mesmas já tiveram a necessidade de dizer isso quando na verdade não era esse o caso. Mas para ultrapassarmos esse imbróglio refugiamos recorrentemente na atitude de dizer que os políticos são todos iguais. Fica aqui um pequeno subsídio para uma abordagem sobre procedimentos metodológicos de recolha de informações em trabalhos de pesquisa científica numa sociedade, onde a dimensão política parece ter uma importante expressão no contexto da interacção social. A complexidade inerente a um trabalho de pesquisa que envolve o campo político na conjuntura actual em que se vive, como em Cabo Verde, exige talvez, uma montagem de um sistema não menos complexo de estratégias, capaz de apreender, de forma mais objectiva possível, a realidade que o envolve. Como alguém que interiorizara o ser do político, a uma determinada altura da pesquisa sentimos a necessidade de compreender as várias perspectivas sobre como se percepciona e se sente uma determinada realidade, e com base nisso conceber um sistema de análise no nosso esquema mental que considerasse essas perspectivas diferentes das coisas. Fizemos vários exercícios nesse sentido. Exercícios difíceis de se fazer. Tem a ver com aquilo que os epistemólogos designam por corte epistemológico. Um corte que não se verifica completamente. Nunca se consegue afastar completamente. A sociologia nasceu de uma perspectiva crítica, mas assente numa perspectiva de pensamento bem definida. Um campo ideológico bem definido.

28 As dinâmicas de desenvolvimento que hoje são praticadas no meio rural são reconhecidamente vastas, ou seja integram os mais diversos domínios que caracterizam as sociedades do meio rural cabo-verdiano. Nesta perspectiva, era manifestamente necessário limitar as dimensões de análise, quanto mais não seja, pela própria imperatividade da operacionalização dos conceitos. Para a selecção das dimensões ou eixos de análise era preciso definir um critério. Mas que critérios devíamos utilizar para a selecção desses eixos? Esta era a questão que se nos colocava inicialmente. E diga-se de passagem que esta operação suscitou uma ampla discussão com os promotores da tese. A ideia inicial era escolhê-los a partir de um inquérito dirigido aos presidentes das Câmaras Municipais, fornecendo-lhes uma ampla lista das mais diversas dimensões sobre as quais os múltiplos actores de desenvolvimento local, inclusive as Câmaras Municipais, actuam no processo de desenvolvimento local. Contudo, tivemos que abandoná-la motivado pela ideia de que a visão do desenvolvimento local é, à partida, diferenciada conforme um conjunto de factores que caracterizam cada espaço social e cada actor social que nele opera, designadamente os interesses que envolvem cada um deles e a forma de reprodução do espaço social diferenciada em função do grau de identidade desses actores em relação ao espaço, uma hipótese que veio a confirmar-se e ao qual regressaremos adiante. Por outro lado, havia uma questão que carecia de uma resposta lógica e que reforçava a ideia de que essa não era a via mais correcta para seleccionar esses eixos. Essa questão era a de saber como é que o processo de desenvolvimento é induzido na ilha de Santo Antão e, de forma particular, no conjunto das localidades escolhidas como unidades de análise. Se essas dinâmicas são de indução externa, então essa ideia podia fazer sentido, mesmo sabendo que as autarquias não são os únicos actores sociais indutores do desenvolvimento local. O governo, através dos serviços desconcentrados do Estado, as ONG e mesmo as agências de desenvolvimento desempenham um papel fundamental nesse processo. Depois de uma reflexão mais aprofundada sobre o assunto, chegamos à conclusão que, tendo em conta os objectivos traçados para o presente estudo, era pouco relevante seleccionar os eixos com base na ideia de que eles eram mais ou menos tidos em conta pelas dinâmicas dos actores sociais ou que são mais ou menos importantes, quanto mais

29 não seja porque, por um lado, este não é um objectivo central preconizado para esta investigação e, por outro, não é fácil hierarquizar as dimensões de desenvolvimento em função da sua importância e da frequência de intervenção dos actores sociais. Assim, a escolha dos eixos a privilegiar para esta investigação foi feita em função dos problemas que vêm persistindo no meio rural e que, de resto, mais têm contribuído para a desertificação rural. São eles: - Gestão de apoios à habitação social; - Mobilização e distribuição de água para o consumo doméstico e para utilização nas actividades geradoras de rendimento: agricultura, pecuária e pequenas indústrias; - Gestão de apoios à educação e formação profissional em termos do seu acesso e que representam, nos esquemas mentais dos cabo-verdianos, mecanismos de mobilidade social. Com base nas informações recolhidas durante as duas primeiras missões e que nos permitiram fazer uma relação de localidades de maior e menor dinâmica dos actores locais, e tendo em conta as orientações de algumas personalidades da ilha e dos próprios promotores da tese escolhemos três localidades onde a nossa pesquisa iria incidir-se com maior profundidade: Lagoa, Ribeirão e Cruzinha. Lagoa é uma localidade dividida por uma estrada que separa os concelhos de Ribeira Grande e do Porto Novo. Ribeirão e Cruzinha fazem parte do Concelho de Ribeira Grande 13. Em relação à Lagoa de referir que se trata de uma localidade semi-árida, conforme os parâmetros de caracterização das Zonas Agro-Ecológicas referenciada no Plano de Acção para o Desenvolvimento de Agricultura de Santo Antão, devido sobretudo à sua altitude e às características paisagísticas. Trata-se de uma localidade situada a uma altitude considerável, de fraca cobertura vegetal, onde predomina um microclima bastante agreste. Ali, a população enfrenta um grande problema em termos de fornecimento de água, o que confere à localidade características bastante específicas em termos de modos de vida. Ribeirão é, de acordo com a mesma tipologia, uma localidade que se insere nas zonas ditas sub-húmidas. Localiza-se num vale com uma relativa potencialidade em matéria de agricultura de regadio. De resto, possui as características próprias das localidades

13 Retomaremos este assunto no próximo capítulo.

30 onde se praticam as agriculturas de sequeiro e de regadio e num contexto de carência de recursos hídricos. Por último, Cruzinha é uma localidade do litoral, enquadrada na categoria de zonas áridas. O povoamento é bastante concentrado com características próprias da maioria das localidades piscatórias do país em termos do modo de vida dos seus habitantes. O problema que ali se coloca em termos de fornecimento de água reside apenas na sua dimensão do consumo doméstico tendo em conta que a actividade económica dominante é a pesca. A escolha destas três localidades como unidades de análise suscita, a priori, uma questão de fundo. Ou seja, será que podemos considerar que elas podem representar a ilha em termos das dinâmicas dos actores locais de desenvolvimento? Se se considerar que a ilha se encontra dividida de ponto de vista político-administrativo em três concelhos, com características bastante diferentes que as três localidades pertencem ao concelho de Ribeira Grande então esta escolha seria de todo errada na perspectiva de que o estudo pretende representar a ilha de Santo Antão. Na verdade, o factor de representatividade aqui privilegiado não é a divisão político- administrativa mas sim as características específicas de cada localidade, características essas definidas em função das condições que emergem das suas localizações geográficas. De destacar que as três localidades possuem em comum o problema de um relativo isolamento tendo em conta não só a distância em relação aos centros urbanos mas sobretudo as condições de acessibilidade. Contudo, possuem características bastante diferenciadas entre si, quer em termos da organização territorial, quer em termos dos modos de vida dos seus habitantes. Vistas neste ângulo achamos que elas podem ser representativas da ilha de Santo Antão.

Estrutura da tese O presente trabalho encontra-se estruturado em cinco capítulos. No primeiro capítulo vamos proceder ao retrato dos aspectos centrais que definem a ilha de Santo Antão designadamente através das dimensões históricas, político- administrativas e socio-demográficas, etc. Ainda durante este capítulo vamos debruçar- nos sobre as orientações das estratégias de desenvolvimento engendradas pelo Estado de

31 Cabo Verde nas duas últimas décadas com enfoque nas estratégias de desenvolvimento regional/local ou rural adoptadas em Santo Antão. O segundo capítulo irá centrar-se na análise das principais abordagens sobre o desenvolvimento, no sentido de construção de uma base teórica a partir da qual se encetam as análises dos dados. No terceiro capítulo vamos analisar a organização espacial, os modos de vida e estratégias de sobrevivência nas três localidades. No quarto capítulo vamos abordar as múltiplas dinâmicas de desenvolvimento local desencadeadas em Santo Antão, partindo das três localidades previamente seleccionadas e assentes nos três eixos de análise, a saber: a gestão de apoios à habitação social, a mobilização e distribuição de água e a educação e formação profissional. No quinto e último capítulo vamos proceder à análise das dimensões, sentidos e vicissitudes das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento. Neste capítulo vamos focalizar a análise na participação social das famílias e das ADC, nas lógicas que orientam o sentido das dinâmicas de cada actor social e por último, nos conflitos que resultam das lógicas das dinâmicas dos diferentes actores em função das dimensões em que se enquadram, isto é, por um lado, as dimensões económicas e sociais e, por outro, as dimensões políticas e ideológicas, na sequência das quais vamos analisar também a natureza dos mecanismos de regulação dos conflitos. Antes de passarmos ao primeiro capítulo faz-se importante frisar previamente dois aspectos metodológicos: Primeiro: os nomes de pessoas referenciados ao longo deste trabalho são, na maioria dos casos, fictícios, tendo em vista a preservação da identidade dos entrevistados; Segundo: As falas dos entrevistados, transcritas ao longo do trabalho foram editadas, devido ao facto de, na grande maioria dos casos, as entrevistas terem sido conduzidas na língua cabo-verdiana e traduzidas para a língua portuguesa e, posteriormente, para a língua francesa (no caso da tese apresentada em versão francesa).

32 Capítulo I - Caracterização geral da ilha de Santo Antão e orientações estratégicas de desenvolvimento em Cabo Verde

1. Introdução

Pretendemos com este capítulo que versa sobre a caracterização geral da ilha de Santo Antão, explicitar melhor o palco da investigação e, consequentemente, facilitar a compreensão das dinâmicas dos actores em termos de visões, percepções e reprodução das condições de desenvolvimento da ilha, mas também proporcionar uma ideia global sobre as fragilidades e potencialidades inerentes à ilha de Santo Antão, condições que, no nosso entendimento, estão relacionadas com as opções que cada indivíduo estabelece, tendo em conta as estratégias de vida por ele privilegiadas. Como se pode apreender pela designação do título neste capítulo vamos abordar os múltiplos aspectos que retratam as condições que a ilha oferece aos seus habitantes, privilegiando, num primeiro momento, a análise dos aspectos históricos durante a qual abordaremos as condições do seu povoamento e as crises a que a ilha foi sujeita bem como as condições em que se fundaram as relações sociais de produção e, num segundo momento, abordaremos a forma como a ilha se encontra hoje estruturada do ponto de vista político e administrativo. De seguida focalizaremos a atenção nos aspectos sociais e económicos da ilha, isto é sobre os indicadores mais importantes que caracterizam a ilha destacando os vectores demográficos e sociais onde incluímos questões sobre a educação, a saúde, o emprego, etc., e os vectores económicos privilegiando os sectores de actividades económicas. Integram ainda este capítulo a análise do capital social, da estrutura do poder político, das potencialidades e constrangimentos inerentes ao seu processo de desenvolvimento e por último abordaremos as orientações estratégicas de desenvolvimento realçando as estratégias de desenvolvimento regional/local engendradas em Santo Antão nas últimas duas décadas.

2. Caracterização histórica

Situada na parte mais a norte do arquipélago (ver o mapa em anexo), Santo Antão é a segunda ilha do país em termos de extensão e a terceira em termos de efectivos demográficos.

33 Do ponto de vista orográfico, pode-se dizer que estamos perante uma ilha globalmente caracterizada pela existência de relevos muito acentuados portanto com características predominantemente escarpadas razão pela qual é conhecida por “ilha das montanhas”. Fazer uma resenha histórica das ilhas de Cabo Verde, sobretudo quando se pretende abarcar períodos bastante recuados, se apresenta como uma tarefa bastante difícil, como aliás reconhecem os historiadores. Daniel Pereira assinala esse facto num artigo intitulado “Recortes da História da ilha de Santo Antão” publicado na revista EKHOS e aponta como explicação para esse facto o desaparecimento dos arquivos por culpa dos homens ou das calamidades e catástrofes. Essa dificuldade é ainda maior quando o objecto de análise é a ilha de Santo Antão, pois como refere esse mesmo autor, esta ilha foi administrada de forma independente das outras ilhas, designadamente a ilha de Santiago que se apresentava na altura como “cabeça da administração do nosso arquipélago” até meados do século XVIII, isto é, a ilha funcionou como uma capitania autónoma administrativa e politicamente, o que pressupõe que, provavelmente, o grosso dos documentos históricos ali produzidos durante esse período, devia ser arquivado na própria ilha, mas que não se sabe nada sobre o seu paradeiro. Refira-se, no entanto, que não é nossa intenção abordar exaustivamente os aspectos históricos da ilha. Pretendemos tão-somente chamar atenção para os aspectos importantes para a compreensão do tema que constitui o objecto deste estudo. De acordo com as teses existentes sobre o achamento das ilhas de Cabo Verde, a ilha de Santo Antão terá sido descoberta em 1462 e talvez devido ao nome que ostenta pensa-se, segundo Daniel Pereira (1996) que esse acontecimento terá tido lugar a 17 de Janeiro dia dedicado ao Santo António. No que ao povoamento diz respeito, deve-se salientar que, segundo Albuquerque e Santos (2001: 146), de entre as ilhas que constituem o grupo de Barlavento, Santo Antão terá sido a primeira a ser povoada, pois havia indícios de que Santo Antão e São Nicolau começam a albergar um certo número de moradores desde a década de setenta do século XVI. De acordo com Albuquerque e Santos (2001) acredita-se, ainda que de forma incipiente, que a ilha já contava com alguns moradores desde o século XV, devido às potencialidades que a agricultura e criação de gado demonstravam possuir comparativamente às restantes ilhas. São dados bastante contraditórios entre si, estes que pretendem compor as teses sobre o povoamento da ilha de Santo Antão. Daniel

34 Pereira (1996) admite que o início do povoamento da ilha terá ocorrido cerca de século e meio após a sua descoberta, ou seja, no início do século XVI e que concorreram para o povoamento desta ilha além de escravos vindos da Guiné e um reduzido número de brancos, pessoas que, voluntariamente ou não, se deslocaram das outras ilhas nomeadamente Santiago, Fogo e São Nicolau. O que não merece quaisquer dúvidas em tudo isso é a ideia segundo a qual o sistema de povoamento das ilhas de Cabo Verde, onde se insere a ilha de Santo Antão, decorre do modelo de exploração das terras descobertas durante a expansão marítima assente na instituição do sistema de capitanias-donatárias, conforme se pode ler em várias publicações de autores como António Carreira, Sena Barcelos, entre outros. Assim, tal como aconteceu nas outras ilhas onde se implementou este modelo de exploração das terras, em que a estrutura social se desenvolve a partir dos pressupostos de uma sociedade escravocrata, isto é, que transcende da hegemonia do grupo social constituído pelos colonos brancos, a estrutura social da ilha de Santo Antão forma-se a partir de uma pirâmide societária constituída basicamente por escravos, foros, mestiços e brancos 14. A posse da terra e dos aparelhos administrativos, fiscais, financeiros e comerciais bem como os poderes de administração da justiça eram os principais mecanismos de diferenciação. Essas prorrogativas eram estabelecidas inicialmente com base na dicotomia branco/preto ou colonos/escravas, a partir das quais várias outras se afirmaram. Ao longo de toda a sua história, o arquipélago de Cabo Verde terá sido bafejado por inúmeras crises, nomeadamente como consequências da escassez das chuvas. Numa inventariação de crises e períodos de escassez de colheitas em Cabo Verde desde o século XVI que Luís Albuquerque e Maria Emília Santos apresentaram num artigo sobre a história de Cabo Verde (Albuquerque e Santos, 2001: 12-14), a ilha de Santo Antão é frequentemente referenciada. Certas referências sobre as crises eram, de resto, bem conhecidas, isto é, mereceram relatos por parte das autoridades locais da época. De entre elas destacam-se as de 1580/82, 1790, 1810, 1831/33, 1850/51, 1854/57, 1860, 1863/66, 1901/04, 1921/23, 1941/43, 1946/48 e 1959/60 que de resto abrangeram todo o país (Albuquerque e Santos, 2001).

14 Estas três categorias podem ser subdivididas em várias outras, conforme as perspectivas forem jurídicas, sociológicas ou económicas.

35 No entanto, do inventário sobre as inúmeras crises pelo que passou o país, constam referências particulares às várias crises que a ilha de Santo Antão terá enfrentado. Pode- se ver que houve uma em 1790 durante a qual terão morrido na ilha mais de 800 pessoas ; outra em 1825 em que se refere que a ilha foi a mais fustigada 15; a de 1831/33 em se refere que só em Santo Antão morreram 13000 pessoas e que o socorro terá vindo dos Estados Unidos de América; 1855/57 houve fome e cólera. Em Santo Antão as pessoas comiam troncos de bananeira e carne de burros; 1901/02 Fogo e Santo Antão grande miséria (Albuquerque e Santos, 2001). Segundo trabalhos elaborados por alguns estudiosos sobre a estrutura fundiária cabo- verdiana, como por exemplo, Cláudio Furtado (1993), Gottfried Stockinger (1990), Laurent e Furtado (2009), a actual situação da distribuição das terras resulta de um modelo de colonização que se engendrou no país assente na atribuição de monopólios resultando desde o início uma dicotomia entre “possuidores de terra e não possuidores de terra” que mais tarde evoluiu para outras dicotomias designadamente “parceiros e rendeiros semi-servos e morgados”, dicotomias de onde

estava sempre coexistindo uma camada de pequenos camponeses pobres trabalhando por conta própria, funcionando como reserva da mão-de-obra para os senhorios da região que habitavam, pois era a sua própria terra insuficiente para viverem (Stockinger, 1990: 9).

O problema da estrutura agrária tem um forte reflexo nas estratégias de vida das populações do meio rural como vamos poder ver mais adiante. Se é certo que a política da reforma agrária engendrada pelo governo em 1982 teve repercussão na estrutura agrária nacional, pese embora os resultados não tivessem sido de todo alcançados de ponto de vista dos objectivos previamente traçados, designadamente no que se refere, segundo Pereira Silva (s/d: 36) à tentativa de, [

aumentar a produção e a produtividade na agricultura, libertar os que trabalham a terra da dependência das relações socioeconómicas de exploração e arcaicas e melhorar a sua situação económica e cultural] ela, juntamente com o mecanismo de herança e a própria emigração, como reconhece Cláudio Furtado (1993: 125), logrou fundamentalmente,

15 Aqui diz-se uma coisa bastante curiosa: “para socorrer as vítimas da crise o Governador Chapuzet utiliza as verbas do comércio da urzela, que constituía exclusivo da Coroa. O governador é demitido”.

36 proporcionar uma mudança do património fundiário, abrindo a possibilidade para uma certa desconcentração das propriedades das mãos de um número reduzido de proprietários-morgados levando consequentemente a que antigos parceiros se transformassem em novos proprietários.

Apesar disso as relações sociais de produção mantiveram-se na sua essência baseadas no mesmo modelo: parceria, assalariamento, exploração familiar e arrendamento, sendo este último em muito menor expressão. A estrutura agrária que vigora na ilha tem tido profundas repercussões quer nos modos de vida dos camponeses, quer nas dinâmicas do conjunto de actores sociais locais que vêem a disponibilidade de terrenos para a infra-estruturação das suas localidades como um grande constrangimento ao desenvolvimento local. Ou seja, a dependência que caracteriza a relação entre os proprietários de terra e os camponeses/moradores tem tido implicações numa dimensão considerada importante do desenvolvimento da ilha. Voltaremos a este assunto com mais detalhe quando analisarmos os modos de vida das famílias do meio rural no capítulo VI.

3. A organização territorial e administrativa

Sem entrar em detalhes sobre os aspectos teóricos que suportam os diferentes modelos de organização territorial, administrativa e política de um território, até porque este (pelo menos no que diz respeito à organização política e sua relação com os conceitos de descentralização e desconcentração) é um assunto que irá integrar o terceiro capítulo que se destina à abordagem teórica que orienta a presente investigação, começamos por dizer que Cabo Verde encontra-se organizado, do ponto de vista da divisão territorial, em concelhos e estes em freguesias. Quando Cabo Verde se tornou num país independente em 1975, encontrava-se dividido territorial e administrativamente em 14 concelhos e 31 freguesias 16 , cada nível de divisão com uma função específica conforme nota Michel Lesourd (1995). Para este autor as freguesias eram unidades administrativas com um decisivo papel religioso, enquanto o concelho se consubstanciava como “o nível de base da percepção territorial”

16 Com base no último estatuto orgânico da província de Cabo Verde o país estava dividido em distritos (sotavento e barlavento), concelhos e freguesias. Além do mais, o estatuto dava possibilidade a que as cidades da Praia e do Mindelo pudessem dividir-se em bairros. O Decreto-Lei n. ° 93/82, de 6 de Novembro define no seu art.1º que “o território da República de Cabo Verde divide-se em concelhos que se subdividem em freguesias, e estas em povoados ou bairros”.

37 Lesourd (1995: 157). Hoje o país conta com 22 concelhos e 32 freguesias, devidas às várias mudanças que ocorreram na estrutura territorial com a criação de sucessivos municípios a partir de 1991. Recorda-se que, nesse ano, através da Lei nº 23/IV/91 de 30 de Dezembro, foi criado o município dos Mosteiros na ilha do Fogo. Assim, esta ilha que antes representava um único concelho ficou dividida em duas parcelas administrativas, ou seja, os concelhos de São Filipe e dos Mosteiros. Dois anos depois, isto é em 1993, o governo optou por criar mais um município, o município de São Domingos, através da Lei nº 96/IV/93 de 31 de Dezembro, uma parcela da ilha de Santiago que antes integrava o concelho da Praia, ficando esta ilha a integrar 5 concelhos em vez de 4. Em 1996 houve mais uma mexida na estrutura territorial e administrativa do país com a criação de mais um município na ilha de Santiago, ou seja, o município de São Miguel através da Lei nº 11/IV/96 de 11 de Novembro. Por último, em 2005 através da Lei nº 63/VI/2005 de 9 de Maio, foram criados 5 novos municípios, designadamente, o de Tarrafal na ilha São Nicolau que com o município da Ribeira Brava completam a ilha de São Nicolau, o de Santa Catarina na ilha do Fogo, que passa a contar doravante com três municípios; os de Ribeira Grande, São Lourenço dos Órgãos e São Salvador do Mundo, todos na ilha de Santiago, passando esta ilha a contar com nove no total. A ilha de Santo Antão mantém a sua estrutura da organização territorial inalterada desde 1971. Isto é, encontra-se desde essa época dividida em três concelhos, designadamente Paul, Porto Novo e Ribeira Grande e sete freguesias. O Concelho do Paul localiza-se a Nordeste da ilha e ocupa uma área com cerca de 54,3 km2, representando 7% da superfície total da ilha que é estimada em cerca de 779 Km2. É todavia o mais pequeno concelho da ilha, quer do ponto de vista territorial, quer do ponto de vista demográfico, como se poderá ver mais adiante. Compreendendo uma única freguesia, a de Santo António das Pombas, o concelho do Paul, de acordo com o RGPH de 2000 aglomera quatro localidades (Vila das Pombas, , Cabo da Ribeira e Janela) subdivide-se em 10 zonas e 147 lugares. O concelho de Porto Novo, cuja sede é a cidade do Porto Novo 17 é aquele que ocupa a maior área, isto é 557 km2 equivalentes a 67% da superfície da ilha e é a segunda em termos de efectivos demográficos.

17 Porto Novo elevou-se à categoria de cidade em 2005. Refira-se no entanto que no dia 2 de Setembro de 2010 passou a vigorar a Lei nº 77/VII/2010 que estabelece novos critérios para a elevação de sedes dos

38 O concelho comporta duas freguesias. A freguesia de São João Baptista, a mais extensa e populosa (439 km2) tem como sede a cidade do Porto Novo e abrange 23 zonas. A freguesia de Santo André, a mais pequena abrange uma área de 118 km2 tem como a sede a Ribeira das Patas. Esta freguesia abrange 8 zonas. O concelho da Ribeira Grande que ocupa a parte setentrional da ilha é o segundo em extensão com uma superfície de 166 km2 mas ocupa o primeiro lugar em termos de efectivos demográficos. Encontra-se dividido em quatro freguesias: freguesia de com a sede na localidade de e abrange 12 zonas, a freguesia de Nossa Senhora do Rosário com a sede na Vila da Ribeira Grande, abrangendo 9 zonas, a freguesia de Nossa Senhora do Livramento com a sede na Vila de abarca 2 zonas e, finalmente, a freguesia de São Pedro Apostolo com a sede na localidade de Chã de Igreja e que compreende 5 zonas. O termo concelho representa na estrutura administrativa e política em Cabo Verde a base das autarquias locais ou do poder político local. Cada concelho representa um município. As freguesias representam apenas as circunscrições administrativas.

4. Caracterização socioeconómica

A evolução da população em Cabo Verde durante um certo período caracterizou-se por uma acentuada irregularidade, aliás, como se pode verificar no quadro que segue, potenciada por um conjunto de factores, sejam eles internos ou externos. Do ponto de vista interno é de salientar as condições económicas e sociais reguladas fundamentalmente pela queda das chuvas e consequentemente pelo índice da produção agrícola, uma vez que a falta das chuvas e o consequente mau ano agrícola, quando ocorria em anos sucessivos despoletava o fenómeno da fome, cujos resultados incidiam num significativo aumento da taxa de mortalidade geral, um acentuado êxodo rural na direcção às ilhas de Santiago e São Vicente e uma acentuada taxa de emigração. Como factores externos, destacam-se as crises políticas internacionais com reflexos no sistema económico mundial como aquelas que despoletaram as duas guerras mundiais. Refira-se, no entanto, que actualmente esses factores interferem com maior incidência no fenómeno migratório.

concelhos à categoria de cidade. A partir dessa data, o país passou a contar com 24 cidades das quais 22 por serem sedes dos respectivos concelhos e 2, isto é Ribeira Grande na ilha de Santo Antão e Santa Maria na ilha do Sal, a título excepcional, ou seja, devido às suas condições históricas e turísticas.

39 Entre 1940 e 1970 a evolução populacional em Santo Antão deu-se no mesmo sentido que a de Cabo Verde. Isto é, pese embora em ritmos diferentes, os efectivos demográficos foram aumentando. Já entre 1970 e 1980 enquanto ao nível do país a população aumentou em cerca de 9%, em Santo Antão a população retraiu em cerca de 3%. O fenómeno da retracção da população nesse intervalo de tempo ocorreu também em outras ilhas do país designadamente São Nicolau, Brava, Boa Vista e em quase todos os concelhos da ilha de Santiago com excepção de Santa Cruz e Praia. Aliás o aumento dos efectivos demográficos em Cabo Verde durante esse período deu-se à custa das dinâmicas ocorridas na Praia e em São Vicente fundamentalmente. Depois de 1940, o maior crescimento demográfico na ilha de Santo Antão ocorreu entre 1960 e 1970, conforme os dados apresentados no quadro que se segue.

Quadro n.º 1 - Dinâmica do crescimento demográfico em Santo Antão entre 1940 a 2010

1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 Cabo Verde 181.740 149.984 199.902 270.999 295.703 341.491 434.812 491875 Santo Antão 35.977 28.379 33.953 44.623 43.321 43.845 47.170 43.915 Ribeira Grande 19.766 15.444 17.246 22.873 22.102 20.851 21.594 18.890 Paul 5.845 5.370 6.024 8.000 7.983 8.121 8.385 7.032 Porto Novo 10.366 7.565 10.683 13.750 13.236 14.873 17.191 17.993 Fonte: INE

Segundo os dados do último RGPH realizado em 2010, a ilha de Santo Antão contava nesse período com 43.915 efectivos, portanto, menos 3.255 do que em 2000, o que representa uma TCMA negativa, isto é – 1,3%. Paul é, de entre os demais concelhos do país, aquele que conheceu a maior derrapagem em termos de efectivos demográficos entre 2000 e 2010, ou seja -1,8%. Logo a seguir aparece um outro concelho de Santo Antão, o da Ribeira Grande que, a par da ilha Brava, teve uma TCMA igualmente negativa ou seja - 1,3%. A população da ilha de Santo Antão tem sido, ao longo da sua história, caracterizada por ser maioritariamente jovem. Refira-se que esse cenário foi um ponto assente na estrutura demográfica da ilha ainda no ano 2000. Pode-se ver que nesse período os efectivos situados na faixa etária entre zero e os catorze anos representavam cerca de 40% da população total da ilha. Em contrapartida, aliás como se pode ver no quadro de grupos funcionais e índices-resumo abaixo indicado, a população idosa, isto é com mais

40 de 65 anos representava apenas cerca de 8%. Por isso, o índice de juventude situava-se num valor bastante acentuado, isto é, para cada 100 idosos existiam cerca de 938 jovens. O mesmo quadro mostra que, o índice de renovação da população activa situava-se em cerca de 271, o que significa que, para cada 100 indivíduos que saíam do grupo de indivíduos potencialmente activos entravam cerca de 271.

Quadro n.º 2 - Grupos funcionais e índices-resumo da população de Santo Antão em 2000 e 2010

Grupos funcionais e índices-resumo 2000 2010 Percentagem de jovens 40 30 Percentagem de activos 50 59 Percentagem de idosos 8 12 Índice de juventude 938 258 Índice de envelhecimento ou de vitalidade 11 39 Índice de dependência da juventude 158 51 Índice de dependência de idosos 17 20 Índice de dependência total 175 71 Índice de Renovação da população activa 271 436 Índice de tendência 95 97 Fonte: RGPH 2000

Segundo os dados de Recenseamento Geral da População e Habitação de 2010 (RGPH), além da redução dos efectivos demográficos e do seu peso na estrutura demográfica do país, a ilha de Santo Antão conheceu nesse período uma redução substancial do peso da população jovem, isto é com idade inferior a 14 anos no conjunto dos efectivos demográficos. Na sequência disso, a estrutura demográfica de ilha viu aumentar o peso da população potencialmente activa, como viu também aumentar o peso de idosos. Mas uma das alterações mais profundas na análise dos indicadores dos grupos funcionais e índices resumo é, sem dúvida, o índice da juventude. Este diminuiu de 938 em 2000 para 258 em 2010. Importa ainda fazer referência aos factos segundo os quais, o índice de tendência 18 continuar a revelar os processos de declínio de natalidade e de envelhecimento da população e o índice da renovação da população activa passar de 271 em 2000 para 436 em 2010. Passando por uma outra dimensão da análise demográfica da ilha de Santo Antão realçamos que de entre os efectivos demográficos registados em 2010, apenas cerca de 36% vive no meio urbano, uma percentagem que se situa muito abaixo da média nacional, cuja taxa de urbanização é de cerca de 62%. Dos três concelhos da ilha apenas

18 Relação entre a população com idade compreendida entre 0-4 e entre 5-9 anos

41 o do Porto Novo apresenta uma percentagem da população do meio urbano superior a do meio rural, isto é 52% contra 48%. No concelho de Ribeira Grande cerca de 24% da população vivem no meio urbano e no Paul apenas 18%. As 43.915 pessoas que actualmente vivem em Santo Antão estão distribuídas por cerca de 10.124 agregados familiares, cujo tamanho médio é de 4,36 membros, inferior àquele que apresentava em 2007 (4,8). Ribeira Grande conta com 4.551 agregados familiares, Porto Novo com 3.936 e Paul com 1.637. Porto Novo é, de entre os concelhos da ilha, aquele cujo agregado familiar apresenta um tamanho médio maior. Ainda na sequência dos resultados do RGPH de 2010 de salientar que cerca de 48,1% dos agregados familiares em Cabo verde são liderados por mulheres. Em Santo Antão esta percentagem é ligeiramente inferior, ou seja 38%. As condições habitacionais em Santo Antão são, em muitos casos, ainda bastante precárias como de resto são em todo o país. Segundo um estudo do IFH 19, o défice habitacional alargado 20 em Cabo Verde era em 2005 de cerca de 76.088 e segundo as estimativas apresentadas nesse estudo esse número aumentaria em 2010 para cerca de 83.590. Já no que a Santo Antão diz respeito, este estudo refere que os défices habitacionais alargado e básico (muito mais acentuado no meio rural que no meio urbano) eram nesse período estimados em 8.339 e 5.158 respectivamente. Segundo os dados do RGPH de 2010, cerca de 72% dos alojamentos em Santo Antão encontram-se ligadas à rede pública de abastecimento de água e mais de 80% dispõem de electricidade. No entanto, apenas cerca de 59% dos alojamentos dispõem de instalações sanitárias e apenas 37% dispõem de instalações sanitárias com equipamentos para banho ou duche, ou seja, com banheira e chuveiro. Apesar de tudo, o regime de ocupação dos alojamentos dominante é designado comummente por “casa própria”. Os dados do QUIBB em análise demonstram que cerca de 68% dos alojamentos pertencem aos seus ocupantes.

19 Estudo da Problemática da Habitação em Cabo Verde, IFH Abril de 2006. 20 O estudo em análise definiu o Deficit Habitacional Alargado como resultado da combinação do Défice Habitacional Básico com a Inadequação dos Alojamentos. Assim tomou-se por Défice Habitacional Básico “a necessidade de construção de novas moradias, seja em função da reposição do stock de alojamentos existentes seja em função do incremento desse stock, detectado em determinado momento”. A Inadequação dos Alojamentos é definida em função da Densidade Excessiva nos Dormitórios e a Carência de Infra-estruturas.

42 No que se refere ao nível de instrução da população de Santo Antão, de salientar antes de mais que os dados do último recenseamento indicam que cerca de 72% dos efectivos demográficos são alfabetizados no sentido em que possuem as capacidades básicas para ler e escrever, uma média muito abaixo do país em que a população com essa característica atinge cerca de 83%. Mas, mais do que isso, o nível de instrução da população da ilha de Santo Antão é baixo comparativamente à média nacional.

Quadro n.º 3 - Indicadores de educação

C. Verde S. Antão R. Grande Paul P. Novo Nenhum 27 36,5 37,2 40,1 32,1 Pré-escolar 0,1 0,0 0 0 0 Alfabetização 6,9 11,8 6,8 15,2 13,3 E. Básico 51,1 45,3 47,5 40,2 48,1 E. Secundário 11,5 4,9 5,8 3,7 5,1 E. Médio 1 0,9 1,9 0,3 0,6 E. Superior 2,4 0,6 0,7 0,5 0,7 Fonte: QUIBB 2007

Como se pode ver no quadro acima apresentado, cerca de 48% da população da ilha em 2007 tinham um nível de habilitações inferior ao ensino básico, um dado que nos leva a afirmar que um valor próximo de metade da população mal sabia ler e escrever. Vários factores endógenos ou seja, aqueles que emanam das características da própria ilha, e que se situam para lá do fraco grau de cobertura e em alguns casos de ausência de cobertura de determinados níveis de ensino 21 , contribuíram e provavelmente ainda contribuem para o condicionamento do campo educativo em Santo Antão. Dois deles são particularmente relevantes: o que decorre da orografia e que condiciona o acesso às localidades de maior concentração populacional e que, de resto, representa um critério fundamental para a fixação das infra-estruturas educativas e o que decorre da situação socioeconómica das famílias com grandes implicações no aproveitamento das crianças. O primeiro leva a que muitas crianças tenham de percorrer grandes distâncias até chegar à escola mais próxima 22. O segundo está relacionado a várias dimensões da relação

21 O fraco grau de cobertura ou ausência de cobertura depende do contexto histórico da ilha e resulta da sua posição periférica em relação aos centros de decisões. O fraco grau de cobertura do ensino básico na década de oitenta deu lugar ao fraco grau de cobertura do ensino secundário na década de noventa. Hoje fala-se da necessidade de se instituir o ensino superior na ilha, algo que já é uma realidade nas ilhas de Santiago e de São Vicente. 22 Mesmo em relação às escolas do ensino básico, devido a este factor associado à dispersão dos povoados há crianças que percorrem grandes distâncias para terem acesso às aulas.

43 ensino-aprendizagem mas para este caso pretendemos relacioná-lo com a necessidade que essas famílias têm de recorrer aos trabalhos das crianças para aumentarem as fontes de renda familiar, devido à situação de carência em que vivem. Estes dois factores incidem de forma clara nas taxas de reprovação e/ou abandono escolar. Centrando-se agora nos aspectos económicos refira-se que, a ilha de Santo Antão, segundo os dados do RGPH de 2010, conhece uma taxa de actividade que ronda 54%, contra 59% referente à média nacional, onde no meio rural se verifica uma taxa ligeiramente superior à do meio urbano, ou seja, 53% e onde as ilhas da Boavista e do Sal contam com as mais elevadas taxas, isto é 74% e 70% respectivamente como consequência da aposta clara no turismo como estratégia de desenvolvimento. Paul é, de entre os concelhos desta ilha, onde ocorre a maior taxa ou seja, cerca de 58%. As principais actividades económicas da ilha de Santo Antão são a agricultura que tem a pecuária como actividade complementar, a pesca e pequeno comércio e trabalhos públicos predominantemente nas localidades onde a agricultura e criação de gado são sistematicamente condicionadas pelas condições climatéricas que se resumem basicamente (não exclusivamente) em escassez de chuva. A agricultura em Cabo Verde e, particularmente, aquela praticada na ilha de Santo Antão é basicamente caracterizada por ser muito pouco diversificada, tendo em conta a sua capacidade para fazer face às necessidades da população. Pese embora os investimentos nas mais variadas vertentes, a que se sujeitou a agricultura em Santo Antão nas últimas duas décadas, decorrentes de uma estratégia clara de desenvolvimento da ilha, aliás como reconhecem as autoridades locais, encontra-se ainda muito voltada para a subsistência das famílias. Esta actividade assume em Cabo Verde duas modalidades completamente distintas em múltiplos aspectos, isto é, agricultura de sequeiro e agricultura de regadio. Em certos casos pode-se encontrar unidades de exploração agrícola em que são aplicadas simultaneamente as duas modalidades. Quer uma quer outra modalidade sujeitam-se aos condicionalismos ligados, por um lado, à reduzida área cultivável disponível e, por outro, aos frequentes períodos de seca que atingem particularmente a encosta sul da ilha, com claras implicações na disponibilidade de água para a rega. De frisar ainda que os principais condicionalismos que a agricultura se sujeita na ilha de Santo Antão são, sem dúvida, decorrentes da estrutura agrária dominante (como fizemos referência no ponto anterior e que

44 voltaremos a tratar ao longo deste trabalho), da qual se salientam os seguintes aspectos: concentração das propriedades, a predominância de minifúndios, a exploração agrícola baseada fundamentalmente em três modalidades, ou seja exploração por conta própria ou exploração directa, em regime de parceria e em regime de arrendamento 23 . A exploração directa continua a ser a modalidade dominante mas é, ainda, mais expressiva na agricultura de regadio. Das formas indirectas de exploração predomina em Santo Antão o sistema de parceria. A agricultura de sequeiro é, sem dúvida, a predominante. Ela ocupa uma área cultivável de 5.356 hectares 24 , é praticada fundamentalmente em sistema do tipo familiar e assenta-se fundamentalmente no cultivo de milho e feijão. Contudo, em áreas semi- húmidas são também produzidas batata, mandioca, árvores fruteiras, etc. De acordo com os dados do último Recenseamento Geral de Agricultura, a dimensão média de uma exploração do tipo familiar de sequeiro é de 1,6 hectares sendo em maior percentagem no concelho de Ribeira Grande. Segundo o mesmo recenseamento, a agricultura de regadio ocupa uma área de cerca de 1.783 hectares de terrenos cultiváveis. Ainda de acordo com o documento em apreço em 2004 essa reduzida área é explorada por cerca de 2.622 agricultores o que dá uma média de 0,68 hectares de terra por agricultor. A principal cultura associada à agricultura de regadio em Santo Antão tem sido inequivocamente a cana sacarina, muito por culpa do surgimento da praga de mil pés, uma vez que se trata de uma planta imune à essa praga. Mas a prevalência do cultivo da cana sacarina deve-se também à sua capacidade em resistir à seca, além de requer muito menos cuidado e consequentemente menos trabalho. A banana e hortícolas são outros dois produtos bastante associados à agricultura de regadio. Além dos cultivos já referidos a agricultura de regadio integra ainda a produção do café / cafeicultura e de algumas árvores de fruta como mangueiras, papaieiras, fruta- pão, etc. A pecuária, como se disse anteriormente, é uma actividade complementar à agricultura, e é basicamente do tipo familiar. O gado caprino, seguido de suínos, domina claramente

23 Ainda que com menor frequência a ilha de Santo Antão conta com outras modalidades de exploração da terra, designadamente os sistemas de comodatos, de aforamento e de posse útil (de facto e de júris) sendo esta última, resultado das acções da reforma agrária implementada no país no início da década de oitenta. 24 Os dados sobre as áreas cultiváveis em Cabo Verde são muito divergentes entre si consoante as diferentes fontes consultadas.

45 o quadro do efectivo pecuário existente em Santo Antão. A bovinicultura, tendo em conta um conjunto de factores que vão desde carência de pasto e de água que afectam diversas localidades da ilha até as dificuldades financeiras que as famílias rurais apresentam para a sua aquisição representa uma expressão menor. Seja como for, a sua produção está associada de um modo geral à agricultura de regadio devido à quantidade de pasto que esta agricultura disponibiliza. Importa de igual modo enfatizar a importância da criação de aves de capoeira na economia da ilha, particularmente as galinhas. Ainda sobre a criação de gado, designadamente a caprinicultura, dinamiza uma das indústrias mais importantes da ilha, ou seja a indústria do queijo. Contudo, trata-se de uma indústria ainda dominada pelas técnicas tradicionais. Como referimos anteriormente a pesca é um outro sector de actividade económica com relativa importância na ilha de Santo Antão. Representa mesmo uma fonte de rendimento muito importante na estratégia de (sobre) vivência de um número substancial de famílias, porém nem tanto em termos da contribuição efectiva no conjunto de riquezas produzidas na ilha e tão pouco no país. Mas este é, no entanto, um assunto que será abordado mais pormenorizadamente no capítulo IV deste trabalho. Em relação ao comércio é de notar que se trata ainda de um sector de actividade económica pouco desenvolvido. Basta ver que em 2007 operavam em Santo Antão cerca de 522 empresas representando um peso de cerca de 7% da estrutura empresarial nacional. Essas empresas tinham um volume de negócios à volta de 1.366.916.000$00, representando menos de 1% do volume de negócios das empresas nacionais, mais concretamente 0,7%. 25 Das empresas existentes em Santo Antão cerca de 254 localizavam-se no concelho de Ribeira Grande, 192 no concelho do Porto Novo e 76 no concelho do Paul. Apesar disso, as empresas que se localizam no concelho do Porto Novo têm em média um volume de negócios ligeiramente superior às da Ribeira Grande. Refira-se, no entanto, que cerca de 92% das empresas que laboram em Santo Antão são, do ponto de vista jurídico, empresas em nome individual e, curiosamente, igual percentagem de empresas não dispõem de um sistema contabilístico. Apenas cerca de 6% de empresas são sociedades anónimas de responsabilidade limitada.

25 III Recenseamento Empresarial de Cabo Verde realizado em 2007.

46 De acordo com os dados do Inquérito ao Emprego realizado pelo INE e IEFP, as taxas líquida de actividade e de desemprego eram em Santo Antão no ano de 2008 de 53,9% e 20,4% respectivamente, situando-se, portanto, acima da média nacional. A este nível, essas taxas eram estimadas em 66,6% e 17,8% respectivamente. Em 2010, a taxa de desemprego na ilha era de 9% e, de acordo com os dados de RGPH de 2010, continua a ter maior incidência na população mais jovem, uma situação agravada tendo em conta

saída precoce do sistema formal do ensino, pelas assimetrias regionais, pelo baixo nível de habilitação profissional da população activa e por situações de falta de expectativa de uma parte importante de inactivos considerados, no conceito operacional de emprego, como desencorajados 26.

No entanto, é preciso esclarecer que a grande variação na taxa de desemprego que se verificou em Santo Antão em tão curto período de tempo se deve à utilização de uma nova metodologia de cálculo, justificada pelo INE pela necessidade de ajustar os padrões nacionais a padrões internacionais designadamente os utilizados nos países da União Europeia, países membros do Observatório Económico e Estatístico da África Subsariana (AFRISTAT), da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), etc. A agricultura e a pesca são sectores que oferecem maiores oportunidades de emprego em Cabo Verde e a ilha de Santo Antão não foge a esta regra, o que condiciona circunstancialmente as incidências do desemprego, na medida em que essas oportunidades dependem da queda das precipitações e, consequentemente, dos resultados do ano agrícola. Esta condição incide mais no desemprego onde as famílias têm menos acesso às terras como se verifica em Santo Antão. Os dados do QUIBB 2007 referem que a ilha de Santo Antão é a que dispõe de maior incidência da pobreza a nível nacional. Ou seja, a ilha comporta cerca de 45,6% dos pobres, seguida do interior da ilha de Santiago com cerca de 41,5% e ilha do Fogo com cerca de 39,0%.

Quadro n.º 4 - Incidência da pobreza em Santo Antão

Incidência de Incidência de Incidência de Pobreza (%) Pobreza–Urbano (%) Pobreza– Rural (%)

26 Governo de Cabo Verde, Estudo diagnóstico sobre o mercado de emprego em Cabo Verde, Praia, 2008.

47 CABO VERDE 26,6 13,2 44,3 Santo Antão Ribeira Grande 44 17,2 50,9 Paul 54,1 26,2 64 Porto Novo 43,5 26,7 60,4 Fonte: QUIBB 2007

De entre os três concelhos da ilha, o de Paul é aquele que apresenta a maior incidência da pobreza, no conjunto da sua população (54,1%) seguido da Ribeira Grande com cerca de 44%. O Concelho do Porto Novo é abrangido por cerca de 43,5%. Os dados do Inquérito de Seguimento da Vulnerabilidade Alimentar das Famílias realizado em 2005 pelo MAA (assim designado na altura) demonstraram que, em Santo Antão, cerca de 27% das famílias viviam em situação de insegurança alimentar, um número bastante superior ao do país que se situava à volta de 11%. Para concluir, a abordagem sobre os aspectos socioeconómicos da ilha de Santo Antão, salientamos que um documento elaborado em 1991 no âmbito do “Santo Antão Rural Development Project” (SARDEP) sobre o diagnóstico da situação da ilha de Santo Antão naquele período sublinha que,

A população de Santo Antão conheceu durante a década de 70 – 80 evoluções significativas nos principais indicadores do nível de vida que, sem satisfazerem ainda as necessidades e continuando abaixo da média nacional na sua maioria, denota-se todavia um pulsar que a continuar e a ser implementado poderá conduzir ao desenvolvimento social que se pretende (SARDEP, 1991: 41).

Vinte anos depois é curioso notar que muitos dos principais indicadores socioeconómicos da ilha continuam com valores abaixo da média nacional. Podemos apontar como exemplos a taxa de alfabetização ou nível de escolaridade, taxa de actividade, índice de pobreza, acesso a cuidados de saúde, a satisfação da necessidade de alimentação em função do rendimento mensal, etc. o que significa que o “pulsar” que a ilha outrora conheceu terá tido continuidade.

5. A Organização da Sociedade Civil: As ADC como modelo dominante

Falar da organização da sociedade civil 27 significa em grandes traços abordar as diferentes dimensões das actuações da sociedade de forma estruturada e coerente fora

27 O termo “organização da sociedade civil” é de algum tempo a esta parte, substituído pelo termo “terceiro sector”. Contudo, as linhas dominantes seguidas pelos actores sociais que integram essas duas

48 do campo político, tendo em vista participar no processo de transformação social de um espaço social qualquer que seja a sua dimensão. Uma organização da sociedade civil, pela sua própria natureza, não tem fins lucrativos. Antes pelo contrário desenvolve as suas acções tendo como orientação a prossecução de interesses colectivos, razão pela qual atribui-se a essas acções um carácter eminentemente público, do mais a mais ela está intrinsecamente ligada aos conceitos de parceria, participação social, cidadania, etc. Uma organização da sociedade civil está quase sempre associada à ideia de luta dentro dos parâmetros da democracia e, por isso, a união entre os seus membros é um pressuposto essencial no quadro do cumprimento dos seus objectivos, sobretudo quando integra o ambiente democrático. A importância atribuída às funções que as OSC desempenham num determinado espaço social pode ser vista de vários ângulos. Numa determinada perspectiva as OSC podem ser vistas como incubadoras de novas ideias e fora onde se dá a voz às injustiças sociais (…) ou como entidades que ajudam a preservar as tradições e abrem portas a novas experiencias intelectuais (Rifkin, 1996: 245). O entendimento sobre a importância que uma sociedade civil organizada tem no processo de desenvolvimento de um país integrou a história de Cabo Verde de forma mais ou menos explícita ainda nos primeiros anos após a independência nacional. A primeira constituição da República de Cabo Verde refere no seu artigo 7º que,

1. O Estado apoia e protege as organizações de massas e as outras organizações sociais reconhecidas por lei, que organizadas em torno de interesses específicos, enquadram e fomentam a iniciativa popular e asseguram a ampla participação das massas na Reconstrução Nacional; 2. O Estado, na sua acção apoia-se nas organizações de massa e outras organizações sociais às quais poderá transferir determinadas actividades que elas aceitem assumir; 3. O Estado cria condições para o desenvolvimento da base material das organizações de massa e outras organizações sociais e proteger o seu património (silva, 2007: 16).

Reconhecer nas organizações da sociedade civil a capacidade de ajudar na reconstrução do país representava, no fundo, dar continuidade aos pressupostos teóricos sobre o desenvolvimento que faziam escola na época. É nesta perspectiva que, mais do que um

designações emanam do preenchimento de um espaço que não seja nem do domínio do estado (porque são do domínio privado) nem do domínio do mercado (porque não têm fins lucrativos). O termo “terceiro sector” parece ser mais explícito numa perspectiva em que o estado é considerado como “sociedade natural” e consequentemente o primeiro sector e o mercado como segundo sector.

49 simples reconhecimento da importância da organização da sociedade civil em todo o processo de transformação da sociedade cabo-verdiana, impunha-se ao Estado, a obrigação de desenvolver condições para a sua criação e o seu normal funcionamento claramente fixada no texto da Constituição da República que vigorava nessa altura. É nesta perspectiva, por exemplo, que se implementou nesse período com apoio da FAO,

um programa de sensibilização/formação dos técnicos do Ministério de Desenvolvimento Rural, em matéria de abordagem, técnica e métodos de envolvimento das populações nos projectos de desenvolvimento e de difusão de técnicas de cultivo tendo como suporte e objectivo, a organização das comunidades e dos produtores (Santos, 2008).

A aposta nos movimentos sociais como agentes fundamentais da (re) construção nacional representava claramente um de entre muitos cortes com o paradigma seguido pelos portugueses, enquanto colonizadores das ilhas de Cabo Verde, que viam no fechamento social um mecanismo de obstar acções de contestação que a uma determinada altura eram emergentes designadamente no seio dos intelectuais negros norte americanos (Fernandes, 2006:41). Como se deve perceber estamos a falar de uma organização promovida pelo Estado e pelo partido no quadro de um regime político mono partidário. Nesta óptica essas organizações tinham objectivos político-partidários, quanto mais não seja porque o Estado tinha o controlo e a direcção das actividades públicas, o que vai na linha da ideia de que,

o regime cabo-verdiano define a participação simultaneamente como um meio e uma finalidade do seu projecto político. A participação popular com vista ao desenvolvimento é então institucionalizada e todas as formas modernas de organizações económicas e sociais designadamente as cooperativas e associações eram assumidas e definidas como elementos que caracterizavam o regime (Santos e Bastin, 1988: 212).

Hoje, os contextos sociais, políticos, culturais e económicos são outros e a realidade da organização da sociedade civil é completamente diferente. É diferente não só em relação ao período em que vigorou o sistema político mono partidário mas também é diferente em relação aos primeiros anos da implantação do regime democrático em Cabo Verde. Mudaram várias dimensões da vida das organizações da sociedade civil cabo-verdiana. Ao longo deste trabalho vamos tentar esboçar os contornos das mudanças que se operaram nessa esfera da sociedade.

50 Posto isto, e direccionando a abordagem para a ilha de Santo Antão refira-se que das mais de 200 Organizações não-governamentais existentes em Cabo Verde apenas cinco definem como área geográfica de actuação a ilha de Santo Antão. São elas a OADISA sedeada na Ribeira Grande, Liga dos Amigos de Paul (Ami-Paul) sedeada na Vila das Pombas, Associação para o Desenvolvimento Integrado da Ribeira da Torre (ARITORRE) com a sede na Ribeira da Torre, Associação de Agricultores Produtores Agro-industrial do Paul (APAI) com a sede no Paul e Associação para o Desenvolvimento Durável de Santo Antão (Adu-Paul), com a sede na Vila das Pombas. A Liga dos Amigos o Paul (Ami-Paul), apesar de definir a ilha como a área geográfica de actuação, centra as suas acções mais no concelho do Paul, como sugere a designação. Existem, porém, algumas Organizações não-governamentais de dimensão nacional sedeadas na ilha, designadamente o Atelier Mar, a Morabi, a Organização das Mulheres de Cabo Verde, a Cruz Vermelha, a BORNEfondem, etc. De entre as mais de 600 ADC existentes no país 28, cerca de 85 são de Santo Antão, distribuídas desta forma : Paul 21, Porto Novo 30 e Ribeira Grande 34. De entre elas 76 integram a Plataforma das Organizações não-governamentais de Cabo Verde e 80 integram a Comissão Regional de Parceiros (CRP) de Santo Antão (ver o quadro em anexo). Ou seja, tal como nas outras ilhas do país, as associações de desenvolvimento comunitário (ADC) são modelos dominantes na estrutura organizacional da sociedade civil em Santo Antão, uma ilha onde algumas pessoas que trabalham ligadas ao associativismo cabo-verdiano defendem ter uma cultura organizativa ao nível da sociedade civil, das mais consolidadas e, consequentemente, das mais profícuas de todo o país 29. Refira-se que o grosso das ADC terá surgido no quadro de uma nova política de execução de projectos de intervenção nas comunidades que a partir de uma certa altura passaram a ser executadas pelas associações mediante um contrato de adjudicação. Esses projectos são financiados na maior parte dos casos pelo Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos (MADRRM) e pelo Ministério das Infra-

28 Vide Guia das ONG de Cabo Verde, editada pela Plataforma das ONG de Cabo Verde em 2007. 29 Jorge Pires, um técnico que trabalha na rede Rassol (uma rede de Associações de Desenvolvimento Comunitário de Região Norte, que envolve as ilhas de Santo Antão, São Vicente e São Nicolau. Esta rede alberga 23 Associações no Âmbito de um financiamento através de um fundo para capacitar as associações para desenvolver um trabalho mais técnico e mais pedagógico) é um dos que defendeu esta ideia numa entrevista que nos concedeu em 2010. Ele afirma taxativamente que Santo Antão é a ilha onde ocorrem as maiores dinâmicas associativas do país.

51 estruturas e Transportes (MIT) e, recentemente, também pelas Câmaras Municipais. Antes, os projectos elaborados no âmbito desses dois ministérios eram executados pelas Câmaras Municipais e adjudicados através dos contratos programas. As associações da Ribeira Grande e do Paul estão inscritas na Organização das Associações de Desenvolvimento Integrado de Santo Antão (OADISA) enquanto as do Porto Novo são membros da Federação das Associações de Desenvolvimento do Porto Novo (FADEP), duas organizações chapéu das demais. A OADISA, além de se encontrar filiada na Plataforma das Organizações não- governamentais de Cabo Verde, é, também, filiada da Comissão Regional de Parceiros.

6. A estrutura do poder e ambiente político

Desde 1990 que vigora em Cabo Verde um sistema político assente nos pressupostos de estado de direito e democrático,

com um vasto catálogo de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a concepção da dignidade da pessoa humana como valor absoluto e sobrepondo-se ao próprio Estado, um sistema de governo de equilíbrio de poderes entre os diversos órgãos de soberania, um poder judicial forte e independente, um poder local cujos titulares dos órgãos são eleitos pelas comunidades e perante elas responsabilizados, uma Administração Pública ao serviço dos cidadãos e concebida como instrumento do desenvolvimento e um sistema de garantia de defesa da Constituição característico de um regime de democracia pluralista 30.

A instituição do novo regime político no país serviu para pôr fim um regime político baseado nas características de partido único, que vinha vigorando desde 1975, que serviu, por sua vez, para pôr fim ao sistema colonial português que vigorou durante cinco séculos 31 . São essas transformações que ocorreram no país, particularmente aquelas que decorrem da instalação do regime político democrático, que se constituem as bases da estrutura do poder político no país. A organização do poder político, que prima os seus princípios políticos pelo direito e pela democracia, sujeita-se a dois tipos de relações conceptuais fundamentais: a concentração e desconcentração e centralização e descentralização. É com base nestas relações conceptuais que a organização do poder político em Cabo Verde conheceu a

30 Preâmbulo da Constituição da República de Cabo Verde. Versão revista em 2010. 31 Sobre o processo de transição política e instituição do regime democrático em Cabo Verde remetemos para a leitura de Roselma Évora (2004).

52 sua primeira abordagem a partir da independência nacional, e a Constituição da República é, também, nesta perspectiva, um documento de referência. A análise do primeiro texto constitucional permite-nos concluir que, pese embora já se reconhecesse a importância da participação no processo de desenvolvimento ou de “reconstrução” do país, essa participação não é acompanhada de uma percepção em relação à importância da descentralização neste mesmo processo. Este documento apenas faz menção ao poder local nos seguintes termos:

1. Os órgãos do poder local fazem parte do poder estatal unitário. Eles baseiam-se na participação popular, apoiam-se na eficácia e capacidade criadora das comunidades locais e actuam em estreita coordenação com as organizações de massa e outras organizações sociais; 2. O poder local organiza-se essencialmente através das autarquias locais; 3. A lei regula a organização, as atribuições e as competências do poder local (Silva, 2007: 37).

Este pode ter sido o argumento de peso para aqueles que defendem que o verdadeiro processo de descentralização em Cabo Verde inicia-se com a abertura política ocorrida em 1990. Livramento vai um pouco mais longe a ponto de caracterizar de centralizador o poder local instituído durante esse período. Fica implícita na sua opinião que a descentralização em Cabo Verde arranca com a lei n.º 47/III/89 e a Lei n.º 48 /III/89, ambas de 13 de Julho, sobre as bases das Autarquias Locais e Normas para as Eleições Municipais respectivamente, e o Decreto-Lei n.º 52 – A/90 de 4 de Julho que define o funcionamento e a organização dos municípios (Silva, 2007: 37). Na verdade, a Constituição da República aprovada em 1992, e que serviu de sustentáculo da denominada Segunda República, é bem mais abrangente em relação quer à descentralização do poder quer à desconcentração administrativa. Esta ideia encontra-se referenciada implicitamente no preâmbulo deste documento e explicitamente no n.2 do art. 2º onde diz que,

a República de Cabo Verde reconhece e respeita, na organização do poder político, a natureza unitária do Estado, a forma republicana de governo, a democracia pluralista, a separação e a interdependência dos poderes, a separação entre as Igrejas e o Estado, a independência dos Tribunais, a existência e a autonomia do poder local e a descentralização democrática da Administração Pública.

Mas, mais do que isso e ainda no que diz respeito ao poder local e consequentemente à descentralização do poder político, a Constituição de 1992 consagra vários princípios

53 como, por exemplo, aquele que estabelece que as autarquias locais devem prosseguir os interesses próprios das populações que representam, que define as categorias das autarquias locais, a solidariedade do Estado ou da administração central para com as autarquias, o património e finanças das autarquias, a organização das autarquias, o poder de regulamentação, atribuições e organização das autarquias locais, etc. No que se refere à desconcentração administrativa, a Constituição define, de entre os princípios gerais que, [

a Administração Pública é estruturada de modo a prestar aos cidadãos um serviço eficiente e de qualidade, obedecendo, designadamente, aos princípios da subsidiariedade, da desconcentração, da descentralização, da racionalização, da avaliação e controlo e da participação dos interessados, sem prejuízo da necessária eficácia e unidade de acção da Administração e dos poderes de direcção, superintendência e tutela dos órgãos competentes, nos termos da lei] e que a lei pode criar autoridades administrativas independentes. Estas são as bases para que o estado seja hoje representado em todos os concelhos ou municípios pelos serviços desconcentrados, um facto ancorado no propósito de promover uma acessibilidade para todos, encetar uma governação mais próxima dos cidadãos 32 entre outros princípios. Na ilha de Santo Antão encontram-se sediados quase todos os serviços do Estado. No entanto, é preciso sublinhar que nem todos os ministérios têm a devida representação na ilha e, além do mais, os níveis de representação dos serviços do Estado são bastante diferenciados entre si. Certos sectores públicos têm uma única representação para toda a ilha e outros há, que têm representações em todos os concelhos. Existem, por exemplo, delegações do Ministério de Educação e Desportos e delegações do Ministério de Saúde, delegações do Ministério das Finanças e do Planeamento, etc. em todos os concelhos. Já o Ministério do Desenvolvimento Rural que, na legislatura que culminou em Fevereiro de 2011, integrava os sectores da pesca e do ambiente, é representado por uma delegação sedeada no concelho de Ribeira Grande. Existe um tribunal em cada concelho sendo o de Ponta de Sol de primeira classe, do Porto Novo de segunda classe e do Paul de terceira classe. No quadro de actual estrutura do governo nota-se que alguns ministérios, que se ocupam de sectores chave do desenvolvimento local e regional, não têm representações na ilha.

32 Agenda da Reforma do Estado para a legislatura 2006-2011.

54 Referimo-nos concretamente ao Ministério do Ensino Superior Ciência e Inovação e Ministério da Cultura. O exercício do poder local em Cabo Verde ocorre tendo em conta a Lei-quadro da Descentralização em vigor desde 2010 33 . Esta lei estabelece como conceito da descentralização administrativa

Todo o processo pelo qual atribuições administrativas e inerentes poderes de opção e/ou execução e controlo são conferidos a centros institucionalizados mais próximos das populações locais beneficiários da acção administrativa, no quadro da Constituição e das leis e regulamentos emanados dos órgãos de soberania competentes.

Além do mais, define como princípios da descentralização o reforço da coesão nacional, a eficiência e eficácia da gestão da coisa pública, assegurar a satisfação das necessidades colectivas dos cidadãos etc. De acordo com a Lei-quadro da Descentralização, os órgãos que compõem as autarquias locais funcionam tendo em conta os princípios da independência e de autonomia. A mesma Lei-quadro confere às autarquias locais o poder de estabelecer parcerias público- privadas com os mais diferentes actores sociais perspectivando a realização de projectos e investimentos de âmbito regional e local. Importa, no entanto realçar que esta lei não perde nunca de vista o “Princípio da unidade do Estado”, isto é, realça a necessidade, ainda que no quadro da descentralização, de as autarquias terem em consideração os objectivos e programas do governo “num quadro de cooperação inter-autárquica e de articulação permanente com os órgãos competentes da Administração Central (…)”. Os três concelhos correspondem aos três municípios ou autarquias locais. Os Municípios da Ribeira Grande e do Porto Novo são actualmente liderados pelo Movimento para a Democracia que, em relação ao governo da República, é oposição desde as eleições legislativas realizadas em 2001, ao passo que Paul é liderado pelo PAICV, partido que apoia o governo desde essa época 34.

33 Lei n.º 69/VII/2010 de 16 de Agosto. 34 Fazendo uma espécie de retrospectiva sobre o exercício dos mandatos nas Câmaras Municipais em Santo Antão, refira-se que, no que diz respeito à Ribeira Grande, em 1991 Jorge Santos foi eleito Presidente da Câmara nas listas apoiadas pelo MpD. O mesmo voltou a ser reeleito em 1996 integrando uma lista de independentes apoiada pelo PAICV, e em 2000 numa lista apoiada de novo pelo MpD. As eleições de 2004 e 2008 foram ganhas por Orlando Delgado que integrou em ambas as eleições as listas apoiadas pelo MpD.

55 Os Municípios são representados pela Assembleia Municipal, Câmara Municipal e Presidente da Câmara Municipal eleitos por um período de 4 anos 35. A Assembleia Municipal é o órgão deliberativo do Município e constituída por membros eleitos por sufrágio universal, directo, livre, igual e secreto 36. Por seu turno, a Câmara Municipal é o órgão executivo colegial do Município. Ela é constituída por um Presidente e por Vereadores eleitos por sob os mesmos moldes 37. O Presidente da Câmara Municipal é o órgão executivo singular do Município 38. O número de lugares na Assembleia e Câmara Municipais varia em função do número de habitantes de cada município 39. Nas eleições autárquicas de 2008 a larga maioria dos candidatos era professor do Ensino Básico Integrado (EBI) e Ensino Secundário (ES), pelo que pode-se dizer que um cargo de vereador profissionalizado compensa, quer do ponto de vista material quer do ponto de vista simbólico. Daí resultarem também que as disputas por um lugar nas listas de candidatos às eleições autárquicas serem normalmente muito acirradas no seio dos partidos políticos, razão porque os partidos políticos têm nos seus estatutos instrumentos normativos para atenuar os eventuais danos colaterais que daí possam resultar. No caso do PAICV as eleições primárias ocorrem sempre que houver mais do que um candidato a disputar a indicação do Partido para o cargo electivo de Presidente da Câmara Municipal (…) 40 . Já no caso do MpD não se encontram mencionados nos seus estatutos quaisquer mecanismos de prevenção contra situações similares. No entanto, considera-se uma infracção disciplinar grave a candidatura a qualquer órgão ou função electiva do Estado ou de autarquia local, sem a devida concertação prévia com o órgão competente do partido 41, o que a acontecer sujeita-se a sanções disciplinares que podem ir até à suspensão do partido.

O Município do Porto Novo foi sempre liderado pelos presidentes de Câmara que integraram as listas do MpD. César Almeida foi Presidente entre 1991 a 1996, Joel Barros de 1996 a 2004 e Amadeu Cruz de 2004 a esta parte. O Município do Paul foi liderada por Alcídio Tavares de 1991 a 2000, integrando sempre listas de independentes apoiadas pelo PAICV, Américo Silva entre 2000 e 2008 eleito pelas listas do MpD e de 2008 a esta parte por Vera Almeida eleita pela lista do PAICV. 35 Estatutos dos municípios de Cabo Verde, art. 45º. 36 Idem, Artigos 65º e 66º. 37 Idem, Artigo 83º. 38 Idem, Artigo 94º. 39 Idem, Artigos 66º e 83º. 40 Estatutos do PAICV, Artigo 29º. 41 Estatutos do MpD, alínea i) do n.º 2 do Artigo 80º.

56 Reconheça-se, porém, que as disputas pelas eleições são muito mais intensas e assumem proporções mais acentuadas entre os partidos políticos. As Câmaras Municipais detêm autonomia administrativa, financeira, patrimonial, normativa organizativa e os seus órgãos gozam do princípio de independência no âmbito das suas competências e no âmbito das suas deliberações ou decisões 42. Até uma certa altura da evolução da descentralização em Cabo Verde, os municípios eram livres para se associarem como são livres de estabelecer relações de cooperação ou de geminação com países com os quais o país tem relações diplomáticas, conforme acharem necessárias. Para fazer face às debilidades financeiras do Estado, os municípios recorrem ao à prática da cooperação descentralizada, um conceito que terá surgido em finais dos anos oitenta, cujo termo terá sido cunhado na IV Conferência de Lomé, realizada em 1989 em que participaram os países da união europeia e os de África, Caraíbas e Pacífico (ACP) 43. Apareceu como uma forma de melhorar a performance da cooperação para o desenvolvimento e assumir um novo paradigma de cooperação internacional para o desenvolvimento. Esta prática assume várias formas como, por exemplo, geminações, protocolos e acordos de cooperação e redes. Em Cabo Verde as geminações têm sido uma modalidade bastante expressiva da cooperação descentralizada encetada pelos municípios. A cooperação descentralizada, como reconheceu Felisberto Vieira, Presidente cessante da Câmara Municipal da Praia,

tem permitido enfrentar os problemas urbanos como o desemprego, a degradação ambiental, a exclusão social, tornando-se um dos novos paradigmas no processo de globalização para a promoção do desenvolvimento sustentável das cidades 44.

O governo, a uma determinada altura, trouxe para o debate público a nova proposta de lei sobre a cooperação internacional descentralizada que levantou muita fumaça no quintal político.

42 Vide os artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º dos Estatutos do Município. 43 Vide Estudo sobre Cooperação Descentralizada em Cabo Verde do Ministério das Finanças, Planeamento e Desenvolvimento Regional, Praia, Dezembro de 2002. 44 Apresentação do tema: Cooperação Descentralizada e Desenvolvimento Local, no Fórum Internacional Sobre a Governança Local e Desenvolvimento Territorial realizado na Praia nos dias 14 e 15 de Maio de 2009.

57 De 1991 ao presente momento os Municípios de Santo Antão realizaram vários acordos de geminação e de cooperação com destaque para os municípios portugueses, conforme se pode ver no quadro em anexo. A cooperação descentralizada tem sido desenvolvida no quadro de estratégias que os municípios cabo-verdianos seguem para mobilizarem recursos, de forma a desenvolverem projectos de desenvolvimento nos seus concelhos. Vão procurar lá fora o que não conseguem cá dentro. As áreas de cooperação privilegiadas pelos municípios da ilha de Santo Antão têm sido aquelas no domínio social designadamente a educação e formação profissional, apoios no sector da habitação social, etc. De igual modo, o domínio da cultura tem também merecido alguma atenção. O regime jurídico geral da cooperação internacional descentralizada e que, de resto, abrange as relações intermunicipais de geminação, objecto da Lei n.º 57/VII/2010 trouxe novas abordagens aos municípios. Estabelece como o princípio fundamental a ideia de que a cooperação internacional descentralizada rege-se pelos princípios da legalidade, da autonomia, da subsidiariedade e da colaboração institucional, visando a primazia e unicidade da política externa de Cabo Verde. Mas o ponto nevrálgico do regime jurídico da cooperação internacional descentralizada tem a ver, em primeiro lugar, com a normalização da definição e coordenação das acções de cooperação centralizando no governo praticamente todos os poderes nesse sentido e que se expressa da seguinte maneira: 1. O Governo define e coordena a política e as estratégias de cooperação internacional descentralizada para o desenvolvimento, ouvidos os seus agentes; 2. Os departamentos governamentais responsáveis pela cooperação internacional e pelas relações com as Autarquias Locais organizam as informações e coordenam a execução da política nacional de cooperação internacional descentralizada para o desenvolvimento, salvaguardando o princípio da unidade do Estado nas relações exteriores; 3. O serviço do departamento responsável pela cooperação internacional articula ainda as suas acções com o departamento governamental responsável pelo planeamento; 4. Os demais departamentos governamentais que realizem actividades em matéria de cooperação descentralizada para o desenvolvimento são responsáveis pelos programas, projectos e acções nos termos da presente lei.

58 Esses poderes são exercidos através dos designados Órgãos e estruturas de coordenação e articulação que compreendem a Comissão Nacional de Cooperação Internacional Descentralizada (CNCID), que é [

o órgão por excelência de articulação e coordenação entre o Governo, agentes de cooperação internacional descentralizada e parceiros externos, cabendo-lhe, em geral, contribuir para a formulação e execução da política nacional de Cooperação Internacional Descentralizada ] os departamentos governamentais responsáveis pela Cooperação Internacional e pelas relações com as autarquias locais; a associação nacional representativa das autarquias locais, legalmente reconhecida pelo Governo nos termos da lei e a plataforma representativa das ONG, como tal reconhecida pelo Governo 45. Estamos perante uma lei com interpretações plurais e de certo modo tipificadas em função da posição que se encontra face à situação do poder. Numa entrevista que nos foi concedida pelo Presidente da Câmara da Ribeira Grande, Orlando Delgado, este deixou transparecer que o regime jurídico geral da cooperação internacional descentralizada não serve aos interesses dos municípios. E fez uma comparação entre as leis actual e a antiga, com o seguinte exemplo:

A cooperação com Holanda e Luxemburgo era feita no quadro da lógica de cooperação descentralizada. Esses países financiavam projectos concebidos localmente. O governo apenas assinava os protocolos de cooperação. Todo resto fazia-se nas localidades. Esta foi uma das visões que o governo de então tinha e que permitiu as localidades e particularmente santo Antão dar um passo substancial no processo do seu desenvolvimento. Foi assim que se criou o Gabinete Técnico Intermunicipal, e foi nessa base que se elaborou os dois Planos de Desenvolvimento de Santo Antão.

Para o autarca, o modelo de cooperação descentralizada no qual se baseia o exemplo acima apresentado é que permitiu que a ilha desse os primeiros passos rumos ao desenvolvimento. Vai mais longe considerando que o actual regime jurídico geral da cooperação internacional descentralizada consubstancia-se num expediente do partido que sustenta o governo para condicionar as estratégias de desenvolvimento que os municípios autonomamente estabelecem e, assim, tirar os dividendos políticos. Ou seja, trata-se de uma medida pensada tendo em vista fins eleitoralistas.

45 N.º 2 do art. 29º do Regime Jurídico Geral da Cooperação Internacional Descentralizada.

59 Já para Vera Almeida, Presidente da Câmara Municipal do Paul o novo regime jurídico geral da cooperação internacional descentralizada se justifica, primeiro, porque deriva na opinião dela das imposições dos parceiros que vêm nessa medida uma estratégia para combater o mau uso dos donativos. Mas Vera Almeida também encontra argumento para apoiar a medida que decorre desta lei o seguinte:

Todos sabemos que muitos gestores municipais gerem mal o dinheiro público. A nossa Câmara foi um exemplo claro disso. Quando ganhamos as eleições deparamos com uma situação em que um parceiro financiou um projecto e simplesmente a Câmara Municipal não o executou. Recebemos um ofício desse parceiro para justificar a utilização do dinheiro do projecto. Tivemos que dizer claramente que o projecto não foi executado. Temos que trabalhar com a verdade, doa a quem doer.

Na sequência do que afirma Vera Almeida sobre a imposição dos parceiros externos de desenvolvimento remetemos para os conteúdos da “Carta Europea de la cooperación en apoyo a la Gobernanza Local” que define como um dos princípios gerais de cooperação a necessidade de

garantizar la coherencia del apoyo a la gobernanza local y al desarrollo local con las políticas y estrategias nacionales de descentralización, sosteniendo los procedimientos y sistemas nacionales 46.

Os municípios cabo-verdianos têm competências nos seguintes domínios: administração e gestão dos bens do domínio público e privado municipal, bem como gestão local de bens do domínio público ou privado do Estado circunscritos no território municipal. Representa desde logo focos de tensões entre os dois níveis de poder. Normalmente, as transferências de competências para a gestão de um bem do domínio público ou privado do Estado depende do grau de interesse que esse bem desperta e das vantagens comparativas que esse bem proporciona no campo eleitoral. Os municípios têm competências também nos domínios do planeamento, saneamento básico, desenvolvimento rural como, por exemplo [

incentivo à instalação e exploração de unidades de produção agro-pecuária tais como aviários, pocilgas, granjas, para satisfação das necessidades colectivas a nível municipal; incentivo a instalação e exploração de unidades de produção artesanal ou industrial tais como carpintarias, marcenarias, serralharias, oficinas mecânicas, oficinas de reparações, de canalizações, de electricidade ]

46 União Europeia (2008); Carta Europea de la cooperación en apoyo a la Gobernanza Local, p. 3.

60 competências nos domínios da saúde, habitação, transportes rodoviários no que tange a sua regulamentação, planeamento concessão da exploração do serviço de transporte colectivos urbanos, estabelecimento, execução e conservação da rede viária municipal e dos caminhos vicinais; organização do serviço de táxis e lotações, fixando a respectivas tarifas; educação no que tange

à construção, equipamento, gestão e manutenção de infra-estruturas de educação pré- escolar e do ensino básico; Organização dos transportes escolares; Promoção de acções, campanhas e programas de alfabetização; Acompanhamento das actividades de pós- alfabetizacão; Incentivo ao ensino privado.

Os municípios têm, de igual modo, competências nos domínios da cultura, desporto, turismo, ambiente, comércio interno, protecção civil, emprego e formação profissional, polícia, designadamente em matéria de [

emissão e fiscalização do comprimento de posturas e regulamentos policiais com vista, designadamente a defesa e protecção da saúde pública e do meio ambiente, à segurança na circulação de viaturas e peões nas vias públicas, ao respeito das normas de gestão urbanística, à garantia do abastecimento público e à defesa do consumidor; ] entre outras competências. Os estatutos dos municípios, no seu art. 35º, definem, de igual modo, o domínio da promoção social como competência das autarquias locais, isto na sequência do Decreto- Lei n.º 24/94, de 11 de Abril, que o integravam nos Municípios, tendo estes direito a uma subvenção do Estado. No entanto, devido a um conjunto de situações decorrentes de uma certa incongruência em matéria de gestão dos recursos financeiros e humanos, mas tendo também em conta que a descentralização destes serviços não tiveram o impacto desejado, pelo menos de acordo com os argumentos divulgados em nota nessa altura, o governo resolveu integrá-lo na dependência do Estado funcionando como serviço desconcentrado, uma medida aprovada na reunião semanal do Conselho de Ministros realizada a 13 de Dezembro de 2009, uma medida que, para Amadeu Cruz, Presidente da Câmara Municipal do Porto Novo, representa um retrocesso no processo de descentralização em Cabo Verde. Os municípios cabo-verdianos enfrentam globalmente grandes problemas financeiros decorrentes da fraca capacidade de mobilizar receitas quer por falta de competências

61 legais quer ainda por falta de recursos humanos. Muitos deles dependem grandemente das transferências do Estado que ocorrem no âmbito do Fundo de Equilíbrio Financeiro composto por duas dotações, ou seja a Dotação Geral Municipal calculada na razão directa da população residente, na razão directa da superfície do Concelho e na razão de uma participação igual para todos os Municípios e a Dotação da Solidariedade Intermunicipal 47. O artigo 95º dos Estatutos dos Municípios estabelece que o Presidente da Câmara Municipal goza, no Município, de precedência sobre todos os funcionários públicos. Na sequência dessa norma e no âmbito das suas competências um Presidente da Câmara Municipal tem a prorrogativa de realizar, sempre que entender necessário, encontros com os responsáveis da Administração directa e indirecta do Estado para abordarem questões de interesse municipal. Esses encontros devem indicativamente realizar-se semestralmente de acordo com o artigo 105º. No entanto, isso dificilmente acontece em municípios governados pelo partido de oposição. Na opinião do Presidente da Câmara Municipal do Porto Novo o ambiente político nesses termos:

Você vê alguma vantagem na conjuntura política actual, um Presidente da Câmara Municipal apoiado por um partido de oposição reunir-se com os chefes dos Serviços Desconcentrados do Estado? Vão tratar que assunto em particular, sendo que tudo é visto num campo de mero interesse político? Você acha que um chefe de um serviço do estado vai fazer alguma coisa que embora possa beneficiar o município mas que possa parecer que promova a câmara municipal? Claro que não.

As relações entre os dois níveis do poder em Cabo Verde não são as melhores. Veja-se, por exemplo, o teor de uma carta aberta que o Ex. Presidente da Câmara Municipal do Paul endereçou à Ministra de Educação datada de 28 de Setembro de 2007, com conhecimento ao Presidente da República, Primeiro-ministro, Embaixador do Grão- Ducado do Luxemburgo, etc. a propósito da inauguração da Escola EBI na Vila das Pombas. A dita carta começava desta forma:

Antes de mais, devo confessar-lhe que a presente missiva, que escrevo, sem prazer, foi motivada pelo comportamento indecoroso e absolutamente inaceitável de Vossa Excelência, em qualquer Estado, que se preze, mormente num Estado de Direito

47 Segundo o n.º 1 do art. 11º da Lei n.º 76/V/98 de 7 de Dezembro “A DSI é uma verba na qual têm direito a participação apenas os Municípios, cujos impostos municipais per capita cobrados relativos à média dos últimos três anos, for inferior à média geral referenciada ao mesmo período”.

62 Democrático, por ocasião da sua deslocação ao Paul, na qualidade de Ministra da Educação, para presidir a inauguração da Escola do EBI da Vila das Pombas e, também, para presidir à abertura do ano lectivo 2007.

E termina assim:

Faço votos, sinceramente, que no meu País, no Cabo Verde Livre, Democrático e Plural, nunca mais venham a acontecer golpes e expedientes tão politiqueiros, tão baixos, torpes e vulgares, como a que acaba de ter lugar, no Município do Paul, por ocasião da inauguração da Escola do EBI e da abertura do ano lectivo 2007. Devo ainda informar a Vossa Excelência que, por se tratar de assunto de interesse público e municipal e de um mau exemplo a esconjurar, farei a denúncia pública da ocorrência, nos órgãos de comunicação social, assim como darei conhecimento aos órgãos de soberania, aos órgãos municipais competentes e a outras entidades relevantes. Em nome da boa Educação, faço votos sinceros que, desse triste episódio, Vossa Excelência, tenha a coragem, a humildade, um pouco de sentido institucional e de dignidade, para tirar as devidas ilações.

Ora, as más relações institucionais que vêm caracterizando os dois níveis do poder político e que estendem aos serviços desconcentrados do Estado parecem derivar, na perspectiva do antigo presidente de Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde (ANMCV), na existência de “uma certa indefinição nas atribuições e competências entre o Estado e os municípios” e, por isso, numa carta que dirigiu ao Primeiro-ministro de Cabo Verde em Junho de 2006 48, chama atenção ao governo para a necessidade de se proceder a uma revisão dos estatutos dos municípios bem como a lei de base de descentralização. Nesta sequência, em Junho de 2007, o Ministério de Descentralização, Habitação e Ordenamento do Território (MDHOT), “no quadro de reforço e consolidação do poder local” apresenta para discussão e recolha de subsídios, a proposta de revisão dos estatutos num encontro que contou com as presenças dos presidentes das Câmaras e Assembleias Municipais, Secretários Municipais da região de Santiago, representantes de alguns serviços do Estado etc. Dois anos depois, mais concretamente em Dezembro de 2009, numa reunião do Conselho Geral que se realizou em Assomada, a ANMCV voltou a manifestar a vontade de ver revistos os estatutos dos municípios. Na sessão parlamentar que decorreu de 22 a 29 de Outubro de 2010 o governo agendou para discussão e aprovação a referida proposta da revisão dos estatutos dos municípios, um diploma que requeria 2/3 dos votos e acabou por não passar devido aos votos contra do MpD e da UCID.

48 Arquivos de ANMCV

63 O Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santo Antão afirma peremptoriamente que,

há uma guerra aberta entre os níveis de poder para protagonizar-se em relação às acções desenvolvidas. Por vezes procura-se criar barreiras para que uma ou outra acção não se realize para não ter protagonismos e não potenciar sentidos de voto.

Certas personalidades da esfera política nacional consideram que o processo de descentralização em Cabo Verde retrocedeu em alguns aspectos. A título ilustrativo, José Luís Livramento fundamenta esse retrocesso com a atitude do poder central em privilegiar as relações de parceria com as associações comunitárias cuja finalidade é a de curto circuitar as citadas câmaras (apoiadas pelo partido de oposição) nas relações com as comunidades locais 49. A falta de diálogo entre o poder local e o poder central é um assunto que vem preenchendo os espaços da comunicação social em Cabo Verde. Ou seja, é ponto assente que o poder local em Cabo Verde, a partir de um certo período, transformou-se num campo privilegiado de disputas políticas com repercussões negativas ao desenvolvimento das localidades. No discurso da sua tomada de posse, proferido no dia 9 de Setembro de 2011, Jorge Carlos Fonseca, Presidente da República eleito no dia 21 de Agosto de 2011, reservou nas primeiras páginas um espaço para falar do poder local e logo nesse tom:

Pela sua especificidade, muito particularmente pela sua grande proximidade relativamente às pessoas e comunidades, e pelo seu potencial de aprofundamento e alargamento da democracia, o poder local democrático será interlocutor muito privilegiado do Presidente que, sempre que necessário e desejável, será o intermediário entre ele e o poder central, contribuindo para que o relacionamento seja saudável e baseado em critérios de justiça, legalidade, respeito mútuo, não-discriminação e para que tenhamos no nosso país um poder local cada vez mais autêntico, democrático e autónomo, ao serviço das populações.

Este é seguramente motivado pelas tensões que têm animado as relações entre o poder local e o poder central.

7. Potencialidades e constrangimentos ao desenvolvimento de Santo Antão

49 José Luís Livramento, numa comunicação feita no âmbito da participação na Conferência Episcopal de Angola e São Tome sobre as experiencias de poder local: o caso de Cabo Verde, p. 10.

64 As potencialidades e constrangimentos ao desenvolvimento da ilha de Santo Antão, bem como de quaisquer outras ilhas do país, enquadram-se nas características globais deste arquipélago. As várias abordagens sobre as potencialidades do país em termos do seu desenvolvimento, feitas de há uns tempos a esta parte, fizeram sempre referência à sua posição geoestratégica como um factor de extrema importância para o processo de desenvolvimento futuro. Considera-se estratégica a posição de Cabo Verde porque situa-se no cruzamento que dá acesso aos continentes africano, europeu e americano ou como outros preferem dizer, Cabo Verde situa-se no ponto de transição entre o Atlântico Norte e Atlântico Sul, além de este ser o ponto de passagem para o Índico. É estratégica a sua posição geográfica na perspectiva em que pode dela tirar vantagens comparativas em relação a outros países. Devido ao seu posicionamento geográfico, Cabo Verde conheceu, no passado, períodos muito prósperos, sobretudo devido ao fluxo do comércio de escravos (o comércio triangular) que operava entre a Europa, África e América e o comércio de especiarias que operava entre a Costa Africana e a Europa (Carreira, 1972). Este posicionamento geográfico continua a ser um factor dominante no conjunto de estratégias do seu desenvolvimento pois, aproveitando-se do fenómeno da globalização, o país tem-se afirmado como ponto de convergência económica e, quiçá, política e cultural entre os continentes europeu, americano e africano. Aliás, a ideia de inserção dinâmica na economia mundial de um país com as características socioeconómicas como Cabo Verde só se viabiliza pela sua posição geoestratégica privilegiada. As vantagens do ponto de vista político decorrentes do posicionamento geoestratégico de Cabo Verde podem ser fundamentadas a partir da relação do país com a União Europeia de que resulta a parceria especial de que muito se falou e ainda se fala, ou mesmo, a partir da escolha de Cabo Verde para a realização dos exercícios da NATO, em Junho de 2006. As múltiplas abordagens sobre as potencialidades do desenvolvimento de Cabo Verde integram a estabilidade política e as condições que favorecem o turismo. Sobre este último aspecto é de referir que, recentemente, têm surgido abordagens em torno da importância da cultura no processo de desenvolvimento económico do país. Olavo

65 Correia defende, por exemplo, que “Cabo Verde tem potencial para desenvolver o cluster da cultura e transformar-se numa Nação cultural” 50. Existem, de igual modo, vários factores que obstaculizam o desenvolvimento do país e alguns deles decorrentes de condições naturais e históricas e outros estruturantes da sociedade cabo-verdiana. Veja-se, por exemplo, as secas que resultam curiosamente da posição geográfica (faixa do deserto de Sara) com implicações bastante acentuadas no sistema de produção agrícola, a reduzida dimensão de um mercado fragmentado, uma tradição industrial praticamente inexistente, infra-estruturas pouco adequadas e, em certo sentido, insuficientes, elevados custos de factores de produção, elevada taxa de desemprego ou um elevado índice de emprego temporário, consequentemente, precário, elevada incidência da pobreza, entre outros, e que confere à economia nacional uma certa vulnerabilidade às evoluções e choques internacionais, etc. 51. A ilha de Santo Antão, de forma mais ou menos directa ou indirecta, num quadro comparativo das diferentes ilhas que compõem o arquipélago de Cabo Verde, beneficia das potencialidades e, de igual modo, é afectada pelos constrangimentos acima abordados. Contudo, cada ilha dispõe de potencialidades e constrangimentos específicos e recorrendo a uma terminologia muito usada nas ciências ambientais diríamos até que cada uma delas possui potencialidades e constrangimentos endémicos. Assim, uma das vantagens da ilha que importa aqui evidenciar é, na nossa opinião, o facto de as suas gentes, quer da sociedade civil quer fazendo parte de autoridades locais, das mais humildes passando por aquelas que ocupam uma posição social mais elevada, considerarem que a sua ilha dispõe de uma vasta potencialidade para o desenvolvimento. Isto para nós é bastante positivo, pois, representa a auto-estima, optimismo, traços de identidade etc. ainda que com um valor meramente simbólico constituem em si, um capital social importante num processo de desenvolvimento (Putnam, 2002). Um estudo levado a cabo recentemente no âmbito da realização do Plano de Acção para o Desenvolvimento de Agricultura na Ilha de Santo Antão para o triénio 2009/2012 define quatro principais potencialidades da ilha : 1- o potencial hídrico, na medida em que os dados apontam no sentido de a ilha dispor de um potencial de águas subterrâneas

50 Vide o artigo de opinião intitulado “Economia da Cultura – Transformar Cabo Verde numa Zona Franca Cultural” publicado no jornal electrónico liberal online, 20 de Abril de 2011. 51 Parceria Especial Cabo Verde – EU: Quadro orientador para a implementação, Praia, 2008.

66 tecnicamente explorável, calculado em cerca de 58.400 m3/dia; 2- a significativa disponibilidade de terrenos de sequeiro que poderão ser transformados em regadio; 3- notoriedade no domínio do turismo rural (qualidade ambiental morabeza e variedade paisagística) e 4- existência de associações comunitárias por todo o lado 52. A partir duas primeiras potencialidades assinaladas podemos deduzir que a agricultura constitui uma boa oportunidade ao desenvolvimento da ilha, pelo menos no contexto cabo-verdiano. Além da agricultura e a pesca, a ilha possui grandes reservas de pozolana que ocupam extensas áreas do concelho de Porto Novo, de qualidade e valor amplamente reconhecidos. Porém é ainda um recurso pouco explorado. A ilha de Santo Antão conta também com um conjunto de constrangimentos ao desenvolvimento que emergem, grosso modo, das limitações estruturais que o país enfrenta no seu todo. No entanto, tal como em relação às potencialidades também em relação aos constrangimentos existem alguns que são específicos ou, utilizando de novo a terminologia das ciências ambientais, diríamos endémicos. As condições orográficas que geram implicações directas e indirectas quer na pesca quer na agricultura, quer nas mais variadas dimensões da mobilidade ou mais concretamente no processo de desenvolvimento das redes viárias são uma delas. Na sequência disso refira-se que a comunicação entre as diversas e dispersas localidades é extremamente difícil. Qualquer projecto de construção de uma via de acesso deve comportar custos elevadíssimos. Esse constrangimento, como de resto parece compreensível, tem implicações directas e indirectas no escoamento interno e externo das mercadorias que normalmente constitui um dos vectores de qualquer iniciativa da promoção de actividades da pesca e da agricultura, dois sectores importantes na economia da ilha. É devido ao factor orográfico que hoje a ilha não dispõe de um aeroporto. A comunicação inter-ilhas está hoje dependente de um sistema de transporte marítimo intermediado pela ilha de São Vicente. As condições orográficas constituem-se também um obstáculo ao desenvolvimento da agricultura por duas ordens de razão. Primeiro, está ligada à redução dos solos aráveis para agricultura, pois estima-se que 77.900 hectares de terrenos apenas cerca de 10%

52 Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos, Plano de Acção para o Desenvolvimento de Agricultura em Santo Antão (2009-2012), p. 31.

67 oferecem condições para a prática de agricultura. Segundo, sendo muito montanhosa a ilha tem pouca capacidade de alimentação dos lençóis freáticos. Estima-se que apenas cerca de 15% da água das chuvas contribuem para a recarga dos aquíferos. Contudo, a orografia devido à sua característica singular representa um factor de atracção turística. O reduzido mercado interno, falta de capacidade para produzir e reter as competências técnicas, a fraca disponibilidade dos recursos hídricos, entre outros, podem ser considerados outros constrangimentos ao desenvolvimento da ilha. No conjunto desses constrangimentos é muito importante realçar o sistema fundiário. O estudo referenciado anteriormente define como principais constrangimentos ao desenvolvimento de Santo Antão: 1- Fracos recursos para a mobilização da água e os desperdícios são significativos por má gestão da água; 2- Baixa acumulação de capital (Recursos Financeiros); 3- Predominância de formas indirectas de exploração da terra; 4- Fraca organização da produção e comercialização; 5- Existência da praga dos mil-pés; 6- Baixa energia empreendedora; 7- Fraca coordenação institucional em prol do desenvolvimento rural e; 8- Assistência técnica muito limitada. A estes factores negativos ao desenvolvimento da ilha podemos acrescentar ainda os baixos índices dos indicadores sociais de que referimos aquando da caracterização geral da ilha particularmente no que diz respeito à taxa de escolaridade, características do tecido empresarial, etc. Constitui um grande obstáculo ao desenvolvimento da ilha o ambiente político que se vive particularmente aquele que resulta da luta política que se tem travado entre o poder local e o poder central como aliás demos conta no texto anterior

Em cabo verde há que se trabalhar muito para melhorar o ambiente político. Cada actor trabalha no seu campo com interesses específicos. Quando os interesses se sobrepõem então é um deus nos acuda. No campo político isso é nítido sobretudo em alturas de campanha eleitoral. A atitude deste género tem contribuído muito para travar o desenvolvimento de Santo Antão. No terreno as pessoas falam muito disso ou seja dessa divergência entre actores 53

Um outro constrangimento a que se referiram os actores sociais tem a ver com a falta de clareza com que determinadas políticas públicas são concebidas e executadas.

53 Maria de Fátima Monteiro, Presidente da Caritas da Ribeira Grande de Santo Antão.

68 Estamos perante uma tremenda indefinição em relação ao caminho a seguir em termos das relações ente os níveis de poderes. Descentralização, regionalização mais ou menos desconcentração em fim o pais não sabe bem o que pretende 54.

Fica a pergunta no ar. São estas oportunidades e fraquezas que formam mais um contexto no qual se operam as dinâmicas de desenvolvimento local.

8. As orientações das estratégias de desenvolvimento em Cabo Verde e a participação dos actores externos

Pode-se dizer com propriedade que a definição de orientações das estratégias de desenvolvimento resulta da conjugação de um conjunto muito vasto de factores. Com base nisso consideramo-los aqui integrados em três conjuntos: o primeiro tem a ver com questões de ordem natural e histórica. Neste conjunto inserem-se as dimensões geográficas, ou mais concretamente a sua localização num contexto regional e global, um aspecto ligado às estratégias de desenvolvimento que tem ganho cada vez mais maior relevância, tendo em conta a progressiva afirmação do fenómeno da globalização económica na ordem socioeconómica mundial. A segunda dimensão que integra este conjunto de factores é histórica. Esta dimensão deve ser vista numa perspectiva em que o desenvolvimento de uma nação é fundada na sua própria história e um dos aspectos históricos mais marcantes de Cabo Verde é sem dúvida a sua colonização. Esta dimensão vista como um factor que condiciona a definição de estratégias de desenvolvimento faz sentido tendo em conta a relação que se estabelece entre a condição de subordinação e o atraso no processo de desenvolvimento, conforme a formulação da teoria de dependência. Analisando este primeiro conjunto de factores, no que se refere à dimensão geográfica como um factor condicionante do processo de desenvolvimento, ela é muito bem retratada por Lesourd, ao afirmar que:

(…) l’archipel (10 îles, 8 îlots, 4033 km2, 341 491) habitants en 1990) se rattache bien aux petits mondes océaniques qui tirent leurs spécificité d’une combinaison de leur isolement et de leur petite taille et, dans la tropicalité, d’une situation toujours périphérique par rapport aux ensembles continentaux dominants. Dès lors, contraintes de l’isolement, seuils de viabilités humains et économiques, positions géographique inégalement utilisée, valorisée, selon les contextes politiques et techniques aux cours de l’histoire, justifient la réflexion insulaire, réflexion d’ailleurs fort géographique. C’est cet

54 Orlando Delgado, Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santo Antão.

69 ensemble de facteurs qui parait décisif pour le projet de développement choisi par l’État insulaire (Lesourd, 1995: 15).

Aspectos, esses, percepcionados por alguns como uma fatalidade. A estes factores de ordem geográfica pode-se acrescentar ainda a (in) existência de recursos naturais que apresente alguma relevância para a indústria e consequentemente para a economia nacional. E como resultado disto, o país apresenta uma base produtiva pouco diversificada, elevados custos de bens e serviços (água, energia) entre outros aspectos. No que se refere à dimensão histórica é de frisar que o país foi colonizado durante cerca de 500 anos através de um sistema de ocupação fundado no esclavagismo e que leva a que se considerem perspectivas de interpretação diferentes quando é analisada no quadro de estratégias de desenvolvimento. Por um lado, uma perspectiva negativista tendo em conta os efeitos do modelo de colonização implementado, onde se destaca o domínio da estrutura agrária ou mesmo a lógica comercial que caracterizava a relação entre a metrópole e a colónia. Por outro lado, uma perspectiva positivista, tendo em conta o papel que a metrópole desempenha na economia das ex-colónias. No nosso caso, por exemplo, basta dizer que Portugal é o país com o qual Cabo Verde enceta maiores relações comerciais. O segundo conjunto de factores surge como consequência do primeiro e tem a ver com o facto de, perante “as fatalidades” naturais e históricas, as estratégias de desenvolvimento são condicionadas pelos aspectos que enformam as políticas internacionais de ajuda externa, no quadro do programa de ajustamento estrutural. O terceiro conjunto de factores surge como consequência do segundo, e tem a ver com a imperatividade dessas estratégias terem que considerar os aspectos que enformam os princípios do fenómeno da globalização económica. Além destes três conjuntos de factores é importante sublinhar a ligação entre o diagnóstico do “estado da nação” com os desafios a ele inerentes. Neste sentido, para a melhor sistematização das ideias em torno das orientações estratégicas de desenvolvimento adoptadas em Cabo Verde vamos dividir a análise em dois períodos distintos. O primeiro decorre de 1991 a 2001, em que a liderança governativa coube ao MpD e o segundo decorre entre 2001 e 2011 em que a liderança coube ao PAICV 55.

55 O PAICV é o partido que se encontra no poder pois ganhou as eleições legislativas de 2011 pela terceira vez consecutiva.

70

8.1 Linhas de orientação das estratégias de desenvolvimento de Cabo Verde entre 1991 e 2001

O período em análise corresponde à governação do MpD, um partido que havia entrado na cena política nacional em 1990, quando deu-se a abertura política no país 56. Na altura em que se realizou as primeiras eleições livres em Cabo Verde, ganhas pelo MpD, o país era marcado

por uma forte intervenção directa do estado na economia. O governo utilizava os mecanismos de controlo directo para administrar os preços, o comércio internacional, o crédito e as taxas de juro, criando e gerindo empresas públicas em todos os sectores da economia, incluindo o bancário. O sistema económico não incentivava a iniciativa privada nem a concorrência 57.

Com base nisso, o III Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) elaborado para o quadriénio 1992-1995 estabelece como “Grandes Orientações e Perspectivas”: o desenvolvimento dos factores de produção, o melhoramento das condições da procura interna, o desenvolvimento de indústrias conexas e desenvolvimento empresarial. Nesta sequência, definiu-se como principais objectivos a alcançar a salvaguarda dos grandes equilíbrios financeiros, a luta contra a pobreza, e o desemprego, o desenvolvimento equilibrado do conjunto das ilhas, uma acção vigorosa sobre os constrangimentos que afectam o desenvolvimento do país, designadamente infra-estruturas de transporte, recursos humanos e ambiente empresarial 58 focalizados em quatro eixos ou políticas horizontais fundamentais, isto é, o eixo da liberalização e fomento empresarial ancorada em vectores como a liberalização da economia, reformas económicas, gestão macroeconómica, privatização da economia, e fomento empresarial, o eixo da administração pública, da ciência e tecnologia e do meio ambiente. Nesta linha, o governo assume claramente como grande linha de orientação para o desenvolvimento a promoção de uma economia de base privada e consequentemente regulada pelos mecanismos do mercado.

56 Sobre o processo de transição política e instituição do regime democrático em Cabo Verde remetemos para a leitura de ÉVORA, Roselma (2004); Cabo Verde: a abertura política e a transição para a democracia, Spleen editora, Praia. 57 Ministério da Coordenação Económica (S/D), Plano Nacional de Desenvolvimento 1997-2000, Praia. 58 Ministério das Finanças e Planeamento (S/D), III Plano Nacional de Desenvolvimento 1992-1995, Relatório Geral, I Volume, Praia, pp. 38-39.

71 O IV PND, elaborado para vigorar durante o quadriénio 1997-2000 59 orienta-se basicamente pelo mesmo diapasão, isto é, o reforço de mecanismos de afirmação e, quiçá, a consolidação dos princípios da economia de mercado, razão pela qual define como principais programas de intervenção a inserção da economia nacional no sistema económico mundial. Para isso, na linha do desiderato traçado no Plano em análise, foi assumida a necessidade de promover a transformação progressiva dos factores internos como solução para o crescimento económico acelerado e para o desenvolvimento auto sustentado 60 . Além do mais, assumiu-se de forma explícita a tese de que o desenvolvimento deve congregar o crescimento económico e o desenvolvimento humano, quanto mais não seja porque o desenvolvimento (…) só tem sentido se a abordagem for profundamente humanista. Mas, ao mesmo tempo, realça que o desenvolvimento “tem no crescimento económico acelerado uma condição necessária 61. Nesta mesma lógica, estabeleceu-se como vectores-geradores da estratégia e do objectivo maior, desenvolver o mercado e a iniciativa privada, aproveitar as vantagens da regionalização e da globalização, consolidar e desenvolver a democracia, promover o desenvolvimento humano e social, entre outros 62.

8.2 Linhas de orientação das estratégias de desenvolvimento de Cabo Verde entre 2001 e 2011

O ano de 2001 foi marcado pela realização das eleições legislativas que deram vitória ao PAICV, regressando assim ao poder depois de ter estado dez anos na oposição. As grandes linhas traçadas pelo governo na legislatura 2001 – 2005 alicerçaram-se nas seguintes opções 63: - Promover a estabilidade macroeconómica por vias do equilíbrio orçamental; - Combate ao desemprego visando a erradicação da pobreza; - Melhorar o sistema educativo e apostar na implantação do ensino superior; - Reestruturar o sector empresarial do estado; - Melhorar a competitividade do tecido empresarial; - Desenvolver o sector do turismo por via do sector dos serviços e do transporte;

59 Ministério da Coordenação Económica (S/D), Plano Nacional de Desenvolvimento 1997-2000, Praia. 60 Idem, p. 6. 61 Idem, p. 6. 62 Idem, p. 6. 63 Ver o Programa do Governo para VI Legislatura, Palácio do Governo, Praia.

72 - Promover o investimento externo; - Reforçar o municipalismo pela via de transferências de competências; - Promover a independência da justiça; - Promover a cultura; - Proteger o ambiente; Tais opções foram traçadas tendo em perspectiva a realização do PND seguinte, isto é referente ao quadriénio 2002-2005 que viria a ter como a grande orientação estratégica de desenvolvimento, a Luta contra a Pobreza numa relação estreita com o crescimento económico, pressupondo a promoção do desenvolvimento do sector produtivo no meio rural e privilegiando a participação social por um lado e por outro lado através da Promoção do Desenvolvimento Económico e Social do Meio Rural ancorada no

(i) reforço da segurança alimentar; (ii) introdução de novas tecnologias no campo; (iii) fornecimento do mercado interno, tendo em conta o desenvolvimento do turismo (iv) promoção de uma abordagem integrada do desenvolvimento das comunidades rurais. O desenvolvimento do agro-silvo-pastoralismo deve ser uma aposta do sector.64

O objectivo geral traçado no quadro das perspectivas de desenvolvimento do país a médio prazo, conforme se pode ver no PND 2002-2005 é o de

prosseguir de forma sustentada a trajectória de convergência real, com referência à média do índice de desenvolvimento humano dos países de rendimento médio, no quadro de uma estratégia integrada de desenvolvimento, baseada na promoção de uma economia de base produtiva privada com coesão social, capacidade institucional e durabilidade ambiental

As linhas gerais propostas pelo governo do PAICV para a VII Legislatura não se diferenciaram muito das orientações estratégicas traçadas por este mesmo governo na legislatura anterior. Ou seja, o governo traçou como rumo da sua governação acções que promovessem a competitividade do tecido produtivo nacional e o crescimento económico. Neste sentido havia traçado como caminho a percorrer a redução da pobreza, a adopção de novas tecnologias de comunicação e de informação como factor importante da promoção da competitividade da economia, modernização do sector produtivo, melhoria de água e energia, transportes e telecomunicações etc., medidas que promovessem a capacitação dos recursos humanos, através da educação e formação

64 Grandes Opções do Plano: uma agenda estratégica, governo de Cabo Verde, Praia, 2001.

73 profissional; que promovessem a Justiça social e solidariedade pela redução da pobreza, melhorias das condições e relações laborais, protecção social e melhoria da intervenção na área da família e, por último, medidas que promovessem um melhor ordenamento do território, a descentralização e desenvolvimento regional, protecção ambiental, desenvolvimento rural e qualificação urbana, etc. São medidas que na perspectiva do governo, visam

o aprofundamento e a aceleração dos ganhos alcançados e a prossecução da caminhada para patamares mais exigentes de desenvolvimento, num quadro de mais e melhor Democracia, num Cabo Verde com Mais Prosperidade e Futuro Melhor para Todos 65.

A graduação de Cabo Verde para Pais de Rendimento Médio, o Acordo de Parceria Especial entre Cabo Verde e União Europeia e a Integração de Cabo Verde Organização Mundial do Comércio simbolizam um novo ciclo de políticas de desenvolvimento de Cabo Verde. Este ciclo começa a formar-se, porém, desde em 1998 com a assinatura de um documento conhecido por Acordo de Cooperação Cambial entre Cabo Verde e Portugal, cujo objectivo traçado por Cabo Verde era de

favorecer a intensificação do investimento e do crescimento económico em Cabo Verde (…) cujo efeito preconiza a criação de condições tendentes à gradual concretização de uma convertibilidade plena do escudo cabo-verdiano, nomeadamente através do estreitamento das relações económicas entre os dois países, bem como entre Cabo Verde e a União Europeia, globalmente considerada 66

O Acordo consiste em estabelecer uma taxa de câmbio fixa entre as moedas cabo- verdiana e portuguesa, no primeiro momento, e o Euro, no segundo, uma medida que visava a estabilidade financeira em Cabo Verde, vista como uma via adequada à atracção do investimento externo e, consequentemente, ao crescimento económico, recorrentemente visto como um aspecto central no conjunto de estratégias de desenvolvimento do país. O Acordo de Parceria Especial entre Cabo Verde e União Europeia alcançado em Novembro de 2007 assenta-se em seis pilares: i) boa governação, ii) segurança e estabilidade, iii) integração regional, iv) transformação e modernização, v) sociedade do conhecimento e da informação, vi) luta contra a pobreza e desenvolvimento.

65 Programa do Governo para VII Legislatura 2006 – 2011. 66 GPEARI, Ministério das Finanças e de Administração Pública de Portugal www.gpeari.min-financas.pt

74 A graduação de Cabo Verde a país de rendimento médio aconteceu oficialmente a dia 1 de Janeiro de 2008, deixando o país de fazer parte do grupo dos Países Menos Avançados (PMA), a que pertencia desde 1977. A decisão de passar Cabo Verde a Grupo de países de rendimento médio foi tomada na Assembleia-geral das Nações Unidas reunida em Dezembro de 2004, através da resolução 59/210, em reconhecimento das respostas positivas que o país vinha dando aos desafios do seu desenvolvimento, pois Cabo Verde havia preenchido dois dos três critérios exigidos pelas Nações Unidas para que pudesse integrar o outro grupo de países: o critério de rendimento per capita e o critério de capital humano. O terceiro critério, o da vulnerabilidade económica e que segundo consta é um critério com um peso maior que os outros porque é a economia que deve gerar índices de desenvolvimento humano e rendimento per capita 67, mas que não teve tanto peso na decisão das Nações Unidas, tendo em conta o reconhecimento de outras valências, designadamente o modelo de governação do país que teria originado implicações positivas na promoção de estabilidade social e política que vinham caracterizando o país. A passagem de Cabo Verde a membro (n.º 153) da Organização Mundial do Comércio aconteceu oficialmente a 23 de Julho de 2008, cerca de 9 anos após o pedido formal de adesão. Assim, a graduação de Cabo Verde para País de Rendimento Médio, o Acordo de Parceria Especial entre Cabo Verde e União Europeia e a Integração de Cabo Verde Organização Mundial do Comércio simbolizam o reforço de uma relação de dependência do país ao contexto político e económico internacional, ou seja, consolida- se a submissão das regras de gestão impostas a partir do Norte, tendo em conta os interesses dos grandes grupos financeiros mundiais. Sobre este perigo, ou seja o da dependência de um estado-nação em relação aos interesses exteriores Homero (1987:10) refere que Amílcar Cabral havia dito que “a ajuda estrangeira não deve comprometer os interesses superiores do povo, e a salvaguarda da liberdade de independência nacional” e além do mais, reforça o autor “Amílcar Cabral chama a atenção de que, por não terem tido o cuidado de salvaguardar aquela liberdade ao receberem ajuda estrangeira, “muitos povos viram as suas

67 Victor Borges, antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros numa entrevista a agência lusa para RTP, Praia, 1 de Janeiro de 2008.

75 aspirações ridicularizadas por uma independência nominal e forma submetidos a uma nova forma de colonialismo”

8.3 Estratégias de desenvolvimento no contexto internacional: Programa de Ajustamento Estrutural (PAE) e parceiros internacionais

Depois da descrição das principais orientações estratégicas do desenvolvimento que orientaram a governação do país nos dois períodos considerados, que como vimos estão directamente relacionadas com as limitações de ordem geográfica e histórica que se impõem ao país, pode-se concluir que elas estão amplamente integradas e comprometidas com um modelo de desenvolvimento fundado, por um lado na ideia de modernização e por outro na ideia de globalização e que se juntaram em torno da globalização capitalista neoliberal – globalização hegemónica. Um dos mecanismos que melhor serviram para se impor este modelo surge a partir das Convenções de Lomé. Cabo Verde aderiu esta convenção em 1977 68, situação que lhe abriu o caminho para se candidatar a novos programas de ajudas externas que se lhe seguiram. No entanto o mais abrangente mecanismo de imposição do modelo de desenvolvimento dominante é o bem conhecido PAE, que de resto, constituiu objecto de análise em várias áreas das ciências sociais, inclusive a sociologia do desenvolvimento. Ainda que de forma breve devemos enfatizar que se trata de um programa que se afirmou inicialmente como une solution technique conjoncturelle pour faire face à une situation caractérisée par les progrès importants de l’inflation au Nord et au Sud devido, em parte, aux déséquilibres persistants des pays en développement (Peemans, 1991 : 13). Um dos princípios fundamentais que sustentou a implementação deste programa tem a ver com a ideia segundo a qual tais desequilíbrios

ne pouvaient être expliqués dès lors que par la présence d’éléments perturbateurs du marche. Ce sont les interventions de l’Etat dirigiste dans la sphère de l’économie qui ont créé des imperfections micro-économiques qui se repèrent au niveau macro-économique sous la forme de déséquilibres durables (Peemans, 1991 : 141).

Assim, o programa definiu como principais objectivos:

68 Sociedade Nacional de Empreendimentos (2006), Estudo de Impacto de um Acordo de Parceria Económica – Relatório Final (Componente 1 e 2), Trabalho realizado para a SNEDE pelos consultores: António Miranda Ferreira António Costa Rodrigues e João Campos Malta, p.13.

76

- O restabelecimento dos equilíbrios macroeconómicos como condição necessária (mas não suficiente) para a saída da crise e para o crescimento económico; - A racionalização das economias através da afectação e utilização eficiente dos recursos para torná-las competitivas e favorecer a sua integração no mercado internacional; - A introdução de transformações estruturais para garantir o crescimento estável a longo prazo e evitar novos desequilíbrios (Mosca, 2005).

O objectivo primário subjacente a este programa é o de criar mecanismos que permitissem a liberalização do mercado, uma condição sine qua non para a internacionalização da economia, uma situação que além do mais permite o alargamento de fluxos de trocas comerciais internacionais. Aliás, o texto do Acordo assinado no âmbito da V Convenção de Lomé em 1995 69 parece ajudar a elucidar ainda melhor esta ideia. O ponto n.º 2 refere que,

As partes contratantes reconhecem a prioridade a conceder à protecção do ambiente e à conservação dos recursos naturais, condições essenciais para um desenvolvimento sustentável e equilibrado, tanto no aspecto económico como no aspecto humano e reconhecem a importância da promoção de uma conjuntura favorável ao desenvolvimento da economia de mercado e do sector privado nos Estados ACP.

O Acordo de Cotonou 70 assinado em 2000 segue as mesmas linhas das Convenções de Lomé. Este acordo refere no seu preâmbulo que,

reiterando a sua determinação em, através da sua cooperação, contribuir significativamente para o desenvolvimento económico, social e cultural do Estados ACP e para a melhoria do bem-estar das suas populações, ajudando-os a superar os desafios da globalização e intensificando a parceria ACP-UE, a fim de reforçar a dimensão social do processo de globalização;

Além do mais, o Acordo de Cotonou define três prioridades fundamentais além daquela que se relaciona com o reforço das condições políticas do cumprimento do acordo. São elas: o reforço da participação da sociedade civil; o reforço das condições que permitem a cooperação económica e comercial; e programas de luta contra a pobreza e reforma da cooperação financeira. Mais tarde, em 2001, Cabo Verde beneficiou do Programa de Ajuda Norte Americana Millenium Chalenge Account (MCA) que teve um papel preponderante na estratégia de

69 A primeira Convenção de Lomé foi assinada em 1975, a segunda em 1979, a terceira em 1986 e a quarta em 1989. 70 O Acordo de Cotonou foi assinado em 2000 e veio substituir a Convenção de Lomé, cujo período de vigência expirara em Fevereiro desse ano.

77 desenvolvimento do país. Refira-se que o programa é resultado de uma ajuda de 110 milhões de dólares norte americana que seria desembolsada num período de cinco anos e é concebido para promover o desenvolvimento da economia do país através da redução da dependência externa e estimulação do sector privado 71. Segundo o documento em análise, este programa centrou-se em quatro eixos, a saber: a boa governação; a promoção do crescimento e das oportunidades económicas; o ambiente, a energia e a prevenção e respostas aos desastres; e, por último, o capital humano e protecção social. Actualmente, os actores externos prestam ajuda ao processo de desenvolvimento de Cabo Verde através dos donativos (linguagem do orçamento do estado) e esses donativos ocorrem essencialmente nas seguintes modalidades: ajuda orçamental, ajuda directa a projectos, empréstimos concessionais, alívio do serviço divida sob condição de financiamento de projectos de investimento e ajuda alimentar 72. Integram o conjunto de principais doadores de Cabo Verde, no âmbito da implementação da “sua” estratégia de desenvolvimento, desde logo a União Europeia, em que nove países membros têm acordos de cooperação ou desenvolvem programas de cooperação com Cabo Verde: Áustria, Alemanha, Luxemburgo, Portugal, França, Espanha, Holanda, Dinamarca, e Suíça. A ajuda orçamental concedida por estes países, a partir de relações bilaterais, juntamente com as atribuídas pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento (FED) e pela Comissão Europeia representa 62 % do total das ajudas alocadas a Cabo Verde. Além da EU, perfilam-se como principais “doadores”, China, Estados Unidos da América, Agências do Sistema das Nações Unidas, etc. 73. A economia cabo-verdiana está hoje bem integrada na nação global. Veja-se que o país integra um vasto número de organizações internacionais, sendo algumas de dimensão mundial. São exemplos, as várias organizações do Sistema das Nações Unidas, a OUA (Organização de Unidade Africana), instituições ligadas ao Banco Mundial como AID (Associação Internacional de Desenvolvimento); BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento) e MIGA (Agencia de Garantia de Investimentos

71 Escritórios dos Fundos e Programas das Nações Unidas em Cabo Verde, The One Programme Au Cap Vert, Praia, 2008. 72 Vide o Orçamento de Estado de 2010. 73 Vide o Document de Stratégie Pays et Programme Indicatif National Pour le Période 2008-2013: 23.

78 Multilaterais). A nível regional Cabo Verde faz parte da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e da CEDEAO.

8.4 Os efeitos das estratégias de desenvolvimento dominantes e pistas para uma via alternativa.

As políticas de desenvolvimento adoptadas nos PMA, impostos pelos organismos internacionais se resumem em dois blocos de medidas: primeiro, dotar os dirigentes dos países pobres de capacidade de gestão à luz do entendimento ocidental de gestão e, segundo, imprimir os princípios de desenvolvimento assentes em três pilares: crescimento económico, desenvolvimento social e protecção ambiental. Os mesmos pilardes privilegiados no terceiro quarto do século passado. As estratégias de desenvolvimento são traçadas em função dos fluxos financeiros internacionais. Da independência a esta parte, os fluxos financeiros que sustentam os programas de desenvolvimento em Cabo Verde decorrem de três grandes programas internacionais concebidos com base numa visão global de desenvolvimento: As Convenções de Lomé e os Acordos de Cotonou; o PAE e a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), através de empréstimos, donativos, ajuda alimentar, assistência técnica, ajuda financeira, ajuda a projectos. Numa situação em que há liberdade de acção das economias mais frágeis, ou seja em que o país não estaria dependente das orientações que se constroem a partir do “centro” da economia mundial teríamos, então, linhas de orientação das estratégicas distintas de desenvolvimento nos dois períodos analisados, com base na ideia de que as perspectivas político-ideológicas que sustentam os discursos dos dois partidos que sustentaram os governos são diferenciados. A esse respeito refira-se que o MpD, partido no poder durante o primeiro período analisado se orienta pelos princípios ideológicos que sustentam a Internacional Democrata Centrista74, de que é membro, enquanto o PAICV integra a Internacional Socialista75, uma organização internacional de partidos políticos que se propugnam pela ideologia socialista, social-democrata e trabalhista76. No entanto, a análise dos instrumentos nos quais espelham as orientações de estratégias de desenvolvimento deixa a ideia inequívoca que as linhas gerais do desenvolvimento

74 Uma organização de partidos políticos de orientação democrata cristã sedeada em Bruxelas. 75 Está referenciado no art. 8.º dos Estatutos do PAICV, aprovados no XII Congresso realizado na Praia entre 22 e 24 de Janeiro de 2010. 76 Vide http://www.internationalesocialiste.org

79 do país (o fim último das estratégias de desenvolvimento adoptadas a partir de 1991 fundamentalmente) é promover um ambiente macroeconómico capaz de responder os princípios da globalização económica e, consequentemente, ser uma das alternativas às iniciativas dos grupos económicos internacionais designadamente do Norte. Assim, as estratégias de desenvolvimento traçadas quer durante o período da governação do MpD (1991-2001) quer durante as duas legislaturas subsequentes do governo de PAICV (2001-2011) conservam o essencial dos princípios que norteiam o modelo de desenvolvimento hegemónico e que de resto se orientam para a promoção das condições de reprodução da lógica do mercado. A diferença entre umas e outras se dá muito mais pela forma que pelos conteúdos que as integram. A partir de uma avaliação baseada no sentido prático, os resultados das estratégias de desenvolvimento adoptadas por Cabo Verde de 1991 a esta parte são, provavelmente, de um modo geral positivos. As grandes medidas preconizadas no sentido de se estabelecer os equilíbrios macroeconómicos e reformas no Estado contribuíram largamente para a criação de riqueza no país. Veja-se que o PIB per capita aumentou de US$ 190 em 1975 para US$ 902 em 1990, para, em 2010, atingir cerca US$ 3.402 77. O índice de pobreza absoluta baixou de 36% em 2001 para 27% em 2007 ao passo que o Índice de Desenvolvimento Humano que em 2000 era de 0,523 evoluiu para 0,543 em 2005 e 0,547 em 201178. Ou seja, à luz das avaliações que se têm feito pelas Nações Unidas, ou mesmo por diferentes organismos internacionais, as condições de vida dos cabo- verdianos melhoraram significativamente durante o período em análise. Esta, porém, não pode ser tomada como única perspectiva de análise dos efeitos das estratégias de desenvolvimento preconizadas no país. A globalização, como refere Boaventura de Sousa Santos (2002), é um fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo. Neste sentido, ao analisá-la por um outro prisma, ou se quisermos, a partir de um dos lados da sua contradição nota-se que é cada vez mais consensual a ideia segunda a qual modelo de desenvolvimento nela fundado tem resultado numa discrepância cada vez mais acentuada entre ricos e pobres. É nesta linha que Santos (2002) refere que

77 Valor considerado para o cálculo do IDH de 2011. 78 Dados do RDH de 2011.

80 as novas desigualdades sociais produzidas por esta estrutura de classe têm vindo a ser amplamente reconhecidas mesmo pelas agências multilaterais que têm liderado este modelo de globalização, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

Aliás, esta é uma posição que está sendo assumida pelo FMI expressa recentemente pelo seu ex. Director Dominique Strauss-Kahn, numa conferência realizada na Universidade de Washington, conforme noticiou a Agência Lusa, publicado em 05 de Abril de 2011. No caso de Cabo Verde, é de referir que as estratégias de desenvolvimento adoptadas contribuíram para um aumento substancial da discrepância entre ricos e pobres. Proença dá-nos conta que,

o aumento agregado da desigualdade na repartição do rendimento em Cabo Verde, está bem expresso comparando o índice de Gini em 1988-89 e 2001-2002, em cujo período aumentou de 0.43 para 0.57, ou seja, cresceu 32,6 % no período de 12-13 anos. A excessiva concentração da riqueza em Cabo Verde, está bem expressa no facto de 10% da população mais pobre ter apenas 1% do rendimento. Os primeiros sete decis (70 % dos agregados familiares) representam apenas 28 % da despesa per capita, enquanto o último decil (os 10 % mais ricos) representa 47 % da despesa total (Proença, 2009: 52).

O Relatório do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas de 2011 dá-nos conta que o coeficiente de Gini ronda em Cabo Verde os 50,4 pontos. É, a seguir à Angola (58,6) e o Brasil (53,9) o país da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP) com maior discrepância em termos de distribuição/concentração de rendimentos. Este fenómeno social associado a vários outros factores intervém no aumento de instabilidade social fundada na violência urbana, criminalidade e insegurança espelhada a partir do fenómeno thug e kasubódi associado a

um contexto socioeconómico específico, caracterizado por mudanças rápidas a vários níveis, crescimento económico relativo e agravamento das desigualdades e exclusão social, que atinge de forma particular a população jovem e em última análise á globalização (Cardoso, 2009).

Pierre-Joseph Laurent e Cláudio Furtado (2008: 37-38) associam a situação inerente a fractura social que provoca a instabilidade a este nível em Cabo Verde a vários factores designadamente,

a singularidade do país, onde o sector agrícola só cobre 10% das necessidades (terras áridas, vulcânicas, exiguidade das terras férteis) e a indústria e a pesca, por causa dos custos elevados (insularidade), representam cerca de 8% do PIB (em 2004)

81 e o crescimento urbano, resultado de um acentuado êxodo rural devido à seca, miséria, pressão demográfica, falta de trabalho e das desigualdades fundiárias que afligem estas populações. Os dados de um estudo sobre crime e corrupção realizado em Cabo Verde pela Organização das Nações Unidas para a Droga e o Crime (ONUDC) dão conta de um conjunto de aspectos ligados a este fenómeno, mas pelo menos três deles nos parecem muito relevantes na análise da instabilidade social provocada, designadamente, pela criminalidade. Ou seja, o estudo revela que as principais causas da criminalidade são o desemprego e o consumo de droga, isto de acordo com a percepção do público em geral e dos agentes policiais 79. O estudo revela, de igual modo, que as pessoas nos centros urbanos sentem-se globalmente receosos que sejam vítimas de crime, quer de dia quer à noite, razão pela qual uma grande maioria dos citadinos conta com a possibilidade de ser vítimas de roubo nos 12 meses seguintes. Este estudo revela ainda que os índices de assalto que se praticam nos centros urbanos, particularmente em Santiago são dos mais elevados em África (ONUDC, 2007). Um estudo realizado em 2011 por uma equipa coordenada pelo Cláudio Furtado dá conta do aumento de práticas de violência e criminalidade nos principais espaços urbanos do país e aponta como factor explicativo,

relativa deterioração do poder do Estado através de seus representantes, nomeadamente as instituições policiais, enquanto detentoras do monopólio legítimo da violência e condição da garantia da segurança e do bem comum 80

Ora esta “deterioração do poder do Estado” resulta, no caso de países semi-periféricos e periféricos como Cabo Verde, como nos dá conta Boaventura Santos (2002), da sua subordinação às agências multilaterais internacionais designadamente o FMI e a OMC pela sujeição às imposições do receituário neoliberal. No caso concreto de Cabo Verde, a ideia central que vem sendo defendida, é a de que efectivamente estes programas assistencialistas tiveram um importante papel na promoção de um ambiente político e social equilibrado, permitindo ao país dar um

79 Kátia Cardoso desvaloriza a propensão para considerar o desemprego ou mesmo a falta de oportunidade de acesso á formação profissional e de falta de alternativas de ocupação dos tempos livres como factores determinantes do fenómeno da violência urbana partindo do exemplo da cidade de Bissau que pese embora se caracterize pela existência de uma realidade socioeconómica e politica adversa não tem-se registado presenças de grupos violentos. 80 Ministério do Ambiente, Habitação e Ordenamento do Território - MAHOT/ONU-HABITAT, Estudo sobre a relação da organização do espaço urbano e a violência urbana em Cabo Verde, Praia, 2011.

82 passo importante no processo do seu desenvolvimento, que resulta na redução objectiva das condições que geravam o sofrimento – designadamente o decorrente da carência alimentar. Tendo em conta as condições naturais de Cabo Verde que determinam a sua debilidade económica e tendo em conta a hegemonia deste modelo, pode não ser prudente questionar a imperatividade de recorrer as ajudas externas. Contudo, na linha das preocupações que têm dominado as ciências sociais parece importante abrir um debate sobre quais devem ser as estratégias de desenvolvimento se adequam melhor á situação de dependência da ajuda externa a que o país está irremediavelmente ligado. Neste caso, seria um debate em torno da constelação entre a ajuda externa e a recuperação do sentido de estado-nação ou seja um estado com o poder de orientar as políticas de desenvolvimento nacional que sirvam a todos em observância dos princípios de igualdade e de equidade social indo na linha da leitura pragmática do fenómeno da globalização (Santos, 2002).

8.5. Estratégias de desenvolvimento regional/local e rural em Cabo Verde: um olhar a partir da ilha de Santo Antão.

Vistas as grandes linhas de orientação de estratégias de desenvolvimento em Cabo Verde entre 1991 e 2001 e entre 2001 e 2011, vamos agora focalizar a análise desta questão numa perspectiva mais localizada, ou seja, direccionada para uma região ou ilha específica, neste caso concreto, a ilha de Santo Antão e num espaço territorial, social e simbólico específico, ou seja, o espaço social rural. Antes de mais, importa reter alguns aspectos geográficos e históricos analisados nos pontos anteriores deste capítulo. Estamos perante um território arquipelágico constituído por dez ilhas (9 habitadas), com períodos de descoberta e povoamento distintos. O processo de povoamento iniciou-se na ilha de Santiago e decorreu entre 1461 e 1462 81. As explicações do facto da ilha de Santiago ter sido a primeira a ser povoada são encontradas na dimensão de ordem geográfica e está associada às estratégias de tirar “proveito” económico a partir da sua localização. A este propósito Ilídio Baleno refere que,

81 Para uma análise mais aprofundada sobre o povoamento das ilhas de Cabo Verde, propomos a título indicativo, a consulta das obras de António Carreira (1983); Luís Albuquerque e Maria Emília Santos (coord.) (2001), Cláudio Furtado (1993).

83

Era a maior, tinha bons portos e, sobretudo, contava com boas nascentes de água doce. Santo Antão e S. Nicolau também possuíam este precioso bem, mas a seu desfavor contava o facto de serem extremamente escarpadas e de não haver nelas grandes portos. As restantes, além de serem mais áridas (ressalvando-se apenas o caso da ilha Brava), praticamente não tinham água, sendo salobra a pouca que havia 82.

O povoamento da ilha de Santo Antão, à semelhança da ilha de São Nicolau, por razões já apresentadas, ocorreu logo após ao povoamento das ilhas de Santiago e do Fogo, segundo o mesmo autor. Baleno refere, ainda, que começam a surgir os primeiros indícios da ocupação destas ilhas, a partir da década de setenta do século XVI. Ora, sem querer fazer qualquer tipo de analogia entre o período do povoamento das ilhas e o nível de desenvolvimento de cada uma, primeiro, porque não é muito relevante para o nosso trabalho e, segundo, porque não dispomos de elementos empíricos, nem tão pouco teóricos para o fazer. Contudo, é de salientar que os dados acima apresentados nos permitem assumir que este aspecto da história pode representar um ponto de partida para a compreensão dos factores dos desequilíbrios regionais que vêm caracterizando o país. Aliás, Correia e Silva (2001a) faz referência à emergência de um carácter bipolar da economia em Cabo Verde desde “os primeiros séculos de colonização”. Segundo este autor, o arquipélago

Está repartido em duas grandes áreas geoeconómicas. Uma abarca as ilhas do Oriente, Norte e Brava: neste espaço predomina a pecuária extensiva, assente maioritariamente no gado caprino. A outra inclui Santiago e Fogo, dominadas por uma agro-pecuária intensiva, profundamente ligada aos mercados externos, entre os quais se distinguem, pela sua importância, os rios da Guiné.

Na sequência disso, partindo o autor do princípio que o facto de o desenvolvimento das actividades económicas ocorrer de forma diferenciada nas diferentes ilhas não é algo que acontece por acaso, nem tão pouco resulta “da escolha livre dos homens”, ele procurou demonstrar que,

as próprias características naturais do espaço original vão ser factores que agem, em graus variáveis de determinismo, para explicar a distribuição desigual das actividades económicas pelo espaço do arquipélago (Correia e Silva, 2001a: 179).

82 Ilídio Baleno, “Condicionalismos adversos è ocupação” in Albuquerque, Luís e Santos, Maria Emília (coord) (2001); História Geral de Cabo Verde, 1º Volume, 2ª Edição, Lisboa, IICT de Portugal e Praia, INIC de Cabo Verde, p. 133.

84 Os desequilíbrios a que referimos até aqui são expressos, fundamentalmente, através de duas dimensões: a económica e a demográfica. Todas as outras dimensões eram, de certa forma, sobrepostas por aquelas duas. Os desequilíbrios de desenvolvimento, de que tanto se tem falado nas últimas décadas, assumem não só o sentido regional, isto é, entre ilhas, como também o sentido espacial e local, isto é, entre o meio urbano e meio rural. Aliás, a incidência da pobreza, apesar de não ser suficientemente abrangente para, por si só, ajudar a compreender as dimensões dos desequilíbrios existentes no país, ela nos fornece, algumas pistas. De acordo com os dados do QUIBB realizado em 2007, a incidência da pobreza é maior nas ilhas de Santo Antão (47,2%), Fogo (46,5), Santiago (36%) e Brava (35,1%) e menor nas ilhas do Sal (4%), Boavista (8%) e São Vicente (13,6%) 83. Ainda segundo os mesmos dados, ela é maior no meio rural (72%) que no meio urbano (28%), podendo-se sustentar a hipótese de que ela, a pobreza, é também maior nas cidades do interior que nas do litoral. Concomitantemente, os desequilíbrios são esboçados a partir de aspectos bastante interligados entre si, como a demografia, os factores produtivos, o rendimento, os bens e serviços, designadamente, educação, saúde, transporte, infra-estruturas, lazer e entretenimento. Destes aspectos, os dados sobre a população são os que mais expressivamente espelham estes desequilíbrios. Os resultados do RGHP de 2010 revelam que dos 491.575 efectivos recenseados no país, 56% vivem na ilha de Santiago. Mas, um outro aspecto demográfico relevante é o facto de cerca de 62% da população cabo-verdiana residir no meio urbano e 38% no meio rural. O problema dos desequilíbrios espaciais, sociais e económicos que secularmente caracteriza a nação cabo-verdiana serviu sempre de enquadramento para a definição de políticas públicas para o desenvolvimento regional/local e rural em Cabo Verde. Se recuarmos ao I PND elaborado para o período 1982 e 1985 vamos poder ver que uma parte significativa do documento centra-se nas linhas que devem orientar o desenvolvimento rural, partindo de princípio de que residia na agricultura a base fundamental da vida económica e social de Cabo Verde e, por conseguinte, a reforma agrária traduziria no mais importante programa a ser implementado neste domínio.

83 Estes valores foram calculados segundo os dados apresentados no “Workshop de disseminação dos resultados da pobreza em Cabo Verde” - http://www.ine.cv/actualise\destaques\files\

85 Preconizava concomitantemente desencadear políticas visando incrementar a pesca nas suas vertentes artesanal e industrial 84. O II PND, alusivo ao período 1986-1990 adopta uma abordagem menos incisiva sobre esta dimensão do desenvolvimento. Apesar disso, cabe realçar que este plano define como uma das orientações políticas, a correcção ou pelo menos a redução dos efeitos dos desequilíbrios regionais. Neste sentido, o plano em apreço estabelece como uma das orientações políticas,

manter o equilíbrio entre justiça e progresso, promovendo um desenvolvimento equilibrado que integra cada uma das zonas do país num sistema socioeconómico comum, continuando a satisfazer as necessidades essenciais e criando condições para a melhoria progressiva do bem-estar social, mas igualmente – devido a escassez de recursos – desenvolvendo a participação das populações nos custos dos serviços prestados 85

O mesmo plano previa, no âmbito de melhoria das infra-estruturas, dotar todas as ilhas, até ao final da sua vigência,

de um acesso aéreo e marítimo seguro e desencravar as principais zonas de produção piscatória e agrícola a fim de permitir uma orientação eficiente das mercadorias e dos bens 86

Este plano focaliza, assim, a atenção no desenvolvimento da agricultura, silvicultura e pecuária, através da conservação e recuperação do património ecológico nacional, criação de empregos, participação crescente das populações no processo de desenvolvimento. Além do mais, propõe reformar a estrutura agrária, aumentar as áreas de irrigação, promover uma produção familiar intensiva em detrimento de uma produção de subsistência, introduzir e vulgarizar raças melhoradas, melhorar as estruturas de transformação e conservação dos produtos. O II PND define ainda como via para promover o desenvolvimento regional e rural, a participação popular, designadamente ao nível das cooperativas, mas para isso era necessário reforçar a administração e o poder local.

84 Secretaria de Estado da Cooperação e Planeamento, Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento 1982-1985, II Volume, Praia. 85 Ministério do Plano e da Cooperação (S/D), II Plano Nacional de Desenvolvimento 1986-1990, Vol. I Relatório Geral, Praia, p 91. 86 Idem, p. 93.

86 A centralidade do papel do Estado é muito evidente. Um aspecto importante deste plano tem a ver com o facto de as estratégias de desenvolvimento rural centrarem-se numa política que visa, no essencial, manter a natureza do meio rural sem que para tal tivesse que substituir o que ali há de natural. Como vimos anteriormente, “as grandes orientações e perspectivas” de desenvolvimento traçadas pelo primeiro governo da segunda república incidem particularmente no domínio macroeconómico, objectivando promover uma mudança estrutural no país. É neste sentido que o III PND que abarca o período 1992-1995 estabeleceu como principal desafio para o período de sua vigência desenvolver uma economia centrada na lógica do mercado e de iniciativas privadas, uma lógica contrária àquela que vinha vigorando até a data. Na sequência disso, vimos que o IV PND referente ao período 1997-2000 orienta-se para o desafio da “Inserção Dinâmica de Cabo Verde na Economia Mundial”. Assim, questões ligadas aos desequilíbrios regionais e locais mereceram uma atenção de certa forma bastante residual, o que não significa que se tenha colocado de parte as políticas públicas que pudessem ter impacto positivo no desenvolvimento das diferentes ilhas e especificamente no meio rural, quanto mais não seja, porque a melhoria dos aspectos macroeconómicas passa necessariamente pela melhoria dos factores produtivos onde se integram a agricultura e a pesca. O PNLP, que se começou a implementar em 2000, centra-se em grande medida no propósito de promover o desenvolvimento rural. Não obstante as linhas de orientação estratégica de desenvolvimento traçadas, a partir de 2001 pelos governos do PAICV, terem seguido o modelo de desenvolvimento que emergiu a partir de 1991, pelo imperativo de responder as exigências que decorrem dos programas de ajustamento estrutural e da APD, o V PND relativo ao período 2002-2005 define um programa voltado explicitamente para o meio rural. Estamos a referir em concreto ao Programa de Modernização Agrária e Desenvolvimento Rural, programa centrado no desenvolvimento da agricultura irrigada, reconversão da agricultura de sequeiro, desenvolvimento agro-silvo-pastoril, melhoramento do aprovisionamento em factores de produção, dos sistemas de transformação dos produtos agro-alimentares, entre outros domínios 87 . Ademais, este plano define um programa voltado para a

87 Ministério das Finanças, Planeamento e Desenvolvimento Regional (S/D), Plano Nacional de Desenvolvimento 2002-2005, Praia, Direcção Geral do Planeamento.

87 promoção de actividades alternativas à pesca e às FAIMO, como saída para minimizar o problema de desemprego que afecta o espaço social rural. O Documento de Estratégias de Crescimento e Redução da Pobreza I (DECRP), referente ao período 2004-2007, concebe a estratégia de transformação, uma designação que ocupa uma posição central na visão do desenvolvimento preconizado pelo governo de Cabo Verde a partir de 2001, ancorada também na dimensão do desenvolvimento regional, perspectivando, por esta via, reforçar políticas e medidas activas de integração nacional e regional vista como condição necessária para um desenvolvimento económico e social equilibrado e solidário 88. A designada “política de desenvolvimento rural”, centrada na melhoria das explorações familiares através de sistemas de produção agro-silvo-pecuários, é assumida no documento em apreço, como uma das bases de toda estratégia de crescimento e de redução da pobreza. Nesta perspectiva, propõe promover a redução das assimetrias regionais e, em particular, entre o meio rural e o meio urbano, dando-se atenção ao desenvolvimento da economia rural e local 89. O DECRP II, referente ao período 2007-2011, concebe o desenvolvimento regional associando-o ao reforço da descentralização e aos propósitos da promoção da coesão territorial, solidariedade e justiça social, como contexto, a partir do qual, devem orientar-se as linhas gerais de estratégias de desenvolvimento traçadas para o período entre 2008 e 2011. Um outro documento que pode ser visto como suporte das linhas de orientação estratégica do desenvolvimento regional e rural é, sem dúvida, o Plano Estratégico de Desenvolvimento Agrícola, horizonte 2015 90, que traça como visão,

a melhoria das condições de existência sustentável das populações rurais a fim de permitir a redução da pobreza rural em 50% e uma diminuição simultânea da segurança alimentar e nutricional, tanto estrutural como sazonal 91,

Para dar seguimento a este grande desafio, o plano de acção elaborado para o período que decorre entre 2005 e 2008, centra a atenção em cinco eixos, a saber: Gestão dos

88 Ministério das Finanças Planeamento, Documento Estratégico de Crescimento e Redução da Pobreza, Praia, Setembro de 2004. 89 Ministério das Finanças e do Planeamento Praia Poverty Reduction Strategy Paper, Praia, 2003 – Documento preliminar. 90 I Série, N.º 19, “Boletim Oficial” da República de Cabo Verde de 9 de Maio de 2005. 91 Plano Estratégico de Desenvolvimento Agrícola, horizonte 2015.

88 recursos naturais, onde se incluem os recursos hídricos, fundiários, biológicos e haliêuticos; Valorização dos produtos agrícolas e ligados à pesca; Reforço dos conhecimentos científicos e técnicos visando a sua aplicação no sistema de produção; Melhoramento do ambiente de negócio e, por último, a luta contra a fome e a má nutrição, pela via de criação de trabalhos públicos. Em última análise, as grandes linhas estratégicas de desenvolvimento do meio rural têm sido operacionalizadas fundamentalmente a partir do propósito de combater a pobreza e neste sentido, o Programa Nacional de Luta contra a Pobreza (PNLP), mais concretamente, dos subprogramas PSGD e PNPLR tem sido um instrumento importante. Assim, o subprograma PSGD, como a própria designação indica, consubstancia-se num ambicioso projecto orientado para promover as condições socioeconómicas das famílias desfavorecidas nas ilhas de maior incidência de pobreza. Este programa que, como vimos anteriormente, foi orçado num montante de cerca de 781 milhões ECV, 90% dos quais, mobilizados através do empréstimo contraído junto ao BAD e 10%, do orçamento do Estado de Cabo Verde, orientou-se de um ponto de vista mais específico, pelo propósito de desenvolver as capacidades profissionais deste grupo de população, constituído maioritariamente por mulheres chefes de família, trabalhadores das FAIMO e jovens desempregados, desenvolver as suas capacidades produtivas e, de igual modo, abrir-lhes uma janela de oportunidades de acesso aos bens e serviços básicos fundamentais, designadamente, educação, saúde, água e saneamento. O programa arrancou em 2001 e terminou em 2006, tendo abrangido três ilhas designadamente Santo Antão, Santiago e São Vicente onde, segundo as estimativas, concentravam cerca de 84% da população pobre. Foi concebido, tendo em consideração os Programas Locais de Luta contra a Pobreza (PLLP) privilegiando portanto a participação do poder local e dos actores sociais endógenos, designadamente, as ADC, e definiu como principais eixos de actuação, (i) mobilização social e reforço das capacidades dos parceiros e beneficiários, (ii) apoio as iniciativas de desenvolvimento local, (iii) promoção de micro-crédito e (iv) gestão de projectos. O subprograma PNPLR, consubstancia-se por seu lado, como um projecto muito mais vasto, a avaliar quer pela sua abrangência 92 , quer ainda pelo pacote financeiro

92 O programa é de dimensão nacional, tendo no entanto, num primeiro momento abrangido as ilhas de Santo Antão, São Nicolau, Fogo, Brava e os Municípios de São Miguel e Tarrafal situados na ilha de

89 envolvente93. Além do mais, este projecto teve um período de vigência mais longo (2000-2009)94. Segundo Cláudio Furtado, este programa traçou como principal objectivo,

atténuer la pauvreté rurale en développant le capital social des ruraux pauvres par une mobilisation du potentiel d’initiative économique et sociale des communautés locales, de leurs leaders et de leurs partenaires, tant dans la société civile que dans l’administration. Il s’agit ainsi de donner aux communautés locales les moyens de décider de l’utilisation des ressources mobilisées au service de la lutte95.

Furtado refere ainda que,

o PNLPR comporta quatro componentes, executadas em três fases, em conformidade com os procedimentos previstos nos Mecanismos Flexíveis de Financiamento: i) Fundo de financiamento dos Programas Locais de Luta contra a Pobreza -PLLP- (a partir da segunda fase); ii) Actividades de demonstração) apenas na primeira fase); iii) Animação e Formação; iv) Gestão do Programa.

Dito isto, refira-se, então, que as políticas públicas visando combater os desequilíbrios regionais e locais integram claramente as grandes linhas estratégicas de desenvolvimento do país, desde a independência nacional a esta parte. Contudo, de um vasto conjunto de políticas visando cumprir este objectivo, as focalizadas no desenvolvimento rural, a partir do desenvolvimento da agricultura e criação de gado e da promoção do emprego (o primeiro DECRP faz referência, por exemplo, à integração progressiva das FAIMO) parecem ocupar um lugar privilegiado. Lançando agora um olhar sobre a ilha de Santo Antão que, aliás, representa o espaço central deste trabalho dizer que, as linhas estratégicas de desenvolvimento regional/local

Santiago e num segundo momento, a partir de 2008 passou a integrar os outros restantes municípios da ilha de Santiago e as ilhas do Maio e de São Vicente. 93 O orçamento importa um montante de, cerca de 18,335 milhões USD, sendo 50% do valor mobilizado através de empréstimo contraído ao FIDA e os restantes 50% como contrapartida do governo de Cabo Verde (36%) e beneficiários (14%). 94 Devido ao atraso verificado na sua implementação, o programa se encontra ainda em execução. Segundo notícias veiculadas pelos diferentes órgãos de comunicação social está-se já a preparar a elaboração da quarta fase deste programa, cujo pedido de co-financiamento irá ser apresentado aos parceiros ainda no decorrer deste ano. (Angop, agência Angola Press em http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/africa). Segundo Ramiro Azevedo, Coordenador nacional do Programa, citado pela Agência Lusa de Noticias, o objectivo central desta nova fase, é reforçar e consolidar as acções desenvolvidas nas regiões onde o programa atua, após o último alargamento abrangendo as ilhas de Santiago, Maio e São Vicente (http://noticias.sapo.ao/lusa/artigo/ 19 de Março de 2012). 95 FIDA (2003 :6) in IFAD e Furtado Cláudio (Consultor), Abordagens inovadoras para a focalização de grupos pobres e mulheres no contexto do programa FIDA de redução da pobreza no meio rural (PLPR) em Cabo Verde, Praia, 2004, p. 2.

90 e rural traçadas, a partir de 1991, e que se encontram espelhadas nos principais documentos analisados até aqui, estão bem integradas no I, II e, por ventura 96 III Planos de Desenvolvimento e bem assim, no Plano de Acção para o Desenvolvimento da Agricultura, para o quadriénio 2009 – 2012, concebidos para esta ilha. As linhas de orientação de estratégias de desenvolvimento da ilha, traçadas no Primeiro Plano de Desenvolvimento de Santo Antão (PDSA) que abrangeu o período 1994-1997, não são muito diferentes daquelas traçadas no segundo que abrangeu o período 1999- 2001, sobretudo no que se refere aos grandes objectivos propostos. Com base nesta constatação, impõe-se a análise do PDSA salientando que este plano emoldura-se a partir de três conceitos que moldam um modelo de desenvolvimento, isto é, desenvolvimento económico e social, desenvolvimento local e regional e, por último, aquilo que é designado por desenvolvimento harmonioso, referindo-se a medidas que visam precaver-se contra as disparidades regionais, sinónimas de políticas desajustadas ou de estratégias monolíticas 97. Com base nisso, definiram como estratégias de desenvolvimento da ilha, encetar medidas de políticas centradas em três sectores chave: Desde logo, o sector de produção, colocando a tónica, (i) na agricultura, silvicultura e pecuária, perspectivando a diversificação da produção agrícola, particularmente no que diz respeito à horticultura e fruticultura, incremento da criação de gado de carácter familiar, como forma desta actividade contribuir da melhor forma para o aumento do rendimento das famílias e, de igual modo, para a melhoria da dieta alimentar das populações pobres. Esta estratégia ocorre tendo em conta, uma estratégia complementar centrada na mobilização dos recursos hídricos. Neste aspecto em particular, o plano propõe desenvolver estudos que permitam melhorar os conhecimentos sobre as potencialidades que a ilha dispõe neste domínio, promover a racionalidade da sua exploração e melhorar o sistema de abastecimento nas comunidades rurais. No sector de produção é ainda colocada a tónica, (ii) nas pescas, direccionando as acções para o aumento da produção, através da criação de infra-estruturas e melhoria da comercialização do pescado; (iii) no turismo, através da valorização económica da diversidade paisagística, promoção da ideia de turismo ecológico, melhoria do sistema

96 Sabemos que foi elaborado um III Plano de Desenvolvimento de Santo Antão para o quinquénio 2011- 2016, mas não conseguimos ter acesso. 97 Associação dos Municípios de Santo Antão (GTI), II Plano de Desenvolvimento de Santo Antão, Tomo II, Janeiro de 1999, p. 12.

91 de transporte, capacitação dos recursos humanos; (iv) na indústria, a partir, fundamentalmente de pozolana e do pescado e (v) nos transportes terrestres com a construção de estradas de penetração e de caminhos vicinais e carroçáveis, transportes marítimos e aéreos. Um segundo sector chave definido neste Plano, é o designado sectores sociais, assentes em três domínios, isto é (i) a educação, focalizada na melhoria dos programas de formação na área de agricultura, saúde, pecuária, construção civil etc., (ii) saúde e (iii) cultura. Por último, o sector da administração local, onde destacamos a ideia de criação de mecanismos que facilitem o fluxo de informação e que possibilitem uma maior participação das populações na tomada de decisões que lhes dizem respeito. Os objectivos de longo prazo, ou seja, num período de 15 anos, traçados por este plano, têm a ver com a redução do desemprego, melhoria da situação socioeconómica da mulher integrando-a no processo produtivo local e preservação do meio ambiente. Em grandes linhas, as estratégias adoptadas por este plano vão de encontro às visões que enformam as estratégias de desenvolvimento regional/rural e local, traçadas pelos diferentes governos. Por sua vez, o PADA – SA – 2009 a 2012 centrado numa lógica de todo semelhante aos demais instrumentos de orientação do desenvolvimento da ilha, traça a visão estratégica centrada no perspectiva de aumentar, durante o período da sua vigência, a disponibilidade de água, modernizar o sistema produtivo, reduzir a pobreza e o défice alimentar, melhorar a qualidade de vida e de bem-estar e promover um desenvolvimento regional equilibrado. Assim, traça como principal objectivo (estratégico), (…) reorientar e consolidar a nova agricultura, a partir do aumento dos rendimentos económicos no sector agrícola, pecuária e pesca, tendo em conta quatro eixos:

gestão sustentada e integrada dos recursos naturais; intensificar, diversificar e valorizar a produção agrícola e da pesca; promoção de actividades rurais geradoras de rendimento, incluído o turismo rural; integração da abordagem do género 98.

Destas análises, podemos deduzir que as abordagens de desenvolvimento do espaço social rural cabo-verdiano, particularmente as centradas no espaço social rural da ilha de

98 Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos, Plano de Acção para o Desenvolvimento de Agricultura – PADA – SA – 2009 a 2012, Praia, p. 50.

92 Santo Antão, estão centradas no desafio de corrigir os desequilíbrios, regionais (entre ilhas) e locais (entre o mundo rural e o urbano) espelhadas nos níveis diferenciados das condições de vida das populações e em contextos sócio espaciais também diferenciados. Um aspecto comum a todas as acções e práticas inerentes a vários projectos e programas tem a ver com a finalidade de melhorar as condições existenciais das populações de um espaço social periférico, no contexto nacional. Nesta ordem de ideia, importa reter que as linhas gerais de estratégias que sustentam o modelo de desenvolvimento regional e local/rural posto em prática nas últimas décadas na ilha de Santo Antão incidem em múltiplas dimensões, designadamente económica, social, cultural e mesmo política e, além do mais, integram aspectos multissectoriais e perspectivas multifacetadas. Estamos perante um modelo que privilegia a agricultura associada às acções de mobilização de água, a silvicultura e pecuária, privilegiando, de igual modo, os sectores como a pesca, o turismo, o emprego, e também a cultura, o desporto, prestação dos serviços de saúde, transportes, educação e formação, bem como a participação crescente do poder local, da sociedade civil e das populações de um modo geral, no processo de desenvolvimento. Não obstante o sentido pluridimensional e multissectorial que enforma o modelo de desenvolvimento regional e rural em Santo Antão, as políticas públicas em torno da agricultura parecem dominar claramente o sistema de estratégias de desenvolvimento que o serve de âncora.

8.5.1 Abordagens teóricas do desenvolvimento do meio rural: subsídio para um debate a partir da realidade cabo-verdiana.

De há cerca de meio século a esta parte, a sociologia rural tem-se ocupado em analisar e compreender as transformações, em alguns casos profundas, de que se sujeitou o mundo rural. Globalmente, imputa-se à Revolução Industrial do século XVIII, a causa primária dessas transformações. A esta costuma-se associar os efeitos das guerras mundiais que redundaram na emergência de novas teorias e práticas sobre o crescimento e desenvolvimento económicos. As transformações do mundo rural que decorrem da Revolução Industrial e que colocaram em crise a realidade dominante, devido não só à migração da população para os centros urbanos, mas também, devido à urbanização do meio rural, têm uma

93 importância tal que estiveram na origem da sociologia rural como, aliás, nos dá conta Martins (1986) recorrendo a Lefebvre. Mas, o que importa aqui sublinhar, é que essas transformações, conforme refere João Ferrão (2000), resultaram,

por um lado, num acentuado processo de perda de centralidade económica, social e simbólica por parte do mundo rural e por outro lado, este tende a ser globalmente identificado com realidades arcaicas, enquanto as aglomerações urbano-industriais são vistas como o palco, por excelência, do progresso.

Da análise de uma vasta literatura que versa sobre este assunto, podemos dividir as transformações do meio rural em dois momentos distintos: Um primeiro momento em que as mudanças ocorridas são marcadas pela perda de centralidade económica, social e simbólica acima referenciada, citando Ferrão, e um segundo momento em que se operam novas mudanças, desta feita marcadas pelos efeitos da imposição ao mundo rural de um modelo de desenvolvimento centrado no ímpeto da modernização da economia, coincidente com o ponto alto da expansão do capitalismo. Dos efeitos mais marcantes das mudanças operadas no mundo rural no primeiro momento, destacam-se a diminuição acentuada da população no meio rural e a consequente redução da mão-de-obra para manter as actividades ligadas à agricultura e a perda da capacidade produtiva. A esse respeito, Afonso de Barros (1990: 44) fala da ruína da produção rural de bens não agrícolas, o ciclo produtivo agrícola tornando a agricultura dependente dos inputs produzidos industrialmente no espaço urbano. Em última análise, dá-se uma clara perda de autonomia relativa que outrora caracterizava este espaço. Quanto às mudanças ocorridas no segundo momento, refira-se que elas são particularmente marcadas, na esteira das considerações de Afonso de Barros (1990: 44), pela emergência de organizações espaciais pluriactivas, multifuncionais e integradas, a partir das quais os espaços rurais são cada vez mais valorizados, contribuído desta maneira para, em certos casos, o aumento da população. Além do mais, essas mudanças originam novas formas de produção, novas relações sociais e novas relações entre o espaço social rural e o espaço social urbano, mas, originam fundamentalmente, novos mecanismos de reprodução de estratégias de vida no meio rural. João Ferrão analisa estas mudanças sublinhando a ideia de que o meio rural deixou de ser um espaço onde a actividade económica dominante era a agricultura, para passar a

94 ser um espaço onde converge uma grande variedade de actividades. O meio rural, ainda segundo Ferrão (2000), deixou, sobretudo, de ser um espaço cuja família camponesa era vista como grupo social dominante para passar a ser um espaço social de relações sociais centradas em vários outros grupos sociais. A partir da tentativa de interpretação das mudanças ocorridas no meio rural, emergiu um vasto debate teórico, em relação ao qual, vamos dar conta, ainda que de forma breve. A discussão do conceito do “rural” a partir da sua relação com o “urbano” está no cerne deste debate. A questão central deste debate é reproduzida em torno de duas abordagens fundamentais: uma centrada na dicotomia entre o rural e o urbano ou campo e cidade protagonizada fundamentalmente por Sorokin e Zimmermann, que defendem a ideia segundo a qual existe uma acentuada diferença entre os dois espaços de ponto de vista quer ocupacional, ambiental e demográfico, quer ainda do ponto de vista da diferenciação, estratificação e complexidade social ou mobilidade social etc. e outra centrada na ideia do continnum rural e urbano defendendo uma perspectiva de relação de proximidade, integração e de complementaridade entre os dois espaços, protagonizadas por H. Mendras e R. E. Pahl (Marques, 2002. A partir destas duas abordagens fundamentais, surgem vários pontos de vista de análise, centrados, ora na crítica à teoria do continnum rural-urbano atribuindo-lhe o atributo etnocêntrico e até pejorativo, ora reforça-a, trazendo para a discussão, novos elementos, ora desvalorizando quer uma quer outra perspectiva de análise. Reportando este debate para a realidade cabo-verdiana, ele parece suscitar de forma natural a ideia de que essas transformações não ocorreram de forma homogénea em todos os espaços rurais como de resto parece óbvio, nem os factores anteriormente referidos participam nas transformações de forma homogénea em todos os territórios ou mesmo em todos os espaços no interior do mesmo território. Assim sendo, a questão que nos parece pertinente colocar aqui é se houve transformações significativas no meio rural cabo-verdiano, particularmente no espaço social rural em Santo Antão, a ponto de tomarmos os aspectos teóricos acima enunciados como referência de partida para a discussão sobre a adequação do modelo de desenvolvimento rural que tem sido adoptado. Antes, porém, de esboçar a resposta à questão colocada, importa rever rapidamente algumas abordagens em torno do conceito de desenvolvimento rural.

95 Ângela Kageyama (2004) dá-nos conta de várias perspectivas da análise do conceito de desenvolvimento rural, das quais apresentamos algumas. A autora apresenta o exemplo de Veiga (2000) que concebe o desenvolvimento rural numa perspectiva integracionista, razão pela qual este autor considerar que não existe o desenvolvimento rural como fenómeno concreto ocorrendo separadamente do desenvolvimento urbano 99. A autora recorre ainda a Epstein e Jezeph (2001), para os quais os países em desenvolvimento devem recorrer ao “paradigma de desenvolvimento com base na parceria rural-urbano”, como saída para a promoção do desenvolvimento rural. Na sequência disso, a autora refere que Epstein e Jezeph sugerem,

um redireccionamento dos esforços desenvolvimentistas (e dos recursos das agências internacionais para o Terceiro Mundo), no sentido de tornar mais atractivas as áreas rurais como forma a reter a população mais pobre, potenciais migrantes 100.

Ela refere ainda Van der Ploeg et. al. (2000), que consideram que,

O desenvolvimento rural implica a criação de novos produtos e novos serviços, associados a novos mercados; procura formas de redução de custos a partir de novas trajectórias tecnológicas; tenta reconstruir a agricultura não apenas no nível dos estabelecimentos, mas em termos regionais e da economia rural como um todo 101;

As linhas de orientação de estratégias de desenvolvimento rural ora analisadas, parecem estar intrinsecamente ligadas a um modelo de desenvolvimento centrado na ideia de modernização que, em certa medida, tem dominado as práticas de desenvolvimento, um desenvolvimento visto por Martins como sendo “tendencioso e excludente” que paradoxalmente se revela muito mais como um “contra desenvolvimento social responsável por formas perversas de miséria antes desconhecidas em muitas partes do mundo” (Martins, 2001). Regressando à questão esboçada anteriormente e baseado nos dados empíricos de que dispomos, refira-se que é seguro afirmar que houve mudanças na estrutura agrária, nos modos de vida da população, como permitem constatar a emergência da estratégia de

99 Vide Veiga (2000) in Kageyama, Ângela. “Desenvolvimento Rural: conceito e medida”, Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 21, n. 3, p. 379-408, set./dez. 2004. 100 Vide Epstein e Jezeph (2001) in Kageyama, Ângela. “Desenvolvimento Rural: conceito e medida”, Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 21, n. 3, p. 379-408, set./dez. 2004. 101 Vide Van der Ploeg et al. (2000), Kageyama, Ângela. “Desenvolvimento Rural: conceito e medida”, Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 21, n. 3, p. 379-408, set./dez. 2004.

96 vida centrada na pluriactividade, bem como a emergência de organização espacial multifuncional. De igual modo, os dados permitem atestar uma crescente valorização do espaço rural na ilha. Além do mais, são notórias as novas formas de produção, novas relações sociais entre meio rural e meio urbano, como também são visíveis novas formas de reprodução das famílias do meio rural. Os dados de que dispomos permitem-nos ainda confirmar, como aliás o fizemos anteriormente, que o modelo de desenvolvimento regional/rural adoptado na ilha tem estado ancorado fundamentalmente na modernização da agricultura. O que os dados não nos permitem, neste momento, é responder com objectividade que este modelo de desenvolvimento rural se adequa às mudanças a que o meio rural em Santo Antão se sujeitou nas últimas décadas. No entanto a pertinência deste assunto exige que o retomemos num momento oportuno.

9. Conclusão

Ao longo deste capítulo analisamos os contextos histórico, socioeconómico e político no seio dos quais ocorrem as dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local que, de resto, constitui o objecto de investigação preconizada ao longo destes anos, bem como as principais linhas que orientam as estratégias de desenvolvimento em Cabo Verde, centrando as atenções no desenvolvimento regional/local e rural. Em jeito de conclusão apraz-nos evidenciar pelo menos seis aspectos essenciais da caracterização da ilha de Santo Antão e que para nós são importantes para a compreensão da matriz de análise traçada para este trabalho. 1. O povo cabo-verdiano enfrentou durante toda a sua existência, períodos cíclicos de crises sociais e económicas provocadas pelas secas, em proporções tais que se traduziram por vezes em muitos milhares de mortos. O último período de seca com essas proporções verificou-se entre 1947 e 1948 e é vulgarmente tratado por fomi 47 e, frequentemente, retratado na música e literatura cabo-verdianas. Uma boa parte das histórias que retrataram este acontecimento é ainda possível ser ouvida em discurso directo por aqueles que a presenciaram ou que dela deram conta. Recorda-se que durante esta crise morreram cerca 29.789 pessoas em todo o país, sendo que só em

97 Santo Antão terão sucumbido cerca de 4.245 pessoas, 2.932 só em 1.948 (Carreira, 1994). Tal facto deixou marcas visíveis no modo de estar e de actuar das populações da ilha de Santo Antão, espelhadas de forma clara no sistema de estratégias de vida que as famílias, particularmente as do meio rural, imprimem no seu quotidiano, como vamos poder ver mais à frente. 2. O modelo de colonização imposto por Portugal a Cabo Verde, nomeadamente no que concerne a divisão da ilha de Santiago (a primeira a ser povoada) em duas capitanias, a partir das quais emergiram regimes de donatárias e sesmarias, num primeiro momento, e o regime de morgadios e capelas, num momento posterior 102, de que resultaram fortes laços de dependência das famílias do meio rural em relação aos terratenentes, determinou uma “estrutura agrária que se manteve praticamente inabalável durante toda a história colonial” (Furtado, 1993: 185). A estrutura agrária hoje dominante em Santo Antão é por um regime de exploração indirecta de terras através da modalidade de parceria e de arrendamento, sendo a primeira muito mais expressiva. 3. Santo Antão representa, do ponto de vista demográfico, uma ilha repulsiva. Em 2010, a população decresceu em cerca de 1,3% fruto, provavelmente, do fenómeno da migração interna. Mas, além disso, nos parece importante sublinhar que cerca de 62% da população da ilha vive no meio rural e que mais de 45% das pessoas são pobres 103, aliás, é a ilha que conta com a mais elevada taxa de pobreza, um fenómeno que se reflecte nas condições das habitações, no rendimento per capita das famílias particularmente as do meio rural, etc. No entanto, a taxa de desemprego que se verifica na ilha é ligeiramente inferior à media nacional, o que nos parece ser bastante enganadora, uma vez que vez que a maioria das ocupações dá-se nos sectores da agricultura, uma actividade económica muito condicionada e, além do mais, com baixa renda. Estamos perante uma sociedade em que as pessoas se sujeitam a um conjunto de privação, particularmente as que integram espaços sociais rurais: desde logo a privação de água potável e de alimentos em certos casos, privação das condições materiais dos cuidados mínimos de saúde, privação de um emprego decente e sustentável, etc.

102 Correia e Silva, António (2001). Espaço, Ecologia e Economia Interna, História Geral de Cabo Verde, vol. I (Coord. Albuquerque, Luís de & Santos, Maria Emília Madeira), Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica e Tropical e Praia: Instituto Nacional de Investigação Cultural. P. 337. 103 QUIBB, 2007.

98 4. A ilha de Santo Antão é, tirando as ilhas de Santiago e de São Vicente, a que conta com maior número de ADC. Porém, é considerada a ilha onde as dinâmicas associativas são maiores. 5. Vigora em Cabo Verde um regime político democrático desde o início da década de noventa substituindo um regime de partido único que vigorava desde 1975, altura da independência. Portanto, trata-se de um ambiente democrático que procura sobrepor-se aos retalhos da ideologia e práticas do regime do partido único e diríamos mais ainda, também do colonialismo. Estamos perante um regime político marcadamente jovem, ainda longe de atingir o estádio de consolidação, usando uma perspectiva ocidentalista de tipificação. O ambiente político que se vive, ainda que fora dos períodos eleitorais é tenso, fruto das relações que se estabelecem entre instituições do estado e as do poder local num contexto de coabitação política. 6. A ilha de Santo Antão conta, por um lado, com um conjunto de aspectos que podem ser considerados como oportunidades do seu desenvolvimento. Alguns deles apenas no contexto nacional e outros num contexto universal como por exemplo o aspecto paisagístico. Mas por outro lado, conta também com vários constrangimentos, sendo alguns deles naturais como aqueles decorrentes da sua orografia e outros estruturais, como aqueles decorrentes do perfil socioeconómico da sua população. 7. A visão sobre as estratégias de desenvolvimento seguida pelos governos nas duas últimas décadas orienta-se basicamente pela promoção de uma economia de base privada e consequentemente regulada pelos mecanismos do mercado. Além do mais, os discursos produzidos em torno desta estratégia estão muito focalizados pelo propósito de combater os desequilíbrios regionais e locais. As grandes linhas de orientação estratégica de desenvolvimento do país encontram-se fundadas nas ideias de modernização construída a partir dos princípios da globalização capitalista neoliberal, resultado natural do Programa de Ajustamento Estrutural. No domínio específico do desenvolvimento rural, referindo-se à ilha de Santo Antão, o desenvolvimento é concebido a partir da promoção do emprego (o primeiro DECRP faz referência, por exemplo, à integração progressiva das FAIMO) e a partir da promoção do sector de produção, colocando a tónica, (i) na agricultura, silvicultura e pecuária, perspectivando a diversificação da produção agrícola, particularmente no que diz respeito à horticultura e fruticultura, incremento da criação de gado de carácter familiar, como forma desta actividade contribuir para o aumento do rendimento das famílias e, de

99 igual modo, para a melhoria da dieta alimentar das populações pobres. Esta estratégia ocorre tendo em conta, uma estratégia complementar centrada na mobilização dos recursos hídricos. Um outro sector chave definido para a ilha é o designado sectores sociais, assentes em três domínios, isto é (i) a educação, focalizada na melhoria dos programas de formação na área de agricultura, saúde, pecuária, construção civil etc., (ii) saúde e (iii) cultura.

100 Capítulo II – Conceitos e teorias das dinâmicas de desenvolvimento local

1. Introdução

Este capítulo destina-se à reconstrução do contexto das dinâmicas dos actores sociais, de ponto de vista do quadro conceptual e teórico que as sustenta. Nesta óptica, vamos rever o quadro teórico que tem orientado as abordagens em torno das dinâmicas de desenvolvimento, focalizando nos aspectos que têm maior conexão com o desenvolvimento local. Neste diapasão, ao longo deste capítulo, para assegurar uma certa disposição lógica do raciocínio em matéria das dinâmicas de actores sociais, vamos, em primeiro lugar lançar um olhar, ainda que de forma sucinta, sobre a origem do conceito de desenvolvimento, durante o qual vamos analisar, ainda que sucintamente, a sua trajectória até finais da década de sessenta e início da década de setenta do século passado e de seguida vamos centrar a nossa análise sobre as diferentes perspectivas de desenvolvimento local construídas a partir da década de setenta do século XX ao presente momento, lançando um olhar aos diferentes modelos e propostas que emergiram a partir desse período, referindo-se concretamente ao desenvolvimento sustentável, desenvolvimento participativo, desenvolvimento humano, desenvolvimento social e conceito de economia solidária. Ainda neste capítulo vamos discutir o conceito de actores sociais de desenvolvimento para, de seguida analisarmos a relação entre os actores sociais no quadro das teorias sustentadas particularmente por Lefebvre, Crozier e Friedberg, etc. Por fim, vamos centrar a análise nos pressupostos da descentralização e da democracia vistos como factores que viabilizam o desenvolvimento local.

2. Conceitos e teorias sobre o desenvolvimento: transição para as novas perspectivas de desenvolvimento.

Partindo de uma perspectiva mais teórica que axiológica refira-se que os conceitos e teorias de desenvolvimento deram sequência às abordagens que estiveram ao longo dos tempos no centro das preocupações das várias áreas de conhecimento científico mas também dos actores políticos, independentemente das suas orientações ideológicas. No domínio científico e no quadro de uma perspectiva clássica de desenvolvimento importa chamar atenção para as contribuições de Adam Smith, Karl Marx, Rostow etc.

101 O conceito de desenvolvimento estava alicerçado no crescimento económico cujo efeito augurava-se duradouro. Nesta perspectiva, de acordo com Perroux (1966:39), o desenvolvimento era visto como uma combinação das mudanças mentais e sociais da população, que a tornam apta a fazer aumentar cumulativa e duravelmente o seu produto real ou global. Em certo sentido, a ideia de desenvolvimento era cimentada numa relação explícita e directa entre a tecnologia, divisão social do trabalho, produção em massa, criação das novas necessidades e consumo em massa. No contexto em que este conceito é considerado, o crescimento económico exprime-se por certos índices como, o Produto Interno Bruto (PIB), o Produto Nacional Bruto (PNB), a quantidade de calorias consumida por habitante, o consumo de energia, a repartição das actividades primárias, secundárias e terciárias, a duração média de vida, etc. que, como facilmente se depreende e que, de resto, mereceu uma observação por parte de Frayssinet (1966:46), era bastante limitado, quanto mais não seja porque, segundo ele,

para além de desprezarem, especialmente nos países subdesenvolvidos, os factos de auto consumo, cobrem domínios bastante diversos; o nível e o género de vida consumo, habitat; quantidades globais e o seu valor médio por habitante rendimento, poupança, capitais; fenómenos estruturais desemprego real ou oculto, repartição das actividades a menos que eles remetem para fenómenos dos quais não passam de aproximações o volume do comércio por habitante aprecia o grau de organização do mercado 104.

Depois da II Guerra Mundial, os discursos em torno do conceito de desenvolvimento mudaram de orientação, pois passaram a estar mais centrados nas políticas e estratégias que melhor servissem a conjuntura socioeconómica dominante nessa época. Muitos factores poderão ter contribuído para a viragem nas percepções do desenvolvimento mas alguns merecem ser aqui destacadas. Refira-se, desde logo, aos movimentos independentistas nas colónias europeias, um facto que levou à desintegração dos impérios coloniais e, por conseguinte, o surgimento de novas nações, com as dificuldades que este fenómeno representa e que, de resto, são sobejamente conhecidas, bem como o levantamento de uma série de questões sobre se as independências desses países seriam bom ou mau para o avanço de cada um deles. Nesta mesma linha, pode-se apontar um outro factor que tem a ver com a necessidade

104 Grifo no original.

102 da reconstrução da Europa devastada pela guerra e a consequente dúvida sobre se ela teria a capacidade de, rapidamente, se recuperar e atingir o nível de prosperidade conhecida anteriormente. Um outro factor, por ventura mais importante, tem a ver com a bipolarização ideológica dominante na política internacional protagonizada pelos Estados Unidos da América e a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o que levou a que cada um dos blocos focalizasse as suas estratégias de desenvolvimento económico num modelo que lhes permitisse alcançar a hegemonia do poder político e ideológico, consubstanciada na capacidade de exercer influência ao nível mundial. Ligado a este factor sublinha-se o propósito dos Estados Unidos de América em reproduzirem as condições que os colocavam numa posição hegemónica no contexto político e económico mundial, e que decorrem das bases que suportam a ideologia capitalista. Para isso, era necessária uma ampla luta contra as tentativas de imposição ao mundo, por parte do bloco de leste, da ideologia comunista, um fenómeno que ganhou novos contornos a partir dos acontecimentos que envolveram a fase derradeira da Segunda Guerra Mundial, pelo que a ideologia, aliás, como analisou Peemans (2002: 21), jogou um papel fundamental na redefinição da visão sobre desenvolvimento económico. Mas, além desses factores, podemos ainda acrescentar as contribuições que as universidades americanas, nomeadamente as Universidades de Chicago, Harvard, Cornell, Columbia, Princeton e Stanford desempenharam na emergência de novas visões que serviram de fundamento para a elaboração de novas teorias de desenvolvimento (Peemans, 2002: 23). O acordo de Bretton Woods alcançado em 1944, que esteve na génese da criação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, instituições que mais tarde suportaram o Plano Marshall, surgido a partir da “doutrina de Truman” ou do “Programa de Recuperação da Europa”, tinha no crescimento económico, sendo este baseado nos princípios que enformam o liberalismo económico, um objectivo fundamental a alcançar pelos países europeus. Representava-se, portanto, como sustentáculo de conceitos e teorias que dominaram as práticas de desenvolvimento na época. Mas, é preciso notar que, em paralelo com a implementação do “Programa de Reconstrução da Europa”, decorriam movimentos independentistas, motivados em parte por pressupostos economicistas e desenvolvimentistas.

103 As políticas de desenvolvimento encetadas a partir da lógica capitalista, ou se quisermos, assente em medidas que promoviam o crescimento económico, determinaram um Ocidente caracterizado por um elevado índice de desenvolvimento e, consequentemente, acentuada prosperidade económica. A visão do desenvolvimento de que resulta a prosperidade económica europeia e dos EUA durante o período pós Segunda Guerra Mundial era toda ela fundada no conceito de modernização,

Dont les Etats-Unis était l’exemple le plus achevé et qui offrait au reste du monde l’image de son avenir, à condition de suivre le même chemin, au Nord, comme Sud, et de ne pas s’égarer sur les chemins de traverse du socialisme et a fortiori du communisme (Peemans, 2002: 38).

Aqui importa sublinhar as contribuições da corrente funcional-estruturalista de que Talcott Parsons é a figura mais destacada e que, em certa medida, dominava o pensamento das ciências sociais na época105, particularmente nas escolas americanas a que fizemos referência anteriormente, na qual se baseou, por exemplo, Eisenstadt para formular a teoria de modernidade 106. É preciso, no entanto, ressalvar que a teoria em torno da modernização está associada a figuras proeminentes da ciência, ligadas à sociologia, antropologia e economia, razão pela qual se associa aos termos “escola”, ou “fez escola”. A título de exemplo, podíamos acrescentar o nome de W.W. Rostow. As visões de desenvolvimento que decorrem do modelo de desenvolvimento que dominou o mundo entre a Segunda Guerra Mundial e os anos sessenta ligam-se à ideia de que um rápido crescimento económico está intimamente ligado à eficiência do processo de produção nos mais diversos sectores de actividade, e conta com factores que favorecem a acumulação de capitais, trocas comerciais, acessibilidade às economias

105 Sob o ponto de vista da tentativa de compreender os contornos do desenvolvimento esta corrente serviu de base para explicar a diferença entre sociedades desenvolvidas e sociedades subdesenvolvidas pelo determinismo cultural. Isto os defensores deste modelo teórico na compreensão do desenvolvimento eram dominados pela ideia segundo a qual o desenvolvimento era o resultado de um processo de modernização, no qual a relação entre a tecnologia, industrialização, valores e comportamento na forma da racionalidade económica, era importantíssima na definição do seu modelo. Um dos seus protagonistas é, sem dúvida Talcott Parsons. Importa ainda referir que esta corrente veio a ser criticada por se basear em análise abusivamente teleológica; por ter uma concepção hiper socializada dos indivíduos e por definir de maneira insuficiente e imprecisa os conceitos como o sistema, função, estrutura, etc. 106 Vide Eisenstadt, S. N. (1991), A Dinâmica das Civilizações: Tradição e Modernidade, Lisboa, Edições Cosmos.

104 de escala, além de um mecanismo de distribuição mais justo possível dos recursos existentes. Para além do mais, esse modelo de desenvolvimento valoriza claramente a ideia em relação a qual, o centro ou a administração central tem um papel fundamental na definição de um processo de desenvolvimento, pelo que o esquema implícito em todas as abordagens que o sustentam é o designado esquema de desenvolvimento pelo topo também conhecido pela expressão top-down, isto é, uma estratégia de desenvolvimento desencadeada à volta de uma área geográfica determinada e segundo as condições naturais impulsionadoras do crescimento das actividades económicas, ou ainda à volta de funções e hierarquias específicas mas que, em contrapartida, se afasta da ideia de participação social ou das expectativas sociais localizadas. Nesta perspectiva, cabe ao Estado um papel central, quer na definição dos pólos (locais) e sectores (ramo de actividade económica) estratégicos de aplicação de investimentos, quer na determinação de instrumentos que concretizem esses mesmos investimentos 107. É esta visão, assente numa relação dialéctica entre um rápido crescimento económico, a modernização e desenvolvimento, que durante esse período serviu de argumento às práticas de desenvolvimento que posteriormente eram transferidas para o Sul. Tratou-se, aliás, de uma transferência dotada de um vasto conjunto de medidas e práticas onde se destaca, por exemplo, o Programa de APD, que se afirmou como uma forma de promover a participação do capital estrangeiro nas economias dos países pobres. Apesar disso, o período que separa os meados das décadas de sessenta e setenta foi marcado pela escalada de movimentos radicais e emergência de regimes autoritários tendo por base os desequilíbrios sociais e económicos e consequentemente a frustração das populações em relação às expectativas quanto ao futuro pois, segundo Roque Amaro (2003: 52-53), os países subdesenvolvidos continuavam a não conhecer progressos com a adopção dos modelos de desenvolvimento que lhes eram propostos e/ou impostos pelos países desenvolvidos. Além do mais, surgia alguma crispação social nos países desenvolvidos, começaram a aparecer novas preocupações com as questões ambientais decorrentes das práticas do desenvolvimento, verificaram-se crises

107 Entende-se por instrumentos de concretização dos investimentos, as mais variadas medidas que impulsionam o crescimento económico, designadamente, as políticas fiscais, a atribuição de subsídios, a aplicação de investimentos públicos, a transferência de tecnologias, etc.

105 económicas com consequências no emprego; tiveram lugar várias crises sociais, políticas, económicas, etc. nos países socialistas. Este período representa no fundo,

une époque qui voit se radicaliser une demande d’un nouvel “ordre des peuples et des gens” sous la forme de mouvements révolutionnaires à base paysanne surtout, et la réponse qui est donnée par les élites au pouvoir, au Nord et dans un certain nombre de pays du Sud, est une volonté d’imposer une forme nouvelle « d’ordre des choses », encore moins consensuelle que dans la période précédente (Peemans, 2002 : 84)

Todas essas mudanças implicaram a necessidade da procura de novas alternativas conceptuais e, consequentemente, novas práticas do desenvolvimento que visassem corrigir os problemas a esse nível, quanto mais não seja, porque,

en même temps, au Nord, et singulièrement aux Etats-Unis mêmes, foyer de la pensé sur la modernisation, est apparu un courant intellectuel remettant en cause radicalement les fondements mêmes de l’optimisme sur lequel étaient basées les conceptions du progrès associées à celle de la croissance sen limites. Pour des raisons fort différentes, on a donc deux courants critique qui vont, l’un au Sud, l’outre au Nord, remettre en cause, chacun de leur côté, les postulats de la théorie de la modernisation (Peemans, 2002 :85).

Está-se a aludir concretamente ao surgimento da “escola de dependência dogmática” ao Sul e a corrente ecologista, designada “ecologia dogmática” ao Norte, ambas fundadas no pensamento crítico de matriz socialista que alimentava as ciências sociais na época, particularmente a sociologia. A escola de dependência dogmática resulta da tentativa de compreender o fenómeno ligado ao desenvolvimento e subdesenvolvimento, a partir do pressuposto segundo o qual,

a dependência política e económica continuada poderá esclarecer em parte o subdesenvolvimento do mundo latino-americano e afro-asiático (a despeito da desfasagem entre ambos os processos), condicionados aos mecanismos de apropriação e acumulação do excedente económico, pelo crónico endividamento externo, pelas relações de trocas desiguais, pela dominação do capital financeiro e bancário, com a complacência e conivência inicialmente das classes senhoriais, das oligarquias agroextrativistas exportadoras e, posteriormente, dos agentes da sub-economia industrial, os quais tradicionalmente exerceram o controlo do poder estatal (Machado, 1999).

106 Desta forma, contrapõe-se à visão da escola da modernização assumindo uma posição em que o desenvolvimento é visto como “résultat d’un processus historique pluri- séculaire” (Peemans, 2002: 86). André Gunder Frank (s/d, 24), uma das figuras proeminentes da escola de dependência, corrobora a ideia segundo a qual o subdesenvolvimento se explica pela relação de dependência entre os países do centro e de periferia partindo de uma simples constatação de que todos os países vulgarmente considerados subdesenvolvidos tiveram posição colonial dentro do sistema capitalista mundial. Fica a ideia, no entanto, que André G. Frank vê essa dependência unicamente na sua dimensão económica. Já Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (1979: 25) analisam a dependência tendo em consideração outras dimensões, como social e política. É nesta perspectiva que a interpretação global do desenvolvimento passa necessariamente por

estudar desde início as conexões entre o sistema económico e a organização social e política das sociedades subdesenvolvidas, não só nessas sociedades e entre elas, mas também com relação aos países desenvolvidos, pois a especificidade histórica da situação de subdesenvolvimento nasce precisamente de relação entre sociedades periféricas e centrais.

Desta maneira,

“é preciso, pois, redefinir a situação de subdesenvolvimento, levando em consideração seu significado histórico particular, pondo em dúvida os enfoques que a apresentam como um possível modelo de ordenação de variáveis económicas e sociais” (Cardoso e Faletto, 1979:25).

Mas, mais do isso, para os autores a situação de dependência, seja ela em que dimensão for, não explica de forma linear o fenómeno de subdesenvolvimento, pois,

não existe uma relação metafísica de dependência entre uma Nação e outra, um Estado e outro. Essas relações se tornam possíveis concretamente por intermédio de uma rede de interesses e de coacções que ligam uns grupos sociais aos outros, uma classe às outras” (Cardoso e Faletto, 1979: 140).

Samir Amin (1988) é, de igual modo, um dos defensores desta teoria. As principais ideias por ele defendidas circunscreveram-se na existência de dois padrões de acumulação de capitais, sendo um referente ao “capitalismo central”, onde a acumulação é decorrente fundamentalmente da articulação entre o sector de produção

107 de bens de capitais e o sector de produção de bens de consumo, e outro referente ao “capitalismo periférico” onde predomina a articulação entre o sector de exportação – extroversão – sector de produção de bens de luxo. A importância do centro em relação à periferia, vista pelo prisma da relação comercial ou da dominação é o ponto forte da escola de dependência. É algo que parece servir de base para a construção do modelo analítico que caracteriza o grosso do pensamento fundado nesta escola. A corrente ecologista designada “ecologia dogmática” incide no fenómeno designado “problemas ambientais” a partir do qual se procura definir uma nova visão sobre o modelo de relação que se deve estabelecer entre a sociedade e a natureza. Mas este é um assunto que vamos retomar no ponto que se segue. A afirmação, quer da escola de dependência ao Sul quer da ecologia dogmática no Norte, significou a falência de um sistema dominado pela teoria de modernização que alimentou as múltiplas práticas e experiências de desenvolvimento durante cerca de três décadas. Ao compararmos a temática desta investigação com o paradigma de desenvolvimento centrado nas teorias e/ou modelos acima examinados emerge um problema metodológico importante que vamos tentar resumi-lo em torno de dois aspectos essenciais: O primeiro reporta para o facto de este paradigma não dar importância à participação social dos actores sociais endógenos, nem tão pouco ao poder local. O segundo reporta para o facto de este paradigma reduzir o conceito de desenvolvimento ao crescimento económico, menosprezando portanto as dimensões social, cultural, política e simbólica. Como vimos anteriormente, para este trabalho tomamos por desenvolvimento um processo orientado para a melhoria das condições de vida das populações num dado espaço territorial e simbólico e que conta com o envolvimento das potencialidades locais nas suas dimensões humanas e materiais e através do qual os actores sociais, com base nas estratégias que imprimem às suas acções e interacções buscam conquistar autonomias e criar condições mais favoráveis à sua (sobre) vivência.

3. As perspectivas de desenvolvimento da década de setenta e o seu prolongamento até ao presente: do desenvolvimento (endógeno) local ao desenvolvimento solidário.

108

Para se compreender as bases do surgimento das novas perspectivas de desenvolvimento que começaram a surgir na década de setenta, é preciso analisar os contextos económicos, sociais e políticos que dominaram as sociedades ocidentais na década de sessenta e que se agudizaram (ou se aprofundaram) na década de setenta, cujos efeitos foram sentidos um pouco por todo o mundo. Literatura variada dá conta da situação social, particularmente difícil, que se vivia na Europa devido, em parte, a um vasto conjunto de acontecimentos que se diversificaram pelo mundo em que merecem destaques a contestação estudantil ocorrida em Maio de 1968 em França com réplicas em vários países desenvolvidos, o movimento dos intelectuais reformistas do Partido Comunista da antiga Checoslováquia, vulgarmente conhecido pela primavera de Praga, ocorrida no mesmo ano e a crise mundial do petróleo iniciada em 1973. Estes e outros acontecimentos que dominaram a sociedade gobal na época eram vistos, em certa medida, como resultados do paradoxo do capitalimo, consolidado através de uma visão acentuadamente estruturalista da sociedade, por um lado, e a “inserção dos países do Sul na transnacionalização da economia mundial”, por outro lado (Peemans, 2002:119), de que resultou um acentuado desequilíbrio mundial, regional e local, em termos das oportunidades e de acesso aos bens materiais de consumo, expressas pela divisão Norte/Sul, Rural/Urbano e Interior/Litoral. Perante as condições sociais, económicas e políticas que se vivia particularmente na Europa e nos EUA, consideradas por muitos como resultado do modelo de desenvolvimento dominante, mostrava-se então premente encontrar um modelo de desenvolvimento que pudesse dar respostas aos problemas da época. É nesta base, e na sequência do surgimento da corrente ecologista, designada “ecologia dogmática”, no Norte é que desponta, por exemplo, o conceito de desenvolvimento sustentável que começa a ganhar forma a partir da Conferência das Nações Unidas para Ambiente Humano que teve lugar em Estocolmo – Suécia no ano de 1972, onde se reuniram as delegações de cerca de 114 países, apesar do boicote do bloco dos países do leste europeu, e de onde saiu a Declaração sobre o Ambiente Humano. Na sequência deste evento e da criação de uma Comissão Mundial de Ambiente e Desenvolvimento (“World Commission on Environment and Development”), foi publicado em 1987 um documento intitulado “o nosso futuro comum”, e que também

109 foi conhecido por Relatório Brundtland 108 que deu um impulso muito importante não só à discussão das políticas de desenvolvimento de um modo geral, como levou a que se preocupasse, em concreto, com questões relacionadas com a reconversão industrial e o tratamento dos resíduos perigosos, bem como a sustentabilidade dos recursos naturais renováveis e não renováveis. Neste diapasão, o Relatório de Brundtland definiu o desenvolvimento sustentável como aquele que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de responder as suas próprias necessidades (WCED 1987). Notamos que se trata de um conceito que, segundo o mesmo relatório, chama a atenção para a necessidade de se utilizar, de forma racionalizada, os recursos naturais não renováveis, fundamentais em qualquer processo de desenvolvimento harmonioso e, consequentemente, na melhoria da qualidade de vida dos homens. Assim, de acordo com o referido relatório, um processo de desenvolvimento sustentável deve ser perspectivado a longo prazo e assente em mecanismos que assegurem o funcionamento normal do sistema natural. Deve, de igual modo, partir de acções locais assentes na minimização dos impactos ambientais provocados pelas acções humanas promovendo a utilização equilibrada dos recursos disponíveis. Para isso, é necessário desenvolver acções que promovam a reutilização dos recursos através da reciclagem, substituição das tecnologias de produção mais prejudiciais ao ambiente, promoção de actividades que visam a conservação da natureza, etc. Em síntese, a ideia que parece prevalecer é a de que é absolutamente necessário “ [...] integrar os factores económicos e ecológicos nos processos de decisão [...]” e procurar “ [...] conservar e melhorar os recursos naturais básicos” (Clayton e Radcliffe, 1996: 285), um aspecto ignorado em certa medida pelo modelo de desenvolvimento assente na lógica do mercado e consequentemente pela economia de escala e suportado pela lógica da modernização. É também ligado ao contexto socioeconómico acima descrito que, segundo Benko (1999: 85), surgiram nomes como John Friedmann109, Walter Stöhr, Fraser Taylor, e

108 O documento foi assim designado devido ao facto de ter sido a norueguesa Gro Harlen Brundtland a pessoa encarregue de preparar o relatório. Na altura ela presidia a dita comissão. 109 Friedmann, havia proposto ainda na década de cinquenta, o termo desenvolvimento endógeno que devia seguir um modelo centrasse no desenvolvimento do potencial produtivo de uma unidade territorial, que considerasse os aspectos históricos e primasse pela busca incessante da melhoria das condições gerais. de vida de toda a população envolvente. Isto é, um modelo que considerasse a multidisciplinaridade e

110 Clyde Weaver, cujos trabalhos centravam na tentativa de estabelecer um paradigma de desenvolvimento que devia partir de mudanças estruturais quer em relação à lógica que norteava as actividades industriais, quer ainda em relação às lógicas que orientavam a organização social do trabalho, formas de mobilização e gestão da mão-de-obra, formas de intervenção do Estado, mecanismos de regulação do trabalho, normas de produção e de consumo, etc. (Amaro, 1991:167) e que devia centrar os seus pressupostos numa lógica contrária às lógicas centralizadoras e uniformizadoras que sustentaram o paradigma do desenvolvimento dominante, assumindo desde logo uma estratégia centrada no território e assente nas suas potencialidades endógenas. Daí, a ideia de desenvolvimento local, mas também designado desenvolvimento endógeno já referenciado, desenvolvimento comunitário, desenvolvimento auto centrado, entre outras designações. Não obstante as várias designações, o desenvolvimento local era visto na época como

um processo de satisfação de necessidades e de melhoria das condições de vida de uma comunidade local, a partir essencialmente das suas capacidades, assumindo aquele o protagonismo principal nesse processo e segundo uma perspectiva integrada dos problemas e das respostas (Amaro, 2003: 57).

Para Aydalot (1985: 145), este novo paradigma de desenvolvimento afirma-se, como uma crítica dos princípios da economia de mercado, fundada sobre a rentabilidade dos agentes independentes e sobre o quantitativo. Tendo como pressuposto de base a ideia segundo a qual a promoção do desenvolvimento parte necessariamente da satisfação das necessidades básicas das populações, pelo que é indispensável a mobilização do potencial endógeno 110 de cada região, a teoria de desenvolvimento local assenta-se numa estratégia de desenvolvimento que parte da base (bottom-up). Neste contexto, a coesão social de uma determinada comunidade, bem como a existência de facilitadores da solidariedade social e capacidade de organização da população na participação para a resolução de problemas existentes são também muito importantes (Henriques, 1987: 8).

assentasse num método holístico. Vide por exemplo, Friedmann, John; Weaver, Clyde (1981), Territorio y función: la evolución de la planificación regional. Madrid: IEAL. 110 J. Friedmann e C. Weaver consideram como potenciais endógenos um conjunto de elementos onde se inserem, além dos recursos naturais locais, os recursos humanos, os recursos institucionais (no sentido sociológico do termo) locais, etc. Associados a uma mobilização da população e estruturas sociais e políticas formais e informais constituem-se um factor importantíssimo no desencadeamento do processo de desenvolvimento local (Friedmann, J. e Weaver, C., 1981).

111 É nesta ordem de ideia que Arocena (1986: 97) reconhece a importância das forças macro-sociais no processo de desenvolvimento, mas dá também uma grande importância à capacidade de acção dos indivíduos. Ou seja, concebe desenvolvimento como um processo dinâmico e horizontal que se baseia nos pressupostos de negociação. Na definição de um quadro conceptual que defende uma estratégia de desenvolvimento partindo das regiões, Perroux, outro dos protagonistas desse modelo, defende que [

o crescimento não aparece em todo o lado ao mesmo tempo; manifesta-se em pontos ou pólos de crescimento de intensidade variável; difunde-se através de diversos canais e com efeitos terminais variáveis sobre o conjunto de economia] ideias que, de resto, se enquadram na teoria de pólo de crescimento, uma teoria segundo a qual, não há um mecanismo nacional de crescimento, na medida em que o crescimento nacional depende exclusivamente do desempenho económico das regiões (Perroux apud Benko, 1999: 78). Assim, o desenvolvimento é desequilibrado e faz-se a partir do pólo ou núcleo de actividade (Benko, 1999). Em síntese, e na linha de pensamento de Roque Amaro (2003: 78), a essência do modelo teórico do desenvolvimento local exprime-se, por um lado, pelo protagonismo da população no processo de satisfação das suas necessidades e de melhoria de condições de vida tendo em conta as suas próprias capacidades e, por outro, pela adopção de uma metodologia participativa nos processos de mudança assente na afirmação plena da cidadania e, consequentemente, nos direitos e deveres. Daí, a ideia de desenvolvimento participativo. E é nesta mesma linha que Amaral Filho (1996: 37) define o desenvolvimento regional endógeno como sendo:

[...] um processo interno de ampliação contínua da capacidade de agregação de valor sobre a produção, bem como da capacidade de absorção da região, cujo desdobramento é a retenção do excedente económico gerado na economia local e/ou a atracção de excedentes provenientes de outras regiões. Este processo tem como resultado a ampliação do emprego, do produto, e da renda local ou da região, em um modelo de desenvolvimento regional definido.

Esta definição traduz claramente a importância que a capacidade de gestão e de liderança tem no processo de mobilização dos factores produtivos locais e regionais e consequentemente no processo de desenvolvimento local.

112 Como facilmente se depreende, está-se perante um paradigma territorialista de desenvolvimento. E tal como aconteceu com paradigma estrutural-funcionalista que sustentou os debates e propostas de modelos de desenvolvimento que dominaram o período que decorre entre a Segunda Guerra Mundial e meados da década de setenta, este paradigma sujeitou-se a uma vasta panóplia de críticas. A esse respeito, as críticas que tiveram mais eco foram as que originam o ponto de vista centrado na defesa de uma estratégia de desenvolvimento que resulta da combinação dos dois paradigmas. Isto é, um paradigma que, por um lado, se assenta na abertura ao exterior e, por outro, na valorização das particularidades locais. Daí, o surgimento na Europa de novas abordagens que se desencadearam em torno do conceito de políticas regionais que se traduzem fundamentalmente num [

conjunto de orientações levadas a cabo ao nível da União Europeia e que visam dar respostas às preocupações normalmente associadas às políticas de desenvolvimento regional ] e que em termos formais iniciaram com a criação do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) em 1995 (Pires, 1998: 5). Integram este tipo de abordagens, cinco modelos fundamentais. Desde logo o modelo designado por sistemas produtivos locais. Ao abordar o modelo ligado aos sistemas produtivos locais, José Reis teve a preocupação de dividir a vasta literatura sobre o assunto em dois conjuntos: um conjunto constituído por estudos, cuja incidência recai sobre o âmbito da economia industrial, em que o destaque vai para Foucarde (dir.) (1987); Galliano (1996); Gilly (1987) Paelinck e Sallez (orgs) (1983), entre outros, e outro conjunto formado por estudos efectuados sobretudo por autores italianos, em que se destacam Bagnasco (1981, 1983 e 1988); Garafoli (1983) Becattini (1987); Sforzi (1989), entre outros (REIS, 1992: 100). Segundo Reis (1992: 100), o primeiro conjunto de estudos incide principalmente na procura do mercado de trabalho e mais especificamente nos efeitos locais das estratégias de industrialização de nível espacial, eventualmente na base dos pressupostos das teorias do desenvolvimento polarizado bem como a teoria da regulação económica e da relação salarial, sendo esta última assente na [

113 análise de cálculos de localização das grandes empresas e dos grupos e, assim, a recentragem no local é vista, em grande parte, pela vertente tecnológica, pois é nesse plano que os efeitos de aglomeração mais se fazem sentir ] e no segundo, a atenção é dada às

condições locais, de desenvolvimento industrial: quer sejam condições especificamente produtivas, relacionadas com os sistemas de pequenas empresas, com a especialização, com a divisão industrial do trabalho, com a capacidade profissional dos trabalhadores e com as economias de aglomeração, quer seja o contexto de enquadramento do nível produtivo, com particular relevo para as condições socioeconómicas de base (natureza das economias familiares, formas de mobilidade social e consensos locais, éticas do trabalho) e para as especificidades territoriais das zonas onde ocorre a difusão industrial (Reis, 1992: 101).

Assim, baseando-se num conjunto de premissas, designadamente, a ideia de que a especialização e a organização colectiva são factores importantes na identificação dos sistemas produtivos locais, bem como na ideia segundo a qual o sistema produtivo local deve ser um espaço de reprodução das potencialidades industriais e condições de vida e que, sendo assim requer a formação de mão-de-obra capaz de atender às realidades produtivas locais e à introdução de processos de inovação, o autor define o sistema produtivo local como

um espaço de produção característico das formas de desenvolvimento intermédio e não metropolitano, definido simultaneamente por condições industriais próprias, por formas de representação colectiva e por condições socioeconómicas e territoriais significativamente relacionadas com os modos de reprodução social predominantes (Reis, 1992: 122).

Benko e Lipietz (1994: 41) diferenciam as variáveis determinantes para a consolidação do sistema de produção local endógenas onde se inserem a inovação tecnológica- organizativa muito importante nos sistemas de pequenas empresas; o sistema de informação; a capacidade de controlo de mercado; as forças de regulação social que actuam no exterior do mercado e que dependem de uma harmonização frutuosa entre instituições e a economia local e variáveis exógenas onde se insere, entre outras coisas, a crise dos mercados dos produtos estandardizados de massa. Um segundo modelo que integra as abordagens no âmbito do FEDER é o designado por distritos industriais, um conceito recuperado do Alfred Marshall que o introduziu no âmbito do plano concebido para a recuperação económica da Europa referido no ponto anterior, e que caracterizava-se por um tipo de coordenação da divisão do trabalho,

114 assente no mercado e na proximidade geográfica. Becattini (através dos estudos feitos em Itália – A Terceira Itália) definiu este modelo como:

uma entidade socio-territorial caracterizada pela presença activa de uma comunidade de pessoas e de uma população de empresas num determinado espaço geográfico e histórico (Benko e Lipietz, 1994: 20).

Ainda segundo Becattini, (apud Benko e Lipietz, 1994: 21), trata-se de um modelo de desenvolvimento local caracterizado fundamentalmente pelos seguintes aspectos: - Existência de uma rede de unidades produtivas com relações privilegiadas quer com os fornecedores e consumidores, quer com todos os outros elementos que ligam directa ou indirectamente o sistema produtivo do distrito nos planos internos (locais) e nos planos externos (nacionais ou internacionais), pelo que o elemento parceria ocupa neste modelo, uma posição central; - Existência de um sistema homogéneo de valores e de pensamento, sobretudo no que diz respeito ao trabalho, família, à reciprocidade, à mudança, etc. que proporcione o espírito empreendedor bem como uma rede institucional que se destine a propagar esse mesmo sistema de valores transmitindo-o para outras sociedades; - Existência de uma osmose total entre os vários ramos de actividades das empresas que constituem o distrito; - Existência de uma racionalidade em termos de qualificação dos recursos humanos e consequentemente da sua utilização, o que pressupõe que as unidades produtivas estejam perfeitamente integradas no tecido social da comunidade; - Existência de espírito de concorrência compatível com o espírito de solidariedade; - As inovações tecnológicas são aplicadas de forma a se constituírem como uma oportunidade dos trabalhadores cimentarem a sua posição na sua ocupação laboral; - Existência na comunidade de uma instituição financeira; - A estrutura social e a organização de produção evoluem numa lógica capitalista; - Existência de uma consciência de pertença à comunidade, etc. Um terceiro modelo que integra as abordagens do FEDER é aquele que se baseia na ideia de custos de transacção. Refira-se que este modelo surgiu no mesmo período em que apareceram os primeiros estudos sobre os distritos industriais e esteve integrado na Escola Californiana de

115 geografia económica e tem em Allen J. Scott, Michael Storper, e Richard Walker como figuras proeminentes. Os temas centrais deste modelo têm a ver com as metrópoles e megalópoles, tendo por base as percepções marxistas ou neoclássicas da dinâmica da divisão do trabalho e dos efeitos externos de aglomeração, de que resultou o paradigma Coase-Williamson-Scott, que segundo Benko (1999:125), se baseia na ideia de que: a organização industrial serviria de árbitro entre os custos de organização internos à empresa e os custos de transacção entre empresas que, por outras palavras, significa dizer que, estando as empresas aglomeradas num local específico, o custo de transacção que eventualmente se efectua entre elas seria automaticamente minimizado, tendo em conta os factores de custos inerentes à distância. Um quarto modelo assenta-se na definição do território como meio inovador, protagonizado pelos economistas do Groupe de Recherche Européen sur les Millieux Innovateurs (GREMI), cuja figura principal é Philippe Aydalot. As principais investigações levadas a cabo pelo grupo partiram da necessidade de se conhecer as condições externas capazes de impulsionar o nascimento da empresa e a consequente adopção da inovação. Como pressuposto básico desse conceito fica a ideia de que o desenvolvimento de uma determinada unidade territorial depende da capacidade dessa mesma unidade introduzir no seu seio as inovações no seu sistema produtivo. E isso só é possível se os actores que nela actuam saibam tomar as decisões adequadas em matéria de mudanças tecnológicas e organizativas. Um quinto modelo assenta-se na noção de “learning region”. O princípio básico desta ideia insere-se na proposição de que o sucesso de uma dada região depende fundamentalmente da capacidade de aprendizagem ou da renovação de conhecimentos por parte dos seus habitantes, tendo em conta as rápidas mudanças, por um lado, e a obsolescência, por outro, de tecnologias e conhecimentos específicos, pois, o mais importante não é o acesso a um stock de conhecimento específico mas, pelo contrário, a capacidade de, ao ritmo da mudança imposta pela estrutura, adquirir novos conhecimentos, o que leva a que se distinga o conhecimento tácito do conhecimento explícito. Nesta perspectiva, e segundo Johnson e Ludvall, numa learning economy onde o ritmo da mudança é elevado, os elementos tácitos são o núcleo do conhecimento individual e colectivo (Cerqueira, 2001: 44).

116 Trata-se de uma estratégia de desenvolvimento local cuja ênfase é colocada num sistema de criação de conhecimentos e aprendizagem contínua. Maillat e Kébir distinguem quatro tipos de aprendizagens: aprendizagem interactiva, que resulta da partilha de experiências e troca de informações pelo contacto estabelecido no âmbito do sistema produtivo; aprendizagem institucional, resultado da cooperação entre instituições formais ou informais; aprendizagem organizacional, resultante da transferência do know-how de uma organização para os seus elementos; e aprendizagem pela aprendizagem, na perspectiva de que quanto mais se aprende tanto mais se adquire a capacidade de aprender – um processo cumulativo que em termos individuais implica uma permanente capacidade de adaptação à mudança desde as novas tecnologias às novas formas de organização do trabalho (Cerqueira, 2001: 45-46). Na sequência dos pressupostos teóricos ligados ao conceito de Desenvolvimento Local surgiu o conceito de Desenvolvimento Participativo, assente fundamentalmente na:

adopção de uma metodologia participativa nos processos de mudança e de melhoria das condições de vida das populações, desde a concepção e decisão à avaliação, passando pela execução, direcção e acompanhamento, implicando a afirmação plena da cidadania, nos seus direitos e deveres (Amaro, 2003: 57).

Trata-se de um modelo de desenvolvimento que privilegia uma relação dialéctica entre o processo da melhoria das condições de vida das populações e a participação efectiva dessa população nas acções a elas direccionadas. É nesta perspectiva que aparece o conceito de empowerment protagonizado por Friedmann. Uma estratégia de desenvolvimento assente no empowerment

coloca a ênfase na autonomia das tomadas de decisão de comunidades territorialmente organizadas, na auto dependência local (mas não na autarcia), na democracia directa (participativa) e na aprendizagem social pela experiência (Friemann, 1996: xi).

Daí o termo “Desenvolvimento Territorial Participativo e Negociado” para exaltar a importância desta dimensão na eficácia das dinâmicas de desenvolvimento, e daí também a ênfase que é colocada na satisfação das necessidades e de melhoria das condições de vida de uma comunidade local, ancoradas nas capacidades das populações locais (Amaro, 2003: 57). Certos autores, como António Simões Lopes (1982: 520) interpretam-no como um processo que deve cingir-se pela igualdade de oportunidades e de acesso aos bens e

117 serviços tidos como essenciais numa harmonia com a distribuição equitativa dos recursos. Autores como Angeon e Laurol (2007: 13-31) sublinham a ideia da colectividade dos actores locais como centro da gestão dos territórios, isto é, o processo de desenvolvimento local para eles visa servir os interesses das comunidades onde esses actores se inserem, assente nas ideias concebidas pelos próprios. Neste sentido, a relação entre eles está no centro de todo o processo. Esta perspectiva é também defendida pela Sequeira Carvalho, que vê no desenvolvimento económico resultado da acção das iniciativas e das estratégias de indivíduos e de grupos (Sequeira Carvalho apud Mirembe Kambale , 2005: 81). Vachon (1993: 81) coloca o acento nos mecanismos de parceria com capacidade para criar um ambiente propício às iniciativas locais integrando as preocupações sociais, culturais e ambientais no conjunto das iniciativas económicas. Já Mengin (1989), que adopta uma visão de carácter mais funcionalista, concebe o desenvolvimento local como a capacidade de criar riquezas com base no aproveitamento das potencialidades naturais e humanas e na adopção de factores da modernidade. Para este autor, isto sucede a partir da ruptura com os aspectos do passado o que não significa para ele um corte com as tradições culturais. Para Tremblay e Fontan (1997), o desenvolvimento local é um processo global, razão pela qual colocam o acento sobre as noções de solidariedade e de cidadania. Isto é, o desenvolvimento local deve orientar-se pela luta contra a pobreza e exclusão social. Por seu turno, Proulx (1995) realça a capacidade de organização ou de execução de iniciativas com vista a promover os objectivos culturais, sociais e económicos num quadro territorial específico. Se alguns autores das teorias de desenvolvimento, nomeadamente Benko, privilegiam um ângulo de análise de desenvolvimento centrado nos sistemas produtivos locais e consequentemente na acumulação de capitais, outros privilegiam as relações sociais e modos de governação. É nesta perspectiva que Tremblay e Fontan categorizam as diferentes teorias de desenvolvimento local em progressistas e liberais (Tremblay e Fontan apud Touzri, Abdelfattah, 2007 : 36). Isto é, umas incidem sobre as mudanças sociais e redefinição das regras do mercado e outros concebem o desenvolvimento local como iniciativas que estimulam a economia numa relação com o emprego com base no empowerment.

118 Destas análises é visível a preocupação dos mais diversos autores em introduzir nos seus quadros teóricos sobre o desenvolvimento local, referências às iniciativas locais no quadro de um espaço definido, a melhoria das condições de vida das populações (quality of well-being) através de acesso às oportunidades sociais, visando justiça social, aliás, como, de resto, defende Sem (2000: 49-50 e 100). Nesta perspectiva, a riqueza de uma dada unidade territorial reside menos no PIB que no grau de acesso das populações aos bens e serviços essenciais como a alimentação, habitação, água potável, educação, saneamento, saúde, etc. como refere Engelhard (Engelhard apud Mirembe Kambale, 2005: 81). Os aspectos críticos das várias práticas de desenvolvimento situam-se na sobreposição dos aspectos económicos sobre os aspectos locais, sociais e humanos. Bernard Pecqueur, (2000: 37) na sua abordagem, veicula a importância do papel dos actores, concebendo a dimensão dos actores locais como elemento que possa contrapor a lógica capitalista dominante no processo de desenvolvimento local que se desenvolvia na época. Neste sentido, ele defende que o processo de desenvolvimento local deve ter a vocação de produzir os bens essenciais e de reparti-los, devendo isso assumir uma perspectiva mundial. Ele ainda atribui ao desenvolvimento local a característica de um processo que parte das comunidades, assente no potencial organizacional local e na lógica de autonomia como modos alternativos de um desenvolvimento endógeno e localizado, o tal modelo bottom-up que referimos anteriormente. Pecqueur concebe o desenvolvimento local valorizando as relações do mercado mas tendo sempre em consideração as relações que se estabelecem à margem do mercado e que possam ser úteis ao reforço das relações do mesmo, razão pela qual as designa de redes com finalidades produtivas constituídas pelas relações familiares, profissionais, de amizades, etc. Tal como Benko, Pecqueur vê na regulação uma das condições fundamentais que integra o processo de desenvolvimento local, a par de inovação e capacidade de adaptação. Sylvie Brunel (1996: 14-15) sublinha que o desenvolvimento abrange todo um conjunto de serviços que se disponibiliza às populações permitindo-lhes uma melhor alimentação, uma melhor saúde, uma melhor habitação, o acesso das crianças às escolas, etc. No fundo, é um processo que permite às populações transitarem de um estado de precariedade extrema para um Estado que garante a segurança dos principais aspectos da vida quotidiana.

119 Os conceitos e práticas de desenvolvimento sujeitaram-se, como já vimos, a várias críticas, se bem que também conheceram vários avanços ao longo dos anos. Nesse vai e vem de críticas e avanços surgiram vários quadros teóricos em torno do desenvolvimento e é disto que vamos nos ocupar de seguida. Comecemos pelo conceito de desenvolvimento humano. Este conceito surgiu pela primeira vez no Relatório do Desenvolvimento Humano produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e publicado em 1990, cujos pressupostos fundamentais emergem da ideia de que as pessoas constituem a riqueza real de uma nação e, consequentemente, o objectivo fundamental de um processo de desenvolvimento deve ser a criação de um ambiente adequado para que as pessoas possam gozar de uma vida longa, saudável e criativa (RDH, 1990:9). Trata-se de um conceito que procura abranger as mais variadas dimensões da sociedade, como aliás se pode depreender da análise do método da operacionalização do conceito, isto é, o índice que mede o desenvolvimento humano 111. Ou seja, o desenvolvimento humano em sentido lato acaba por significar um conceito que articula a dinamização do crescimento económico com os factores humano, social, político (no sentido da boa governação), cultural e, por último, ambiental (no sentido do uso racional ou sustentável dos recursos naturais). As bases argumentativas deste índice vêm sendo redimensionadas de forma sistemática desde a sua criação em 1990. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2010,

o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) permanece como uma medida agregada do progresso em três dimensões - saúde, educação e rendimento. Mas, neste Relatório, modificamos os indicadores usados para medir o progresso na educação e no rendimento e alteramos a forma como são agregados (RDH, 2010: 15).

111 No relatório do desenvolvimento humano das Nações Unidas de 2002 o Índice de Pobreza Humana (IPH) é definido como “índice composto que mede a privação nas três dimensões básicas captadas no índice de desenvolvimento humano: longevidade, conhecimento e nível de vida”. Este mesmo índice pode, no entanto, captar uma quarta dimensão que é a exclusão social, uma dimensão medida a partir da taxa de desemprego de longa duração, isto é, uma duração de 12 ou mais meses. Mas, para uma percepção mais pormenorizada sobre este conceito e formulação matemática para a sua determinação, consultar “Concepts of Human Development and Poverty: A Multidimensional Perspective”, de Sudhir Anand e Amartya Sem, como também pode ver a nota técnica no Relatório de Desenvolvimento Humano 1997.

120 A dimensão “saúde” é medida pelo indicador “esperança de vida à nascença”, a educação é medida pelos indicadores “média de anos de escolaridade” e “anos de escolaridade esperados” e a dimensão rendimento é medida pelo indicador “rendimento nacional bruto per capita”. Importa, porém, sublinhar que, apesar das evoluções de ponto de vista conceptual, a lógica que sustenta o cálculo do IDH continua fiel à premissa em torno da qual o desenvolvimento não é reflexo do crescimento económico mas sim do bem-estar das pessoas que são expressas pela conjugação de factores económicos, sociais, culturais e políticos. Durante a Conferência da ONU realizada em Dinamarca (Copenhague) em 1995, surge o conceito de desenvolvimento social. Tendo em conta o aumento do nível da pobreza que se verificava à escala mundial, mas particularmente em África, América Latina e Caraíbas, bem como o crescente fenómeno da pobreza urbana afectando etnias e grupos específicos das populações, era necessário experimentar um modelo de desenvolvimento que centrasse no propósito de proporcionar o bem-estar das populações através da articulação de múltiplos factores, nomeadamente o ambiente político, económico, social e cultural, o emprego, a integração social, a equidade ou igualdade de oportunidades entre géneros, a educação e a saúde básicas, etc. Emerge, assim, um modelo de desenvolvimento que privilegia a visão conjunta entre as políticas macroeconómicas e a dimensão social do desenvolvimento, ou seja, políticas macroeconómicas voltadas para a diminuição da pobreza ao nível dos países e do mundo. Integra ainda as dimensões ligadas ao exercício transparente do poder político, o direito à cidadania, o direito à participação na política nacional através do direito de voto e no processo de decisão ao nível local 112. Hoje, as abordagens sobre o desenvolvimento local direccionam-se para aquilo que se tem designado por economia social muito relacionado com o conceito de economia solidária 113. Singer (2000), um dos maiores defensores da economia solidária no Brasil, vê, nessa perspectiva económica, um mecanismo por excelência de promover o bem-estar social tendo como arcabouço o combate à exclusão social. Este autor coloca na sua engenharia

112 Vide o documento intitulado “Declaração e Programa de Acção da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social - Copenhague -1995” em www.direitoshumanos.usp.br 113 Embora sejam conceitos diferentes, pois a economia solidária é vista como expressão da economia social, existe um certo isomorfismo estrutural entre ambos.

121 de economia solidária um acento muito expressivo na participação das pessoas no processo económico. Muitos países desencadearam políticas públicas no sentido de inserirem os desempregados no mercado de trabalho. Aliás, é com base nesse pressuposto que a Bélgica desenvolveu o conceito de estado social activo (D’Addio et al, 2005: 76). Ainda segundo d’Addio et al (2005: 73), as iniciativas de economia social devem ser vistas como acções centradas na inserção de pessoas fragilizadas no mercado de trabalho através de uma actividade produtiva. Neste contexto, esses autores procuraram demonstrar que as empresas jogam um papel central em matéria de inovação social para se fazer face à crescente taxa de desemprego e, consequentemente, de exclusão social. Jean-Louis Laville (2005:46) associa a questão da economia solidária à democratização da sociedade que passa pela reapropriação democrática da economia como uma actividade social que ele designa por reinscrição da economia nas normas democráticas. Trata-se, segundo este autor, de o Estado promover uma solidariedade baseada em eixos fundamentais como os direitos individuais e a redistribuição, e isso passa pelo alargamento da base de promoção de bens comuns e de relações sociais baseadas no respeito pelos princípios de liberdade e igualdade, ou seja, a economia solidária consiste numa democratização da sociedade civil e de acção pública, ou ainda, numa articulação entre a sociedade civil e a acção pública. Favreau e Fréchette (2000: 13) concebem a economia social e solidária actualmente, como uma reinvenção da economia, seja no Norte seja no Sul, e que tem por base uma reconfiguração das relações entre o mercado, o Estado e a sociedade civil, relação essa que se desenvolve, segundo os mesmos, à volta daquilo a que designam por economia plural. Isto é, um tipo de economia que privilegia um modo específico de produção e afectação de benefícios. Como os próprios reconhecem, trata-se de um modelo económico em que as dimensões sociais e políticas são privilegiadas em detrimento da dimensão produtiva, pois visa responder fundamentalmente às novas demandas sociais emergentes de fenómenos relacionados com o agravamento da crise económica e com a pobreza e exclusão social característicos da época contemporânea, situação que, em certos países africanos, americanos e asiáticos, surgiu com a reestruturação do Estado, a que estes países foram obrigados no quadro dos programas de ajustamento estrutural (Favreau e Fréchette, 2000: 15).

122 Estes autores associam o conceito de economia social aos movimentos sociais e políticos desencadeados na Europa, mais particularmente em França, pelos operários e políticos de ideologia de esquerda, aos sindicalistas, etc. Uma visão de economia que acompanhou historicamente todos os movimentos críticos do sistema social que o capitalismo ajudou a emergir a partir da revolução industrial (Favreau e Fréchette, 2000: 21). Além do mais, determinam duas abordagens diferenciadas da economia social, isto é, uma que vigora nos países anglo-saxónicos designadamente Grã-Bretanha e Estados Unidos de América (onde detém maior expressão) denominada non-profit sector – não mercantil - e outra que vigora em países francófonos, particularmente em França e na Bélgica denominada economia social e solidária (Favreau e Fréchette, 2000: 17). São abordagens com aspectos que se diferenciam entre si mas que têm muita coisa em comum, como, aliás, defendem Favreau e Fréchette (2000: 20). Na perspectiva desses autores, ambas contribuem, cada uma da sua maneira é certo, para tirarem as iniciativas socioeconómicas da marginalidade a que são votadas no espaço público e para darem às ciências sociais e económicas novos impulsos em relação à investigação nesse domínio. Eles vão ainda mais longe chamando atenção para a necessidade de,

não se opor muito as duas correntes, pois ambas complementarmente permitem examinar o potencial destas iniciativas na construção de um novo modelo de desenvolvimento democrático e equitativo (Favreau e Fréchette, 2000, p. 20).

Além disso, os dois autores associam o conceito de economia social solidária contemporânea de forma bastante evidente, ao combate contra o desemprego de massa, à luta contra a pobreza, à realização plena do homem, à democratização – boa governação, desenvolvimento local, etc. Uma acepção internacional da economia social e solidária, por via de uma rede internacional, configura-se como um meio importante para a construção de vias alternativas à ordem social hegemónico (Favreau e Fréchette, 2000: 17). Importa, no entanto, em jeito de remate deste assunto, sublinhar que o estado de avanço que o modelo da economia social se encontra hoje, revela que existem muitas dúvidas ao seu redor, na medida em que carece de uma visão que possa ser considerada como dominante, quanto mais não seja porque se associa a um conjunto de conceitos e designações isomorfos entre si, aliás como vimos anteriormente, mas que, por vezes, se

123 apresentam como ambivalentes 114 . Fala-se de economia social, economia solidária, terceiro sector, etc. só para citar alguns exemplos. Por isso, parece ser consensual que se trata de um projecto ainda longe de ser um produto acabado, aliás razão porque certos autores o consideram como uma simples mirada científica. E se se admite que a economia social ou economia solidária não é outra coisa se não um projecto ou mirada científica, estará ela necessariamente sujeita ao questionamento sobre que futuro é-lhe reservado no campo da ciência económica e/ou social. Com base nas análises feitas até aqui podemos então concluir que, quaisquer que sejam os conceitos, teorias e experiências ou práticas construídos em torno do desenvolvimento local, esta visão de desenvolvimento comporta uma multiplicidade de dimensões, designadamente políticas, socioeconómicas e culturais. A dimensão política reporta para os debates que se fomentam no seio dos órgãos eleitos sobre as prioridades das acções a tomar, sobre as modalidades da interpelação dos eleitos pela população, sobre as relações entre o poder local e outros centros do poder, etc. Mas também essa dimensão política é sustentada pelo engajamento dos cidadãos nos movimentos, organizações ou partidos políticos, etc. 115. A dimensão socioeconómica é relevada pelo papel das infra-estruturas, como por exemplo as administrativas, escolas, mercado, vias de acesso, etc. na dinâmica que é implementada numa dada localidade. A dimensão cultural é relevada pela importância das infra-estruturas de lazer mas também pelo conjunto de traços identitários das populações de uma localidade. Enquadra-se nesta dimensão elementos importantes como a percepção do poder local e dos bens comuns e públicos e elementos que têm a ver com gestão de conflitos 116. Das várias perspectivas de desenvolvimento que analisamos neste espaço e na linha da matriz de análise traçada para esta investigação importa reter as seguintes:

114 Neste mesmo espaço analisamos de forma diferenciada os conceitos de economia social e economia solidária por imposição dos autores consultados mas mais adiante referenciamos os mesmos conceitos como se fossem sinónimos ou quando muito complementares. 115 A dimensão política do desenvolvimento local pode ser avaliada através de indicadores como as relações entre os membros dos órgãos do poder local ou entre as diferentes instituições locais ou ainda através da participação dos cidadãos nas reuniões dos órgãos do poder local (vide Seabhara, Pamphile, “Pluralisme institutionnel et politiques de développement communal” in Laurent, Pierre-Joseph et al, Décentralisation et Citoyenneté au Burkina Faso: le cas de Ziniaré, L’Harmattan, Paris, 2004, p. 329. 116 Vide Seabhara, Pamphile, “Pluralisme institutionnel et politiques de développement communal” in Laurent, P-J et al (2004), Décentralisation et Citoyenneté au Burkina Faso: le cas de Ziniaré, Paris, L’Harmattan, p. 330.

124 As localidades ou regiões possuem características e especificidades próprias, o que pressupõe que, para cada uma é necessário um modelo próprio de desenvolvimento, pois as estratégias de desenvolvimento a adoptar dependem necessariamente das características das redes de actores locais existentes; dos recursos naturais; do capital humano tendo em conta os elementos como os conhecimentos, as habilidades e as competências das pessoas; das infra-estruturas; do capital social tendo em conta os níveis de confiança, cooperação, organização e participação social; da cultura empreendedora tendo em conta os níveis de auto-estima, autoconfiança, capacidade de iniciativa; da capacidade de atrair investimentos; das vantagens comparativas e competitivas; etc. Pode-se ainda incluir nesse rol um conjunto de valores onde se incluem, por um lado, a tipicidade, a singularidade, a identidade territorial e, por outro, as tradições cívicas e a capacidade de organização social que, como vamos poder ver, revelam-se como um poderoso instrumento na promoção do desenvolvimento socioeconómico. Na sequência do que dissemos cabem aos governos locais as funções relativas à construção de consensos, à administração de conflitos, à busca de parcerias de apoio ao desenvolvimento local, à criação de um ambiente favorável ao desenvolvimento institucional no interior das organizações. Isto é, os governos locais aparecem neste processo como actores impulsionadores do desenvolvimento económico local, empreendendo iniciativas próprias. Cabem a eles ainda, além de coordenar as acções internas, adequá-las às realidades regionais, nacionais e até internacionais, para que as suas localidades continuem inseridas num sistema competitivo alimentado pela conjuntura económica, social e cultural. O desenvolvimento local é um fenómeno que resulta das relações humanas. Isto é, o desenvolvimento depende daquilo a que alguns designam por empowerment na medida em que os actores locais reconhecem-se nesse processo como sujeitos do seu próprio destino. E é nesta lógica que se diz que as estratégias deste modelo de desenvolvimento partem de baixo para cima e de dentro para fora, e não o contrário. O seu sucesso depende em larga escala da capacidade de estimular esse protagonismo local e isso implica desencadear acções que visem alterar as condições que possibilitem a concentração do conhecimento, do poder e da riqueza, gerando, como consequência, pobreza e a exclusão social.

125 Além do mais, o processo de desenvolvimento local depende da radicalização e da consolidação da democracia da qual ressaltam as ideias sobre as formas, os momentos e lugares onde se tomam as decisões. A criação de um ambiente de confiança, comprometimento e de cooperação é de extrema importância no processo de desenvolvimento local. Este ambiente pode surgir de uma articulação eficaz das dinâmicas económicas e sociais locais com dinâmicas ainda mais amplas ou daquilo a que Pierre-Joseph Laurent designa por l’entente (Laurent, 1995: 116). Isto é, trata-se de uma estratégia de desenvolvimento que procura incorporar a dimensão institucional através da articulação de sinergias e baseia-se naquilo a que se designa também por parceria, apesar de este conceito assumir contornos mais amplos. Porém, a construção de parcerias pressupõe conhecer o quadro institucional existente e esse quadro deve compreender além das instituições que actuam no território as instituições que actuam fora dele. Finalmente referir que a conjugação de liberdade, vontade e forças dos actores locais é fundamental para a promoção do desenvolvimento.

4. Os actores sociais de desenvolvimento e suas dinâmicas

Um processo de desenvolvimento, quaisquer que sejam as suas perspectivas e alcances, ou ainda, qualquer que seja o grau da sua complexidade, conta sempre com uma multiplicidade de actores que se mobilizam em torno de um conjunto de interesses com que cada um, individual ou colectivamente, se revê. Conta desde logo com as famílias, os emigrantes, operadores económicos e Associações de desenvolvimento comunitário (ADC). Um processo de desenvolvimento local conta, de igual modo, com poder político local representado num quadro democrático pelos órgãos eleitos democraticamente, aliás como pudemos ver, através da análise dos conceitos e teorias de desenvolvimento no ponto anterior. As funções desses órgãos variam de realidade para realidade, conforme as percepções políticas de um Estado que, na maioria dos casos, tem o poder de tutela sobre eles. Um processo de desenvolvimento local conta, de igual modo, com os serviços desconcentrados do Estado, na medida em que eles podem apoiar os órgãos municipais na gestão técnica de múltiplas questões no quadro das competências e responsabilidades

126 que lhes dizem respeito, mas também no quadro da convergência dos objectivos traçados nas missões de cada um. Além do mais, a representação dos serviços desconcentrados do Estado como actores locais pode resultar do controlo a priori ou a posteriori das acções do executivo do poder local, tendo um papel importante na definição de regras e de normas que regem as acções do conjunto de actores locais num determinado espaço 117. O próprio governo é visto como um actor local na medida em que é o promotor e garante da política nacional e que pode jogar um papel de primeiro plano na concepção e elaboração de políticas públicas. Além de produção de bens e serviços, o governo pode intervir, ainda, na produção de regras aplicáveis em todo o país. Um processo de desenvolvimento local conta ainda com outros actores que saem da sociedade civil e que, de resto, são bastante heterogéneos, designadamente, as ONG, associações religiosas, culturais, recreativas, desportivas, associações de comerciantes, de mulheres, associações profissionais, sindicatos, cooperativas, etc. Esses actores assumem-se como estruturas intermediárias entre o indivíduo e as instâncias do poder que podem ser local ou central. Eles cobrem uma diversidade de instituições e baseiam- se em princípios diversos, inclusive como mecanismos de produção de regras e de normas e de regulação social. Mas, também, actuam em níveis diferenciados, isto é, conforme a quantidade de recursos que cada um consegue angariar 118. A economia cabo-verdiana tem uma expressiva dependência das remessas dos emigrantes. Este indicador económico continua a ter hoje um peso importante na formação do PIB (Produto Interno Bruto), o que significa que, no contexto cabo- verdiano, os emigrantes desempenham um papel importante no processo de desenvolvimento do país. Existem ainda os actores de cooperação. Quanto a isso, importa sublinhar a ideia emprestada ao Seabhara 119 sobre a heterogeneidade do campo da cooperação para o desenvolvimento local. Segundo este autor, esta heterogeneidade é cultivada pelas diferentes organizações internacionais e é, de igual modo, cultivada pelas mesmas

117Vide Seabhara, Pamphile, “Pluralisme institutionnel et politiques de développement communal” in Laurent, P-J et al (2004), Décentralisation et Citoyenneté au Burkina Faso: le cas de Ziniaré, Paris, L’Harmattan, p.334. 118 Ibid, p. 339. 119 Vide Seabhara, Pamphile, “Pluralisme institutionnel et politiques de développement communal” in Laurent, P-J et al (2004), Décentralisation et Citoyenneté au Burkina Faso: le cas de Ziniaré, Paris, L’Harmattan, p.339.

127 através da institucionalização de forma diferenciada de regras de gestão de projectos que impõem enquanto condição de financiamento, tornando bastante difíceis as operações de concepção de projectos pelos actores interessados, ou mesmo as demarches para a submissão ao financiamento. Neste contexto, prossegue o autor, o campo da cooperação ao desenvolvimento aparece como um campo de poder com muitos sub-campos no interior dos quais os actores desenvolvem as suas estratégias. Funcionam, assim, como instâncias produtoras de normas. De resto, os actores de cooperação são basicamente caracterizados por assumirem vários sentidos. Em termos estatutários uns são de carácter bilateral, outros de carácter multilateral, outros ainda são organizações não- governamentais, etc. Já em termos de interlocutores, uns preferem encetar negociações com vista às suas actuações directamente com as estruturas centrais, outros preferem as ONG e associações comunitárias, outros ainda preferem apoiar directamente os poderes locais. Sendo instituições transnacionais, as agências de cooperação transmitem às comunidades, através dos seus critérios, normas ou mesmo modelos culturais dos seus países de origem. Deste ponto de vista, sublinha o autor, acabam por jogar um papel importante na produção de normas, quer voltadas para o domínio político (introdução de modelo da democracia ocidental), quer voltadas para o domínio económico (liberalização do mercado e privatização das empresas públicas), quer ainda nos domínios socioculturais (forma diferente de vida) ou domínios técnicos (meios de telecomunicações, informática, etc.) 120.

5. A relação entre actores: interacção, interesses, conflitos e espaço de regulação

A pluralidade de actores locais de desenvolvimento permite uma diversidade de acções que abrangem os mais diversos níveis da população de uma determinada localidade. Apesar de actuarem em níveis diferenciados, a interacção que pode existir entre eles pode funcionar como uma instância de produção e de regulação e como um espaço de socialização importantes na transformação que pode decorrer de um processo de desenvolvimento. Neste sentido, pode-se dizer que, apesar da sua heterogeneidade e da concorrência que emerge da diferença das suas acções mas também em certa medida das diferentes percepções que constroem sobre formas de actuar sobre um mesmo

120 Ibid p. 341.

128 problema, as relações que existem entre eles podem ser, em certo sentido, de complementaridade e de cooperação. Para isso basta que, de entre outros aspectos, os actores assumam as normas e a compatibilidade entre os valores e finalidades das suas acções. Esta diversidade assume as dimensões tanto quantitativas quanto qualitativas. Quantitativas tendo em conta, naturalmente, a abrangência dos números. Os actores podem actuar individualmente como em grupos ou organizações, com maior ou menor grau de consciência quanto aos fins que prosseguem. Qualitativamente, tendo em conta a capacidade de cada actor em termos dos recursos de que dispõem. Esses recursos podem assumir várias perspectivas: materiais, financeiras, sociais, políticas, culturais, etc. Os actores actuam num determinado espaço físico e social, produzido pelas relações desiguais. A produção desses espaços associa-se a uma grande variedade de aspectos: relações de produção, ideologias, representações, etc. (Lefebvre apud Touzri, 2007: 47), o que justifica oposições entre actores, oposições essas que conferem um sentido específico ao espaço. Para a melhor compreensão dessas oposições, Lefebvre (1974) estabelece uma diferença entre um espaço vivido e um espaço concebido sendo que o espaço vivido, o espaço físico onde os seus ocupantes se encontram. Segundo o autor, é um espaço configurado socialmente pelas actividades técnicas, económicas, etc. das populações. Já o espaço concebido corresponde aos interesses dos actores. Ainda para este autor, o espaço acaba por constituir-se como o resultado das estratégias e das relações sociais (Le Febvre, 1974: 102). Os conflitos entre os actores resultam fundamentalmente das representações específicas que cada um atribui ao espaço. Como refere Lefebvre (1974) esses conflitos se percebem através da oposição entre valor de uso e valor de troca que os actores atribuem ao espaço. A dimensão conflitual e o jogo de actores são, para este autor, uma questão central na análise do espaço enquanto lugar de produção e de apropriação. Nesta perspectiva podemos entender o conflito como resultado de uma estratégia implementada para inverter a situação de desvantagem perante os mecanismos de acesso ao objecto em disputa. Neste campo de acção, o conflito não quer dizer necessariamente ruptura. Daí a noção de sistema de acção concreta de Crozier e Friedberg (1977: 286), entendido como

129

un ensemble humain structuré qui coordonne les actions de ses participants par des mécanismes de jeux relativement stables et qui maintient sa structure, c’est-à-dire la stabilité de ses jeux et les rapports entre ceux-ci, par des mécanismes de régulation qui constituent d’autres jeux.

Este sistema funciona também como instrumento de controlo social (Crozier e Friedberg, 1977: 292-302). O facto de, o conceito de território ancorar-se na noção de governação, confere ao território, na perspectiva de alguns autores, como por exemplo, B. Pecqueur et J.P. Gilly (1995) Lpietz e Benko (2002), um carácter institucional (Touzri, 2007: 52). Eles sublinham a necessidade de apreender a dinâmica de regulação do território sendo certo que essa regulação deve ser parcial. Para Pecqueur, a territorialidade constitui uma expressão de comportamentos dos actores na medida em que se trata de um espaço vivido pela população (Pecquer, apud Touzri, 2007: 52). Gaudin concebe o território como:

un système d’interdépendance dont l’aménagement et la valorisation reposent en partie sur des stratégies d’acteurs individuels et collectifs qui concernent la réalisation d’actions publiques locales (Gaudin apud Teisserenc, 2002: 86).

O território assume-se, desta forma, como espaço de estratégias e de acções de apropriação assente numa relação complexa entre o espaço social e o espaço físico. Neste jogo de relações a questão central que se coloca é a da consolidação das relações sociais que se estabelecem entre actores ou entre actores e o espaço territorial. Cada vez mais, a relação que se estabelece entre várias representações do território, nomeadamente como espaço de interacção entre actores de que emergem relações de cooperação e de conflito entre eles, assumem uma posição de destaque nas abordagens sobre o desenvolvimento local. Peemans (2002: 390) trouxe para o debate uma concepção da territorialidade assente na ideia de reinvenção da identidade colectiva onde sobressaem os modos de mobilização dos recursos locais e as capacidades inventivas das populações locais que se traduzem na rejeição das estratégias de actores dominantes. Segundo ele, muitos estudos de casos recentes têm demonstrado as novas formas de resistência das populações e de iniciativas onde se realçam as capacidades dos actores no quadro de mobilização dos recursos

130 locais para suprirem as suas necessidades. As iniciativas aqui referenciadas devem ser vistas segundo o autor:

Comme une des réponses à la recherche de la reconstruction d’une identité collective, dans le sillage de la disparition ou au moins l’affaiblissement d’une identité définie exclusivement dans le cadre d’Etats-Nations modernisateurs (Peemans, 2002: 391).

O território na perspectiva desses autores ultrapassa o carácter político-administrativo. Pode ser visto como um sistema socio-espacial vasto, como palco de intensas relações sociais de produção e de reapropriação orientadas pelas relações de cooperação e de conflito no processo da construção da territorialidade. Ora, havendo num cenário de pluralidade de actores, com interesses diversificados e passíveis de conflitos, há necessidade de existir um espaço de regulação como mecanismo de organização de acções e de contrapeso a um eventual bloqueio, quer tratando-se de uma organização formal quer de uma organização informal 121 . Isso reporta-nos, de novo, para o conceito de sistema de acção concreta. Isto é, à luz deste conceito, todo o contexto de acção estrutura-se pelas regras de jogo, isto é:

un ensemble de mécanismes qui définissent la pertinence des « problèmes » et des enjeux autour desquels les acteurs intéressés peuvent se mobiliser, et qui, partant, organisent, médiatisent et régulent à la fois les interdépendances « objectives » entre participants et les processus d’échange qui s’ensuivent (Friedberg, 1997: 166).

Este sistema de acção concreta estrutura-se, segundo Friedberg (1997: 164-170), à volta de quatro dimensões: 1. Natureza mais ou menos explícita e codificada da sua estruturação; 2. Existência de fins mais claramente definidos à volta dos quais são articulados os mecanismos de regulação; 3. Tomada de consciência e interiorização dos fins pelos participantes; 4. Assumpção da responsabilidade, ao menos parcialmente, para pôr em prática um sistema de regulação.

121 Esta dicotomia entre organização formal e informal (formas difusas da acção colectiva) apenas existe no imaginário. Portanto ela é fictícia. Na verdade não existe diferenças que não seja aquela que decorre dos critérios de formalização. A primeira é caracterizada pela presença de hierarquia, isto é, onde impera submissão, a coordenação voluntária, as regras e os procedimentos detalhados. A segunda o contexto da acção é mais difusa e consequentemente baseia-se nos processos de trocas concorrenciais e aparentemente não estruturadas, as negociações e as relações contratuais (Friedberg, 1997: 164).

131 Cada uma das dimensões estrutura-se à volta de quatro aspectos, chamemos-lhes indicadores, intimamente sequenciados ou interligados: 1. O grau de formalização e de codificação da regulação; 2. O grau de finalização da regulação no sentido em que [

d’une part les participants intègrent les résultats de leur coopération dans leurs interactions et les transforment en enjeux et, d’autre part, les intériorisent comme buts de leur action, c’est-a-dire mettent finalement leurs transactions au service de ces buts, en acceptant si nécessaire de faire des concessions face à leurs partenaires / adversaires d’interactions (Friedberg, 1997: 167)] o que faz aumentar a integração real do sistema, sem contudo aumentar o grau da sua formalização. 3. O grau da tomada de consciência e de interiorização da regulação pelos participantes (este indicador associa-se a uma tomada de consciência por parte de todos os implicados de uma interdependência entre eles, tal como da necessidade de regulação das suas interacções. Isso resulta, em consequência, na tomada de consciência dos resultados da cooperação ou não cooperação. Mas, para tal é preciso haver um mínimo de inter- conhecimento entre os actores, é preciso que as informações circulem, de forma a que os actores possam racionalizar os seus comportamentos num quadro de correcção. Mas é preciso também haver uma certa heterogeneidade entre os actores); 4. O grau da delegação explícita da regulação, no sentido em que os actores conscientes da necessidade de haver um regulador, delegam responsabilidades a um ou vários actores que constituem órgãos centrais. Este indicador baseia-se na ideia de que:

Tout système d’action concret dispose de ses « intégrateurs », c’est-a-dire génère des acteurs qui se trouvent en position d’arbitre entre les intérêts conflictuels des participants et qui, forts de cette position, assurent donc de fait sinon de droit une partie de la régulation en opérant les ajustements et les équilibrages entre acteurs, sans lesquels le système s’étiolerait (Friedberg 1997: 169-170).

Assim, importa sublinhar a ideia defendida por este autor, segundo a qual,

Toute action collective est d’une certaine façon « organisée ». Quelles que soient les caractéristiques du contexte dans lequel elle se déploie, elle met n scène un ensemble interdépendant d’acteurs individuels et/ou collectifs, naturels et institutionnels qui sont en concurrence les uns avec les autres, tant pour la définition des « problèmes » à la solution desquels il faut (ils peuvent) contribuer que pour l’élaboration des « solutions » qui seront apportées à ces problèmes (Friedberg, 1997: 177).

132

6. Descentralização, desenvolvimento e democracia

As dinâmicas de actores sociais no processo de desenvolvimento local no contexto em que elas são aqui abordadas, requerem uma ligação automática com os pressupostos da descentralização e democracia. Elas requerem, em primeiro lugar, o reconhecimento da importância da liberdade de acção, participação e exercício de cidadania e também que se reconheça a abertura para existência de um outro nível de poder, isto é, o poder exercido nas comunidades e localidades. Em muitos casos, o conceito de desenvolvimento local reporta para a questão da governança local. Assim, muitos autores estabelecem uma relação estreita entre o desenvolvimento local, descentralização e democracia. Neste sentido, é de salientar então que, inicialmente, a abordagem sobre a descentralização colocava no centro das questões a necessidade de aproximar a administração ao povo ou aos administrados. No fundo, consistia em dar oportunidade ao povo de se exprimir sobre os assuntos que lhe diziam respeito mais directamente. É neste sentido que Robespierre, num célebre discurso proferido em 10 de Maio de 1793, havia dito o seguinte:

esqueçam a mania antiga de quererem governar demasiado; deixem aos indivíduos; deixem às famílias o direito de fazerem aquilo que não prejudica os outros; deixem aos municípios o poder de resolver eles mesmos os seus próprios assuntos em tudo aquilo que não diz essencialmente respeito à Administração da República 122.

Mas, nessa altura, essa aproximação era ainda muito efémera. As autoridades locais dependiam muito do poder central ou real conforme era o caso, que controlava as suas acções através de instâncias de poder intermédio. A título exemplificativo, importa dizer que, em finais do século XVIII, as instabilidades externas e internas provocadas pela guerra, bem como o incumprimento das leis reforçavam a ideia de um forte centralismo. O apogeu do centralismo aconteceu em França com Napoleão Bonaparte que durante o seu reinado assinou um decreto datado de 25 de Março de 1852 designado descentralização administrativa onde se afirma que:

122 Vide Lemoine de Forges, Jean-Michel; “Subsidiarité et chef de file: une nouvelle répartition des compétences?” in Gaudemet, Yves et Gohin, Olivier (org) (2004), La République décentralisée; Paris, Panthéon-Assas, p. 49.

133

considerando que não se pode governar de longe, mas que se administra bem de perto, que em consequência, tanto importa centralizar a acção do Estado quanto é necessário descentralizar a acção puramente administrativa.

Com esse decreto, um número considerável de decisões que antes estavam confinadas aos ministros passou para os Prefeitos. Contudo, no decreto não aparecem invocados, em momento algum, os Concelhos eleitos, pelo que fica claro que o propósito central era o de reforçar a eficácia do Estado, uma ideia que ficou ainda mais clara com a lei de 7 de Julho do mesmo ano que determina que o chefe de Estado passa a nomear os presidentes, vice presidentes e secretários dos Conselhos Gerais e para certas regiões, como Paris e Lyon, os conselheiros municipais são nomeados pelo Imperador (Bodineau e Verpeaux, 1993 : 51). Apesar disso, a luta pelas liberdades locais continuava e era desencadeada sobretudo pelos liberais. Neste contexto, aparece Alex Tocqueville que, ao defender o equilíbrio do poder político com a existência de múltiplos centros de decisão, de órgãos políticos e administrativos que se contrabalanceiam e ao definir as causas que estabelecem a democracia americana no primeiro volume da obra La Démocratie en Amérique, realça claramente o papel da descentralização administrativa em oposição à centralização do poder governamental e, consequentemente, o despotismo devido à crescente burocratização do Estado (Aron, 2008: 227-250). Muito entusiasmado com a democracia de proximidade que ele viu funcionar na América sublinhou que é nos municípios que reside a força do povo livre, e sem ela uma nação não pode ter o espírito da liberdade (Aron, 2008: 52). Tocqueville (1982: 160) era um defensor acérrimo da liberdade, a ponto de defender que,

o que, em todos os tempos, tão fortemente agarrou os corações de certos homens à liberdade é sua própria atracão, seu encanto, independentemente de suas dádivas; é o prazer de poder falar, agir, respirar sem constrangimento sob o único Deus e de suas leis. Quem procura na liberdade outra coisa que ela própria foi feito para a servidão [...]. Não me peçam para analisar um gosto sublime, que é preciso sentir. Entra por si mesmo nos grandes corações que Deus preparou para recebê-lo, enchendo-os e inflamando-os. Temos de renunciar a explicá-lo às almas medíocres que nunca o sentiram.

Desde Tocqueville, que se vê na relação entre o poder local, a participação da população nos assuntos das suas localidades e democracia, como mecanismo essencial do

134 aprofundamento democrático. A administração local pelos poderes locais permite, segundo o autor, desenvolver a compreensão prática das responsabilidades públicas entre o poder central e as populações ou governados, na resolução dos assuntos do seu quotidiano, estimulando a participação no plano micro como base da democracia enquanto sistema político (Castro, 1991). Após a Segunda Guerra Mundial, a descentralização reforçada com a ideia de regionalização assume-se como forma de criar novas missões do Estado que era de gerir as consequências económicas provocadas pela guerra, razão pela qual a ideia de regionalização passava a ter como âncora os pressupostos económicos, daí a designação de regiões económicas. Refira-se, no entanto que, inicialmente, não passou de um simples projecto. Em França, a ideia de região ganhou novo impulso após a constatação de desequilíbrios regionais em termos de desenvolvimento. As regiões de Sul e Oeste apresentavam-se pouco desenvolvidas comparativamente às regiões do Norte e Este, ricas e transformadas pela revolução industrial. Impunha-se, assim, a coordenação de um conjunto de políticas, sejam elas voltadas para o desenvolvimento económico, sejam voltadas para o ordenamento do território (Bodineau e Verpeaux, 1993 : 86). Disso resultou a criação da Comissão de Desenvolvimento Económico Regional (CODER) composta por ¼ dos Conselheiros Gerais, Presidentes das Câmaras, Representantes da Câmara de Comércio e Indústria, etc. Apesar disso, associada à ideia de regionalização andou sempre presente a ideia de ela poder representar o perigo à unidade nacional. Este é o argumento de fundo para pôr travão ao avanço da corrente regionalista. Via-se na regionalização uma necessidade que já se encontrava ultrapassada. Um dos maiores avanços no processo de descentralização no início da década de oitenta foi, sem dúvida, a transformação da região numa colectividade territorial de pleno exercício. Os objectivos cimeiros dos propósitos da descentralização, segundo Bodineau e Verpeaux, têm sido sempre dar aos cidadãos a vantagem da liberdade e de responsabilidade (Bodineau e Verpeaux, 1993 : 129). Auby sugere uma definição da descentralização assente em três eixos: territorialização do direito, jurisdição da vida pública local e autonomização da esfera jurídica local.

135 Quanto ao primeiro - a territorialização do direito, esta tem a ver com a uniformização de políticas e regras que evitem enviesamento de valores como, por exemplo, a igualdade. Ou seja, as políticas públicas devem e podem ser concebidas num único sentido, isto é, o de representação nacional. Existem vários exemplos em que uma lei nacional é aplicada num território de uma maneira e noutro território de maneira diversa. O autor deu exemplo de políticas de protecção de espaços naturais do litoral (Auby, 2006 : 13-30). Quanto ao segundo eixo, isto é a jurisdição da vida pública local, é uma dimensão na medida em que, na descentralização, há relações sociais, políticas e hierárquicas evidentes onde, por vezes, há diferendo e onde exige naturalmente a presença de uma especialidade do direito, para não dar exemplo de outras relações que existem na vida pública, ou mesmo a relação entre o Estado e as colectividades locais (Auby, 2006 : 31- 56). Quanto ao terceiro, sobre a autonomização da esfera jurídica local, o autor afirma que as colectividades territoriais não existem sem acordo do Estado, pois o Estado pode tomar uma decisão e posteriormente revogá-la através de regulamentos, ou através da lei, ou ainda através da revisão constitucional. Por outro lado, há diferenciação jurídica territorial. Essa diferenciação existe por duas razões: ou porque o regulamento, a lei ou a constituição o permitem, ou porque, segundo os mecanismos que vão ser evocados aqui, a descentralização permite, suscita mesmo uma certa autonomização da esfera jurídica local. Para Auby (2006 : 91) a descentralização tem no centro dos seus princípios dois eixos fundamentais: o progresso de pluralismo e de subsidiariedade e o aumento das exigências democráticas, de transparência e de concorrência. Prats (s/d: 15) realça a relação entre a descentralização e participação social nos termos seguintes:

Parece evidente que a planificação do desenvolvimento económico e social não se pode realizar apenas com a impulsão das administrações centrais, sem a participação das populações. Parece não menos evidente que tal participação não pode ser obtida no quadro de uma estrutura administrativa centralizada.

A problemática da descentralização, tendo em vista o desenvolvimento planificado e participado, é, no entanto, muito complexa e as soluções para os problemas que decorrem desse fenómeno têm sido essencialmente empíricas (Prats, (S/D): 6-7). Desde

136 logo, o problema da organização das aldeias com implicação no desenvolvimento económico e mudança social. Muitas vezes ela explica a maior parte de conflitos nos países menos avançados. Este problema se reveste de dois aspectos fundamentais: no plano económico constitui o sistema de divisão do trabalho e trocas de bens e no plano social ela regula o jogo das instituições familiares ou dos mecanismos da estratificação social. A relação entre aldeias e o Estado é marcada por um dualismo fundamental. Ela se organiza segundo um duplo modo correspondente: persistência dos valores tradicionais e tentativa de adaptação ao sistema moderno imposto pelo Estado. Por esta razão a relação entre ambos não pode ser directa. Um outro problema é o das dificuldades de articulação dos aparelhos de planificação nas colectividades. O desenvolvimento comunitário, como método de descentralização e de participação, tem a vantagem de reforçar a articulação entre o aparelho de planificação e das colectividades rurais num aspecto de resto tido em consideração na definição analítica dada pelo Conselho Económico e Social das Nações Unidas em 1956 (Prats, s/d, 19). Esse documento que se traduziu num conjunto de procedimentos que devem ter os habitantes de um país face aos poderes públicos, tendo em vista a melhoria das situações económicas, sociais e culturais, supõe dois elementos essenciais: a participação activa dos cidadãos no sentido de elevarem o nível de vida, tendo em conta as suas iniciativas, e o fornecimento de serviços técnicos e outros com vista a reforçar e aumentar a eficácia das iniciativas e das ajudas mútuas. No quadro da participação das populações ou da cidadania Pierre-Joseph Laurent sugere que a observação dos processos de instituição e formas de cidadania requerem a descrição das acções dos grupos de populações residentes numa determinada aldeia, privilegiando um tipo particular de compromissos. Na sequência disto este autor interroga sobre quais são as normas morais ou jurídicas aceites ou aceitáveis que presidem a vida em comum. O autor aponta três campos de investigação subjacentes a esta problemática : a análise do grau de eficácia e de coerção das normas sociais ; os novos princípios hierárquicos que vigoram na cidade em relação à vida rural ; a estabilidade das normas e a segurança a longo prazo 123.

123 Vide Laurent, P-J. “Stratégies populaires dans une ville émergente et système des valeurs partagées” in Laurent, P-J et al, (2004), Décentralisation et Citoyenneté au Burkina Faso: le cas de Ziniare, Paris, L’Harmattan, p. 347.

137 A noção de espaço público difere muito entre a teoria e a prática em certos países ou lugares. Muitas vezes, o espaço que é público na teoria, na prática não o é. Há quem inclusive considere que a concepção de um bem público, que seria comum a todas as famílias de uma aldeia ou de uma cidade, não existe efectivamente 124. Jean – François Lachaume, num artigo sobre a participação e serviços públicos locais, fez questão de salientar que as experiências, hoje, mostram que na democracia representativa a diferenciação entre os governantes e governados se opera muito rapidamente e que os primeiros, confrontados com as realidades do terreno, com as limitações jurídicas e financeiras e confrontando também com as exigências de conciliação entre o interesse público e os interesses privados, bem como a vontade de reeleição, afastam-se rapidamente das radicalidades das suas promessas eleitorais, desenvolvendo (o que não pode ser visto como pejorativo) uma mentalidade de gestão e adoptam as soluções que os administrados não compreendem sempre e, por vezes, até contestam. Numa palavra, prossegue o autor, é cada vez mais aceitável hoje pelos administrados que se sentem frustrados com a concepção da democracia que resume desta forma: elejam-nos que façamos o resto. Isto é, para este autor escolher dirigentes já não é mais sinónimo da democracia. Ela deve ser igualmente participativa e deve permitir aos administrados pensarem sobre as decisões tomadas pelos governantes, provocando as decisões e influenciando os seus conteúdos. A escolha deve ser acompanhada de influenciar, decidir, contestar, etc. 125. O conceito da descentralização tem para com os conceitos de desenvolvimento local e democracia uma relação dialéctica bastante acentuada. A descentralização tem por base o desenvolvimento local e democratização dos poderes públicos da mesma maneira como o desenvolvimento local atinge o seu máximo no quadro de um ambiente democrático o que pressupõe dar oportunidade àqueles a quem se dirige o desenvolvimento a participar nas tomadas de decisões. Assim, a democracia encontra na descentralização um mecanismo da distribuição do poder político e nos programas de desenvolvimento local um mecanismo da distribuição o mais equitativamente possível dos recursos produzidos pelo Estado.

124 J. Bouju, apud Sebhara, Pamphile; et Sindogo; “Décentralisation et citoyenneté communale. Réflexions sur l’espace public municipal” in Laurent, P-J et al, (2004), Décentralisation et Citoyenneté au Burkina Faso: le cas de Ziniare, Paris, L’Harmattan, p. 393. 125 Vide Lachaume, Jean-François, “Participation et services publics locaux”, in COLLECTIF (2003), Les Collectivités Locales: Mélanges en l’honneur de Jacques Moreau; Paris, Economica, p. 233.

138 Uma análise mais ou menos exaustiva do conceito de desenvolvimento e dos diversos modelos da sua implementação ilustra bem essa relação. Existem muitos modelos e tipos de descentralização segundo a importância ou grau de transferência dos poderes e responsabilidades, como existem também múltiplas circunstâncias ou contextos que constituem factores determinantes na escolha dos itinerários emprestados pelos diferentes países. Segundo Guèye, está por detrás disso um conjunto de aspectos: as reivindicações identitárias levadas a cabo por grupos marginalizados ou excluídos do poder de decisão; a eficiência associada a uma descentralização de gestão de recursos; a perda da legitimidade do poder central em certos países devido às condições particulares da conquista do poder; o enfraquecimento do Estado preconizado pelas políticas de programas de ajustamento estrutural dos anos de 1990; a incapacidade do Estado fazer face às suas obrigações; etc. (Guéye, 2005: 3). É preciso ter em atenção que a descentralização no meio rural em África ocidental francófona é relativamente recente, com excepção de alguns países como Senegal onde a existência das comunidades rurais remonta os anos de 1970 (Guéye, 2005: 3). Alguns aspectos importantes definiram a prudência ou o cepticismo dos governantes africanos em acelerar o processo da descentralização no meio rural: primeiro porque, em certos países, as instituições tradicionais detinham ainda poderes importantes e constituíam um contrapeso para as novas instituições criadas no quadro da descentralização, a ponto de colocarem em causa a sua legitimidade. Segundo, o argumento das fracas competências das populações locais é, muitas vezes, invocado para justificar a relutância dos poderes públicos em relação à transferência de certas competências às colectividades locais. Terceiro, as relações de força entre o poder político e outros actores em jogo constituem factores importantes que influenciam de forma conjuntural os tipos de reformas ou de políticas, decididos pelo Estado central. É assim que se observa em certos países que, devido a interesses políticos pontuais ou mesmo pela necessidade de implementarem o reforço técnico pertinente, introduziram mudanças com base em dispositivos institucionais. É o caso do Senegal que em 1996 ao perder o controlo sobre as grandes aglomerações urbanas da região de Dakar, nomeadamente devido ao facto de ter havido dissensões internas, o partido no poder na altura tinha decidido pela criação de associação de bairros (Guéye, 2005). Do ponto de vista prático, o sistema da democracia representativa reserva um certo número de enviesamento ou imperfeições que impedem uma boa participação da

139 população. Com efeito, as instituições nascidas da descentralização nem sempre reforçam a representação de forma numérica e estratégica de certos grupos vulneráveis nas esferas de decisão. Em certos casos, elas contribuem, antes, para transpor para o seio dos órgãos de gestão das colectividades locais os tipos de relações de poder característicos das estruturas sociais em evidência nas comunidades locais. Assim, por diferentes mecanismos, as elites tradicionais que controlam o poder social se encontram no centro do dispositivo das instituições do governo local (Guéye, 2005 : 4) Para Greffe (2005: 38), uma nova organização territorial pode assegurar as unidades produtivas, o acesso aos recursos estratégicos favoráveis ao desenvolvimento. Neste contexto, a descentralização constitui um mecanismo de organização favorável ao desenvolvimento, na medida em que ela pode, por um lado, instaurar as redes de comunicação, permitindo o acesso aos recursos específicos e, por outro, produzir as variedades possíveis. Ainda para este autor, numa economia de mercado é preciso ter em conta o valor dos recursos específicos implicando esforços permanentes de detecção. É preciso, de igual modo, reunir as competências libertando a energia necessária à definição e execução de uma nova estratégia e facilitar a execução de redes de parceiros que permitem dotar os territórios de recursos estratégicos como, por exemplo, a formação. Para adoptar um território de qualificações necessárias, é preciso organizar, com base em cooperação entre instituições de educação, as empresas que podem adquirir o saber fazer e as colectividades territoriais, que assumem os efeitos de uma má organização das ligações entre formação e emprego ou a hipótese inversa, beneficiar-se dela. A organização de novos dispositivos de consulta, a tomada de decisão, de gestão ou avaliação, é portanto necessária face às falhas de mecanismos existentes. Na esteira do que se tem dito, a descentralização pode por conseguinte tornar-se num trunfo para tirar proveito de uma economia de mercado e estimular o desenvolvimento lá onde a centralização inibe as iniciativas e não permite desencravar as parcerias que permitirão criar novas actividades. No que diz respeito ao emprego, as políticas de emprego foram durante muito tempo centralizadas. No contexto do estado providência, o papel do Estado consistia essencialmente em assegurar uma boa transparência do mercado de emprego e gerir a protecção dos direitos dos desempregados.

140 Em alguns países, os parceiros tornaram-se gestores de tais políticas pela delegação do Estado. Noutros casos eles estavam associados ao Estado sob a forma tripartida e nesse caso eles eram ao menos consultados. Na perspectiva de Greffe (2005), uma série de razões conduziu o Estado a mudar o centro de gravidade das políticas de emprego versus parceiros locais, razões utilizáveis em sentido inverso como os critérios de uma descentralização boa ou com bons resultados: A primeira razão prende-se com a crescente dificuldade dos Estados em financiarem os mecanismos de protecção, quanto mais não seja, porque as receitas fiscais e margens orçamentais são reduzidas. Isto reflecte na ideia de que seria melhor delegar esta responsabilidade, na medida em que, caso contrário, revelava uma lógica centralista, igual aos princípios do estado providência. A segunda razão prende-se com a especificidade de alguns territórios. A intensidade dos problemas que se encontram em alguns territórios impede os seus actores de os reporem ao funcionamento espontâneo do mercado de emprego, onde as políticas eleitas não têm em consideração a especificidade do território. A terceira razão prende-se com a multidimensionalidade dos problemas de emprego. A procura de emprego aparece predeterminada pela limitação em termos de formação, habitação ou de mobilidade, saúde etc. A ligação entre os empresários, institutos de formação, públicos ou privados, administração do mercado de emprego, associações a favor de inserção, podem fazer com que as empresas possam encontrar os recursos qualificados que elas precisam e que os que procuram o emprego o possam encontrar de acordo com a sua competência. Estes elementos justificam uma aproximação do local, mas a forma de colocar os problemas e as soluções pode começar ao nível da localidade definida como o ambiente dos actores. A quarta questão prende-se com a volatilidade do mercado de emprego. A duração do emprego é cada vez mais curta e os ajustamentos são cada vez mais frequentes – contratos de trabalho a um tempo determinado. Esta volatilidade de emprego conduz os actores do mercado de emprego a procurarem os circuitos de informação e de formação mais curtos o que confere uma grande importância à maneira como os mercados de emprego são organizados ao nível local. A quinta e a última razão prende-se com a vontade de activar as políticas de emprego. Sobre isso importa frisar que no plano nacional distinguem-se tradicionalmente as

141 medidas ditas passivas (melhoramento do ambiente do mercado de emprego e de mecanismos de compensação de perdas) e medidas ditas activas (modificação dos comportamentos sobre o mercado). Greffe (2005) sublinha que perante um problema de emprego os países têm a tendência, na maioria dos casos, para imprimirem as medidas passivas, uma vez que a transformação dos mercados e dos sistemas de emprego exigem, ao contrário, cada vez mais medidas activas e elas supõem duas condições importantes: a diversificação dos dispositivos em relação às condições concretas de um mercado, de um sector ou de uma empresa; a identificação de grupos-alvo sobre os quais as medidas recaem. Num caso e noutro a descentralização dos dispositivos a favor do emprego torna-se num meio de mudar iniciativas na perspectiva de uma associação entre o desenvolvimento económico, emprego e inserção social. Ela confere aos actores as margens de liberdade e de flexibilidade necessárias para apreenderem e gerirem as diferentes dimensões do seu território. Ela permite, de igual modo, as administrações públicas encarregarem-se de tais questões, de melhor trabalhar a solução dos problemas comuns e com um conjunto de parceiros de emprego de agir a um nível pertinente, em matéria de informação, de diagnóstico, de mobilização dos recursos e de responsabilização (Greffe, 2005 :43). Pode-se aplicar aqui as políticas microeconómicas que se ajustem da melhor forma às necessidades dos actores. Estas coordenações horizontais que executam a coordenação das iniciativas, sua adaptação às condições locais e a participação dos actores locais não suprimem a necessidade ligada a reforçar no mesmo espírito as coordenações verticais entre parceiros locais e parceiros centrais. Como fonte de desenvolvimento, a descentralização efectivamente não deve ser concebida como a multiplicação de níveis de clivagens, mas como a constituição de redes associadas que, num grau ou noutro, participam na valorização do território (Greffe, 2005 :58). Posto isto, importa então reter algumas ideias chave: para que as redes se possam integrar todos os que nele participam de forma efectiva, estes devem comungar dos mesmos objectivos; as redes não poderão funcionar se as relações que as constituem não são iguais, ou pior, se se torna numa exploração de uns sobre os outros. Descentralizar supõe uma redefinição sensível do papel dos eleitos locais e supõe o cumprimento ou melhor o exercício do poder. Supõe ainda a representação dos

142 interesses locais junto do poder central. Assim, o Estado deve ser considerado um parceiro como os outros. Nesta óptica, convém prevenir sempre contra as dificuldades ligadas a todo o sistema de parceria, pois, uma má identificação e falta de representação dos actores pertinentes, tal como os custos de gestão elevados e mau sistema de informação abrem a possibilidade de alguns actores de se retirarem dos efeitos da sorte, o que a acontecer que não deixa de minar a parceria.

7. Conclusão

Ao longo deste capítulo abordamos os aspectos conceptuais e teóricos que, na nossa opinião, são os mais indicados para integrarem o quadro teórico que suporta a análise sobre as dinâmicas de actores no processo de desenvolvimento local, à luz dos propósitos traçados para este trabalho. Assim, analisamos várias perspectivas de abordagem de desenvolvimento que resultam em várias percepções e paradigmas. Socorrendo-se a uma perspectiva de análise estritamente sociológica podemos então dizer que analisamos uma primeira perspectiva de que resulta o paradigma de desenvolvimento de inspiração estrutural funcionalista e segunda perspectiva de que resulta o paradigma territorialista de desenvolvimento. Na sequência do que se tem dito até aqui podemos concluir que o processo de desenvolvimento local é, antes de mais, uma estratégia e prática que visa transformar uma realidade social concreta e assenta em quatro aspectos fundamentalmente: - a importância do território local em que os governos locais se apresentam como articuladores das políticas de desenvolvimento; - a importância da participação da sociedade como protagonista da concepção, implementação e avaliação das dinâmicas do desenvolvimento; - a relevância das parcerias entre os vários sectores na concretização das iniciativas de desenvolvimento; - a importância de descentralização como fenómeno que reforça o sistema democrático possibilitando determinados actores a liberdade de experimentarem a sua capacidade de iniciativa, criatividade e de escolha.

143 Hoje as abordagens sobre o desenvolvimento local, ainda que de forma algo tímida126 estão focalizadas na economia solidária entendida, segundo Valentim (2010: 91) como

um movimento que diz respeito a iniciativas colectivas que buscam, em contínua tensão, valores como solidariedade, o igualitarismo e a autogestão, distintos daqueles capitalistas, ainda que as expressões e significados destes próprios valores sejam diversos em suas múltiplas manifestações.

Já são vários os autores que vêm desenvolvendo essa ideia. De entre eles destacam-se França (1999), Singer (2000), Vainer (2000), Arruda e Boff (2000), Arruda (1996), Coraggio (2000), Razetto (1997), Amaro (2003), etc. A base de orientação teórica é praticamente a mesma: um mecanismo que vise resolver os problemas básicos dos cidadãos pelas vias da promoção do emprego através de um modelo alternativo ou diferenciado do capitalismo sustentado pelo princípio da solidariedade. A propósito disso, só para dar algum exemplo dos promotores dessa ideia, Razeto (1998) esclarece que:

o que chamamos de economia de solidariedade não consiste em um modo definitivo e único de organizar unidades económicas. Trata-se de um processo multifacetado através do qual incorporamos solidariedade à economia.

A tese que parece estar subjacente é a de que a solidariedade deve ser introduzida na própria economia como forma de gerar novas relações de produção onde se inserem os que por um motivo ou outro se encontram excluídos do sistema. Coraggio (2000) parte da ideia de economia popular, vista como acção orientada para a satisfação de necessidades (materiais, de sociabilidade, culturais e simbólicas) por conseguinte assente nas pequenas unidades de produção como aquelas asseguradas pelos grupos de amigos, vizinhos, famílias, grupos étnicos, etc.127. Já Paul Singer (2000), numa perspectiva um pouco diferente dos dois anteriormente citados, focaliza as suas análises na importância de modos de produção assente nos modelos de cooperativa e de empresas autogestionárias. Parece estar por detrás das ideias dos precursores da economia solidária uma mudança da ordem económica mundial inspirada nos princípios da economia capitalista moderna,

126 Tímido, na medida em que, ela ainda não possui um quadro teórico relevante. 127 Vide Singer, Paul. Economia dos Setores Populares - Propostas e Desafios. In: Kraychete, G. et al. (org.) (2000), Economia dos Setores Populares: Entre a Realidade e a Utopia, Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: Capina; Salvador: CESE: UCSal.

144 não com base em ruptura com o mercado, mas como sublinha Lisboa (1999) a partir das relações com o mercado, procurando romper com a lógica que preside a sociabilidade contemporânea, na perspectiva de construção de uma nova sociedade. Mas, além do mais, podemos também concluir que um processo de desenvolvimento local traduz-se na interacção de um vasto conjunto heterogéneo de actores suportados por uma complexa rede de interacção movida por interesses e relações conflituais resultantes da impregnação de várias racionalidades. À luz das estratégias globais de desenvolvimento podemos também concluir que o municipalismo e a descentralização ocupam uma posição central como de resto são importantes em várias outras circunstâncias. Actualmente, como eram há cerca de duas décadas, aliás como demonstrara Smith, são vistos como condição fundamental do desenvolvimento social, económico e político dos Estados Modernos (Smith, 1985).

145 Capítulo III – A organização sócio-espacial, os modos de vida e estratégias de sobrevivência no espaço rural da ilha de Santo Antão: Lagoa, Ribeirão e Cruzinha

1. Introdução

Neste capítulo debruçaremos, por um lado, na descrição etnográfica dessas unidades e, por outro, na descrição e análise das práticas sociais dominantes nesses espaços. Neste sentido pretendemos analisar e discutir as condições e modos de vida (re) produzidos no espaço social rural, como mecanismos que definem as trajectórias engendradas pelas dinâmicas dos actores sociais. Assim sendo vamos começar com a apresentação e discussão das razões que, do ponto de vista da metodologia e de estratégia de análise, nos levaram a escolher as localidades de Lagoa, Ribeirão e Cruzinha como palcos privilegiados de investigação e no ponto seguinte abordaremos questões sobre o enquadramento espacial e sociocultural dessas unidades territoriais para depois entrarmos na análise dos modos de vida e estratégias de sobrevivência que as famílias destas localidades imprimem no processo de desenvolvimento local. Sobre a definição dos conceitos fundamentais deste capítulo (modos de vida, estratégias de sobrevivência e reprodução social) ocupar-nos-emos dela mais adiante. Mas, no que concerne ao conceito de estratégias de sobrevivência 128 devemos adiantar que alguns autores procuraram abordá-lo tendo em consideração os seus múltiplos sentidos. A título exemplificativo refira-se que Ana Costa e Cristina Rodrigues (2000:120) apresentaram um quadro elaborado a partir de um estudo conduzido por Adra et al. (1993) no qual os respectivos autores estabeleceram 4 tipos de práticas ligadas às estratégias de sobrevivência, isto é, individual, familiar, comunitária e de grupo. Neste sentido, Adra et al. (1993) integraram no conjunto de estratégias de sobrevivência do tipo individual, práticas como comércio informal, empregos múltiplos, migrações diversas, auto consumo, actividades criativas das crianças, trabalho de menores, roubo/banditismo, candonga/garimpo, camanga, recepção de ajuda, inscrições múltiplas em cozinhas comunitárias, mendicidade. Como estratégias do tipo familiares estes autores consideraram as seguintes práticas: actividades do sector informal, intensificação de culturas alimentares, aproveitamento

128 Entenda-se estratégias de sobrevivência das famílias num contexto social específico, para não confundir, por exemplo, com estratégias de sobrevivência de uma organização designadamente empresarial, de que hoje tanto se fala.

146 de novos vegetais para a alimentação, aluguer de compartimentos de casa, diversificação das actividades da família, cozinhas comunitárias, diminuição qualitativa e quantitativa das refeições, solidariedade, abandono/venda/entrega de menores, poligamia, prostituição. Já em relação às estratégias do tipo comunitário integraram práticas como a solidariedade, migrações em conjunto, actividade “coordenada” do sector informal, dependência da ajuda, reconversão das actividades, desenvolvimento da capacidade de adaptação. E, finalmente, como estratégias de grupo consideraram práticas como grupos fictícios, reconversão de actividades, delinquência, prostituição e criminalidade organizadas 129. Trata-se de uma tipologia com uma certa dose de subjectividade, portanto, susceptível de uma ampla discussão, como aliás observaram Ana Costa e Cristina Rodrigues (2000: 120). Estas autoras defendem que,

uma forma mais objectiva de análise das diferentes estratégias desenvolvidas debruçar-se- á certamente sobre casos mais específicos, realidades mais bem circunscritas, de forma a tentar dar uma visão mais precisa e permitir compreender encadeamentos importantes.

Apesar disso apropriamos desta tipologia como um ponto de partida para a abordagem deste conceito, ainda que num contexto histórico, económico, social, cultural e político diferente, assente na ideia de que as práticas sociais que se ligam às estratégias de sobrevivência das famílias inscrevem-se em múltiplos domínios. Neste sentido, a organização das práticas sociais em categorias específicas de estratégias de sobrevivência e de reprodução social das famílias permitem, em certa medida, ultrapassar ou, pelo menos, mitigar o problema que resulta da complexidade da sua abordagem que, diga-se de passagem, é tanto maior quanto maior for a centralidade que tiver como objecto de análise. Assim, dividimo-las em duas categorias de análise. Isto é, num primeiro momento, vamos abordar um conjunto de práticas relacionadas com as estratégias adoptadas pelas famílias do meio rural e que na nossa opinião são imprescindíveis à sua sobrevivência. Estas estratégias estão centradas em actividades que ao longo da história das localidades vêm sendo construídas e reconstruídas pelas populações locais e por isso mesmo

129 A descrição das práticas que integram os diferentes tipos de estratégias de sobrevivência foi reproduzida ipsis verbis conforme aparece no artigo em análise.

147 optamos por atribuí-las a designação de estratégias proeminentes de sobrevivência. Integram o conjunto dessas estratégias as práticas desenvolvidas pelas famílias e dotadas de conhecimentos, experiências, arte que empregam em torno das actividades económicas das quais tiram o essencial dos rendimentos que suportam a sua sobrevivência no dia-a-dia, isto é, agricultura, criação de gado, pesca e empregos público e/ou privado. Num segundo momento abordaremos as práticas que, pese embora tenham um papel relevante no sistema de sobrevivência das famílias do espaço social rural, não têm tanta visibilidade como as que integram as estratégias proeminentes e além do mais são condicionadas por um conjunto de factores específicos, sejam eles de ordem temporal, sejam ainda de ordem circunstancial ou mesmo estrutural e por isso mesmo, ao contrário das outras estratégias elas são mais susceptíveis de mudanças. A esta tipologia de estratégias decidimos atribuir-lhe a designação de estratégias complementares de sobrevivência e integram práticas como poupanças; solidariedade social e entreajuda, jobs, expediente e desenrasque; trabalho de base não contratual e, por último, a remessa dos (e) migrantes e a opção pela (e) migração, ou seja, todo um conjunto de acções que acabam por representar aquilo a que Machado Pais designa por “sentido oculto dos detalhes da vida social” (Pais, 2008). Reconhecemos, no entanto, que não deixa de ser discutível a tipologia que acabamos de esboçar e que vamos analisar detalhadamente mais adiante. Mas convenhamos que não traçamos isso como objectivo desta investigação. Com esta tipologia pretendemos, por um lado, enfatizar os caracteres da multiplicidade e heterogeneidade e, por outro, a diversidade do grau de importância que cada estratégia representa no sistema de sobrevivência que as famílias rurais cabo-verdianas engendram no seu quotidiano. Definimos as famílias como actores sociais locais de desenvolvimento local numa dupla perspectiva, objecto e sujeito de dinâmicas de desenvolvimento local em Cabo Verde. A atenção é focalizada fundamentalmente na segunda perspectiva. Embora o título não o pareça sugerir, na verdade, os papéis desempenhados pelas famílias e pelos emigrantes não se dão isolados uns dos outros. Antes pelo contrário são funções perfeitamente congruentes e complementares e dificilmente se consegue ver onde acaba um e inicia o outro. O pressuposto central que conduz este capítulo é o seguinte: As estratégias de sobre (vivência) das famílias do meio rural, além de se inscreverem em múltiplas dimensões e

148 consequentemente bastante complexas, elas assumem, juntamente com as remessas dos emigrantes, um papel crucial no processo de desenvolvimento local em Cabo Verde.

2. Justificação da escolha de Lagoa, Ribeirão e Cruzinha como unidades de análise

A selecção das três aldeias onde focalizamos a nossa pesquisa submeteu-se a um exercício elaborado com base num conjunto de critérios previamente estabelecidos. Um primeiro critério, como de resto é compreensível, tem a ver com a representatividade. Isto é, se as localidades que iam ser seleccionadas representam de alguma forma a realidade da ilha de Santo Antão. No entanto, a ideia de representatividade levanta uma questão prévia. O que é que se pretende seja representativo? Para nós, uma vez decidida que se tratava de um estudo de caso, e uma vez escolhida a ilha de Santo Antão, era preciso definir o espaço social onde decorre o fenómeno em estudo, ou seja, as dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local. A escolha do meio rural se justificava pela própria problemática da qual surgiram as questões centrais da pesquisa. Face ao exposto fica então assente que a representatividade que se procurava tinha a ver com os modos de vida das famílias no meio rural. Para a selecção das localidades onde a investigação iria desencadear-se tomamos como pressuposto central a ideia de que as condições geográficas podem constituir-se factores de influenciação na definição de padrões de vivência das pessoas. Empregamos o termo “podem” exactamente para evitar cair em determinismo simplista e, consequentemente, procurar fugir a discussão que tem alimentado a geografia e a economia sobre este assunto. Isto é, consideramos que as condições geográficas ou naturais constituem em si mesmas variáveis importantes na análise dos modos de vida das pessoas além de poderem ser considerados como, dependendo do entendimento que se tem da geografia, factores de desenvolvimento económico e social de um lugar (Gallup et al, 2008). A ilha de Santo Antão é fortemente marcada por elementos de ordem física e geográfica, como a altitude, o micro clima, as condições da costa, a posição das encostas em relação ao sol, etc. Conforme são as particularidades de ordem natural e geográfica assim se definem as dificuldades ou facilidades quanto a um ou outro aspecto da vida das pessoas.

149 Neste sentido, recorremos à classificação de zonas agro-ecológicas (ZAE) particularmente aquela referente à ilha de Santo Antão, segundo a qual as zonas desta ilha se classificam em: áridas, semi-áridas, sub-húmidas, de altitude/húmidas e zonas de regadio, conforme o quadro resumo que apresentamos em anexo. Salvo um ou outro pormenor, designadamente o facto de os orientadores deste trabalho terem um profundo conhecimento da realidade desta ilha, particularmente das dificuldades em que se vive em Lagoa e das intensas dinâmicas de actores sociais que se verificaram em Ribeirão, por um lado, e o facto de termos tido a oportunidade de ter estado anteriormente em Cruzinha durante a primeira missão que efectuamos ao terreno, por outro lado, após considerar os elementos da classificação das zonas agro-ecológicas, mas também obedecendo a critérios geográficos na sua relação com os aspectos socioculturais, a selecção das localidades a serem privilegiadas acabou por ser aleatória. Assim, de entre as zonas semi-áridas escolhemos a aldeia de Lagoa como podíamos ter escolhido Corda por exemplo. De entre as zonas sub-húmidas a escolha recaiu sobre a aldeia de Ribeirão, mas podíamos ter escolhido a localidade de Lajedo. Finalmente de entre as zonas áridas a escolha recaiu sobre a aldeia de Cruzinha, como podíamos ter escolhido 130. A classificação das zonas agro-ecológicas acaba por definir uma fronteira nítida em termos de padrões de vida das famílias nos respectivos meios. Em zonas semi-áridas como aquela onde se insere a localidade de Lagoa, o quotidiano das famílias é profundamente marcado pela mobilização de água para o consumo doméstico e para dar de beber aos animais. As actividades económicas se resumem, no essencial, à prática de agricultura de sequeiro e na criação de gado, predominantemente o gado caprino. Os problemas que as famílias de Lagoa enfrentam são muito parecidos com aqueles enfrentados pelas famílias que ocupam a zona do Planalto Leste designadamente as localidades que integram a ZAE semi-árida 131. Em Ribeirão, não havendo grandes problemas com a água para o consumo existe, no entanto, um acentuado problema em relação à disponibilidade de água para a rega. É

130 Ver em anexo a carta geográfica da ilha de Santo Antão indicando a localização das três localidades. 131 A área do Planalto Leste é abrangida por três ZAE: Húmida, Sub-húmida e Semi-árida (PADA-SA 2009-2012, p.21).

150 uma aldeia cuja principal actividade económica anda à volta da agricultura de sequeiro e de regadio, acompanhada naturalmente de criação de gado. Em Cruzinha, a vida da comunidade dá-se em torno da pesca, uma actividade de resto muito condicionada pelas difíceis condições que o mar se apresenta durante um certo período do ano, nomeadamente entre Outubro e Abril. Durante esse período, as famílias têm de encontrar uma alternativa de vida que se desencadeia em torno de criação de alguns tipos de animais, trabalhos públicos ou privados, actividades agrícolas, ou adopta outro tipo de estratégias sobre as quais falaremos mais adiante. Uma característica comum a todas as aldeias do meio rural cabo-verdiano é o acesso a serviços como saúde e educação e dificuldades em termos de vias de acesso. Contudo, o grau de dificuldades em aceder a esses serviços difere de lugar para lugar. Em muitos casos depende da sua localização em relação aos centros urbanos. Diante dessas evidências podemos dizer que, grosso modo encontra-se nas três aldeias escolhidas formas de (sobre) vivência que caracterizam as populações do meio rural da ilha de Santo Antão.

3. Enquadramento espacial e sociocultural das unidades de análise: Lagoa, Ribeirão e Cruzinha.

3.1 Lagoa

Como se pode ver na carta em anexo, Lagoa situa-se sensivelmente na parte central da ilha de Santo Antão, a cerca de 1.400 metros de altitude. Esta localidade abrange os concelhos do Porto Novo e da Ribeira Grande e a distância que a separa dos dois centros urbanos é estimada em cerca de 28 e 25 quilómetros respectivamente. A designação Lagoa pode estar associada ao facto dela se localizar numa vasta cratera de um vulcão, a partir da qual dá o início a maior parte dos vales da ilha. Segundo descreve Rocha (1990: 14), desta cratera partem os vales da Ribeira Grande, Ribeira do Duque, , João Afonso, Chã de Pedras, Ribeirão, Coruja, Ribeira do Despenhadeiro, e Caibros. Devido ao facto de se situar a uma elevada altitude, a localidade de Lagoa é frequentemente invadida por massas espessas de nevoeiro. Em determinadas épocas (entre os meses de Dezembro e Fevereiro), o ar é seco e muito frio. Durante esse período a temperatura atinge valores muito baixos razão pela qual ocorre a queda de

151 granizo, um fenómeno referenciado na localidade por snow, que se supõe ser a tradução para o inglês da palavra “neve”, o que aliás, não deixa de despertar alguma curiosidade. Tudo indica tratar-se de uma localidade, cujo processo de povoamento tenha sido iniciado em tempos não muito longínquos. Os dados recolhidos permitem-nos construir a hipótese baseada na ideia de que as aldeias que integram esta localidade terão começado a formar-se a partir dos meados do século XIX, quando essas terras, que se encontravam abandonadas, foram cedidas pelo governo da província a uma família abastada de Ribeira Grande – família Chantre, a pedido desta, em regime de aforamento. Consta da Portaria n.º 111 de 24 de Abril de 1883, publicada no B.O. n.º17 de 28 de Abril do mesmo ano a concessão de trinta hectares de terreno a Manuel António Dias Chantre e Manuel Joaquim Appolinário no sítio denominado Mattinho no Concelho de Paul de Santo Antão. A decisão em responder positivamente ao pedido da referida família poderá estar ligada à vontade do governo da província em implementar medidas para aumentar a produção de cereais na ilha e diminuir portanto a sua dependência em relação à metrópole, motivada provavelmente pelo facto de, durante o século XIX, como de resto vimos anteriormente, a ilha ter enfrentado várias secas, todas elas com reflexos profundos na sua estrutura social. Aliás convém recordar que durante esse período registaram-se crises em 1810, entre 1831 e 1833, entre 1850 e 1851, entre 1854 e 1857, em 1860, entre 1863 e 1866 (Carreira, 1984). Globalmente as saídas para crise passavam pela importação dos cereais da metrópole, daí que fazia todo sentido aumentar a produção. Pode-se ver ainda, que durante o último quarto do século XIX foram requeridos, em Santo Antão, vários aforamentos, sendo uns concedidos e outros nem por isso, como por exemplo o de José Luís de Melo, António Pedro Teixeira e Aurélio Martins que haviam pedido toda a costa norte da ilha 132. No entanto, o Boletim Oficial (B.O) n.º 33/887 dá conta de aforamentos de terrenos de Lagoa, Ribeira do ilhéu, Ribeirinha Larga, Curral Branco, Lombo de Pedra, entre outros. De igual modo, o B.O. n.º 11/888, refere ao aforamento de Tabuga, Matinho, Chã de Cebola, Mato Estreito, Camboesa, Galheteiro, Malhas Brancas, etc., e o B.O n.º 14/888 refere ao aforamento de Campo de Cão, Chãzinha Bonita, Covoada de Alecrim e Água das Patas.

132 O indeferimento deste pedido consta do Boletim Oficial (B.O.) n.º 29/885.

152 Nesta perspectiva, para que se possa explorar integralmente as terras que se encontravam na sua posse por aforamento, os “proprietários” terão recorrido ao contrato celebrado com os agricultores sem terra, baseado no regime de parceria designado meia. Provavelmente tratando-se das únicas parcelas de terra que estas famílias dispunham para trabalhar, elas terão decidido construir as suas casas, certamente com o consentimento do proprietário, e neste sentido fixarem a sua residência no próprio sítio onde trabalham e onde lhes parecia que podiam garantir o sustento. Geraldo justifica a sua ligação com a Lagoa desta maneira:

eu nasci aqui em Lagoa. O meu pai era de Chã de Pedra. Mas a minha mãe foi sempre de cá. O meu pai veio para cá para trabalhar as terras. Assim construiu um castelo, casou e manteve-se cá. O terreno que ele trabalhava tinha sido cedido por um proprietário.

Casos como estes, ou seja, de pessoas que nasceram em Lagoa mas cujos pais são originários de outras localidades, são muito frequentes. Muitos agricultores com mais de 60 anos de idade que ainda vivem nesta localidade dizem ser oriundos de localidades limítrofes, de onde vieram ainda crianças acompanhadas dos pais. O senhor Hugo é exemplo de um deles: tenho 72 anos. Vim para Lagoa quando tinha seis anos. O meu pai trouxe-me para cá porque ele trabalhava terras aqui. Acabei por cá ficar. Além do mais, os trabalhadores associavam a agricultura à criação de gado com particular incidência para os caprinos, como de resto era normal. Na altura, esta actividade representava poucos benefícios para quem trabalhasse as terras em regime de parceria. Sobre isso o senhor Maurício conta-nos que

antigamente você não tinha direito nem de criar bichos. Os bichos eram deles e você tinha que criar os animais deles. Eu trabalhei com a família Chantre e as coisas se passavam desta forma.

Perante a situação em que os animais pertenciam aos proprietários de terras, as poucas vantagens de os criar resumiam-se à possibilidade de os trabalhadores beneficiarem-se do leite. O trabalho de domesticar os animais dos proprietários era uma forma de os pagar um tributo pela cedência das terras.

153 Tendo como principal referência a zona de Esponjeiro que se situa na margem da estrada que liga Porto Novo a Ribeira Grande via Corda 133, a localidade de Lagoa compreende entre outros lugares, Borda de Agriões, Compainha134, Matinho, Lagoa e Borda de Espadaná. Do conjunto de espaços públicos de interesse social existentes na localidade destacam- se dois postos de venda associados á cooperativa local, uma escola de Ensino Básico Integrado (EBI), jardins infantis, uma capela, uma unidade sanitária de base, um centro comunitário, cisternas comunitárias e fontanários. Além destes podemos ainda destacar as unidades de produção de queijo, curais e aviários comunitários. De acordo com os dados do INE referentes ao recenseamento geral de população e habitação de 2010 esta localidade tinha 1478 pessoas distribuídas por cerca de 378 agregados familiares, 31% dos quais liderados por mulheres. Os efectivos demográficos na zona variam muito. A situação do ano agrícola é um factor fundamental desse condicionamento. Nos últimos anos, ou mais concretamente de 2008 a esta parte, devido às boas colheitas que se verificaram, o número de habitantes terá aumentado substancialmente, pois, conforme dizem as populações locais, normalmente quando ocorrem bons anos agrícolas as pessoas não têm a necessidade de deixar a localidade à procura de emprego em outros sítios. Aliás, segundo dizem, as que antes tinham saído regressaram com a queda das chuvas para trabalharem as suas terras. Em termos da organização da sociedade civil, refira-se que actuam nessa localidade duas ADC e uma cooperativa. São elas a Associação Luz Viva de Lagoa e Compainha (ALVCL), a Associação Recreativa Mãos Unidas de Compainha/Lagoinha (ARMUC) e a Cooperativa de Consumo de Lagoa e Compainha (LACOMP). A ALVCL foi criada em 1997 tendo sido oficializada em 2003. Conforme informações prestadas pelo seu presidente a ALVCL tem como domínios de intervenção:

133 Esta era a única via que ligava os dois centros urbanos antes da construção do troço que liga Janela a Porto Novo inaugurado em 2009. 134 O lugar que hoje se chama Compainha era antes denominado Asvareda. A designação Compainha resulta, segundo informações recolhidas nesta aldeia, do facto de, em 1943 ter sido fundada neste local, uma companhia de produção de óleo de rícino, um projecto concebido por Luís Romano, um conhecido poeta e novelista cabo-verdiano. O projecto foi implementado exactamente numa época em que houve uma crise em Santo Antão (crise de 1941/1943) devido às secas prolongadas, razão pela qual o salário que se pagava pelo trabalho prestado na companhia era convertido em produtos alimentares. Dizem os mais velhos que, por cada dia de trabalho prestado recebia-se um litro de milho.

154 todos aqueles circunscritos no conceito de desenvolvimento integrado e tem como principal propósito trabalhar no abastecimento de água, promover a habitação social, a conservação dos solos, etc.

O seu principal parceiro é, ainda segundo o presidente, a Associação dos Amigos de Lagoa de Roterdão, constituída pelos emigrantes na Holanda oriundos desta localidade que, por sua vez, tem uma grande parceria com uma ONG holandesa denominada PWS. São principais financiadores da Associação o Ministério de Agricultura através do ACDI-VOGA (Agriculture Cooperative Development International/Volunteers Overseas Cooperative Assistance), as Câmaras Municipais de Ribeira Grande e do Porto Novo, a Comissão Regional de Parceiros (CRP) de Santo Antão e a OADISA. ARMUC foi fundada em 21 de Janeiro de 2002 e a ideia da sua fundação derivou de uma necessidade muito concreta. Isto é, segundo o seu presidente, as pessoas das localidades acima mencionadas, a partir da experiência captada da Associação Luz Viva de Lagoa e Compainha (ALVLC) viram que uma associação é muito importante para o desenvolvimento de uma localidade. Tem como principais domínios de intervenção o abastecimento de água, a construção e reparação de habitações sociais, construção de curais, pocilgas, arretos, reflorestação, educação, etc. A cooperativa de Consumo de Lagoa e Compainha (LACOMP) foi criada em 1991 graças à iniciativa de um cooperante holandês que nessa altura trabalhava e residia em Santo Antão. A energia eléctrica é fornecida diariamente por uma micro central durante cerca cinco horas e beneficia quase a totalidade dos habitantes. Para terem acesso à energia as pessoas pagam uma taxa fixa de 500$00 mensais. A grande maioria das habitações tem ligação telefónica. No entanto, a cobertura da rede móvel é bastante deficiente. Aliás em relação a captação dos sinais de televisão as populações locais enfrentam o mesmo problema. Em contrapartida os sinais da rádio chegam em condições bastante aceitáveis. O transporte de e para a localidade é de certa forma deficiente e é geralmente assegurado por carrinhas. A agricultura, a criação de gado, a indústria doméstica de queijo e o emprego público são as principais actividades económicas na localidade e, consequentemente, as mais importantes formas de ocupação profissional da população.

155 A taxa de escolaridade é, globalmente, baixa como aliás se compreende, pois trata-se de uma aldeia com elevada incidência de pobreza e, além do mais, distante dos centros urbanos onde existem escolas do ensino secundário. Contudo, emerge nesta localidade, mais concretamente na aldeia de Lagoa, um grupo de jovens que frequentaram e outros ainda frequentam o ensino secundário ou mesmo o ensino superior que ostentam novos valores e símbolos e os põem em confronto com valores e símbolos tradicionais bem presentes na forma de vida dessas pessoas.

3.2 Ribeirão

A localidade de Ribeirão situa-se num pequeno vale que separa as cordilheiras de Chã de Pedras e de Caibros. Localiza-se a cerca de 12 quilómetros da cidade da Ribeira Grande e a cerca de 7 quilómetros de Coculi, sede da freguesia de Santo Crucifixo de que faz parte. Estima-se que se situa a cerca de 400 metros de altitude, razão pela qual é classificada como zona agro-ecológica sub-húmida. Ribeirão integra um conjunto de pequenas comunidades, sendo que as mais importantes são as de Campo de Cão e de Ribeirão (ver a carta em anexo). De entre os espaços públicos ali existentes destacam-se uma escola do Ensino Básico Integrado, um centro comunitário onde fica instalada a sede de associação de desenvolvimento comunitário local - Associação dos Amigos de Ribeirão/Campo de Cão (Ami-Ribeirão), uma pequena placa desportiva e uma capela que ostenta a designação de Nossa Senhora de Fátima. Segundo os dados do INE, em 2010, a população de Ribeirão rondava os 436 habitantes distribuídos por cerca de 87 agregados familiares. Cerca de 33% desta população têm menos de 15 anos e 57% situam-se entre os 15 e 64 anos. A taxa de escolaridade na localidade é muito baixa. A primeira e a única escola primária existente em Ribeirão foi construída em 1979. Antes, para frequentar o ensino primário as crianças tinham que se deslocar a Chã de Pedras ou Coculi. A escola secundária mais próxima situa-se em Coculi, a uma distância de 7 quilómetros percorrida a pé pela grande maioria dos alunos. A localidade é coberta por uma rede municipal de fornecimento da energia eléctrica durante 24 horas por dia e por uma rede construída localmente para abastecimento de

156 água aos domicílios. No entanto, carece de unidades de prestação dos serviços básicos de saúde. Em caso de emergência médica as pessoas terão também de recorrer a Coculi ou Ribeira Grande. Agricultura, criação de gado, os trabalhos públicos e remessas dos emigrantes são as principais estratégias de sobrevivência da população de Ribeirão. Mas, este é um assunto que vamos retomar mais adiante. Ribeirão conta apenas com uma única organização da sociedade civil. Isto é, uma associação comunitária de base, designada Associação dos Amigos para o Desenvolvimento de Ribeirão/Campo de Cão (Ami-Ribeirão), fundada em 12 de Julho de 1992. Nessa altura estabeleceu-se como objectivo central promover o desenvolvimento sustentado e integrado da comunidade de Ribeirão. Havia, segundo o seu Presidente, o propósito de fazer integrar na associação pessoas preocupadas com o desenvolvimento da comunidade:

as 66 pessoas deveriam ser as representantes das 450 habitantes da comunidade. A associação era a autoridade máxima da comunidade, pelo que ainda temos esse entendimento.

A Associação desenvolve acções de desenvolvimento da comunidade em vários domínios. O Plano de Actividades e Orçamento para o ano de 2009 propôs como principais linhas de actuação: a melhoria das condições de vida no seio dos grupos vulneráveis, através da implementação do emprego público; a reabilitação dos caminhos vicinais; a conservação de solo e água através da construção de diques e arretos; a manutenção da estrada que liga a localidade a Coculi e caminhos vicinais para a criação de emprego público; a abertura de furos com vista a aumentar as áreas de culturas irrigadas; a manutenção da rede de água domiciliária, promoção de actividades geradoras de rendimento através de apoio aos criadores de gado na aquisição de raças melhoradas; a modernização de agricultura, melhoramento de habitações sociais, construção de casas de banho a famílias carenciadas, construção de um centro de acolhimento de hóspedes; o apoio ao transporte escolar de jovens do ensino secundário; apoio aos alunos para aquisição de materiais escolares e apoio a cantina escolar. O Plano previu ainda actuar em matéria de formação profissional designadamente nas áreas de produção de animais e de informática.

157 Nesse Plano definiu-se como principais parceiros, a Câmara Municipal de Ribeira Grande, a Delegação do Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos (MADRRM), o Governo de Cabo Verde, as ONG, OADISA e Agências de Cooperação Internacional. Ribeirão é uma localidade onde se desenvolvem várias actividades de cariz desportivo e recreativo ao longo do ano, mas particularmente por ocasião das festividades do dia 13 de Maio. Trata-se de práticas que apareceram a partir da dinâmica associativa local e que continuam bem patentes nos jovens.

3.3 Cruzinha

Cruzinha é uma localidade do litoral que se situa a Norte da ilha de Santo Antão, como se pode ver na carta geográfica apresentada em anexo e integra a freguesia de São Pedro Apostolo com a sede na localidade de Chã de Igreja, que faz parte do Concelho de Ribeira Grande. Em tempos, nomeadamente em épocas de privação acentuada de produtos alimentares ou fome, esta localidade foi uma espécie de centro de assistência às pessoas do vale de Garça. É a partir dela que se distribuíam produtos alimentares à população do vale da Garça e de toda a freguesia de São Pedro Apóstolo, onde se incluem as localidades de Formiguinhas e de Corvo, que vinham nos botes provenientes da Ponta do Sol. Segundo dados do Recenseamento Geral da População e Habitação (RGPH) realizado em 2010 viviam Cruzinha comportava 288 habitantes distribuídos por cerca de 55 agregados familiares. Dista cerca de dois quilómetros e meio de Chã de Igreja, onde se encontram instalados alguns serviços públicos e privados essenciais, designadamente, o posto de saúde, a delegação municipal, correios, entre outros, mas dali a Ponta de Sol, a sede política do Concelho, percorre-se uma distância de cerca de 30 quilómetros 135. As habitações encontram-se dispostas de forma relativamente concentrada e são, de um modo geral, muito pequenas. Na parte baixa da aldeia localiza-se o Centro Comunitário que, além de funcionar como Centro de Pescadores, funciona como sede das duas associações comunitárias locais.

135 Antigamente, o percurso que ligava Cruzinha a Vila de Ponta do Sol (actualmente ostenta a categoria de cidade) fazia-se pela litoral e tendo em conta as inclinações de que se sujeitavam os transeuntes demorava-se cerca de 5 horas. Estima-se que este percurso tem entre 10 a 15 quilómetros.

158 O único empreendimento turístico existente na localidade consiste numa pequena residencial com 10 quartos e um bar-restaurante pertencente a um casal de emigrantes radicados na Alemanha. Estamos perante uma localidade que, além de ser considerada uma reserva natural, ou talvez por causa disso mesmo, faz parte da carta turística da ilha. Como pudemos constatar no local durante as nossas visitas de terreno trata-se de um lugar muito procurado pelos turistas que visitam a ilha. Hoje já vivem em Cruzinha, ainda que temporariamente, alguns estrangeiros, de nacionalidades francesa e alemã em habitações próprias. A energia eléctrica é fornecida durante 24 horas. Contudo, é, na perspectiva dos habitantes de Cruzinha, de fraca qualidade. Em matéria de abastecimento de água refira- se que uma parte substancial das habitações encontra-se ligada à rede pública de abastecimento de água. O transporte de passageiros de e para a localidade é, à semelhança de todas as outras localidades de Santo Antão assegurado por carrinhas conhecidas por Hiaces e Hilux. A partir de um determinado local, como Manta Velha, o percurso até Chã de Igreja e deste local até Cruzinha efectua-se através de uma ribeira muito profunda e relativamente estreita o que faz com que durante o período das chuvas, devido às cheias, a ribeira fique obviamente intransitável e toda a zona a jusante a Garça esteja, também, literalmente isolada do resto da ilha. Quando ocorre uma situação deste género, a única forma de ligação que resta à população das localidades envolventes é por via marítima, o que nem sempre é possível, pois depende das condições em que o mar se apresentar num dado momento. Deve-se, no entanto, sublinhar que, finalmente 136 encontram-se em curso as obras de construção do troço de estrada que ligará Garça à Cruzinha, cujo prazo de conclusão está previsto para 2012, o que colocará um ponto final nesta situação. Toda esta localidade é coberta pelas redes de telefones público e móvel. Os sinais da rádio e da televisão são por vezes muito deficientes. Quanto aos sinais de televisão, o problema é resolvido com recurso à televisão por cabo mas que ainda é bastante incipiente.

136 Dizemos “finalmente”, porque segundo as opiniões dos moradores de Cruzinha a construção deste troço de estrada vem alimentando o sonho dos moradores e dos sucessivos governos desde o período da independência nacional. Várias promessas foram feitas por variadíssimas personalidades políticas em relação a esta obra cuja primeira pedra foi lançada em 2009.

159 A pesca é a actividade económica dominante na aldeia. Ela é complementada com os trabalhos públicos que se criam na aldeia através das associações locais, mais concretamente a Associação Comunitário Nova Experiencia Marítima de Cruzinha (ACNEMC), com base em projectos financiados pelo governo e/ou pela Câmara Municipal. É uma aldeia com elevada taxa de desemprego ou de emprego precário. Como reflexo dessa situação é muito comum em Cruzinha encontrar-se pessoas em pequenos grupos, por vezes integrando família inteira, sentadas à sombra das árvores ou das casas a conversarem durante horas seguidas. Em termos da organização da sociedade civil, além da ACNEMC, existe ainda, como já vimos, a Associação das Mulheres Amigas para Desenvolvimento da Cruzinha (AMAPDC). A primeira foi fundada em 2003, mais concretamente em 20 de Junho de 2003, a partir de um grupo recreativo que havia sido criado em 1998. A ideia de transformar esse grupo numa associação terá partido de Jorge Santos, Presidente da Câmara Municipal de Ribeira Grande na altura, segundo informações que nos foram prestadas pelo Senhor António Santos, actual presidente desta associação. Neste momento a ACNEMC integra um número significativo de sócios. São ao todo 103, provenientes das localidades de Cruzinha, Chã de Igreja e Garça. Tem como principais domínios de intervenção o fomento e desenvolvimento da pesca, construção de caminhos vicinais, promoção de habitação social, apoio na construção de casas de banho, desenvolvimento do desporto, entre outros domínios de intervenção local. Elege como principal parceiro o Ministério de Infra-estruturas e Transportes que financia a maior parte dos seus projectos através da OADISA. A segunda, isto é, a AMAPDC foi fundada em Outubro de 2008 e tornou-se oficializada em 2009 e integra actualmente cerca de 50 membros, todos do sexo feminino e residentes em Cruzinha e arredores. O objectivo central da sua fundação é, segundo a Presidente, proporcionar a oportunidade às mulheres de participarem muito mais activamente na vida da sua comunidade. Para além disso, disse-nos a presidente

Hoje como sabe tudo depende de associativismo. Pensamos que se a mulher estiver associada já participa melhor, pode melhorar as suas condições de vida, devido a projectos que se desenvolve na comunidade. A mulher vive uma vida

160 muito turbulenta. A mulher é mãe, é pai, é chefe de família, etc. Mas também o associativismo é bom porque permite a que as pessoas estejam informadas.

Até ao momento esta associação não tinha ainda desenvolvido qualquer projecto na comunidade.

4. Modos de vida, estratégias de sobrevivência e mecanismos de reprodução das famílias do meio rural

Para a abordagem do assunto que reporta este ponto propomos, ainda que num sentido muito específico, definir o alcance semântico e teórico de algumas ideias chave, nomeadamente as relativas aos conceitos de modo de vida, estratégia de sobrevivência e reprodução social que servem como instrumentos heurísticos para a compreensão das dimensões das dinâmicas de actores sociais particularmente aquelas que decorrem especificamente da “pressão” que as famílias no meio rural imprimem no contexto das dinâmicas que integram o processo de desenvolvimento local. Nesta óptica, no que se refere ao modos de vida salienta-se que num interessante artigo de Isabel Guerra (1993:59) com um sugestivo título “Modos de Vida: novos percursos e novos conceitos”, este conceito encerra desde logo um conjunto de dimensões que se inscrevem em vários domínios da ciência social, designadamente, sociologia, antropologia, psicologia social, ou mesmo da demografia e geografia humana. Por esta razão trata-se de um conceito que assume múltiplas dimensões de análise e, consequentemente, de difícil operacionalização, quanto mais não seja porque a sua análise requer níveis analíticos bastante diferenciados entre si, como “o sistema e os actores, a história e o quotidiano e o objectivo e subjectivo” além de outras três dimensões de análise, nomeadamente “práticas, estruturas e representações”, pouco articuladas entre si (Guerra, 1993: 59). Aliás, esta é a razão pela qual Juan (1991) considera modos de vida como uma noção trivial que banaliza todo o pensamento, mesmo o mais rigoroso, já que não exige nenhuma clarificação (Juan apud Guerra, 1993: 59). E isto é um dos aportes de que Isabel Guerra utiliza no artigo em causa para definir o conceito de modos de vida como uma noção sem conteúdo preciso (Guerra, 1993). A ideia que nos parece importante reter é que o propósito fundamental que Isabel Guerra preconiza nesse artigo é, no fundo, o de discutir novas dimensões de análise de

161 modos de vida, em que fazem parte, para além dos índices de análise acima referenciados, variáveis como imaginários sociais, racionalidades, emoções, identidades e projectos. Neste sentido, e tendo em conta os propósitos deste trabalho tomamos por modos de vida um conjunto de acções que decorrem simultaneamente das condições naturais, históricas e socialmente dadas e das condições de interacção social. Ou seja, entendemo-los como resultado da interpenetração das condições impostas pela estrutura e pela racionalidade que impulsionam a acção, uma perspectiva baseada na ideia de que não há actor fora do sistema e que nem há sistema se não a partir do actor (Crozier e Friedberg, 1977: 286). A análise que vamos proceder aos modos de vida vai centrar-se especificamente nas práticas da vida quotidiana focalizando os aspectos ligados às actividades económicas e relações sociais que garantem formas directas ou indirectas de obtenção de rendimentos, provenientes de um conjunto de estratégias ou lógicas suportadas por um mecanismo próprio de reprodução social. A segunda ideia chave eleita para este capítulo refere-se ao conceito de estratégia de sobrevivência. Estamos perante um conceito, cujos sentidos a ela inerentes têm sido numerosos, quanto mais não seja porque integra domínios bastante diferenciados, sendo os mais comuns o militar e o organizacional. Para este caso, a perspectiva sociológica é aquela que naturalmente nos interessa e podíamos aqui evocar ideias de autores como Olivier de Sardan, Michel Crozier, Erhard Friedberg, Alain Touraine, Peter Berger, Thomas Luckmann, Pierre Bourdieu, entre muitos outros, para construir a base conceptual sobre “estratégias” de sobrevivência. Contudo, vamos centrar apenas em Michel Crozier e Erhard Friedberg ou mais concretamente nas abordagens expressas na obra intitulada L’Acteur et le Système (Crozier e Friedberg, 1977). A abordagem de Michel Crozier e Erhard Friedberg (1977: 55-56) sobre o conceito de estratégia baseou-se em 5 aspectos centrais que podemos resumir nos seguintes: (i) o actor apenas raramente possui objectivos claros e projectos coerentes, na medida em que eles são diversos, mais ou menos ambíguos, explícitos ou contraditórios; (ii) a acção do actor, ainda que limitada, ela não é nunca directamente determinada, (iii) o comportamento do actor tem sempre um sentido, isto é, dotado de uma racionalidade quer em relação aos objectivos quer em relação ao comportamento dos outros; (iv) o

162 comportamento do actor é dotado de aspectos ofensivos e defensivos e (v) não existe comportamento que não seja racional. Ora, à vista do exposto entendemos aqui por estratégias de sobrevivência as práticas ou decisões adoptadas pelos actores (no caso concreto as famílias do meio rural), individual ou colectivamente, no sentido em que elas representam, de entre outras possibilidades, aquelas que garantem melhores vantagens em relação a um determinado fim traçado, no quadro da sua interacção com o meio envolvente, sendo este social, espacial ou natural. Assim, analisaremos as estratégias de sobrevivência das famílias do meio rural numa dupla perspectiva: (i) maximização de ganhos e (ii) minimização de riscos. A terceira ideia chave refere-se ao conceito de reprodução social, entendido aqui como um conjunto de acções, percepções e representações das famílias que resultam em manutenção ou transformação das estruturas ou das suas condições de existência engendradas a partir do habitus entendido como

sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objectivamente adaptadas ao seu objectivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcança-los, objectivamente “reguladas e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, colectivamente orquestradas sem ser o produto da acção organizadora de um maestro (Bourdieu, 2009: 87),

Isto é, a partir de uma relação estreita e aprofundada entre o sujeito e a sociedade onde se integram a realidade individual e realidade exterior, proposta pelo próprio Bourdieu.

4.1 Estratégias proeminentes de sobrevivência das famílias do meio rural

4.1.1 Agricultura

A agricultura é a principal actividade económica das famílias de Lagoa e de Ribeirão e desta forma pode-se dizer que ela está no centro das estratégias de sobrevivência destas famílias. Centrando-se por ora em Lagoa, recordemos então que esta é uma localidade que se situa na faixa do Planalto Leste, ocupando uma vasta área onde se integram algumas das zonas mais áridas da ilha de Santo Antão. Assim, um dos principais problemas que a população enfrenta resulta da escassez e irregularidade das chuvas.

163 As terras de Lagoa são consideradas pelos seus habitantes como das mais férteis de Santo Antão, devido a sua elevada capacidade produtiva. A actividade agrícola praticada caracteriza-se essencialmente pelo cultivo de milho e de algumas variedades de feijões, mais especificamente feijão pedra (Dolichos lablab), feijão bongolon (Vigna unguiculata) feijão congo (Cajanus cajan) e feijão sapatinha (Phaseolus vulgaris) 137. Paralelamente, cultivam-se algumas espécies de cucurbitáceas designadamente abóbora, melão, melancias, entre outras. Nos anos em que chove com regularidade e em que não ocorre nenhuma situação anómala138 “as terras produzem comida que se farta”. O cultivo de batata comum (batata inglesa para os agricultores) é extremamente importante na obtenção de renda das famílias, pois os terrenos são bastante propícios a esse cultivo. Durante o período em que decorreu o nosso trabalho de campo a batata comum era colocada no mercado a 60$00 o quilo e, em certos casos, a 70$00, conforme a quantidade da produção e, consequentemente, se a oferta for muita ou pouca. De acordo com várias opiniões recolhidas, no ano de 2009 a produção de batata comum foi muito boa, ao contrário do que se verificou em 2010. Num bom ano agrícola, como aquele que se verificou em 2009, uma família chega a vender mais de 150.000$00 de batata. A agricultura, tanto em Lagoa como em Ribeirão ou em qualquer outra parte da ilha de Santo Antão, ocorre numa estrutura agrária, cujas características foram já aventadas, isto é, numa situação em que as terras pertencem a pessoas que normalmente vivem fora de aldeia, um assunto que começamos a introduzir ainda no primeiro capítulo aquando da abordagem da caracterização histórica e socioeconómica da ilha. Como resultado desta estrutura agrária, refira-se que em Lagoa a maior parte das terras é propriedade de um pequeno número de indivíduos que vivem em outras zonas da ilha, designadamente nos seus centros urbanos, Ribeira Grande e Porto Novo. Estimamos que mais de metade das terras de Lagoa constitui posse de duas famílias originárias da Ribeira Grande, vulgarmente designada por Povoação. Da família Chantre, fazem ainda parte, Malaquias Leite Chantre e Gregório Pedro Chantre, mais conhecido por Dr. Chantre, que por sinal eram primos, duas figuras bem presentes na memória das famílias desta localidade. Suzete Chantre, esposa do malogrado Dr. Chantre, vive em

137 Apropriamos dos termos em Latim relativos estes tipos de feijões no Medes, Adriano (2009). Análise Comparativa da Rentabilidade de Algumas Culturas de Regadio na ilha de Santiago em Cabo Verde, Instituto Superior de Agronomia, Universidade Técnica de Lisboa, Dissertação de Mestrado (http://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/1070/1/TMestreadriano). 138 Entenda-se por situações anómalas as condições provocadas pela irregularidade das chuvas surgimento de pragas e no caso específico da localidade de Lagoa a ocorrência de queda de granizo.

164 São Vicente e delegou poderes à sobrinha Maria José Leite Monteiro para administrar os terrenos de Lagoa. Assim, a forma de exploração das terras dominante em toda a localidade é a de exploração indirecta, expressa no regime de parceria em que o modelo predominante é o designado três/um que, diga-se de passagem, surgiu por oposição ao modelo meia prevalecente durante todo o período que antecede a implementação da reforma agrária em Cabo Verde, isto é 1982, como de resto referimos anteriormente. O modelo meia, como o próprio sentido da palavra sugere, significa que após a produção os agricultores que trabalhavam as propriedades de um terceiro apropriavam- se de metade dos produtos e a outra metade era entregue ao proprietário. Já o modelo três/um que, à partida pode sugerir que um contratante tem direito a três partes e outro a apenas uma, é no fundo enganador, pois o número três aqui refere-se ao padrão da divisão. Qualquer produto extraído da exploração é dividido em três partes sendo uma destinada ao proprietário e duas destinadas ao agricultor. Recorda-se que o propósito fundamental que sustentou a ideia de se implementar a reforma agrária no país em 1982 era o de promover o “desenvolvimento da produção agrícola” visto como “condição indispensável para a construção de uma sociedade sem exploração” (Silva, (S/D: 2), pela força do aumento do nível de rendimento dos camponeses (Silva, (S/D: 14). Mas o modelo actual do regime de parceria, designado meia, conforme pudemos apurar resulta também do facto de o proprietário nem sempre comparticipar nas despesas da exploração da terra. Veja-se, por exemplo, que o trabalho de agricultura, designadamente a de sequeiro, implica uma série de operações: desde logo a preparação do terreno que implica, de entre outras práticas a limpeza, a reconstrução dos socalcos. Depois a sementeira, monda e a remonda etc. Os agricultores, muitas vezes, recorrem ao trabalho assalariado suportando as respectivas despesas. Quando o proprietário comparticipa nas despesas da produção, a divisão faz-se equitativamente ou seja metade por metade, uma situação que raramente se verifica, até porque o trabalho assalariado na agricultura em Lagoa não é muito frequente. Predomina o sistema da utilização da mão-de-obra familiar. O problema da estrutura agrária tem um forte reflexo nas estratégias de sobrevivência das populações do meio rural como referimos anteriormente. Esta situação faz emergir

165 uma vasta panóplia de aspectos que resultam da relação de produção que se estabelece na localidade. Nota-se, por exemplo, que em certos casos os agricultores se quer conhecem os proprietários, pois esses costumam designar um agricultor da sua confiança para receber a parte da produção a que têm direito no quadro do uso das suas terras e, por vezes, esses delegados nem se quer aparecem. Quando esta situação se verifica, é evidente que a operação da divisão não ocorre. Contudo, os agricultores mais prudentes reservam sempre as partes que são destinadas aos senhorios para, quando estes ou pessoas por eles designadas aparecerem, estarem então em condições de honrar os compromissos assumidos. Em Lagoa, muitas vezes esse absentismo dos proprietários ou de quem os representa é apenas aparente, ou seja observa-se apenas nos períodos em que não chove ou que chove muito pouco e, consequentemente, a produção agrícola é insignificante. Durante os últimos anos, como em 2008 e 2009 ou mesmo 2010 em que os resultados da produção foram relativamente bons, os proprietários apareceram para reclamarem as partes a que tinham direito. Mas também é preciso realçar que nem tudo o que a terra produz é rigorosamente repartido. A criação de gado é feita na exploração agrícola e os produtos extraídos da exploração da terra não se restringem àqueles que se sujeitam a uma actividade agrícola específica que integra o conceito de colheita como milho, feijões ou batata. Quando falamos de colheita nestes termos referimo-nos especificamente a uma actividade intensiva de recolha de produtos cultivados regularmente, em grande quantidade e que oferecem maiores rendimentos comparativamente aos demais. Numa exploração agrícola cultivam-se alguns outros produtos, em menor quantidade e nem sempre de forma sistemática, cuja colheita se faz ao longo do ano sendo cada um numa época específica. São exemplos desses produtos, melão, melancia, abóbora, pepino e ainda alguns tipos de frutas. Não obstante tratar-se de produtos cultivados em escala muito reduzida, alguns agricultores são peremptórios em admitir que geram rendimentos importantes. A propósito da relação entre os camponeses e proprietários de terra é de enfatizar que muitos agricultores ainda recordam a situação de exploração ou mesmo de escravidão a que foram sujeitos. O senhor Maurício diz que na altura o agricultor não tinha se quer direito à criação de animais nas terras que cultivavam. Os bichos eram deles e você era

166 obrigado a criar os animais deles. Trabalhei nesse regime com a família Chantre aqui em Lagoa. A colheita era marcada com antecedência após a combinação com o proprietário ou alguém que o representava, para que, caso assim o desejasse, pudesse presenciar. No fim, fazia-se a divisão ao meio. Conforme nos contou o Sr. Maurício, se você refilasse ainda pagava dízimo. Após a divisão um agricultor fica com o sentimento de revolta. Era uma desgraça. Mas não havia outro jeito. O dízimo aqui deve ser entendido como uma espécie de imposto adicional que os proprietários aplicavam aos camponeses que exploravam as suas terras em regime de parceria ou arrendamento correspondente a 10% da produção agrícola anual mediante um acordo previamente estabelecido. Tal imposto incidia sobretudo na produção de milho e feijões. A modalidade do seu pagamento reflectia alguns dos muitos abusos e arbitrariedades que definiam as relações entre os famigerados morgados de um lado e os infortunados meeiros e rendeiros de outro, pois estes eram obrigados, em certos casos, levar o dízimo à casa dos seus senhores. Contudo, a recolha dos dízimos era também feita através de empregados desses senhores ou até pelos mesmos. O dízimo representa no fundo, um de entre muitos direitos senhoriais e nesse sentido uma importante causa da estagnação do desenvolvimento do meio rural cabo-verdiano. De salientar que actualmente vários agricultores em Ribeirão, como em toda a ilha de Santo Antão exploram uma parcela de terra de que são proprietários, uma condição em relação a qual se orgulham muito, como de resto demonstram as palavras do senhor Mateus:

Eu sou agricultor. Mas é quando a chuva der. Porque tenho muitos filhos e não podia ficar à espera só de agricultura. Quando a chuva cai tenho uma ponta de terreno que com a ajuda de deus me dá muita coisa. Esse pedaço de terreno é meu. Comprei-o. Antes de o comprar eu trabalhava-o. Mas antes era o meu pai que o trabalhava, depois a minha mãe, depois uma irmãzinha depois comprei-o. Foi com muita dificuldade mas mesmo assim consegui. Esse terreno tem uns duzentos metros quadrados.

Mas muito provavelmente a área do terreno a que se referiu é bem maior. Várias pessoas recordam a tragédia da fome de 1947 um pouco por toda a ilha. Os agricultores que viveram esse tempo dizem que muitos trocavam as suas terras por um “binde de cuscuz”, que as terras no acto de compra e venda eram delimitadas pelo

167 comprador que atirava pedras conforme tinha forças e onde a pedra caísse ali era a delimitação da terra que comprava. Sobre o efeito desta crise nas mudanças da distribuição da propriedade Semedo e Turano (1997:53) observam que, as terras mudavam de dono no fim de cada período de seca. Os pequenos proprietários vendiam as suas parcelas para conseguirem meios de escapar à fome ou para emigrarem. As pessoas guardam ainda imagens de pessoas que comiam carne de burros, de pessoas que protegiam os seus animais dos ataques dos famintos amarrando-os a si mesmas. Algumas delas confessam ter comido ratos, lagartos e outros bichos, outras recordam e contam sobre um tal navio denominado DJONY que vinha dos Estados Unidos de América carregado de milho que encalhou na Praia Formosa e que salvou muita gente de ter morrido à fome, pois as pessoas apropriaram-se desse milho, parte do qual derramado no fundo do mar. A reprodução dos factos que ocorreram durante a crise que assolou a ilha entre 1947 e 1948 conserva ainda traços de uma certa angústia e terror e tem sido transferida de geração em geração. Em Lagoa nota-se que a geração mais nova também conhece histórias sobre a fome de 1947 que lhes foram contadas pelos pais ou avós. As imagens que decorrem desta crise encontram-se profundamente enraizadas nos esquemas mentais dessas famílias, razão pela qual marcam uma forte presença nas estratégias da sua sobrevivência. É nesta perspectiva que, por exemplo, as pessoas não vendem toda a produção de milho e feijão do ano anterior, enquanto não houver a garantia da colheita do ano em curso. Atitudes sacralizadas de fazer reservas de pasto que possa durar o maior tempo possível, ter sempre uma reserva monetária à medida do possível, racionalizar os gastos com a alimentação, ocorrem motivadas pelo eterno receio da ocorrência de um eventual período de seca. Neste sentido, a susceptibilidade de ocorrência de períodos de seca que é resultado das condições climáticas que caracterizam o país traduz-se numa condição objectiva de existência dos camponeses, da qual resulta, como observa Chayanov (1974) um conjunto de estratégias orientadas para garantir a segurança alimentar do agregado familiar, ou seja, os camponeses nestas circunstâncias, conforme observa Wolf (1976) adoptam a estratégia de garantir o equilíbrio entre as suas necessidades e os factores que possam obstaculizar a satisfação das mesmas e a partir da qual se gera a segurança alimentar.

168 A relação entre a fome de 1947 e a estrutura agrária em Santo Antão encontra-se também bem patente na forma como as terras se encontram divididas em Ribeirão. P-J. Laurent e C. Furtado (2009) consideram que cerca de 90% dos agricultores nesta localidade não são proprietários das terras que trabalham e associam esta situação precisamente a este fenómeno. E este é o contexto fundamental em que os modos de vida das famílias de Ribeirão se desencadeiam. As famílias desta localidade, algumas delas, dedicam-se simultaneamente à agricultura de sequeiro e de regadio. Contudo, uma vez que a água extraída do furo não é em quantidade suficiente para abranger toda a área cultivável, a maior parte efectivamente se dedica apenas à agricultura de sequeiro em que, à semelhança de outras zonas em Santo Antão ou mesmo de Cabo Verde, cultiva milho, feijões, diferentes tipos de cucurbitáceas, como de resto vimos em relação à localidade de Lagoa. A profissão do agricultor, designadamente o que opera apenas em terrenos de sequeiro, está necessariamente associada à queda das chuvas, à frequência e à regularidade com que ela se verifica. Além do mais, refira-se também que a estratégia de sobrevivência das pessoas em Ribeirão passa, em certa medida, por minimizar o valor da terra quando explorada em regime de parceria:

Trabalho apenas aquela minha propriedade porque hoje em dia trabalhar a propriedade alheia é muito complicado. Primeiro porque os trabalhadores levam muito dinheiro por um dia de trabalho e às vezes não dá nada. Assim você corre o risco de ficar só com prejuízo. Um trabalhador leva 600 a 700 escudos. Ainda você tem que oferecer-lhes grogue e se você não der comida eles dizem que trabalham uma banda só. Isto é, que quando forem duas horas da tarde vão-se embora.

A ideia de não querer trabalhar as terras em parceria parece resultar das novas alternativas como fontes de rendimento que surgem na localidade:

Eu não trabalho terras de gente. Não há vantagens nisso. As pessoas agora têm outras alternativas de vida. Você tira uma carta de condução, trabalha na construção civil, em fim faz qualquer outra coisa. Trabalhar a meia não compensa.

Isto é, a vida não se ganha apenas na agricultura. Mas convém dizer que isto não atenua nem um pouco a importância da terra, muito presente, aliás, nos discursos dos moradores, sobretudo daqueles que possuem uma parcela de que são proprietários.

169 Quando as pessoas falam que possuem uma parcela de terra que é propriedade sua, fazem-no com muito orgulho. Parece uma espécie de ostentação. Isso pode querer demonstrar claramente o valor que se atribui às terras. Possuir terra é um grande mecanismo de afirmação social. É neste sentido que o senhor Nicolas diz que antigamente as pessoas viviam muito melhor que agora porque quase todos tinham uma pequena parcela de terra que trabalhavam.

Depois todas essas terras passaram para as mãos de gentes de fora. Os agricultores venderam-nas porque passavam por grandes dificuldades na criação dos filhos e além do mais para não passarem fome. As pessoas que mais compraram essas terras eram Nho Júlio Neves, Antoninho Branco, etc. Mas depois esses proprietários voltaram a vender esses terrenos de novo. Venderam-nos porque eram gentes ricas e não precisavam deles para viverem. Foi assim que muitos camponeses voltaram a possuir umas pequenas parcelas.

Além de agricultura de sequeiro, em Ribeirão pratica-se a agricultura de regadio como anteriormente referido. Antes de mais parece-nos necessário patentear que a agricultura de regadio em Ribeirão não é recente. A história da aldeia é contada muitas vezes a partir da existência de uma pequena área onde se praticava este tipo de agricultura, com base no sistema de rega por alagamento139. Devemos no entanto acautelar que eram muito poucas as famílias que a praticavam. Este é um assunto que retomaremos mais adiante. Actualmente a agricultura de regadio é feita através do sistema de micro-irrigação, vulgarmente conhecido por rega gota-a-gota. A adopção deste sistema de rega em Cabo Verde começa a ganhar novos contornos poucos anos após a independência nacional. A empresa agrícola Justino Lopes em Santa Cruz, ilha de Santiago representa um exemplo claro disso. Aliás, segundo o documento produzido pelo Ministério de Agricultura de Cabo Verde e pela FAO intitulado Plano Director de Irrigação, em 1982 cerca de 8 hectares de terrenos desta empresa agrícola contavam com a aplicação da tecnologia de micro-irrigação. Nessa mesma altura foi desenvolvido um projecto semelhante designado “Tarrafal Water Resources” concebido precisamente para a realização de experiências nesse domínio140.

139 Sistema de rega através de canais de água, construídos sob a forma de levadas de terra batida ou em cimento, ou através de tubos que ligam um poço ou um depósito à terra irrigada. 140 MA/FAO (2001) Plano Director de Irrigação, Relatório Principal, Praia, MAA.

170 No entanto, consta que esta tecnologia de rega só começou a despertar interesse no seio dos agricultores a partir de 1995 com a execução de vários projectos orientados para o incremento de práticas agrícolas com base nesta tecnologia de rega, financiados pela FAO e pela cooperação americana (USAID) que contou com a parceria do Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento Agrário, em que se atribuía gratuitamente os equipamentos de rega. Posteriormente, a aquisição desses equipamentos contou com a subvenção do estado em cerca de 75% do valor que foi baixando sistematicamente até deixar de existir 141. Na sequência das políticas de incremento de aplicação desta tecnologia de irrigação, segundo o documento em análise, a cooperação holandesa criou uma linha de crédito que rondou os 26 mil contos para os agricultores em 1998 com uma taxa de juro de 8%. A grande maioria de agricultores não quis o crédito, uma atitude cuja explicação pode ser encontrada a partir da análise das condições socioculturais de existência da população do meio rural cabo-verdiano, um assunto que retomaremos mais à frente. De acordo com o Recenseamento Geral da agricultura realizado em 2004 as parcelas agrícolas onde se pratica o sistema de micro-irrigação representavam cerca de 8% do total das parcelas agrícolas nacionais que, de resto, representavam cerca de 10 % da área irrigada em todo o país. Segundo o mesmo documento este sistema de rega cobre 11% da área irrigada em Santiago e 2% em Santo Antão. Nas ilhas como Sal e Fogo em que a percentagem de parcelas agrícolas irrigadas é muito baixa, a utilização do sistema de micro-irrigação atinge 70 e 54% respectivamente 142. Na ilha de Santo Antão o concelho do Porto Novo é, em termos relativos, aquele que conta com maior implantação do sistema de micro-irrigação (3,6%) e Paul é onde esta tecnologia de rega tem menos expressão (1,1%). Ribeirão é uma das primeiras localidades da ilha de Santo Antão que recebeu a experiência do sistema de micro-irrigação 143 . Isso aconteceu em 1995 após uma dinâmica da organização da sociedade civil local que resultou na construção de um furo de captação de águas subterrâneas, uma dinâmica de que daremos conta mais ao pormenor no capítulo seguinte.

141 MA/FAO (2001) Plano Director de Irrigação, Relatório Principal, Praia, MAA. 142 Ministério do Ambiente e Agricultura (2004). Recenseamento Geral da agricultura. Dados Gerais, Cabo Verde; Praia, Direcção Geral de Planeamento, Orçamento e Gestão e Direcção de Estatística e Gestão de Informação. 143 A primeira experiência com o sistema de micro-irrigação em Santo Antão terá sido aplicada pelo Senhor Jerónimo um agricultor da localidade de Afonso Martinho.

171 Segundo dados recolhidos na Delegação do Ministério da Agricultura na Ribeira Grande, Santo Antão contava, em 2010, com cerca de 725.172 metros quadrados de terrenos irrigados através do sistema de micro-irrigação sendo 305.736 m2 no concelho do Porto Novo, 326.984 m2 no concelho da Ribeira Grande e 92.452 m2 no concelho do Paul. Com base nesses dados Ribeirão, com 70.506 m2 de terrenos irrigados através do sistema de micro-irrigação, é, a seguir à no concelho do Porto Novo que conta com 110.710 m2, a localidade com maior cobertura como esse sistema de rega em toda a ilha. Conforme observaram Laurent e Furtado (2009), o processo de transformação da agricultura em Ribeirão contou com uma prestimosa ajuda da emigração. É verdade que alguns agricultores recorreram ao crédito mas muitos mais recorreram à ajuda dos familiares radicados no estrangeiro. Esta última terá sido a via privilegiada das famílias. O crédito demorou muito tempo para desempenhar um papel importante nas microeconomias nacionais, sobretudo no meio rural e isto parece dever-se a vários factores. Um deles tem a ver com o facto de as condições formais exigidas excluíam à partida a larga maioria dos possíveis interessados. Um outro factor está ligado à cultura das populações do meio rural. Conforme pudemos constatar no terreno, parece haver uma fraca propensão das populações destas localidades ao investimento, um fenómeno que parece ter fundamento por um lado nos princípios religiosos que integram o seu quotidiano e por outro numa estratégia de não enfrentar os riscos. Mas também convém referir que o preço do dinheiro em Cabo Verde é elevadíssimo comparado com outros países 144 e o acesso ao crédito continua a ser complicado para a grande maioria dos cabo-verdianos. Dos vários produtos que se cultiva na agricultura de regadio em Ribeirão destacam-se as hortícolas, como o tomate, pimentão, couve, repolho, cebola, e frutas designadamente banana, papaia, manga, batata, mandioca, cana-de-açúcar. Vê-se também o alface, o milho, a fruta-pão, etc. Olavo Veríssimo, na altura presidente da Ami-Ribeirão havia introduzido na comunidade uma medida voltada para a proibição da cultura de cana-de-açúcar. A associação desencadeou uma campanha de sensibilização dos agricultores da comunidade contra a plantação de cana-de-açúcar, alegando duas razões fundamentais.

144 Vide Martins, Manuel M. F. e tal (2008). Avaliação do Acordo de Cooperação Cambial Cabo Verde- Portugal, Porto, CEMPRE (http://www.gpeari.min-financas.pt/investigacao/publicacoes).

172 Primeiro, porque as hortícolas são muito mais rentáveis, na medida em que consomem muito menos água durante o ciclo produtivo que é muito inferior e, consequentemente, comporta um menor custo de produção; segundo, a indústria de aguardente, associada ao cultivo da cana-de-açúcar, está ligada à degradação da saúde pública. Importa sublinhar que, apesar de tudo, a agricultura de regadio em Ribeirão está sujeita a um enorme risco, decorrente de conflitos gerados entre os actores sociais locais por causa da gestão da água de furo, assunto de que vamos tratar no capítulo V deste trabalho. A agricultura de regadio que se pratica em Ribeirão ocorre em explorações agrícolas de tipo familiar, com áreas bastante reduzidas e voltadas basicamente para o consumo familiar. Contudo, algumas explorações agrícolas desenvolvem actividades agrícolas voltadas para o mercado. A grande maioria dos agricultores, que pratica agricultura de regadio, continua a apostar no fabrico de aguardente como melhor saída para capitalizar os investimentos, apesar de, nos últimos anos, essa indústria ter suscitado alguma controvérsia na sociedade santantonense, tendo como pano de fundo a questão ligada à saúde pública. É preciso reconhecer que a indústria de aguardente e de outros derivados da cana-de-açúcar como o mel e ponche 145 tem elevada importância na estrutura económica da ilha e, de igual modo, faz parte integrante do sistema de estratégias de sobrevivência das famílias do meio rural santantonense, particularmente as que vivem nas zonas em que se pratica a agricultura de regadio. Segundo dados de Recenseamento Geral de Agricultura realizada em 2004, cerca de 80% da área irrigada em Santo Antão é ocupada com a plantação da cana-de-açúcar e produz-se mais 1.200.000 litros de aguardente por ano, sendo uma boa parte da produção exportada para países de forte presença de cabo-verdianos. Para além disso, o grogue é um elemento integrante da cosmologia social e cultural das famílias santantonenses. Tem-se desenvolvido um idealismo secular em torno do grogue de Santo Antão quanto à sua qualidade e, neste sentido, tem havido várias iniciativas visando promover e defender a qualidade do grogue de Santo Antão através de fiscalização da sua produção, evitando que os produtores utilizem açúcar, desvirtuando a sua qualidade. Foi criada recentemente um programa designado VAGROG e antes

145 Um tipo de licor produzido com base em derivados da cana-de-açúcar.

173 tinha sido criada uma Confraria de Grogue que integram figuras importantes da política cabo-verdiana, tais como antigos Presidentes da República de Cabo Verde e os Presidentes das Câmaras Municipais dos três concelhos da ilha, etc. Da produção da cana-de-açúcar, a indústria dos seus derivados que ainda é desenvolvida em moldes tradicionais exige muita mão-de-obra. Mas, a fase que consome maior mão- de-obra é a de corte de cana. Em Ribeirão, esta é uma actividade em que muitas famílias aproveitam para ganhar dias de trabalho. Mas, sobre isso vamos tratar num outro ponto deste capítulo. Em Cruzinha a agricultura entra nas estratégias de sobrevivência das famílias de uma forma muito menos expressiva que nas outras duas unidades de análise. No entanto, a poucos quilómetros da aldeia situa-se um vale onde se pratica agricultura de sequeiro e de regadio de que também já demos conta e onde existe uma aldeia com cerca de 39 pessoas distribuídas em 9 agregados, denominada Curral de Mocho. A base de sobrevivência das pessoas que vivem nesse lugar reside na prática de agricultura e criação de gado. Cultiva-se de tudo um pouco quer na parte de agricultura de sequeiro quer na agricultura de regadio que, tal como em Ribeirão, é praticada com recurso ao sistema de micro-irrigação. Mas, há pessoas que cultivam pequenas parcelas de terra em parceria com os proprietários em zonas mais distantes, designadamente Formiguinhas. Existem muitas famílias em Cruzinha que tiram dias de trabalho na área de agricultura como actividade complementar à actividade principal que é a pesca. Refira-se que, em Cabo Verde, quando se fala de agricultura, seja ela de sequeiro seja ela de regadio, está-se a falar de uma agricultura praticada em moldes bastante tradicionais. Mas, mais do que isso, trata-se de uma agricultura do tipo familiar que se desenvolve com base essencialmente na mão-de-obra familiar. Basta ver que, segundo o recenseamento geral de agricultura de 2004, este tipo de mão-de-obra cobre cerca de 95% do total das explorações agrícolas de sequeiro e 91% do total das explorações de regadio. Mas, além da mão-de-obra familiar, a agricultura recorre a outras modalidades de mão- de-obra como o Djunta mon e o Djuda, assalariamento permanente e assalariamento temporário. Se, por um lado, a mão-de-obra familiar tem praticamente a mesma importância para as actividades agrícolas em explorações agrícolas de sequeiro e de regadio já as outras modalidades têm importância diferenciada para as actividades de cada tipo de exploração, devido ao tipo de relação que cada um tem com o mercado.

174

Quadro n.º 5 - Relação entre tipos de mão-de-obra e tipos de exploração agrícola

Agricultura de sequeiro Agricultura de regadio Mão-de-obra familiar 95 91 Djunta-mon 52 15 Djuda 6 3,4 Assalariado permanente 1,6 10 Assalariado temporário 40 51 Fonte: Adaptado RGA, 2004

Os dados do quadro indicam que as modalidades de mão-de-obra Dunta mon e Djuda e que, de resto, são resultantes de um manifesto espírito de solidariedade que ainda caracteriza as relações sociais no meio rural cabo-verdiano, são mais utilizadas pelas actividades agrícolas que operam nas explorações agrícolas de sequeiro. Ao contrário, as modalidades do assalariamento seja permanente seja temporário têm muito mais importância nas actividades agrícolas que operam nas explorações agrícolas de regadio. Ao contrário do que se verifica a nível nacional, a população agrícola em Santo Antão é predominantemente do sexo masculino conforme os dados de recenseamento geral de agricultura de 2004. Em Ribeirão, essa tendência é muito evidente particularmente na agricultura de regadio. A agricultura em Santo Antão, seja de sequeiro ou de regadio, enfrenta sempre grandes constrangimentos. Em relação à agricultura de sequeiro além da frequência e irregularidade das chuvas 146 que caracterizam o regime pluviométrico do país que, por vezes, se concretiza em longos e prolongados períodos de seca, os agricultores enfrentam regularmente a falta de sementes. Este tipo de agricultura sujeita-se ainda a pragas de gafanhoto e de outros insectos como a tartaruga (Nezara Viridula). Mas, particularmente em Lagoa, a agricultura de sequeiro enfrenta constrangimentos decorrentes da queda periódica de granizo, um fenómeno atmosférico que ocorre praticamente todos os anos e que tem um elevado poder destrutivo da vegetação. Muitas vezes, a sua ocorrência coincide com o período de reprodução das plantas, o que significa perdas mais avultadas.

146 Recorda-se que das três localidades em análise Lagoa é aquela que mais sofre com os efeitos da seca. Entre 2005 e 2007 não caiu nem um pingo de chuva na zona, pelo que não se produziu nada em termos de agricultura. Foram três anos consecutivos de muita seca, muita miséria, mas sobretudo de muito sofrimento. Contudo, nos últimos 4 anos, tem chovido regularmente pesem embora as colheitas não tenham sido por vezes tão boas. Em 2009 choveu bastante mas quando as plantas estavam no final do ciclo reprodutivo ocorreu o fenómeno da queda de granizo – snow - queimando os cultivos, pelo que a produção foi bastante afectada. Cruzinha é também uma zona agro-ecológica sujeita a frequentes secas, mas como já vimos ali as pessoas dependem predominantemente da pesca.

175 A agricultura de regadio por seu lado enfrenta falta de água, decorrente da diminuição de lençóis freáticos, uma situação que se tem procurado minimizar com políticas de poupança no consumo de água através de substituição do sistema de rega por alagamento pelo sistema de micro-irrigação, não obstante, a percentagem da área irrigada coberta por este sistema ser ainda muitíssimo reduzida. Os agricultores que adoptam o sistema de micro-irrigação enfrentam o problema do elevado custo de água para a rega, tendo em conta que esta é produzida (bombeada) a partir do uso de energia eléctrica. Esta situação torna o custo de produção agrícola bastante elevado como, aliás, se compreende, dificultando a colocação dos produtos no mercado em termos competitivos com aqueles produzidos através do sistema de rega por alagamento cuja água é obtida sem qualquer custo adicional. A solução passa pela substituição de energia fóssil pela energia renovável o que minimiza, mas não resolve de todo o problema. Um dos mais expressivos problemas ligados à agricultura de regadio tem a ver com o acesso à água e o modelo de gestão dominante. É preciso ter em consideração que a gestão de água tem sido feita em moldes pouco eficientes, ou seja, que não garantem a equidade da sua distribuição e ao mesmo tempo a sua sustentabilidade na utilização, e isso tem sido uma grande fonte de conflito entre as famílias, cuja sobrevivência está muito directamente ligada à água para irrigação, aliás um assunto de que vamos abordar mais adiante. O problema de mercado é um dos maiores constrangimentos que a agricultura e todos os demais sectores produtivos da ilha enfrentam. Mas, o problema de escoamento dos produtos hortícolas é agravado como é sabido com a praga de mil-pés ou Spinotarsus caboverdus como é conhecido cientificamente. É preciso notar que devido ao aparecimento dessa praga foi decretado em 1984 um embargo à exportação dos produtos agrícolas às outras ilhas do país com excepção feita a São Vicente, como forma de evitar a sua propagação. Esse embargo foi levantado por Decreto governamental nº 41/2010, publicado no B.O. nº 3, de 27 de Setembro. Tratou- se, é certo, de um desembargo provisório e, portanto, condicionado, visto que se tratou de uma medida que abrange apenas as ilhas do Sal e da Boa Vista, em que incide ainda apenas sobre cinco categorias de produtos agrícolas designadamente: primeira categoria onde integram “tubérculos e raízes de batata comum; batata-doce; mandioca; inhame; cenoura e beterraba”; segunda categoria integrando “frutos de banana verde; papaia –

176 com 15% da superfície da casca amarelecida, rodeada de verde –; mango; maçã; fruta- pão e citros”; terceira categoria onde se integram os “frutos de tomate”; quarta categoria que integram “frutos de pepino; abóbora; melancia e melão” e por último a quinta categoria onde se inserem “bolbos de cebola e alho”, cumprindo critérios circunscritos quer no domínio do processo de cultivo como no domínio do processo de colheita, monitorizados por um Centro de Tratamento de Produtos Agrícolas de Santo Antão. O levantamento do embargo entrou em vigor a partir de 15 de Outubro. Refira-se no entanto, que se trata de uma medida experimental. Neste sentido, conforme os resultados alcançados, assim a decisão poderá alargar-se às outras ilhas. A falta de disponibilidade de terras devido ao problema secular da estrutura fundiária em Cabo Verde e particularmente em Santo Antão e a falta de incentivos fiscais ou de políticas que facilitam o acesso a crédito, são também outros constrangimentos ao desenvolvimento deste sector da economia, ou melhor às condições de sobrevivência das famílias do meio rural em Santo Antão.

4.1.2 Pesca artesanal

Das três unidades de análise que constituem o palco da nossa investigação, Cruzinha é a única localidade onde a pesca integra as estratégias familiares de sobrevivência das famílias. Aliás, a vida da população de Cruzinha dinamiza-se fundamentalmente em torno desta actividade. De acordo com informações recolhidas na aldeia, podemos estimar que cerca de 95% das pessoas vivem directa ou indirectamente ligadas à pesca. As restantes vivem do emprego público promovido pelo estado, pela autarquia e pelas associações locais, ou emprego privado promovido por particulares. Contudo, devido às condições do mar e da própria costa, esta actividade económica pratica-se apenas durante um certo período do ano. Isto é, a pesca artesanal em Cruzinha é praticada normalmente apenas durante cerca de 6 meses, ou seja, entre Abril ou Maio a Outubro ou Novembro. Apesar disso, o mar e a pesca ocupam uma posição central no conjunto de estratégias de sobrevivência das famílias desta localidade, de tal forma que, segundo o senhor Eugénio,

quando o mar não dá nada os marinheiros passam fome. Literalmente. Desenrascam-se quando aparecer algum trabalho da câmara mas é quando aparecer. E não dá para todos. Assim as pessoas passam por muitas dificuldades.

177 Esta ideia é reforçada pelo senhor Gregório que afirma que, Quando o mar não dá nada as pessoas passam por dificuldades. Podem tomar o pequeno-almoço e ficarem sem almoço e jantar. Estamos perante uma comunidade excessivamente dependente da actividade piscatória, ainda que seja do ponto de vista discursivo, razão pela qual as iniciativas dos actores sociais mais relevantes implementadas nesta localidade estão centradas precisamente na pesca. Assim, uma das acções mais visíveis levadas a cabo foi precisamente a aquisição de uma embarcação de pesca, cujo processo terá sido desencadeado pela Associação Nova Experiência Marítima de Cruzinha em 2006, a partir do momento em que os sócios passaram a compreender que esta seria uma alternativa fundamental para a dinamização da pesca e da economia naquela comunidade. Nessa altura, segundo consta dos documentos desta associação, estavam inscritos como sócios cerca de 150 pessoas. A ideia foi amplamente discutida e apoiada na Assembleia- geral, estando presente um número total de membros que representa mais de metade da população desta comunidade. Os principais argumentos que a comunidade utilizou na altura para sustentar a ideia basearam-se, por um lado, no facto de haver na aldeia uma elevada taxa de desemprego afectando sobretudo os jovens, uma das razões pela qual era preciso desenvolver o sector produtivo local que pudesse criar fontes de rendimentos seguros às populações. Sendo Cruzinha uma aldeia piscatória a prioridade devia ser o sector das pescas. E, por outro lado, era preciso que a população desta comunidade soubesse aproveitar a oportunidade de negócio que a pesca podia oferecer em Cruzinha uma vez que aquela zona é rica em pequenos pelágicos (cavala, chicharro, dobrada, etc.), espécies que se colocam no mercado da ilha a preços acessíveis, tendo em conta as condições socioeconómicas da população. De igual modo, o mar de Cruzinha é rica em outras espécies de peixes e crustáceos, de maior valor comercial. Para que essas oportunidades fossem aproveitadas era necessário apostar na aquisição de uma embarcação que oferecesse melhores condições de navegabilidade e de prática de pesca. Tendo em conta os vários obstáculos que normalmente surgem à volta de projectos semelhantes era preciso ser ambicioso mas, de alguma forma, comedido para que o projecto pudesse ser exequível, como procurou, aliás, esclarecer o presidente da associação.

178 Pensaram inicialmente com o projecto criar cerca de 14 postos de trabalho directos e 19 indirectos, contando com as vendedeiras de peixe, motorista de transporte de mercadorias, etc. Na altura (em 2006), eram precisamente 19 o número total de mulheres que laboravam na venda do pescado, conforme consta de um documento do projecto. No âmbito da realização do projecto, definiram como principais parceiros “a Câmara Municipal da Ribeira Grande, o Instituto Nacional de Desenvolvimento das Pescas, o Programa Nacional de Luta Contra a Pobreza, a Cooperação dinamarquesa, através da BORNEfondem, o Fundo de Desenvolvimento das Pescas e a Banca”. De acordo com os dados constantes numa factura pró-forma a que tivemos acesso, a embarcação teria a seguinte dimensão: 10 metros de comprimento, 3 metros de largura e 1,40 metros de altura. Teria uma casa de navegação equipada com dois beliches, casa de máquina, porão, tina para isco e tina de gelo estimado no valor de 1.350.000$00 (um milhão, trezentos e cinquenta mil escudos CVE). A factura fazia referência que não estavam incluídos no orçamento “os trabalhos de ferragem”, isto é, a confecção e colocação do mastro, varandas, corrimão, etc. Entende-se que o orçamento incluía apenas os trabalhos em madeira e pouco mais. Seria fabricada por uma oficina de Carpintaria Naval em São Vicente. O motor, de acordo com a factura pró-forma solicitada pelos dirigentes da associação a uma empresa portuguesa, custava 2.530.000$00 (dois milhões quinhentos mil escudos CVE). Este orçamento incluía o transporte até São Vicente. A rede de cerco de alto mar com 170 braços de comprimento e 18 braços de altura custava cerca de 1.200.000$00, segundo dados de uma factura pró-forma emitida por uma casa comercial em São Vicente. Os equipamentos de navegação e comunicação estavam estimados em 1.270.000$00 (um milhão duzentos e setenta mil escudos) e os outros diversos apetrechos em 75.000$00 (setenta e cinco mil escudos). A soma dos preços das diversas componentes da embarcação atingia um valor de 6.425.000$00 (seis milhões quatrocentos e vinte e cinco mil escudos). Durante o ano de 2006, alguns parceiros depositaram na conta da ACNEMC o montante com que decidiram apoiar o projecto. Pudemos confirmar através da cópia dos talões de depósito que o Programa Nacional de Luta Contra a Pobreza, através da CRP da Ribeira

179 Grande, apoiou com 1.325.000$00, o Fundo de Desenvolvimento das Pescas com 800.000$00. No entanto, a acta da Assembleia-geral realizada em 20 de Abril de 2008 no capítulo sobre a “apresentação da conta do barco” faz constar uma listagem de entidades que apoiaram no processo de aquisição da embarcação assinalando o valor monetário disponibilizado por cada uma, conforme o quadro que se segue.

Quadro n.º 6 - Relação de financiadores da embarcação de pesca em Cruzinha

Financiadores Valor financiado Comissão Regional de Parceiros de Santo Anão 2.650.000$00 Fundo de Desenvolvimento das Pescas 800.000$00 Câmara Municipal da Ribeira Grande 300.000$00 BORNEfondem 1.160.675$00 Sr. Daniel 60.000$00 Total 4.970.675$00 Fonte: Entrevistas

Destaca-se ainda que esta Acta faz ainda menção, que à data da realização dessa

Assembleia-geral, o total das despesas efectuadas em torno do projecto de aquisição da embarcação era de 6.446.103$00 (seis milhões, quatrocentos e quarenta e seis mil cento e três escudos cabo-verdianos) sem contar com os equipamentos de navegação e de comunicação cujo valor estava estimado em 1.271.000$00 (um milhão, duzentos e setenta e um mil escudos cabo-verdianos). Se contarmos com esse valor o total das despesas ascenderia a 7.717.103$00. A acta não é muito clara em relação ao valor total dos empréstimos contraídos. As informações nela explicitadas levam-nos, contudo, a estimá-lo em 2.177.140$00 (dois milhões, cento e setenta e sete mil cento e quarenta escudos cabo-verdianos) dos quais 1.800.000$00 contraídos junto do Banco Comercial do Atlântico. O total do dinheiro mobilizado entre doações e empréstimos ascende a 7.147.815$00, menos 569.288$00 do total das despesas efectuadas. Apesar de a contabilidade da ACNEMC não ser suficientemente organizada que permita, com objectividade, aferir o custo total da embarcação nota-se que as despesas de aquisição da embarcação foram superiores ao valor inicialmente previsto. A ACNEMC teria contado com o apoio da Delegação do Ministério de Agricultura da Ribeira Grande no valor de 500.000$00 que, aliás, constava do projecto de investimento no capítulo da definição de parceiros e que, segundo o seu Presidente, acabou por não

180 acontecer. Como se pode ver, um valor próximo da diferença entre o dinheiro mobilizado e as despesas efectuadas. Para se garantir maior transparência possível na gestão da embarcação de pesca, a ACNEMC criou na Assembleia-geral de 20 de Abril de 2008, uma “comissão para a gestão da embarcação” constituída por seis elementos escolhidos de entre os sócios da dita associação. Segundo o documento do projecto, o payback 147 foi estimado em pouco mais de 6 anos. O documento, do qual faz parte um estudo financeiro, conclui que o projecto era “rentável” e que a “facturação a obter cobre o investimento total, dotando o investimento de razoável margem de compensação”. A embarcação começou a funcionar efectivamente em 2008 com 14 marinheiros, incluindo o mestre de arais e o motorista, todos eles de Cruzinha. No entanto, constavam da matrícula da embarcação o mestre e mais cinco marinheiros devidamente documentados, pois os outros não dispunham das respectivas cédulas marítimas actualizadas. Por outro lado, o motorista também não dispunha de uma formação profissional adequada para exercer aquelas funções. Estamos perante mais um conjunto de constrangimentos ao bom funcionamento da embarcação além do deficit financeiro com que também iniciou e que já referimos. Dos 14 marinheiros, apenas o mestre e o motorista tinham um ordenado fixo. Os ordenados dos restantes dependiam dos resultados alcançados. O mestre tinha uma remuneração de 30.000$00 mensais, enquanto o motorista auferia cerca de 10.000$00 mensais. Este, se tivesse uma formação profissional nesta área então poderia auferir entre 20 e 25 mil escudos mensais, segundo nos disse o antigo mestre da embarcação o Senhor Honorato Filipe Cruz. Ciente do risco que era trabalhar com um motorista inabilitado, o mestre exigira à ACNEMC que contratasse um motorista profissional sob pena de ele pedir a sua demissão. Além disso, sugeriu que se contratasse um mestre de pesca para rentabilizar a actividade. Os pedidos, no entanto, não foram aceites devido ao facto de essas medidas aumentarem os custos de funcionamento da embarcação.

147 Um termo que se utiliza na linguagem financeira para fazer referência ao período que ocorre entre a aplicação de um investimento e o momento em que o lucro líquido acumulado atinge o valor do investimento aplicado.

181 A associação providenciou a emissão das cédulas marítimas dos marinheiros que se encontravam a trabalhar na embarcação e que não as dispunham, disponibilizando-se em custear as despesas que o processo acarretava, com o compromisso de esses senhores, mais tarde, procederem ao reembolso da quantia empregue, um compromisso que a maioria não assumiu, deixando ficar os respectivos documentos retidos na direcção da associação. Havia uma grande expectativa em relação às vantagens que a embarcação traria à comunidade. A acta da assembleia-geral realizada a 18 de Fevereiro de 2007 relata que no ponto destinado a assuntos diversos,

Honorato declarou que está satisfeito com o barco porque foi sempre um sonho dele. Pediu força e colaboração de todos os sócios, pescadores e peixeiras para que tudo corra bem. Aureliano Pedro Cruz preferiu não falar do barco porque achou que os outros falaram demasiado sobre o assunto. Por isso em vez disso preferiu falar sobre as quotas em atraso. Pedro Alexandre também aplaudiu o trabalho do barco achando que com o barco em funcionamento Cruzinha iria mudar em alguns aspectos.

Depois de cerca de um mês de trabalho os marinheiros conseguiram facturar pouco mais de quatro mil escudos, um valor irrisório para um chefe de família, como reconhece Sofia, cujo marido trabalhou na embarcação da associação:

O meu marido esteve a trabalhar naquele barco durante dois meses e trouxe para casa uma bagatela. Por isso, ele deixou de trabalhar com eles e esforçou-se para ter uma embarcação de pesca e tem dado muito melhor durante algum tempo.

A operação da embarcação passava por outros constrangimentos: - O sistema da divisão do pescado capturado era, e ainda é, fixado da seguinte forma: tira-se, à partida, as despesas do combustível e da isca quando esta não for capturada pela embarcação e uma parte para gratificar os seis membros da comissão da gestão da embarcação 148 . O que sobrar é dividido ao meio, sendo uma parte destinada à embarcação e a outra parte é divida em fracções iguais aos pescadores; - A embarcação, tendo em conta a sua reduzida dimensão, não oferecia condições para permanecer no mar durante mais que um dia. Tinha que ir e voltar todos os dias e isso era oneroso devido aos gastos com os combustíveis;

148 A decisão da gratificação aos membros da comissão de gestão da embarcação foi tomada pelo colectivo dos sócios presentes na reunião da assembleia-geral de 20 de Abril de 2008.

182 - Os pescadores recusavam ir pescar em bancos de pesca muito distantes porque queriam regressar à casa sempre mais cedo. Após cerca de mês e meio, o mestre de navegação pediu a sua demissão porque não foi atendida a sua reivindicação e a maioria dos marinheiros que tinha iniciado a trabalhar desistiu porque o rendimento não compensava. Era muito mais aliciante trabalhar nas pequenas embarcações tradicionais. Em Dezembro de 2009, a embarcação encontrava-se inoperacional devido a uma avaria no motor. A embarcação tinha também uma avaria no sistema de comunicação (GPS). Nessa altura, a grande maioria dos marinheiros que nela trabalhavam era de Tarrafal de . Havia um que era de São Vicente. Apenas o motorista (Presidente de Associação) e mestre de navegação eram de Cruzinha. Em relação à comissão, segundo o presidente de associação, terá passado o seguinte:

A comissão só funcionava para registar a quantidade de peixes capturados e após isso recebiam o seu dinheiro. Uma vez o barco teve problemas com a rede de pesca que ficou presa na rocha, a comissão não fez nada para resolver o problema, pois isso dava muito trabalho, quanto mais não seja a associação não dispunha de fundo suficiente para comprar a pronto uma rede nova. Fomos nós os dirigentes de associação é que movemos a palha para colocar a embarcação a trabalhar de novo. No primeiro dia que a embarcação se fez ao mar após a resolução do problema da rede apareceu de novo a comissão. Bem aí tivemos que dizer às pessoas que a constituíam que as coisas não eram bem assim. Que devíamos reunir para definirmos as funções da comissão.

A partir dessa altura as pessoas que constituíam a comissão de gestão deixaram de ser chamadas para gerirem a embarcação. A gestão ficou a cargo do Presidente e de Laurindo Santos (seu irmão), que era tesoureiro de associação. Não havendo marinheiros de Cruzinha que estivessem disponíveis para trabalhar na embarcação, o que a verificar-se poderia representar uma forma mais directa de exercer vigilância sobre o funcionamento da mesma; desfeita a comissão de gestão da embarcação, sendo a gestão assegurada apenas por dois membros que por sinal são irmãos; não sendo prestadas as contas aos sócios 149, tudo isso alimentava as suspeitas e, consequentemente, as condições para o surgimento de conflitos de que também analisaremos mais adiante. Mas, as palavras do senhor Frederico, emitidas quando convidado a pronunciar-se sobre a embarcação, são reveladoras de algum mal-estar na comunidade: o barco é deles e eles sabem o que fazer com ele.

149 A última Assembleia-geral foi realizada em 2008. Esse facto tem merecido muitas críticas, pois é visto por alguns sócios como uma estratégia dos actuais dirigentes para continuarem a liderar a associação.

183 O principal objectivo traçado pelo projecto de aquisição da embarcação que era o de (…) potencializar as possibilidades de retirar melhores proveitos do sector para a associação e para a comunidade havia falhado, ainda que parcialmente, pois, apesar de tudo, algumas famílias de Cruzinha, designadamente as peixeiras, continuam a beneficiar com a embarcação não podendo, contudo, dizer que esse benefício seja suficiente para a sua sobrevivência. Em Agosto de 2010, embarcação deparava com novos problemas. O último mestre de navegação, um jovem de estava demissionário e segundo as palavras do mesmo, devido a incompatibilidades 150 com o presidente da associação e devido ao atraso de três meses em relação ao pagamento de salários. Por outro lado, a embarcação apresentava avarias nos equipamentos de navegação, razão pela qual não foi apresentada à vistoria periódica e obrigatória e consequentemente tenha ficado impossibilitado de operar. O funcionamento da embarcação estava sujeito a um conjunto de vicissitudes que vai desde pressão constantemente exercida pela comunidade tendo em conta os múltiplos interesses a ela associados, mas também devido às condições de precariedade em que vivem muitas famílias, que viam nesta embarcação uma oportunidade de melhoria das condições de vida, passando por uma hipotética falta de capacidades locais para gerir um negócio a este nível. A principal estratégia de sobrevivência de uma grande maioria das famílias de Cruzinha continua a ser dominada pela pesca artesanal. Este tipo de pesca é praticado tendo em conta 4 modalidades fundamentalmente: Pesca de linha à mão ou utilizando uma cana efectuada à beira mar; Pesca de linha à mão ou usando cana a bordo de um bote; Pesca de mergulho e Pesca com redes. A pesca de linha à mão ou utilizando uma cana é efectuada à beira mar. Estamos perante uma das modalidades de pesca mais antiga que se pratica em Cruzinha. Ela é normalmente associada à captura de algumas espécies de demersais151, como moreias (Muranea sp), bodiões (Sparisoma), etc. Por vezes, é considerada com uma modalidade de pesca amadora mas não deixa de se constituir uma estratégia de sobrevivência importante na estrutura dos modos de vida

150 Um dos problemas, segundo o mestre demissionário, foi porque o presidente obrigou-lhe a transportar naquela pequena embarcação uma caravana com mais de 5 dezenas de jovens. 151 Ver a lista dos peixes que integram esta classificação na publicação intitulada Reflexões sobre a Pesca em Cabo Verde, editada pela Secretaria de Estado das Pescas em 1985, p. 98.

184 desta população. Muitas vezes, o discurso que acompanha este tipo de pescas é alimentado pelo propósito de “divertir-se” mas os resultados dessa diversão acabam por representar um rendimento importante para certas famílias. A pesca de linha à mão ou usando cana a bordo de um bote é a modalidade mais expressiva em Cruzinha. Ela ocorre normalmente nos bancos de pesca situados a algumas milhas da costa. Hoje, usam-se botes movidos a motor fora de bordo para se aceder aos bancos de pesca. Globalmente, esta modalidade de pesca destina-se à captura dos demersais também conhecidos por peixes de fundo e, além, de moreias (Muranea sp), bodiões (Sparisoma), capturam-se ainda garoupa (Cephalopholis), badejo (Mycteroperca) rubra), salmão (Elagatis bipinnulata), goraz (Latjanus), entre outras espécies. É também através desta modalidade que se capturam os tunídeos. Na sequência disso importa ainda enfatizar que a pesca de tunídeos ou grandes pelágicos, reveste-se de grande importância na estratégia dos pescadores, devido ao seu mercado que se estende para lá do território nacional e, consequentemente, o nível de rendimentos a ela associado. Alguns autores preferem designar a pesca de tunídeos por pesca à linha de fundo à mão 152. É um tipo de pesca em que se utilizam iscas vivas. De entre os tunídeos ou grandes pelágicos, o mais conhecido é o atum. Porém, são também muito conhecidos a serra e a albacora (Thunnus albacares). Como todos os pescadores são capazes de reconhecer o atum é uma espécie migratória nos mares de Cabo Verde e estão de passagem por Cabo Verde entre os meses de Julho e Novembro, conforme também escreveu Moal 153. Para a pesca de tunídeos as principais iscas são as cavalas. Mas, Correia da Costa cita também sargo-de-areia, (lithognathus mormyrus) 154. Além dessas espécies, o autor em referência destaca, ainda, as sardinhas (Sardinella maderensis) e chicharros (Selar crumenophtalmus). Na modalidade de pesca de rede que se pratica em Cruzinha utiliza-se normalmente dois tipos de redes. As redes de malha e as de cerco. As redes de malha são utilizadas pelos botes e as de cerco pela embarcação da ACNEMC. As redes se destinam à captura de pequenos pelágicos, designadamente

152 Secretaria de Estado das Pescas, Reflexões sobre a Pesca em Cabo Verde, Publicado com apoio da FAO, 1985, p. 98. 153 Moal R. (1977) citado pela Secretaria de Estado das Pescas, Reflexões sobre a Pesca em Cabo Verde, Publicado com apoio da FAO, 1985, p. 185. 154 Correia da Costa (1960), citado pela Secretaria de Estado das Pescas, Reflexões sobre a Pesca em Cabo Verde, Publicado com apoio da FAO, 1985, p. 186.

185 cavala (Decapterus macarellus), chicharro ou melão (Selar crumenophtalmus), arenque Sardinella sp), voador, etc. Ligado à pesca à rede está o método de luzes que se utiliza muito frequentemente. Consiste em colocar sobre a água uma bilha de gás acesa sob uma plataforma de madeira no fim da tarde e deixá-la permanecer durante a noite e de madrugada os marinheiros vão capturar os peixes que ficam a divertir-se na luz. A embarcação de pesca da associação usa muito esta técnica, que se pratica em Cruzinha desde há uns sete anos, ou seja desde 2005 mais ou menos. Por último, a pesca de mergulho também designada por pesca submarina. Esta modalidade visa capturar as espécies comummente designadas mariscos, que consistem nomeadamente em lagostas, polvos, búzios, lapas e percebes. A pesca de mergulho faz-se normalmente em grupo de três ou quatro pescadores, sendo que um tem por função assegurar o controlo da embarcação. Esse grupo, ao contrário do que se verifica na pesca de atum ou de peixe de fundo, não é tão fixo. Os mergulhadores pensam em experimentar uma sessão de pescas formam esse grupo, pegam uma embarcação de pessoa de confiança e fazem-se ao mar. No fim da pesca entrega-se ao dono a parte a que tem direito. Os pescadores optam por esta modalidade porque consideram que é mais rentável que a pesca de linha, pois, além de terem um valor elevado, o mercado a que essas espécies se destinam é muito mais vasto e segura em termos de escoamento. Conforme nos disse Ernesto, há épocas em que se apanham muitas lagostas. Mas, a quantia que se consegue alcançar depende dos equipamentos que se usa, por uma razão muito óbvia na perspectiva dele. Segundo as opiniões dele,

quem tem todos os equipamentos consegue ficar mais tempo a pescar e pode percorrer zonas mais distantes ou mesmo mais perigosas. Quem tem um fato de mergulho uma garrafa de oxigénio, espingardas, etc., tem uma maior facilidade de exercer este tipo de pesca.

Carlos também adoptou essa modalidade tendo em consideração o facto de ela poder ser praticada ao longo do ano e não ter que ficar seis meses parado ou ter que inventar outras formas de sobrevivência. O mercado potencial de crustáceos é o único restaurante/residencial que existe na aldeia. Quando se consegue capturar em grandes quantidades, isto é, que ultrapassa a capacidade do restaurante local então eles recorrem aos empreendimentos turísticos existentes na Ponta do Sol ou Ribeira Grande.

186 Os equipamentos são demasiado caros. Por isso mesmo informou-nos o senhor Noel, proprietário de alguns equipamentos de mergulho, que no caso em que os mergulhadores não têm dispõem de equipamentos próprios e usarem os dele a repartição processa-se da seguinte forma. Tira-se o custo do combustível e metade para os equipamentos do mergulho e divide-se o resto em partes iguais. Os equipamentos aqui incluem todos os utilizados no mergulho mais o bote e o motor. Nos últimos anos, introduziu-se uma técnica de captura designada Dispositivo de Concentração de Pescado (DCP) que se coloca na água a uma determinada distância da costa. Segundo informações prestadas por uma funcionária do INDP em São Vivente, a técnica da utilização do DCP consiste na colocação de um dispositivo físico na água durante um certo período de tempo, no qual criam-se microrganismos que atraem determinadas espécies de peixes como as cavalas que, por sua vez, atraem outras espécies designadamente o atum e, assim sucessivamente, permitindo o desenvolvimento de comunidades de peixes. Ainda segundo esta funcionária, esta técnica foi promovida pelo INDP, na década de noventa e foi patrocinada pela FAO. Um dispositivo de captura de peixes (uma espécie de rede) pode ser funcional durante 4 anos. Além de Cruzinha esta técnica estava a ser implementada na altura na ilha de Santiago na zona piscatória do Tarrafal e em São Vicente na zona piscatória de São Pedro. Para qualquer modalidade de pesca artesanal os pescadores põem em prática um conjunto vasta de conhecimentos e saberes que integram domínios como climatologia, geografia, astrologia, etc., porém empíricos cumulativos. De igual modo, põem em prática várias habilidades, manuais, perceptivas, sensoriais, auditivas e visuais. Esses capitais é que definem quando é que vão ao mar, que tipos de peixes vão capturar, onde capturá-los, que materiais utilizar, etc. Para se ter uma ideia, a combinação de sair para o mar é feita no dia anterior. É tomada após a avaliação mais ou menos minuciosa das condições das marés. A actividade piscatória em Cruzinha sujeita-se a um vasto conjunto de riscos. Desde logo enfrenta-se o risco de sair para uma faina e regressar sem o pescado, cujo rendimento possa compensar um dia de trabalho. Em certos casos, mais do que não capturar uma quantidade de pescado satisfatória, os pescadores podem contrair prejuízos, devido aos investimentos em equipamentos e em combustível.

187 Enfrenta-se o risco de contrair lesões (as cortes, por exemplo, são bastante frequentes devido ao uso de materiais cortantes e pontiagudos), de se desaparecerem no mar ou mesmo de enfrentarem a morte. A pesca através do mergulho pode acarretar problemas de saúde específicos e muito graves. Ernesto tem apenas 36 anos e começou a mergulhar desde muito cedo. Hoje sofre vários problemas de saúde que o impedem de trabalhar há quase um ano. Os problemas do Sr. Ernesto despertaram-nos a curiosidade para, através da Internet, procurar saber um pouco sobre a natureza das doenças provocadas pelo mergulho sobretudo quando é feito em condições precárias como acontece em Cruzinha, a avaliar pela idade do cilindro de ar comprimido que os pescadores usam. Ficamos impressionados quando verificamos que são de vária ordem e todas elas com efeitos dramáticos nos pacientes. Pudemos ver que uma pessoa se sujeita a uma lesão do tecido pulmonar que consiste, entre outros sintomas, em dor ao respirar e tosse podendo esta ser com sangue, palpitações, falta de ar e edema no pescoço, barotrauma de ouvido que se baseia em dor de ouvido, diminuição da audição, náuseas e vómitos, barotrauma sinusal que se funda em dor na região do seio facial afectado, dor de cabeça, sangramento nasal, doenças descompressivas, tais como as causadas pela formação de bolhas de nitrogénio no organismo após o mergulho; dores em articulações que afectam normalmente os ombros, doenças neurológicas, que podem afectar ainda o cérebro e/ou a medula vertebral 155. Carlos dedica-se ao mergulho e confessou-nos o seguinte:

eu não costumo usar os equipamentos modernos que se usa no mergulho, como por exemplo espingarda. Apenas uso uma máscara e um bicheiro (um ferro com um anzol amarado na ponta). Com este material pode-se pescar outros tipos de peixes, além de lagostas e polvos.

Ou seja, ele mergulha sem recurso a cilindro de ar comprimido, aumentado o risco de contrair as lesões provocadas pela mudança da pressão atmosférica. Noel, outro mergulhador, tem ideia de que o mergulho é uma actividade de risco. Conta-nos que já assistiu mortes de alguns colegas.

Pode acontecer que você fique preso na gruta. Ser atacado por um tubarão, oxigénio esgotar-se, cãibra, avaria na garrafa, etc. Os riscos são vários. Quem mergulha frequentemente, pode vir a ter paralisia, segundo os médicos.

155 Essas informações foram retiradas da seguinte página de Internet: http://www.szpilman.com.

188

Face ao exposto pode-se dizer que eles conhecem minimamente os riscos mas, mesmo sem terem todas as condições reunidas para praticarem a actividade, fazem-na por uma questão de sobrevivência. Contaram-nos que, por vezes, o oxigénio que usam no mergulho está fora de prazo e sabem que isso pode ser prejudicial para saúde. A única coisa que fazem para minimizar esses efeitos é consumir muito leite antes do mergulho. Confessam ainda que nem sempre fazem uma consulta médica. Perante estes hipotéticos riscos a actividade piscatória exige muito rigor além de muita sabedoria e experiência. Importa sublinhar, no entanto que, apesar de tudo, os pescadores amam a sua profissão. A maioria dos pescadores em Cabo Verde (estima-se cerca de 70%) não dispõe de meios de produção próprios, como botes, motores, redes, acessórios de mergulho, etc. Por esta razão, para o exercício da sua actividade profissional, estes pescadores terão que se vincular aos proprietários através de uma parceria informal, porém bem integrada no mecanismo das relações de produção existentes na comunidade. Em 2010 haviam nesta localidade 11 botes de pesca artesanal, distribuídos por sete proprietários e apenas dois pescadores dispunham de equipamentos de mergulho modernos. Está-se perante uma relação de produção sustentada por uma lógica tendencialmente capitalista, isto é, orientada para a obtenção de lucros, da qual resulta a propensão para a afirmação do capitalismo rural ou emergência de comunidades capitalistas, pois como pudemos observar as regras que regulam as relações de produção e, consequentemente, a repartição de rendas, não obstante serem antigas têm como base de orientação os factores de produção, designadamente capital, trabalho e recurso (natural) explorado assente, não em salários, mas sim em produto resultado da prática da pesca, ou seja, o próprio pescado. O factor capital é representado por um conjunto de elementos: o bote em si, o motor, a rede e os materiais de mergulho, designadamente cilindro de ar comprimido, designado por garrafa de ar, roupas isolantes, barbatanas, máscara, espingarda, etc. Os detentores desses equipamentos são todos eles, de igual modo, pecadores mas designados donos ou proprietários.

189 Perante estes dados refira-se que a repartição do pescado é feita em duas modalidades diferenciadas entre si definidas em função do tipo da pesca e consequentemente dos equipamentos utilizados. Quando a pesca é feita à linha e a modalidade de repartição é a seguinte: 1. Tira-se o total das despesas com o combustível e a isca. 2. Uma parte para o bote; 3. Uma parte para o motor, 4. Uma parte para cada marinheiro que participou na pesca. Já a pesca efectuada a partir do lançamento de redes sujeita-se à seguinte modalidade de repartição: 1. Tira-se as despesas com o combustível; 2. Tira-se 1/3 do pescado para o proprietário da rede 3. Divide-se os 2/3 que ficam da seguinte maneira: a) Uma parte para o bote, b) Uma parte para o motor c) Uma parte para cada marinheiro participante. O mais intrigante nesta modalidade é o facto de cerca de 1/3 do pescado ir para o proprietário da rede. O Sr. José Carlos proprietário de uma das redes existentes em Cruzinha considera-a uma proporção justa, atendendo que,

a rede é um material muito caro e além do mais está sujeita a elevados riscos: pode ficar presa numa rocha; pode romper devido ao peso excessivo do pescado capturado, mas também pode degradar-se devido à falta de cuidado dos marinheiros no seu manejo, etc.

Importa ademais sublinhar que esta modalidade da pesca conta normalmente com outros beneficiários, ou seja, crianças ou até mesmo adultos que ajudam a puxar o bote para a plataforma, uma ajuda não negligenciada sobretudo quando o bote vem carregado de peixes. Além de ajudarem a colocar o bote na plataforma essas pessoas ajudam também a tirar os peixes da rede. Apesar de não ser um direito adquirido, essas pessoas são contempladas com uma certa quantidade de peixe, designada por peixe para refeição, o que significa à partida que a quantidade em questão é bastante reduzida. Mas a quantidade de peixe para a refeição depende sempre da quantidade total do pescado que se conseguir capturar.

190 Na repartição dos peixes capturados nunca são levados em consideração factores como a chefia da tripulação, experiência dos pescadores ou performance alcançado por cada um durante a operação. Esta ocorre, portanto, com base num estrito cumprimento do princípio de isonomia. A partilha é uma operação bastante minuciosa. Mas é mais complexa quando a pesca é feita à linha ou através do mergulho em que pode haver muitas espécies de peixe, sendo que cada espécie tem o seu mercado específico. A rede normalmente é para capturar peixes em cardume, e sendo assim captura-se, em regra, uma mesma espécie ou quando muito duas espécies diferentes, pois a cavala e a polombeta, por vezes, andam juntas. Quando assim é divide-se primeiro uma espécie e a seguir divide-se a outra. Portanto, trata-se de uma operação muito mais simples. Não é fácil determinar as percentagens da produção que se destina ao meio de produção por este cálculo depender da quantidade de combustível gasto, do valor da isca aplicada e do número de pescadores que integram a operação. Contudo, na maioria dos casos esta percentagem é superior à metade. Assistimos algumas vezes a repartição do pescado em Cruzinha. E quando se compara a quantidade de peixe que a embarcação traz e aquela que cabe a um pescador não proprietário fica-se com o sentimento de que os proprietários são melhor beneficiados. E sobre esta eventual injustiça um dos proprietários fez o seguinte comentário:

Eu antes pescava nos botes de terceiros, mas depois cheguei à conclusão que assim a minha vida não avançava. Depois decidi fazer uns esforços e consegui comprar o meu próprio bote. Assim, fui avançando pouco e pouco até conseguir comprar um e depois outro, assim sucessivamente.

Ter um bote próprio parece ser o sonho de qualquer pescador. Os dados nos sugerem que isto pode ainda representar muito mais que um sonho. Pode representar uma grande vontade que se renova em cada sessão de partilha ou em cada momento menos positivo de uma relação de produção que se produziu e reproduziu ao longo da vida, minimizada com a estratégica consolação de não dispor de possibilidades para a sua concretização. Em Cruzinha, excepto quando a pesca é feita com rede, uma equipa de pesca é constituída por dois ou três pescadores, sendo que “três” é considerado por muitos como o número ideal, tendo em conta a segurança. Contudo, a situação em que saem dois pescadores é a mais frequente. Excepcionalmente, saem para uma faina de pesca, um (uma atitude proibida pela legislação sobre a pesca artesanal cabo-verdiana) ou quatro pescadores num

191 bote. O factor determinante na definição da dimensão de uma equipa de pesca é o rendimento. O raciocínio que a maior parte dos nossos entrevistados faz vai no sentido de que, na situação actual em que os recursos haliêuticos são cada vez mais escassos, quanto menos pescadores a participar na divisão tanto maior é a quantidade do pescado que pode caber a cada um. Voltando aos factores de produção importa aqui reter algumas informações sobre os acessórios mais usados em Cruzinha no âmbito da pesca artesanal. Anzóis de vários tamanhos definidos pelos diferentes números (de dimensão maior quanto menor for o número). Para a pesca do atum usam-se os anzóis cujos tamanhos são referenciados pelos números que vão de 1 a 3, ao passo que para a pesca de pequenos pelágicos usam-se anzóis números 5 e 6. Como se deve compreender, os preços variam em função do tamanho. Em Cruzinha, os menores, isto é os usados para a pesca de pequenos pelágicos custam 10$00 e os maiores como aqueles usados na pesca de atum custam 100$00. As linhas são normalmente de nylon monofilamento. Têm vários diâmetros e comprimentos. Para a pesca de atum pode-se precisar de linhas cujo comprimento pode atingir os 450 metros. Um outro acessório muito usado na pesca artesanal é o arpão. Este, porém, é de fabrico artesanal e é descrito da seguinte maneira:

é composto de um cabo de madeira de 2 m de comprimento e de 40 mm de diâmetro. Numa das extremidades, fixa-se uma haste de ferro redondo de 10 mm de diâmetro e 0,70 m de comprimento. Na ponta desta haste coloca-se a ponta do arpão que é ligada a uma linha de recuperação (em prolipropileno) de 5 mm de diâmetro e cerca de 100 m de comprimento 156.

Um bote de 3 lugares custa cerca de 120.000$00 e um de 4 lugares custa cerca de 200.000$00. Um bote pode ter a duração média de vida entre 12 a 15 anos e uma rede custa cerca de 200.000$00 157. O pano de rede, geralmente feito de fibras, não é muito caro pelo menos no entendimento dos pescadores de Cruzinha. As redes confeccionadas nesta localidade levam normalmente dois tipos de pano. Um pano de malhas mais largas e outro de malhas mais pequenas. Os acessórios como bóias e chumbos são muito mais

156 Secretaria de Estado das Pescas, Reflexões sobre a Pesca em Cabo Verde, Publicado com apoio da FAO, 1985, p. 97 157 Existem basicamente três tipos de redes de pesca: rede de arrasto, rede de malha e rede de cerco. Estamos a falar de redes de emalhar de pequenas dimensões ou seja para serem usadas nas proximidades da costa. Aliás, as duas que existem em Cruzinha têm precisamente essas características.

192 dispendiosos. As redes são feitas manualmente, razão pela qual requer sempre muita paciência e habilidade. Um motor de fora de borda de 4 tempos com um cilindro, 138 centímetros cúbicos de cilindrada pode ser adquirido em Portugal por um valor entre 180.000$00 CVE e 190.000$00 ECV. Quando adicionado os custos de transporte para Cabo Verde e dos processos aduaneiros o valor poderá ascender os 240.000$00. Quanto a outros factores de produção da actividade piscatória refira-se que um litro de gasolina custava, em Agosto de 2010, 149$40, enquanto um fato de mergulho pode custar em média cerca de 25.000$00. Um par de barbatanas pode custar em média 8.000$00, um cilindro de ar comprimido 5000$00, uma espingarda 10.000$00, uma máscara 4.000$00, um aparelho de GPS cerca de 30.000$00 e reguladores cerca de 15.000$00. Uma pequena embarcação para 3 lugares equipada com um motor fora de borda, uma rede de malha de dimensão média e os equipamentos de mergulho representa um capital de cerca de 600.000$00. Em Agosto de 2010 verificava-se em Cruzinha a seguinte tabela de preços dos pescados.

Quadro n.º 7 - Tabela de preço de pescados em Cruzinha

Espécies Preço (kg) Pequenos pelágicos (cavala, chicharro e polombeta) Entre 70$00 a 100$00 Demersais e grandes pelágicos (garoupa, moreias, bicas, 250$00 atum, serra, ilhéu) Lagosta 1000$00 Lapa 500$00 Búzios 400$00 Percebes 300$00 Fonte: Entrevistas

Quando, na localidade, se verificam presenças de emigrantes em férias, oriundos de localidades limítrofes, o preço dos demersais pode aumentar atingindo por vezes 300$00 o kg. Quando são para revenda os preços são mais baixos. As revendedeiras – peixeiras ou matreiras como são designadas na ilha de Santo Antão, compram, a título de exemplo, os demersais e grandes pelágicos ao preço de 220$00 o kg. Estas vendem-nos preferencialmente frescos mas quando isso não é possível, isto é, quando não conseguem vendê-los frescos, escalam-nos e secam-nos e, posteriormente, colocam-nos

193 no mercado ao mesmo preço que os venderiam se fossem frescos, como nos garantiu uma peixeira. Mas, o mercado para os peixes secos é bem mais reduzido, pelo que são muito mais utilizados para o consumo doméstico. Associada à pesca encontra-se em Cruzinha a exploração do sal que, diga-se de passagem, se trata de exploração voltada apenas para o consumo na própria localidade. Refira-se também que a pesca em Cruzinha reflecte uma certa divisão social do trabalho, porém flexível. Os homens vão à pesca, as crianças ajudam na limpeza do bote, recolhem a parte do pescado que cabe ao pai e prepara-os antes de os levar para a casa e as mulheres ocupam-se da venda. As famílias que vivem mais directamente ligadas à pesca e que, de resto, representam a grande maioria da população local, enfrentam vários constrangimentos. O mercado a que normalmente os seus produtos se destinam é bastante reduzido, com excepção de crustáceos em relação aos quais a procura, por vezes, assume a dimensão da ilha, podendo abranger a ilha de São Vicente. Mas, normalmente, o mercado dos recursos haliêuticos capturados em Cruzinha restringe-se à população da freguesia de São Pedro que, segundo os dados do último recenseamento estimava-se em cerca de 2381 habitantes. Mas, mais do que isso, é um mercado eminentemente rural, em que uma parte substancial da população é desempregada ou detém um emprego precário, logo dispondo de parcos recursos ou baixo poder aquisitivo. A secular circunscrição do mercado de pesca de Cruzinha à área geográfica da freguesia tem a ver com a inexistência de uma rede viária que pudesse assegurar a ligação entre esta localidade e o resto da ilha. Entre as comunidades da freguesia de que faz parte a localidade de Cruzinha a ligação é ainda mais difícil, pois ela estabelece-se dominantemente através de caminhos vicinais, estando muitos deles em más condições de circulação. Cruzinha não dispõe ainda de infra-estruturas adequadas de conservação do pescado. É verdade que a comunidade dispõe de uma máquina de produção de gelo, com capacidade para produzir cerca de 300 quilos por dia. Contudo, o custo de produção é, na perspectiva das populações locais demasiado elevado. Apropriando-se do raciocínio de um entrevistado, de notar que 1 quilo de gelo é vendido a 20$00 e portanto, 100 quilos de gelo custam 2000$00. Ora, a quantidade de peixes que se produz nem sempre justifica tal investimento, pois está-se perante uma pesca caracterizada como dominantemente artesanal e portanto, de fraco rendimento.

194 Mas, por outro lado, a máquina de produção de gelo existente, tendo em conta a fraca capacidade (potência) da energia eléctrica que é fornecida na localidade, nem sempre funciona bem. Sobre este assunto a Eleonor faz o seguinte comentário:

se você conseguir capturar muitos peixes você não tem como rentabilizar essa captura. Muitas vezes as vendedeiras levam os peixes ao mercado e trazem-nos de volta porque nem sempre se consegue vende-los todos.

As condições de arrasto existentes representam um grande problema para os praticantes da pesca. Mais que enfrentar as condições do mar em certos períodos são as dificuldades que enfrentam no arrastamento dos botes. Paulinho é muito peremptório quando afirma que,

o problema de pesca resume-se nas condições de sair para o mar e entrada para a terra. As condições de costa não permitem arrastamento dos barcos em determinados períodos em condições de segurança.

Coloca-se em causa a própria durabilidade das embarcações. Por outro lado, correm-se riscos elevados ao nível da integridade física dos pescadores. Dando sequência à análise do contexto em que se pratica a pesca, convém referir que os pescadores estão sujeitos a um conjunto de restrições. Pode-se apresentar como alguns exemplos a proibição da captura das tartarugas durante todo o ano, as lagostas durante o período que decorre entre Julho e Outubro e, recentemente, (2008) decretou-se a proibição da captura de cavalas pretas (“Decapterus Macarellus”) durante os meses de Agosto e Setembro. Esta última medida restritiva é vista pelos pescadores de Cruzinha com uma certa apreensão, pois incide sobre uma espécie que é considerada pelos mesmos como fundamental para a captura dos grandes pelágicos, designadamente o atum. A cavala, como dizem os pescadores, “serve de isco para capturar todas as espécies”. No entanto, contrariamente ao que pensam os pescadores, para a técnica do INDP isto representa “uma das principais medidas tomadas pelo Estado no domínio das pescas”, pois para esta responsável, o problema não está na proibição da captura da cavala mas sim no facto de que elas (as proibições) “concentram-se num único período entre Maio e Setembro”. Conforme diz, em Cabo Verde os peixes reproduzem sobretudo em épocas quentes. Sugere que face a isso o estado deve “arranjar uma alternativa que passe pela

195 adopção de medidas que criem alternativas económicas das pessoas que vivem ligadas às actividades piscatórias”. Reforça o argumento com a ideia de que,

há poucos peixes em Cabo Verde e por isso é preciso gerir bem os recursos que temos. Creio que os principais problemas da pesca em Cabo Verde têm a ver com a sustentabilidade. A sustentabilidade económica, a sustentabilidade da fiscalização, sustentabilidade da investigação voltada para o apoio à pesca, etc. É claro que temos os nossos problemas porque dependemos da economia externa. Podíamos fazer um esforço maior.

Durante a trajectória de pesquisa em Cruzinha surgiram com alguma regularidade afirmações de que os pescadores desta localidade são preguiçosos. Muitas dessas afirmações são proferidas pelos próprios pescadores. Na maioria dos casos os argumentos são construídos em torno das condições naturais que caracterizam a actividade piscatória em Cruzinha. Para essas pessoas, uma vez que a pesca nessa localidade só é possível durante cerca de seis meses, os pescadores deviam aproveitar esse período o mais possível para poderem aprovisionar os recursos que os permitissem passar o período de “mar mau” sem grandes sufocos. Alan, um pescador residente em Cruzinha, fez o seguinte reparo:

O período de mar bom caminha a passos largos para fim. Quem até ao presente não tiver feito as reservas necessárias para passar o período de mar mau começa a partir de agora a preocupar-se. Eu não, porque se não tiver recursos lá para o mês de Outubro vou a Monte Trigo e por lá permanecerei até Dezembro. Por vezes vou a São Vicente.

A propósito da “atitude” de certos pescadores, Pedro considera que, as pessoas de Cruzinha não são pescadores. Há muito poucos pescadores cá em Cruzinha. Sr. Júlio, um emigrante em férias em Cruzinha que já experimentou trabalhar no sector das pescas na Europa e provavelmente conhecedor de uma realidade diferente, afirma com ar de revolta que,

os marinheiros de Cruzinha não gostam de trabalhar. Eu não consigo compreender como é possível que um pescador, apesar das dificuldades que enfrenta, prefere ficar em casa deitado atrás da mulher em vez de ir pescar à noite.

Além disso o Sr. Júlio questiona num tom crítico sobre, como é possível haver tantas técnicas avançadas de captura de pescado lá fora e em Cabo Verde os pescadores continuarem a pescar utilizando as mesmas técnicas que os seus avós.

196 Dona Ângela não considera de todo que os pescadores são preguiçosos mas vê neles alguma negligência, falta de empenho ou profissionalismo.

Eu não diria que os pescadores têm preguiça. Agora quando uma pessoa vai ao mar uma vez, duas vezes, etc. e não traz nada e ainda por cima gasta dinheiro em gasolina, anzol, isca, etc., é claro que ele fica reticente em voltar a ir. Fica com receio de ir e não trazer nada outra vez. Mas também é preciso dizer que os marinheiros bebem muito. Quando bebem não vão ao mar.

O senhor Noel vê o problema pelo ângulo de dedicação:

Na verdade aqui em Cruzinha os pescadores não se dedicam muito como os nossos anciões se dedicavam. Eu, enquanto temos o mar manso não descanso. Procuro ir ao mar todos os dias. Por vezes você encontra um marinheiro sem nenhum tipo de material de pesca. Isso reflecte de facto um grande desinteresse pela profissão.

Àquilo que as pessoas em Cruzinha designam por “preguiça”, “desleixo”, “falta de dedicação” e “falta de profissionalismo” parece ligar-se a um contexto estrutural bem definido da pesca artesanal. Associar o baixo índice de produtividade aos aspectos culturais como a preguiça é, como nos dá conta Sachs (2006), uma atitude preconceituosa. Segundo ele, os proponentes destas interpretações raramente compreendem que a baixa produtividade resulta não da preguiça e da falta de esforço, mas da ausência de capital (Sach, 2006, 461). E dá o seguinte exemplo: os agricultores africanos não são preguiçosos, mas faltam-lhes nutrientes do solo, tractores, estradas, parcelas irrigadas, armazéns e outros factores produtivos (Sach, 2006, 461). Para o caso de Cruzinha é, no entanto, preciso ter em consideração um conjunto de elementos que definem as condições da pesca. 1. As condições do mar, associadas à inexistência de uma infra-estrutura, como cais de pesca ou uma plataforma que proporcionasse melhores condições de arrasto; 2. Os riscos físicos e a dureza a que se sujeitam os pescadores no exercício da actividade; 3. As incertezas em relação à captura ou sujeição a elevados riscos materiais; 4. A baixa renda que caracteriza a actividade piscatória devido às condições do mercado que, por vezes, se sujeitam às deficientes condições de acesso ao mercado e inexistência de alternativas aos excedentes;

197 5. Sistema de relação de produção altamente capitalizado e sujeição a um elevado grau de exploração, etc. 6. Sujeitam-se a um conjunto de regras impostas de fora, cuja fundamentação pode nunca constituir-se em valores e normas em relação aos quais estiveram habituados, ou seja, valores e normas difíceis de serem interiorizados tendo em conta a diferença das condições materiais de existência daqueles que estabelecem as regras e aqueles que têm de as obedecer. Mas, a interpretação do comportamento dos pescadores face à actividade que suporta a sua sobrevivência é bem mais complexa. Desde logo porque, conforme opina o presidente da ACNEMC, a pesca é uma actividade de risco. Você pode ir ao mar um dia e vir sem nada. Outro dia pode apanhar muitos peixes. No fundo os marinheiros não querem correr o risco. Importa também ter em consideração que durante muito tempo os pescadores adquiriram o hábito de pescar utilizando métodos que, à luz da evolução da ciência e da humanidade, são considerados nocivos para o ambiente, que comprometem as gerações futuras, e logo não são permitidos. Esta prática, que no entanto já não se verifica, permitia-lhes capturar mais peixes e, consequentemente, terem melhores rendimentos. Bastava atirar um explosivo por cima de um cardume de peixes e de imediato você apanha uma grande quantidade de peixes. Eles capturavam lagostas, tartarugas, cavalas para isca quando entendessem. Muito pouca coisa mudou no sector das pescas que contribuísse de forma efectiva para o seu melhoramento, a não ser no domínio da legislação, protocolos e acordos. Os constrangimentos ao sector mantiveram-se praticamente inalterados como, aliás, se reconheceu no Plano de Gestão dos Recursos da Pesca 158. Por isso, é que se considera “modesta” a contribuição que a actividade de pesca vem prestando na formação do PIB, razão pela qual o papel social que é lhe reservado ser por ventura, mais importante que o papel económico, tendo em conta a sua relação com o emprego e a segurança alimentar 159. Ainda no que diz respeito à mudança no sector da pesca, veja-se, por exemplo, que o preço do pescado vendido directamente pelo pescador hoje não varia muito do preço praticado por este há cerca de 25 anos. Em finais da década de oitenta do século passado

158 Ministério do Ambiente, Agricultura e Pescas (2003), Plano de Gestão dos Recursos da Pesca, Praia. 159 Ministério do Ambiente, Agricultura e Pescas (2003), Plano de Gestão dos Recursos da Pesca, Praia.

198 um quilo de cavala era comprado aos pescadores por cerca de 50$00 e revendido por cerca de 100 a 120$00 no mercado. O atum era adquirido a um preço que variava entre 160$00 a 180$00 160. Em 2010, um quilo de cavala era adquirido em Cruzinha a um preço que oscilava entre 70$00 e 100$00, portanto, mais 20$00 ou 50$00 que há sensivelmente 25 anos. Um quilo de atum é adquirido a 250$00, mais 70 ou 90$00. Se tomarmos como exemplo um produto qualquer made in Cabo Verde e analisarmos a evolução do seu preço veremos certamente que hoje muitos deles são vendidos a preços superiores em mais de 100%. Ou seja, os recursos haliêuticos, em comparação com outros produtos, valorizaram-se muito pouco. Retomando a análise dos condicionalismos da pesca em Cruzinha. Sónia Marine, técnica do INDP, faz a seguinte leitura sobre a relação que hoje se estabelece entre os pescadores e a pesca.

Hoje muitos pescadores não querem pescar. Primeiro porque têm de se arriscar mais para poderem encontrar qualquer coisa para a subsistência da família. Isto é, se mergulham têm de alcançar maiores profundidades, logo correm maior risco, se vão numa embarcação terão que percorrer maiores distâncias e por vezes para lá dos limites legais e sem estarem dotados dos meios de segurança necessários e correm também maior risco. Em segundo lugar aquilo que conseguem capturar não dá rendimento suficiente que lhes permite seguir o que a sociedade estabelece como padrão em matéria do consumo. Não conseguem estar iguais aos vizinhos. Não conseguem comprar umas calças iguais às do vizinho ou ter uma casa ou um carro igual ao do vizinho. O pior é que eles fazem os seus cálculos e sabem que por aquela via nunca podem atingir o patamar dos outros.

Destas considerações podemos depreender que os constrangimentos enfrentados pelo sector da pesca devem colocar-se do lado das expectativas criadas e não satisfeitas e nunca do lado da “preguiça” ou falta de vontade dos pescadores. Seguindo esse pensamento o problema tem a ver com a desmotivação que os invade, por ventura não perceptível facilmente. Requer uma minuciosa análise discursiva. Apesar das dificuldades, querem ficar ali, gostam desse lugar, inventam cenários sobre os seus lugares. Aliás, a relação entre os pescadores e o mar é alimentada por um outro paradoxo interessante: por um lado, recusam por vezes ir ao mar exercer a actividade da pesca, o que de resto é a profissão que assumem na estrutura da codificação das profissões, devido à forma como fazem a representação social do mar, o mar perigoso, o mar ingrato, o mar arriscado, o mar de incertezas e, por outro lado, quando a situação se

160 SARDEP, Plano de Desenvolvimento de Santo Antão, Tomo I, Diagnóstico de Situação, Santo Antão, 1991, pag.79.

199 aperta dirigem-se imediatamente ao mar buscar os recursos de que necessitam naquele mesmo instante para ultrapassarem um determinado problema. É o mistério do mar de duas faces, um espaço simbólico existente nos esquemas mentais dos pescadores simultaneamente como bom e mau. A pesca que se desenvolve em Cruzinha tem uma relação estreita com o mercado, numa perspectiva de garantir a sobrevivência e não de acumulação de capitais. Por isso, é uma pesca artesanal. É, sobretudo, artesanal pela relação que ainda se estabelece com o passado. As mesmas técnicas, os mesmos métodos, os mesmos objectivos. Por outro lado, este tipo de pesca não consegue implementar os valores modernos das relações comerciais. Contudo, as relações de produção são movidas por uma certa lógica capitalista, isto é, orientadas para a acumulação de capitais. Uma última nota é que a pesca em Cruzinha é também uma actividade complementar. Eugénio diz que nunca se dedicou a pesca a sério, mas que,

de vez em quando pego numa vara vou divertir-me a beira-mar e consigo apanhar alguma coisa. Mas não é para vender até porque é muito pouca coisa. É para consumo de casa quando aparece.

O Horácio fá-lo mais explicitamente como actividade complementar, pois,

o meu salário não é grande coisa. Com dez mil e quinhentos escudos mensais de renda não dá para viver. Como complemento vou pescar, se aparecer uns dias de trabalho aproveito-os.

O maior problema que se coloca à pesca em Cruzinha não será de todo a inexistência de um cais de pesca ou mesmo as condições do mar. O grande problema, conforme pudemos apurar, decorre nitidamente das limitações que os pescadores locais enfrentam em termos da capacidade de captura dos recursos haliêuticos e em termos da colocação do pescado no mercado evidenciadas por um lado pelas más condições de transporte e de acessibilidade e por outro pelas dificuldades de acesso a um mercado mais vasto, que pode ser regional, nacional ou mesmo internacional 161.

4.1.3 Criação de gado

161 Sobre a caracterização da pesca artesanal no contexto da economia rememos para a obra de Sahlins, Marshall (1977), Economia de la edad de piedra, Madrid, Akal.

200 A criação de gado em Cabo Verde integra o conjunto das actividades económicas desde o início da sua história. Fora no passado uma das actividades económicas que mais prosperou em Cabo Verde, quer devido ao papel que desempenhou no sistema da dieta alimentar quer devido ao papel que desempenhou no sistema de relações comerciais que se estabelecia com a Europa (Correia e Silva, 2001a). De salientar que esta prática continua a ser exercida de forma tradicional e, consequentemente, com baixo índice de produtividade. As espécies animais exploradas em maior número são, segundo os dados do recenseamento geral da agricultura realizada em 2004, a avicultura e a caprinicultura. Nesse período, os dados apontavam para a existência de 327.562 galinhas e 148.094 cabeças de gado caprino. A seguir a estas duas espécies surgem os suínos estimados em 77.316 cabeças e bovinos em cerca de 22.306 efectivos. Contudo, segundo a mesma fonte, das explorações agrícolas que se dedicam à criação de gado uma larga maioria dedica-se à criação de suínos, seguidos de galinhas e caprinos.

Quadro n.º 8 - Relação entre explorações agrícolas e espécies animais

Espécie animal % de exploração agrícola Suínos 73 Galinhas 69,5 Caprinos 62,4 Bovinos 24 Equídeos 20 Patos e perus 7 Ovinos 7 Coelhos 2 Fonte: RGA 2004

No cômputo geral das ilhas, Santo Antão destaca-se, imediatamente a seguir à ilha de Santiago pela criação de equídeos e coelhos representando 29% e 18% respectivamente e surge em terceiro lugar, logo a seguir às ilhas de Santiago e Fogo em relação à criação de caprinos. A criação de gado é, à semelhança da agricultura e pesca, um dos pilares fundamentais do complexo sistema de sobrevivência das famílias dos espaços sociais rurais cabo- verdianos.

201 Não se pode negar que há uma acentuada relação entre a criação de gado e a actividade agrícola em Cabo Verde. No entanto, é preciso ver que existe um vasto espaço económico de sobrevivência, onde se pratica a criação de gado fora da actividade agrícola ou mesmo da exploração agrícola. Esse campo específico de criação de gado pode ser encontrado indiscriminadamente no meio rural e no meio urbano e não parece ter qualquer relação com um determinado tipo de animal. Contudo, nos parece esta modalidade de criação privilegia muito mais as galinhas, coelhos e porcos. Lancemos agora um olhar sobre a criação de gado nas diferentes unidades de análise à semelhança do que fizemos na abordagem das outras duas principais estratégias de sobrevivência das famílias do meio rural, isto é a agricultura e a pesca artesanal. Em Lagoa, ao contrário de Ribeirão, a actividade de criação de gado privilegia de forma mais evidente os caprinos que, aliás, encontra-se intimamente relacionada com uma outra actividade e que também ocupa um lugar central no sistema de estratégias de sobrevivência dessas famílias, apesar de ainda ser desenvolvida de forma tradicional e, além do mais, em condições de higiene nem sempre muito adequadas. Referimo-nos concretamente à indústria de queijo, sobre a qual falaremos mais adiante. Para se compreender o lugar que os caprinos ocupam no sistema de estratégias de sobrevivência destas famílias, importa sublinhar que uma cabra custa, em média, cerca de 6000$00. Este é, no entanto, o preço praticado em épocas com pastos abundantes, pois nos anos de seca uma cabra chega a ser vendida por cerca de 1000$00, segundo nos informaram alguns dos nossos interlocutores. Em situação de pastos abundantes é muito comum encontrar-se famílias com mais de 10 cabeças de cabra. Algumas delas conseguem criar cerca de 30 cabeças de cabras, que constituem um capital não negligenciável em contextos rurais como Lagoa. À semelhança do que acontece por todo o país as famílias desta localidade apostam muito na criação de galinhas e porcos. A criação de equídeos, em que se destacam burros e mulas, é uma actividade fundamental na estratégia de sobrevivência das famílias de Lagoa. São recursos privilegiados para transporte de produtos agrícolas das explorações agrícolas para as residências, no transporte de mercadorias, de água e de pessoas sendo que esta última utilidade vem caindo paulatinamente em desuso.

202 Retomando a ideia assente na relação entre a criação de gado caprino e a indústria de queijo em Lagoa no âmbito da análise de estratégias de sobrevivência das famílias desta localidade refira-se que esta actividade é desenvolvida com maior intensidade entre os meses de Novembro e Maio. Actualmente, um queijo produzido em Lagoa é vendido nos centros urbanos por cerca de 150$00. Mas, em Lagoa, pode ser adquirido por cerca de 120$00 ou 130$00. Há pessoas que os compram para depois revender em Ribeira Grande, Ponta de Sol e, fundamentalmente, em Porto Novo tendo em conta o mercado associado ao tráfego marítimo existente entre Santo Antão e São Vicente. Quando há pastos abundantes, o que pressupõe incremento da criação de gado e o aumento da produção e oferta de queijos, os preços tendem a baixar ligeiramente. Esta situação leva a que muitos produtores não conseguem vender os seus produtos. Assim, tendo em conta a inexistência de outras formas de conservação dos seus produtos, os produtores recorrem ao processo de secagem. Da mesma desenvolvida pelos residentes de Lagoa, pode-se observar que um queijo fresco pode demorar uma semana em casa e em perfeitas condições de conservação, sem que tenha que se sujeitar a qualquer mecanismo de conservação. Depois de seco pode demorar cerca de um mês em perfeitas condições de consumo. Um queijo seco é vendido ao mesmo preço que um queijo fresco. O leite que se extrai de 4 cabras dá para fabricar em média dois queijos. Ou seja, quatro cabras podem dar um rendimento que varia entre os 7.200$00 e 9.300$00 mensais. Nesta lógica, muitos consideram que, com pelo menos 20 cabeças de cabras, uma família pode garantir normalmente a sua sobrevivência ou muito mais do que isso, podem viver bem. Imaginemos agora uma família com 20 cabras leiteiras. O leite que elas produzem diariamente pode dar origem a uma média de 10 queijos por dia. Ora, esses queijos vendidos a um preço que varia entre 120 e 150$00, rendem uma quantia mensal que pode variar entre 36.000$00 e 45.000$00, num país onde certas profissões, em determinados lugares sujeitam-se a um salário a rondar os 6.000$00 mensais. Os produtores da localidade de Lagoa expunham e vendiam as suas mercadorias na localidade de Esponjeiro. Esses produtos destinavam-se às pessoas em viagem de e para São Vicente que faziam o percurso Porto Novo – Ribeira Grande e vice-versa, todos os dias nos períodos de manhã (com maior intensidade) e da tarde, tendo em conta os horários dos transportes marítimos que ligam as duas ilhas. Com a nova estrada que liga

203 Porto Novo ao Paul, pelo litoral, o fluxo de passageiros nessa rota diminuiu significativamente a dinâmica comercial antes existente, pois as transportadoras de localidades próximas de Ribeira Grande ou que têm de passar por Ribeira Grande para acederem Porto Novo preferem fazer este percurso por esta nova estrada que, além de ser mais curta, as condições da estrada são melhores porque uma boa parte do troço é asfaltada. Na perspectiva dos moradores das localidades que integram esta zona se, por um lado, a nova estrada trouxe grandes vantagens para a ilha de Santo Antão, por outro, a localidade de Lagoa ficou bastante prejudicada, pois agora sentem-se quase que obrigados a venderem os seus produtos às vendedeiras ambulantes – rabidantes - a um preço muito mais baixo. É preciso ter em consideração que nem sempre compensa ir vender os produtos a Porto Novo ou Ribeira Grande, onde se pratica o melhor preço, uma vez que o preço das passagens de Lagoa para estes dois centros urbanos ronda os 600$00 ida e regresso. Em Ribeirão, predomina a criação de caprinos. No entanto, a criação de gado que ali se pratica não é tão intensiva como em Lagoa, o que aliás se compreende pelo facto de se tratar de modalidades distintas de criação de gado. Em Lagoa é possível, em determinadas épocas do ano e em determinados lugares, a criação dar-se em regime de pastagem extensivo, ao passo que em Ribeirão o gado é criado sempre em regime de enclausuramento e globalmente nos arredores das casas dos respectivos donos. Além do mais, a criação de gado em Ribeirão não se encontra ligada a nenhuma indústria doméstica como acontece com a indústria de queijo associada à criação de caprinos em Lagoa ou indústria de manteiga associada à criação de bovinos na ilha de Santiago. É visível que a criação de caprinos em Lagoa proporciona maiores rendimentos que em Ribeirão. Porém, a sua criação desempenha um papel importante na estratégia da sobrevivência dessas famílias. Ao contrário de Lagoa, em Ribeirão as pessoas apostam muito na criação de bovinos. As condições naturais são muito mais propícias. Ribeirão sujeita-se a menos períodos de seca e, além do mais, esteve sempre ligada à agricultura de regadio, ainda que no passado este tipo de agricultura tivesse sido pouco expressivo. Em Cruzinha, a criação de gado como caprinos e bovinos tem, no sistema de estratégias das famílias desta localidade, um peso bastante reduzido. Aliás, são muito poucas as

204 famílias que vivem ligadas à agricultura, uma actividade de que depende em larga medida a criação desses animais. Em relação à criação de bovinos podemos avançar que apenas duas famílias a praticam. Já em relação à criação de caprinos, importa dizer que apesar de existirem muitas mais famílias que a praticam ela não deixa de ser pouco expressiva comparativamente à localidade de Ribeirão e muito mais ainda a de Lagoa. Na esteira da análise da criação de gado é importante também referir que animais como galinhas e porcos são duas espécies de animais que ocupam um lugar central nos modos de vida das famílias do meio rural cabo-verdiano e este facto é visível nas três localidades em estudo. A criação de gado em Santo Antão, como de resto acontece em todas as ilhas de Cabo Verde está constantemente sujeita a um conjunto de condicionalismos, alguns deles de carácter estrutural, designadamente a seca e a consequente falta de pastos, outros decorrentes de inexistência de medidas de políticas consistentes em matéria de desenvolvimento deste sector como a introdução de espécies de forragens que mais se adeqúem às características da pecuária no país. Particularmente em Lagoa refira-se que durante o período entre 2005 e 2007, em que não choveu, muitos animais morreram. A situação era tal que despertou interesses de vários actores sociais tendo em vista a dinamização de acções para amortizar os impactos que ela resultaria na vida das famílias desta localidade. Além da própria associação local, ou seja a ALVLC, intervieram as Câmaras Municipais da Ribeira Grande e do Porto Novo, Ministério do Ambiente Desenvolvimento Rural e Pescas, e Atelier-Mar, com projectos e programas para responder no sentido de mitigar os efeitos dessa crise. A criação de gado enfrenta ainda o problema de os criadores não disporem de capacidade financeira para fazer face à carência de pastos e, desta forma, a compra de complementos alimentares. Não obstante as múltiplas adversidades intrínsecas a criação de gado em Santo Anão estamos perante uma actividade que ocupa uma posição central no sistema de sobrevivência das famílias. E se é certo que ela tem alguma relação com o mercado, esta relação estabelece-se não com vista a acumulação de capital ou numa perspectiva capitalista mas sobretudo tendo em vista a aquisição de outros bens essenciais à sobrevivência das famílias rurais. Aliás como demonstrou Couto para o caso da comunidade de Água de Gato no concelho de São Domingos na ilha de Santiago. Nesse

205 estudo, corroborando Finan e Belknap apud Couto (2001: 166), o autor afirma que “o gado constitui por isso recursos facilmente transformáveis em moeda” e, por conseguinte, “a venda eventual do gado tem por função a obtenção de ingressos monetários para a compra de alimentos, melhoria de habitação e para a compra de materiais escolares” (Couto, 2001: 166). Na verdade, é para aplicar em todas as necessidades inerentes ao modus vivendi das famílias do meio rural em contexto de precariedade.

4.1.4 Empregos público e privado num espaço social em mudança

Actualmente, devido às progressivas transformações a que os espaços sociais rurais têm sido sujeitos, podemos encontrar ali, vários tipos de ocupação profissional das populações. Tal facto deve-se, por um lado, à expansão dos serviços públicos e, por outro, ao surgimento de novas formas de investimento público ou ainda de novas dinâmicas sociais particularmente aquelas que resultam da organização da sociedade civil designadamente as associações de desenvolvimento comunitário (ADC). Em qualquer uma das três localidades que integram o domínio geográfico da nossa pesquisa, é comum encontrarmos hoje uma vasta gama de ocupação profissional que se situa fora do limite conceptual do sector primário ou mesmo do sector secundário, enquadrada na área da administração pública, quer nas esferas do estado, quer na das autarquias locais e enquadradas também dos sectores semi-público 162 e privado cobrindo as mais diversas dimensões de prestação de serviços. Esta é uma situação contrária àquela que dominou o mundo rural cabo-verdiano há duas décadas. Associadas ao estado podemos encontrar ocupações como as de professor, cozinheiras, auxiliares educativos, segurança, guardas florestais, agentes sanitários. As autarquias oferecem empregos nas áreas de educação pré-escolar, saneamento, distribuição de água, agentes administrativos, segurança, entre outros. Em relação ao sector privado, encontramos profissões como balconistas de estabelecimentos comerciais, motoristas de transportes, etc.

162 Referimo-nos a sectores promovidos pelas organizações da sociedade civil, como as associações não- governamentais, associações de desenvolvimento comunitário e cooperativas.

206 No domínio do sector semi-público prevalecem os empregos criados pelas cooperativas e ADC e ligados ao sistema de produção e distribuição de água, como aquela que encontramos em Ribeirão e em Lagoa, marítimos como aquela que encontramos em Cruzinha, agentes comerciais, entre outros. Em relação a algumas dessas ocupações, como as de professor, o salário atinge um nível bastante satisfatório no contexto salarial nacional, ou seja, tendo em conta o salário médio praticado pelo estado, pelo menos de acordo com as opiniões recolhidas junto desses profissionais que trabalham nessas localidades. Apesar disso, esses profissionais complementam esta fonte de rendimento com outras ocupações, nomeadamente nas explorações agrícolas ou ainda nas pequenas indústrias domésticas tradicionais. A pluriactividade é uma prática comum nos espaços sociais rurais. O senhor Nataniel de Lagoa é casado e tem três filhos. É guarda-florestal há 23 anos e segundo o seu relato, ganha pouco apesar de ser chefe de guardas florestais no perímetro que se encontra sobre a sua jurisdição, mas não quis dizer quanto ganha. Por isso, dedica-se também à agricultura de sequeiro e à criação de gado e produz queijos. Cria 12 cabeças de cabra e algumas vacas. Além do mais, conseguiu que a mulher trabalhasse na distribuição de água de cisterna comunitária. Ela foi ocupar o posto que era antes ocupado pelo senhor Leonardo, que havia cedido o seu terreno para a construção de uma cisterna comunitária e, de entre outras compartidas, foi-lhe assegurado que quando a cisterna funcionasse ele ficava encarregue de vender água à população o que, de facto, se verificou apenas durante os seis primeiros meses, porque a associação resolveu substitui-lo pela esposa do Sr. Nataniel que justificou a saída do senhor Leonardo da seguinte forma:

o senhor Leonardo deixou de vender água porque arranja muita guerra. Por isso a associação resolveu-se tirar-lhe de vender água. É verdade que a cisterna foi construída no terreno que ele próprio cedeu aos japoneses para que possam fazer as obras. Mas ganhou muito com a cedência do terreno. Enquanto construíam a cisterna ele era guarda de ferramentas e ganhava seis mil e tal escudos por mês.

Outros recorrem à pesca como actividade complementar. Um outro guarda-florestal, o senhor Horácio de Cruzinha é casado e tem também três filhos.

O meu salário não é grande coisa. Com dez mil e quinhentos escudos não dá para viver. Para ajudar recorro muitas vezes à pesca. Mas também se aparecer uns dias de trabalho aproveito-os.

207

Todos adoptam estratégias complementares conforme as características das suas respectivas localidades. Em Cruzinha, ligam essas actividades à pesca ou a pequenos expedientes (cujo conceito vamos abordar mais adiante) no comércio formal ou informal, agricultura criação de animais designadamente galinhas e porcos, etc. Em Lagoa e Ribeirão essas profissões são complementadas com actividades agrícolas e criação de animais. Em alguns desses casos juntam-se-lhes também as remessas dos emigrantes, um assunto que também vamos retomar mais adiante. Os contornos que a pluriactividade assume no sistema de estratégias de sobrevivência nos espaços sociais rurais levam a que, por vezes, seja muito difícil distinguir a estratégia de sobrevivência principal da secundária. Devido à carência de emprego público no meio rural, as pessoas que têm o privilégio de ter um emprego regular dão grande importância a este facto. O Sr. Nataniel constrói o seu trabalho assim:

Quem me pôs a trabalhar como chefe de guarda-florestal é o senhor Delegado do Ministério de Ambiente Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos. Mas não foi porque somos amigos. É o reconhecimento do trabalho feito anteriormente. Guarda- florestal é um trabalho sério. Um chefe de guarda tem que marcar presença dos guardas, deve ter cuidado para não marcar presença a um guarda que não apareceu ao trabalho, tem de estar vigilante em relação a uma árvore que caía nas estradas, em fim, exige muita responsabilidade.

Parece ganhar mais como agricultor que como guarda-florestal. Apesar disso ele não abdica desse emprego. O emprego é, para muitos, uma questão prioritária no conjunto de estratégias de sobrevivência em Lagoa. É, na perspectiva dos moradores, o factor determinante na saída dos jovens para outras ilhas, designadamente São Vicente e Sal. Sara de Lagoa disse que, para dizer-lhe verdade, antes de encontrar este emprego pensei ir trabalhar para a ilha do Sal. Mas agora que já tenho um emprego não penso sair daqui para ir a nenhum lugar. Ela não ganha muito, pois o salário anda à volta dos 14.000$00 mensais. Não obstante, esse emprego é suficiente para obrigá-la a ficar na sua aldeia. Ela é jovem. Tem pouco mais de 20 anos. Poderia estar a pensar em ter acesso a outras coisas que também são importantes para a sobrevivência de uma pessoa. Mas o emprego é prioritário. Ou seja, uma fonte fixa de rendimento.

208 Na ausência de ocupações ligadas às áreas da administração pública que, tendo em conta o seu carácter de estabilidade e de segurança são as mais desejadas, as famílias do meio rural recorrem a outros tipos de trabalho que, de resto, são aqueles que aparecem com maior frequência, e além do mais regularidade. Globalmente, são trabalhos sazonais ou circunstanciais, promovidos também pelas instituições do estado, pelas autarquias locais e, por vezes, pelas organizações da sociedade civil locais. É importante ainda frisar que estes trabalhos são basicamente executados num contexto informal e aparecem espontaneamente. O acordo é celebrado por um simples “podes começar a trabalhar na semana que vem”. Uma parte executa um determinado trabalho e outra parte atribui-lhe uma remuneração. As bases do contrato são aquelas que perduram no tempo e no espaço. As pessoas quando são chamadas para trabalhar sabem de antemão quais são as suas obrigações e sabem os direitos que lhes assistem. São normas fixadas pela própria comunidade mas que têm em consideração as normas que vigoram em outras partes. Isso acontece motivado pela confiança mútua que se desenvolve tendo em conta a comunhão de um espaço territorial simbólico, uma estrutura que é solidificada pela relação de vizinhança. Numa situação diferente, o mínimo que acontece é uma conversa em que se procura esclarecer um conjunto de situações designadamente a fixação da natureza das funções, o horário do trabalho e a remuneração, mesmo que o acordo continue sendo verbal. Ou seja, a relação entre a entidade empregadora e o trabalhador dá-se normalmente na ausência de qualquer solenidade ou de qualquer suporte documental razão pela qual podemos designá-la de relação contratual informal. Estas são as bases que caracterizam os trabalhos públicos, os trabalhos assalariados no sector da agricultura, conhecidos em Santo Antão por trabalho de enxada e trabalhos de construção civil que representam para as famílias do meio rural de Santo Antão uma importante fonte de rendimento e, consequentemente, fazem parte integrante do seu sistema de estratégias de sobrevivência. Centrando agora nos trabalhos públicos, refira-se, em primeiro lugar, que este tipo de emprego no meio rural cabo-verdiano tem suas raízes fundadas no período colonial. Surge, no âmbito do “Programa de Apoio às Populações” como uma medida de resposta imposta pelo governo colonial, a um contexto de crise provocado pelas secas que assolaram o país durante a década de 60 do século passado associado a uma situação económica internacional desfavorável por um lado, mas por outro, como uma estratégia

209 de legitimar a sua posição de colonizador face uma conjuntura de fortes pressões anti- coloniais quer a nível externo quer a nível interno (Correia e Silva, 2001). Para este autor, a implementação do programa que sustentou o emprego público na época foi de grande relevância para o país, pois,

As obras públicas então desenvolvidas contribuem decisivamente para a unificação da sociedade. Isto pelo menos de dois modos. Por um lado, as estradas construídas desencravam o território, permitindo a circulação mais acelerada de pessoas, bens e ideias. Por outro, o assalariamento põe as pessoas em contacto directo e permanente com o Estado e o mercado, reduzindo assim a autonomia que este actor social detinha anteriormente face a estas duas instituições socialmente integradoras (Correia e Silva, 2001: 59-60).

Contudo, a expressão Frente de Alta Intensidade de Mão-de-Obra (FAIMO) atribuída a este tipo de emprego passou a ser conhecida em Cabo Verde no decorrer dos anos oitenta para definir

antigas frentes de trabalho públicas executadas pelas Brigadas de Fomento Agrário – BTFA, de Estradas – BECE e Hidráulica – BECOH, designadas também por frentes de construção de ESTRADAS, frentes de APOIO, frentes de EMERGÊNCIA, ou então, simplesmente TRABALHOS DE ESTRADA, que era como o povo designava os trabalhos públicos abertos por ocasião das grandes secas e fomes. Têm constituído a principal rede de segurança alimentar dos pobres no mundo rural e caracterizam por ser trabalho de natureza temporária com duração que varia entre 5 a 6 meses no período de 12 meses. Também acaba igualmente por designar todo o tipo de obra pública executada por administração directa das Administração do concelho, Secretariado Administrativo ou do Estado, através dos Ministérios da Agricultura e das Obras Públicas 163.

Actualmente o emprego público continua a ser financiado, na maioria dos casos pelo Estado, através do Ministério do Ambiente e Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos e do Ministério das Infra-estruturas e Transportes e pelas Câmaras Municipais e é quase sempre, assegurado ao nível da coordenação pelas ADC. Em Santo Antão, tal como no passado, o emprego público tem sido orientado basicamente pelos trabalhos de correcção torrencial, construções de diques, socalcos, florestação, etc. reparação de estradas e caminhos vicinais, e construções de infra- estruturas. Os salários que se praticam neste tipo trabalho são muito variáveis. Nota-se que em Lagoa uma mulher ganha 275$00 por dia. No entanto, se o trabalho for promovido pela

163 João Cardoso no artigo intitulado (s/d), “As secas cíclicas” publicado no jornal electrónico Liberal on- line.

210 Câmara Municipal o preço é ainda mais baixo, ou seja, 245$00. Já os homens ganham cerca de 300$00 por dia. Nas outras duas localidades os salários praticados são substancialmente mais elevados. Em Ribeirão, os homens auferem 500$00 ao dia e as mulheres 400$00, enquanto em Cruzinha os homens ganham 600$00 e as mulheres 500$00. A diferença entre as remunerações emana da estratégia das associações em gerar excedentes e fazer aumentar os seus fundos que serão revertidos depois para pequenos projectos comunitários ou para resolver problemas inadiáveis que afligem a comunidade. Voltando aos salários praticados nos trabalhos públicos devemos realçar que o valor que lhes é inerente é percepcionado pelas populações locais como sendo muito baixo, apesar de os trabalhos decorrem entre as 7 e as 11 horas e os seus beneficiários ficarem com o resto do dia para fazer outros trabalhos, nas respectivas meradas 164, cuidar dos animais, abastecer-se de água e várias outras coisas. A lógica da abertura dos trabalhos públicos nas três localidades varia em função dos principais meios de sobrevivência que as famílias adoptam. Se, por um lado, em Cruzinha estes trabalhos visam cobrir as necessidades que decorrem do período de mar mau, em Lagoa e Ribeirão são para cobrir necessidades que decorrem de maus resultados agrícolas, sendo que em Lagoa essa situação tem efeito catastrófico na criação de gado mais que em Ribeirão, pois ali as pessoas dependem muito mais dessa actividade. Por vezes, as pessoas percorrem longas distâncias para integrarem uma frente de alta intensidade da mão-de-obra, dada a importância que atribuem a esta fonte de renda para a sua sobrevivência. Os trabalhos públicos são profundamente marcados pelo ambiente que se vive em seu seio. Apesar de os trabalhadores procurarem se divertir, eles não conseguem esconder o sentimento de exploração e de revolta que invadem as suas expressões faciais, decorrentes do destino que a vida lhes reservou. Não obstante, este emprego continua a ter uma particular importância na estrutura de estratégias destas famílias, quanto mais não seja porque representa para elas um rendimento certo, como ressaltam as afirmações do Sr. Benjamim de Cruzinha:

164 Termo usado na ilha de Santo Antão para se referir a trabalhos praticados nas explorações agrícolas.

211 trabalhar nas frentes é mais seguro de ponto de vista de ganhar o dia. Uma vez que você vá ao trabalho você ganha sempre um dia de trabalho. Isso não acontece com o mar em que por vezes você vai e não consegue dizer nada. Mas as pessoas não desgostam do mar.

Além do emprego público, as famílias recorrem aos trabalhos de enxada, ou seja, trabalhos de agricultura em terras de outros agricultores que fazem recurso ao assalariamento para cultivar as suas terras. Quando se dá o pequeno-almoço e almoço os seus proprietários oferecem um salário de 600$00. Quando não dão refeição eles oferecem 700$00. Nestes trabalhos o salário é igual para homens e mulheres. Em relação aos trabalhos de enxada na agricultura de regadio um trabalhador pode auferir 900$00 ao dia. Os trabalhos no sector da construção civil promovidos por particulares, designadamente emigrantes e estrangeiros, estes com maior incidência em Cruzinha, são outras possibilidades que as famílias rurais têm de gerar rendas. Aliás, a propósito da presença dos estrangeiros, Sr. Benjamim vê nisso como um grande benefício para a comunidade, pois, segundo ele, Isso resulta numa oportunidade de emprego para algumas pessoas. O Sr. Eugénio é pedreiro e é um daqueles que tem trabalhado com um dos estrangeiros residentes em Cruzinha.

Trabalhamos de segunda à sexta-feira e ele paga a um pedreiro 1400$00 por dia. Mas os outros particulares pagam 1200$00. Ainda bem porque se fosse na Câmara Municipal ganhava cerca de 500$00.

Um outro aspecto que para nós é de extrema importância para a compreensão dos modos de vida e estratégias de sobrevivência das populações do meio rural em Santo Antão tem a ver com o facto de muitas pessoas, mas tendencialmente os homens definirem a sua ocupação ou profissão como “trabalhador”. Observa-se que nestas circunstâncias as pessoas se entregam a qualquer tipo de trabalho que aparecer. Neste sentido o que mais importa é ganhar alguma coisa todos os dias. O Sr. Edmundo é um desses que retrata bem o que é ser trabalhador.

A minha profissão é “trabalhador”. Se encontrar um trabalhinho faço. Ora faço trabalho da Câmara ora faço trabalho de particulares. Os trabalhos da Câmara são assegurados pela associação. Mas também cuido dos animais de umas pessoas de fora e elas pagam- me 300$00 ao dia. Mas também crio uma vaca que é minha. Tenho também esta mercearia que foi aberta há sensivelmente um ano.

212 Ser trabalhador é, no fundo, fazer cumprir integralmente as obrigações inerentes a um ofício. É não ficar sentado enquanto há algo por fazer. É labutar com base na renovação permanente dos objectivos e dos interesses em relação aos quais se encontra veiculado. A presidente de Associação das Mulheres de Cruzinha, a senhora Maria de Fátima, aprecia a capacidade das famílias de Cruzinha em se desenrascarem perante situações difíceis, nesses termos:

Os pescadores integram-se em vários tipos de trabalho. Você encontra gente que rola pedras que parte pedras, que cultiva terras, que faz paredes, etc. Ou seja tiram dias de trabalho nas frentes, nos trabalhos de agricultura (nas suas próprias parcelas a trabalhar a meia ou em parcelas de terceiros como assalariado) em trabalhos de pessoas nas suas casas, ajudam a carregar coisas e recebem alguma coisa em troca, etc.

A utilização, pelas populações do meio rural na ilha de Santo Antão, do termo “trabalhador” para designar uma ocupação ou profissão, acaba por alavancar uma nova forma de manifestação da pluriactividade neste espaço social. O sentido que este termo assume no presente contexto pode reflectir a presença cada vez maior de actividades não agrícolas no meio rural (Schneider, 2001) e consequentemente, a emergência de novas formas de reprodução de estratégias de sobrevivência das famílias do meio rural. É importante ainda ressaltar que, para além dos trabalhos acima referenciados como estratégias de sobrevivência das famílias do meio rural santantonense existem vários outros tipos de ocupação exercidos numa clara perspectiva de complementaridade, como trabalhos ligados à barbearia, sapataria, comércio informal fixo (mercearia, venda de bebidas alcoólicas, vendas de telecomunicações, bailes populares, etc. e algumas vendas ambulantes). Em Cruzinha, as senhoras que vivem da venda de peixe procuram complementar esta actividade com a venda de outros produtos, como hortícolas que compram nos sítios onde vão vender peixes para revenderem na aldeia. Existem Guardas privados (casas, terrenos), em qualquer das localidades e alguns trabalham nos transportes colectivos, como condutores profissionais. Feitas estas considerações convém então frisar que muitos residentes consideram que, tendo um trabalho fixo, dificilmente pensariam deixar as suas aldeias para irem viver nos centros urbanos. Alguns dizem que nem sequer pensariam emigrar. Essas opiniões se referem a elas próprias como a outras pessoas.

213 Além do mais, na maioria dos casos em que as pessoas tomam o emprego como condição essencial para se fixarem na sua aldeia nem sequer estabelecem um limite mínimo de salário necessário para a reprodução de uma condição de vida minimamente desejável. A partir destas constatações podemos dizer que um emprego, independentemente do salário, é visto como uma condição si ne qua non para a fixação das pessoas nos seus espaços de sociabilidade. Este representa, para muitos, mais do que uma simples fonte de rendimento. O emprego confere às famílias a segurança e estabilidade mesmo que o rendimento que dele se consegue seja considerado baixo. Esta representação que as pessoas constroem do “trabalho fixo” tem como sustentáculo a possibilidade de se complementar os rendimentos provenientes desse trabalho com os rendimentos provenientes de agricultura ou pesca, criação de gado, remessa dos emigrantes, apoios que podem conseguir no quadro das dinâmicas de desenvolvimento local, etc. Esta é a razão porque as pessoas consideram que uma pensão de reforma, que representa uma renda de pouco mais de quatro mil e quinhentos escudos, importantíssima para garantir a sua sobrevivência. É claro que estas pessoas gostariam que as respectivas pensões fossem num valor muito superior. No entanto, apesar de ser para muitos uma quantia irrisória, não deixa de ter um papel importante nos modos e estratégias de vida das famílias rurais.

4.2 Estratégias complementares de sobrevivência das famílias no meio rural.

Antes de prosseguirmos com o desenvolvimento deste ponto, nos parece conveniente reportar o facto desta tipologia de estratégias de sobrevivência das famílias do espaço social rural integrarem práticas sociais como (i) a poupança, (ii) solidariedade social e entreajuda, (iii) jobs, expediente e desenrasque (iv) trabalhos de base não contratual e (v) remessas dos (e)migrantes e opção pela (e)migração, algumas das quais integram o conceito de sentido oculto dos detalhes da vida social referenciado por Machado Pais (2008). Tais práticas sociais, como veremos, são marcadas não tanto pela sua regularidade com que integram os modos de vida e estratégias de sobrevivência das famílias do espaço social rural mas sobretudo pelo seu carácter imprevisível, espontâneo e criativo, um

214 aspecto que resulta de múltiplos factores sejam eles de ordem temporal, sejam eles ainda de ordem circunstancial e estrutural. Todavia, é importante ressaltar que, certas estratégias que integram esta categoria, designadamente jobs e desenrasque são aqui apropriadas, a partir de expressões muito utilizadas pelas populações locais aludindo a uma prática social perfeitamente integrada no seu quotidiano. Posto isto vamos concentrar agora na análise de cada uma delas, pela ordem como as expomos acima.

4.2.1 Poupança

Se, por um lado, a atitude de poupar é um assunto muito explorado no campo da economia no seio da qual surgiram várias teorias, e podíamos estar aqui a referir à teoria keynesiana de consumo e poupança, à teoria do consumo da renda permanente de Milton Friedman, ou ainda à teoria de ciclo de vida de Franco Modigliani, já no campo da sociologia e antropologia não se pode dizer o mesmo. Podemos inclusivamente afirmar que se trata de um assunto em relação ao qual estes dois ramos das ciências sociais têm dado uma atenção pouco expressiva. E talvez por isso, tenhamos dificuldades em encontrar estudos neste domínio relacionados com Cabo Verde. Algumas abordagens que se fizeram sobre a poupança em Cabo Verde foram no âmbito da realização de estudos exploratórios encomendados, em regra, pelas instituições públicas, e alguns trabalhos académicos. Além do mais, verifica-se que na maior parte dos casos esses trabalhos se centram muito subtilmente na questão da poupança. E quando é dada alguma atenção ao tema a análise é feita à margem de questões ligadas aos modos de vida da população do meio rural. Podíamos estar aqui também a apresentar alguns exemplos de trabalhos onde a questão de poupança numa perspectiva sociológica e/ou antropológica é analisada e indicar o documento de Estratégia de Crescimento e de Redução da Pobreza (DECRP) elaborado pelo Ministério das Finanças e do Planeamento de Cabo Verde, em 2004, um trabalho de Carlos Sangreman Proença sobre a Exclusão social em Cabo Verde: uma abordagem preliminar, mandado elaborar pela Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP) em 2004, etc.

215 Ainda assim, ao compararmos as abordagens que têm sido feitas sobre esta matéria, por um lado, no campo da economia e, por outro, no campo da sociologia e da antropologia, emerge de forma inequívoca uma acentuada diferença de perspectivas de análise. Enquanto a abordagem de carácter economicista se envereda para uma perspectiva mais quantificável da poupança, as abordagens de carácter sociológico e antropológico privilegiam a perspectiva sociocultural. A partir desta base comparativa podemos enumerar outros termos que têm sido utilizados para estabelecer a diferença de abordagens desta mesma realidade social. Costuma-se, por exemplo, distinguir essas abordagens a partir do grau de normatividade que se lhes imputa, ou seja, atribui-se habitualmente à perspectiva economicista o carácter sistemático e às perspectivas sociológicas e antropológicas o carácter espontâneo. Mas também o destino que se dá à poupança surge como um elemento diferenciador das duas abordagens. Se, de um lado, a perspectiva economicista atribui maior relevância ao investimento, as perspectivas sociológicas e antropológicas valorizam mais a dimensão do consumo. Apesar disso, isto é, tendo em conta o contexto que serve de base para a abordagem da poupança, associado aos propósitos traçados para este capítulo em particular, preferimos incidir a nossa abordagem nas duas dimensões a ela inerentes: ou seja: - Uma dimensão em que ela é assumida como estratégia de sobrevivência das famílias do meio rural em Santo Antão, em relação a qual sobressai a atitude de se proceder à reserva de renda ou bens consumíveis como forma de precaver cenários de crise derivada de fenómenos naturais globalmente evidenciados pela escassez ou irregularidade das chuvas, ou mesmo derivada de qualquer eventualidade que possa traduzir na precariedade de bens de primeira necessidade, e - Uma dimensão em que é vista como uma prática que traça como objectivos de forma implícita ou explícita alcançar resultados que se situam para lá dos mecanismos de sobrevivência, ou seja, que expressa a atitude de reservar recursos financeiros tendo em vista a realização de investimentos em equipamentos que permitam aumentar a capacidade produtiva. Mas, antes de prosseguirmos com a análise da poupança no meio rural, é preciso ter presente que as estratégias de sobrevivência dominantes neste espaço social não se expressam da mesma maneira em todas as localidades. Antes pelo contrário. Elas variam de acordo com as especificidades naturais, económicas e históricas que

216 caracteriza cada uma delas. Esta posição vai na linha defendida por Lopes Filho, para quem,

(…) em Cabo Verde, o factor humano está intimamente ligado à fisionomia da paisagem ecológica, expressa numa vida de esforço constante e numa simbiose, onde se gera uma influência recíproca entre o meio ambiente e a dinâmica socioeconómica da população.

E prossegue dizendo ainda que,

para tanto, actua sobre o meio, ao fazer nele incidir toda a sua vitalidade e técnica, de modo a levar a cabo o seu próprio projecto de vida, podendo dizer-se que à realidade de espaço geográfico se opôs a realidade objectiva do espaço habitável, nascido da iniciativa humana, condicionalismos que forjaram um acentuado apego do cabo-verdiano à sua terra 165.

Para as famílias de Lagoa e de Ribeirão que, como já vimos, adoptam a agricultura, a criação de gado e o emprego público como principais estratégias de sobrevivência, a poupança incide em três aspectos fundamentais: poupa-se o dinheiro que em tempos não muito recuados era entesourado, ou seja guardado de diversas formas na própria habitação e que hoje algumas famílias recorrem a instituições bancárias; géneros alimentícios, designadamente os com maior capacidade de conservação, como são os casos de milho e feijão, normalmente depositados em tambores e garrafões e, por último, o pasto, conservado em palheiro. Já para as famílias de Cruzinha, onde a agricultura e criação de gado integram de forma menos intensa a sua estratégia de sobrevivência, a atitude de poupança incide fundamentalmente num único aspecto, isto é, na reserva de uma certa quantia em dinheiro. Esta é a ideia que nos serve de fundamento para inferir que a atitude de poupança das famílias do espaço social rural nem sempre é expressa da mesma maneira. Mas, apesar disso, importa sublinhar que existe um pressuposto comum a todas as atitudes de poupar. Isto é, em qualquer uma das localidades em análise a atitude de poupar parte de uma base psicológica que é a de precaver o futuro. Rebeca, uma jovem de 22 anos teceu-nos a seguinte consideração:

o segredo para a sobrevivência de pessoas em Cruzinha em épocas que o mar não dá nada é a capacidade de poupança. Quando aparecer algum recurso ele é poupado para os dias mais difíceis ou seja, dias em que não aparecem.

165 Lopes Filho, João (2007), Imigrantes em terra de emigrantes, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia (p. 19).

217 A opção pela poupança é motivada fundamentalmente para precaver uma situação de crise futura causada pelas secas prolongadas para uns, ou pelas más condições do mar para outros, isto é, trata-se de uma estratégia de minimização de riscos. Nota-se que as pessoas de Cruzinha têm menos propensão para poupança que as de Ribeirão e Lagoa. Existirão provavelmente muitas explicações que podem sustentar esta ideia, algumas das quais centradas no domínio da psicossociologia. Mas como se pode compreender, este é um debate para outros espaços. Já em relação à seca, um fenómeno directamente relacionado com a agricultura, uma actividade que integra as estratégias das populações das outras duas localidades, ninguém consegue prever quando é que ela ocorre, razão pela qual nos parece que a atitude de poupar é melhor integrada no quotidiano das famílias que ali vivem. Seja como for, ao adoptar a atitude de poupança, as famílias estão a precaver-se contra a flutuação da renda causada por factores de ordem maioritariamente natural que não podem controlar. Os aspectos acima mencionados são, grosso modo, as formas de precaução da flutuação de renda. A atitude de poupar associa-se a um conjunto de variáveis (Vanh Veldhoven e Groenland, 1993): Desde logo o clima económico que conta com a participação de factores como o crescimento, inflação, taxa de juro, taxa de desemprego; a informação económica; o contexto económico pessoal assente na perspectiva do lucro e, por último, o contexto institucional, através das condições que resultam do sistema bancário e fiscal. Estes são, porém, aspectos que se situam num campo eminentemente económico e que ganham maior sentido quando associados a um campo mais vasto que integra domínios como o psicológico, cultural e social, quanto mais não seja porque as famílias que integram as nossas unidades de análise reactivam a conduta de poupar conforme o resultado do ano agrícola anterior, conforme a previsão que fazem sobre a produção agrícola do ano seguinte, ou a sua situação perante o emprego público, conforme o fluxo da remessas dos familiares (e)migrados, o contexto económico ou mesmo político vigente, ou ainda conforme as idades que têm, etc. Além do mais, as famílias do meio rural poupam para se precaverem de situações de doença que podem ocorrer na família e que podem implicar em despesas adicionais e, em certa medida, imprevisíveis, como podem se reflectir na vicissitude de não poder trabalhar e logo não ter rendimento.

218 As famílias do meio rural poupam ainda para adquirirem mobiliário ou para se apresentarem bem numa festa popular, designadamente ao nível do vestuário que ostentam nesse dia. Uma segunda dimensão da poupança resulta da perspectiva de aumentar a capacidade produtiva. Esta dimensão é evidenciada através de várias opções, mas pelo menos quatro delas merecem a nossa apreciação: aquisição de terras; aquisição de cabeças de gado; aquisição de pasto e de rações e aquisição de equipamentos de pesca. Vários economistas clássicos, entre os quais John Keynes, associam o consumo e poupança à renda corrente disponível. Mas, algumas teorias, como a do consumo de renda permanente, defendem que o consumo e poupança dependem também da expectativa que as famílias têm em relação às fontes de rendimento futuras. O sentido que se atribui à poupança muda conforme a perspectiva utilitarista sustentada pela filosofia utilitarista ou perspectiva romancista suportada pelo romantismo (Campell apud Mesquita, 2007). Qualquer que seja a perspectiva do consumo, a poupança no contexto de baixa renda pressupõe quase sempre privação da satisfação da necessidade e logo a privação do prazer que a satisfação da necessidade lhe proporciona, pois um prazer não satisfeito acaba por se traduzir numa necessidade. Parece existir no meio rural alguma ligação entre as poupanças para o investimento e para o consumo, ainda que nem sempre perceptível pela análise discursiva dos seus actores. Isto pode significar que a ideia, muitas vezes defendida, de que as pessoas do meio rural são pouco propensas ao investimento pode carecer de fundamento. É inegável que as ideias do investimento das famílias do meio rural se circunscrevem às realidades que constituem o seu quotidiano. Quem, por exemplo, adopta a agricultura e criação de gado como a principal estratégia para a sua sobrevivência privilegia como objecto de investimento actividades que se situam muito próximas destas estratégias. A atitude de poupar inscreve-se no domínio psicossocial ainda que tenha uma lógica teleologicamente racional. Constitui um arcabouço psico-socio-cultural de muito grande importância, cuja maioria de aspectos se encontra ocultada pelo valor que a economia atribui a esta vertente da vida social. Apesar disso, esta prática deve merecer um olhar atento na medida em que, uma vez potenciada, pode consubstanciar-se num mecanismo de proporcionar a melhoria das condições de vida das famílias do meio rural.

219

4.2.2 A solidariedade social e entreajuda

Sempre que se fala em solidariedade no contexto das ciências sociais é normal vir à tona o sentido que lhe foi atribuído pelo Émile Durkheim. Refira-se então que para procurar compreender a ordem social este clássico da sociologia preconizou dois tipos de solidariedade, isto é a solidariedade mecânica, um tipo de solidariedade patenteado pela ideia de coesão social ou consciência colectiva e a solidariedade orgânica, um tipo de solidariedade onde prevalece a diferenciação social. O primeiro tipo de solidariedade é visto por Durkheim como característica dominante das sociedades primárias e o segundo se refere às sociedades modernas onde o interesse e consciência individuais são bastante acentuados 166 . É nesta perspectiva que se costuma imputar as características de solidariedade mecânica às sociedades do meio rural e de solidariedade orgânica às sociedades do meio urbano. Hoje, considerando o contexto socioeconómico que se vive, decorrente da hegemonia do capitalismo, em que as relações sociais são profundamente marcadas pelos enigmas do individualismo, pelo conflito e por rupturas sociais (Giddens, 1991) é muito comum ouvir falar em solidariedade como via para combater as desigualdades sociais através da intervenção das organizações da sociedade civil, ou mesmo de partidos políticos, suportados pelos valores da moral, da religião ou da ideologia, sob a forma de caridade ou de políticas públicas. Concomitantemente, é muito frequente as pessoas, que vivem ou consideram viver em situações socioeconómicas mais desfavorecidas, clamarem pela solidariedade como também é frequente fazer parte dos discursos dos actores sociais que dinamizam processos de desenvolvimento local, ideias voltadas para a importância da solidariedade social no combate à pobreza, na promoção de economias locais. São, por vezes, discursos elaborados em torno do conceito de economia solidária, como aliás vimos no capítulo anterior. Fala-se, actualmente, muito frequentemente em solidariedade social a ponto de parecer irrelevante referenciá-la aqui como estratégia de sobrevivência das famílias do meio rural. Todavia se se colocar a hipótese de que a elevada frequência com que a solidariedade integra os discursos dos agentes sociais não resulta do facto de a

166 Vide Durkheim, Émile (1989), A Divisão Social do Trabalho, 3ª Edição, Lisboa, Editorial Presença, Vol I e II.

220 sociedade ser uma entidade onde é normal haver a solidariedade social, ou a que a mesma não se traduz exclusivamente numa ordem mecânica, então o que antes podia parecer irrelevante poderá deixar de o ser, pois poderá ganhar um novo sentido. É cada vez menos evidente que as características daquilo que Durkheim designa por solidariedade mecânica integram o sistema de interacção social que se estabelece no espaço social rural. Quanto mais não seja porque,

as formações sociais contemporâneas têm-se caracterizado por mutações profundas em suas formas de sociabilidade. Pluralização das identidades, individualismo, novas formas de conceber e praticar a solidariedade social, o surgimento de novos movimentos sociais e culturais são os aspectos mais salientes e plenos de sentido que se pode localizar nessa transformação de largo alcance (Domingues, 2006).

Mas, a ideia de que a solidariedade social é tida pelas famílias do meio rural, particularmente em Santo Antão, como uma estratégia de sobrevivência muito importante ganha relevância quando se apercebe que esta solidariedade preenche espaços sociais que vão para lá dos limites geográficos e de sociabilidade primária de uma dada comunidade, pelo que podemos identificar, além de uma solidariedade que tem como pilares a caridade, compaixão e investimento (no sentido em que, por exemplo, uma pessoa presta ajuda hoje para poder ser ajudada amanhã), mas também no sentido em que ela se reporta para cooperação, ajuda mútua, reciprocidade de interesses (Goerck, 2009: 42) e um outro tipo de solidariedade no meio rural motivada fundamentalmente pela natureza do sistema democrático vigente, tal como pela lógica de troca de interesses em que o sentido do “eu” domina claramente o sentido do “outro”. Este segundo tipo de solidariedade verifica-se tendo em conta ganhos concretos que se projecta alcançar num futuro imediato ligado aos propósitos eleitorais 167. O primeiro tipo de solidariedade dominante no meio rural aqui considerado como base de relações sociais reproduz-se no quadro das vivências que são operadas na comunidade e, neste sentido, desencadeia-se tendo em conta aspectos de ordem marcadamente endógena, quanto mais não seja porque é justificada pela relação de vizinhança e companheirismo, familiaridade e amizade. Além do mais, este tipo de solidariedade decorre, por vezes, da comunhão de certos valores ou, utilizando a terminologia de Durkheim, da consciência colectiva, que pode passar pela partilha de

167 Subjacente à ideia de futuro imediato está a ideia segundo a qual, este tipo de solidariedade se verifica com maior frequência em períodos pré-eleitorais.

221 um sentimento comum relacionado com o sentido de pertença (carácter identitário) a um grupo específico, real ou imaginário e decorre da manifestação da existência de carências materiais e não só. Estamos perante um tipo de solidariedade que se expressa de várias formas. Esta solidariedade é bem perceptível, por exemplo, em Lagoa, quando há carência de água provocada pela seca ou por problemas ligados à logística utilizada no processo de abastecimento de água à localidade. Nestas circunstâncias há sempre cooperação das famílias que dispõem de cisternas em relação àquelas que não dispõem dessa infra- estrutura. Aliás, nesta localidade esta prática social encontra-se intrinsecamente ligada também aos vários domínios de actividade que se imprimem no quotidiano das famílias. Desde os trabalhos de agricultura aos trabalhos de construção da habitação própria. Em Santiago, essa natureza da solidariedade é vulgarmente conhecida por djunta-môm. Mas há ainda outras dimensões da solidariedade como se pode apreender da conversa que tivemos com um guarda-florestal:

agora imagina que chega uma pessoa que passa por dificuldades económicas e pede-lhe um feixe de lenha para ir vender e comprar um quilo de arroz. Com certeza que você lhe dá. Portanto a floresta tem uma grande importância. Aliás a floresta é para ajudar as pessoas da comunidade. O que um guarda-florestal não pode fazer é ele próprio, vender lenha.

A cooperativa ocupa, no sistema de estratégias de sobrevivência das famílias de Lagoa, uma posição de grande destaque. Dois pressupostos estão na base da sua criação: dar oportunidade à população de poder adquirir os produtos de primeira necessidade na própria localidade, sem terem que fazer grandes percursos para o efeito e possibilita-las o acesso aos produtos alimentares em caso de extrema necessidade. É uma prorrogativa apenas dos sócios, submetida a um conjunto de regras: se alguém comprar mercadorias a crédito e não honrar os seus compromissos perde direito de negociar a crédito. O valor de crédito vai até 12 mil escudos. Contudo, o tempo para pagar a dívida geralmente não é muito rigidamente estabelecido. Depende, por exemplo, de quando receber o salário das Frentes de Alta Intensidade da Mão-de-Obra. Mas, se uma pessoa passar dois ou três meses sem pagar as dívidas e se esse incumprimento ficar a dever-se aos atrasos no pagamento de salários por parte da instituição promotora dos trabalhos, e que costumam ser basicamente o Ministério de Ambiente Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos e as Câmaras Municipais, ela

222 dirige-se ao Presidente da cooperativa e pede o reforço do crédito. O pedido é geralmente aceite, quanto mais não seja, porque não podemos deixar as pessoas passarem por necessidades. Há, no entanto, uma grande vigilância social em torno de créditos que as famílias pedem à cooperativa e em torno do pagamento de salários por parte desses organismos. As pessoas sabem se uma pessoa está ou não integrada numa frente de trabalho ou ligada a um trabalho qualquer que represente uma fonte de rendimento bem como, em caso das frentes de alta intensidade da mão-de-obra, quanto ganham e quando se efectuam os pagamentos. Por vezes, têm informações sobre as condições em que uma determinada pessoa se encontra a trabalhar para uma entidade privada. O comportamento solidário é, por exemplo, perceptível em Cruzinha, em situações em que o emprego público, é escasso, ou se destina a poucas pessoas, em que os responsáveis por estes trabalhos têm de o conceder, durante um certo período, a um membro de um grupo de famílias e durante outro período a um membro de outro grupo de famílias, uma modalidade que o Sr. Benjamim de Cruzinha designa por sistema giratório e que consiste em,

umas pessoas tiram umas quinzenas depois ficam em casa e deixam que outras famílias também tirem umas quinzenas e assim possibilitar que todas as famílias possam ter a oportunidade de ganhar algum dinheiro para o seu sustento.

Esta atitude que se dá motivada pelo princípio de igualdade de oportunidades verifica-se quando, por exemplo, a embarcação da associação captura pouca quantidade de peixes, numa situação em que há várias matreiras interessadas em os adquirir para a revenda. Quando assim é, costuma-se atribuir partes iguais às matreiras interessadas para que todas elas possam garantir o sustento dos filhos. Grosso modo, a solidariedade é manifestada no dia-a-dia em situações de falta de recursos básicos para levar a panela ao lume e expressa-se pela cedência ou empréstimo de um produto alimentar que vai desde o básico para confeccionar um alimento, como uma certa quantia de milho e feijão, até pequenos ingredientes como alho, cebola e óleo. Esta forma de solidariedade é desencadeada não só pelas famílias como pelos estabelecimentos comerciais. Esta é, por exemplo, um dos pressupostos da criação de uma mercearia por parte da ACNEMC, agora extinta, como suporta a lógica de funcionamento da cooperativa de consumo de Lagoa e Compainha.

223 Manifesta-se, de igual modo, através de concessão de empréstimos de pequenos valores monetários para cobrir despesas pontuais como transporte, aquisição de materiais escolares, medicamentos, através de empréstimos de utensílios que se usa nas lides domésticas ou das actividades como agricultura, pesca e criação de gado. Neste naipe de formas diferenciadas de manifestação de solidariedade estão quase sempre presentes, por um lado os sentimentos de caridade e de compaixão, sentimentos esses imbuídos de uma certa religiosidade, e, além do mais, muito mais visíveis e, por outro, o sentimento de troca, sendo este muito menos visível. Quando se relata uma atitude de solidariedade é comum utilizar-se expressões como coitadinho(a), ou ele(a) passa por muitas dificuldades, ele(a) é filho(a) de deus, ou ainda aquela situação dá pena. O de investimento ou de troca é expressa pela ideia de “hoje ela está assim quem sabe amanhã seremos nós”. Adopta-se uma postura solidária hoje para que amanhã, quando precisar, possa portanto ter onde bater à porta. Ou seja, dá-se hoje para se receber amanhã. Em Cruzinha, o espírito de solidariedade patenteado por aquela população é, na opinião de Elaine, o ponto forte desta localidade, isto é, um elemento identitário das relações sociais que ali se estabelecem. Na localidade de Ribeirão quando a chuva era escassa e o caudal de água diminuía, uma pessoa que trabalhava várias parcelas de terreno abdicava de cultivar algumas dessas parcelas para que a água pudesse chegar para todos. E tal como em Lagoa esta rede de solidariedade abrange múltiplas dimensões da vida social na comunidade. Veja-se, por exemplo, o que foi dito por uma moradora:

esta casa quem nos ajudou a adquiri-la foi o irmão do meu marido. Nós não podíamos comprá-la. Quando a compramos ela já tinha mercearia montada (prateleiras). Assim nós queríamos manter o negócio. Ele meteu cá um frigorífico e umas grades de cervejas, e fomos andando. Vamos levá-la devagarinho. No dia em que deus nos der recursos, vamos meter mais coisas, e quem sabe possamos levar a nossa vida através dela.

Um simples acto de solidariedade permite, a uma pessoa que antes vivia em situação de vulnerabilidade económica, aspirar a ter uma vida tranquila. Pode parecer que estamos perante comunidades, cujos membros reproduzem incessantemente a cultura solidária. O que acabamos de analisar são comportamentos que as pessoas adoptam como estratégias de sobrevivência. Sendo uma estratégia, significa que, por vezes, a sobrevivência pode ser assegurada adoptando uma atitude

224 completamente diferente ou mesmo oposta. Ou seja, a atitude de se repartir os peixes às matreiras para que todas possam ter oportunidade de garantir um rendimento para o seu sustento é contrariada com a atitude de se seleccionar as matreiras às quais são dadas a oportunidade de garantir rendimentos provenientes da revenda do pescado assente em critérios que não convencem a muitas famílias ali residentes. Ou ainda a atitude de colocar um bode à disposição da vizinhança para o cruzar com as suas cabras é, por vezes, contrariada pela atitude oposta ou seja de negação. São atitudes que se enquadram também no sistema de estratégias de sobrevivência assente na racionalidade da acção. O segundo tipo de solidariedade que domina as relações sociais nos espaços sociais em análise e que integra as estratégias de sobrevivência das famílias dos espaços sociais em análise assume um carácter mais institucional, assente, portanto, numa plataforma mais alargada das relações sociais, pois integra, para além dos actores circunscritos na comunidade, actores sociais, designadamente as ADC, ONG e Agências de desenvolvimento, as autarquias e os serviços desconcentrados do estado, cuja área de intervenção, é de âmbito local, regional e nacional. Daí o seu carácter exógeno. Este tipo de solidariedade ocorre num contexto em que a lógica de troca e de ganhos recíprocos é muito mais explícita e, além do mais, expressa-se através das várias acções que constituem as dinâmicas de desenvolvimento local, mas fundamentalmente através de crédito, doações ou ajudas e pensões sociais, de cuja análise vamos nos ocupar de seguida.

2.2.2.1 Do crédito

A palavra crédito tem várias acepções e como tal está relacionada com vários circunstâncias ou domínios de conhecimento. No domínio da economia, crédito pode ser entendido como,

relação jurídica baseada na confiança e que consiste na entrega por alguém a outrem de certo bem com a condição de vir a receber o pagamento dentro de certo prazo. Aquele que entrega (credor) fica senhor de um direito (crédito) sobre o que recebe (devedor) a um pagamento acordado (Chorão, 1997).

225 Segundo o documento em apreço, já numa perspectiva que extravasa o campo económico, crédito pode também ser entendido como “confiança que inspira as boas qualidades de uma pessoa”, “boa fama”, “autoridade”, “prestígio”. O crédito, visto aqui como uma prática que integra a estratégia de sobrevivência das famílias do meio rural, deve ser visto numa perspectiva diferente, ou seja, numa óptica em que a concessão de alguma coisa a alguém não pode ser redutível inteiramente à perspectiva economicista nem inteiramente anti-utilitarista mas antes numa simbiose entre uma e outra, isto é, parafraseando Martins (2005), fundada na ambivalência da reciprocidade, ou ainda, evocando Marcel Mauss, assente na ideia de facto social total, no sentido em que abrange as várias dimensões da sociedade, designadamente sociológica, económica e política (Maus, 1988). Aliás, é este o sentido que conceitos como crédito rural, microfinanças, microcrédito, crédito solidário, entre vários outros, adoptam. Apesar de serem conceitos diferentes, importa, contudo, dizer que o princípio fundamental que os norteia é basicamente o de facilitar o acesso dos mais pobres ao crédito tendo em vista contribuir para a melhoria das suas condições de vida. É assumido em muitos países, particularmente os do continente africano, como uma via fundamental para o combate à pobreza e, consequentemente, para a promoção do desenvolvimento político, económico e social (Martins, 2005). O conceito de microfinanças do qual emerge o conceito de microcrédito é relativamente recente nas abordagens das ciências sociais, designadamente economia e sociologia. Globalmente, a origem desses conceitos está associada a Muhammad Yunus, na medida em que foi ele o primeiro a experimentar a modalidade de crédito baseado no princípio acima referido, ainda nos meados da década de setenta, uma experiência que, aliás, vai dar origem em 1976 ao Grameen Bank em Bangladesh de que Muhammad Yunus foi fundador 168. Surge para ultrapassar as dificuldades que uma larga franja de população (aquela que leva designação de pobres) enfrenta no acesso a crédito nas instituições de tradicionais de crédito 169.

168 Para uma melhor integração com as experiências em torno da fundação do Grammeen Bank e pressupostos em torno de microfinanças ver Yunus, Muhammad (2008), O Banqueiro dos Pobres, Difel Editora. 169 No conjunto das maiores instituições financeiras vocacionadas para as microfinanças existentes em todo o mundo destacam-se ainda o Banco Rakyat, na Indonésia; o Banco para Agricultura e Cooperativas Agrícolas, na Tailândia; o Banco Sol, na Bolívia (Yaron, 1994: 49-70). - Yaron, Jacob (1994). What Makes Rural Finance Institutions Sucessful? World Bank Research Observer, 9.

226 Sem qualquer intenção de ser exaustivo sobre este assunto, quanto mais não seja porque não constitui um propósito fundamental deste trabalho, devemos começar por dizer que, em Cabo Verde, como de resto se compreende, o conceito de microcrédito é igualmente muito recente, como reconheceram João Serra e João Almeida num trabalho sobre o diagnóstico da microfinança em Cabo Verde (Serra & Almeida, 2000:6). Parece consensual a ideia segundo a qual, as políticas públicas em torno deste conceito começam a emergir na década de noventa, mais concretamente com a vinda para Cabo Verde da Agricultural Cooperative for Development Internacional/Volunteers in Overseas Cooperative Assistence (ACDI/VOCA) – ONG Americana com fundos provenientes do programa de Ajuda Alimentar Americana através da USAID, a African Development Foundation (ADF), mas também com a implementação do Programa Nacional de Luta Contra a Pobreza 170 (Soares, 2003:12 a15). Acresce-se ainda, a participação no sistema de microfinanças cabo-verdiano da BORNEfondem, que actuava nas ilhas de Santo Antão, Santiago e Fogo, a Cooperação Francesa, a Cooperação Luxemburguesa, a Cooperação Austríaca e a UNESCO. Desde muito cedo vários organismos integraram essas práticas em Cabo Verde, alguns dos quais fundados em Cabo Verde muito antes das ONG internacionais acima mencionadas. A OMCV é um exemplo disso. Mas estávamos a reportar à participação da MORABI, CITI-HABITAT, CÁRITAS – Cabo-verdiana, ASDIS (Associação das Associações de Solidariedade para o Desenvolvimento da ilha de Santiago), FAMI- PICOS (Associação de Apoio às Iniciativas de Auto-promoção Familiar), SOLMI (Associação de Apoio às Iniciativas de Auto-promoção), SOLDIFOGO (Associação de Solidariedade para o Desenvolvimento da Ilha do Fogo), etc. Ao nível do Estado, os serviços de microcrédito eram assegurados pelo IEFP, ou mesmo pela Caixa Económica de Cabo Verde. Mas, é na última década que o sistema de microfinanças ganha novos e decisivos impulsos nomeadamente com a instituição da lei que regula esta actividade no país, isto é, a Lei nº 16/VII/2007, bem como a criação do Novo Banco em 2010, pois este, além de ser considerado como um banco social que tem como propósito central a

170 Devemos dizer no entanto que antes deste período integravam sistemas de interacções sociais dos cabo-verdianos, designadamente nos espaços sociais rurais, práticas sociais fundadas nas lógicas actuais do microcrédito. Referimo-nos às práticas antigas designadas boto, totocaixa, empréstimos informais concedidos por familiares e amigos, etc., práticas que certa forma potenciaram as condições para a afirmação e sistematização de políticas em torno de microfinanças em Cabo Verde.

227 densificação do sistema financeiro e o combate à exclusão financeira é, objectivamente, visto pelas autoridades cabo-verdianas como um instrumento importante no combate à pobreza 171. Um estudo sobre o mercado das microfinanças em Cabo Verde, realizado pela Afrosondagem em 2010, dava conta que existiam no país cerca de 13 instituições que prestam serviços em matéria de concessão de microcrédito destinados às pessoas excluídas do sistema financeiro tradicional ou formal, designadas por Instituições de Microfinanças (IMF) constituindo uma plataforma única que leva a designação de Federação das Associações Cabo-Verdianas (FAM-F) que operam na área de microfinanças. Perante estes dados importa agora saber quais são os contornos do crédito e a sua percepção como uma estratégia adequada de sobrevivência das famílias do meio rural em Santo Antão. Nesta ordem de ideias, é de sublinhar que são vários os organismos que prestam actualmente serviços de concessão de microcrédito na ilha de Santo Antão, entre os quais se destacam a OMCV, MORABI e AMUSA (Associação Mutualista de Santo Antão) 172. Os fundos de financiamento das actividades de micro-crédito são constituídos através de financiamentos assegurados pelos organismos internacionais, bem como através de financiamentos do Programam Nacional de Luta contra a Pobreza no Meio Rural (PNLPR) concedidos pela Unidade de Coordenação de Programas ou, em certos casos, pelas Comissões Regionais de Parceiros, estruturas de nível regional/local. Durante todo o período em que a BORNEfondem esteve sedeada em Santo Antão, ela ocupou-se também desta vertente. António Tavares, na sua dissertação de mestrado realizada em 2010 dá conta de alguns estudos levados a cabo neste domínio em Cabo Verde referindo-se aos aspectos característicos do sistema de microfinanças cabo-verdiano. Desta análise conclui-se que as IMF cabo-verdianas se caracterizam basicamente por serem importantes veículos de distribuição de crédito aos mais desfavorecidos mas, contudo, dado à sua fragilidade em termos técnicos, institucional e financeiro, bem como a capacidade (autonomia) de

171 Primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria Neves na cerimónia de inauguração do Novo Banco em www.governo.cv. 172 Várias associações de desenvolvimento comunitário definem microcrédito como área de intervenção mas o que na verdade fazem gerir um fundo que repartem as famílias com dificuldades económicas como apoio para desencadearem uma actividade geradora de rendimentos.

228 mobilização de fundos não garantem a sustentabilidade deste serviço (Tavares, 2010: 29-31). Das IMF que laboram em Santo Antão foi-nos possível recolher informações sobre o funcionamento de duas delas. A OMCV e a MORABI. Uma primeira constatação a tirar é que, não obstante as limitações que enfrentam do ponto de vista de mobilização dos recursos financeiros elas desempenham um papel importante no processo de empoderamento das mulheres chefes de famílias e consequentemente na luta contra a pobreza no meio rural da ilha de Santo Antão. Segundo uma responsável da OMCV local,

o sistema de micro-crédito com que trabalhamos visa dar condições as pessoas, especialmente as mulheres para auto-sustentarem-se. Para isso terão que gerar o seu próprio rendimento. Ou seja têm de andar com os próprios pés.

É de salientar no entanto que as duas IMF têm actuações fundadas numa base política muito expressiva. Isto tendo em conta não só a história que engendra o percurso de cada uma mas sobretudo o facto de as personalidades que as dirigem ao mais alto nível e já agora também ao nível de Santo Antão, terem ligações fortes aos principais partidos políticos nacionais, designadamente PAICV e MpD. Várias acções que estas duas IMF desenvolvem não podem deixar de ser orientadas pela possibilidade de tirar vantagens em termos de associar-se a um acto que algumas pessoas consideram como sendo de “caridade” ao status quo de um partido político a que pertencem. Conforme pudemos apurar são personalidades que participam (uma mais que outra) activamente nas campanhas eleitorais dos respectivos partidos políticos, acções que pressupõem comprometimento e cumplicidade. Aliás, as representantes das duas IMF em análise admitiram que muitas pessoas recorrem ao microcrédito precisamente em períodos pré-eleitorais e é também nesses períodos que muitas delas declaram-se impotentes para amortizarem o valor do crédito. Mas para uma melhor compreensão da lógica que sustenta o sistema de microcrédito no meio rural podemos usar o exemplo do processo de aquisição da embarcação de pesca pela Associação Comunitária Nova Experiência Marítima de Cruzinha. O plano de reembolso concebido no âmbito da concessão de crédito para aquisição dessa embarcação não teve em consideração um conjunto de aspectos que constituem factores de risco do investimento. Por exemplo, não se considerou que as condições do mar em

229 certos períodos do ano interferem negativamente na produtividade, não se avaliou convenientemente as competências técnicas dos potenciais gestores do projecto nem as condições objectivas que envolvem toda a actividade piscatória na ilha de Santo Antão e particularmente em Cruzinha. As dinâmicas sustentadas pelas práticas de concessão de microcrédito em Santo Antão estão na sua maioria relacionadas com o programa nacional de luta contra a pobreza, consequentemente com uma forte vertente institucional, razão porque tem uma carga assistencialista e paternalista também ela muito forte. Isto também se explica pelo facto de as IMF não disporem de capacidades para responder as demandas, conforme pudemos apurar junto das delegações da OMCV e da MORABI sediadas na ilha.

4.2.2.2 Das “ajudas” e doações

As ajudas e doações são práticas sociais que melhor simbolizam o fenómeno do assistencialismo em Cabo Verde, pelo menos nos termos em que ele é considerado nos discursos reproduzidos no campo da disputa política. Situando-se para lá dos limites desses discursos, parece pertinente adiantar que o assistencialismo é um modelo económico-social que começou a ser implementado em Cabo Verde muito antes da independência conforme sugere Correia e Silva (2001b), como medida para dar respostas aos problemas resultantes da seca, designadamente a de 1968. Ainda segundo este autor, esse assistencialismo baseia-se na ideia segundo a qual

o Estado, neste contexto, passa a ser, em razão da falência da economia civil, o mecanismo assegurador da reprodução biológica e social da então Província de Cabo Verde. Assiste-se em consequência a um significativo aumento das despesas públicas visando absorver a população “liberta” pela seca. A rigor o estado não se encontra preparado para atender de pronto as novas e urgentes demandas sociais. Por isso os novos encargos vão ser financiados pelas despesas extraordinárias que, na então conjuntura, não cessam de aumentar, ganhando peso no conjunto dos gastos públicos.

Algumas abordagens sobre o assistencialismo em África vão no sentido de o ligar ao processo de colonização. Mas, o propósito de analisar as práticas sociais fundadas em ajudas e doações não é o de discutir a natureza do assistencialismo em Cabo Verde, pese embora tenhamos assumido a ligação entre uma coisa e outra, apenas numa perspectiva de que, esse assistencialismo não decorre de um modelo económico-social explícito pelas estratégias

230 de desenvolvimento assumido pelo Estado, mas antes decorre de uma medida, quiçá espontânea, e que tem servido para cobrir as deficiências do sistema nacional de segurança social e fragilidades das políticas do emprego. As ajudas e doações são mecanismos que alimentam esta medida compensatória, a que as famílias do meio rural recorrem sabiamente no quadro de uma estratégia explícita de sobrevivência. À vista do exposto importa então dizer que as ajudas vêem de associações de desenvolvimento comunitário (ADC), das ONG, das Igrejas, das Câmaras Municipais, do Governo, dos partidos políticos, etc. abrangendo uma vasta panóplia de acções e cobrindo uma vasta dimensão da (sobre) vivência das famílias do meio rural. Além de construção e reparação ou reabilitação das habitações e educação e formação profissional dos filhos através de atribuição de bolsas de estudo, as ajudas e doações abrangem ainda subsídios em matéria de alimentação, vestuário, assistência médica e medicamentosa. Conforme pudemos apurar, esses apoios e ajudas estendem-se ainda a ligações domiciliárias de água e energia eléctrica, liquidação de dívidas, pagamento de rendas, aquisição de medicamentos, tratamentos hospitalares e consultas médicas, obtenção licença profissional de condução, etc. A intensidade e a dimensão da solicitação de ajudas ou ofertas de apoios dependem de uma conjuntura eleitoral específica e a lógica que está por detrás dessa variação é a mesma que rodeia a solicitação de microcréditos. Quando se estiver em períodos eleitorais essas acções duplicam. No quadro destas acções, as famílias desencadeiam um conjunto de outras estratégias para poderem ter acesso a determinados recursos, designadamente a adesão a uma organização política ou da sociedade civil, pedidos, lamentações, manifestação de preferências partidárias, ou simplesmente abdicar-se de emitir opiniões sobre partidos políticos, associações, pessoas com uma certa notoriedade na localidade. Associado ao conjunto de opções e condutas que capitalizam estas estratégias de sobrevivência pode-se encontrar a atitude de esconderem que alguma vez tenham sido beneficiados. Hugo diz nunca ter sido beneficiado para depois admitir que,

a única pessoa que me apoiou foi o presidente da Câmara Municipal que me deu 10 sacos de cimento que apliquei na reparação do teto da minha casa. Foi o presidente de associação que lhe pediu esse apoio para mim.

231 Finalmente, pensamos que as práticas que conduzem à obtenção de ajudas e doações são reproduzidas de um lado e doutro utilizando mecanismos que se encontram no limite de valores que integram a consciência colectiva dos mesmos.

4.2.2.3 Das pensões de reforma

É frequente hoje em dia encontrar famílias no meio rural cabo-verdiano que beneficiam de uma pensão, seja de reforma por velhice, seja por invalidez, seja ainda de sobrevivência, que provém do Sistema Nacional de Previdência Social de Cabo Verde ou de instituições dos países onde o beneficiário directo foi emigrado, tendo em conta acordos e convenções bilaterais existentes entre Cabo Verde e alguns países europeus, designadamente, Portugal, França, Holanda, Luxemburgo e Suécia. O Sistema Nacional de Previdência Social estabelece como uma das vertentes fundamentais a “Rede de segurança”. Esta vertente assenta-se no princípio de solidariedade nacional, isto é, motivado pela existência de situações de falta ou reduzida capacidade de promover auto-sobrevivência ou protecção 173. O sistema de pensões de regime não contributivo é o que responde directamente ao desiderato que melhor suporta o princípio de solidariedade nacional e responder a um dos objectivos permanentes do Estado consistindo em,

garantir a igualdade de tratamento e a integração social através de protecção a grupos mais vulneráveis e, por outro lado, prevenir situações de carências, disfunção, marginalização, evitando, assim, todas as formas de exclusão, desigualdades sociais e assimetrias 174.

Neste diapasão, o sistema de pensões de regime não contributivo é abrangido pelo regime de Pensão de Solidariedade Social (PSS) instituído pela primeira vez pelo Decreto-lei nº 122/92 e regime de Pensão Social Mínima (PSM), instituído pela primeira vez em 1995 pelo Decreto-Lei nº 2/95. O primeiro estabelece como beneficiários os antigos trabalhadores das FAIMO, com mais de 60 anos de idade sem quaisquer fontes de rendimento que lhes permitem viver com a mínima dignidade humana, designado por pensão social por velhice, bem como pessoas que tenham tido

173 Vide Lei de Bases sobre o Sistema de Protecção Social - Lei nº 131/V/2001 publicada no B.O n.º 2 I Série de 22 de Janeiro 174 Preâmbulo da Lei de Bases sobre o Sistema de Protecção Social - Lei nº 131/V/2001 publicada no B.O n.º 2 I Série de 22 de Janeiro

232 acidente ou contraído doenças decorrentes da participação nas FAIMO e, consequentemente, tenham ficado incapacitados, designado por pensão social por invalidez. O diploma fixava como valor dessas pensões 3.000$00 mensais. Já a Pensão Social Mínima decorre de um programa concebido para cobrir a generalidade de famílias que vivem em situação de manifesta carência e que não se encontram veiculadas a qualquer outro programa de protecção social. Essas pessoas deviam ter mais de 65 anos ou mais de 15 anos na condição de serem completamente inválidas. O valor das PSM, ao contrário da PSS não era fixo. No entanto, o Decreto que o instituiu fixou 1000$00 como valor mínimo e eram pagas aos beneficiários através dos municípios para os quais eram transferidas as verbas do orçamento do estado inscritas para esse fim. Mas os próprios municípios adoptavam políticas no sentido de se atribuir as PSM às pessoas vulneráveis com base em suas próprias receitas. Actualmente o sistema de pensão social de regime não contributivo da segurança social é suportado em termos legais pelo Decreto-lei n.º24/2006 de 6 de Março. De acordo com este Decreto-lei a Pensão Social assume três modalidades ou categorias diferentes, ou seja, ela pode ser pensão social básica, Pensão social por invalidez e Pensão social de sobrevivência. Estas três modalidades ou categorias de pensões sociais sujeitam-se ao mesmo valor, que por sua vez é fixado por decreto regulamentar. Nesta sequência importa então reportar que o valor das pensões sociais em vigor é de 5000$00 175 fixado pelo Decreto-Regulamentar nº 8/2010, um aumento de 40% desde que foi instituído em 1992. De acordo com os dados do Centro Nacional de Pensões o país contava em 2009 com 22.942 beneficiários, dos quais 4527 são da ilha de Santo Antão.

Quadro n.º 9 - Distribuição dos beneficiários da Pensão Social por Concelho

Concelhos Total Cabo Verde 22.942 Santo Antão 4.527 Ribeira Grande SA 2.116 Porto Novo 1.554 Paul 857 Fonte: CNPS

175 1 EUR - 110,576 CVE; 0,009 EUR - 1 CVE.

233 Apesar de não dispormos de dados que nos permitem aferir sobre a taxa de cobertura da pensão de solidariedade social em Santo Antão ousamos dizer que ela é visível que já abrange um número significativo de idosos e pessoas com debilidades, a avaliar pelas opiniões recolhidas nos locais da nossa investigação. Uma larga maioria das pessoas idosas contactadas nas três localidades (Lagoa, Ribeirão e Cruzinha) afirma estar contemplada com uma pensão de solidariedade social e, mais do que isso, demonstram alguma satisfação quando se referem que são beneficiárias.

Recebo uma pensão do estado em cerca de quatro mil e tal escudos. A minha mulher também recebe a mesma quantia. Nós os dois recebemos oito mil, oitocentos e vinte escudos. Na verdade não é muito, mas é importante. Por isso damos graças a deus (Sr. Gregório).

Tenho uma pensão social. Tenho-a desde 2001. Agora é quatro mil, quatrocentos e qualquer coisa. Esta pensão ajuda muito. Ela é tudo que temos. Para mim é muito importante (Sra. Susana)

As famílias que ainda não foram contempladas acham que seria para elas uma grande vantagem conseguir esse apoio.

Ainda não recebo nenhum tipo de pensão, mas o presidente da associação está a tratar-me do assunto. Já lhe entreguei o meu Bilhete de identidade e segundo disse vou ser beneficiada brevemente. Eu não tenho ajuda de ninguém e se eu conseguir vai ser muito bom. Sei que não é muito mas mesmo assim é um dinheiro que chega regularmente (Sra. Elisabete).

Uma análise mais aprofundada da percepção das famílias do meio rural em relação à importância que uma pensão de solidariedade social representa no sistema de estratégias que empregam para garantir a sua sobrevivência reporta-nos para um aspecto incontornável no quotidiano desses actores. É preciso ver que a vivência do povo cabo- verdiano é profundamente marcada pelas incertezas provocadas pela irregularidade das chuvas e consequentes secas e fomes, um aspecto bastante associado aos esquemas mentais daqueles que têm, na agricultura, o modo de vida principal e a insegurança do mar, um aspecto presente nos esquemas mentais daqueles que têm na pesca o seu principal modo de vida. Ora perante facto parece normal que a certeza e a regularidade com que se possa aceder a uma fonte de rendimento acaba por ser algo fundamental na vida desses actores, quanto mais não seja porque ajuda a minimizar o sentimento de incerteza que os acompanha durante parte substancial da sua vida.

234 Neste sentido, a importância de auferir uma determinada quantia a uma data mais ou menos certa aumenta ainda mais quando têm o sentimento de que conseguiram-no por sorte ou pela condescendência, compaixão, amizade de alguém. Esta é a razão por que as pessoas contestam mais o facto de, por vezes, receberem essas pensões fora do prazo, do que o seu montante. As duas formas distintas de solidariedade distinguem-se não apenas pela natureza mas sobretudo pelos propósitos, colectivistas de um lado e individualistas de outro. Contudo, ambas ocorrem numa lógica de troca, apesar de os contextos sociais e políticos que lhes servem de palco serem diferentes. Veja-se que as formas de solidariedade sócio- comunitárias são alimentadas pelas práticas sociais seculares, isto é, que se transferem de geração em geração ao longo de vários séculos e orientadas por valores e normas específicos. Já as formas institucionais de solidariedade são alimentadas por uma lógica de carácter acentuadamente político. Assim, tendo em conta estes dados podemos estar perante a emergência de uma nova sociabilidade estribada nas condições de pertença a um partido político ou na possibilidade de fazer do campo político uma saída para se reproduzir as condições elementares de sobrevivência.

4.2.3 Jobs, expediente e desenrasque

Jobs expediente e desenrasque são três termos frequentemente utilizados pelas famílias do meio rural em Santo Antão, particularmente nas localidades que constituem palcos da nossa investigação, para definirem as suas estratégias de sobrevivência. Jobs é um termo que vem do inglês e é comummente utilizado na língua cabo-verdiana como significado de trabalho, sobretudo nas ilhas de Barlavento, designadamente São Vicente e Santo Antão, mas com expressão um pouco em todas as ilhas. Mas, algumas abordagens feitas sobre o assunto associam a presença do estrangeirismo na língua crioula cabo-verdiana a contactos entre os povos estabelecidos no passado decorrente da localização geográfica do país 176. Expediente, por sua vez, pode ser interpretado neste quadro como uma acção que visa estabelecer algum tipo de negócio como meio para resolver um problema pontual.

176 Vide Carreira, António. 1972. Cabo Verde: Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878). Lisboa: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

235 Quando se liga à palavra negócio pode levar uma conotação pejorativa, pois pode indiciar a prática de uma actividade ilícita. Já desenrasque pode ser considerado como uma acção que visa contornar uma situação que se apresenta de difícil solução e, consequentemente, indesejada. São conceitos diferentes e cada um tem o seu próprio alcance etimológico. Basta ver, por exemplo, que o termo Job pode ter um significado que transcende o conceito de “trabalho”. Por vezes, pode ser utilizado para referir a uma prática desviante como o roubo, mas aqui preferimos analisá-lo tendo em conta simplesmente o seu sentido virtuoso. Todavia, os três conceitos têm algumas características comuns, pois qualquer um deles, quando analisado como uma prática que decorre de uma estratégia específica de sobrevivência, resulta de uma situação de manifesta carência ou de vulnerabilidade económica. Mas, além do mais, qualquer um deles parece reflectir elementos de criatividade e espontaneidade. Vejamos a opinião proferida por Eleonor, uma senhora de 39 anos e que vive em Cruzinha.

Não tenho nenhum rendimento fixo. Mas isso não significa que eu esteja parada sem fazer alguma coisa. Aliás sempre que apareça uma oportunidade para ganhar algum dinheiro eu aproveito-a. A minha mãe tem uma pensão de quatro mil e tal escudos. É o único rendimento fixo que temos cá em casa. Não criamos nenhum tipo de animal. Contudo, vamos nos desenrascando. Um expediente ali outro acolá e assim vamos levando a vida. O pão de cada dia vai aparecendo com mais ou menos dificuldades.

Podemos inscrever nas pautas dos conceitos jobs, expediente, e desenrasque, acções como “fazer um mandado” a uma pessoa, vender uma ou outra coisa pessoal para resolver um problema pontual, trocas de objectos, empréstimos de pequenas quantias, ofertas, ou troca de um simples gesto de humildade ou de boa vontade com um prato de alimento, em fim “desenrasca-se”. A dona Sofia, confessa as dificuldades que enfrenta no seu dia-a-dia. E para fazer face a isso ela diz-nos:

desenrasco a minha vida. Às vezes vou à loja e fico a dever para quando aparecer um recurso eu pagar a dívida e voltar a pedir de novo. Mas também crio uns animais e além do mais tenho uma irmã que de vez em quando me envia uns tostõezinhos. Mas não é sempre. O meu filho que está a trabalhar no Sal ainda não conseguiu nada para me mandar porque está lá há muito pouco tempo.

236 Outros desenrascam fazendo trabalhos de manufactura para vender aos turistas, recorrendo ao comércio informal (um fenómeno conhecido por rabidância). A própria opção de se deslocar a outras localidades ou ilhas, como acontece com alguns pescadores de Cruzinha em épocas de mar bravo, ou como acontece com os jovens de um modo geral quando se encontram desempregados e sem quaisquer outras alternativas de acesso a rendimento, ou opção de se deslocar ao estrangeiro. Muitos ainda consideram os períodos da campanha eleitoral como uma oportunidade de acesso a algum rendimento, a partir de práticas como jobs, expediente ou desenrasque.

Nas campanhas eleitorais os partidos colocam muitos materiais de construção civil na localidade e distribuem às pessoas. As pessoas então começam a dizer que foi o MpD é que lhes deu os materiais e por isso vão votar MpD e outros dizem que foi o PAICV e por isso vão votar nesse partido. Há muito jogo nisso tudo. Dependendo do expediente que uma pessoa dá ela é capaz de ganhar muita coisa.

Participar nas acções públicas que são desencadeadas nas localidades pelas organizações da sociedade civil ou por outros actores sociais de desenvolvimento é atitude motivada pela expectativa de obter algum apoio ou ajuda. E esta participação ocorre integrando as três estratégias em análise. É com base nisso que alguns membros das ADC consideram que se “devia apoiar apenas as pessoas que fazem parte da associação”. Jobs, expediente e desenrasque, consubstanciam-se em estratégias reproduzidas pelos actores como mecanismo social de alargamento da sua rede social e de oportunidades de acesso a recursos devido, em parte, a ausência de condições objectivas de sobrevivência que a própria localidade e em certos casos a ilha, podiam oferecer à população se aqueles que exercem os poderes públicos assim o quisessem. A atitude de omitir ou ofuscar os rendimentos, pela sua natureza e pelos objectivos a que os actores se propõem alcançar quando a adoptam, enquadra-se perfeitamente numa ou noutra estratégia. Durante todo o processo de recolha de dados para este trabalho pudemos deparar com vários casos em que as pessoas diziam frequentemente que nunca tiveram apoio de quem quer que seja, ou que raramente o tiveram, quando na realidade receberam-no, de acordo com os presidentes das associações locais. Algumas vezes até, ou em certos casos, o apoio que receberam é substancial.

237 A dona Ângela vive numa casa da Câmara Municipal num bairro social de Cruzinha representa um exemplo paradigmático. A sua casa está recheada de equipamentos e electrodomésticos básicos necessários para levar uma vida normal numa realidade sócio económica como a de Cabo Verde. Dispõe de frigorífico, aparelhagem, televisor. Contudo, perante a questão sobre quais são as origens dos seus rendimentos, ela responde desta maneira:

Eu vivo em casa e não tenho nenhum recurso. Além do mais não tenho trabalho (emprego). Dito desta maneira, você pode imaginar como é que levo a minha vida. Eu não faço nada. Ou seja, não tenho nenhum rendimento. Nem pensão social tenho. Nem um dia de trabalho. Antigamente eu vendia peixe. Há seis anos que não vendo peixe.

A ideia de omitir ou ofuscar os apoios recebidos consubstancia-se claramente numa estratégia para se candidatar a um eventual outro apoio. Devemos sublinhar que os comportamentos ou atitudes que sustentam jobs, expediente e desenrasque estão mais presentes nos modos de vida das pessoas de Cruzinha do que em Ribeirão e Lagoa. A concentração dos povoados e a intensidade das interacções sociais podem servir para explicar este facto. Dar jobs, dar expediente e desenrascar são estratégias subjectivas que ocorrem num campo multifacetado, repleto de sincretismos e reacções adaptativas 177 , estratégias essas adoptadas por certos actores como complemento ás demais alternativas de vida que se demonstram insuficientes, tendo em conta as necessidades específicas e em certos casos funcionam como meios para se colmatar a situação de inexistência de uma estratégia de sobrevivência objectiva e consolidada. Estas práticas acabam por ser o reflexo da complexidade da luta que se trava no meio rural cabo-verdiano e demonstram que essa luta comporta muito mais que um simples esforço físico em si. Antes pelo contrário. Ela comporta também um conjunto de racionalidades para resolver ou simplesmente para minimizar um vasto leque de problemas que enfrentam no seu quotidiano: o problema de ter que pagar a propina do filho ou de ter que comprar um caderno no dia seguinte, ter que arranjar algo para levar ao lume no dia seguinte, ter que pagar uma dívida, em fim, mil e um problemas. Pensar nos mecanismos de resolução dos problemas por vezes cansa. A Dona Ângela, da localidade de Cruzinha, diz que luta muito. Contudo, diz que não trabalha. Ou seja,

177 Termo utilizado por Carlos Couto para caracterizar a sociabilidade do meio rural santiaguense (Couto, 2001: 267).

238 não tem nenhuma ocupação profissional formal. Diz que nunca vendeu peixe. Diz que, por vezes, pega na vara e vai à pesca, uma actividade pouco vulgar nas mulheres cabo- verdianas e remata que ali ninguém dá nada a ninguém. O caso da Dona Ângela retrata em certo sentido, a complexidade que estas estratégias compreendem. Apesar de não ter nenhuma ocupação profissional, entenda-se nenhuma fonte fixa de renda, ela consegue dar vazão às suas necessidades quotidianas. As únicas estratégias a que ela recorre restringem-se ao jobs, expediente e desenrasque que podem por vezes parecer abstractas mas que no fundo têm um peso importante na reprodução das condições de vida das populações rurais.

4.2.4 Trabalho de base não contratual

Muitas famílias do meio rural cabo-verdiano adoptam, como estratégias de sobrevivência, acções que designamos de base não contratual. Em que consiste? Basicamente trata-se de trabalhos prestados por pessoas que em determinadas circunstâncias não vislumbram outras alternativas que lhes garantam, nomeadamente, uma refeição para si e para os filhos numa determinada circunstância. Certas pessoas quando passam por uma situação deste tipo deslocam-se voluntariamente à casa de um vizinho ou de uma família com a qual costumam ter “boas relações” disponibilizando-se para fazer um trabalho qualquer, na expectativa de poderem receber alguma coisa no final da jornada, quando disso se trata. Porque a pessoa não foi solicitada, portanto, se disponibiliza de forma voluntária para prestar um determinado trabalho, a família a quem se presta estes trabalhos não se sente na obrigação material de lhe atribuir o que quer que seja, pois, o trabalho foi executado, sem que para tal fosse necessário celebrar um contrato formal, que não tem que ser necessariamente escrito. Porém, na maioria dos casos, a pessoa ou a família a quem foi prestado um determinado trabalho sente-se na obrigação moral de lhe atribuir alguma coisa. No entanto, quem o executa sabe de antemão que a pessoa para quem presta esse trabalho precisa dele. Além do mais, sabe que esse trabalho, porque não se aparenta imprescindível à pessoa a quem se presta, adquire um valor muito baixo. E como os custos da prestação de trabalho não são elevados então dá para correr o risco de o fazer e não alcançar os objectivos preconizados.

239 Por de trás da adopção desta estratégia de sobrevivência está o orgulho da pessoa, cultivado muitas vezes ao longo de várias gerações da família a que pertence.

eu não tenho problemas em trabalhar desde que ele apareça. Faço tudo o que aparecer para ganhar um sustento de forma honesta. Prefiro trabalhar que pedir alguma coisa a alguém. Não é que não o faça caso precise. Mas prefiro comer o resultado do meu trabalho e assim poder andar de cara sempre levantada (Sr. Julinho).

Algumas pessoas do meio rural adoptam esta estratégia exactamente porque já não se sentem à vontade para voltarem a solicitar doações, empréstimos a certas famílias tendo em conta que já o fez recorrentemente.

Quando me vejo à rasca para dar um jantar aos meus filhos costumo recorrer ao crédito numa loja aqui perto. Há muito que não peço fiado porque tenho dívidas acumuladas. Até porque sinto vergonha de ir pedir de novo (Sr. Ernesto).

São vários os tipos de trabalho de base não contratual a que algumas famílias do meio rural recorrem para garantirem a sua sobrevivência. Esses trabalhos variam com o sexo, mas também com a época do ano. Lides domésticas como lavar roupa, trabalhos de cozinha, limpeza, etc., são trabalhos prestados pelas senhoras, enquanto os homens ajudam nos trabalhos de agricultura e criação de gado, construção civil, de entre outras coisas. Esses trabalhos são prestados normalmente às famílias que demonstram ter uma certa posição social na localidade ou até em localidades distantes. Em jeito de remate apraz-nos sugerir que esta prática social, analisada numa mera perspectiva de estratégias de sobrevivência das famílias no meio rural, pode assumir contornos muito amplos e complexos, na medida em que parece resultar de um contexto de relações sociais específico que caracterizou um determinado período histórico de Cabo Verde, como pode revelar novas dimensões da racionalidade que enformam uma interacção social numa situação em que um actor parte de uma posição manifestamente desvantajosa.

4.2.5 A remessa dos (e)migrantes e a opção pela (e)migração

Muito se falou sobre o fenómeno migratório em Cabo Verde e, provavelmente, muita coisa está ainda por ser dita sobre este assunto, não fosse a sociedade uma estrutura dinâmica e por conseguinte sujeita a constantes transformações.

240 A natureza e as dimensões associadas ao fenómeno migratório deram origem a múltiplas abordagens, integrando as mais diversas formas de expressão de sentimentos e conhecimentos, isto é, da literatura à ciência e da cultura à política, e fizeram, de igual modo, emergir um vasto conjunto de ideias, conceitos e teorias. Ou seja, desde os emocionantes pensamentos literários e poéticos, como revelam as frases “este desespero de querer partir e ter que ficar” de Jorge Barbosa, ou “si ka badu ka ta biradu”178 de Eugénio Tavares, passando pela sensacional e realística descrição das condições de existência de um povo, marcadas pela insularidade, seca e miséria, e a sua assumpção como condicionantes da opção pela emigração expressas em Chiquinho de Baltazar Lopes da Silva e em Chuva Braba de Manuel Lopes, passando pelas ideias segundo as quais “o cabo-verdiano já nasceu (e)migrante” e consequentemente está-se perante um “Estado que nasce já transnacionalizado” Góis, 2006: 22), ou que a emigração é “um dos fenómenos mais antigos e estruturantes da sociedade cabo-verdiana” ou ainda que ela constitui actualmente uma componente fundamental do sistema identitário cabo-verdiano, bem como factor essencial de desenvolvimento, por via das remessas (Monteiro, 2011: 34) ou mesmo, que [

Cabo Verde é um exemplo inscrito na história de como os lugares de encontro de culturas diferentes se tornam privilegiados na observação de culturas em movimento e no estudo de movimentos de carácter global Grassi, 2007: 55) ] e ainda que ele

decorre não só da miséria material, mas também do sucesso cultural dos que nela - (diasporização cabo-verdiana) – parêntese nosso – embrenharam. Enquanto subproduto da carência, ela está inextrincavelmente ligada aos condicionalismos e vicissitudes do meio, bem como às questões de gestão política (Fernandes, 2006: 115).

Com base em análise destes fragmentos, e podíamos aqui apresentar muitas mais referências, por ventura tão conhecidos, sábios ou até mais, podemos dizer, ainda que a título meramente indicativo, que o fenómeno migratório é alicerce indiscutível do processo da construção da história de Cabo Verde. A história da emigração cabo-verdiana tem sido abordada com base, fundamentalmente, em dois eixos de análise: as causas económicas e sociais que desencadearam o

178 Traduzindo à letra para a língua portuguesa esta expressão pode significar o seguinte: É preciso ir para poder voltar.

241 fenómeno migratório e a importância que as remessas dos emigrantes representam, primeiro para a economia nacional e, segundo, no conjunto de estratégias de sobrevivência das famílias cabo-verdianas quanto mais não seja, a dimensão económica esteve na base da sua reprodução ao longo da sua história. Para este trabalho vamos centrar, ainda que de forma breve e genérica, como aliás se compreende, no segundo eixo, particularmente na sua importância nas estratégias de sobrevivência das famílias, designadamente as do meio rural. Com isso fica claro que o conceito de remessa aqui utilizado é aquele que se centraliza na questão monetária. Isto é, tomamos por remessa, os recursos financeiros que os imigrantes transferem do país de destino para o seu país de origem. Esta simples definição resulta da constatação de que tem havido várias balizas que orientam esta abordagem. Peggy Levitt sugere a discussão sobre um tipo de remessas que ela pretende seja designada de remessas sociais definidas como sendo, conjunto de ideias, práticas, atitudes, visão e capital social que voluntária e involuntariamente o migrante transfere do país de acolhimento para o país de origem (Peggy Levitt apud Tolentino, 2008: 28). Tendo em conta as condições de sobrevivência que dominam a sociedade cabo-verdiana e particularmente aquelas que se circunscrevem no seu espaço social rural, torna-se inegável o facto, segundo o qual, as remessas dos emigrantes continuam a desempenhar um papel importante nas estratégias de sobrevivência das famílias nesse espaço, pois proporcionam a estas famílias as condições, ainda que nem sempre as melhores, para minimizarem as dificuldades resultantes da falta de emprego ou das vicissitudes decorrentes da especificidade do meio ambiente que condicionam, e de que maneira, as actividades que continuam no seu imaginário como sendo fundamentais para a sua sobrevivência. Aliás, a opinião da Senhora Maria de Fátima, Presidente de Associação das mulheres de Cruzinha, é peremptória.

Há muita gente com um familiar emigrado. Mas apenas algumas recebem alguma coisa dos familiares. Mas no fundo a emigração não tem tido muita importância aqui em cruzinha.

Existem várias opiniões recolhidas nas diferentes localidades estudadas, ou mesmo constantes em diferentes documentos oficiais, entre ensaios e artigos científicos, que corroboram esta ideia.

242 Contudo, decorrente das transformações sociais, económicas e políticas, quer a nível interno, quer a nível externo, emergem novos fenómenos que, ao nosso ver, não podem ser negligenciados na análise da importância das remessas dos emigrantes no sistema de sobrevivência das famílias cabo-verdianas, nomeadamente as do meio rural. Esta constatação representa a base para lançarmos o debate em torno da ideia de que, se de facto continua a fazer sentido falar de uma dependência das famílias cabo-verdianas em relação às remessas monetárias dos emigrantes ou se, ao invés disso, faz mais sentido falar dessas remessas como uma estratégia suplementar e facultativa de sobrevivência dessas famílias. Procurando dar conta das transformações ocorridas ao nível interno, parece que a melhor estratégia para a nossa análise seja partir dos seguintes exemplos: Em primeiro lugar, é preciso notar que o país conheceu na última década avanços económicos consideráveis. Aliás, o quadro que se segue dá-nos uma orientação evidente sobre este facto. Ou seja entre 2000 e 2010 o PIB per capita conheceu um aumento considerável, tendo atingido em 2005 e 2006 valores relativamente altos.

Quadro n.º 10 - Evolução do Produto Interno Bruto (PIB) per capita (US$) em Cabo Verde

1999 2000 2001 2002 2005 2006 2007 2008 2009 2010 1.500 1.700 1.500 1.400 6.200 6.000 3.200 3.800 3.500 3.800 Fonte: Index Mundi 179

Estes dados sobre a evolução do PIB per capita demonstram que o país tem conhecido um processo de crescimento económico visível, para o qual muito contribuíram as remessas dos emigrantes, o que vai na linha das muitas teorias que procuram relacionar directamente o fluxo das remessas dos emigrantes ao processo de desenvolvimento socioeconómico. Paulino Tavares (2010: 94), recorrendo a Keeley (2009), Addy, Wijkstrom e Thouez (2003), refere que,

os benefícios das transferências dos emigrantes são fundamentais porque contribuem para a melhoria na distribuição da própria renda nacional, além de colaborar para a melhoria da qualidade de vida das famílias

Nesta mesma linha, isto é para reforçar esta ideia, Paulino Tavares (2010: 94) recorre a Ratha e Mohapatra (2007: 1) que, asseguram categoricamente que estes fluxos de

179 http://www.indexmundi.com/g/g.aspx?v=67&c=cv&l=pt.

243 capitais são tão importantes para países em desenvolvimento que os governos nacionais não deveriam taxá-los. Em segundo lugar, podemos tomar como exemplo, a evolução do IDH, devido em parte, ao crescimento económico que se verificou durante esse período. Os avanços a este nível são de igual modo satisfatórios.

(…) Em 2011 o Relatório refere que o IDH de Cabo Verde aumentou de 0,566 (2010) para 0,568, colocando o país na posição 133 de 187 países e territórios constantes no documento. Entre 2000 e 2011, o valor do IDH de Cabo Verde aumentou de 0.523 para 0.568, significando um aumento de 9,0 por cento ou um aumento médio anual de cerca de 0,8 por cento 180.

Se formos traduzir o exemplo do índice de desenvolvimento humano em detalhes falaríamos da melhoria dos índices de educação e formação, da melhoria das condições de acesso a rendimento decorrente da política pública em torno das pensões de reforma ou da mobilidade social da nova geração de actores sociais do meio rural e, consequentemente, de melhor e maior acesso a rendimentos. Em terceiro lugar, podemos recorrer ao exemplo da variação do nível da pobreza. Aqui devemos apenas recordar que, segundo os dados do Inquérito às Receitas e Despesas Familiares (IRDF) realizado em 2001-2002 pelo INE, cerca de 37% da população eram consideradas pobres, sendo cerca de 20% destes eram considerados muito pobres. Ainda segundo o mesmo inquérito, de entre os considerados pobres cerca de 51% viviam no meio rural, onde cerca de 30% eram consideradas muito pobres. Os dados do QUIBB realizado pelo INE em 2007 revelam que o índice da pobreza baixou ao nível nacional de 36% em 2001 para cerca de 27% em 2007 e no meio rural baixou de 51% para cerca de 44% o que equivale dizer que em termos absolutos o número de pobres diminuiu de 163.200 em 2001 para 130.900 em 2007. Em quarto lugar, podemos apontar o desenvolvimento do turismo. Num documento publicado na página oficial do Banco de Cabo Verde, Alcides Canuto Jr., aponta que

este sector tem crescido de forma global nos últimos tempos, contribuindo para a geração de empregos, receitas e impostos, além de elevar o Produto Interno Bruto (PIB), com o aumento do volume de investimentos e entrada de divisas 181,

180 http://www.un.cv/arquivo-desenvolvimento.php. 181 http://www.bca.cv/Conteudos/Artigos/detalhe.aspx?idc=22&idl=1&idi=2344.

244 Um dos resultados mais visíveis do desenvolvimento turístico em Cabo Verde na última década é, sem dúvida, a emergência da ilha da Boavista e a confirmação da ilha do Sal como pólos urbanos bastante atractivos sob o ponto de vista da mobilidade demográfica. Veja-se que, de acordo com os resultados do Recenseamento Geral de População e Habitação de 2010, estas duas ilhas (Boavista e Sal) conheceram um aumento demográfico na ordem dos 7,4 e 5,5% respectivamente, superando o concelho da Praia que, durante este período, viu a sua população crescer 3% . A elevada taxa de crescimento médio anual das populações das ilhas da Boavista e do Sal pode dever-se ao aumento de oportunidades de emprego, sobretudo nas áreas de construção civil e no sector dos serviços e, consequentemente, da melhoria das condições de vida das populações economicamente mais vulneráveis, juntando-se assim às ilhas de São Vicente e, particularmente, de Santiago que vêm desde há muito tempo desempenhando essa função. No actual contexto de mudanças, defendemos que a análise das remessas dos emigrantes como estratégias de sobrevivência das famílias do meio rural deve, necessariamente, ter em consideração as remessas dos trabalhadores que provêm dos dois principais centros urbanos cabo-verdianos, designadamente Praia e Mindelo, bem como dos centros urbanos cabo-verdianos emergentes de ponto de vista económico, isto é, Boavista e Sal. Aliás, vimos no ponto 4.2.3 uma passagem da fala da dona Sofia, em que ela faz referência ao filho que se encontra na ilha do Sal mesmo sabendo que este ainda não se encontra a trabalhar. Ou seja, implicitamente ela conta que, mais tarde, o filho lhe envia parte dos recursos que conseguir mobilizar nessa ilha. Durante o período de recolha de dados deparamos com várias famílias, com pelo menos um membro a viver num dos centros urbanos acima mencionados e de quem, em parte, dependem. A nível externo, podemos apontar a transformação havida nos últimos tempos, em primeiro lugar, nas restrições políticas de imigração nos países de acolhimento, em segundo lugar a crise financeira internacional e, em terceiro lugar, o facto de países de acolhimento terem instituído medidas que concedem direito aos imigrantes de reagrupamento familiar. Os países da União Europeia adoptaram esta medida desde

245 2003, em observância aos direitos humanos fundamentais 182 . Estas medidas terão contribuído para uma mudança profunda na relação que os emigrantes estabelecem com o espaço social do país de acolhimento. Uma vez tendo a família reunida este espaço pode deixar de ser provisório para se transformar num espaço de vivência mais definitivo. Aliás, este parece ser o sentimento que se vem construindo nos esquemas mentais daqueles que ficam. Aqui há alguns emigrantes que mandam algum dinheiro à família. Mas é preciso saber que os emigrantes também têm as suas vidas lá (Sr. Benjamim). Mas, além do mais, as famílias se referem cada vez menos às remessas dos emigrantes como uma estratégia para a sua sobrevivência, o que demonstra, em certa medida, que as pessoas tornam-se cada vez mais independentes dessas remessas. Ou seja, parece que o peso das famílias, cujas estratégias de sobrevivência dependem directamente das remessas dos emigrantes, tem diminuído significativamente e os factores acima mencionados podem ter contribuído para a afirmação dessa tendência. Apesar de as remessas dos emigrantes terem conhecido períodos de regressão como aconteceu entre 2005 e 2007, e a partir dessa data até 2010 terem mantido praticamente estáveis (ver o quadro que se segue) é fundamental, no entanto, sublinhar que a redução da importância das remessas dos emigrantes no conjunto de estratégias que as famílias do espaço social rural imprimem na luta pela sua sobrevivência não contraria as teorias que sustentam que as remessas dos emigrantes têm um impacto amplamente positivo nas economias dos países receptores fundamentalmente os de baixo nível de desenvolvimento ou de nível de desenvolvimento médio (onde Cabo Verde se insere) e onde é ponto assente que o sector da emigração é um dos importantes fontes de financiamento das actividades económicas (Tavares, 2010: 208).

Quadro n.º 11 - Remessas de emigrantes, em milhões de escudos, por país, entre 2001 e 2010

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 8.852 8.010 7.929 8.451 11.002 10.828 10.159 10.424 10.195 10.333 Fonte: BCV

Além das remessas dos emigrantes e dos trabalhadores radicados nos principais centros urbanos do país, a opção pela emigração ou migração para as outras ilhas

182 Vide o art.º 8º da DIRECTIVA 2003/86/CE DO CONSELHO de 22 de Setembro de 2003.

246 designadamente as quatro de maior atracção, assume-se, de igual modo, como uma estratégia de sobrevivência das famílias do meio rural muito importante. Apesar das imagens que hoje se reproduz acerca da emigração, nomeadamente aquelas assentes na ideia de que o estrangeiro já não é o que era, o sonho de emigrar está bem presente nos discursos das famílias, sobretudo os mais jovens. Uma larga maioria deles revelou esse sonho, como se pode depreender da fala de Patrick. Se as coisas continuarem assim não penso continuar cá. Se calhar partirei para qualquer lugar à procura de trabalho. Mas se os trabalhos aparecerem sempre então prefiro ficar. A falta de oportunidade de empregos é a justificação que domina a opção pela saída das localidades para outras ilhas ou para estrangeiro. E, por causa disso, conforme nos disse a Senhora Maria de Fátima, Presidente de Associação das mulheres de Cruzinha, há bastantes jovens a sair daqui para ir a outro lugar como por exemplo São Vicente, Praia, Sal e ultimamente à Boavista. Muitas vezes o sonho de procurar outros lugares na expectativa de encontrar melhores condições de vida é provocado pelos discursos das pessoas que já viveram uma experiência de (e)migração bem sucedida. É o que se pode constatar do discurso de Donaldo, um jovem que vive e trabalha actualmente na ilha do Sal, e que se encontrava de férias na localidade de Lagoa.

Aqui além de não aparecer trabalho frequentemente quando aparece é para ganhar 500 ou 600 escudos ao. Sou pedreiro e na ilha do Sal onde me encontro a viver neste momento um pedreiro ganha 1500$00 ao dia se se trabalhar para empresas. Esse valor pode ascender a 2000$00 ao dia se trabalhar como independente.

E diga-se de passagem que havia nesse momento muitos jovens de Lagoa, de Ribeirão e de outras partes de Santo Antão a viver e trabalhar nas ilhas do Sal e da Boavista. Contudo, é preciso também dizer que nem sempre as imagens que se constroem em torno das migrações são aliciantes, como se pode perceber das opiniões de Donaldo.

Eu já fui à ilha do Sal à procura do emprego. Cheguei a trabalhar como servente e ganhava cerca de seis mil escudos por semana. Mas repara se você gastar onze contos mensais em arrendamento de uma habitação, uns tantos em consumo de água e energia e outros tantos para comer, o dinheiro que se ganha nessas ilhas é manifestamente pouco. Não dá para poupar.

247 Apesar das imagens que constroem na ilha, sobre a insegurança que se vive na capital do país alguns entrevistados manifestaram a vontade de se deslocarem para lá à procura de “outras sortes”. Ao contrário do que se verifica com alguns outros povoados da ilha, notam-se poucos sinais visíveis da emigração quer em Lagoa, quer ainda em Ribeirão ou em Cruzinha. Quando falamos em sinais visíveis falamos em investimentos feitos pelos emigrantes ou por familiares a partir das remessas daqueles, em imóveis, casas comerciais, empreendimentos turísticos ou automóveis.

os emigrantes não constroem as suas casas em Ribeirão. Eles preferem investir nos centros urbanos para onde vão residir quando regressarem definitivamente ao país. Aqui quando muito ajudam os seus pais na reabilitação das suas casas (Macário).

Em toda a localidade de Lagoa via-se uma única casa com características claras de pertencer a um emigrante 183, e em Ribeirão e Cruzinha o cenário é o mesmo. Nesta última destacam-se algumas construções cujos proprietários são estrangeiros que ali residem ou que vão passar férias.

5. Conclusão

Na parte introdutória deste capítulo estabelecemos como objectivo central analisar e discutir as condições e modos de vida como mecanismos que definem em certo sentido as trajectórias engendradas pelas dinâmicas dos actores sociais. Tal desiderato decorre de um modelo de análise que parte da construção de uma plataforma de contextualização ou, se quisermos, a construção exaustiva da realidade objectiva onde decorre o fenómeno que constitui o objecto de estudo em causa, isto é, as dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local. Ao longo deste capítulo analisamos os principais aspectos espaciais e socioculturais das três localidades escolhidas como palco de análise e vimos que cada uma delas comporta suas especificidades quer em termos da organização espacial, quer em termos da relação que os actores sociais estabelecem com o espaço físico que os rodeia, quer em termos da sociabilidade que emana das relações sociais que se estabelecem ou mesmo em termos

183 Estas características aludem a práticas e representações sociais que se constrói em torno do fenómeno “emigrante” em Cabo Verde. Elas vão na linha do conceito de “inconsistência de Status” tendo em conta o carácter contraditório dos seus comportamentos.

248 da produção e reprodução das condições de existência em cada uma expressas, por exemplo, na forma como se (sobre)vive ou em tipos de estratégias de sobrevivência que as famílias adoptam. Vimos que as estratégias de sobrevivência das famílias nos espaços sociais rurais resultam de uma vasta panóplia de acções e práticas interconectadas ou que funcionam na linha de um único objectivo, daí termos vindo a designá-las por sistemas de estratégias de sobrevivência das famílias. É possível ver uma estreita ligação entre os aspectos que consideramos como estratégias proeminentes de sobrevivência das famílias do meio rural, como é possível também ver uma ligação entre estes e os outros que designamos de estratégias complementares de sobrevivência, apesar de as funções de cada um desses aspectos serem compreensivelmente diferentes não só pela especificidade como também pelo lugar que ocupam na hierarquia das prioridades construídas de acordo com o valor que se atribui a cada um. Mas, além disso, o mais importante ainda é ver que os vários aspectos que constituem o sistema de estratégias de sobrevivência das famílias do espaço social rural ainda gravitam em torno da agricultura, num contexto, e da pesca, no outro, cada uma delas complementada de forma mais ou menos evidente pela criação de gado e em torno do emprego público - FAIMO e emprego privado, enquanto as estratégias ultas ou complementares gravitam em torno de intensa panóplia de práticas como poupança, solidariedade social, Jobs, expediente e desenrasque, trabalho de base não contratual e ainda migração e remessa dos emigrantes. A diversidade de estratégias de sobrevivência é efectivamente um mecanismo central no processo de reprodução das condições e dos modos de vida no meio rural. Mas um dos aspectos mais importantes da análise do sistema de estratégias de sobrevivência das famílias do meio rural assente nas duas tipologias é o seu carácter de complementaridade. Isto é, algumas das práticas que integram a tipologia de estratégias que designamos de complementares visam potenciar as condições de reprodução de uma estratégia proeminente. Os modos de vida e estratégias de sobrevivência das famílias no meio rural são de uma riqueza simbólica extraordinária. Assumem um carácter individual ou colectivo conforme as vantagens que cada actor imaginar conseguir num contexto específico. E, por terem às vezes um carácter individual, são também dotados de um certo sincretismo. Aliás, o segredo na sobrevivência das pessoas em Santo Antão é introduzido em tudo.

249 As pessoas não dizem claramente o que vão fazer a seguir. Dizem que vão fazer um mandado ou dar o recado. Globalmente, a vida no meio rural ocorre em condições extremamente difíceis, razão pela qual comparamos a complexidade de estratégias e a capacidade de transformar essas estratégias em capacidades objectivas de sobrevivência, a uma arte. Uma arte porém invisível e, talvez por isso, valorosa, quanto mais não seja porque reinventa formas de sobrevivência.

250 Capítulo IV – As dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local em Santo Antão: gestão de apoios à habitação social, à mobilização e distribuição de água e à educação e formação

1. Introdução

Nos capítulos precedentes analisamos o contexto global que caracteriza o espaço de interacção social no meio rural da ilha de Santo Antão, no qual os actores sociais desencadeiam as suas acções, tendo em vista a promoção do desenvolvimento local, dando enfoque aos contextos histórico, geográfico, político e socioeconómico (e aqui é preciso distinguir uma ampla e aprofundada abordagem etnográfica sobre as três localidades seleccionadas). Assim, neste capítulo vamos abordar as múltiplas dinâmicas de desenvolvimento local desencadeadas em Santo Antão, partindo das três localidades previamente seleccionadas e assentes nos três eixos de análise, a saber: a gestão de apoios à habitação social, a mobilização e distribuição de água e a educação e formação profissional, cujos pormenores ficaram traçados logo no início, mais concretamente na introdução geral, onde integra a abordagem sobre os procedimentos metodológicos traçados no processo de investigação. Embora, com maior incidência nos eixos centrais seleccionados para este trabalho, refira-se, no entanto, que vamos, na medida que se manifestar necessário, fazer uma incursão analítica a outros eixos de desenvolvimento sobre os quais incidem as dinâmicas de actores que, ao longo do processo de recolha de dados, revelaram-se importantes para a compreensão das múltiplas e complexas dimensões que enformam essas mesmas dinâmicas. Posto isto, vamos então analisar, em primeiro lugar, as dinâmicas dos actores sociais relativamente à gestão de apoios à habitação social nas três localidades, em relação às quais daremos particular atenção à localidade de Lagoa, onde, além das associações de desenvolvimento comunitário (ADC) locais, designadamente a Associação Recreativa Mãos Unidas de Compainha/Lagoinha (ARMUC) e, sobretudo, a Associação Luz Viva de Lagoa e Compainha (ALVLC), uma associação constituída pelos emigrantes oriundos de Lagoa e radicados em Holanda - Associação de Amigos de Lagoa em Roterdão, tiveram um destacado papel.

251 De seguida vamos nos ocupar da análise das dinâmicas relacionadas com a gestão de apoios à mobilização e distribuição de água, privilegiando a localidade de Ribeirão, e onde também vamos analisar a importância das características pessoais dos líderes associativos locais na definição das linhas estratégicas de desenvolvimento comunitário. A análise das dinâmicas de actores sociais na gestão de apoios à educação e formação vai ocupar o ponto seguinte e tal como se verificou nos pontos anteriores, aqui vamos centrar a atenção na localidade de Cruzinha. Este capítulo encerra com uma análise centrada em outras dinâmicas, e neste sentido diferentes das desencadeadas em relação aos três eixos privilegiados desta investigação que ocorrem nas localidades, nomeadamente, aquelas, cuja intensidade que caracteriza a sua implementação, são importantes para a melhor compreensão global das dimensões, sentidos e vicissitudes do conjunto de dinâmicas que os actores sociais encetam no processo de desenvolvimento local.

2. Da gestão de apoios à habitação social

A melhoria das condições de habitabilidade é uma das dimensões mais importantes das políticas públicas no quadro de desenvolvimento local em Cabo Verde, a avaliar pelos discursos dos actores sociais e políticos, cuja actuação se encontra vinculada directa ou indirectamente a programas, acções e práticas ancorados nos propósitos explícitos de promover o desenvolvimento local. O problema em torno de habitação é, à luz dos discursos dominantes, uma questão que tem assumido uma proporção considerável no país devido, muito provavelmente, à pressão demográfica, mas também à reduzida oportunidade de acesso a rendimento compatível com o custo médio de uma habitação e, consequentemente, o acesso a crédito habitação, o preço dos terrenos e o fenómeno da especulação imobiliária, entre outras causas. E para uma melhor compreensão o grau de importância da habitação no contexto do desenvolvimento de Cabo Verde, vamos fazer uma breve incursão a alguns documentos onde constam as grandes linhas orientadoras de políticas de desenvolvimento. O Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) concebido para o período que decorre entre 1997 e 2000 assume explicitamente a criação de instrumentos que facilitem a todo o cidadão, particularmente as mais desfavorecidas, o acesso a uma habitação condigna.

252 Para isso, além de atribuir ao poder central as responsabilidades em matéria de melhorar as condições legais e normativas que visem alargar as bases de oportunidades de acesso à habitação atribui responsabilidades aos vários actores, cujas atribuições se encontram ligadas a esta problemática, designadamente a administração local, a quem deve caber a responsabilidade de velar pela solidariedade e coesão social, gerindo os apoios que consiga captar para promover habitações destinadas a acudir a situações particulares de vulnerabilidade social (PND 1997-2000: 276). Com isto pensamos estar em condições de poder absorver a ideia de que a amplitude social e económica que enforma a problemática da habitação obriga a que ela seja assumida como um desiderato que diz respeito a todos, isto é, ao governo, ás autarquias locais, às organizações da sociedade civil, às próprias famílias. Nesta sequência, os discursos sobre esta questão surgem quase sempre assegurados pela necessidade de se estabelecer uma ampla rede de parcerias como uma alternativa fundamental à dita problemática. A visão traçada para atacar o problema de habitação no país parte da assumpção de que a habitação é um bem a que deve ter acesso todo o cidadão cabo-verdiano. O PND para o período de 2002-2005 aborda a problemática da habitação, a partir da concepção do Programa de Ajustamento e Reequacionamento da Promoção Habitacional, baseando-se na presunção de que efectivamente predominava ainda no país um elevado défice habitacional. Para fazer face à situação propôs-se dar continuidade às estratégias definidas no PND referente ao período 1997-2000 e definiu- se como principais objectivos reduzir o défice habitacional tanto do ponto de vista quantitativo quanto de ponto de vista qualitativo, proporcionar aos estratos sociais mais desfavorecidos, a oportunidade de acesso a uma habitação condigna (PND, 2002-2005: 253-256). Ao analisarmos o primeiro Documento de Estratégias de Crescimento e Redução da Pobreza (DECRP) que traça as linhas estratégicas gerais de desenvolvimento do país 184 para o período que decorre entre 2004 e 2007, podemos dizer que, ao contrário dos dois PND acima mencionados, só de forma muito transversal este documento se refere à política centrada na melhoria das condições de habitabilidade dos cabo-verdianos.

184 Integram o conjunto desses documentos fundamentais, os cinco Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND) referentes aos períodos 1982-1986, 1986-1990, 1992-1995, 1997-2000, 2002-2005 e dois Documentos de Estratégia de Crescimento e Redução da Pobreza (DECRP) referentes aos períodos 2004- 2007 e 2008-2011.

253 A questão ligada à habitação foi referenciada no âmbito da definição dos “indicadores de conforto dos pobres” onde se reconheceu a vulnerabilidade habitacional de uma determinada franja da população, designadamente dos centros urbanos, como uma dimensão da qualidade de vida (I DECRP: 34). Além do mais, integra a medida de política designada “ajustamento e reequacionamento da promoção habitacional (I DECRP: 52) Já o Programa do Governo concebido para VII Legislatura, isto é, para o quinquénio 2006-2011, atribui um destaque considerável à questão sobre a habitação. Mas, mais do que isso, assume-se nesse documento uma forte relação entre a habitação e a melhoria da qualidade de vida das pessoas, a par de outras dimensões como o acesso a água potável, energia, saúde e educação. Neste diapasão, este mesmo programa propôs como algumas medidas para a resolução dos problemas habitacionais que afligem a população mais desfavorecida durante a sua vigência,

h) Criar melhores condições de acesso ao crédito para casa própria; l) Promover, em parceria com os municípios, a habitação em todos os standing`s (habitação económica, a custos controlados - habijovem -, social e reabilitação) visando a satisfação das necessidades habitacionais dos estratos solventes, dos jovens e das camadas mais desfavorecidas; m) Promover programas de habitação social e apoio às famílias mais carenciadas na construção e reabilitação da habitação; o) Envolver organizações da sociedade civil na melhoria das condições habitacionais;

Nesta mesma lógica, o DECRP referente ao período 2008-2011 integra a problemática da habitação na dimensão das políticas centradas na família e define-a, tal como o desemprego, a pobreza, a desigualdade do género, como um factor, cuja situação real, compromete seriamente o desenvolvimento do país (I DECRP: 52). Independentemente da frequência e da forma mais ou menos incisiva como se configura nas grandes opções estratégicas de desenvolvimento que o país tem adoptado e ciente de que não é fácil avaliar através da análise discursiva dos actores políticos a importância comparativa que se atribui aos múltiplos eixos de desenvolvimento do país (e é preciso dizer que isto não é um propósito que assumimos para este trabalho) ousamos dizer que a problemática à volta de habitação, designadamente na sua valência social, ou seja, aquela dimensão que integra a definição da pobreza, tem ocupado um lugar de destaque

254 nos discursos políticos nos últimos 5 anos, particularmente durante os períodos eleitorais. E a razão não seria para menos, pois o défice habitacional no país era em 2008 estimado em cerca de 80.368 casas, de acordo com um estudo realizado pelo então Ministério da Descentralização, Habitação e Ordenamento do Território185. É neste cenário que o Primeiro-ministro reconheceu durante o discurso de abertura da I Feira Internacional da Construção e Habitação (FICH) realizada na Praia em Outubro de 2009 que a habitação é um dos eixos fundamentais para o combate à pobreza e à exclusão, para a redução das desigualdades sociais e melhoria da qualidade de vida dos cabo-verdianos. O governo havia também proclamado o ano de 2009 como ano nacional de habitação, uma iniciativa na sequência da qual foi aprovado o programa “casa para todos”, cuja apresentação pública ocorreu a 27 de Maio de 2009, com vista a dotar o país de um plano nacional de Habitação com horizonte até 2015. O programa, conforme notícias veiculadas na altura pelos meios de comunicação nacionais e pelo próprio website do MDHOT, estabelecia como objectivos centrais:

Instituir uma dinâmica contínua e sustentada de construção de habitação orientada para o défice nacional, centrada nas necessidades de salubridade e conforto básico da família média; promover um regime fiscal e de financiamento sustentáveis para a Política Nacional de Habitação, aberto a participação de diversos parceiros (municípios, ONG, empresas, Banca); e garantir o acesso ao crédito à habitação (através de fundos de garantia e políticas de bonificação focalizadas) às famílias de baixo e médio rendimento, aos jovens e às famílias emergentes.

A importância que tem sido dada à questão da habitação pelos poderes públicos cabo- verdianos está, de igual modo, espelhada nos últimos orçamentos gerais do Estado (OGE). Ao fazermos uma comparação, ainda que artificial, tendo em conta que a rubrica que integra a dimensão da habitação, ou seja, a rubrica “habitação e desenvolvimento colectivo” não considera apenas esta dimensão (referimo-nos á dimensão habitação) e, além do mais, nem sempre considera as mesmas dimensões em todos os OGE é fácil deduzir que nos últimos anos a fracção das receitas que se destina à habitação tem aumentado significativamente (ver o quadro que se segue).

185 Este dado sobre o défice habitacional em Cabo Verde bem como a sua fonte foram captados nos discursos de alguns responsáveis políticos cabo-verdianos proferidos em actos públicos.

255 Quadro n.º 12 - A habitação no Orçamento Geral do Estado

Anos Valor Valor Global do OGE % 2006 1.937.065.966$00 35.596.750.118$00 5% 2007 1.857.217.707$00 37.513.309.912$00 5% 2008 1.470.197.024$00 41.164.073.521$00 4% 2009 2.723.702.854$00 45.390.740.418$00 6% 2010 2,143,285.903$00 43.430.827.598$00 5% 2011 3.517.825.440$00 44.005.837.094$00 8% Fonte: Orçamento de Estado

Veja-se, por exemplo, que em 2006 esta rubrica tinha um peso de cerca de 5% no OGE e em 2011 passou a ter um peso de 8% do OGE, um aumento, de resto, bastante significativo. Além do mais, a promoção habitacional está no cerne das estratégias dos partidos políticos. Os programas eleitorais apresentados para o sufrágio nas eleições legislativas de 2011 pelos dois maiores partidos políticos do país referem-se à habitação de uma maneira bastante expressiva. O MpD após definira situação da habitação social como confrangedora sublinha que,

urge definir uma política pública que, entre outras vertentes, identificará com precisão o papel do governo, das autarquias locais e do sector privado no fomento habitacional e os programas sociais de facilitação dos cabo-verdianos no acesso à habitação própria 186.

Já o PAICV, na condição de partido que sustenta o governo, numa abordagem mais objectiva e alargada realça no seu programa eleitoral para as legislativas acima indicadas, os ganhos alcançados pelo actual executivo, a partir de programas desenvolvidos no domínio de habitação, designadamente o “Casa para Todos”.

atender às necessidades de cerca de 24 mil famílias, cujas casas precisam ser reabilitadas, de cerca de 12 mil famílias, que procuram uma nova casa, e criar as condições de acesso ao solo, ao crédito, a incentivos fiscais à construção e reabilitação, à aquisição e arrendamento 187.

Ainda no plano político, refira-se que a habitação foi um assunto que mereceu um espaço na agenda da sessão plenária da Assembleia Nacional de 26 de Abril de 2010, algo que demonstra ainda mais a sua importância nas estratégias dos actores políticos.

186 Vide o Programa eleitoral do Movimento para a Democracia par a as Legislativas de 2011, p. 226. 187 Vide a Plataforma para as Eleições Legislativas de 2011 do PAICV, p. 29.

256 Apesar de tudo isso, nos parece importante sublinhar que o problema da habitação em Cabo Verde está longe de se reflectir nos números ou mesmo nos discursos políticos que emergem de contextos políticos específicos, pese embora entre este aspecto e as dinâmicas dos actores, particularmente aquelas que se desenvolvem estribadas nas motivações centradamente políticas, existam uma forte ligação. Durante o período de recolha de dados em Santo Antão pudemos ouvir opiniões de várias pessoas sobre as condições da sua habitabilidade e ficamos com a nítida impressão que ter uma casa própria é (e foi) uma questão prioritária para elas. Muitas pessoas assumem esta questão como algo que condiciona algumas decisões futuras importante, como por exemplo a de constituir uma família. Mas além do mais, para essas pessoas ter uma casa condigna é uma questão de honra e de dignidade humana. A maneira como as pessoas se expressam sobre este assunto orienta-nos para o pressuposto de que ter uma habitação própria reflecte uma certa realização pessoal. Ao contrário, isto é, não tê-la representa por sua vez, um sinal evidente de fracasso. Nos últimos dez anos, as dinâmicas dos actores sociais desencadeadas em torno da habitação social tiveram como principais sustentáculos os seguintes programas: o PNLP; o Programa Operação Esperança e o Programa Casa para Todos. A estes acrescenta-se um vasto conjunto de acções, medidas ou programas encetados pelas autarquias locais. O PNPL, de que já falamos na parte introdutória deste documento, ainda que sumariamente, vem sendo implementado desde o ano 2000 e orienta-se pelos princípios de reduzir a pobreza de forma durável e sustentável; combater a pobreza no quadro descentralizado e promover a participação e a coordenação de esforços e agrega três grandes subprogramas. São eles: Projecto de Desenvolvimento do Sector Social (PDSS); Programa de Luta contra a Pobreza no Meio Rural (PLPR) e Projecto de Promoção Socioeconómica de Grupos Desfavorecidos (PSGD). As principais actividades do PNLP são desenvolvidas através de 4 subprogramas: Integração dos grupos pobres na economia; Melhoria do acesso social dos grupos pobres da população; Melhoria social e; Reforço da capacidade institucional. O problema de habitação social é um dos eixos fundamentais do PLPR e integra o subprograma “Melhoria do acesso social dos grupos pobres da população” juntamente com as componentes ligadas à educação; saúde, nutrição e população; água potável e saneamento. Esta componente agrega intervenções nos domínios de reabilitação, auto- construção e construção de habitações sociais.

257 Refira-se que as organizações da sociedade civil, particularmente as ONG e as ADC, são vistas como actores privilegiados no PNLP, quanto mais não seja porque podem desempenhar o papel de interlocutores mais directos do público-alvo indicado pelo programa. Esta é, aliás, uma questão central nas dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local em Cabo Verde. É neste sentido que Proença, ao analisar os meandros do PNLP, ainda que para analisar o fenómeno de exclusão social em Cabo Verde, refere que este programa

ainda é visto por alguns municípios como uma entidade usurpadora de algumas das suas funções, nomeadamente, no que se refere à afectação de recursos às Associações Comunitárias de Desenvolvimento para a execução de micro-projectos e acções de luta contra a pobreza (Proença, 2009: 36).

Ora, tendo em conta a dimensão do programa em análise e, consequentemente, o seu protagonismo no conjunto de políticas públicas que se tem implementado, particularmente no meio rural, então pode-se deduzir que o campo que sustenta as dinâmicas dos actores sociais é, em alguns casos, muito complexo e, por vezes, altamente marcado pela lógica de competição política. O Programa Operação Esperança é, segundo o documento Livro Operação Esperança, foi criado pelo governo em 2003 por despacho 011/2003, com vista a promover a melhoria das condições de habitabilidade de famílias carenciadas no país, extensivo às famílias de origem cabo-verdiana residentes em São Tomé e Príncipe e Moçambique, colocado sob a coordenação da Fundação Cabo-verdiana de Solidariedade. O programa concebido para funcionar numa modalidade que privilegia uma ampla rede de participação e colaboração da sociedade civil, principalmente as pessoas beneficiadas com a disponibilização de mão-de-obra e de outras coisas úteis à execução dos trabalhos, conta com a parceria das ADC que, neste âmbito, têm por função, por um lado, proceder ao levantamento das necessidades existentes nas suas comunidades, elaborar o dossier de candidatura e submete-lo à aprovação do então Instituto Cabo-verdiano de Solidariedade (agora Fundação Cabo-verdiana de Solidariedade) sedeado na capital do país e, por outro, coordenar os trabalhos de intervenção através de contratos-programa que assinam com o Ministério das Finanças e Planeamento e a FCS, onde constam as regras de desembolso de fundos e as múltiplas obrigações a que cada interveniente se

258 sujeita. No âmbito deste programa, pelo menos em Santo Antão, são as associações que, em última análise executam as obras de melhoramento das habitações nas suas respectivas comunidades. Além disso, cabe às associações prestarem esclarecimentos às pessoas nas comunidades em relação aos moldes como o programa opera. O programa arrancou efectivamente em Junho de 2005 com um orçamento de 120.000.000$00 cabo-verdianos disponibilizados pelo governo. De acordo com as informações constantes do documento em apreço, durante a primeira fase do programa, a ilha de Santo Antão teve 78 famílias beneficiadas, S. Vicente 87, Sal 19, Boavista 12, Fogo 100, Brava 87. Tendo em conta as inúmeras solicitações dirigidas ao organismo que tutela o programa houve a necessidade de se implementar uma nova fase do programa, designada segunda fase para a qual o governo disponibilizou 60.000.000$00 para o ano de 2007. Para o ano de 2008 tendo em conta a terceira fase terá sido disponibilizada pelo governo uma verba de 100.000.000$00. No programa das comemorações de quarto aniversário da FCS, segundo uma notícia veiculada pelo jornal electrónico A Semana, de 25 de Fevereiro de 2010, em que se fez a apresentação pública dos resultados do programa, a sua Presidente realçou o facto de o programa ter abrangido todas as ilhas e que entre 2005 e 2008 foram feitas cerca de 3127 intervenções no domínio de apoios às habitações, entre reabilitações e construções de raiz. Nessa altura estava em curso a realização da quinta fase do programa que arrancou em 2009 e a sexta fase prevista para 2010 estava em preparação. O Programa Casa Para Todos é muito mais vasto, pois é visto pelo governo como um instrumento que orienta todas as políticas públicas do domínio de habitação executadas188. De sublinhar que o programa foi concebido em 2009 e visa, até 2013, construir cerca de 8.115 moradias e a melhorar cerca de 15.843 casas, na expectativa de poder reduzir o défice habitacional em cerca de 20% no final da sua execução. O orçamento geral deste programa é estimado em cerca de dezassete mil milhões de escudos cabo-verdianos (equivalente a cerca de 154 milhões de euros). Este programa define como principais objectivos [

188 Sara Lopes, Ministra da Descentralização, Habitação e Ordenamento do Território na Sessão Plenária da Assembleia Nacional de 26 de Abril de 2010.

259 i) Instituir uma dinâmica contínua e sustentada de construção de habitação orientada para o défice nacional, centrada nas necessidades de salubridade e conforto básico da família média; ii) Promover um regime fiscal e de financiamento sustentáveis para a Política Nacional de Habitação, aberto a participação de diversos parceiros (municípios, ONG, empresas, Banca); iii) Garantir o acesso ao crédito à habitação (através de fundos de garantia e políticas de bonificação focalizadas) às famílias de baixo e médio rendimento, aos jovens e às famílias emergentes] e agrega três subprogramas, isto é, “Habitar Cabo Verde”, “Reabilitar” e “pró-habitar”.

O “Habitar Cabo Verde” tem por objectivo reduzir o défice habitacional qualitativo e quantitativo no horizonte 2009/2013, construir cerca de 8.155 novas habitações, de modo a reduzir em cerca de 20% o défice habitacional em todas as ilhas do País. O Pro-habitar visa a construção de cerca de mil novas unidades habitacionais no meio rural, reduzindo-se assim em 8% o défice quantitativo, propondo tipologias e tecnologias para a produção de habitação de interesse social (…). O Reabilitar visa melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem nos bairros informais, devolvendo a sua dignidade para que possam exercer também a sua cidadania, com maior plenitude (…) assenta-se em duas vertentes muito importantes. Uma das vertentes é efectivamente a recuperação do parque habitação rural e do parque habitação das cinturas das cidades 189.

Posto isto passamos agora para a análise das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local na ilha Santo Antão no domínio de os apoios à habitação social, começando pela localidade de Lagoa.

2.1 O caso de Lagoa

As dinâmicas dos actores locais implementadas nos últimos anos em Lagoa do domínio de habitação são bastante visíveis. São facilmente constatáveis por quem visita esta localidade logo à entrada, isto é, na pequena aldeia designada Chã Branca. Durante a travessia desta aldeia saltam-nos logo à vista, imagens de casas recentemente construídas, dispersas umas das outras, aliás uma disposição típica das habitações no meio rural santantonenese, todas elas projectadas a partir de um mesmo modelo de planta, isto é, constituída por uma sala, um quarto de dormir, uma casa de banho e um

189 Sara Lopes, Ministra da Descentralização, Habitação e Ordenamento do Território na Sessão Plenária da Assembleia Nacional de 26 de Abril de 2010.

260 quintal 190 , pintadas da mesma cor. Elas são invariavelmente pintadas de branco ostentando uma porta e duas janelas pintadas sempre de azul. Todas elas dispõem, na parte traseira, ou mais concretamente no quintal, uma escada que dá acesso à cobertura. Um pouco mais abaixo, numa aldeia contígua à Chã Branca designada Compainha depara-se agora com grupos mais concentrados de casas, por vezes coladas umas às outras, com um modelo arquitectónico ligeiramente diferente e com tonalidades de cor também diferentes, pois estas encontram-se pintadas de branco mas levam umas faixas cor-de-rosa na parte superior e nas quinas. Ostentam também uma porta e duas janelas pintadas a azul. As novas habitações contrastam nitidamente com as demais existentes na aldeia, pois umas têm um aspecto por vezes degradado no exterior e caracterizam-se basicamente por serem construídas de blocos de cimento e cobertas de betão, umas rebocadas e outras não, mas na maioria dos casos não são pintadas, e outras construídas de pedras soltas cobertas de palha, sendo que estas são em muito menor número. Á entrada da aldeia de Lagoa 191, já se nota uma mistura entre grupos de casas pintadas de branco, com faixas rosas e outras pintadas de branco mas sem aquelas faixas rosas, com uma porta e duas janelas azuis e as habituais casas construídas de blocos de cimento e cobertas de betão, pintadas grosso modo de branco, ou simplesmente rebocadas ou ainda por rebocar. Aliás, essas últimas têm caracterizado um pouco o meio rural da ilha de Santo Antão, substituindo as casas cobertas de palha que, segundo os moradores, dominavam, antigamente, a paisagem habitacional desta localidade. Nessa altura, ainda segundo os habitantes desta localidade, muitas famílias viviam em “castelos”, um tipo de habitação de formato circular construída de pedras soltas e coberta de palha associada normalmente ao nível socioeconómico mais baixo. Pudemos verificar que na aldeia de Chã Branca existem ainda castelos. Na parte central de Lagoa depara-se com um bloco de 12 moradias, projectado sob o mesmo modelo arquitectónico descrito anteriormente. As casas que integram este bloco são todas pintadas de branco sendo que ostentam umas faixas pintadas de verde e

190 Alguns inquilinos, uns através de apoios dos actores sociais, outros através do esforço próprio já ampliaram as suas casas com a construção de mais quartos no quintal devido ao alargamento dos respectivos agregados familiares. 191 Sempre que falamos da “aldeia de Lagoa” estamos a referir à comunidade que se situa na parte central e quando falamos da “localidade de Lagoa” referimos a uma área espacial mais vasta e onde integra a referida aldeia.

261 amarelo e outras seis ostentam as mesmas faixas cor-de-rosa, iguais àquelas da aldeia de Compainha descritas anteriormente. Mas, as habitações de cor branca com faixas cor-de-rosa ostentando uma porta e duas janelas estendem-se por toda a aldeia de Espadaná, a última que compõe a localidade de Lagoa. As seis habitações de faixas verde e amarelo e que integram o bloco de 12 moradias no centro da aldeia de Lagoa foram as primeiras habitações construídas sob esse formato arquitectónico em toda a localidade de Lagoa, incluindo Chã, Branca, Compainha, Matinho e Espadaná. Elas foram construídas em 1996, no âmbito do Plano de Apoio ao Desenvolvimento Económico e Social de Santo Antão (PADESA), conforme nos informou o Presidente da ALVLC, senhor Manuel Pinto, um programa financiado pela Cooperação Holandesa e Luxemburguesa e executado pelo Gabinete Técnico Intermunicipal (GTI), executado entre 1994 e 1997 com base em princípios da cooperação descentralizada, visando entre outros objectivos lutar contra a pobreza e melhorar da qualidade de vida; promover o emprego e melhorar a situação socioeconómica da mulher; preservar o meio ambiente e promover a educação e formação profissional. Todas as outras pintadas de branco com faixas cor-de-rosa espalhadas um pouco por toda a localidade foram construídas no âmbito de um projecto de apoio a habitação concebido através de uma parceria estabelecida entre a Câmara Municipal da Ribeira Grande, a Fundação Amigos de Lagoa, radicada em Roterdão e a PWS 192, uma empresa holandesa. O programa foi concebido em duas fases. Numa primeira fase foram construídas 18 habitações para famílias que, além de na altura viverem em condições degradantes, moravam em sítios ainda mais distantes e de difícil acesso, sítios esses que não dispunham de qualquer tipo de serviço público, designadamente água, escola, unidade de prestação de serviços de saúde e para onde os poderes públicos se quer cogitavam a possibilidade de levar esses serviços. A segunda fase, que decorreu entre 2006 e 2007, tinha um financiamento no valor de 26.000.000$00. Inicialmente previsto para a construção de mais 18 moradias, como se pode ver pelas informações divulgadas na altura da sua implementação pela Revista

192 PWS é uma empresa imobiliária sediada em Roterdão – Holanda.

262 Municipal Diálogo 193, acabou, segundo o Presidente da ALVLC, por estender-se para 22 moradias, um Jardim infantil e construção de uma infra-estrutura com valência de restauração, hospedagem de turistas que visitam a localidade e padaria perspectivando abastecer o mercado das aldeias circundantes que, no entanto, está ainda por ser concluída. A execução dos trabalhos contou com a parceria de ALVLC. Com os projectos financiados pela Câmara Municipal de Ribeira Grande e PWS, ficaram cobertas uma parte substancial das necessidades habitacionais da localidade de Lagoa, conforme estima o Presidente de ALVLC. Trata-se de um conjunto de iniciativas de grandes dimensões no contexto da dinâmica de desenvolvimento local. Mas, as dinâmicas dos actores sociais em matéria de apoio para aquisição e melhoria das habitações de famílias com problemas na localidade de Lagoa foram iniciadas pela Caritas cabo-verdiana. Esta ONG ligada à igreja católica apoiava sobretudo na aquisição dos materiais de construção como ferros, cimentos, madeiras, etc. Conforme observa o Presidente da ALVLC, a igreja teve um papel importante na comunidade. Anteriormente a igreja apoiava muita gente nas construções das suas casas e de cisternas domiciliares. Além da Caritas importa também sublinhar o papel da Cruz Vermelha no apoio à melhoria das condições de habitabilidade dos habitantes de Lagoa, particularmente na comunidade de Compainha. As contribuições da Caritas, das igrejas (igreja católica sobretudo) e da própria Cruz Vermelha consistem básica e fundamentalmente na atribuição de materiais de construção e, por uma certa quantia em dinheiro. A igreja e a Caritas, além do próprio estado, são entidades cuja actuação no domínio de apoio à melhoria das condições de habitabilidade é muito antiga, porém com maior incidência a partir da década de noventa, conforme a opinião dos nossos entrevistados. Nos últimos anos, com o Programa Nacional de Luta contra a Pobreza, a Comissão Regional de Parceiros (CRP), uma entidade que coordena localmente as acções do PNLP, financiou as reparações e construções de raiz de algumas habitações na localidade de Lagoa. No entanto, o projecto mais visível desenvolvido pela CRP é o de construção de casas de banho particularmente no bairro social construído pela Câmara Municipal da Ribeira Grande em parceria com as duas associações locais, uma

193 Revista Municipal “Diálogo”, n.º 2, Abril/Junho de 2006, Ribeira Grande de Santo Antão.

263 reivindicação da ALVLC, no quadro da definição de uma política de promoção das condições de saneamento na aldeia. A CRP é uma associação de direito privado criada no âmbito do Programa de Luta Nacional Contra a Pobreza no Meio Rural e engloba vários parceiros (ADC, ONG, Serviços desconcentrados do Estado como Delegação do Ministério da Saúde, Delegação do Ministério de Agricultura, Delegação do Ministério da Educação e Câmaras Municipais). Em Santo Antão são ao todo 108 membros na sua maioria as Associações comunitárias de Base que são cerca de 80. Hoje, em Santo Antão, segundo o seu coordenador, Sr. Adriel Mendes, já fazem parte da CRP as cooperativas, os internatos, etc. Segundo o mesmo, o objectivo da CRP é capacitar económica e socialmente os pobres. Neste sentido, prossegue,

reforçamos as oportunidades sociais, pessoas com deficiência na habitação social, alimentação etc., temos outros eixos que é trabalhar a mentalidade dos pobres, dando-lhes formação, sensibilizando-os, etc.

A ALVLC apoiou várias outras iniciativas locais em matéria de restauração das habitações pertencentes a pessoas carenciadas, quer a partir de financiamentos concedidos no âmbito do PNLPR quer da Operação Esperança. Ultimamente (em Agosto de 2010) estava em execução um programa de reabilitação das habitações na aldeia de Compainha financiado pela Câmara Municipal do Porto Novo que abrangia dez famílias de acordo com as informações prestadas pelo Presidente de ARMUC e que, de resto, pudemos constatar in loco. São visíveis as transformações ocorridas na localidade no domínio de habitação social e que resultaram das dinâmicas dos actores sociais locais. As pessoas nas suas comunidades dão o seu máximo para terem uma habitação própria independentemente das ajudas que possam receber. A Andreia, uma das nossas entrevistadas contou-nos que construiu a sua casa sem apoio de estranhos. Entenda-se dos actores sociais representados pela ADC, ONG, Autarquias e Serviços Desconcentrados do Estado.

Tive ajuda do meu pai e dos vizinhos. Ajudaram com a mão-de-obra. Levei um ano e tal para concluir a construção da minha casa. Sempre que conseguir um dinheirinho comprava um saco de cimento. Quando você compra um saco de cimento falta dinheiro para comprar outras coisas. Mas é uma questão de prioridade. Foi assim até terminar. Foi

264 a melhor coisa que fiz. Não há coisa mais importante que uma pessoa ter a sua própria casa.

Independentemente dos múltiplos aspectos que envolvem uma opinião como esta que acabamos de citar, pois, a título exemplificativo, por vezes, as pessoas tendem a ocultar os apoios recebidos, como de resto vimos no capítulo anterior quando analisamos as várias dimensões de estratégias de sobrevivência das famílias no espaço social rural, o que aqui interessa sublinhar é a ideia segundo a qual todo o sacrifício impregnado para a construção de uma habitação própria é para evitar que um dia surja a situação em que uma pessoa não tem para onde ir em caso de despejo: Para evitar tal situação vale a pena todo o sacrifício do mundo e para isso também os vizinhos se mostram disponíveis para pôr em prática todo o seu sentido de solidariedade. São situações como esta que importunam a senhora Rosalinda, pois a casa onde se encontra a viver é dos pais do marido que, por sua vez, têm outros irmãos e sendo assim, a casa poderá ser no futuro objecto de disputa de herança entre os herdeiros e, consequentemente, ela e a sua família poderão ter que a abandonar. E se acontecer numa altura em que não teriam por onde ir seria catastrófico. Por isso mesmo traça como prioridade a construção de uma casa própria. Ter uma habitação própria para as pessoas que vivem no meio rural cabo-verdiano representa mais que um simples acesso a uma vida condigna. Representa para muitos a realização de um sonho, de toda uma vida. As representações que as famílias do espaço social rural se constroem em torno da habitação são de uma abrangência conceptual e teórica extraordinária, pois esta dimensão da vida destas famílias está intrinsecamente ligada a uma série de valências, ou se quisermos a um vasto sentido que se atribui a um espaço fechado. Desde logo se dispõe de uma valência sociocultural na medida em que ela se assume indubitavelmente como base para a construção, afirmação e reprodução das condições existenciais da família. É, em última análise, um espaço primário de interacção e de socialização. Além do mais, é um espaço de protecção contra os condicionalismos físicos e naturais quando se refere a protecção contra chuva, vento e sol, etc., contra os condicionalismos que decorrem da interacção social, quando referimos a protecção dos inimigos, mas também permite ter a noção do “privado”. Representa para muitos uma valência económica porque é um espaço de ganha-pão que garante a sobrevivência de muitas pessoas. Ela

265 está associada às principais actividades socioeconómicas das famílias deste espaço social. Basta ver a importância secular de pequenas indústrias domésticas no sistema produtivo ali dominante. A habitação é para as pessoas do meio rural, um microcosmo de onde derivam os sentidos que se atribuem a todo o resto que anda à sua volta. Por isso que os pais do Sr. Rufino não queriam que ele comprasse um terreno que lhe haviam proposto sem que antes tivesse construído sua própria casa, pois para os pais dele uma casa deve estar no centro das prioridades de um homem. Um dos principais constrangimentos que os actores sociais de desenvolvimento enfrentam para dar continuidade aos programas de apoio à construção de habitações às famílias pobres em Lagoa tem a ver com a disponibilidade dos terrenos. A situação mais comum decorre do facto de os terrenos pertencerem por vezes a vários herdeiros e, por uma razão ou outra, não se consegue a anuência de todos para a sua cedência ou mesmo venda. Esta é a situação por que passa o senhor Geraldo que continua a viver numa pequena casa construída de pedras soltas e coberta de palha, com apenas dois compartimentos e onde coabita com o irmão, a cunhada e cinco sobrinhos. A casa onde mora situa-se na propriedade que antes era explorada pelos pais e hoje por ele e o irmão em regime de parceria. Ele e o irmão só não foram contemplados pelos programas de habitação que foram executados nesta localidade porque o proprietário do terreno não permitiu alegando não ter tido anuência dos outros co-proprietários. Em suma, convém sublinhar que as dinâmicas em torno de habitação social de que se desenvolveram nos últimos anos na localidade de Lagoa são notáveis a todos os níveis, pois contribuiu para uma redução drástica do défice habitacional resgatando assim, ainda que parcialmente (visto que há todo um conjunto de factores que participam na fixação da população em espaços sociais rurais) a possibilidade de as pessoas se mantiverem ali, mas é de igual modo salutar a vasta rede de parcerias que envolveu e que se desencadeou em torno deste desiderato.

2.2 O caso de Ribeirão

As dinâmicas em torno de apoio à habitação social em Ribeirão, apesar de visíveis aos olhos dos vários actores sociais que as encetaram e aos da população local, elas não atingiram a amplitude (quantitativa e qualitativa) verificada na localidade de Lagoa. Esta avaliação resulta concretamente da comparação colocando em confronto, por um

266 lado, o número de casas construídas de raiz e o número de intervenções feitas no domínio de reabilitação de habitações degradadas e, por outro, os recursos financeiros envolvidos e a dimensão do sistema de parcerias montado ao longo dos últimos anos nos projectos que envolveram as duas localidades. Lagoa é um caso à parte, pelo menos ao nível da ilha de Santo Antão, e pode muito bem servir de exemplo a seguir no domínio de mobilização de parcerias no âmbito de um processo de desenvolvimento local. Apesar de não atingirem a amplitude de Lagoa, as dinâmicas aqui encetadas merecem uma avaliação bastante positiva construída por uma grande maioria da população local. E é nesta base que as pessoas são unânimes em relação à ideia segundo a qual, as condições de habitabilidade nesta localidade melhoraram substancialmente nos últimos 15 anos, pelo menos. A maioria de pessoas com as quais contactamos refere que as casas em Ribeirão, tal como em Lagoa, eram basicamente de pequena dimensão, feitas de pedras soltas e cobertas de palha, muitas das quais construídas, há já bastante tempo. Aliás, esta situação foi uma das razões que motivou a fundação da Ami-Ribeirão, conforme nos disse o seu Presidente de Direcção, Sr. António Carente e é por isso também que esta associação local elegeu este eixo, à semelhança da educação e mobilização de água, como acção prioritária a ser desenvolvida. Contudo, desenvolver projectos que visassem promover a habitação social em Ribeirão pressupunha enfrentar à partida um grande problema, pois, ainda segundo António Carente,

Ribeirão era na altura uma localidade em que os terrenos pertenciam a um pequeno número de proprietários que não residiam na localidade. As pessoas eram muito limitadas em termos de alguma iniciativa que pudessem ter para melhorarem a sua habitação, na medida em que, os terrenos onde localizavam as suas casas não lhes pertenciam.

Nesta perspectiva, era então necessário sensibilizar os proprietários para depois darem início a um longo processo de reabilitação e, em certas circunstâncias, a construção de raiz de muitas habitações. Durante todo esse período actuaram, segundo a opinião de António Carente, em mais de 60% das casas existentes em Ribeirão. As pessoas com quem falamos atribuem o mérito da mudança havida na paisagem habitacional à ADC local e vêm a pessoa do seu actual presidente uma figura central.

267 O senhor Mateus reconhece-o peremptoriamente:

A associação contribuiu para a melhoria de habitação de muita gente. Associação e Câmara municipal. Mas tudo ligado a António Carente. Antigamente havia muita gente que morava em casas construídas de pedras soltas e cobertas de palha. As pessoas não podiam construir as suas casas. Não tinham condições materiais para o fazer. Eu digo onde quer que seja que António Carente é quem desenvolveu Ribeirão e Campo de Cão.

A dona Anete também não tem dúvidas. Para ela, a associação ajudou muito na melhoria das casas das pessoas. Sem colocar em causa o importante papel que a associação local desempenhou no processo de melhoria das condições de habitabilidade da população de Ribeirão é preciso notar que as suas acções neste domínio foram resultado de uma visão de desenvolvimento que se começou a desenhar ainda na década de noventa, na sequência das actividades da cooperação holandesa e da cooperação luxemburguesa que privilegiavam sobremaneira a participação das populações locais, devidamente organizadas, nas acções que visassem a melhoria das condições de vida nas suas comunidades, em que o projecto PADESA, do qual fizemos referência anteriormente, é um exemplo claro e que prosseguiu, primeiro, com o PNLP ou mais concretamente o PLPR e, mais tarde, com o Programa Operação Esperança e prossegue agora com o Programa Casa para Todos. Esta visão de desenvolvimento comunitário privilegiando a participação das comunidades nas tomadas de decisão é, de igual modo, reproduzida pelas autarquias locais. Mas, este é um assunto que analisaremos de forma mais pormenorizada no capítulo seguinte. A CRP, de forma directa ou indirecta (pela via de contratos-programa que celebram com a associação local), teve um papel preponderante neste processo. Aliás conforme disse o seu coordenador local a habitação social tem sido prioritária no processo de luta contra a pobreza (…). Durante a primeira fase do projecto o grosso dos recursos financeiros foi canalizado para habitação social. Contudo, talvez porque focalizou as suas acções preferencialmente na lógica de parceria, isto é, através do financiamento de projectos apresentados pela associação local, as suas iniciativas são encobertas por esta. Esta unidade de coordenação do PLPR na ilha está, no entanto, muito associada às iniciativas de construção de casas de banho nas habitações de famílias pobres, como tínhamos visto.

268 A Câmara Municipal é, de igual modo, indicada pela população local como sendo um actor social muito interventivo, ora directamente ora através da associação local. Além destes actores sociais, vários outros participaram em projectos de apoio à habitação social em Ribeirão. Constatámos os apoios de Igrejas, mais particularmente a Igreja Católica, sobretudo em tempos mais recuados e deparamos, de igual modo, com apoios de várias ONG sedeadas na ilha. Mas, é de salientar situações de melhoria de habitação com a participação de familiares (e)migradas. No entanto, voltamos a sublinhar uma vez mais que as dinâmicas à volta de apoio à habitação aqui desencadeadas não são as mesmas que aquelas que se desencadearam em Lagoa. Em Ribeirão, elas foram surgindo pontualmente à medida que vai surgindo um actor que se disponibilize a financiar a reparação da casa de uma família A ou B ou a construção de uma habitação destinada a uma família Y ou Z. A soma das várias iniciativas impregnadas pelos vários actores sociais consubstanciou-se num resultado positivo. Actualmente, há muito poucas casas cobertas de palha em Ribeirão, como muitos fazem questão de enfatizar quando o assunto é habitação. Porém, isto não significa que o problema habitacional em Ribeirão se restrinja ao número de casas cobertas de palha. Pudemos verificar que existem ainda várias situações em que as pessoas vivem numa manifesta insegurança habitacional. E muitas dessas famílias que hoje vivem nessa situação tinham sido outrora (há cerca de 10 ou 15 anos) apoiadas inclusivamente com uma habitação construída de raiz. No conjunto das dinâmicas de actores sociais no domínio de apoio à habitação importa sublinhar uma iniciativa que consideramos inovadora posta em prática pela Associação dos Amigos de Ribeirão/Campo de Cão (Ami-Ribeirão) que consiste no seguinte: quando decidem apoiar uma pessoa idosa na construção de uma habitação e se essa pessoa se encontrar nessa altura a viver sozinha, a habitação fica registada como propriedade da associação, para evitar que quando a pessoa faleça a habitação construída com recursos mobilizados pela associação vá parar nas mãos de um herdeiro que não precise dela.

2.3 O caso de Cruzinha

269 As dinâmicas dos actores sociais no domínio de habitação têm sido nos últimos anos muito intensas em Cruzinha, a avaliar pela variedade dos intervenientes e pelas dimensões que assumem. Tal como se verifica nas outras duas localidades já analisadas, várias famílias foram beneficiadas com apoios da Igreja Católica na construção e melhoria das suas habitações, e o mesmo se pode dizer em relação à Caritas, cujas intervenções diferem dos demais actores na medida em que, em certos casos, associam o apoio à habitação à construção de pequenos hortos no quintal dos beneficiários. A ideia que está por detrás dessas práticas é, segundo nos informou uma das suas beneficiárias, melhorar a dieta alimentar de famílias. Uma das acções mais marcantes na localidade da Cruzinha no que diz respeito ao apoio à habitação tem a ver com a construção de oito habitações financiadas pelo ICASE, agora FICASE, e um bairro de dez habitações construído no quadro da cooperação holandesa e da luxemburguesa materializada através do PADESA em 1998. Essas casas foram atribuídas às famílias perante o compromisso de pagarem uma renda económica de 750$00 mensais e que hoje deixaram de a pagar na sequência de uma medida da Câmara Municipal desde 2009, uma medida que, de resto, deixou os beneficiários bastante satisfeitos, mas que, no entanto, não é suficiente, pois esperam ainda que a Câmara Municipal intervenha na reparação ou substituição de portas e janelas que, em alguns casos, se revelam bastante degradadas. Essas habitações são constituídas por uma sala, um quarto, uma cozinha, uma casa de banho e um quintal, onde, em certos casos, as famílias aproveitaram para construir mais um quarto. Pudemos também constatar que a CRP, além de apoios pontuais nas reparações e construção de habitações de algumas famílias, ajudou também na construção de casas de banho, à semelhança do que aconteceu nas outras duas localidades. Neste domínio em particular, é preciso notar que, na maioria dos casos, a construção de casas de banho faz parte de um projecto isolado, visando, segundo o Presidente da ACEDIM, colmatar uma necessidade que emergiu do crescimento do bairro ou mesmo devido às exigências das pessoas cujas habitações não dispunham dessa serventia. A Câmara Municipal tem desenvolvido várias acções no domínio de habitação social, também elas direccionadas para construção de raiz e reabilitação. Em Março de 2010 estavam a concluir a construção de uma das cinco habitações sociais, cujo projecto

270 iniciara havia já algum tempo. As obras estavam a ser executadas pela associação local, ou seja Associação Comunitária Nova Experiência Marítima de Cruzinha (ACNEMC). Pudemos constatar, de igual modo, que várias famílias foram beneficiadas com apoio na reparação das suas casas através das iniciativas desenvolvidas no local pela ACEDIM, no âmbito do Programa Operação Esperança. Segundo o presidente desta associação, Senhor Laurindo Delgado, entre 2003 e 2010 o programa beneficiou cerca de 41 famílias com intervenções a nível de reabilitação das suas casas. Essas intervenções vão desde reboco passando pela colocação de portas e janelas e construção de casas de banho. Este responsável fez questão de salientar que o modelo de apoio à habitação que o Programa Operação Esperança adoptou é diferente dos demais adoptados por outros actores sociais que intervêm neste domínio, designadamente a Câmara Municipal, pois segundo ele, a Operação Esperança apoia mas exige que as famílias também contribuam nos trabalhos, enquanto a Câmara Municipal aplica o investimento por vezes sozinha. Ou seja, as famílias beneficiadas com o apoio deste programa participam nem que seja apenas com a mão-de-obra ou com a mobilização de alguns materiais designadamente pedra, areia e água. Refira-se que o Programa Operação Esperança em Santo Antão esteve nos primeiros instantes (2004) sob a coordenação da Organização das Associações de Desenvolvimento Integrado de Santo Antão (OADISA). Depois, em 2006, passou para a coordenação de Associação de Desenvolvimento Integrado de João Afonso (ADIJA), cujo Presidente é o Senhor José Remígio de Almeida. Além da ADIJA, integram a rede de parceria da Fundação Cabo-verdiana de Solidariedade, entidade do Estado responsável para a coordenação do programa a nível nacional, outras 11 ADC, designadamente, a Associação de Nossa Senhora de Livramento Ponta do Sol, Associação dos Filhos e Amigos para o Desenvolvimento Integrado de Figueiral (AFADIF), Associação Costa Leste, Associação Vale Verde, Associação Ama Fajã e Associação Monte Joana entraram numa primeira fase e, numa segunda fase, entraram Ami-Ribeirão, ADICOFAM, ACDIM (Curral de Mocho), ABEC (Caibros) e ADIBOC (Boca de Coruja). É preciso também salientar que não houve um critério pré definido para a selecção das associações para integrar a rede, segundo a pessoa responsável pelo programa ao nível da ilha. As 12 associações que

271 constituem a rede são aquelas que apareceram numa reunião convidada pela FCS tendo em vista a sua constituição. A selecção de projectos de intervenção nas residências das pessoas é feita a partir da cidade da Praia. As associações apenas elaboram os dossiers e, no caso de Santo Antão, as associações remetem-nos para o Presidente de ADIJA e este encaminha-os para a cidade da Praia para aprovação. As principais atribuições de ADIJA nessa matéria é, assim, gerir os fundos que lhe são colocados à disposição todos os anos, isto é, reparti-los equitativamente às associações que fazem parte da rede e, posteriormente, recolher os justificativos de execução dos projectos pelas diferentes associações para a elaboração do relatório. O valor dos fundos colocados à disposição das associações do concelho de Ribeira Grande varia de ano para ano, aliás, conforme o valor total disponibilizado pelo governo. Mas, o valor máximo que lhes coube foi de cerca de 4.000.000$00. Durante o ano de 2011, a ADIJA trabalhou com um fundo de 3.000.000$00 que devia ser distribuído a diferentes associações da rede, segundo nos disse o seu Presidente. Assim, a cada associação coube uma verba de 250.000$00, um valor que os dirigentes consideram irrisório, tendo em conta as muitas demandas no domínio de apoio à habitação. Segundo o responsável do programa no concelho

esse dinheiro em matéria de apoio a habitação social, quando muito dá para construir casas de banho e concertar portas e janelas. Por isso nessa matéria contamos sempre com os apoios da Câmara Municipal, de Caritas cabo-verdiana, da CRP e de outros parceiros.

Além dos actores já mencionados, a cooperação dinamarquesa, através da Bornefondem, desenvolveu várias acções do domínio de apoio a habitação. Esta ONG privilegia as famílias, no seio das quais existem crianças contempladas pelo programa de apoio à educação que ela própria executa. Num contexto em que as dinâmicas dos actores sociais num processo de desenvolvimento ocorrem, em muitos casos, de forma desarticulada e descoordenada, devido a uma complexa lógica que as orienta, mas este é um assunto para o capítulo seguinte, dá-se o caso em que uma família é beneficiada várias vezes num mesmo domínio, por acções desencadeadas por vários actores sociais. Tal como nas outras duas localidades, também as dinâmicas implementadas nesta localidade contribuíram para eliminar as casas construídas de pedras soltas e cobertas de

272 palha, mas não resolveu, de todo, os problemas ligados à habitação. Os casos de habitações degradadas em Cruzinha são muito mais frequentes, pois, além de erros na construção as habitações os edifícios sofrem com o efeito da maresia. É muito comum deparar-se com habitações que dão imagem de alguma segurança a partir do exterior mas que no interior apresentam um cenário de completa degradação. E, em muitos casos, fica-se com a impressão que os tetos estão prestes a cair. Além do mais, várias famílias em Cruzinha enfrentam o problema de exiguidade das suas habitações. Aliás, como nos confidenciaram os presidentes das duas associações locais (ACNEMC e AMC), há várias pessoas que esperam por uma oportunidade de ter uma habitação própria, pois vivem em espaços sem quaisquer condições (muitas vezes custa atribuir-lhes a designação de casa) cedidos ou alugados. Não obstante a existência desses problemas voltamos a afirmar que a população reconhece que houve uma melhoria considerável das condições de habitabilidade na localidade. Se é verdade que muitas famílias nos manifestaram de várias maneiras o apoio que receberam no domínio de habitação, várias são aquelas que, no entanto, dizem o contrário, ou seja, que nunca receberam qualquer apoio. A Senhora Suzana é um de entre muitos exemplos. Segundo ela,

para construir a minha casa recorri a apoios dos vizinhos tão-somente. Aqui em Cruzinha nós nos apoiávamos mutuamente na construção ou reparação das nossas casas, sobretudo com a mão-de-obra. E antes, as ajudas dos vizinhos eram mais frequentes, pois não havia outra alternativa. Não é como agora que as pessoas conseguem apoios do Estado e das associações.

Ao contrário da Sílvia que,

para tirar palha e colocar betão pudemos contar com o apoio da igreja. Aquela outra parte que você vê ali tinha ruído. Pedimos apoio à Câmara Municipal durante muito tempo mas ela não nos acudiu. As pessoas foram dizer ao Presidente da Câmara Municipal que tínhamos filhos embarcados (emigrados). Voltamos a pedir de novo e ele deu-nos 30 sacos de cimento. E foi lá um amigo nosso buscar esses 30 sacos de cimento. Mas no entanto não nos deram os ferros. Esse amigo é que foi comprar ferro, disponibilizando inclusivamente para ajustar o dinheiro, a título de empréstimo, uma vez que a quantia de que dispúnhamos revela-se insuficiente.

A habitação social é considerada pelas famílias do espaço social rural, uma dimensão muito importante no conjunto dos domínios que fazem parte da estrutura das suas

273 condições de vida. Na sequência disso, os actores sociais vêm-na como uma das políticas públicas essenciais no processo de desenvolvimento das localidades e, por isso mesmo, ela tem merecido uma ampla atenção dos actores sociais. Numa avaliação global que o Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande - o Sr. Orlando Delgado - faz sobre a intervenção da sua autarquia nessa matéria, ele sublinha a forte cooperação que o seu município tinha com parceiros externos, designadamente com a Holanda e Luxemburgo que permitiu, por exemplo, que em 1997 tivesse havido no seu município um investimento em mais de 200.000.000$00 só no domínio de habitação social, pois numa primeira fase o governo luxemburguês financiou a construção de três blocos residenciais com 25 apartamentos a preços económicos, no quadro de uma política do município em criar condições que permitissem a fixação de quadros de Santo Antão na ilha e o dinheiro arrecadado na venda desses apartamentos foi aplicado num projecto de construção de habitações sociais que abrangeu todo o concelho. Ainda segundo Orlando Delgado, a sua autarquia terá feito nessa altura cerca de 400 intervenções em torno de habitações sociais. Referiu ainda que todos os anos as acções à volta de habitação social absorvem cerca de 25% do orçamento da Câmara Municipal. Na sequência disso ele reconhece que os actores sociais, sejam de carácter político, sejam de carácter civil, têm tido um papel crucial no processo de melhoria das condições das habitações particularmente as destinadas às famílias que vivem em situações socioeconómicas difíceis. Mas, no conjunto dos actores, Orlando Delgado destaca o papel das ADC e apresenta o exemplo das associações das localidades de Lagoa e de Ribeirão.

Em Lagoa é um caso específico. Ali a emigração teve um papel crucial. Nessa localidade podemos ver que os contributos dos emigrantes no processo de desenvolvimento nacional não podem ser considerados apenas os que decorrem das remessas pessoais, mas também aqueles que decorrem de iniciativas de mobilização de recursos que depois são enviados para implementação de projectos de desenvolvimento para as suas comunidades.

A OMCV, segundo a responsável pelo Gabinete de Orientação Profissional da Mulher, Senhora Nair de Rosário Brito, pese embora no presente momento não esteja a dar muita atenção a esta área, teve no passado um papel importante.

274 Mas dentro de pouco tempo a OMCV, segundo aquela responsável deverá assumir um papel importante neste domínio, nomeadamente no que se refere à orientação das famílias que procuram apoio, às estruturas do programa Casa para Todos. A CRP tem dado grande atenção aos projectos de intervenção apresentados pelas ADC. Segundo o seu coordenador, Sr. Adriel Mendes, durante a execução da primeira fase do projecto 60% do orçamento destinado à ilha foi para projectos relacionados com a habitação social. A Câmara Municipal do Porto Novo, segundo o seu presidente Dr. Amadeu Cruz, tem trabalhado para combater o problema de habitação social.

Temos feito várias construções de raiz, reabilitação de várias outras, apoiamos na construção de casas de banho, etc. Mas devo dizer que a política de mãos estendidas não é solução para o desenvolvimento de Cabo Verde. A política que devemos promover é a de criar condições para que as pessoas possam adquirir os seus próprios bens.

A Câmara Municipal do Paul liderada pela Sra. Vera Almeida revela ter uma percepção sobre as políticas públicas em torno de apoio à habitação completamente distinta dos demais actores sociais que representam o poder político. Ou seja, embora reconheça que o município enfrenta um grave problema domínio de habitação (quanto mais não seja porque, segundo ela, o défice habitacional no seu município é estimado em cerca de 70%), embora saiba que a habitação representa para os seus munícipes uma questão prioritária e apesar de a Câmara do Paul que ela lidera considerar a habitação como um dos eixos mais importantes do desenvolvimento do seu município, afirma que raras vezes apoiam a construção de uma habitação de raiz. Isto porque,

normalmente esperamos que as pessoas dêem a sua contribuição e demonstre ter vontade para o seu crescimento, pois não é obrigação do poder público construir casas para atribuir as pessoas.

As dinâmicas que são desencadeadas em torno do apoio às habitações assumem nas três localidades aqui analisadas, um modelo dominado pelo carácter de subsidiariedade. Com a excepção das famílias às quais foram atribuídas uma habitação no bairro construído em Cruzinha no âmbito do PADESA, pois estas pagavam uma renda económica pela sua ocupação, todas as outras às quais foram apoiadas com uma habitação construída de raiz são isentas de pagar qualquer renda. Mas, se é verdade que

275 algumas famílias comparticipam de alguma forma, isto é, apresentam como contrapartida o terreno, a mão-de-obra, alguns materiais de construção, outras existem que não apresentam qualquer contrapartida. Isto não diminui de forma alguma, a importância dos esforços que as famílias no meio rural imprimem para verem os seus problemas ligados à habitação resolvidos. Aqui entra o papel que os emigrantes desempenham, particularmente através do apoio que prestam aos pais para melhorarem as suas habitações. Muitas pessoas mais adultas com as quais falamos abordam o apoio de um familiar emigrado como se essa atitude fosse um desígnio de qualquer cabo- verdiano que parte para outras paragens à busca de vida melhor. Um dos aspectos mais marcantes das dinâmicas dos actores sociais no domínio da habitação social é, quanto a nós, a capacidade e a disponibilidade dos dirigentes associativos locais em conseguirem os investimentos para, a pouco e pouco, mitigarem o problema habitacional nas suas comunidades. Globalmente, as iniciativas de mobilizar apoios neste sentido partem das comunidades. É lá que os activistas locais identificam e propõem aos financiadores os projectos de recuperação ou de construção que entenderem necessários. Contudo, existem iniciativas que também partem dos órgãos públicos (governo e poder local). Mesmo assim, está sempre reservado às associações locais um papel importante, pois são elas que definem a relação daqueles que teoricamente mais precisam de apoio sobre um ou outro domínio naquele momento. Existem contudo modalidades de apoio em que são as próprias entidades financiadoras que definem os beneficiários. Muitas vezes recorrem às diligências de pessoas ligadas à igreja. Não existe, no entanto, uma ligação clara entre um determinado tipo de actor social e determinada modalidade de apoio à habitação social.

3. Da gestão de apoios à mobilização e distribuição de água

Devido a um conjunto de factores, fundamentalmente os de ordem ambiental e climático, a disponibilidade de água potável em quantidade e qualidade suficientes para dar resposta efectiva aos desafios do desenvolvimento de Cabo Verde representa um dos mais significativos problemas com os quais o país se depara no processo de desenvolvimento.

276 A água potável é assumidamente um recurso raro, razão pela qual as autoridades nacionais vêm procurando todas as soluções possíveis com vista a minimização desse problema. Aliás, como de resto Cláudio Furtado fez questão de salientar num estudo sobre a dimensão género na gestão integrada dos recursos hídricos em Cabo Verde,

a problemática da gestão da água, strictu senso , e de toda aquestão ambiental e da conservação da natureza, de uma forma mais global estão inscritas de forma permanente, ao menos, desde a independência nas prioridades políticas de desenvolvimento do país (Furtado e Pires, 2008).

Num vasto conjunto de medidas de políticas que têm sido adoptadas parecem destacar- se os mecanismos que integram os programas de correcção torrencial, adequação de medidas de valorização e de gestão, dessalinização, uso de energias renováveis para a bombagem, contenção da água das chuvas através de pequenas barragens ou diques de retenção, sendo essas duas últimas ainda a dar os primeiros passos. Até ao presente momento, existe uma única barragem de retenção de água em Cabo Verde que é a de Poilão situada no interior da ilha de Santiago, mais concretamente no Concelho de São Lourenço dos Órgãos, construída em 2006. A partir dos meados de 2010 arrancou a construção de mais 3 barragens de captação de águas pluviais todas na ilha de Santiago, sendo uma em Saquinho no concelho de Santa Catarina outra em Faveta no concelho de São Salvador do Mundo e outra ainda em Salineiro no Concelho de Ribeira Grande. Numa visita que o Ministro de Agricultura Ambiente, Desenvolvimento Rural e dos Recursos Marinhos efectuou a Santo Antão em Abril de 2010 foi anunciada a construção de três barragens a situar-se no Campo de Cagarra (Ribeira Grande), Lajedos (Porto Novo) e Cabo de Ribeira de Janela (Paul) 194. Há muitos anos atrás tentou-se implementar, em Cabo Verde, uma técnica de captação de água dos nevoeiros, dito de outra forma, através da precipitação oculta. As primeiras experiências datam do início da década de sessenta e foram iniciadas na localidade de Serra da Malagueta, na ilha de Santiago195. Esta experiência foi posteriormente levada a outras ilhas do país, designadamente Santo Antão, São Nicolau, Fogo e Brava.

194 Notícias veiculadas no jornal digital a semana a 20 de Abril de 2010. 195 Vide Cunha, F.R., (1964), O problema da captação da água do nevoeiro em Cabo Verde, Lisboa, Ed: Garcia da Horta, Vol. 12 (nº4).

277 De acordo com um estudo do BAD coordenado pelo INGRH (BAD, 2007) em 2007, as principais orientações estratégicas em matéria de mobilização de água em Cabo Verde encontram-se plasmadas em dois documentos centrais: um intitulado “Visão Nacional sobre a Água, a Vida e o Ambiente no Horizonte 2025” e o outro intitulado “Plano de Acção Nacional Para o Ambiente (PANA II)”. O documento intitulado “Visão Nacional sobre a Água, a Vida e o Ambiente no Horizonte 2025” adverte que,

as estratégias de gestão durável dos recursos hídricos em Cabo Verde devem passar necessariamente por um aperfeiçoamento da política de gestão e exploração dos recursos hídricos que deverá ser considerada não só como fundamental, para não dizer vital, como também uma das grandes prioridades de desenvolvimento do país.

Perante isso o documento define como uma das principais medidas a desencadear no país, aumentar a disponibilidade de água, considerando prioritário o aproveitamento das águas superficiais” através de, entre outras coisas, a construção de barragens de pequeno e grande porte, a construção de infra-estruturas de captação da água do nevoeiro, instalação de unidades dessalinização, etc. 196 Já o PANA II, perante uma situação de deficiente disponibilidade de água de qualidade apropriada para o consumo doméstico e o desenvolvimento das actividades económicas197 definiu-se 9 Planos Ambientais inter-sectoriais (PAIS) sendo um deles voltado para o Ambiente e Gestão Sustentável dos Recursos Hídricos consistindo basicamente na construção de infra-estruturas hidráulicas que permitam o acesso da população à água em boas condições higiénicas e sanitárias e redução das perdas de água na agricultura 198. Os dois documentos se complementam mutuamente. As políticas em matéria do ambiente onde se insere a questão de água têm como suporte fundamental as orientações de desenvolvimento assumidas pela Cimeira de Desenvolvimento Sustentável, realizada em Joanesburgo, em Setembro de 2002 199. O QUIBB 2007 indica que nesse ano, cerca de 39,4% da população cabo-verdiana tinha acesso à água potável através da rede pública, 39,2% através de chafarizes, 6,3% através

196 INGRH, Visão Nacional Sobre Água, a Vida e o Ambiente no Horizonte 2025, Praia, 2000. 197 Governo de Cabo Verde, PANA II, Praia, 2004. 198 Governo de Cabo Verde, PANA II, Praia, 2004. 199 Governo de Cabo Verde, PANA II, Praia, 2004.

278 auto-tanque. No meio rural, apenas 22% obtêm através da rede pública. Quase metade da população do meio rural, isto é, cerca de 49% tinha acesso a água através de Chafarizes e 6,7% através de água auto transportada. Mas um dado marcante nestas estatísticas é aquele que indica que cerca de 23% da população que vivia no meio rural não tinham acesso a água potável (ver o quadro que se segue). Em Santo Antão, como se pode ver pelo quadro que se segue, a situação da população perante o acesso à água não foge muito ao quadro que caracteriza o país. Nota-se que em 2007, de acordo com os dados do QUIBB, mais de 13% da população não tinham acesso a água potável e cerca de 45% não se encontravam ligada à rede pública de abastecimento de água.

Quadro n.º 13 - Situação perante o acesso à água potável em Cabo Verde

C. Verde Urbano Rural R. Paul P. Novo Grande % que usa fonte de água potável 84,9 93,0 77,4 90,2 80,6 88,5 Água canalizada de rede pública 39,4 58,1 22,0 64,7 43,3 35,8 Água de chafariz 39,2 29,0 48,8 22,5 37,0 50,3 Água de autotanque 6,3 5,9 6,7 2,9 0,3 2,3 Outras fontes não potáveis 15,1 7,0 22,6 9,8 19,4 11,5 Fonte: INE

Portanto, é neste cenário marcado pela carência, pelas dificuldades de acesso e por vezes até pela falta de qualidade que se desencadeiam as dinâmicas de actores sociais no domínio da mobilização e de distribuição de água. Com isto passemos agora a analisar estas dinâmicas caso a caso.

3.1 O caso de Lagoa

A aldeia de Lagoa, como de resto fizemos já referência faz parte de zonas áridas da ilha de Santo Antão e, consequentemente, um clima bastante agreste, como as demais localidades que se situam naquela faixa sudeste da ilha. Toda esta faixa onde se insere a aldeia de Lagoa enfrenta uma grave crise de água. Por vezes, algumas pessoas dizem que a água nestas localidades é mais cara que o leite. Objectivamente não é. Mas, assiste-se a situações em que você prefere oferecer a uma pessoa um litro de leite de cabra em detrimento da mesma quantidade de água. As acções em torno da mobilização de água ocorrem para tornar possível a vida na aldeia pois, segundo os moradores, muitas pessoas que abandonam a aldeia fazem-no

279 devido ao problema de água. Esta é também a razão primária para os emigrantes não construírem as suas casas nesta localidade e ao invés disso preferirem por exemplo, a cidade do Porto Novo. Este problema determina a que o acesso á agua se transforme num desiderato inadiável no conjunto de estratégias de sobrevivência das famílias. Esse mesmo problema fez despoletar na aldeia várias acções voltadas para a sua mitigação. Até ao momento foram construídas três grandes cisternas comunitárias, cuja água que nelas se deposita é obtida através de espelhos de captação construídos a montante. A primeira, com capacidade para 300 toneladas foi construída em 1978, pouco tempo após a independência, pelo governo de Cabo Verde na aldeia de Lagoa. A segunda, já com capacidade mais reduzida, isto é de 200 toneladas, foi construída na década de noventa pelo Instituto Nacional de Engenharia Rural e Florestas (INERF) na aldeia de Compainha. Esta última, no entanto, nunca serviu a comunidade. O presidente da ARMUC informou-nos que houve um erro grosseiro na sua construção, pois deixa perder muita água. Já houve várias acções no sentido de a recuperar mas nenhuma deu resultado 200. E disse ainda que continua a aguardar pelo financiamento do projecto visando a sua reparação. A terceira, igual à primeira, foi construída recentemente na localidade de Espadaná e contou com o apoio da cooperação japonesa. Existem, de igual modo, três fontanários em toda a localidade, sendo uma em Lagoa, outra em Compainha e outra em Matinho. O depósito de água de Lagoa foi construído em 1977 financiado pelo governo de Cabo Verde. Os de Matinho e de Compainha foram construídos mais recentemente, ou seja, em 1996 e 1998 respectivamente, pela Câmara Municipal da Ribeira Grande no âmbito do PADESA. Cada fontanário está ligado a um reservatório onde se deposita água auto-transportada fornecida pelas Câmaras Municipais de Ribeira Grande e do Porto Novo. A Câmara Municipal do Porto Novo faz deslocar um auto-tanque com capacidade de 10 toneladas

200 Na verdade a ARMUC apresentou o projecto de recuperação daquela cisterna a vários parceiros e em 2009 a Delegação do Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Pescas disponibilizou a esta associação 400.000$00, exactamente o valor do orçamento constante do projecto. A associação iniciou efectivamente as obras mas depois parou alegando que o valor atribuído era insuficiente. Segundo o presidente “esse dinheiro deu apenas para descascar as paredes”. As pessoas que comentavam as obras de recuperação dessa cisterna deixavam no ar alguma suspeição em relação a utilização do dinheiro pela associação.

280 de água duas vezes por semana, mais concretamente às terças e quintas-feiras e a Câmara da Ribeira Grande faz deslocar um autotanque com capacidade um pouco maior, isto é de 11 toneladas de água, também duas vezes por semana, ou seja, às segundas e quartas-feiras. A quantidade de água fornecida pelas Câmaras Municipais revela-se por vezes insuficiente. A água fornecida pela Câmara Municipal de Ribeira Grande é proveniente da Ribeira da Torre. A população local diz que esta água é doce enquanto a água fornecida pela Câmara de Porto Novo é considerada salobra. E pode-se ver que no interior da infra- estrutura onde estão colocadas as torneiras existem de facto partículas de sal nas paredes, onde há infiltração de água do interior do reservatório. A escassez de água determina um modelo de gestão relativamente complexa. Essa gestão é assumida integralmente pelas ADC existentes na localidade. Para os casos de Compainha e Matinho a gestão está a cargo de ARMUC. Já para os casos de Lagoa e Espadaná a gestão cabe à ALVLC. Existe uma pessoa em cada fontanário que se ocupa da distribuição de água à população, remunerada pela Câmara Municipal da Ribeira Grande. A água que é colocada nos fontanários é distribuída de segunda a sexta-feira nos períodos que decorrem entre as 8 e as 13 horas e entre as 15 e as 17 horas. Aos sábados a distribuição é feita num único período que vais das 8 às 13 horas. Em regra, a partir do mês de Maio (mas também pode acontecer em Abril), altura em que se inicia o período mais quente e em que o índice de consumo de água começa a aumentar, as associações iniciam a distribuição da água das cisternas comunitárias de forma a aumentar a capacidade de resposta às demandas da população. Esta água é distribuída normalmente entre as 16 e 18 horas. Mas, a água das cisternas é disponibilizada sempre que se verificam avarias nos autotanques das Câmaras Municipais. Em situações normais, ou seja, em que os autotanques não permaneçam muito tempo avariados, a água das cisternas dá para cobrir as necessidades até ao mês de Julho. Cada galão de água (vasilhame de trinta litros) é vendido nos fontanários a 4$00. Uma lata de 20 litros custa 3$00 e um vasilhame de 5 litros custa 1$00. Antes da construção da cisterna comunitária de Espadaná havia um senhor que explorava o negócio de venda de água nessa pequena aldeia. Ele vendia um galão de água a 50$00. Ainda assim, ele considera que este preço era baixo, pois os carros

281 vendiam-no a água a um preço muito elevado, devido em parte às más condições da estrada que liga Esponjeiro à Lagoa. A água das cisternas comunitárias é vendida a um preço mais elevado. Um galão de 30 litros custa 7$00 em Lagoa e 10$00 em Espanada, um valor superior ao praticado nos fontanários. Os dirigentes da ALVLC justificam esta prática com o facto de esta água ser vendida exactamente em situações de manifesta insuficiência. Isto é, nos períodos mais quentes em que se consome muito mais água e/ou quando não há água nos fontanários devido a avaria dos auto-tanques. Ou seja, o preço acaba por ser regulado pela lei da oferta e da procura. Em teoria, a água das cisternas comunitárias não é adequada para beber. No entanto, na prática verifica-se exactamente o contrário, nomeadamente na aldeia de Espadaná, onde não existe um fontanário. A população considera-a uma boa água, quanto mais não seja porque a associação local submete-a ao tratamento regularmente, depositando lixívia. Além do mais, conforme nos disse um morador, estamos sempre a zelar para que a água esteja sempre em condições. De entre outras coisas limpamos regularmente as pias. Para a população daquela aldeia essa cisterna representa uma riqueza para a comunidade.

Veja por exemplo que com ela é possível criarmos as nossas cabras e os nossos porcos e assim se de repente precisarmos de um dinheirinho para pagar as propinas dos nossos filhos pegamos num cabrito, vendemo-lo e resolvemos logo o problema.

Ocorrem por vezes situações extremas de carência de água quando as cisternas comunitárias se esvaziam e ambos autotanques se avariarem. E diga-se de passagem que não é raro acontecer. Nestas situações, as que têm condições para o fazer, e não são muitas, recorrem ás transportadoras privadas. Um depósito de mil litros de água custava cerca de 1000$00, podendo, contudo, custar 1600$00 e até mesmo 2000$00, isso conforme a água for proveniente de Ribeira Grande ou do Porto Novo. As pessoas que não podem ficar à espera da iniciativa da associação local que em situações do tipo costumam adquirir água pela mesma via e redistribui à população. E a associação faz isso recorrendo a um fundo criado com o dinheiro de venda da água das cisternas comunitárias. Este mesmo fundo é também utilizado para a manutenção de todo o sistema de captação, conservação e distribuição da água das cisternas

282 comunitárias. Estas são as razões porque adoptam uma tabela de preços diferente daquela que se pratica em relação à água dos fontanários. A única alternativa à água auto-trasportada e água das chuvas que se deposita nas cisternas comunitárias é uma nascente que se situa a uma distância de cerca de 3 quilómetros de Compainha, num sítio chamado Guiteiro. É um sítio bastante isolado e, além do mais, de acesso relativamente difícil, razão pela qual a água é transportada por burros. Ainda antes da independência, o Estado procurou rentabilizar a nascente com construções de levadas e bebedouros para os animais, obras que, no entanto, com o tempo ficaram praticamente arruinadas, pois a nascente também havia desaparecido devido a ocorrência de frequentes períodos de seca. A uma determinada altura que, no entanto, não nos foi possível precisar a data, a água voltou a aparecer neste local. Na sequência disso, em 2005 a OADISA em parceria com ARMUC financiou a construção de um reservatório com capacidade para 100 toneladas de forma a evitar que aquela água se perdesse. Refira-se que esse reservatório está quase sempre cheio devido à fraca afluência da população ao local. A população serve-se dessa água com maior frequência aos Domingos, dia em que os fontanários se encontram encerrados. É mais frequentado por pessoas de Compainha, Chão Branca e Matinho, aldeias que se situam mais próximas deste lugar. Segundo opiniões recolhidas no próprio local trata-se de uma água de muito boa qualidade, razão pela qual é muito apreciada pela comunidade. As pessoas são unânimes em considerá-la muito melhor que a água fornecida pela Câmara Municipal do Porto Novo, pois trata-se de uma água doce. A situação de crise de água provocada pela avaria de um dos autotanques das Câmaras Municipais faz às vezes despoletar algum desentendimento entre as populações das aldeias de Lagoa e Companhia, porque as pessoas da aldeia de Lagoa acham que os vizinhos da aldeia de Compainha deviam, nestas circunstâncias, recorrer com maior frequência a água de Guiteiro e libertando desta maneira a água auto transportada para o fontanário de Lagoa, já que o percurso entre esta aldeia e Guiteiro é demasiado longo. Conforme nos disse uma nossa entrevistada que reside na aldeia de Lagoa, uma família composta por sete pessoas precisa de pelo menos cinco galões de água por dia ou seja, cerca de 150 litros, sem contar com o consumo dos animais. Se se possuir algumas cabeças de gado então seriam precisos muitos mais.

283 Num estudo realizado por Gleick e divulgado em 1996 sobre o consumo de água o autor, tendo considerado as indicações de alguns organismos internacionais como a ONU, a OMS, o Banco Mundial, etc., refere a mais ou menos 40 litros de água a quantia necessária para uma pessoa sobreviver. Os 40 litros representam a soma de 2,5 litros, a quantia mínima que o organismo precisa, de 15 litros para banho, 10 litros para cozinhar e os restantes para outros afazeres e necessidades domésticos. Mas para este autor precisa-se no mínimo de 50 litros (Gleick, P. H. (1996: 90). Uma nossa entrevistada em Lagoa considera que pouco mais de 20 litros de água por pessoa seriam para ela, suficientes para satisfazer todas as necessidades. Não obstante uma ambição um tanto ou quanto humilde á luz do padrão de consumo definido por Gleick, não deixa de representar um sonho poder contar com um consumo per capita de vinte litros de água nesta localidade, tendo em conta a realidade envolvente. Refira-se que, regra geral, cada família em Lagoa tem direito a adquirir até 5 galões de água por dia equivalentes a 150 litros. Esta regra, contudo, é aplicada apenas em situações de aperto. E este número pode baixar para 4 ou mesmo três, conforme a capacidade de oferta. Quando há pouca água as associações locais reduzem a distribuição de 6 para 4 dias por semana. É de salientar que é manifestamente insuficiente para uma família como a da Senhora Andreia, que agrega sete membros, além de possuir 4 cabeças de cabra que precisam beber todos os dias. Há famílias ainda mais numerosas e com um contingente de animais muito maior. Há quem crie mais de duas dezenas de cabras e quem, além de cabra, disponha de pelo menos um burro. Outras ainda criam vacas. Salienta-se, ainda que se reconheça existirem situações de dificuldades, desde de 2008 que não se tem sentido penúria de água em Lagoa. No entanto, o período entre 2005 e 2008 foi de má memória para os habitantes desta localidade. Como medidas complementares a população local, com base em ajudas decorrentes de dinâmicas encetadas pelos vários actores sociais, tem apostado muito na construção de cisternas domiciliares. Pode-se mesmo dizer que actualmente, uma grande parte de habitações tem uma cisterna domiciliária. A partir de 19 de Julho de 2010 os moradores de toda a zona do Planalto Leste, onde também se situa a localidade de Lagoa, passaram a contar com mais um empreendimento no domínio de abastecimento de água. Trata-se um sistema de bombagem de água a partir de Losnã na Ribeira da Torre para um reservatório com

284 capacidade para albergar cerca de 200 toneladas de água, construído em Morro da Conceição, junto de Esponjeiro. Segundo Orlando Freitas, Delegado do Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos, o sistema que tem capacidade para bombear cerca de 60 toneladas de água por dia terá custado ao Estado cerca de 42.000.000$00. Trata-se de um empreendimento bastante útil à localidade de Lagoa, na medida em que os autotanques das Câmaras Municipais poderão alimentar os três reservatórios a partir de Esponjeiro, reduzindo, assim, substancialmente a distância entre a fonte de abastecimento e o reservatório, com claras implicações nos custos. Por outro lado poderão aumentar a frequência de fornecimento de água aos reservatórios num cenário de menor custo para ambas as Câmaras Municipais. Esta infra-estrutura representa um grande ganho para os habitantes de Lagoa também porque poderão adquirir água através de auto-tranportadoras privadas a um preço mais baixo que o habitual. Para uma segunda fase pensa-se desenvolver o projecto de ligação domiciliária algo com o qual a população vem sonhando há muito tempo devido às sucessivas expectativas que os políticos lhes vêm criando de há vários anos a esta parte. Em Espadaná, em Março de 2010 estavam a construir um dique para travar a água que transborda de uma caldeira ali existente. Mais uma criatividade da população local à volta da problemática de abastecimento de água, pois é preciso aproveitar todas as gotas de água que deus lança sobre a terra. Além do mais, já houve tentativa de se executar um furo nesta localidade mas sem sucesso. Após a análise das múltiplas acções levadas a cabo pelos diferentes actores sociais num contexto de promover o desenvolvimento desta localidade parece necessário reter alguns aspectos importantes. Desde logo para sublinhar que a população de Lagoa viveu durante muito tempo situações de completa penúria de água tendo em conta um vasto conjunto de factores: problemas energéticos nas localidades de onde provêm água que abastece esta localidade, problemas mecânicos com as auto-tanques, doença dos motoristas, corte de estrada, etc. Hoje, não obstante existirem ainda dificuldades, a situação de abastecimento é bastante melhor.

285 A situação de escassez de água faz emergir um vasto campo de conflitos motivados por uma vasta gama de interesses que se situam em vários domínios sejam eles económicos, sejam políticos.

3.2 O caso de Ribeirão

Ainda há bem pouco tempo a população de Ribeirão enfrentava um grande problema de falta de água. Nas conversas que estabelecemos com várias pessoas nesta localidade, foi-nos possível compreender que, em 1998, a população local tinha como única alternativa de acesso à água, uma pequena nascente que, de resto, era tida como propriedade privada mas que, mesmo assim, as pessoas que diziam ser proprietárias permitiam que a população servisse dela. A quantidade de água que a nascente produzia era reduzida, mas era dividida entre o consumo doméstico e o consumo para a rega nas propriedades de umas três famílias desta localidade. Por isso, para satisfazerem minimamente as suas necessidades em matéria de abastecimento de água os moradores tinham que percorrer grandes distâncias a pé. Iam a Chã de Pedras que deve distar cerca de 3 quilómetros, para obterem um vasilhame de 20 litros de água para o consumo doméstico e para dar de beber aos animais. Apesar da distância que se percorria nem sempre a água que se dispunha era de boa qualidade. Conforme notou um dos dirigentes da ADC local, essa água provocava muitas doenças como a diarreia. Para alguns moradores o povo vivia traumatizado. O problema de abastecimento de água à população veio ficar resolvido após a implementação de um projecto de execução de um furo de prospecção de água. Mas, o mais importante nessa história, à luz do tema central deste trabalho, é conhecer os contornos que levaram à implementação desse projecto. Quando se fundou a Ami-Ribeirão em 1992, o problema de água foi assumido pelos seus dirigentes, a par de educação e habitação, como uma das linhas estratégicas do combate à pobreza na comunidade. Os dirigentes e a população em geral viam num projecto de execução de um furo a única saída para esse problema. E foi desta forma que surgiu em 1995 a ideia de executar esse furo. A implementação desse projecto passou por contornos difíceis de se imaginar. Como contou-nos um morador foi uma luta nada fácil, pois, primeiro, era necessário convencer os técnicos ligados ao Instituto Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos

286 que existia água em Ribeirão e que com um simples furo podia-se obter água em quantidade que justificasse os custos que a operação acarretaria. É preciso sublinhar que, de acordo com as várias opiniões recolhidas na localidade e do próprio presidente de associação local, não existia nenhum estudo prévio. A tese de que havia água na localidade vinha sendo reproduzida pela população ao longo dos tempos e a ideia passava de geração a geração. Ou seja, a população acreditava que era possível obter água através da execução de um furo porque os antepassados diziam que ali existia água no subsolo, até porque havia ali uma nascente. Mas, existem outros sinais que sustentam os conhecimentos espontâneos sobre a água num determinado sítio. Por exemplo, a existência de uma . Esta árvore, à luz desses conhecimentos, indicia a existência de água no subsolo. A ideia de que existia água em Ribeirão e que com furo podia-se encontrar água em grande quantidade era tão comum que os habitantes acreditam que é por causa disso que conseguiram convencer os técnicos do INGRH a correrem o risco de fazer deslocar àquela localidade, equipamentos e em condições de acesso muito difíceis, mesmo sem ter uma base técnica que lhes desse alguma garantia. É claro que isto não foi suficiente. Os técnicos dispunham de informações técnicas que indiciavam a existência de água nesta localidade, conforme assegurou-nos o Delegado do MADRRM. Mas, na verdade não estava nos planos do INGRH fazer desencadear este projecto nesta localidade nessa altura. O que mais se valoriza aqui não é a crença de que havia água resultante de um conhecimento espontâneo secularmente reproduzido na comunidade, mas sim é o tipo de liderança que emergiu numa comunidade, amplamente legitimada tal como o querer e a vontade de pessoas que acreditavam que era possível mudar os destinos da comunidade. Na altura, não havia estrada que ligava Ribeirão à sede do Município, e era preciso criar condições para que as máquinas se deslocassem. É desta forma que a associação local mobilizou toda a comunidade no sentido de construírem essa estrada. E efectivamente conseguiu-se levar as máquinas de furo à localidade. Segundo informações recolhidas à primeira tentativa de se executar o furo não se conseguiu nenhum resultado. Assim, resolveu-se desistir. É aqui que entra o poder da convicção e de mobilização de um líder local. Contaram-nos alguns moradores que o Presidente de Associação, na altura o senhor António Carente, liderou um grupo por si

287 mobilizado para travar uma grande luta com os técnicos do INGRH no sentido de não permitir que as máquinas saíssem da comunidade sem que antes se fizesse uma nova tentativa, uma situação claramente motivada sobretudo pela certeza de que de facto havia água na localidade. Sobre esse episódio o próprio dizia: nós os habitantes de Ribeirão éramos as únicas pessoas que acreditavam que existia água ali. Nem os próprios técnicos acreditavam nisso. E de facto a segunda tentativa resultou. Sobre isso, Mateus, um entrevistado nosso, tece a seguinte opinião:

Quando vieram executar o furo não sei o que se passou mas a uma determinada altura ainda antes de encontrarem a água disseram que iam embora porque ali não havia água. Então António Carente arranjou um grupo de pessoas que disse que o furo tinha que ser dado. E que se o furo não fosse executado as máquinas não saíam de Ribeirão. Dito e feito. Os homens executaram o furo e encontraram água de facto.

O furo de prospecção de água em Ribeirão foi executado e equipado em 1998. Contou com a parceria da Câmara Municipal de Ribeira Grande e do INGRH. Depois foi preciso desencadear acções no sentido de se aproveitar a água. A associação local desencadeou projectos de construção de dois reservatórios, um cada encosta, onde seria depositada a água bombeada a partir do furo e que seria utilizada para o consumo doméstico através de uma rede de distribuição domiciliária e para a irrigação utilizando as técnicas de micro-irrigação. Tratando-se de uma acção imputada aos esforços da comunidade através da associação local, impunha-se a definição de regras que fossem vistas como sagradas na comunidade. Em matéria da distribuição domiciliária era tudo muito fácil. Já em matéria da irrigação os interesses iam para lá do limite geográfico da localidade. Daí a questão ligada à estrutura fundiária em Santo Antão e mais concretamente à Ribeirão. A maior parte dos terrenos de Ribeirão pertence a pessoas de fora da comunidade. O Sr. Rufino, de Povoação e o Sr. Domingos Santos, de Coculi, é que detêm as maiores parcelas de terra. Estes terão obtido os terrenos por herança e/ou por compra. Os terrenos foram parar às mãos dos grandes proprietários sobretudo em épocas de crise. Há muito poucas pessoas que possuem um terreno registado em seus nomes. Os agricultores de Ribeirão, na sua larga maioria, trabalham as terras em regime de parceria, em que o modelo de repartição dos produtos predominante é o designado por meia, ou

288 seja, a colheita é dividida a meio pelo agricultor e proprietário. São muito poucos aqueles que trabalham terras dos proprietários em regime de arrendamento. A não regulação do uso da água poderia significar, no entendimento do Presidente da Ami-Ribeirão:

dar interesses há cerca de meia dúzia de proprietários, que nem sequer valorizam os trabalhos da agricultura e assim aproveitarem de uma situação que construímos com os nossos próprios esforços enquanto nós os moradores continuávamos a viver na mesma situação de miséria em que vivíamos antes.

A ideia era manter os proprietários distantes dos terrenos locais tal como se encontravam antes do surgimento do furo. No entanto, se um proprietário, por alguma razão, quisesse reaver o seu terreno, não lhe restava outra alternativa se não explorá-lo praticando a cultura de sequeiro. Tratou-se efectivamente da reactivação de um conflito antigo entre camponeses e proprietários de terra que dominou a estrutura agrária santantonense e cabo-verdiana de um modo geral, decorrente do desequilíbrio da distribuição de terras, uma situação que começou a sofrer alterações substanciais com a mudança da situação política nacional marcada pela independência e medidas de políticas sustentadas pela reforma agrária implementadas mais tarde (Furtado, 1993). O resultado das acções implementadas em Ribeirão em torno da mobilização e distribuição de água e que contaram com a participação de múltiplos actores sociais é a satisfatório. A água de furo é utilizada para a irrigação e para abastecimento ao domicílio através de implantação de uma rede de distribuição. O sistema de abastecimento de água é algo muito complexo. Integram-no um conjunto de elementos, como a manutenção de equipamentos do furo, a bombagem e tratamento, a distribuição, a facturação, cobrança e cortes e religação em caso de incumprimento na liquidação das facturas do consumo. É de todo semelhante ao sistema aplicado pelos serviços municipalizados de água e é dominado por uma forte lógica de parceria. Uma vez que a manutenção dos equipamentos é assegurada pelos técnicos do Instituto Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos, a associação assume a bombagem, o tratamento e a distribuição, que implica serviços prestados integralmente por dois profissionais, contratados a tempo inteiro e uma terceira pessoa que trabalha em regime

289 de part-time e que se ocupa de operações de cortes e religação. Todo o trabalho de cobrança é feito pelo tesoureiro da associação local. O sistema de produção e distribuição de água representa um custo fixo que ronda cerca de 150.000$00 mensais, tendo em conta as despesas com a energia eléctrica; uma taxa de exploração que se paga ao Instituto Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos que ronda os 30.000$00 mensais e a remuneração dos profissionais que asseguram a produção e distribuição de água. A remuneração fixa com o pessoal atinge o valor de 17.000$00 mensais. A pessoa que trabalha em cortes e religação recebe conforme o número de ocorrência desses casos. A taxa de religação está fixada em 1200$00. Um metro cúbico de água estava fixado em 60$00 para o consumo doméstico e 30$00 para a irrigação. Contudo, este preço pode oscilar em função do índice do consumo dos clientes. O valor total da facturação é muito inferior ao valor total das despesas fixas, segundo o Tesoureiro da associação. Para se fazer face a esta situação este dirigente associativo local refere que, “estamos a pensar aumentar o preço de água”. O problema do deficit tem sido resolvido com os fundos da associação. Mas como se compreende, este procedimento não é sustentável. Segundo os dirigentes há informações seguras de que existe água num sítio próximo ao Campo de Cão. Sobre isso o Presidente de Associação confidenciou-nos que um projecto de execução de mais dois furos e que inclusivamente já têm a garantia do financiamento para a execução de um desses furos por parte do governo de Cabo Verde. Segundo ele o trabalho só não arrancou ainda porque

estamos a aguardar uma resposta do Ministério das Infra-estruturas e Transportes sobre o financiamento da construção de uma estrada até ao local para que possa ser possível a locomoção das máquinas.

A garantia dos financiamentos terá sido dada aos dirigentes da associação num jantar que tiveram com o Sr. Primeiro-ministro em casa do Tesoureiro da Associação em Ribeirão 201 , quanto mais não seja porque, os projectos de execução desses furos integram o Plano de Desenvolvimento Agrícola de Santo Antão, cujo período de vigência vai de 2009 a 2012.

201 Esse jantar ocorreu a 12 de Dezembro de 2009.

290 Esta informação foi, contudo, contrariada pelo delegado do MADRRM, afirmando que já não existem condições técnicas para se executar um novo furo de prospecção de água em Ribeirão. É importante enfatizar que o furo existente tem tido um grande impacto na melhoria das condições de vida da população local. Esta é pelo menos a perspectiva de uma grande maioria das pessoas da comunidade. E esta ideia é expressada de várias formas. É neste sentido que um morador expressa com alguma irreverência:

fomos das primeiras localidades ditas encravadas a ter água canalizada nas casas e fomos a primeira localidade de Ribeira Grande a promover o sistema de rega domiciliária com os recursos próprios.

As iniciativas à volta da água assumem dimensões muito abrangentes. Contribuiu para a melhoria da dieta alimentar dos moradores.

Antes a alimentação das pessoas baseava-se exclusivamente em milho para fazer cachupa e papa. Eram esses pratos que melhor caracterizavam o hábito alimentar da população de Ribeirão. Raras vezes integravam a nossa dieta alimentar as hortaliças ou os legumes.

As acções dos actores locais em torno da água tiveram um papel crucial na melhoria das condições de vida das populações, como analisado no capítulo anterior, no que concerne aos modos de vida, as estratégias de sobrevivência e os mecanismos de reprodução das famílias do meio rural. E sobre isso o Senhor Mateus é peremptório:

Aliás, todos nós vivemos do furo. É através do furo que temos água hoje em casa. Eu por exemplo não tenho lugar para cultivar hortaliças. Contudo posso passar por Ribeirão e pedir a uma pessoa amiga que me arranje um bocado de couve ou uma cebola e ela dá-me. Isso só é possível porque existe este furo.

Não menos interessante é a confusão que se instalou na aldeia à volta da gestão desta água, sendo que parte desse problema resulta do facto de o sistema do fornecimento depender completamente da energia eléctrica e tendo em conta os custos que acarreta tem-se revelado insustentável, um problema real e que tem colocado a população local perante uma série de incertezas quanto ao futuro. Mas sobre os conflitos entre actores ocuparemos mais adiante.

3.3 O caso de Cruzinha

291

Uma das acções de maior dimensão desencadeadas em torno da mobilização e distribuição de água em Cruzinha insere-se num projecto de prospecção de água subterrânea que se iniciou em 2004 e que tinha como propósito conduzir água de Curral de Mocho a Cruzinha, desencadeado pelo MADRP, o qual contou com uma forte participação da ACNEMC. Esse projecto foi concebido e implementado tendo como propósito central fornecer água para o consumo doméstico às comunidades de Curral de Mocho, Cruzinha e Chã de Igreja, mas espreitava-se desenvolver em paralelo um projecto de implementação da agricultura de regadio através do sistema de micro- irrigação em Curral de Mocho e doravante nas encostas de Cruzinha, perspectivando a melhoria das condições de vida das famílias destas duas comunidades. No entanto, só em 2007 o projecto ficou concluído, após a instalação dos equipamentos que permitem que a água ali captada fosse bombeada para um reservatório com capacidade de 100 toneladas situado no alto da encosta da Cruzinha. Segundo informações recolhidas junto da Delegação do MADRRM em Ribeira Grande, o furo ali executado tem a capacidade para produzir cerca de 80 metros cúbicos de água diariamente. Assim, o projecto de implementação da agricultura micro-irrigada só arrancou na localidade de Curral de Mocho. É a partir desse projecto que se implementou o sistema de abastecimento de água através de uma rede pública montada na localidade, financiada pela Câmara Municipal da Ribeira Grande e que contou com a parceria da ACNEMC e de vários outros actores sociais que apoiaram as famílias em dificuldades financeiras na aquisição de materiais para os trabalhos de canalização. Nesta matéria em particular, a CRP e a UNICEF, segundo informações prestadas pelo presidente da ACNEMC, tiveram um papel importante. Hoje, estima-se que mais de 95% das habitações em Cruzinha encontram-se ligadas à rede pública de abastecimento de água. O valor médio do consumo de água na aldeia ronda os 500$00 mensais. Mesmo assim, em determinadas ocasiões, sobretudo em períodos eleitorais, algumas famílias solicitam apoios para liquidarem as facturas. A título de balanço sobre as acções desencadeadas pelos actores sociais locais em matéria de mobilização e distribuição de água importa sublinhar que é notório o impacto dessas acções na melhoria das condições de vida das famílias que vivem nas três

292 localidades. Além do mais, elas contribuíram para travar o êxodo rural, particularmente em localidades como Lagoa e Ribeirão, onde algumas pessoas afirmam que a resolução do problema de abastecimento de água é razão fundamental para a sua continuidade na localidade. No entanto, é preciso dizer que o problema de abastecimento de água em Lagoa só ficará resolvido com o funcionamento em pleno do reservatório construído em Esponjeiro, o que ainda não aconteceu. Importa realçar a atitude que as pessoas desenvolvem na sua relação com o meio ambiente decorrente da situação de escassez de recursos. Isto é, nota-se que perante situações de crise as pessoas desenvolvem a capacidade de valorização e consequentemente de poupança dos recursos escassos. É notável como a água é poupada em Lagoa. O que torna a água mais cara e consequentemente reduz a capacidade dos agricultores de Ribeirão competirem com os outros agricultores, podendo pôr em causa todo o investimento já feito na agricultura em Ribeirão, é o preço de água que se pratica na localidade, devido, em parte, à utilização da energia eléctrica para a sua bombagem. Mais que resolver o problema de escassez, um dos principais desafios em matéria de abastecimento de água, quer para o consumo doméstico, quer para a agricultura é a sua produção utilizando energia proveniente de recursos fósseis. Sabe-se, no entanto, que tem decorrido no país vários projectos de instalação e montagem de equipamentos fotovoltaicos para a bombagem de água dos furos, no quadro, nomeadamente, do Programa Regional Solar financiado pela União Europeia no quadro de valorização de energias renováveis.

4. Da gestão de apoios à educação e formação

A educação vem sendo assumida por sucessivos governos como um vector fundamental nas estratégias de desenvolvimento do país. As dinâmicas que se desenvolveram em Cabo Verde numa perspectiva institucional, ou seja, conduzidas pelo Estado ou parceiros directos do Estado ocorreram tendo como base fundamental os princípios que sustentam a estreita relação que existe entre a educação, a formação e o desenvolvimento socioeconómico. A educação e formação são vistas, nesta perspectiva, como instrumentos que facilitam o desenvolvimento

293 socioeconómico do país e, mais do que isso, um factor importante do desenvolvimento e da mudança social e que também serve de base para a emancipação e libertação dos homens. Uma perspectiva diferente é aquela enquadrada na teoria de reprodução protagonizada por Bourdieu, Passeron, Boudon, Baudelot e Etablet e que, de resto, se transformou num paradigma dominante, pelo menos em França, no âmbito da sociologia de educação (Teodoro, 1994:41). Não obstante as diferenças de perspectivas, a ideia aqui a reter é de que há uma relação efectiva entre a educação, formação e desenvolvimento, e tal relação nunca deixou de fazer parte das políticas de desenvolvimento económico e social. Esta tem sido o argumento utilizado pelas organizações internacionais na construção do seu quadro lógico de desenvolvimento e é nesta base que propõem apoiar programas de desenvolvimento dos países com baixos índices de desenvolvimento. É também nesta perspectiva, ou seja, de que o investimento na educação permite a ascensão a posição social mais elevada, que as famílias apostam na educação dos seus filhos. As famílias do meio rural assumem, de um modo geral, a vontade de verem os seus filhos a estudar.

Se pormos um filho na escola não sabemos o que ele poderá ser mais tarde. Poderá inclusivamente ser um presidente da República. Antes não era fácil porque a escola era longe. Mas nós devemos investir na escola do nosso filho. Eu lamento o facto de os meus pais não terem me colocado na escola. Acho que se frequentasse a escola eu aprenderia.

Estas expectativas constituem a base dos esforços das famílias em apoiar os seus filhos nos estudos e é a partir delas que as dinâmicas dos actores sociais se constroem especificamente no domínio de apoio à educação e formação.

4.1 O caso de Lagoa

Em matéria de educação, a localidade de Lagoa conta com dois jardins infantis uma na comunidade de Compainha e outra na comunidade de Lagoa e uma escola do ensino básico integrado. Apesar das várias acções de solidariedade social protagonizadas por múltiplos actores sociais de desenvolvimento de que vamos abordar mais adiante, globalmente as famílias desta localidade passam por muitas dificuldades para assegurar a educação e formação dos seus filhos. Estas dificuldades são particularmente

294 expressivas quando os filhos frequentam o ensino secundário e ainda muito mais quando se trata do ensino superior. São múltiplas as formas como estas dificuldades se revelam, mas particularmente no momento de garantir aos filhos uma alimentação regular, equilibrada e saudável, na hora de fornecer o vestuário, materiais didácticos, garantir o transporte, pagar as propinas, etc. Especificamente, no que se refere à frequência do ensino secundário, é de salientar que além dos problemas já referenciados coloca-se um outro que é distância que se percorre entre a localidade de residência e os centros urbanos onde se localizam os liceus. Recorda-se que entre a localidade de Lagoa e a cidade da Ribeira Grande percorre-se uma distância de cerca de 25 quilómetros e até à cidade do Porto Novo a distância é cerca de 28 quilómetros. Quando os jovens tinham que percorrer essas distâncias para a frequência às aulas, apesar do apoio ao transporte escolar que lhes era assegurado, e que, de certa forma, dava uma certa garantia quanto às condições de deslocação, a taxa de reprovação era muito elevada conforme nos garantiu o Sr. José Cândido Delgado, Delegado, do Ministério da Educação e representante da Fundação Cabo-verdiana de Acção Social Escolar (FICASE) 202 no Concelho da Ribeira Grande. A ida às escolas por parte dos estudantes de Lagoa que frequentam o ensino secundário estava normalmente sujeita a um conjunto de condicionalismos. São exemplos, as avarias mecânicas dos transportes, cortes de estrada devido à ocorrência de chuvas, atrasos sucessivos que se verificavam na chegada dos alunos às escolas. É com base nesses condicionalismos que a solução “transporte escolar” foi substituída pela solução “internamento” nas residências estudantis de Ribeira Grande e do Porto Novo. As residências estudantis foram criadas pelo ICASE com financiamento de parceiros externos de desenvolvimento de Cabo Verde tendo como pressuposto garantir aos jovens provenientes de famílias que vivem em situações socioeconómicas desfavoráveis, um alojamento adequado numa perspectiva de lhes proporcionar um melhor ambiente para desenvolverem os seus estudos.

202 A Fundação Cabo-verdiana de Acção Social Escolar (FICASE) substitui o Instituto Cabo-verdiano de cação Social Escola (ICASE), no essencial das atribuições que o conferem de cujos pormenores daremos conta de seguida.

295 As duas residências estudantis construídas na ilha têm capacidade para albergar cerca de 80 jovens cada uma. Um estudante paga uma mensalidade de 7000$00 e este valor pode ser pago de forma fraccionada se uma família assim o requerer. Segundo o responsável de uma das residências o dinheiro arrecadado visa garantir o seu funcionamento. As acções que giram em torno de apoios à educação e formação em Santo Antão têm sido nos últimos anos asseguradas por uma grande variedade de actores sociais, tendo sempre como propósito central mitigar os problemas que as famílias economicamente desfavorecidas enfrentam para garantirem o acesso à educação e formação dos seus filhos. Desde logo destacamos o ICASE de quem partiu a iniciativa de construção das residências estudantis, uma instituição do Estado criada desde 1983 para assegurar os serviços de acção social e escolar ao universo estudantil que vive em condições socioeconómicas desfavorecidas. Sobre o ICASE importa ainda referir que adoptava como modalidades de apoio ao universo estudantil, além de assumir as mensalidades (parte ou totalidade) respeitantes ao internamento nas residências estudantis, desenvolvia acções de apadrinhamento, assegurava a cantina escolar, saúde escolar, transporte escolar, bolsas de estudo, materiais didácticos, e apoio ao pagamento das propinas e contava com a parceria de várias organizações públicas ou privadas, nacionais e internacionais, designadamente o Programa Alimentar Mundial (PAM), a Cooperação Luxemburguesa, a Cruz Vermelha de Cabo Verde, a Cabo Verde Solutions- CVS, Sogei, Águas de Ponta Preta, Association de Soutiens Financier et Logistique (ASFL) - Suiça, François Roduit – Suiça, etc. 203 Para cada uma das modalidades de apoio adoptadas pelo ICASE estavam envolvidos vários actores sociais locais. Indicamos, a título de exemplo, a cooperação dinamarquesa através da Bornefondem, a Comissão Regional de Parceiros, as Câmaras Municipais, as Associações de Desenvolvimento Comunitário e as Organizações Não Governamentais, etc. Apesar dos muitos apoios que recebem, as famílias de Lagoa assumem ainda certos encargos. Ou seja, ainda fazem grandes esforços, tendo em conta o contexto socioeconómico onde se inserem, para continuarem a ver os seus filhos a estudar. Fazem-no na expectativa de os verem num futuro próximo a ocupar uma posição social diferente daquela por elas ocupadas ou ocupadas pelos seus ascendentes. São, contudo,

203 Vide http://www.icase.cv/index.

296 posições sociais bastante modestas, num mundo dominado por pensamento, atitudes e práticas, orientados pela lógica neo-liberal. Esperam, por exemplo, ver seus filhos como professores ou educadores de infância para substituírem aqueles que hoje desempenham essas funções na aldeia e que vêm de outras localidades da ilha ou vê-los como enfermeiros para ajudarem a comunidade mais tarde. Até atingir o sucesso, ou seja sentirem-se realizadas com o desempenho dos filhos na escola, as famílias desencadeiam uma rede complexa de estratégias. A história de Hugo, um jovem que havia concluído recentemente (2009) um curso de licenciatura em História e que se encontra a aguardar o primeiro emprego, nos parece bastante elucidativa.

Os meus estudos foram financiados pelos meus pais. Estudei no internato. Mas acredito que não foi fácil para eles. Foi com muito esforço que consegui estudar. Quando vinha passar fins-de-semana apanhava feijão para ir vender à Ribeira Grande para poder comprar os materiais escolares mais importantes. Durante o período de férias, quando chovia trabalhava no campo e assim conseguia alguma coisa para financiar os meus estudos. Mas os meus pais criavam gados. Além do mais o meu pai era carpinteiro e conseguia arrecadar algum rendimento. Vivemos com base nisso. Terminei o ensino secundário e fui para S. Vicente estudar na Universidade. Para suportar as despesas tentei recorrer ao banco. Mas como não tinha fiador eles disseram que eu devia esperar. Enquanto esperava ia estudando mas sem pagar as propinas. Tinha uns amigos de Lagoa que trabalham e viviam em São Vicente. Eles deixaram-me hospedar em casa deles. Durante o tempo em que permaneci no amparo deles não paguei nenhum centavo. Foi uma grande ajuda. Fiquei à espera desse financiamento até o ano lectivo terminar. Recorri a outro banco mas sem conseguir. Como tivemos uma boa colheita de batata nesse ano então vendemos parte da produção e amealhamos o dinheiro das propinas de um ano. No segundo ano também fiz o mesmo. Continuei os estudos mas no final não tinha como pagar as propinas. Foi aí que recorri a uma instituição que me ajudou a liquidar a dívida que eu tinha acumulado durante esse ano na universidade e que atingia o valor de 140 mil escudos. A partir daí prossegui os estudos até ao quarto ano sem pagar uma única mensalidade. No entanto a universidade não me pressionou. Mas quando terminei era preciso pagar a totalidade da dívida para poder obter o certificado. Aí recorri ao meu cunhado que trabalha na Praia. Ele foi ao banco pedir aquele dinheiro emprestado e deu- me para pagar a dívida à universidade com o compromisso de que quando começasse a trabalhar ia amortecendo todos os meses até ficar completamente liquidada.

Trata-se do primeiro jovem de Lagoa que conseguiu tirar um curso de licenciatura. De resto, havia um senhor que fez um curso de formação de professores no Instituto Pedagógico. Há uma outra jovem quase a concluir um curso de licenciatura. A dona Rosalinda, que tem uma filha a frequentar na residência estudantil da Ribeira Grande e que tem que comparticipar com 50% do valor das propinas, ou seja, 3500$00, confessa que: às vezes não temos esse dinheiro. Muitas vezes temos que pegar nos

297 produtos agrícolas para vender e pagar as dívidas contraídas no âmbito da escola dos meninos. Porque a fonte de rendimento não é suficiente, muitas famílias desistem pelo caminho porque sentem que as fracas condições socioeconómicas não lhes permitem continuar a apostar na educação dos filhos e, por isso, esses acabam por desistir ainda no ensino básico, mas muitos mais no ensino secundário.

repare que para estudar em Porto Novo ou em Ribeira Grande quando não se tem uma família próxima para o receber, você tem que ir para o internato. No internato paga-se creio que cerca de dez contos. Se você considerar ainda os materiais escolares, o vestuário e mais outras despesas então pode ver que não é qualquer um que possui essas condições, sobretudo em Lagoa que às vezes não chove e o trabalho não aparece sempre.

O Senhor Leonardo teve vários filhos e tentou dar escola a todos, numa altura em que não havia apoio e em que a vida era mais difícil. Por isso alguns têm quarta classe. Para fazer face a essas situações, as famílias que não têm condições para, sequer comparticipar nas despesas dos filhos que frequentam o ensino secundário, a cooperativa local pensa, como próximo passo, adquirir uma viatura para os transportes escolares, pois segundo o seu presidente:

pode ser mais viável financeiramente, os alunos terem um transporte irem e voltarem todos os dias que ficarem instalados nos internatos quando não têm apoio de nenhum lado. Mas os que hoje têm apoio amanhã podem não vir a ter esse apoio e assim não puderem arcar com as despesas dos filhos no internato.

Por outro lado, alega o presidente da cooperativa que muitos estudantes não se adaptam ao internato, uma situação que poderá justificar o insucesso escolar de alguns jovens. Encontram-se vários jovens nesta localidade que deixaram de estudar há muito tempo alegando quase sempre falta de condições materiais. Muitos ficaram pelo 6º ano de escolaridade, o máximo que se pode frequentar na localidade. Alguns pertencem a famílias muito numerosas e quando assim é a possibilidade de poder frequentar o ensino secundário é bastante reduzida. A Sara estudou até ao 8º ano de escolaridade.

Só deixei de estudar devido a problemas financeiros. Os meus pais não trabalhavam e não tinham condições. Éramos 12 filhos e havia mais irmãos que estudavam. Assim era preciso que os mais velhos trabalhassem para poder apoiar os mais novos nos estudos.

298 Geraldo conta-nos que

os filhos do meu irmão não andam na escola. Uns são ainda muito novos, outros já são maiores e um outro já perdeu direito de frequentar a escola e por causa disso o meu irmão resolveu em não colocar-lhe mais a estudar.

Algumas raparigas deixam de estudar porque se engravidaram. Contou-nos o jovem Donaldo. É importante ainda sublinhar que uma das razões que levam ao abandono é algum desinteresse criado devido a forte envolvência das crianças nos trabalhos domésticos que ocorrem em situações bastante difíceis e incompatíveis com o padrão de vida que as exigências escolares impõem e, por outro lado, para muitos pais, e procuram incutir isso nas crianças, existem outras alternativas à vida, como a emigração. A primeira escola construída em Lagoa foi depois da independência, mais concretamente em 1977. Comportava duas salas de aula e funcionava até 4ª ano de escolaridade. Hoje, tendo em conta número reduzido de alunos, alguns professores trabalham com turmas compostas, uma situação pouco vantajosa para as crianças, conforme nos revelou uma professora que trabalha nessa escola. A este conjunto de problemas associa-se um outro que decorre do facto de alguns pais recusarem deixar os seus filhos frequentarem a escola (por razões que não nos foi possível apurar convenientemente), uma situação que, segundo o representante da FICASE em Ribeira Grande, tem merecido a atenção do Instituto Cabo-verdiano da Criança e Adolescente (ICCA) em parceria com a própria FICASE.

4.2 O caso de Ribeirão

Uma grande maioria dos habitantes de Ribeirão, aliás como também se verifica em Lagoa, tem ainda um baixo nível de escolaridade. Num passado ainda recente, estamos a referir a década de 1980, ou mesmo a década de 1990, a situação era ainda bem pior, conforme as opiniões reveladas pelos entrevistados. Esta constatação levou a que a associação, logo que foi criada, elegesse a educação como uma área prioritária de actuação no seio da localidade. Tal como nos relatou o presidente da associação de desenvolvimento comunitário local:

299 em 1990 Ribeirão era das localidades mais pobres do Concelho de Ribeira Grande. Tínhamos uma elevada taxa de analfabetismo e uma baixa taxa de literacia. Podemos afirmar que 99,9% da população não tinha habilitação superior a 4ª classe. Era preciso investir seriamente na educação. E foi assim que começamos.

A eleição da educação como um dos vectores fundamentais para promover o desenvolvimento da localidade foi também motivada pela necessidade de dotar a associação de competências para conduzir os destinos da comunidade. As pessoas justificam o facto de não conseguirem atingir o nível de escolaridade desejado com a falta de oportunidades, que se resume em fracas condições socioeconómicas, a ausência de apoio do Estado e inexistência de uma oferta educativa na comunidade. Muitos que não frequentaram as escolas pode ter sido devido ao facto de a prioridade dos pais ser colocada no trabalho doméstico como estratégia que produz resultados mais evidentes no quotidiano das famílias nessa época, pois tinham que percorrer longas distâncias, para terem acesso à água, pasto para os animais, etc., tinham que cuidar dos animais, ajudar nos trabalhos de agricultura e nos trabalhos domésticos, obrigações indispensáveis a um membro da família com mais de dez anos. Potts (1997) explica esse alheamento à necessidade que a família tem em capitalizar a força de trabalho existente no seu seio, isto é, a adopção de uma estratégia de vida que implica uma intensificação de esforços e, consequentemente, maior mobilização dos membros da família em torno do rendimento. Além do mais, a situação em que muitas famílias viviam, não permitia suportar despesas inerentes à educação dos filhos. A primeira escola primária terá sido construída nesta localidade após a independência nacional. Mais do que isso, o meio rural cabo-verdiano foi muito afectado por um sistema educativo muito marcado pela exaltação de certos valores e que resultava na exclusão de várias categorias sociais das populações, cujos efeitos se encontram ainda bem presentes na estrutura social. As pessoas valorizam muito a educação. Algumas ostentam, com uma certa vaidade, o facto de terem conseguido fazer a 4ª classe. Fica a ideia que esse sucesso não estava ao alcance de qualquer um. Vêm na educação um mecanismo privilegiado de mudança da posição e provavelmente da ordem social.

Tenho uma filha que trabalha no Hospital em São Vicente. Dá injecções e faz tudo. Cuida bem das pessoas. Tenho uma outra que fez jornalismo na Praia. Eu dou muita importância

300 aos estudos dos meus filhos. Faço tudo para que eles tenham estudos. Apesar das dificuldades procuro dar-lhes o estudo. Pode ser que mais tarde não passem pelas mesmas dificuldades por que passei. Quem tem escola tem escola quem não tem escola não tem nada. Pode ser que me ajudem no futuro.

A associação de desenvolvimento comunitário de Ribeirão iniciou as suas acções nesse domínio com a criação de um jardim infantil. Mais tarde, dirigiram as suas acções para a ampliação da escola primária local, com a construção de mais uma sala de aula, um refeitório e um pátio para que as crianças pudessem brincar nos recreios e onde os jovens pudessem praticar desportos, com recursos que eles mobilizaram através de pedidos de apoio que apresentaram aos diversos parceiros. Além disso, a associação local, em parceria com a Câmara Municipal, a FICASE e a BORNEfondem têm desencadeado vastas iniciativas de apoio à educação, designadamente no pagamento das propinas e na aquisição de materiais escolares. Refira-se ainda que esta associação tem inclusivamente financiado viagens ao estrangeiro a estudantes descendentes de famílias com dificuldades financeiras que foram contemplados com bolsas de estudo pela Direcção de Formação e Qualificação de Quadros (DFQQ) ou pela Câmara Municipal da Ribeira Grande. Decorrente da representação que as famílias nos espaços sociais rurais constroem sobre a importância da formação a maioria delas envida grandes esforços para apoiar os seus filhos nos estudos. Muitas, porém, vêem mais tarde defraudados os seus desejos. A senhora Nicolas representa o exemplo de uma delas.

Os meus filhos nem todos foram para a escola. Era difícil na altura. Não havia escola na localidade. Os meninos tinham que percorrer longas distâncias. Um deles conseguiu fazer 4ª classe. Mas fê-la com 15 anos.

As estratégias que implementam para assegurar a educação dos filhos são variadas. Estas estratégias vão desde a venda de alguns bens a pedido de empréstimo a amigos e a familiares. Por vezes, contam com a solidariedade de familiares e amigos que vivem em sítios onde o filho possa frequentar um determinado nível de ensino ou de formação, e até de pessoas estranhas. Além destas, existem outras dimensões de estratégias, como aquelas que decorrem do campo político que, como vamos ver no próximo capítulo, têm uma grande importância na definição das dinâmicas de actores sociais desencadeadas no espaço social rural.

301 Até concluir os estudos um indivíduo pode receber vários apoios a partir das acções conduzidas por múltiplos actores sociais e decorrentes de múltiplas estratégias. Pode beneficiar dos apoios da FICASE que atribui refeições quentes, materiais escolares, do programa de transporte escolar promovido pela associação de desenvolvimento comunitário da sua localidade e patrocinado pela Câmara Municipal, pode ser contemplado com o pagamento das propinas pela Bornefondem, com a solidariedade de um familiar que o recebe em sua casa durante o tempo em que decorrem as aulas e conta ainda com o sacrifício dos pais que enviam para o familiar que o recebe em sua casa, com certa regularidade, uma determinada quantidade de produtos alimentares cultivados nos terrenos da família graças aos esforços de um irmão mais velho e, mais tarde, pode ser contemplado com uma bolsa de estudos por uma ONG internacional para frequentar o ensino superior, num país com convénio com Cabo Verde em matéria de concessão de vagas. Isto apenas para salientar o alcance das acções que são desencadeadas em torno da educação e formação.

4.3 O Caso de Cruzinha

A educação e formação representa, na nossa opinião, uma das dimensões da vida social em relação à qual se desencadeiam as mais expressivas dinâmicas de actores sociais em Cruzinha e essas dinâmicas ocorrem com maior relevância em redor de duas acções fundamentais: o apoio a transporte escolar e o apoio na aquisição dos materiais escolares. Antes de analisar as acções que envolvem os transportes escolares é preciso recordar que esta localidade dista cerca de 30 quilómetros da Vila de Ribeira Grande, onde antes existia um estabelecimento do ensino secundário mais próximo. No entanto, com a construção do liceu de Coculi em 2005 a distância que os estudantes percorrem para frequentar este nível de ensino reduziu para cerca de 25 quilómetros. Ainda assim, a distância entre uma e outra localidade é considerável, tendo em conta a orografia da ilha mas também as condições de circulação, por vezes difíceis, que caracterizam certos troços da estrada que ligam estas duas localidades. E, apesar disso, os estudantes de Cruzinha deslocam-se todos os dias a Coculi para assistirem às aulas.

302 Um passageiro normal paga cerca de 250$00 numa viagem de carro entre Cruzinha e Coculi. Ida e volta são 500$00. Nestas condições um estudante gastaria cerca de 3000$00 por semana e cerca de 12000$00 por mês para ir todos os dias a Coculi assistir às aulas e regressar. Trata-se de um valor proibitivo para a grande maioria das famílias, tendo em conta a sua situação socioeconómica. Este é, a priori, o factor que esteve na base da mobilização dos vários actores sociais locais à volta do programa de transporte escolar. Destacam-se as próprias famílias, a ACNEMC, a CRP, a Câmara Municipal, a Bornefondem, etc. À ACNEMC é reservado o papel de coordenar o programa a nível local. Além do mais, assume a tarefa de analisar a situação socioeconómica das famílias e, em função disso, propor a lista dos beneficiários aos financiadores. Aliás, nestes casos as associações são tidas pelos diversos outros actores, designadamente os do sector público, como se também fossem, num sentido restrito, instituições públicas, tendo em conta a dimensão das responsabilidades públicas que assumem em determinadas situações. Tendo em conta a importância do transporte escolar na estrutura das estratégias das famílias em Cruzinha, a ACNEMC há muito definiu como acção prioritária a curto e médio prazos a aquisição de uma viatura para o transporte escolar, já que o mesmo estava a ser assegurado por um miniautocarro particular. A viatura parte de Cruzinha sensivelmente às 7 horas e sai de Coculi poucos minutos depois 13 horas, altura em que terminam as aulas. De acordo com os dados fornecidos pelo presidente da ACNEMC, no ano lectivo 2009/2010 o programa abrangeu 35 alunos, ou seja, a totalidade de estudantes que frequentam o ensino secundário, o que significa que todas as famílias desta localidade com filhos a frequentar o ensino secundário recebem apoio no transporte dos filhos sendo que umas o recebem na totalidade e outras, uma parte apenas. O certo é que uma família comparticipa no máximo com 3000$00 mensais, sendo que a taxa de co- participação das famílias varia em função da análise da situação familiar que a ACNEMC faz. Os apoios na aquisição dos materiais escolares têm uma abrangência ainda maior. Pode- se dizer que todas as crianças de Cruzinha recebem este tipo de apoio, conforme nos foi garantido pelos moradores.

303 Além dos apoios nos transportes escolares e na aquisição dos materiais escolares, alguns estudantes que frequentam o ensino superior, entenda-se nas ilhas de São Vicente e de Santiago ou então no exterior, são contemplados com bolsas de estudo, financiadas na maioria dos casos pela Câmara Municipal da Ribeira Grande, a Bornefondem e FICASE. No entanto, as famílias desses estudantes consideram o valor dessas bolsas muito baixo, razão pela qual têm de recorrer ao crédito bancário para suportarem o custo da formação dos filhos algo que nem sempre é fácil tendo em conta as condições que as instituições bancárias impõem, como a obrigatoriedade de apresentarem avalistas e os juros que os pais, na qualidade de principais avalistas, pagam ainda durante o tempo em que o filho está a estudar. O Senhor Benjamim deu-nos exemplo de um caso seu:

Ele conseguiu esse crédito para quando concluir os estudos passar a pagar. Só que desse crédito temos que pagar 1500$00 todos os meses que são do juro. O meu rendimento mensal é 4410$00 resultante de uma pensão de invalidez que o Estado me atribui ao passo que a minha mulher ganha alguma coisa só quando a associação abre uns trabalhos.

Na verdade, não é uma situação fácil. Também pode não ser de todo verdade que esta família viva apenas dos rendimentos que declara ter. Pode ser que recorram a outras estratégias, algumas delas de difícil caracterização ou de constatação, mas que podem, no entanto, ajudar a resolver os problemas. Por não serem regulares e porque não é atribuído um valor real é normalmente ocultado mas não negligenciado. Referimo-nos concretamente às estratégias que decorrem de práticas como jobs, expediente e desenrasque analisadas no capítulo anterior. Apesar de fortes dinâmicas que desencadeiam na promoção de apoio à educação, verificam-se vários casos em que as crianças abandonam precocemente as escolas. Isso pode ter a ver não só com alguns factores que anteriormente imputamos ao insucesso escolar das crianças do meio rural como a participação nos trabalhos domésticos ou a perspectiva de emigrar, mas também ao fenómeno do “vício pelo mar,” que consiste basicamente no hábito que decorre do prazer, diríamos insaciável, que actividades como o mergulho e a pesca provocam, em prejuízo do interesse pela escola. Carlos, conforme nos confessou reprovava muito devido ao vício que tinha pelo mar. Só fez 4ª classe quando tinha 14 anos. Segundo nos disse, faltava muito às aulas para estar- se no ambiente da beira-mar. Mas, procura justificar o seu insucesso escolar com o facto de,

304

as coisas nessa altura eram mais difíceis. Agora quase todas as crianças que terminam a escola primária vão para o liceu. É porque agora há mais apoios, nomeadamente no transporte. Isso por si só ajuda.

Refira-se que, tal como em relação às outras duas localidades analisadas, também em Cruzinha, a primeira e a única escola foi construída só depois da Independência Nacional. Antes, ensinava-se em casas de palha alugadas para o efeito. As condições em que funcionavam eram por vezes desumanas. Isto contribuiu para que as dinâmicas fossem ainda mais intensas. A Eleonor é uma das pessoas que recebe apoios provenientes dos mais diversos actores sociais.

Tenho uma filha que estuda no liceu em Coculi mas nem posso pagar-lhe as propinas. Ela estuda graças aos apoios que recebo da Dinamarca, Câmara municipal, CRP. Ela tem apoio para pagar transporte, para comprar materiais escolares e para pagar propinas. Essas instituições dão esse apoio directamente na escola ou através da associação. Ela estuda 10º ano. É a única coisa que tenho para lhe dar é o estudo. O pai dela faleceu quando ela tinha 6 anos. Eu pago só 500$00 de transporte. E quando chegar a altura exacta de o pagar tenho que fazer tudo para encontrar esse dinheiro. Tenho investido na educação dos meus dois filhos de quem espero um dia poderem autosustentar-se e se der para ajudar-me seria muito bom. Bornefondem dá apoio em materiais escolares, FICASE apoia nas propinas, Câmara Municipal e CRP apoiam nos transportes.

Já a Sílvia comparticipa com 1300$00 por mês para o transporte da filha. A outra parte é, segundo ela, assumida pela Câmara Municipal e pela FICASE. É visível uma grande concentração de apoios no domínio de educação e formação em Cruzinha. Mas, porque será? Ainda que hipoteticamente, a resposta a esta questão pode envolver dimensões como as pressões que as famílias exercem sobre os actores sociais num contexto político específico. Esta forte pressão não é apenas resultado da articulação e integração de acções que se dão no seio das associações locais, mas é também resultado da concentração populacional que caracteriza esta localidade. Os apoios surgem, assim, como uma “resposta política” que os actores sociais procuram dar às pessoas numa lógica por vezes eleitoralista. Antes não havia muitos apoios porque não existiam pressões sociais informais construídas nas comunidades. Há muitos que não estudaram porque a adolescência teria que ser dedicada ao trabalho para ajudar a “aguentar” a família. Neste sentido, cientes da tragédia que o destino lhes

305 pregou procuram responder esforçando-se para darem escola aos filhos, tendo em conta que esta é a saída para que os filhos venham a ter uma vida melhor. Por outro lado, é preciso aproveitar os apoios que hoje existem. Como reconhece um nosso entrevistado, hoje só não estuda quem não quer. Apesar das muitas acções de apoio á educação que são promovidas nesta localidade encontra-se alguns jovens que concluíram o 6.º ano de escolaridade e desistiram de continuar os estudos porque os pais alegam não ter condições. Ora, se há famílias, como a do Sr. Noel, proprietário de muitos botes e redes de pesca, que recebem apoios no âmbito da educação dos seus filhos e existem outras como a da Eleonor que confessa ter dificuldades para pagar os 500$00 mensais do transporte da sua filha que frequenta o ensino secundário, isso demonstra que o sistema de apoios às famílias ocorre numa lógica que, em certa medida, exclui determinados grupos desses programas de apoio, sem contar com casos de auto-exclusão ou de desinteresse motivado por alguns outros factores. Regressando à análise das acções dos diferentes actores sociais no domínio de apoios da educação e formação, devemos salientar que a Bornefondem teve um papel fundamental no processo de reinserção escolar dos filhos de pais carenciados. A par da Bornefondem é preciso ainda destacar a FICASE que tem tido um papel central na manutenção das crianças nas escolas, particularmente em Lagoa e Cruzinha, pois, segundo José Cândido Delgado, Delegado do Ministério da Educação da Ribeira Grande e Representante da FICASE, nestas duas localidades, ocorrem vários casos em que as crianças têm dificuldades em encontrar uma refeição em casa. Fazemos um parênteses para dizer que o programa de cantinas escolares insere-se numa das antigas acções que se desenvolveu à volta da educação em Cabo Verde, e das mais importantes, pelo menos na perspectiva dos muitos entrevistados nossos. Este programa vem da época colonial e nessa altura consistia em fornecimento de leite às crianças como mecanismo de reforço da dieta alimentar na perspectiva de reforçar as condições de aprendizagem. Mais tarde, já após a independência nacional e mais concretamente em 1979, com o apoio do PAM, cujo acordo foi firmado em 1976, o programa das cantinas escolares,

306 assente no mesmo propósito, passou a consistir na distribuição de refeições quentes a crianças dos jardins infantis públicos e escolas primárias 204. O pressuposto central do programa de cantinas escolares tem a ver com o facto de muitas crianças não encontrarem nas suas casas uma refeição, decorrente do problema de défice alimentar que o país enfrenta e, consequentemente, a necessidade de melhorar a qualidade de aprendizagem e contribuir para a melhoria do estado nutricional das crianças. Este programa tem, na perspectiva das autoridades nacionais, uma relação directa com a frequência escolar das crianças e por conseguinte, com o combate ao abandono escolar. Mas mais do que isso, ele contribui para a melhoria das condições de aprendizagem. De notar que o programa das cantinas escolares foi, a partir de Setembro de 2010, assumido integralmente pelo governo de Cabo Verde 205, pois o PAM suspendeu o seu apoio, tendo em conta o facto de Cabo Verde ter passado a ser um país de rendimento médio e, consequentemente, cujos indicadores sociais (o Índice de Desenvolvimento Humano, a taxa de escolarização e o rendimento per capita) ultrapassaram os limites máximos que a organização considera como condição básica para apoiar. Segundo os dados mobilizados a partir do website da FICASE 206, o programa de cantina escolar, que beneficia actualmente cerca 90.000 crianças dos jardins infantis e ensina básico integrado, custa ao estado cerca de 500 mil contos. Voltando à análise das dinâmicas dos actores sociais cabe também frisar o papel da OMCV. Segundo a senhora Nair de Rosário Brito, esta ONG sempre tomou a educação como pilar de desenvolvimento e de combate a exclusão e desigualdade do género e social.

Na altura começamos a implementar o ensino pré-escolar de forma a que permitisse a crianças do meio rural terem acesso a este nível de ensino na medida em que os próprios professores do ensino básico na altura entendiam que as crianças que passavam pelo jardim tinha maior probabilidade de sucesso nos níveis de ensino precedentes. A não frequência do jardim infantil por parte de um grande número de crianças era um factor de desigualdade de oportunidade entre crianças de uma mesma geração. Uma criança que tivesse frequentado o jardim aprendia ou interiorizava um fonema mais facilmente que uma outra que não frequentou esse nível de ensino porque é a primeira vez que ouve falar de m (me) ou p (pe). Mas por outro lado a implementação do jardim infantil tinha uma

204 Dados fornecidos pela FICASE. 205 O governo de Cabo Verde vinha assumindo parcialmente a gestão e execução do programa das cantinas escolares desde 2007. 206 http://www.ficase.cv.

307 outra valência. Era a de permitir que as mulheres pudessem trabalhar fora de casa normalmente e assim reduzir a sua dependência dos maridos. Se têm uma criança menor com três, quatro, ou cinco anos já não podiam trabalhar. O jardim funcionava um pouco como uma ama. Um lugar onde uma mãe deixa o seu filho e pudesse ir trabalhar descansada. Tinha ainda uma outra valência que era a de não deixar as crianças abandonadas já que tinham efectivamente que trabalhar porque dependem só delas.

Neste diapasão refira-se que a OMCV de Ribeira Grande gere 3 jardins-de-infância. Além do mais, esta organização tem um projecto de apoio às crianças carenciadas com apoio em materiais escolares. A Comissão Regional de Parceiros, conforme os dados fornecidos pelo seu coordenador destina 30% do orçamento ao apoio à educação nas mais diversas modalidades, designadamente transporte escolar, aquisição de materiais escolares e residência estudantil. As Câmaras Municipais acabam por envolver-se em quase todas as dimensões de apoio que se atribui em matéria de educação e formação. Refira-se que elas gerem mais de 90% dos jardins-de-infância da ilha, conforme nos assegurou o Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Além disso, segundo os presidentes das Câmaras Municipais do Porto Novo e de Ribeira Grande as autarquias apoiam as crianças provenientes de famílias carenciadas na aquisição de materiais escolares, transportes escolares e a Câmara Municipal de Ribeira Grande, em particular, atribui um subsídio aos internatos para receberem os estudantes do Planalto Leste. Para além disso, apoiam acções de formação profissional dos jovens no país e no estrangeiro, a formação profissionalizante da Universidade de Cabo Verde que se realiza na ilha e atribuem bolsas de estudo aos jovens que frequentam o ensino superior, etc.

5. Outros domínios de intervenção dos actores sociais no processo de desenvolvimento local

Além das acções desencadeadas nos domínios de habitação social, mobilização e fornecimento de água, e educação e formação profissional, os eixos privilegiados de análise neste trabalho, os actores sociais proporcionam uma grande variedade de acções situadas em mais diversos domínios, ancoradas na intenção de promover o desenvolvimento local. Durante a análise destas dinâmicas, procuramos demonstrar em vários momentos, que as ADC das três localidades em estudo desempenham, em

308 parceria com outros actores sociais locais que dinamizam acções ancoradas nos propósitos de promoverem o desenvolvimento local, um papel fundamental. Aqui vamos analisar as acções que essas associações desencadeiam em torno de outros domínios, designadamente aqueles que revelam alguma preponderância no processo de desenvolvimento das suas comunidades e, consequentemente, na melhoria das condições de vida das famílias mas, fundamentalmente, para compreendermos a lógica que enforma as dinâmicas dos actores sociais, particularmente as ADC, assunto que vai merecer uma particular atenção no capítulo seguinte. Incidindo agora na localidade de Lagoa, importa então realçar que são as associações, muitas vezes em concertação com a comunidade através das reuniões de Assembleia- geral, mas também através de reuniões mais alargadas, é que definem as áreas prioritárias que devem constituir o objecto de projectos a serem executados por elas próprias ou por outros actores sociais a favor das suas comunidades. Além do mais, elas promovem um vasto leque de acções, no domínio do emprego público que se implementa nas suas comunidades, uma dimensão que, como vimos no capítulo anterior, ocupa uma posição central no conjunto de estratégias das famílias do meio rural. Também promovem acções de apoio às pessoas carenciadas, em matéria de aquisição de medicamentos, realização de funerais de pessoas pobres, saneamento, etc. Ainda várias outras acções são imputadas à associação local. Desde logo no domínio de actividades geradoras de rendimento através de construção de unidades de fabrico de queijo, pocilgas, currais e apoio na aquisição de pastos em períodos de seca. A Associação Luz Viva de Lagoa e Compainha (ALVLC) protagonizou a ideia de se construir um empreendimento (espécie de uma residencial) para receber os turistas que por aí passam, e que veio a ser financiado pelo PWS integrado no programa de apoio à habitação social. Mas o que mais importa aqui sublinhar é que essa ideia foi consensualizada pela população local e só a partir daí é que se partiu para a busca de financiamento. É verdade que o projecto encontra-se, neste momento, parado e, consequentemente, não se sabe sobre os resultados que ele irá produzir. É também verdade que era um projecto no qual a grande maioria da população desta localidade acreditava. A população local relaciona as acções de reflorestação, construção de diques, etc., às dinâmicas da associação comunitária local e à cooperativa. No meio destas acções, a

309 reflorestação da localidade é claramente a mais elogiada pela população local. Essa representação resulta do facto de a criação de gado integrar uma das mais importantes estratégias de vida e a reflorestação é vista como um mecanismo alternativo de fornecimento de pastos em caso de secas prolongadas. É preciso, no entanto, ver que os trabalhos de florestação do Planalto Leste começaram em 1952, com a introdução de espécies lenhosas, como o Castanheiro (Castanea sativa) e o Sobreiro (Quercus suber), vindos sobretudo da Europa Mediterrânea e de Portugal e Brasil, e ainda a Acacia cyanophyl, o Pinus canariensis e o Cupressus lusitanica, que tiveram uma boa adaptação em Cabo Verde. Em 1983, com o projecto de desenvolvimento rural integral no Planalto Leste, foram introduzidas novas espécies, alguns arbustos e árvores novas, sobretudo do género Acacia da Austrália e da África, plantadas entre 1984 e 1985 207. Ligado ao problema de falta de pasto, cabe dizer que a cooperativa local tem socializado a ideia de montar, a médio prazo, uma máquina para a moagem de pasto no sentido deste poder ser guardado durante um período de tempo considerável, tendo em vista a precaução em relação a períodos de carência As iniciativas desportivas são quase que exclusivamente apoiadas pelas associações locais:

temos uma equipa de futebol de onze que se chama BK88. Faço parte desta equipa. Mas só jogamos de vez em quando. Há muito tempo que a Câmara Municipal não realiza um torneio. Mas participamos em torneios realizados em outros lugares. Por enquanto tem sido a associação a assegurar a realização de alguns torneios para os quais convidamos equipas de outras localidades.

Em Ribeirão, a associação local, tal como a sua congénere de Lagoa, assume quase que por completo a execução do emprego público. Ela teve, à semelhança da ALVLC, um papel importante no projecto de reflorestação desencadeado na localidade, a partir da iniciativa de criação de um viveiro comunitário. Com as intervenções da associação comunitária local, o Ministério de Ambiente Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos e dos vários outros parceiros, conseguiu-se mudar a paisagem da comunidade.

207 Melle, G. V. (1991) – Manual de espécies florestais comuns do Planalto Leste. Doc. Trabalho nº3, Ministério do Desenvolvimento Rural. Santo Antão. Citado por Sílvia Monteiro, Romualdo Correia e Lúcio Cunha num trabalho intitulado Riscos Naturais, Ordenamento do Território e Sociedade. Estudos de caso nas Ilhas de Santo Antão e de Santiago.

310 Também incidiram nos trabalhos de correcção torrencial através da construção de diques de retenção, socalcos etc.

Isso foi um sucesso. Repare que as últimas chuvas causaram estragos em toda a parte de Santo Antão. Aqui em Ribeirão você não vê um único sinal de estragos nos terrenos. Toda a água que caiu ficou presa aqui e vai alimentar o furo.

Tal como a ideia de execução do furo, os trabalhos de correcção torrencial foram feitos sem recursos técnicos. É na própria localidade que se decide onde e como efectuar essas obras. Em muitos aspectos, a participação dos outros actores se restringiram apenas ao financiamento dos projectos pensados, consensualizados e concebidos graças ao envolvimento da associação local. A associação local traça como próximos passos a promoção e desenvolvimento de actividades produtivas locais no sentido de garantir a sustentabilidade de tudo o que já foi feito na comunidade, assente na ideia de que só a acção de solidariedade e só o acto de estender as mãos às pessoas não é suficiente para desenvolver a comunidade. É preciso, na perspectiva dos dirigentes, incutir nas pessoas a imperatividade de passarem a andar com os seus próprios pés. Ou seja, existem na localidade condições que vêm sendo criadas ao longo dos tempos e que se constituem como oportunidades de melhoria das condições de vida daquelas famílias. A perspectiva da substituição da energia eléctrica pela energia renovável no processo de produção da água é algo que está bem integrada nos discursos dos dirigentes associativos locais. Como ficou dito anteriormente, em Ribeirão a água é produzida a partir da energia eléctrica, o que faz com que o seu custo seja muito elevado. Neste sentido, os agricultores encontram-se à partida em desvantagem em relação aos outros como os vizinhos de Chã de Pedras que obtêm a água, praticamente, a custo zero, o que reflecte na competitividade na distribuição dos produtos agrícolas ao nível destas duas localidades. A introdução da energia renovável, defende o presidente da Ami-Ribeirão, faria baixar substancialmente o custo de produção dos agricultores locais e aumentar a capacidade de concorrência entre estes e os demais. As dinâmicas da associação local abrangem outras acções. No ano passado (2008) em homenagem à mulher cabo-verdiana, particularmente as mulheres de Ribeira Grande, devido aos grandes sacrifícios a que elas se submeteram no

311 transporte de cargas (grogue especialmente) para Porto Novo, nos anos quarenta, cinquenta e sessenta, a associação local mandou erguer um monumento, com escultura de uma mulher com um garrafão de aguardente à cabeça. A associação construiu várias infra-estruturas ligadas às actividades geradoras de rendimento importantes na localidade como um aviário com capacidade para dois mil e quinhentos bicos, uma pocilga com capacidade para criar 80 porcos, etc. Contudo, todas elas se encontram inoperacionais no momento bem como o Centro de Transformação de Produtos, vocacionado para capitalizar os produtos da agricultura de regadio local através da sua transformação e escoamento para outras ilhas. Em Cruzinha, além dos três eixos, as ADC locais tiveram intervenções notáveis em outros domínios que integram a vida da população desta comunidade. Basta lembrarmos o papel que a ACNEMC teve no processo de aquisição do barco de pesca de que fizemos referencia no capítulo anterior, no quadro de um projecto voltado para a criação de emprego e actividades geradoras de rendimento. Pudemos apurar que esta mesma associação teve um papel importante no desencadeamento do processo de construção de uma placa desportiva na localidade; têm desencadeado campanhas de sensibilização contra captura das tartarugas em parceria com o Instituto Nacional de Desenvolvimento das Pescas e acções de formação destinadas à comunidade piscatória local em matéria de conservação do pescado, etc. Realça-se que por causa das acções desencadeadas no domínio da conservação das tartarugas, a ACNEMC foi uma das dez associações comunitárias distinguidas em África com o prémio Equator Prize 2010 em reconhecimento público da excelência desta acção208. As actividades culturais e desportivas são praticamente asseguradas pelas associações locais com ampla participação da comunidade. Como exemplo, apontamos o facto de, todos os anos no verão, elas organizarem uma mini festival que envolve espectáculos musicais e diversas modalidades artísticas, que habitualmente mobilizam pessoas de vários cantos da ilha, com claras vantagens para a pequena economia local. Além do mais, a ACNEMC traça como principais desafios para o futuro a construção de um centro multimédia para responder as demandas do turismo.

208 Notícia veiculada pelo jornal electrónico a semana em 29 Julho 2010.

312 6. Conclusão

Acabamos de analisar as múltiplas acções dos actores sociais que ocorrem nas três localidades que representam os casos do presente estudo focalizando os três eixos privilegiados de análise. A título complementar, ou seja, no intuito de melhor compreendermos os aspectos que enformam as dinâmicas dos actores sociais analisamos as acções promovidas em torno de outros domínios da vida social no meio rural que se revelam preponderantes para o processo de desenvolvimento daquelas três localidades colocando ênfase no protagonismo das ADC. Um primeiro aspecto a reter, após a análise das acções e programas promovidos em torno de apoios à habitação social, mobilização e distribuição de água e educação e formação nas três localidades, é que elas têm contribuído satisfatoriamente para a melhoria das condições de vida das famílias locais, graças à efectiva participação nas decisões que são tomadas. Além do mais, o resultado dessas acções deve-se em parte à capacidade dos seus protagonistas na mobilização dos recursos. Um segundo aspecto a reter é que, apesar de uma certa homogeneidade dos actores que participam nas acções desencadeadas em torno de um eixo específico, elas não ocorrem com a mesma intensidade em todas as localidades. Aliás, com base na análise de um conjunto de variáveis 209, cuja natureza de cada um nem sempre é passível ou fácil de ser quantificado, podemos aferir que a intensidade das dinâmicas dos actores nos três eixos se hierarquiza conforme as seguintes proposições: As acções em torno de apoios à habitação social são mais intensas em Lagoa e menos intensas em Ribeirão. Já em relação á mobilização e distribuição de água, elas são mais intensas em Ribeirão e menos intensas em Cruzinha. Finalmente, no que se refere à educação e formação, elas demonstram ser mais intensas em Cruzinha e menos intensas em Ribeirão. Tal hierarquização é observada como reflexo de três ordens de ideias fundamentais: 1. Um conjunto de factores locais da definição de estrutura local de acção e interacção – ou seja, as vivências, de ordem social, tendo em conta as características socioeconómicas da população local; de ordem cultural, tendo em conta a forma como a população local representa a parte material da vida ou a prioridade que estabelece em

209 Tomamos como exemplos as seguintes: o investimento financeiro; os resultados práticos das dinâmicas dos actores sociais avaliados segundo o número de famílias abrangidas; a diversidade e natureza de parcerias envolvidas; o nível de conflitos que se lhes associa, entre outras.

313 relação a esta dimensão da vida; de ordem espacial, tendo em conta a forma como a população local interage com o seu meio físico onde se insere; 2. A característica pessoal dos líderes da aldeia e a sua capacidade de mobilização dos recursos para a sua aldeia, que por vezes atinge a personificação das dinâmicas que se desencadeiam na aldeia; 3. A vocação da aldeia condicionada pelos factores de ordem física e geográfica. Um terceiro aspecto a reter é que as dinâmicas dos actores sociais locais no processo de desenvolvimento local ocorrem num campo de forte conjugação de interesses que os mesmos definem num dado espaço territorial simbólico e, sendo assim, o ritmo dessas dinâmicas depende do grau dos seus interesses. Um quarto aspecto a reter é que as ADC são os motores das mudanças no meio rural. Essas organizações se inscrevem num ambiente social dos sistemas de desigualdades e de dominação e das redes locais de solidariedade e de dependência. Aliás, conforme notaram JACOB e DELVILLE (1994), elas se assumem como um dos principais agentes dinamizadores de política global conduzida pelo Estado ou pelas ONG e é neste sentido que elas “são lugares privilegiados da observação das dinâmicas sociais numa interface dos “enjeux” local e nacional”. Um quinto e último aspecto a reter é que a lógica proeminente das dinâmicas de actores sociais no processo de desenvolvimento local em Cabo Verde parece assentar-se numa estratégia um tanto ou quanto assistencialista, motivada pela racionalidade que uns e outros actores imprimem às suas acções tendo em vista assegurar os interesses em jogo. As diferentes modalidades de doações e ajudas e o contexto em que elas se inserem, bem como a natureza dos aspectos que integram os programas do emprego público parecem indicar esta perspectiva. Este é no entanto um assunto que será retomado no capítulo seguinte.

314 Capítulo V – Dimensões, sentidos e vicissitudes das dinâmicas de actores sociais no processo de transformação no espaço social rural santantonense

1. Introdução

No capítulo anterior centramos a análise nas dinâmicas encetadas pelos actores sociais de Lagoa, Ribeirão e Cruzinha, focalizadas nos três eixos de estudo, ou seja, a gestão de apoios à habitação social, a mobilização e distribuição de água e a educação e formação, complementados, no entanto, com mais alguns eixos, que se revelam, à luz da percepção das populações locais, ter um papel importante no processo de desenvolvimento daquelas localidades. A partir dessa análise pudemos verificar que as dinâmicas dos actores sociais, sobretudo as que se desencadeiam em torno dos três eixos acima referidos, têm-se consubstanciado num importante impulso à melhoria das condições de vida das famílias locais, devido, em parte, ao envolvimento das populações locais e à capacidade dos seus protagonistas na mobilização dos recursos. Vimos, além do mais, que tais dinâmicas ocorrem tendo em conta o grau de interesses que os protagonistas definem num dado espaço territorial e simbólico e que as ADC conquistam, em todo o processo de desenvolvimento das suas localidades, um espaço central e, vimos ainda que as dinâmicas dos actores sociais ocorrem ancoradas, em contextos e momentos bem precisos, em práticas de carácter assistencialista devido à racionalidade que os actores imprimem às suas acções tendo em conta a defesa dos interesses específicos de cada um. Para este capítulo objectivamos compreender as dimensões, os sentidos e as vicissitudes das dinâmicas dos actores sociais no processo de transformação no espaço social rural em Santo Antão a partir da análise das condições de participação dos actores sociais nesse processo, das lógicas que os actores imprimem às suas dinâmicas e da natureza dos conflitos que emergem dessas lógicas e práticas, como factores fundamentais da mudança social que se tem verificado nesses espaços sociais nas duas últimas décadas. Neste sentido, vamos, num primeiro momento, focalizar a reflexão na análise da participação social dos actores sociais endógenos, designadamente as famílias e as ADC, como também procurar compreender o sentido da relação que estes actores, particularmente as ADC, estabelecem com os actores sociais exógenos a partir da qual emana os partidos políticos, no bojo das suas dinâmicas. Na sequência da análise desses dois aspectos procuraremos discutir os elementos que devem integrar a abordagem da

315 participação social das famílias e das ADC no processo de desenvolvimento das suas localidades. No segundo momento, vamos centrar a atenção na(s) lógica(s) que orienta(m) o sentido das dinâmicas dos actores de acordo com os níveis de actuação de cada um. Neste sentido, vamos em primeiro lugar analisar as lógicas das famílias, em segundo lugar a das Organizações da Sociedade Civil (OSC) e, em terceiro lugar, centraremos a reflexão nas lógicas dos actores sociais exógenos, mais concretamente os que representam os dois níveis de poder político, entre os quais o municipal e o nacional. Por último, vamos nos ocupar dos conflitos que resultam da confrontação das lógicas imanentes às dinâmicas dos diferentes actores em função das dimensões em que se enquadram, isto é, por um lado as dimensões económicas e sociais e, por outro, as políticas e ideológicas, na sequência das quais vamos reflectir sobre a natureza dos mecanismos de regulação dos conflitos.

2. As dimensões da participação dos actores sociais endógenos no processo de desenvolvimento local

Na abordagem que fizemos no capítulo anterior sobre as dinâmicas de actores sociais, deixámos claro que as famílias e as Associações de Desenvolvimento Comunitário (ADC) desempenham um papel importante no processo de desenvolvimento das suas localidades. Com base nisso pudemos, inclusivamente, dizer que estes actores sociais não são um simples suporte (“marionetes”) da estrutura em benefício dos quais são desencadeadas as múltiplas acções, como por vezes parecem ser num processo de desenvolvimento local orientado pelos princípios da globalização (Moraes e Schneider: 2011). Antes pelo contrário, os actores sociais endógenos, constituídos pelas famílias e ADC locais, contribuem com as suas acções e estratégias, assentes em sabedorias, experiências e racionalidades (re) produzidas localmente e ao longo da vida, para a transformação das suas localidades. Assim, referindo-se particularmente às ADC, dissemos que estas se afirmam como motores das mudanças sociais no meio rural, emprestando o conceito a Jacob e Delville (1994). Esta é, de resto, um aspecto retido na conclusão desse capítulo. Dizer que as famílias e ADC desempenham um papel importante no processo de desenvolvimento local pode parecer, à primeira vista, uma afirmação corriqueira. Sublinha-se, no entanto, que este facto constitui o ponto de partida para a discussão

316 deste conceito e para a compreensão do alcance da participação desses actores sociais no processo de desenvolvimento local, particularmente no meio rural da ilha de Santo Antão, num contexto de interesses similares, por um lado, e diferenciados, por outro. E é, para já, um dos desideratos centrais que procuramos prosseguir com o desenvolvimento deste ponto. Antes, porém, importa definir os limites teóricos do conceito de participação social e, a partir daí, analisar as suas dimensões no que diz respeito às famílias e ADC pertencentes aos espaços sociais rurais em causa. Assim, refira-se, para já, que existem, como se compreende, várias esferas de participação. Referimo-nos concretamente às esferas sociais, económicas, políticas, culturais, religiosas e simbólicas, cientes de que as fronteiras entre elas, por vezes, se sobrepõem, uma situação que, de resto, justifica o facto de haver inúmeras interpretações referentes a cada uma. E quanto a isso, impõe dizer que uma perspectiva de análise da participação social se centra no objectivo de promover a melhoria das condições de vida das populações, defendida por Henriques (1987), Friedmann (1996), Singer (2000), Amaro (2003) e Laurent (1995), colocando ênfase nas abordagens centradas em ideias como bottom-up, empowerment, negociação, parceria, cidadania, solidariedade, entente, etc. Outras se centram no objectivo de distribuição do poder e, consequentemente, na autonomia das localidades referenciadas, como são os exemplos de Castro (1991), Lachaume (2003), Auby (2006), Prats (s/d) entre outros. Existe, no entanto, um ponto de vista comum em todas estas perspectivas, assente numa ideia defendida por Alícia Ziccardi, citada por Milani (2008: 574), de que,

a aplicação do princípio participativo pode contribuir na construção da legitimidade do governo local, promover uma cultura mais democrática, tornar as decisões e a gestão em matéria de políticas públicas mais eficazes.

Voltando à ideia em relação à qual as famílias e as ADC desempenham um importante papel no processo de desenvolvimento e com base em considerandos teóricos que se lhe seguiram, vamos centrar a análise nas condições da participação desses actores sociais, ou seja, ver qual é o alcance de sua participação neste processo. Para isso, é necessário, antes de mais, recorrer ao contexto socioeconómico e político que serve de base à participação das famílias. Neste sentido, de referir, então, que as famílias do meio rural cabo-verdiano enfrentam no seu dia-a-dia um vasto conjunto de

317 problemas e as três localidades que serviram de base à nossa investigação (Lagoa, Ribeirão e Cruzinha) espelham, em grande medida, o contexto geral dos modos de vida na ilha se Santo Antão. A questão sobre a caracterização da ilha de Santo Antão, particularmente das três aldeias, foi amplamente tratada ao longo do primeiro, terceiro e quarto capítulos, pelo que vamos apenas recapitular alguns aspectos que nos parecem ser essenciais para a compreensão do alcance da participação desses actores sociais. Assim, partimos da ideia segunda a qual as famílias circunscritas nessas localidades vivem basicamente de agricultura de sequeiro e, em alguns casos (Ribeirão e Curral de Mocho, esta última situada nas proximidades de Cruzinha), da agricultura de regadio, ambas altamente condicionadas pela irregularidade das chuvas e, no caso da agricultura de regadio, pela escassez ou elevado preço de produção de água, pelas pragas e doenças fitossanitárias, para não falar do problema de escoamento dos produtos. Em Lagoa e Ribeirão, as famílias associam a prática de agricultura à criação de gado caprino, fundamentalmente. Já em Cruzinha, a actividade económica dominante é a pesca artesanal, condicionada pelas condições da costa, fazendo com que esta actividade se desenvolva apenas durante um período que ronda os seis meses. Ainda em relação à pesca, podíamos referir vários outros constrangimentos que as famílias de Cruzinha enfrentam, que vai da carência de meios de produção, passando pelo escoamento e mecanismos de conserva, em caso de haver excedente. Além destas actividades, as famílias recorrem ainda ao emprego público e outros trabalhos assalariados, designadamente no domínio de agricultura, como estratégias de reprodução das suas condições de vida. De salientar ainda que, em certos casos, mas com maior incidência para a Lagoa e Cruzinha, as famílias vivem em situações de acentuada precariedade que se reflectem nas mais variadas dimensões, como por exemplo, habitação pouco condigna, escassez de água, alimentação deficiente, dificuldades de acesso aos cuidados de saúde, etc. 210 Mas, mais ainda, há, por vezes, um sentimento de abandono, como se pode perceber pela opinião expressa pela Eleonor.

Os governantes aparecem em Cruzinha só em altura de campanha. Depois da Campanha nunca mais aparecem. Os únicos que aparecem sempre são os da Câmara Municipal. O

210 Remetemos para os dados do QUIBB e ao Relatório do Diagnóstico da Pobreza em Cabo Verde, versão revista em Novembro de 2004.

318 presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande aparece sempre. Nunca vimos o presidente da República e Primeiro-ministro em Cruzinha. Estes aparecem só em tempos da campanha.

Face a situações de carência e de sentimento de uma relativa ausência do Estado, não lhes resta outra alternativa se não fazer-se pela vida, um termo que ganha sentido a partir das mais variadas práticas sociais que estes actores produzem no quadro das suas estratégias de vida, como aliás vimos anteriormente, designadamente, a poupança, solidariedade social e entreajuda, o recuso a jobs, expediente e desenrasque, busca de trabalhos de base não contratual e mobilização, quando possível, das remessas de familiares (e) migrantes e opção pela (e) migração. Alguns autores, como Lamounier (1989), têm defendido que é muito difícil alcançar-se um nível consolidado da democracia em contextos de acentuada desigualdade social, resultante da desigual distribuição de rendas e num quadro institucional de poder político centralizado. Com base nisso, assumimos então que as condições sociais de (sobre) vivência das famílias do meio rural representam determinantes fundamentais à participação social destes actores no processo de desenvolvimento das suas comunidades. Importa desde já referir que as práticas sociais acima mencionadas encontram-se ligadas não apenas aos contextos sociais, económicos e culturais mas também à especificidade de um campo de acção e de interacção social marcado por um contexto político em que se sobressai a relativa “juventude” da democracia cabo-verdiana. Aliás, vários discursos proferidos pelos principais actores políticos nacionais, bem como de cientistas políticos têm pautado pelo reconhecimento de existência de algumas fragilidades no sistema democrático que vigora no país. Pedro Pires, antigo Presidente da República, afirmara, ainda durante o exercício das funções presidenciais, que o espaço político cabo-verdiano tem sido, ao longo destes anos, atravessado por fissuras profundas onde se têm acumulado persistentes tensões que urge atenuar 211. Suzano Costa, numa entrevista concedida ao Semanário Expresso das ilhas, explicitara que, não obstante o país ter tido um percurso notável em matéria de consolidação da sua democracia, isto comparativamente a vários outros países africanos, persiste ainda algumas debilidades, fragilidades e disfuncionalidades características de um regime

211 http://www.panapress.com.

319 democrático em processo de maturação política 212. Ainda na esteira da análise do contexto político nacional, Roselma Évora (2009: 215) segue pelo mesmo diapasão defendendo que a democracia cabo-verdiana [

não é ainda uma democracia consolidada, pois percebemos que não existe equilíbrio de poderes e o desempenho do legislativo é ineficiente, aspecto considerado indispensável para se iniciar o processo de consolidação da democracia] razão talvez porque fala da necessidade de se democratizar a democracia cabo- verdiana. E ao recorrer a vários autores para sustentar que, [

a consolidação de um regime democrático pressupõe uma situação de estabilidade das regras do jogo e uma competição política feita num ambiente de legalidade e de cooperação entre os actores políticos (Évora, 2009: 213)] a ideia de democratizar a democracia cabo-verdiana parece assumir uma perspectiva que contraria certos discursos proferidos internamente e que se situam num campo oposto, isto é, que apontam Cabo Verde como o exemplo da democracia em África. Ora, este contexto político parece reflectir no quotidiano das famílias do meio rural, particularmente no âmbito das dinâmicas que os actores produzem neste espaço social, pois elas são motivadas por uma complexa teia de interesses desses actores sociais. Nesta perspectiva, é de salientar então que a interacção entre os actores no quadro das múltiplas dinâmicas que analisamos anteriormente processa-se fundamentalmente, num expressivo comprometimento, por um lado e, por outro, nas expectativas que cada um coloca em relação ao comportamento do outro, algo que corrobora uma das premissas centrais da teoria dos jogos, segundo a qual, os actores ao agirem levam em consideração as acções de outros actores. Por isso, o destino de um actor depende não só das suas próprias acções, mas também das acções dos outros (Turner, ed. 2002: 272). A título ilustrativo, Horácio, um dos nossos entrevistados, dá-nos conta que,

Quando, alguma instituição dá apoios, na sequência disso, os seus representantes pedem votos para os seus partidos. Mas, fazem-no discretamente. Em épocas de campanha oferecem sacos de cimento, ferros etc. e em troca pedem votos. Normalmente os políticos quando oferecem uma coisa pedem logo outra coisa em troca. Mas, como disse antes, eles fazem-no discretamente. São as pessoas que recebem as coisas é que ficam a falar que receberam.

212 Suzano Costa, politólogo e investigador da Universidade Nova de Lisboa, entrevista ao jornal on line Expresso das ilhas 14-2-2010.

320

Na sequência disso, Edmundo disse-nos ainda que,

há muitas pessoas que recebem dinheiro, materiais de construção durante as campanhas eleitorais. Todos sabem disso. Ás vezes um grupo político ou partido político quer apoiar uma determinada pessoa mas outras pessoas dizem que não, porque ela é contra este ou aquele partido.

É, aliás, partindo desse pressuposto central das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento que achamos que os actores políticos se sentem, em certo sentido, limitados para solicitarem apoios, no contexto de disputa política, às famílias de uma dada comunidade, onde não desenvolveram políticas públicas que as beneficiem directamente (Jesus, 2011). Neste sentido, certas acções que ali são levadas a cabo são orientadas para responder pontualmente as necessidades mais prementes das populações devido às pressões que as famílias, primeiro, e ADC, depois, os colocam. A este propósito, a afirmação do Raimundo parece ser bastante elucidativa. A um dado momento da nossa conversa faz a seguinte consideração: o Presidente da Câmara Municipal vai ter que fazer alguma coisa na nossa zona porque o período de campanha está-se a aproximar e as pessoas costumam cobrar. As práticas acima descritas ocorrem com maior ou menor intensidade, quanto mais se aproxima ou não de um período eleitoral. Trata-se de uma estratégia dos actores exógenos, designadamente os que actuam no campo político, que de resto está perfeitamente integrada na estrutura cognitiva das famílias do espaço social rural. Nesta perspectiva, os actores endógenos percepcionam o contexto eleitoral como uma oportunidade para se apropriarem de certos recursos que em outras circunstâncias teriam mais dificuldades em acede-los e, concomitantemente, os actores políticos percepcionam-no como oportunidade para capitalizarem os apoios necessários que lhes permitam assegurar ou conquistar a posição dominante. São, ao fim e ao cabo, atitudes e comportamentos que se processam centrados numa expressiva lógica de maximização de ganhos. A este respeito, Blau (1964) explica que a interacção entre indivíduos numa colectividade ocorre tendo em conta a expectativa que os actores colocam em termos de maximização das recompensas materiais e redução o mais possível de eventuais custos ou perdas. É de salientar que neste campo de jogo, algumas famílias demonstram um grande poder e capacidade negociais junto dos protagonistas, pois, aquilo que dispõem para trocar é

321 por eles percepcionado como sendo de grande valor e, mais ainda, quando o assunto em questão tem uma ligação directa com sua estratégia privilegiada de vida (Jesus, 2011). Vistas as coisas por este prisma, as famílias ganham então uma certa autonomia na influenciação da definição do rumo das decisões que os actores sociais, que concretizam as políticas públicas, tomam em relação a assuntos que lhes dizem respeito directamente. Como temos vindo a dizer, esta relativa autonomia constitui um mecanismo importante de indução das dinâmicas de desenvolvimento da sua localidade (Jesus, 2011). Aliás, os meandros da execução do projecto de execução do furo, bem como a implementação do sistema de micro-irrigação em Ribeirão, os programas de apoio ao transporte escolar em Cruzinha e de promoção do emprego público em Lagoa reflectem claramente esta ideia. É, por exemplo, nesta óptica, que Friedmann (1996:32) afirma que, o empowerment da população na sua comunidade permite reequilibrar a estrutura de poder na sociedade, tornando a acção do Estado mais sujeita a prestação de contas, aumentando os poderes da sociedade civil na gestão dos seus próprios assuntos (…). Neste sentido, apraz-nos dizer que a lógica de troca acima referida que, de resto, sustenta o processo da consolidação das OSC em Cabo Verde, se afirma, em certas circunstâncias, como alavanca de transformação do espaço público nacional, regional e local, um assunto que analisaremos mais adiante de forma mais pormenorizada. Além do mais, a lógica de interacção em questão define as famílias como grupo de interesse para onde conflui parte substancial das dinâmicas encetadas pelos demais actores e, por conseguinte, os efeitos dessas dinâmicas nem sempre têm um carácter universalista. As famílias, individualmente ou através das ADC das suas localidades, apercebendo-se da hegemonia desta regra do jogo, procuram definir os principais domínios de actuação, tendo em conta os seus próprios interesses, previamente calculados. De outro lado, os actores exógenos, perante um conjunto de interesses e apercebendo-se das prioridades das famílias, procuram conduzir as suas dinâmicas nessa direcção, isto é, no de responder pontualmente as expectativas que elas criam no espaço dessa interacção. Nesta óptica, as acções que, no domínio discursivo, deviam servir para criar condições sustentáveis do desenvolvimento de uma determinada localidade, acabam por reproduzir as condições de exclusão e de desigualdades, quanto mais não seja, porque, nem todas as famílias dispõem da mesma capacidade para tirar partido desse jogo. A propósito disso, Ivaldo Gehlen (2004), numa análise que fez sobre as transformações ocorridas no

322 meio rural brasileiro, procurou demonstrar que, embora se reconheça que as políticas públicas voltadas para o engendramento da participação social das populações deste espaço social tenham provocado mudanças, elas tendem, no entanto, a fortalecer os que apresentam racionalidade “moderna” e centrada na ética do trabalho e da competitividade, apropriando-se das melhores chances. As desigualdades de oportunidade decorrentes da lógica de troca que sustenta as dinâmicas dos actores sociais encontram-se espelhadas nas três localidades de várias formas: Durante os períodos em que permanecemos nessas comunidades, deparamos com famílias que vivem em situações de extrema dificuldade e que, apesar disso, dizem não terem sido contempladas por nenhum programa de apoios desencadeado nas suas respectivas localidades. Pudemos ver também que, de entre estas famílias, algumas, como a do senhor Bibino, se auto-excluem. Numa conversa pedimos a sua opinião sobre a importância das ADC no processo de desenvolvimento da sua localidade e ele reagiu desta forma:

Eu não sei nada da associação nem dos partidos. Me interessa mais cuidar dos meus “bichos” e procurar sustento para a minha família. Vivo nesta aldeia há 43 anos e não me lembro de ter recebido um apoio vindo de quem quer que seja. (…) Você pergunta porquê? Essa gente se preocupa mais com ela própria que com o povo.

Um outro exemplo é o da dona Julinha que disse:

Já pedi apoio várias vezes à associação e nunca fizeram caso. Já pedi tanto que desisti de pedir. Costumam vir cá pessoas a procurar saber sobre a situação da minha família depois dizem que voltam mas na verdade nunca voltam. Já apoiaram pessoas que vivem em condições melhores que a nossa. Ou seja, eles só apoiam aos ricos. Preferem dar casa exactamente àquelas pessoas que tem casa.

A forma como as pessoas falam da sua exclusão (expressa nos seus discursos através da termo “descriminação”) do sistema de apoios deixa, por vezes, transparecer algum desinteresse em relação àquilo que acontece na sua localidade e deixa, de igual modo, transparecer a ideia de que certos actores sociais actuam para beneficiar apenas um certo grupo de pessoas. Muitas vezes, discursos como os do Bibino e da Julinha estão associados a outras categoriais de estratégias que as famílias adoptam para terem acesso aos recursos, ou mais concretamente às “ajudas” ou “apoios” que integram as acções dos actores sociais postas em prática nas localidades. Estes mesmos discursos podem ser vistos por um

323 ângulo completamente distinto. Isto é, podem ser adoptados como uma estratégia de manipulação do investigador na condição de este ser percepcionado pelas populações locais como um actor exógeno, logo passível de ser manipulado na expectativa de poder tirar algum ganho disso. Não obstante, está por detrás desse sentimento uma certa desconfiança em relação às instituições públicas e, perante isso, elas abdicam-se de participar na vida das suas comunidades. Ou seja, na sequência do que disse Ivaldo Gehlen (2004), determinadas pessoas não possuem as mesmas capacidades de apropriação dos recursos públicos, a partir de um campo de jogo e de troca na qual se procedem as dinâmicas dos actores sociais. As desigualdades de oportunidades expressam-se também através da composição dos órgãos de direcção das organizações da sociedade civil, particularmente nas ADC. Basta ver que a direcção das associações das três localidades é assegurada, na grande maioria dos casos por homens, e isto vai na linha daquilo que se verifica a nível nacional. A masculinização das organizações da sociedade civil reflecte-se também na liderança das ONG a nível nacional. Das cerca de 80 organizações da sociedade civil cabo- verdianas, com a natureza jurídica de ONG, Liga e Fundação inqueridas pela Plataforma das ONG de Cabo Verde entre Junho de 2006 e Março de 2007, apenas 24 (30%) eram na altura lideradas por mulheres. Constata-se, pois, uma efectiva e importante desigualdade em termos das relações de género em termos de acesso aos órgãos de decisão das ADC. Mas ainda, em relação a Santo Antão, Rogeri at al (1994) haviam referido que a exclusão das mulheres se manifestava de forma bem evidente. Segundo esses autores,

as mulheres de Santo Antão não são muito envolvidas nas discussões relacionadas com o desenvolvimento ou no processo de desenvolvimento. Pode-se referir, por exemplo, ao baixo número de mulheres nas assembleias municipais.

Rogeri e outros referiram, no entanto, que a problemática da mulher em relação ao desenvolvimento de Cabo Verde é uma preocupação do Governo central e do governo local, mas que contudo (…) as actividades em favor das mulheres ainda não estão bem concretizadas (Rogeri et al, 1994: 98). Neste sentido, pode-se dizer que não obstante acções que se inserem nos programas de desenvolvimento, seja de âmbito nacional, regional e local, seja decorrentes de estratégias dos partidos políticos, esta questão constitui, para o processo de desenvolvimento de Cabo Verde, um problema que merece ser reflectido. A propósito

324 disso, Eurídice Monteiro (2009) afirmou de forma peremptória que Cabo Verde apresenta um acentuado défice de participação das mulheres, particularmente no domínio político, com ramificações a outros domínios da vida pública. Refira-se ainda que as desigualdades de oportunidade expressam-se nas dinâmicas dos actores sociais nas três localidades, através da limitação do acesso dos mais jovens à condição de membros das associações locais. Raimundo diz-nos que as associações da sua localidade têm poucos jovens, porque,

elas se fecham muito. Não abrem acesso aos jovens. Os dirigentes não deixam os jovens entrar porque eles têm poucas habilitações e os jovens já são mais esclarecidos. Logo, se abrirem podem perder a liderança das associações. Eu não participo nessas coisas porque eles podem pensar que vou para lá contrariá-los ou mesmo tomar os lugares deles. Mas é preciso dizer que não é fácil entrar-se lá.

A prática de limitação de acesso à associação enquadra-se no sistema de estratégias que se imprimem à luta pelo acesso aos recursos. Centrando-se agora nas organizações da sociedade civil, particularmente as ADC, de sublinhar, em primeiro lugar, que é inegável que estes actores têm tido um papel importante no processo de desenvolvimento local, o que foi demonstrado no capítulo quarto. Aliás, mais do que os resultados das suas dinâmicas nos vários eixos analisados, as percepções das famílias nas três localidades corroboram claramente esta ideia. Além do mais, a representação social que se constrói sobre o desenvolvimento local ou comunitário no espaço social rural e não só, (na medida em que é uma vertente central do discurso) integra sempre a importância destes actores. Vejamos alguns exemplos: Patrick, um jovem com 22 anos, reconhece que a associação na minha opinião é aquela que tem trabalhado mais para a comunidade. Contudo, não sei agora que organismo que mais a apoia nas suas realizações. Maria de Fátima, Presidente de Associação das Mulheres de Cruzinha, diz a este propósito que,

Hoje, como sabe, tudo depende do associativismo. Pensamos que, se as mulheres estiverem associadas, já podem participar melhor nos assuntos da comunidade e assim também poderão melhorar as suas condições de vida, devido a projectos que se desenvolve na comunidade.

Nesta mesma linha António Carente, Presidente da Associação dos Amigos de Ribeirão/Campo de Cão (Ami-Ribeirão) diz que,

325

uma comunidade sem associação não tem desenvolvimento. Só haverá desenvolvimento local quando participarmos (as associações de desenvolvimento comunitário) na discussão à volta da elaboração do orçamento da nossa Câmara Municipal e do próprio estado.

Durante a entrevista com Vera Almeida, presidente da Câmara municipal de Paul ela se refere à importância das ADC desta forma:

Para mim, as associações locais são elementos indispensáveis a um processo de desenvolvimento local. E é porque tenho esta convicção que incito o governo a apoiar as associações que trabalham em prol do desenvolvimento da sua comunidade

A um outro nível, ainda sobre as ADC, José Maria Neves, Primeiro-ministro de Cabo Verde, refere que

nas minhas frequentes visitas aos diferentes pontos do território nacional (…), vejo que há associações em todo o lado, mesmo nas localidades mais recuadas, preocupadas em estimular a participação das populações no processo de desenvolvimento local (…). Mais, as associações de desenvolvimento comunitário têm sido um factor importante de participação das populações. Nesse sentido, podemos então considerar que estão a dar um importante contributo para a verdadeira descentralização, cuja finalidade última é o envolvimento das populações nos assuntos que lhes dizem respeito 213.

Estas opiniões reforçam ainda mais o que temos vindo a salientar. Quanto à participação social destes actores, ela ocorre na mesma lógica definida para as famílias, pese embora o facto de, em relação às ADC, esta participação assumir uma complexidade maior na medida em que, em certo sentido, as ADC actuam num espaço de intermediação e por vezes de regulação da interacção entre as populações locais e os actores sociais exógenos, designadamente aqueles cujas acções são, de certa forma, uma extensão do poder político local e central, ou mesmo dos partidos políticos. Esta ideia associa-se, na nossa opinião, a um aspecto central da análise das dimensões das dinâmicas de actores que tem a ver com o impacto da relação que se estabelece entre os diferentes actores sociais no redimensionamento do espaço político.

2.1 A interdependência entre os actores e o redimensionamento do espaço político no meio rural

213 Discurso proferido na cerimónia de abertura da II Mesa Redonda dos Parceiros da ONG e Associações Cabo-verdianas, realizada na Praia entre os dias 22 e 25 de Setembro de 2008, organizada pela Plataforma das ONG de Cabo Verde.

326 Os dados produzidos no decorrer do processo de pesquisa no terreno permitem-nos dizer com alguma segurança que existe uma estreita relação entre as ADC representadas pelos seus principais dirigentes e os demais actores sociais, designadamente as autarquias locais e os Serviços Desconcentrados do Estado representados pelos seus responsáveis directos. A relação que se dá entre as ADC e os Serviços Desconcentrados do Estado abrange, em certas circunstâncias, outros níveis, isto é, organismos centrais do Estado representados pelos governantes no âmbito de execução dos respectivos programas. Trata-se de uma relação que se desenvolve com base em princípios de parceria, cooperação e de participação social da sociedade civil, em que cada actor assume um papel específico. Importa, contudo, traçar um olhar a uma perspectiva de relação entre esses actores que emerge, por exemplo, em contextos eleitorais. Neste contexto específico, a relação anteriormente examinada extrapola-se para o campo político, na medida em que surgem os partidos políticos que, dadas as estratégias de luta a eles inerentes apropriam-se, durante certos períodos, da relação anteriormente construída. Posto isto, examinemos agora de que forma se constrói esta relação e em que medida ela determina o redimensionamento do espaço político nas localidades do meio rural. Comecemos então por dizer que da nossa base de dados constam entrevistas efectuadas aos dirigentes e antigos dirigentes das ADC. Foram entrevistados oito presidentes sendo que, de entre eles, seis pertencem às três localidades analisadas. Os presidentes de três das seis ADC disseram, de forma explícita, que são militantes activos do Partido Africano de Independência de Cabo Verde (PAICV) e que participam activamente nas actividades político-partidárias desse partido nas suas localidades. Em duas situações, pese embora os presidentes nunca tivessem dito que eram militantes de um ou de outro partido político, pudemos apurar que, no entanto, participam activamente nas actividades partidárias do Movimento para a Democracia (MpD), designadamente nas campanhas eleitorais que são efectuadas nas suas localidades. Mas, mais do que isso, pelo menos um deles já integrou a lista para as eleições autárquicas desse partido. Em relação a outra associação, na entrevista com um ex-presidente de direcção, este confessou-nos que, durante um certo período do seu mandato, foi “apoiante” do MpD mas, numa outra altura, passou a apoiar o PAICV. O actual presidente desta associação

327 deixou-nos saber que foi militante do MpD, depois passou a militar no Partido da Renovação Democrática (PRD) 214. Mais tarde, integrou a equipa de campanha eleitoral da candidatura de Pedro Pires à presidência da República em 2006, apoiada pelo PAICV. Mas, nas eleições legislativas de 2011, ele voltou a integrar grupos de campanha do MpD. Está-se perante múltiplas formas de relações entre ADC, através dos seus principais dirigentes, e os partidos políticos, que se manifestam (ou não) de forma mais evidente durante os períodos eleitorais, pois enquanto uns assumem a militância ou o apoio a um determinado partido político, outros procuram ocultar os vínculos relacionais com um ou outro partido político ou ainda com todos os partidos políticos. A natureza desta relação depende de um vasto conjunto de factores inerentes à avaliação de ganhos que os dirigentes associativos fazem sobre uma determinada opção. E, talvez por causa disso, a percepção sobre os ganhos que se pode alcançar a partir da (não) relação com um ou mais partidos políticos está sujeita a mudanças. Ou seja, esta relação pode assumir várias orientações em vários contextos ou pode ainda não existir. Seja como for, a relação entre as ADC e partidos políticos é percepcionada de forma diferenciada por uma parte substancial de pessoas com as quais conversámos nas três comunidades. De salientar que, no entanto, algumas pessoas, perante a questão sobre se existe alguma ligação entre as ADC e partidos políticos, dizem preferir não comentar ou dizem simplesmente “não sei nada disso”, mas de uma forma que deixa transparecer que este é um assunto um polémico. Esta situação pode suscitar várias leituras. Uma delas pode centrar-se na ideia de que essas pessoas sabem que os partidos políticos interferem ou buscam interferir nas associações das suas comunidades mas, que, no entanto, não o revelam para não condicionarem as suas estratégias de apropriação de recursos, que muitas vezes se encontram associadas às acções de um ou outro actor. A consciência de que uma hipotética interferência dos partidos políticos na vida das ADC pode consubstanciar-se numa desvantagem para a comunidade é, por ventura, construída a partir dos discursos dos vários actores sociais pertencentes a vários quadrantes. Esse discurso se repete em torno da ideia de que há incompatibilidades entre o associativismo e a política e que portanto, uma eventual relação contribui negativamente no processo de desenvolvimento das comunidades e de autonomização

214 Esse partido foi fundado em 2000 na sequência de uma cisão ocorrida no seio do MpD e actualmente encontra-se fora da competição política

328 das ACD. Aliás, as opiniões de Nataniel são a este título bem eloquentes ao afirmar que a política não entra na nossa associação. Se metermos política na associação e na cooperativa então é o fim para tudo, ou do Presidente da Cooperativa de Consumo de Lagoa e Compainha para quem

uma associação deve trabalhar para resolver os problemas das populações e não apoiar os partidos políticos. Deve inventariar os problemas das pessoas e procurar junto das autoridades competentes resolver esses problemas.

A relação entre certos dirigentes das ADC e os partidos políticos parece evidenciar-se também no exercício que fazem sobre os ganhos que as suas localidades conheceram nos últimos 20 anos. Há uma certa tendência para os dirigentes próximos ao PAICV associarem as transformações verificadas nas suas localidades aos feitos dos governos dos últimos dez anos. Já os que se situam próximos MpD ligam essas mudanças invariavelmente à governação deste partido que decorreu entre 1991 e 2001, ou às acções das Câmaras Municipais, uma vez que as três localidades encontram-se integradas nos municípios do Porto Novo e da Ribeira Grande, cujas Câmaras Municipais são lideradas por pessoas desse partido. Sobre a interferência dos partidos políticos nas ADC, iremos centrar agora a análise nas opiniões que os três presidentes das Câmaras Municipais de Santo Antão formularam sobre o assunto. Orlando Delgado, Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, reage desta forma:

A Câmara Municipal relaciona-se muito bem com as associações comunitárias de base e com outras formas de organização da sociedade civil. Mas é preciso dizer claramente que existem associações do PAICV e outras do MpD. Apesar disso procuramos relacionar com todos.

Já Vera Almeida, Presidente da Câmara Municipal do Paul emitiu a seguinte opinião:

Sobre a politização ou partidarização das associações? Sei que se fala muito nisso e acredito que isso acontece. Mas devo dizer-lhe que no Paul isso não acontece. Já financiei vários projectos às associações, cujos líderes são do partido diferente do meu.

Para Amadeu Cruz, Presidente da Câmara Municipal do Porto Novo,

329 as associações, designadamente aquelas que não são partidarizadas, têm contribuído muito para o desenvolvimento local. Mas é nítido que as associações têm perdido influência no sistema de participação no processo de desenvolvimento. Elas fogem ao controle das instituições públicas, designadamente do tribunal de contas, por isso têm estado a perder confiança no seio da sociedade. Têm perdido dinâmicas.

São reacções diferentes como se pode ver, na medida em que cada um coloca ênfase num aspecto específico de relação entre o associativismo e o poder político, mas parece que todos (uns de forma mais explícita que outros) têm a percepção que os partidos políticos interferem estrategicamente nas associações. Essa interferência dos partidos políticos nas ADC, que no campo de luta política entre os partidos é identificada como fenómeno de “politização” ou “partidarização das associações” inscreve-se, como já dissemos, numa estratégia que os primeiros traçam como mecanismo de mobilização de capitais políticos que nuns casos permite consolidar a posição dominante e noutros possibilita o acesso a essa posição. Neste sentido, o associativismo é eventualmente percepcionado pelos protagonistas políticos como um espaço privilegiado de mobilização de certos capitais políticos necessários ao cumprimento dos objectivos eleitorais. A título de exemplo refira-se que, dois dos líderes associativos com os quais conversámos expressaram de forma evidente esta ideia e todos consideram que as associações podem desempenhar um papel fundamental na definição e concretização das estratégias dos partidos políticos. Nesta mesma linha argumentativa, de salientar também que pudemos constatar a existência de materiais de propaganda política de um determinado partido político numa sede de uma determinada associação local e em reacção à questão sobre se estaria disponível para aceitar que outros partidos políticos colocassem na sede da sua associação esses mesmos materiais para a divulgação a resposta foi que sim. No entanto, ressalva dizendo, só que os outros partidos não me pedem para fazer isso, exactamente porque esses, se calhar, têm o sentimento de que esse líder associativo se encontra ao serviço de um determinado partido. Não obstante, quando um líder que se assume como militante de um partido admite receber materiais de propaganda de partidos adversários, como de resto pudemos verificar, parece estar subjacente a ideia de que os dirigentes associativos percepcionam os partidos políticos como um espaço privilegiado de mobilização dos recursos numa determinada circunstância, particularmente em períodos eleitorais.

330 As percepções que cada actor social (neste caso as ADC e os actores exógenos aqui representados pelos Serviços Desconcentrados do Estado e Autarquias locais) constrói sobre o outro no quadro das relações que estabelecem entre si resultam numa acentuada interdependência entre actores, uma situação que representa para as ADC uma nova oportunidade de acesso aos recursos, através das acções que são desencadeadas nas suas localidades, algumas das quais definidas pelas próprias ADC e pelas famílias locais. Portanto, decorrente desta interdependência emerge um vasto e complexo campo de manipulação fundado nos propósitos de luta pelos interesses específicos de cada actor. Mas mais do que isso essa interdependência revela a emancipação dos actores sociais endógenos resultado da crescente importância social e política que vêm tendo no processo de desenvolvimento das suas localidades. Este é, no entanto, um assunto que retomaremos mais adiante. A partir desta análise (relação de cooperação e de interdependência entre os actores sociais) e partindo de uma perspectiva centrada nos propósitos que orientam este trabalho parecem emergir dois aspectos relevantes, ambos relacionados com a mudança da lógica de participação desses actores no processo de desenvolvimento local e, consequentemente, com as transformações sociais no meio rural que se vêm construindo nas últimas duas décadas. O primeiro aspecto parte da ideia segundo a qual, as ADC parecem encontrar-se numa fase transitória que liga dois momentos da sua evolução. Isto é, um momento em que elas assumem como um mero espaço alternativo privilegiado da reprodução das condições de vida de um grupo de pessoas e um momento em que poderão vir a representar-se como um espaço de reprodução de estratégias colectivas de vida dotadas de capacidades técnicas, autonomia e liberdade que, por um lado, lhes permitem definir as bases de actuação dos actores exógenos, cujo efeito tem-se revelado importante na indução do processo de desenvolvimento integrado das suas comunidades e, por outro, lhes permitem exercer a necessária pressão sobre os poderes públicos para a sua adopção, assente num quadro negocial próprio, ou mesmo um espaço de questionamento sistemático da eficácia das políticas públicas particularmente aquelas orientadas para o desenvolvimento das localidades. Ou seja, um espaço onde, em vez de se limitarem a reagir a situações, procuram reproduzi-las, na mesma acepção da ideia do papel que é reservado aos novos actores sociais, defendido por Touraine (1996).

331 O segundo, parte da ideia, em relação à qual, essas mudanças têm tido um papel central no processo de redimensionamento do espaço político nacional. Isto é, as ADC parecem preencher um espaço, cujo carácter, não é de todo político porque dispensa qualquer orientação ideológica nem é completamente civil, porque elas precisam ancorar-se estrategicamente numa relação de cumplicidade com um e, por vezes, com vários actores exógenos, por vezes orientados por interesses opostos, como acontece com os partidos políticos, e através da qual podem reproduzir as condições da sua existência que se situam, portanto, no interstício entre a base popular e grupos dominantes. Isto é, preenchem um espaço na estrutura política tornando-se num tipo de actores, - para o qual ainda não dispomos de uma designação que pudesse designá-lo adequadamente – que, além de contribuírem activamente para o desenvolvimento das suas localidades, parecem ainda afirmar-se como um instrumento de emancipação das famílias do espaço social rural no palco do jogo político e desta forma contribuir para que os interesses dessas famílias façam parte integrante das estratégias dos actores exógenos, quaisquer que eles sejam e, consequentemente, terem um papel activo na definição de políticas públicas voltadas para responder as suas demandas.

2.2 Dos elementos analíticos da participação social das famílias e ADC

A participação social dos actores sociais no processo de desenvolvimento local no meio rural em Santo Antão encerra, assim, um vasto conjunto de elementos analíticos. Indicamos, em primeiro lugar, as condições de vida das populações que no caso das três localidades são caracterizadas globalmente por ocorrerem em situações socioeconómicas muito difíceis. Um factor que, como de resto vimos, condiciona a natureza da participação social. Em segundo lugar, podemos apontar o facto de o poder local no seu verdadeiro sentido, isto é, orientado pelos princípios básicos de um regime democrático, ter sido implementado há relativamente pouco tempo. Em terceiro lugar, podemos referir a um elemento que, aliás, tem ligação com o anterior, e que tem a ver com o facto de a ideia à volta do termo cultura participativa, centrada nos princípios democráticos, é recente e, por isso, assume um sentido discursivo que por vezes é contrariado pelas acções práticas.

332 Em quarto lugar, apontamos o facto de a lógica do exercício do poder político se basear num expressivo jogo de interesses de onde emergem situações de conflitos e intrigas permanentes mas que, contudo, nem sempre são manifestas. Em quinto lugar, indicamos as situações de exclusão social centradas nos jovens, mas principalmente nas mulheres. Em sexto lugar, podemos indicar a situação de bipolarização acentuada do poder político e a forma aguerrida como se dá a luta política. E, em sétimo lugar, podemos referir à descrença das famílias em relação aos agentes políticos, cuja retórica centra-se no propósito de resolver os problemas do povo, colocar os interesses do povo acima dos interesses pessoais, como atesta o desabafo do Sr. Gregório que diz que,

os políticos falam muito. Prometeram-me várias vezes que me ajudavam a reparar esta casa que chove muito, mas nunca apareciam. Já fui várias vezes a Câmara Municipal mas nunca me deram nada. Já me pediram muita papelada e apesar disso não dão nada.

Estes são os elementos que, de forma directa ou indirecta, estabelecem as bases de participação social e política dos actores sociais. A forma de pensar e de actuar dos actores sociais, sejam eles endógenos ou exógenos, que participam nas dinâmicas de desenvolvimento local é nitidamente orientada pelos propósitos de proporcionar as populações locais condições objectivas de bem-estar social e económico, mas é preciso ter em consideração que, em certos contextos, determinados actores propugnam as suas acções motivadas pela identidade político-partidária decorrente da natureza dos interesses específicos que caracterizam esses contextos. Tal prática tem como resultado a reorientação de estratégias das populações locais que, em certo sentido, são pautadas pela identificação ora com um ora com outro actor, ora com um e outro, conforme a avaliação das vantagens que podem tirar da sua opção de acção. Além do mais, as estratégias das populações locais, que emergem de um contexto específico das dinâmicas de actores sociais, assumem um vasto e complexo conjunto de sentidos que vão desde intrigas, manipulação e ocultação de reais condições de vida até mesmo um certo egoísmo, secundarizando, em certa medida, os propósitos de uma participação centrada nas possibilidades de um ganho colectivo. Com isto queremos dizer que, por um lado, a avaliação do índice de participação social dos actores sociais passa necessariamente pela compreensão das dimensões económicas,

333 políticas, sociais, culturais e simbólicas de toda a estrutura que suporta o quotidiano das pessoas e, por outro, as dinâmicas dos actores decorrem, em última análise, dos desejos construídos a partir de uma oportunidade, por vezes ilusória, criada pelos actores sociais, motivadas pela esperança de mudar a ordem das coisas, centrados numa determinada visão do mundo. Esta perspectiva de compreensão do quotidiano dos actores sociais, particularmente das famílias, é sustentada por Isabel Guerra (1993: 67) a partir da dimensão do imaginário social, entendido como (…) qualquer coisa que se inventa, quer se trate de uma invenção absoluta ou de uma deslocação dos sentidos que são reinvestidos de outras significações 215. Ou seja, prossegue a autora,

o imaginário é, ou poderá ser, um meio eficaz de visualizar o mundo futuro porque projecta no campo do real as possibilidades: permite, assim, detectar as contradições entre o que está e o que se deseja no campo das possibilidades do amanhã (Guerra, 1993: 67).

Vistas as coisas nesta perspectiva, a participação dos actores sociais endógenos é muito mais condicionada pela própria natureza do contexto do que pela imposição de uma percepção objectiva da construção de um espaço social.

3. As lógicas das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local

Uma vez examinadas as dimensões de participação dos actores sociais endógenos no processo de desenvolvimento local, vamos agora, com base no propósito de melhor compreender as lógicas das orientações das dinâmicas de desenvolvimento encetadas pelos diferentes actores sociais, tentar esmiuçar os aspectos que as engendram. Mas, antes de mais, tendo em conta o carácter polissémico do termo “lógica”, torna-se necessário definir o sentido segundo o qual, este termo é aqui considerado. A este propósito refira-se que, de acordo com a Enciclopédia Luso-Brasileiro da Cultura 216, o termo “lógica” é visto, do ponto de vista etimológico, por um lado como ciência do logos, entendida aqui como ciência da palavra e, por outro, como ciência do pensamento. A Enciclopédia em análise refere, no entanto, que a segunda definição é a que prevalece

215 Grifo no original. 216 Enciclopédia Luso-Brasileira da Cultura, Lisboa, Editorial Verbo, coordenação de António Pereira Dias de Magalhães, 12º vol. P. 428.

334 no uso corrente. Como ciência do pensamento, o termo “lógica” se assenta, em certa medida, no “cálculo” a partir do qual se infere a orientação de uma acção. Visto a partir deste prisma, este termo conquista um espaço na sociologia a partir da teoria de acção de Max Weber, na qual se definem quatro tipos de acção social, a saber: acção racional relativamente a fim (zweckratinal), acção racional relativamente a um valor (wertrational), acção afectiva ou emocional e acção tradicional (Weber, 1991). Trata-se de uma teoria fundada numa perspectiva hermenêutica da sociologia, vista aqui como uma ciência que deve centrar os seus propósitos na compreensão dos significados que os actores sociais imprimem à sua acção, uma perspectiva, aliás, adoptada ao longo do século XX pelo interaccionismo simbólico, a etnometodologia e a teoria da escolha racional, contrariando a perspectiva holística da sociologia concebida por Durkheim e Marx (Turner, ed., 2002), apenas para citar alguns exemplos. O sentido do termo “lógica” parece implícita, na forma como Weber define o seu primeiro tipo de acção, isto é, acção racional relativamente a fim (zweckratinal), entendendo-o como prática que decorre do uso da racionalidade na busca de melhores meios para se alcançar um dado objectivo (Weber 1991). Seguindo ainda as linhas de interpretação do programa weberiano, a teoria de escolha racional parte de um conjunto de três premissas fundamentais, no seio das quais se encontra implícita a ideia de lógica, centrada no Individualismo – partindo do princípio que são os indivíduos que, em última análise, desencadeiam acções, a partir das quais são engendrados os fenómenos macrossociais; na optimização – partindo da ideia de que as acções individuais resultam de uma escolha bem medida, no sentido de se alcançar os melhores resultados possíveis e, por fim, no autocentramento – na perspectiva de que as acções dos indivíduos são orientadas, tendo em vista o bem-estar individual em detrimento de um bem-estar colectivo (Turner, ed. 2002: 264). Com base nessas orientações teóricas, tomemos por “lógica das dinâmicas dos actores sociais” a racionalidade que os actores imprimem à sua acção num campo de interacção que se configura como um espaço de jogo, de onde procuram incessantemente tirar, de forma muito calculada, a maior vantagem possível, com reflexos ao nível individual e colectivo. Com isto, partimos para a análise das lógicas das dinâmicas do conjunto de actores sociais no processo de desenvolvimento local encetados nas três localidades, ancorados

335 num conjunto de aspectos centrais implicados no processo de transformação a que o meio rural conheceu nas últimas duas décadas. Um primeiro aspecto a reter para esta análise tem a ver com o facto segundo o qual as lógicas dos actores sociais decorrem de um vasto e complexo conjunto de acções e práticas que em certo sentido se encontram muito interligadas entre si, quanto mais não seja porque, como aliás procuramos demonstrar no ponto anterior e vamos retomar mais adiante, se encontram fundadas num vasto campo de troca de interesses. Um segundo aspecto centra-se na ideia de que o sentido que orienta as lógicas dos actores sociais tem engendrado, na esfera política nacional, um amplo debate em torno de dois conceitos fundamentais: o assistencialismo, por um lado, e a politização e/ou partidarização das dinâmicas dos actores sociais, por outro. Um terceiro aspecto a reter para esta análise resulta de uma perspectiva interpretativa da ideia anterior e assenta-se no pressuposto de que as bases que suportam as eventuais práticas de assistencialismo e politização e/ou partidarização das dinâmicas dos actores sociais são construídas, em última análise, a partir da capacidade dos actores sociais endógenos, em aproveitar um contexto específico de luta que se trava no campo político, para reproduzirem as condições de acesso e de apropriação dos recursos públicos. Ora, tendo em conta o carácter específico que por vezes define as lógicas das dinâmicas de cada actor e para a sua melhor compreensão, parece então ser necessário, para já, analisá-las separadamente.

3.1 As lógicas das dinâmicas das famílias

As lógicas das dinâmicas das famílias no espaço social em estudo encontram-se fundadas genericamente na reprodução e na melhoria das condições de vida e, nesta perspectiva, elas circunscrevem-se num conjunto multifacetado de dimensões, como de resto vimos anteriormente. Esta é, no entanto, uma premissa que começámos a esboçar quando examinámos as estratégias complementares de sobrevivência das famílias no meio rural, mais concretamente quando analisámos as ajudas e doações, por um lado, e jobs, expediente e desenrasque, por outro, como alguns de entre os diferentes mecanismos de reprodução das condições e melhoria de vida desses actores. As dinâmicas das famílias são basicamente orientadas pela busca de alternativas para conseguirem recursos que lhes garantam as condições mínimas de vida e, mais do que

336 isso, lhes permitam em certos casos manterem ou mesmo melhorarem a sua posição social e económica. As dinâmicas que têm sido desencadeadas pelos diferentes outros actores orientadas pelo desiderato de promover o desenvolvimento local nos últimos anos têm propiciado às famílias locais, vistas aqui como alvos dessas dinâmicas, em certo sentido, uma oportunidade para concretizarem alguns dos seus objectivos fundamentais. Elas ocorrem, no entanto, ancoradas numa complexa relação de cooperação/parceria e de interdependência ou complementaridade, a partir da qual se definem os interesses específicos de cada um. Se, os interesses dos actores endógenos, neste caso específico das famílias, assumem uma orientação mais focalizada na dimensão socioeconómica, os dos actores exógenos, mais especificamente aqueles, cujas acções emanam das circunstâncias políticas, orientam-se por uma perspectiva mais ampla, pois além de pretenderem com as suas dinâmicas promover explicitamente as condições necessárias à melhoria das condições de vida dessas famílias, objectivam, criar possibilidades de manutenção e/ou mudança da ordem política dominante. Ora, é este complexo campo de jogos de interesses que emerge das lógicas que cada actor imprime às suas estratégias, que tem sustentado a base da discussão sobre as dimensões e sentidos das dinâmicas e que se tem travado na esfera política nacional, destacando-se as questões sobre o assistencialismo e a politização e/ou partidarização das dinâmicas dos actores sociais, sendo que a primeira está associada às famílias locais e a segunda às ADC. Mas, antes de prosseguirmos, abrimos um parêntese para estabelecer, desde logo, um limite conceptual ao termo “assistencialismo”, dado o seu carácter polissémico e multifacetado. Em certo sentido, o termo assistencialismo reporta a acções desencadeadas por organismos públicos (como os serviços municipalizados de assistência social ou serviços da promoção social do Estado) como resultado de medidas que visam a protecção social, ou de uma cultura centrada na solidariedade social, das quais se pode esperar a minimização do sofrimento das pessoas (assiste-se, ajuda-se, solidariza-se com pessoas em situações de sofrimento) e, consequentemente assume-se como medidas de intervenção de natureza conjuntural ou circunstancial.

337 O assistencialismo pode também ser visto como resultado de práticas desencadeadas pelo governo ou por diferentes outros actores sociais, a partir de uma política pública assumida pelo governo, visando operar mudanças numa determinada realidade social e, neste caso, assume-se como medidas de intervenção de natureza mais estrutural. É sobre este último que parece alimentar as discussões na esfera política nacional. Vários discursos públicos, com origem tanto no sector público quanto no privado, têm dado conta de práticas de políticas assistencialistas por parte de entidades públicas e de existência de mentalidades assistencialistas, particularmente de pessoas que integram a franja mais desfavorecida da população cabo-verdiana. Apenas para citar alguns exemplos, em Janeiro último, e por ocasião de apresentação dos cumprimentos do ano novo de uma delegação da Assembleia Nacional ao Presidente da República, este, no seu discurso, terá baseado no contexto económico internacional e nas implicações que isso poderá ter para Cabo Verde, para manifestar a sua preocupação em relação aos efeitos do fenómeno ligado ao assistencialismo e para, na sequência disso, exortar as autoridades nacionais no sentido de se tentar combate-lo, quanto mais não seja porque este fenómeno condiciona, limita e desfigura, senão estiola de modo muito particular, o sistema democrático 217. Para Adriel Mendes, coordenador da Comissão Regional de Parceiros (CRP) em Santo Antão, o processo de desenvolvimento desta ilha é profundamente marcado pelas práticas assistencialistas, mas imputa a responsabilidade às Câmaras Municipais que, segundo ele,

em vez de exigirem das pessoas uma cultura de trabalho, de desenvolvimento, eles fomentam o assistencialismo. Em vez de mostrarem as pessoas que elas têm direitos mas também que têm deveres, distribuem os recursos públicos com base em critérios puramente eleitoralistas.

O ponto de vista traçado pelo coordenador da CRP de Santo Antão é corroborado por muitas pessoas ouvidas nas três localidades. A ideia que parece estar subjacente é a de que modelo das dinâmicas de certos actores sociais como as ADC, ONG, Câmaras Municipais e os Serviços Desconcentrados do Estado, em vez de se centrar na promoção de actividades geradoras de rendimento que pudessem criar as condições de autonomia das populações do meio rural, paradoxalmente parece orientar-se pelas acções centradas

217 http://www.expressodasilhas.sapo.cv/pt/noticias de 03/01/2012.

338 na subsidiariedade, na medida em que elas servem melhor certos interesses desses actores. É preciso, no entanto, notar que, esses pontos de vista são, grosso modo, construídos num contexto em que os seus protagonistas se encontram numa condição de oposição. Nesta óptica, eles estão sujeitos a mudar quando muda a condição dos seus protagonistas. Não obstante, faz todo sentido reportar de novo a Correia e Silva (2001b) para sublinhar aqui que a prática assistencialista tem raízes históricas em Cabo Verde. Como prática, o assistencialismo que, ao longo da história, vem dominando o país não pode ser visto apenas como resultado de uma estratégia política mas como resultado também de medidas explicitamente compensatórias e implementadas pelos governos para colmatar a ausência de uma política activa mais sistemática para ter efeito a médio e longo prazos. Correia e Silva (2001b) analisa-a em termos de dois períodos distintos da história da nação cabo-verdiana. Num primeiro momento, na fase derradeira do colonialismo era necessário alargar as bases do consenso em torno da ocupação portuguesa. Conforme refere Correia e Silva (2001b: 59),

Até então a sua intervenção social na sociedade cabo-verdiana era epidérmica, pontual e superficial. A partir de 1968, o Estado, que dadas as transformações sofridas nas suas orientações de acção (…) torna-se o agente central de regulação social. (…) De 1968 a 1974 o Estado faz aumentar de forma exponencial o emprego público eventual, através de um amplo programa de obras públicas, visando prover de meios de subsistência os camponeses tocados pela seca. Trata-se do chamado “Programa de Apoio às Populações”.

Num segundo momento, durante a vigência da primeira república, a prática assistencialista se justificava devido às limitações de vária ordem impostas pela situação socioeconómica herdada do período colonial mas, de igual modo, decorrente das linhas de orientação ideológica e social (Correia e Silva, 2001b) 218. Este autor defende, no entanto, que a orientação “distribucionista e assistencialista” começa a entrar em crise no país, a partir da década de oitenta, com a emergência de uma perspectiva desenvolvimentista, uma perspectiva que vincou-se em detrimento da outra, ainda durante a vigência da Primeira República, fruto de importantes mudanças imprimidas á estrutura do Estado na época (Correia e Silva, 2001b).

218 Para Correia e Silva (2001b) o carácter do Estado assistencial entra crise devido à emergência de uma nova orientação de desenvolvimento do país, isto é, a orientação desenvolvimentista.

339 Dando um salto ao período actual, convém dizer que, apesar da adopção consensual de uma perspectiva desenvolvimentista e não obstante as grandes linhas de orientação de desenvolvimento terem estabelecido como ancoragem, medidas centradas no desenvolvimento dos factores internos de produção, princípios da economia de mercado e luta contra a pobreza a recorrência a certas práticas que em certas circunstâncias são apelidadas de assistencialistas, parecem justificar-se, por um lado, como forma de minimizar os efeitos do desequilíbrio em termos da distribuição da riqueza cada vez mais acentuada, particularmente entre os espaços rural e urbano e, por outro, como resposta às pressões sociais decorrentes das estratégias dos actores sociais endógenos e propiciadas pelas normas primárias do sistema democrático, designadamente a igualdade em termos de direito e obrigação de eleger os representantes. Estas práticas são de resto percepcionadas por uma grande maioria de pessoas das três comunidades, a partir de várias perspectivas, sendo que, muitas delas, como por exemplo Noel, vêem-nas por um prisma mais eleitoralista.

Enquanto as instituições apostarem em apoio individual em vez de investimento colectivo não há desenvolvimento. Aqui apoia-se pessoas individualmente. Às vezes dão casas às pessoas que só não a tiveram, porque são preguiçosas. Porquê não apostar em coisas que sirvam a toda comunidade? Sou contra essa história de apoiar pessoas individualmente, porque muitas delas nem sequer precisam. Esses apoios, na maioria dos casos acontecem em épocas de campanha eleitoral. Assim gasta-se o dinheiro público e não se faz nada.

A partir de uma determinada altura, referindo-se concretamente aos primeiros anos da década de noventa, os programas de reconversão das Frentes de Alta Intensidade da Mão-de-Obra (FAIMO) no meio rural foram assumidos como solução para este problema mas, no entanto, não se mostraram de todo eficazes. Como vimos atrás, o emprego público continua a ter um papel central no sistema de estratégias de (sobre) vivência das populações no meio rural, talvez razão porque se definiu como um dos grandes eixos do Plano de Acção concebido para o período entre 2005 e 2008 no quadro do Plano Estratégico de Desenvolvimento Agrícola, horizonte 2015, a luta contra a fome e a má nutrição, pela via de promoção de actividades geradoras de rendimento e emprego público. Aliás, os contornos do emprego público que hoje se promove nas três localidades da ilha de Santo Antão, que têm fundamentalmente a ver com o contexto da sua implementação – dificuldades de sobrevivência das famílias do meio rural como efeito

340 de maus anos agrícolas, o tipo de trabalhos sobre o qual incidem, a remuneração, entre outros aspectos, como de resto vimos no capítulo terceiro, aquando da análise das estratégias de sobrevivência das famílias nas três localidades, dão ideia de que ele se assume muito mais como um mecanismo que garante as famílias um acesso a uma renda do que, uma medida de acção pública visando a transformação deste espaço e com ganhos calculados para curto ou médio prazos. Esta prática tem tido como justificação aparente, a ausência de alternativas devido à falta de recursos naturais e de competitividade económica. Assume-se como uma prática que comporta sérias fragilidades havendo, por isso, a necessidade de implementação de medidas complementares como, por exemplo, aquelas que estimulam a iniciativa individual e o aumento da produtividade como é o caso das Actividades Geradoras de Rendimento. Ao fazer a comparação entre uma prática que visa promover a transformação social e uma prática centrada numa medida que visa resolver os problemas de forma pontual e parcial, recorremos a Amartya Sem (2003: 61) que, perante a comparação entre as vantagens que decorrem de um processo de desenvolvimento, por via do crescimento económico, e as vantagens decorrentes de um processo de desenvolvimento pela via de programas assistencialistas, admite que a primeira assume-se como uma alternativa muito mais vantajosa e sustentável. Com base no exposto sobre as lógicas das dinâmicas das famílias defendemos que o modelo das práticas que suscitam a catalogação das acções dos actores sociais de assistencialista como já vimos ou de politizada ou partidarizada como vamos ver a seguir quando analisarmos as lógicas das ADC e ONG, é fundado num sistema de manipulação baseado numa complexa rede de interfaces entre actores e que se desenvolve na esteira das dinâmicas dos mesmos. O sistema de manipulação que emana das dinâmicas dos actores sociais, como de resto temos vindo a ver, recorrendo às teorias de acção 219, é gerado por um vasto conjunto estruturado de estratégias que os actores imprimem ao seu comportamento na perspectiva de alcançar o objectivo traçado para um contexto específico, situação ou jogo específicos.

219 Bourdieu (1985), Friedberg (1997), Croisier e Friedberg (1977), Boudon (1990), Olivier de Sardan (1995), entre outros.

341 Quando as pessoas são beneficiadas com uma habitação construída de raiz, uma bolsa de estudos para um descendente ou um emprego que melhore as suas condições de vida, em que elas adoptam normalmente um discurso de satisfação e de gratidão muito forte, reflectem em certa medida a natureza dessas estratégias. Ademais, os discursos construídos pelos beneficiados de uma determinada acção centrados em expressões, como, “ficarei eternamente grato (a)” ou “não tenho palavras para agradecer à (entidade que protagonizou a iniciativa ou à pessoa que representa esta entidade)” ou ainda “não posso pagar-lhe” e complementarmente “só deus o pode pagar”, etc. fazendo menção ao Primeiro-ministro ou Presidentes de Câmaras Municipais, Ministros, ou ainda aos Presidentes das ADC, conforme a circunstância em que eles são proferidos, constituem em si mesmas, um exemplo dessas estratégias. De igual modo, os discursos dos protagonistas destas acções revelam de forma mais ou menos clara os interesses que daí emanam pelo que os sentidos que por vezes orientam estas acções são imbuídos de uma ampla base de sabedorias, experiências e racionalidades pessoais e colectivas. Uma ideia central que emerge das lógicas das dinâmicas dos actores sociais parece estar intimamente associada ao fenómeno da interdependência entre os actores sociais que por vezes atinge o limite de cumplicidade. Ora, o sentido desta relação de cooperação e de interdependência e/ou cumplicidade entre os actores sociais, e que se dá na base de um reconhecimento tácito dos interesses em jogo, representa para nós um aspecto crucial da transformação do espaço social rural em Santo Antão. Esta relação de cooperação e de interdependência e/ou cumplicidade construída com base nas lógicas que os actores sociais imprimem às suas acções encurta a distância relacional entre uns e outros e isso pode constituir-se num factor determinante da potenciação da participação social no processo de desenvolvimento local e da transformação do status quo. Por último faz-se importante chamar atenção que as lógicas de reprodução das condições de vida das famílias do espaço social rural abarcam vários outros domínios, isto é, podem ligar-se a estratégias como casamentos, sedução ou ainda a várias outras acções ou práticas sociais que lhes permitam aumentar a renda, aspectos importantes para a compreensão das estratégias de vida desses actores sociais. Por isso mesmo é um assunto que deverá ser estudado oportunamente.

342 3.2 As lógicas das dinâmicas das ADC e ONG: o associativismo como espaço de reprodução das condições de vida

Vimos anteriormente que existe uma relação muito estreita entre as OSC, representadas pelos seus principais dirigentes e os demais actores sociais, designadamente as autarquias locais e os serviços desconcentrados do Estado representados pelos seus responsáveis directos. Este nível de relação é extensível às famílias locais, ainda que se admita que em relação a estas, o sentido de relação possa assumir contornos diferentes. Vimos, de igual modo, que entre uns e outros actores sociais desenvolve-se uma relação baseada em princípios de parceria, cooperação e de participação social da sociedade civil, em que cada actor assume um papel específico. Não obstante, esta relação dá-se numa ampla base de cooperação e de interdependência ou mesmo de cumplicidade, um facto que, aliás, serve de ancoragem ao processo de redimensionamento do espaço político do meio rural que decorre das dinâmicas dos actores sociais. Neste ponto específico, pretendemos demonstrar que o aspecto central das lógicas das dinâmicas das ADC e ONG reside nas estratégias que os principais líderes dessas organizações adoptam no processo de busca da autonomia das suas organizações, por um lado, e reprodução das condições de vida das populações locais e deles próprios, por outro. Assim sendo, de salientar para já que, integrar os órgãos de direcção de uma ADC ou ONG, associa-se a um vasto conjunto de vantagens materiais e simbólicas. Veja-se, por exemplo, que as ADC atribuem aos seus dirigentes um subsídio mensal num valor que varia conforme as funções serem de presidente da direcção ou do secretariado ou tesoureiro. Pudemos aferir que esta prática dá-se, por exemplo, na Associação Luz Viva de Lagoa e Compainha (ALVLC), Ami-Ribeirão e Associação Comunitária Nova Experiência Marítima de Cruzinha (ACNEMC). Nos três casos, os presidentes da direcção auferem um subsídio de 7000$00 e os secretários e tesoureiros 5000$00 cada. Quanto às ONG, em alguns casos adoptam um salário para os seus dirigentes e (OMCV, MORABI, etc.) noutros casos apenas um subsídio, como é o caso da OADISA). O presidente desta organização recebe um subsídio de 15.000$00 mensais. Os dirigentes têm o privilégio de representar as suas organizações em certos eventos, como em acções de formação destinadas às ADC, reuniões, conferências, cerimónias públicas etc., que acontecem um pouco por toda a ilha, em outras ilhas e, por vezes, no estrangeiro com as respectivas vantagens que isso representa para eles. A este propósito,

343 o Presidente de uma das ADC relevou-nos que, como presidente de Associação conheci Holanda e França. Represento ainda a associação em outras ilhas designadamente, em Santiago. Os presidentes de direcção são, de entre os dirigentes, os que mais participam nessas actividades. Sobre este aspecto em particular o presidente de uma das associações argumenta esta tendência com o facto de, a sua associação não possuir pessoas capacitadas para participarem nessas acções. Ainda do ponto de vista das vantagens materiais dos dirigentes das OSC, neste caso concreto das ADC, de notar que ocupam uma posição privilegiada para se apropriarem dos recursos. Veja-se, a título de exemplo que quando elaboram a lista de pessoas beneficiárias com o emprego público, o primeiro que consta desta lista (capataz) é invariavelmente o presidente ou outra pessoa da direcção da associação. A função de capataz, além de ser a que aufere um salário mais elevado, ela não requer grandes esforços físicos, esta função dá ainda prorrogativas ao seu titular de, segundo as opiniões de um entrevistado,

Ajudar as pessoas amigas por exemplo, facilitando-as em situação de ocorrência de atrasos no início dos trabalhos ou mesmo na largada antecipada do trabalho, pode mesmo facilitar marcando presença a uma pessoa que tenha faltado ao trabalho. O capataz pode ainda faltar ao trabalho e recebe mesmo assim, basta que designe uma pessoa para controlar o trabalho enquanto está ausente.

Portanto, trata-se de uma função que confere ao seu titular um certo poder na localidade. Ser dirigente das ADC e ONG traduz-se de igual modo em vantagens simbólicas que poderão, em certa medida, resultar em vantagens materiais, derivado da acumulação de capitais económicos, sociais e políticos, que estas funções lhes conferem. O extracto da conversa que tivemos com um dirigente associativo ilustra bem o sentido dessas vantagens.

Tenho um relacionamento estreito com José Maria Neves. Depois tenho amizades com Dra. Leonesa Fortes que era Secretária Geral do Estado 220. Sempre que eu precisar de alguma coisa entro em contacto com eles. Mas principalmente Dr. Rui Semedo, Dr. Armindo Maurício que é do Concelho de Ribeira Grande e Dra. Cristina Fontes. Mas também me relaciono com a Câmara Municipal que é poder local, bem como outras organizações locais como por exemplo OADISA, etc. Para mim, isso é um grande privilégio.

220 Talvez quisesse dizer “Secretária de Estado das Finanças” em vez de “Secretária Geral do Estado”.

344 Certos membros demonstram ter vantagens em relação aos demais. É nesta linha que Daniel faz a seguinte consideração:

Quem escolhe as pessoas para trabalhar é o Presidente ou o Secretário. Quando se abre uma frente e estiver disposto para trabalhar basta dizer-lhes que estou interessado, eles integram o meu nome na lista. Mas as outras pessoas não. Elas têm de dar fala ao presidente. Mas eu não. No meu caso basta avisar que vou tirar uns dias de trabalho.

A percepção sobre as vantagens comparativas dos dirigentes das OSC e particularmente as ADC é corroborada por uma grande maioria dos seus membros. Geraldo é um daqueles que reconhece que há uma grande vantagem em ser presidente de associação, na medida em que, prossegue, é ele quem gere os fundos. A partir da análise destes dados parece ressaltar a ideia de que uma das lógicas das dinâmicas das ADC é orientada pela percepção do associativismo como um espaço privilegiado de (re) produção das condições de vida dos seus líderes. Contudo, devemos fazer um pequeno parêntese para sublinhar que, apesar dessa percepção, um dos aspectos mais importantes que ressaltam das dinâmicas das ADC e ONG em conjugação (desempenhando os papéis de interlocutores e parceiros) com outros actores sociais tem a ver com a consolidação de lideranças locais por parte dos primeiros e em última análise a consolidação do empowerment dos actores endógenos no processo de desenvolvimento local. Dito isto prosseguimos salientando que para se garantir as vantagens inerentes às funções de liderança nas ADC ou ONG, é preciso que os seus líderes garantam uma base de sustentabilidade mínima do seu funcionamento centrada nas dimensões técnicas, mas fundamentalmente financeiras. Em relação à dimensão financeira, de referir que existem, como se sabe, vários mecanismos, mas vamos focalizar a atenção em dois deles, isto é, na cobrança de jóias e quotas e no financiamento de projectos financiados pelos “parceiros de desenvolvimento” internos ou externos. Quanto à cobrança de jóias e quotas, uma obrigação estatutária que se assiste a todos os membros, de dizer que tem-se revelado ineficaz, segundo as opiniões dos líderes associativos, na medida em que, normalmente, os sócios têm dificuldades em arranjar aquela quantia certa para pagá-las. Dada à ineficácia da cobrança de jóias e quotas resta a alternativa da busca de financiamentos através de relações de parceria que se estabelecem com os vários

345 organismos públicos internos ou externos. Do conjunto destes organismos destacam-se a Organização das Associações de Desenvolvimento Integrado de Santo Antão (OADISA), Federação das Associações de Desenvolvimento do Porto Novo (FADEP), CRP, Agriculture Cooperative Development International / Volunteers Overseas Cooperative Assistance (ACDI – VOCA), Plataforma das ONG, Associação Amigos do Paul (AMIPAUL), ou mesmo comunidades estrangeiras e por outro a Associação de cooperação entre os povos (ACEP), Instituto de Estudos Políticos para América Latina e África (IEPALA), Instituto de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), BORNEfondem, algumas Embaixadas, Câmaras Municipais e Organismos do Estado através de contratos-programa. Nos últimos anos, tem-se verificado uma acentuada redução de financiamento às acções das ADC conforme nos deram conta os dirigentes associativos com os quais pudemos conversar. Neste aspecto o associativismo em Santo Antão tem passado por uma situação particularmente difícil. Além da conjuntura internacional, as dificuldades em obter financiamento através dos “parceiros” têm-se revelado significativos tendo em conta factores ligados ao baixo nível de literacia que caracteriza a grande maioria dos dirigentes associativos e que lhes dificulta o cumprimento das exigências impostas pelos doadores e as limitações impostas pela lei de cooperação internacional descentralizada em vigor no país, na medida em que esta prática é coordenada pelo governo através Comissão Nacional de Cooperação Internacional Descentralizada (CNCID), organismo criado para o efeito. Ora, como tínhamos visto anteriormente, esta medida provocou algum desconforto no seio das autarquias locais mas, no que se refere concretamente às ACD ou mesmo ONG que operam em espaços periféricos, o problema que se coloca é de ordem prática, devido às dificuldades inerentes à articulação com os serviços centrais. Ou seja, a “centralização” das iniciativas de cooperação descentralizada acaba por resultar num problema acrescido a estas OSC que já era difícil antes desta nova lei. Perante estas dificuldades, as acções das ADC têm sido financiadas fundamentalmente pelos organismos do Estado, designadamente, os que tutelam a agricultura, a pesca, o ambiente, a educação e habitação e com o Ministério de Infra-estruturas e Transportes (MIT) e, indirectamente, através das ONG (CRP, OADISA, FADEP, AMIPAUL) e pelas Câmaras Municipais através de assinaturas de contratos-programa. Aliás, as várias

346 dinâmicas das ADC e algumas ONG analisadas no capítulo anterior desencadearam-se a partir desta modalidade. Uma das consequências previsíveis desta modalidade de mobilização dos recursos é uma certa (inter) dependência destes actores das instituições que propõem os contratos- programa. Esta é, aliás, a base da discussão que se tem despoletado na esfera política nacional quanto à ideia de politização e/ou partidarização do associativismo. Numa longa entrevista que o presidente da Plataforma das ONG concedeu a um jornal nacional, ao analisar os meandros do funcionamento das ADC, refere à situação em que os partidos políticos provocam eleições dos órgãos de direcção como forma de colocarem nos novos órgãos sociais, pessoas de confiança política deles 221. Com base nisso, diz este responsável,

muitas associações surgem e desaparecem, são efémeras, precisamente porque quando deixam de ter capacidade de influenciar, de receber recursos, de criar empregos, de receber benesses, deixam de ter razão de existência. Assim desaparecem e em seu lugar aparecem outras com maior capacidade de influência.

É nesta óptica que este responsável defendeu nessa entrevista que estamos longe de uma sociedade civil autónoma”. Esta linha de interpretação da relação entre as ADC e organismos do estado e autarquias, a partir dos quais aparecem os partidos políticos, é seguida por várias pessoas com as quais falamos sobre o assunto. Vejamos algumas.

Uma pessoa que está à frente da associação, durante a campanha eleitoral conseguiu mobilizar o pessoal para apoiar actual Câmara Municipal. É por isso que, apesar de tudo, a Câmara dá-lhe um trabalhinho que é para distribuir ao pessoal (Adriano).

Na altura em que eu era presidente eu me dava super bem com o governo. Mas com a Câmara Municipal nem por isso. Praticamente não tivemos nenhum apoio da Câmara. A Câmara via agente como adversário político. Mas eu não sou fanático. Mas apoiava o PAICV. Então, por isso, a Câmara não se dava bem connosco (Olavo Veríssimo)

Vou dizer-lhe uma coisa. (…) a minha filha pediu a Câmara Municipal apoio mas não lhe deram esse apoio. O próprio presidente de associação disse à minha filha que ela ia obter apoio de merda. Sabe porquê? É porque a minha filha é do PAICV e eu também. Eles são do MpD. Eu sou PAICV porque é o partido que encontrei. Mas não tenho nenhum documento que demonstre que sou do PAICV (Susana).

221 Jornal “Expresso das ilhas, n.º 511 de 14 de Setembro de 2011.

347 E podíamos estar aqui a acrescentar a estes, vários outros exemplos que reflectem o mesmo sentido interpretativo. Ainda na sequência desta linha de análise, fenómeno da politização e partidarização das OSC parece ser reproduzido, a partir da ideia de apropriação das associações como meio para operacionalização de uma estratégia eleitoral. Mateus contou-nos que,

há três anos que estão a dever a muitas pessoas de Ribeirão cerca de três meses de trabalho e nunca pagaram. Dizem que uma senhora que se chama Maria (nome fictício - e que era directora ou presidente de não sei o quê, que ficou a dever a gente. Na altura quem era o presidente da associação era o Olavo. Mas essa senhora terá dito que esse dinheiro dos trabalhadores foi entregue à associação para pagar os trabalhadores. E por causa disso as pessoas passaram por alguns problemas. Porque tomam coisas nas lojas para pagarem quando recebessem, mas no entanto, eles não pagaram e nós ficamos como caloteiros.

Sobre isso o actual presidente da Ami-Ribeirão fez as seguintes considerações:

A delegação do Ministério de Agricultura mandou abrir trabalho em várias frentes nas diversas localidades, inclusivamente em Ribeirão, mas sem ter assinado qualquer contrato com as associações. Nessa altura, não era eu, o líder desta associação. Era o Sr. Olavo. Era uma medida meramente eleitoralista. Por isso não foi nada programado. Foi uma medida do Delegado do Ministério e que visava manter o seu partido no poder. Isso transformou-se num grande problema. Esse trabalho se calhar não estava orçamentado, razão pela qual nunca mandaram dinheiro da Praia, para pagar os trabalhadores.

Este é um assunto muito comentado em Ribeirão e que de resto é do conhecimento de várias pessoas com as quais falámos. As informações e pontos de vista sobre esse acontecimento, são de resto bastante contraditórios entre si. Um dado assente é que efectivamente as pessoas foram colocadas a trabalhar pela associação local nas vésperas das eleições e que passavam cerca de três meses ainda não tinham recebido o respectivo salário. Assim, independentemente, de ser verdade ou não que a entidade que autorizou a associação a abrir a frente de trabalho transferiu ou não dinheiro para a associação local pagar os trabalhadores, o facto relevante aqui é de os trabalhadores não receberam os seus salários a tempo, com o prejuízo que isso acarreta conforme se pode depreender do extracto da conversa tida com o senhor Mateus, e a associação, por causa disso, perder a confiança dos populares. Esta desconfiança é reforçada com a seguinte opinião do Mateus:

Eles exigem que eu pague água. No entanto eles gastam muita água mas ninguém sabe se eles pagam ou não pagam água. Eles estão lá e regam todos os dias. Eles deviam mostrar

348 as pessoas que tal fulano, mesmo sendo de associação já gastou tantas toneladas de água mas que pagou x. Podes crer que certas pessoas não pagam água.

Instados a comentar sobre essa relação que as ADC e os organismos ligados ao Estado e as autarquias, Arlinda Santos, representante da MORABI em Ribeira Grande, faz a seguinte apreciação:

Com as associações comunitárias de base esse relacionamento depende. Isto já se sabe e é visível em Santo Antão. Esse relacionamento é muito condicionado pela convergência de opções políticas. Há presidentes de associações que não chegam ao pé do Presidente da Câmara Municipal. Ele trata os seus assuntos directamente com os membros do governo.

Maria de Fátima Monteiro, representante da Cáritas no Concelho da Ribeira Grande, afirma que,

a lógica política das actuações dos actores é nítida. Há associações que trabalham próximos do governo e esses encontram mais recursos do estado e outras que trabalham mais ligadas ao poder local, essas são nitidamente beneficiadas pelo poder local e assim sucessivamente.

Ainda na esteira da ideia sobre a politização e/ou partidarização das OSC, Leão Lopes, dirigente do Atelier Mar, aborda esta questão com base nas seguintes considerações:

Infelizmente o perfil de muitas associações deixam muito a desejar. Mas isso tem a ver um pouco com a forma como apareceram. Criámos associações como instrumento de resolução de problemas que nós próprios criámos. Em muitos casos essas associações perderam-se porque a essência da sua essência ou da necessidade da sua existência foi mistificada. A sua politização acaba por transformar a associação como uma coisa que está lá para resolver os problemas de um grupo de cidadãos e não a comunidade na sua totalidade. Representam um interesse ou interesse de um grupo específico. Assim perde a sua eficácia e a sua credibilidade. Você não encontra uma comunidade em que todos pertençam a um mesmo partido político. Isso em Cabo Verde agora é impensável.

Cingindo-se às opiniões de alguns dos nossos entrevistados pode parecer que o eventual fenómeno da politização ou partidarização das organizações da sociedade civil é resultado, não apenas das dificuldades destes actores, em ser autónomos, mas também, como refere Avelino Bonifácio, do facto de termos uma sociedade ainda muito politizada e bi-partidária e que quem não está com um é porque, automaticamente, está com o outro, mesmo que não tenha qualquer partido, onde parece escassear-se um espaço de participação da sociedade civil na esfera política nacional fora do âmbito dos partidos políticos.

349 Deslocando-se agora para um outro ponto de observação, abrem-se novas perspectivas de análise. Neste sentido, convém sublinhar um aspecto que nos parece importante para a compreensão do alcance deste eventual fenómeno de politização e/ou partidarização. Desde logo as condições em que se dá a relação entre as OSC, mas mais particularmente entre as ADC e os organismos públicos (Estado e Autarquias) onde aparecem por vezes referências aos partidos políticos, merecem interpretações díspares. Só para dar um exemplo, o Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande tem uma ideia diferente das que temos visto até ao momento sobre a ideia de politização e /ou partidarização das OSC. Ele não considera que as ADC são politizadas e apresenta o seguinte exemplo:

Eu trabalho com associações todas de Santo Antão. Desde que as associações estejam a funcionar legalmente nós trabalhamos, não vejo como politizá-las. Consequentemente eu não acho isso.

A disparidade sobre a percepção do fenómeno de politização e/ou partidarização das OCS pode ser espelhada através da dispersão das linhas de interpretação do mesmo. Ou seja, podemos encontrar uma mesma interpretação em campos sociais, políticos e ideológicos diferenciados. Nesta perspectiva, tendo em conta os dados que conseguimos mobilizar achamos que aquilo que serve de fundamento àqueles que interpretam a relação entre as OSC e os organismos ligados ao poder político central e local ou mesmo aos partidos políticos em certo sentido resulta, ao fim e ao cabo, de uma lógica que uns e outros actores imprimem às suas dinâmicas com vista a maximização de um ou vários interesses em disputa num dado campo de jogo. Ao contrário do que se possa imaginar, na nossa opinião as OSC desempenham um papel muito mais activo neste campo de jogo que propriamente os outros actores. O protagonismo que as OSC assumem no jogo com os outros autores decorre do imperativo das condições sociais da existência das comunidades que eles representam e de eles próprios tendo em conta a percepção que os seus líderes constroem sobre o associativismo. Assim, as interpretações que se tem dado ao fenómeno da politização e /ou partidarização das OSC, mas sobretudo das ADC, são resultado da construção de uma realidade que decorre de interesses específicos que emergem de uma situação aparentemente favorável à luz de um determinado entendimento do actor.

350 O campo de disputa que se constrói a partir da relação entre as OSC e os organismos do poder e ainda os partidos políticos abriu uma nova perspectiva de transformação da realidade social no meio rural cabo-verdiano, tendo em conta que esta relação é muitas vezes orientada pelo princípio de concertação e negociação e orientadas pelos objectivos comummente traçados, uma ideia que aliás se enquadra no conceito de sistemas de acção concreta referenciado por Friedberg (1997), bem como na ideia segundo a qual os territórios são construídos pelas acções e pelos projectos dos actores defendida por Meunier-Chabert (2001: 6). Além do mais, tal relação que como vimos anteriormente dá-se muito centrada numa expressiva interdependência e, consequentemente tem-se revelado como um dos factores determinantes da elevação do nível de participação dos actores sociais endógenos no processo de desenvolvimento das suas localidades, pois além de ter contribuído para a emergência de uma nova liderança local, potencia igualmente as condições de regulação social e aprimoramento dos princípios do sistema democrático, um factor importante do desenvolvimento local como considerado por Alex de Tocqueville (1977). Finalmente para salientar ainda que esta relação de interdependência entre os actores endógenos e exógenos, ao contrário da perspectiva centrada na politização e /ou partidarização das OSC, serve ainda para fortalecer a concepção de territorialidade, a partir daquela ideia de reinvenção da identidade colectiva de que Peemans (2002) havia referido, onde ele integra precisamente a dimensão que tem a ver as diferentes formas de mobilização dos recursos por parte dos actores, bem como a capacidade recreativa das populações locais como mecanismo de se libertar das estratégias dos actores dominantes, atribuindo-lhe um papel importante em todo o processo de desenvolvimento local. Pode-se ver que, para esta abordagem privilegiamos sobretudo a relação entre as ADC e ONG com os actores sociais internos (nacionais), deixando de lado a relação que estes actores sociais estabelecem com organizações internacionais. Este é também um assunto que deverá merecer da parte dos estudiosos nesta área a devida atenção, pois revela ser um aspecto importante do processo de desenvolvimento local em Cabo Verde.

3.2.1 As contradições internas das lógicas das dinâmicas das ADC

351 As lógicas engendradas pelas dinâmicas dos actores encerram um conjunto de contradições. Algumas delas foram já retratadas, ainda que de forma ligeira. Estamos a referir aos problemas ligados às desigualdades de oportunidades, à masculinização das OSC, ou seja, as desigualdades nas relações de género, e à limitação de acesso às OSC. De seguida pretendemos alavancar alguns aspectos das dinâmicas das OSC, particularmente das ADC, perspectivando uma melhor compreensão do alcance das lógicas que estes actores sociais imprimem às suas acções. Vamos focalizar a análise na forma como funciona a democracia interna no seu seio, fundamentalmente na forma como os recursos públicos são geridos. Sobre este segundo aspecto vamos considerar como exemplos três situações específicas dessa gestão. Isto é, vamos tomar como exemplos, a gestão dos trabalhos públicos por parte da ALVLC, a gestão do processo de distribuição de água para a irrigação por parte da Associação dos Amigos de Ribeirão/Campo de Cão (Ami-Ribeirão) e, por último, a gestão da embarcação de pesca em Cruzinha por parte da ACNEMC. Orientamos esta análise pela premissa de que, não obstante a importância das acções desses actores sociais no processo de desenvolvimento das suas localidades, a gestão dos recursos públicos dá-se, por vezes, a partir da percepção do associativismo como um espaço de conjugação de interesses individuais ou de pequenos grupos, e nesta perspectiva, a questão em torno dos princípios democráticos que, em princípio, devem nortear o funcionamento dessas organizações, está na base de estratégias dos grupos dirigentes para manterem um certo status quo no seu seio. Comecemos então pela análise das declarações do Adriano que parecem ir nesse sentido. Este residente refere por exemplo que,

depois da última eleição (realizada na associação Ami-Ribeirão) 222, nunca mais se fez uma reunião para se discutir os assuntos da associação. Acho que nem a conta eles têm prestado. Não fazem balanço. Podemos dar o exemplo da gestão do furo. Todos os consumidores pagam a água na associação. No entanto nunca ninguém prestou conta a comunidade. Eles da direcção é que são os maiores consumidores de água mas eles não pagam. São eles que exploram maior número de parcelas de terreno irrigado. O presidente não paga, o secretário não paga, o tesoureiro não paga. Por causa disso temos sempre problemas com a ELECTRA e com o INGRH que estão sempre a ameaçar cortar o fornecimento por falta de pagamento.

222 Parêntese nosso.

352 As declarações do Olavo Veríssimo são ainda muito mais precisas tendo em conta a premissa enunciada acima. Este ex-dirigente da Ami-Ribeirão refere que,

a presente direcção não reúne e nunca reuniu a Assembleia-geral. A actual direcção está na ilegalidade. Foram eleitos em 2006, além de nunca terem reunido em Assembleia- geral, o mandato deles já ultrapassaram os três anos. Devia haver eleições em 2009. Mas, para lá da questão sobre a não realização de Assembleias-gerais no final de um mandato, coloca-se ainda a questão sobre a forma como as eleições (quando acontecem) são (ou não) realizadas. Horácio deu conta de uma situação que aconteceu com associação da qual é membro, ou seja a ACNEMC. Contou-nos que,

A última Assembleia-geral da ACNEMC ocorreu há um ano e tal. No entanto, acabou por não se realizar eleições de novos membros nessa reunião, apesar de ter havido uma lista concorrente, porque a direcção não quis, alegando que deviam continuar a gerir a associação, pelo menos enquanto a associação estiver a liquidar o crédito contraído aos bancos para a compra da embarcação de pesca.

Além do mais, assiste-se casos em que a liderança é simplesmente transferida de uma pessoa a outra numa lógica de promover a continuidade. Por detrás destas práticas parece estar a percepção que se constrói nas localidades do associativismo como espaço de (re) produção das condições de liderança das associações locais e onde os seus membros, através de esforços e disposições que imprimem às suas actividades buscam desenvolver ou incrementar as condições da sua reprodução social. Estas percepções apresentam-se neste contexto como uma das motivações a partir da qual se inventam determinadas práticas de gestão dos recursos públicos. Vejamos alguns exemplos.

3.2.1.1 A gestão do “excedente” gerado pelo emprego público em Lagoa

Antes de entrarmos concretamente na análise dos aspectos centrais da gestão do emprego público pelas ADC, motivado pelo objectivo de compreender o alcance das lógicas das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local, parece de todo pertinente retomar um aspecto importante que define o contexto em que se desenvolveu o associativismo em Cabo Verde.

353 Face ao exposto refira-se então que há uma nítida percepção por parte dos dirigentes associativos das três localidades, que nos dias que correm, as associações têm passado por uma grande dificuldade para se manterem activas. Aliás, os discursos desses dirigentes permitem facilmente deduzir que, se pode definir, em termos da sustentabilidade financeira das associações, dois períodos muito distintos. Um período que decorre de 1992 a 2007 durante o qual vigoraram projectos como PL480 financiado pela USAID e implementado pela ACDI-VOCA, Forest and food security in Sahelian Africa financiado pela FAO, PLPR e alguns outros projectos financiados pela Cooperação Holandesa e um período posterior que abrange o momento actual. O primeiro é tido pelos dirigentes associativos como o período mais marcante das dinâmicas das associações locais, tendo em conta o volume dos recursos que lhes eram disponibilizados por um lado e a metodologia de implementação por outro. A razão de fundo tem a ver com o facto de, esses projectos se orientarem pelo propósito de desenvolvimento rural mais estruturante e voltados para o desenvolvimento do sector agrícola e consequentemente para a melhoria das condições de vida das populações. É neste sentido que, por exemplo, o projecto PL480 havia definido como eixos fundamentais,

increasing the availability of agricultural products through natural resource management, such as the construction of soil and water conservation works and introduction of new technologies such as drip irrigation; encouraging the development of an active and dynamic microfinance sector and increasing access to credit; promoting better dietary practices 223

Assim uma das estratégias fundamentais adoptada pela ACDI-VOCA na implementação deste projecto centra-se na visão de um processo de desenvolvimento participado e negociado, uma visão em relação à qual, as populações locais deviam ter nesse processo, um papel central. Mas, para isso, era necessário criar as condições para a sua mobilização e organização. E este desiderato era alcançado, atribuindo às associações locais a responsabilidade de execução de projectos, através de contratos-programa, cuja modalidade de financiamento permitia que sobrasse do orçamento alguma verba 224. Daí, a ideia de excedente.

223 http://www.acdivoca.org/site/ID/capeverdenaturalresourcemanagement. 224 Idem.

354 Desse excedente eram esperados vários resultados, nomeadamente no domínio da criação das condições de funcionamento das associações através de aquisição de materiais mínimos e através também de um incentivo financeiro aos dirigentes. Além do mais, o excedente era aplicado em pequenos projectos executados nas comunidades definidos pela população com base na sua apreciação em relação às necessidades mais prementes. Os projectos executados pelas associações circunscreviam-se basicamente nos domínios de mobilização de água, obras de protecção e conservação dos solos, acções de correcção torrencial, medidas de protecção ambiental, etc. A estratégia de desenvolvimento do meio rural centrada na participação das populações locais, a partir da qual emergiu uma nova modalidade de financiamento de projectos que seriam implementados pelas associações locais, despoletou interesses das populações das várias localidades em se associarem, na medida em que era a condição necessária para se ter acesso aos recursos que eram disponibilizados. Este, é, o pretexto que está no centro do argumento utilizado por Pina (2008) para afirmar que a cooperação americana está na origem do impulso ganho pelas organizações comunitárias de base 225, ou, melhor dizendo, esta cooperação terá contribuído fortemente para o decisivo desenvolvimento do fenómeno associativo em Cabo Verde, pois permitia às associações um fácil acesso aos recursos públicos. Estas considerações suscitam para já a questão sobre se os objectivos traçados em relação à reconversão das FAIMO foram alcançados. Sobre esta questão, deve-se referir que se tem deparado frequentemente com pontos de vista diferentes e por vezes contraditórios expressos particularmente no campo político. Mas, quanto a isso entendemos que se, por um lado, apresenta-se como uma tarefa bastante difícil traçar argumentos credíveis que possam colocar em causa ou negligenciar alguns efeitos positivos resultantes da execução de programas de reconversão das FAIMO, apresenta-se de igual modo difícil, por outro lado, fazer convencer que o programa terá servido para mudar o rumo que as FAIMO assumiram no passado. O que não parece suscitar dúvidas é que este tipo de emprego público tem sido menos intenso e menos frequente, resultado das transformações ocorridas no meio rural

225 Como é perceptível, nós preferimos a designação Associação de Desenvolvimento Comunitária, por razões já apresentadas.

355 devidas, ao desenvolvimento dos factores produtivos e surgimento de actividades não agrícolas, criando novas oportunidades de geração de renda para as famílias, reforçando o fenómeno da pluriactividade no meio rural. Apesar disso, o emprego público, como de resto vimos anteriormente, continua a ter um papel fundamental no conjunto de estratégias de desenvolvimento das famílias no meio rural, como continua a ser uma actividade de baixo rendimento, exercida como estratégia complementar de obtenção de renda familiar, mas que, em certos casos, é a principal fonte de rendimento de uma família, e, além do mais, continua a não permitir que, através dele, as famílias saíssem da situação de pobreza em que se encontram. Face ao exposto nos parece fazer algum sentido admitir que, a sua designação inicial (Frente de Alta Intensidade da Mão-de-Obra) possa mudar para “Emprego de Mão-de-Obra Não Qualificada no Meio Rural”, sujeitando-se, naturalmente, a um exercício conceptual. No fundo, o emprego público que hoje se desencadeia naquelas três localidades do meio rural da ilha de Santo Antão continua sendo um mecanismo reprodutor de um emprego manifestamente precário em múltiplos sentidos. Refira-se, no entanto, que, em determinados casos, particularmente em Ribeirão, alguns trabalhos executados no âmbito deste emprego público tiveram resultados extremamente satisfatórios, como os trabalhos de correcção torrencial, cujo impacto beneficia a toda comunidade, como fez questão de sublinhar o presidente da associação local, António Carente.

Repara que as últimas chuvas deste ano causaram estragos praticamente em toda a ilha de Santo Antão. Aqui em Ribeirão, como pode ver não se vê um único sinal de estragos nos terrenos. As cheias seguiram o percurso traçado e parte dela ficou retida nas estruturas de correcção torrencial construídas, o pode servir para alimentar o furo existente.

Com o fim dos projectos acima mencionados o associativismo, referindo-se especialmente às ADC, mas podendo integrar em certa medida as ONG, entra num novo período da sua existência no que diz respeito aos financiamentos dos projectos comunitários quer quanto ao volume quer quanto ao formato. De acordo com os vários líderes associativos nos últimos três/quatro anos tem havido cada vez menos projectos e além do mais o formato do seu financiamento que tem vigorado não permite que se tenha grandes excedentes. Mesmo assim, como acontece em Lagoa, as associações esforçam-se no sentido de haver excedentes. Aqui entra a questão sobre a gestão e dos recursos públicos.

356 Retomando o propósito de analisar a gestão dos recursos públicos pelas ADC, a partir da gestão do emprego público em Lagoa, de referir, para já, que nesta localidade esta alternativa de obtenção de renda para as famílias locais é coordenada pelas duas ADC locais, exactamente nos mesmos moldes que era coordenada quando os projectos eram financiados no âmbito dos projectos referidos. Isto é, a coordenação deste emprego reproduz a lógica de gerar excedentes, sustentada pelos mesmos argumentos, ou seja, que o excedente serve para desenvolver projectos nesta localidade que possam resolver os problemas que se revelarem importantes, à luz do entendimento da população local, como de resto já o tínhamos referenciado no terceiro capítulo. E havíamos referido também que essas associações assinam um contrato-programa para a coordenação de uma frente de trabalho, no qual prevê-se que cada trabalhador recebesse 600$00 por dia, enquanto se disponibilizam a pagar apenas 300$00. O remanescente vai parar aos respectivos fundos dessas associações. Esse excedente é construído também a partir do aumento da produtividade proporcionado pela disponibilidade dos trabalhadores locais. Dissemos ainda que os trabalhadores desta localidade têm conhecimento de que as associações locais lhes reduzem o salário para se criar os referidos fundos. O que provavelmente muitos não sabem é a real diferença entre o valor que as ADC recebem das instituições promotoras e aquele que elas lhes pagam. Em relação à Associação Luz Viva de Lagoa e Compainha (ALVLC) pudemos ver que esse fundo tem uma enorme importância para a comunidade porque permite resolver pontualmente problemas que a localidade enfrenta e que, na sua ausência, a vida, que já é complicada, tornaria muito mais ainda. Permite resolver os problemas do atraso de pagamentos de salários aos trabalhadores, adquirir água nas transportadoras privadas e distribui-la às populações quando há ruptura no abastecimento através da Câmara Municipal, apoios urgentes às populações em medicamentos, funerais, etc. Apesar disso, torna-se imperativo referir a questão sobre se o mecanismo de controlo que existe à disposição das populações locais e particularmente dos associados funciona e caso funcione se é suficientemente eficaz para garantir a transparência da gestão desses fundos. Não dispondo de elementos que nos permitam responder com certeza esta questão devemos no entanto dizer que existe um grande índice de confiança das populações em relação às associações locais, particularmente á ALVLC, um factor importante de desenvolvimento local.

357 Como se deve compreender pretendemos questionar apenas sobre a transparência no domínio da gestão desses fundos, construídos com o dinheiro dos membros da associação local. Sobre a lógica de gestão dos recursos públicos por parte das ADC um dos activistas da Rede Rassol faz a seguinte consideração:

Um handicap das associações é os líderes não terem o meio de rendimento e usarem a associação como uma forma da sua própria sobrevivência. As associações vivem de cotas e excedentes e esses excedentes são gastos em paródias ou usados para fins pessoais.

Das três localidades, Lagoa é única onde as associações mantêm esta prática na coordenação do emprego público. Coincidência ou não, as associações locais, particularmente a ALVLC, são de entre as demais que operam nas três localidades as que têm cumprido as normas estatutárias pelo menos no que se refere à realização das Assembleias-gerais. A ALVLC é aquela sobre a qual recai menos suspeições por parte dos seus associados.

3.2.1.2 A gestão de água para a rega em Ribeirão

Para a análise da gestão de água para a rega, que tomamos com um dos exemplos das contradições internas que emanam das lógicas que sustentam as dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local, convém para já referir que a Ami- Ribeirão assumia inicialmente a gestão de água para o consumo e para a rega. Contudo, vamos apenas centrar na segunda valência desta responsabilidade, isto é na gestão de água para a rega 226. Mas, antes de analisarmos os detalhes desta acção praticada pela Ami-Ribeirão, devemos sublinhar que, uma das primeiras impressões que construímos sobre o alcance do papel que as ADC desempenham nas três localidades atinge um acentuado nível de poder e contrapoder em relação aos organismos do poder público representados pelo Estado e Municípios. Estas organizações substituem o poder público, em certos domínios públicos importantes da vida das comunidades como a educação, fornecimento de água, emprego público ou mesmo a promoção social e este facto

226 De referir que por causa dos conflitos a gestão de água passou para a responsabilidade dos Serviços Autónomos de Água e Saneamento da Câmara Municipal da Ribeira Grande.

358 representa-se como um dos aspectos fulcrais das transformações sociais que ocorreram no meio rural nas últimas décadas. Em certo sentido, a confiança que as populações depositam nestas organizações é mais acentuada que aquela que por vezes depositam em organismos públicos. Contudo, o índice deste capital social não é o mesmo nas três localidades, pois pode-se notar que na localidade de Ribeirão, este indicador do desenvolvimento local parece ter sofrido uma ligeira quebra, e este facto parece resultar da avaliação nem sempre positiva que as populações locais têm feito sobre o desempenho da associação local, mais concretamente no que diz respeito ao modelo de gestão dos recursos públicos. Esta avaliação está globalmente centrada na percepção do associativismo como espaço de conjugação de interesses individuais e/ou de pequenos grupos e, consequentemente, como um espaço privilegiado de (re) produção das estratégias de melhoria de condições de vida de um individuo ou grupo de indivíduos específicos, como vamos poder demonstrar agora, de forma mais clara, a partir do exemplo de gestão de água para a rega pela Ami-Ribeirão. Para começar remetemos para o esquema que se segue.

Figura n.º 2 - Esquema da rede de distribuição de água para irrigação de Ribeirão

A 7

5 6 B

1 2 3 4

Fonte : Dados de observação directa

359

Legenda : A - Depósito principal de água para irrigação 227; B - Casa da distribuição da água da rede, que é onde se encontram localizadas as válvulas que regulam a passagem da água do depósito para os diferentes ramais 228; - Válvulas de controlo de passagem da água aos ramais de distribuição. N.ºs de 1 a 7 – Ramais de distribuição de água às diferentes parcelas irrigadas.

Passando agora à discrição pormenorizada deste esquema de referir que o ramal representado pelo n.º 1 leva a água a Lombinho Branco, onde antigamente se praticava a agricultura de regadio, a partir de uma nascente que havia ali, conforme demos conta anteriormente. Este é o ramal que se encontra no centro de um dos mais acesos conflitos que existem na localidade em matéria de gestão de água. É, a partir dele, que se abastece água ao maior número de parcelas de terrenos irrigados. Abrange os terrenos de João Damata, Atanásio, Maximiano Cruz, Olavo da Cruz, Zacarias Delgado, António Florêncio, Manuel Mariano, João Medina, Djack, entre outros. Por este ramal a água é disponibilizada todos os dias entre as 15 e 19 horas, excepto às terças e sextas-feiras. O ramal representado pelo n.º 2 leva a água aos terrenos que se situam na parte central da aldeia. Por este ramal, a água é disponibilizada nos mesmos dias e à mesma hora que o descrito acima. Abrange os terrenos ocupados por Adriano (antigo meirinho), João Veríssimo, Pedro Medina, Domingos Fortes, de entre outros, que se situam na maioria dos casos a uma altitude ligeiramente superior aos terrenos irrigados através do ramal 1. O n.º 3 indica o ramal que leva a água à Furrinha, onde os terrenos são ocupados principalmente pelos senhores José Veríssimo, pai de Olavo Veríssimo (antigo Presidente de associação local), Joaquim Manuel, Pedro dos Santos, Paulo da Graça, João Baptista, etc. Esta parte recebe água às terças e sextas-feiras entre o meio-dia e 18 horas. O n.º 4 indica o ramal que leva a água aos terrenos de Chã e Lombo todos os dias durante o período que vai das 15 às 19 horas, excepto às terças e sextas-feiras. Irriga os terrenos ocupados pelos senhores Arlindo, Urbano (irmão de António Carente), Augusto

227 Existem dois reservatórios onde é armazenada a água bombeada a partir do furo, situados um em cada encosta. Inicialmente um devia armazenar a água para o consumo e outro para a rega. O depósito de água para rega fica na encosta do lado esquerdo para quem entra na aldeia e os de água para consumo ficam do lado direito. Devido a pressão dos agricultores que dispõem de terrenos na encosta onde se situa o primeiro depósito a associação permitiu-lhes que utilizassem essa água para a rega. 228 A casa da rede é mantida com muita segurança. Apenas o responsável pela distribuição de água tem acesso.

360 Ferreira, Simão Neves (Tesoureiro de Associação), Atanásio, António Carente (actual presidente de associação local). Os quatro ramais descritos integram a rede de distribuição de água desde o início da implementação deste novo sistema de rega. Para a melhor compreensão dos meandros da gestão de água para a rega nesta localidade, é preciso ter em consideração quatro aspectos centrais relacionados com a forma como a rede se encontra estruturada: 1. Os ramais 5 e 7 foram aduzidos numa fase posterior, mas ainda no decorrer dos primeiros mandatos de António Carente. 2. O ramal 6 foi aduzido após as eleições realizadas em 10 de Outubro de 2006, segundo informações recolhidas junto aos dirigentes da associação, ganhas, por António Carente. 3. Os ramais 5, 6 e 7 ligam-se à rede, a partir do exterior da casa da rede. Neste sentido, o acesso à água através desses ramais não se sujeita à calendarização da distribuição da água que é executada, a partir daquele espaço, como se verifica com os demais. Aliás, como se pode ver pelo esquema, esses ramais nem sequer dispõem de válvulas de controlo da passagem de água, o que significa que, os agricultores que exploram os terrenos por eles abrangidos podem aceder a água sempre que quiserem. 4. Os ramais referidos no n.º anterior levam a água aos terrenos ocupados maioritariamente pelo actual presidente e pelos seus familiares. Isto é, o ramal 5 irriga duas parcelas de terra ocupadas pelo actual Presidente da associação, o ramal 6 irriga umas parcelas pertencentes à mãe e exploradas quer pelo próprio presidente quer ainda pelos irmãos e o ramal 7 irriga os terrenos ocupados por um dos seus irmãos. O segundo reservatório, construído especificamente para armazenar a água para o consumo doméstico, devido às muitas pressões, muitas delas com origem num campo político que se criou sobretudo em torno da gestão da associação local, acabou mais tarde por fornecer a água para irrigar os terrenos localizados em seu redor, designadamente os de Atanásio da Graça, João da Mata e Paulo Gaudêncio. Antes, porém, a associação havia definido uma regra segundo a qual os agricultores que usassem essa água para a rega teriam de pagar por ela o preço que se paga pelo consumo doméstico, isto é o dobro do preço da água para a rega. Neste sentido, pode-se ver que os agricultores com terrenos nesta encosta sujeitam-se a um custo de produção mais elevado que os demais.

361 O problema maior desta medida não é tanto o preço que os agricultores pagam, pois foi uma regra aplicada a partir de uma negociação em que participaram todos os interessados, mas sobretudo derivado do facto de, entre esses agricultores, a associação aplica um preço a uns e outro preço a outros, conforme pudemos ver através da verificação das facturas facultadas por uns e por outros. Uma explicação possível para esta aparente arbitrariedade na aplicação do preço da água para a rega está situada na luta pela liderança local na medida em que aqueles que pagam um preço mais elevado são os que faziam parte da antiga direcção da associação local. Mas é importante realçar também que existe uma certa concorrência entre os produtores locais como se pode deduzir das palavras de Macário:

Ontem eu vi o senhor juntamente com ele. Ele estava a mostrar-lhe a sua propriedade de cana-de-açúcar. Eu queria ir lá para dizer-lhe que devia mostrar ao senhor os terrenos que se encontram a secar porque ele manda enviar a água só para a propriedade dele (…). Ele está sempre a dizer que tem isto tem aquilo, que produziu 200 litros de aguardente, etc. (…) quer produzir sozinho.

Vale ressaltar que um dos efeitos mais visíveis deste “modelo” de gestão de água para a irrigação é, além de uma grande tensão que se verifica no seio desta localidade, a diferença em termos de desenvolvimento vegetativo ou o grau de vigorosidade das plantas nas diferentes propriedades. Na encosta abrangida pela rede de distribuição de água representada no esquema, é possível ver que as parcelas irrigadas pelos ramais 5, 6 e 7 apresentam um aspecto muito mais verdejante que algumas outras irrigadas pelos demais ramais. Mas, nota-se também que existem diferenças em termos do desenvolvimento vegetativo entre parcelas irrigadas pelos mesmos ramais. Na outra encosta, o terreno explorado pelo tesoureiro da associação local diferencia-se, de forma evidente, dos demais pelo aspecto verdejante que apresenta. Existem, no entanto, vários factores que podem diferenciar uma parcela irrigada da outra em termos do desenvolvimento vegetativo. O cuidado e o empenho que cada um aplica no processo do cultivo é, segundo alguns agricultores, um dos factores importantes. Mas todos consideram que a água é um factor dominante. Este “modelo” de gestão da água para a irrigação suscita a ideia de que há uma desigualdade de oportunidades de acesso à água para irrigação um tanto ou quanto relevante, que coloca em oposição um grupo que integra os dirigentes da associação local e pessoas que lhes são próximas e outro grupo constituído pelos restantes

362 moradores da comunidade com realce para os antigos agricultores de regadio, um assunto que vamos retomar quando analisarmos os conflitos que decorrem das dinâmicas dos actores sociais.

3.2.1.3 A gestão da embarcação de pesca em Cruzinha

Antes de entrarmos na análise dos meandros da gestão da embarcação de pesca em Cruzinha como um dos exemplos que nos possa ajudar a compreender o alcance das lógicas que as OSC imprimem às suas dinâmicas, nos parece necessário, antes de mais, fazer uma breve (re) contextualização do processo de aquisição dessa embarcação. A aquisição da embarcação de pesca, cujo processo de aquisição terá iniciado em 2006 e culminado em 2008, tinha como finalidade central mitigar o problema de desemprego que afectava sobretudo os jovens. A embarcação começou a funcionar com 14 marinheiros, todos desta localidade. Iniciou com uma comissão de gestão constituída, como tínhamos visto, por Benvindo Carlos Santos, Jacinto Cruz, Maria de Fátima Lima, Aureliano Cruz, Pascoal da Cruz Nicolácia, Laurindo Andrade. Isto é, pelo tesoureiro da associação, por um antigo Presidente desta associação, pela presidente da associação de mulheres de Cruzinha, pelo presidente da associação comunitária para o desenvolvimento de Curral de Mocho. São pessoas que, pelo dinamismo que imprimem ao associativismo local, acabam por constituir um grupo de interesse específico nesta localidade. Conforme foi descrita pelo presidente da ACNEMC, essa comissão de gestão tinha como funções registar a quantidade de pescado capturado em cada faina e o valor da venda, pagar salários aos trabalhadores, autorizar as despesas de manutenção da embarcação, etc. Como contrapartida para desempenharem estas tarefas, cada um recebia uma parte de pescado, cada vez que a embarcação saía para uma faina, calculada, a partir de uma percentagem que não conseguimos apurar. De acordo com informações recolhidas junto das pessoas que constituíam a comissão, as funções que lhes eram atribuídas nunca foram objectivamente definidas, razão porque por vezes entravam em contradição com as competências do presidente, o que, aliás, justificou que sensivelmente dois anos depois tivesse deixado de funcionar. Instado a falar dessa comissão de gestão, o presidente da ACNEMC faz a seguinte apreciação:

363

A comissão nunca deixou de existir. O problema é que a comissão só funcionava para registar a quantidade de peixes capturados e recebiam o dinheiro. Uma vez o barco teve problemas com a rede de pesca que ficou presa na rocha e esta comissão não fez nada para resolver este problema que passava pela aquisição de uma outra. Isso, como deve imaginar dava trabalho, tanto mais que não tínhamos dinheiro que chegasse. Assim, tinha que ser os dirigentes de associação, a trabalhar no sentido de resolver esse problema, porque a associação tinha a responsabilidade de liquidar as prestações do crédito contraído junto dos bancos para a aquisição da embarcação. Após ter sido resolvido o problema e na primeira vez que a embarcação saiu para uma faina aparece a dita comissão para retomar as funções. Bem aí tivemos que dizer-lhes que as coisas não eram bem assim. Que devíamos reunir para definirmos as funções da comissão.

A avaliar pelo comentário do presidente pode-se ver que a preocupação com a embarcação se justifica enquanto ela se revelar como uma oportunidade de se poder angariar alguma renda. Ali, o propósito para o qual foi adquirido, que é o de servir a comunidade em matéria de reduzir o desemprego, entre outros, é nitidamente invertido. Parece que a criação da comissão traduziu-se muito mais como um meio a partir do qual, um grupo específico de pessoas pudesse garantir uma fonte de rendimento do que como uma forma de cooperação para garantir um interesse daquela comunidade. Fica nas entrelinhas do comentário do presidente da ACNEMC sobre a comissão de gestão da embarcação de pesca que a gestão da embarcação dá-se na base de uma relação entre o trabalho que se presta e a recompensa material que lhe é inerente. Logo, parece existir uma estratégia dos membros da direcção, na medida em são eles que mais trabalham na gestão da embarcação e de outros projectos geridos por esta associação, de legitimarem a apropriação dos recursos gerados com as dinâmicas engendradas por esta organização. Em certos casos, a gestão da embarcação parece nitidamente monopolizada e personalizada pelos membros da direcção da associação. A forma como Benjamim que vive há muto tempo nesta pequena comunidade, diz que não sabe dizer nada sobre o barco e dá indicações que quem é capaz de explicar sobre o barco é o Sr. Benvindo Santos ou o Sr. António Santos, Presidente da Associação reforça ainda mais esta ideia. Deve-se sublinhar que estes dois dirigentes são irmãos. Pudemos recolher várias opiniões acusatórias ou, por vezes, que reflectem suspeições sobre a forma como pessoas ligadas à direcção gerem os recursos da ACNEMC, particularmente a embarcação de pesca. Ernesto diz-nos que

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na associação (referindo-se à ACNEMC) as pessoas roubam claramente. Toda a gente sabe que eles desviam coisas da associação. Mas as pessoas não querem dizer para evitar problemas. Eles andam a fazer abuso. Mas ninguém sente a coragem de os enfrentar.

Por sua vez, Alan, ao falar da forma como se gere a embarcação de pesca em Cruzinha, referiu que, nunca recebemos lucro da associação. Mas isso é normal. Os excedentes são para ajudar aos sócios quando estes passam por algum problema, designadamente com a saúde. E prossegue dizendo, com uma certa dose de ironia que,

Já desapareceu muito dinheiro na associação e ninguém sabe como. Os dirigentes dizem que não roubaram. Mas eu, o que digo, é o seguinte: se os ratos são capazes de levar as notas para o buraco de parede, já as moedas eles não são capazes de as levar. Então se as pessoas não roubam pelo menos as moedas deveriam aparecer. Mas na verdade nem as moedas aparecem.

As acusações, suspeições e desconfianças sobre a gestão dos recursos da associação reforçam a ideia de que o associativismo se afirma, em certo sentido, como espaço de apropriação individual ou de pequenos grupos, dos recursos mobilizados sob a aparência de um interesse colectivo. As pessoas com maior influência nas associações locais, devido à posição que ocupam no seu seio, ou mesmo aquelas que, pese embora não integrem a direcção, possuem, no entanto, uma grande capacidade de pressão sobre as associações locais, devido à posição social que ocupam na localidade, são aquelas que maiores vantagens tiram das dinâmicas encetadas nas comunidades, particularmente aquelas nas quais as associações locais têm o poder de controlo. Este facto é visível nas três localidades. As famílias que ostentam melhores condições de vida estão ligadas, de alguma forma e na maioria dos casos, de forma directa à liderança da associação. Com base nos três exemplos apresentados parece confirmar, de igual modo, a ideia segundo a qual o associativismo consubstancia-se como um espaço onde a interacção é potenciada a partir da identificação de uma zona de convergência de interesses e de expectativas dos actores. Neste sentido, certas dinâmicas de actores sociais no processo de desenvolvimento local em vez de servirem para aniquilar a diferença de oportunidades, servem, como defende Gehlen (2004), para potenciá-las. Emerge desta abordagem a ideia de que não obstante o importante papel que as ADC desempenham, certas práticas que desencadeiam geram contradições importantes ao processo de desenvolvimento local.

365

3.3 As lógicas das dinâmicas dos Serviços Desconcentrados do Estado e das Câmaras Municipais

As dinâmicas geradas pelas acções dos Serviços Desconcentrados do Estado e das Câmaras Municipais nas localidades do meio rural em Santo Antão orientam-se grosso modo pelas estratégicas de desenvolvimento traçadas pelo governo ou em certa medida pelas autarquias locais. À luz das grandes linhas estratégicas de desenvolvimento traçadas nas duas últimas décadas, a prossecução do objectivo de promover o desenvolvimento do meio rural passa fundamentalmente pela redução da pobreza, pelo desenvolvimento da agricultura e criação de gado bem como pela promoção do emprego público. O fim último dessas dinâmicas é, sem dúvida, promover a qualidade de vida e o bem- estar individual e colectivo das populações deste espaço social, um aspecto que, aliás, tem uma certa centralidade no conjunto das lógicas das dinâmicas desses actores. Um dos aspectos importantes das dinâmicas desses actores é, de igual modo, a mobilização dos actores sociais endógenos para participarem no processo de desenvolvimento das suas localidades. Além do mais, é preciso sublinhar que um dos resultados mais visíveis desta estratégia de desenvolvimento local é o novo arranjo organizacional a nível nacional, regional e local, sendo este último o nível que nos interessa analisar. Para lá da lógica centrada no objectivo primário das dinâmicas dos SDE e das Câmaras Municipais, as estratégias que esses actores imprimem no conjunto das suas dinâmicas orientam-se por um conjunto de outras lógicas que se estrutura a partir de um contexto territorial especifico onde parece sobressair um conjunto integrado de múltiplas dimensões da acção e interacção social dos variados actores (endógenos e exógenos), em que sobressaem para já, as dimensões económicas, socioculturais, políticas e simbólicas, que definem a natureza dos diferentes interesses em disputa 229. Nesta perspectiva, a dimensão económica é estruturada pela percepção que certos actores constroem sobre a oportunidade que uma determinada acção lhes confere para obter ou consolidar um emprego e, em certos casos, uma nova fonte complementar de

229 Do vasto conjunto das dimensões que integram a estrutura de acção e de interacção aqui referidas ressaltam ainda as dimensões religiosas e institucionais.

366 renda e, em última análise, uma oportunidade de manter ou melhorar os modos ou condições de vida. A dimensão sociocultural resulta, por seu lado, das posições (em termos da orientação do apoio a um determinado partido político) que as pessoas assumem, decorrente das expectativas que elas criam sobre si, sobre as oportunidades que o futuro lhes pode reservar, ou motivadas pela possibilidade de ter um familiar, um amigo ou vizinho numa posição privilegiada na estrutura do poder político. Isso resulta do comprometimento que enforma as tipologias de relações sociais. A dimensão política é definida pelo propósito de conquistar e/ou manter as condições do exercício do poder político por parte dos actores que representam os Serviços Desconcentrados do Estado e as Câmaras Municipais, conquistar e/ou manter o status quo que resulta da posição de liderança ou de uma posição privilegiada na estrutura das OSC por parte dos actores que as representam. A prossecução desses objectivos dá-se, neste contexto, a partir, fundamentalmente, de apoios materiais e financeiros que os dois actores sociais em análise prestam às OSC, sob a modalidade de contratos-programa, visando desenvolver acções minuciosamente definidas pelos próprios ou derivadas de pressões vindas das comunidades, mas que se configurem como muito importantes para a capitalização de preferências em contextos eleitorais. E, por último, a dimensão simbólica que é preenchida pelo propósito de certos actores, designadamente as ADC representadas pelos seus dirigentes, de capitalizar prestígio, popularidade e reconhecimento por parte da classe dominante e bem assim, o respeito na comunidade, tendo em conta as vantagens a eles inerentes. Esta relação conjugada ou sistémica de um conjunto de dimensões reproduzidas através das lógicas que sustentam as dinâmicas dos SDE e Câmaras Municipais parece constituir a base a partir da qual parece dar-se a emergência da maioria dos actores sociais que integram o conceito da Organização da Sociedade Civil. Com base na análise das lógicas engendradas pelos diferentes actores no quadro das suas dinâmicas e associando este aspecto a outras dimensões destas mesmas dinâmicas depreendemos que o processo de transformação da realidade social do meio rural em Santo Antão ganha novos contornos a partir da assunção, de forma mais explícita da parte do Estado, representado nas localidades pelos diferentes actores, de certos princípios de desenvolvimento local centrados designadamente na promoção da

367 participação social num sentido abrangente do termo, como de restado se encontram evidenciados nos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND) referentes aos períodos 1986 – 1990 e 2002 – 2005. A assunção destes princípios e os resultados positivos decorrentes desta opção contou com as condições sociais favoráveis, na medida em que esta visão de desenvolvimento fora assumida logo após à independência nacional numa perspectiva de aproveitamento de um capital social que integrava a estrutura social do povo cabo-verdiano, baseado nas práticas sociais de solidariedade e de inter-ajuda expressas pelo djunta mó, bem como as condições promovidas pelo estabelecimento de um regime democrático. Esta orientação das dinâmicas dos actores sociais que actuam na esfera do Estado, primeiro, e do poder local, depois, possibilitou a emergência de novos actores sociais fruto de uma visão estratégica que as famílias locais a nível individual e colectivo (associativismo) conferem às suas dinâmicas locais orientadas pela reprodução das suas condições existenciais. As várias dimensões e os múltiplos sentidos que enformam as dinâmicas dos actores sociais desembocaram no alargamento dos interesses e, consequentemente, do campo onde se dá a luta pelos interesses permitindo desta maneira, um novo arranjo organizacional e, concomitantemente, ao redimensionamento do campo político a nível nacional, regional e local. As lógicas que os vários actores sociais imprimem às suas acções obrigam a que haja uma constante redefinição de interesses e, consequentemente, de estratégias de jogo num vasto campo de disputa. Uma de entre as várias estratégias parece centrar-se no reconhecimento dos interesses dos outros, a partir do qual emerge uma nova estrutura de interacção social centrada numa ampla relação de cooperação e de interdependência não obstante as inevitáveis contradições que por vezes surgem. Um dos resultados mais visíveis da emergência de uma nova estrutura de interacção social é claramente o encurtamento de distâncias sociais entre dominantes e dominados, ou se quisermos da proximidade entre actores que ocupam posições sociais diferenciadas. Tal fenómeno consubstancia-se no alargamento das bases de oportunidade de acesso aos recursos públicos por parte das populações rurais e afirma- se como um factor fundamental das mudanças sociais que operam neste espaço social.

368 4. Os conflitos e espaços de regulação de conflitos entre actores sociais no âmbito das suas dinâmicas

Ao longo deste capítulo, temos vindo a analisar as múltiplas dimensões, sentidos e vicissitudes que dão corpo às dinâmicas dos actores sociais no processo da transformação social nas três localidades estudadas. Neste ponto propomos analisar o alcance dos conflitos que resultam da lógica que os actores sociais empregam nas dinâmicas que desencadeiam nos espaços sociais rurais, bem como, a forma como se definem os espaços de interacção e de regulação desses conflitos, na perspectiva de alavancar novas dimensões das dinâmicas dos actores sociais. Como pudemos verificar ao longo deste trabalho, as dinâmicas dos actores sociais ocorrem num contexto social, espacial e simbólico muito heterogéneo. Essa heterogeneidade é essencialmente evidenciada pela diferença dos interesses, de percepção do espaço, de representação social que cada um constrói sobre as vantagens comparativas que cada acção ou prática resultar, tendo em conta a visão do mundo que cada actor possui decorrente do processo de socialização a que se sujeita. Em última análise, esta heterogeneidade é resultado da diferença entre o espaço vivido e espaço concebido, como de resto foi referenciado por Lefebvre (1974). Esta é, aliás, a perspectiva assumida por Touraine (1996: 47) para compreender as acções que são promovidas no seio das organizações sociais contemporâneas. Para este autor, estas organizações devem ser vistas,

como o resultado de relações conflituais entre as forças sociais que lutam para garantir o controlo dos modelos segundo os quais a colectividade, organiza de maneira normativa, as relações com o seu meio ambiente.

Durante o tempo em que permanecemos no terreno pudemos constatar nas três localidades, a presença de vários focos de conflitos que resultam de determinadas lógicas que sustentam as dinâmicas desencadeadas por diferentes actores sociais. Para a sua análise é preciso, no entanto, ter em conta dois aspectos fundamentais. Primeiro, consideramos que os conflitos ocorrem de forma muito diferenciada de localidade para localidade, sobretudo quanto ao grau da sua manifestação. Isto é, eles assumem um carácter mais manifesto numa localidade que noutra. Segundo, esses conflitos parecem emergir nas localidades em análise, a partir, essencialmente, de duas

369 dimensões, isto é, as dimensões socioeconómicas, por um lado, e político-ideológicas, por outro. Assim, as dimensões culturais, religiosas e simbólicas que ocupam uma posição de relativa visibilidade na lógica das dinâmicas dos actores sociais só de forma marginal integram a manifestação dos conflitos.

4.1 As dimensões económicas e sociais dos conflitos

As bases de conflitos no espaço social rural estão intimamente associadas à percepção das vantagens ou desvantagens que cada actor pode tirar da sua acção ou da acção de outros actores num dado contexto. Esta perspectiva encontra-se expressa nas abordagens que vários autores têm feito sobre o assunto, ainda que em contextos diferentes. Daí os principais focos de conflitos, sejam eles latentes ou manifestos, se relacionarem com as condições de reprodução das estratégias centrais de sobrevivência dos actores. Uma das bases centrais de conflitos em Ribeirão tem a ver com a distribuição da água do furo para a agricultura 230. Mas, ainda antes disso, a decisão para se fazer a prospecção de água em Ribeirão tinha resultado num intenso conflito que opôs dois grupos com interesses bastante distintos. De um lado se posicionou um grupo constituído por um reduzido número de agricultores que exploravam uma nascente ali existente, a partir da qual irrigavam por alagamento pequenas parcelas de terra. No entanto, três deles praticavam a agricultura de regadio com alguma expressão, a medir pelas opiniões dos mesmos. Mas, de um modo geral, pode-se dizer que se tratava de uma agricultura de regadio que não deixa de ser incipiente. Mesmo assim, para alguns deles, como Emiliano Cruz, filho de Joaquim Cruz, essa agricultura representava para eles um meio importante de ganhar o pão-de- cada-dia e, por vezes, até mais do que isso. Esse grupo era liderado por Joaquim Cruz, representado pelo filho Emiliano Cruz, João da Mata Santos e Atanásio da Graça. Esses agricultores não queriam correr o risco de o furo não resultar e a água de nascente

230 Os conflitos que resultam da gestão de água em Cabo Verde parecem vir de há muitos anos, para não dizer que podem ter acompanhado a evolução da história deste país, não sendo a água vista aqui como um bem muito raro e consequentemente precioso. Durante a nossa pesquisa encontramos publicado um Acórdão (n.º 15) publicado no B. O. n.º 11 de 1884 proferido para minimizar a inadequação do Regulamento para o uso das águas públicas ou communs d’irrigação no concelho da villa da Ribeira Grande da ilha de Santo Antão, que se encontrava em vigor na época, debruçando sobre vários aspectos, designadamente, o conceito de águas publicas ou communs; quem tem direito a essas águas; a constituição da assembleia dos interessados e suas atribuições; os levadeiros e os seus direitos; as prohibições e penalidades referentes as prevaricações em matéria de gestão de água, etc.

370 desaparecer (o que por vezes pode acontecer, segundo opinião do delegado do MADRP em Ribeira Grande), e assim hipotecarem uma importante fonte de renda familiar. De outro lado, havia um número maior de agricultores liderados pelo presidente da associação local, na época António Carente, que nessa altura estavam confinados a praticar a agricultura de sequeiro, ou porque as suas propriedades se localizam a montante da nascente ou porque, mesmo explorando uma parcela a jusante, a quantidade de água que essa nascente produzia mal dava para irrigar as terras dos agricultores do primeiro grupo, pelo que viam nesse projecto uma oportunidade de poderem melhorar as suas vidas através da prática de agricultura de regadio. O primeiro grande problema com que a população se confrontou após a efectivação do projecto de prospecção da água teve a ver com a definição do direito do uso dessa água para a irrigação. Como referimos no terceiro capítulo, aquando da análise da agricultura como uma das estratégias proeminentes de sobrevivência das famílias no meio rural, a maior parte dos terrenos nas três localidades pertence a pessoas que vivem em outras localidades, designadamente nos centros urbanos. Esses terrenos são explorados em regime de arrendamento e de parceria pelas populações locais. Ora, com o aparecimento da água e a consequente possibilidade de transformar a agricultura de sequeiro (que é de resto muito menos rentável) em agricultura de regadio, alguns proprietários podiam querer reaver as suas terras e explorá-las directamente. Por outro lado, ancorado na ideia de que o processo que deu origem à exploração da água do furo ficou a dever-se a uma luta muito árdua da população local, então não lhes parecia justo que alguém de outras localidades pudesse tirar proveito dessa água. Este é, na perspectiva das populações dessa localidade, o argumento que determinou a definição de uma regra, segundo a qual, apenas as pessoas que moram em Ribeirão teriam a água. Por detrás dessa regra a população, a partir da associação local, traçou uma sólida estratégia com vista a consolidá-la. A maneira como os populares se referem a esta questão, faz lembrar nitidamente alguns propósitos que motivaram a decisão do governo em implementar um projecto de reforma agrária em Cabo Verde em 1981, designadamente aquele centrado no princípio de terra para quem a trabalha 231. Alguns

231 Vide, por exemplo, João Silva (s/d) e Cláudio Furtado (1993).

371 proprietários, segundo informações recolhidas na localidade, manifestaram-se descontentes com a medida. O alargamento da área cultivada é outro aspecto que esteve na base de um conflito hoje latente que opõe os agricultores que não têm acesso à água para irrigação à direcção da associação e os que têm acesso a essa água. O pressuposto que sustenta esse conflito está, por um lado, assente nas vantagens comparativas que a agricultura de regadio proporciona comparativamente à agricultura de sequeiro, e diga-se de passagem que essas vantagens estão ali bem visíveis para aqueles que trabalham um pedaço de terra e não podem transformá-la em regadio, e, por outro, o alargamento da área cultivada representa para a direcção da associação e para os actuais agricultores de regadio o risco de verem os seus investimentos descapitalizarem-se, pois a capacidade de produção do furo baixou e por causa disso (ou talvez não) a água já chega a algumas parcelas com relativa dificuldade. O sistema de gestão de água para rega, como de resto vimos no ponto anterior, está de igual modo envolto em polémica. Os conflitos resultantes desse “modelo” de gestão de água para a rega, que, além da distribuição, engloba, também, toda a démarche da sua produção, como, a cobrança das facturas aos agricultores, a liquidação das facturas à Electra referentes ao consumo de energia eléctrica usada na bombagem de água do furo para os depósitos e referentes às taxas de exploração que devem ser pagas ao INGRH, que, a não ser gerido convenientemente, pode inviabilizar o fornecimento de água, devido ao corte de energia por parte desta empresa ou ao cancelamento da produção por parte do INGRH. Estes conflitos são ainda muito mais intensos, a partir da forma como está estruturada a rede de distribuição de água descrita no ponto anterior, revelando, de forma inequívoca, que um grupo de pessoas é claramente melhor beneficiado que outro, constituído por agricultores que dirigem a associação e seus familiares bem como aquelas pessoas que dispõem de maior capacidade de exercer pressão sobre a associação. Esta base de conflitos opõe os dirigentes da associação aos antigos agricultores de regadio. Várias têm sido as tentativas da sua mediação, integrando instituições do Estado que reponde pelas questões quer da agricultura, como a Delegação do Ministério da Agricultura Ambiente e Recursos Marinhos, quer da água, mais concretamente o INGRH.

372 É importante ressaltar que a base dos conflitos resultantes da gestão da água em Ribeirão extravasa os limites geográficos locais, como extravasa as dimensões meramente económicas do sistema produtivo local. Primeiro, porque têm demandado constantes intermediações das autoridades administrativas e judiciais segundo, porque muitas vezes são potenciados por questões de ordem meramente social. As informações recolhidas, focalizadas na gestão da rede de distribuição da água para a rega, apontavam-nos para a hipótese de que o modelo de gestão da distribuição de água implementado pela associação tinha como propósito, além de beneficiar aquele grupo de agricultores acima descrito, prejudicar de forma ostensiva os antigos agricultores de regadio. Na sequência disso, impunha-se uma questão. Qual era o interesse dos dirigentes da associação em prejudicar ostensivamente esses agricultores? De referir que estes agricultores haviam preparado um abaixo-assinado se opondo à execução do furo. Além do mais, haviam colocado uma enorme pressão sobre a associação aquando do insucesso verificado na primeira tentativa de execução do furo que havia resultado no desaparecimento da nascente que lhes fornecia a água às suas terras. Assim, a hipótese da orquestração de uma vingança poderia fazer sentido. No entanto, após ter presenciado uma acesa discussão travada entre um desses agricultores, que se encontrava na companhia do filho e o Presidente de Associação em que o primeiro foi tirar satisfação ao segundo, procurando saber porque é que, desde havia algum tempo, a água não chegava à propriedade dele, e no rescaldo da dita confusão aparece um dos dirigentes da associação a dizer que, agora não é como dantes que aqueles senhores supostamente os que sempre tinham regadio, se consideravam como os únicos donos da água de Ribeirão, uma reacção que de resto mereceu um aplauso do presidente da associação, ficamos com a ideia de que havia por detrás deste problema, uma estratégia dos dirigentes associativos em mudar o percurso de uma ordem social que dominava esta localidade no passado. Em síntese, havia uns agricultores que, num passado recente, monopolizavam a água da nascente, um claro factor de dominação na localidade nessa altura. Derivado desse facto, isto é, de dominarem os factores de produção agrícola, esses agricultores eram vistos como os privilegiados da localidade. Com a execução do furo, as propriedades que se situam a montante puderam ser irrigados. Mas, mais ainda, o reservatório da água para rega foi construído numa

373 propriedade pertencente ao presidente da associação, num ponto relativamente distante das propriedades exploradas pelos agricultores mais antigos. Parece estar patente nessa decisão a estratégia de promover a emergência de uma nova relação de dominação na localidade, ou seja, a estratégia de afirmação de um grupo, com os dirigentes associativos à cabeça, que viria a representar novos “poderosos” de Ribeirão. Basta ver que dos seis agricultores que agora exploram maiores dimensões de terrenos de agricultura irrigada três são emergentes. Esta nos parece a explicação mais plausível para a atitude dos dirigentes adoptarem aquele modelo de gestão da rede de distribuição de água para a agricultura. Em Cruzinha, os focos de tensões mais importantes estavam centrados, de igual modo, na gestão dos recursos da associação, particularmente a embarcação de pesca, exemplificada anteriormente e de uma mercearia. A propósito desses conflitos, vejamos os conteúdos de uma carta que um sócio da Associação Nova Experiência Marítima de Cruzinha endereçou à direcção:

Caros amigos de Direcção da Associação Comunitária Nova Experiência Marítima CRUZINHA Como um dos sócios da referida associação venho por este meio expor o seguinte: Queremos uma reunião com urgência com toda a Assembleia-geral para que nos possa esclarecer algumas dúvidas tais como: O que se passa com a referida associação. O que se passa com o barco de pesca sem a matrícula dos marinheiros sem carta ou autorização. O porquê da mercearia estar fechada durante muito tempo, desde 7 de Abril de 2009. Estamos já em Janeiro de 2010 sem ainda termos qualquer satisfação. Espero que entendam, pois, como sócio preciso como qualquer outro ser esclarecido, não sendo até o fim do mês, mas sim, até 15 de Fevereiro. Com as melhores considerações do sócio, da Associação Comunitária Nova Experiência Marítima – Cruzinha, José de Oliveira. Cruzinha 30 de Janeiro de 2010 232.

Em Lagoa, os focos de conflitos resultantes das dinâmicas de actores têm a ver com a gestão do emprego público, particularmente no domínio da definição de critérios para a elaboração de listas daqueles que devem integrar os grupos de trabalho, ou gestão dos diversos apoios nos domínios de habitação, transporte escolar, pensões de solidariedade social, cestas básicas, etc. Globalmente, estes conflitos decorrem da percepção de descriminação em função do género, da idade, das condições socioeconómicas ou mesmo de pertença a um determinado partido político. Mas, é de sublinhar que estes

232 Os conteúdos da carta são aqui reproduzidos ipsis verbis como constam do original. O nome de subscritor é no entanto fictício.

374 conflitos são perceptíveis nas outras duas localidades e, em certos casos, são até mais intensos naquelas do que nesta. De referir também que o ciúme derivado do facto de os dirigentes associativos receberem, na perspectiva de alguns populares, dois salários, constitui um foco de conflito, porém pouco perceptível, através de interacção social. As pessoas falam de dois salários dos dirigentes associativos, referindo-se aos casos em que esses dirigentes além de serem contemplados com o emprego público recebem ainda uma gratificação de 7000$00 ou 5.000$00 conforme tratar-se de presidente ou secretário e tesoureiro respectivamente. Ora, partindo do facto de uma pessoa contemplada com este tipo de emprego, por exemplo em Lagoa, aufere um salário de 300$00 e, se for uma mulher recebe ainda muito menos que isso, e sendo assim, durante um mês pode chegar a um salário à volta de 7000$00, logo, um subsídio de 5.000$00 mensais pode ser visto efectivamente como um segundo salário. Nos casos em que o subsídio é de 7000$00 ainda muito mais. A intensidade dos conflitos que se manifestam assentes na dimensão socioeconómica, (a avaliar pela frequência com que as situações que os revelam integram os discursos proferidos no âmbito de avaliação das dinâmicas dos actores) parece ser maior em Ribeirão que em Cruzinha e menor em Lagoa e a explicação para esta diferença parece residir nas expectativas que os actores constroem sobre uma determinada oportunidade que surge na sua localidade e a possibilidade desta servir para a melhoria das suas condições de vida. A título de exemplo, a agricultura de regadio apresenta-se, claramente, como uma nova oportunidade para as populações locais e as expectativas que as pessoas constroem sobre ela são ainda muito expressivas. Já em Cruzinha e em Lagoa as expectativas que as populações terão criado em relação à aquisição da embarcação de pesca e a mercearia para o primeiro caso e em relação ao programa de habitação social para o segundo caso, parecem agora reduzidas, tendo em conta que estes projectos já atingiram o seu ponto alto. Vista de um outro prisma a diferença da intensidade de conflitos tem fundamentalmente a ver com disputa pela liderança comunitária e ela é de igual modo muito mais intensa em Ribeirão seguido de Cruzinha.

4.2 As dimensões políticas e ideológicas dos conflitos

375 Aquando da análise que fizemos no primeiro capítulo sobre estrutura do poder e o ambiente político dominante na ilha de Santo Antão, pudemos ver que esse ambiente é marcado por uma certa crispação política entre os níveis de poder local e central, este último protagonizado pelos Serviços Desconcentrados do Estado, fundamentalmente num contexto de coabitação política, como se verifica actualmente com os municípios da Ribeira Grande e do Porto Novo. Neste contexto em particular, a relação entre os poderes locais e centrais (a nível do governo) 233 circunscreve-se estritamente na comparticipação financeira do poder central, a avaliar pelas opiniões proferidas pelos presidentes das Câmaras Municipais da Ribeira Grande e do Porto Novo. Orlando Delgado, Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, procurou fundamentar a existência desse mau relacionamento entre os dois níveis do poder, apresentando o exemplo da (não) colaboração do governo no domínio do apoio financeiro ao seu município, dizendo:

Temos tido muito poucos parceiros de desenvolvimento. O governo que devia ser um grande parceiro, desde de 2001 que praticamente não assinámos nenhum contrato programa. A nível internacional, o governo cortou ao poder local qualquer possibilidade de mobilizar recursos externos porque as ajudas ao desenvolvimento são dadas a título de ajuda orçamental.

E reforça a ideia dizendo de forma ainda mais directa que,

Esse relacionamento vai muito mal. Da nossa parte tem havido uma grande lealdade institucional. Onde achamos que devemos chamar o governo para estarmos juntos fazemo-lo. Por exemplo, convidámo-lo a nos visitarem por ocasião das festas do Município, que antes o primeiro-ministro vinha, mas de uns tempos para cá deixou de aparecer. Hoje por vezes há uma inauguração e eles não dão palavra a um Presidente de Câmara Municipal e isso é grave. Tem havido algum revanchismo e isso não é bom para o nosso país.

Seguindo na mesma linha, Amadeu Cruz vai ainda mais longe dizendo que, em certas circunstâncias,

em vez de o governo ajudar ele bloqueia. Tem feito em relação às nossas cooperações. Temos um financiamento de energias renováveis para Monte Trigo com a União Europeia e o governo tem bloqueado o processo. Conseguimos da cooperação espanhola apoio para a rede de esgotos o governo bloqueou.

233 Importa referir que, a relação entre as Câmaras Municipais e o Presidente da República, Pedro Pires nessa altura era relativamente boa, segundo um dos presidentes de Câmara.

376 No que diz respeito especificamente ao relacionamento com os Serviços Desconcentrados do Estado, de uma forma, diríamos um tanto ou quanto irónica, diz que esse mau relacionamento entre os poderes locais e centrais tem sido normal e deu o seguinte exemplo:

Olha, a lei 234 diz que, um Presidente de Câmara deve reunir-se regularmente com os Serviços Desconcentrados do Estado. Mas agora pergunto. Você vê alguma vantagem, na actual conjuntura política, o Presidente da Câmara reunir-se com os chefes desses serviços? Vão tratar do quê, se tudo é visto num campo específico de interesse político? Você acha que um chefe de um Serviço Desconcentrado do Estado vai fazer alguma coisa que, pese embora possa beneficiar as populações acabe por promover a Câmara Municipal? Claro que não. Contudo, o nosso relacionamento é normal por exemplo com a Polícia, Delegacia de Saúde, Liceu da Ribeira das Patas, Internato, é razoável com a Delegação do Ministério de Educação, mas é péssimo, por exemplo, com a Escola Técnica de Porto Novo. Mas isso não me aquece nem me arrefece.

Por sua vez, Orlando Freitas, Delegado do Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos considera que é verdade que tem havido quezílias políticas entre o poder local e o poder central, mas acha que isso é normal em democracia, pois segundo ele em democracia cada um puxa a brasa para a sua sardinha. No que concerne ao seu serviço diz que,

a Delegação do Ministério de Agricultura tem a sua área de actuação perfeitamente definida e o poder local tem também a sua, pelo que, entre nós, não tem havido problemas de relacionamento que possa merecer algum destaque.

Vera Almeida, Presidente da Câmara Municipal do Paul desvaloriza a questão sobre o nível de relacionamento entre o poder local e central e prefere, em vez disso, dizer que,

Colaboramos muito bem com a Associação dos Municípios de Santo Antão. Trabalhos de forma engajada com o governo. As pessoas até dizem que sou privilegiada porque sou da mesma cor política que o governo e assim consigo vários financiamentos. Mas não é bem assim. Consigo financiamentos no exterior. O governo central é um bom parceiro. Temos conseguido grandes investimentos com a cooperação luxemburguesa com o Fundo Galego com forte incidência na promoção da igualdade do género, graças também ao apoio do governo

234 Está a referir especificamente a conjugação do art.º 95º que diz que “O Presidente da Câmara Municipal goza, no Município, de precedência sobre todos os funcionários públicos” com o n.º 1 do Art.º 105º que diz que “o Presidente da Câmara Municipal realizará sempre que necessário encontros com os responsáveis da Administração directa e indirecta do Estado, para apreciação das dificuldades e optimização dos recursos no território municipal” do Estatutos dos Municípios de Cabo Verde.

377 Apesar disso, tendo em conta as muitas percepções recolhidas sobre o sentido da relação entre estes dois níveis do poder, estamos em condições de reforçar a ideia anteriormente defendida, que efectivamente não é pacífica. Quando, numa entrevista dirigida a uma revista local, o Padre António da Silva Ferreira, se dirige aos responsáveis nestes termos:

Aos nossos governantes, seja dos Serviços Desconcentrados do Estado, seja ao nível da Câmara que continuem o esforço de maior diálogo, maior concertação, para o bem da Ribeira Grande 235, ele acaba por revelar um sentimento que na verdade o relacionamento entre os dois níveis do poder não é o mais desejável e, mais do que isso, fica expressa a percepção de que este facto tem interferido na eficácia do processo de desenvolvimento desta ilha. Esta é de resto uma percepção que integra os discursos dos residentes das três localidades quando avaliam o sentido de relação entre estes dois níveis do poder político. A constatação da existência de um ambiente político hostil protagonizado pelos actores que representam os poderes locais e centrais pode suscitar muitas curiosidades, quer do ponto de vista científico, quer espontâneo, designadamente quanto aos factores que podem estar por detrás desse fenómeno. Como se deve compreender, este assunto não integra o conjunto de objectivos que traçamos para este trabalho. A título meramente especulativo, podemos dizer que este fenómeno pode estar associado ao carácter centralista dos líderes locais e /ou dos líderes centrais, como pode associar-se uma certa personificação dos líderes locais, autismo político e défice democrático, como refere Fernando Ruivo (2004), como pode estar ainda associado a factores muito mais estruturais, como o sistema democrático em vigor, etc. O que pretendemos para já é analisar em que medida este ambiente interfere nas dinâmicas que estes e outros actores sociais desencadeiam e que impacto pode ter no processo de transformação social das localidades do meio rural. Mas já lá vamos. Os dados de que dispomos apontam para a existência de alguns focos de conflitos que se inscrevem nas dimensões políticas e ideológicas. Em traços gerais, podemos definir três origens distintas desses conflitos: percepções diferenciadas de desenvolvimento local, que colocam em confronto, pelo menos ao nível dos discursos dos protagonistas

235 Revista “Diálogo” N.º 2 de Abril/Junho de 2006, Câmara Municipal da Ribeira Grande – Santo Antão.

378 políticos, as perspectivas assistencialistas e desenvolvimentistas 236 ; definição de competências que reportam cada nível do poder; e a luta pelas vantagens competitivas em contextos eleitorais. Ou seja, de ponto de vista prático, estes conflitos decorrem basicamente das questões sobre por que razão se canalizam os recursos para uma determinada dimensão do desenvolvimento e não para outra, porque se fez determinados investimentos desta e não de outra forma, quem fez o quê e quem não fez, quem tem a obrigação de fazer, quem fez e faz mais e melhor, ou, até mesmo, quem se disponibiliza a fazer. Para evitar ser muito exaustivo, vamos apresentar extractos de conversas mantidas com três personalidades da ilha e que achamos que representam, de certo modo, o que dissemos no parágrafo anterior. Amadeu Cruz, Presidente da Câmara Municipal do Porto Novo:

Creio que os principais constrangimentos ao desenvolvimento têm a ver com a mente das pessoas. A visão centralizadora do poder político, e por outro lado as reticências ideológicas da iniciativa do sector privado. O desenvolvimento não é só meter betão. Não vale a pena pensar no desenvolvimento de Santo Antão se não se desenvolver o sector produtivo da ilha.

Adriel Mendes, Gestor da Unidade Técnica do Conselho Regional de Parceiros de Santo Antão:

O governo está afastado das localidades. Mas ele tem feito a sua parte. Mas acho que é preciso mais concertação entre os dois níveis do poder. O governo já fez na saúde, na educação, etc. Se não houver sintonia por mais que o governo faça isto não é visível.

Vera Almeida, Presidente da Câmara Municipal do Paul:

Ami-Paul era uma das inimigas número um da anterior Câmara Municipal porque o seu presidente é próximo do PAICV. Ami-Paul já mobilizou mais recursos que a Câmara Municipal. Já empregou mais pessoas que a própria Câmara Municipal. Como é possível uma Câmara abdicar-se do apoio de uma organização como esta, por uma questão meramente partidária?

236 Isto para assumir a ideia de que, se é verdade que as linhas de orientação estratégica de desenvolvimento traçadas a partir de 1991 a esta parte se orientam claramente pela perspectiva desenvolvimentista não é menos verdade que as práticas assistencialistas têm sido, de igual modo desencadeadas construindo uma relação de aglutinação ou de justaposição. E é nesta base que se constitui também como um foco de tensão entre os actores que operam em campos ideológicos diferentes.

379 Uma ideia fundamental que parece emergir dos conflitos assentes nas dimensões políticas e ideológicas é que esses mesmos conflitos resultam, ao fim e ao cabo, de uma estratégia que os actores que representam os dois níveis de poder em confronto imprimem, orientada preferencialmente pelos princípios que visam conduzi-los à conquista ou à manutenção do/no poder político. Neste sentido, tais conflitos têm como efeitos mais visíveis, por um lado, a secundarização de certos princípios fundamentais que enformam a concertação social e negociação que, a serem periodizadas, poderiam contribuir para a convergência de sinergias no sentido de promover as melhores condições de vida das populações locais e, por outro, a fragmentação ou mesmo assimetria dos actores sociais. Alguns dados acima apresentados se orientam para este sentido. E as declarações de Manuel Natividade, Presidente da OADISA seguem pelo mesmo diapasão.

Sobre a relação entre o poder local e os Serviços Desconcentrados do Estado é muito deficitária. Não sei onde a falha está, mas, há uma grande luta pelo protagonismo (…). No fundo não há relacionamento. Agora que aproximamos o período de campanha eleitoral é que vai ser pior. Não tem havido união entre as forças da ilha. Cada um busca o seu protagonismo.

Para Fátima Monteiro, Presidente da Caritas no município de Ribeira Grande, quando assim se verifica, o normal é que os recursos sejam desperdiçados:

Os actores locais não trabalham unidos. Há descoordenação em termos de decisões e de iniciativas. Por vezes uma pessoa pode receber apoios mais do que precisa porque vários actores dão-lhe ajudas. Por vezes gasta-se recursos mais do que devido tendo em conta essa falta de articulação.

Algumas abordagens recentes do desenvolvimento local têm-se focalizado muito na questão da união entre os actores e isso só é possível conseguir num contexto de múltiplos e diferenciados interesses se houver a capacidade de implementar uma cultura de diálogo e de concertação social. Jorge Tapia (2005) dá grande importância à ideia de pactos territoriais. Para ele,

pacto territorial constitui um ponto de partida de um processo de concertação em âmbito local, no qual a presença de uma ideia-força de desenvolvimento do território é essencial, pois funciona como ponto de referência fundamental, seja para poder delimitar a área sujeita ao pacto, seja para fazer uma selecção de objectivos e estabelecer as prioridades entre os vários interesses presentes em nível local.

380 Reforça esta ideia dizendo ainda que,

os principais objectivos dos pactos sociais são, de um lado, constituir uma coalizão estável de atores locais (uma espécie de actor colectivo), e de outro, deflagrar um processo de transformação da economia e da sociedade local visando à melhoria da oferta de bens colectivos.

No entanto, com intuito de retomar a questão sobre qual é o impacto que as situações de conflitos decorrentes das dinâmicas de actores podem ter no processo de transformação social das localidades do meio rural entendemos que esta perspectiva acaba por ter um carácter unidimensional, na medida em que desvaloriza completamente a ideia de que os conflitos podem consubstanciar-se em importantes factores impulsionadores das dinâmicas dos actores sociais e, consequentemente, da mudança social. A ideia em torno da mudança da ordem das coisas em Ribeirão contraria em certa medida esta posição. Aliás, certas abordagens sobre os conflitos associam-nos sempre a interesses em jogo. Ou seja, sempre que há interesses divergentes há conflitos. Deste simples raciocínio pode-se facilmente deduzir que basta haver uma estrutura social organizada para haver conflitos. Friedberg (1997) concebe os conflitos como uma situação que resulta da concorrência que se opera num campo, tendo em conta os interesses que se colocam em jogo. Em certo sentido, como defende Luís Restrepo (1990), a situação em que os actores sociais entram em conflito é um elemento importante ou mesmo indispensável para se ter uma sociedade civil forte e bem constituída, e, para além disso, esses conflitos podem resultar em dinâmicas que são indispensáveis a um regime democrático e, consequentemente, à mudança social.

4.3 Espaços de regulação de conflitos no meio rural

O contexto político que se vive na ilha de Santo Antão, marcado por alguma crispação política entre os poderes locais e centrais, constitui um elemento de referência para a compreensão do sentido das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local, na medida em que, este campo de conflito que se forma a partir da relação entre os dois níveis do poder, é transferido para as dinâmicas que os actores, que se situam em outros níveis, desencadeiam nas localidades.

381 Esta dimensão das dinâmicas dos actores sociais está perfeitamente integrada nas novas abordagens do desenvolvimento local, que, conforme vimos no segundo capítulo, atribui ao actor social um papel fulcral na definição das orientações das suas acções, isto é, o actor é factor determinante das mudanças que ocorrem num dado espaço territorial, social e simbólico, derivado da racionalidade instrumental que cada um imprime à sua acção. Esta é, aliás, a perspectiva pela qual se orientou Teisserenc (2002) ao conceber o território como um espaço social onde os actores definem estratégias de apropriação dos recursos, a partir de uma lógica de interdependência que se dá numa complexa interacção que estabelecem com o espaço físico. Como temos vindo a ver, os conflitos entre actores sociais, decorrentes das dinâmicas por estes desencadeadas no processo de desenvolvimento local da ilha de Santo Antão analisadas até ao presente, dão-se num campo específico de luta pelos interesses individuais e colectivos, estruturado pelas regras de jogo que são definidas tendo em conta a ideia de troca e, consequentemente, de cooperação e de interdependência (Friedberg, 1997). Com base nisso, os processos de regulação de conflitos revelam-se, de igual modo, como um elemento importante numa estrutura social, quanto mais não seja, porque, recorrendo às ideias defendidas por Friedberg (1997) permite promover ajustamentos e equilíbrios entre actores, condições sem as quais o sistema pode desintegrar-se. Os mecanismos de regulação de conflito, aparecem num contexto de disputas de interesses, como uma espécie de dispositivos, dotados de múltiplos sentidos e com capacidade para assegurar as condições básicas da manutenção da ordem das coisas, apesar da luta que se trava entre actores, tendo em vista interesses divergentes. Estes mecanismos acabam por servir de via através da qual, os interesses que motivam as acções de cada actor são reconhecidos e legitimados no campo do jogo que cada um participa. Da abordagem sobre as múltiplas origens de conflitos, quer assentes nas dimensões económicas e sociais, quer nas dimensões políticas e ideológicas, vimos que estes conflitos definem várias relações de oposição, designadamente, entre grupos de famílias, entre grupos de ADC, entre ONG, entre famílias, de um lado, e ADC e/ou ONG, Câmara Municipal e Serviços Desconcentrados do Estado, de outro, entre ADC e /ou ONG de um lado e Câmaras Municipais e/ou Serviços Desconcentrados do Estado de

382 outro e, finalmente, entre Câmaras Municipais e Serviços Desconcentrados do Estado, como representantes do poder central. Friedberg (1997) define, no âmbito do conceito de sistema de acção concreta, como uma das principais dimensões que integram um mecanismo de regulação de conflitos, a consciencialização e interiorização da regulação por parte dos actores abrangidos pelo conflito, bem como o reconhecimento da existência de uma relação de interdependência entre eles. Além do mais, esta dimensão de regulação de conflitos implica um inter- conhecimento, ainda que minimamente, e implica de igual modo que os actores possam ter acesso a informações comuns. Vários autores concebem, no entanto, a regulação de conflitos numa perspectiva mais holística, isto é, como um mecanismo que parte da inter-relação entre as várias dimensões que compõem uma sociedade, designadamente económico, político, social, histórico e cultural. É nesta perspectiva que Boyer (1990) define três princípios fundamentais de regulação de conflitos: Um princípio assente na lei, regra ou regulamento, que têm o poder de determinar os comportamentos individuais e colectivos; um princípio assente no compromisso ou vínculo entre os grupos, que promove ou garante os interesses dos actores, e daí a ideia de negociação e; um principio assente na homogeneização dos comportamentos”, recorrendo à formação de um sistema de valores ou de representações que resulta na adesão às normas vigentes numa dada sociedade por parte dos actores envolventes. Trata-se, portanto, de uma perspectiva que previlegia a dimensão normativa da interacção social. Coroboramos perfeitamente estes pontos de vista acerca da abordagem sobre os mecanismos de regulação de conflitos. Os dados que recolhemos a este propósito reforçam-nos. Mas, o mais importante aqui, é que estes mesmos dados nos permitem concluir a este propósito que, para além desses mecanismos de regulação centrados numa perspectiva material e normativa existem mecanismos de regulação de conflitos que ocorrem no âmbito operacionalização das dinâmicas dos actores sociais decorrentes de valores sociais que enformam a interacção social reproduzidos com base nas dimensões de vizinhança e de familiaridade. As opiniões da Presidente da Câmara Municipal do Paul parecem ir neste sentido.

Os conflitos resultantes da luta política entre os partidos são muito fortes em Santo Antão. Aqui durante a campanha costuma ocorrer várias situações em que as pessoas agridem-se mutuamente. Aqui era como Santa Cruz na ilha de Santiago. Contudo, por ser uma ilha

383 onde as pessoas se conhecem relativamente bem, onde, apesar de pertencerem a partidos políticos diferentes elas são amigas, ou porque andaram juntos na escola ou porque pertencem à mesma família, passando umas horas ou uns dias as coisas retomam a normalidade.

Além do mais, a estreita relação de interdependência que parece existir entre as famílias nas respectivas comunidades pode servir de dispositivo automático de regulação de conflitos. Essa relação de interdependência é, de igual modo, forte entre as ADC e o grupo de actores constituídos pela ONG, Serviços Desconcentrados do Estado e Câmaras Municipais. Em ambos os casos, as relações de interdependência decorrem de uma lógica de estratégias de vida adoptadas por determinados actores sociais (as famílias). Noutros casos (como as ADC) essas relações decorrem claramente da estratégia centrada na busca incessante de autonomia que pudesse permitir-lhes exercer as suas acções no seio das suas respectivas comunidades, pelo que parece existir uma associação expressiva entre a lógica das dinâmicas dos actores e certos mecanismos de regulação de conflitos, como aqueles que se situam à margem dos mecanismos materiais e normativos. Finalmente, salientar que há uma concertação oculta entre os actores que servem mais para manter a ordem das coisas, na medida em que a desordem não interessa a nenhuma das partes em conflito. Os conflitos que se dão com base em reconhecimento mútuo dos interesses em jogo, associados à natureza dos mecanismos que os regulam, surgem também como uma importante componente que integra as estruturas das condições potenciadoras do processo de transformação da realidade social do meio rural da ilha de Santo Antão.

5. Conclusão

Após a análise que fizemos sobre as várias dimensões, sentidos e vicissitudes que caracterizam as dinâmicas dos actores sociais que são desencadeadas nas três localidades do meio rural da ilha de Santo Antão, impõe enfatizar algumas ideias fundamentais abordadas ao longo deste capítulo. Com efeito, importa em primeiro lugar sublinhar que a participação social das famílias e das OSC no processo de desenvolvimento nos espaços sociais rurais dá-se num contexto socioeconómico marcado por uma intensa luta pela melhoria das condições de vida e num contexto político marcado pelo carácter da “juventude” da democracia.

384 Neste sentido, a participação social desses actores acontece a partir de uma lógica de luta pelos interesses individuais e de grupos específicos, gerando certas contradições como situações de discriminação em função do género, de idade e em função da relação de pertença a uma organização da sociedade civil, gerando, de igual modo, situações de exclusão e auto exclusão, na medida em que o jogo que enforma essas dinâmicas constitui oportunidades apenas para aqueles que demonstram ter a capacidade ou racionalidade “modernas” para se apropriarem dos recursos em disputa. Concomitantemente, o campo de luta pela defesa dos interesses que se formam a partir das dinâmicas dos outros actores sociais suscita uma certa lógica de troca (centrada numa relação de cooperação e de interdependência) que se afirma, em certas circunstâncias, como alavanca de transformação do espaço público nacional, regional e local, onde as famílias, individualmente ou integradas nas organizações locais, ganham cada vez mais maior protagonismo na definição dos domínios de actuação dos actores exógenos e é desta forma que se dá o redimensionamento do espaço político. Em segundo lugar sublinhar a ideia segundo a qual as lógicas que os vários actores sociais imprimem às suas acções no quadro das dinâmicas que desenvolvem nas localidades, particularmente a famílias, as OSC e com maior destaque para as ADC, as Câmaras Municipais e os Serviços Desconcentrados do Estado resultam em última análise na emergência de uma nova estrutura de interacção social centrada numa ampla relação de cooperação e de interdependência marcada pela flexibilização das relações sociais e normativas entre dominantes e dominados e isso além de constituir uma vantagem para os dominados tem sido a base da transformação social das localidades do meio rural em Santo Antão. Por último, dizer que as dinâmicas dos actores sociais desencadeadas no quadro do processo de desenvolvimento local em Santo Antão são muito férteis em conflitos, e tendo em conta as lógicas que as enformam, esses conflitos se desencadeiam assentes nas dimensões económicas e sociais, isto é, devido aos interesses materiais dos actores, por um lado, e políticas e ideológicas, por outro, devido às divergências quanto às percepções sobre os pressupostos que devem orientar um processo de desenvolvimento local ou quanto às competências de cada nível de poder e devido às vantagens que cada um pretende tirar em contexto de disputa política. Não obstante os conflitos assentes nas dimensões políticas e ideológicas acabarem por resultar na secundarização dos princípios ligados à concertação e negociação, elementos que se definem como

385 fundamentais num processo de desenvolvimento local, eles resultam, de igual modo, na fragmentação ou assimetria dos actores sociais. Na sequência da análise dos conflitos inerentes às dinâmicas dos actores sociais importa acentuar que, para além dos mecanismos de regulação de conflitos centrados nas perspectivas materiais e normativas, existem ainda mecanismos de regulação de conflitos resultantes de valores sociais como a vizinhança e a familiaridade bem como a estreita relação de interdependência económica e social que caracteriza a interacção entre os actores que interagem um dado espaço social. A especificidade dos conflitos e dos mecanismos de regulação de conflitos existentes na ilha de Santo Antão constituem em si mesmos, um elemento importante da mudança social das localidades do meio rural.

386 Conclusão geral

Na sequência do exame que submetemos os dados mobilizados aflorou um conjunto vasto de aspectos que se configuraram importantes para a compreensão das dimensões, sentidos e vicissitudes das dinâmicas dos actores sociais que vamos aludir agora de forma mais sucinta. Neste sentido, vimos que, não obstante as transformações que se verificaram na estrutura agrária em Santo Antão decorrentes, quer do fenómeno da emigração, quer da reforma agrária engendrada em 1981, o meio rural da ilha é fortemente marcado um regime de exploração indirecta de terras que é, de resto, resultado do modelo da colonização imposto por Portugal a Cabo Verde. Estamos perante um espaço social que aglomera cerca de 62% da população total da ilha e que mais de 45% das pessoas que nele vivem são consideradas pobres, um fenómeno com acentuada relação com a questão do género, idade, nível de instrução e condição perante a actividade económica, conforme retrata o DCERP I. Aliás, sobre este assunto, o documento em análise refere, por exemplo que,

a Ilha de Santo Antão, além de apresentar a maior incidência de pobreza, tem o maior gap da pobreza (os pobres precisam em média de 16% do valor da linha da pobreza para deixarem de ser pobres) 237.

As várias abordagens que se tem feito sobre a pobreza em Cabo Verde, designadamente no meio rural, associam-na à fraca base produtiva deste espaço. É nesta perspectiva que a promoção das condições para a melhoria do sistema produtivo tem sido uma das estratégias de desenvolvimento privilegiadas pelos sucessivos governos desde os primórdios da independência nacional. No que se refere à ilha de Santo Antão, as orientações que sustentam as estratégias desenvolvimento do meio rural postas em prática, nomeadamente nas duas últimas décadas, têm incidido em múltiplas dimensões, designadamente económica, social, cultural e mesmo política e, além do mais, integram aspectos multissectoriais e perspectivas multifacetadas. Destas orientações emerge um modelo que privilegia a agricultura associada às acções de mobilização de água, a silvicultura e pecuária, como a melhor saída para o combate às condições de precariedade em que vive um número substancial da população. Este

237 DCERP I.

387 modelo de desenvolvimento rural privilegia ainda os sectores como a pesca, o turismo, o emprego, a prestação dos serviços de saúde, transportes, educação e formação, bem como a participação crescente do poder local, da sociedade civil e das populações, de um modo geral, como dimensões fundamentais da promoção do desenvolvimento deste espaço social. Como observado anteriormente, não obstante as políticas públicas que têm sido desencadeadas no quadro de um modelo de desenvolvimento específico, a vida no meio rural ocorre em condições extremamente difíceis. Assim, o mecanismo de produção e reprodução das condições de vida das populações rurais comporta uma vasta panóplia de acções e práticas que, tendo em conta o carácter e o sentido prático que cada uma assume dentro do sistema de estratégias de sobrevivência, decidimos categorizá-las em duas subcategorias, isto é, estratégias proeminentes de sobrevivência e estratégias complementares de sobrevivência. As acções e práticas que integram a primeira subcategoria gravitam em torno da agricultura e/ou pesca artesanal, criação de gado e emprego público. Estas actividades económicas são exercidas em unidades de produção familiar e assumem, em muitos casos, características de uma actividade de subsistência. Por seu lado, a subcategoria de estratégias complementares de sobrevivência integram acções e práticas como a poupança, solidariedade social, Jobs, expediente e desenrasque, trabalho de base não contratual e, ainda, a migração e remessa dos emigrantes, reproduzidas para minimizar riscos ou como fontes complementares de renda. Na sequência disso, como anteriormente vimos, esta diversidade de estratégias de sobrevivência é, sem dúvida, um dos aspectos importantes no processo de reprodução das condições e dos modos de vida no meio rural. Mas, além do mais, os sentidos que por vezes assumem, designadamente no bojo da luta que se trava em torno do acesso aos recursos públicos, acabam por conferi-las um papel proeminente no conjunto das dinâmicas que os diferentes actores sociais desencadeiam no processo de desenvolvimento do meio rural. Esta é, aliás, a perspectiva pela qual definimos as famílias locais e as Associações de Desenvolvimento Comunitário (ADC) como motores das mudanças no meio rural, pois elas se assumem, em certo sentido, como um dos principais agentes dinamizadores de política global conduzida pelo Estado ou pelas ONG, razão pela qual, como vimos,

388 Jacob e Delville (1994) as vêem como lugares privilegiados da observação das dinâmicas sociais. Um outro aspecto relevante do processo de desenvolvimento das localidades do meio rural tem a ver com o facto de as dinâmicas dos actores sociais ocorrerem num campo de luta muito expressiva pela defesa dos interesses de cada um. As lógicas que cada actor social imprime às suas acções neste campo específico de interacção estão centradas numa ampla relação de cooperação e de interdependência, fruto do conhecimento que cada actor tem do interesse do(s) outro(s). Este facto resulta na emergência de uma nova estrutura de interacção social na qual os actores sociais endógenos assumem um grande protagonismo na definição dos domínios de actuação dos actores exógenos e é desta forma que se dá o redimensionamento do espaço político. Esta nova estrutura de interacção social, que tem como pilar fundamental as especificidades das lógicas das dinâmicas dos actores sociais, resulta numa acentuada flexibilização das relações sociais e normativas entre dominantes e dominados e esse facto, como vimos, além de constituir uma vantagem para “dominados” tem sido a base da transformação social das localidades do meio rural em Santo Antão. A reinvenção de uma nova estrutura de relação e interacção social, um processo no qual os actores sociais endógenos têm um papel central, consubstancia-se, em última análise, em novas formas de respostas destes actores aos factores que condicionam as dimensões materiais e sociais da sua existência. Os resultados deste estudo mostram que as dinâmicas dos actores sociais encerram certas contradições. Elas geram, de certo modo, situações de discriminação em função do género, de idade e em função da relação de pertença a uma organização da sociedade civil, situações de exclusão e auto exclusão e, consequentemente, uma certa desigualdade de oportunidades de acesso aos recursos públicos nas localidades, pois, como vimos anteriormente, nem todos os indivíduos possuem as mesmas capacidades para se apropriarem dos recursos em disputa. Destas contradições parece emergir um aspecto importante, isto é, o carácter híbrido das dinâmicas dos actores sociais, na perspectiva em que elas comportam lógicas individual e colectiva numa relação de justaposição. Um outro aspecto relevante das dinâmicas dos actores sociais tem a ver com o facto de elas comportarem relações conflituais assentes, por um lado, em dimensões económicas

389 e sociais e, por outro, em dimensões políticas e ideológicas sendo que estas últimas resultam, em determinadas circunstâncias, na secundarização dos princípios ligados à concertação e negociação ou mesmo na fragmentação ou assimetria dos actores sociais. Contudo, os conflitos que resultam destas dinâmicas são, grosso modo, regulados por mecanismos centrados, não apenas nas perspectivas materiais e normativas, mas também, em valores sociais que caracterizam a estrutura de relações sociais da ilha de um modo geral, tais como a vizinhança e a familiaridade. Na esteira do que já dissemos os objectivos propostos para este estudo foram globalmente alcançados e neste sentido as hipóteses que formulamos se confirmaram na sua essência. Ao longo deste trabalho demonstramos que as dinâmicas dos actores sociais desencadeadas nas duas últimas décadas nas localidades do meio rural em Santo Antão, orientadas pelo propósito de desenvolvimento local/rurais emanados pelos programas do governo, tiveram um papel relevante na transformação deste espaço social. Mas mais do que isso, as famílias e as ADC acabam por desempenhar em todo o processo de mudanças que ocorrem nas localidades do meio rural um papel hegemónico. Ressaltam desta ideia duas premissas fundamentais. A primeira associa-se à ideia segundo a qual são elas (famílias e ADC) que, em última análise, delineiam as trajectórias das principais dinâmicas dos actores sociais e a segunda associa-se à ideia de que as lógicas que elas imprimem às suas acções e práticas estão na origem de um novo sistema de relações e de interacções sociais entre os actores sociais, fundado, como já o dissemos, na flexibilização das relações sociais e normativas entre “dominantes” e “dominados” que, de resto, representa o pilar de toda a mudança que vem ocorrendo neste espaço social. Esta centralidade dos actores endógenos no processo de desenvolvimento é percepcionada por Muls (2008), para quem

a formação e a constituição de instituições formais locais é um passo importante para o início de um processo de desenvolvimento endógeno e para a construção de uma identidade territorial que permita aos atores locais colocar em curso (acionar) alguma modalidade de reação autónoma. O construto sobre o qual se erigirão as formas mais dinâmicas da reação autónoma são as instituições locais representadas pelo poder público, pelo tecido empresarial e pela sociedade civil organizada, e sobre esta base se complementarão as redes e as relações formais e informais.

390 Contudo, para a compreensão das mudanças sociais no meio rural é fundamental que as duas premissas acima referenciadas sejam interpretadas como situações que decorrem de um contexto político, económico, social e cultural específico. Deste contexto, importa, em primeiro lugar, evidenciar, ainda que de forma sucinta, alguns aspectos chave como: a vigência de um modelo democrático orientado pelos princípios de separação e descentralização dos poderes públicos; a adopção por parte do Estado de uma estratégia de desenvolvimento que valoriza a participação da sociedade civil e a partir da qual dá-se a emergência de novos actores sociais e a luta pela apropriação dos recursos públicos; a cultura dos valores em torno de solidariedade e inter-ajuda; a coragem, o esforço e a disposição que as famílias do meio rural imprimem ao seu quotidiano para inverter as vicissitudes da vida impostas pelas condições naturais adversas do país. a centralidade dos actores sociais endógenos no processo de transformação do espaço social rural devida às lógicas que imprimem às suas dinâmicas, no conjunto das quais ressaltam as estratégias visando o incremento do empowerment das suas localidades. Esta investigação permitiu-nos também confirmar que as dinâmicas dos actores sociais resultam da conjugação de uma vasta panóplia de dimensões de entre as quais se destacam a diversidade de interesses, luta que se trava pelos mesmos e os conflitos a ela inerentes. A propósito dos conflitos, pudemos demonstrar que os mecanismos da sua regulação decorrentes de valores sociais que enformam a interacção social acabam por ser um elemento importante no processo de transformação que vem ocorrendo neste espaço social. Durante o exercício da construção do nosso modelo de análise propusemos compreender o alcance dos modelos de desenvolvimento que integraram as abordagens da sociologia de desenvolvimento, economia, etc., a partir do início da década de setenta que dominaram estas áreas das ciências sociais durante as décadas de oitenta ou mesmo noventa. Nesta sequência, os resultados deste estudo confirmam a existência de uma forte centralidade dos aspectos como a territorialidade como elemento aglutinador do

391 desenvolvimento, a democracia interna orientada para a participação social, a parceria, o cooperativismo e solidariedade, conflitos, negociação e entendimento, controle social, acumulação de capital, entre outros. Estes resultados parecem demonstrar também que o processo de desenvolvimento local traduz-se na conjugação de certos aspectos, como o tradicional e o moderno, o rural e o urbano, o endógeno e o exógeno, o individual e o colectivo, modos de produção capitalista e modos de produção não capitalista, consenso e conflito, etc., alguns dos quais, determinadas perspectivas teóricas os consideram como contraditórios entre si. Nesta perspectiva convém realçar uma conjugação nítida, nas três localidades estudadas, entre, por um lado, os modos de produção tendencialmente capitalistas que conferem às populações locais novas oportunidades de gerarem rendas e, por outro, modos de produção não capitalistas centrados em padrões com raízes históricas que vêm sendo reproduzidos desde há séculos e que continuam a ser percepcionados pelas populações locais como sendo muito importantes no conjunto das suas estratégias de vida. Desta breve análise evidenciam-se algumas limitações das teorias de desenvolvimento local no que se refere ao exercício de compreensão do alcance das dinâmicas dos actores sociais no processo de desenvolvimento local. Sobre essas limitações, Long (1982) havia defendido que certas perspectivas de desenvolvimento, fazendo menção àquelas orientadas apenas pela ideia de modernização, em vez de potenciar determinados padrões de desenvolvimento, elas deturpam-nas. Aliás, vários trabalhos centrados na temática de desenvolvimento local têm demonstrado que os modelos de desenvolvimento centrados nos princípios neoliberais têm-se consubstanciado como meros instrumentos de alimentar os interesses da classe dominante. Singer (2004) realça que,

Uma característica essencial do desenvolvimento capitalista é que ele não é para todos. Os consumidores, de modo geral, se beneficiam dele à medida que enseja a produção de novos bens e serviços que satisfazem suas necessidades (reais ou fictícias), além de baratear a maioria dos bens e serviços preexistentes, graças ao aumento da produtividade do trabalho. Mas o desenvolvimento capitalista é seletivo, tanto social como geograficamente 238.

Trata-se, portanto, de um modelo de desenvolvimento exclusivista num sentido e elitista noutro. É neste sentido que o próprio Singer (2000, 2004) e vários outros autores,

238 Grifo do autor.

392 designadamente, Favreau e Fréchette (2000) Peemans (2002), Santos (2002), Amaro (2003), Laurent (2004), Jean-Louis Laville (2005) têm-se esforçado no sentido de se conceber uma perspectiva de desenvolvimento local focalizada no papel dos actores sociais emergentes, nas capacidades locais de engendrarem dinâmicas do desenvolvimento local, nas economias informais, na responsabilização do Estado, etc. Reportando uma vez mais para os principais resultados deste estudo, de salientar que não obstante tenhamos valorizado o papel dos actores sociais no processo de transformação das três localidades, a presença do Estado (no seu sentido mais lato do termo) neste processo é notável. Aliás, isso ficou demonstrado na análise das dinâmicas dos actores sociais em torno dos três eixos privilegiados neste estudo, no que se refere particularmente à promoção do emprego público, infra-estruturação, promoção das actividades geradoras de rendimento, atribuição de micro-crédito, pensões de solidariedade social, ao programa nacional de luta contra a pobreza no meio rural, etc. Nesta parte final revela-se importante ressaltar mais dois aspectos que nos parece merecer alguma atenção, que tem a ver com os seguintes: 1. Os resultados deste estudo reforçam ainda mais uma perspectiva epistemológica que vem sendo construída nas esferas da sociologia e antropologia de desenvolvimento bem como a sociologia rural que propugna pela ideia de que o processo de desenvolvimento se desencadeia a partir de uma complexa teia de interacção social centrada numa intensa relação de dimensões, como de resto reconhece Boyer (2001) e, neste sentido, a sua compreensão requer um rigoroso exercício de colocar em confronto permanente o sentido prático da vivência dos actores sociais e o sentido teórico ou discursivo hegemónico do campo político e ideológico. 2. O processo de recolha de informações directa ou indirectamente ligadas às práticas sociais que envolvem questões políticas revela-se muito complexo, devido à expressão que esta dimensão tem tido na estrutura social cabo-verdiana. Na condição de um investigador e ter uma trajectória que tenha passado por uma ligação a um determinado partido político, as condições do terreno referidas impõem ao investigador a necessidade de definir uma estratégia de recolha de dados que possa garantir, em primeiro lugar, que certos integrantes do seu público-alvo se disponibilizem em fornecer-lhe as informações de que precisa e, em segundo lugar, que as informações fornecidas não se sujeitaram a priori a nenhum exercício de manipulação por parte de quem as fornece, no intuito de

393 defender os interesses de uma dada organização política a que eventualmente possa pertencer. Tal estratégia pode mudar de nuances conforme os elementos que constituem as condições do terreno 239. 3. Decorrente de algumas limitações desta investigação bem como de alguns resultados alcançados, o presente estudo sugere algumas pistas para futuras investigações, de entre as quais duas delas nos merece uma atenção especial. São elas (i) a adequação do modelo de desenvolvimento local às condições socioeconómicas dominantes no meio rural cabo-verdiano e (ii) os contornos da participação política das Organizações da Sociedade Civil cabo-verdiana no contexto de uma democracia emergente.

239 O “terreno” aqui pode ser um espaço social e territorial, uma instituição pública, um espaço público de lazer, uma moradia, um local de trabalho específico, etc.

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