1 Kerry James Marshall, ‘A Portrait of the Artist as a Shadow of His Former Self’, 1980 CAPICUA73

Diretor

Jefferson Fernandes

Redatores

André Carmona Caio Ferreira Duarte Sales Francisco Fernandes Jefferson Fernandes Tomás Burns

Fotografia Eduardo Schnabl

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“Não me indigno porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor à minha ideia de os achar belos.”

- Fernando Pessoa em Livro do Desassossego, Bernardo Soares

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NÃO DIGA

Não diga para nós que não teremos festas de luxo, carros importados e casas espaçosas para acomodar nossos desejos. Porque os garotos só querem ir a noites com seus falos protegidos, com suas vestimentas bem alinhadas, com suas carteiras e veias cheias, pulsantes de ternura, sangue e luxúria, em busca de corpos bem ajustados de garotas meio certas, meio depravadas, assustadas pelo tesão arrebatador, concentrado e quimérico nas “boites” e bares; pelo suor no corpo, pelo calor da música que derrete nossos sentidos, a adolescência é tão exagerada! São nessas festas que descobrimos que os homens só não se casam com cabras, porque elas não conseguem assinar o testamento. E a descoberta que quase tudo isso é errado? É quase um pecado! Não diga que não poderemos descobrir que o amor existe, mas exige um trabalho árduo e aguçado (dos dois), e que é muito mais fácil (e barato) ficar com uma prostituta do que com uma namorada. Não diga que teremos que ler a merda de nossos textos e aceitar a sina: É impossível ser um bom poeta; por isso, todos que o são, loucos são. Não venha para nós com essas querelas poéticas, pois devíamos absorver mais livros sem capas, sem títulos, sem carcaça, apenas nos deliciar com a saborosa e suculenta carne tipográfica e arruinar nossos glóbulos com matéria literária, pois uns buscam se mascarar nos moldes das letras, outros se escondem atrás delas, mas são poucos os que casam com elas.

Ah, o turbilhão de pensamentos já confunde ideia e texto! Aos monólogos unidos em Braga: Saudemos a Briga…(Não)...Sida...(Não)...Vida! Não diga para mim sobre os tempos lá, já fui e voltei, sou um, era três. Não diga sobre os atentados apaixonantes, sobre a astúcia, ingenuidade e injúria. Não diga para nós que não poderemos destituir reis tiranos, matar fascistas, ou explodir a cabeça de homens, mulheres e crianças para fritar nossos sonhos e alentos em seu sangue a borbulhar, enquanto, ficamos alucinados com a pólvora peneirada por nossas armas. Acabaremos esmagados pelo peso do concreto cotidiano, teremos diatribes hostis com nossos pais, não teremos tempo para filosofias de botequim, start-ups starbuckianas e revoluções regadas a álcool e marijuana. Ajude-nos a enxergar, mas não ver nada; a entender

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Schubert; a ouvir, e ler, Glass; a suprir a falta de empatia pela maioria; a chorar com o choro amado; a ter pena dos meninos; a entender nossa condição e não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Ámen.

Caio Ferreira

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Já alguma vez tentou encontrar a substância, ou — por rigor — a identidade de que a sua existência é feita? Para além das perceções, da dimensão física do corpo - a medula, o nosso tutano estrutural. John Locke sugeriu, no seu An Essay Concerning Human Understanding, que a identidade pessoal tinha que ver com uma consciência temporal, isto é, que a identificação que o Homem faz de si mesmo concerne à sua capacidade de se enquadrar no passado, no presente e no futuro de igual forma. Que somos nós por, em retrospetiva, nos identificarmos com quem somos, em pensamentos e ações. Locke defendeu que entregarmo- nos a esse labor, o de nos encontrarmos, seria fundamental para nos compreendermos. Entendeu isso também Federico Fellini, cineasta italiano, que viajou pelas águas elípticas da consciência no seu notável 8½. Se conseguir essa identificação transversal se pode reduzir a uma questão de consciência de unidade temporal, compreender de que é feita essa unidade e por que razão subjaz ela, em tantos momentos de uma vida, às tempestades de identidade, aos desencontros, aos momentos de absoluto tédio ou profunda melancolia, é uma questão maior. No meio de 8½, o produtor de Guido Anselmi, um realizador que procura encontrar uma história para o seu filme, indica-lhe: «Quer narrar a confusão que um Homem traz dentro de si. Mas precisa de ser claro, inteligível. Caso contrário, de que adianta?». As palavras do Comendador, o produtor, funcionam, neste caso, como argamassa para reunir aquilo que 8½ melhor explora: os desencontros do Homem consigo mesmo. Federico Fellini conta em 8½ a história de Guido Anselmi (interpretado por Marcello Mastroianni), um notável realizador que tenta encontrar a substância do seu filme rodeado de uma longa equipa técnica sem direção, de uma abordagem excessivamente crítica às ideias da longa-metragem, da pressão associada à entrega de algo sem valor. Tudo o que circunda a produção serve como curioso estudo para Fellini, que projeta a indústria em que trabalha numa tela manifestamente caricatural — abundam as análises críticas sem conteúdo, baseadas em alegações de ausência de conteúdo filosófico ou em desenquadramentos

7 culturais, as desorganizações técnicas, essas de uma indústria que prioriza o adjetivo ao substantivo, as exuberâncias de produção. Guido quer fazer um filme que contenha tudo, tudo o que seja possível, tudo o que os meios técnicos e intelectuais permitam, tudo o que a cinematografia tolere, tudo o que o público esteja disposto a ver. E é nessa procura do total que Fellini encontra a sua mais relevante análise — a de que a totalidade é, no limite, a vacuidade, por força da ausência de honestidade. Isto porque, no que a contar histórias diz respeito, na literatura como no cinema, a honestidade consiste em falar do que se conhece, do que um Homem é feito. Fellini sabe-o e procura responder à sugestão do Comendador, explicar a confusão intrínseca ao Homem. Coloca em segundo plano a caricatura do universo do cinema, mergulha no surrealismo e encontra uma resposta muito semelhante à de Locke: se o âmago do Homem é a consciência de si mesmo, a honestidade associada à sua obra dependerá do grau dessa consciência, justamente porque a verdade autoral, o núcleo de uma obra, nada mais é do que a sombra substancial da identidade do seu criador. Na procura da totalidade — do absoluto — Guido fascina-se pelas almas e corpos que constituirão o seu filme, distrai-se, invariavelmente deixa a vida passar- lhe por trás como um rio de memórias perdidas, não compreende por que não encontra a essência da obra. E Fellini navega nesse rio, assessorando-se de analepses várias, para construir a consciência final do seu protagonista, essa consciência de que falava Locke e que Guido compreenderá em bom tempo — a substância não são as belas atrizes, os adereços gigantes, a sensibilidade da história ou a altissonância da cinematografia; são as pessoas da sua vida, que em sonhos ou recordações procura, é ele próprio. Porque só dele e delas se recorda no passado, só com eles se pode identificar, só a partir deles se consegue encontrar no tempo perdido. Fellini concluiu, como Locke, que a identidade pessoal — o cerne da existência — reside não no corpo, mas numa consciência contínua. Por trás do tom muitas vezes cómico, do surrealismo difícil de compreender, 8½, ainda que criticando uma certa necessidade intelectual e filosófica do cinema, dá respostas para as questões que faz e que, eventualmente, possamos fazer a nós próprios. Ao melancólico Guido, uma enfermeira pergunta, no começo do filme, o que estava a fazer — «Outro filme sem esperança?». O encontro com a sua identidade é um ato de indulgência

8 por parte de Fellini, que faz o seu protagonista reaver a lucidez pela sua própria mente, tal como 8½ o é para o seu público. Uma possível resposta para a pergunta do que verdadeiramente somos, e sobretudo um caminho para a encontrarmos no dédalo da consciência e da memória.

Francisco Fernandes

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A MODERN TRAGEDY, IN 3 PARTS

My lover sits across, legs folded, on her subway throne, just one crowd away from my embrace. Sick and weary I come to commute, but upon that sight I always stood upright, for posture is rule number one of attraction, never forget. Stares wander through the train, hitting her effervescent eyes every once in a while. It has been routine for what, 3 weeks now? Yet, every time our line of sight matches the connection is met with awkward shrugs and blank gazes into the ground. I play the role of the innocent bystander, who might’ve peeked at her once for curiosity’s sake, and it’s a role I play damn well. Heroics replaced by theatrics. Shame it would bring to the greats! What would all of those movies and books and poems where the conqueror-slash-lover wins over the heart of the distressed damsel have to say about this? Well, this is what I have to say about them: she is not in distress. She probably has a boyfriend, a lover, somewhere to be warm at night. The only thing in distress here is my tragic heart. At least it’s what I tell myself when my guts are nowhere to be found. Maybe she’ll be in actual distress when she catches tomorrow’s train. Who knows? Lights and sound waves hit the sweaty bodies of the lost. Like spirits in the night, or hippies on ayahuasca, they swing their arms and shake their twisted torsos in a perverted, nihilistic mating ritual, or attempted mating ritual. How I scoff at their fiendish moves! Surely I know better than these fools, don’t I? Apparently it only takes 3 drinks to join them in their droll, yet meaningless, whirls. Suddenly, as the nightclub becomes darker and as the alcoholic’s ballad grows louder, our eyes connect. I could recognize such a face three subway cars away. It’s her. Aphrodite in the rough. Should I talk to her? Should I dance with her? What do you do now? I ask myself, pulling my friends towards me to gain some sort of peer-approval, or peer-pressure. They pay no attention. Too busy with their own nighttime romances. I slowly float across the putrid and sticky dance floor and calmly penetrate her group of friends. The outsider is frowned upon, and eventually pushed out of their makeshift horo circle.

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Before I get sucked right back into the abyss of the drunken Sophomores, I’m able to shout out an “Hey!”, but to no avail. I lose her to the crowd. As I stare at the bottom of my glass, sadness and disappointment overrun my brain, only to be replaced with the only true lover I’ll ever know: cheap booze. 5 years go by and routines remain the same. However, the failed movie script that is my life not only features me as an underachiever, but as a married one as well. They say settle down before you’re thirty, so I settled down. Yet every day I look at that face, albeit never in the same way after that trip to that fateful club, wondering what would’ve been my life if my “Hey!” had been reciprocal. The answer is: meaningless. At least that’s what I tell myself every single day. Maybe the only way I can live is by thinking that everything is meaningless and that my decisions don’t matter. Maybe love is just a slogan for corporations to dupe us idiot consumers. Maybe I’m not responsible for anything! Yes? Yes! Everything is society’s, or capitalism’s, or alcohol’s fault! True love can’t be real. It just doesn’t make sense! Just like everything else! At least that’s what I think, everyday, as I step out of my train.

Tomás Burns

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THE DAY IT SNOWED IN AMSTERDAM

It was the day it snowed in Amsterdam and Karl Krassenburg sat at the edge of his bed, slowly tapping his conjoined index fingers against his chin, pondering and wondering where could she be. He checked his phone, and once again he noticed that all of his inboxes were empty. Four texts, three dm’s and two calls all sent to an apparent vacuum, to some abyss of ignored chats. He tapped his fingers a couple more times and decided not to send anything else, so he could avoid any sort of unwanted awkwardness an excess of messages may entail. Instead, Karl Krassenburg took a shower, drank some pretty stale coffee, ate some leftovers, put on his coat and went to work. The unexpected snow delayed all transport, and the tram was to arrive late. This gave him more time to mentally grind over everything he sent her. All possibilities crossed his head, but deep down he knew that he was just being ignored, or even worse, not being noticed at all. He got into the tram and recharged his ov-chip card, all while his eyes were locked to the same screen he’d been staring at since he left his apartment. From 9 to 5, Karl Krassenburg kept his phone at bay, in case something, or nothing, happened. Sure, his desk was packed full of paperwork, but did it really matter? Waiting for a text that would never arrive made more sense to him, after all, it had been the crux of his existence for the past couple of weeks. Lunchtime was the highpoint of Karl Krassenburg’s day, not because of the cake someone brought for someone’s birthday, even though it was pretty good cake, but because he found something relatable he could send to her, something that once made them both laugh, something that could, maybe, just maybe, break the already battered ice. But, alas, to no avail, the message was sent. Like all the ones before it. The rest of the workday went by slowly. People told him things, brought him things, ordered him to do things, yet all he could think about was the response he knew he’d never receive. The afternoon ended, and as the snowy night dropped its cold fangs over the city, Karl Krassenburg was forced by yet another late tram to walk home under the grueling snow, giving him the chance to have a pilgrim’s epiphany on how to handle his love life. He did no such thing. All he could think about was her. Suddenly, like headlights in a dark countryside road, Karl Krassenburg spotted her green eyes piercing

12 through a restaurant’s window. At first, he couldn’t believe it. Maybe the snow, or maybe the dirty windowpane was messing with his sight, but no, it had to be her. It could only be her. All at a trice, everything became warmer, the whole city lit up and winter had practically ended. For once, he was happy. And that was when he noticed the man sitting right in front of her. The man that laughed at her stories. The man that gently held her hand and told her everything would be fine. The man who carefully listened to all the stories she had never told Karl. The man who paid for dinner. The man who kissed her and the man who took her home. One hour went by and Karl Krassenburg found himself still staring into the same restaurant. There was nothing there for him, so he went home. As he trekked through the white streets, followed by the icy river and the chilly wind, his phone lit up, and a bland “ahahaha” from the woman he still loved popped up. A tiny tear stream flowed and froze on his face, just as the day it snowed in Amsterdam, came to its cold close.

Tomás Burns

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RAN

«A meia-noite é tensa e silenciosa», principia Walt Whitman no trigésimo sexto poema do seu Canto de Mim Mesmo. Pelos livres versos que o compõe, Whitman descreve de forma crua e seca a tenebrosa visão de um cenário de guerra. Do «rosto morto de um velho marinheiro», das «pilhas informes de corpos e mais corpos» e dos «pedaços de carne nos mastros e nas vergas», dos «negros canhões impassíveis», dos «pacotes de pólvora espalhada» e do «odor penetrante», «apesar de todos os esforços», sobem as chamas que «continuam em cima e em baixo» e nada permanece senão o caos. A guerra é caos, e nenhuma descrição de um cenário bélico, ou da própria guerra, poderia terminar nalgo que não o fosse. Daí o título original de Os Senhores da Guerra (1985), o último grande épico de Akira Kurosawa — Ran. Palavra também crua e seca, facilmente confundível por anglicismo, mas que em japonês significa, literalmente, caos. Kurosawa, um dos maiores cineastas japoneses, inspirou-se na peça Rei Lear, de Shakespeare, e nas lendas de Mōri Motonari, um poderoso dáimio — ou senhor feudal — do século XVI, para desenvolver a história contada ao longo dos 162 minutos da longa-metragem. Se as lendas do dáimio conferem ao filme uma dimensão histórica própria, Shakespeare, evidentemente exógeno, traz à história uma natureza trágica singular. Curiosamente, os estilos encontram-se e obtêm a sua melhor proporção no uso das técnicas do tradicional teatro japonês Noh, que, através de longos e tensos períodos de silêncio, de ausência de movimento, e de interpretações, em contraste, absolutamente abruptas, eleva a tragicidade inerente ao teatro shakespeariano a um plano funcional muito longínquo da Europa medieval. À semelhança da história de Rei Lear, em Os Senhores da Guerra, Hidetora Ichimonji (interpretado por Tatsuya Nakadai), o poderoso Senhor da casa Ichimonji, dominante na região, decide, perante a velhice, conceder o poder que detém ao seu filho mais velho, sob condição de manter o seu título e relevância no panorama governativo. Como na peça de Shakespeare, a decisão do soberano revela as fragilidades dentro da

14 família e serve como principal catalisador para a exploração dos temas do poder, da guerra, da traição e, no limite, da natureza humana. A essência do teatro tradicional marca não só a abordagem à interpretação de certas personagens, mas é também característica substancial da atmosfera do filme. Não só concede, portanto, essa sensação de endógeno a algo estrangeiro – atribuindo nacionalidade nipónica à tragédia inglesa -, como marca o ritmo da história, sobretudo no que às relações humanas de poder concerne. A sobriedade silenciosa do teatro Noh, muitas vezes cerimonial, a violência das palavras, o ódio comprimido nos olhares e nos gestos, libertado na abruptude, tudo é sombra da grandeza destrutiva e caótica de Os Senhores da Guerra. Kurosawa quis um épico – fê-lo -, mas não ignorou a raiz dessa dimensão: o homem. E porque a guerra é um produto humano, ultrapassa-o em tamanho, esmaga-o em consequência; mas é fruto das suas pequenas relações. A compatibilidade da tragédia shakespeariana com o belicismo épico reside, justamente, no facto de a altissonância da guerra emanar da cerimónia, da violência das palavras, do ódio comprimido: a guerra é somente a explosão. A notabilidade de Os Senhores da Guerra estende-se, naturalmente, ao plano visual. A cinematografia, acompanhada de um rigoroso trabalho de figurino, capta as duas dimensões do filme, encontrando o ritmo e a atmosfera para o homem e para a guerra. Os planos imóveis, de movimentos lentos e ponderados, geralmente sem ou com pouquíssimos cortes, em que se alongam as palavras, contrastam com a sucessão de planos em movimento, frenéticos, pesados, galopantes, em que Kurosawa projeta notavelmente o conflito humano. Abundam ainda os planos longínquos das planícies, dos montes, do céu que desce sobre a terra. E se quando filma a guerra, Kurosawa opta por a tornar na imagem maior, quando o homem é posto ao lado da natureza, torna-se pequeno: a terra alonga-se, o céu transforma-se numa muralha, a bruma engole-o. A proporção natural das coisas é fundamental, e ainda que os exércitos consumam os planos pela grandeza e força dos números, quando posto em perspetiva com as montanhas japonesas, o homem torna-se novamente pequeno; mesmo que, como no exército de Hidetora, um soldado valha por cem. Os Senhores da Guerra poderia ser apenas um épico de guerra, com fundo histórico e notável valor cinematográfico, mas a profundidade que

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Kurosawa alcança deve-se ao seu trabalho de personagens, ao estudo das suas relações e comportamentos, à reflexão acerca do poder e da traição. As palavras não ganham guerras, diz um general no último ato do filme; não ganhando, criam-nas, ateiam fogos, derrubam exércitos, destroem mundos. Num formato estritamente épico, apresentar-se-ia o caos da guerra fundamentalmente como consequência. Kurosawa tenta mais – tenta explicá-lo, dar-lhe natureza, fazer compreender que o caos é não só o fim como a origem. Que antes do caos da guerra há o caos humano. E que dele só ele pode surgir. Termina assim o trigésimo sexto poema do Canto de Mim Mesmo: «Arquejos, queixumes, o sangue que cai, breves gritos selvagens, longos gemidos / de desfalecimento, / Tudo assim, tudo irreparável.» O caos, como o fogo, estende-se consumindo - para trás ficam os despojos, o irreparável. Os Senhores da Guerra foi além de Shakespeare e concedeu outra dimensão à tragédia de Rei Lear. É uma experiência visual singular e um estudo interessantíssimo acerca do homem e da guerra. Sobretudo acerca dessa característica própria da guerra expressa em palavras por Walt Whitman e que Kurosawa sintetiza na última imagem do filme, talvez a mais poderosa, em que um cego, cuja visão lhe foi tirada pelo, vagueia sozinho e perdido sobre as ruínas de um castelo que outrora fora seu. As nuvens negras encobrem o céu até ao fim, o sangue cai, espalham- se os gritos selvagens, o caos prossegue; e assim fala Os Senhores da Guerra sobre a irreparabilidade do mundo.

Francisco Fernandes

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CLAMOR

Tantas foram as vezes que me entreguei, De corpo e alma, a causas perdidas, Que sob a ruína da última jurei, Não sobreviver às feridas.

Procurei a morte na batalha, Mas de lá – só voltei desfigurado – Tão fundo me cortou a navalha Por uma mão cheia de passado.

Aí percebi quão ingratas são as memórias Quando findas as belas histórias. Jurei não mais pegar na espada Por outra mão cheia de nada.

André Carmona

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HANGOUT AT THE GALLOWS

For most of us, death is a surprise. It could happen tomorrow, or 30 years from now; we simply don’t know. We’ll never know, because, when it hits us, it’s too late for a reaction. Maybe that’s why they tell us to live like we’ll die the following day. Because we might. We don’t know. We’ll never know. Now, there are some exceptions to the uncertainty of death: some terminally ill patients and people on death row. There is something about convicts who were sentenced to death that is particularly uncanny. Their death is a court-appointed, calendar-fixated ordeal: it has a day, an hour, and an entire ceremony attached to it. Someone who is on death row knows that their end is coming. They even know when and how it’s coming. Death is no longer a surprise, but a punishment. Curiously, this is just one of the many ideas that French-Algerian author Albert Camus explores in his 1942 novel L’Étranger - a short yet deep tale about a young murderer and the way he handles his scheduled execution. The book opens with Meursault, the main character, receiving a telegram warning him of his mother’s passing. Here we get a small taste of apathy that will mark Camus’ character throughout the book. His reaction to his mother’s death is cold, empty and practically nonchalant. This type of attitude mirrors all his actions in the stories, from his proposal to his lover, Marie, to the murder of a young arab man. Throughout all of these endeavours, one can only imagine Meursault having a chill reaction to them. In fact, right after he shoots this man, he merely comments on the intense heat, almost as if the murder didn’t happen at all. Meursault reacts similarly to prison life and to his impending execution. One must ask themselves: why, and how does Meursault act like this? The answer is simple: Meursault recognizes that there is no inherent meaning in life, and that all he can do to address this nihilistic anguish is embrace the absurd. In a conversation with the prison chaplain, Meursault bursts into a rage, dismissing God and proudly declaring his belief in Camus’ philosophy of Absurdism. In many ways, the young pied-noir man is the personification of this theory. Meursault acknowledges his fate and embraces death. He even states that

18 he will be happy once he sees the large congregation of people surrounding the guillotine as he prepares for his final moments. In a similar situation with a completely opposite attitude is a character named Rubashov in the 1940 novel Darkness at Noon by Hungarian-born British author Arthur Koestler. Rubashov could easily be called Trotsky, or Bukharin, or any other old-guard thinker of the Soviet Union - as it’s what he’s trying to represent. Koestler’s grim portrait of post-war, Stalinist U.S.S.R. provides the perfect setting for an old ideologue to wonder where it all went wrong. Although Rubashov is skeptical of his arrest, considering it to be a revisionist attempt at cutting off loose ends, he ends up accepting his fate. Yet, he does so for a reason totally opposite to Meursault’s. Rubashov is so entrenched in the ideology he helped create that he believes that is execution is merely the consequence of all he did to harm the regime. All the “deviations” he perpetrated. Thus, Rubashov adds a false, political, meaning to his death. All in all, his execution is the closing of a chapter that needed to end. Both Meursault and Rubashov are at death’s doors, only one swing of the executioner’s axe away from the pearly gates. They both embrace their end, but while Rubashov considers it to be an appropriate end to a meaningful existence, Meursault sees it as an inevitable aspect of life. Further, while Rubashov dies miserably and in shame, Meursault dies happy. The latter’s indifference to the world around him is what separates him from the old communist. Faced with a meaningless world, Meursault chooses to be happy, instead of attempting to justify his presence before St. Peter. Quoting Romanian-born French philosopher Emil Cioran: “The others [nihilists or pessimists], having no reason to live, why would they have any to die”. By accepting death as just a meaningless step in our lives, one is freed from the despair of finding a way to justify one’s demise. By living with more indifference, one can easily be happier. Be more of a Meursault, and less of a Rubashov.

Tomás Burns

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MINHA MARIA

Tão só como o vento. E nem ele me compreende. Incrível. Rondo as ruas e os bares à noite, de dia, as lojas e estações de autocarro. Deparara-me, no outro dia, com uma mulher sentada num banco – outra vez os bancos (como me perseguem) – que assentava no colo um enorme bolo de chocolate. Fiquei atordoado por momentos, há muito que não via alguém com um bolo na rua, quanto mais à espera do 416. Subitamente, um rapaz que acabara de sair da estação perguntou- me as horas e eu, que não carrego qualquer tipo de relógio comigo, respondi-lhe que a julgar pela sua sombra eram três da tarde. Ficou zangado, normal, mas nada podia fazer, aliás, o rapaz tinha cara de quem passava fome há dias e cheirava a quem dormia na rua há dias também. Se tudo fosse tão inesperado como o que me vem acontecendo. No outro dia, a empregada de um dos restaurantes onde costumo ir almoçar – quando estou perto de casa – pediu-me o número do telefone, e eu, mais uma vez, envergonhado e sem saber o que dizer, disse que esta poderia vir à minha casa; e veio. Hoje sento-me no sofá à espera de que a Maria chegue do trabalho. Casamo-nos, a propósito, e está por vir um filho – espero que seja homem.

Jefferson Fernandes

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DAMN

Emmett Till. Trayvon Martin. Martin Luther King, Jr. Malcolm X. Walter Scott. Clementa Pinckney. Aiyana Stanley-Jones. Rekia Boyd. São pessoas. Borboletas dentro e fora de casulos. Cheias de defeitos. Cheias de virtudes. E abatidos a tiro. Abatidos; mas nunca esquecidos. Se “cheias de defeitos” fez-te sentir raiva e “cheias de virtudes” fez-te decifrar e abraçar a humanidade por detrás daqueles nomes, então, diz- me o que sentes? Borboletas?

Kendrick Duckworth Lamar, nascido a 17 de junho de 1987, oriundo da mítica cidade de Compton, na Califórnia, onde tantos artistas já escaparam do casulo de se ser afro-americano; de signo Gemini, como outras grandes mentes artísticas: imaginemos Fernando Pessoa e as suas múltiplas personas e, subitamente, torna-se mais fácil e interessante compreender a obra de Kendrick. Para quem acreditar em horóscopos, acredite nos Gémeos para produzir boa arte. De discografia imaculada e qualidade vasta, Kendrick avançou pelos campos da música inspirando-se em Dr. Dre, 2Pac, Prodigy (dos Mobb Deep), Eminem, Nas, Mos Def ou DMX, entre outros, e imaginando-se a ele mesmo nos pés daqueles artistas. Todos os dias, caneta no papel, rimas a serem melhoradas, melodias a serem esboçadas. Aos 8 anos, viu Dr. Dre e 2Pac gravarem o videoclipe da “California Love”, sucesso comercial enorme de 2Pac em 1996. Mal saberia Kendrick que, 20 anos depois, filmaria e apareceria num videoclipe, para “King Kunta”, no mesmo telhado onde parte de “California Love” foi gravado. Esteve nos pés de 2Pac e Dr. Dre, a propagar a mesma mensagem, mas sempre no seu estilo. Aliás, esteve no telhado onde 2Pac esteve e foi impulsionado para o estrelato por Dr. Dre. Para quem acreditar em premonições, acredite nestas histórias para se imaginar famoso um dia.

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Aliás, prosseguindo no campo que uns dirão que é “espiritual” sarcasticamente e outros afirmarão “espiritual” cegamente, porque tudo na vida são crenças e descrenças, é bem conhecida a história, contada pelo próprio, de que Kendrick, ao regressar de mais uma sessão de gravação, ia finalmente adormecer no sofá da casa da sua mãe quando viu 2Pac aparecer-lhe à frente (no estado entre sonolência e sono profundo, um sonho) e dizer-lhe que não devia deixar a sua música morrer, que ele era o salvador do hip-hop, o missionário da mensagem que é exposta no fim de “Mortal Man”, a última faixa de “”, numa entrevista faux com 2Pac, e que não me atrevo a expô- la por saber que não lhe farei justiça – se bem que desconfio que é precisamente o que farei no resto deste artigo. Esta história ocorreu tinha Kendrick 21 anos. Em 2008. Em 2008, Kendrick ainda não havia lançado “Section.80”, o primeiro álbum que o lançou do underground da cena oeste do hip-hop para os holofotes daquele que poderia ser a próxima grande estrela ou grande desilusão. Este foi apenas lançado em 2011. Em 2012, a confirmação de que os holofotes eram de estrela, de iluminação, de bradar a Música, com o álbum narrativo “good kid, m.A.A.d. city”, cujo elogio basta por eu referir que este álbum foi leccionado numa disciplina de Inglês na Universidade Augusta, no estado da Geórgia, ao lado de nomes como James Joyce, pois o Professor Adam Diehl quis abordar obras que explorassem a ligação de personagens com a sua terra-natal, e ficou completamente atónito pela complexidade narrativa, pela experiência pessoal do Kendrick, pela linguagem de rua que ligasse mais alguns alunos à disciplina e pela incessante e impagável invocação da cidade-natal de Kendrick – Compton. 5 anos depois, temos “DAMN.”, o álbum que obteve mais reações mistas por parte da crítica e público de Kendrick, em que uns criticam a penetração mais comercial que o artista fez nas ondas sonoras e outros elogiam a contínua complexidade e profunda análise, quer introspectiva quer de outros aspectos da vida, que Kendrick elabora, independentemente da tela sonora ser considerada mais ou menos comercial. Mas que fez sucesso comercial fez, tendo *todas* as 14 canções chegado a estatuto platina, segundo a RIAA1. E que fez sucesso

1 “Recording Industry Association of America”, ou, em português livre, “Associação da Indústria de Gravação da América" 22 intelectual, mais uma vez, fez, merecendo esta obra um Prémio Pulitzer da Música em 2018, sendo a primeira vez que uma obra de outro género que não música clássica ou jazz arrecada este troféu, o reconhecimento de uma vida. E pelo meio? O motivo de todo este artigo. “To Pimp a Butterfly”. 2015. 16 canções. A salvação do hip-hop, disse a aparição de 2Pac em 2008 a Kendrick. Para mim, a salvação do mundo, da humanidade, ou, em último caso, de mim.

"Every nigger is a star"

A borboleta presa dentro do casulo. A luta contra o sistema. Não só contra as instituições, mas sim contra o sistema enraizado em nós mesmos: a nossa liberdade e criatividade restringida por um ambiente conformista. As fendas deixadas pelo feio amor ao dinheiro, à fama, ao poder, ao reconhecimento, ao sexo, ao pecado iminente. E a luta contra isso. A busca pela partilha, pela comunidade, pelo nosso lar, cuidar dos nossos; mas, primeiro, cuidar de nós mesmos, antes de podermos ter qualquer influência sobre os demais. Ninguém nos pode cortar as asas da borboleta, ninguém nos pode negar a nossa felicidade. Claro, temos os nossos tormentos. Claro, temos os tormentos dos nossos, temos problemas, a vida não é um mar de rosas. A questão é aproveitar cada momento, é ver o positivo, é lutar por uma mudança melhor em nós mesmos, para vermos uma mudança na sociedade, para vermos uma mudança no nosso lar. A corrida pelo dinheiro na Wesley's Theory, a corrida pelo individualismo e egocentrismo na For Free, a corrida pelo poder entre os nossos pares na King Kunta, pela fama na Institutionalized, pela lascívia na These Walls. A lidação e disputa com os nossos demónios pessoais na u, e a superação possível na Alright. A fuga ao pecado que nos persegue na For Sale. O refúgio encontrado na Momma, nossa mãe África, mãe de

23 humanos; e o regresso à terra natal na Hood Politics, terra de Kendrick. As consequências de todas as acções na How Much a Dollar Cost, e a apreciação final da Humanidade na Complexion, somos todos tons de castanho. A realização de que nem tudo é perfeito na The Blacker the Berry, e o ensinamento aos nossos mais jovens do que é a vida na You Ain't Gotta Lie (Momma Said). Por fim, a superação final encontrada na i - mas apenas momentaneamente. Pois vem a reflexão final na Mortal Man. Que nem tudo está perdido, mas também nem tudo está ganho. Cresçamos asas, e lutemos. Este álbum não é necessariamente pró-negro, apesar de estar inevitavelmente ligada a toda a história de africanos nos EUA e no mundo, mas sim pró-humano. Ensina a ver o melhor dentro de cada um de nós. Motiva-nos. Inspira-nos. Olhamos para o mundo e para as pessoas doutro modo, mais positivo, apesar de todas as angústias e inquietações que bem conhecemos, dia após dia. Contudo, foi após uma viagem solene e catártica de Kendrick a África do Sul, em 2014, que este álbum surgiu. Portanto, apesar de não ser necessariamente pró-negro, é isso que o é na sua génese, nas suas bases. Apenas após escutar o álbum várias vezes é que nasce a realização de que ser pró-negro *é* ser pró-humano. Se vidas negras importarem, é porque, assim, todas importam. Da vitória Africana nascerá a vitória da Humanidade. E esta vitória só surgirá após o reconhecimento dos (nossos) defeitos apontados na “The Blacker the Berry” e a apreciação das (nossas) virtudes na “Complexion”. Tal como só teremos glória após olharmos para Emmett Till e percebermos o que falhou, para Rosa Parks e percebermos o que ela lutou, para Nelson Mandela e percebermos o que ele preconizou, para e percebermos o que ele profetizou por entre linhas sonoras, notas musicais e poemas enviados ao ouvinte e a 2Pac. Juntando a esta mensagem temos uma sonoridade e instrumentalização que anda de mão dada com o que o artista transmite. O mais atento consegue decorrer todas as ideias só de ouvir os instrumentos. E isso é algo inigualável. Bebendo fortemente aos ritmos jazz de Kamasi Washington e Thundercat (os artistas da hora em saxofone tenor e baixo, respectivamente), aos grooves funk e soul de George Clinton e Terrace Martin (o senhor-pai do funk, o senhor-pai de Funkadelic e Parliament, e o virtuoso em trompetes, piano e saxofone

24 alto), não esquecendo da sensualidade R&B oferecida por Pharrell Williams, Anna Wise e Bilal, e, claro, no início e no fim, um ciclo construído sobre a sua própria história, temos o hip-hop, a exposição em “Institutionalized” por Snoop Dogg, o telefonema conselheiro de Dr. Dre em “Wesley’s Theory”, a passagem bela e sensível de Rapsody em “Complexion”, o único verso que não é de Kendrick em todo o álbum, e a poesia magistral, profunda, complexa, circulante sobre si mesma, informada mas consciente de si mesma, dos seus defeitos e virtudes, do seu casulo e asas de borboleta, a poesia de Kendrick, que passou horas e dias e semanas e meses a fio com a sua equipa para realizar este álbum, como um maestro de uma obra-prima que ainda não sabe se a será, e, francamente, não quer saber que a seja, apenas quer mudar o mundo. E, tocando mais uma vez na ligação pró-negro-pró-humano, não será a música a linguagem mais universal que existe?

“I don’t know I’m no mortal man Maybe I’m just another nigga"

Kendrick Lamar maravilha-nos com dois poemas na última canção, “Mortal Man”, um dos quais vem sendo revelado verso a verso no fim de quase cada canção do álbum. Estes poemas fazem um melhor trabalho a explicar a narrativa e mensagens do álbum melhor do que eu ou qualquer outro texto que possam ler. O máximo que te posso pedir, caro leitor, é que os leiam ou oiçam (precedida da tal entrevista faux com 2Pac, o último mensageiro que Kendrick quer tanto ressuscitar com a sua obra). Mas tentarei resumir de seguida. O casulo somos nós. Somos lagartas, somos crisálidas. Pessoas, mentes; células, átomos que ainda não realizaram o seu potencial. E nós também somos a nossa circunstância. As paredes do nosso casulo. Temos o amor da nossa família, a familiaridade das nossas ruas, as ruas por onde mais gastamos o nosso tempo, e o tempo que se pode traduzir em evolução. Mas não evoluímos. Como Kendrick diz: estamos presos.

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Mas esta prisão não nos é invisível. Sabemos que existe. Podemos lutá- la. O problema da prisão é que o amor da família, a familiaridade das ruas, as ruas por onde gastamos tempo e o tempo da possível evolução enfraquecem. Mas há o momento da revolta. Há o momento da superação mental e espiritual, e da luta meticulosamente construída. Algo que nos eleve para fora do casulo. Algo que nos eleve para fora da prisão. Não destruímos as nossas paredes, não as agredimos; transformamo-las, alargando-as para quebrar o ciclo da prisão no sistema humano, que tão estupidamente a nossa racionalidade criou. Assim, vemos a borboleta. Já sabíamos que ela existia, mas tínhamos inveja, raiva, cobiça, fúria. Mas isso faz parte do ciclo. E do ciclo já estamos fartos. Passámos o álbum todo a chular as borboletas. Mas é isso que elas pretendem. Não mais. Vão lidar connosco, mas em simbiose, um abraço colectivo, em que o termo “casulo” deixa de ter o sentido pejorativo e claustrofóbico e passa a ter um sentido universal, igual e respeitador. Um lugar comum que obedece ao famoso lugar comum “todos iguais, mas todos diferentes”. Embora totalmente diferentes, o casulo, a lagarta, a crisálida e a borboleta, agora, somos nós.

“What’s your perspective on that?”

Duarte Sales

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São – foram – 7 dias de sol e 3 de chuva. Estava tudo muito confuso. Os habitantes daquela pequena cidade já não sabiam o que fazer. Esta instabilidade climatérica durava há cerca de ano e muitos dos que ali estavam, vivenciando tal praga, queixavam-se à Câmara da cidade constantemente. Dado as circunstâncias, o presidente resolveu doar, pelos estragos às terras e animais do campo, uma determinada quantia de dinheiro para que pudessem dali sair, rumando, assim, as suas vidas. Gananciosos, ficaram, para que não tivessem de comprar outra casa e animais, sustentavam-se com o que ali havia, até que acabasse. Mais uma semana. O dinheiro já não dava para nada, os três dias de chuva desta semana foram monstruosos, como se Deus tivesse presenciado a ganância humana. E este, por bondade, resolveu aumentar o preço dos produtos no exterior, fazendo com que as importações fossem cada vez menores, a menos que aumentassem o valor da sua moeda. Ambiciosos agora, comerciavam entre si, tornavam-se autossustentáveis, como os seus antepassados. Alegres com o sucedido, resolveram afastar-se daquela terra, pois já tinham todos os meios necessários para que a praga saísse de suas cabeças. Fora tudo muito rápido, só um ano.

- Como está o senhor? Não se mexa muito. - Há quanto tempo aqui estou, senhor? - Há um ano e pouco… Superou barreiras que nem sabe Deus como! - Mas o que é que me aconteceu?

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- Caíra dum prédio. Dizem que a Câmara iria destruí-lo e o senhor, contrariando tal decisões, permaneceu no terraço. - Tudo assim, sem mais nem menos? - Sim. - Obrigado pela informação. - Ora essa, deseja ligar a alguém? - À minha mulher, Maria.

Jefferson Fernandes

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DOMINGO

Atravesso um pequeno pátio florido pela primavera e povoado pelo verão, o caminho é contíguo a uma escola básica, mas que, por ser domingo, o silêncio reina na região. A entrada é composta por uns arbustos, que pareciam ter sido deixados pelo vento devido à sua assimetria, um pinheiro-manso alto e exuberante, que cria uma certa falta de sintonia entre a calma do local e a rigidez da natureza (sempre alarmante), no entanto, não há tantos elementos naquele singelo parque, metamorfoseado sempre com seus visitantes. É um gostoso momento atravessá-lo no fim da tarde de um verão, quando o sol com insónia sempre tarda a cair. Uma brisa de vento bate na minha cara e dá um alento de sentar em qualquer um dos bancos para senti-la. Contudo, o tempo é curto e a estadia no parque deve ser terminada, a passagem de saída é calma como toda a sinergia do local, um par de sorrisos ao acaso para uns transeuntes idosos, um aceno de mão para o vizinho que sempre vê, mas nunca fala e um “Boa tarde!” para alguém que profere o mesmo para você. Eu adoro o (mentiroso) quotidiano! O vento ainda bate ecoando nos meus tímpanos, a invisibilidade tomando corpo no fim do pátio; escutar o vazio do som ser preenchido por completo pelo silêncio, e ouvi-lo nas suas mais obtusas formas e trastejos, clarificando com os ouvidos- a fera implacável e indomável do espírito humano- a vontade. Dela, o silêncio tem a forma que desejar. É difícil conter a vontade, ela, sendo inconveniente, aparece nas mais inoportunas horas e sai como uma prostituta após o serviço terminado. Eu continuo a andar com o sol parado, um vislumbre dos dois, cada um querendo estar na posição do outro, sempre assim. Desço uma rua. Perpendicular a ela, há uma, com todas as casas pintadas de rosa (pintar-se-ia um belo quadro aqui), paro e observo um pouco, o amarelo pequim do céu no pré-entardecer configura uma certa desarmonia com as casinhas (como um borrão na pintura já terminada). Uma bela pena. Prossigo minha travessia para o local, a avenida de Roma sempre saúda bem seus moradores, o seu Zé, com seu café na mão cheio de açúcar, espera Dona Artrite cheio de teimosia e alegria. A felicidade é teimosa em certos casos, como nos dos pacientes de oncologistas, que aclamam a morte com uma bela dança, três rodopios, um belo cântico e

29 nada de respeito. Seu Zé benze aquele final de tarde para mim, levanta a chávena, ainda cheia, e sorri olhando nos meus olhos. Devolvo a simpatia. Passo por uma passagem subterrânea, sem muita luz, mas cheio de pessoas, todas que fazem parte do círculo de amigos dos amigos dos meus primos de 3º grau, sinto uma certa proximidade com todas elas, e não preciso conter frieza alguma (nem elas). A subida da passagem traz de volta o sol dilacerante, todo meu tecido epitelial sofre um pouco com ele, ouço um grito distante dele naquele silêncio majestoso da Avenida; é bem verdade que ela possui inúmeros cafés e bares, mas todos estão quietos, talvez, todos estejam contemplando o mormaço do domingo, o reflexo nas pedras da calçada, o cheiro do cigarro, ou o grito da minha pele. Não sei. Ouço um som penetrar meus canais auditivos, ah, limpa toda a cera do meu ouvido, reconheço de longe a introdução de “Preciso me encontrar”, aquelas deambulações pelas cordas rotas do violão que fazem um rasgo no seu corpo, caindo ainda mais em você. Fico mais arrepiado que porco-espinho. É bom ouvir um pedaço de casa, aumenta sua tranquilidade, mas também o prurido em voltar. É bom dosar a casa. Continuo a subir a Avenida e chego em frente à Igreja um pouco antes da missa começar. A parte de fora da Paróquia é dividida em três segmentos. Logo a frente de suas portas, há uma pequenina praça com uma fonte ao centro (deve haver alguma escultura nela), uns bancos para senhores lerem seus jornais e mendigos dormirem e oito pinheiros simetricamente alinhados em duas filas indianas, um rigor bíblico, são os traçados dessas árvores. A praça fica abaixo da linha do chão, dando uma visão ainda mais clara do palacete da fé. Na parte direita da Igreja, há lojas fechadas, na parte esquerda, há lojas fechadas e uma livraria (fechada). É domingo e entro na Igreja. O teto do Local é extremamente alto, ele é sustentado por 10 colunas brancas com a tinta já antiga, um amarelo esbranquiçado, há em cada uma delas dizeres bíblicos e mensagens para os crentes terem uma experiência agradável no espaço (o marketing já chegou na esfera paroquial), as duas fileiras de bancos na entrada se encontram com o altar, num choque de humanidade e divindade. No altar, há a mesa eucarística, um grande presépio mais ao fundo com duas imagens santas em cada lado, e em cima, Jesus, olhando com amargura e paz todos os seres daquele santuário. Acomodo-me num dos últimos bancos, mal consigo reparar nas expressões do pároco, nem percebo muito bem o que

30 está a dizer, permuto minha visão entre Cristo e as pessoas, elas sempre com comiseração, Ele com uma espécie de frustração. Os ritos iniciais não são muito do meu gosto, algumas palavras que uns ex-alcoólatras tentam pronunciar sem muito sucesso ao lado esquerdo do pároco, adorações em que a maior parte das pessoas não sabe para quem vão, em suma, é uma loucura ritmada, o padre como um maestro dessa sinfonia. Eu admiro a música, as vozes do coral são tão boas quanto as vozes dos violões do Cartola. As asperges, logo no início, também trazem um frescor para esse calor. Essa parte da missa é muito mais estética do que espiritual. Uma senhora chora ao meu lado por ter perdido o filho de apenas trinta e três anos, o garoto estava drogado e ao sair de uma festa bateu o carro, em cheio, num camião, o choro dela parece que não contagia ninguém da plateia, nos ritos da palavra, o Evangelho nada falou a respeito de morte, ou de filhos, mas de pães, muitos e muitos pães, a senhora Dulce (esse era o nome da mãe de luto) é rica, possui uma vidraçaria muito bem cotada no mercado, não fazia muito sentido aquela conversa de repartição. Para a maior parte daquelas pessoas, essa conversa não fazia sentido, a homilia dialogava apenas com um pé- rapado, que frequentava a Igreja para receber a comunhão. Porque a religião é insolúvel em vida, ela fica concentrada em só um ou dois momentos na semana, na hora em que precisa brigar com os filhos e quando requer sorte na lotaria. Por todo esse espaço de tempo, do padre aspergindo o povo com água-benta até o choro rico de Dulce, o sol não arredava o pé, ele permitia se transmitir em todas as direções, luz as senhoras que recolhiam dinheiro dos telespectadores pálidos e luz o peito naufragado, em busca de refúgio, dos pecadores. Mais leve os pecados ficam, maior for o peso das moedas postas no saco de oferendas. Aqueles ideais soberbos e egoístas que enchem o ofertório, ahhh, faziam o rosto mais corroído e dilacerado, já frustrado, daquele que ocupa a tribuna de honra da Igreja. Não há problema, se com dinheiro já se compra amor verdadeiro, também deve comprar a salvação. As lágrimas de Dulce são iluminadas pelos raios solares fugidios que invadem o palacete de fé através das vidraças laterais e num encontro de brilho, cor e alegria parece que Deus, finalmente, se materializa diante daquela plateia. Curvo-me perante a natureza e inicia a consagração da oração eucarística. O silêncio é inebriante e os soluços que saem da boca da vizinha não são o bastante para minha mente se acomodar no exercício proposto, quase acho a certeza que frequento a missa por medo e para ouvir a fusão de

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órgão e coral. De repente, todo aquele ritual desaparece, tudo some e resta apenas o padre, o mendigo e o acólito, os únicos sãos, sinto um vazio tremendo, a barriga fria rosna para dentro, aterrorizante e sublime, mal consigo ouvir a campainha que soa lá no altar, tão distante de mim, mas escutá-la é redobrar as esperanças e retomar cor e som. Saio do estado ébrio e caio na solidez daquele idílio, Dulce dá um abraço apertado em mim após o Pai-Nosso e segue para sua comunhão, eu sento no banco ainda meio atordoado pelos impactos e o Sol já não tarda em descer. O padre faz sua despedida, espero ele sair do altar para me retirar do local, algumas senhoras já haviam ido embora um pouco antes da bênção final e seguiam seus rumos para casa. Ao sair da Igreja, dona Dulce esfrega moeda na mão da empresa de livros litúrgicos em vez da parca mão dos moradores de rua que faziam uma fila da esmola. Sinceridade maior que a deles não existe, são fiscalizadores da missão divina, mesmo assim, as pessoas passam retas, nem todos estão com as contas acertadas. Eu passo reto. E, entre os diversos ângulos retos das ruas perpendiculares da avenida, há o sol, ele já quase escondido dá a sua despedida, um céu rubro manchado com pitadas de nácar que percorriam o horizonte, linhas de lã num tricot rebuscado, uma atmosfera muito parecida com um entardecer no Algarve uns tempos atrás, em algum passadiço onde o prado e o mar se encontram, meu tio e eu andávamos em busca de um restaurante, “Sabe...eu sou um escravo liberto, meu sobrinho”, onde a bonança do homem e o esplendor da natureza se encontram, lá onde estou. O céu gracioso facilita minha passagem de regresso, passo por todos os cafés de novo, agora cheios de pessoas a jantar, pela avenida de Roma, dessa vez sem Seu Zé para me cumprimentar, subo as ruas que tinha descido, e reparo agora a unidade da possível pintura de rua, a mancha rosa das casas se transforma na mais perfeita simbiose terra- estrela, um espetáculo para aqueles moradores, que fazem parte do quadro dos humanos comendo pó de estrelas. Faço todo o trajeto de regresso num silêncio controlado, ornamentando tudo, todos os acenos bem dados, frases bem proferidas, pensamentos sistematicamente bem diagramados, tudo para uma volta quieta sem abafamentos. Com a vontade em meu comando, entro na saída do pátio florido pela Primavera, povoado pelo Verão.

Caio Ferreira

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SCHNABL

Nu-vens, Eduardo Schnabl

Alfama, Eduardo Schnabl

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O Velho e o Mar - Ernest Hemingway, Eduardo Schnabl

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ILUSÃO AO SER, ESPELHO

Ser-se, parecer-se, fingir-se, apresentar-se, mostrar-se, aparentar-se, assemelhar-se e ser-se novamente; capicuado, assim o sou. Há muito que me procuro e há tanto que já sei a resposta: jamais – de uma forma não entusiasmante – irei encontrar-me. A cada partida, uma nova chegada. A cada lágrima vertida, um sorriso meio falso lançado ao ar. Tanto a porta que me segura cá dentro é a mesma que me impede de entrar. Perguntara-me, ontem, onde estou e se – num local conhecido – aqui quero estar. Ontem a noite fora aborrecida, e, entre todas as estrelas que conseguia ver – sendo estas poucas, pois na cidade é tudo tão sujo –, apenas uma ali, no céu estrelado, se destacava; gritei o seu nome “Capicua!” e a mesma informação lançada aos céus voltara como um raio para dentro de mim, como se da minha boca nada tivesse alguma vez saído. Entro numa fase de introspeção onde, outra vez, tudo aquilo que penso é enganador. Logo, não me resta muito, apenas uma janela à minha esquerda e a porta, trancada, como sempre, à direita. Deixaram, por incompetência, uma caneta perto da televisão. E que sonho é tê-la aqui comigo. Desliguem-me a porcaria dos aparelhos, mas não me retirem esta caneta, nem a sua tinta. As paredes são agora telas e mesmo sem nada ao redor, só os meus sonhos e pensamento alheios, vivo, sinto, cheiro e renasço.

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AUCIPAC

NÃO DIGA ...... 5 8½ ...... 7 A MODERN TRAGEDY, IN 3 PARTS ...... 10 THE DAY IT SNOWED IN AMSTERDAM ...... 12 RAN ...... 14 CLAMOR ...... 17 HANGOUT AT THE GALLOWS ...... 18 MINHA MARIA ...... 20 DAMN ...... 21 73 ...... 27 DOMINGO ...... 29 SCHNABL ...... 33 ILUSÃO AO SER, ESPELHO ...... 35

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