§ ParágrafoISSN 2317-4919

Esta edição da revista Parágrafo representa o fechamento do ciclo de uma proposta editorial caracterizada, desde o segundo semestre de 2014, pela construção de dossiês temáticos - dedi- cados não apenas à compreensão de fenômenos jornalísticos, mas a questões mais amplas do campo da comunicação, em interface com pesquisadores internacionais. A partir do próximo número, a revista priorizará produções que contemplam o jornalismo como objeto de estudo, buscando aprofundar sua aderência ao progra- ma de Mestrado Profissional em Jornalismo do FIAM-FAAM Centro Universitário, ao qual está vinculada. Esperamos, com isso, contri- buir com o avanço da reflexão teórica, metodológica e empírica sobre as práticas jornalísticas, bem como a divulgação de relatos de pesquisa aplicada ao campo profissional, reafirmando a impor- tância do diálogo interdisciplinar neste processo.

Revista do Mestrado Profissional em Jornalismo

FIAM-FAAM – Centro Universitário v.6, n.1, jan./abr. 2018 § Parágrafo 1

§ Parágrafo Revista do Mestrado Profissional em Jornalismo do FIAM-FAAM – Centro Universitário São Paulo, Brasil, volume 6, número 1, janeiro/abril de 2018 ISSN: 2317-4919 § Parágrafo

Rua Vergueiro, 101, Liberdade, São Paulo, SP, CEP 01504-001 website: revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi e-mail: [email protected]

Comitê Editorial raná, Curitiba, PR, Brasil), Dennis de Oliveira (Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil), Egle Müller Spinelli Editora: Cláudia Nonato (Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo, SP, Editora Adjunta: Michelle Roxo Brasil), Eliza Bachega Casadei (Escola Superior de Propa- ganda e Marketing, São Paulo, SP, Brasil), Eugênio Trivinho Conselho Editorial: Alciane Baccin, Francisco de (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Assis, Ivan Paganotti, Juliana Doretto, Silvio Anaz e Brasil), Fábio Pereira (Universidade de Brasília, Brasília, DF, Vicente Darde Brasil), Fernando Firmino da Silva (Universidade Federal Conselho Científico:Adriana Braga (Pontifícia Univer- da Paraíba, Campina Grande, PB, Brasil), Francisco Rüdiger sidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil), (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alice Mitika Koshiyama (Universidade de São Paulo, São Alegre, RS, Brasil), Gislene Silva (Universidade Federal de Paulo, SP, Brasil), Alan Angeluci (Universidade Municipal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil), Graham Murdock São Caetano do Sul, São Caetano do Sul, SP, Brasil), Álva- (Loughborough University, Loughborough, Inglaterra), Göran ro Larangeira (Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, PR, Bolin (Södertörn University, Huddinge, Suécia), Helder Bas- Brasil), Ana Carolina Rocha Pessôa Temer (Universi- tos (Universidade do Porto, Porto, Portugal), Ibrahim Saleh dade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil), Andreas Hepp (University of Cape Town, Cape Town, África do Sul), Igor Sa- (Universität Bremen, Bremen, Alemanha), Ângela Cristina cramento (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Salgueiro Marques (Universidade Federal de Minas Gerais, Janeiro, RJ, Brasil), Jairo Ferreira (Universidade do Vale do Belo Horizonte, MG, Brasil), Bárbara Heller (Universidade Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil), João Carlos Mas- Paulista, São Paulo, SP, Brasil), Bruno Campanella (Universi- sarolo (Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, dade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil), César Ricardo Brasil), José Guibson Dantas (Universidade Federal de Siqueira Bolaño (Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, Alagoas, Maceió, AL, Brasil), Laan Mendes de Barros (Uni- SE, Brasil), Cláudia Quadros (Universidade Federal do Pa- versidade Estadual Paulista, Bauru, SP, Brasil), Laura Cánepa

4 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, jan./abr. 2018 § Parágrafo (Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, Brasil), Luciano Gotemburgo, Suécia), Paulo Roberto Figueira Leal (Uni- Victor Barros Maluly (Universidade de São Paulo, São Pau- versidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil), lo, SP, Brasil), Luís Mauro Sá Martino (Faculdade Cásper Pramod Nayar (University of Hyderabad, Hyderabad, Índia), Líbero, São Paulo, SP, Brasil), Luiz Peres Neto (Escola Supe- Rafael Bellan (Universidade Federal do Espírito Santo, Vitó- rior de Propaganda e Marketing, São Paulo, SP, Brasil), Marce- ria, ES, Brasil), Rafael Grohmann (Faculdade Cásper Líbero, lo Kischinhevsky (Universidade Estadual do Rio de Janeiro, São Paulo, SP, Brasil), Rogério Christofoletti (Universidade Rio de Janeiro, RJ, Brasil), Marco Roxo (Universidade Fede- Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil), Rogé- ral Fluminense, Niterói, RJ, Brasil), Marcos Paulo da Silva rio Covalesk (Universidade Federal de Pernambuco, Recife, (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campo Grande, PE, Brasil), Rosana de Lima Soares (Universidade de São MS, Brasil), Maria Ângela Mattos (Pontifícia Universidade Paulo, São Paulo, SP, Brasil), Rose de Melo Rocha (Esco- Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil), Maria la Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo, SP, Brasil), Angela Pavan (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Sérgio Luiz Gadini (Universidade Estadual de Ponta Grossa, Natal, RN, Brasil), Maria Aparecida Baccega (Escola Su- Ponta Grossa, PR, Brasil), Sandra Reimão (Universidade de perior de Propaganda e Marketing, São Paulo, SP, Brasil), Maria São Paulo, São Paulo, SP, Brasil), Stig Hjarvard (University of Immacolata Vassalo de Lopes (Universidade de São Pau- Copenhagen, Copenhagen, Dinamarca), Thiago Soares (Uni- lo, São Paulo, SP, Brasil), Maria Ogécia Drigo (Universidade versidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil), Valdir de Sorocaba, Sorocaba, SP, Brasil), Mark Deuze (University José Morigi (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Por- of Amsterdam, Amsterdam, Holanda), Marko Ampuja (Uni- to Alegre, RS, Brasil), Veneza Mayora Ronsini (Universida- versity of Helsinki, Helsinki, Finlândia), Marli dos Santos (Fa- de Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil) e Verôni- culdade Cásper Líbero, São Paulo, SP, Brasil), Marta Regina ca Dantas (Universidade Federal do Tocantins, Palmas, TO, Maia (Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, MG, Bra- Brasil). Todos são doutores titulados em diferentes sil), Mayra Rodrigues Gomes (Universidade de São Paulo, instituições no Brasil no exterior. São Paulo, SP, Brasil), Muniz Sodré (Universidade Federal do Assistentes Editoriais: Maria Tereza Blois (prepa- Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil), Nilda Jacks (Univer- ração de originais e revisão), Gerson Victor dos Santos sidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil), (editoração eletrônica e programação) e Euclides Santos Olga Tavares (Universidade Federal da Paraíba, João Pes- (projeto gráfico). soa, PB, Brasil), Oscar Westlund (University of Gothenburg,

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, jan./abr. 2018 5

Sumário

9 Editorial Cláudia Nonato e Michelle Roxo

Dossiê: Mediações Algorítmas Dossier: Algorithmic Mediation Apresentação 11 Presentation Carlos d’Andréa e Willian Araújo

Questões e apontamentos para o estudo de algoritmos 17 Issues and prompts to the study of algorithms Amanda Chevtchouk Jurno e Sílvia DalBen

Repensando big data, algoritmos e comunicação: para uma crítica da neutralidade instrumental 31 Rethinking the big data, algorithms and communication: a critique ofinstrumental neutrality Tales Tomaz e Guilherme Cavalcante Silva

Mediações algorítmicas: o poder de modulação dos algoritmos do Facebook 43 Algorithmic mediations: the power of modulation of Facebook’s algorithms Débora Franco Machado

Topologias de espaços híbridos na era da Internet das Coisas 57 Topologies of hybrid spaces in the Era of Internet of Things Fernanda da Costa Portugal Duarte

O uso de algoritmos na mídia programática 71 Use of algorithmic in the programmatic media Stefanie Carlan da Silveira e João Gabriel Danesi Morisso Um jornalismo para chamar de meu? Algoritmos e o fenômeno da customização de notícias 83 Is there a journalism to call my own? Algorithm and the phenomenon of news customization Raquel Dornelas

A relevância dos algoritmos 95 The relevance of algorithms Tarleton Gillespie

Examinando uma técnica algorítmica: o classificador de bayes como uma leitura interessada da realidade 123 Scrutinizing an algorithmic technique: the Bayes classifier as interested reading of reality Bernhard Rieder

Por que empresas de mídia insistem que não são empresas de mídia, por que estão erradas e por 143 que isso importa Why media companies insist they are not media companies, why they are wrong, and why it matters Philip Napoli e Robyn Caplan

Entrevista Interview Algoritmos como um devir: uma entrevista com Taina Bucher 165 Carlos d’Andréa e Amanda Jurno

Artigos Articles Relaçes públicas e comunicaço organizacional digital: empresas fronteiriças e suas estratégias 173 Public relations and organizational digital communication: companies on the border and their strategies Henrique Esper e Cristóvão Domingos de Almeida

Convergência midiática e cultura participativa: possíveis interações entre novas tecnologias e 185 agentes sociais no campo da comunicação Media convergence and participatory culture: possible interactions between new technologies and social agents in the filed of communication Antonio Francisco Magnoni e Giovani Vieira Miranda Editorial

Esta edição da revista Parágrafo representa o Neste número de transição, apresentamos o fechamento do ciclo de uma proposta editorial ca- dossiê “Mediações Algorítmicas: olhares da pesqui- racterizada, desde o segundo semestre de 2014, sa em comunicação e mídia”, organizado por Carlos pela construção de dossiês temáticos – dedicados d´Andréa, da Universidade Federal de Minas Ge- não apenas à compreensão de fenômenos jorna- rais, e Willian Araújo, da Universidade de Santa Cruz lísticos, mas a questões mais amplas do campo da do Sul. A eles, agradecemos pela edição cuidadosa comunicação, em interface com pesquisadores in- apresentada a seguir, com textos e entrevista inédi- ternacionais. A partir do próximo número, a revista tos, além de artigos internacionais traduzidos sobre priorizará produções que contemplam o jornalismo a temática em tela. como objeto de estudo, buscando aprofundar sua Agradecemos, em especial, a Rafael Grohmann, aderência ao Programa de Mestrado Profissional que conduziu o trabalho de edição nos últimos anos, em Jornalismo do FIAM-FAAM – Centro Universi- articulando uma variedade de olhares e perspec- tário, ao qual está vinculada. Esperamos, com isso, tivas teóricas em dossiês com forte presença de contribuir com o avanço da reflexão teórica, meto- autores estrangeiros, os quais contribuíram para a dológica e empírica sobre as práticas jornalísticas, projeção da revista. Nesta nova etapa, desejamos bem como com a divulgação de relatos de pesquisa fortalecer a inserção da Parágrafo entre o con- aplicada ao campo profissional, reafirmando a -im junto de periódicos científicos especializados em portância do diálogo interdisciplinar nesse processo. Jornalismo – em sintonia com a proposta do nosso Parágrafo também recebe novo projeto gráfi- programa –, aprimorando-a constantemente, e tra- co, como parte de sua reestruturação editorial. Sua balhar pelo progressivo reconhecimento da publica- periodicidade torna-se quadrimestral. O fluxo de ção em estratos do Qualis e em outros indexadores. submissões espontâneas passa a ser priorizado e, com isso, o formato dos dossiês temáticos, adota- do nos últimos quatro anos, será reservado a núme- Cláudia Nonato e Michelle Roxo ros especiais, organizados em parceria com edito- Editoras res convidados.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, jan./abr. 2018 9 §

Dossiê Mediações Algorítmicas: olhares da pesquisa em comunicação e mídia APRESENTAÇÃO

Apresentação Presentation

Carlos d’ Andréa Universidade Federal de Minas Gerais Departamento de Comunicação Social Belo Horizonte, MG, Brasil

Willian Araújo Universidade de Santa Cruz do Sul Santa Cruz do Sul, RS, Brasil

As mediações algorítmicas têm se tornado, Nas pesquisas sobre comunicação e mídia, nos últimos anos, um importante tema de discus- “algoritmo” pode ser reconhecido como um dos são para a sociedade contemporânea e para as objetos empíricos mais ricos no crescente diá- pesquisas em comunicação e mídia. Ao selecio- logo da área com abordagens teórico-metodoló- nar, hierarquizar, visibilizar, controlar, os algorit- gicas que enfatizam a dimensão sociotécnica e mos instauram lógicas particulares de produção performativa dos diferentes atores nos ambien- de conhecimento e estão hoje no centro do ecos- tes digitais. Inicialmente muito centrada em apro- sistema informacional e midiático. A faceta mais priações da Teoria Ator-Rede (LATOUR, 2012), visível deste fenômeno é a cada vez mais contro- aos poucos a produção acadêmica no Brasil vai versa atuação de plataformas como o e o ampliando seu diálogo com os Software Studies, Facebook, mas certamente as questões políticas, Science and Technologies Studies (STS) e outras éticas, econômicas etc do tema não se esgotam abordagens ligadas à chamada “virada material” na atuação das gigantes do Vale do Silício. (STERNE, 2014).

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 11-15 jan./abr. 2018 11 CARLOS D’ ANDRÉA E WILLIAN ARAÚJO

Partindo deste cenário, este dossiê procurou deste dossiê. Ao destacar e detalhar seis dimen- reunir pesquisas empíricas e/ou discussões teóri- sões dos “algoritmos de relevância pública” (entre cas que abordassem questões como as relações os quais “Ciclos de antecipação” e “A produção de dos algoritmos com práticas do jornalismo, da pu- públicos calculados”), o autor refuta as abordagens blicidade, do audiovisual, do entretenimento, da deterministas centradas na tecnologia e mostra comunicação organizacional etc; as dimensões como, na agência dos algoritmos, os discursos, as políticas e éticas das mediações algorítmicas práticas e as formas de conhecimento se entrela- contemporâneas (privacidade, por exemplo); apro- çam com as lógicas dos códigos de programação. priações táticas e de resistência às mediações Pesquisador-chefe da Microsoft Research New En- algorítmicas; os desafios conceituais e metodoló- gland e professor da Cornell University (EUA), Gil- gicos da pesquisa com algoritmos. lespie lança, em 2018, o livro “Custodians of the Internet - Platforms, Content Moderation, and the Traduções e uma entrevista Hidden Decisions That Shape Social Media” (Yale Press). O artigo “A relevância dos algoritmos” foi tra- Antes de apresentar os seis artigos inéditos duzido por Amanda Jurno. publicados pelo dossiê e os artigos livres, chama- “Examinando uma técnica algorítmica: o clas- mos a atenção para os três artigos traduzidos e sificador de Bayes como uma leitura interessada para a entrevista inédita aqui publicada. da realidade” foi publicado em 2017 por Bernhard “Algoritmos como um devir: uma entrevista Rieder (Universidade de Amsterdam) no dossiê “The com Taina Bucher” é fruto de uma conversa com a Social Power of Algorithms” da revista “Information, pesquisadora da Universidade de Copenhagen (Di- Communication & Society”3. Mais conhecido por namarca) durante a conferência da Association of alguns pelo desenvolvimento de aplicativos como Internet Researchers (AoIR) 2017. Temas como Netvizz (para extração de dados do Facebook) e jornalismo, caixa-preta e a contribuição de autores DMI-TCAT (Twitter), Rieder mostra neste artigo uma como Ross Ashby, Alfred N. Whitehead e Annemarie leitura profundamente embasada sobre formas de Mol são abordados na entrevista realizada por Car- conhecimento estatístico usadas recorrentemente los d’Andréa e Amanda Jurno. Uma das referências no desenvolvimento de sistemas de acesso e clas- fundamentais para os estudos de algoritmos (vide, sificação de informação. Ao analisar de forma minu- por ex, artigo “Want to be on the top? Algorithmic ciosa a técnica do classificador de Bayes, o autor power and the threat of invisibility on Facebook”, desenvolve uma proposta que se posiciona entre publicado em 20121), Taina Bucher está lançando, a teorização ampla sobre algoritmos, predominan- em junho de 2018, o livro “IF…THEN: Algorithmic te nos estudos emergentes das ciências sociais e power and politics” pela Oxford University Press2. humanas, e a investigação empírica de aplicações Publicado originalmente em 2014 no livro “Me- concretas. A tradução foi feita por Willian Araujo e dia Technologies: Essays on Communication, Ma- Fernanda Pires de Sá. teriality, and Society” (MIT Press, 2014), o artigo “A A terceira tradução do dossiê é o artigo “Por que relevância dos algoritmos”, de Tarleton Gillespie, é empresas de mídia insistem que não são empresas possivelmente o trabalho mais citado sobre o tema de mídia, por que estão erradas e por que isso im- desde então – inclusive entre os papers inéditos porta”, de Philip M. Napoli (Duke University, EUA) e Robyn Caplan (Data & Society Research Institute). 1 https://doi.org/10.1177/1461444812440159 O texto apresenta uma discussão crítica sobre os 2 https://global.oup.com/academic/product/ifthen- 9780190493035?lang=en&cc=us 3 https://doi.org/10.1080/1369118X.2016.1181195

12 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 11-15 jan./abr. 2018 § Parágrafo APRESENTAÇÃO discursos proferidos pelas plataformas de mídias sintomaticamente, um país do Norte Global6. Temas sociais, denunciando a tentativa dessas empresas e desafios para futuros dossiês... de se posicionar como meros suportes tecnológi- cos, em um sentido determinista e que opõe mídia Sobre os artigos inéditos e tecnologia. Através da discussão de diferentes casos, os autores sugerem que essa não é apenas O primeiro artigo inédito do dossiê é “Questões uma distinção semântica, mas a busca por um es- e apontamentos para o estudo de algoritmos”, de paço de atuação que escape das regulamentações Amanda Chevtchouk Jurno e Silvia Dalben (UFMG). que serviços de comunicação estão sujeitos. Publi- De forma didática, as autoras dialogam com auto- cado em 2017 na revista First Monday4, o artigo foi res-chave da área, como Rob Kitchin, Lucas Introna traduzido por Tarcízio Silva. e Kate Crawford para discutir questões como os “al- Bastante diferentes entre si, estes artigos goritmos são entidades estáveis?”. O objetivo aqui é agora disponíveis em português dão uma pequena apresentar um “panorama” que auxilie pesquisado- mas, acreditamos, significativa amostra da intensa res interessados na temática. produção acadêmica sobre o tema fora do Brasil. De modo completar, o artigo “Repensando big Interessados em ir adiante podem encontrar as re- data, algoritmos e comunicação: para uma críti- ferências fundamentais na lista “Critical Algorithm ca da neutralidade instrumental”, de Tales Tomaz Studies”5, organizada por Tarleton Gillespie e Nick (Unasp) e Guilherme Cavalcante Silva (Unicamp), Seaver no site “Social Media Collective”. Esta lista, também discute questões conceituais relativas ao no entanto, não é atualizada desde 2016 - e talvez tema do dossiê. Para “elucidar a noção etimológica seja um indício de que é virtualmente impossível dar e contextual de data”, os autores resgatam sua re- conta do crescimento exponencial da bibliografia lação com a cibernética, que já nos 1940 associa- sobre algoritmos e temas afins. vam comunicação e controle. Em diálogo com feno- É preciso, também, ir além de uma visada anglo- menologia de Martin Heidegger, o artigo apresenta -saxã do tema. São crescentes (mas ainda incipien- uma abordagem crítica aos discursos instrumentais tes) os esforços para situar as discussões sobre al- sobre big data e algoritmos. goritmos a partir de “epistemologias alternativas” e Em “Mediações algorítmicas: analisando o po- os data ativismos a elas associados (Milan e Velden, der de modulação dos algoritmos do Facebook”, 2016), ou ainda na “relação despudorada e inventiva Débora Franco Machado (UFABC) apresenta, atra- com os objetos técnicos” descrita por Bruno (2017) vés de duas patentes, como a plataforma de mídia ao evidenciar as (famigeradas) “gambiarras”. Neste social mais popular do mundo se organiza para mo- movimento, uma das iniciativas a serem destacadas dularizar as “emoções” de seus usuários. Baseada é a “rede latino-americana de estudos sobre vigilân- em Gilles Deleuze, a autora discute as implicações cia, tecnologia e sociedade” (Lavits), que vem se ar- políticas do crescente processo de controle delega- ticulando desde 2009. Outra iniciativa que merece do aos algoritmos na sociedade contemporânea. atenção é o projeto “Big Data from the South”, sedia- As relações entre os processos cada vez do na Universidade de Amsterdã - curiosamente, ou mais automatizados de coleta, processamento e análise dos dados e as diferentes topologias que (re)criam os espaços híbridos são o tema do artigo 4 http://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/ de Fernanda da Costa Portugal Duarte (UFMG). view/7051/6124 Em “Topologias de espaços híbridos na era da In- 5 https://socialmediacollective.org/reading-lists/critical- algorithm-studies/ 6 https://data-activism.net/big-data-from-the-south/

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 11-15 jan./abr. 2018 13 CARLOS D’ ANDRÉA E WILLIAN ARAÚJO ternet das Coisas”, a autora apresenta fenômenos João Carlos Magalhães, Leonardo Foletto, Ludimila como a emergência de modelos preditivos e o mo- Mattos, Marcelo Freire, Marcelo Trasel, Sandra Mon- nitoramento digital da performance fisiológica. A tardo e Vanessa Brandão. discussão se insere na “virada espacial” das teo- As/os pesquisadores que trabalharam duro rias sociais e do campo das mobilidades. para traduzir os artigos originais em inglês foram O artigo seguinte do dossiê chama-se “O uso creditados acima. Só quem já traduziu um paper de algoritmos na mídia programática”, de Stefa- sabe o trabalho essa tarefa dá, a responsabilidade nie Silveira (UFSC) e João Gabriel Morisso (USP). que ela implica e, pior, o quão desvalorizada é esta Aqui os autores explicam como a publicidade digi- atividade intelectual nas atuais avaliações de pro- tal se baseia, desde o início da internet, na busca dutividade acadêmica. Muito obrigado aos nossos por segmentação, monitoramento e metrificação. tradutores e tradutoras ad hoc! Um dos exemplos atuais explorados é a modali- Por fim, agradecemos à equipe da revista Pa- dade de compra e venda em “tempo real” que se rágrafo pela confiança e pelo trabalho conjunto baseia em informações sobre as audiências (Re- em todo o processo. A edição proposta em 2017 al-Time-Bidding). Ao final, o artigo discute os pro- por Rafael Grohmann foi conduzida por Francisco blemas relacionados à crescente automatização de Assis e por Cláudia Nonato, sempre em diálogo dos investimentos publicitários em plataformas tranquilo e qualificado. como YouTube. A crescente popularização de noticiários Referências hiperindividualizados e suas consequências é o tema do artigo “Um jornalismo para chamar de BRUNO, F. Objetos técnicos sem pudor: gambiarra meu? Algoritmos e o fenômeno da customização e tecnicidade. Revista ECO-Pós; v. 20, n. 1 (2017): de notícias”, de Raquel Dornelas (UERJ). Serviços Gilbert Simondon, 2017. como “Apple News” e “” são referen- LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma intro- ciados a partir do atual panorama no Brasil e no dução à teoria do ator-rede. Salvador/Bauru Edu- exterior. Ao final, a autora discute as consequên- fba/Edusc, 2012. cias das bolhas informacionais à luz da privacida- de dos usuários e da “financeirização” dos negó- MILAN, S.; VELDEN, L. VAN DER. The Alternative cios de Comunicação. Epistemologies of Data Activism. Digital Culture & Society, v. 2, n. 2, p. 57–74, 2016.

Agradecimentos STERNE, J. “What Do We Want?” “Materiality!” Este dossiê não seria possível sem o apoio efeti- “When Do We Want It?” “Now!” In: GILLESPIE, T.; vo de um conjunto de colegas que se empenharam du- BOCZKOWSKI, P. J.; FOOT, K. A. (orgs.). Media Tech- rante os vários meses de trabalho. As/os pareceristas, nologies. MIT Press, 2014. p. 119–128. por exemplo, contribuíram decisivamente ao avaliar, em um curto intervalo de tempo, os artigos submeti- dos ao dossiê. Suas sugestões, temos certeza, foram de grande valia para os autores cujos trabalhos foram aprovados ou reprovados. Em ordem alfabética, nos- sos agradecimentos a: Ana Brambilla, Carlos Henrique Falci, Elias Bittencourt, Fernando Firmino, Joana Ziller,

14 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 11-15 jan./abr. 2018 § Parágrafo APRESENTAÇÃO

Carlos d’ Andréa – Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Mi- nas Gerais (UFMG). Doutor em Estudos Linguísticos (Poslin/UFMG), mestre em Ciência da Informação (UFMG) e graduado em Jornalismo (UFMG). Em 2017/2018, pesquisador visitante no Departamento de Media Studies da Universidade de Amsterdam (UVA), Holanda (bolsa CAPES de pós-doutorado). Pes- quisador do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas. Suas pesquisas contam com o apoio da Fapemig e CNPq. E-mail: carlosfbd@.com

Willian Araújo – Doutor em Comunicação e Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2017), mestre em Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale e graduado em jorna- lismo pela Universidade Federal de Santa Maria. Realizou estágio doutoral no Institute Interdisciplinary Internet (IN3) da Universitat Oberta de Catalunya (UOC, Barcelona). Pesquisa a mediação tecnológica em mídias digitais, principalmente nos debates sobre infraestruturas, softwares e algoritmos. Atualmen- te é professor da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). E-mail: [email protected]

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 11-15 jan./abr. 2018 15

Questões e apontamentos para o estudo de algoritmos

Issues and prompts to the study of algorithms

Amanda Chevtchouk Jurno Universidade Federal de Minas Gerais Programa de Pós-Graduação em Comunicação Belo Horizonte, MG, Brasil

Sílvia DalBen Universidade Federal de Minas Gerais Programa de Pós-Graduação em Comunicação Belo Horizonte, MG, Brasil

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 17 AMANDA CHEVTCHOUK JURNO E SÍLVIA DALBEN

Resumo Abstract

Controvérsias recentes envolvendo plataformas e Recent controversies concerning platforms and suas políticas de circulação de conteúdo fizeram their policies of circulation of content have put the com que os algoritmos se tornassem pauta nos ve- spotlight on algorithms in media vehicles. In this pa- ículos de mídia. Neste trabalho, falamos um pouco per, we talk about what algorithms are and how they sobre o que são os algoritmos e como eles agem act on the platforms, going through some funda- nas plataformas, passando por algumas discussões mental discussions that emerge when we talk about fundamentais que emergem quando falamos sobre algorithms. Therefore, our goal is to design and pre- algoritmos. Nosso objetivo é, portanto, desenhar e sent a panorama to help researchers who are inte- apresentar um panorama para auxiliar pesquisado- rested in studying the subject. res que se interessam em estudar a temática.

Palavras-chave Algoritmos. Plataformas. STS.

Keywords Algorithms. Platforms. STS.

18 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 § Parágrafo QUESTÕES E APONTAMENTOS PARA O ESTUDO DE ALGORITMOS

Introdução organizados a partir do trabalho de importantes pesquisadores da área como Tarleton Gillespie, Controvérsias recentes envolvendo platafor- Taina Bucher, Malte Ziewitz, Rob Kitchin, Nick mas e suas políticas de circulação de conteúdo fi- Diakopoulos, dentre outros. zeram com que os algoritmos se tornassem pauta nos veículos de mídia. Como exemplo, podemos Este trabalho divide-se em quatro tópicos que mencionar o caso da censura à foto “Terror of War” concentram questões e apontamentos que consi- pelo Facebook, quando a famosa foto da guerra do deramos essenciais na discussão e estudo da agên- Vietnã foi retirada de circulação porque “continha cia dos algoritmos. São eles: ‘O que é um algoritmo?’; nudez” – nudez refere-se à garotinha que corre nua ‘Algoritmos são entidades estáveis?’; ‘Existe objeti- e assustada fugindo de uma bomba; ou o caso do vidade e/ou neutralidade algorítmica?’; ‘Algoritmos e vídeo do youtuber Logan Paul, na floresta Aokigaha- sua lógica particular’. Acreditamos que a sistemati- ra no Japão, no qual o jovem mostra e debocha de zação e os apontamos aqui reunidos podem servir corpos de suicidas pendurados nas árvores, em um de auxílio para pesquisas e discussões futuras so- local conhecidamente usado para este fim; ou sobre bre a temática tão importante na atualidade. a multa de 2,42 bilhões de euros aplicada ao Goo- gle, pela Comissão Europeia, em função do abuso O que é um algoritmo? da sua posição dominante na ferramenta de com- Algoritmos são “duros de compreender, difíceis paração de preços para compras online - o Google de descrever e virtualmente impossíveis de obser- Shopping. Apesar de não entrarmos em detalhes var” (ZIEWITZ, 2011, p. 1). Assim como átomos, sobre os casos mencionados, eles servem como eles podem ser considerados a unidade básica da exemplo dos vários casos que trouxeram à tona dis- computação (DIAKOPOULOS, 2014), um termo cussões sobre a delegação da moderação, seleção que agrega em uma única palavra a lógica de fun- e avaliação de conteúdo para algoritmos – e em que cionamento da linguagem de programação. Porém, medida essas escolhas são legítimas e acertadas? apesar do termo ter se popularizado após o advento Para discutir essa questão é preciso enten- da computação, em um sentido mais amplo, algorit- der primeiro sobre a natureza dos algoritmos e mo significa “uma sequência finita de passos que da sua ação nas redes sociotécnicas das quais se usa para resolver um problema, e algoritmos são participam. Neste trabalho, falamos sobre o que muito mais amplos – e mais antigos – do que o com- são os algoritmos e como eles agem nas plata- putador” (CHRISTIAN; GRIFFITHS, 2017, p. 13). formas, influenciando o acesso às informações e Segundo os autores, inclusive, essa palavra deriva ao conteúdo de bilhões de pessoas ao redor do do nome de um importante matemático persa, que mundo. Nesse processo, passamos por algumas viveu no século IX, al-Khwarizmi, e os primeiros al- discussões fundamentais que emergem quando goritmos datam de antes dele – há registros de um falamos sobre algoritmos, como por exemplo so- algoritmo sumério gravado em uma tábua de barro bre sua neutralidade e objetividade, ou sobre sua com 4 mil anos. estabilidade e palpabilidade. Assim, no seu sentido denotativo, a palavra re- Nosso objetivo é, portanto, desenhar e apre- fere-se a uma fórmula matemática, a procedimentos sentar um panorama que auxilie pesquisadores in- codificados ou softwares que, como define Gillespie teressados no estudo da temática, com questões (2014, p.167), “transformam o dado de um input em e apontamentos que consideramos serem funda- um output desejado”. Há tantos tipos de algoritmos mentais para o estudo de algoritmos e que foram quanto se pode imaginar, criados para automatizar

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 19 AMANDA CHEVTCHOUK JURNO E SÍLVIA DALBEN e sistematizar os mais diferentes tipos de proble- Antes de mais nada, é importante explicarmos mas, e que funcionam com as mais diversas combi- que “caixa-preta” é uma expressão comumente usa- nações de variáveis e dados. Para nós, interessa o da em referência a entidades estáveis e das quais que o autor chama de “algoritmo de relevância públi- não se tem conhecimento além do seu exterior. ca” que são rotinas de programação utilizadas para selecionar o que é mais relevante para determina- A expressão caixa-preta é usada em cibernética da situação, trazendo ao encontro do usuário um sempre que uma máquina ou conjunto de coman- conteúdo considerado de seu interesse. Eles nos dos se revela complexo demais. Em seu lugar, é de- interessam particularmente, porque são o principal senhada uma caixinha preta, a respeito da qual não tipo de algoritmo usado nas plataformas de redes é preciso saber nada, senão o que nela entra e o que sociais e sites de busca, como Facebook, Google e dela sai (LATOUR, 2011, p. 4). Twitter, por exemplo. Esses algoritmos funcionam prevendo com- Caixa-preta é também um importante conceito portamentos e preferências a partir de dados so- para autores dos Science and Technology Studies bre um determinado usuário. O trabalho desses (STS) e da Teoria Ator-Rede (TAR). É usado em refe- agentes é escolher o que o usuário X gostaria de rência a redes sociotécnicas estabilizadas com di- ver dentre a miríade de conteúdo disponível em fícil acesso às suas associações internas (JURNO; uma determinada plataforma ou na web de forma D’ANDRÉA, 2017a), e que agem em outras redes geral, seja com base nas suas escolhas pessoais sociotécnicas como atores individuais, funcionando de X, seja com base em critérios como relevância como uma unidade ainda que sejam compostos por e importância. Assim, eles escolhem quais posts várias entidades. esse usuário irá visualizar em seu perfil pessoal; Ou seja, o conceito passa a ideia de uma as- em qual ordem eles estarão organizados e, por- sociação de atores da qual não se conhece a com- tanto, serão visualizados; quais páginas merecem posição, mas da qual é possível acompanhar a ação maior destaque em um determinado site; qual link enquanto ator singular em uma determinada rede oferece o conteúdo mais relevante para determi- de atores. Apesar de não sabermos o que há ali den- nada busca; qual produto pode ser interessante tro, conseguimos observar como aquele grupo age para um usuário X; qual conteúdo está de acordo em determinadas situações - exatamente como os com os gostos do usuário X, e etc. algoritmos das plataformas. Não temos acesso a todo seu conteúdo - e talvez esse acesso aos códi- gos não nos dissesse muito sobre a sua verdadeira Algoritmos são estáveis? natureza - mas conseguimos observar sua ação e Não. De acordo com Rob Kitchin (2017), os algo- os resultados dela. ritmos são realizações incertas, provisórias e frágeis, Contudo, esse conceito também é usado em porque são constantemente refeitos e reeditados. referência a controvérsias estabilizadas, em que é Para detalhar um pouco mais nossa resposta, apre- possível prever o que resultará de uma ação. Uma sentamos uma das expressões comumente utilizadas “caixa-preta” é um “caso encerrado, uma asserção em referência à natureza dos algoritmos e que traz indiscutível” (LATOUR, 2011, p. 43), é uma rede de consigo uma ideia de estabilidade: “algoritmos são actantes fortemente “convergente e irreversível” como caixas-pretas”. Sugerimos então alterarmos a cujo comportamento é conhecido e previsível in- questão para: “os algoritmos são caixas-pretas?” E a dependentemente do contexto onde está inserida resposta a essa questão é dupla: sim e não. (CALLON, 1990, p. 152). Ou seja, muito diferente

20 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 § Parágrafo QUESTÕES E APONTAMENTOS PARA O ESTUDO DE ALGORITMOS dos algoritmos das plataformas - os algoritmos não arquivar posts já visualizados, prejudicando a avalia- são estáveis e tão pouco são previsíveis. ção dos algoritmos. Outro exemplo de ações dos algoritmos que Embora a tecnologia possa ser (...) “encaixapretada” não foram antecipadas pelos desenvolvedores, re- (LATOUR 1987, PINCH; BIJKER, 1984) por desig- fere-se às sugestões fornecidas ao se fazer uma ners e usuários, isso não deveria nos levar a crer que busca no Google, operadas pelos algoritmos da fer- ela permaneça estável. Na verdade, os algoritmos ramenta AutoCompletar. Um caso emblemático, re- podem ser facilmente, instantaneamente, radical- fere-se a momentos em que esses algoritmos “ado- mente e invisivelmente alterados. Embora grandes taram” uma visão sexista na plataforma. Quando atualizações possam acontecer apenas ocasional- os usuários digitavam a sentença “ela inventou” no mente, os algoritmos estão regularmente sendo campo de busca, a ferramenta sugeria uma corre- “ajustados” (GILLESPIE, 2014, p. 178). ção no gênero pronominal presumindo que fora um erro de digitação – “você quis dizer ‘ele inventou’?”. Rob Kitchin (2017) explica que os efeitos dos A empresa justificou-se dizendo que a associação algoritmos e do poder delegado a eles não podem feita pelos algoritmos tomara como base a propor- ser previstos por três motivos. Primeiro, porque ção das combinações dos termos em suas bases eles fazem parte de amplas redes de relações que de dados – em que há muito mais sentenças – “ele medeiam e influenciam a sua ação. Segundo, a sua inventou” do que “ela inventou”. Isso não impediu a performance pode ter efeitos colaterais e conse- emergência de uma ampla discussão sobre misogi- quências involuntárias, não antecipadas pelos seus nia e preconceito na plataforma (ZIMMER, 2007). desenvolvedores, e por isso eles podem agir de for- Além disso, também devemos levar em conta as mas não previstas quando não são acompanhados constantes alterações que são feitas nos critérios de perto pelos programadores. Por fim, e não menos dos algoritmos a fim de priorizar determinado con- importante, as ações dos algoritmos não podem teúdo em detrimento a outro, manter os usuários in- ser antecipadas porque eles podem conter erros ou teressados na plataforma e manter as empresas que bugs que modificam a sua ação (KITCHIN, 2017). pagam pela exibição de suas informações satisfeitas. Além disso, os algoritmos não são só o que os Exemplo disso são as constantes alterações feitas programadores almejam, mas o resultado de como nos algoritmos responsáveis pelo Feed de Notícias os usuários lidam com eles no dia a dia, subverten- do Facebook (JURNO; D’ANDRÉA, 2017a). Algumas do, reinventando e retrabalhando suas intenções delas são publicizadas de forma rasa pelos seus exe- iniciais. Como exemplo, podemos citar um caso cutivos através do site Newsroom , que reúne infor- relativo ao Feed de Notícias do Facebook. Em con- mações direcionadas especialmente para os interes- sequência de uso muito particular dado à opção sados em investir dinheiro na plataforma. Dentro das “esconder post” por um determinado grupo de usuá- “Notícias”, na categoria “Informações sobre o Feed de rios, com um sentido muito diferente daquele imagi- Notícias”, podemos perceber que os algoritmos e os nado por seus desenvolvedores, os engenheiros do critérios usados por eles são alterados pelo menos Facebook precisaram adaptar os algoritmos para uma vez por mês pelos seus programadores. Isso le- funcionarem de forma diferenciada naquela situa- vando em consideração as mudanças que são de al- ção (OREMUS, 2016). É que ao invés de usarem a guma forma tornadas públicas pela empresa. Ou seja, opção para retirar do Feed de Notícias o conteúdo os algoritmos são “provavelmente tão dinâmicos que que os desagradava – ação antecipada pelos desen- uma fotografia instantânea nos daria poucas chances volvedores - esses usuários usavam a opção para de acessar seus vieses” (PASQUALE, 2009, on-line).

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 21 AMANDA CHEVTCHOUK JURNO E SÍLVIA DALBEN

Gillespie (2011, on-line) ressalta que há “uma dos quais funcionam. Dessa forma, seria impossí- importante tensão que emerge entre o que nós espe- vel pensar neles ou estudá-los de forma separada ramos que esses algoritmos sejam, e o que eles são das informações que os fazem funcionar e das re- de fato”. Eles não são objetos concretos que podem des das quais fazem parte. Sem as informações de ser colocados na palma da mão, por exemplo, mas input, os algoritmos não podem agir e não geram também não deixam de ser entidades materiais. A output, não passando de uma série de variáveis e sua composição está relacionada tanto aos bancos comandos organizados sob a forma de uma expres- de dados, aos quais eles estão conectados, e às par- são matemática. tes físicas dos computadores e processadores que No caso dos algoritmos que nos interessam os sustentam, quanto ao perfil e às ações do usuário neste trabalho, os “algoritmos de relevância públi- que acessam o site em questão, à temporalidade e ca” (GILLESPIE, 2014, p. 168), nas suas bases e condições do acesso, etc. “Na verdade, o que nós nos bancos de dados, eles encontram diversas infor- referimos enquanto um algoritmo muitas vezes não é mações sobre as preferências e as particularidades apenas um, mas são muitos algoritmos” que agem em dos usuários que estão realizando aquele acesso ou conjunto, afirma Gillespie (2014, p. 178). aquela busca e, assim, podem trabalhar com o intui- Assim, voltando à questão sobre essas enti- to de personalizar as suas ações ao perfil daquele dades serem ou não “caixas-pretas”, podemos res- usuário, prevendo qual o tipo de conteúdo pode ser ponder que: sim, de uma certa maneira os algorit- considerado interessante por eles, selecionando-o mos são “caixas-pretas” porque são associações de e elencando em uma determinada ordem considera- atores que agem em conformidade, que se compor- da relevante para eles. Esses bancos de dados são tam em uma rede como se fossem entidades unas, compostos por milhões de informações geradas e porque temos pouco (ou nenhum) acesso à sua nos acessos dos usuários e se referem a diversos verdadeira composição. Assim, considerá-los como aspectos; desde questões socioeconômicas e ge- tal, pode ser uma escolha metodológica importante ográficas, até padrões de acesso, que também são (JURNO, 2016). Mas não, os algoritmos não podem geradas e armazenadas por outros algoritmos. ser considerados uma “caixa-preta” porque, ao con- Todas as nossas ações na internet deixam ras- trário dela, suas ações não podem ser previstas e tros digitais (BRUNO, 2012) que são coletados e antecipadas completamente uma vez que eles são armazenados pelos algoritmos para gerar padrões extremamente maleáveis e estão em constante de comportamento e tentar entender melhor a nos- transformação - em um constante devir. sa navegação a fim de selecionar conteúdos consi- derados de interesse. Fernanda Bruno nos chama a Existe objetividade e/ou neutralidade atenção para o fato de que “se historicamente enten- algorítmica? de-se o esquecimento como o efeito mais ‘natural’ e o registro como gesto suplementar, vivemos na rede Mais importante do que uma resposta positiva o inverso: para que o esquecimento se produza, é ou negativa a essa pergunta, é enumermos algumas preciso uma ação deliberada” (idem, 2012, p. 7). Ou questões cruciais que surgem quando estudamos seja, a tendência na internet é que toda a ação feita os algoritmos e sua pretensa/possível neutralidade seja registrada e armazenada. Assim, todas essas e/ou objetividade. informações geradas nos nossos acessos são com- Os algoritmos são máquinas inertes até es- putadas junto às de milhares de outros usuários e tarem conectados aos bancos de dados a partir usadas para criar “perfis de público”, prever compor- tamentos para serem usados na venda de espaços

22 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 § Parágrafo QUESTÕES E APONTAMENTOS PARA O ESTUDO DE ALGORITMOS de publicidade personalizada, relatórios de marke- site - como quando escolhemos nos logar a partir ting para empresas interessadas ou sistemas de vi- da conta do Twitter, Gmail ou Facebook, opção gilância, dentre outros. Com essas informações, os que implica na disponibilização dos dados da con- algoritmos podem selecionar e exibir só o contéudo ta - as ações do usuário nas páginas e sites aces- considerado de interesse do usuário. sados passam a ser monitoradas e são traduzidas e registradas em grandes bancos de dados. O Fa- O que faz o Google ser tão dominante como meio cebook monitora inclusive os textos que os usuá- de acessar a informação no mundo não é tanto rios digitam e apagam sem sequer os publicar ou ele achar nosso texto em centenas de milhões de enviar para outra pessoa (GROSSMAN, 2013) e webpages (...) mas o fato de ele ordenar essas we- o Google mantém um histórico detalhado sobre bpages tão bem, e só nos mostrar as dez mais re- os últimos passos do usuário, com hora e local de levantes (CHRISTIAN; GRIFFITHS, 2017, p.101) visita, bem como tempo de permanência em cada lugar (VOLTOLINI, 2014). E esses são apenas al- Na verdade, é essa a razão do destaque de to- guns exemplos. De acordo com Julian Assange das as grandes plataformas: a seleção e moderação , fundador do Wikileaks, o Google e o Facebook de conteúdo. De acordo com Gillespie (2018), a mo- juntos coletam mais dados que o governo dos Es- deração é a principal commodity que as plataformas tados Unidos. vendem, tanto para os usuários, quanto para os in- Todos esses dados, então, são categoriza- vestidores. As plataformas prometem mostrar o que dos, organizados, limpos e valorados a partir de há de mais interessante e mais importante no univer- critérios criados por pessoas que compõem a so de informações disponíveis online e organizá-las equipe de programação e cargos executivos da de forma compreensível. Essas informações são empresa. Esse tratamento é essencial para que selecioandas a fim de atrair os usuários para a pla- os algoritmos possam trabalhar com os dados, taforma e mantê-los ali o maior tempo possível em processo que Gillespie (2014, p. 170) chama de troca de exposição a propagandas e disponibilização “preparação para o algoritmo”. Como os algoritmos de mais dados pessoais e de navegação. A promes- são programados para agir de forma automática, sa das plataformas é que o conteúdo disponibilizado ou seja, sem intervenção humana no processo, os seja selecionado especialmente para aquele usuário, dados precisam estar muito bem organizados e com base nos seus interesses pessoais. Mas, na ver- preparados para que os algoritmos consigam exe- dade, os algoritmos trabalham principalmente a par- cutar suas funções sem interrupção. Pois, como tir da criação de perfis de padrões de comportamen- nos lembra Franklin Foer (2017, on-line), “o algo- to criados com base em dados de milhares de outros ritmo foi desenvolvido para automatizar o pensa- usuários. Os algoritmos enquadram cada usuário em mento, para remover decisões difíceis das mãos um tipo de perfil e, com base nos padrões de com- dos humanos, para resolver debates controver- portamento daquele perfil, selecionam o conteúdo sos”. Dentre essas decisões, podemos mencionar que será disponibilizado para eles. a separação entre o que pode ser considerado Nesses bancos de dados sobre os usuários e discurso de ódio ou não, o que se configura como seus acessos estão disponíveis informações so- propaganda terrorista ou não, o que pode ser con- bre a rotina diária dos mesmos, os locais que eles siderado conteúdo sexual ou não e etc. frequentam, quais produtos consomem, quais são Assim, como nos lembram Gitelman e Jack- os seus trajetos diários, dentre outros. Por exem- son (2013), não é possível falar em ‘dados brutos’, plo, ao permitir que sua conta seja usada em outro pois todos os dados são tratados e classificados

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 23 AMANDA CHEVTCHOUK JURNO E SÍLVIA DALBEN de alguma forma antes de serem armazenados fossem questões dadas. Como exemplo, podemos e são programados com uma lista de critérios observar a descrição dos algoritmos do Google que, produzida parcialmente por um grupo de pes- de acordo com a empresa, soas – para eles, dados brutos são um oxímoro. Diakopoulos (2014) chama a atenção para essa utilizam mais de 200 sinais ou ‘pistas’ diferentes dimensão humana dos algoritmos que exercem in- para adivinhar o que você realmente procura. Esses fluência nos critérios de escolha e interpretação sinais incluem coisas como os termos em websites, dos dados. a atualização do conteúdo, a região do usuário e o PageRank (GOOGLE, 2018, on-line). A ética e transparência algorítmica devem, portanto, considerar os algoritmos como objetos criados por Como podemos ver, as descrições são vagas e humanos e levar em conta as intenções, de grupos ou amplas e não deixam claro que os critérios levados processos institucionais, que influenciaram o design, em consideração pelos algoritmos foram pré-pro- assim como a agência de atores humanos na interpre- gramados por alguém. Quando o Facebook afirma tação do output em processos superiores de tomada que, no Feed de Notícias, as publicações que o usu- de decisões (DIAKOPOULOS, 2014, p. 5). ário vê “servem para manter você conectado com pessoas, locais e assuntos importantes” e que “as Gillespie (2014) argumenta que uma das di- publicações que aparecem primeiro são influencia- ficuldades de se entender como os algoritmos das por suas conexões e atividades” (FACEBOOK, operam reside no fato deles imbuírem uma falsa 2018), não há qualquer menção aos critérios de ideia de imparcialidade, sustentada pelo discur- seleção que regem esses algoritmos e se parte do so de grandes empresas de tecnologia – como o pressuposto de que o critério “importante” é um Facebook e o Google – que não revela as redes dado, sendo que se trata de um critério relativo. sociotécnicas por trás destas plataformas. Estas Tarleton Gillespie (2016) salienta que todas essas empresas fomentam a ideia de neutralidade al- escolhas são feitas por humanos e, consequente- gorítmica como uma estratégia para não assumi- mente, estão intrinsecamente carregada de valores. rem a responsabilidade pela ação dos algoritmos, cada vez mais complexos, que desenvolvem. De Às vezes, elas são feitas no design do algoritmo, acordo com o autor, às vezes em torno dele. O resultado que vemos, (...) não é o output de ‘um algoritmo’ por si só, mas a cuidadosa articulação de um algoritmo como im- sim de um esforço que combina a atividade huma- parcial (mesmo quando essa caracterização é mais na e a análise computacional, em conjunto, para ofuscante do que explicativa) o certifica como um produzi-lo. Então na verdade os algoritmos estão ator sociotécnico confiável, confere aos seus resul- cheios das pessoas e das decisões que elas to- tados relevância e credibilidade, e mantém a apa- mam (GILLESPIE, 2016, on-line). rente neutralidade do provedor diante das milhões de avaliações que faz (GILLESPIE, 2014, p. 179). Lucas Introna (2016) acrescenta a essa visão que os algoritmos também impõem importantes es- Nas suas publicações oficiais, as empresas não colhas de valores costumam falar sobre os critérios usados para pro- gramar esses algoritmos, como se esses critérios feitas de forma implícita ou explícita, por aqueles que fossem inerentes a esses atores e como se eles os construíram e os implementam, o que pode ter im-

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plicações significativas para aqueles que se baseiam tramos as informações, mas elas nos encontram neles em suas práticas diárias Essas escolhas são fei- a partir dos critérios de seleção e ranqueamento tas por alguém e, como escolhas, são parciais e têm de conteúdo. São os algoritmos do Facebook que valores que as sustentam (INTRONA, 2016, p.18). decidem, por exemplo, sobre quais amigos e quais histórias nós vamos ter conhecimento (apesar Em matéria publicada no jornal The Guardian, de a empresa ressaltar que essa escolha é com- John Naughton (2016, on-line) afirma que todo al- pletamente baseada nas preferências do usuário goritmo faz escolhas com base em critérios espe- e administrável por ele) e quais amigos vão ficar cificados por seus designers e que, por sua vez, são “sumidos” da nossa rotina. São os algoritmos do expressões de valores humanos. “Os engenheiros Google que decidem se vamos visualizar notícias podem pensar que eles [os algoritmos] são ‘neutros’, sobre guerras ou fotos de praias paradisíacas ao mas a longa experiência tem nos mostrado que eles digitarmos “Israel” na barra da ferramenta de bus- [os engenheiros] são bebês na floresta da política, da ca. As informações e os posts que nos são exibi- economia e da ideologia”. Assim, apesar de afirmado dos têm a ver com os padrões de comportamento por seus desenvolvedores e provavelmente defendi- nos quais fomos enquadrados pelos algoritmos e do por seus engenheiros, longe de serem neutros e o que vamos receber em resposta serão os conte- apolíticos, os algoritmos constroem e implementam údos exibidos para aquele tipo de usuário. Assim, regimes de poder e conhecimento, e o seu uso tem “consequentemente nossas experiências e visões implicações normativas (KITCHIN, 2017). do mundo serão moldadas pela triagem e filtra- gem dos algoritmos” (idem, 2009, p. 998). Algoritmos e sua lógica particular Outra questão importante que deve ser levan- tada ao estudarmos os algoritmos são as questões Ao se trabalhar com algoritmos é preciso sem- políticas, econômicas e técnicas que estão por trás pre ter em mente que eles são o resultado de com- da seleção dos “melhores resultados” para os usuá- plexas redes sociotécnicas, formadas por diversos rios. Melhores para quem? De acordo com quem? atores humanos e não humanos, e que influenciam e Em relação a quê? São perguntas simples, mas que participam da construção de sentidos dos usuários estamos esquecendo de questionar sobre os algo- das plataformas em que eles trabalham. ritmos e seu funcionamento. De acordo com Jurno e d’Andréa, Ao discutir a implicação dessas questões po- líticas, econômicas e técnicas dos algoritmos de a partir de cálculos pouco conhecidos, os algorit- PageRanking do Google, Lucas Introna e Helen mos instauram uma lógica própria de administração Nissenbaum (2000, p.173) criticam como a lógica dos fluxos de informações e reorganizam os con- de classificação das páginas por esses algoritmos teúdos a fim de contemplar aquilo que detectam só considera um link importante “se os outros que como sendo de interesse de cada um, instaurando já são vistos como importantes indicam que você um regime peculiar de visibilidade e invisibilidade é importante”. Para eles, o design da ferramenta de (GILLESPIE, 2014) e uma nova lógica de conhe- cimento (BUCHER, 2012). (JURNO; D’ANDRÉA, busca é uma questão política que dá proeminência 2017a, p. 480). para os vencedores - se o seu link direciona e/ou é direcionado por páginas de confiança – então, ele é David Beer (2009) argumenta que, na era da classificado como importante. Para entendermos seleção e filtragem algorítmica, nós não encon- melhor a situação que os autores criticam, basta pensar na diferença de alcance orgânico dos posts

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 25 AMANDA CHEVTCHOUK JURNO E SÍLVIA DALBEN de um jornal de bairro e dos posts de um colunista estrada de mão única: considerar a ação dos al- da Folha de S.Paulo no Facebook. A questão é que goritmos não é adotar uma visão tecnocêntrica os algoritmos recompensam com visibilidade aque- da realidade. Da mesma forma que os algoritmos les que já têm visibilidade e, assim, é cada vez mais são capazes e moldam a realidade das pessoas, difícil mudar essa relação. as pessoas também são capazes e moldam os Kate Crawford (2016, p. 77) também acredita algoritmos de acordo com a sua realidade (basta que os algoritmos estão produzindo “vencedores em lembrar do caso do botão “esconder o post” que disputas de informação, muitas vezes com pouca vi- mencionamos anteriormente nesse artigo). Para sibilidade ou responsabilidade sobre a forma como Bucher (2016, p. 41), “o poder social dos algorit- essas disputas são concebidas”. Quais links mere- mos - particularmente no contexto de aprendiza- cem aparecer na primeira página do Google? Quais gem de máquina - deriva da recorrente ‘relação de páginas merecem ter seu post inserido no Feed de forças’ entre pessoas e algoritmos”. Os atores da Notícias dos usuários? Qual post merece ser o pri- rede se influenciam mutuamente. meiro na ordem de exibição? Qual propaganda vai ser exibida mais vezes? Para compreendermos a Considerações finais relevância desses questionamentos, basta pensar- mos em uma pesquisa no Google: quantas vezes Neste trabalho tentamos trazer algumas das chegamos a clicar em “próxima página” ou rolamos questões que consideramos centrais no estudo de o scroll da tela para baixo, e quantas vezes acaba- algoritmos, apresentando argumentos e visões de mos clicamos nos primeiros links exibidos? Quando autores que têm se debruçado sobre o tema. pensamos nos algoritmos apenas enquanto fórmu- Contamos sobre como a palavra ‘algoritmo” re- las matemáticas, perdemos de vista as questões fere-se a uma fórmula matemática, a procedimen- políticas e econômicas que estão por trás do seu tos codificados ou softwares que fornecem um re- funcionamento e que geram uma nova lógica de co- sultado desejado a partir de um dado inserido (GIL- nhecimento e (in)visibilidade. LESPIE, 2014). Falamos sobre como os algoritmos Também não podemos perder de vista as ques- são empregados para automatizar e sistematizar tões sociais e de comportamento que emergem problemas e processos, e funcionam com as mais com os algoritmos. De acordo com Taina Bucher diversas combinações de variáveis e dados. Vale ressaltar que aqui nos interessam os chamados “al (2012), o algoritmo do Facebook tende a recom- - pensar apenas o tipo ‘certo’ de compartilhamento, goritmos de relevância pública” (GILLESPIE, 2014, dando mais visibilidade a certos tipos de post às p. 168) que funcionam prevendo comportamentos e custas de outros. Assim, os usuários e as organiza- preferências a partir de uma base de dados e de cri- ções são influenciados a produzirem conteúdos de térios previamente definidos. Eles nos interessam determinadas formas, e a deixarem de produzir de por que são o principal tipo de algoritmo usado nas outras, em busca do que gera mais engajamento e plataformas de redes sociais e sites de busca. consequentemente mais visbilidade. Dessa forma, a Também falamos sobre como é preciso ter em autora acredita que os algoritmos não são apenas mente que os algoritmos e suas respectivas ações processos computacionais abstratos, mas entida- fazem parte de redes sociotécnicas heterogêne- des que têm também o poder de implementar rea- as. Ou seja, eles agem e influenciam outros atores lidades materiais ao moldar a vida social em vários nas redes das quais fazem parte e também são in- níveis (BUCHER, 2016). fluenciados e agenciados pela ação desses outros Por fim, vale ressaltar que essa não é uma atores. Tentar considerar a ação de um algoritmo

26 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 § Parágrafo QUESTÕES E APONTAMENTOS PARA O ESTUDO DE ALGORITMOS de forma separada e isolada não só é errado, como entender as diversas relações de forças (e de po- impossível – estaríamos olhando para uma grande der) que estão ali presentes. fórmula matemática inerte. Mostramos como os algoritmos não são enti- Referências dades estáveis, como seus desenvolvedores insis- tem em descrevê-los. De acordo com Rob Kitchin BEER, David. Power through the algorithm? Partici- (2017), os efeitos dos algoritmos e do poder dele- patory web cultures and the technological uncons- gado a eles não podem ser previstos por que eles cious. New Media & Society, n. 6, p. 985-1002, fazem parte de amplas redes de relações que me- 2009, v.11. deiam e influenciam a sua ação; por que sua perfor- BRUNO, Fernanda. Rastros digitais sob a perspec- mance pode ter efeitos colaterais e consequências tiva da teoria ator-rede. Revista FAMECOS: mídia, involuntárias; e por que eles podem conter erros ou cultura e tecnologia, Porto Alegre, n. 3, 2012, v.19. bugs que modificam a sua ação. Além disso, os algo- ritmos passam por constantes alterações em seus BUCHER, Taina. The algorithmic imaginary: Explo- critérios de funcionamento sem que os usuários ring the ordinary affects of Facebook algorithms. percebam essas alterações na interface de acesso Information, Communication & Society, v. 20, n. 1, (JURNO; D’ANDRÉA, 2017a). p. 30-44, 2016. Também explicamos como os dados usados pe- BUCHER, Taina. Want to be on the top? Algorith- los algoritmos são previamente categorizados, orga- mic power and the threat of invisibility on Facebook. nizados, limpos e valorados a partir de critérios cria- New Media & Society, n.7, p.1164-1180, 2012. dos por humanos e, consequentemente, estão intrin- secamente carregados de valores subjetivos. Dessa CALLON, Michel. Techno‐economic networks and ir- forma, longe de serem entidades neutras e apolíticas, reversibility. The Sociological Review, n. S1, p. 132- os algoritmos constroem e implementam regimes de 161, 1990, v.38. poder e conhecimento, e o seu uso tem implicações CHRISTIAN, Brian; GRIFFITHS, Tom. Algoritmos normativas (KITCHIN, 2017). De acordo com Jurno e para viver: A ciência exata das decisões humanas. d’Andréa (2017a), os algoritmos instauram uma lógica sÃO Companhia das Letras, 2017. particular de administração e organização das infor- mações, criando um regime peculiar de (in)visibilidade CRAWFORD, Kate. Can an algorithm be agonistic? e uma nova lógica de conhecimento. Ten scenes from life in calculated publics. Science, Te- Assim, acreditamos que, para estudarmos chnology, & Human Values, n. 1, p. 77-92, 2016, v.41. essas entidades, é preciso levar em consideração DIAKOPOULOS, Nicholas. Algorithmic-Accountabi- as questões políticas, econômicas e sociais por lity: the investigation of Black Boxes. Tow Center for trás das escolhas de resultados “mais relevantes” Digital Journalism, 2014. Disponível em: < https:// ou “conteúdos mais importantes”. Os algoritmos towcenter.org/research/algorithmic-accountability- estão sempre inseridos em redes sociotécnicas -on-the-investigation-of-black-boxes-2/ >. Acesso compostas por diversos atores que agenciam e em 20 mar. 2018. influenciam uns aos outros enquanto interagem. Dessa forma, acreditamos que a melhor maneira FACEBOOK. 2018. Central de ajuda. Dis- de estudá-los seria mapear os atores que fazem ponível em: . Acesso em 20 mar. por eles nesse processo (LATOUR, 2012), tentar 2018.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 27 AMANDA CHEVTCHOUK JURNO E SÍLVIA DALBEN

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28 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 § Parágrafo QUESTÕES E APONTAMENTOS PARA O ESTUDO DE ALGORITMOS arching algorithms. Information, Communication & VOLTOLINI, Ramon. Por onde você andou? Con- Society, v. 20, n. 1, p. 14-29, 2017. sulte seu histórico de localização junto à Google. TecMundo. 13 ago. 2014. Disponível em: . Acesso em 15 mar. 2018. LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdu- ZIEWTIZ, Malte. How to think about and algorithm: ção à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012. Notes from a not quite random walk. Discussion pa- NAUGHTON, John. Here is the news – but only if Fa- per of the SYMPOSIUM KNOWLEDGE MACHINES cebook thinks you need to know. The Guardian. 15 BETWEEN FREEDOM AND CONTROL. Kulturfa- maio 2016 Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2018. ZIMMER, Michael. Google: “Did you mean: ‘He in- OREMUS, Will. Who Controls Your Facebook Feed? vented’?”. Michael Zimmer. 9 maio 2007. Disponível A small team of engineers in Menlo Park. A panel em: . Acesso em: 9 increasingly, you. Slate. 3 jan. 2016 Disponível em: mar. 2018. . Acesso em 18 jan. 2016.

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Amanda Chevtchouk Jurno – Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uni- versidade Federal de Minas Gerais (PPGCOM-UFMG). Faz parte do Centro de Convergência de Novas Mídias e do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas. Mestre pelo PPGCOM e Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela UFMG. E-mail: [email protected] Sílvia DalBen – Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCOM-UFMG), onde estuda com bolsa de estudos da FAPEMIG. Faz parte do Cen- tro de Convergência de Novas Mídias e do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas. É Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela UFMG. E-mail: [email protected]

Recebido: 21 mar. 2018 Aprovado: 11 abr. 2018

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 17-29, jan./abr. 2018 29

Repensando big data, algoritmos e comunicação: para uma crítica da neutralidade instrumental

Rethinking the big data, algorithms and communication: a critique of instrumental neutrality

Tales Tomaz Centro Universitário Adventista de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

Guilherme Cavalcante Silva Universidade Estadual de Campinas Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo Campinas, SP, Brasil

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 31-42, jan./abr. 2018 31 TALES TOMAZ E GUILHERME CAVALCANTE SILVA

Resumo Abstract

Este artigo discute a presença, tanto em discursos This paper discusses the presence both in big data sobre big data como nos estudos em comunicação, discourses and in communication studies of the da ideia de neutralidade instrumental dos dados e idea of instrumental neutrality in data and algori- algoritmos. O texto procura elucidar a noção etimo- thms. The text seeks to elucidate the etymological lógica e contextual de data e o modo como algumas and contextual notion of data and how some of the das abordagens sobre big data tratam dados, algo- big data approaches deal with data, algorithms, and ritmos e informação. A partir daí, apresenta as difi- information. From there, it presents the difficulties culdades de compreender dados e algoritmos como of understanding data and algorithms as mere pur- meros instrumentos neutros para fins. Em seguida, pose-neutral instruments. Then the text shows how o texto mostra como ideia semelhante já estava similar idea was already present in the cybernetic presente na compreensão cibernética da comuni- understanding of communication. Finally, we propo- cação. Por fim, propõe-se uma crítica à neutralidade se a critique of instrumental neutrality presupposed instrumental pressuposta na ontologia do big data in the ontology of the big data and communication, e da comunicação, com destaque para a questão do with emphasis on the question of the erasure of al- apagamento da alteridade, seguindo a linha da feno- terity, following the argument of Martin Heidegger’s menologia de Martin Heidegger. phenomenology.

Palavras-chave Big data. Algoritmos. Comunicação.

Keywords Big data. Algorithms. Communication.

32 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 31-42, jan./abr. 2018 § Parágrafo REPENSANDO BIG DATA, ALGORITMOS E COMUNICAÇÃO

Introdução Origem dos data A administração da torrente de dados cha- Apesar do ar de novidade devido ao seu uso ge- mada de big data é um assunto que já transborda neralizado no contexto digital, o termo data não é da área computacional para se tornar questão po- recente. A própria expressão big data já era utiliza- lítica, econômica e social de primeiro plano. Nesse da em meados do século 20, no contexto da emer- contexto, este artigo propõe repensar big data e a gência dos supercomputadores que centralizavam mediação algorítmica para além de uma noção me- grande quantidade de procedimentos de cálculo e ramente técnica. A proposta surge de um incômodo armazenamento. Nesse caso, big data era uma re- com o regresso de elementos, em muitos desses ferência ao constante aumento – e o problema deri- discursos, que apontam para os dados como ins- vado disso – da quantidade de dados a serem arma- trumentos neutros, mediadores objetivos da reali- zenados e lidos em um computador e à necessida- dade. Fato teórico similar foi visto anteriormente, de de aprimoramento dos sistemas para comportar argumenta-se, em tratativas da comunicação que tanta informação. a tomam por troca de dados entre dois polos, pro- Todavia, o discurso atual sobre big data se en- cesso neutro mediado por instrumentos neutros. O caminha para direções que vão além de uma sim- objetivo do texto é mostrar como o discurso acerca ples questão técnica. Boyd e Crawford (2012), por do big data e algoritmos que se baseia na sua neu- exemplo, propõem que o aspecto-chave do big data tralidade instrumental perde de vista a redução da não é a consideração para com o tamanho dos da- realidade neles operada, semelhantemente ao que dos, mas a avaliação daquilo que pode ser transfor- ocorre quando a comunicação é tratada como troca mado em dados, mensurado, sondado, agregado e de informação. homogeneizado como um aglomerado. Dados, para Para alcançar o objetivo proposto, o artigo se essas pensadoras, são fenômenos culturais, políti- inicia com uma investigação acerca da origem da cos e econômicos tanto quanto técnicos. Para além ideia de data e sua relação com a matemática no de se resumir a questões técnicas, a abordagem sentido original dos gregos, seguindo pistas dei- atual do big data envolve a xadas especialmente por Puschmann e Burgess. Depois, apresenta-se a relação do big data com os crença generalizada de que maiores quantidades algoritmos e a computação, com destaque para um de dados oferecem uma forma superior de inteli- certo discurso de neutralidade instrumental que gência e conhecimento que pode gerar insights que escamoteia a existência de toda uma lógica de co- eram previamente impossíveis, com uma certa aura nhecimento, como propõe Gillespie, ou ontologia, de objetividade e exatidão. (BOYD; CRAWFORD, como sugere Capurro. Em seguida, o texto mostra 2012, p.663-664). como uma ideia semelhante já estava em operação na noção cibernética de comunicação, introduzida De fato, uma característica marcante tanto por Wiener e consolidada por Weaver e Shannon. em discursos negativos – que ressaltam as ame- Finalmente, o texto elabora críticas à neutralidade aças à privacidade, liberdade individual e livre instrumental pressuposta na ontologia do big data concorrência – quanto em narrativas que afirmam e dos algoritmos, com destaque para a crítica ao o big data como um recurso ilimitado para ser apagamento da alteridade, que é feita a partir da fe- manuseado potencialmente em todas as áreas nomenologia de Heidegger e Merleau-Ponty. possíveis é um entendimento implícito de dados como realidades transparentes, óbvias, uma for-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 31-42, jan./abr. 2018 33 TALES TOMAZ E GUILHERME CAVALCANTE SILVA ma inquestionável de ter acesso às coisas (GI- conhecimento. Em resumo, o que podemos chamar TELMAN; JACKSON, 2013). de datificação, isto é, a conversão das coisas em É interessante notar que etimologicamente dados, é um processo que encerra de antemão seu data corresponde a essa compreensão, especial- objeto como algo mensurável. mente em seu uso no campo da matemática e das ciências exatas. Nos gregos, a expressão data se Contribuição dos algoritmos para refere simplesmente a algo que é dado, um presen- datificação te (Puschmann; Burgess, 2014).1 Dados são, antes de tudo, aquilo que é dado de antemão em um con- Os dados adquiriram a popularidade que têm texto (GITELMAN; JACKSON, 2013). No contexto hoje juntamente com o salto experimentado por outra científico, o termo passou a designar aquilo que é categoria matemática, a dos algoritmos. Estes tam- dado previamente para análise. A ligação dos dados bém se tornaram objeto destacado na atenção públi- com a matemática fica mais clara quando se enten- ca ao longo dos últimos anos, especialmente com a de o sentido original desta última. Heidegger (2002, ascensão do Facebook e a preocupação de que seus p.80) explica que mathemata (τἀ μαθηματα) era um códigos algorítmicos estejam alterando a percepção modo de conhecer a realidade no qual as coisas são dos usuários sobre a realidade. Como ficará evidente aprendidas de antemão, “aquilo acerca das coisas a seguir, é crucial entender melhor também o que são que já conhecemos verdadeiramente, de modo an- algoritmos quando se está pensando big data. tecipado. Aquilo que, em consequência, não come- A princípio, algoritmos podem parecer objetos çamos por ir buscar as coisas, mas que, de certo exclusivamente de estudo técnico da computação, modo, levamos conosco até elas”. Portanto, não é afinal, costumam ser definidos como “uma descrição de se estranhar a presença dos data no contexto formalizada e abstrata de um procedimento compu- da matemática ainda antes do eclodir da era com- tacional” (DOURISH, 2016, p. 3). Mas o seu sentido putacional, uma vez que o traço marcante da mate- é mais amplo, não se reduzindo a computadores ou mática é seu caráter de apreensão apriorística, isto outros artefatos tecnológicos. Algoritmos são uma é, nela as coisas são vistas a partir de um aspecto tentativa de descrever o passo a passo necessário que, de alguma forma, já é dado de antemão. Nas para a realização de um procedimento de forma tão palavras de Capurro (2006, p. 4), “o caráter paradig- precisa que possa ser executado sem qualquer inter- mático da ciência natural matemática não é a apli- pretação de quem (ou o que) o executa. Dessa forma, cação de matemática a processos naturais, mas a obtém-se uma economia de tempo e esforço. O ideal projeção a priori das entidades que ela descobre”. do algoritmo é descrever o passo a passo tão eficaz- Essa projeção apriorística é exatamente o que está mente a ponto de o procedimento poder ser automa- em jogo nos dados. tizado. Quando isso ocorre, há apenas que se definir o Entendidos como aquilo que já é apreendido “antes [a escolha do procedimento] e o depois [o que o de antemão, dados são objetos passíveis de men- resultado significa], mas o procedimento em si já está suração, estudo, asseguramento e manipulação. E resolvido” (TOMAZ, 2017, p. 53). é precisamente no contexto do crescimento das Se, por um lado, o sentido dos algoritmos vai ciências ditas duras e de um certo espírito positi- além da computação, o fato é que, por outro lado, vista que os dados ganham realce como vetores do eles só foram alçados a esse papel de importância na vida humana com o surgimento do computador 1 Puschmann e Burgess (2014) apontam para δίδωμι como a raiz grega de onde o termo se desenvolveu. Em latim, a palavra e, de forma ainda mais espetacular, com o desen- foi traduzida por datum, e data é sua versão plural.

34 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 31-42, jan./abr. 2018 § Parágrafo REPENSANDO BIG DATA, ALGORITMOS E COMUNICAÇÃO volvimento do big data. Qual é, então, a relação da também aparece muitas vezes como uma forma ob- algoritmização com a computação e com big data? jetiva, neutra de lidar com real (GILLESPIE, 2014). A questão é que a tentativa de estabelecer um pas- Por partir do caráter matemático da certeza, da exa- so a passo para a realização de um procedimento tidão do procedimento, os algoritmos passam uma que não necessite de interpretação particular cor- impressão de credibilidade e neutralidade sem pre- responde à tradução desse procedimento em lin- cedentes em comparação com a mediação, o juízo guagem formal. E computadores são justamente e a intervenção humanos. Isso pode ser visto, por máquinas que funcionam sob essa linguagem. Não exemplo, na maneira como os usuários de redes so- apenas isso. Como demonstrado por Turing, são ciais, como o Facebook, tendem a confiar cada vez máquinas capazes de executar qualquer algoritmo mais no seu feed de notícias para se manterem atu- que siga rigorosamente a linguagem formal.2 Não à alizados acerca do que ocorre em seu entorno em toa, o computador é considerado fundamentalmen- vez de se engajarem em uma busca ativa e cons- te uma máquina algorítmica (GILLESPIE, 2014). ciente por diferentes meios de comunicação (ZUÑI- Ter à disposição uma máquina capaz de rodar GA et.al., 2017). Algoritmos e big data tendem a qualquer algoritmo parece ter provido o incentivo ne- assumir um caráter instrumental de neutralidade. cessário para a produção e a sofisticação de algorit- De fato, Puschmann e Burgess (2014) obser- mos. Com maiores possibilidades de execução, têm vam que, na maior parte dos discursos, o big data sido desenvolvidos algoritmos cada vez mais comple- aparece como uma certa força natural a ser con- xos, capazes de lidar de forma relativamente eficiente trolada ou como uma ferramenta a ser utilizada, um com problemas cuja resolução, até então, se atribuía meio para fins. A preocupação parece ser em como exclusivamente à aplicação de excepcionalidades administrar e colocar tamanho potencial a serviço como o “espírito humano”, a “liberdade”, a “criatividade” de finalidades úteis. Puschmann e Burgess (2014) etc. (SHROFF, 2014). Por sua vez, numa lógica de au- arrolam alguns exemplos emblemáticos desse dis- torreforço, a sofisticação dos algoritmos significa que curso. A revista Wired3 de fevereiro de 2013 utiliza cada vez mais procedimentos do cotidiano podem ser os termos “massa de dados [cujos valores devem automatizados, promovendo a aprovação do modo ser extraídos]”, “pilha de big data” e “dados para além algorítmico de lidar com o real e incentivando ainda da compreensão humana” para descrever a poten- mais o recurso à mediação algorítmica. Isso parece ter cialidade de dados disponíveis para a indústria de provido também o incentivo necessário para a tradu- marketing potencializar sua comunicação com ção de mais aspectos do real em dados, ou seja, para clientes e outras empresas. Um artigo do USA To- a mencionada datificação. Dessa forma, a linguagem day ressalta o big data como um oceano infinito dos algoritmos, a formalização, alcança seu ápice com para se nadar, onipresente, ali desde o momento em a chegada da computação e a subsequente hiperpro- que buscamos saber a previsão do tempo até quan- dução de dados (TOMAZ, 2017). do tentamos entrar em contato com alguém.4 Já É apenas com este pano de fundo que os da- o Herald Cronicle aponta para um aprimoramento dos foram alçados à importância que têm hoje, sob constante do processamento da torrente de infor- a alcunha de big data. A questão é que, assim como ocorre com a datificação, a mediação algorítmica 3 “Smart Data: For Communications, Big Data Becomes Trans- formational”. Disponível em: Acesso em: 21 fev. 2018. cebeu como uma máquina universal capaz de executar todos 4 “How has Big Data changed your life?”.Disponível em: Acesso em: 08 mar. 2018.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 31-42, jan./abr. 2018 35 TALES TOMAZ E GUILHERME CAVALCANTE SILVA mação e circulação de dados na rede digital como plesmente uma possibilidade à nossa disposição, um fator-chave para as companhias de tecnologia mas é toda uma nova lógica de conhecimento: do Canadá conseguirem angariar fundos.5 Muitas vezes, big data e algoritmos são to- O acesso algorítmico à informação, portanto, mados como um “meio independente de verificar representa uma lógica particular de conheci- resultados” e como uma “matéria prima” (SCHRO- mento, construída sobre premissas especí- EDER, 2016, p. 12-13). O aumento na quantida- ficas sobre o que é o conhecimento e como de e disponibilidade de dados, bem como sua su- se deveria identificar seus componentes mais posta uniformidade – que é à base da ideia de big relevantes. Que nós estejamos nos voltando a data –, são vistos como irresistíveis para a teoria algoritmos para identificar o que precisamos e prática comunicacional (JUNGHEER, 2015). Di- saber é tão significativo quanto ter confiado versos estudos se voltam para as possibilidades em especialistas credenciados, no método do uso dos dados e seu impacto no ambiente di- científico, no senso comum ou na palavra de Deus. (GILLESPIE, 2014, p 168): gital, especialmente em redes sociais como Face- book, Instagram e Twitter (SCHROEDER, 2016), Nesse sentido, o algoritmo não é meramente além das questões políticas e sociais envolvidas uma ferramenta neutra, disponível à mão, indife- em seu uso e consideração por parte da mídia rente às formas de uso de indivíduos e instituições. (NEUMAN et. al., 2014). Seu uso encerra a necessidade de lidar formalmen- Portanto, o entendimento da neutralidade te com as coisas, de tratar procedimentalmente dos dados e dos algoritmos, que se alinha com com o mundo. Por isso, há quem aponte algoritmos e até mesmo atualiza o positivismo, vai além do e data como elementos primordiais de uma espé- universo das redes sociais ou das finanças e po- cie de ontologia digital (CAPURRO, 2006). líticas globais e tende a se difundir por diversas facetas da vida humana (ILIADIS; RUSSO, 2016). Com big data e algoritmos eficientes, a existência A noção de comunicação parece ser mais controlável do que nunca, desde Por que essa discussão interessa especifica- que saibamos fazer bom uso do poderoso instru- mente à comunicação? Num sentido mais prático, mento em mãos. como já visto en passant, um número crescente de Já é possível antecipar alguns problemas processos comunicativos passa pela mediação algo- de uma noção exclusivamente instrumental do big data e dos algoritmos. Como coloca Krtilova rítmica e se converte em big data. Só por esse moti- (2015), os algoritmos não apenas servem como vo já se faz necessário considerar as implicações da meios para lidar com uma realidade objetiva, está- perspectiva instrumental do big data para a comu- vel, mas criam uma experiência em que tudo apa- nicação. Entretanto, este texto quer explorar outro rece tão calculável, apreensível quanto possível. aspecto dessa relação, a saber, a ideia de que o dis- Tudo tem de ser feito da maneira mais exata pos- curso de neutralidade instrumental do big data e dos sível. A implicação é que está em jogo uma forma algoritmos é o mesmo – na realidade, uma atualiza- de compreender o real. Por isso, para Gillespie, a forma algorítmica de lidar com as coisas não é sim- ção e radicalização – da forma cibernética de pensar a comunicação, uma forma que toma comunicação 5 “Data Science pool touted”. Disponível em: Acesso em: 08 mar. 2018.

36 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 31-42, jan./abr. 2018 § Parágrafo REPENSANDO BIG DATA, ALGORITMOS E COMUNICAÇÃO

O conceito paradigmático6 de comunicação Nessa teoria, comunicação é entendida como que, como se verá, exerceu atuação decisiva na um processo de troca de informação. Dessa forma, formação da ontologia da neutralidade dos dados a comunicação pode ser mensurada a partir da efe- opera sob influência da cibernética de Norbert tividade na transmissão correta de informações de Wiener, colocada em movimento nos anos 40. um pólo para outro, proporcionando o maior contro- Wiener estabeleceu que o objetivo principal da ci- le possível da situação por parte do emissor (SILVA, bernética era o de “desenvolver uma linguagem e 2016). Entre as características principais deste técnicas que nos capacitem, de fato, a haver-nos teorema se encontram a linearidade e previsibilida- com o problema do controle e da comunicação de da comunicação e o seu caráter necessário de em geral […], sempre em luta contra a tendência exatidão, onde o ruído e o imprevisível devem ser [entrópica] da natureza de degradar o orgânico e controlados e idealmente eliminados. A comunica- destruir o significativo” (WIENERE, 1965, p. 17). ção na cibernética é totalmente calculável, tendo O ponto em comum entre Wiener e outros ciber- melhor eficácia inclusive quando feita por máqui- neticistas, como os engenheiros Claude Shannon nas. É então um processo de transmissão e inter- e Warren Weaver – postuladores do primeiro mo- pretação de sinais, enfim, um sistema técnico. O ato delo teórico a relacionar comunicação com troca comunicacional é visto como algo necessariamente de informação –, é que tal linguagem se encontra replicável e mensurável – matemático, enfim. Algo na informatização, sendo esta diretamente rela- que não é estranho conforme “a sociedade passou cionada ao controle da entropia.7 a ser vista como um conjunto de circuitos e canais, Sob a influência da noção wieneriana de infor- mantido pelas redes técnicas de informação” (RÜ- mação, controlável, como a chave para a redução DIGER, 2004, p. 109). da entropia, Shannon e Weaver imaginaram que o Atualmente a influência do sistema de Shan- aspecto primordial da comunicação deveria ser a non e Weaver pode parecer estar em baixa em um troca eficaz de informação, sem qualquer tipo de contexto acadêmico que rejeita cada vez mais a ruído (SHANNON, 1948). E, para contribuir para dicotomia emissor-receptor, vista como antiquada esse objetivo, eles elaboraram, em fins da déca- diante do novo cenário virtual (RÜDIGER, 2004). da de 1940, o que ficou conhecido como a Teoria Todavia, como chamam a atenção Gunkel e Taylor Matemática da Comunicação. (2014, p. 34-35),

6 Tratamos paradigma aqui em termos kuhnianos, isto é, como enquanto grande parte dos estudos em Comuni- uma estrutura fonte de “métodos, áreas problemáticas e pa- cação abandonou um modelo simples de trans- drões de solução aceitos por qualquer comunidade científica missão e coloca a si mesma a tarefa intelectual amadurecida, em qualquer época que considerarmos” (KUHN, de ressaltar as diversas complicações e distor- 1998, p.137-138). 7 Entropia, para Wiener, é uma medida de desorganização que ções que ocorrem em um ‘simples’ ato de comu- afeta toda a estrutura natural. “Conforme aumenta a entropia, nicação (por exemplo, o ‘barulho’ que pode inter- o universo, e todos os sistemas fechados do universo, tendem romper a comunicação e, mesmo se recebida, os naturalmente a se deteriorar e a perder a nitizes, a passar de um estado de mínima a outro de máxima probabilidade; de um diferentes modos que os receptores podem es- estado de organização e diferenciação [...] a um estado de caos colher para decodificar a mensagem etc.), grande e mesmice” (WIENER, 1965, p. 14).

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 31-42, jan./abr. 2018 37 TALES TOMAZ E GUILHERME CAVALCANTE SILVA

parte da disciplina ainda trabalha (ainda que impli- teridade. Isso fica bastante claro ao se examinar citamente) com o modelo de Shannon e Weaver. mais uma vez o sentido que Weaver (1977) dava para a comunicação. Para ele, a comunicação era De fato, quando se vê o discurso de big data e o ato de influenciar, causar um efeito esperado, algoritmos como instrumentos capazes de contro- sobre o outro pólo, visto não como autônomo, mas lar melhor a vida humana e o planeta como um todo, como uma extensão do emissor. “A comunicação percebe-se a continuidade e até mesmo radicaliza- ou influencia a conduta ou não tem qualquer efei- ção da influência do conceito cibernético de comu- to perceptível e comprovável” (WEAVER, 1977, p. nicação como controle. 26). O objetivo da comunicação seria equalizar os dois pólos o mais proximamente possível, tornar o Instrumentalidade dos meios técnicos e fluxo de informações total e totalizante. De fato, uma era sem fronteiras. Mas o que é isso, no final apagamento da alteridade das contas, senão o expurgo da alteridade, a recu- Atualmente, mesmo pensadores que se aproxi- sa de um elemento imperscrutável de resistência mam mais da cibernética já não aceitam mais esse no Outro? discurso de neutralidade instrumental dos meios Discutindo a atuação da deusa Atena na mito- técnicos. Erick Felinto (2011, p. 241), por exemplo, logia grega como metáfora para pensar a condição embora aprecie o aspecto performativo da ciber- tecnológica que se anunciava então para a humani- nética, afirma que “os meios não apenas nada têm dade, no contexto de sua conferência “A proveniên- de transparentes, senão também constituem nos- cia da arte e a determinação do pensar”, Heidegger sa relação com o mundo e definem as condições fornece pistas para se pensar os problemas ontoló- transcendentais do pensamento”. Os Estudos So- gicos de uma proposta de controlar o Outro, supe- ciais da Ciência e Tecnologia – em alguns aspectos rando as fronteiras. tributários da cibernética – também rejeitam a mera instrumentalidade dos objetos técnicos. Para Bruno Atena aparece como skeptoméne, a que medita. Latour (2013), um dos mitos legados pela moderni- Aonde se dirige o olhar meditativo da deusa? À pe- dade foi a ideia de que a ciência e a metodologia for- dra-marco, à fronteira. Fronteira não é só onde algo mal tinham condições de definir ontologicamente termina. Fronteira designa aquilo mediante o qual as coisas por estar habilitada a olhar objetivamen- algo é ajuntado no que lhe é próprio, para aparecer, te, de fora, para os fenômenos. Para Latour (2014, de aí para fora, na sua plenitude e emergir em pre- p. 7), “uma das coisas mais intrigantes na história sença (HEIDEGGER, 2013, p. 123). do Ocidente não é que ainda existam pessoas que acreditam no animismo, mas a crença tola que mui- O olhar da deusa se firma na fronteira. E o tos ainda possuem em um mundo ‘frio’ de meros ob- que aparece então? Para Heidegger, aquilo que jetos”. Está bastante claro, para ele, que o mundo do é. Em outras palavras, fronteira não é apenas objeto é o mesmo mundo do sujeito. algo que limita o avanço técnico-científico ou a Entretanto, a crítica à noção cibernética de eficácia da comunicação. Fronteira reúne algo, comunicação ora reproduzida na ontologia digital delimita-o e, dessa forma, o faz emergir como do big data que queremos explorar neste texto é algo que é. Sem fronteiras, Eu e o Outro somos a da fenomenologia. Isso porque, diferentemente o mesmo. De fato, não há Outro. Tudo se torna de outras críticas, ela ressalta a forma como esse uma extensão do mesmo. E é exatamente nessa tipo de ontologia promove um apagamento da al- pretensão que se firma a ciência cibernética e o

38 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 31-42, jan./abr. 2018 § Parágrafo REPENSANDO BIG DATA, ALGORITMOS E COMUNICAÇÃO modelo técnico de comunicação. No paradigma ção não pode se reduzir a uma ferramenta ou um cibernético da comunicação, “eu e Outro podem processo formal, pelo fato de, assim como o próprio estar em qualquer e todo ente da cadeia de cau- humano, sempre se dar no mundo, junto a este, su- salidades reprodutíveis […], uma verdadeira ex- jeita aos riscos e incertezas deste. Afinal, “o mundo plosão de Identidade e Alteridade em todas as está ali antes de qualquer análise que eu possa fa- direções” (TOMAZ, 2016, p. 15). zer dele, e seria artificial fazê-lo derivar de uma série O pensamento cartesiano consolidou a com- de sínteses [...] quando ambos são justamente pro- preensão de que todos os entes são res extensa, dutos da análise e não devem ser realizados antes extensões de um sujeito que, aliás, surge com o dela” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 5). próprio Descartes (OLIVEIRA, 1998). Descartes afirma que não encontrou nada senão o fato de ele Considerações finais [res cogitans] ser o que duvida [pensa] da certeza das coisas [objetos]. “Logo depois atentei que, en- Ao escavar os pressupostos de um certo en- quanto queria pensar assim que tudo era falso, era tendimento que une big data, algoritmos e comu- necessariamente preciso que eu, que o pensava, nicação – que considera dados como realidade, fosse alguma coisa” (DESCARTES, 2002, p. 38). O algoritmos como instrumentos neutros e comu- conhecimento, para Descartes, repousa na certeza, nicação como troca de informação –, este texto e esta é colocada exclusivamente no âmbito do que buscou apontar a insuficiência epistemológica pensa. Assim, a transcendência em Descartes é o desse paradigma. Não há algo como dados puros, próprio sujeito. Ao propor a indiferença absoluta a dos quais se deve deduzir objetivamente numa relação instrumentalmente mediada, operada por partir da transparência total da comunicação, a ci- sujeitos autônomos. É a projeção de autonomia e bernética dá sequência a essa tradição filosófica. É neutralidade dos dados e algoritmos, como ato o humano cercado de todos os lados por si mesmo. - Um mundo sem Outro. res sociotécnicos confiáveis, que alimenta o seu impacto social (GILLESPIE, 2014). Ao reduzir comunicação à troca mensurável de informações, o paradigma técnico da comunicação Nesse ponto, conforme o texto demonstrou, crê na possibilidade de abstrair uma relação de alte- os discursos instrumentais sobre big data e a ridade infinitamente, isto é, reproduzi-la, esquecen- ideia matemática de comunicação pecam, pois do que “operar realidades com a implementação de tomam dados e comunicação como procedimen- operações técnicas (controlar processos, ‘fazendo tos puramente neutros, à mão para uso e mensu- as coisas funcionarem’) somente é possível se você ração, ideia que já encontrava suas premissas na abstrair do emaranhamento de práticas e relações cibernética de Wiener. Eles incorporam certa “fan- com os outros, do enraizamento no mundo” (KRTI- tasia [...], aquela em que vida e técnica devem se LOVA, 2015, p. 33-34). Cada experiência, cada re- fundir para fazer surgir um único organismo ma- lação, é única, não replicável, não mensurável. quinístico universal” (RÜDIGER, 2014, p. 73). Hei- degger já via na cibernética o “ápice da tradição Quando se toma as coisas como fundamental- filosófica” ocidental (LEIDLMAIR, 1991, p. 195), mente mensuráveis – em um certo discurso de big o acabamento ou expressão máxima de uma de- data e algoritmos e na primeva teoria da comunica- terminada história em que as coisas se apresen- ção –, adota-se a fé implícita de que basta ampliar tam como coisas à disposição, à mão, passíveis a quantidade de meios ou ferramentas disponíveis de mensuração por meio de desenvolvimento tec- para tornar a comunicação plena e total, reprodu- nológico “eficaz”. tível em todas as partes. No entanto, a comunica-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 31-42, jan./abr. 2018 39 TALES TOMAZ E GUILHERME CAVALCANTE SILVA

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WEAVER, Warren. A teoria matemática da comuni- cação. In: COHN, Gabriel. (Org.). Comunicação e in- dústria cultural. 3ª ed. São Paulo: Nacional, 1977.

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Tales Tomaz – Professor-assistente do Centro Universitário Adventista de São Paulo. Doutor em Meios e Processos Audiovisuais, pela ECA/USP. E-mail: [email protected]

Guilherme Cavalcante Silva – Mestrando em Divulgação Científica e Cultural, no Laboratório de Es- tudos Avançados em Jornalismo (Labjor/IEL), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista Capes. E-mail: [email protected]

Recebido: 16 mar. 2018 Aprovado: 01 maio 2018

42 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 31-42, jan./abr. 2018 § Parágrafo Mediações algorítmicas: o poder de modulação dos algoritmos do Facebook

Algorithmic mediations: the power of modulation of Facebook’s algorithms

Débora Franco Machado Universidade Federal do ABC Programa de pós-graduação em ciências humanas e sociais Santo André, SP, Brasil

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 43 DÉBORA FRANCO MACHADO

Resumo Abstract O artigo apresenta uma pesquisa sobre as implica- The article presents a research about the implica- ções do uso de processos algorítmicos pelas pla- tions of the use of algorithms by social media pla- taformas de mídias sociais. O objetivo é analisar as tforms. The goal is to analyze the dynamics and mo- dinâmicas e motivações para a criação desses có- tivations for the creation of those codes, seeking to digos, buscando compreender o que muda em uma understand what has changed in the communica- comunicação cada vez mais mediada e modulada tion process that it is getting more and more media- por agentes humanos e não humanos. Para isso, ted and modulated by human and nonhuman agents. revisamos a literatura acerca do uso de algoritmos Therefore, we review the literature on the use of al- e os debates sobre performatividade e objetivida- gorithms and debates on performativity and objec- de por autores como Pasquale, Gillespie e Silveira. tivity by authors like Pasquale, Gillespie and Silveira; Também delimitamos o conceito de modulação na and we also delimit the concept of modulation in sociedade de controle (Deleuze). As hipóteses que the control society (Deleuze). The hypotheses that guiam a pesquisa nascem do debate emergente so- lead this research come from the emerging debate bre o possível poder de modulação comportamental about the possible power of behavior modulation que esses códigos carregam. A metodologia utiliza- that these codes carry. The methodology used for da para a presente pesquisa foi a análise de duas the present research was an analysis of two patents patentes registradas pela empresa Facebook Inc. registered by Facebook Inc.

Palavras-chave Algoritmos. Modulação. Facebook. Big data. patentes.

Keywords Algorithms. Modulation. Facebook. Big data. Patents.

44 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 § Parágrafo MEDIAÇÕES ALGORÍTMICAS: O PODER DE MODULAÇÃO DOS ALGORITMOS DO FACEBOOK

Introdução Facebook é a internet, enquanto apenas 5% dos americanos têm essa visão (QUARTZ, 2015). As A palavra algoritmo data ao século IX, mas seu práticas de zero-rating1, controversas por distorce- significado tem interpretações diversas dependen- rem os princípios de neutralidade da rede propostos do da área em que é utilizada (KITCHIN, 2017). Para pelo Marco Civil, incentivam usuários mobile a não as áreas técnicas, como a engenharia e a ciência da saírem dessas plataformas enquanto estão online, computação, o significado é simples: uma sequên- uma vez que seu acesso é gratuito em certos pla- cia de ações que pode ser usada por uma máquina nos de telefonia (RAMOS, 2015). para realizar uma tarefa. Para o público em geral a palavra define algo muito mais complexo, intangível A funcionalidade dos algoritmos de seleção de e, apesar de algumas discussões no âmbito acadê- conteúdo dessas plataformas ganhou relevância na mico e em alguns veículos de comunicação, ainda é mídia e na academia nos últimos anos, mas esses um tema complexo e longe de discussões no dia a processos estão presentes em diferentes âmbitos dia. Já para os cientistas sociais, a palavra parece da vida contemporânea que vão muito além das re- definir um perigo emergente que, ao ser discutido, des sociais online: 80% das transações em alguns passa distante das equações matemáticas respon- mercados de capital americano, por exemplo, são sáveis por sua origem (GILLESPIE, 2014). Para se feitas por algoritmos, que exercem o papel de deci- aprofundar nas implicações sociais decorrentes da dir o fluxo do capital e o credit score de um cliente inserção dos processos algorítmicos no cotidiano utilizando uma vasta base de dados e critérios pré- de grande parte da sociedade, é necessário enten- -definidos (PASQUALE, 2015). der sua complexidade e observar a forma como eles Para Mackenzie (2006), os algoritmos que per- são entendidos dentro da comunidade tecnológica, meiam a rede são performativos. Seus sistemas, ao das ciências sociais e da sociedade civil. serem aplicados, não alteram somente o cálculo do Nos últimos seis anos, o número de brasileiros valor no mercado financeiro, mas também modelam com acesso à internet cresceu exponencialmente. as dinâmicas, práticas e comportamentos dos pro- Somente nas classes C e D, o número de usuários fissionais dessa área e das pessoas que serão afe- subiu de 18% para 50% (CETIC, 2015.). Os brasi- tadas por suas decisões – estejam elas cientes de leiros lideram a lista de tempo gasto nas redes so- como esse procedimento funciona ou não. Pasquale ciais online e gastam em torno de 21,2 minutos por (2015) pontua que uma das problemáticas desses visita. Uma única plataforma, Facebook, consome sistemas é a falta de transparência, visto que não é 96,7% do tempo que os usuários passam nas redes possível investigar, muito menos auditar, algo que se sociais (COMSCORE, 2014). Segundo a empresa, desconhece. Ele também nos atenta a um fato con- oito em cada 10 brasileiros conectados estão no traditório: se por um lado as decisões tomadas por Facebook, somando um total de 99 milhões de usu- empresas e instituições financeiras são escondidas ários ativos mensais (COSSETTI, 2016). por trás de acordos de não divulgação, por outro, tudo que o usuário faz na rede está sendo monito- Apesar do uso diário das mídias sociais ser uma rado. O autor escolheu o mercado financeiro como prática comum na maioria dos países com acesso à seu principal objeto de estudo, mas nos lembra de internet, uma mesma tecnologia pode ter usos dife- que “o que as financeiras fazem com o dinheiro, as rentes de acordo com a cultura e os processos his- tóricos de cada sociedade. . Um bom exemplo pode 1 O Zero Rating é uma prática realizada pelas operadoras e al- ser encontrado na pesquisa realizada em 2015 que gumas empresas de tecnologia que consiste em não cobrar o mostra que 55% dos brasileiros acreditam que o tráfego de dados móveis a alguns serviços online, como apps de mídias sociais e mensageiros instantâneos.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 45 DÉBORA FRANCO MACHADO empresas de internet líderes no mercado fazem rências de uma certa forma; e para identificar, sele- com a atenção. Elas a direcionam a certas ideias, cionar e classificar pessoas” (KITCHIN, 2017, p. 18, bem e serviços e para longe de outras” (idem, 2015, tradução nossa). p.6, tradução nossa). Seaver enfatiza a necessidade de se estudar Para Gillespie (2014) “mais do que meras ferra- não apenas os impactos socioculturais dos proces- mentas, os algoritmos são estabilizadores de con- sos algorítmicos como também suas especificida- fiança” (idem, 2014, p.13, tradução nossa). E, para des técnicas e critica o uso generalista do termo isso, é preciso que sejam vistos como imparciais, empregado em frases como o “algoritmo do Google” objetivos e livres de subjetividade, erro ou tenta- ou “algoritmo do Facebook”. Ele nota que muitas ve- tiva de influência. Contudo, ele refuta a afirmação zes seria mais apropriado utilizar o termo “sistema de que se trata da mesma objetividade exigida aos algorítmico” – sistemas dinâmicos de códigos e pes- jornalistas. No caso dos algoritmos, não se trata de soas – visto que na maior parte dos casos o código uma objetividade imposta por normas institucionais em si é apenas uma pequena parte de um sistema ou éticas, mas se supõe uma neutralidade mecâni- dinâmico muito mais amplo, que envolve códigos e ca, intrínseca da máquina. Mesmo os termos usa- pessoas, um ou mais bancos de dados, negociações dos para demonstrar relevância, como top stories, e experimentações (SEAVER, 2013). trends, ou “melhores” normalmente são avaliados Para Bernhard Rieder (2017, p.101), se o sof- como neutros, como se a escolha da nomenclatura tware se tornou uma técnica de poder é “descon- fosse um processo não sujeito a questões de inter- certante que a análise crítica de objetos, procedi- pretação. Essa objetividade algorítmica é fortemen- mentos e práticas técnicas concretas seja extre- te difundida, não apenas pelas empresas proprietá- mamente rara”. rias destes algoritmos, como também pela mídia. Deste modo, os algoritmos são, ao mesmo tempo, defendidos como ferramentas que realizam uma Os algoritmos, as mídias sociais e o avaliação neutra para aqueles que são críticos aos conceito de modulação seus resultados, e vendidos como uma ferramenta Atualmente, o foco das pesquisas da área de de promoção seletiva a anunciantes em potencial. tecnologia e sociedade voltou-se para o uso de al- Nick Seaver (2013) aponta que os algoritmos goritmos que controlam o fluxo de informação den- costumam ser entendidos como preocupações tro das plataformas de mídias sociais, visto que elas estritamente racionais, que juntam as certezas da já são a principal fonte de informação de grande matemática com a objetividade da tecnologia. Con- parte da população conectada (PARISER, 2012). tudo, o mesmo nunca é puramente abstrato e mate- A mais utilizada pelos brasileiros, o Facebook, ar- mático. Apesar da tentativa dos programadores de mazena em torno de 300 petabytes de dados dos manter um grau de objetividade, se distanciando de usuários (JOLER; PETROVSKI, 2016), essenciais qualquer tipo de influência – inclusive cultural e re- para o trabalho de filtragem de informação que seus fletindo contextos locais – o processo de tradução softwares exercem. A personalização de conteúdo da tarefa ou conhecimento para um sistema algorít- recebido por cada usuário é vital não apenas para mico não se mantém imune a essas interferências permitir que eles recebam as postagens mais rele- (Ibid.). Para Kitchin, os algoritmos são criados para vantes (de acordo com os critérios de relevância da propósitos que, na maioria das vezes estão longe empresa), mas também para atingir os objetivos do de serem neutros: “para criar valor e capital, para mercado publicitário, responsável por 92% da re- impulsionar um comportamento e estruturar prefe-

46 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 § Parágrafo MEDIAÇÕES ALGORÍTMICAS: O PODER DE MODULAÇÃO DOS ALGORITMOS DO FACEBOOK ceita da empresa em 2014 (SILVEIRA, 2017). Para resolve problemas, “melhora a experiência do usuá- uma análise tão detalhada do perfil de cada usuário rio”, “não geram medo, mas afeto” (SILVEIRA, 2017, a empresa especializa-se em produzir novos sof- p.83). Esse tipo de modulação se tornou fundamen- twares que possibilitem um monitoramento intenso tal para o marketing. do comportamento, dos interesses e da comunica- ção de quem a utiliza. Depois da captura e armazenamento de dados para Para Foucault (1973), o poder está diretamen- processamento e mineração, as empresas formam te ligado à produção de verdade e ao saber. Alain amostras de perfis similares que servem aos dispo- Desrosières (2002), ao analisar a história do pen- sitivos de modulação. O que eles fazem? A partir samento estatístico, que data dos séculos XVII e dos gostos, do temperamento, das necessidades, XVIII, também se dedicou a estudar como uma for- das possibilidades financeiras, do nível educacional, ma de saber pode se transformar em poder. Ao des- entre outras sínteses, as empresas oferecem cami- crever o início da busca por cálculos probabilísticos, nhos, soluções, definições, produtos e serviços para o autor mostra que a questão que essa nova ciência suas amostras, ou seja, para um conjunto potencial estava tentando solucionar veio de uma tentativa de consumidores que tiveram seus dados tratados e analisados. O sucesso da modulação depende da antiga de encontrar algo que possibilitasse espe- análise precisa das pessoas que serão moduladas cular sobre o que até então estava apenas na mão (SILVEIRA, 2017, p.84.). de Deus, era sagrado: o acaso. “Quer permitindo que ele decida casos difíceis, ou integrando a avaliação Uma das características da modulação é a pos- de um futuro incerto no presente” (DESROSIERES, sibilidade de criar um espaço para o individual, dar a 2002, p.46, tradução nossa). Assim, o autor compa- sensação de liberdade para o indivíduo enquanto o ra o papel do estatístico com o de um juiz. mantém em um ambiente restrito (HUI, 2015). Fou- O ato de classificar, valorizar e avaliar fenômenos cault (1998), ao estudar o poder disciplinar, enxerga naturais a nossa volta não é algo novo. No entanto, a liberdade como condição de relações de poder. As uma característica que marca a nossa época é o fato dinâmicas de uso propostas pelas plataformas de mí- de realizarmos essas tarefas utilizando “ferramentas dias sociais como o Facebook parecem elevar ao ex- tecnológicas e virtuais compostas de algoritmos ca- tremo o paradoxo da liberdade controlada já analisado pazes de sintetizar, processar e divulgar dados em por alguns autores ao estudar a modernidade. Elas uma velocidade e quantidade jamais testemunhadas oferecem ambientes onde o usuário é incentivado ao em nossa história” (LEITE; SARTORE, 2017, p.13.). compartilhamento, mas só recebe a informação que Uma das características da sociedade informa- uma série de algoritmos decidiu ser mais relevante cional é que ela se constitui com tecnologias que para ele. É incentivado a se expressar, mas seguindo comunicam e controlam ao mesmo tempo (SILVEI- regras de conduta, ou escolhendo dentre seis emo- RA, 2017). Por isso, o controle é um tema tão im- ções que representem o que está sentindo. portante ao estudarmos os processos algorítmicos E é esse tipo de controle que consegue ao utilizados nas plataformas de mídias sociais. Para mesmo tempo restringir e passar a sensação de li- Deleuze, passamos da era das Sociedades Disci- berdade que Deleuze chama de modulação. plinares, conforme apresentadas por Foucault, e estamos vivendo em uma Sociedade de Controle Os confinamentos são moldes, distintas molda- (DELEUZE, 1992). O medo da punição é substituí- gens, mas os controles são uma modulação, como do por dispositivos de modulação de condutas onde uma moldagem auto-deformante que mudasse o controle caminha junto à sensação de conforto,

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 47 DÉBORA FRANCO MACHADO

continuamente, a cada instante, ou como uma pe- validade da informação (SILVEIRA, 2015). Uma das neira cujas malhas mudassem de um ponto a outro questões que preocupa pesquisadores do tema é o (DELEUZE, 1992, p.221) fato das plataformas de mídias sociais funcionarem como uma caixa preta, em que certas informações Yuk Hui (2015, p.95) caracteriza esse novo são impossíveis de serem coletadas caso a pesqui- tipo de controle, entendido em termos de modu- sa não seja realizada em parceria com a empresa lação, pela possibilidade de “criação de um espa- que administra a plataforma. ço para o indivíduo, como se ele ou ela tivesse a A análise de patentes mostra-se como uma al- liberdade de se entrelaçar e criar, enquanto sua ternativa interessante para entender os processos produção, bem como seus fins, seguem a lógica algorítmicos que ocorrem nas plataformas de mí- das forças intangíveis”. Para Lazzarato (2006), a dias sociais. Apesar de muito utilizada nas áreas de modulação como exercício de poder também se inovação como uma forma de mapear tecnologias ocupa dos corpos, mas é principalmente a dimen- e analisar tendências, a análise de patentes não é são incorporal que está em jogo. O autor aponta uma metodologia frequente na área das ciências so- que, ao contrário das sociedades disciplinares ciais. Portanto, os métodos criados para guiar esse foucaultiana, as sociedades de controle “se inves- tipo de análise foram desenvolvidos com base na tem da memória mental, mais do que da memória necessidade dos pesquisadores das áreas de ino- corporal” (idem, 2006, p.84). vação, de universidades ou empresas, para analisar grandes bases de dados agrupando informações A análise de patentes como estudo de relacionadas. Essa análise é feita, principalmente, processos algorítmicos em mídias sociais por meio de técnicas de mineração de texto e ferra- mentas de visualização com o auxílio de softwares Uma das maiores mudanças que a socieda- específicos, com o objetivo de criar redes, mapas e de em rede (CASTELLS, 2013) proporcionou foi clusters de patentes que tratam de tecnologias si- a possibilidade de todo leitor ser também um pro- milares, ou como forma de hierarquizar a relevância dutor de conteúdo. Isso transformou a situação de das invenções mais recentes (ABBAS et. al., 2014). escassez da mídia de massa em uma abundância Tais técnicas mostram-se pouco eficazes para re- de dados e conexões, possível somente em uma alizar uma pesquisa como essa, que possui como rede distribuída como a internet. Com isso, a quan- objetivo a identificação de possibilidades de orien- tidade de dados armazenados na rede, assim como tação de comportamento nas invenções seleciona- tecnologias para analisá-los, cresceu exponencial- das, características difíceis de serem mapeadas por mente, dando origem ao termo Big Data. Boyd e meio da identificação de palavras-chave ou de uma Crawford (2012, p.9, tradução nossa) apontam análise semântica automatizada. que trabalhar com “Big Data oferece às disciplinas Ao ser questionado pelo website, The Verge, humanistas uma nova maneira de reivindicar o sta- sobre algumas patentes registradas pela Facebook tus de ciência quantitativa e método objetivo. Isso Inc. que chamaram a atenção da mídia, um repre- torna muitos espaços sociais mais quantificáveis”. sentante da empresa afirmou que a mesma, fre- Trabalhar com dados ou mesmo analisar redes quentemente, registra patentes para tecnologias sociais digitais não é algo novo dentro das ciências que nunca são implementadas, e por isso “paten- sociais. A novidade da pesquisa usando Big Data tes não deveriam ser tomadas como um indicador refere-se ao que alguns pesquisadores chamam de de futuros planos” (NEWTON, 2017, online, tradu- “os quarto Vs”: velocidade, variedade, vinculação e ção nossa). Contudo, há uma extensa literatura que

48 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 § Parágrafo MEDIAÇÕES ALGORÍTMICAS: O PODER DE MODULAÇÃO DOS ALGORITMOS DO FACEBOOK aponta a análise de patentes como um método efi- Para a presente pesquisa, a metodologia ciente para identificar padrões, entender em que di- utilizada foi a análise de patentes. A base de reção à equipe de desenvolvimento de produto da pedidos de patente selecionada para busca e empresa está caminhando e acompanhar o tipo de recuperação dos documentos foi o banco de conhecimento que a empresa analisada adquiriu no patentes da United States Patent and Trade- decorrer dos anos. mark Office2. Foi feita uma busca por patentes Daim et. al.(2006) compara o registro de paten- da empresa Facebook Inc. que tenham sido pu- tes a artigos publicados em revistas acadêmicas. Eles blicadas entre um de janeiro de 2017 e 31 de acreditam que mesmo que poucas patentes venham a janeiro de 2017 e contenham o termo “emotion” se tornar algo com valor comercial, a maioria é tecnica- em seu título ou descrição3. A busca gerou 39 mente significativa, pois elas servem como ponto de resultados e optou-se por analisar apenas as partida para o desenvolvimento de novas tecnologias. duas primeiras patentes da lista. Para a análise Breitzman e Mogee (2002) mostram que a análise de das patentes foi feita uma leitura aprofundada patentes muitas vezes revela a competência tecnoló- dos textos e ilustrações com o objetivo de rela- gica central de uma empresa e é, também, uma forma cionar as funcionalidades das invenções com o eficaz de projetar em que áreas uma empresa ou tec- conceito de modulação apresentado neste arti- nologia se concentrará em um futuro próximo. go. Listamos abaixo:

Techniques for emotion detection and As patentes da Facebook inc. e a content delivery modulação de comportamento Em português “Técnicas para detecção de As primeiras patentes registradas pela Fa- emoção e entrega de conteúdo”. A patente mostra cebook Inc. datam de 2008 e, desde então, a uma funcionalidade capaz de detectar qual emo- empresa pede anualmente o registro de cente- ção um usuário está sentindo ao usar uma rede nas de patentes para a United States Patent social e assim direcionar a ele postagens identifi- and Trademark Office. O texto da maioria das cadas como adequadas para aquele tipo de senti- patentes costuma seguir um padrão: primeiro mento. O texto cita um exemplo. explica-se porque ela foi criada, qual a necessi- dade dessa invenção e depois se detalha o que Um usuário pode ver uma série de histórias posta- ela faz. das em uma rede social usando uma aplicação nati- Em 2015, a plataforma Facebook lançou a va em um celular. À medida que um usuário percorre ferramenta reactions: botões que representam o conteúdo o aplicativo pode solicitar informações seis emoções que o usuário pode utilizar para de- sobre o tipo de emoção. Quando um usuário tiver monstrar o que sentiu ao ler uma postagem em seu escolhido uma foto específica para visualizar, um News Feed, como já fazia com o botão curtir, po- tipo de emoção atual pode estar associado à foto. rém sem expressar de forma clara suas emoções, Em um exemplo, uma foto de um cachorrinho pode como tristeza, amor, raiva, entre outros. Desde estar associada a um tipo de emoção feliz. Em ou- então, a empresa vem investindo cada vez mais 2 A busca foi feita por meio do site freepatentsonline, que em tecnologias capazes de analisar uma grande possui a mesma base de dados do United States Patent and quantidade de dados relacionados às emoções e Trademark Office, porém conta com uma melhor usabilidade e mecanismo para busca. sentimentos dos usuários da rede. 3 A busca foi feita usando o atalho AN/”Facebook Inc” “emotion” ISD/1/1/2017->12/31/2017.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 49 DÉBORA FRANCO MACHADO

tro exemplo, uma foto de uma ex-namorada pode teúdo engraçado poderá ser mostrado a ele” (Ibid., estar associada a um tipo de emoção triste (NA- tradução nossa).

VEH, 2014, p.5, tradução nossa). Segundo a patente, o sistema também pode ser útil para o mercado publicitário, pois “o es- tado emocional do usuário poderá ser utilizado para apresentar propagandas” (NAVEH, 2014, p.6, tradução nossa), uma vez que a ferramen- ta consegue identificar quando o usuário está olhando para a tela do celular ou não. Assim, é possível solicitar que anúncios apareçam apenas quando o usuário estiver atento, ou mesmo que quando o usuário demonstrar tristeza, anúncios inspiradores apareçam, e quando estiver ente- diado, anúncios interativos apareçam. Ao analisar o texto da patente é possível observar a intenção de modulação de compor- tamento embutida no sistema. Para exemplifi- car a sua funcionalidade o autor propõe que, ao identificar que um usuário está triste, a mudança de comportamento desejada seria deixá-lo feliz. Sentimentos como tristeza e tédio são vistos como indesejados e a alteração dos mesmos é vista como parâmetro de sucesso. A hipótese que pode ser levantada, levando em considera- ção que a rentabilidade da empresa depende da permanência do usuário atento à plataforma, é a de que o sentimento desejado é aquele que man- Figura 1 - Ilustração do fluxo de dados do sistema. tém o usuário conectado. Fonte: Barak Naveh Para Silveira (2017, p.85), “a eficiência da modulação parece depender da análise correta e em profundidade do padrão de comportamen- O texto aponta que fotos é apenas um tipo de to, as vontades e as necessidades dos indivíduos conteúdo que pode ser mostrado, mas esse pode que, como bem apontou Deleuze, ‘tornaram-se variar entre postagens de texto, vídeo, áudio, ga- dividuais’”. Identificando qual emoção um usuário mes ou mesmo anúncios publicitários. A descrição está sentindo, qual tipo de conteúdo ele costuma segue com outros exemplos relevantes e mostra consumir nesse estado emocional, e consequente- que “ao usar informações associando emoções com mente, registrando o que ele sente após consumir conteúdo, um sistema de entrega de conteúdo pode certos tipos de conteúdo, é possível ter uma base fornecer mais informações associadas a emoções de dados valiosa para processos algorítmicos com felizes do que emoções tristes, por exemplo,” (NA- o poder de direcionar o usuário a sentir ou deixar VEH, 2014, p 5, tradução nossa), ou mesmo “se um de sentir emoções definidas pela plataforma. usuário for identificado como entediado, um con-

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Augmenting text messages with emotion digitação, a pressão do toque ao digitar, pa- information drões de interação do usuário com o aplicativo ou mesmo a sua localização no momento da A patente, em português “Aumentando digitação. mensagem de texto com informação de emo- ção”, trata de uma funcionalidade que permite Por exemplo, se o remetente digitar lentamen- que um sistema identifique emoções relaciona- te, o sistema de mensagens pode determinar das a mensagens digitadas pelo usuário e que que o remetente sente que a mensagem não é formate esse texto de acordo com a informação urgente. Em formas alternativas, o sistema de adquirida. O sistema prevê a emoção que o usu- mensagens pode prever outras emoções com ário está sentindo e define uma formatação de base na velocidade de digitação associada à texto capaz de expressar melhor, visualmente, entrada de informação pelo teclado, como se esse sentimento. o remetente está interessado na conversa se está com pressa (DONOHUE, 2015, p.7, tra- dução nossa).

Dentre as alterações que o sistema pode fazer a patente cita modificar o formato do ba- lão de fala, o plano de fundo da aplicação de mensagens ou mesmo “fornecer informações adicionais junto à mensagem para explicitamen- te ou implicitamente indicar a emoção prevista” (DONOHUE, 2015, p.8, tradução nossa). Para demonstrar que o usuário não está com pressa e por isso está digitando lentamente, o sistema pode, por exemplo, espaçar as letras das pala- vras digitadas. Com base na localização do usuário o sistema pode prever que ele esteja cansado se ele enviar a mensagem de dentro de uma casa noturna entre às 12am e às 6am, e a partir dessa informação formatar a mensagem de acordo. Já com base na pressão que o usuário utiliza para digitar, o sistema pode prever que o usuário está ansioso ou com raiva (ao pressio- nar forte) ou se ele está calmo (ao pressionar fraco). Figura 2 - Ilustração da interface do sistema. Usando o microfone do celular, é possível prever que Fonte: Aran Donohue o usuário está dançando em uma festa com músi- ca alta. Usando a câmera do celular o sistema pode Para prever o que o usuário está sentindo identificar expressões faciais do usuário. Além disso, ao digitar a mensagem, a ferramenta coleta di- ele pode mostrar essa formatação antes do usuário versas informações que vão além do conteúdo enviar a mensagem ou apenas depois que a mensa- redigido por ele, por exemplo, a velocidade da gem já foi enviada e recebida.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 51 DÉBORA FRANCO MACHADO

Por fim, é possível observar a intenção da Considerações finais empresa em adicionar mais uma camada de in- A interação por meio de plataformas de mí- tervenção automatizada na comunicação do dias sociais há tempos ocupa uma parcela sig- usuário, diminuindo sua autonomia e decidindo nificativa de tempo no dia a dia nos brasileiros. por ele quais informações são mais relevantes Devido à crescente quantidade de informação e merecem mais destaque. A classificação de armazenada por essas plataformas e ao modelo conteúdos por relevância já se mostrou como de negócio que as mantém no topo das empresas um objetivo projetado pela Facebook Inc. des- mais valiosas no mundo4 – obtendo valor a partir de suas primeiras patentes, como a denomina- dos dados dos usuários e do tempo que eles se da Generating a feed of stories personalized mantêm conectados e em constante interação for members of a social network requerida em – seu funcionamento depende de agentes que 2006, e é uma prática que acompanha a evolu- automatizem a entrega e a organização da infor- ção do Feed de Notícias do Facebook (ARAÚJO, mação que circulam dentro delas. Não há dúvidas 2017). de que o sucesso e a eficácia dessas plataformas Para Gillespie, “relevância” é um termo dependem, em boa parte, de seus processos algo- fluido e aberto a interpretação. O autor mos- rítmicos. Portanto, é importantíssimo que pesqui- tra um entendimento do termo – e dos meca- sadores na área da comunicação e das ciências nismos que o utilizam – que vai à contramão sociais se dediquem a estudar e/ou aprofundar as do discurso da objetividade propostos pelas consequências dessa nova e efêmera dinâmica empresas de tecnologia e plataformas de mí- social. Para isso, é preciso entender os algoritmos dias sociais. como atores performativos e o usuário como um agente ativo, não passivo, nessa interação. Como não há uma métrica independente para A presente pesquisa mostra como a análise o que realmente são os resultados de pesqui- de patentes é uma metodologia relevante para sa mais relevantes para qualquer consulta, entender à lógica que acompanha a criação des- os engenheiros devem decidir quais re- ses algoritmos, acompanhar o conhecimento tec- sultados parecem “corretos” e ajustar seu nológico adquirido por essas empresas e identi- algoritmo para atingir esse resultado, ou ficar padrões nas aplicações dos mesmos. Além fazer alterações com base em evidências de ser uma alternativa para tentar conhecer uma de seus usuários, tratando cliques rápidos parcela maior desses mecanismos que são, em e sem pesquisas na sequência como uma aproximação, não exatamente de relevân- sua maior parte, opacos e fechados, e impossibi- cia, mas de satisfação (GILLESPIE, 2014. p. litam que pesquisadores tenham um conhecimen- 10, tradução nossa). to mais aprofundado sobre o seu funcionamento. Contudo, a metodologia também possui algumas Para a empresa, sistemas como esse são restrições: apesar da descrição das invenções importantes, pois permitem “que o destinatá- ser detalhada, a forma com que elas podem ser rio da mensagem interprete com mais precisão aplicadas pela empresa varia e muitas vezes são a mensagem à luz das emoções do remetente” genéricas. (DONOHUE, 2015, p.5, tradução nossa), con- 4 Fonte: Brand Finance Global 500 2018. Disponível em: tudo, o texto da patente não deixa claro como http://brandfinance.com/knowledge-centre/reports/ essa precisão é avaliada. brand-finance-global-500-2018/. Acesso em 25 abr. 2018.

52 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 § Parágrafo MEDIAÇÕES ALGORÍTMICAS: O PODER DE MODULAÇÃO DOS ALGORITMOS DO FACEBOOK

A bibliografia estudada e as patentes anali- CETIC. TIC Domicílios. 2015. Disponível em: sadas apontam para um poder de modulação de . Acesso em: 20 abr. 2018. que merece uma análise crítica. Esse artigo se COMSCORE. The State of Social Media in Brazil propõe apenas a uma pequena contribuição para and the Metrics that Really Matter. Disponível um debate emergente, interdisciplinar e essencial em: . Acesso em: 20 abr. 2018. Referências COSSETTI, Melissa. Facebook revela dados do ABBAS, Assad; KHAN, Samee; ZHANG, Limin. A Brasil na CPBR9 e WhatsApp ‘vira ZapZap’. Tech- literature review on the state-of-the-art in patent tudo. 2016. Disponível em:< http://www.techtu- analysis. World Patent Information, North Dako- do.com.br/noticias/noticia/2016/01/facebook- ta, p.1, nov. 2014. Disponível em: . Acesso em: -vira-zapzap.html>. Acesso em: 20 abr. 2018. 20 abr. 2018 DAIM, Tugrul; RUEDA, Guillermo; Martin, Hilary; ARAÚJO, Willian Fernandes. As narrativas sobre GERDSRI, Pisek. Forecasting emerging techno- os algoritmos do Facebook: uma análise dos 10 logies: Use of bibliometrics and patent analysis. anos do feed de notícias. 2017. Tese (Doutorado Technological Forecasting & Social Change, Ox- em Comunicação e Informação) – Faculdade de ford, v. 73, n. 8, p. 981-1012, out. 2006. Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre as Socie- dades de Controle. In: Conversações. São Paulo: BOYD, Danah; CRAWFORD, Kate. Critical Editora 34, 1992. Questions for Big Data: Provocations for a Cultural, Technological, and Scholarly Phenomenon. DESROISIÈRES, Alain. The politics of large Information, Communication, & Society p. 662- numbers: a history of statistical reasoning. 679, 2012. Disponível em: . Acesso with Emotion Information. US 2017/0147202, em: 20 abr. 2018. 25 maio 2017. BREITZMAN, Anthony; MOGEE, Mary Ellen. The FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídi- many applications of patent analysis. Journal cas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 1973. of Information Science, Nova York, v. 28, n. 3, p. 187-205, 2002. Disponível em: http://journals. ______. A história da sexualidade 2: o uso sagepub.com/doi/abs/10.1177/01655515020 dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998. 2800302>. Acesso em: 20 abr. 2018. GILLESPIE, Tarleton. The Relevance of Algorithm. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: Eco- Media Technologies: Essays on Communication, nomia, Sociedade e Cultura. 6. ed. São Paulo: Paz Materiality, and Society. Cambridge, MA: MIT e Terra, 2013, 1 v. Press. Virtual Books 2014. Disponível em:

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54 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 § Parágrafo MEDIAÇÕES ALGORÍTMICAS: O PODER DE MODULAÇÃO DOS ALGORITMOS DO FACEBOOK

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Débora Franco Machado – Mestranda em Ciências Humanas e Sociais na UFABC e pesquisadora no Laboratório de Tecnologias Livres da UFABC. E-mail: [email protected]

Recebido: 14 mar. 2018 Aprovado: 01 maio 2018

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 43-55, jan./abr. 2018 55

Topologias de espaços híbridos na era da Internet das Coisas

Topologies of hybrid spaces in the Era of Internet of Things

Fernanda da Costa Portugal Duarte Universidade Federal de Minas Gerais Departamento de Comunicação Social Belo Horizonte, BR, Brasil

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 57 FERNANDA DA COSTA PORTUGAL DUARTE

Resumo Abstract Este artigo discute como a mineração de dados This paper discusses how data mining produces produz representações espaciais multi-escalares multiscale spatial representations in the contempo- na contemporaneidade: da escala íntima dos da- raneity: from private scale of individual physiological dos fisiológicos individuais à dimensão global dos data to the global dimension of predictive models of modelos preditivos da big data. Para compreender big data. In order to understand the arrangements os arranjos entre essas escalas, caracterizamos a among these scales, we characterize data mining as mineração de dados como ação epistêmica da ma- an epistemic action from digital materiality; therefo- terialidade digital e, portanto geradora de formas de re, it is generator of algorithmic modes of knowled- saber algorítmicas. A partir daí, revisitamos o con- ge. Based on this, we revisited the concept of hybrid ceito de espaços híbridos (SOUZA E SILVA, 2006) spaces (SOUZA E SILVA, 2006) and analyzed how e analisamos como diversas práticas de coleta, aná- several practices of collect, analysis and reappro- lise e reapropriação de dados constituem topolo- priation of data constitute topologies grounded on gias fundadas sobre práticas de anotação espacial practices of data annotation, data visualization (cre- (data annotation), visualização de dados (criação de ation of data doubles) and predictive models. data doubles) e modelos preditivos.

Palavras-chave Espaços híbridos. Internet das coisas. Big data. Episteme digital.

Keywords Hybrid spaces. Internet of Things. Bid data. Digital episteme.

58 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 § Parágrafo TOPOLOGIAS DE ESPAÇOS HÍBRIDOS NA ERA DA INTERNET DAS COISAS

Introdução pertencimentos simbólicos, afetivos, sociais, cul- turais e políticos das localidades geográficas ao Sensores, tecnologias de comunicação sem mesmo tempo em que atuam como linhas de força fio e recursos de geolocalização criaram uma ar- produtivas destes pertencimentos. quitetura de rede de dados móvel e ubíqua que é nomeada por Kevin Ashton como Internet das Coi- Estudos que posteriormente foram reco- sas, ou IoT (ASHTON, 2009). Desenvolvimentos nhecidos como característicos de uma “virada recentes na computação pervasiva, tais como mi- espacial” nas teorias sociais apresentaram uma crochips de geolocalização e outros dispositivos abordagem renovada sobre o conceito de espa- de biotecnologia embutidas em corpos humanos ço como uma construção social relevante para as e não humanos adotam práticas de mapeamen- diferentes histórias dos sujeitos e para a produ- to que recolhem informações sobre a mobilidade ção de fenômenos culturais (WARF; ARIAS, 2008, desses corpos no espaço geográfico. Além disso, p.1). A “virada espacial” reproblematizou a noção informam também sobre a performance interna de espaço, que até então tinha sido desfavorecida do corpo físico que habita esse espaço. Sensores por visões historicistas da cultura que privilegia- para monitoramento das funções fisiológicas, tais vam sua dimensão temporal. Mais recentemen- como implantes que monitoram o nível de glicose te, estudos no campo de mobilidades (Creswell, em pacientes diabéticos, ou sonares para facilitar 2002, Dourish, 2006, Massey, 1992) reposicio- a mobilidade de deficientes visuais são exemplos nam as noções de espaço e lugar como práticas de práticas tecnológicas que atrelam seu funcio- sociais corporificadas (ou embodied social prac- namento ao mapeamento fisiológico do corpo. tices) produzidas pela articulação entre cultura e Estas práticas nos dizem sobre formas emergen- tecnologia. Nesta ótica, a noção de espaço, em tes de mapeamento e formas de conhecimento sua significação simbólica, assume uma constitui- espacial que desafiam as noções de lugar, como ção processual, seja ele, por exemplo, uma cons- mera coordenada geográfica, e o corpo conecta- trução física (espaços arquitetônicos), ou atraves- do, como um nó em uma rede. sado por tecnologias midiáticas (espaços híbridos produzidos por tecnologias de geolocalização). A inclusão de redes de sensores no espaço urbano, casas, objetos e nossos corpos biológicos Neste sentido, quando confrontados com o cria espaços híbridos (SOUZA E SILVA, 2006) ou paradigma da IoT, somos compelidos a descentra- territórios informacionais (LEMOS, 2007) multies- lizar tecnologias de geolocalização como ponto calares. Espaços híbridos são definidos por Adria- de partida para a construção de espaços híbridos na de Souza e Silva (2006, p.262) como “espaços e considerá-la apenas um dos diversos parâme- móveis, criado pelo movimento constante de usu- tros recolhidos através da mineração de big data. ários que carregam dispositivos móveis continua- Neste artigo, argumentamos que a produção de mente conectados à Internet e a outros usuários”. espaços híbridos é animada por uma ação epistê- André Lemos (2007) discute a emergência de mica própria da materialidade digital. Ocorre por territórios informacionais também a partir da hi- meio de um continuum de topologias articuladas bridização entre experiências espaciais físicas e em múltiplas escalas de dados—de uma peque- telemáticas. A construção deste terceiro lugar hí- na escala de dados pessoais encadeado à larga brido não existe a priori ou de forma desarticulada escala de dados de muitos usuários armazenados de suas dimensões informacionais ou geográficas. em servidores. Os territórios informacionais estão imbricados nos

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 59 FERNANDA DA COSTA PORTUGAL DUARTE

A ecologia da internet das coisas seguintes critérios: primeiro, a infraestrutura de coleta e processamento de dados digitais deve Apesar do termo Internet das Coisas ser co- ser embarcada em objetos de forma que sua inte- mumente adotado pela indústria para denominar ração possa ser tátil e não limitada às telas; para pesquisa e desenvolvimento de “objetos inteligen- isso o hardware deve ser de tamanho mínimo e não tes”, sensores e atuadores conectados à internet, perceptível pelo usuário. Segundo, estes objetos entendemos a IoT como uma ecologia midiática físicos devem ter suas utilidades expandidas na animada pelo imaginário social da computação ubí- medida em que são dotados de capacidades com- qua, moldada pelas apropriações e subversões de putacionais; suas interfaces devem ser de fácil tecnologias digitais assim como variadas formas de manipulação pelo usuário. Terceiro, a ubiquidade ativismo digital. dos serviços computacionais depende da conec- Historicamente, a IoT emerge de iniciativas tividade de rede compartilhada entre aparelhos e coletivas e concomitantes: pesquisas de desen- usuários. Em resumo, a visão de computação cal- volvimento de produto em computação pervasiva ma, se realizaria quando a sensação de transpa- e ubíqua por empresas como Xerox e IBM; pesqui- rência entre as relações sociais e as interações sas experimentais por agências governamentais entre máquinas fosse estabelecida. e laboratórios acadêmicos, como DARPA e MIT; e Ainda que esta visão tenha animado o imaginá- iniciativas populares como o movimento hacker e rio cultural sobre o futuro da comunicação e com- suas diversas manifestações em hacklabs, hacke- putação em rede, a manifestação atual desta rede rspaces e makerspaces. na forma da IoT, diverge da transparência idealizada O imaginário cultural de uma ecologia de rede por Weiser (1991). A IoT se forma em um cenário que congrega humanos e máquinas de forma sim- tecnológico em meio às diversas formas de regu- biótica é descrito por Mark Weiser (1991), em lação e literação digital, onde o affordance entre a The computer of the 21st century, como uma ar- infraestrutura digital e seus usuários prevalecem quitetura de rede acessível por múltiplos painéis sobre modelos teóricos homogênicos, onde as es- de acesso de tamanhos e capacidades variadas pecificidades culturais de apropriação tecnológica instaladas no espaço físico do usuário. Weiser, conformam diversas forma de uso e adoção dessas Gold & Brown (1999) descrevem este novo pa- interfaces, em oposição ao design das interfaces radigma da interface humano-computador como propostas por Weiser, Gold & Brown (1999). mais focada na usabilidade humana e na cons- A emergência de formas criativas e subver- trução de ambientes em rede cuja capacidade de sivas de apropriação tecnológica por hackers e processamento era compartilhada entre diversos makers - diversas dos usos funcionais previstos pontos da rede (ao invés de restrita à um terminal pela pesquisa experimental acadêmica ou de de- computacional tipo desktop). O que eles chamam senvolvimento de produtos - é evidência de que a de computação calma implica em uma rede virtu- IoT conforma-se em uma ecologia múltipla. Des- almente disponível de forma ubíqua, pervasiva e de a década de 1960, a cultura hacker articula naturalmente imbricada em todas as atividades variadas práticas computacionais—que beiram o humanas, de forma que o aparelho computacional limiar da legalidade e criminalidade—como forma e sua infraestrutura desapareça da vista imediata de exercício da liberdade de informação e expres- e apenas o serviço prestado por ela seja perceptí- são política de apropriação tecnológica. Baseado vel. Para o alcance destes objetivos, o design das nos princípios de descentralização da informação interfaces humano-computador deveria seguir os das instituições, coletividade e meritocracia, ha-

60 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 § Parágrafo TOPOLOGIAS DE ESPAÇOS HÍBRIDOS NA ERA DA INTERNET DAS COISAS ckers formaram comunidades online e offline para discutir os processos de formação e reprodução compartilhar conhecimento técnico, ferramentas dessa episteme digital, suas consequências polí- e colaborar no desenvolvimento de projetos (Levy, ticas e sociais. 2001). De forma similar com que hackers nas décadas de 1980 e 1990 se organizaram para Mineração de big data e a Episteme digital experimentar programação em sistemas open software, como Linux; nos anos 2000, espaços Entendemos que a ecologia midiática que físicos chamados hackerspaces e makerspaces caracteriza a IoT é sustentada pela lógica ma- surgiram para explorar o potencial do open har- terial de mineração de big data. Big data é um dware, impressão 3D e o uso de sensores (Ma- fluxo dinâmico de dados digitais não esquema- xigas, 2000). Os hackerspaces e makerspaces tizados, flexíveis, refinados, de alta resolução, atuais compartilham, em muitos casos, dos princí- que são passíveis de serem relacionados entre pios geridos pela cultura hacker, e são atores que si para geração de correlações indutivas. A big compõem a ecologia da IoT. data não diz respeito apenas a um grande volu- A ecologia da IoT comporta-se, portanto me de dados, mas também aos mecanismos de como uma rede de atores humanos e não huma- coleta e estratégias de processamento destes nos (Latour, 2002), cujos comportamentos são dados, pela alta velocidade de coleta e automa- afetados contiguamente, pelas agências que ção do processamento de dados em tempo real, compartilham. Tal abordagem é rica para os es- e a grande variedade de fontes de dados não tudos de comunicação, porque descentraliza os estruturados. Sensores espalhados no espaço estudos de mídia dos aparelhos tecnológicos e os físico medem dados ambientais, como tempera- redireciona para as relações que emergem entre tura e umidade; dados demográficos medem flu- as tecnologias e os sujeitos. Ao adotarmos esta xo de trânsito e densidade populacional, e dados direção, podemos efetuar um deslocamento da- pessoais indicam a geolocalização de indivíduos quilo que entendemos por mídia, do círculo antro- específicos e dados fisiológicos. A mineração pocêntrico para o campo dos afetos: entre corpos de big data procura capturar dados como estes, de usuários, populações ou sistemas, e manter e corpos, corpos e discursos, signos e signos, má- sua natureza desestruturada, não-esquemática quinas corporais ou incorporais. Tal gesto torna e relacional para combinar diferentes conjuntos possível trabalhar a comunicação tanto no campo de dados para criação customizável de análi de sua discursividade, enunciabilidade e materia- - lidade, em uma visão ecológica, no sentido dos se de dados (Boyd & Crawford, 2012). Devido afetos produzidos nas relações entre humanos e à complexidade destes dados, eles apenas são não humanos, entre todo tipo de máquinas. passíveis de serem processados por algorítmos ou formas semelhantes de “inteligência acio- Definimos a IoT a partir das suas capacida- nável”. Ou seja, o cérebro humano é incapaz de des em agenciar múltiplas topologias de dados, promover análises diante desses grandes grupos em escalas individuais e globais - sustentados de dados e suas análises devem ser necessaria- pela contínua e automática coleta e processa- mente terceirizadas a algoritmos. A big data é mento de metadados - pela mineração contínua como um corpo vivo pulsante de dados numéri- de big data, com o intuito de promover análises cos discretos, de escabilidade modular, que são preditivas. No entanto, problematizamos essa constantemente rearticulados, reorganizados e noção ao focar não em sua eficiência e precisão correlacionados com outros corpos de dados. na identificação de padrões entre dados, mas ao

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 61 FERNANDA DA COSTA PORTUGAL DUARTE

A aspiração da big data é alcançar o poder pre- 2)1. Baseada na correlação de dados, é possível ditivo de chegar às correlações algorítmicas que identificar o que está acontecendo no grupo de não haviam sido imaginadas. Neste aspecto, Mark dados; no entanto, a natureza estatística das cor- Andrejevic e Kelly Gates (2014) discutem que o relações não inclui a informação contextual que potencial de usabilidade de qualquer dado digital é explica os comportamentos descritos. Enquanto apenas especulativo, uma vez que ele só é aferido algoritmos podem executar correlação de dados, em conjunto com outros grupos de dados. Dados as interpretações epistemológicas dos resultados agrupados hoje podem apenas se tornar relevantes e as formas de conhecimento que surgem desses no futuro, quando novos grupos de dados são cole- resultados são mais complexas dos que os aspec- tados e um padrão ou tendência são identificados. tos descritivos que estes dados podem gerar. E por este motivo justifica-se coletar o maior volu- A partir do reconhecimento da mineração de me de dados possível, a todo tempo, tendo em vista big data como a lógica material que molda a ação a maior completude de acesso a dados analógicos epistêmica das práticas espaciais da IoT, propo- transcodificados; mesmo que inicialmente alguns mos uma expansão do entendimento da dinâmica dados pareçam irrelevantes. constituidora de espaços híbridos (de Souza e Sil- A pervasividade das tecnologias digitais e a va, 2006) de forma a reconhecer a contribuição das emergência de aplicações de IoT contribuem para dinâmicas de coleta, processamento e análise de a naturalização de parâmetros quantificados que big data como práticas de representação espacial. caracterizam dados digitais como uma medida Argumentamos que a IoT opera em escalas de to- objetiva da realidade. A alta resolução de dados pologias integradas (da micro escala das nanotec- digitais, aliada às correlações indutivas trazidas nologias embarcadas em corpos aos modelos de pela análise algorítmica da big data, confere aos cidades inteligentes), na medida em que a partir da dados digitais uma aura de “verdade objetiva”, ca- coleta de dados pessoais, transforma o indivíduo paz de efetivamente aferir a realidade através (e a performance fisiológica e social de seu corpo de agregação e correlação de grande volume de biológico) em um espaço a ser mapeado, e a partir dados. Por consequência, a análise algorítmica da correlação em nível populacional, desenha proje- da big data pode associar a agregação de dados ções normativas e preditivas a respeito das formas informacionais com a construção inequívoca de de ação sobre estes espaços. conhecimento sobre a realidade. O mito que as- socia dados algoritmos à verdade objetiva falha Topologias de espaços híbridos em reconhecer que a representatividade numé- rica do digital existe apenas enquanto inserido Adriana de Souza e Silva (2006) explica que a em um regime de representação. A mineração noção de espaço híbrido emerge dos usos das inter- de dados é ação de um processo de construção faces móveis, entendidas como interfaces que per- de conhecimento, e, portanto, uma articulação mitem a conectividade à internet móvel, de forma de um sistema epistêmico; mas não um fim em contínua enquanto explora-se o espaço geográfico. si mesmo. A correlação de dados é usada para Na medida em que interfaces móveis são investidas formar hipóteses através de uma abordagem in- de tecnologias de geo-localização, elas passam a dutiva; “mais do que validar uma teoria através da mediar às relações espaciais físicas agora também análise dos dados relevantes, as novas formas de análise de dados procura obter insights originá- 1 “rather than testing a theory by analyzing relevant data, rios do próprio corpo de dados” (Kitchin, 2014, p. new data analytics seek to gain insights ‘born from the data’”. Tradução livre.

62 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 § Parágrafo TOPOLOGIAS DE ESPAÇOS HÍBRIDOS NA ERA DA INTERNET DAS COISAS atravessadas por camadas de dados digitais. Um e luminosidade; e, em corpos biológicos, como no exemplo dessa mediação é o jogo locativo BotFigh- uso de computação vestível para monitoramento de ters. BotFighters é um MMORPG2 criado para ser atividade física. Por consequência, a construção de jogado em um dispositivo móvel e num ambiente espaços híbridos na IoT não é mais amarrada à re- urbano. Segue o gênero de jogo de tiro em primeira lação direta entre geolocalização e sua correspon- pessoa no qual os jogadores assumem um avatar de dente representação digital. Enquanto que a noção um robô, cujo objetivo é eliminar os outros jogado- de espaço híbrido, discutida sob os parâmetros da res. Para alcançar este objetivo, jogadores têm que mídia móvel, aponta para o impacto da mobilidade se mover pelo espaço urbano e “atirar” em outros jo- na representação do espaço físico/geográfico/está- gadores ou participar de batalhas coletivas. A preci- tico; a discussão sobre as topologias possíveis de são dos tiros varia de acordo com a escolha da arma espaços híbridos, sob os parâmetros da mineração e a proximidade geográfica entre atirador e alvo. de big data, não referencia, necessariamente, um Neste exemplo, a dinâmica de jogo é fundada sobre espaço físico pré-existente. As topologias de espa- a interação entre espaços físicos e informacionais e ços híbridos são constituídas como representações apenas toma forma a partir da participação coletiva autorreferentes de corpos de dados; elas são (des) entre jogadores. Do mesmo modo, o smartphone é (re)construídas, (re)agrupadas de forma a atender caracterizado como agente tecnológico móvel que demandas e contextos específicos. Pensar nestas é a porta de entrada que viabiliza a mediação deste topologias, no entanto, não implica em desassociar espaço híbrido. essas representações de seus referentes físicos, Diante da riqueza da diversidade de agencia- na medida em que a mineração de big data ocorre mentos sociotécnicos que se articulam como a IoT, a partir da transcodificação digital da realidade ma- somos agora demandados a descentralizar o papel terial tangível. Mas, implica em reconhecer que essa aferido às tecnologias de geolocalização como ve- transcodificação técnico-cultural é múltipla e exce- tores viabilizadoras das experiências espaciais-in- de a coleta de dados de geo-localização. formacionais e expandir o entendimento das forma- A produção de espaços híbridos, portanto, ocorre ção de espaços híbridos para abarcar a ação epistê- através da articulação de diversas topologias de da- mica da big data. Dispositivos móveis de tela, como dos, materializadas em escalas diversas - da micro es- smartphones, são uma das ferramentas de visuali- cala de dados pessoais, quando, por exemplo, adota- zação e manipulação de dados georeferenciados, mos sensores vestíveis como o para monitorar mas não são mais os únicos métodos para acesso a performance do nosso corpo biológico – articulada e representação de dados espaciais. A mineração em escalas globais destes dados pessoais para análi- de big data é ação material que organiza simbolica- se de tendências que constituem parâmetros norma- mente os comportamentos lógicos das tecnologias tivos de, por exemplo, performance atlética. Desta for- sensoriais digitais, que estão agora dispersas em ma, sugerimos um framework de análise que demons- espaços físicos públicos—por exemplo, no uso de tra essas articulações, conforme resumido na tabela acelerômetros para monitorar os níveis dos rios e de 1. O objetivo desta análise é problematizar como a sensores infravermelhos que mensuram o volume ação epistêmica da mineração de big data sustenta de trânsito nas estradas; embarcados em espaços a construção de espaços híbridos na era da IoT. Por físicos domésticos; em câmeras de segurança; em esses motivos, os parâmetros para esta análise par- sistemas automáticos de controle de temperatura tem da investigação das formas de coleta, análise e visualização de dados e como elas são performadas 2 MMORPG significa massively multiplayer online role-playing por agentes humanos e não humanos. game, jogo de simulação online com vários jogadores.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 63 FERNANDA DA COSTA PORTUGAL DUARTE

Além disso, considera a heterogeneidade das pontos de interesse, serviços e recursos disponí- redes, a multiplicidade de dispositivos IoT. Ainda veis aos moradores através da inserção de dados que essa análise apresente exemplos de topologias em um aplicativo móvel que utiliza a base de da- discretamente descritas, esclarecemos que elas dos . Através da construção coletiva não são autônomas ou autossuficientes uma vez da representação digital da favela, a dinâmica de que o que legitima essas topologias como arranjos anotação de dados reforça o senso de comunida- sociotécnicos é a interrelação co-constitutiva entre de. Ao inserir dados e acessar o aplicativo Wiki forças sociais, materiais e tecnologias. Deste modo, Mapas, o projeto dá visibilidade às localidades a primeira topologia a ser discutida não é conside- geográficas que eram “invisíveis”, ou seja, que não rada “mais primitiva” do que as que seguem. O uso haviam sido mapeadas. A importância de proje- da computação ubíqua-pervasiva e de estratégias tos como este é a sustentabilidade de práticas de mineração de big data não sobrescrevem outras colaborativas de criação de espaços híbridos na formas e epistemologias espaciais. medida em que tecnologias móveis são apropria- das para moldar a geografia social dos lugares. As Topologia 1: espaços híbridos como práticas vividas das tecnologias de locatividade, neste caso, incluem não só a anotação de dados anotação de dados específicos para cada lugar geográfico, mas tam- Esta primeira topologia emerge do gesto in- bém o compartilhamento de dados e criação de tencional da coleta de dados para uma finalidade redes sociais a partir desses serviços. específica e ou limitada. Nesta topologia, a coleta Nesta topologia, smartphones e dispositivos de dados apenas acontece quando propositada- móveis de tela são as interfaces técnicas mais mente iniciada ou permitida pelo usuário, como comumente utilizadas para a coleta e processa- por exemplo, em na divulgação de dados autorre- mentos dos dados. Ao mapear espaços geográfi- portados. Esta dinâmica de coleta de dados está cos e associá-los aos dados informacionais (por presente, por exemplo, no projeto Wiki Mapas exemplo, quando um usuário faz check-in em uma (2010), criado pela ONG “Rede Jovem” e realiza- localidade geográfica através do aplicativo Fours- do na favela Pavão-Pavãozinho no Rio de Janei- quare), usuários estabelecem uma correlação en- ro (DUARTE; SOUZA E SILVA, 2014). O projeto tre suas experiências vividas e o registro destas consiste no mapeamento colaborativo das ruas, como dados que conferem a este espaço geográ-

Tabela 1: Topologias de espaços híbridos de acordo com a materialidade das práticas espaciais, infraestrutura e ações epistêmicas. Dados como anotações Dados como duplos do real Dados como modelos preditivos Data annotation Data doubles Predictive models Modo de coleta e Acionável Acionável/ Automático Automático/ Sensciente processamento de dados Pervasividade Móvel Móvel/ Embarcado Embarcado/ Invasivo Interface Visual/Tela Visual/Tela/ Tátil Biométrica/ sensores Ação epistêmica Traçar o espaço físico Correlação de dados Modelos preditivos de big data Dispositivo externo Dispositivo vestível Plataforma Integrante de corpos (carregado pelo usuário) (atachado em corpos)

64 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 § Parágrafo TOPOLOGIAS DE ESPAÇOS HÍBRIDOS NA ERA DA INTERNET DAS COISAS fico, uma outra camada informacional. É nesse como o Nike FitBit, por exemplo, são construídos sentido que de Souza e Silva (2006) argumenta para que possam coletar dados de forma contínua que usuários reinventam suas práticas espaciais e ininterrupta, independente do acionamento do como uma rearticulação de espaços híbridos, na usuário. Neste caso, o output dos dados é ana- medida em que as fronteiras entre espaços físi- lisado pelo software do aplicativo e disponibiliza cos e digitais são anuviadas. ao usuário uma representação gráfica dos resul- tados que pode, por exemplo, demonstrar sua va- Topologia 2: espaços híbridos como riação cardíaca em um recorte temporal ou cor- relacioná-lo a outras variáveis como qualidade do duplos do real sono, tipo de atividade física realizada, queima de Quando usuários e desenvolvedores de apli- calorias etc. cativos começam a se apropriar de sensores pre- Em um estudo de caso sobre usuários do fó- sentes em dispositivos móveis para a coleta de rum Quantified Self3, que reúne discussões sobre dados (como por exemplo, acelerômetro e leitor as melhores práticas para monitoramento digital de impressão digital), testemunhamos uma transi- da performance fisiológica e lifelogging, nota-se ção para formas automatizadas de coleta de da- a valorização da coleta contínua e ininterrup- dos. Acelerômetros em smartphones são utiliza- ta de dados. Os usuários do Quantified Self es- dos, por exemplo, para contar o número de passos tão investidos na adoção de tecnologias digitais dados e a intensidade da atividade física, na me- como ferramentas que indicam parâmetros para dida em que a variação captada pelo sensor dos aperfeiçoamento fisiológico, cognitivo e emocio- valores dos eixos X, Y e X - que equivalem à repre- nal. Usuários, deste fórum, relatam o desejo de sentação geométrica do espaço tridimensional - é relacionar o maior número de variáveis possíveis transcodificada como o movimento do corpo que para o estabelecimento de correlações entre carrega aquele telefone. elas, como por exemplo, a correlação entre a con- Paralelamente, o movimento que este corpo centração de oxigênio no quarto e a qualidade do percorre no espaço geográfico, é traçado pelo sono; a ingestão de cafeína e a leitura de ondas GPS ativado neste telefone. Na tela do apare- cerebrais que identificam o estado de alerta. Prá- lho, o usuário pode visualizar a rota traçada, sua ticas conforme as dos usuários do Quantified Self velocidade média e uma estimativa das calorias demonstram como os parâmetros para tomada de consumidas (estimada pela correlação entre a decisão são delegados à inteligência algorítmica intensidade do exercício e sua duração). Neste e como o ideal humano é revisto como um método caso, o arranjo tecnológico formado entre o GPS, quantificado de subjetivação. a computação em nuvem, o smartphone, e o cor- Outro aspecto relativo à dimensão quantita- po biológico do usuário são organizados de forma tiva de validação dos dados digitais está expresso que o agenciamento para construção dessa per- na forma como sensores vestíveis são comerciali- formance espacial é distribuído. Nesta topologia, zados de forma a reforçar um ideal da representa- a coleta e análise automática de dados marcam ção exaustiva que circunda a aura da big data. O como a produção de espaços híbridos nem sem- grande volume de dados próprio da big data reite- pre seguem parâmetros iniciados ou controlados ra a ilusão da sua capacidade de fornecer uma re- pelo usuário. Outros dispositivos de computação vestível com interfaces hápticas, como sensores 3 www.quantifiedself.com. O slogan que define esta plataforma é “auto conhecimento através de números” (self knowledge de frequência cardíaca, ou de atividade física; through numbers). Acesso em 18 set. 2017.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 65 FERNANDA DA COSTA PORTUGAL DUARTE presentação exaustiva da realidade. No caso dos O projeto LIVE Singapore! se apresenta como usuários do Quantified Self, suas práticas visam “um ecossistema e uma caixa de ferramentas de criar uma representação precisa da sua fisiologia. dados coletados e exibidos em tempo real que Através da correlação de dados e sua análise pela descrevem a dinâmica urbana”5. Nesse exemplo, inteligência algorítmica, padrões são identifica- espaços híbridos são compartilhados entre e dos e informam os usuários sobre correlações en- construídos por usuários que acessam o mapa tre variáveis. Espaços híbridos, nessa topologia, e outros os quais navegam o espaço físico da são construídos na medida em que usuários criam cidade, que por contribuírem para a geração de “duplos de dados” de si mesmos. Eles se consti- dados afetam a representação visual de seu tuem na interrelação entre os corpos biológicos, mapa. A partir do que a visualização de dados o sempre-crescente banco de dados gerado por aponta sobre o fluxo do trânsito, pessoas na ci- sensores vestíveis e as visualizações gráficas dade tomam decisões a respeito de quais rotas geradas pelos algoritmos, que posicionam a per- tomarem e quais evitarem. A criação de espaços formance destes corpos diante de outros corpos híbridos como ferramenta para tomada de deci- (quando, por exemplo, os dados coletados pelo são marca a transição para a terceira topologia. Nike FitBit não só indicam a sua performance em Nesta terceira categoria, a coleta automática uma corrida, mas estabelece um comparativo da de dados para fins específicos (coleta da frequ- sua performance com as de outros usuários). ência cardíaca para monitoramento da saúde), é É preciso esclarecer que a construção de expandida para a coleta sentiente, ininterrupta, espaços híbridos através do mapeamento/co- de todas as fontes de dados possíveis. Mesmo leta automática de dados não se restringe à quando o propósito da coleta de dados não está coleta de dados pessoais da fisiologia e pode claro, a correlação e análise de dados apontam ser estendida às escalas maiores, em nível de para a relevância da construção de espaços hí- populações. Múltiplas fontes de dados pesso- bridos como modelos conceituais preditivos. ais, como fisiologia, geolocalização, fluxo de trânsito, etc., são automaticamente coletadas, Topologia 3: espaços híbridos como correlacionadas com outros bancos de dados modelos conceituais preditivos e terceirizadas para a geração de visualização de dados. O projeto LIVE Singapore4, desenvol- Na medida em que redes de sensores e a dinâ- vido por Carlo Ratti no MIT Senseable Media mica da big data estão largamente distribuídas por Lab, disponibiliza uma plataforma online para espaços físicos e corpos, a mineração de dados se apresentação de gráficos gerados com dados torna mais sentiente e a análise desses dados pas- em tempo real que informam sobre os usos dos sa por processos mais sofisticados de correlação. espaços públicos da cidade (Ratti, Claudel, Klo- Nessa topologia, uma maior variedade de sensores ecki, 2014). O objetivo desse projeto é informar e maior heterogeneidade de tipos de rede de co- aos gestores e aos cidadãos a melhor tomada municação produzem o que Roger Clarke chama de decisão e oferecer novos insights para plane- de uma vigilância de dados em massa (mass data- jamento urbano e serviços. As fontes de dados veillance) (Clarke, 2003), através da agregação de para essas visualizações são variadas: tempera- dados de diferentes fontes: cookies de navegado- tura, índice pluviométrico, consome de energia, res de internet, etiquetas RFID em passaportes e fluxo de trânsito, uso de telefonia celular, etc. 5 “ecosystem and a toolbox for real-time data that describe 4 http://senseable.mit.edu/livesingapore/. Acesso ago. 2016. urban dynamics.” Tradução livre.

66 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 § Parágrafo TOPOLOGIAS DE ESPAÇOS HÍBRIDOS NA ERA DA INTERNET DAS COISAS carteiras de identidade, chips biotecnológicos im- nas representar a realidade física presente. Basea- plantáveis, etc. Traços digitais são coletados não do no acúmulo de dados coletados e na identifica- só para descrever atividades no espaço físico em ção de tendências neste corpus, espaços híbridos tempo real (como descrito pela topologia anterior), são construídos para representar realidades futuras mas para criar modelos preditivos baseado em pa- plausíveis e informar a tomada de decisão que nos drões identificados historicamente. A discussão levará para a realidade que queremos criar. trazida por Mark Andrejevic (2014) e Jeremy Pa- Outro exemplo de aplicação de mapeamento a cker (2013) sobre o regime de vigilância por dro- partir de mineração de dados é o mapeamento ge- nes exemplifica como a mineração de big data gera nético. A primeira sequência genética foi mapeada ação preemptiva por governos: em 2003. Doze anos depois, cerca de três bilhões de pares de genes foram identificados (MAYER – Drones são a frente de batalha tanto para obser- SCHONBERGER, CUKIER, 20130.). A correlação vação quanto para resposta. Eles não só cole- entre os dados do genoma permitiu a associação tam dados mas estão, cada vez mais, recebendo de síndromes a genes específicos e a entender a função de analisar os dados. Por fim, a cadeia como o pareamento de determinados genes levam de comando que partia da decisão de quem é o à produção de determinados traços físicos. A partir inimigo (a decisão política), passava pela locali- da história familiar e a análise do genoma pessoal zação do inimigo (o processo de observação), até é possível, por exemplo, calcular a probabilidade de a localização do inimigo (o processo da infanta- manifestação de uma doença transmitida geneti- ria) está se tornando um procedimento singu- camente, como o câncer. A análise preditiva é um larmente determinado por parâmetros digitais. ponto de destaque nessa topologia, na medida em Não é só dizer que drones conseguem localizar que a correlação de dados pode ser condensada o inimigo com mais eficiência; mais do que isso, em informação estatística e, por exemplo, contribuir eles podem coletar, processar quaisquer dados para a decisão de se fazer um tratamento médico necessários para determinar algoritmicamente o preventivo. Apesar desta topologia ser constituída que é uma ameaça em qualquer situação/sujeito a partir do acúmulo de dados históricos, do passado e agir de acordo com seu julgamento.(PACKER, e do presente, ela é orientada ao futuro. Portanto, 2013, p.299)6 os espaços híbridos nessa topologia constituem-se Nesta topologia, a mineração e análise de big como modelos algorítmicos da realidade física. data são levadas ao limite da representação da re- A mineração de dados também impacta a cons- alidade física. Espaços híbridos são acionados atra- trução de espaços híbridos em espaços urbanos. vés de dados coletados por drones e não visam ape- Novos modelos de cidades inteligentes são imple- mentados como um banco de ensaio sempre em an- 6 Drones are the experimental forefront of both observation damento, onde a mineração de dados no presente and response. They not only collect the data but are determina a reorganização do espaço em um futuro increasingly being given the task of processing the data. Finally, the chain of command that led from deciding who em constante atualização. Orit Halpern (2013) des- was the enemy (the political decision), to locating the enemy creve a implementação de Songdo, um projeto de (the observational process), to executing the enemy (the cidade inteligente na Coréia do Sul elaborado pela soldiering process) is becoming a single digitallydetermined procedure. It is not simply that drones can locate real pre- Cisco onde toda a infraestrutura da cidade atua existent enemies more accurately; rather they can collect como sensor de coleta de dados do ambiente que and process the necessary data to determine algorithmically ajustam-se automaticamente às necessidades da the threat potential of any giver situation/subject and act accordingly. Tradução livre. sua população. O projeto da cidade prevê um am-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 67 FERNANDA DA COSTA PORTUGAL DUARTE biente urbano embarcado por sensores capazes de dos processos de coleta, processamento e análi- coletar e mapear inputs de dados de humanos e não se dos dados, e na medida em que as redes de co- humanos; de movimentos dos olhos a movimentos municação sem fio tornam-se mais heterogêneas. do trânsito, toda a gestão do espaço é planejada de A primeira topologia descrita é caracterizada forma a se adequar instantemente para seu melhor pela coleta de dados autor-reportados. Como no funcionamento: da entrega de publicidade customi- exemplo do Wiki Mapa, a coleta de dados aconte- zada ao usuário, à reprogramação dos semáforos de ce com finalidade específica e, geralmente, pré- trânsito. Neste sentido, Songdo é um modelo de es- -conhecida. A segunda topologia é marcada pela paço urbano que é sempre provisional, está sempre crescente pervasividade e automação da minera- em versão beta. É um espaço híbrido experimental, ção de dados. O uso de dispositivos de compu- um espaço físico moldado por inteligência algorít- tação vestível, que discretamente coletam dados mica que está em constate reformulação. sobre a performance física do corpo, são exem- Os avanços em mapeamento genéticos, im- plos de usos de interface háptica que não depen- plantes biotecnológicos de sensores e chips tam- dem de dispositivos de tela, como tende a ser o bém visam transformar os corpos biológicos em caso da primeira topologia. Espaços híbridos são espaços híbridos mutáveis, manipuláveis, platafor- constituídos na interrelação entre os espaços fí- mas de metadados que possibilitam atualizações sicos dos corpos/geográficos e a visualização de eternas de versões betas de nós mesmos. Esses dados gerados pela correlação algorítmica. avanços demonstram como os arranjos tecnoló- Finalmente, a terceira topologia leva a repre- gicos entre sensores e técnicas de mineração de sentação espacial ao limite da autorreferência. O dados marcam uma virada para uma epistemologia processamento de dados remessa à construção espacial que não está investida apenas na criação de modelos espaciais preditivos. O objetivo des- de representações que descrevem espaços físicos ta topologia é a construção de espaços híbridos em sua atualidade concreta. Tanto no caso das cida- sempre sentientes às realidades físicas, de modo des inteligentes quanto no mapeamento fisiológico que estejam em contínuo mulhoramento de seus dos nossos corpos, e da ação dos drones, o esforço próprios modelos conceituais. Em todas as to- representacional está voltado para a construção de pologias, a mineração de dados ocorre em níveis modelos espaciais preditivos baseados em correla- multi-escalares e materializam formas de saber ção de dados. Enquanto que nas topologias ante- algorítmicas através da ação epistêmica caracte- riores os espaços híbridos estão atrelados a seus rística da materialidade digital. referentes físicos, nesta topologia eles tendem à autorreferência, construídos como territórios de dados que emergem da performance algorítmica. Referências ANDREJEVIC, Mark. Big Data, Big Questions| The Considerações finais Big Data Divide. International Journal of Communi- cation, 8, 2014, p. 1673–1689. Argumentamos que a ação epistêmica digital que anima a mineração de dados pode ser apro- ANDREJEVIC, M. & GATES, K. Big Data Surveillan- priada como ferramenta analítica para análise das ce: Introduction. Surveillance & Society 12.2, práticas de representação espacial na era da IoT. 2014, p.185-196. Estas topologias articulam-se na medida em que ASHTON, Kevin. That “Internet of Things” thing. a mineração de dados assume maior automação RFID Journal. Disponível em

68 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 § Parágrafo TOPOLOGIAS DE ESPAÇOS HÍBRIDOS NA ERA DA INTERNET DAS COISAS journal.com/articles/view?4986, 22 de junho de tion. New York: Penguin Books, 2001. 2009>. Acessado em 31 out. 2016. MAXIGAS. Hacklabs and hackerspaces. Journal of BOYD, Danah e CRAWFORD, Kate. Critical ques- Peer Production. Available at: tions for big data. Information, Communication and . CLARKE, Roger. Dataveillance, 15 years on. Dis- Acesso em: jan. 2015. ponível em . Acessado sense of place. In: Bird, J, Curtis, B, Putnam, T, Ro- em 15 maio 2015. bertson, G and Tickner, L eds. Mapping the Futu- CRESWELL, Timothy. Introduction: Theorizing pla- res: Local cultures, global change. New York: Rout- ce. In G. Vearstraete and T. Cresswell (eds.) Mobili- ledge, 1992, p. 59–69. zing Place, Placing Mobility: The Politics of Repre- MAYER-SCHONBERGER, V.; & CUKIER, K. N. Big sentation in a Globalized World. Amsterdam: Rodo- Data: A Revolution That Will Transform How We pi, 2002, p.11-32. Live, Work, and Think. Boston, MA, USA: Eamon DOURISH, Paul. Place and space: Ten years on. Dolan/Houghton Mifflin Harcourt, 2013. Paper presented at the Anniversary conference on Computer Supported Cooperative Work, Alberta, PACKER, Jeremy. Epistemology Not Ideology OR Canada, 2006. Why We Need New Germans. Communication and Critical/Cultural Studies., n. 2-3, p. 295-300, Ju- DUARTE, Fernanda, & SOUZA E SILVA, Adriana ne-September, 2013, 10 vol. de. Arte. mov, Mobilefest and the emergence of a mobile culture in Brazil In G. Goggin, & Hjorth, L. RATTI, Carlo; CLAUDEL, Matthew; LIVE Singapore (Eds.). The Routledge companion to mobile media. The Urban Data Collider. Transfers. n 3, Asia Issue New York: Routledge, 2014, p. 206-215. 2: Special Section on Rethinking Mobility History Asia, p. 117-121, 2014, 4 vol. HALPERN, Orit. et al. Test-bed Urbanism. Public Culture 25:2, 2013, p 272-306. SOUZA E SILVA, Adriana de. From cyber to hybrid: Mobile technologies as interfaces of hybrid spa- KITCHIN, R. Big data, new epistemologies and pa- ces. Space and Culture, n. 3, p. 261-278, 2006. radigm shifts. Big Data & Society, april-june, 2014, p. 1-12. WARF, B., & ARIAS, S. (eds.). Spatial Turn: Interdis- ciplinary Perspectives. Florence, KY, USA: Routle- LATOUR, Bruno. Morality and Technology. The end dge, 2008 of means. Theory, Culture & Society, n. 5-6, 2002, p. 247-260, 19 vol. WEISER, Mark. The Computer of the 21st Century. Scientific American, 265, 3, 1991, p.66-75. LEMOS, André. Mídia locativa e territórios infor- macionais, 2007. Disponível em: . Acesso em 28 jun. 2017. late 1980’s. IBM Systems Journal, 38 (4), 1999, p. 693-696. LEVY, S. Hackers: Heroes of the Computer Revolu-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 69 FERNANDA DA COSTA PORTUGAL DUARTE

Débora Franco Machado – Mestranda em Ciências Humanas e Sociais na UFABC e pesquisadora no Laboratório de Tecnologias Livres da UFABC. E-mail: [email protected]

Recebido: 16 mar. 2018 Aprovado: 11 abr. 2018

70 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 57-70, jan./abr. 2018 § Parágrafo O uso de algoritmos na mídia programática

Use of algorithmic in the programmatic media

Stefanie Carlan da Silveira Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis, SC, Brasil

João Gabriel Danesi Morisso Universidade de São Paulo São Paulo, SP, Brasil

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 71 STEFANIE CARLAN DA SILVEIRA E JOÃO GABRIEL DANESI MORISSO

Resumo Abstract A publicidade digital encontra espaços de opera- Digital advertising has found operating spaces on ção na internet desde o seu surgimento. Inicial- the internet since its beginning. Initially with ban- mente com banners e formatos que remetiam à ners and formats that refer to traditional media, the mídia tradicional, os processos evoluíram ao longo processes have evolved over time in search of seg- do tempo em busca de audiências segmentadas, mented audiences, more effective monitoring, and monitoramentos mais efetivos e retornos sobre in- more metrified returns on investment. Currently, the vestimento mais metrificados. Atualmente, a mídia programmatic media is responsible for automating programática é responsável pela automatização the advertising investments in several sites of the dos investimentos publicitários em diversos sites network. Although useful, the tool brings conflicts da rede. Apesar de útil, a ferramenta traz conflitos and damages to both consumers and investors, pro- e prejuízos tanto para os consumidores quanto para moting billing for groups responsible for extremism os investidores, promovendo faturamento para gru- or piracy. This article promotes an open discussion pos responsáveis por extremismo ou pirataria. Este about this scenario and proposes a debate about artigo promove uma discussão aberta sobre esse the automation of digital advertising, with examples cenário e propõe um debate acerca da automati- and theoretical-empirical reflections. zação da publicidade digital, com exemplos e refle- xões teórico-empíricas.

Palavras-chave Publicidade digital. Mídia programática. Automatização. Algoritmos.

Keywords Digital advertising. Programmatic media. Automation. Algorithms.

72 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 § Parágrafo O USO DE ALGORITMOS NA MÍDIA PROGRAMÁTICA

Introdução links patrocinados e formatos mobile. Com o de- senvolvimento tecnológico dos mecanismos de A publicidade e a veiculação de mídia no am- troca de informação entre websites e empresas é biente digital estão em constante desenvolvimen- possível hoje trabalhar com targets (alvos) espe- to e cada vez mais o ecossistema de empresas cíficos de audiência para que anunciantes entre- que atuam neste segmento aumenta na mesma guem suas mensagens direcionadas não apenas velocidade. Naquilo que costumamos chamar de pelas clássicas divisões demográficas, mas tam- web 1.0, cada website era responsável por comer- bém se utilizando do comportamento do usuário e cializar e publicar seus próprios anúncios em ban- informações em tempo real, como a temperatura ners digitais. Este movimento se dava em função da cidade onde o usuário está e qual hora do dia de uma transposição da lógica dos modelos de ele está navegando pela rede. publicidade atrelados à mídia impressa ou tradi- cional. Ou seja, acreditava-se que expor a marca Este formato mais recente utilizado para de- num formato que se assemelha a um “outdoor di- finição dos elementos que serão exibidos ao con- gital” seria suficiente e eficaz para a conquista da sumidor é chamado de mídia programática. Além atenção dos consumidores. de permitir a utilização de diferentes e novos cri- térios na hora de estabelecer qual anúncio é mais A web – e seus resultados sobre os proces- relevante, esse tipo de ferramenta também per- sos produtivos e criativos –, se configurou como mite a exibição dos materiais em uma quantidade uma das principais transformações da atualida- maior de sites e agiliza o processo, facilitando o de. Na publicidade ela vai chegar entre o fim dos trabalho de publicitários e profissionais de mídia. anos 1990 e o começo dos anos 2000, ainda “A propaganda online é gerenciada automatica- sofrendo todas suas limitações (CARVALHO et mente: alguns softwares/plataformas navegam no al, 2015, p. 8). A partir dos anos 2000, a trans- inventário de espaços publicitários online e otimi- formação se acentuou com o desenvolvimento zam o planejamento, a efetividade e o investimen- da tecnologia e dos processos interativos, espe- to” (TESTORI, 2014, p. 11).1 cialmente os potencializados pelas plataformas de redes sociais online. Esse desenvolvimento Apesar dos benefícios, este sistema não sur- gerou novas ferramentas e novos espaços de ge isento de problemas e questões passíveis de mídia, o que dá início à pulverização da verba pu- análise. Em função da automatização dos proces- blicitária antes focada em espaços que mimeti- sos, alguns anúncios acabam sendo exibidos em zavam formatos anteriores. sites ou redes que apresentam conteúdos que não estão de acordo com a empresa que está Os modelos iniciais de publicidade na web anunciando ou ainda, representam grupos extre- foram se mostrando pouco eficazes e prejudican- mistas, de pirataria ou material pornográfico. Este do sites que se tornavam visualmente poluídos, aspecto da automatização da publicidade é o que com anúncios que nem sempre correspondiam pretendemos discutir neste artigo. aos interesses dos consumidores ou traziam re- torno efetivo sobre investimento para os clientes. Como objetivo central, buscamos trazer aqui A evolução da publicidade digital acabou trazen- uma discussão aberta sobre o status atual da pu- do novos formatos que eram capazes de superar blicidade digital e os problemas que a mediação esses problemas oferecendo audiência segmen- 1 Trecho original: “Web advertising space is managed auto- tada e opções mais personalizadas e eficientes. matically; some software/platforms surf the inventory of web Alguns exemplos são: anúncios em redes sociais, adv spaces to optimize the media planning/effectiveness and investment.” Tradução dos autores.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 73 STEFANIE CARLAN DA SILVEIRA E JOÃO GABRIEL DANESI MORISSO majoritariamente técnica pode acarretar neste definição de todas as etapas da venda, envolven- caso. Para isso, inicialmente, explicamos do que do o que era escolhido pelo anunciante, à divisão se trata e como funciona a mídia programática. do investimento, os formatos, onde eles seriam Em seguida, destrinchamos um pouco mais al- inseridos e como apareceriam para o usuário, guns aspectos relacionados à automatização dos além da mensuração dos resultados posteriores. processos e o uso de algoritmos. Por último, tra- Ainda de acordo com a autora, as plataformas e zemos exemplos de casos recentes enfrentados as empresas de análise que hoje atuam no mer- por empresas e sites que acabaram demandando cado podem ser divididos em três níveis: os que a atenção e até mesmo a ação de profissionais assessoram anunciantes, os que atuam junto aos com relação a eles. Assim, esperamos contribuir veículos e os que centralizam o processo, operan- para este debate buscando um olhar mais atento do com os dois lados de forma conjunta. às ações e soluções propostas e implementadas Esse processo é possível graças a uma in- pelo mercado. terligação de plataformas e de encadeamento de fluxos de informação com algoritmos de análises Mídia programática e classificação complexos que são executados em frações de milésimos de segundo. Junto à É no cruzamento de dados sobre o usuário base tecnológica há também uma série de prede- para a definição de quais anúncios serão exibi- finições que são estabelecidas por anunciantes dos e onde eles serão apresentados que encon- e veículos, as quais servem de parâmetro para as tramos a primeira base pela qual funcionam os interações entre as plataformas que fazem par- anúncios segmentados via mídia programática. te da programática. Cada plataforma torna-se um De uma forma geral, é possível definir mídia pro- agente no mercado de compra e venda de espa- gramática como a compra e venda de espaços ços publicitários, que podem ser separados por publicitários online de maneira automatizada e sua função: os que atuam assessorando anun- dentro disso, existem diversas maneiras de efe- ciantes, os que atuam junto aos veículos e os que tuar essa transação. atuam mediando o processo de transação, funcio- Busch (2014) esclarece que há diversos ter- nando para ambos os lados. mos sendo utilizados conjuntamente à “mídia pro- Os agentes que operam junto aos anuncian- gramática”, entre eles display de dados, compra tes (Demand Side) os auxiliam a definir os targets programática e comércio automatizado, no entan- que derivam das estratégias do planejamento to, todos eles se referem ao uso massivo de da- para que a compra de mídia seja o mais adequada dos, tecnologia e inteligência artificial no marke- possível. O trabalho é feito levando em considera- ting com o objetivo de melhorar sua eficiência em ção tanto os dados psico-demográficos dos usu- tempo real. “A publicidade programática descreve ários quanto às taxas de conversão necessárias a veiculação automatizada de anúncios digitais para obter bons resultados nas suas campanhas. em tempo real com base em oportunidades de im- Além disso, esses agentes também atuam na de- pressões de anúncios individuais” (BARDOWICKS finição do anunciante sobre o quanto ele está dis- E BUSH, 2013, apud BUSCH, 2014, p. 8). posto a investir em cada exibição dos anúncios de Segundo Rosa (2016), o termo se opõe ao sua campanha. que conhecíamos tradicionalmente no mercado Junto aos veículos (Supply Side), estão os publicitário como venda direta, onde o departa- agentes que monitoram as audiências dos portais mento de mídia da agência era responsável pela e coletam informações dos visitantes a fim de en-

74 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 § Parágrafo O USO DE ALGORITMOS NA MÍDIA PROGRAMÁTICA riquecer a decisão de compra de espaço nestes sociais3, links patrocinados4, vídeos pre-roll5 e forma- locais, que se baseia em uma análise de adequa- tos mobile6. Segundo dados do Marketer (2016c), in- ção ao target. Uma vez mapeado a audiência do clusive, “mais de dois terços do total das mídias display inventário, ele os classifica por preços mínimos de já é comercializado através de plataformas progra- exibição em cada veículo. máticas” (idem, p. 41). Existem diversas modalidades Por fim, os agentes que atuam como media- desse processo como reserva de espaços, lances pré- dores (Ad Exchange) do processo de transação. -pagos e espaços premium. Mesmo com uma ampli- Eles operam como uma plataforma na qual, de tude de modalidades de compra e venda que existem um lado, os anunciantes delimitam para quem e na mídia programática, vamos abordar o RTB (Real-Ti- por quanto tempo a campanha será visível, além me-Bidding), leilão em tempo real de espaços disponí- de qual investimento máximo será disponibilizado veis no ad server do SSP (Supply Side Platform - lado para aquele momento. Do outro lado desta plata- vendedor) que acontece no Ad Exchange baseado em forma, os veículos definem quais espaços estão informações detalhadas sobre as audiências. disponíveis e qual o investimento mínimo que A operação do RTB se faz mais clara quando deve ser feito para que eles possam ser compra- utilizamos um exemplo: dois usuários visitam o mes- dos do inventário. mo site, porém um deles é um senhor aposentado O processo então se repete para cada posição que tem um histórico de visitas e comportamento de mídia que deve ser preenchida em cada página relacionado a turismo internacional e cruzeiro, já o visualizada na internet – dentro, claro, dos veículos segundo usuário é uma jovem que foi identificada que optam por estar inseridos nos inventários de como praticante ou simpatizante de assuntos como mídia programática. Por definição, o IAB explica a kickboxing e pilates. Neste cenário, o RTB promete mídia programática como o “uso de sistemas au- que o leilão em tempo real do espaço publicitário dis- tomatizados e processos de compra e venda de ponível neste website seja diferente para cada usuá- inventário em negociações por meio de leilões em rio e cada um deles possa ser exposto a um anúncio tempo real” (IAB BRASIL l, 2015, p. 1) sem levar em que esteja mais relacionado com seus interesses consideração outras situações possíveis. pessoais. As informações de cada um dos visitantes são recebidas no servidor de Ad Exchange junto aos critérios do espaço disponível no SSP (lado vende- dor) para que os lances sejam direcionados e o lance vencedor no DSP (Demand Side Platform - lado com- prador) entregue o anúncio correto para o Ad Server

3 Anúncios em rede social podem possuir formatos diversifica- dos que são relacionados à plataforma em que são inseridos, podendo ser posts patrocinados, vídeos, links e formatos inte- rativos. Figura 1 – Funcionamento da mídia programática. 4 São utilizados principalmente por sistemas de busca e prio- Fonte: Autores do trabalho rizam resultados pagos colocando-os acima dos resultados orgânicos. Segundo Rosa (2016), alguns dos formatos mais 5 São chamados pre-roll os vídeos que antecedem o conteúdo utilizados pela mídia programática são: exibição de que o usuário quer assistir, uma espécie de trailer que pode ter algumas regras como: pular depois de cinco segundos assisti- 2 mídia online em formatos display , anúncios em redes dos ou obrigar o usuário a assistir de maneira integral. 6 São formatos que utilizam as potencialidades do dispositi- 2 Formato Display é o formato de exibição padronizado pelo vo móvel, como tela sensível ao toque e sensores próprios do número de pixels exato, sem extrapolar a dimensão designada. aparelho.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 75 STEFANIE CARLAN DA SILVEIRA E JOÃO GABRIEL DANESI MORISSO do SSP, que por sua vez publica anúncios diferentes o seu espaço é disponibilizado. A terceira é a informa- para cada visitante. ção em tempo real, sobre o acesso imediato à coleta De acordo com a IAB (Interactive Advertising de dados sobre a transação. A quarta é a criação em Bureau) (2015b), o caminho entre o usuário carregar tempo real, indicando o posicionamento dos anúncios uma página que tenha em seu código uma solicitação imediatamente após o vencimento do leilão. A última de um anúncio para uma Ad network ou Ad Exchange característica é a automação que diz respeito à reserva e o anúncio aparecer na página já carregada deve ser e a publicação automatizada. de até 10 milissegundos. Nesse sistema quase que Vale lembrar que todos estes processos so- instantâneo, dados são a base que solidifica as deci- mente são possíveis em função da quantidade de sões que são tomadas por máquinas e dispositivos dados disponíveis que usuários deixam registrados automatizados munidos de regras e critérios para durante sua navegação. Esses dados nos reme- que as operações aconteçam. tem ao que atualmente chamamos de Big Data. O desenvolvimento tecnológico fez com que muitos O marketing digital e a publicidade programática, dados e informações fossem gerados numa veloci- sendo novos meios de comunicação são grandes dade e volume muito maiores do que ocorria antes forças que estão trabalhando no conflito e conse- do surgimento dos computadores. O nascimento quentemente utilizando indiretamente informações de máquinas pessoais que operam também como que são de cunho privado. Mesmo que essas infor- sensores, como os smartphones, por exemplo, fez mações ou rastros que são deixados pelos usuários com que se pudessem armazenar mais dados e não sejam compartilhados, organizações, através dos contabilizá-los mais rapidamente. Com a Internet, a portadores desses dados podem ter vantagem para quantidade de informações armazenadas e também suas campanhas e anúncios. Google e Facebook, por em circulação tomou proporções ainda maiores. Se- exemplo são empresas portadoras dessa rede de gundo Tascón e Coullaut (2016, p. 51), estas “ba- banco de dados. A partir da solicitação das organiza- ses de dados gigantes às quais podemos acessar ções, em forma de leilão (a empresa que pagar mais e trabalhar com” confiram o chamadoBig Data. Na tem seu anúncio com mais intensidade direcionado publicidade, a imensidão do Big Data garante que para o consumidor), os anúncios são encaminhados plataformas que capturam informações dos usuá- para os usuários a partir do perfil de cliente que as rios a todo o momento possam negociar essas in- mesmas organizações traçaram e a partir dos rastros formações para anunciantes, que por sua vez, bus- e informações que são pesquisadas pelos usuários, cam a todo instante atingir de forma mais assertiva esses clientes são selecionados e as campanhas e os consumidores que interessam ao seu negócio. anúncios encaminhados para que cheguem aos con- “Analisando o consumo de informação e como este sumidores (ZANETTI, 2017, p. 62). se engendra, se podem realizar modelos preditivos que melhorem os produtos e a experiência dos lei- Segundo Busch (2014), é possível elencar pelo tores” (TASCÓN; COULLAUT, 2016, p. 51-52)7. menos cinco características da mídia programática. A primeira é a granularidade, que diz respeito à possibili- dade de se levar em consideração as oportunidades de Algoritmos e regras automatizadas impressões de forma individualizada, em plataformas As regras e critérios, a partir dos quais o sistema e ambientes específicos de publicidade. A segunda é a troca em tempo real, que indica a possibilidade de de- 7 Tradução dos autores, trecho original: “Analizando el consu- me de información y cómo este se produce, se pueden realizar cisão sobre uma impressão no exato momento em que modelos predictivos que mejoren los productos y la experiencia de los lectores”.

76 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 § Parágrafo O USO DE ALGORITMOS NA MÍDIA PROGRAMÁTICA de mídia programática opera, funcionam através dos se atributo. Assim, é construído o modelo baseado algoritmos. Sendo assim, cabe-nos aqui explicar um num conjunto de treino, sendo usado para prever pouco mais sobre este conceito e seu funcionamento. novos dados. Estes algoritmos são construídos A definição clássica indica que um algoritmo pode ser com um processo de duas fases. A primeira fase é definido como um conjunto de regras finitas organiza- a construção do modelo, em que, para cada amos- das com o objetivo de resolver um problema específico tra (ou registo, ou objeto, ou instância, ou exemplo), ou executar alguma tarefa. No caso da tecnologia digi- se assume que tem um valor para o atributo-alvo. tal, dos computadores e da internet, os algoritmos são O conjunto de amostras usado para a construção executados por máquinas, pois este conjunto de regras do modelo designa-se de conjunto de treino (CAR- que os define foi escrito utilizando alguma linguagem DOSO, 2012, p. 5-6). de programação (CORMEN, 2014). De forma menos técnica, o conjunto de dados Além de serem escritos a partir de linguagens de que treina o algoritmo é considerado um modelo de programação, os algoritmos mais evoluídos também categoria que é aplicado em novos e diferentes da- estão baseados no que chamamos de machine lear- dos. A partir desses novos inputs, o algoritmo traba- ning. Silveira (2017) explica que, no caso de um sof- lha por semelhança e as informações recebem o valor tware, o programador é responsável por descrever no atribuído (classe atributo) tornando possível assim a código todas as operações que serão executadas pelo classificação de novos dados com base nos modelos algoritmo, mas no machine learning, as funções que determinados pelo conjunto inicial. serão executadas são definidas pelo próprio algoritmo. Os dados passíveis de classificação de audiên- Nesse caso, como explica a autora, os algoritmos cia em grupos determinados pelos conjuntos modelo variam de: informações comportamentais do usuário; têm capacidade de aprendizado à medida que novos seu histórico de navegação, informações geográficas inputs vão sendo colocados no sistema. Assim, confor- e de localização, demográficas; como sexo, idade, ren- me os gostos e interações vão mudando, o algoritmo dimento, informações temporais; hora do dia, clima e vai aprendendo e se adaptando para sempre exibir os temperatura, informações tecnográficas; como dis- conteúdos que consideram mais adequados para o usuário” (SILVEIRA, 2017, p. 174). positivo, tamanho, sistema operacional. Outros dados utilizados para modelar as regras dos anunciantes são: Dentre os algoritmos presentes nas intera- datas de início e fim das exibições, número máximo de ções entre as plataformas de mídia programáti- impressões, dias da semana e horários, intervalos de ca estão os de classificação. Segundo Cardoso tempo, geolocalização e clima (DOMINGOS, 2017). (2012), esses algoritmos são utilizados para cata- Uma vez que os agrupamentos sejam feitos logar, ou seja, têm, por exemplo, a capacidade de e construídos, os conjuntos de treino que servem construir perfis de audiência baseados em dados de modelo para categorização de novos dados, as coletados em múltiplas plataformas. regras e critérios estão delineadas para que os al- goritmos sejam executados em modo não super- O objetivo dos algoritmos de classificação é pre- visionado, ou seja, automatizados sem interven- ver o valor de uma determinada variável (dado o ção humana. Nesse caso, o agente automatizado alvo ou objetivo). Se a variável-alvo for categórica, perfeito supostamente eliminaria grande parte é um problema de classificação e, se for numérica, burocracia na compra e venda de anúncios, pa- é um problema de regressão. Para cada registo no recendo improvável que as empresas pudessem conjunto de dados, é determinado o valor da clas- criar agentes que prejudicassem a base de seus

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 77 STEFANIE CARLAN DA SILVEIRA E JOÃO GABRIEL DANESI MORISSO negócios. No entanto, a automatização e à falta Apesar dos benefícios, o sistema deixa brechas de intervenção humana podem fazer com que os para que ocorram padrões discordantes que não se locais disponíveis para exibição desses anúncios encaixam no esperado, agindo de maneira errática nem sempre sejam averiguados e qualificados de com valores e ações que fogem da considerada acordo com seu conteúdo e não somente a audi- normalidade. Estes erros ou padrões discordantes ência que é capaz de gerar. também são denominados anomalias, que podem acontecer acidentalmente ou de maneira intencio- Problemas da automatização nal, como no caso de fraudes.

A automatização é um processo que como o Fraude ainda é um problema. Toda indústria conver- próprio nome diz, acontece sem intervenção huma- sa sobre a luta contra fraudes mas isso não parece na e, portanto é passível de erros, comportamentos ter eliminado o problema. O ecossistema da progra- inadequados, padrões discordantes, aberrações, mática é especialmente suscetível a práticas frau- contaminantes, anomalias e uma série de defeitos dulentas como a chamada “url masking” onde um na operação como um todo. Dentre os erros possí- veiculo lista o seu website no Ad Exchange como se veis, este artigo limita-se a discutir apenas os que fosse outro, normalmente com melhor reputação. O se relacionam com os exemplos do objeto de es- anunciante não faz ideia onde aquele anúncio está tudo, a publicidade digital, mais especificamente, a sendo veiculado (KANTROWITZ, 2015 s/p.).10 mídia programática. Observando o fluxo entre as plataformas agen- Lopes (2012) categoriza as anomalias em três tes da mídia programática os Ad Servers de ambos tipos: pontuais, contextuais e coletivas. Esta divi- os lados (DSP e SSP) conversam com o Ad Exchan- são permite que seja possível nos aprofundarmos ge e com as Ad Networks de maneira automatizada nas características responsáveis pelos comporta- a partir de comandos, regras e códigos definidos mentos erráticos dos códigos. Quando uma ope- com pouca transparência. Os estrategistas digitais ração é discordante de todo resto do sistema ela e responsáveis por marketing e propaganda online deve ser considerada uma anomalia pontual. Quan- normalmente não possuem uma visão clara sobre do os dados entre si são discordantes do resto, a como um anúncio vai parar em determinado local. anomalia é coletiva. Porém o tipo de anomalia, que Existem análises de tags8 e blacklists9 nos servi- encontramos em nosso objeto de estudo, é do tipo dores de Ad Performance para evitar problemas e contextual: fraudes, mas estas nem sempre são efetivas. A au- tomatização traz consigo muitos benefícios, como Se um dado objeto for anômalo relativamente ao anúncios direcionados por audiência, inventário seu contexto e não relativamente a todo o univer- multiplataforma entre dispositivos, visibilidade em so de objetos, este é denominado uma anomalia tempo real, segmentação um-a-um, custo por per- contextual. Os problemas que atentam a este formance, entre outros. tipo de anomalias requerem a presença, no seu

10 Escrito por Ale Kantrowitz para a revista Ad Age. Trecho 8 Dentro das linhas de código de programação presentes nos original: “Fraud is still a problem. All the industry talk about figh- sites existem metadados, que são dados visíveis apenas para ting fraud doesn’t seem to have eliminated it. The programmatic as outras máquinas e que categorizam algumas intenções e ecosystem is especially susceptible to a fraudulent practice operações específicas, são chamadas tags de código. called “URL masking,” where a publisher lists its website in the 9 São listas com sites maliciosos, também chamada de lista ad exchanges as another, usually more reputable, website enti- negra, onde são mapeados e expostos inventários que devem rely. The buyer has no idea where the ads are actually running.”. ser recusados. Acesso em :16 jan. 2018. Tradução dos autores.

78 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 § Parágrafo O USO DE ALGORITMOS NA MÍDIA PROGRAMÁTICA

conjunto de dados, de atributos capazes de in- café”. Aqui, a relação entre os malefícios do consumo troduzir a noção de contexto, como por exemplo de café e o anúncio oferecendo uma segunda xícara tempo, posição geográfica ou temperatura. Desta também produzem uma contradição contextual. forma, os métodos de detecção tentam identifi- Mais recentemente, anomalias contextuais en- car anomalias recorrendo a atributos denomina- volvendo o Google por meio da plataforma YouTube dos comportamentais tendo em consideração os também ocorreram. Anunciantes tiveram seus ma- de contexto (LOPES, 2012, p. 20). teriais exibidos em vídeos ligados a grupos extre- mistas. É possível perceber anomalias contextuais le- vando em consideração a semântica nesse engen- dramento de fatores. Uma palavra como “bomba” pode estar inserida em um contexto terrorista e vio- lento ou relacionada a uma éclair também conheci- da como bomba de chocolate. O contexto faz toda diferença nessa interpretação, porém nem sempre os algoritmos conseguem ter a mesma clareza que um humano teria ao tomar decisões na compra de espaços e publicação de anúncios online. Um dos exemplos que podemos citar acon- teceu em uma notícia sobre um derramamento de petróleo no Golfo do México, publicada no portal Figura 2 - Anúncio da Hyundai no YouTube junto a vídeo Marketwatch. Nesse caso, a automação de mídia Jihadista. Fonte: Reprodução inseriu um anúncio da Deloitte11, uma consultoria internacional que no título do anúncio relaciona O Google está sob ataque após vários anúncios se- seus serviços com o sucesso de uma extração de rem veiculados ao lado de conteúdos ofensivos no petróleo com alta performance. Neste caso, a pala- Reino Unido – incluindo vídeos neonazistas e jiha- vra-chave petróleo tinha dois contextos, um nega- distas – no YouTube e em outros websites que a sua tivo relacionado ao derramamento e outro positivo rede serve anúncios. A revelação primeiramente re- relacionado à alta performance de uma extração, o portada em fevereiro pelo jornal Times of London, que provocou uma má inserção devido ao conflito levou a agência Havas a retirar todos anúncios da contextual. rede do Google incluindo Youtube. Outras empre- Outro exemplo de anomalia ocorreu no portal sas como Johnson & Johnson, JPMorgan, AT&T e YahooNews em uma notícia sobre o primeiro ata- Verizon entre outras, também suspenderam ou re- que cardíaco desencadeado pelo consumo de café. tiraram os anúncios junto ao Google (CASTILHO, 2017, s/p).13 Junto ao texto, a automação da mídia inseriu um 12 anúncio de café da marca Folger’s, que em seu tí- 13 Trecho original: “Google is under fire after several ads were tulo trazia a frase “aproveite uma segunda xícara de seen running next to offensive content in the U.K. — including neo-Nazi and jihadist videos — on YouTube and other websites 11 Fonte: https://static.businessinsider.com/image/4f91a- it serves ads on. The revelation, first reported in early Febru- c4feab8ea866e000009-400/image.jpg. Acesso em 11 ary by The Times of London, led media buying agency Havas de set. 2017 to pull all its YouTube and Google Digital Network ads in the 12 Fonte: https://static.businessinsider.com/ U.K. Johnson & Johnson, JPMorgan, AT&T and Verizon, among image/4f91ad00ecad04fd35000007-400/image. others, have suspended or pulled advertising with Google as jpg. Acesso em 11 de set. 2017 well.”Acesso em: 20 dez., 2017. Tradução dos autores.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 79 STEFANIE CARLAN DA SILVEIRA E JOÃO GABRIEL DANESI MORISSO

Este caso provocou uma série de debates en- tes que envolvem a curadoria técnica quando utilizada tre anunciantes e plataformas de mídia programática como única alternativa, ou seja, estamos prontos para em relação aos conteúdos relacionados aos espaços confiar somente nos algoritmos? disponíveis nos inventários de mídia. Os anunciantes exigiam uma maior transparência e segurança em re- Considerações finais lação aos locais disponibilizados. Esses problemas têm relação com os critérios e Observamos neste trabalho, o caminho evo- regras que permitem a entrada desse tipo de espaço lutivo da mídia online e como funciona a operação nos inventários. A lógica de critérios mal desenhados da compra e venda de espaços de publicidade na para seleção de espaços para publicação de mídia au- atualidade. A nova realidade proporcionada pelos tomatizada também ocorreu num portal de notícias métodos de negociação de mídia é sem dúvida do Jihad que trazia um anúncio da IBM cujo tema era cheia de benefícios tanto para os veículos quanto a empatia com os clientes para oferecer produtos na para os anunciantes, no entanto, junto às possibili- hora mais adequada. dades trazidas pela tecnologia, há a complexidade desse novo ecossistema que precisa ser debatida. As plataformas de mídia programática interagem em velocidades sobre-humanas, dificultando assim a interferência manual, fazendo com que apenas os códigos consigam modelar a ação das máquinas.

Como deuses, estes modelos matemáticos são opa- cos, sua operação é invisível para todos exceto os car- deais em suas áreas: matemáticos e cientistas com- putacionais. Seus vereditos, mesmo quando errados ou nocivos, são imunes a disputas ou apelos” (O’NEIL, 2016, p. 14-15).14

Figura 3 - Anúncio da IBM publicado no portal Jihadista O problema ocorre quando há situações em Arrahmah. Fonte: Reprodução que as máquinas tomam decisões inadequadas baseadas em dados desviantes e produzem ano- A partir dos exemplos exibidos, observamos malias e aberrações na operação. A velocidade que o cenário de automação de compra e venda da com que a transação deve ocorrer é tão grande mídia online, apesar dos benefícios, ainda enfrenta que não há maneira possível de supervisão huma- muitas dificuldades tecnológicas. Os algoritmos res- na durante o processo. Resta aos profissionais ponsáveis pelas trocas e coletas de informação que envolvidos analisar os resultados e exigir regras definem decisões e negociações entre os players do mais claras, maior transparência de códigos e ecossistema programático necessitam evoluir ainda algoritmos. A partir da coleta de resultados des- mais. Diante deste cenário, estrategistas digitais, pro- viantes é possível ajustar os blocos responsáveis fissionais de marketing e pesquisadores devem estar atentos ao poder que está sendo depositado em sis- 14 Trecho original: “Like gods, these mathematical models were temas de automação de compra e venda de mídia. O opaque, their workings invisible to all but the highest priests in their domain: mathematicians and computer scientists. Their ver- ponto de discussão aqui se assemelha a outros emba- dicts, even when wrong or harmful, were beyond dispute or appeal.” Tradução dos autores.

80 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 § Parágrafo O USO DE ALGORITMOS NA MÍDIA PROGRAMÁTICA pelo comportamento indevido da transação de ção) - Faculdade de Engenharia da Universidade do mídia online. Mapear os tipos de erros e anoma- Porto, Portugal, 72 p. lias parece ser um dos caminhos para aprimorar a CARVALHO, Cristiane Mafacioli; CHRISTOFO- operação dos códigos. LI, Márcia Pillon; BOMBARDELLI, Rita de Cássia A utilização de relatórios padrão de exibição e Breier. Novos Modelos e Novos Negócios na Prá- controle de espaços do inventário de mídia base- tica do Mercado Publicitário. Trabalho apresenta- ado também no conteúdo do veículo indica outra do no GP Publicidade e Propaganda, XV Encontro forma de proteger anunciantes para não prejudi- dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento car sua marca associando-se a temas indevidos. componente do XXXVIII Congresso Brasileiro de Veículos considerados mais nobres podem adotar Ciências da Comunicação. In: Anais..., 2015, Rio de este tipo de medida para qualificar os espaços dis- Janeiro. poníveis em suas publicações, colocando-os numa posição elevada no índice de segurança da marca, CORMEN, Thomas. Desmistificando Algoritmos. dado que atesta a qualidade e a segurança do am- Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. biente de mídia disponibilizado nos inventários de CASTILLO, Michele. Here’s how it’s possible for custo mais elevado. Google to sell ads next to offensive content and not know about it. Disponível em: Enquanto anunciantes estão se beneficiando da programática, veículos premium devem agir para ga-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 81 STEFANIE CARLAN DA SILVEIRA E JOÃO GABRIEL DANESI MORISSO mática) - Universidade do Minho, Portugal, 106 p. ting In: DISTANTE C.; BATTIATO. S; CAVALARO. A (Org.) Video Analytics for Audience Measurement. MUNSTERMANN, Holm; WURTENBERGER, Peter. Suécia: Springer, 2014. Programmatic disruption for premium publishers. In: BUSCH, Oliver (Org.). Programmatic Advertising: ZANETTI, Guilherme Orsato. Conflitos entre publi- The successful transformation to automated, da- cidade e privacidade na internet. 2017. (Trabalho ta-driven marketing in real-time. Suiça: Springer, de Conclusão de Curso) - Universidade de Passo 2016. Fundo, Passo Fundo, 88 p.

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Stefanie Carlan da Silveira – Professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), dou- tora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected]

João Gabriel Danesi Morisso – Acadêmico do Curso de Especialização Lato Sensu em Gestão da Co- municação Digital da Universidade de São Paulo (USP).

Recebido: 16 mar. 2018 Aprovado: 07 maio 2018

82 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 71-82, jan./abr. 2018 § Parágrafo Um jornalismo para chamar de meu? Algoritmos e o fenômeno da customização de notícias

Is there a journalism to call my own? Algorithm and the phenomenon of news customization

Raquel Dornelas Universidade do Estado do Rio de Janeiro Programa de posgraduação em Comunicação Social Rio de Janeiro, RJ, Brasil

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 83 RAQUEL DORNELAS

Resumo Abstract Este artigo tem como objetivo apresentar uma bre- This paper aims to present a brief theoretical re- ve revisão teórica sobre o fenômeno da criação de view about the phenomenon in which hyper-indivi- noticiários hiperindividualizados, possibilitados por dualized newspapers are created due to services serviços e plataformas disponíveis na Internet. Per- and platforms available online, especially social cebendo que a prática tem ampla influência dos al- networks. Realizing that the practice has wide in- goritmos, acionam-se discussões sobre o conceito fluence of the algorithms, the paper discusses the de “algocracia” e “bolha informacional”, a fim de for- concepts of algocracy and informational bubble, in necer insumos teóricos sobre o processo mencio- order to provide theoretical overviews on the afore- nado. Sem desconsiderar o fato de que o jornalismo mentioned process. Without disregarding the fact tradicional massivo ainda exerce ampla influência that traditional journalism still has a large influence na sociedade e procura sobreviver se adaptando à on society and seeks to survive by adapting to di- lógica digital, conclui-se que é urgente tornar mais gital logic, we claim that it is urgent to make public transparentes questões que estão por trás da ofer- what are behind the offer of these new personaliza- ta das novas ferramentas de personalização: a pri- tion tools: data privacy, risks of illegal uses and the vacidade de dados dos usuários, os riscos de usos financialization of information. ilegais e a “financeirização” das informações.

Palavras-chave Algoritmos. Algocracia. Bolha informacional. Redes sociais.

Keywords Algorithms. Algocracy. Informational bubble. Social networks.

84 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 § Parágrafo UM JORNALISMO PARA CHAMAR DE MEU? ALGORITMOS E O FENÔMENO DA CUSTOMIZAÇÃO DE NOTÍCIAS

Introdução ção produtor/consumidor de notícias está cada vez mais híbrida e as empresas de comunicação traba- Quando Robert Park (1996) escreveu, na pri- lham hoje em conjunto com a dinâmica das chama- meira metade do século XX, que a notícia é uma for- das redes sociais2 – sistemas pertencentes, prio- ma de conhecimento, a imprensa tradicional exercia ritariamente, a instituições não jornalísticas. Além um papel diferente do que vemos na atualidade. disso, a notícia que lemos hoje também é elaborada Situado entre o saber científico e o senso comum, e consumida em rede. o conhecimento gerado pelos jornais impressos al- cançaria uma dimensão pública. Naquele contexto, Merecem ser destacadas também a fragmenta- o noticiário cumpria, na perspectiva do autor, um pa- ção da audiência; a atuação incisiva dos algoritmos; e pel crucial de orientar a população, de formular uma a possibilidade de customização da informação rece- agenda que chamasse a atenção das pessoas e de bida. Para entender a atuação de tais elementos no informar sobre o que acontecia no mundo. Além dis- cenário de hoje, este trabalho pretende caminhar à luz so, a interpretação das notícias teria ainda outra im- de discussões que passem pela lógica dos algoritmos, portante função: a constituição da opinião pública. pelas imbricações entre redações tradicionais e pro- dução de notícia digital, pela privacidade de dados na De lá para cá, muita coisa mudou. A crise de web. Longe de se adotar uma perspectiva entusiasta confiabilidade nas instituições (inclusive a impren- ou pessimista das plataformas digitais, o que se pre- sa) e o surgimento de outras vias informativas tan- tende é realizar uma discussão que não cometa o des- genciais estremeceram um pouco a centralidade do lize de incorporar um fetiche à técnica, sem inseri-la jornalismo tradicional. em tensionamentos próprios da tessitura social e do Uma das principais transformações nesse ce- consumo de notícia. nário foi o surgimento das tecnologias digitais, mais No primeiro tópico, será apresentada a influ- especificamente a Internet. É sabido que a maior ência dos algoritmos nesse novo cenário. A seguir, parte da informação noticiosa que temos acesso o trabalho evidencia discussões sobre a interação ainda continua nas mãos, principalmente, de con- dos sujeitos com os códigos de programação das glomerados de informação massiva. A lógica ante- redes sociais e serviços digitais noticiosos. Por fim, rior de concentração midiática não mudou comple- apresentam-se possíveis consequências do fenô- tamente. Mas a massificação dos ambientes on-line meno da hipersegmentação jornalística. Mais do complexificou o processo de produção, dissemina- que chegar a resultados a partir de um objeto es- ção e consumo de notícias. pecífico, pretende-se mapear reflexões que possam Para Alex Primo (2011), o que presenciamos servir de ponto de partida para futuras pesquisas hoje é uma mudança estrutural do sistema midiá- que orbitam em torno da temática. tico e um deslocamento do papel das instituições noticiosas – tão centrais no pensamento de Park. Mais de duas décadas depois da chegada da Inter- Os algoritmos e a bolha informacional net comercial ao Brasil, ocorrida em 1995, muitas Já é realidade o fato de que hoje nos informa- questões ainda merecem ser levantadas. Ainda há mos bastante pela Internet, incluindo as redes so- uma considerável lacuna entre a preparação técnica ciais. Segundo o relatório “Reuters Institute Digital dos repórteres e as possibilidades digitais1, a rela- 2 Existem outros termos para se referir a essas plataformas. 1 Conforme o estudo “The state of technology in global news- Para este trabalho, utilizaremos “redes sociais”, apesar de es- rooms”. Disponível em www.icfj.org/reso urces/first-ever-global- tarmos cientes que a genealogia do conceito vai além dos dis- survey-news-tech-reveals-perilous-digital-skills-gap. Acesso positivos hospedados na internet. Para mais, recomendamos a em 01 jan. 2018. leitura de Recuero (2011).

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 85 RAQUEL DORNELAS

News Report 2017”3, a Internet é o segundo meio irá mais publicar na plataforma. A empresa paulista pelo qual o brasileiro obtém dados sobre o que ocor- criticou a não valorização de conteúdo realizado por re no país, perdendo apenas para a televisão. Mais da jornalistas profissionais e admitiu que a decisão foi metade (66%) se informa no ambiente on-line. Quan- influenciada por questões financeiras exigidas pelo to ao tempo de conexão, a população permanece co- Facebook. No comunicado, a Folha cita o projeto Ins- nectada, em média, mais de 4h40 por dia, durante a tant Articles, que sugeria aos veículos transferir todo semana, e mais de 4h30 diariamente aos sábados e o conteúdo para a rede de Zuckerberg, sem ganhar também aos domingos (BRASIL, 2017). qualquer remuneração por isso, com o argumento de Entre as plataformas de comunicação disponí- maior rapidez no carregamento das páginas. veis na web, as redes sociais ganham destaque e o A Folha de S. Paulo lamentou também que a Facebook assume uma posição privilegiada. Criada quase obrigatoriedade de pagamento para exibir em 2004 nos Estados Unidos, é considerada a maior publicações na “vitrine” do Facebook resultará na rede social do mundo, com mais de dois bilhões de hipersegmentação do conteúdo. Tal fato poderia in- usuários. Ocupa também o primeiro lugar entre as tensificar a formação de nichos ideológicos, segun- plataformas da mesma natureza no Brasil, com cerca do a opinião do veículo. “Isso reforça a tendência do de 111 milhões de contas ativas por mês.5 usuário a consumir cada vez mais conteúdo como o O Facebook é também a primeira rede social que qual tem afinidade, favorecendo a criação de bolhas os brasileiros procuram para se informar: 57% dos de opiniões e convicções, a propagação de ‘fake que possuem uma conta a utilizam para ler notícias. news’ [...]” (FOLHA DE S. PAULO, 2018, p. 8). Ou seja, mais da metade dos 111 milhões de perfis Neste ponto, é preciso relembrar que a exibi- estão logados para obter conteúdo jornalístico. Ape- ção de informação em plataformas, como Face- sar de recentes levantamentos (FAAP, 2017; BRA- book, Twitter e Instagram, obedece, principalmen- SIL, 2017)4 apontarem que o Facebook tem perdido te, à lógica dos algoritmos. Trata-se de códigos de audiência para outros serviços, incluindo empresas programação, constantemente atualizados, cuja do mesmo grupo (como Instagram e WhatsApp), os promessa é entregar um conteúdo mais relevante dados ainda comprovam a importância da rede per- para o usuário, dentro do que a plataforma julga ser tencente ao norte-americano Mark Zuckerberg. interessante para eles. Portanto, a maior parte do Segundo anúncio do próprio Facebook, realiza- que vemos em tais ambientes é ditada pelos algorit- do em janeiro de 2018, a empresa tem privilegiado mos – o que ocorre também nos serviços de buscas. a exibição de conteúdo de amigos em detrimento ao Costa (2014) esclarece que o algoritmo das de páginas (pertencentes a figuras públicas, institui- redes sociais pode barrar informações que a pla- ções, causas e veículos de comunicação). Com as taforma julga estar fora de sua política editorial, alterações, a necessidade de impulsionamento (as mesmo que os jornais produtores do conteúdo ori- páginas necessitam pagar para aparecer na timeline) ginal as considerem éticas e importantes. A lógica torna o acesso às notícias ainda mais escasso e seg- de funcionamento dos algoritmos que influenciam mentado. A Folha de S. Paulo5 já comunicou que não na disponibilidade das informações, evidentemen- te, não é transparente. As redes sociais e os aplica- 3 Disponível em http://po.st/lfJFXh. Acesso em 01 jan. 2018. tivos para dispositivos móveis são propriedades de 4 Disponível em http://faap.br/nimd/pdf/ms360faap/MS- empresas privadas que objetivam o lucro e não têm 360FAAP_2018-%2001_Q4.pdf. Acesso em 08 jan. 2018. a obrigação de disponibilizar seu código publica- 5 Disponível em: www1.folha.uol.com.br/poder/2018/02/fol- ha-deixa-de-publicar-conteudo-nofacebook.shtml. Acesso em mente. O segredo tecnológico de cada companhia 08 jan. 2018. garante o diferencial competitivo, a particularidade

86 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 § Parágrafo UM JORNALISMO PARA CHAMAR DE MEU? ALGORITMOS E O FENÔMENO DA CUSTOMIZAÇÃO DE NOTÍCIAS dos serviços prestados e, portanto, sua sustenta- Evidentemente, não é intenção deste trabalho bilidade no mercado. Apesar disso, existem pres- negligenciar o poder de agência dos internautas sões de governos, teóricos e ativistas para demar- frente à tecnologia. Para além dos mecanismos al- car regulamentações quanto ao modo de ação dos gorítmicos, cada um de nós também ativa funções algoritmos e ao fato de como eles podem chegar a que ajudam a dar forma ao “efeito bolha”. Temos, influenciar tomadas de decisões ou consolidar ten- naturalmente, a tendência de nos conectar virtu- dências entre os usuários. almente a pessoas que pensam de forma pareci- Danaher (2016) e O’Neil (2016) são alguns dos da conosco e de conversar sobre tópicos de igual críticos à opacidade dos códigos informacionais. Os concordância. Além disso, podemos facilmente autores tentam alertar para o fato de que estamos deixar de seguir uma conta que forneça conteú- vivendo em uma verdadeira “algocracia”: um cenário do não agradável ou desfazer uma amizade virtual no qual uma infinidade de dados produzidos em mas- com usuários dos quais discordamos. No entanto, sa é coletada, armazenada, rearranjada por códigos somada as nossas intervenções às influências dos de programação, acabando, em algum grau, organi- algoritmos, aumentam as chances de passarmos a zando nossas vidas e o que vemos na Internet. Assim conviver em nichos cada vez mais homogêneos na como Costa, Danaher (2016) destaca que os algo- Internet, potencializando a distância entre os que ritmos produzem impactos no nosso mundo social, pensam diferente de nós. econômico, cultural e político, sob uma perspectiva pouco transparente e inacessível à maior parte da Essas bolhas tendem a isolar os atores dentro de população. Já para O’Neil (2016), a grande questão grupos onde apenas alguns tipos de informação é que tais códigos são programados pelos próprios circulam, criando uma percepção falsa de [esfera humanos e estão, consequentemente, enraizados pública] (onde “todos” falam) e de opinião pública em preconceitos sociais. Tecnologias, assim como (onde a “maioria” concorda). Ao mesmo tempo, os seus desenvolvedores, são falhas e podem come- pesquisas têm demonstrado que a mídia social ter injustiças quando avaliam profissionais, medem a é hoje um dos principais canais informativos do periculosidade de criminosos e decidem se uma in- grande público. Com isso, o silenciamento do formação é útil ou verdadeira, utilizando apenas mé- contraditório pode ter efeitos no posicionamento tricas matemáticas e o sistema binário da tecnologia político e nas próprias instituições democráticas. Esses elementos são particularmente importan- da informação (O’NEIL, 2016). tes em contextos políticos de crise, como o do María Flores Dorda (2017), apesar de versar Brasil atualmente. (RECUERO; ZAGO; SOARES, sobre a temática do consumo musical, ajuda-nos a 2017, p. 2) pensar como os algoritmos de recomendação ofe- recem respostas individualizadas para cada usuário Porém, é preciso relativizar e relembrar que a também no campo noticioso, construindo um mundo aproximação de pessoas com visões de mundo se- informacional virtual etiquetado com a identidade de melhantes e a segmentação de conteúdo informa- cada um, “contendo aspectos como sus gustos, inte- tivo são fenômenos que sempre existiram. Basta reses, datos personales o aficiones” (idem, 2017, p. pensarmos na TV a cabo, com inúmeras opções de 9). Recorrendo a Eli Pariser (2011), Dorda também assuntos que vão desde programas para apaixona- destaca que tal cenário pode ocasionar o “efeito bo- dos por carros até canais de leilões de joias on-li- lha”: tamanha individualização de conteúdo criaria um ne. Cada qual com sua audiência fiel. O jornalismo universo próprio para cada usuário, em vez de contri- também sempre possuiu, em sua natureza, o cará- buir para um mosaico de troca informacional em rede.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 87 RAQUEL DORNELAS ter de personalização de conteúdo. Podemos citar Outras abordagens caminham por uma via dife- tanto os impressos que já nascem segmentados, rente, acreditando na maior possibilidade de diálogo quanto as revistas de moda, de artesanato ou de no ambiente on-line permeado por algoritmos – fala- dicas de alimentação, abrangendo ainda os cader- remos disso adiante. Além disso, não podemos nos nos ou seções separadas, com informações bem esquecer de que a ação dos usuários, como já foi específicas: esportes, cultura, economia e política. dito, é central para o fenômeno da personalização. No entanto, o cenário que se problematiza Tanto em websites quanto nas redes sociais, o in- aqui é outro. A segmentação clássica que o jor- ternauta não é um ente passivo. É o que será trata- nalismo oferecia, até então, possuía certo limite. do na seção a seguir. A revista sobre carros, por exemplo, era direcio- nada tanto para quem estava interessado em sa- Usuário e algoritmo: uma ação conjunta ber sobre os últimos lançamentos quanto para um profissional da área da mecânica que pretendia Ações deliberadas dos usuários podem incre- entender sobre motores. O jornal que trazia o su- mentar o fenômeno da hiperindividualização do con- plemento feminino permitia às leitoras também teúdo. Já em 1995, Negroponte falava sobre o jor- terem contato com o mesmo conteúdo de política nal do futuro, o Daily Me: edições feitas de forma que o restante da família iria ler. A customização totalmente customizadas para cada leitor. Publi- da informação ocorria até certo ponto, mas não cado no mesmo ano em que a Internet comercial alcançava o nível da hiperpersonalização que se chegava ao Brasil, o livro previa um deslocamento percebe hoje. da comunicação de massa para a personalizada, costurado pela ubiquidade da tecnologia digital De acordo com algumas perspectivas, a atu- na vida cotidiana. ação dos algoritmos nas redes sociais e até mes- mo nos portais jornalísticos, tem proporcionado What if a newspaper company were willing to put its novas camadas da individualização da notícia, tor- entire staff at your beck and call for one edition? It nando o conteúdo tão personalizado que poderia would mix headline news with “less important” sto- fragmentar a troca de informações e, consequen- ries relating to acquaintances, people you will see temente, o debate coletivo. tomorrow, and places you are about to go to or have just come from. It would report on companies you Alguns veículos no Brasil e no mundo estão produ- know. In fact, under these conditions, you might be zindo conteúdo específico para cada rede social. Ou willing to pay the Boston Globe a lot more for ten direcionando as reportagens de acordo com o perfil pages than for a hundred pages, if you could be dos consumidores. Fazendo paralelo com os jornais confident that it was delivering you the right subset de papel, é como se as mulheres recebessem em of information. You would consume every bit (so to casa apenas o suplemente feminino, as crianças o speak). (NEGROPONTE, 1995, p. 153) infantil e os homens o caderno de esportes. Refor- çando estereótipos, preconceitos e bolhas digitais. Alinhada a essa discussão, um vocábulo pou- Nesse ritmo, no futuro, podemos pensar em enviar co usual no campo jornalístico tem sido agora am- certo tipo de notícia para os eleitores do Bolsonaro plamente usado: bricolagem. O termo se refere ao e um outro, completamente diferente, para os que trabalho manual e é encontrado no âmbito das be- acreditam no Lula. É o velho e amarelado papel so- las artes, arquitetura e até no artesanato. A palavra cial do jornalista sendo trocado pela audiência das também já apareceu em discussões sobre jornalis- redes sociais no papel. (VIEIRA, 2017, n.p.) mo, mas com outra conotação. Segundo Charron,

88 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 § Parágrafo UM JORNALISMO PARA CHAMAR DE MEU? ALGORITMOS E O FENÔMENO DA CUSTOMIZAÇÃO DE NOTÍCIAS

Damian-Gaillard e Travancas, o trabalho da impren- Duas empresas, que não são do ramo jornalístico, sa é realizado criaram recursos que permitem ao leitor elaborar o seu próprio noticiário e recebê-lo literalmente na [...] mais ou menos livremente através da ajuda dos palma das mãos. A Apple News e o Google News colegas, dos conhecimentos práticos, das linhas são ferramentas concorrentes, mas que possuem do métier, do know-how. A organização empírica do funcionamento e objetivos bastante semelhan- trabalho jornalístico inclui uma parte de bricolagem tes. Ambas permitem que o usuário dos sistemas e de artesanato. (CHARRON; DAMIAN-GAILLARD; iOS e Android coletem notícias de veículos par- TRAVANCAS, 2014, p.15) ceiros e agrupem-nas em dispositivos móveis, como celulares e tablets. Entre as configurações Mas, recentemente, o termo tem sido acionado de customização, o leitor pode filtrar o conteúdo para se referir ao esforço do cidadão comum (não por região e idioma, gerenciar e modificar, a qual- o jornalista profissional) em construir um mosaico quer momento, seus assuntos de interesses, além de informações de seu interesse, a partir do que ele de indicar preferências de fontes. encontra on-line. Poderíamos dizer que o trabalho Atualmente, a Apple News está disponível ape- é quase artesanal – se não fosse a ajuda das pla- nas nos Estados Unidos, Austrália e Grã-Bretanha, taformas digitais que auxiliam no processo. Se na mas a companhia fundada por Steve Jobs oferece década de 2000, a internet presenciou mudanças widgets (pequenas extensões) para que usuários na distribuição de informações, os anos 2010 pare- de outros países possam usufruir do recurso. Já o cem ter dado uma guinada na lógica de organização Google News também está disponível na versão e curadoria de tais dados. para desktop. Só no Brasil, o aplicativo já foi baixa- Pollyana Ferrari (2007) utiliza o termo bricola- do por mais de 100 milhões de pessoas e promete gem para se referir à vitrine de informações agrupa- oferecer cobertura noticiosa de mais de 75 periódi- das, dando destaque para o uso do hipertexto. Segun- cos, vinda de 60 países, além de permitir as confi- do a autora, os dados ligados em redes virtuais podem gurações de personalizações semelhantes a do seu formar uma memória coletiva, em oposição à memória principal concorrente. fragmentada. As formas hipertextuais permitiriam ao Existem outras iniciativas dessa natureza e lis- usuário, portanto, fornecer acesso “a arquivos pesso- tar todas fugiria ao escopo deste trabalho. O impor- ais e coletivos, todos remixados em uma eterna brico- tante é frisar que a maioria funciona sob a mesma lagem de narrativas, que podem ser textuais, imagéti- lógica. Como a própria Apple explica, tais platafor- cas, audíveis ou sensoriais” (FERRARI, 2007, p. 84). mas prometem que “you’re only informed about the Ferrari adota uma perspectiva, a nosso ver, de- stories you care about most”, ou de acordo com o masiadamente otimista com relação à internet, mas Google, você terá “sua própria sala de redação per- o fragmento acima nos ajuda a pensar que a brico- sonalizável em tempo real”. Temos à frente um dis- lagem de informações permite ao usuário voltar-se curso que apela para a economia de tempo, para a para um conjunto de informações já disponíveis no individualização (tratada como sinônimo de qualifi- ambiente virtual e constituir, gradativamente, uma cação) da informação recebida e para o maior reco- espécie de inventário de conteúdo que lhe ajude nhecimento cognitivo e emocional do leitor com os ou lhe interesse de alguma forma individualmente – fatos do dia. uma verdadeira colagem de bits. Uma questão que se levanta entre alguns es- Para ilustrar o assunto, há o exemplo se ini- tudiosos do tema é: tal grau de customização pode ciativas de dois gigantes do setor tecnológico. provocar certo isolamento dos atores sociais no de-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 89 RAQUEL DORNELAS bate coletivo, prejudicando as decisões públicas e o Neste ponto, realiza-se um paralelo com a dis- diálogo entre aqueles que assumem posicionamen- cussão de Kera (2017). Ao versar sobre a cultura tos diferentes? maker, do software livre e do “faça você mesmo”, a autora teme que a criatividade descentralizada, típi- Existem consequências para um ca dessa cultura, possa na verdade nutrir uma agen- da isolacionista. debate coletivo? No fim de 2017, Chamath Palihapitiya, ex-vice- Como já foi mencionado, a segmentação de no- -presidente do Facebook, afirmou que se arrepende tícias sempre existiu. O que pode ser considerado de ter trabalhado na empresa e que a rede estaria novo no horizonte são o grau da customização e o dividindo a sociedade, prejudicando um debate co- fato do consumo de informação (inclusive noticiosa) operativo. “The short-term, dopamine-driven feed- estar sendo realizado em dispositivos que, além de back loops that we have created are destroying how não serem jornalísticos, estão imunes à regulamen- society works: no civil discourse, no cooperation, tação que rege os meios de comunicação tradicio- misinformation, mistruth” (PALIHAPITIVA, 2017).8 nais, como o rádio e a televisão. Quando entramos Em contrapartida às visões mais críticas, As- no mérito das redes sociais, estamos falando de sunção et al (2015) sublinham que, mesmo com as companhias (não noticiosas) responsáveis por nu- possibilidades de segmentação, as redes sociais trir e hierarquizar informações (noticiosas) para uma são mais suscetíveis à diversidade política, em fun- parcela considerável da população. A informação ção da amplitude das conexões e do fato dos usu- está nas mãos de conglomerados que, a princípio, ários terem a oportunidade de interagir com atores não são de conteúdo, mas sim de tecnologia – com pertencentes a outros círculos, dentro e fora de alto poder de investimento. As cinco empresas mais suas redes mais próximas. Ao abordar a temática valiosas no mundo são justamente a Apple, o Goo- das campanhas eleitorais on-line, por exemplo, os gle, a Microsoft, a Amazon e o Facebook6. autores acreditam que as funcionalidades de tais Entre as abordagens que se preocupam com plataformas podem agregar pessoas com interes- o cenário acima, a questão central passa pelo ses distintos, aproximando-as de assuntos outrora entendimento de como tais empresas atuam: os não familiares. dados coletados dos usuários são também insu- mos para a “financeirização”7 do ramo da comuni- As redes sociais, inseridas num contexto de lazer cação, objetivando lucros no mercado de deriva- cotidiano, podem promover a exposição a conteúdo tivos (MARTIN, 2013; ROSSI, 2011; BRAYAN e por parte de cidadãos que não estão particularmen- RAFFERTY, 2014). As informações dos usuários, te interessados, contribuindo para reduzir lacunas incluindo reações, tendências e gostos, são agru- de conhecimento. (ASSUNÇÃO, et al, 2015, p. 21) padas em commodities com probabilidades de lucros, se tornando produtos virtuais comerciali- Evidentemente seria inocente reduzir a ideia zados nas bolsas de valores. de esfera pública contemporânea ao ambiente vir- tual. O campo midiático, incluindo as redes sociais, 6 Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/03/ não se constitui como o lugar único da pluralidade economia/1509714366_037336.html. Acesso em 07 jan. 2018. de vozes em discussão, mas sim como um agente 7 Termo utilizado pelos próprios autores, incluindo a tradução que também tem interesses específicos, atuando encontrada em Rossi (2011). O vocábulo denota o fenômeno da difusão da lógica do mercado de valores para setores e prá- 8 Disponível em: www.youtube.com/watch?v=PMotykw0SIk. ticas da vida social que estão além da esfera econômica. Acesso em 17 jan. 2018.

90 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 § Parágrafo UM JORNALISMO PARA CHAMAR DE MEU? ALGORITMOS E O FENÔMENO DA CUSTOMIZAÇÃO DE NOTÍCIAS junto a outros poderes em tensão. Apesar disso, não fenômeno da noticiabilidade. Na verdade, os códigos se pode negar que, em uma sociedade midiatizada ajudariam a remodelar as práticas humanas (a dos jor- (BRAGA, 2006), os meios de comunicação, mesmo nalistas), introduzindo novos insights, constrangimen- os não noticiosos por excelência, podem ser consi- tos, possibilidades e formas de agenciamento. derados um dos espaços privilegiados para conver- sação coletiva. Aldé e Marques (2015) sublinham Considerações finais essa influência da Internet em decisões políticas. A hipercustomização do noticiário, pela ação Embora as ferramentas de comunicação digital dos atores sociais em conjunto com os algoritmos, componham apenas uma parte de todo o aparato faz emergir algumas reflexões. A Internet, que em midiático [...], o comportamento do eleitor é afetado seus primórdios trazia lampejos de uma maior mul- pelo perfil de sua rede de contatos e pelos conteú- tiplicidade de vozes, também é palco para conflitos dos aos quais ele é exposto [...] (ALDÉ; MARQUES, discursivos, tendo sido, em grande parte, incorpora- 2015, p. 7). da ao ethos das grandes corporações capitalistas. Talvez outro caminho fosse mais difícil, devido à ne- Bucher (2017) traz à tona uma perspectiva oti- cessidade de alto investimento financeiro para ligar mista, mostrando que a ação dos algoritmos pode milhares de dispositivos por todo o mundo. auxiliar no trabalho da imprensa. Ao entrevistar profis- Ao se inserir em uma rede social, os usuários sionais nas redações acerca da relação entre jornalis- concordam, em tese, com o modus operandi de tais mo e tecnologias da informação, a autora encontrou plataformas, ao aceitar espontaneamente os termos afirmações que defendem o fato dos algoritmos não e condições de uso dos serviços digitais. No entanto, agirem isolados no processo de agenciamento da no- tal conformidade nem sempre está 100% clara na tícia. Alguns acontecimentos seriam tão amplamente mente dos internautas, seja por falta de motivação importantes que a intervenção humana, ao publicá- para ler os extensos acordos ou mesmo pelo não en- -los, ultrapassaria qualquer ação técnica. Assim, tec- tendimento dos vocábulos técnicos contidos em tais nologia e olhar humano trabalhariam em conjunto para “contratos”. Segundo levantamento realizado pela da manter a população informada sobre os principais fa- Folha de S.Paulo, a leitura dos termos de uso de al- tos que ocorrem no mundo. guns dos serviços mais populares leva cerca de 4,5 horas para ser finalizada.9 The case of Omni, in particular, shows that the compu- Mesmo ciente de todas as regras, o usuário tem tational is much more than a tool or a means to an end. mais possibilidades de ser lesado do que as gran- Rather, the computational is something to think with, des companhias. Em março de 2018, dados de 87 and to be oriented towards. Far from just a passive milhões de contas do Facebook foram coletados e thing operating in the background, the news-ranking utilizados de forma ilegal pela empresa Cambridge algorithm of Omni also seems to impact the ways in Analytica que atua, entre outras frentes, com mape- which editors appoint the newsworthiness of a partic- amento de perfis eleitorais. ular story to better accommodate its overall perfor- A relação entre usuário e os conglomerados tam- mance within the system. (BUCHER, 2017, p. 927). bém se mostra assimétrica quando tocamos na ques- A autora ressalta que as entrevistas com os pro- fissionais nas redações mostraram que não há um via 9 Disponível em: www1.folha.uol.com.br/ tec/2017/12/1945132-leitura-de-termos-e-condicoes-de- de mão única, pela qual o algoritmo se sobreporia do servico s-na-internet-exige-45-horas.shtml. Acesso em 17 abr. 2018.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 91 RAQUEL DORNELAS tão do fluxo dos dados. Ziegeldorf, Morchon e Wehrle andamento e alertar para possíveis implicações (e (2014), ao versar sobre a “Internet das coisas”, alertam riscos). Muito mais do que estimular uma dicotomia para o percurso obscuro que as informações realizam entre organizações de tecnologia e empresas no- no ambiente virtual. Além das legislações sobre privaci- ticiosas, pretendemos provocar os pesquisadores dade na internet serem diferentes entre si e até inexis- em Comunicação a pensar na interlocução entre os tente em alguns locais, os dados individuais caminham vários entes (humanos e não humanos) envolvidos por trilhas difíceis de serem rastreadas. Existe ainda a nessa relação e nos novos arranjos que se organizam possibilidade de quebra da criptografia de informações na confecção de noticiários segmentados. É preci- anônimas. Os dados pessoais passam por sistemas so continuar refletindo sobre a relação jornalismo e controlados por diferentes empresas, cada uma com leitor, sobre o poder de agenciamento da imprensa sua própria política de privacidade. Quando se acessa tradicional e sobre as noções de interesse público uma rede social, por exemplo, são expostas informa- e interesse do público, mediante a popularização de ções privadas para a própria companhia criadora da noticiários tão individualizados. plataforma, mas também para o provedor da rede de Internet, para o proprietário dos canais de fibra ótica e Referências outros entes envolvidos na coleta, distribuição e orga- nização dos dados. Um simples acesso à web depende ALDÉ, Alessandra; MARQUES, Francisco Paulo Ja- de vários sistemas que agem em integração, mas cujos mil Almeida (Orgs.). In: Internet e poder local. Salva- parâmetros de segurança da informação são pouco dor, Rio de Janeiro: Edufba, 2015. transparentes – sem considerarmos ainda vazamentos ASSUNÇÃO, Alysson et al. Estratégias de campa- acidentais, ataques de terceiros ou espionagem. nha política on-line: Marcelo Freixo nas eleições para Tais questões colocadas não pretendem clamar a prefeitura do Rio de Janeiro em 2012. In: ALDÉ, por um abandono em massa aos serviços digitais – Alessandra; MARQUES, Francisco Paulo Jamil Al- seja para construir um noticiário customizado, seja meida (Orgs.). Internet e poder local. Salvador, Rio de para qualquer outra finalidade. O que se pretende Janeiro: Edufba, p.13-48, 2015. é chamar a atenção para a urgência de tornar mais transparentes e compreensíveis as formas pelas BRAGA, José Luiz. Mediatização como processo in- quais podemos ser afetados pela coleta de dados e teracional de referência. Animus. Santa Maria, n. 2, p. pela ação dos algoritmos. 9-35, 2006, 5 v. As plataformas on-line são extremamente im- BRASIL. Secretaria Especial de Comunicação Social portantes para a dinâmica social de hoje. A utilização da Presidência da República. Pesquisa brasileira de de um aplicativo, de uma rede social ou de um websi- mídia 2016: hábitos de consumo de mídia pela popu- te permite que diferentes atores se conectem, inte- lação brasileira. Brasília: SECOM, 2017. rajam, vivenciem múltiplas experiências, consumam e ajudem a produzir notícias. Seria apressado dizer, BRAYAN, Dick; RAFFERTY, Michael. Financial deriva- como propõem os mais pessimistas, que o ofício do tives as social policy beyond crisis. Sociology. n. 5, p. jornalismo está desaparecendo – até porque os pró- 887-903, 2014, 48 v. prios veículos de comunicação têm utilizado as redes BUCHER, Taina. Machines don’t have instincts: artic- sociais e outros serviços digitais para disseminar sua ulating the computational in journalism. New Media & produção autoral. Society, n. 6, p. 918-933, 2017, 19 v. A reflexão que se encerra aqui tem como obje- tivo nada mais do que apresentar um fenômeno em CHARRON, Jean; DAMIAN-GAILLARD, Béatrice;

92 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 § Parágrafo UM JORNALISMO PARA CHAMAR DE MEU? ALGORITMOS E O FENÔMENO DA CUSTOMIZAÇÃO DE NOTÍCIAS

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Raquel Dornelas – Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]

Recebido: 17 mar. 2018 Aprovado: 01 maio 2018

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 83-93, jan./abr. 2018 93

A relevância dos algoritmos*

The relevance of algorithms

Tarleton Gillespie Cornell University Ithaca, NY, Estados Unidos da America

* Artigo publicado originalmente por Tarleton Gillespie sob o título “The relevance of algorithms”, no livro Media Technologies: Es- says on Communication, Materiality, and Society (MIT Press, 2014). Traduzido por Amanda Jurno mediante autorização do autor e da editora. Revisão: Carlos d’Andréa

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 95 TARLETON GILLESPIE

Resumo Abstract Algoritmos (particularmente aqueles utilizados pe- Algorithms (particularly those embedded in search los mecanismos de busca, plataformas de mídia so- engines, social media platforms, recommendation cial, sistemas de recomendação e bases de dados) systems, and information databases) play an increa- exercem uma função crescentemente importante singly important role in selecting what information is em selecionar qual informação deve ser considerada considered most relevant to us, a crucial feature of mais relevante para nós, uma característica crucial our participation in public life. As we have embraced da nossa participação na vida pública. À medida que computational tools as our primary media of expres- assumimos as ferramentas computacionais como sion, we are subjecting human discourse and know- nossa forma primária de expressão, sujeitamos ledge to the procedural logics that undergird com- discurso e conhecimento humanos às lógicas de putation. What we need is an interrogation of algori- procedimento que sustentam a computação. Pre- thms as a key feature of our information ecosystem, cisamos questionar os algoritmos como elementos and of the cultural forms emerging in their shadows, chave de nosso sistema informacional e das formas with a close attention to where and in what ways the culturais que emergem de suas sombras. Devemos introduction of algorithms into human knowledge ter especial atenção sobre onde e de que forma a practices may have political ramifications. This es- introdução dos algoritmos nas práticas do conhe- say is a conceptual map to do just that. It proposes cimento humano podem levar a ramificações políti- a sociological analysis that does not conceive of al- cas. Este artigo oferece um mapa conceitual para gorithms as abstract, technical achievements, but fazer isso. Ele propõe uma análise sociológica que suggests how to unpack the warm human and ins- não concebe os algoritmos como algo abstrato ou titutional choices that lie behind them, to see how façanha técnica, e sim sugere como revelar as esco- algorithms are called into being by, enlisted as part lhas humanas e institucionais que estão por trás de of, and negotiated around collective efforts to know suas elaborações. O objetivo é verificar como os al- and be known. goritmos são convocados, recrutados e negociados como parte de esforços coletivos para conhecer e se tornar conhecido.

Palavras-chave Algoritmos. Plataformas. Mecanismos de busca. Conhecimento. Participação.

Keywords Algorithms. Platforms. Search engines. Knowledge. Participation.

96 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS

Introdução FFEY, 2008, p. 17). Podemos pensar, portanto, que os computadores são fundamentalmente máquinas Os algoritmos desempenham um papel cada algorítmicas - projetadas para armazenar e ler da- vez mais importante na seleção das informações dos, aplicar procedimentos matemáticos de forma consideradas de maior relevância para nós, um as- controlada e oferecer novas informações como pecto fundamental da nossa participação na vida resultado. Porém tratam-se de procedimentos que pública. As ferramentas de busca nos ajudam a poderiam ser feitos manualmente - e, de fato, eram navegar em grandes bases de dados ou por toda feitos (LIGHT, 1999). a web. Os algoritmos de recomendação mapeiam nossas preferências em relação a outros usuários, Mas, à medida que adotamos ferramentas com- trazendo ao nosso encontro sugestões de fragmen- putacionais como nossos principais meios de expres- tos novos ou esquecidos da cultura. Eles gerenciam são e passamos a fazer não só da matemática mas as nossas interações em sites de redes sociais, de toda a informação “digital”, passamos a sujeitar o destacando as novidades de um amigo enquanto discurso e o conhecimento humano a essas lógicas excluem as novidades de outro. procedimentais que sustentam toda a computação. E há implicações específicas quando usamos algorit- Os algoritmos projetados para calcular o que mos para selecionar o que é mais relevante a partir de “está em alta”, o que é “tendência” ou o que é “mais um corpus de dados composto por rastros das nossas discutido” nos oferecem uma camada superficial atividades, preferências e expressões. das conversas aparentemente sem fim que estão disponíveis. Juntos, eles não só nos ajudam a en- Esses algoritmos, os quais chamaremos de al- contrar informações, mas nos fornecem meios para goritmos de relevância pública, estão - através dos saber o que há para ser conhecido e como fazê- mesmos procedimentos matemáticos - produzindo -lo; a participar dos discursos sociais e políticos e e certificando conhecimento. A avaliação algorítmi- de nos familiarizarmos com os públicos dos quais ca da informação, assim, representa uma lógica de participamos. Além disso, são hoje uma lógica cen- conhecimento particular baseada em suposições tral que controla os fluxos de informação dos quais específicas sobre o que é o conhecimento e como dependemos, com o “poder de possibilitar e atribuir alguém deveria identificar seus componentes mais significados, gerenciando como a informação é per- relevantes. O fato de estarmos recorrendo a algorit- cebida pelos usuários, a ‘distribuição do sensível’” mos para identificar o que precisamos saber é tão (LANGLOIS, 2013). marcante quanto termos recorrido aos especialis- tas credenciados, ao método científico, ao senso Os algoritmos não são necessariamente sof- comum ou à palavra de Deus. twares: em seu sentido mais amplo, são procedi- mentos codificados que, com base em cálculos O que precisamos é um questionamento dos específicos, transformam dados em resultados algoritmos enquanto elemento central do nosso desejados. Os procedimentos dão nome tanto ao ecossistema informacional (ANDERSON, 2011), problema quanto aos passos pelos quais ele preci- e das formas culturais que emergem às suas som- sa passar para ser resolvido. Podemos considerar bras (STRIPHAS, 2010), prestando atenção espe- como algoritmos, por exemplo, instruções de nave- cialmente em como e onde a introdução desses gação ou fórmulas matemáticas usadas para prever algoritmos nas práticas de conhecimento humano o movimento de um corpo celestial. “Algoritmos fa- podem ter ramificações políticas. Este ensaio é um zem coisas e sua sintaxe incorpora uma estrutura mapa conceitual exatamente pra isso. Aqui destaco de comando para permitir que isso aconteça” (GO- seis dimensões dos algoritmos de relevância públi- ca que têm valor político:

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 97 TARLETON GILLESPIE

1. Padrões de inclusão: as escolhas por trás Pode ser sedutoramente fácil interpretar tudo do que gera um índice, em primeiro lugar; o isso de forma errada. Na tentativa de dizer algo que é excluído; e como os dados são prepa- relevante sobre como os algoritmos transformam rados para o algoritmo. o discurso público, devemos resistir firmemente 2. Ciclos de antecipação: as implicações das à tentação de tratar a tecnologia como condutora tentativas dos provedores dos algoritmos nas explicações. Ainda que recentes estudos socio- de conhecer a fundo e prever completa- lógicos sobre a internet tenham se dedicado a des- mente os seus usuários; e como importam fazer um determinismo tecnológico simplista que as conclusões às quais eles chegam . contaminou trabalhos anteriores, este determinis- mo continua a ser uma instância analítica atraente. 3. Avaliação de relevância: os critérios pelos Uma análise sociológica não deve conceber os al- quais os algoritmos determinam o que é re- goritmos como realizações técnicas abstratas, mas levante; como esses critérios nos são ocul- desvendar as escolhas humanas e institucionais tados; e como eles implementam escolhas que estão por trás desses mecanismos frios. Sus- políticas acerca de um conhecimento con- peito que uma abordagem mais frutífera seria nos siderado apropriado e legítimo. voltarmos tanto para a sociologia do conhecimento, 4. A promessa da objetividade algorítmica: a quanto para a sociologia da tecnologia - para obser- maneira como o caráter técnico do algo- varmos como essas ferramentas são convocadas, ritmo é situada como garantia de impar- alistadas como parte de, e negociadas em torno de cialidade; e como essa alegação é mantida esforços coletivos para conhecer e se tornar conhe- diante de controvérsias. cido. Isso pode nos ajudar a revelar que algoritmos 5. Entrelaçamento com a prática: como os aparentemente sólidos são, de fato, realizações frá- usuários reconfiguram suas práticas para geis. Também deve nos lembrar que os algoritmos se adequar aos algoritmos dos quais de- são hoje tecnologias de comunicação; assim como pendem; e como podem transformar algo- as tecnologias de transmissão e de publicação, eles ritmos em espaços de disputa política, às são hoje “instrumentos científicos da sociedade em vezes até mesmo para questionar as políti- geral” (GITELMAN, 2006, p. 5) e estão envolvidos e cas do próprio algoritmo. influenciando as maneiras pelas quais ratificamos o 6. A produção de públicos calculados: como a conhecimento para a vida cívica, porém de maneiras apresentação algorítmica dos públicos, para mais “protocológicas” (GALLOWAY, 2004) - ou or- eles mesmos, molda uma noção de si des- ganizadas computacionalmente para dizer de outro se público; e quem está em melhor posição jeito - do que qualquer outro meio anteriormente. para se beneficiar desse conhecimento.

Considerando a rapidez com que mudam es- Padrões de inclusão tas tecnologias e os usos que são feitos delas, Os algoritmos são máquinas inertes e sem esta lista deve ser vista como provisória e não sentido até serem combinados com bancos de como completa. Mas a meu ver, acredito que es- dados para com eles funcionar. Uma pesquisa so- sas sejam as linhas de pesquisa mais importantes ciológica sobre um algoritmo deve sempre levar para compreender os algoritmos enquanto ferra- em consideração os bancos de dados aos quais mentas emergentes para o conhecimento e dis- ele está ligado; não fazê-lo seria o mesmo que es- curso públicos. tudar o que foi dito em um protesto público, sem

98 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS perceber que alguns dos protestantes foram bar- Compreender o que está incluído nesses ban- rados na entrada do parque. cos de dados requer atenção às políticas de coleta Para os usuários, algoritmos e bancos de da- dos serviços de informação, mas também deveria dos são conceitualmente conjugados: usuários se estender para além das práticas efetivamente geralmente os tratam como um único mecanismo envolvidas. Não só para detectar casos de má con- em funcionamento. E, aos olhos do mercado, os duta, embora existam alguns, mas para entender criadores da base de dados e os provedores do como um provedor de informações pensa sobre a algoritmo são geralmente os mesmos, ou traba- coleta de dados que empreende. A resistência polí- lham em consonância econômica e, muitas vezes, tica ao projeto StreetView do Google, na Alemanha ideológica. “Juntos, estruturas de dados e algo- e na Índia, lembra-nos que a resposta à pergunta ritmos são, para um computador, as duas meta- “Como é esta esquina?” tem diferentes implicações des da ontologia do mundo” (MANOVICH, 1999, para pessoas que querem ir até aquela esquina, para p. 84). No entanto, podemos tratar os dois como pessoas que moram lá e para pessoas que acredi- analiticamente distintos: antes que os resultados tam que essa informação não deveria ser disponi- possam ser fornecidos algoritmicamente, a infor- bilizada publicamente. Essa resposta também nos mação deve ser coletada, preparada para o algo- revela o que o Google pensa sobre o que é “público”, ritmo e, às vezes, excluída ou rebaixada. uma interpretação que está sendo amplamente im- plantado através do serviço prestado pela empresa. Coleção Preparada para o algoritmo Vivemos em um momento histórico no qual, mais do que nunca, quase todas as atividades “Dado bruto é um oxímoro” (GITELMAN, JA- públicas incluem o armazenamento de extensos CKSON, 2013). Os dados já vêm dissecados e registros, catalogação e arquivamento de docu- persistentemente bagunçados. Contudo, existe mentos - e fazemos isso ainda mais nas redes de uma ordem premeditada necessária para que os comunicação projetadas de tal forma que cada algoritmos possam funcionar com esses dados. entrada, cada página visualizada e cada clique Mais do que qualquer coisa, os algoritmos são deixe um rastro digital. Transformar tais rastros projetados e apreciados para serem funcional- em bases de dados envolve um conjunto comple- mente automáticos; para, quando acionados, agi- xo de técnicas de informação (STALDER, MAYER, rem sem qualquer intervenção ou supervisão re- 2009): o Google, por exemplo, rastreia os sites de gular de humanos (WINNER, 1977). Isso significa indexação da web e seus metadados. Ele digitali- que as informações dos banco de dados devem za as informações do mundo real, de acervos de ser transformadas e institucionalizadas de tal for- bibliotecas a imagens de satélite ou registros fo- ma que os algoritmos possam agir sobre elas au- tográficos de ruas da cidade; convida os usuários tomaticamente. Os dados devem ser “imaginados a fornecerem seus detalhes pessoais e sociais e enunciados em contraste com a continuidade como parte de seu perfil no Google+; mantém re- dos fenômenos” (GITELMAN, JACKSON, 2013). gistros detalhados de cada pesquisa realizada e Reconhecer quais são as formas pelas quais os cada resultado clicado; adiciona informações com dados são “limpos” é um importante contraponto base na localização de cada usuário; armazena os para a aparente automaticidade dos algoritmos. rastros das experiências de navegação na web Assim como é possível conhecer sobre escultu- reunidas via suas redes massivas de publicidade. ras, estudando seus moldes invertidos, podemos

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 99 TARLETON GILLESPIE entender mais sobre os algoritmos ao analisar- dly1 desapareceram instantaneamente das listas de mos de perto como as informações são orienta- vendas do site da Amazon porque foram acidental- das para enfrentá-los, como elas são preparadas mente categorizados como “adultos”. Naturalmente, para o algoritmo. sistemas informacionais complexos como esses Nas primeiras arquiteturas de banco de dados, estão propensos a erros. Mas esse erro em particu- a informação era organizada em hierarquias rigoro- lar também nos revelou que o algoritmo da Amazon, sas e, como foi revelado, inflexíveis. Com o desen- que calcula a “lista dos livros mais vendidos”, é ins- volvimento das arquiteturas relacionais e orienta- truído a ignorar livros categorizados como adultos. das aos objetos, as informações puderam ser orga- Ou seja, mesmo na ausência de erros, qualquer que nizadas de maneira mais flexíveis, onde é possível seja o critério usado pela Amazon para determinar associar os bits de dados de várias formas uns com o que é considerado “adulto”, ou não, está sendo os outros, as categorias podem mudar ao longo do aplicado e reificado - e se torna aparente apenas na tempo e os dados podem ser explorados sem ser inexplicável ausência de alguns livros da lista e na preciso navegar ou mesmo entender a estrutura presença de outros. hierárquica na qual eles estão arquivados. As im- plicações sociológicas dos designs dos bancos de Exclusão e rebaixamento dados têm sido amplamente ignoradas; mas é preci- so ter em mente que os estilos das bases de dados Embora os produtores de banco de dados criaram políticas, além de apenas criar ferramentas compartilhem o apetite pela coleta de informações, informacionais essenciais para o funcionamento eles se distinguem mais pelo que escolhem excluir. dos algoritmos. Como Rieder (2012) observa, com a ampla aceitação dos bancos de dados relacionais O arquivo, ao lembrar tudo e apenas certo conjunto surge uma “ontologia relacional” que entende os de fatos / descobertas / observações, consistente dados como atomizados, “objetos regulares, unifor- e ativamente se envolve no esquecimento de ou- mes e apenas vagamente conectados que podem tros conjuntos. Assim, a força impositiva do arquivo ser requisitados de maneiras potencialmente ili- opera através da exclusão invisível. A invisibilidade é uma característica importante nesse caso: o ar- mitadas quando recuperadas”, deslocando assim o quivo se apresenta como o conjunto de todas as poder expressivo do design estrutural do banco de declarações possíveis, ao invés da lei do que pode dados para a busca. ser dito (BOWKER, 2006, p. 12-14). Porém, mesmo com esses bancos de dados mais flexíveis, a categorização continua a ser de Mesmo nas condições atuais de abundância di- vital importância para seu design e seu gerencia- gital (KEANE, 1999), em que é mais barato e mais mento. O processo de categorização é uma pode- fácil errar mantendo as informações, sempre há rosa intervenção semântica e política: quais são as uma sobra. categorias, o que pertence a elas e quem decide Os sites podem, eles próprios, se recusarem como implementá-las na prática, são todas asser- a ser indexados pelos coletores de dados (como ções poderosas sobre como as coisas são e como ferramentas de busca, por exemplo). Elmer (2009) elas devem ser (BOWKER; STAR, 2000). Uma vez revela que o robot.txt, um trecho de código que instituída, uma categoria desenha uma demarcação que será tratada com reverência por um futuro algo- 1 Nota da tradutora: o termo “gay-friendly” não costuma ser ritmo. Como exemplo, trazemos o incidente #ama- traduzido para português e é usado em referência a lugares ou conteúdos que são receptivos e/ou voltados para os membros zonfail. Em 2009, mais de 157 mil livros gay-frien- da comunidade LGBT.

100 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS previne uma página ou site de ser indexado por fer- de debate viável, legitimidade e decoro. Mas nes- ramentas de busca, apesar de ter sido projetado te caso, os algoritmos podem ser apresentados inicialmente como uma ferramenta para preservar como automáticos, já que são os padrões de in- a privacidade dos criadores individuais, tem sido clusão nos bancos de dados que pré-determinam usado por instituições governamentais como uma o que vai ou não aparecer entre seus resultados. forma alternativa de “reter” documentos públicos da apreciação do público. Mas além da auto-exclusão, Ciclos de antecipação algumas informações coletadas inicialmente são subsequentemente removidas antes mesmo que Algoritmos de busca determinam o que ofe- um algoritmo chegue até elas. Apesar de os servi- recer com base nas informações do usuário. Mas ços de informação em larga-escala se gabarem por a maioria das plataformas hoje faz do seu negó- serem abrangentes, esses sites são, e sempre de- cio saber mais, muito mais, sobre o usuário do que vem ser, censores de informações também. Dados apenas a pesquisa que ele acabou de fazer. Os si- indexados excluem spams e vírus; vigiam violação tes esperam ser capazes de antecipar o usuário de direitos autorais e pornografia; e retiram o que é quando o algoritmo é acionado, o que requer tanto obsceno, condenável ou politicamente controverso o conhecimento coletado naquele momento, quan- das bases de dados (Gillespie no prelo). to o conhecimento já acumulado sobre o usuário e Conteúdos ofensivos podem ser simplesmen- sobre outros usuários considerados parecidos com te removidos dos dados indexados, ou uma conta ele em termos estatísticos e demográficos (BEER, pode ser suspensa, antes mesmo de chegar ao co- 2009) - unindo o que Stalder e Mayer (2009) cha- nhecimento de outro usuário. Contudo, junto com o mam de “segundo índice”. Se podemos dizer que as algoritmo, é possível lidar com conteúdos proble- emissoras de TV e Rádio forneciam não só conteú- máticos de formas mais sutis. O YouTube “rebaixa do para as audiências, mas também audiências para algoritmicamente” vídeos provocantes para que não os anunciantes (SMYTHE, 2001), podemos dizer apareçam nas listas dos mais assistidos ou na pá- também que os provedores digitais não apenas for- gina inicial gerada para novos usuários. O Twitter necem informações para os usuários, mas usuários não censura conteúdos profanos de tuítes públicos, para seus algoritmos que são feitos e refeitos a mas ele os remove da avaliação algorítmica que de- cada momento de uso, porque cada clique e cada termina quais termos figuram nos “Trending”. busca incrementam a ferramenta. Os padrões específicos pelos quais as infor- Muitos dos estudos sobre coleta de dados e mações são excluídas ou incluídas nos bancos de práticas de rastreamento dos provedores de infor- dados, e depois gerenciadas de maneiras particu- mação contemporâneos têm focado em questões lares, são reminiscências dos debates do século importantes sobre privacidade provocadas por eles. XX (TUSHNET, 2008) sobre as formas em que Zimmer (2008) argumenta que as ferramentas de as decisões feitas pela mídia comercial sobre o busca não só pretendem incessantemente indexar que deve ser sistematicamente deixado de fora a web mas também desenvolver uma “coleta per- e quais categorias de fala simplesmente não se feita” de tudo relativo aos seus usuários. Para fazer qualificam podem moldar a diversidade e o cará- isso, os provedores de informação precisam não só ter do discurso público. Essas escolhas, sejam rastreá-los, mas construir infraestruturas técnicas e feitas por um editor de jornal ou pelos mecanis- modelos de negócio que conectem sites individuais em um pacote de serviços (como as várias ferra mos de indexação de uma ferramenta de pesqui- - sa, ajudam a estabelecer e a confirmar padrões mentas e serviços do Google) ou em um ecossiste-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 101 TARLETON GILLESPIE ma ainda mais amplo (como com o “social graph” do de sombra” ao enfatizar alguns aspectos dos seus Facebook e seus botões de “curtir” espalhados ao sujeitos e ignorar outros. Esses corpos de sombra longo pela web) para então criarem incentivos para persistem e se proliferam através dos sistemas de que os usuários permaneçam neles. Isto permite informação, e as diferenças que separam o usuário que o provedor seja “passivo-agressivo” (BERRY, antecipado do próprio usuário que é representado 2012) na forma como agrega as informações cole- podem ser politicamente problemáticas ou politica- tadas em vários sites e as transforma em um perfil mente produtivas. coerente e cada vez mais detalhado do usuário. Os Mas os algoritmos não só fazem previsões provedores também se beneficiam do caráter cada exaustivas sobre os usuários; às vezes, eles fazem vez mais participativo da web, em que usuários são aproximações suficientes. Talvez tão importante encorajados a oferecer todo tipo de informações quanto a constante vigilância dos usuários são as sobre si mesmos e a se sentirem empoderados ao conclusões que os provedores querem elaborar fazê-lo. À medida que nossas micro-práticas mi- com base em relativamente pouca informação so- gram cada vez mais para essas plataformas, tor- bre eles. Hunch.com, um serviço de recomendação na-se sedutor para os provedores de informação de conteúdo, gabou-se por conseguir saber as pre- (apesar de não ser compulsório) rastrear essas ati- ferências de um usuário com 80-85 por cento de vidades e transformá-las em mercadoria de várias precisão, com base nas respostas a apenas cinco formas (GILLESPIE; POSTIGO, 2012). Inclusive, perguntas. Apesar de reduzir radicalmente a com- os usuários podem não estar cientes de que suas plexidade de uma pessoa a cinco pontos em um atividades estão sendo rastreadas pelos maiores gráfico, o que é importante é que esta é uma preci- anunciantes online, em toda a web, e têm pouco ou são suficiente para os seus propósitos2. Dado que nenhum meio de contestar este acordo mesmo que tais sites se sentem confortáveis em oferecer ca- o saibam (TUROW, 2012). ricaturas dos usuários, as questões que parecem Contudo, privacidade não é a única questão po- nos classificar de forma suficiente para eles, parti- liticamente relevante nesse caso. Nestes ciclos de cularmente em relação às nossas preferências en- antecipação, os bits de informação são mais fáceis quanto consumidores, tendem a ganhar relevância de serem lidos pelo algoritmo, e, portanto, tendem como formas de medir o público. E, em certa medi- a substituir os usuários. O Facebook sabe muito da, nós somos convidados a nos formalizar nessas sobre seus usuários; mas, mesmo assim, só sabe o categorias. Diante desses provedores, somos en- que é possível saber. As informações mais conhe- corajados a escolher nos menus que eles oferecem cidas (geolocalização, plataforma computacional, uma opção para que sejamos corretamente anteci- informações de perfil, amigos, atualizações de sta- pados pelo sistema e para que ele nos ofereça as tus, links seguidos no site, tempo no site, atividade informações certas, as recomendações certas, as em outros sites que hospedam o botão de “curtir” pessoas certas. ou cookies) são uma interpretação do usuário, um Além de conhecer detalhes pessoais e de- “dossiê digital” (SOLOVE, 2004) ou uma “identida- mográficos sobre cada usuário, os provedores de de algorítmica” (CHENEY-LIPPOLD, 2011) que é informação realizam uma grande pesquisa para imperfeita, mas suficiente. O que é menos legível, tentar entender, e depois operacionalizar, como ou que não pode ser conhecido sobre os usuários, é deixado de lado ou é aproximado de forma grosseira 2 Nota do autor: ZUCKERMAN, Ethan. 26 maio 2011. Eli Pariser por esses algoritmos. Como Balka (2011) descre- talks about the filter bubble. In: The Boston Phoenix. Disponível veu, os sistemas de informação produzem “corpos em: http://thePhoenix.com/Boston/arts/121405-eli-pariser-talks- about-the-filter-bubble/. Acesso em: 22 abr. 2013.

102 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS os humanos normalmente procuram, se engajam e A avaliação da relevância compreendem as informações. Mais notavelmen- Quando os usuários clicam em “Pesquisar”, te no estudo das interações humano-computador carregam seu “Feed de Notícias” do Facebook, ou (IHC), o entendimento da psicologia e da percep- pedem recomendações do Netflix, os algoritmos ção humana é aplicado ao design dos algoritmos e precisam identificar instantânea e automaticamen- às formas pelas quais os seus resultados deveriam te quais, dos trilhões de bits de informação, melhor ser representados aos usuários. Os designers es- atendem os critérios em questão, e que vão melhor peram ser capazes de prever as tendências e ca- satisfazer um usuário específico e seus objetivos pacidades psicofisiológicas dos usuários, além de presumidos. Embora estes cálculos nunca tenham seus hábitos e preferências. Mas, também nessas sido simples, eles se tornaram mais complexos à antecipações, valores implícitos e, muitas vezes, medida que o uso público desses serviços foi ama- políticos podem estar inscritos na tecnologia: os durecendo. Os algoritmos de pesquisa, por exemplo, hábitos de percepção ou interpretação de alguns eram antes baseados apenas em dizer qual a fre- usuários são tomados como modelo universal, quência com que determinados termos de pesquisa hábitos contemporâneos são imaginados como apareciam nas páginas indexadas da web. Agora, atemporais, objetivos computacionais particulares esses algoritmos incorporam informações contex- são tratados como auto-evidentes. tuais sobre os sites e sobre onde eles estão hos- Também estamos presenciando um novo tipo pedados; consideram a frequência e como o site de poder informacional, reunido nessas enormes é relacionado por outros; e convocam técnicas de bases de dados sobre as atividades e as preferên- processamento de linguagem natural para melhor cias dos usuários, que está ele mesmo modifican- “entender” tanto a consulta, quanto os recursos que do a paisagem política. Além das suas técnicas, os o algoritmo pode oferecer como resposta. De acor- provedores de informação que acumulam esses do com o Google, seu algoritmo de pesquisa exami- dados, as indústrias terceirizadas que reúnem e na mais de duzentos indicadores para cada consul- compram dados de usuários como mercadoria, e ta feita no site3. aqueles que transacionam dados sobre os usuá- Esses indicadores são os meios pelos quais o rios por quaisquer outros motivos (ou seja, empre- algoritmo estima a “relevância” de um conteúdo. É sas de cartão de crédito) têm por essa razão uma nessa questão que os sociólogos dos algoritmos voz mais forte tanto no mercado, quanto nos cor- devem fincar os pés: “relevante” é um julgamento redores do poder legislativo, e estão cada vez mais fluido e carregado de significados, tão aberto à in- se envolvendo nos debates políticos sobre a pro- terpretação quanto alguns dos termos avaliativos teção do consumidor e direitos digitais. Estamos vendo a implantação da mineração de dados nas 3 Nota do autor: GOOGLE. 2013. Facts about Google arenas da organização política (HOWARD, 2005), and competition. In: Google. Disponível em: http:// no jornalismo (ANDERSON, 2011) e na publicação www.google.com/competition/howgooglesearchworks. de conteúdo (STRIPHAS, 2009), onde os segredos html. Acesso em: 22 abr. 2013. O Google e o Bing já se envolveram em uma guerra de extraídos das quantidades massivas de dados dos competição por “indicadores”, primeiro quando o Bing anunciou usuários são tomados como diretrizes convincen- que usava 1.000 indicadores e o Google seguindo com a tes para a produção de conteúdo no futuro - seja a informação que seus 200 indicadores tinham até 50 variações, levando seu total a quase 10.000. Veja: SULLIVAN, Danny. 11 próxima campanha micro-segmentada ou o próxi- nov. 2010. Dear Bing we have 10,000 ranking signals to your mo fenômeno pop. 1,000. Love, Google. In: Search Engine Land. Disponível em: https://searchengineland.com/bing-10000-ranking-signals- google-55473. Acesso em 22 abr. 2013.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 103 TARLETON GILLESPIE sobre os quais estudiosos da mídia já se debru- aos outros; quais outros critérios também foram çaram, como “notável” ou “popular”. Como não há incorporados à avaliação; e se algum desses cri- uma métrica independente capaz de dizer quais térios foi substituído. Isso faz com que os algo- seriam realmente os resultados de pesquisa mais ritmos estejam eternamente abertos à suspeita relevantes para qualquer busca, os engenheiros dos usuários de que seus critérios seriam envie- precisam decidir quais resultados parecem “cor- sados para favorecer os provedores comercial ou retos” e ajustar seu algoritmo para atingir esse politicamente, ou que incorporariam premissas resultado, ou fazer alterações com base em evi- embutidas e não-verificáveis que agem de forma dências dos usuários, considerando cliques rá- incompreensível, até mesmo para os designers pidos e pesquisas sem continuação como uma (GILLESPIE, 2012). aproximação, não de relevância exatamente, mas Um provedor de informações como o Twitter de satisfação com o conteúdo oferecido. Acusar não pode ser muito mais explícito ou preciso quanto um algoritmo de ser enviesado implica considerar ao funcionamento de seus algoritmos. Fazê-lo seria que exista um julgamento imparcial de relevância, dar meios para que seus concorrentes duplicassem o qual a ferramenta estaria falhando em alcançar. e superassem seu serviço facilmente, além de exigir Uma vez que tal medida não está disponível, as uma explicação mais técnica do que a maioria dos disputas sobre as avaliações algorítmicas não usuários está preparada para receber. Isso prejudi- têm um terreno sólido para se basear. caria a capacidade de mudança dos critérios con- forme necessário, mas acima de tudo, forneceria Critérios um roteiro para quem quisesse “burlar o sistema” e colocar seus sites no topo dos resultados de pes- Para ser possível dizer que um determinado quisa ou fazer suas hashtags aparecerem na lista algoritmo faz suposições avaliativas, do tipo que de “Trendings”. Embora alguns sites de recomenda- tem consequências para o esforço do conheci- ções colaborativas, como o Reddit, tenham tornado mento humano, seria preciso fazer uma análise públicos seus algoritmos de classificação das his- crítica do algoritmo a fim de questionar seus cri- tórias e comentários dos usuários, eles precisam térios subjacentes. Porém, em quase todos os estar constantemente procurando e corrigindo ca- casos, esses critérios de avaliação estão ocultos sos de “desvaloração” organizada pelos usuários, e devem permanecer assim. O algoritmo de “Tren- e essas táticas não podem ser tornadas públicas. dings” do Twitter, que informa ao usuário sobre Com poucas exceções, a tendência é mesmo que os termos mais discutidos naquele momento em os provedores sejam pouco claros4. uma determinada área geográfica, deixa inclusi- ve a definição do que seria “mais discutido” sem especificação. Os critérios que eles usam para Objetivos comerciais medir o que é “mais discutido” são descritos ape- Uma segunda abordagem poderia implicar nas em termos gerais: a velocidade do surgimento na consideração cuidadosa dos contextos eco- de um determinado termo; se ele já apareceu na nômicos e culturais dos quais o algoritmo veio. lista “Trendings” do Twitter antes; e se ele circula 4 Nota do autor: De acordo com a já mencionada possibilidade dentro de um determinado grupo ou se expande de um algoritmo ser perfeitamente transparente, existe uma através de vários grupos de usuários. O que não gama de escolhas abertas para o desenvolvedor sobre o quão evidente ser. Pode ser simples como decidir ser mais franco na é declarado pela empresa é como esses critérios caracterização da ferramenta; fornecer uma explicação para são medidos; como são avaliados em relação uns a razão pela qual certos anúncios são oferecidos junto a uma página; ou fornecendo documentações mais criteriosas do site.

104 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS

Qualquer sistema de conhecimento emerge em a fundo as relações econômicas e os pressupostos meio aos objetivos econômicos e políticos da sociais que ele representa. disponibilização de informações, e será molda- do pelos objetivos e estratégias das poderosas Premissas epistemológicas instituições que buscam capitalizá-lo (HESMON- DHALGH, 2006). As pressões enfrentadas pelas Por fim, devemos considerar se os critérios ferramentas de busca, plataformas de conteúdo avaliativos do algoritmo são estruturados por prin- e provedores de informações podem moldar sutil- cípios políticos ou organizacionais específicos que mente o design do próprio algoritmo e a apresen- têm eles mesmos ramificações políticas. Não é ape- tação de seus resultados (VAINDHYANATHAN, nas se um algoritmo pode ser parcial para este ou 2011). À medida que passa a se apresentar como aquele fornecedor, ou pode favorecer seus próprios uma lógica de conhecimento legítima, novos es- interesses comerciais sobre outros. É uma questão forços comerciais são feitos sob medida para o sobre a importância das premissas filosóficas sobre algoritmo (por exemplo, a otimização dos sites o conhecimento relevante nas quais o algoritmo se para aparecerem nas ferramentas de busca - em baseia. Alguns estudos que analisaram vieses na inglês, SEO, search engine optimization), reifican- seleção das ferramentas de busca (em ordem de do escolhas feitas e forçando outras adicionais. publicação, INTRONA; NISSENBAUM, 2000, HA- Por exemplo, as primeiras críticas se preocu- LAVAIS, 2008, ROGERS, 2009, GRANKA, 2010) pavam se as ferramentas de busca iriam oferecer observaram algumas tendências estruturais em propagandas como links ou conteúdo em destaque, retornar como resultado o que já era popular, sites apresentadas como resultado de cálculos algorítmi- de língua inglesa e fornecedores de informações comerciais. Ao debater sobre o que significaria cos. A rápida e clara rejeição pública a essa manobra exigir neutralidade nos resultados de pesquisa, os demonstrou quão forte é nossa crença nesses algo- estudiosos jurídicos (GRIMMELMANN, 2010, PAS ritmos: os usuários não queriam que o conteúdo que - os provedores pagassem para serem exibidos fosse QUALE; BRACHA, 2008) se referiam a muito mais misturado com o conteúdo selecionado algoritmica- do que oferecer dicas sobre parceiros comerciais mente. Mas a preocupação agora é multidimensio- nos resultados. Os critérios que os algoritmos de nal: a paisagem do “Feed de Notícias” do Facebook, informação pública levam em consideração são mi- por exemplo, não pode mais ser descrita como dois ríades; cada um está equipado com um patamar que territórios distintos, um social e um comercial. Em define o que será empurrado para os resultados, vez disso, entrelaça os resultados dos cálculos al- como um resultado será posicionado acima de ou- gorítmicos (quais atualizações de status e outras tro e assim por diante. atividades dos seus amigos devem ser listadas no Dessa forma, as avaliações realizadas pelos al- Feed, quais links serão recomendados para esse goritmos dependem sempre de pressupostos inscri- usuário, quais amigos estão ativos no site naquele tos nos seus códigos que versam sobre o que e como momento), elementos estruturais (ferramentas para importa ser identificado por eles. Quando uma simples contribuir com uma atualização de status ou para ferramenta de pesquisa conta o número de vezes que comentar em um elemento informativo, links para um termo pesquisado aparece nas páginas da web in- grupos e páginas) e elementos colocados ali com dexadas, ela está reificando uma lógica particular que base em relações de patrocínio (banners publicitá- assume que as páginas que incluem o termo pesqui- rios, aplicativos de sites de terceiros). Para mapear sado provavelmente são relevantes para alguém inte- este terreno complexo, é necessário compreender ressado neste termo. Quando o Google desenvolveu o

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 105 TARLETON GILLESPIE

PageRank, que determina o valor de uma determinada verdade, os algoritmos podem ser facilmente, instan- página com base no número de links em referência a taneamente, radicalmente e invisivelmente alterados. essa página, ele construiu uma lógica diferente: uma Embora grandes atualizações possam acontecer página linkada em vários lugares na web, em sites con- apenas ocasionalmente, os algoritmos estão regular- siderados de alta qualidade, é vista como sendo “rati- mente sendo “ajustados”. As mudanças podem ocorrer ficada” por outros usuários e, portanto, têm maior pro- sem que a interface com o algoritmo mude minima- babilidade de ser relevante para este usuário também. mente: o “Feed de Notícias” e a barra de pesquisa po- Para Finkelstein, ao preferir links advindos de sites vis- dem parecer os mesmos de ontem, ainda que as ava- tos como sendo de alta qualidade, o Google mudou de liações que acontecem por baixo deles tenham sido uma abordagem mais populista para uma “democracia completamente refeitas. A metáfora da caixa-preta de acionistas”. não nos ajuda nesse caso, já que o funcionamento do algoritmo é obscuro e maleável, “provavelmente tão Um link não é um voto, mas tem influência pro- dinâmico que uma fotografia instantânea nos daria porcional ao poder relativo do eleitor (em termos poucas chances de acessar seus vieses” (PASQUA- de popularidade). Como os blocos de interesses LE, 2009). Na verdade, o que nós nos referimos en- comuns, ou facções sociais, podem afetar os re- quanto um algoritmo muitas vezes não é apenas um, sultados de uma pesquisa em um grau que de- mas são muitos algoritmos. Ferramentas de busca pende do seu peso relativo na rede, os resultados como o Google participam regularmente de testes do cálculo algorítmico das ferramentas de busca “A/B”5, apresentando rankings diferentes para diferen- refletem lutas políticas da sociedade (FINKELS- tes subconjuntos de usuários para obter dados sobre TEIN, 2008, p.107). a velocidade e satisfação dos clientes em tempo real. As preferências encontradas nos resultados do teste Quando um site de discussão de notícias decide são, então, incorporadas aos ajustes da ferramenta qual a proporção de queixas negativas para o número em uma atualização posterior. de visualizações é suficiente para justificar e escon- Cada algoritmo tem como premissa tanto um der automaticamente um tópico de comentários, essa pressuposto sobre a análise adequada de relevância, proporção representa a análise do site sobre a volatili- quanto em uma representação desse pressuposto dade do discurso público, ou pelo menos a volatilidade em uma técnica de avaliação (computacional). Podem que o site prefere para a comunidade de usuários que existir premissas implícitas incorporadas na ideia de eles acham que têm (BRAUN, 2011). Muita experiên- relevância de um site, podem existir atalhos incorpo- cia e julgamentos podem ser incorporados a esses rados em sua representação técnica dessa idéia, e artefatos cognitivos (HUTCHINS 1995, LATOUR, podem existir fricções entre elas duas. 1987), mas são julgamentos que são logo submergi- dos e automatizados. A maioria dos usuários não se debruça sobre os A promessa da objetividade algorítmica critérios algorítmicos e tende a tratá-los como ferra- Mais do que meras ferramentas, os algoritmos mentas não problemáticas a serviço de uma atividade também são estabilizadores da confiança, garan- maior: encontrar uma resposta, resolver um problema, tias práticas e simbólicas de que suas avaliações entreter. No entanto, embora a tecnologia possa ser são justas e precisas, livres de subjetividade, erro igualmente “encaixapretada” (LATOUR 1987, PINCH; 5 Nota do autor: CHRISTIAN, Brian. 25 abr. 2012. The A/B Test: BIJKER, 1984) por designers e usuários, isso não de- Inside the technology that’s changing the rules of business. In: veria nos levar a crer que ela permaneça estável. Na Wired.com. Disponível em: https://www.wired.com/2012/04/ ff_abtesting/. Acesso em: 22 abr. 2013.

106 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS ou tentativas de influência. Mas, embora os algorit- defendido como uma ferramenta de avaliação im- mos possam parecer automáticos e intocáveis pe- parcial para os críticos dos seus resultados e, ao las intervenções de seus provedores, esta é uma mesmo tempo, ser prometido como uma ferramen- ideia cuidadosamente elaborada. “As ferramentas ta para a promoção seletiva e para anunciantes em de busca se gabam por serem automatizadas, ex- potencial (GILLESPIE, 2010). Como observa Ma- ceto quando não o são” (GRIMMELMANN, 2008, ckenzie (2005), esse processo requer mais que uma p. 950). Na verdade, nenhum serviço de informa- descrição única e enfática: depende da “repetição e ções pode ser completamente isento de interfe- citação” (idem, 2005, p. 81) e, ao mesmo tempo, re- rência humana ao entregar informações: embora quer que se encubra o “conjunto autoritário de prá- um algoritmo possa avaliar qualquer site como o ticas” (idem, 2005, p. 82) que dá força ao algoritmo. mais relevante para sua busca, esse resultado não Quando um provedor de informações se vê criticado aparecerá se for pornografia infantil, não aparece- pelos resultados que fornece, a legitimidade do seu rá na China se for um discurso político dissidente, algoritmo deve ser reparada tanto discursiva, quan- e não aparecerá na França se promover o nazismo. to tecnicamente. E os usuários são cúmplices nisso: No entanto, é muito importante para os provedores desses algoritmos que eles pareçam ser isentos uma sociedade obcecada pelos principais resulta- de interferência humana. A legitimidade desses dos do Google Notícias fez com que esses resul- mecanismos deve ser performada junto à disponi- tados se tornassem importantes, e seria insensato bilização da própria informação. supor o contrário (que as pessoas estão obcecadas As articulações oferecidas pelo provedor do al- com os resultados porque eles são importantes) goritmo junto à ferramenta servem para proporcio- sem uma descrição do porquê o algoritmo é supe- nar o que Pfaffenberger (1992) chama de “controle rior a, por exemplo, ‘o julgamento sobre notícias’ dos logonômico”; ou seja, para definir a ferramenta entre editores da mídia tradicional. (PASQUALE, 2009). as práticas dos usuários e concedê-la uma legiti- midade que é levada às informações fornecidas e, Esta articulação se dá primeiro na apresenta- de quebra, ao provedor. A cuidadosa articulação de ção da ferramenta, na sua implantação dentro de um algoritmo como imparcial (mesmo quando essa um serviço de informação mais amplo. Chamá-los caracterização é mais ofuscante do que a explicati- de “resultados”, “melhores”, “principais histórias” ou va) o certifica como um ator sociotécnico confiável “tendências” diz não só sobre o que o algoritmo está concede relevância e credibilidade aos seus resul- medindo, mas também sobre o que deve ser enten- tados e mantém a aparente neutralidade do prove- dido como medida. Uma parte igualmente impor- dor em face as milhões de avaliações que faz. Esta tante deste trabalho discursivo está na descrição articulação do algoritmo é tão crucial para a sua ma- de como o algoritmo funciona. O que pode parecer nutenção social, quanto seu design material e suas uma explicação clara sobre que acontece por trás obrigações econômicas. dos bastidores pode não ser realmente uma visada do verdadeiro processo que ali se dá, mas de “basti- Em grande parte, cabe ao provedor descrever dores performados” (HILGARTNER, 2000) e cuida- seu algoritmo como tendo uma forma particular; dosamente elaborados a fim de legitimar ainda mais tendo, portanto, um certo conjunto de valores; e, esse processo e seus resultados. A descrição do assim, conferindo-lhe um certo tipo de legitimida- sistema PageRank do Google, o elemento mais an- de. Isso inclui caracterizar cuidadosamente a ferra- tigo do seu complexo algoritmo de busca, foi publi- menta e o seu valor para várias audiências, às vezes cada primeiro em um artigo científico (já sendo essa de várias formas diferentes: um algoritmo pode ser

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 107 TARLETON GILLESPIE uma entrega elaborada sobre seus funcionamentos mais importante do mundo. Seus fundadores pre- matemáticos), mas foi mitificada em seguida - como ferem tratar a tecnologia como uma força autô- a característica definidora da ferramenta, como o noma e totalmente objetiva ao invés de passar elemento central que fez o Google se tornar des- noites sem dormir, preocupando-se com vieses taque frente a seus concorrentes e como uma lógi- inerentes em como seus sistemas operam - sis- ca computacional fundamentalmente democrática temas estes que cresceram de forma tão comple- - mesmo quando o algoritmo estava sendo redese- xa que nenhum engenheiro no Google os entende nhado para considerar centenas de outros critérios completamente. (MOROZOV, 2011) no processo de busca. Essa afirmação da objetividade algorítmica de- Acima de qualquer coisa, os provedores dos sempenha, em muitos aspectos, um papel equiva- algoritmos de informações devem assegurar que lente à norma de objetividade no jornalismo ociden- seus algoritmos são imparciais. A performance tal. Assim como os motores de busca, os jornalistas da objetividade algorítmica tornou-se fundamen- desenvolveram táticas para determinar o que é mais tal para a manutenção dessas ferramentas como relevante, como reportá-lo e como garantir sua rele- mediadoras legítimas do conhecimento relevante. vância - um conjunto de práticas que são relativa- Nenhum provedor tem sido mais inflexível sobre a mente invisíveis para sua audiência; uma meta que neutralidade do seu algoritmo quanto o Google, que eles admitem ser mais difícil de seguir do que pare- responde regularmente às solicitações de altera- ce; e um princípio que ajuda a deixar julgamentos de ção nos resultados de busca reivindicando que o valor e políticas pessoais de lado, mas não os elimi- algoritmo não deve ser adulterado. A empresa ce- na. Essas práticas institucionalizadas são movidas lebremente se retirou completamente do mercado por uma promessa conceitual que, no discurso do chinês, em 2010, ao invés de censurar seus resul- jornalismo, é regularmente expressa (ou exagerada) tados, embora tenha consentido com as regras da como uma espécie de totem. Os jornalistas usam a China antes, e pode ter se retirado para não ter de norma de objetividade como um “ritual estratégico” admitir que estava perdendo para as concorrentes (TUCHMAN, 1972), para dar legitimidade pública às chinesas. Mesmo apesar dessa postura, o Google táticas de produção do conhecimento que são ine- alterou seus resultados quando surgiram reclama- rentemente precárias. “Estabelecer jurisdição sobre ções sobre uma imagem de Michelle Obama, edi- a capacidade de analisar objetivamente a realidade tada de forma racista, aparecendo no topo dos re- é uma reivindicação de um tipo especial de autori- sultados de busca de Imagens. A empresa também dade” (SCHUDSON; ANDERSON, 2009, p. 96). fornece um mecanismo de “busca segura” para não exibir palavrões e imagens sexuais para menores, e Objetividades jornalísticas e algorítmicas não se recusa a auto-completar pesquisas que indiquem são a mesma, de forma alguma. A objetividade jor- serviços de troca de arquivos em formato torrent. nalística depende de uma promessa institucional No entanto, o Google afirma regularmente que não de adequada diligência, que é incorporada e trans- altera seus índices, nem manipula seus resultados. mitida através de um conjunto de normas que os Morozov (2011) acredita que esta é uma maneira jornalistas aprendem em treinamento e no trabalho. de desviar a responsabilidade: As escolhas feitas pelos jornalistas representam uma competência apoiada em um compromisso profundamente infundido, filosófico e profissional a suspensão espiritual do Google para a ‘neutra- para deixar de lado seus próprios preconceitos e lidade algorítmica’ trai o crescente desconforto convicções políticas. Já a promessa do algoritmo da empresa em ser o gatekeeper de informações

108 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS se baseia muito menos em normas institucionais e (1997) chama de “quadros tecnológicos” concor- competências adquiridas, e mais em uma promessa rentes essas caracterizações discursivas de uma tecnicamente influenciada de neutralidade mecâni- tecnologia feitas por grupos de atores que também ca. Quaisquer que sejam as escolhas feitas, elas são têm interesse na operação, no significado e no valor apresentadas como sendo tanto livres de interven- social dessa tecnologia. O que os usuários de um ção das mãos humanas, quanto submersas no frio algoritmo de informação o consideram, sejam eles funcionamento da máquina. astutos ou ignorantes, é importante. A forma como Mas em ambas, a legitimidade depende da acu- a imprensa retrata tais ferramentas vai fortalecer mulação de diretrizes para a proceduralização da ou prejudicar os cuidadosos esforços discursivos seleção de informações. Os discursos e práticas dos seus fornecedores. Isso significa que, embora de objetividade passaram a servir como uma regra o algoritmo pareça possuir em si uma aura de neu- constitutiva do jornalismo (RYFE, 2006). A objetivi- tralidade tecnológica, ou incorporar ideais populis- dade faz parte do entendimento dos jornalistas so- tas e meritocráticos, a sua aparência não depende bre si próprios e sobre o que significa ser um jorna- apenas do seu design, mas também das realidades lista. Participa da avaliação do seu trabalho, por edi- mundanas dos ciclos de notícias, assessorias de im- tores, colegas e leitores, e é um sinal determinante prensa, blogs de tecnologia, discussões de fãs, re- do que os próprios jornalistas reconhecem como voltas de usuários e maquinações dos concorrentes conteúdo jornalístico. A promessa da objetividade do seu provedor. algorítmica também foi nitidamente incorporada Existe um paradoxo fundamental na articu- nas práticas de trabalho dos provedores de algorit- lação dos algoritmos. A objetividade algorítmica é mos, definindo o que se constitui enquanto função uma declaração importante para um provedor, par- e propósito de um serviço de informações. Quando ticularmente de algoritmos que fornecem informa- o Google inclui no seu manifesto de “Dez coisas ções vitais e voláteis para o consumo público. Arti- que sabemos ser verdade” que “Nossos usuários cular o algoritmo como uma intervenção claramente confiam em nossa objetividade e nenhum ganho técnica ajuda um provedor de informações a res- de curto prazo poderia justificar a violação dessa ponder acusações de viés, erro e manipulação dos confiança”, não se trata nem de artimanha, nem de resultados. Ao mesmo tempo, como pode ser visto um “Maria-vai-com-as-outras6” corporativo. É uma com o PageRank do Google, existe um valor socio- compreensão profundamente enraizada do caráter político no destaque do populismo dos critérios que público do serviço de informação do Google que o algoritmo usa. Afirmar que um algoritmo de um de- influencia e legitima muitos dos seus projetos téc- terminado site é uma representação democrática nicos e comerciais, e ajuda a obscurecer a confusa da opinião coletiva em toda a web lhe confere auto- realidade sobre o serviço que a empresa presta. ridade. E há um valor comercial na alegação de que Ainda assim, essas reivindicações devem com- o algoritmo retorna resultados “melhores” do que os petir com outras articulações no diálogo público que dos seus concorrentes, o que coloca a satisfação podem ser favoráveis, ou não, aos objetivos econô- do consumidor acima da noção de exatidão (VAN micos e ideológicos das partes interessadas. Bijker COUVERING, 2007). Ao examinar a articulação de um algoritmo, devemos prestar atenção especial à 6 Nota da tradutora: a expressão usada pelo autor é “corporate forma como esta tensão, entre neutralidade tecni- Kool-Aid”. Em inglês, a expressão “Beber o Kool-Aid” é usada em referência a alguém que segue uma ideia condenada ou camente assegurada e o sabor social da avaliação perigosa por pressão dos colegas. Assim, escolhemos traduzi- que está sendo feita, é gerenciada - e, às vezes, la como “Maria-vai-com-as-outras” que tem um significado como ela se rompe. parecido em português.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 109 TARLETON GILLESPIE

Entrelaçamento com a prática sign do Flickr; a sensibilidade para as práticas foto- gráficas teve que competir com custos, eficiência Apesar de poderem ser estudados como fer- técnica, obrigações legais e imperativos comerciais. ramentas computacionais abstratas, os algorit- Além disso, a população dos usuários do Flickr e os mos são construídos para serem incorporados às tipos de fotos que publicava mudaram à medida que práticas do mundo, que produzem as informações o site cresceu em popularidade; quando foi forçado que eles processam, e ao mundo vivido pelos seus a competir com o Facebook; quando introduziu pre- usuários (COULDRY, 2012). Isso se dá principal- ços diferenciados; quando foi comprado pelo Yahoo, mente quando o algoritmo é o instrumento de um e assim por diante. negócio que tem como produto a informação que entrega (ou as propagandas a que se associa). Se Vários usuários do Flickr postam fotos com os usuários falharem ou se recusarem a se encaixar o propósito claro de que elas sejam vistas: alguns nas suas práticas e a conceder significado a elas, são fotógrafos profissionais procurando emprego, o algoritmo irá falhar. Isso significa que não deve- alguns são pessoas procurando comunidades de mos considerar seus “efeitos” nas pessoas, mas um amadores semelhantes a elas, outros estão sim- “entrelaçamento” multidimensional entre algoritmos plesmente orgulhosos do seu trabalho. Assim, tal postos em prática e as táticas dos usuários que fa- como o algoritmo precisa ser sensível aos fotógra- zem face a eles. Claro, essa relação é um alvo em fos, eles têm interesse em serem sensíveis para o movimento, porque os algoritmos mudam, assim algoritmo, sabendo que aparecer como resultado como as populações de usuários e as atividades das buscas certas pode colocar suas fotografias com as quais se deparam. Ainda assim, isso não diante das pessoas certas. Assim como a ênfase deveria significar que não exista relação entre eles. de Hollywood em gêneros específicos convida os 7 À medida que esses algoritmos se abrigam na vida roteiristas a escrever de maneira genérica , o al- das pessoas e nas suas rotinas informacionais, os goritmo do Flickr pode induzir reorientações su- usuários moldam e rearticulam os algoritmos com tis nas práticas dos fotógrafos em direção à sua os quais se deparam. Os algoritmos também afetam lógica construída, ou seja, induzir os fotógrafos a a maneira que as pessoas procuram informações, buscar fotografar de modo a aderir a certas ca- como elas percebem e pensam sobre os horizontes tegorias emergentes ou a orientar sua escolha de conhecimento, e como elas se compreendem no de tema e composição em direção a coisas que e pelo discurso público. o algoritmo parece privilegiar. “Deixamos rastros não sobre a forma como fomos, mas sobre uma É importante conceber este entrelaçamento negociação tácita entre nós e os nossos audito- não como uma influência unidirecional, mas como res imaginados” (BOWKER, 2006, p. 6-7). um ciclo recursivo entre os cálculos do algoritmo e os “cálculos” das pessoas. O algoritmo que ajuda os usuários a navegarem pelas fotos do Flickr é cons- Algoritmicamente identificável truído no arquivo de fotos postadas, o que significa Essa negociação tácita consiste, em primei- que ele é projetado para compreender e refletir as ro lugar, na reorientação cotidiana e estratégica escolhas feitas pelos fotógrafos. O que as pesso- das práticas que muitos usuários realizam, perante as fazem e não fotografam já é um tipo de cálculo uma ferramenta que eles sabem que pode ampliar avaliativo, embora seja histórico, multivalente, con- seus esforços. Há, para os produtores de informa- tingente e sociologicamente fundamentado. Mas ções, um estímulo poderoso e compreensível para estes não eram os únicos impulsionadores do de- 7 Nota do autor: Christian Sandvig, comunicação pessoal.

110 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS tornar seu conteúdo, e eles próprios, identificáveis seus clientes nas rotinas da indústria de notícias: para um algoritmo. Toda uma indústria, de otimiza- programar um comunicado de imprensa para sair na ção para mecanismos de busca (SEO - Search En- transmissão da noite, ou fornecer gravações de ví- gine Optimization, em inglês), promete impulsionar deo para uma emissora ávida por imagens emocio- os sites para o topo dos resultados de pesquisa. nantes, são técnicas para lidar com uma mídia que Mas podemos pensar na otimização (deliberada, pode ampliar seus esforços. Hoje, para todos nós, as profissional) como apenas a linha de frente de um redes sociais e a web oferecem uma espécie análo- processo muito mais variado, orgânico e complexo ga de “visibilidade mediada” (THOMPSON, 2005, p. pelo qual produtores de conteúdo de todos os tipos 49), e nós nos beneficiamos de forma semelhante se orientam perante os algoritmos. Quando usamos quando lidamos com esses algoritmos. hashtags em nossos tuítes - uma inovação criada pelos usuários e adotada posteriormente pelo Twit- Backstage Access - acesso aos bastidores ter - não estamos apenas nos juntando a uma con- versa ou esperando ser lidos por outros, estamos Mas quem está em melhor posição de com- redesenhando nossa manifestação para ser melhor preender e operar os algoritmos públicos que tanto reconhecida e distribuída pelo algoritmo de busca importam para a circulação pública de conhecimen- do Twitter. Alguns usuários podem trabalhar para to? A visão sobre como funcionam os algoritmos de serem percebidos pelo algoritmo: sabe-se que ado- informação é uma forma de poder: vital para a parti- lescentes marcam suas atualizações de status com cipação no discurso público, essencial para ganhar nomes de marcas conhecidas, não relacionadas ao visibilidade online, constituidor de credibilidade e assunto, esperando que o Facebook privilegie es- das oportunidades que resultam dela. Como men- sas atualizações nos “Feeds de Notícias” dos seus cionamos anteriormente, os critérios e os códigos amigos8. Outros podem trabalhar para fugir de um dos algoritmos geralmente são obscuros - mas não algoritmo: sabemos que usuários de Napster e P2P, da mesma forma para todos. Para a maioria dos que compartilham músicas protegidas por direi- usuários, o conhecimento sobre os algoritmos é tos autorais, escrevem os nomes dos artistas com vago, simplista e, às vezes, equivocado; eles podem pequenos erros ortográficos para que os usuários tentar empurrar o algoritmo tanto de maneiras que consigam encontrar as músicas da “Britny Speers”, simplesmente consideram melhores (hashtags, me- mas o software da indústria musical não9. tadados) ou que fundamentalmente equivocadas Isso é burlar o sistema? Ou é uma maneira fun- em relação aos critérios do algoritmo (como retui- damental pela qual, até certo ponto, orientamo-nos tar várias vezes a mesma mensagem na esperança perante os meios de distribuição através dos quais de figurar entre os “Trendings” do Twitter). Os profis- esperamos falar? Com base nos critérios do algo- sionais de SEO e os spammers também têm pouco ritmo em questão (ou de acordo com nossa melhor acesso, mas desenvolveram habilidades técnicas estimativa do seu funcionamento), nós já nos torna- para deduzir os critérios do algoritmo a partir de mos algoritmicamente identificáveis de várias for- testes e engenharia reversa. Comunidades de entu- mas. Isso não é tão diferente do que assessores de siastas em tecnologia e críticos se engajam em ten- imprensa que orientam seus esforços para encaixar tativas semelhantes de descobrir o funcionamento desses sistemas, seja por diversão, conhecimento, 8 Nota do autor: danah boyd, comunicação pessoal. vantagem pessoal ou determinadas interrupções. 9 Nota do autor: ABC News. 5 mar. 2001. Napster faced with big list, trick names. In: ABC News. Disponível em: http:// Os legisladores, que estão apenas começando a abcnews.go.com/Entertainment/story?id=108389. Acesso em questionar as implicações dos algoritmos para um 22 abr. 2013.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 111 TARLETON GILLESPIE comércio justo ou para o discurso político, recebe- pública certamente são importantes para o modo ram até agora apenas as explicações mais gerais como os usuários encontram informações, comu- possíveis: os provedores de informação afirmam nicam-se uns com os outros e percebem o mundo que seus algoritmos são segredos comerciais que ao seu redor. Mas, mais do que isso, os usuários não devem ser divulgados em espaços públicos. expressam preferências por suas ferramentas de Além disso, de fato algumas das partes interes- busca favoritas, opinam sobre as recomendações sadas recebem acesso garantido ao algoritmo, ain- de um site como sendo incômodas, intuitivas ou da que sob condições controladas. Os anunciantes precisas. Alguns usuários confiam em uma deter- recebem um tipo de acesso aos bastidores de fun- minada ferramenta, enquanto outros desconfiam cionamento para saber como fazer o melhor lance10. dela, usando-a com cuidado ou nem a utilizando de Os provedores de informação que oferecem Interfa- todo. Os usuários do iPhone da Apple trocam dicas ces de Programação de Aplicativos (APIs - Applica- entre si sobre como fazer a Siri, a assistente virtu- tion Programming Interfaces, em inglês), para seus al da empresa, a falar seu repertório de réplicas11 e parceiros comerciais e desenvolvedores, oferecem depois compartilham a indignação com as respos- um vislumbre sob o capô, mas os vincula com con- tas dadas a questões políticas polêmicas12. Usuá- tratos e acordos de não-divulgação no mesmo ins- rios satisfeitos com o Facebook tornam-se críticos tante. O acesso, a compreensão e os direitos sobre amanhã quando o algoritmo do “Feed de Notícias” os algoritmos que desempenham um papel crucial é alterado, aparentemente por motivações econô- no discurso e no conhecimento públicos tendem a micas - enquanto continuam a postar atualizações mudar entre as diferentes partes interessadas e em de status durante e depois da revolta. Os usuários, circunstâncias específicas - mudando também o perante as assimetrias de poder da coleta de dados poder disponível para essas partes, e para aqueles e vigilância online, desenvolveram uma série de táti- que elas representam, de construir para os algorit- cas de “ofuscação” para escapar ou contaminar as mos, navegá-los e regulá-los. tentativas dos algoritmos de conhecê-los (BRUN- TON; NISSENBAUM, 2011). Embora seja crucial considerarmos as formas pelas quais as ferramen- Domesticação tas algorítmicas moldam nosso contato com as in- Por mais que essas ferramentas nos incitem a formações, não devemos insinuar que os usuários nos tornarmos legíveis para elas, nós também as in- estejam sob a influência dessas ferramentas. A rea- serimos nas nossas práticas, alterando seu sentido lidade é mais complicada e mais particular. e até mesmo seu design, algumas vezes. Silverstone Os usuários também podem recorrer a esses (1994) sugere que à medida que as tecnologias são algoritmos, refletirem sobre si com base nos seus oferecidas ao público, elas passam por um proces- dados; muitos sites permitem nos apresentarmos so de “domesticação”: essas tecnologias entram em para os outros e para nós mesmos, incluindo o nos- nossas casas literalmente, mas também de forma so perfil público, o desempenho das nossas amiza- figurada - os usuários as transformam em proprie- des, a expressão das nossas preferências ou um re- dade, incorporando-as em suas rotinas e imbuindo- -as com significados adicionais que os provedores 11 Nota do autor: http://siri-sayings.tumblr.com/. Acesso em: não puderam antecipar. Algoritmos de informação 22 abr. 2013. 12 Nota do autor: WORTHAM, Jenna. 30 nov. 2011. Apple 10 Nota da tradutora: o sistema de anúncios pagos nas says Siri’s abortion answers are a glitch. In: The New York Times. plataformas segue o mesmo modelo de um leilão - há um preço Disponível em: http://bits.blogs.nytimes.com/2011/11/30/ inicial, mas esse valor vai sendo ajustado de acordo com os apple-says-siris-abortion-answers-are-a-glitch/. Acesso em: 22 outros “competidores” pelo mesmo público. abr. 2013.

112 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS gistro das nossas atividades recentes. O recurso da sobre eles, ou para gerar uma longa incerteza sobre linha do tempo do Facebook organiza as atividades os critérios que dificultam tratarmos os algoritmos dos usuários como lembranças cronológicas sobre como sendo verdadeiramente nossos. si mesmos; o prazer de ver o que é selecionado al- goritmicamente oferece uma espécie de encanta- Lógicas de conhecimento mento que vai além da composição das fotos e das postagens em primeiro lugar. Mas os algoritmos Teorizar é fácil, mas é substancialmente mais também podem funcionar como uma “tecnologia difícil documentar como os usuários podem mudar do self” (FOUCAULT, 1988), particularmente con- suas visões de mundo para acomodar as lógicas vincente, quando parecem ratificar, independente- subjacentes e os pressupostos implícitos dos algo- mente, a visibilidade pública de uma determinada ritmos que usam regularmente. Há uma razão para pessoa. É comum, hoje, procurar a si mesmo no que as lógicas de funcionamento desses algoritmos Google: ver-me aparecer como o melhor resultado não apenas moldem as práticas dos usuários, mas da busca pelo meu nome, oferece uma espécie de também os levem a internalizar suas normas e prio- garantia da minha tênue existência pública. Existe ridades: Bucher (2012) argumenta que o algoritmo uma sensação de validação quando um tópico so- EdgeRank, usado pelo Facebook para determinar bre seu animal de estimação aparece no “Trendings” quais atualizações de status são prioritariamente e no Twitter; quando a Amazon lhe recomenda um exibidas no “Feed de Notícias” de um usuário, enco- livro que você ama ou quando a função “Genius” do raja uma “subjetividade participativa” nos usuários, iTunes da Apple compõe uma lista de reprodução que reconhecem que gestos de afinidade (como co- interessante a partir da sua biblioteca de músicas. mentar a foto de um amigo) são um critério central Seja quando nós efetivamente adaptamos nossas para esse algoritmo. Longford (2005) argumenta compras da Amazon para parecermos versados que o código da plataforma comercial nos “habi- (assim como as famílias pesquisadas pela Nielsen tua”, através de incessantes solicitações e confi- exageravam ao informar quanto assistiam a PBS e gurações padrão cuidadosamente projetadas, a C-Span)13 ou se simplesmente gostamos quando o dar mais informações pessoais sobre nós mesmos. algoritmo confirma nosso senso de identidade, os Mager (2012) e Van Couvering (2010) propõem que algoritmos são um convite poderoso para nos en- os princípios do capitalismo estão incorporados no tendermos através de lentes independentes que funcionamento das ferramentas de busca. eles prometem fornecer. Mas, nós não precisamos recorrer a tais teorias Os algoritmos não são apenas o que seus de- de dominação ideológica para sugerir que os algo- signers fazem deles, ou o que eles fazem a partir da ritmos, projetados para oferecer conhecimentos re- informação que processam. São também o que nós levantes, também oferecem formas de conhecer - e fazemos deles dia após dia - mas com uma ressalva: que, à medida que se tornam mais comuns e confiá- como a lógica, a manutenção e o redesign desses veis, suas lógicas se tornam auto-afirmativas. A fer- algoritmos permanecem nas mãos dos provedores ramenta de pesquisa do Google, entre suas 200 in- de informação, eles claramente estão numa posição dicações, presume que um conhecimento relevante privilegiada para reescrever nosso entendimento é assegurado em grande parte pela ratificação pú- blica e está ajustada para dar grande peso às opini- 13 Nota da tradutora: o autor fala sobre quando os usuários ões dos que já são autenticados publicamente. Esta ajustam seus algoritmos para que eles pareçam “mais inteligentes” a partir das recomendações oferecidas. O exemplo refere-se às mistura da sabedoria das massas e das autoridades famílias pesquisadas para avaliação da Nielsen que afirmavam coletivamente certificadas é a solução encontrada assistir a canais considerados “mais cultos” ou “mais sérios”.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 113 TARLETON GILLESPIE pelo Google para a antiga tensão entre o conheci- de notícias ou em uma rede social, as informações mento e o senso-comum, no permanente problema oferecidas podem ser adaptadas especificamen- de “como conhecer”. Não é sem precedentes, e não te às preferências do usuário (pelo usuário ou o é uma maneira fundamentalmente errada de conhe- pelo provedor), de modo que, na prática, as his- cer, mas é específica, com suas próprias ênfases e tórias apresentadas, como as mais importantes, miopias. Hoje, a solução do Google é operacionali- podem ser tão distintas de usuário para usuário zada em uma ferramenta que bilhões de pessoas que não exista sequer um objeto comum de diá- usam todos os dias, a maioria das quais a experi- logo entre elas. Sunstein (2001) e, mais recente- menta simplesmente como algo que “funciona” de mente, Pariser (2011) argumentam que, quando forma simples e sem problemas. Até certo ponto, o os serviços de informação algorítmica podem ser Google e seu algoritmo ajudam a afirmar e a norma- personalizados a esse ponto, a diversidade do lizar essa lógica de conhecimento como “correta”, conhecimento público e do diálogo político pode tão correta quanto seus resultados parecem ser. ser minada. Somos levados - por algoritmos e por nossa própria preferência pelos que pensam de A produção de públicos calculados forma semelhante - para dentro de “filtros bolha” (ibid.), onde encontramos apenas as notícias que Ito, Boyd e outros autores recentemente intro- esperamos encontrar e as perspectivas políticas duziram o termo “públicos em rede” (BOYD, 2010; que já nos são caras. ITO, 2008; VARNELIS, 2008) para destacar as co- Mas os algoritmos não estruturam ape- munidades de usuários que podem se unir através nas nossas interações com os outros enquanto das mídias sociais e a forma como as tecnologias membros de públicos em rede. Eles também tra- estruturam como esses públicos podem se formar, fegam por públicos calculados que eles mesmos interagir e, às vezes, se desfazer. “Enquanto os públi- produzem. Quando a Amazon recomenda um li- cos em rede têm muito em comum com outros tipos vro que “clientes como você” compraram, está de públicos, a forma como a tecnologia os estrutura invocando e afirmando conhecer um público com introduz affordances distintas que moldam como as o qual somos convidados a sentir afinidade - em- pessoas se engajam com esses ambientes” (BOYD, bora a população em que essas recomendações 2010, p.39). Visto que os algoritmos são um com- se baseiam não seja transparente e certamente ponente tecnológico central nesses ambientes me- não coincida com toda sua base de consumido- diados, eles também ajudam a estruturar os públi- res. Quando o Facebook oferece como configu- cos que podem emergir usando a tecnologia digital. ração de privacidade que as informações de um Algumas questões têm sido levantadas so- usuário sejam vistas por “amigos e amigos de bre as maneiras que o funcionamento dos algo- amigos”, ele transforma um conjunto distinto de ritmos de informação, e os modos pelos quais usuários em uma audiência - trata-se de um gru- escolhemos navegar por eles, poderiam minar po que não existia até aquele momento, e que só nossos esforços de sermos cidadãos envolvi- o Facebook sabe sua composição precisa. Esses dos. A capacidade de personalizar resultados de grupos gerados por algoritmos podem se sobre- pesquisa e notícias online foi a primeira, e talvez por, podem ser uma aproximação imprecisa ou melhor articulada, dessas preocupações. Com as podem não ter nada a ver com os públicos que o ferramentas de busca contemporâneas, os resul- usuário procurou. tados que dois usuários recebem para a mesma Alguns algoritmos vão além, fazendo afirma- busca podem ser bem diferentes; em um serviço ções sobre os públicos que pretendem conhecer

114 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS e o lugar dos usuários no meio deles. Em outro tra- de avaliação, mas de representação, ajudam a balho, argumento que o algoritmo do “Trendings” do constituir e codificar os públicos que eles afirmam Twitter promete aos usuários um vislumbre do que medir, públicos que de outra forma não existiriam, um público particular (nacional ou regional) está fa- exceto quando o algoritmo os convoca? lando em um determinado momento, mas se trata Essas questões são muito importantes, e vão de um público construído, moldado pelos critérios importar mais ainda, na medida em que as repre- específicos do Twitter e que não são especifica- sentações do público produzidas pelos algoritmos dos em grande parte (GILLESPIE, 2012). O Klout, de informação sejam tomadas como legítimas, pe- um serviço online que rastreia as atividades e a los usuários ou pelas autoridades, e incorporadas reputação dos usuários no Facebook, no Twitter ao projeto modernista mais amplo de reflexividade e em outros lugares, promete calcular a influência (GIDDENS, 1990). “A sociedade está envolvida no dos usuários através dessas várias plataformas de monitoramento de si mesma, examinando-se, re- redes sociais. Suas medidas são intuitivas em sua tratando-se de várias formas e usando os entendi- definição, mas completamente opacas em seus mentos resultantes para organizar suas atividades” mecanismos. A disputa entre os “públicos em rede” (BOYER; HANNERZ, 2006, p. 9). O que o Twitter forjados pelos usuários e os “públicos calculados” afirma importar para os “americanos” ou o que a oferecidos pelos algoritmos complica ainda mais a Amazon diz que os adolescentes leem são formas dinâmica da sociabilidade em rede. de conhecimento autoritário que podem e serão in- Junto a outras medidas de opinião pública, vocadas por instituições cujo objetivo é regular es- como sondagens ou levantamentos, o problema sas populações. central é a extrapolação, na qual se presume que A crença de que tais algoritmos, combinados um subconjunto represente uma população in- com quantidades massivas de dados de usuá- teira. Com os algoritmos, a população pode ser a rios, são melhores para nos dizer coisas sobre a base de usuários inteira, às vezes, composta por natureza do público ou sobre a constituição da centenas de milhões de pessoas (mas apenas a sociedade, também provou ser sedutora para base de usuários a qual o provedor do algoritmo os estudiosos. A ciência social voltou-se avida- tem acesso). Em vez disso, o problema central mente para as técnicas computacionais ou para aqui é que a intenção por trás dessas represen- o estudo da socialidade humana através do “big tações calculadas do público não é atuarial, de data” (LAZER et al, 2009); para uma visão crítica, modo algum. Algoritmos, que alegam identificar ver (BOYD; CRAWFORD, 2012), na esperança de o que está “em voga”, dedicam-se a estimar uma desfrutar do tipo de insights que as ciências bio- aproximação calculada de um público a partir dos lógicas alcançaram, buscando algoritmicamente rastros das atividades de seus participantes, e em agulhas nesses palheiros digitais com todos es- seguida lhes apresentam um relatório sobre o que ses dados. A abordagem é sedutora: ter milhões eles mais falaram. Mas, por trás disso, podemos de dados gera maior legitimidade e é empolgan- nos perguntar: qual é a vantagem de fazer tais te ver como os algoritmos parecem detectar caracterizações para esses provedores e como padrões que os pesquisadores não puderam en- isso molda o que eles estão medindo? Quem está xergar de outras formas. “Para um certo tipo de sendo escolhido para ser medido a fim de produ- cientista social, os padrões de tráfego de milhões zir essa representação e quem é deixado de fora de e-mails parecem ter caído do céu” (NATURE, desse cálculo? E, talvez o mais importante, como 2007). Mas essa abordagem metodológica deve estas tecnologias, agora não apenas tecnologias considerar as complexidades descritas até aqui,

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 115 TARLETON GILLESPIE particularmente quando os dados de um pesqui- um erro tipográfico. Aqui, o Google se prova muito sador foram gerados por algoritmos comerciais. menos sexista do que nós somos. Em resposta ao As técnicas de pesquisa computacional não são exemplo de Ananny, Gray sugere que, assim como barômetros do social. Elas produzem hieróglifos: devemos examinar os algoritmos que fazem esse moldados pela ferramenta pela qual são esculpi- tipo de associações, também devemos investigar dos, exigindo uma interpretação sacerdotal, eles os “algoritmos culturais” que essas associações re- contam histórias poderosas, mas muitas vezes presentam (isto é, associando sistematicamente a mitológicas - geralmente a serviço dos deuses. homossexualidade com a predação sexual) em um Finalmente, quando nós somos os dados, o conjunto massivo e distribuído de “pontos de da- que devemos fazer com as associações que os dos” - nós mesmos. algoritmos afirmam identificar sobre nós enquan- to sociedade - o que não sabemos ou que talvez Considerações finais não queremos saber? No inquietante exemplo de Ananny (2011), ele percebeu que o mercado de Compreender os algoritmos e seu impacto no aplicativos do Android recomendava um aplicativo discurso público, então, requer pensar não apenas sobre a localização de “predadores sexuais”14 para sobre como eles funcionam, onde são implantados os usuários que baixaram o Grindr, uma ferramen- ou o que os movimenta financeiramente. Este não é simplesmente um chamado para desvendar seu ta de rede social baseada em localização para ho- funcionamento interno e destacar seus critérios mens gays. Ele especula sobre como os algoritmos implícitos. É uma investigação sociológica que não do mercado do Android podem ter feito essa asso- interessa aos provedores desses algoritmos, que ciação - até mesmo as operadoras do Android não nem sempre estão na melhor posição para sequer conseguiram explicar com facilidade. O algoritmo perguntar. Requer analisar por que os algoritmos es cometeu um erro? O algoritmo fez uma associa- - ção direta, simplesmente combinando aplicativos tão sendo vistos como uma lógica de conhecimento que continham “sexo” na descrição? Ou o meca- confiável; como eles desmoronam e são reparados nismo de recomendação do Android realmente ao entrar em contato com o vai e vem do discurso identificou uma associação sutil que, embora não público; e onde os pressupostos políticos podem estar gravados não só em seu design, mas também desejemos, é recorrentemente feita na nossa cul- serem constitutivos da sua utilização e sua legitimi tura, entre homossexualidade e comportamento - predatório? Zimmer (2007) observa um caso se- dade generalizada. melhante: uma busca pela frase “ela inventou” re- Vejo a emergência do algoritmo enquanto uma tornava a pergunta “você quis dizer ‘ele inventou’”? ferramenta de informação confiável, como a mais Ou seja, isso aconteceu até que Google alterou os recente resposta à fundamental tensão do dis- resultados. Embora preocupante em sua política curso público. Os meios pelos quais produzimos, de gênero, a resposta do Google foi completamen- circulamos e consumimos informações em uma te “correta”, explicada pelo triste fato de que, em sociedade complexa devem ser necessariamen- todo o corpus da web, a palavra “inventado” é pre- te operados através da divisão do trabalho: alguns cedida muito mais vezes por “ele” do que por “ela”. produzem e selecionam informações, e o resto de O algoritmo reconheceu isso - e presumiu erronea- nós, pelo menos naquele momento, somente pode mente que a pesquisa “ela inventou” fosse apenas conceder aquilo que valha a pena e só pode aceitá- -las, se serve de consolo. Toda mídia pública ante- 14 Nota da tradutora: o termo usado pelo autor em inglês é rior a essa também enfrentou esse desafio, desde “sex-offender”.

116 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 § Parágrafo A RELEVÂNCIA DOS ALGORITMOS os pregoeiros, até os jornais e as transmissões via vés de traços sociais coletados. Ambas lutam com, televisão. Em cada uma delas, quando entregamos e afirmam resolver, o problema fundamental do co- o fornecimento de conhecimento para outros, fica- nhecimento humano: como identificar informações mos vulneráveis a suas escolhas, métodos e subje- relevantes cruciais para o público através de meios tividades. Às vezes, é um fornecimento positivo de inevitavelmente humanos, mas de formas livres de competência, perspicácia editorial, gosto refinado. erros humanos, vieses ou manipulações. Ambas Mas também somos cautelosos à intervenção, às abordagens algorítmicas e editoriais do conhecimen- falhas humanas e aos interesses particulares, e to são profundamente importantes e profundamente nos encontramos com mecanismos apenas secun- problemáticas; grande parte dos estudos em comu- dários de confiança social para confirmar o que é nicação, mídia, tecnologia e público lida com uma ou verdadeiro e relevante (SHAPIN, 1995). Seus pro- ambas técnicas e suas armadilhas. cedimentos estão em grande parte indisponíveis Uma investigação sociológica sobre os algo- para nós e são inevitavelmente seletivos, enfatizan- ritmos deve aspirar revelar o complexo funciona- do algumas informações e descartando outras, e mento desta máquina de conhecimento, tanto o suas escolhas podem trazer consequências. Existe processo pelo qual ela escolhe as informações a nítida possibilidade de erro, viés, manipulação, co- para os usuários, quanto o processo social pelo modismo, influência comercial ou política, ou falhas qual ela se torna um sistema legítimo. Mas pode sistêmicas. O processo de seleção sempre pode ser haver algo, no final, impenetrável em relação aos uma oportunidade de organizar as informações por algoritmos. Eles são projetados para trabalhar razões outras que não a relevância: por propriedade, sem intervenção humana, são deliberadamente por interesses próprios comercial ou institucional, ofuscados, e trabalham com informações em uma ou por ganho político. Juntas, essas questões repre- escala que é difícil de compreender (pelo menos sentam uma vulnerabilidade fundamental que nunca sem outras ferramentas algorítmicas). E talvez poderemos resolver completamente. Nós podemos mais do que isso, nós queremos nos livrar do dever apenas criar garantias da melhor maneira possível. de sermos céticos sobre informações que nunca A partir dessa perspectiva, devemos ver os al- poderemos garantir com certeza. Através desses goritmos não apenas como códigos com consequên- mecanismos, chegamos a um acordo sobre esse cias, mas sim como o mais recente mecanismo cons- problema (se não o resolvemos) e, assim, eles são truído socialmente e institucionalmente gerenciado soluções com as quais não apenas podemos con- para convencer o julgamento público: uma nova lógi- tar, mas em que devemos acreditar. Mas esse tipo ca de conhecimento. Podemos considerar a lógica al- de fé (VAIDHYANATHAN, 2011) torna difícil reco- gorítmica como oposta, e até talvez suplantar, à edi- nhecer sobriamente suas falhas e fragilidades. torial enquanto lógica concorrente. A lógica editorial Assim, de várias formas, os algoritmos conti- depende das escolhas subjetivas de especialistas, nuam fora do nosso alcance e eles são projetados que são eles próprios feitos e autorizados como tal para continuar mesmo. Isso não quer dizer que não através de processos institucionais de treinamento devemos aspirar a iluminar seu funcionamento e a e certificação, ou validados pelo público através dos seu impacto. Nós deveríamos. Mas talvez nós tam- mecanismos do mercado. A lógica algorítmica, em bém precisemos nos preparar para nos deparar- contrapartida, depende das escolhas procedimenta- mos, mais e mais, com associações inesperadas e lizadas de uma máquina, projetadas por operadores indescritíveis que eles vão desenhar para nós, às humanos para automatizar alguma representação vezes; a incerteza fundamental sobre com quem do julgamento humano ou desenterrar padrões atra- estamos falando ou quem estamos ouvindo; e as

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 117 TARLETON GILLESPIE implicações palpáveis, porém opacas, que se mo- BOWKER, Geoffrey C.; STAR, Susan Leigh. Sorting vem silenciosamente por baixo do conhecimento things out: Classification and its consequences. quando ele é gerenciado por algoritmos. Cambridge, MA: MIT Press, 2000.

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Tarleton Gillespie – Pesquisador-chefe da Microsoft Research New England, Professor Associado adjun- to na Cornell University (EUA), membro do Social Media Collective (socialmediacollective.org) e um dos fundadores do blog Culture Digitally (culturedigitally.org). E-mail: [email protected]

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan./abr. 2018 121

Examinando uma técnica algorítmica: o classificador de bayes como uma leitura interessada da realidade

Scrutinizing an algorithmic technique: the Bayes classifier as interested reading of reality

Bernhard Rieder Universidade de Amsterdã e Digital Methods Initiative Amsterdã, Holanda

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 123 BERNHARD RIEDER

Resumo Abstract Este artigo descreve a noção de “técnica algorítmi- This paper outlines the notion of ‘algorithmic tech- ca” como um meio-termo entre algoritmos concre- nique’ as a middle ground between concrete, imple- tos, algoritmos implementados e a crescente área mented algorithms and the broader study and theo- de estudos e teorizações sobre software. As técni- rization of software. Algorithmic techniques specify cas algorítmicas especificam princípios e métodos principles and methods for doing things in the me- para realizar atividades em um meio de software. dium of software and they thus constitute units of Portanto, estes princípios e métodos constituem knowledge and expertise in the domain of software unidades de conhecimento especializado no âmbito making. I suggest that algorithmic techniques are a da criação e desenvolvimento de softwares. Neste suitable object of study for the humanities and so- estudo, proponho que as técnicas algorítmicas são cial science since they capture the central technical um objeto adequado de estudo nas áreas de ciên- principles behind actual software, but can generally cias sociais e humanas, visto que elas capturam be described in accessible language. To make my os princípios e técnicas centrais que se escondem case, I focus on the field of information ordering and, detrás de softwares e raramente utilizam uma lin- first, discuss the wider historical trajectory of for- guagem ou são descritas de forma acessível. Para mal or ‘mechanical’ reasoning applied to matters of propor meu estudo de caso, eu concentro o foco de commerce and government before, second, moving análise no campo da ordenação informacional. Em to the investigation of a particular algorithmic tech- primeiro lugar, discuto a ampla trajetória histórica do nique, the Bayes classifier. This technique is expli- raciocínio formal ou “mecânico” aplicado a questões cated through a reading of the original work of M. E. comerciais e governamentais. Em segundo lugar, Maron in the early 1960 and presented as a means foco minha investigação em uma técnica algorítmi- to subject empirical, ‘datafied’ reality to an interes- ca específica: o classificador de Bayes. Essa técni- ted reading that confers meaning to each variable ca é explicada através da leitura da obra original de in relation to an operational goal. After a discussion M. E. Maron escrita no começo dos anos 1960. A of the Bayes classifier in relation to the question of obra é apresentada como uma maneira de sujeitar power, the paper concludes by coming back to its uma realidade empírica e “dataficada” a uma leitura initial motive and argues for increased attention to interessada que atribua significado para cada variá- algorithmic techniques in the study of software. vel na relação com um objetivo operacional. Após a discussão sobre o classificador de Bayes em rela- ção a questões de poder, o artigo retoma sua mo- tivação inicial e defende uma crescente atenção às técnicas algorítmicas nos estudos de software.

Palavras-chave Técnicas algorítmicas. Classificador de Bayes. Estatística. Relações de poder.

Keywords Algorithmic Techniques. Bayes classifier. Statistics. Power relations.

124 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 § Parágrafo EXAMINANDO UMA TÉCNICA ALGORÍTMICA

Introdução arranjos nos quais estão inseridos - têm de fato começado a “transformar o mundo que vivemos Desde a popularização da Internet, os pro- ao controlar o que vemos e o que não vemos” cedimentos algorítmicos para recuperação, or- (PARISER, 2011, p.48). denação e filtragem de informações vêm sendo o foco de atenção de especialistas em Ciências Entretanto, continua existindo um contraste Sociais e Humanas. Os buscadores são um dos entre o diagnóstico cada vez mais aceito de que exemplos mais notáveis. Sua imensa populari- o “software estrutura e possibilita grande parte dade tornou a discussão dos procedimentos de do mundo contemporâneo” (FULLER, 2008, p.1) classificação relevantes para um público mais e a atenção dada a casos específicos e métodos amplo, e estabeleceu o campo de estudos sobre precisos. Se o software realmente se tornou uma pesquisa na web (ZIMMER, 2010), o que indica técnica de poder ou, precisamente, um meio para um interesse contínuo da comunidade acadêmi- projetar e implementar técnicas complexas para ca. A web também fornece muitas outras instân- “conduzir condutas” (FOUCAULT, 2004a, p. 192), cias em que os algoritmos selecionam, hierarqui- é desconcertante que a análise crítica de objetos zam, sugerem, e realizam outras atividades: os técnicos concretos, procedimentos, e práticas vendedores online fazem “recomendações” auto- sejam extremamente raras. Assim como Pariser, máticas de produtos; sites de encontros calcu- é comum que os estudiosos das ciências huma- lam os coeficientes de “compatibilidade” entre os nas e sociais prefiram teorizar os efeitos sociais membros e os organizam de acordo com isso; os e políticos do software ao invés de examinar as agregadores de notícias geram páginas iniciais lógicas e arranjos técnicos que os enunciados al- de acordo com níveis de “importância”; os servi- gorítmicos produzem. Os estudos de software e ços de redes sociais filtram as atualizações de outros campos relacionados ao tema começaram status de amigos baseadas em métricas de “pro- a desenvolver este tipo de trabalho com foco na ximidade”; e, os serviços de microblogging dão linguagem algorítmica, no código, ao contrário da destaque a trending topics baseados em picos literatura algorítmica, que são programas proje- repentinos de atividade. Os termos entre aspas tados e escritos com configurações específicas destacam que estamos lidando com tarefas cul- e objetivos concretos. Embora a compreensão do turais e, portanto, altamente ambíguas, expres- primeiro tema seja crucial, o panorama atual dos sas e delegadas a processos maquínicos. softwares existentes não segue teleologicamen- te a perspectiva da mera existência de máquinas Um livro popular de Eli Pariser (2011, p.72) de computação e linguagens de programação. O enumera muitos outros casos de “classificação software, assim como uma linguagem, permite a algorítmica” e argumenta que a tendência de expressão e a mecanização de uma ampla gama personalizar a informação oferece o risco de de ideias e objetivos, mesmo que seus princípios nos fecharem “filtros bolha” que nos restringem básicos, e suas convenções e conhecimentos his- a “informações que estão em conformidade com tóricos acumulados estruturem certos resultados. as nossas ideias de mundo” (idem, 2011, p. 52). Embora a opinião de Pariser sobre o fenômeno Alguns dos esforços mais promissores para seja limitada em termos de evidências, o livro “estudar o algoritmo” (LAZER et al., 2014, p.1205) tem o mérito de ter apresentado para um público vieram de jornalistas que adaptaram suas tradi- amplo um fenômeno que sem dúvida é real e sig- cionais investigações para “relatórios de respon- nificativo: processos algorítmicos - e os amplos sabilidade algorítmica” (DIAKOPOULOS, 2015, p.398), usando técnicas de engenharia reversa

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 125 BERNHARD RIEDER para reconstruir procedimentos de decisão. Os cas algorítmicas familiares possam ser implemen- métodos de pesquisa emergentes para a audi- tadas. Isso coloca os especialistas1 em software toria de algoritmos apontam para uma direção em consonância com outros especialistas em similar (cf. CUSTERS et al., 2013; SANDVIG et métodos, como métodos estatísticos, pesquisa- al., 2014; SWEENEY, 2013). Mas existem limites dores operacionais, ou consultores, que dominam para o que se pode inferir do exterior, já que por um conjunto de métodos e procedimentos que conta de sua arquitetura, sistemas de informação são aplicados facilmente em diversas situações. são frequentemente complexos e adaptativos. Ainda que as técnicas algorítmicas sejam, em No entanto, esses sistemas que não surgem de última instância, destinadas à implementação de um vácuo intelectual. Partindo da observação de softwares, muitas vezes elas surgem com ideias que o desenvolvimento de procedimentos algorít- que têm pouco a ver com a Computação. Por micos tem como base ricos reservatórios de co- exemplo, não há nada intrinsecamente computa- nhecimento disponibilizados por disciplinas como cional sobre noção que mensagens spam podem ciência da computação e engenharia de software, ser identificadas pela inspeção do seu conteúdo este artigo formula uma abordagem para a análise textual. A proposta de Graham (2002) para uti- de software que se posiciona entre a teorização lizar um classificador estatístico que trata cada ampla e a investigação empírica de aplicações palavra em uma mensagem como um indicador concretas de algoritmos de ordenação informa- de “possibilidade de spam” transporta essa forte cional. Esse meio-termo gira em torno do conjun- intuição inicial para um território computacional, to finito de abordagens bem conhecidas para a ainda que os programas possam implementar a filtragem e classificação de informações que sus- ideia de várias maneiras. O termo “classificador tentam a maioria dos sistemas em funcionamen- estatístico”, no entanto, aponta não apenas para to. Proponho chamar esses métodos padroniza- um espaço amplo na teoria da probabilidade, mas dos, que estão no centro da prática de desenvol- também para uma lista de técnicas algorítmicas vimento de software e da educação em Ciências bem documentadas para a realização de classifi- da Computação, de técnicas algorítmicas. cações estatísticas. Na verdade, aprender a programar, no senti- Cada técnica gira em torno de uma ideia cen- do de dominar uma linguagem de programação, tral, um núcleo conceitual que normalmente é es- é apenas uma pequena parte da educação em in- tabelecido através da combinação de linguagem formática no nível universitário. Uma porção ain- natural e notação matemática. A técnica forne- da maior se concentra nas diferentes técnicas, ce uma lógica geral e especificações de cálculo geralmente de matemática aprofundada, que po- formal, mas para que a implementação efetiva dem ser expressas com códigos, e como aplicá- desses elementos em um sistema funcione efe- -las aos notórios “problemas do mundo real” que tivamente, requer que muitas decisões sejam to- os estudantes podem encontrar em um contexto madas em relação às unidades que serão consi- profissional concreto. Técnicas algorítmicas são, portanto, unidades de conhecimento especializa- 1 Existem diferenças consideráveis entre os tipos de “fabrican- das no campo da produção e desenvolvimento de tes de software”, mas todos eles empregam técnicas algorítmi- software. O que Wing (2006) e outros pesquisa- cas de diversas maneiras. As técnicas de ordenação informa- cional que este artigo aborda resultam de atividades intensivas dores chamaram de pensamento computacional de pesquisa acadêmica em Informática e Ciência da Compu- é precisamente isso: a capacidade de abstrair de tação, mas que agora estão disponíveis para a maioria dos de- uma situação concreta para um nível onde técni- senvolvedores de software através de bibliotecas de software e por conta da extensa documentação existente.

126 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 § Parágrafo EXAMINANDO UMA TÉCNICA ALGORÍTMICA deradas: a especificação dos parâmetros que se- classificadores de Bayes são um pars pro toto2 rão utilizados; os ajustes que deverão ser feitos; para a ordenação informacional contemporânea. os resultados que serão produzidos, e assim por Na medida em que eles são probabilísticos (suas diante. Eu argumentaria que a manifestação mais classificações não são binárias, mas sim medidas concreta da acumulação de conhecimento em Ci- em níveis de certeza), adaptáveis (eles “apren- ência da Computação e disciplinas relacionadas é dem” a partir da experiência) e apropriados para a disponibilidade de um arquivo de técnicas cada personalização, permitem uma discussão sobre vez maior, pronto e acessível para aqueles que se- aspectos centrais para o campo mais amplo de jam suficientemente habilidosos para aplicá-las. aprendizagem de máquina. Em segundo lugar, Codificar, então, é uma forma de expressar essas os princípios que os classificadores de Bayes técnicas em termos que um computador possa se baseiam são suficientemente simples de se- entender, e os algoritmos concretos são o resul- rem definidos, não requerendo familiaridade com tado de encontros situados entre ambientes de probabilidade matemática. Em terceiro lugar, os computação, técnicas algorítmicas e requisitos filtros bayesianos estão envolvidos em um nexo locais. Acredito que a investigação crítica sobre histórico - as técnicas iniciais para recuperação softwares e os vários papéis sociais que desem- de informações e mineração de texto - que está penham pode se beneficiar substancialmente de intimamente relacionado com suas aplicações um entendimento aprofundado das técnicas algo- politicamente relevantes no presente, servindo rítmicas. Para desenvolver esse argumento com assim de forma instrutiva para a argumentação mais detalhes, proponho investigar um exemplo teórica mais ampla que pretendo fazer. Enquan- específico do campo da ordenação informacional. to os classificadores de Bayes são em primeiro A menção da filtragem de spam já aponta lugar apenas uma das muitas técnicas aplicáveis para a técnica que vou examinar mais de per- às tarefas que nos levam a questionar o poder to neste artigo, uma vez que os classificadores social dos algoritmos, como a filtragem de con- bayesianos são normalmente usados para este teúdo ou recomendação, e avaliação automatiza- tipo de tarefa. Também conhecidos como filtros da de crédito ou qualificação para um emprego, Bayesianos, os classificadores de Bayes apon- eles também representam instâncias para uma tam para a observação de que tarefas como leitura interessada de uma realidade empírica e pesquisa, classificação e filtragem estão intima- “dataficada” 3que atravessa esses exemplos. mente relacionadas em uma perspectiva técnica Enfrentar a questão do poder social dos algo- (cf., BELKIN; CROFT, 1992). Portanto, utilizo o ritmos através do exame crítico de uma técnica em termo “ordenação informacional” para abordar particular implica um desvio significativo de abor- essas práticas como um todo. Os classificado- res de Bayes fornecem um método específico 2 Nota dos tradutores: a expressão significa o mesmo que uma para fazer uso da inferência estatística na clas- metonímia, ou seja, tomar um termo para designar o significado sificação de um novo elemento, por exemplo, um de um dado referente com o qual guarde uma relação semânti- ca ou conceitual. e-mail recebido, baseado em um modelo de de- 3 Eu uso este termo referência à noção de “dataficação” de cisão derivado de elementos previamente cate- Mayer-Schönberger e Cukier: “os dados referem-se a uma des- gorizados, por exemplo, mensagens já marcadas crição de algo que permite gravar, analisar e reorganizar. [...] Para dataficar um fenômeno é necessário colocá-lo em um formato como spam. Existem três razões principais para quantificado para que possa ser tabulado e analizado “ (Mayer- escolher esta técnica específica. Primeiro, os -Schönberger & Cukier, 2013, p.78). Eu considero que a data- ficação não é um processo neutro, mas como sempre implica uma seleção proposital, ou seja, concepção e mediação.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 127 BERNHARD RIEDER dagens mais comuns que discutem “algoritmos” de fenômeno de forças sociais ou econômicas, o que forma ampla, generalizando a vasta diversidade de significa que estudar essas próprias forças nos técnicas existentes, ou de abordagens que exami- diria tudo o que precisamos saber. Nem o cons- nam um domínio de aplicação específico (como a fil- trutivismo social, em um nível micro, nem a crítica tragem de conteúdo ou avaliação de crédito) ou uma marxista, no nível macro, verificariam uma neces- plataforma (por exemplo, o Facebook) em que os sidade particular de estudar técnicas algorítmicas algoritmos desempenham um papel crucial. No en- em detalhadamente, pois são consideradas conse- tanto, a abordagem desenvolvida neste artigo está quências e não causas. Embora a tecnologia pos- alinhada com a forma específica na quais técnicas sa tornar-se relevante através da reificação ou do algorítmicas podem ser ao mesmo tempo diversas aumento da produtividade, os lugares reais de luta e gerais: enquanto todas as técnicas implicam uma estão em outra parte. Uma terceira posição, no maneira particular de realizar ações, é comum que entanto, sustenta que a tecnologia da informação elas possam ser aplicadas em uma ampla gama de pode ter um significado político considerável sem domínios, caso esses domínios possuam certos re- necessariamente encapsular uma lógica singular. quisitos básicos. Como eu apresentarei com mais Isso significa que diferentes formas de informati- detalhes abaixo, esses requisitos podem ser bas- zação são concebíveis. Nesta posição, os compu- tante gerais: para a aplicação de um classificador tadores e os softwares são certamente entendidos de Bayes, por exemplo, é apenas necessário apertar por representar sua própria “substância”, mesmo as entidades para classificá-las na forma de objetos que sua especificidade não se baseie em uma mar- que possuam propriedades quantificáveis. Assim ca ideológica singular, mas nas formas particulares como decidir sobre o mecanismo de feedback ou que representam e intervêm no mundo. de “supervisão” para treinar o modelo estatístico. Essa posição implica em uma reforma e uma Portanto, além de e-mails, uma entidade pode ser participação crítica que pode ser encontrada em praticamente qualquer coisa, o que inclui pessoas, campos como o movimento sobre “valores no de- situações e ideias. sign” (NISSENBAUM, 2005) ou no trabalho de Phi- Existem basicamente três posições ideais e lip Agre (1997). Se alguém defende uma das duas típicas a serem tomadas quando se trata de avaliar primeiras posições, há poucas razões para exa- o significado político do que há muito foi chamado minar técnicas particulares em detalhe, pois tudo de “informatização”, um termo com bela simplicida- pode ser considerado mera expressão de grandes de utilizado para capturar a reconfiguração digital lógicas ou ideologias. No entanto, a terceira posição da qual tantas práticas se tornaram dependentes. considera que as técnicas de exame são importan- A primeira posição considera que os computado- tes, pois conduzem a uma compreensão não só do res, os softwares e os especialistas associados a que elas realmente fazem e da forma como o fazem, eles seguem uma lógica singular, por exemplo, a da mas também do que elas poderiam fazer ou do que razão instrumental. Se considerarmos essa razão elas poderiam fazer diferentemente. Se o software instrumental inadequada, a luta política gira em é visto como uma forma genuína de expressão e torno da contenção ou reversão da informatização. intervenção cultural, o horizonte conceitual mobili- Essa atitude se manifesta no trabalho de pensa- zado em artefatos técnicos é um objeto relevante dores como Heidegger e Illich, ou, de forma mais de estudo para as Ciências Humanas e Sociais, bem recente, no estudo de Golumbia (2009) sobre o como um lugar para a afirmação e disputa política. “computacionalismo” (computationalism). A segun- Este artigo adota enfaticamente a terceira da posição vê a tecnologia apenas como um epi- posição, mas se esforça para permanecer sensível

128 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 § Parágrafo EXAMINANDO UMA TÉCNICA ALGORÍTMICA aos argumentos apresentados pelas outras duas. ras do comércio e do governo que a Computação se Apesar da minha breve e redutora apresentação, tornou uma técnica aplicada para a tomada de deci- não devemos deixar de lado nem os efeitos homo- sões. O advento da contabilidade de dupla entrada geneizadores dos princípios, ideias e convenções no século XV e a circulação de algorismi - manuais informacionais, nem o seu profundo emaranhamen- para aprender aritmética aplicada - permitiram o to com configurações sociais e econômicas maio- crescimento no comércio de longa distância, no qual res. A escolha por trabalhar com a terceira posição grandes navios e rotas mais longas exigiram entida- não pode ser entendida como algo dado, há uma ne- des organizacionais maiores que, por sua vez, de- cessidade de criar, identificar, articular e defender mandaram meios necessários para gerenciar esta essa escolha. Com esse espírito, uso o exemplo do complexa logística e compartilhar a cota de riscos classificador de Bayes tanto como meu caso estu- e lucros. Portanto, foi esta “informatização elevada do como para defender meu argumento. para o status de uma ciência empírica” (SWETZ, No entanto, discutir uma técnica que produz um 1987, p. 295) que forneceu ferramentas robustas modelo de decisão baseado no encontro entre dados para controlar e decidir, e assim estabilizou, padroni- e feedback exige uma introdução mais ampla. Quando zou e sistematizou como os comerciantes deveriam os editores Joseph Becker e Robert M. Hayes (1963, gerenciar seus negócios e interagir com seus pares. p. V) inauguraram a Information Sciences Series, uma A incerteza não foi eliminada, mas se quantificou influente série de livros publicada por Wiley & Sons a como risco, exigindo seguro contra perdas ao invés partir de 1963 com a afirmação de que “a informação da tentativa de evitá-las. A Política Aritmética (Poli- é o ingrediente essencial na tomada de decisões”, eles tical Arithmetik) de William Petty (1655) é notável ligaram explicitamente a jovem disciplina ao pragma- por aplicar essas técnicas comerciais a questões tismo orientado por objetivos de pesquisa de gestão e governamentais, ou seja, por gerar recomendações operações, ao invés de se associarem ao ideal científi- concretas sobre investimento público e organiza- co de análise e descrição desinteressada. Isso aponta ção econômica com base no que hoje chamamos de para uma tradição de aplicação do raciocínio formal ou análise custo-benefício. Estatística, como o nome “mecânico” a questões comerciais e governamentais indica, está profundamente interligada com tentati- que compartilham poucas ideias com a famosa álge- vas de desenvolver uma “Ciência do Estado”, ou seja, bra do pensamento de Leibniz e com o puro universa- um meio racional de governar, gerenciar e decidir. lismo da lógica matemática que muitas vezes é enfati- Até hoje, o termo estatística manteve um du- zado em histórias sobre a Computação. Mas a aplica- plo significado. Por um lado, refere-se à coleta de ção do cálculo para questões práticas e, em particular, fatos ou dados, que, no século XIX, se transformou para o gerenciamento do aumento do tamanho e da em uma “avalanche” (HACKING, 1990, p.2) ou “dilú- complexidade organizacional (BENIGER, 1986) tem vio” (COHEN, 2005, p. 113) de números tabulados uma longa história que culmina com o surgimento de relacionados a diversos temas e sujeitos. Este tipo estatísticas como a maneira predominante de olhar e de “descrição por números” é o que queremos dizer agir em um mundo visto como dinâmico e opaco. quando falamos sobre estatísticas de acidentes ou de emprego. Por outro lado, “em 1889, os usuários Estatística e realismo contábil de estatística [...] ficaram descontentes com a mera apresentação de fatos numéricos e procuraram por Embora a interface entre cálculo e raciocínio métodos de análise mais refinados” (GIGERENZER tenha sido amplamente estudada através da histó- et al., 1989, p. 58), o que levou ao surgimento de uma ria do “nobre” campo da lógica, foi nas arenas obscu- série de técnicas matemáticas usadas para analisar

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 129 BERNHARD RIEDER e encontrar padrões nos dados coletados. Por exem- e técnicas para raciocinar com e sobre múltiplos. A plo, as dependências entre variáveis. Ambos os sig- estrutura e as dinâmicas de conjuntos de entidades nificados se referem a práticas epistêmicas, isto é, e casos similares, porém cambiantes, tornam-se, ao práticas baseadas na produção e na definição de co- mesmo tempo, explanandum e explanans. A esta- nhecimento. No entanto, definição de conhecimento tística reconhece o problema dos múltiplos como é o que efetivamente mobiliza o raciocínio mecânico uma característica definidora do mundo e desenvol- em seu sentido mais completo, como uma transfor- ve noções como a regularidade e variação, distribui- mação puramente formal de um conjunto de símbo- ção e tendência, ou dependência e correlação para los em outro que produz, no processo, um excedente examinar, descrever e atuar sobre isto. epistêmico. A detecção de um nível significativo de É secundário aceitar plenamente ou não a vali- correlação entre duas variáveis não é simplesmente dade e utilidade dos conceitos e ferramentas esta- uma “apresentação de um fato numérico”; e sim uma tísticas; o que conta é que o raciocínio estatístico, operação cognitiva que gera interpretação da rela- bem antes do advento dos computadores, tornou- ção entre números e, por extensão, entre o mundo -se uma forma aceita e “confiável” (PORTER, 1995) que eles pretendem descrever. de se relacionar com o mundo, tanto em termos de Ao mesmo tempo, a estatística está ligada a compreensão (interpretação) quanto de interven- uma determinada classe de problemas ou de “pro- ção (tomada de decisão), seja “nas operações de blematização”, ou seja, as formas específicas de governo, ao gerir negócios e finanças, nas ativida- apresentar e enquadrar coisas como problemas des de ciência e engenharia e até mesmo em alguns (FOUCAULT, 1984, p. 17). Como um subcampo das aspectos da vida cotidiana” (COHEN, 2005, p. 17). matemáticas, a estatística fornece técnicas de ra- Mas, como observa Desrosières (2001, p. 346), a ciocínio para situações em que variadas entidades estatística permite diferentes “atitudes” em relação se comportam de tal maneira que não podem mais à “realidade” que devem descrever, diferentes “or- ser explicadas por uma única unidade. Por exemplo, questrações da realidade”. O “realismo metrológico” a mecânica estatística se materializou quando ficou (DESROSIÈRES, 2001, p. 340), a correspondência claro que uma descrição de um comportamento em- ou a teoria da equivalência da verdade, é apenas pírico dos gases com base na medição de molécu- uma delas. O que encontramos no comércio e no las individuais seria totalmente impossível. Da mes- governo, onde a estatística passou a desempenhar ma forma, como observa Foucault (2004b, p. 107), um papel ainda maior do que na ciência, é “realismo o estudo das epidemias e das dinâmicas econômi- contábil”, no qual o “‘espaço de equivalência’ não é cas no século XIX abalou o domínio da família como composto de quantidades físicas (espaço e tem- modelo de compreensão e regulação da sociedade. po), mas de um equivalente geral: dinheiro (DESRO- Em vez disso, a população surgiu como uma entida- SIÈRES, 2001, p. 342). Aqui, a marca de referência de conceitual adequada, vista como uma entidade (benchmark) para a validade de uma técnica não é capaz de gerar fenômenos e dinâmicas que não po- mais a correspondência desinteressada, mas sua deriam ser reduzidas às suas partes constituintes. utilidade para alcançar metas específicas. Tanto as moléculas como as pessoas não podem De forma não surpreendente, devido aos se- mais ser descritas em termos deterministas quando guidores do pragmatismo emergente do realismo encontradas como “múltiplos vivos” (MACKENZIE; contábil, a Ciência da Informação precocemente MCNALLY, 2013). Em ambos os casos, a estatísti- passou a utilizar diferentes métodos estatísticos ca resolveria a suposta contradição entre incerteza para solucionar seus múltiplos problemas. O fa- e controle (HACKING, 1990) ao fornecer conceitos moso documento de Bush (1945) não foi o único a

130 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 § Parágrafo EXAMINANDO UMA TÉCNICA ALGORÍTMICA lamentar pela “crescente montanha de pesquisas” central, mesmo que isso inicialmente significasse (idem, 1945, p.112) na qual cientistas estavam se pouco mais que selecionar e classificar documen- atolando. Foi na década 1950 e 1960 que várias tos em relação a uma consulta ou “pergunta”. Mas técnicas e algoritmos utilizados hoje em dia foram o campo evoluiu em um ritmo acelerado. Podemos usados para organizar informações pela primeira dividir os métodos contemporâneos para a filtra- vez. Nessa época, apenas poucas publicações gem de informações em dois grupos: filtragem ba- não chamaram a atenção para a crescente massa seada em conteúdo, que as utiliza propriedades dos de informações escritas e sua crescente veloci- documentos para decidir o que fazer com eles, e a dade de produção. filtragem colaborativa, baseada na “recomendação No processo de desenvolvimento de aborda- social”. Uma parte considerável do primeiro grupo gens mecânicas para resolução desse problema, o foi essencialmente estabelecida em 19754 e é pos- conhecimento, há muito entendido como um todo sível argumentar que o segundo grupo é ao menos coerente e consistente que precisa ser mapeado parcialmente antecipado pelo trabalho de análise por indivíduos esclarecidos, passa a ser definido de citações de trabalhos realizados em 1960. como uma massa complexa, dinâmica e extensa A filtragem baseada em conteúdo foi o cam- de documentos que precisam ser processados e po onde os classificadores de Bayes se desen- “extraídos” em relação a um requisito específico e volveram pela primeira vez através dos usos de situado. Isso significou um investimento de longo texto - palavras, sentenças, parágrafos etc. - alcance no substituto computacional do conhe- como um suporte para o significado, como uma cimento, a informação, e o desenvolvimento da matéria-prima a partir da qual inferir “assunto de “recuperação de informação” (MOOERS, 1950) um documento” pela Computação. Este esforço como um conjunto de métodos para tomar deci- se baseou na realização atribuída a Alonzo Chur- sões sobre documentos. ch e a Alan Turing que afirmavam “que números eram um aspecto não essencial da computação Uma abordagem estatística para o - eles eram apenas uma maneira de interpretar os estados internos de uma máquina” (BARR; significado da computação FEIGENBAUM, 1981, p. 4). Portanto, isso signi- É curiosa a recuperação de informação empre- ficava que o tratamento digital de informações gar o termo “informação”, que tem um significado co- não numéricas (MOOERS, 1950) havia se tor- tidiano profundamente ambíguo e que se assemelha nado um esforço plausível. Como a inteligência ao termo “conhecimento armazenado”. Ao contrário artificial, sua prima mais ilustre, a recuperação da Teoria da Comunicação de Shannon, que se pre- da informação ampliou o alcance do raciocínio ocupava com os aspectos técnicos da transmissão mecânico para um domínio anteriormente consi- de sinal, a embrionária Ciência da Informação visava derado como um privilégio humano: o tratamento o que Weaver chamava de “nível B” de comunicação, do conhecimento. Ao invés de reconstruir o his- ou seja, o “problema semântico” (SHANNON; WEA- tórico geral de recuperação de informações, esta VER, 1949, p. 4), isto é, o significado. seção se propõe a investigar de maneira particu- lar como concretamente isso foi concebido. Muitas vezes referido em termos menos intimi- dantes, como “assunto de um documento” (about- ness) ou “relevância”, manusear o significado atra- 4 Este é o ano em que o altamente influente “modelo de espaço vetorial” foi formalmente introduzido (SALTON; WONG; YANG, vés da ordenação informacional tornou-se o foco 1975). O curioso é que Salton foi o orientador de , chefe atual da divisão de pesquisa do Google.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 131 BERNHARD RIEDER

O classificador de Bayes de fato se resume a nosso caso, a hipótese diz respeito à probabilidade aplicação de estatística na missão da Ciência da de um documento (marcado com um número de ter- Informação em processar conhecimento e signi- mos ponderados) ser relevante para uma consulta ficado. A histórica começa no fim dos anos 1950, (representada por uma série de termos de pesquisa quando M. E. Maron5 “estava pensando seriamente que também podem ser ponderados). Curiosamen- sobre o problema de recuperação de informação” te, Maron propôs desde o início substituir a proba- (MARON, 2008, p. 971). Filósofo analítico e ciber- bilidade a priori de um documento (o equivalente nético, Maron estava trabalhando na Ramo-Wooldri- da “porcentagem de mulheres em uma população”), dge Corporation e na (infame) Rand Corporation an- o que normalmente seria dividido pelo número de tes de se tornar professor contratado da Escola de documentos na coleção, por estatísticas de uso do Informatização da Universidade Berkeley em 1966. documento. Essa escolha introduz no processo o Nesse momento, ele estava especificamente insa- tão discutido princípio da vantagem cumulativa ou o tisfeito com a prática de indexação de documentos, “efeito de Matthew” (MERTON, 1968): uma vez que na qual se atribuía uma palavra-chave a um item os documentos com maior uso acabarão na parte para descrever o seu assunto em “dois possíveis mais alta da lista de resultados, seu uso se tornará valores temáticos” (idem, 2008, p. 971): um tema ainda maior. No final, a fórmula de relevância desen- poderia ser atribuído ou não, mas nada era interme- volvida por Maron se parece com a fórmula abaixo, diário. A primeira melhoria feita por Maron em cola- usando um produto escalar6 para calcular a “proxi- boração com seu colega J. L. Kuhns foi a proposta midade” entre os termos da consulta (‘WordsQuery’ de indexadores para especificar um valor, em algum - palavras da busca) e os termos do documento lugar entre 0 e 1, que indicasse a relevância de uma (‘WordsDoc’ - palavra do documento). palavra-chave para um documento. Esse método, chamado de probabilistic indexing, tornou possível, através do teorema de Bayes e da inferência es- Na busca pelo termo [hidráulica], um do- tatística inversa, fornecer uma lista de resultados cumento marcado com 0.7 para esse termo ranqueada automaticamente para uma pesquisa teria um “número de relevância” superior a um sobre o assunto, ao invés de apresentar apenas um documento marcado com um valor de 0.5. Os conjunto de documentos não ordenados (MARON; documentos acessados com mais frequência KUHNS, 1960). também recebem um valor maior. Os resultados seriam então classificados de acordo com seu Deixando de lado essa história complicada e número de relevância. Combinações de termos suas várias interpretações, o teorema de Bayes for- e termos de pesquisa ponderados também se nece um método simples para calcular a probabili- tornaram possíveis. Esse método ainda era ba- dade de uma hipótese baseada em um conhecimen- seado numa forma de indexação manual, mas to previamente existente. Por exemplo, se conhece- representava “um ataque teórico que substitui mos a porcentagem de mulheres em uma população a indexação binária tradicional por uma abor- e as porcentagens a priori de mulheres e homens dagem estatística” […] para fazer previsões so- com cabelos longos, podemos calcular a probabili- dade da hipótese de que uma pessoa com cabelos 6 Um produto escalar é a soma dos produtos de duas sequên- longos que vemos de costas seja uma mulher. No cias de números. Por exemplo, o produto escalar entre a con- sulta {hidráulica: 0.7, carro: 0.5} e os termos do documento {hidráulica: 0.6, carro: 0.8} seria 0.7 * 0.6 + 0.5 * 0.8, ou seja, 5 Este artigo se centra no trabalho de M. E. Maron, embora para 0.82. Quanto mais termos se sobrepõem entre uma consulta dar uma visão mais completa do tema seria necessário incluir e um documento maior é o peso dos termos, e, portanto, mais as contribuições feitas por Solomonoff (1957) “relevante” é o documento em questão.

132 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 § Parágrafo EXAMINANDO UMA TÉCNICA ALGORÍTMICA bre a relevância dos documentos na coleção” namento” de cada uma das categorias temáticas (THOMPSON, 2008 p. 964). (portanto, a intervenção humana foi então reorga- No entanto, a técnica de indexação e classi- nizada e não eliminada) e, a partir daí gerar uma ficação que acabei de descrever não é um clas- lista de palavras combinadas identificadas nos do- sificador de Bayes. Ela introduziu o teorema de cumentos para cada categoria. Nem todas as pala- Bayes na recuperação de informações. Mas um vras foram consideradas. Palavras muito frequen- segundo experimento foi mais longe e usou o tex- tes ou muito raras foram descartadas. A seleção to completo do documento, acabando assim com resultante foi submetida a uma técnica semelhan- o indexador humano - considerado lento, pouco te ao que agora denominamos como frequência confiável e tendencioso conforme os primeiros do termo - métrica inversa de frequência de docu- cientistas das Ciências da Informação. Com base mento (tf *idf) introduzida por Karen Spärck Jones na afirmação de que “a estatística sobre tipo, fre- (1972) no início da década de 1970: as palavras quência, localização, ordem etc. das palavras se- que são distribuídas uniformemente em todas as lecionadas são adequadas para fazer previsões categorias são consideradas “pistas” inadequadas razoavelmente boas sobre o assunto de docu- e, portanto, rejeitadas. Para as palavras suficien- mentos que contenham essas palavras” (MARON, temente “específicas” foi gerado um índice, onde a 1961, p.405), Maron concebeu uma técnica para cada palavra se atribuiu um valor de relevância por a classificação automática de documentos: o categoria, determinando “certas relações de pro- classificador de Bayes. babilidade entre as palavras portadoras de conteú- do individuais e as categorias temáticas” (MARON, A classificação, nos termos da abordagem pro- 1961, p.405). Em poucas palavras: se um termo babilística proposta por Maron, significava que os aparece frequentemente nos documentos de trei- textos deveriam ser classificados em categorias namento atribuídos a uma determinada categoria, de temas especificados pelo usuário: “com base em mas é raro para outras, ela se torna uma forte pista alguma noção mais ou menos clara de categoria, ou indicador dessa categoria. devemos decidir se um documento arbitrário deve ou não ser atribuído a ela” (MARON, 1961, p. 404). Uma vez que a fase de treinamento se com- Um simples exemplo contemporâneo é, de fato, a pletou, a intervenção humana não era mais neces- filtragem despams : os e-mails são documentos e sária: com base na ideia de que um documento as categorias são spam e não spam. A técnica de deveria ser atribuído a uma categoria se contiver Maron concebeu documentos de texto como obje- bons indicadores para isso, novos documentos tos que contém certas propriedades (ou caracterís- poderiam ser classificados automaticamente. O ticas). Isso simplesmente significa que cada texto procedimento de cálculo foi muito semelhante à foi representado por uma lista finita de palavras que classificação descrita acima, mas, ao invés vez de contém, bem como sua frequência. Essas proprie- calcular a correspondência exata entre os termos dades foram consideradas, para dizer ao menos da consulta e os termos presentes no documen- algo sobre o assunto que o documento discute, ou to, foi calculada a correspondência entre a lista o suficiente para a tarefa pragmática de recupera- de palavras para uma categoria e para cada novo ção de informação. Hoje, tais listas de propriedades documento. Na medida em que muitas palavras quantificadas são geralmente referidas como veto- foram incluídas, cada documento poderia receber res ou vetores de características. um valor de relevância para diversas categorias. Por exemplo, o documento n era 0.8 relevan- O primeiro passo foi, então, selecionar uma te para categoria i, 0.5 para categoria j, e assim série de documentos característicos para “trei-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 133 BERNHARD RIEDER por diante, o que resulta em uma classificação cificidade de uma palavra? Essas e outras ques- probabilística ao invés de binária. O sistema era tões precisam ser respondidas quando uma téc- adaptativo, já que permitia a aprendizagem além nica algorítmica é trazida para realizar uma tarefa do treinamento inicial: se um usuário decidisse específica em um ambiente operacional especí- reclassificar um documento, as listas de palavras fico. Um algoritmo concreto é o resultado desse para categorias seriam recalculadas, somando processo. Isso significa que o estudo de técnicas um novo “conhecimento” ao modelo estatístico. algorítmicas não é suficiente para dar sentido aos Este é o esboço básico de um classificador comportamentos e compromissos específicos de de Bayes e serve como uma ilustração surpreen- sistemas reais e concretos. Porém, uma compre- dentemente representativa do grande campo de ensão sólida de técnicas comuns pode fundamen- técnicas contemporâneas de aprendizagem de tar formas de teorização em relação aos raciocí- máquina. Na medida em que essa abordagem as- nios reais que sustentam a criação de softwares sume a independência estatística entre as pala- e, assim, informar maneiras mais concretas de vras, ela é o que mais especificamente pode ser análise empírica. Ao oferecer categorias analíti- designado como um classificador de Bayes “ingê- cas que abrangem esses casos, essa abordagem nuo”. Porém, esse classificador foi utilizado como pode estabelecer uma base para a comparação ponto de partida por quase todas as técnicas mo- entre diferentes implementações - por exemplo, dernas, mesmo que os procedimentos matemáti- unidades e características, treinamento e confi- cos fossem aplicados de forma distinta como os guração de feedbacks, e modalidades de decisão. classificadores de máxima entropia ou as máqui- Em segundo lugar, o exemplo dado de classi- nas de vetor de suporte. Há uma série de aspec- ficação de texto é apenas uma aplicação de uma tos importantes a serem considerados. técnica mais geral. O trabalho de Maron baseia- Em primeiro lugar, o procedimento que aca- -se em um enquadramento específico de textos bei de descrever é precisamente o que o termo como listas de palavras quantificadas, ignorando “técnica algorítmica” tenta teorizar. O que acabei completamente aspectos como ordem, sintaxe ou de descrever de maneira simples ainda não é um estilo. Assim, o significado é concebido de forma algoritmo em uma compreensão mais restritiva altamente redutora. Embora existam sistemas do termo, mas descreve um método de classifica- que utilizem entendimentos mais amplos e apro- ção que implica uma maneira de olhar e atuar no fundados da linguagem, ambos os enquadramen- mundo. Ele enquadra e formaliza documentos de tos podem coexistir, já que qualquer sistema ope- texto como listas de frequências de palavras, for- racional requer e depende de alguma forma, de mula uma sequência de estágios do treinamento, seleção, formalização e redução. passando pela classificação até o ajuste, especi- Desse modo, a dataficação traduz hipóteses ficando uma série de funções protomatemáticas fundamentais em relação ao domínio da aplicação para pesar e calcular. Qualquer desenvolvedor de em estruturas de dados e as reifica. Isso geralmen- software poderia ser capaz de criar programa de te implica não apenas em redução, mas também em trabalho baseado na minha descrição, mas cada redução a uma forma comum, um movimento que implementação seria diferente, pois muitos deta- sustenta a generalização e explica como as técnicas lhes continuam sem ser especificados e reque- podem ser aplicadas em uma grande variedade de rem decisões. As palavras deveriam ser reduzidas campos. Os classificadores de Bayes são aplicáveis aos seus radicais? Quando cortar as palavras fre- a todas as entidades que podem ser representadas quentes e não frequentes? Como calcular a espe- como recursos, ou seja, listas de propriedades aos

134 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 § Parágrafo EXAMINANDO UMA TÉCNICA ALGORÍTMICA quais valores podem ser atribuídos. Músicas podem Os desenvolvedores do Facebook, por exem- ser consideradas vetores tendo como base o fato plo, estariam preocupados com os critérios para a de que usuários as escutaram7; locais e situações filtragem no Feed de Notícias, meticulosamente podem ser classificados de acordo com as caracte- organizando métricas como a afinidade entre os rísticas e o comportamento das populações asso- usuários, engajamento com publicações e fun- ciadas; pessoas buscando crédito bancário podem ções de tempo para produzir uma receita de deci- ser aprovadas ou não com base nos seus perfis no são clara que é guardada a sete chaves como um Facebook. Mas em todos esses casos, para come- segredo precioso. Mas essa concepção é cada vez çar esse trabalho, alguém deve tomar as decisões mais incompleta e ultrapassada; técnicas como em relação aos tipos de filtros e como formalizá-los. os classificadores de Bayes propõem meios para Outras técnicas de classificação envolveriam uma derivar modelos de decisão a partir do encontro diferente dramaturgia com outros atores e passos entre dados, um propósito e um mecanismo de fe- a seguir, mas o campo de aplicação é comparati- edback. No caso da filtragem de spam bayesiana, vamente amplo. Se pensarmos em interfaces de ninguém precisa compilar manualmente uma lista usuário, técnicas de rastreamento e - crescentes de palavras que sejam spam. O que acontece é - sensores como dispositivos que canalizam as- que, em uma primeira etapa, as categorias são de- pectos de práticas humanas como estruturas de finidas com base no que a classificação deve atin- dados formais, não é de se admirar que muitas das gir seu objetivo; no nosso caso, a classificação de técnicas pioneiras de recuperação de informacional e-mails em spam e não spam. Quando um usuário da década de 1950 estejam vivendo uma segunda começa a marcar mensagens, uma lista de pala- “primavera” com a popularização da internet. Quan- vras é gerada automaticamente, produzindo uma to mais fazemos coisas envolvendo aparelhos digi- base para a tomada de decisões. Não é uma fór- tais, maior será o número de entidades e fenômenos mula clara, mas um modelo estatístico adaptativo que podem ser formalizados como objetos e pro- contendo potencialmente centenas de milhares priedades de acordo como foi descrito. A crescen- de variáveis. Quando um avaliador de empréstimo te proliferação de problemas envolvendo grandes usa dados do Facebook para decidir se um can- conjuntos de entidades em ambientes previamente didato é suscetível a pagar um empréstimo, não computadorizados torna quase inevitável a aplica- há a necessidade de um sociólogo Bourdieusiano ção de soluções algorítmicas. marcar todos os possíveis elementos do perfil em Em terceiro lugar, o classificador de Bayes or- termos de classe social pertencente. É suficiente ganiza a tomada de decisão de uma forma profun- ter uma série de perfis de usuários que já paga- damente diferente do enquadramento comum de ram ou que foram inadimplentes com seus em- algoritmos como fórmulas. Até nas publicações préstimos e gerar um modelo em que cada item acadêmicas predomina essa concepção, a qual apa- do perfil se torne um indicador de “credibilidade”. O renta imaginar um grupo de desenvolvedores nume- Facebook pode desenvolver o seu mecanismo de rando variáveis que levem em consideração e espe- filtragem do Feed de Notícias de maneira muito cificam de que forma serão agrupadas e pesadas. similar, usando algum mecanismo que estabeleça o “tempo gasto no site” ou a “probabilidade de cli- 7 No trabalho de Maron, um documento foi representado com car em um anúncio” como critério para determinar uma lista de palavras e suas frequências, por exemplo, doc1: quais parâmetros de visibilidade são ótimos para {palavra1: 5, palavra2, 10, ...}. Uma classificação de música de acordo com os usuários pode representar cada música com cada usuário, individualmente. Em vez de selecio- uma lista de usuários que escutam com frequência: música1: nar e avaliar as variáveis manualmente, o classifi- {usuário1: 5, usuário2: 10, ...}.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 135 BERNHARD RIEDER cador deriva - ou “aprende” - os parâmetros ideais circulam sob a forma de mercadorias se alteram”, da relação entre dados (postagens que possuem enfatizando que os diferentes “estilos” técnicos de propriedades diferentes), comentários (o envolvi- processamento “trazem diferentes tipos de valor” mento de um usuário com essas postagens) e um (MACKENZIE, 2015, p. 436). Visto como leituras propósito (aumentar ainda mais o envolvimento). interessadas da realidade dataficada, é possível O sistema é capaz de executar o seguinte coman- avançar ainda mais e argumentar que as técnicas de do: “mostrar ao usuário as postagens similares às mineração de dados incorporam formas de cogni- que anteriormente tiveram um elevado grau de ção e estilos específicos de percepção que, por um envolvimento”. Portanto, o classificador de Bayes lado, não são antropomórficos, já que consistem em não é nem uma receita estática para tomada de procedimentos que só podem ser implementados decisões, nem uma teoria relacionada com uma por rápidos aparatos computacionais e, por outro atribuição ontológica. É um método para fazer lado, estão completamente enredados com arran- com que dados sejam significativos em relação a jos operacionais. No nível da significação, as técni- um desejo de selecionar algo em concreto. É um cas de mineração de dados atribuem significado a dispositivo para a produção automatizada de lei- cada variável em relação a um propósito. No nível de tura interessadas de uma realidade empírica. O performatividade, a mudança para infraestruturas objetivo de Maron não era dizer algo profundo so- digitais cada vez mais integradas significa que cada bre a relação entre texto e significado, mas proje- decisão classificatória pode ser devolvida para o tar um sistema que produzisse no domínio de sua mundo instantaneamente, mostrando um anúncio aplicação resultados “bons”. Eu uso o termo “inte- específico, escondendo um post específico, recu- ressada” para enfatizar que o processo epistêmi- sando um empréstimo a um candidato específico, co não é apenas marcado por algum tipo de viés estabelecendo o preço de um produto a um nível não desejado, mas totalmente projetado em torno específico, e assim por diante. Nenhum dado novo de um propósito explícito que supera quaisquer permanece inocente. Se considerarmos o poder de escrúpulos epistemológicos e ontológicos que se operar como uma “rede de relações” (FOUCAULT, possa ter. Isso se alinha com a noção sugerida por 1975, p. 31), podemos apreciar a forma como a Deserosières (2011) de realismo contábil, na qual mineração de dados oferece formas específicas “o objetivo não é mais a verdade, mas a performa- de estabelecer, organizar e modular as relações tividade - isto é, a melhor equação possível de en- entre as entidades dataficadas para servir objeti- trada / saída” (LYOTARD, 1984, p.46). vos estratégicos. Mesmo que os classificadores de Em quarto lugar, a técnica não determina a per- Bayes não determinem como seus resultados são formatividade do algoritmo resultante. O classifica- usados no nível de interface, eles representam um dor de Bayes fornece a capacidade de fazer leituras novo conjunto de tecnologias que produzem conhe- interessadas, mas não especifica nem a finalidade cimento profundamente “interessado”, usá-lo para nem a forma como uma decisão dá um retorno ou se tomar decisões com efeitos concretos é então in- conecta novamente ao mundo exterior. O Facebook troduzir uma “microfísica”8 que tem o potencial de pode decidir treinar os mecanismos do Feed de No- afetar profundamente as relações de poder. tícias com base em qualquer critério que a empresa Em quinto lugar, como já fora mencionado, os queira utilizar. Mas isso faz dos classificadores de filtros de Bayes são ideais para personalização e não Bayes ferramentas “neutras”? Mackenzie (2015 p. 444) argumenta que “à medida que a aprendizagem 8 Foucault (1975, p. 31) introduz o termo para abordar as di- de máquinas é generalizada, as formas de valor que ferentes, sutis e difusas tecnologias de poder que operam de várias maneiras em corpos.

136 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 § Parágrafo EXAMINANDO UMA TÉCNICA ALGORÍTMICA deveria ser uma surpresa que a primeira tentativa que sabemos; nós sabemos com base na decisão (RICH, 1983) de personalizar a recuperação de in- que devemos tomar. formações para indivíduos e não apenas categorias Para encerrar este artigo, em primeiro lugar, de usuários (novato, especialista etc.) baseou-se em eu quero voltar a ideia inicial e argumentar por que um método probabilístico próximo ao que acaba- vale a pena estudar técnicas algorítmicas. mos de descrever. Embora ainda não haja nenhum imperativo técnico para produzir um modelo esta- tístico separado para cada usuário, a recuperação Por que estudar técnicas algorítmicas? da informação renunciou, desde o início, às noções Podemos afirmar que desde a Revolução In- universalistas de ordem que encontramos na maio- dustrial nosso relacionamento com ferramentas e ria dos sistemas de classificação de conhecimento máquinas tem sido altamente ambíguo. Tecnolo- usados em bibliotecas e enciclopédias. Até os pri- gias raramente passam despercebidas, são acla- meiros sistemas enfatizaram a consulta em banco madas ou ridicularizadas, pelo menos até que se de dados e tentaram transferir o máximo de expres- desvaneçam no tecido da vida cotidiana. Desde a sividade possível aos usuários, os quais eram imagi- Segunda Guerra Mundial, os estudiosos das Ciên- nados como cientistas que sabem muito bem o que cias Humanas se propuseram a realizar estudos e eles estão à procura. Os sistemas não foram con- avaliações, muitas vezes de forma bastante pes- ceitualizados como pontos de acesso convenien- simista. Mas na maioria dos casos, não se reco- tes a árvores de conhecimento estáveis, mas como nheceu formas concretas de engajamento com motores de ordem, capazes de projetar estruturas objetos e procedimentos técnicos. Ao mesmo latentes presentes de várias maneiras nos dados. tempo, a suposta autonomia do desenvolvimen- O debate sobre o “filtro bolha” nos mostra como as to tecnológico tem sido regularmente lamentada. sociedades liberais são marcadas pela tensão entre Pode ser que essa autonomia seja consequência o universalismo e o perspectivismo. Isso também da falta de engajamento com a tecnologia como demonstra como a Internet aumentou ainda mais tecnologia? Ou seja, a tecnologia considerada este problema, unindo, de um lado, um número sem como um vasto conjunto de objetos, técnicas e precedentes de pessoas diante das mesmas inter- práticas que só podem ser enquadradas ao con- faces e, por outro, tornando possível proporcionar a ceito de grego de techne com extrema redução. cada pessoa algo diferente. Os classificadores de Para Simondon (2014), o objeto técnico ga- Bayes formam parte de um grupo maior de técnicas nha sua dimensão objetiva, ou seja, ganha seu lugar e estão no centro desse problema. nas relações econômicas, sociais e psicossociais De acordo com a categoria mais ampla de com base em sua dimensão objetiva. Isto é, em sua técnicas de ordenação informacional, os classi- operação técnica. Tecnologia (la technique) é vista ficadores de Bayes produzem significado - e não como um dos caminhos fundamentais o qual os se- apenas o significado dos textos - de maneiras res humanos se relacionam com o mundo, ao lado muitas vezes complexas e diretas através da to- da religião, ciência ou arte: “O que reside nas máqui- mada de decisão informada por objetivos e propó- nas é a realidade humana, o gesto humano fixado e sitos específicos. De certa forma, desde o início, a cristalizado em estruturas que funcionam” (SIMON- famosa distinção de Bacon entre o que é e o que DON, 1958, p. 12). Como “seres que funcionam” (SI- deve ser desaparece na forma de uma descrição MONDON, 2014, p. 138) é que máquinas adquirem que é produzida em um horizonte prescritivo. Nós significado e não apenas pela incorporação cultural. não decidimos mais (ou somente) com base no A avaliação do papel social que um objeto técnico

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 137 BERNHARD RIEDER deve desempenhar, portanto, tem que partir do seu dos computadores (digitais), o “graduável e difuso” “significado funcional” (SIMONDON, 2014, p. 28). (GOLUMBIA, 2009, p.21) tornou-se passível de ser Isto é, do ele que faz e de como faz. Considerando expresso em termos informacionais durante um pe- essa perspectiva, gostaria de apresentar quatro ar- ríodo muito longo de tempo. Isso é essencial para gumentos a favor de um engajamento mais extenso a apreciação da dimensão política do software. Ao com técnicas algorítmicas. pensar em controle através de algoritmos, como O primeiro argumento se baseia na atenção in- uma metáfora guia, devemos confiar menos nos fi- suficiente aos aspectos e conhecimentos técnicos, lósofos calculadores de Leibniz e passar a confiar o que aumenta o risco de a crítica envolver uma figu- mais nas análises de custo-benefício de Petty, que ra irreal. O diagnóstico de Winner que diz que “nos- operam hoje através de conceitos como probabili- sas concepções padrão sobre tecnologia revelam dade, média, margem, distribuição, correlação, or- uma desorientação que beira a dissociação com a dem, limiar, variação, tendência, distância, equilíbrio realidade” (WINNER, 1978, p.8) é mais apropriado e assim por diante. O Google pode ser uma empresa do que nunca. Espero que o exemplo do classifica- de publicidade em primeiro lugar, mas em segundo dor de Bayes tenha deixado claro que as técnicas lugar é empresa de estatística. No fim das contas, contemporâneas para ordenação informacional e, é preciso estabelecer se fenômenos politicamente portanto, o que as informações de muitas entidades relevantes como os “filtros bolha” são um diagnósti- podem representar, não são simplesmente transpo- co preciso, um uma fantasia mitológica ou simples- sições ou extensões de princípios mais antigos de mente um pânico moral agradável. A descrição téc- catalogação e classificação utilizadas no espaço nica é um passo necessário para a desmistificação. digital, mesmo que as interfaces empreguem metá- O segundo argumento consiste em olhar para foras similares. Como tentei mostrar, há uma certa artefatos técnicos concretos, sejam técnicas ou im- continuidade ou ressonância com formas anterio- plementações concretas. Perceber a oposição en- res e aplicações de raciocínio mecânico. Através da ganosa entre objetividade e subjetividade e, em par- estatística, a “teoria da probabilidade se tornou o ticular, entender como a dicotomia entre julgamento árbitro da racionalidade prática” (GIGERENZER et e cálculo podem ser abordadas sob uma luz diferen- al.,1989, p. 255), mas o computador aumentou con- te. O termo “qualculação” (qualculation) (COCHOY, sideravelmente o seu alcance e poder. No entanto, 2002) é útil aqui, porque mesmo os procedimentos os equívocos são abundantes quando se trata de puramente informacionais dependem de um trabalho entender como softwares funcionam. Embora as extensivo que não é baseado em cálculos. A decisão lógicas não monotônicas, multivaloradas, e proba- de Maron de formalizar textos como frequências de bilísticas tenham sido fundamentais para a Ciência palavras foi projetada para permitir sua computação, da Computação desde o seu início, ainda podemos e não para ser considerado o resultado da computa- ler que “as regras lógicas não permitem ambiguida- ção. Callon e Law (2005) argumentam que noção de des substantivas; uma proposição ou sucede ou não cálculo não deve ser contrastada com o julgamento sucede” (GOLUMBIA, 2009, p. 194). Os classifica- (humano), mas sim estendida a este julgamento para dores de Bayes são exemplos perfeitos de técnicas poder ser aplicada. Isso não significa que todas as for- que responderão a se um documento pertence a mas de raciocínio são equivalentes. Pode-se afirmar uma determinada categoria, não com um “sim” ou com segurança que Dean Baquet, editor executivo com um “não”, mas com um “0.7”. do The New York Times, e Krishna Bharat, criador do Embora o verdadeiramente contínuo, posto em agregador automático de notícias Google News, têm dúvida pela teoria quântica, esteja fora do domínio uma influência considerável sobre as notícias que as

138 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 § Parágrafo EXAMINANDO UMA TÉCNICA ALGORÍTMICA pessoas leem todos os dias; mas seu “poder” é con- como a conduta é efetivamente realizada. E enquan- figurado de forma bastante diferente, operando atra- to quase todas as técnicas deixam espaço para mui- vés de diferentes técnicas e mecanismos. Seguindo tas decisões e podem ser desenvolvidas em várias Callon e Law (2005), podemos descrever ambas as direções, seu horizonte conceitual ainda implica uma configurações como qualculativas, já que em ambos orientação epistemológica e formas específicas de in- os casos as decisões que levam aos resultados com- tervenção. Uma crítica precisa mostrar mais frequente- binam elementos de cálculo e julgamento - até o The mente o conhecimento da relação paradoxal entre pa- New York Times não ignora os números de vendas. No dronização e variação que caracterizam os softwares. entanto, as diferenças na forma como eles calculam Apesar da ênfase no “propósito” e no critério de desem- são significativas. Como fora previamente salienta- penho descrito anteriormente, a técnica do classifica- do, o raciocínio mecânico não elimina o poder, mas dor de Bayes não se limita em sua finalidade. Em vez reconfigura e desloca os critérios humanos da defini- disso, apresenta uma maneira específica de ler e agir ção de resultados para a definição de procedimentos, sobre o mundo em relação a um propósito específico. mecanismos ou técnicas que vão produzir resultados. É possível e desejável uma teoria mais ampla sobre os A diferença entre o The New York Times e o Google classificadores de Bayes e, também por extensão, so- News é importante, mas não pode ser reduzido a uma bre o aprendizado de máquinas. O argumento de Des- mera diferença entre julgamento e cálculo. Ao estu- rosières (2001) de que o realismo contábil implementa dar os classificadores de Bayes podemos ver que são o dinheiro como principal equivalente nos traz de volta abundantes os momentos que requerem tomadas de ao emaranhamento das grandes configurações sociais decisão: a seleção de documentos de treinamento; a e econômicas que mencionei previamente. Embora eu eliminação de palavras; o estabelecimento de limiares não acredite que haja necessariamente uma conexão e os pontos de corte; o compromisso com uma teoria fatal entre o aprendizado de máquina e o capitalismo de linguagem que leva frequências de palavras como avançado, é difícil ignorar que as técnicas de leitura in- indicadores de significado; as várias formas de coor- teressada se encaixam perfeitamente em um sistema denação entre o classificador e a interface, e a esco- que tenta extrair o valor monetário através de infinitas lha de utilizar um método probabilístico e este método explorações de diferenças. Remetendo novamente ao específico. Paradoxalmente, parece que quanto mais vocabulário de Simondon, uma teoria geral das técni- calculamos, mais é necessário julgar. Essa mudança cas algorítmicas terá que aceitar que objetividade e as de perspectiva deveria fazer com que trocássemos a dimensões objetivas não podem ser mantidas separa- obsoleta questão se os algoritmos são ou não “objeti- das indefinidamente. vos” por uma pesquisa sobre compromissos interpre- O quarto e último argumento apontam que a falta tativos, propósitos e parâmetros de referência incor- de envolvimento com os procedimentos tecnológicos porados nos conjuntos específicos de cálculos que os concretos cristaliza a fenda cultural e epistemológi- dão suporte. O estudo de técnicas algorítmicas não ca existente entre humanistas e engenheiros. Existe pode substituir a análise empírica de lugares onde de- uma grande lacuna entre técnicas que orientam im- cisões e implementações são finalmente feitas, mas plementações reais e os apelos bem-intencionados pode ir salientar o esforço de informar a este respeito. de Pariser (2011), que pede às empresas e engenhei- O terceiro argumento é que cada vez mais está fi- ros para criar algoritmos que favoreçam a “diversida- cando claro que os algoritmos - geralmente baseados de” e o “acaso” ao invés vez de nos fechar em bolhas. em técnicas de probabilidade - estão desempenhando Se quisermos tornar a filtragem de informação uma um papel crucial ao decidir como a informação circu- questão política em termos mais precisos, essa lacu- la, como as pessoas se encontram e se relacionam, e na precisa ser superada de forma mais fundamenta-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 139 BERNHARD RIEDER da, ao invés de se basear em uma noção superficial guntas sugestivas são apenas um começo, mas que a visão administrativa de interdisciplinaridade nos talvez possam ilustrar como a compreensão mais proporciona. Se a “diversidade” e o “acaso” não signifi- profunda e pré-formal das técnicas algorítmicas cam aleatoriedade, teremos que pensar sobre o signi- nas ciências humanas e sociais poderia levar ao ficado concreto que queremos dar a esses termos, e surgimento de uma zona de intercâmbio na qual a esse significado terá que encontrar uma maneira de falsa oposição entre cultura e tecnologia (SIMON- se expressar como através de um aparato computa- DON, 1958, p. 9) já não se aplicaria. cional. Isso não é simplesmente uma tradução de uma disciplina para outra, como de Ciências Políticas para Agradecimentos Ciências da Computação, mas sim um processo muito mais complicado que requer uma produção minuciosa O autor gostaria de agradecer a Fernando Van de associações precárias entre formas de expressão der Vlist e os dois anônimos pareceristas pelo valio- que são fundamentalmente diferentes. Embora eu so feedback. concorde com Mackenzie (2015) que não é essencial ter uma compreensão detalhada de como os métodos Referências de mineração de dados funcionam, acredito que uma compreensão sobre o nível mais geral de técnicas al- AGRE, Philip. Toward a critical technical practi- gorítmicas é tão possível quanto necessária. ce: Lessons learned in trying to reform AI.Social Science, Technical Systems and Cooperative Work: Minha apresentação técnica do classificador Beyond the Great Divide. Erlbaum, 1997. de Bayes certamente omitiu muitos aspectos que qualquer cientista da informação ou da computa- BARR, Avron; FEIGENBAUM, Edward; ROADS, C. ção consideraria essencial. No entanto, meu obje- The Handbook of Artificial Intelligence. Stanford, tivo era estabelecer um nível de descrição no qual Calif: Heuris Tech Press, 1982, 1 v. um encontro entre princípios culturais e técnicos BECKER, Joseph; HAYES, Robert Mayo. Informa- fosse possível, de tal maneira que nenhum dos tion Storage & Retrieval: Tools, elements, Theories. “lados” fosse reduzido a uma caricatura. Podemos New York: Wiley, 1963. certamente imaginar uma ampla crítica de um esti- lo particular de mineração de dados, por exemplo, o BELKIN, Nicholas J.; CROFT, W. Bruce. Information estilo probabilístico. Mas quando entendemos que filtering and information retrieval: Two sides of the “probabilístico”, aqui, significa que cada proprieda- same coin? Communications of the ACM, n. 12, p. de de uma entidade formal é enquadrada como um 29-38, 1992, 35 v. indicador de associação dentro de um conjunto de BENIGER, James R. The Control Revolution: Tech- categorias predefinidas, nossa crítica talvez seja nological and Economic Origins of the. Cambridge: capaz de produzir sugestões consistentes. Então Harvard University Press, 1986. nos perguntamos: poderíamos mostrar aos usu- ários quais propriedades mais contribuíram para BUSH, Vannevar et al. As we may think. The atlantic uma decisão ser feita? Poderíamos disponibilizar monthly, n. 1, p. 101-108, 1945, 176 v. na interface a propriedade ou valor de seleção? Poderíamos tornar os princípios de treinamento CALLON, Michel; LAW, John. On qualculation, agen- explícitos? Poderíamos fazer com que as associa- cy, and otherness. Environment and Planning D: So- ções probabilísticas desaparecessem ao longo do ciety and Space, n. 5, p. 717-733, 2005, 23 v. tempo? Poderíamos definir exceções? Essas per- COCHOY, Franck. Une sociologie du packaging ou

140 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 § Parágrafo EXAMINANDO UMA TÉCNICA ALGORÍTMICA l’âne de Buridan face au marché: Les emballages et HACKING, Ian. The taming of chance. Cambridge: le choix du consommateur. Paris: Presses universi- Cambridge University Press, 1990. taires de France, 2002. LAZER, David et al. The parable of Google Flu: traps in COHEN, I. Bernard. The triumph of numbers: How cou- big data analysis. Science, v. 343, n. 6176, p. 1203- nting shaped modern life. Nova York: WW Norton & 1205, 2014. Company, 2005. LYOTARD, Jean-François. The postmodern condition: CUSTERS, B. H. M. et al. Discrimination and Privacy in A report on knowledge. Manchester: Manchester Uni- the Information Society. Data mining and profiling in versity Press, 1984. large databases. (Eds.). Berlin: Springer, 2013. MACKENZIE, Adrian. The production of prediction: DESROSIÈRES, Alain. How Real Are Statistics? Four What does machine learning want?. European Journal Posssible Attitudes. Social Research, p. 339-355, of Cultural Studies, n. 4-5, p. 429-445, 2015, 18 v. 2001. MACKENZIE, Adrian; MCNALLY, Ruth. Living multi- DIAKOPOULOS, Nicholas. Algorithmic accountabili- ples: How large-scale scientific data-mining pursues ty: Journalistic investigation of computational power identity and differences. Theory, Culture & Society, n. structures. Digital Journalism, n. 3, p. 398-415, 4, p. 72-91, 2013, 30 v. 2015, 3 v. MARON, Melvin Earl. Automatic indexing: an experi- FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: naissance de la mental inquiry. Journal of the ACM (JACM), v. 8, n. 3, p. prison. Paris: Gallimard, 1975. 404-417, 1961.

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142 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 123-142, jan./abr. 2018 § Parágrafo Por que empresas de mídia insistem que não são empresas de mídia, por que estão erradas e por que isso importa*

Why media companies insist they are not media companies, why they are wrong, and why it matters

Philip Napoli Duke University, DeWitt-Wallace Center Durham, NC, Estados Unidos da América

Robyn Caplan Rutgers University, Data & Society Newark, NJ, Estados Unidos da América

* Artigo publicado originalmente na Revista Online First Monday, Volume 22, número 5. Disponível em: http://firstmonday.org/ojs/ index.php/fm/article/view/7051/6124. Tradução: Tarcízio Silva

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 143 PHILIP NAPOLI E ROBYN CAPLAN

Resumo Abstract Uma posição comum entre plataformas de mídia A common position amongst social media platforms social e agregadores de conteúdo é sua resistência and online content aggregators is their resistance em ser caracterizados como empresas de mídia. to being characterized as media companies. Rather, Ao contrário, empresas como Google, Facebook e companies such as Google, Facebook, and Twitter Twitter tem constantemente insistido que deveriam have regularly insisted that they should be thought ser pensadas como puramente empresas de tec- of purely as technology companies. This paper cri- nologia. Este artigo critica a opinião que estas pla- tiques the position that these platforms are tech- taformas são empresas de tecnologias ao invés de nology companies rather than media companies, empresas de mídia, explora seus argumentos subja- explores the underlying rationales, and considers centes e considera as implicações políticas, legais the political, legal, and policy implications associa- e regulatórias associadas com o aceite ou recusa ted with accepting or rejecting this position. As this desta opinião. Como o artigo ilustra, não é apenas paper illustrates, this is no mere semantic distinc- uma distinção semântica, dado que o histórico de tion, given the history of the precise classification of classificação precisa de tecnologias e serviços da communications technologies and services having comunicação possui profundas implicações em profound ramifications for how these technologies como estas tecnologias e serviços da comunicação and services are considered by policy-makers and são avaliadas por decisores políticos e tribunais. the courts.

Palavras-chave Algoritmos. Mídias sociais. Políticas de mídia. Jornalismo.

Keywords Algorithms. Social media. Media policy. Journalism.

144 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 § Parágrafo POR QUE EMPRESAS DE MÍDIA INSISTEM QUE NÃO SÃO EMPRESAS DE MÍDIA, POR QUE ESTÃO ERRADAS E POR QUE ISSO IMPORTA

Os últimos anos testemunharam uma série de passos além nesta observação, através do exame controvérsias emergir no campo das mídias sociais. crítico dos racionais articulados e motivações sub- Estas controvérsias brotaram em torno de acusa- jacentes desta posição e de considerar as amplas ções de vieses na construção de listas de trending implicações de aceitar este argumento. Um objetivo topics no Facebook e Twitter (NUNEZ, 2016a, chave deste artigo é ilustrar como este argumento 2016b; THUNE, 2016); críticas às plataformas de se encaixa em esforços maiores e contínuos destas mídia social por censurar fotos de relevância jorna- empresas em “discursivamente enquadradas seus lística histórica (SCOTT & ISAAC, 2016); evidência serviços e tecnologias” (GILLESPIE, 2010, p. 348). de crescente proeminência de relatos de falsas no- Como Gillespie (2010, p. 348) nota, muitas empre- tícias nos feeds de mídias sociais; e preocupações sas de mídia digital usam termos como “plataforma” do possível impacto de falsas notícias dissemina- estrategicamente, “para se posicionarem em favor das nas mídias sociais sobre os resultados de elei- tanto de lucros atuais quanto futuros, para acertar ções nos Estados Unidos e Europa (BELL, 2016; um ponto regulatório ótimo entre proteções legis- ROBINSON, 2016). lativas que as beneficiem e obrigações que não, e Esta sequência de eventos focou a atenção para dispor um imaginário cultural dentro do qual pública na questão de se e como plataformas de seus serviços façam sentido”. Nós vemos a auto-de- mídias sociais estão funcionando como organiza- finição como empresas de tecnologia e a forte re- ções de notícias; junto ao problema relacionado sistência a qualquer classificação como empresas sobre se estas plataformas devem agir como orga- de mídia como uma dimensão chave deste enqua- nizações de notícias (ISAAC, 2017; JARVIS, 2016; dramento discursivo, que possui importantes impli- MANJOO, 2016). Estas discussões estão toman- cações para os panoramas regulatórios e legais que do forma na medida em que dados indicam que as são aplicados a estas plataformas. plataformas de mídia social se estabeleceram como Esta crítica do argumento que plataformas de os mecanismos prioritários pelos quais indivídu- mídias sociais (e mais amplamente curadores de os acessam e consomem notícias (GOTTFRIED & conteúdo digital) devem ser considerados puramen- SHEARER, 2016). A potencialmente problemática te como empresas de tecnologia, e não como em- ironia desta situação é que estas empresas de mí- presas de mídia será fundamentado em perspecti- dia social que estão exercendo um papel crescen- vas econômicas, históricas e políticas de mídia, em temente importante e influente no ecossistema de um esforço de ilustrar os pontos significativos de notícias e informação possuem longo histórico em continuidade, ao invés de distinção, entre tradicio- insistir que não são organizações de notícias, ou nais e novas plataformas para notícias e informa- mesmo empresas de mídia em absoluto. Na verda- ção. Ao destrinchar e criticar este argumento, este de estas empresas insistem que devem ser vistas artigo procura demonstrar a importância do que apenas como empresas de tecnologia (ver, por ex, pode parecer, na superfície, apenas uma distinção DIXON, 2014; D’ONFRO, 2016). semântica sem relevância. Como este artigo mos- Diversos analistas apontaram esta crescente trará, há implicações legais e políticas fundamentais desconexão entre como estas empresas percebem associadas a como estas empresas se definem e a si mesmas - e como querem ser percebidas por ou- são definidas por decisores políticos e pelo público. tros - e como elas efetivamente funcionam no ecos- A seção inicial deste artigo apresenta e refuta sistema atual de notícias e informação (CAPLAN, os argumentos mais comumente usados por aque- 2016; BELL, 2016; BOGOST, 2016; INGRAM, las empresas buscando ser percebidas como em- 2012; SNIP, 2016). O objetivo aqui é dar alguns presas de tecnologia ao invés de empresas de mí-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 145 PHILIP NAPOLI E ROBYN CAPLAN dia. A segunda explora os principais racionais para curadoras de conteúdo digital é a consistência que essas empresas manterem essa posição. A terceira mostram ao resistir ser caracterizadas como em- seção pondera as implicações amplas de aceitar os presas de mídia enquanto insistem que devem ser argumentos cada vez mais tênues que estas em- pensadas puramente como empresas de tecnologia presas são de tecnologia ao invés de mídia. A con- (ver, por ex., HELFT, 2008; MICKEY, 2013). Mesmo clusão avalia a necessidade de novas abordagens empresas que estão inequivocamente no negócio definicionais que capturem melhor a crescente in- de produção de conteúdo midiático, como Gawker e tersecção entre tecnologia e mídia. Vox, levaram seus CEOs afirmar que são empresas de tecnologia ao invés de empresas de mídia (ver, Por que empresas de mídia insistem que por ex., SICHA, 2011; TJAARDSTRA, 2015). não são empresas de mídia; e por que Antes de olhar para os argumentos específicos apresentados por estas empresas, é importante re- estão erradas conhecer que a terminologia guarda-chuva “empre- sa de mídia” em torno do qual estes argumentos têm Parece que no atual panorama de ambiente de sido estruturados é um tanto problemática. Mídia negócios impulsionados por tecnologia, empresas não é um constructo monolítico e singular (apesar veem cada vez mais suas identidades em termos das da tendência de tratá-las como tal no discurso que abordagens tecnológicas aos negócios, mais do que analisaremos). Primeiro, de um ponto de vista regu- sobre os negócios específicos sobre os quais operam. latório e político, mídia eletrônica como televisão e Um dos exemplos mais proeminentes - e controversos rádio (e, com a imposição das regulações de neutrali- - envolve a Uber. Uber tem mantido firmemente que é dade da Internet, também a Internet) são considera- uma empresa de tecnologia ao invés de uma empresa das fundamentalmente diferentes de outras mídias, de transporte porque, segundo um representante a geralmente recebendo níveis menores de proteção Uber, “nós não transportamos bens ou pessoas - nos- da Primeira Emena e operando sob requisitos regu- sos parceiros transportam. Nós apenas facilitamos latórios mais explícitos para servir ao interesse pú- isto” (CUKIER, 2016, p. 1). As ramificações de aceitar blico amplo (NAPOLI, 2001). Esta é uma importante ou rejeitar este argumento são profundas, porque se a distinção que geralmente não encontra lugar nos ar- Uber é percebida como uma empresa de transporte, gumentos discutidos abaixo. Também amplamente então está sujeita a regulações sob as quais o seg- ausente é a importante (mesmo que eventualmente mento de transportes opera. Mas se, de outro lado, a difusa) distinção entre entretenimento e mídia noti- Uber é percebida como uma empresa de tecnologia, ciosa. De um ponto de vista regulatório e político, a as regulações para empresas de transporte simples- produção, distribuição e consumo de notícias tem mente não se aplicam; o que pode representar uma sido um grande ponto e motivação e foco para le- importante fonte de vantagem competitiva para a gisladores (NAPOLI, 2015); apesar que certamente Uber (ver, por ex., CARNEY, 2015). Uber certamente preocupações sobre a dimensão cultural da mídia não está sozinha ao manter esta posição. Empresas de entretenimento motivaram regulações e elabo- automotivas, financeiras e de telecomunicações tem ração de políticas também (NAPOLI, 2008). Como simplesmente defendido que devem ser vistas pu- será ilustrado abaixo, estes pontos de distinção ramente como empresas de tecnologia (NAPOLI & amiúde importam ao pensarmos sobre o argumento CAPLAN, 2016). “empresa de tecnologia, não empresa de mídia”. De forma similar, parece que uma caracterís- Agora nos voltamos para os principais argu- tica definidora das plataformas de mídia social e mentos apresentados em apoio a posição de que

146 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 § Parágrafo POR QUE EMPRESAS DE MÍDIA INSISTEM QUE NÃO SÃO EMPRESAS DE MÍDIA, POR QUE ESTÃO ERRADAS E POR QUE ISSO IMPORTA plataformas de mídia social e de curadoria de con- CEO do Facebook, manteve sua posição ao longo teúdo digital são empresas de tecnologia ao invés dos anos (ver, por ex., FIVEASH, 2016); e tão recen- de empresas de mídia. Em cada caso, usaremos temente quanto novembro de 2016, em sua respos- perspectivas econômicas, históricas e políticas so- ta às acusações sobre o papel da disseminação de bre os negócios de mídia para ilustrar as fraquezas fake news nas eleições dos EUA (ROBERTS, 2016). de cada argumento. Dick Costolo, então CEO do Twitter, afirmou que

“Nós não produzimos conteúdo” Eu penso em nós como uma empresa de tecnologia O argumento mais proeminente entre empre- porque eu penso que o futuro da empresa está em sas de mídia digital em apoio a posição de que não construir uma plataforma extensível que permite são empresas de mídia é que muitas dessas empre- desenvolvedores terceiros e empresas incrementar valor ao Twitter de um modo que seja benéfico ao sas não produzem conteúdo original; apenas facili- Twitter e benéfico a nossos usuários. Eu não preci- tariam a distribuição de conteúdo criado pelos seus so ou quero estar no negócio de conteúdo (BILTON, usuários. Algumas das empresas que usam este 2012, p. 1) argumento tem subsequentemente realizado inte- gração vertical na criação de conteúdo, seguindo Steve Jobs da Apple também enfatizou este um padrão predizível na história da mídia, na qual ponto de modo similar no lançamento do iTunes. os distribuidores de conteúdo buscam as vanta- Incomodado pela insinuação de um entrevistador gens estratégicas e econômicas de também ser da Esquire que a Apple estava se tornando uma criadores de conteúdo (ver NAPOLI, 2016). Então, empresa de mídia, ele respondeu “Nós não somos por exemplo, em 2016 o YouTube começou a pro- uma empresa de mídia. Nós não possuímos mídia. duzir séries originais em seu serviço de assinatura; Nós não possuímos música. Nós não possuímos enquanto (como será discutido na Conclusão), Fa- filmes ou televisão. Nós não somos uma empresa cebook recentemente começou incursões em cria- de mídia. Nós somos apenas a Apple” (LANGER, ção de conteúdo de vídeo original (ETHERINGTON, 2003, p. 2). A questão foi suficientemente sensí- 2016; PEREZ & SHIEBER, 2017; DOUGHERTY vel para Jobs que ele finalizou a entrevista abrup- & STEEL, 2015). Contudo, dada a anterior - e pro- tamente naquele momento. vável futura - persistência destes argumento entre distribuidores de conteúdo, é importante que rece- Este argumento obviamente convida à discus- ba escrutínio detalhado. são dos tipos de atividades que são centrais a nos- so entendimento sobre o que empresas de mídia O executivo da Google (entre ou- fazem. Tradicionalmente, a organização industrial tros executivos da empresa) usou este argumento da mídia tem sido descrita em termos de três fun- com frequência ao longo dos anos, declarando que damentais - mas raramente mutuamente exclusivos “Nós não fazemos nosso próprio conteúdo. Nós en- - atividades: 1) produção (exemplificada pelos cria- contramos mais rapidamente para você o conteúdo dores de conteúdo como agências de notícias e es- de alguém” (SULLIVAN, 2006, p. 1). O Facebook túdios de televisão); 2) distribuição (o processo de também tem sido um proponente deste argumento levar conteúdo dos produtores aos consumidores); há bastante tempo. Como o Vice-Presidente de Glo- 3) exibição (o processo de prover conteúdo direta- bal Marketing Solutions declarou, “Na verdade nos mente às audiências) (ver, por ex., PICARD, 2011). definimos como uma empresa de tecnologia. .... Em- presas de mídia são conhecidas pelo conteúdo que Digitalização e convergência de mídia signifi- criam” (FIERGEMAN, 2016, p. 1). Mark Zuckerberg, cam que estes processos, em alguns casos, foram

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 147 PHILIP NAPOLI E ROBYN CAPLAN mesclados, na medida em que conteúdo pode ser como distribuidoras de conteúdo de mídia. Este distribuído diretamente para o usuário final. O de- fato nunca serviu como um mecanismos para man- clínio de exibidores tradicionais como livrarias e lo- ter estas empresas além dos limites da autoridade jas de música em face da digitalização do conteúdo da Comissão Federal de Comunicações dos EUA e distribuição representa um exemplo. Seria difícil (FCC - Federal Communications Commission). No discutir que exibidores tradicionais como salas de caso da televisão à cabo, a FCC estendeu sua au- cinema, livrarias ou lojas de disco devem ser pensa- toridade regulatória ao cabo em parte ao classificar das como empresas de mídia. Porém, os substitutos cabo como subordinado a difusão por broadcasting destas entidades, como Amazon, iTunes e Netflix (United States v. Southwestern Cable Co., 19681). são fundamentalmente diferentes, ao utilizar a infra- Isto é, o fato que sistemas de cabo serviram como estrutura de mídia eletrônica para distribuir conteú- um meio central de distribuir e acessar conteúdo do a audiências em um formato público de maneira (televisão broadcast) que caía sob a autoridade re- que mais se aproxima de curadores e distribuidores gulatória da FCC agiu como um mecanismo para a tradicionais de conteúdo como redes de televisão expansão daquela autoridade regulatória ao cabo. e sistemas de conteúdo a cabo. Este é de vários Consequentemente, as empresas nos setores modos também o caso de plataformas de mídia so- de cabo e satélite foram sujeitas a regulações e pro- cial como Twitter, Snapchat e Facebook, que agora priedade e certas obrigações de interesse público, servem como meios centrais de distribuição para de acordo com a abordagem da FCC em torno de muitos produtores de conteúdo (de agências de no- regulação de mídia eletrônica (ver, por ex., FEDERAL tícias a indivíduos, passando pelo NFL), enquanto COMMUNICATIONS COMMISSION, 2016a). Políti- também servem como o ponto final de acesso aos cas fundamentais de mídia concernentes a diversida- usuários, que acessam o conteúdo através dessas de, competição e localismo (ver NAPOLI, 2001) tem plataformas via diversos dispositivos. E com servi- caracterizado a regulação desses mercados, inde- ços como Facebook Live (que permite videodifusão pendente de se, ou a qual extensão, estas empresas direta e imediata pela plataforma do Facebook) e se engajam em criação de conteúdo. E enquanto os Facebook Instant Articles (através da qual Face- mecanismos de distribuição de conteúdo no ambien- book hospeda diretamente conteúdo produzido por te digital certamente são diferentes daqueles empre- organizações de notícias; ver CONSTINE, 2015), o gados pelos meios tradicionais, como a executiva de processo de produção, distribuição e exibição está mídia Elizabeth Spiers perguntou, ”Alguém vai me ex- cada vez mais integrado. plicar como distribuição digital de seu conteúdo torna Nós enfatizamos a evolução destes processos sua empresa primariamente uma empresa de tecnolo- porque distribuição é uma característica definido- gia?” (BENTON, 2014, p. 1). O argumento, então, que ra da mídia, tanto quanto é a criação de conteúdo, criação/posse de conteúdo significativamente sepa- como um crescente grupo de pesquisadores de ra estas empresas de “tecnologia” do setor de mídia mídia deixa claro (ver, por ex., CURTIN et al, 2014). reflete um entendimento de mídia inocente ou pouco Criação/posse de conteúdo nunca serviu como um informado ou, ainda, um esforço intencional e estraté- ponto de distinção ao se definir uma empresa de gico de redefinir os parâmetros de uma empresa de mídia da perspectiva dos encarregados com regula- mídia nos discursos políticos e de negócio. Em qual- ção do segmento de mídia. Considere, por exemplo, quer caso, as implicações são problemáticas, como que tanto a televisão a cabo e indústrias via saté- discutiremos em mais detalhes abaixo. lite foram construídas inteiramente no fundamento de servir exclusivamente (ao menos inicialmente) 1 Disponível em:

148 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 § Parágrafo POR QUE EMPRESAS DE MÍDIA INSISTEM QUE NÃO SÃO EMPRESAS DE MÍDIA, POR QUE ESTÃO ERRADAS E POR QUE ISSO IMPORTA

“Nós somos cientistas da computação” liderança de uma empresa representa um funda- mento lógico para evitar que seja pensada como A segunda linha proeminente de argumentação uma empresa de mídia reflete ou um conhecimen- empregue pelas plataformas de mídia social e cura- to baixo da história e evolução da mídia ou um es- dores de conteúdo digital foca na composição de forço estratégico de estreitar a definição de mí- sua equipe profissional. Especificamente, represen- dia relativamente a seus parâmetros tradicionais. tes daquelas empresas frequentemente apontam Qualquer que seja a razão, a premissa subjacente para suas próprias áreas de formação e histórico de que tecnologia e mídia são empreendimentos profissional e de seus empregados em apoio do ar- separados que colhem de habilidades e capacida- gumento de que são empresas de tecnologia e não des profissionais completamente diferentes não empresas de mídia. Eric Schmidt, da Google, enfa- tem fundamento na história da mídia. tizou que a Google é uma empresa de tecnologia “porque é liderada por três cientistas da computa- “Sem interferência editorial humana” ção” (KRAMER, 2006, p. 1). De forma similar, o CRO da Cheezburger Ben Huh enfatizou a proporção re- Um argumento menos explícito que estas lativa de funcionários desenvolvedores em prol da plataformas de mídia digital oferecem, mas certa- afirmação de que a empresa é de tecnologia ao in- mente ligado ao último argumento, é a frequente vés de mídia (KOETSIER, 2012). contenda que o modo pelo qual o conteúdo vai pra “superfície” não é feito por decisões humanas, mas Aqui também vemos argumentos pobres em por algoritmos e tecnologias orientadas a dados fundamentação lógica ou histórica. Considere, por que filtram, categorizam e classificam informação exemplo, que no momento de sua introdução não já presente no sistema, apenas refletindo o que os havia maravilha tecnológica maior que a radiodi- usuários querem. Plataformas como Google e Face- fusão. Esta representou um salto tecnológico nos book frequentemente enfatizaram a falta de inter- meios de comunicação de uma magnitude que pro- venção humana em seus processos de curadoria vavelmente só pôde ser igualada pelo advento da de conteúdo, e tem sido hesitantes em reconhecer Internet. Consequentemente, radiodifusão era a intervenção humana quando acontece (ver, por ex., província dos tecnologistas e engenheiros em seu TRIELLI et al, 2016). Facebook, no início da con- tempo, dado sua relativa complexidade comparada trovérsia das Trending News, na qual um relatório a outros meios de comunicação disponíveis, como insinuou que editores humanos empregados pelo jornais impressos. Expertise tecnológica estava facebook estavam suprimindo notícias conserva- no centro das primeiras empresas de radiodifu- doras na lista da plataforma, focou em subestimar são como RCA e a Marconi Company (WOOLLEY, ao máximo o papel que a intervenção humana direta 2017). Tecnologia de satélite representou outro exerce na operação da plataforma (ver, por ex., FI- avanço dramático; outra vez requerendo profissio- VEASH, 2016; ISAAC, 2017), chegando ao ponto nais com um grande nível de expertise técnica. de eliminar os cargos de jornalistas e editores que Avanços tecnológicos - e a expertise tecno- supervisionavam o módulo de Trending depois da lógica associada - tem sido fundamentais para o controvérsia (THIELMAN, 2016). setor de mídia ao menos desde o advento da im- Esta falta percebida/declarada ausência de prensa. Como Deuze (2007, p. 73) nota, é impor- envolvimento humano editorial direto é, de vários tante que reconheçamos “o papel central que as modos, fundamental para a lógica de perceber es- tecnologias exercem no trabalho de mídia”. Argu- tas plataformas como empresas de tecnologia ao mentar que a orientação tecnológica da equipe ou invés de empresas de mídia. De fato, como Gilles-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 149 PHILIP NAPOLI E ROBYN CAPLAN pie (2010) demonstrou, o termo plataforma em si plesmente representam mecanismos mais eficien- foi estrategicamente empregado como um meio tes e efetivos para aquele fim, dada a maior quanti- de moldar estes serviços estritamente como faci- dade, escopo e profundidade dos dados de usuários litadores de criação e disseminação de conteúdo que são capazes de trabalhar, que é uma função da neutros, direcionados a tecnologia. Mark Zucker- maior interatividade associada a estas novas plata- berg, do Facebook, tem afirmado que a platafor- formas. O relacionamento entre plataformas de mí- ma simplesmente provê ferramentas aos usuários dias sociais e usuários representa então o próximo para ajudá-los a se engajar na criação e curadoria passo na progressão contínua do que Napoli (2011) de conteúdo (FIVEASH, 2016), uma posição que denominou de “racionalização da compreensão da parece ignorar - ou ao menos descaracterizar - o audiência” (NAPOLI, 2011, p. 26). papel que os algoritmos da plataforma exercem na Podemos olhar para desenvolvimentos recen- priorização e filtragem de conteúdo para os usu- tes, como o controverso rebranding2 da empresa ários. A ausência afirmada de envolvimento edito- de mídia tradicional Tribune Publishing, transforma- rial humano ajuda a levar adiante esta percepção da na empresa de tecnologia Tronc (ver SATELL, de distância da, e/ neutralidade no, processo de 2016), como um indicador de quão permeável é seleção de conteúdo - um modelo que é presumi- o limite que separa empresas de tecnologias de velmente diferente do tipo de critério editoriais di- empresas de mídia. A metamorfose da Tribune em retos (e humanos) que tem sido uma característica Tronc parece apoiar-se quase inteiramente numa definidora das empresas tradicionais de mídia. declarada confiança maior em aprendizado de má- Porém, simplesmente porque os mecanismos quina e algoritmos para melhor servir os interesses para exercer avaliação editorial - para gatekeeping da audiência e facilitar a automação de produção de - mudaram, não significa que a identidade funda- conteúdo (SATELL, 2016). O ceticismo dissemina- mental dos gatekeepers deve ser reformulada. Re- do (e até escárnio) que este rebranding sofreu (ver, presentantes das plataformas argumentariam que a por ex., SATELL, 2016), em relação a se isso repre- natureza de suas interações com os usuários é fun- senta ou não algo realmente inovador, ajuda a ilus- damentalmente diferente da mídia tradicional, uma trar que a crescente confiança na tecnologia para vez que usuários de mídias sociais exercem um pa- servir aos interesses da audiência não serve como pel muito mais autônomo na determinação de con- uma distinção significativa entre empresas de tec- teúdo que recebem. Isto é, os usuários, em colabo- nologia e empresas de mídia. ração com suas redes sociais, em última instância Além disso, a concepção de que algoritmos ditam o conteúdo que consomem, com a plataforma operam de um modo completamente neutro e ob- servindo como facilitadora neutra. Seja um reflexo jetivo, livre de inclinações que caracterizam as de inocência ou má fé, esta posição simplesmente decisões editoriais humanas diretas, tem sido efe- não é mais sustentável (GILLESPIE, 2018). tivamente desacreditada até o momento. Algorit- Para começar, a mídia sempre tentou, até certo mos, mesmo que automatizados, são usados para ponto, dar às audiências o que elas desejam. Quan- classificar, filtrar e priorizar conteúdo baseado em to a isto, um Facebook, Twitter ou Google são pouco valores internos ao sistema e preferências e ações diferentes de qualquer grupo de imprensa, televisão dos usuários (DEVITO, 2016). É sabido, neste pon- ou portais de notícia desesperadamente procuran- to, que engenheiros e outros atores organizacionais do descobrir o quê as audiências querem e prover exatamente isto (NADLER, 2016). A verdadeira 2 Nota do tradutor: rebranding representa uma estratégia de marketing baseada na revisão/mudança de elementos diferença é que plataformas de mídias digitais sim- constituintes de uma marca, como nome, logotipo, etc.

150 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 § Parágrafo POR QUE EMPRESAS DE MÍDIA INSISTEM QUE NÃO SÃO EMPRESAS DE MÍDIA, POR QUE ESTÃO ERRADAS E POR QUE ISSO IMPORTA devem tomar inúmeras decisões no design e desen- está usando esses trabalhadores para treinar volvimento dos algoritmos. Por meio das decisões e os algoritmos e tecnologias que eventualmen- relações, decisões subjetivas e vieses incorporado te automatizarão a seleção e organização das aos sistemas, o viés algorítmico tem se tornado um notícias para 100 milhões de usuários diaria- fenômeno largamente pesquisado e compreendi- mente (SLOANE, 2016). Twitter também em- do (ver, por ex., GILLESPIE, 2017; KITCHIN, 2017; prega um “time de curadoria” para peneirar con- PASQUALE, 2015). teúdo e destacar eventos e tendências na sua Além do mais, independentemente dos me- seção “Moments” - uma seção similar a um blog canismos de gatekeeping empregados, platafor- no site, na qual editores do Twitter combinam mas como Facebook, Google e Twitter encon- tweets e fotos publicadas no site em uma nar- tram-se diante da necessidade de estabelecer rativa, especialmente em eventos noticiáveis uma série de questões sobre políticas editoriais que estejam propagando-se no site (TWITTER, que os posiciona firmemente junto a organiza- 2016). As diretrizes que estes times usam não ções tradicionais de mídia como jornais e radio- são diferentes de diretrizes editoriais usadas difusores (GILLESPIE, 2018). Questões relacio- por muitas empresas de conteúdo - destacam nadas a proteger os usuários de conteúdo ofen- tanto sugestões de conteúdo para promo- sivo, provocativo ou adulto são centrais à opera- ver precisão, e limitar vieses, como diretrizes ção destas plataformas (ver, por ex., PIERSON & quanto ao tipo de títulos que o time deve es- DAVE, 2016). Essa tensão foi bem ilustrada pela crever ou às miniaturas a escolher. controvérsia em torno da decisão do Facebook Como deve estar claro, esse cenário aponta em censurar um post de um jornalista norueguês, que as empresas operam não apenas como orga- que continha a famosa foto de uma garota viet- nizações de mídia no sentido amplo, mas também namesa fugindo, nua, de um ataque com napalm especificamente como organizações de notícias, durante a Guerra do Vietnã (SCOTT & ISAAC, dada a amplitude na qual se engajam em gateke- 2016). Depois dos protestos, Facebook rapida- eping e decisões editoriais sobre o fluxo de notí- mente reverteu a decisão baseado na importân- cias e informação. cia histórica da foto (SCOTT & ISAAC, 2016). Não obstante, a controvérsia sublinhou a realida- A centralidade da publicidade de do alcance das decisões de política editorial, Por fim, vale notar que todos os argumentos que não são diferentes daquelas costumeiras em oferecidos por estas plataformas ruem sob o fato de imprensa tradicional, e que são essencialmente que a fonte primária de receita destas plataformas parte do âmago das plataformas de mídias so- é publicidade. Estar no negócio de fornecer conte- ciais, mesmo quando o processo decisório é ini- údo a audiências, enquanto vende essas audiências cialmente tomado por algoritmos, como no caso a publicitários é definitivamente característico do da foto no Vietnã. setor de mídia (INGRAM, 2012; WOLFF, 2012). E, como a controvérsia em torno da lista de Quando publicitários exploram como alcançar me- Trending do Facebook ilustrou, a intervenção lhor potenciais consumidores, as forças e fraquezas editorial humana exerce um papel frequente- das plataformas de mídia digital como Facebook, mente mais significativo do que é admitido no Twitter e Google são avaliadas junto a opções mais processo de curadoria de conteúdo (FIEGER- tradicionais de mídia como televisão a cabo e aber- MAN, 2016). A Snapchat emprega uma equi- ta, publicações impressas e online. pe editorial de cerca de 75 pessoas e também

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 151 PHILIP NAPOLI E ROBYN CAPLAN

Motivações subjacentes ner. Yahoo “chutou os engenheiros para o lado” (FO- REMSKI, 2014, p. 1) bem cedo na sua história em A discussão até agora focou nos argumentos um esforço de evoluir para uma empresa de mídia apresentados por estas empresas de mídia digital propriamente dita. Em seu pico, Yahoo até conside- para serem consideradas empresas de tecnologia rou comprar a NBC em um esforço de integrar-se ao invés de empresas de mídia. O próximo passo é melhor à mídia tradicional. Estes esforços para evo- olhar além destes argumentos expressos e consi- luir de um mecanismos de busca ou “portal” (uma de- derar algumas razões subjacentes que explicam por signação muito popular à época) para uma empresa que esses argumentos são apresentados tão con- mais claramente de mídia falhou espetacularmente sistentemente. em comparação com abordagem estrategicamente Apelo à comunidade de investidores mais tecnocrática da Google. Talvez a razão mais óbvia para plataformas A fusão AOL-TIme Warner tornou-se um estudo de mídias sociais e curadores de conteúdo digital de caso icônico sobre como culturas corporativas preferirem ser vistos como empresas de tecnolo- incompatíveis afundaram o tipo de integração ve- gia ao invés de empresas de mídia é o fato de que lha mídia-nova mídia que muitos observadores viam o rótulo de empresa de tecnologia traz consigo o como um resultado desejável - ou mesmo inevitá- potencial de avaliações melhores pela comunida- vel - da convergência digital (MCGRATH, 2015). O de de investidores (ver, por ex., FOX, 2014). Como primeiro aprendizado desse desastre foi que o “pes- o investidor Chris Dixon deixa claro, classificação soal de tecnologia” e o “pessoal de mídia” não tra- tem implicações significativas no mundo dos inves- balham particularmente bem juntos e - talvez mais timento. Como ele declarou, “Uma das coisas mais importante - não parecem capazes de compreender importantes que você deve fazer em iniciativas de as idiossincrasias dos negócios um dos outros (MC- investimento em empresas de estágio avançado é GRATH, 2015). No fim, AOL foi excluída do conglo- pensar rigorosamente como as empresas são cate- merado e o nome completamente apagado da iden- gorizadas” (KAFKA, 2014, p. 1.). E, como tem sido tidade da organização. frequentemente observado, a comunidade de inves- Os caminhos percorridos por Yahoo e AOL-Tim tidores geralmente vê maior potencial de receita no e Warner provavelmente ajudaram a reforçar a lógi- setor de tecnologia do que no setor de mídia (ver, ca da estratégia de manutenção ao menos da ilusão por ex., BOND, 2007; ROBERTS, 2016); e parece de distância e distinção do setor de mídia. O resul- que se mantém uma distinção forte entre estes dois tado final, em qualquer caso, é que plataformas de setores apesar das evidências em contrário cada mídias sociais e curadores de conteúdo digital en- vez mais numerosas. Pintar-se como uma empresa caram um forte incentivo a se mostrar de modo que de tecnologia ao invés de uma empresa de mídia é “o ressoe mais fortemente as percepções e priorida- que capitalistas de risco [querem] ouvir” (MORRIS- des da comunidade de investidores, que continua a SEY, 2016, p. 1). Como a executiva de mídia Eliza- manter uma artificial distinção estrita entre empre- beth Spiers notou, “investidores institucionais não sas de tecnologia e empresas de mídia. querem serviços de mídia” (BENTON, 2014, p. 1). Em certa medida, esse fenômeno pode refletir Motivações legais e políticas uma perspectiva cultivada pelas trajetórias discre- Também é importante considerar as motiva- pantes dos pioneiros digitais Google e Yahoo, e tal- ções legais e políticas de se pensar como uma em- vez também está relacionado a choques de cultura presa de tecnologia ao invés de empresa de mídia. que foram centrais para a morte da AOL-Time War- Como ilustrado no exemplo do Uber, o modo pelo

152 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 § Parágrafo POR QUE EMPRESAS DE MÍDIA INSISTEM QUE NÃO SÃO EMPRESAS DE MÍDIA, POR QUE ESTÃO ERRADAS E POR QUE ISSO IMPORTA qual uma empresa é classificada pode ter implica- serviço, a corte sugeriu que o Twitter é análogo a ções legais e políticas relevantes. Esse certamente “gritar na janela”3. Em outra intimação ao Twitter tem sido o caso do setor de mídia também. sobre informação de IP de alguns de seus usuá- Por exemplo, ao decidir a constitucionalidade rios (que estavam associados à organização Wi- do Communications Decency Act (que aplicou um kileaks), a corte usou uma diferente classificação, modelo regulatório da comunicação broadcast à In- comparando o Twitter, e os endereços IP usados ternet), a Suprema Corte dos EUA debateu se tra- para conexão ao site, a usar um telefone. taria a Internet de forma similar ao telefone, mídia Uma questão fundamental subjacente a estes impressa ou televisão/rádio (STEIN, 1997). Dada a esforços de classificação envolve definir se, ou até longa tradição nos EUA de aplicar regimes regulató- que ponto, o Twitter possui propriedade e autorida- rios completamente diferentes de acordo com suas de editorial sobre o conteúdo que circula em sua pla- características tecnológicas, o argumento de qual taforma. Ao encarar esses problemas de classifica- analogia adotar - se alguma delas - para a Internet ção, observadores do mercado notam que “Tem sido tem implicações legais e políticas de grande alcan- adequado ao Twitter posar como uma empresa de ce. Mais recentemente, a decisão da FCC de impor tecnologia quando se trata de potencial regulatório regulações de neutralidade de rede em provedores e responsabilidades legais” (RANA, 2012, p. 1). Por de serviços de Internet (ISPs) dependeu da re-clas- exemplo, em resposta a uma ordem da justiça por sificação dos provedores de serviços de Internet informação sobre um usuário que foi preso durante como provedores de serviços de telecomunicações um protesto Occupy Wall Street, o Twitter adotou (similar a empresas de telefonia) ao invés de servi- a posição legal de que não possui propriedade de ços de provedores de informação (como serviços de tweets individuais (RANA, 2012), uma posição que hospedagem Web) (U.S. FEDERAL COMMUNICA- parece operar em conflito com as várias formas de TIONS COMMISSION, 2015; RINEHART, 2015). A arbítrio editorial que o Twitter tem performado em autoridade regulatória da FCC sobre os provedores relação ao conteúdo na sua plataforma (ver, por ex., de serviços de telecomunicações é muito maior que GUYNN, 2016; INGRAM, 2012). sua autoridade sobre provedores de serviço de in- A realidade é que plataformas como Twitter formação (novamente, diferentes tecnologias e ser- possuem ampla margem de manobra em arbítrio viços frequentemente operam sob diferentes mo- editorial sobre o conteúdo que hospedam sem de- delos regulatórios); ao ponto que o regime de neu- sencadear categorização como editor e contrair tralidade da rede imposto pela FCC seria impossível as responsabilidades legais que são delas decor- caso os provedores de serviços de internet fossem rentes. Essa é a essência da Seção 230 do Ato classificados como de informação (PATEL, 2014). de Telecomunicações de 1996. A Seção 230 pro- A iminente reversão de regulações de neutralidade vê plataformas como mecanismos de busca, pro- na rede no governo Trump provavelmente envolverá vedores de Internet e sites de mídias sociais com outra rodada de re-classificação. proteção ampla de responsabilidade legal por Problemas similares de classificação estão discursos de terceiros que porventura hospedem, começando a confrontar curadores de conteúdo selecionem ou distribuam. Desse ponto de vis- digital tais como as plataformas de mídias sociais. ta, plataformas de mídias sociais e curadores de Isso é bem ilustrado por alguns desafios legais conteúdo digital estão protegidos de muitas obri- que confrontaram o Twitter. Em um caso envol- gações negativas (isto é, obrigações de policiar/ vendo uma intimação governamental por informa- 3 Decisão judicial disponível em: https://www.aclu.org/files/ ção (incluindo tweets) de um usuário individual do assets/owsharristwitterdec63012.pdf

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 153 PHILIP NAPOLI E ROBYN CAPLAN proteger contra a circulação dos vários tipos de mente agressivamente mais impostas no setor de discurso) associadas a empresas de mídia; ou, nas mídias do que em outros setores, dado preocupa- palavras da Seção 230, “provedores de conteúdo ções sobre o relacionamento entre competição nos informacional”. Muito do policiamento do conte- mercados de mídia e o funcionamento efetivo dos údo que estas plataformas se engajam, deve ser “mercados de ideias” (NAPOLI, 2001). Várias regu- enfatizado, é na verdade voluntário (sob o que é lações de propriedade persistem no setor de mídia referido como “Provisão do Bom Samaritano”), não eletrônica, apesar do acirramento de competição diferente do modo como a indústria de televisão a facilitado pela Internet e a diminuição de barreiras cabo tem restringido linguagem chula e nudez em para novos entrantes em vários mercados de mídia suas programações, apesar disto estar fora dos (U.S. FEDERAL COMMUNICATIONS COMISSION, limites das regulações de indecência da FCC. 2016b). Fusões no setor de mídia eletrônica pas- Porém, em muitos setores do mercado de mí- sam por uma avaliação própria de “interesse públi- dia, há também uma longa tradição de obrigações co” com escrutínio acima e além da média das de- afirmativas (isto é, obrigações de prover certos ti- mais fusões em termos de seus impactos no am- pos de discursos). Empresas de mídia eletrônica biente competitivo. Nesses casos, preocupações historicamente operaram sob um conjunto espe- totalmente não relacionadas ao efeito proposto cífico de responsabilidades sociais direcionadas da fusão na competição podem entrar em jogo no pelo governo, que estas empresas têm contesta- processo de aprovação, no qual várias condições de do como onerosas e caras. Nos EUA, estas res- interesse público são impostas para aprovação da ponsabilidades sociais tomaram a forma de várias fusão (SALLET, 2014). “obrigações de interesse público” (NAPOLI, 2015). O ponto chave na avaliação de como o inte- Mesmo as empresas de mídia eletrônica primaria- resse público é aplicado no contexto da regulação mente focadas em distribuição de conteúdo (como de mídia eletrônica é demonstrar que classificação sistemas de cabo, provedores de internet e prove- como uma empresa de mídia - ao menos no reino dores de serviços de satélite) têm sido sujeitas a da mídia eletrônica - historicamente tem significado obrigações como prover os assinantes com acesso observação governamental mais intensiva, na for- a níveis mínimos de programação pública, educacio- ma de obrigações afirmativas de servir ao interesse nal e governamental; prover acesso de banda larga público e regulação mais rigorosa em áreas como a escolas e bibliotecas e prover a candidatos políti- concentração de propriedade. Dada essas cargas cos a capacidade de anunciar nessas plataformas regulatórias maiores que caem sobre o setor de mí- com taxas reduzidas (U.S. FEDERAL COMMUNI- dia eletrônica, é possível entender por que platafor- CATIONS COMISSION, 2016a). Em alguns casos, mas de mídia digital se esforçaram para estabelecer essas obrigações de interesse público tornaram- identidade organizacional que os deixe de fora des- -se particularmente agressivas, como no caso da te modelo regulatório. Fairness Doctrine (Doutrina de Equidade), que, du- Imagine, por exemplo, se Facebook tivesse de rante os anos 70 e parte dos anos 80, exigiu que operar sob uma Doutrina de Equidade para mídias difusores (dado a seu lugar privilegiado) provessem sociais. De vários modos, poderia se olhar as con- quantidades equivalentes de cobertura a diferentes trovérsias em torno da presumida supressão de perspectivas sobre temas controversos de impor- notícias conservadoras ou a circulação de notícias tância pública (RUANE, 2011). falsas durante a eleição presidencial de 2016 como Mesmo regulações estruturais e governamen- um tipo de fagulha que teria iniciado esse tipo de tais motivadas economicamente tem sido historica- discussão. Ou, ainda, seria possível olhar para uma

154 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 § Parágrafo POR QUE EMPRESAS DE MÍDIA INSISTEM QUE NÃO SÃO EMPRESAS DE MÍDIA, POR QUE ESTÃO ERRADAS E POR QUE ISSO IMPORTA plataforma de mídias digitais como Facebook, com nologias de comunicação e mídia como agentes sua posição dominante no mercado, com interesse autônomos, e/ou estritamente definindo o terreno crescente sobre a possibilidade de uma análise de regulatório puramente em termos de questões e competição mais apropriada a mídia sendo aplica- preocupações técnicas complexas, excluindo pre- da a sua posição cada vez mais dominante tanto no ocupações sociais maiores (NAPOLI, 2009; STRE- mercado econômico quanto no mercado de ideias ETER, 1987). Pesquisadores de governança da In- (ver THOMPSON, 2016). Dados recentes mostram ternet, por exemplo, tem observado uma tendência a extensão que o duopólio Facebook/Google de- entre muitos stakeholders de tentar despojar várias senvolveu em publicidade online e móvel (SLEFO, questões de governança de Internet de suas ex- 2017). O fato um pouco surpreendente de que es- pressões políticas e culturais mais amplas, procu- sas descobertas ainda não provocaram um debate rando enquadrar essas questões em seus termos amplo no discurso político dos EUA pode ser talvez estritamente técnicos, um processo que em última atribuído ao sucesso, até o momento, da retórica análise marginaliza do foco primariamente político empresa-de-tecnologia-não-empresa-de-mídia. ou cultural problemas de governança concernentes Como essa discussão esperançosamente dei- aos stakeholders (ver, por ex., RABOY & LANDRY, xou clara, a questão de se plataformas tais como Fa- 2005). Esta tecnocratização do discurso político cebook e Twitter são empresas de mídia ou empre- serve como um importante pano de fundo para o sas de tecnologia não é só uma matéria de semânti- argumento “empresa-de-tecnologia-não-empresa- ca mas também parte de uma estratégia discursiva -de-mídia” que sendo avaliado aqui. maior. O sucesso desta estratégia tem implicações No fim das contas, o enquadramento de plata- legais e políticas significantes, e é aquela na qual as formas de mídias sociais e curadores de conteúdo motivações legais, econômicas e políticas das pla- digital puramente como empresas de tecnologia taformas de mídia digital são (des)percebidas como marginaliza as cada vez mais proeminentes dimen- empresas de tecnologia ao invés de empresas de sões políticas e culturais de suas operações, que mídia são bastante. crescem mais pronunciadamente na medida em que estas plataformas se tornam gatekeepers centrais Por que importa de notícias e informação no ecossistema contem- porâneo de mídia. Nessas situações, onde há uma Como pesquisadores de políticas da comuni- desconexão entre função e enquadramento, nós cação notaram, palavras importam (LENTZ, 2003). temos um “discurso [que] serve para moldar uma Os termos específicos empregados no discurso e instituição que falha em descrevê-la” (STREETER, documentos que formatam e refletem decisões 1987, p. 176). Esse enquadramento tecnocêntrico políticas tem profundas consequências e devem pode contribuir para que estas plataformas operem ser empregados estrategicamente; muitas vezes sobretudo fora de enquadramentos legais e regula- em um esforço de definir os contornos de um tema tórios que foram estabelecidos para organizações ou para influenciar quais stakeholders caem den- de mídia eletrônica; enquadramentos que foram tro dos parâmetros de uma proposta específica de estabelecidos sobretudo devido às significativas política pública (ver, por ex., LENTZ, 2011; STRE- dimensões políticas e culturais de suas operações. ETER, 1987). Dentro dos contextos da comunica- Essa situação torna-se particularmente proble- ção e mídia, uma estratégia discursiva específica mática quando essas plataformas inevitavelmente entre muitos stakeholders tem sido empregar um evoluem de forma que tornam a distinção empre- foco fortemente tecnológico, tratando novas tec- sa-de-tecnologia-não-empresa-de-mídia cada vez

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 155 PHILIP NAPOLI E ROBYN CAPLAN mais inválida. Por exemplo, como apontado acima, distinção e separação com empresas de mí- assim como gerações prévias de distribuidores de dia tradicional. Apesar disso, quando estas conteúdo, como sistemas de cabo e satélite e, mais empresas reconhecerem que são empresas recentemente, YouTube e Netflix (KOKALITCHEVA, de mídia de qualquer tipo, muitos benefícios 2016; NAPOLI, 2016), Facebook começou a inte- associados a não ser percebidas, ou tratadas grar-se verticalmente com a criação de conteúdo. como, empresas de mídia já terão sido colhi- A empresa iniciou esforços para produzir programa- dos. De fato, parte do modo pelo qual essas ção de vídeo original (KAFKA, 2014). E, no desper- empresas conseguem evoluir para organiza- tar das massivas críticas sobre o papel do Facebook ções de mídia dominantes é por contornar na disseminação de notícias falsas durante as elei- os quadros regulatórios e legais que pode- ções de 2016, a empresa iniciou o Facebook Jour- riam ter inibido suas rápidas expansões e/ou nalism Project. Entre os objetivos do projeto estão imposto mais responsabilidades legais e/ou ”construir laços mais profundos com publicadores custos de responsabilidade pelo caminho. E a ao colaborar com recursos e ferramentas de publi- estratégia discursiva debatida aqui provavel- cação” (ISAAC, 2017, p. 1). Essa maior integração mente tem seu papel em facilitar essa evasão. nas dinâmicas da produção e distribuição é, talvez, É importante enfatizar que nós não procu- o primeiro passo na direção a uma integração verti- ramos aqui construir recomendações para inter- cal e genuína na área de notícias; mas é no mínimo venções legais ou regulatórias específicas. Nosso uma mudança na direção organizacional na medida objetivo foi simplesmente esclarecer as falhas ló- em que a referência ao jornalismo debilita quaisquer gicas e motivações subjacentes de uma estraté- argumentos contra ser categorizada como uma em- gia discursiva que dissocia plataformas de mídias presa de mídia (BARAM, 2017). sociais dos quadros normativos, legais e regula- Talvez não seja surpreendente, então, que tórios que tradicionalmente têm sido aplicados o CEO do Facebook Mark Zuckerberg come- a instituições que tradicionalmente performam çou a suavizar um pouco sua posição quanto as funções que estas plataformas agora perfor- a identidade organizacional do Facebook. Em mam. Por esta razão, nós tentamos rejeitar essa dezembro de 2016 ele descreveu Facebook caracterização puramente orientada a tecnologia como “não uma empresa de mídia tradicio- das plataformas de mídias sociais e curadores de nal”(CONSTINE, 2016, online, ênfase adicio- conteúdo digital, na esperança que o discurso po- nada pelos autores). A posição cambiante de lítico e de governança sobre elas melhor reflita o Zuckerberg é reminiscente da do Google, que fato de que os pontos de continuidade entre mí- depois de anos insistindo que não é uma em- dias novas e tradicionais são mais fortes que suas presa de mídia, declarou em seu formulário caracterizações sugerem. SEC 10-K4 que “Nós começamos como uma empresa de tecnologia que evoluiu para uma empresa de software, tecnologia, Internet, Conclusão publicidade e mídia ao mesmo tempo” (BIA/ Através da história da mídia, as tecnologias KELSEY, 2005, p. 1). Em ambos os casos, a e serviços têm evoluído para possibilitar funções posição é de manter pontos significativos de que tornam-se muito diferentes daquelas para as 4 Nota do tradutor: relatório que sumariza a performance quais foram criadas. Rádio foi criada para facilitar financeira de empresas com mais de 10 milhões em ativos comunicação navio a costa. O videocassete foi nos EUA e também inclui informações de histórico, estrutura criado para facilitar gravação de vídeo em casa e organizacional e outras sobre a empresa.

156 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 § Parágrafo POR QUE EMPRESAS DE MÍDIA INSISTEM QUE NÃO SÃO EMPRESAS DE MÍDIA, POR QUE ESTÃO ERRADAS E POR QUE ISSO IMPORTA seus criadores não faziam ideia do mercado mas- tos legais, regulatórios e jornalísticos existentes; sivo de aluguel e vendas de vídeo que iria surgir. ou se devem ser concebidos novos ou modificados A Internet foi criada para facilitar comunicação enquadramentos que reflitam sua natureza híbrida. entre governo e pesquisadores acadêmicos. Fa- cebook foi criado para ajudar estudantes univer- Referências sitários identificar colegas atraentes. A velocidade com a qual as funcionalidades BARAM, M. Facebook Finally Admits It’s A de tecnologias da comunicação podem evoluir le- Giant Media Company—Almost. Fast Company. vam a uma estado persistente de retardamento 2017. Disponível em . Acesso em: 03 abril processo democrático, esse defasagem percep- 2018. tual pode ter ramificações perigosas e profundas. BELL, E. Facebook Facebook is eating the world. A eleição de 2016 parece ter desencadeado um Columbia Journalism Review. 2016. Disponível em pouco de aceleração neste processo, com usuá- . Acesso em: 03 abril 2018. mesmo os executivos dessas plataformas pare- cem estar desenvolvendo um entendimento mais BENTON, J. Elizabeth Spiers on BuzzFeed and claro do papel cada vez mais influente que estas other “tech” companies: “You’re Still A Media Com- plataformas exercem no processo democrática. pany”. NiemanLab. 2014. Disponível em . Acesso em: 03 abril 2018. foco de pesquisa daqui pra frente. BHATTACHARYYA, M. Digital Ads to Overtake Tra- Finalmente, tanto quanto este artigo defen- ditional Ads in U.S. Local Markets By 2018. AdA- deu que plataformas de mídias sociais e curado- ge. 2016. Disponível em . Acesso em: 03 abril 2018. alguém poderia facilmente argumentar que é ne- cessário e apropriado ao nosso entendimento de BIA/KELSEY. Google 10-K: ‘We’re a Media Company’ empresas de mídia também evoluir para englo- and Other Tidbits. 2005. Disponível em . cem refletir essa perspectiva (ver, por ex., HESS, Acesso em: 03 abril 2018. 2014). Deuze (2007, p. 9), por exemplo, enfatiza BILTON, N. Is Twitter a Media or Technology Com- que “Indústrias de mídia produzem conteúdo, de pany?. The New York Times. 2012. Disponível em fato, mas também investem em plataformas para . Acesso delinear mais rigorosamente os contornos e pa- em: 03 abril 2018. râmetros da empresa híbrida de tecnologia/mídia contemporânea , e começar a articular se e como BOGOST, I. Facebook Is Not a Technology Company. essas empresas devem caber em enquadramen- The Atlantic. 2016. Disponível em

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 157 PHILIP NAPOLI E ROBYN CAPLAN theatlantic.com/technology/archive/2016/08/fa- , M.; HOLT, J.; SANSON, K.. Introduction: Making of cebook-is-not-a-technology-company/494183/>. a Revolution. In: Distribution Revolution: Conversa- Acesso em: 03 abril 2018. tions about the Digital Future of Film and Television. University of California Press, 2014. p. 1-17. BOND, P. Fresh Facebook draws attention. The Hollywood Reporter. 2007. Disponível em . Acesso em: 03 abril values-based approach to understanding story se- 2018. lection in the Facebook news feed. Digital Journa- CAPLAN, R. Like it or Not, Facebook Is Now a Me- lism, v. 5, n. 6, p. 753-773, 2016. dia Company. The New York Times. 2016. Dispo- DIXON, C. BuzzFeed. cdixon blog. 2014. Disponí- nível em . te/2016/05/17/is-facebook-saving-journalism-or- Acesso em: 03 abril 2018. -ruining-it/like-it-or-not-facebook-is-now-a-media- -company>. Acesso em: 03 abril 2018. D’ONFRO, J.. Facebook is telling the world it’s not a media company, but it might be too late. Business CARNEY, M. As Uber fights to maintain its techno- Insider. 2016. Disponível em . Acesso em: 03 abril tps://pando.com/2015/02/20/as-uber-fights-to- 2018. -maintain-its-technology-company-classification- -in-india-the-rest-of-the-world-watches/>. Acesso DOUGHERTY, C; STEEL, E. YouTube Introduces em: 03 abril 2018. YouTube Red, a Subscription Service. The New York Times. 2015. Disponível em . Acesso ponível em . Acesso em: 03 abril 2018. ETHERINGTON, D. Facebook exploring creation of its own original video content. TechCrunch. 2016. Dis- _____.Zuckerberg implies Facebook is a media com- ponível em . Acesso em: 03 abril 2018. com/2016/12/21/fbonc/>. Acesso em: 03 abril 2018. FEDERAL COMMUNICATIONS COMMISSION. In the matter of protecting and promoting the open In- CUKIER, J. Why is Uber considered a technology ternet. 2015. Disponível em: . Acesso em: 11 abril 2018. Disponível em . Acesso em: 03 abril 2018. sion>. Acesso em: 11 abril 2018.

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Philip Napoli – Professor de políticas públicas na Duke University e membro do DeWitt-Wallace Center para mídia e democracia. Robyn Caplan – Pesquisadora no instituto de pesquisa Data & Society e doutoranda em comunicação e informação na Rutgers University.

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§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 143-163, jan./abr. 2018 163 §

Entrevista Algoritmos como um devir: uma entrevista com Taina Bucher

Carlos d’Andréa Universidade Federal de Minas Gerais. Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Comunicação Belo Horizonte, MG, Brasil

Amanda Jurno Universidade Federal de Minas Gerais. Doutoranda pelo Pós-Graduação em Estudos de Comunicação Belo Horizonte, MG, Brasil

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 165-170, jan./abr. 2018 165 CARLOS D’ANDRÉA E AMANDA JURNO

Perguntas, muitas perguntas instigantes. Pa- Eu sempre estive interessada na questão: Como rece que é usando pontos de interrogação que você conhece algo que não pode acessar ou que Taina Bucher olha para o “mundo empírico” e tenta você não vê? O que você precisa saber para co- entendê-lo. Ao interrogar os algoritmos e as dife- nhecê-lo um pouco mais? Durante meu doutora- rentes formas de conhecimentos a eles associa- do, havia muitos debates sobre a necessidade de das, nesta entrevista a pesquisadora nos convida se saber, ou não, programar para dizer algo sobre a olhar com profundidade para esses objetos so- uma tecnologia. Acho que não é a discussão mais ciotécnicos contemporâneos. Jornalismo, a impor- proveitosa a longo prazo, e não acho que alguém tância de programar (ou não) e a genealogia do ter- necessariamente precise saber programar para mo “caixa-preta” são alguns tópicos abordados por poder dizer algo sobre o assunto. Definitivamen- Taina Bucher em diálogo com autores como Ross te ajuda se você souber programar, mas essa não Ashby, Alfred N. Whitehead e Annemarie Mol. Atra- é a única maneira de conhecer objetos computa- vés desta agradável conversa que se deu na cida- cionais como os algoritmos. Eu também encontrei de de Tartu, na Estônia, durante a Conferência da uma hierarquia intelectual entre “as pessoas que Association of Internet Researchers - AoIR 2017, sabem” e “as pessoas que não sabem” programar. somos convidados a assumir um modo de “devir” Eu realmente não gosto dessas afirmações sobre ao pesquisar os algoritmos, as práticas e as polí- quem sabe mais, ou de forma mais autoritária. Para ticas associadas a eles. Taina Bucher é professora mim, foi muito útil aprender a programar, mas isso adjunta do Centre for Communication and Com- não significa que, por causa disso, eu necessaria- puting, na University of Copenhagen (Dinamarca) e mente saiba como o Facebook funciona. Se real- autora do livro “IF…THEN: Algorithmic power and mente quisermos seguir esse argumento, também politics”, lançado em maio de 2018 pela Oxford precisamos saber como o hardware funciona. Nós University Press. Sua tese de doutorado (Program- precisaríamos saber sobre estruturas de dados, med Sociality: A Software Studies Perspective on sobre bancos de dados e sobre muitas outras coi- Social Networking Sites) foi vencedora do prêmio sas. Meus interesses estão nas questões episte- anual de teses da AoIR em 2013. Em sua pesqui- mológicas: “o que significa conhecer? O que po- sa, Taina Bucher foca nas mídias sociais e no poder deríamos estar perdendo em nossas tentativas de dos algoritmos na vida cotidiana, na interseção en- conhecer coisas específicas? Quais estão os limi- tre os estudos de software, STS e as teorias das tes do conhecimento? Onde estão as fronteiras?” novas mídias. Para mais informações, visite o site Em um capítulo do meu livro (“IF…THEN: Algorith- tainabucher.com. mic power and politics”. Oxford University Press, 20181), tentei “desempacotar” a imagem da “caixa- -preta”. Porque sempre que se entra em discussões Parágrafo: O principal objetivo da pesquisa que sobre algoritmos ou afirmações semelhantes de você apresentou aqui, na conferência da AoIR, é conhecimento, as pessoas dizem: “oh, os algorit- a formulação de um sentido epistemológico dos mos são uma ‘caixa-preta’; portanto, não podemos algoritmos. Como você está enfrentando os desa- conhecê-los; ou, portanto, é difícil conhecê-los”. É fios teóricos deste projeto de pesquisa? claro que é difícil, mas para mim, novamente, o inte- resse está em tentar desempacotá-los. O que real- Bucher: Há uma questão que realmente me inte- mente significa dizer que algo “é uma caixa-preta”? ressa: “o que significa conhecer algo que é ‘invisível’, por definição distribuído, que não é uma ‘coisa’?” 1 Link para o livro: https://global.oup.com/academic/product/ ifthen-9780190493035?lang=en&cc=us

166 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 165-170, jan./abr. 2018 § Parágrafo ALGORITMOS COMO UM DEVIR: UMA ENTREVISTA COM TAINA BUCHER

Parágrafo: Você está fazendo uma espécie de ge- Parágrafo: Como você está articulando autores nealogia do conceito de caixa-preta, talvez “desen- como Annemarie Mol e Whitehead para estudar os caixapretando a caixa-preta”? Quais seriam os prin- algoritmos? cipais autores que já discutiram isso anteriormente? Bucher: O que é útil para mim está, novamente, Bucher: Este conceito vem da Cibernética, do início amarrado à noção de uma “caixa-preta”. Porque se da Ciência da Computação. As pessoas tinham que você olhar para algo por uma perspectiva relacio- tornar suas tecnologias “caixas-pretas”, caso con- nal, não há caixa e ela não é nunca só preta. Assim, trário seus inimigos na Segunda Guerra Mundial se- torna-se um pouco difícil ou impossível operar com riam capazes de decodificar seus sistemas. Então, a afirmação de que “algoritmos são ‘caixas-pretas’”. a tecnologia crucial era na verdade “encaixapretada” Com Whitehead5, acho útil pensar em um algoritmo para não se perder a guerra. Como muitas outras nunca como uma ‘coisa’, mas como uma fotogra- tecnologias computacionais, o termo tem uma ge- fia temporária da “coisa” naquele momento. Então, nealogia militar. Na Ciência da Computação, tornar ele diria que, seja lá o que for a “coisa”, ela está “se a complexidade mais palpável é uma necessida- tornando”. Eu estive pensando sobre o porquê de, de. Mas então esta se torna uma metáfora para agora, tantas pessoas estarem interessadas em tudo, tudo é uma “caixa-preta”... atualmente, “cai- Whitehead de novo, e acho que é porque a filosofia xa-preta” é apenas um sinônimo para tudo que é do processo ressoa com coisas que estão tão mu- desconhecido, tudo que pode ser ou deveria ser dando o tempo todo. Um algoritmo ou sistema de escondido, como segredos comerciais. Para mim aprendizado de máquina é, por definição, não uma foi muito útil ler o artigo do Peter Galison “The “coisa”, é sempre um devir (em inglês, ‘a becoming’). ontology of the enemy: Norbert Wiener and the Para mim, essa noção de devir é bastante útil, por- cybernetic vision2”. E, quanto à cibernética, W. que é também um ponto metodológico que, seja o Ross Ashby escreve diretamente sobre a “caixa- que for que estudemos, trata-se de algo em seu de- -preta”3... E então, claro, Bruno Latour escreve vir. Então, não estamos fazendo afirmações sobre o sobre “caixa-preta” e “encaixapretamento” como algoritmo do Facebook ou o algoritmo do YouTube um conceito. Para Latour, tudo é uma espécie de porque, seja para o que for que estivermos olhando, “caixa-preta”, porque tudo esconde a sua própria será uma atualização de diferentes tipos de rela- fabricação, sua ontologia em rede4. Ele usa uma ções que se juntam ali para então moldar essa rea- antiga visão heideggeriana sobre “se a tecnologia lidade. Para mim, em termos de ontologia, essa tem quebra, então você vê como ela funciona”. Para sido uma maneira útil de pensar sobre o que são ele, é aí que o conceito de “caixa-preta” é útil. Ale- os algoritmos. E então, é claro, isso se encaixa em xander Galloway também escreveu sobre a his- questões epistemológicas. Sobre Annemarie Mol, tória e a epistemologia da “caixa-preta” de uma fiquei bastante fascinada pelo seu livro “The Body maneira muito útil. Assim, Galison, Ashby, Latour e Multiple”6. Há milhões de coisas para se dizer sobre Galloway seriam um bom começo para se pensar ele... Ela escreve de uma forma muito interessante, sobre a genealogia do conceito. o livro tenta romper com limites acadêmicos muito

2 Artigo disponível em www.jstor.org/stable/1343893. 5 Alfred North Whitehead (1861-1947) foi um matemático, Accessed 9 mar. 2018. lógico e filósofo britânico mais conhecido pelo seu trabalho 3 Por exemplo, ver o capítulo 6 do seu livro “An Introduction to sobre lógica matemática e filosofia da ciência. cybernetics”, publicado pela primeira vez em 1956. 6 Annemarie Mol é professora de Antropologia do Corpo na 4 Entre outros, ver o livro do Latour “Ciência em Ação”, Universidade de Amsterdã e uma importante pesquisadora no publicado pela primeira vez em 1987 pela Harvard University campo de TAR/STS. Seu livro “The Body Multiple: Ontology in Press, em inglês. Medical Practice” foi lançado em 2003 (Duke University Press).

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 165-170, jan./abr. 2018 167 CARLOS D’ANDRÉA E AMANDA JURNO rígidos e se envolver com o mundo através, também, importante. Quando falamos sobre accounta- da escrita. Por ela ser uma antropóloga, tem essa bility algorítmica, transparência, discriminação, inserção a longo prazo em um espaço onde pode parcialidade, etc., nós estamos muito obceca- contar aquela história de uma maneira muito con- dos em encontrar a origem certa de culpa, a ori- vincente. Sobre seu pensamento, tem sido muito gem da ação. Nós ainda precisamos compreen- útil pensar no corpo, e especificamente nas doen- der as responsabilidades. Ao perguntar “quando” ças, como tendo diferentes realidades, múltiplas alguma coisa acontece ou “quando” uma agência realidades. O que estou achando inspirador é essa é tornada mais ou menos disponível, não é para ideia do múltiplo; até que ponto nós estamos estu- nos livrar de responsabilidades, mas para reco- dando a mesma “coisa”, os mesmos fenômenos? En- nhecer que nem sempre importa “onde” a agên- tão, eu também estou pensando no algoritmo como cia está, certo? Porque eu não acho que pode- múltiplo. O que é o algoritmo do Facebook? É uma mos necessariamente chegar à origem certa. “coisa” ou é apenas um nome? Isso significa coisas O que importa é o tipo de trabalho envolvido diferentes? Na verdade, o algoritmo é tecnicamente para fazer com que essas origens certas apa- bastante distribuído, mas também é muito distribuí- reçam como tais em primeiro lugar. Com carros do socialmente. Ele vive diferentes tipos de vidas. E autônomos, por exemplo, não tenho certeza se nós precisamos ser bem específicos sobre qual tipo estamos realmente resolvendo o problema ao de vida em contexto que estamos falando. É aí que insistir em ir ao carro, ao fabricante do carro, à o trabalho dela está sendo bastante inspirador, mas pessoa ou a um sistema… Pode ser mais cons- também os estudos de John Law, especialmente o trutivo e, na verdade, mais prático olhar para livro sobre as histórias das aeronaves7. Ele constrói “quando” alguém ou alguma coisa é tida como o mesmo tipo de argumento, ele conta histórias di- mais ou menos provável como origem da ação. ferentes sobre esse único objeto e teoriza de uma O tipo de trabalho que disponibiliza a origem forma muito semelhante como sendo, na verdade, das ações é político, assim, acho que podemos múltiplos objetos. aprender muito a partir dessas práticas. Quem quer colocar a culpa em alguém? Por exemplo, Parágrafo: Você fala que seu foco não está olhe para o Facebook ou o Google: sempre que em “onde” a agência está localizada, mas em algo dá errado, o seu discurso é muito estra- “quando”. Isso está relacionado à abordagem tegicamente construído... Mas o que está em que enfatiza a performance dos algoritmos, jogo quando o Facebook ou o Google, em uma certo? E parece ter algo a ver com a neces- dada situação, dizem “é apenas culpa dos al- sidade de descobrir onde ou quem é o res- goritmos, nós não fizemos nada”? E, às vezes, ponsável quando algo errado acontece. Se a é como: “Sim, você sabe, foi isso… Não culpem agência dos algoritmos é distribuída, talvez os nossos programadores”. Há uma ignorância seja impossível descobrir quem fez o quê em formal estratégica envolvida, usa-se o não-co- relação a alguma coisa... nhecimento de forma muito estratégica. Isso que está em jogo, então, para mim, é bastante Bucher: Certamente, e essa é a razão pela qual interessante perguntar “quando” essas origens eu acho a questão do “quando” particularmente ou esses elementos são mobilizados, e “para

7 Referência ao sociólogo John Law, um dos principais quem”. Eu também acho interessante pensar- proponentes da Teoria Ator-Rede, e seu livro “Aircraft Stories: mos por que estamos incomodados em deter- Decentering the Object in Technoscience”, publicado em 2002 minados momentos, quando não estamos em pela Duke University Press.

168 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 165-170, jan./abr. 2018 § Parágrafo ALGORITMOS COMO UM DEVIR: UMA ENTREVISTA COM TAINA BUCHER outros. Há coisas que talvez nós não estamos a ter informações mais personalizadas, mais discutindo. Nós tendemos a falar sobre algu- em tempo real, elas se acostumaram a mais mas das mesmas coisas. Então, para mim, é curadorias de informações e assim por dian- interessante perguntar “quando” falamos delas te. E, é claro, também há o dinheiro de pu- e “de que forma” elas tendem a emergir. Porque blicidade para as organizações jornalísticas. elas só importam às vezes. Eu estou interessa- Plataformas de mídia como o Google, o Fa- da nesses “às vezes”. cebook e o Twitter se tornaram concorren- tes. As organizações jornalísticas não estão Parágrafo: Você tem alguns trabalhos recentes mais competindo com outros jornais nacio- sobre jornalismo e algoritmos. Hoje, é realmen- nais, seus principais concorrentes são agora te desafiador para as instituições jornalísticas as empresas de tecnologia. Esta nova reali- lidar com todos os tipos de mediações algo- dade existe há pelo menos cinco anos, mas rítmicas, porque elas enfrentam as mediações esses tipos de preocupações e discussões tradicionais de jornalismo. Como essas pes- estão apenas se intensificando. Eu achei quisas empíricas dialogam com suas questões que esse seria um momento oportuno para mais amplas? estudar a espécie de “impacto” desses novos tipos de sistemas sociotécnicos. Talvez em Bucher: Eu estava pensando: “onde os al- cinco anos isso seja esquecido ou as pesso- goritmos são importantes? Em que tipo de as não consigam chegar ao centro da contro- contextos eles desafiam organizações de vérsia. Mas agora ela está acontecendo, en- trabalho existentes, seus modos de pensar, tão é um excelente momento para ver quais seus sistemas de valores?” Há, naturalmen- são as preocupações. Eu visitei algumas or- te, o setor financeiro onde os algoritmos são ganizações jornalísticas e conversei com jor- imensamente importantes, e há também o nalistas e editores, observei a sua rotina de comércio, a biotecnologia e as ciências du- trabalho. Falei com os programadores sobre ras. Mas, vindo do campo de mídias e comu- essas mudanças e sobre o que eles acham nicação, eu também estava vendo que os al- que está acontecendo. Muitas dessas orga- goritmos importam para o jornalismo e para nizações também estão desenvolvendo seus as organizações jornalísticas. E, então, eu próprios sistemas. Assim você não precisa me interessei em olhar para como a tecnolo- necessariamente ir ao Facebook e estudar gia funciona. Qual é o papel dos algoritmos? como o código é feito, mas você pode ir às Qual tipo de trabalho os algoritmos fazem? organizações jornalísticas. Estou falando Eu queria olhar para a materialidade, para os apenas sobre o contexto escandinavo, e eu usuários, para as práticas de trabalho e ver me concentrei um pouco mais em olhar o de- como eles importam. É bastante útil entrar senvolvimento interno dos algoritmos e dos em contextos muito concretos, sobre como sistemas. A maior preocupação é realmente as organizações jornalísticas lidam com al- em como concorrer sem perder sua integri- goritmos, métricas e análise de dados. Os dade jornalística. Como você pode se orien- leitores têm novas demandas e expectativas. tar por uma lógica algorítmica no Facebook, As organizações jornalísticas tiveram que sem perder a credibilidade, os valores jor- lidar com o fato de que as pessoas apenas nalísticos? Existe um equilíbrio entre o que usam as redes sociais. Elas se acostumaram realmente funciona e como isso é negocia-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 165-170, jan./abr. 2018 169 CARLOS D’ANDRÉA E AMANDA JURNO do no dia a dia. Eu encontrei muitas pesso- as debatendo-se com a melhor forma de se orientar estrategicamente pela lógica de ou- tros e em como ser mais esperto para usá-la em benefício próprio, mantendo aquele valor jornalístico. Isso é muito interessante para mim. Como isso é negociado? Isso é possí- vel? Que tipo de compromissos as organi- zações jornalísticas assumem nesse jogo? Elas perdem? Elas encontram novas formas mais inteligentes e bastante produtivas para lidar com isso?

170 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 165-170, jan./abr. 2018 § Parágrafo

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Artigos Livres Relaçes publicas e comunicaço organizacional digital: empresas fronteiriças e suas estratégias*

Public relations and organizational digital communication: companies on the border and their strategies

Henrique Esper Universidade Federal do Pampa Bagé, RS, Brasil

Cristóvão Domingos de Almeida Universidade Federal do Pampa. Bagé, RS, Brasil

*A base deste texto foi apresentada na Divisão Temática Comunicação Organizacional e Relações Públi- cas, da Intercom Júnior – XIII Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 4 a 9 de setembro em Curitiba/PR.

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 173 HENRIQUE ESPER E CRISTÓVÃO DOMINGOS DE ALMEIDA

Resumo Abstract O objetivo deste trabalho é compreender a comu- This paper aims to understand the digital commu- nicação organizacional e as estratégias digitais da nication strategies of the Associação Comercial e Associação Comercial e Industrial de Prestação de Industrial de Prestação de Serviços de São Borja - Serviços e Agropecuária de São Borja (ACISB), lo- ACISB, located on the western border of the state calizada na fronteira oeste do estado do Rio Grande of Rio Grande do Sul. With the focus on uses and ap- do Sul. Com foco nos usos e apropriações, o estudo propriations, the study works with the concepts of se fundamenta nos conceitos de relações públicas, public relations, organizational communication, dig- comunicação organizacional, redes sociais digitais, ital social networks, communication strategies and estratégias de comunicação e organização como organization as a space for the strength of commer- espaço de fortalecimento das atividades comer- cial activities. Based on comments and information ciais. A partir de registros das publicações na pági- published on the Facebook page and interview, we na no facebook e entrevista, analisamos as estraté- analyze the strategies and the ways of approaching gias e as formas de aproximação com os públicos, the public, indicating the necessity for companies in demonstrando a necessidade que as empresas têm the present day to communicate with their audienc- nos dias atuais de se comunicar com seus públicos es through digital media. It makes clear that social pelos meios digitais. Evidencia-se que as redes so- networks can serve as a potentiality for the devel- ciais podem servir como potencialidade de desen- opment of the business and the approximation of volvimento do empreendimento e de aproximação different audiences. dos diferentes públicos.

Palavras-chave Relações públicas. Comunicação organizacional. Estratégias. Redes sociais. ACISB.

Keywords Public relations. Organizational communication. Strategies. Social networks. ACISB.

174 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 § Parágrafo RELAÇÕES PÚBLICAS E COMUNICACÃO ORGANIZACIONAL DIGITAL

Introdução 2011, p. 71) que se traduz em: analisar a populari- dade de uma página através de suas conexões com O artigo se apoia no argumento que nos dias os seguidores da página, por curtidas, comentários atuais as redes sociais são parceiras das institui- dentre outras interações entre os usuários. ções, pois a partir desses espaços digitais as or- ganizações conseguem manter diálogo com seus Evidencia-se que as redes sociais podem públicos, aproximações e estabelecer processos servir como potencialidade de desenvolver o em- de fidelização. preendimento e aproximar os diferentes públicos, quando usadas a partir de estratégias tomadas A internet, na Era das Relações que engloba para melhorar o desempenho, a circulação de in- tecnologias, criatividade, responsabilidade social, formações aos associados, o desenvolvimento conexões transpessoais e respeito à diversidade da compreensão entre gestores e usuários das cultural (MORAES, 2007), tem produzido mudanças redes sociais e novos conhecimentos empresa- nos hábitos, costumes, comportamentos, colabo- riais. Essas dimensões auxiliam no surgimento de rando, de algum modo, para auxiliar na identificação novas identidades, nova cultura organizacional e da identidade humana. Nesse sentido, as ferramen- resultados satisfatórios às organizações. tas tecnológicas, cada vez mais presente no nosso cotidiano, flexibilizam os processos materiais, físi- cos, simbólicos, numa dinâmica que requer intuição, Redes sociais digitais e identidade pensar crítico, garantia dos princípios éticos, afeti- Consideramos aqui que as redes sociais vêm vos e diálogo com as situações reais e práticas, ou provocando mudanças socioculturais que envol- seja, na era das relações, o desenvolvimento tecno- vem: descrição, execução e reflexão. E é objeto de lógico, requer, centralidade na comunicação. estudo de diversos autores, dentre eles, Castells Este estudo traz as questões da comunicação (2008) qual afirma que a formação de redes gera organizacional digital no município de São Borja, flexibilidade. Isto é, tornam praticamente indistin- com intuito de registro, para dar visibilidade às es- tas as fronteiras de participação e de envolvimen- tratégias de comunicação digital da Associação to, individualizam as relações sociais de produção Comercial e Industrial de Prestação de Serviços e provocam instabilidade estrutural do trabalho, do e Agropecuária (ACISB), que diretamente auxilia tempo e do espaço. Essas dimensões também re- administradores locais, apresentando dados para cebem atenção de Santaella (2010) e Terra (2011), reflexão, projetos empresariais, modelo de gestão, como ruptura das variáveis clássicas da comuni- legislação, informações sobre a concorrência, ou cação e das bases materiais da vida (CASTELLS, seja, circula conteúdos que mostram situações-pro- 2008), possibilitando a circulação das mensagens, blema e apresentam os cenários promissores para os registros por longos períodos e a presença em se desenvolver no pampa gaúcho. lugares onde não se está fisicamente, para além das A abordagem metodológica deste estudo é fronteiras geográficas. de cunho qualitativo. Na coleta das informações, Fragoso, Recuero e Amaral (2011) falam das utilizamos registros das publicações, entrevistas redes sociais como alcance de sabedoria objetiva, semidirigidas com a equipe responsável da área de ou seja, as plataformas digitais contribuem com a relacionamento e realizamos o mapeamento da pre- evolução do conhecimento. Por sua vez, a tecniciza- sença da associação no Facebook. Já no tratamen- ção (RODRIGUES, 1990) da internet naturaliza as to dos dados, trabalhamos com a análise focada relações entre os indivíduos e as máquinas. Muito no “grau da conexão de uma rede ego” (RECUERO, embora, é preciso sair da era material, técnica, que

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 175 HENRIQUE ESPER E CRISTÓVÃO DOMINGOS DE ALMEIDA se registra a ausência de cooperação, para aportar históricas da formação de cada identidade são di- na era das relações, isto é, integração, cooperação, versificadas e incorporam movimentos voltados à respeito, consciência e diálogo. Castells (2009) fala transformação das interações humanas. dos limites das redes globais, aborda o poder das Castells (2008) tece um panorama das prin- influências transformadoras em sua capacidade cipais identidades e as classificam em três grupos: maleável de construção e estagnação, sendo to- identidade legitimadora, identidade resistência e talmente dependente de forças externas para que identidade de projeto. Para o autor a identidade le- haja mudanças. gitimadora é introduzida pelas instituições dominan- tes da sociedade. Esse processo é que dá origem a As redes não têm limites estabelecidos; elas são sociedade civil. Para Castells (2008), a identidade de ilimitadas e têm várias bordas, e sua expansão ou resistência se traduz nas minorias, aos desfavoreci- contração depende da compatibilidade ou com- dos, aos desvalorizados pela lógica de dominação, petição entre os interesses e valores programa- promovendo resistências ao que lhes são disponibi- dos em cada rede e os interesses e valores pro- lizados, se por um lado tentam a imposição de men- gramados nas redes com os quais elas entram em sagens, por outro, tem-se a ressignificação e o pen- contato em seu movimento de expansão. (CAS- samento crítico. Por sua vez, a identidade de projeto TELLS, 2009, p.65) busca mudanças da estrutura cultural, através da construção de projetos de vida, isto é, ela passa pela As redes sociais digitais funcionam como o identidade de resistência, mas visa às lutas enquanto exemplo de aparelho, proposto por Flusser (1985). construção de uma nova identidade, com o propósito Para Flusser (1985): de redefinir o seu espaço, promover parcerias, com- partilhar informações entre os diferentes grupos, ou Aparelhos sao caixas pretas que simulam o pen- seja, o sujeito com essa nova identidade se torna ca- samento humano, gracas as teorias cientificas, as paz de avaliar, reunir e organizar as informações. quais, como o pensamento humano, permutam sim- Nessa perspectiva, entendemos que o usuário bolos contidos em sua memoria, em seu programa. das redes sociais é o centro do processo decisó- São caixas pretas que brincam de pensar.(p. 17) rio, com capacidade de julgar, examinar, comparar, divergir, mesmo diante da flexibilidade (CASTELLS, Assim como a rede de comunicação global que 2008), pois se deve potencializar as habilidades co- tem sua realidade em evolução e sua complemen- municacionais, as tomadas de decisões decorrente taridade guiada dependente dos produtos da ação das suas vivências em grupo, no trabalho, na famí- humana. lia, na escola, entre outros espaços sociais. Diante Nesse cenário, Castells (2015) propõe olhar- dessa abordagem, definimos, neste estudo que as mos a sociedade global em redes, uma vez que redes sociais digitais fomentam a construção de no- vivenciamos o avanço das expressões fortes de vas identidades, marcadas pela facilidade de acesso, identidade coletiva que reforçam o modelo de glo- flexibilização de tarefas, processos democráticos, de balização, fortalecendo pequenos grupos elitistas, cooperação, de parcerias, de diversificação de plata- fundamentados por princípios e valores tradicio- formas e dispositivos. A identidade empresarial sur- nais. Mas também, aquelas que estão na contra- ge com o intuito de gerar visibilidade, aproximação e mão da globalização e provocam os desafios, indo interação com seus públicos (TERRA, 2011), apoian- contra as separações, as rupturas, as dualidades do-se nas redes sociais como uma via de mão dupla e a homogeneização do pensamento. As fontes (GRUNIG e HUNT, 2003).

176 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 § Parágrafo RELAÇÕES PÚBLICAS E COMUNICACÃO ORGANIZACIONAL DIGITAL

Redes estratégicas des, elas se inserem no mercado para auxiliar nos fluxos comunicacionais e promover as conexões, As empresas estrangeiras, nacionais, regionais interações, cooperações e parcerias quando as e locais têm procurado cada vez mais as tecnologias usam de forma estratégicas. que lhes ofereçam facilidade e agilidade para a rea- lização de tarefas, seja nos processos mais simples Nessa perspectiva, as plataformas presentes na como a limpeza diária de seu prédio, até os proces- internet são vistas como aliadas da comunicação or- sos mais detalhados e complexos, como a comuni- ganizacional, que une o todo com base em suas par- cação com os diferentes públicos. Diante disso, Cas- tes (BALDISSERA, 2008). Para Terra (2011, p. 22), tells (2003), afirma que os empresários descobriram que observa o panorama da mídia, unindo a comuni- na internet um novo planeta, povoado por inovações cação organizacional digital, entende que: tecnológicas extraordinárias. Ou seja, diversas op- ções de atuação, trabalho, cooperação, divulgação [...] Seguindo a evolução da comunicação de massa, dentro das redes sociais digitais. A efetivação des- passando dos meios impressos aos eletrônicos e, sas ações depende das organizações para se mobi- mais recentemente aos digitais, a comunicação or- lizar e produzir novas transformações. Para Corrêa ganizacional incorpora uma vasta lista de ferramen- (2009, p. 163) tas que vão da intranet à televisão via satélite, agora a televisão digital. Aos blogs, microblogs, chats, pod- casts, entre outras. A soma dessa ferramenta digital A digitalização na sociedade contemporânea é um que informa, treina e motiva públicos ligados à orga- fato. Difícil pensarmos nosso cotidiano sem a pre- nização é o que se denomina comunicação organiza- sença de algum dispositivo que transforma em bits cional digital. (TERRA, 2011, p. 22) simples operações como olhar as horas ou assis- tir à televisão. A digitalização hoje ocorre em rede Desse modo, mesmo as organizações afasta- mundial, conectando computadores, dispositivos e, especialmente, pessoas. Seja na forma mais imper- das dos grandes centros urbanos, como é o caso ceptível (quando realizamos uma transação por meio das Empresas localizadas na região de fronteira, de um cartão magnético, por exemplo), seja na mais que possuem seus próprios hábitos em sua cultura explícita (quando nos conectamos à internet), a so- organizacional (SCHULER, 2009), começam a se ciedade conectada se faz presente e natural. preparar para trabalhar de forma estratégica com as ferramentas disponíveis no mundo digital. Isso exige O argumento de Corrêa (2009) nos ajuda a fa- criatividade, conscientização, abertura crítica e to- zer a conexão com o contexto organizacional, ha- mar decisões que potencializam a interação entre vendo mútua compreensão, cooperação, parceria emissor e receptor, enquanto produtores dinâmicos e adaptação da organização com as novas tec- do processo comunicacional. Entendemos aqui que nologias. A naturalização também precisa estar a organização inserida no mundo digital é fundamen- presente, sendo agente de mudanças, tornando a tal para sua sobrevivência, tendo em vista, que nos socialização da mensagem um processo comum, dias atuais o ambiente é “competitivo, incerto e exi- claro, objetivo, sem dualidades e nem estagnações gente” (SILVA, SANTOS E SILVA, 2017, p. 167). dos conteúdos. Os gestores estão cada vez mais à procura de tecnologias capazes de gerar resulta- Empresa Fronteiriça dos positivos para seus empreendimentos. Dentre as possibilidades ofertadas pela internet estão as O mapeamento da comunicação digital foi redes sociais digitais, no meio de muitas utilida- feito na cidade de São Borja, localizada na fron-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 177 HENRIQUE ESPER E CRISTÓVÃO DOMINGOS DE ALMEIDA teira oeste do estado do Rio Grande do Sul, cida- uma Unidade de Emissão de Certificado de Ori- de interiorana, com 335 anos de história, cerca gem, a qual disponibiliza seus serviços às empre- de 60 mil habitantes e conhecida por ser a terra sas exportadoras. natal de dois ex-presidentes, Getúlio Vargas e Além disso, a ACISB conta também com um João Goulart. espaço destinado à realização de eventos, locali- A instituição escolhida para a coleta de da- zado no parque de exposições da cidade, o qual dos é a Associação Comercial e Industrial de é disponibilizado aos associados e entidades par- Prestação de Serviços e Agropecuária (ACISB), ceiras. Além da representatividade e integração por sua grande visibilidade no município e forte com o setor empresarial, a entidade promove e atuação na área empresarial. A ACISB1 promo- participa de ações sociais que ajuda no bem-estar ve vários serviços aos seus mais de trezentos e nas melhorias da qualidade de vida aos morado- associados, os quais têm como principal carac- res do município. A Associação possui funcioná- terística oferecer benefícios diferenciados aos rios no regime CLT, estagiários, voluntários e equi- usuários, como custo reduzido, maior prazo, van- pe diretiva, composta por mais de vinte membros, tagens adicionais e atendimento personalizado. entre: presidente, secretários, fiscais e diretores: Por seus próprios meios ou através de convênios Comercial, Empresarial, Jurídico, Administrativo, e parcerias com outras empresas oferece servi- Patrimônio, Responsabilidade Social, Relações ços como envio e recebimento de fax, xerox, linha Internacionais e Produtos e Serviços. Com essa em comodato da operadora de telefonia celular, estrutura organizacional, a ACISB está investindo eventos de integração e serviços médicos atra- em ações estratégicas, tais como, o lançamento vés de convênios particulares. do aplicativo SmartCity, plataforma digital que Segundo a equipe de relacionamento da as- aproxima a empresa do consumidor; Campanha sociação, a máquina de fax que está em manu- “comprar em São Borja é bom demais”, numa ten- tenção, era disponibilizada aos usuários e asso- tativa de conscientizar os clientes a investirem ciados. O envio e recebimento de fax, foi por mui- nos produtos locais, bem como o curso de Gestão to tempo utilizado pelos administradores, mas da Comunicação Criativa, ações visam criar, refle- com o desuso do equipamento, apenas empresas tir, examinar e fidelizar os consumidores e ampliar dependentes de terceiros, que aceitam somente o número de associados. esta forma de envio utilizam o equipamento, cer- ca de 2 ou 3 empresas, entre as 319 associadas. Estratégias Comunicacionais na O xérox é mais utilizado para o público em geral, porque as empresas geralmente possuem o seu Empresa Fronteiriça próprio equipamento. Apoiados no pensamento de Rodrigues (1990): Em sua sede, comporta uma extensão do Centro de Integração Empresa Escola - CIEE e A imposição de uma ordem axiológica, a sanção uma Unidade da Parceiros Voluntários. Junto ao positiva da sua observância e a sanção negativa Centro Unificado de Fronteira, a chamada Adua- da sua violação fazem intervir um modo de fun- na, entre São Borja / Brasil e San Tomé /Argenti- cionamento específico dos campos sociais, um na, comporta diversas empresas que lidam com modo de funcionamento estratégico. (p. 150) exportação e importação, a entidade mantém Diante disso, distinguimos dois tipos de es- 1 www.acisb.com tratégias: pedagógica e terapêutica. A estratégia

178 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 § Parágrafo RELAÇÕES PÚBLICAS E COMUNICACÃO ORGANIZACIONAL DIGITAL pedagógica é um processo contínuo de instituir a enviava e-mail e uma quantia considerável davam ordem, fazer com que a ação realizada seja corre- retorno, com o ingresso das plataformas digitais ta e produtiva. A estratégia terapêutica consiste “enviamos e-mail e tínhamos que ligar para falar no restabelecimento da ordem violada, utilizando- da mensagem enviada. Agora criamos um grupo -se de práticas de incorporação inconsciente de no whatsApp e a comunicação ficou mais rápida padrões de culpa. Quando diversos campos atuam e acessível”. Essa percepção e mudança também ao mesmo tempo, necessitam repartir e aumentar ocorreram nas ações estratégicas da instituição, a força de sua intervenção para se destacar. ao utilizar o facebook, com foco nos objetivos e Para que isso ocorra, utiliza-se a cooperação monitoramento das mensagens. e o conflito. A cooperação consiste em um ou Apresentamos aqui as ações comunicacio- mais campos para se intervir juntos, de forma am- nais da ACISB como espaço de comunicação com plificadora, para anular apenas um tipo de padrão os seus públicos através do site e do facebook. de valores dominante, fazendo da neutralidade o Essas estratégias oferecem acolhida, protagonis- valor da sua estrutura e do seu funcionamento. Ao mo e incentivo às empresas de São Borja na fi- contrário desta proposta está o conflito, baseado delização, engajamento e trocas comunicacionais na busca pela ordem axiológica de dois ou mais entre os associados e os públicos em geral. campos na mesma esfera de experiência, ou seja, na busca pelo topo, de forma emergente, sair do As redes sociais como fomentadora da patamar de subordinado pelos tradicionais para desfrutar do poder e ter acesso a mecanismos de identidade Empresarial subordinação. Através de práticas, rompendo os Em busca do desenvolvimento regional em- discursos e comportamentos tradicionais ante- presarial e industrial, a associação executa de for- riores já naturalizados nestas esferas. ma estratégica suas ações comunicacionais digi- Os hábitos produzidos nas ações comunica- tais, para obter resultados positivos e fomentar a cionais das empresas dizem muito sobre o posi- nova identidade empresarial da região. Com isso, cionamento da gestão na procura por novas tec- a ACISB utiliza o site e as redes sociais para infor- nologias que facilitam processos e também sobre mar, comunicar, divulgar e compartilhar as mensa- como os públicos recebem as informações dos gens de interesse dos associados, da comunidade empreendimentos locais. Para Rodrigues (1990, de São Borja e dos municípios do entorno: Itaqui, p. 149) “as dimensões de um campo social fun- Santo Ângelo e Uruguaiana. cionam, sobretudo, sincronicamente enquanto As plataformas digitais possibilitam que as estratégias funcionais que se articulam, no pre- estratégias ganhem outras dimensões: agilida- sente, com os procedimentos tácticos dos agen- de, rapidez na propagação, criatividade, econo- tes e dos actores sociais”. Utilizando o exemplo mia, ou seja, a ACISB, ao utilizar a comunicação da via de mão dupla, o receptor das mensagens organizacional digital, por intermédio do site e neste caso, os associados da ACISB, possuem das redes sociais digitais, supera a Era Material seu modo de se comunicar e receber informa- e ingressa de vez na Era das Relações (MORAES, ções, o emissor, neste caso a ACISB, está atenta 2008), isto é, se antes o uso de equipamentos aos meios digitais, por ser a plataforma mais uti- tradicionais era o mais viável, atualmente, a in- lizada tanto pelos associados e parceiros quan- tegração, a cooperação, o diálogo e o desenvol- to pelos clientes. Um dos diretores salienta essa vimento das relações passam pela facilidade em mudança, ao nos informar que antes, a ACISB

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 179 HENRIQUE ESPER E CRISTÓVÃO DOMINGOS DE ALMEIDA identificar as fontes de informação e a clareza das mensagens divulgadas. Segundo a equipe de relacionamento, a ins- tituição utiliza: a página do facebook e o aplicati- vo para dispositivos móveis whatsApp. A página do facebook para divulgação de informações aos usuários da plataforma e o whatsApp, a partir de um grupo criado para os colaboradores, para facilitar a comunicação e descontração do am- biente de trabalho, fatores cruciais para o surgi- mento de tecnologias emergentes, não lineares, instantâneas, com qualidade, num menor custo, Figura 1: Tela principal do Site da ACISB. acessível, interativo e com potencial de integra- Fonte: ACISB ção (PINHO, 2002). Vale dizer, que o whatsApp atravessou as barreiras corporativas e está mo- Ainda na primeira página, ao rolar a tela, dificando a forma de se comunicar nas organiza- tem-se as últimas notícias, Parceiros/ Gestão/ ções, abrangendo um novo cenário para o con- Economia/ Associativismo, opinião de associa- sumo de mídia e de visibilidade pública (ALMEI- dos sobre determinados temas que estão sen- DA, 2017). As ações desenvolvidas pela ACISB do comentados e informados sobre o mercado ingressam na dimensão proposta por Rocha financeiro, tais como: taxa de câmbio, preço do (2009, p. 269) a qual afirma que “consumir, hoje, arroz, uma vez que São Borja é o terceiro maior é consumir cultura midiaticamente mediada, di- produtor de arroz no Rio Grande do Sul, e cota- gitalmente interligada, imaginariamente compar- ção de commodities em geral. Ou seja, de ma- tilhada, imageticamente realizada”. neira estratégica a equipe de relacionamento da Ao analisar o site da Associação, na tela ACISB utiliza a plataforma para realizar as trocas principal, conforme a imagem 1, além das infor- comunicacionais de interesse dos associados, mações básicas, como contato, horário de fun- de modo transparente, preciso e claro. Segundo cionamento, local e a opção de associar-se, pos- a equipe, a ACISB não possui profissionais capa- sui de forma clara e objetiva, acesso a links sobre citados para a criação e manutenção do site. A informações históricas da ACISB e da cidade. opção da Instituição foi trabalhar com empresas Estratégias comunicacionais já realizadas pela terceirizadas para a produção de conteúdo e o associação, como páscoa solidária, campanha gerenciamento do site. de natal, palestras, café semanal com os asso- Na rede social Facebook2, a associação se ciados, entre outras atividades. Há também con- insere de forma dinâmica, com dados atualizados teúdos com foco na capacitação dos gestores, em sua página, possibilitando o acesso às informa- soluções administrativas para empresas, como ções da associação, aos usuários da plataforma. locação, plano de saúde, representatividade da ACISB e temas atuais, por exemplo, as informa- ções sobre a mudanças nas Reformas trabalhis- tas, conteúdo que atinge diretamente às empre- sas associadas. 2 https://www.facebook.com/acisbcanalrelacionamento/

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volvem as empresas locais e os clientes, tais como: Natal Solidário e Comprar em São Borja são bons demais. As curtidas se ampliam, porque há uma pro- posta de interação, cooperação e mobilização. Na primeira edição do “Tá na ACISB”, progra- ma que tem a finalidade de fomentar o desenvol- vimento da cidade e a troca de experiência entre os convidados. A equipe de comunicação utilizou de ferramentas disponibilizadas pela plataforma para potencializar suas estratégias de comunica- ção, como mostra a imagem 3, uma transmissão ao vivo, do “Tá na ACISB”, possibilitando a intera- ção entre associação e usuários, cerca de 55 usu- ários, por meio de reações à publicação, comentá- rios e compartilhamentos.

Figura 2: Informações sobre a organização. Fonte: facebook/acisb

Uma das ferramentas mais democráticas do facebook é a ferramenta de avaliação de página, dando a oportunidade a todos os usuários da pla- taforma avaliar de forma igualitária a representante desta página, ou, a organização que a criou. Esta avaliação funciona em níveis de estrela, no qual, zero significa péssimo serviço prestado e 5,0 exce- lente serviço prestado. A associação possui a nota média de 4,7 nas avaliações dos usuários, uma nota alta, levando em conta que o máximo que se pode alcançar é 5,0 e também possui comentários positi- vos sobre a organização. Ao conquistar um comen- tário positivo, a organização também adquire credi- bilidade com outros usuários da rede, por se tratar de uma ferramenta popular e de fácil acesso.

A quantidade de curtidas nas páginas demons- Figura 3: Transmissão ao vivo (Fonte: facebook/acisb) tra quantos usuários visitaram a página e clicaram no botão “curtir” para receber atualizações e infor- É interessante observar a relação entre os mações da página em seu Feed de notícias. O nú- associados e associação, no caso da página do mero de curtidas da página é de 4.987 usuários. facebook da ACISB, as publicações de seus as- Quantia considerável para a cidade de São Borja-RS sociados são compartilhadas, segundo a equipe e o que percebemos é que nas campanhas que en- de relacionamento, para que tenham mais visibi-

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 181 HENRIQUE ESPER E CRISTÓVÃO DOMINGOS DE ALMEIDA lidade e ao mesmo tempo interação entre eles, Considerações finais legitimando a ação de comunicação organizacio- O presente artigo se propôs a compreender nal digital e com o intuito de fortalecer a identi- as estratégias comunicacionais da associação a dade empresarial. partir dos registros das publicações na página do facebook e para aprofundar a análise, realizamos entrevista com a equipe de relacionamento, com o intuito de entender as estratégias e as formas de aproximação com os públicos enquanto ações criativas, de cooperação, integração e fortaleci- mento da imagem organizacional. Apresentamos algumas dimensões no desen- volvimento das estratégias digitais, dentre elas, é a terceirização do site da ACISB, a busca contí- nua por novos usuários na página do facebook, de modo que se amplia a visibilidade das ações, a integração e a cooperação, bem como o uso do aplicativo whatsApp, garantindo a socialização das mensagens aos associados, com agilidade e interatividade. Percebemos que há uma mudança na comunicação organizacional, com uma visão estratégica, preocupando-se tanto com a manu- tenção das primeiras tecnologias instaladas na instituição (fax), quanto à busca permanente com o processo de inovação e acesso às tecnologias Figura 4: Estratégia compartilhada. mais recentes que podem auxiliar no desenvolvi- (Fonte: facebook/acisb) mento da fonte de produção da informação, arti- culando os processos organizacionais, com alcan- Notamos através destes exemplos, algumas ce local, regional, nacional e internacional, já que das ações estratégicas que a ACISB possui para as empresas São Borja/Brasil, San Tomé/Argenti- se comunicar com seu público e, essa comunica- na, são portas de acesso ao Mercosul. ção gera trocas e compartilhamentos. Com isso, Com base na abordagem qualitativa, notamos a associação se mostra presente e engajada no a promoção de estratégias de comunicação para compromisso em realizar ações estratégicas de co- atrair, motivar e incentivar os públicos (TERRA, municação digital nas redes sociais, neste caso no 2011). E também, a naturalização (CORRÊA, 2009) facebook. O ato de se preocupar em transmitir suas das novas tecnologias em sua cultura organizacio- mensagens através desta plataforma demonstra a nal. Observamos ainda, que a associação compre- sensibilidade da organização com o conhecimento ende as dimensões e a importância das plataformas contemporâneo e que potencializa as chances de digitais (PINHO, 2002), fator importante e esclare- acesso às informações, de aproximação e de fide- cedor, em se tratando de uma organização frontei- lização dos públicos. riça que está em um local afastado dos grandes po- los administrativos.

182 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 § Parágrafo RELAÇÕES PÚBLICAS E COMUNICACÃO ORGANIZACIONAL DIGITAL

Compreendemos que o cenário da comuni- nas organizações: tendências e transformações. cação digital nas empresas de São Borja, na re- Revista Organicom, n. 10-11, 2009. Disponí- gião da fronteira, é promissor e com potencial vel em: Acesso em: 3 abril 2017. o protagonismo, a flexibilidade, os valores, o di- FRAGOSO, Suely; RECUERO, Raquel; AMARAL, namismo, a integração, a cooperação e o diálogo. Adriana. Métodos de pesquisa para internet. Porto Essas dimensões da cultura organizacional fazem Alegre: Sulina, 2011. com que os empreendimentos se atentem para as oportunidades que podem surgir através do uso FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Pau- das plataformas, especialmente, a partir da inte- lo: Hucitec, 1985. ratividade e da visibilidade dos empreendimentos, isso, por si só justifica o uso das redes sociais di- GRUNIG, James; HUNT, Todd. Dirección de Relacio- gitais como geradora de desenvolvimento e tam- nes Públicas. Barcelona: Gestión, 2003. bém de uma nova identidade empresarial. JUNIOR, Luiz Francisco Ananias; SANTOS, Célia. M. Retz Godoy. A comunicação reticular e o WhatsApp Referências como tendência no ambiente corporativo. Anais do 40° Congresso Brasileiro de Ciências da Comuni- ALMEIDA, Cristóvão Domingos. Comunicação, cação, Curitiba: Intercom, 4 a 9 set. 2017. Dispo- consumo e democracia: desafios e possibilidades nível em: Fapcom, 2017, v.2, n.1, p. 99-110. Acesso em: 23 março 2018. BALDISSERA, Rudimar. Comunicação Organiza- MORAES, Cândida Maria. O Paradigma Educacio- cional: uma reflexão possível a partir do paradigma nal Emergente. 13. ed. Campinas: Papirus, 2008. da complexidade. In: OLIVEIRA, Ivone de Lourdes; SOARES, Ana Thereza Nogueira. (Org.). Interfaces PINHO, J. B., Relações Públicas na internet: técni- e tendências da comunicação no contexto das or- cas e estratégias para informar e influenciar públi- ganizações. São Caetano do Sul: Difusão Editora, cos de interesse. 2. ed. São Paulo: Summus, 2002. 2008, p. 149-77. RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet. 2. CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: refle- ed. Porto Alegre: Sulina, 2011. xões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. ROCHA, Rose de Melo. É a partir das imagens que falamos de consumo: reflexões sobre fluxos visuais ______. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra e comunicação midiática. In: CASTRO, Gisela Gran- S/A, 2009. jeiro da Silva; BACCEGA, Maria Aparecida (Orgs.). Comunicação e consumo nas culturas locais e glo- ______. O Poder da Comunicação. São Paulo/Rio de bal. São Paulo: ESPM, 2009, p. 268-293. Janeiro: Paz e Terra, 2015. RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias ______. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra da Comunicação. Lisboa: Editorial Presença, S/A, 2008. 1990. CORRÊA, Elizabeth Saad. A comunicação digital

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 183 HENRIQUE ESPER E CRISTÓVÃO DOMINGOS DE ALMEIDA

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Henrique Esper - Graduado em Relações Públicas pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) E-mail: [email protected] Cristóvão Domingos de Almeida – Pós-doutor em comunicação e professor da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). E-mail: [email protected]

Recebido: 16 set. 2017 Aprovado: 03 abr. 2018

184 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 173-184, jan./abr. 2018 § Parágrafo Convergência midiática e cultura participativa: possíveis interações entre novas tecnologias e agentes sociais no campo da comunicação

Media convergence and participatory culture: possible interactions between new technologies and social agents in the filed of communication

Antonio Francisco Magnoni Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia Baurú, SP, Brasil

Giovani Vieira Miranda Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia Baurú, SP, Brasil

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 185 ANTONIO FRANCISCO MAGNONI E GIOVANI VIEIRA MIRANDA

Resumo Abstract Este artigo analisa as editorias colaborativas de This article analyzes the collaborative publishing of dois portais da internet, G1 e A Tarde/UOL, com o two Internet portals: G1 and A Tarde/ UOL, to iden- objetivo de identificar a mudança na posição dos tify the change in the position of social agents in agentes sociais no campo da comunicação com o the field of communication with the advent of new advento das novas tecnologias e no contexto do uso technologies and in the context of mobile devices dos dispositivos móveis. Para realizar as análises, usage. In order to perform the analysis, concepts partiu-se dos conceitos de Castells (1996), Jenkins of Castells (1996), Jenkins (2009), and Bourdieu (2009) e Bourdieu (2004; 2008), e aplicou-se a me- (2004, 2008) were used. The methodology of Con- todologia de Análise de Conteúdo (AC), utilizando os tent Analysis (CA) was applied using qualitative me- métodos qualitativos de análise do corpus. Os re- thods of corpus analysis. The results show that the- sultados mostram que existe uma mudança na posi- re is a change in the position of social agents in the ção dos agentes sociais no campo da comunicação, communication area, from consumers to producers, de consumidores a produtores, de passivos a ativos, from passive to active, from isolated to connected. de isolados a conectados.

Palavras-chave Análise de conteúdo. Comunicação. Convergência midiática. Cultura participativa. Dispositivos móveis.

Keywords Content analysis. Communication. Media convergence. Participatory culture. Mobile devices.

186 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 § Parágrafo CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA E CULTURA PARTICIPATIVA

Introdução gas exigências passaram a figurar como elementos estratégicos e vitais, em meio à difusão acelerada As tecnologias produtivas e informacionais e de informações pela internet, principalmente pelas também as mídias contemporâneas estão em um redes sociais, canais interativos de difusão comuni- processo constante de convergência, que segun- cativa, que facilitam a dispersão de informações in- do Jenkins (2009, p. 29), não deve ser vislumbrado verídicas, de boatos, calúnias e de fake news. apenas no âmbito tecnológico, mas principalmente, em “uma transformação cultural, à medida que con- Plataformas como Facebook, Twitter e What- sumidores são incentivados a fazer conexões em sapp favorecem a replicação de informações mal meio a conteúdos midiáticos dispersos”. apuradas, de boatos e mentiras intencionais. Grande parte dos factóides é compartilhada por conhecidos, De acordo com pesquisa nacional da Secreta- em quem os usuários confiam. A aparente proximida- ria de Comunicação Social da Presidência da Repú- de dos influenciadores aumenta o verniz de legitimi- blica-Secom (BRASIL, 2016), 58% dos brasileiros dade das falsas histórias. Um exemplo concreto são têm acesso à internet. A televisão ainda é a platafor- os algoritmos utilizados pelo Facebook, que direcio- ma preferida para consumo de notícias pela maioria nam para cada usuário, as informações que reforçam da população, mas, ao analisar esse consumo por os seus pontos de vista repertoriais ou ideológicos; faixa etária, é possível constatar que a internet é a um processo seletivo nefasto que produz bolhas plataforma preferida pelos brasileiros, com idades com indivíduos similares e isola as narrativas gerais, entre 12 e 15 anos, e entre as pessoas com for- polariza os questionamentos à esquerda ou à direita, mação universitária. Entre os usuários da mídia tra- sem ocorrer uma diversidade mínima de visões con- dicional que também têm acesso aos dispositivos junturais ou de argumentos. O resultado é o bloqueio móveis, 20% disseram preferir ler jornais e revistas de qualquer debate com alguma pluralidade e, sobre pelo celular. Já entre os usuários de tablets, este qualquer tema de interesse coletivo, ou que seja rei- número sobe para 55%. Entre os usuários da rede vindicado por um nicho social. web, os mecanismos de busca são citados como a principal fonte de notícias (55%), com as redes so- Os veículos jornalísticos, que tradicionalmente ciais logo atrás, em segundo lugar (51%), seguidos são os responsáveis por checar os fatos, e construir por: 37% portais, 35% sites de notícias, 25% sites narrativas com histórias baseadas na realidade, hoje de mídias impressas, 20% sites de emissoras e 7% enfrentam diversos obstáculos, tanto econômico, de leitores de blogs (BRASIL, 2016). quanto tecnológico e profissional, para disputar es- paço nas redes sociais. Em junho de 2017, o Face- A informação tornou-se um bem disputado e book alterou o seu algoritmo para diminuir o alcance de valor crescente – as pessoas querem produzir e de postagens de sites noticiosos derivados de veícu- compartilhar conhecimento, em uma cultura cada los da “velha mídia” e assim, poder privilegiar os as- vez mais participativa. Com a difusão de diversas suntos interpessoais, com temáticas praticamente categorias de informações pelas mídias sociais, a domésticas, que são compartilhadas rotineiramente checagem e a veracidade dos fatos passaram a ser entre amigos e familiares. (re) discutidas e questionadas pelo público. A confia- bilidade das fontes, boa apuração dos fatos e edição De acordo com um levantamento do Grupo de coerente das informações, com linguagem eficiente Pesquisas em Políticas Públicas para o Acesso à In- 1 e atraente para público, era uma premissa inquestio- formação (Gpopai) da Universidade de São Paulo nável na era analógica, para que houvesse produção (USP), cerca de 12 milhões de pessoas difundem de bom jornalismo, verdadeiro e ético. Hoje, as anti- 1 http://ibidem.org.br/tag/grupo-de-pesquisa-em-politicas- publicas-para-o-acesso-a-informacaogpopai-da-usp/

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 187 ANTONIO FRANCISCO MAGNONI E GIOVANI VIEIRA MIRANDA notícias falsas no Brasil – as chamadas fake news –, está diretamente relacionada com as habilidades principalmente aquelas de conteúdo político. O nú- de uma sociedade para difundir e trocar informa- mero representa cerca de 6% da população brasilei- ções, relacionando-as com o restante do mundo. ra. Entretanto, se considerarmos que cada usuário A convergência tecnológica resulta em um flu- das redes sociais tem, em média, 200 conexões, os xo de conteúdos que transita pelas múltiplas plata- autores do levantamento acreditam que quase todos formas de mídia. “Convergência é uma palavra que os brasileiros têm por meio da internet, o contato di- consegue definir transformações tecnológicas, mer- ário com algum tipo de notícias falsas. A conclusão cadológicas, culturais e sociais” (JENKINS, 2009, dos analistas da USP é resultado de um trabalho de p.29). Com essa definição do conceito, o autor elimi- monitoramento de 500 páginas de conteúdo político na qualquer possibilidade de se vislumbrar a conver- falso ou distorcido, uma pesquisa empírica realizada gência como um processo puramente tecnológico, durante o mês de junho de 2017. que apenas uniria funções diversas dentro de um Nesse contexto, o ambiente digital, anônimo mesmo aparelho. A convergência deve ser entendi- e de trânsito livre, constitui um ambiente propí- da como uma transformação cultural, uma vez que cio para as práticas colaborativas dos internautas. incentiva os consumidores a buscar informações Partindo-se dessas ideias e do conceito de campo em diversos meios e, a partir deles, criar conexões. apontado por Bourdieu (2004; 2008), analisam-se É por essa razão que, para o autor, a convergência as editorias colaborativas dos portais G1 e A Tarde/ não ocorre apenas dentro dos aparelhos, mas, princi- UOL, para entendimento de como ocorre o proces- palmente, dentro do cérebro de cada indivíduo e em so de participação dos internautas e compreensão suas relações sociais. Jenkins (2009, p. 30) acredita sobre a mudança na posição dos agentes sociais no que “cada um de nós constrói a própria mitologia pes- campo da comunicação. soal, a partir de pedaços e fragmentos de informa- ções extraídos dos fluxos midiáticos [...] através dos Convergência midiática quais compreendemos nossa vida cotidiana”. Para chegar a essas conclusões, o autor ana- A digitalização tem afetado intensamente lisa o fluxo de conteúdos que permeiam múltiplos os espaços dos suportes culturais. A qualidade suportes midiáticos, considerando o comportamen- e a rapidez na transmissão de pacotes de dados to migratório do público, que oscila entre diferentes dentro de um ambiente que permite a comuni- canais de mídia em busca de novas experiências, e cação de forma anônima e a livre circulação de entende que a cultura da convergência se apoia em informações criaram um cenário propício para a três grandes pilares: (1) a convergência tecnológica criação e o compartilhamento de conteúdos – por dos meios de comunicação, (2) a cultura participa- qualquer pessoa; a qualquer tempo e lugar (SIL- tiva e (3) a inteligência coletiva. A convergência de VEIRA, 2010). As novas tecnologias têm afetado mídias, a cultura participativa e a inteligência co- as relações humanas de tal maneira que tais rela- letiva favorecem as práticas de criação, comparti- ções já não conseguem mais ser completamente lhamento e recombinação de conteúdos dentro do entendidas fora de seu diálogo com a tecnologia. ambiente digital. Entenda-se aqui o termo “tecnologia” da mesma Para a sociedade idealizada por Castells forma como coloca Castells (1996, p. 5), ao apon- (1996), a rede de computadores se constitui com tar que “a tecnologia não é somente a ciência e as uma morfologia própria, na qual a web torna-se sím- máquinas: é também tecnologia social e organiza- bolo do desenvolvimento comunicacional e espaço tiva”. Em outras palavras, a revolução tecnológica de liberdade comunicacional.

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A internet é fundamentalmente um espaço so- descentralizar a estrutura de produção e distri- cial, cada vez mais amplo e diversificado a partir buição de informações, cultura e conhecimento. A das tecnologias de acesso móvel a ela. Por isso a maior parte das tecnologias que compõem a in- preservação da liberdade de expressão e comuni- ternet é baseada em recombinações e está aber- cação na internet é a principal questão na liberda- ta, ou seja, não está sob o controle de patentes de de expressão em nosso mundo. (CASTELLS, ou outras formas que bloqueariam o seu acesso, o 1996, p.227) que facilita o compartilhamento e a recombinação de conteúdos. Esses processos possibilitados pelas novas Silveira (2008), em uma interpretação si- tecnologias quebram de vez o modelo estratifica- milar à de Benkler, coloca que há uma série de do e unidirecional de emissor-mensagem-recep- práticas socioculturais que reconfiguraram as tor, que já se mostrava demasiadamente simples redes informacionais, transformando-as em um para responder ao complexo processo de comuni- espaço comum. cação. Os atuais consumidores podem se tornar produtores, assim como o caminho contrário tam- bém é válido, e a informação segue fluxos diver- Uma série de práticas socioculturais reconfigura- ram as redes informacionais como um terreno co- sos, sofrendo modificações ao longo do percurso. mum — commons, no sentido anglo-saxônico — e Isso se justifica, segundo Jenkins (2009), princi- incentivaram a produção de processos, repositó- palmente pela redefinição do papel e da posição rios e interfaces a partir do ciberespaço ou em do consumidor midiático: seu redor, tais como, a música tecno, a Wikipedia, as redes sociais, a blogosfera, o jornalismo open Se os antigos consumidores eram tidos como source, o desenvolvimento de softwares livres, [...] passivos, os novos consumidores são ativos. Se as licenças Creative Commons e até o YouTube os antigos consumidores eram previsíveis e fi- (SILVEIRA, 2008, p. 86). cavam onde mandavam que ficassem, os novos consumidores são migratórios, demonstrando Em resumo, o tipo de comunicação que pros- uma declinante lealdade a redes ou os meios de pera no ambiente digital, está relacionado à livre comunicação. Se os antigos consumidores eram expressão. “É a transmissão de fonte aberta, a li- indivíduos isolados, os novos consumidores são vre divulgação, a transmissão descentralizada, a mais conectados socialmente. Se o trabalho de interação fortuita, a comunicação propositada e consumidores de mídia já foi silencioso e invisível, a criação compartilhada que encontram sua ex- os novos consumidores são agora barulhentos e pressão na internet” (CASTELLS, 2003, p. 165). públicos. (JENKINS, 2009, p. 47). O ambiente digital permite, portanto, uma nova cultura: a cultura participativa. Essa mudança na posição do consumidor midiático ocorre, principalmente, porque a inter- net permite a qualquer pessoa criar conteúdos Cultura participativa e formatos. Esses conceitos de Jenkins podem As mídias digitais pós-massivas, por sua vez, ser comparados às indicações de Benkler (2006), se caracterizam principalmente pela capacidade de para quem a internet representa uma mudança gerar comunicação e diálogo entre “consciências radical nas antigas tendências de comunicação, engajadas em romper o isolamento e em compar- justamente porque é o primeiro meio de comuni- tilhar uma atividade conjunta” (MARTINO, 2001). cação que consegue expandir o seu alcance ao

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 189 ANTONIO FRANCISCO MAGNONI E GIOVANI VIEIRA MIRANDA

Na avaliação plenamente otimista e “integrada” de de homogeneização dos hábitos e identidades cul- alguns autores, essas mídias são marcadas por turais. Afinal, a cibercultura progride em um mundo extremamente tangido pelos interesses de uma um novo formato de consumo, de produção e circu- globalização, que é primeiramente, financeira, e lação de informação, que tem como característica difundida pelas narrativas internacionais, que ven- principal a liberação do polo da emissão, a conexão dem incessantemente modelos sociais, individua- planetária de conteúdos e pessoas e, consequen- listas, consumistas, e fortemente ideologizados. temente, a reconfiguração do espaço comunicacio- Diante da mundialização dos valores da “ci- nal. (LEMOS, 2011, p. 2). vilização capitalista ocidental e democrática” as identidades locais, comunitárias e regionais têm Assim, Lemos salienta que, neste início de sé- se tornado mais importantes, ao mesmo tempo culo, estamos diante de um sistema comunicacional em que os instrumentos informacionais em tempo em que convivem mídias massivas e pós-massivas, real e com alcance global parecem provocar uma o que possibilita o surgimento de uma esfera co- homogeneização das culturas. Concomitante- municacional em que a conversação pública se dá mente às influências do global, um novo interesse no seio mesmo da produção e das trocas informa- pelo local parece emergir. tivas, entre atores individuais ou coletivos (LEMOS, De acordo com Hall (2000), a “globalização” 2011). Essa nova “esfera pública mediada” marca afeta a identidade cultural e as sociedades mo- uma transição para mídias mais conversacionais, do dernas se baseiam na noção de descontinuidade, que informativas, devido ao fato de que as trocas in- fragmentação e ruptura. Hall define a globalização formativas interpessoais ocorrem mais próximas ao como “processos, atuantes numa escala global, diálogo entre amigos e conhecidos, do que à emis- que atravessam fronteiras nacionais, integrando são-recepção impessoal, típica das velhas mídias. A e conectando comunidades e organizações em ampliação e o refinamento daquilo que é discutido novas combinações de espaço-tempo, tornado o nessa nova “esfera pública mediada”, pode resolver mundo, em realidade e em experiência, mais inter- os problemas do engajamento político e levar a uma conectado” (HALL, 2000, p. 67). A globalização, maior ação política e a uma ampliação da participa- para ele, deslocou as identidades culturais no fi- ção pública. “Podemos dizer que a nova prática do nal do século XX. jornalismo é mais um exemplo que ilustra a amplia- ção da conversação aplicada a uma dimensão mais Segue-se que a nação não é apenas uma entida- local, permitindo maior engajamento comunitário e de política, mas algo que produz sentidos – um político” (LEMOS, 2011, p. 13). sistema de representação cultural. As pessoas Diversas descrições e teorizações sobre hi- não são apenas cidadãos/dãs legais de uma na- perlocalismo advogam que a nova modalidade in- ção; elas participam da ideia da nação tal como formativa, além de propiciar maior pluralidade de representada em sua cultura nacional. Uma cobertura, pode gerar mais empregos locais para nação é uma comunidade simbólica [...] (HALL, jornalistas, criar oportunidades de renovação dos 2000, p. 49). processos e das práticas de produção de conteú- dos e formatos jornalísticos e, de sustentação eco- As consequências da globalização para as nômica das atividades noticiosas; também ajudam identidades culturais podem ser resumidas em a reforçar a noção de identidades e de culturas três pontos: (i) As identidades culturais nacionais locais, que reagem instintivamente às estratégias estão se desintegrando como resultado do cresci-

190 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 § Parágrafo CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA E CULTURA PARTICIPATIVA mento da homogeneização cultural e do “pós-mo- seleção de um item em uma lista predefinida, por derno global”; (ii) as identidades nacionais e outras exemplo, uma vez que essas ações caracterizam identidades “locais” ou particularistas estão sendo simplesmente uma interatividade. Jenkins (2009) reforçadas pela resistência à globalização; e (iii) as explica a diferença entre os termos: identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades – híbridas – estão tomando seu lugar. A interatividade refere-se ao modo como as novas Com a chegada dos meios digitais, o anti- tecnologias foram planejadas para responder ao fe- go formato de jornalismo, seja na produção da edback do consumidor. [...] A participação, por outro notícia ou na sua distribuição, mudou de manei- lado, é moldada pelos protocolos culturais e sociais. ra irreversível. A agilidade, a independência na [...] A participação é mais limitada, menos controlada busca de informações e a troca de conteúdo pelos produtores de mídia e mais controlada pelos que ocorre pelos usuários das mídias digitais consumidores de mídia (JENKINS, 2009, p.189). transformam o jeito antigo do jornalista fazer notícias, mas também transformam o jeito do A participação, portanto, pressupõe maior po- público receber e interpretar as notícias. De- der ao consumidor midiático, porque não é tão con- vido ao seu caráter colaborativo, o jornalismo trolada pelos produtores de mídia. Benkler (2006) hiperlocal só é possível com a participação do defende que a participação através da rede desen- público na produção das notícias. Contudo, ex- volve as capacidades práticas dos indivíduos de periências existentes já demonstraram que de três grandes maneiras: (1) melhora a sua capacida- nada adianta centenas de leitores enviarem de de fazer mais por si e pelos outros; (2) impede conteúdo, uma vez que não haverá condições que os indivíduos organizem suas relações através de analisar todo o material (CASTILHO, 2012). de modelos hierárquicos tradicionais; e (3) aumenta Alternativas viáveis existem e podem criar no- sua capacidade de participação em organizações vas formas para dar fôlego às combalidas em- formais que operam fora da esfera do mercado. presas jornalísticas, e aos pequenos jornalistas Avançando em Benkler, à luz de Rossini (2010, produtores de notícias locais. p. 211) compreende-se a vantagem que a internet Somado a políticas públicas eficientes, o jor- oferece para criar um ambiente que instiga a partici- nalismo pós-massivo pode ajudar a promover e pação, uma vez que a web confere aos cidadãos “no- contribuir para que se mantenham traços histó- vas oportunidades de participação locais, regionais ricos que distinguem os habitantes de determi- e globais. Sua possibilidade de construção e apro- nado lugar e, assim, despertar a responsabilidade priação de conhecimento, adequando-o para sua dos seus cidadãos (CANCLINI, 2005). No cenário realidade local, são potencialmente infinitas”. Dessa convergente em que vivemos, a colaboração pas- forma, os cidadãos já não estão mais sujeitos so- sa a ser fator determinante. Ao mesmo tempo em mente à posição de leitores ou de observadores de que jornalistas desenvolvem coberturas cada vez conteúdo; a rede permite sua participação e rede- mais rápidas, o consumidor de informação é con- fine o lugar de criação de conteúdos. Criam-se, as- vidado a participar do relato, enviando todo tipo sim, novas oportunidades para que esses cidadãos de conteúdo possível pelas redes sociais (CAR- possam construir e transmitir conhecimentos, criar VALHO; CARVALHO, 2014). e participar de canais de interação e de ativismo. Silveira (2010) compartilha desse pensamento ao Por participação na rede deve-se considerar indicar que os processos de comunicação criados um processo mais complexo do que o simples re- pelas novas tecnologias reforçam o potencial comu- torno do consumidor a uma votação virtual, ou a

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 191 ANTONIO FRANCISCO MAGNONI E GIOVANI VIEIRA MIRANDA nicador das localidades e permite a conexão delas surgidos a partir das novas tecnologias da infor- com quaisquer pontos e nós da rede, comprimindo mação e da comunicação, é preciso compreender e anulando as distâncias e sintetiza a importância como os agentes sociais alteram sua posição den- da participação efetiva na internet, ao colocar que a tro do campo da comunicação. Para entender esse participação nas redes digitais é um exercício criati- fenômeno, recorre-se aos conceitos propostos por vo de cidadania digital. Bourdieu (2004; 2008). Os novos canais de interação surgidos com as novas tecnologias permitem, enfim, o desenvolvi- O campo da comunicação e a posição mento de uma cultura participativa. O termo é utili- dos agentes locais zado por Jenkins (2006, p. 378) que o define como uma “cultura em que os fãs e outros consumidores O campo, seja ele literário, artístico, político, ju- são convidados a participar ativamente da criação e rídico ou científico, é o universo no qual se inserem da circulação de novos conteúdos”. A cultura atual é os agentes sociais e as instituições que produzem, mantida por meio da produção mútua e da troca re- reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ci- cíproca de conhecimento que fluem pelos novos ca- ência (BOURDIEU, 2004). Esse espaço é relativa- nais de interação criados pelas tecnologias atuais. mente autônomo, regido por leis próprias e no qual Conforme defende Jenkins (2009), o novo os agentes lutam entre si, mostrando suas forças ambiente midiático promete um fluxo mais livre de para manter ou transformar o campo. De acordo ideias e conteúdos. com Boudieu (2004) são as relações entre os agen- tes e a posição que ocupam dentro do campo que Consumidores estão aprendendo a utilizar as dife- determinam o que eles podem ou não fazer: rentes tecnologias para ter um controle mais com- plexo sobre o fluxo da mídia e para interagir com É a estrutura das relações objetivas entre os agen- outros consumidores. As promessas desse novo tes que determina o que eles podem e não podem ambiente midiático provocam expectativas de um fazer. É a posição que eles ocupam nessa estrutura fluxo mais livre de ideias e conteúdos. Inspirados que determina ou orienta suas tomadas de posição. por esses ideais, os consumidores estão lutando Isso significa que só compreendemos, verdadeira- pelo direito de participar mais plenamente de sua mente, o que diz ou faz um agente engajado num cultura. (JENKINS, 2009, p.44) campo se estamos em condições de nos referirmos à posição que ele ocupa nesse campo, se sabemos Em suma, a produção de informação, conhe- “de onde ele fala”. (BOURDIEU, 2004, p. 24) cimento e cultura através das relações sociais, ao invés de relações de propriedade e de mercado, é Por essa razão, a posição dos agentes é um o que cria as oportunidades para uma cultura mais fator importante para se entender o campo. Os crítica e uma república autônoma, engajada e me- agentes podem ocupar uma das seguintes posi- lhor informada (BENKLER, 2006). Na cultura da ções: (1) a posição de dominantes e (2) a posição convergência todos são participantes em maior de dominados, ou pretendentes. Os dominantes se ou menor grau e a cultura participativa modifica as utilizam de estratégia de conservação e defesa das antigas noções de passividade dos consumidores convenções e, por esta razão, estão localizados no midiáticos, colocando-os em papel similar ao dos centro do campo, num espaço de tradição. Já os produtores de informação. dominados, ou pretendentes, estão localizados fora Com esses novos fluxos e essa nova cultura do campo, num espaço de vanguarda e se utilizam

192 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 § Parágrafo CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA E CULTURA PARTICIPATIVA de estratégias de subversão e transgressão das se a participação dos internautas é ainda uma van- convenções para se inserir no campo. guarda ou se já se tornou uma tradição no campo, De acordo com Bourdieu (2008) esses lugares serão analisadas a seguir duas editorias colaborati- são classificatórios e permitem que os agentes se vas de portais da internet. situem no campo: Metodologia e análises As estruturas objetivas do campo da produção es- A metodologia escolhida para a aplicação da tão na origem das categorias de percepção e apre- fundamentação teórica no objeto de estudo foi a ciação que estruturam a percepção e a apreciação Análise de Conteúdo (AC). Wilson Fonseca Junior de seus produtos. É, assim, que pares antitéticos (2009) acredita que a formação do campo comuni- de pessoas ou de instituições, jornais, teatros, ga- lerias, editoras, revistas, costureiros, podem funcio- cacional não pode ser compreendida sem se fazer nar como esquemas classificatórios que só existem referência à Análise de Conteúdo. e são significativos em suas relações mútuas, além de permitirem a identificação dos interlocutores e Desde sua presença nos primeiros trabalhos da de se situarem com precisão. [...] Os produtores ou communication research às recentes pesquisas produtos que não estão no devido lugar, mas, como sobre novas tecnologias, passando pelos estudos se diz, ‘descolados’, estão mais ou menos condena- culturais e de recepção, esse método tem demons- dos ao fracasso: todas as homologias que garantem trado grande capacidade de adaptação aos desafios um público ajustado, críticos compreensivos, etc, emergentes da comunicação e de outros campos do àquele que encontrou seu lugar na estrutura funcio- conhecimento (FONSECA JUNIOR, 2009, p. 42). nam, pelo contrário, contra aquele que se desviou de seu lugar natural. (BOURDIEU, 2008, p.56-57). Este item traz a análise do corpus, o processo de codificação e categorização, além da descrição Quando há uma mudança na posição desses quantitativa e qualitativa das análises. agentes, ou seja, ocorrem lutas para entrar no cam- po, são gerados movimentos de quebra no círculo Análise do corpus da crença com o objetivo de fundar uma nova cren- Os objetos de estudo que se estabelecem ça. Quando a crença ou o agente social alcança o como corpus deste trabalho são as editorias cola- centro do campo, ele se torna consagrado. A eficá- borativas do portal G1, chamada de VC no G1, e do cia dos atos de consagração está no próprio cam- portal A Tarde/ UOL, chamada de Cidadão Repórter. po, reproduzida com a ajuda dos agentes, as insti- No caso do VC no G1, verifica-s a) Aparência: tuições e de suas lutas no campo. não há um portal que compile as notícias, mas No campo do jornalismo, as instituições consa- apenas uma aba para colaboração; b) Elementos: gradas, ou legitimadas, para a construção das notí- as reportagens são inseridas no portal em meio cias são as redações, e os agentes que ocupam o às demais notícias tendo a tag ‘VC no G1’ como centro do campo são os jornalistas. Porém, com as elemento diferenciador; c) Destaque da editoria alterações de fluxos de conteúdos permitidas pela na home do portal: não ocupa nenhum lugar de internet, os consumidores se tornaram produtores destaque na página principal, é colocada junto às de conteúdo e estão se inserindo no campo. Para outras editorias do portal; d) Canais de interação: entender como está ocorrendo a inserção desses os principais canais de interação são as redes agentes sociais no campo do jornalismo e verificar sociais, como o perfil no Twitter

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 193 ANTONIO FRANCISCO MAGNONI E GIOVANI VIEIRA MIRANDA com/vcnog1>; e) O que o internauta pode enviar: sugestão de pauta dos internautas; f) Como ele o portal recebe textos, vídeos e fotos dos inter- pode participar: não é necessário criar um ca- nautas; f) Como ele pode participar: o internau- dastro no portal; basta que o internauta preen- ta deve preencher um cadastro no site da globo. cha algumas informações, como nome, e-mail e com. Depois disso, ele faz o login no canal de in- telefone, selecione o arquivo que deseja enviar teração do G1, com o usuário e senha criados no e escreva as informações referentes ao arquivo; cadastro. Para enviar a notícia, o internauta deve g) Informações complementares: abaixo do cam- dar um título, selecionar o arquivo que deseja en- po de envio, há um termo de cessão de direitos viar, descrever comentários e indicar o local do autorais, que esclarece ao internauta que, ao en- acontecimento do fato; g) Informações comple- viar fotos, vídeos e áudios, ele cederá ao portal mentares: na página de envio de arquivos, há in- o direito de edição, comercialização, reprodução, formações aos internautas sobre o processo de impressão e publicação para todos os canais do participação. Há indicações, por exemplo, sobre grupo A Tarde; h) Comentários nas matérias: há o tempo em que o conteúdo enviado ficará dispo- espaço para que outros internautas possam co- nível: vídeos ficam publicados durante seis me- mentar as matérias ou compartilhá-las através ses; fotos e textos ficam disponíveis na rede por das redes sociais e e-mail. tempo indeterminado. As informações também Para a codificação e categorização dos ele- deixam claro quais os tipos de conteúdos que mentos textuais das editorias colaborativas, se- são proibidos no portal e ainda oferece algumas lecionou-se o método de análise categorial. A dicas para melhorar a qualidade e facilitar o en- análise categorial trata do desmembramento do vio dos conteúdos; h) comentários nas matérias: discurso em categorias, que serão posteriormen- há espaço para que outros internautas possam te analisadas qualitativamente. Bardin (2003) de- comentar as matérias ou compartilhá-las através fine este método como espécie de gavetas ou ru- das redes sociais e e-mail. bricas significativas que permitem a classificação Já no caso do Cidadão Repórter, coloca-se dos elementos de significação constitutivos da a) Aparência: possui layout similar ao das outras mensagem. Para identificar as principais caracte- editorias da porta; b) Elementos: as imagens e os rísticas dos textos colaborativos publicados nes- vídeos são colocados no mesmo tamanho dentro ses portais, criou-se uma tabela com os principais da página. Apenas uma matéria ganha um des- pontos observados em quatro matérias, duas do taque maior no início da tela. Todas as notícias VC no G1 e duas do Cidadão Repórter. possuem ícones que permitem compartilhá-las No VC no G1, foi selecionada a reportagem através das redes sociais; c) Destaque da edi- intitulada “Internauta registra neblina em região toria na home do portal: não ocupa nenhum lu- serrana do AP durante verão amazônico”, publi- gar de destaque na página principal, é colocada cada em 29 de julho de 2017, e “Ruas em lote- junto às outras editorias do portal; d) Canais de amento da Zona Norte de Macapá são alvos de interação: o principal canal de interação é o “Seja reclamação de internauta”, publicada em 17 de um Cidadão Repórter”, localizado no canto direito agosto de 2017. Já no Cidadão Repórter, foi do meio da página. O texto incita a colaboração escolhida a reportagem “Moradores denunciam do internauta ao utilizar a expressão “Envie fo- péssimo estado de trecho da BA-245”, publicada tos e vídeos. Envie sugestão de pautas. E seja em 02 de maio de 2017, e “Dona de cadela de- um cidadão repórter”; e) O que o internauta pode nuncia maus tratos durante tosa”, publicada em enviar: o portal recebe fotos, vídeos, áudios e 15 de janeiro de 2016.

194 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 § Parágrafo CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA E CULTURA PARTICIPATIVA

Os textos estão assim caracterizados: ferramentas de interação, instigam a colaboração do internauta, convidando-o a ser um jornalista ci- Tabela 1 - Categorias observadas nos textos do VC no G1 dadão. Porém, o texto final, publicado nos portais, Pessoa do discurso Jornalista. acaba sendo reescrito pelos agentes do centro do (jornalista ou Os internautas entraram campo, os jornalistas. Aos internautas, que são cha- internauta) como fonte na matéria. mados de “jornalista” e “repórter” nas editorias, res- ta ser apenas uma fonte da matéria. Mesmo que as Sim, foi colocado o nome dos Créditos nas matérias venham com créditos, fica bem claro neles internautas no texto e nas matérias a indicação de “internauta”. Em outras palavras, os imagens. Os próprios internautas agentes dominantes do campo, os jornalistas, lutam que enviaram as matérias e para manter a tradição no campo, impedindo que Fontes utilizadas fontes que representavam o os agentes de vanguarda, os internautas, consigam “outro lado” da notícia. chegar ao centro dele. As fotos e vídeos enviados Outro ponto a ser observado é que apesar de Fotos e vídeos pelos internautas entraram as notícias estarem sendo geradas e disseminadas para ilustrar o texto. a partir de diversos locais, as redações ainda podem Fonte: Tabela elaborada pelos autores. ser consideradas instituições legitimadas de disse- minação de informações dentro do campo da comu- Tabela 2 - Categorias observadas nos textos do nicação. Primeiro, porque é nela que trabalham os Cidadão Repórter agentes de tradição do campo, os jornalistas. Se- Pessoa do discurso Jornalista. gundo, as redações recebem e concentram todos (jornalista ou Os internautas entraram os textos produzidos pelos internautas, alterando- internauta) como fonte na matéria. -os conforme suas necessidades. Isso fica claro, por Uma das matérias dava o exemplo, nos termos de cessão dos direitos auto- crédito do texto para “Da rais e nas políticas dos portais, que esclarecem que redação” e nos créditos da Créditos nas os textos enviados pelos internautas serão modifi- outra matéria havia o nome matérias cados, comercializados e publicados e, portanto, os de um cidadão, mas não ficou direitos sobre eles passam a ser desses portais. claro se era jornalista ou Além disso, os jornalistas são considerados internauta. Os próprios internautas agentes com mais credibilidade dentro do campo que enviaram as matérias e da comunicação e é por essa razão que as notícias Fontes utilizadas fontes que representavam o devem mostrar que passaram por suas mãos. Uma “outro lado” da notícia. das formas que as editorias colaborativas utilizam- Foram utilizadas imagens -se para provar isso é o uso, em todas as matérias, Fotos e vídeos marcadas como ‘reprodução’ de fontes, entrevistas e formatação de texto comu- mente utilizado e consagrado no jornalismo. Fonte: Tabela elaborada pelos autores. Em síntese, os resultados das análises mostram que embora os agentes pretendentes - os internautas ­Observou-se que, inicialmente, as novas tec- participativos - tentem se inserir no campo do jorna- nologias colaboram com as práticas de participa- lismo, os agentes dominantes - os jornalistas - ainda ção, alterando os fluxos de produção das notícias se mantém como tradição no centro do campo. Esse e as duas páginas, através de textos e imagens e agentes se utilizam de estratégias de conservação e

§ Parágrafo São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 195 ANTONIO FRANCISCO MAGNONI E GIOVANI VIEIRA MIRANDA defesa das convenções para se manterem no centro ram com o desenvolvimento de tais tecnologias. do campo. Entre essas estratégias, a principal que Mesmo que elas ainda sejam distribuídas de for- pode ser citada é a reescrita da matéria, deixando os ma desigual, são capazes de induzir mudanças e internautas apenas como fonte. possibilidades comunicativas para movimentos e organizações. As redes trouxeram recursos de visi- Considerações finais bilidade e de empoderamento ao cidadão comum, organizações e coletivos. Analisar as editorias colaborativas dos portais De acordo com documento da United Nations G1 e A Tarde/ UOL foi o objetivo deste estudo. Para (2014), há oportunidades claras para a melhoria isso, foram feitas breves reflexões a respeito de participação dos cidadãos, a partir, por exemplo, conceitos que envolviam o objeto de estudo, como dos dispositivos móveis. Existem também alguns convergência midiática, uso de dispositivos móveis, problemas a serem considerados, como a exclusão cultura participativa e o campo da comunicação. digital e as poucas iniciativas de incentivo à partici- Observa-se que a digitalização contribuiu para pação. Estas oportunidades e desafios exigem es- o fornecimento de notícias de uma forma geral. A tratégias eficazes para criar um ambiente propício disponibilidade e a quantidade de notícias aumenta- para a participação, incluindo quadros legais e ins- ram, mas a maioria das fontes permanece a mesma. titucionais adequados, capacidade de desenvolvi- Os principais sites de notícias no Brasil são con- mento para a alfabetização de mídia digital para os trolados pelos mesmos agentes que controlavam cidadãos e a integração de recursos online e offline a mídia no período pré-internet, e, apesar de haver para a participação do público. uma produção de conteúdo relevante por parte de Com esses aspectos considerados, partiu-se blogueiros independentes e ONGs que possuem para a análise de conteúdo do corpus, buscando- seus grupos e seguidores, os grandes grupos da -se fragmentar seu texto em categorias que faci- mídia tradicional continuam a exercer forte contro - litassem a apreensão dos resultados. O resultado le sobre a forma como a opinião popular é moldada das análises mostrou que os internautas, com o (MIZUKAMI, 2014). uso das novas tecnologias, deixam de ser simples É importante salientar que o termo “audiência consumidores de notícias para se transformarem ativa” utilizado por Downing (2002) reflete a reali- em produtores de informação. Ocorre, dessa for- dade de cultura participativa frente às novas tecno- ma, uma mudança na posição desses agentes so- logias digitais, em especial o uso dos dispositivos ciais no campo da comunicação, de consumidores móveis. O papel do público não se restringe mais ao a produtores, de passivos a ativos, de isolados a papel passivo de recepção de conteúdos, ao con- conectados. Entretanto, essa participação dos in- trário, ele deseja participar ativamente e de modo ternautas ainda pode ser considerada de vanguar- colaborativo da rede, atuar em sua construção e da, visto que suas notícias costumam ser modifi- também na ligação com o mundo técnico, profissio- cadas pelos jornalistas e ainda ficam em editorias nal e conceitual do jornalismo e da mídia como um separadas e específicas, não se misturando as todo. A internet alterou – e continua alterando – gra- outras produções dos repórteres, que se inserem dativamente os hábitos coletivos de comunicação no campo ainda como tradição. Sendo assim, os mediada, que antes ocorriam por processos mais internautas ainda são dominados em um campo físicos e a curta distância. onde os jornalistas são os dominantes. As possibilidades de se estabelecer relações Vale ressaltar que os trabalhos que abordam o remotas interpessoais e interculturais cresce- campo da comunicação são importantes para com-

196 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 § Parágrafo CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA E CULTURA PARTICIPATIVA preender com maior clareza os diferentes fluxos e CASTELLS, M. Fluxos, Redes e Identidades: Uma funções dos agentes sociais participantes do pro- Teoria Crítica da Sociedade Informacional. In: Cas- cesso comunicacional. As transformações sociais, tells, M. (Org). Novas perspectivas críticas em edu- culturais e econômicas advindas das novas tecno- cação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. logias são um terreno fértil para o desenvolvimento CASTILHO, C. Jornalismo Hiperlocal ganha adep- de estudos e devem ser explorados. tos na grande imprensa. Observatório da Imprensa, 2012. Disponível em Acesso 70, 2003. em 25. ago. 2017

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Antonio Francisco Magnoni – Professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós Graduação em Mí- dia e Tecnologia (Mestrado Profissional e Doutorado) da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). E-mail: [email protected] Giovani Vieira Miranda – Mestrando em Comunicação Midiática e graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC) da Universidade Estadual Paulis- ta Julio de Mesquita Filho (UNESP). E-mail: [email protected]

Recebido: 23 set. 2017 Aprovado: 14 maio 2018

198 São Paulo, Brasil, v. 6, n. 1, p. 185-198, jan./abr. 2018 § Parágrafo