Discurso Religioso E Prática Social Segundo Zilda Arns1
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Pensando o Brasil: discurso religioso e prática social segundo Zilda Arns1 Thinking about Brazil: religious discourse and social practice according to Zilda Arns Marcelo Thimoteo da Costa http://dx.doi.org/10.1590/S0103-21862015000100009 Marcelo Timotheo da Costa é professor do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira ([email protected]). Artigo recebido em 31 de dezembro de 2014 e aprovado para publicação em 7 de abril de 2015. Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol. 28, no 55, p. 151-168, janeiro-junho 2015 151 EH055_BOOK.indb 151 25/06/2015 17:35:34 Marcelo Thimoteo da Costa Resumo Propõe-se aqui analisar a atuação da Pastoral da Criança, organização criada em 1983 e coordenada por quase três décadas pela médica pediatra e ativista católica Zilda Arns Neumann (1934-2010). Observar-se- -á, para tanto, o discurso construído por Arns para justificar a fundação da citada Pastoral – bem como o inventário realizado por ela dos primeiros anos de sua atuação. Quer-se demonstrar como Zilda Arns forjou, com base em um universo religioso específico, determinada mística de ação social, ligando credo privado e intervenção pública. Palavras-chave: ação social cristã; infância de risco; Zilda Arns; Pastoral da Criança. Abstract The present article analyzes the performance of Pastoral da Criança, a CNBB (Brazilian Bishops National Con- ference) social action organization. Pastoral da Criança was founded in 1983 and was coordinated for almost thirty years by the pediatric doctor and catholic activist Zilda Arns Neumann (1934-2010). Focusing on Arns’ stated reasons to justify the creation of Pastoral da Criança and on her record of its first years of action, we want to demonstrate how she created a spirituality of action. Doing so, she managed to link private creed and public intervention in a time of crisis both in Brazilian political scene and in local Catholic Church. Keywords: christian social action; vulnerable childhood; Zilda Arns; Pastoral da Criança. Resumé Nous proposons d’analyser la performance de la Pastoral da Criança, une organisation créé en 1983 et coor- donnée pendant presque trente ans par Zilda Arns Neumann (1934-2010), médecin et activiste catholique. Nous observerons, pour autant, le discours construit par Arns pour justifier la fondation de la Pastoral – de mê- me que l’inventaire qu’elle a réalisé des premières années de son travail. Nous voulons démontrer comment Zilda Arns a forgé, sur la base d’un univers religieux spécifique, une certaine mystique de l’action sociale, tout en reliant la croyance privée et l’intervention publique dans un temps de crise aussi bien sur la scène politique brésilienne que dans l’Église Catholique locale. Mots-clés: action sociale chrétienne; enfance en danger; Zilda Arns; Pastoral da Criança. 152 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol. 28, no 55, p. 151-168, janeiro-junho 2015 EH055_BOOK.indb 152 25/06/2015 17:35:34 Pensando o Brasil Introdução ovembro de 2000. Entre os numerosos inventários realizados no fim do milênio, a N médica e ativista social Zilda Arns Neumann (1934-2010) tornou público o texto “Pastoral da Criança: uma experiência consagrada”.2 Nele, a autora ia além da exposição dos objetivos e resultados até então obtidos pela Pastoral criada em 1983. Zilda Arns também detalhava as razões de seu engajamento pessoal, definindo e proclamando uma determinada mística de ação social que ligava credo privado e intervenção no mundo da experiência. É essa proposta de atuação na sociedade brasileira que será aqui analisada, tomando como referen- cial básico o documento mencionado. Filha de Gabriel e Helena Arns, Zilda nasceu em Forquilhinha, colônia agrícola de imigran- tes europeus no interior catarinense, universo onde a espiritualidade católica ditava o correr dos dias e consolidava laços comunais, inspirando trabalhos de assistência mútua. Assim, pode-se dizer que a conexão entre fé religiosa e atuação pública começou a ser inculcada em Zilda já nos primeiros anos de vida, na sua colônia de origem. A propósito, tais agrupamentos, espalhados pelo Sul do Brasil, seriam, ao longo de boa parte do século XX, notável celeiro de vocações sa- cerdotais (a numerosa família Arns, por exemplo, daria à Igreja alguns de seus filhos). Decidida a estudar medicina, curso realizado na Universidade Federal do Paraná (1954- 59), Zilda Arns optou por especializações em pediatria e sanitarismo, campos nos quais pôde coadunar expertise profissional e militância social, engajamento decorrente de seu cristianis- mo. Assim, nos anos de formação e na década após a graduação, ela atuou em um hospital materno-infantil em Curitiba e foi também pioneira no atendimento em postos de saúde na periferia da cidade. Seguiram-se, nos anos 1960-80, trabalhos de educação, saúde e proteção social voltados para as camadas mais empobrecidas: expansão da rede de postos de saúde e “Clubes das Mães”; difusão de programas de incentivo ao aleitamento materno, à reidratação oral e de atenção à higiene bucal; coordenação da campanha de vacinação contra a pólio, entre outras ações. Tais trabalhos, ela os executou tanto como funcionária pública estadual quanto como coordenadora de entidades filantrópicas. Na Pastoral da Criança desde a fundação, foi exatamente a referida mística de ação social, espírito visceralmente cristão, que animou o trabalho de extensa capilaridade junto aos Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol. 28, no 55, p. 151-168, janeiro-junho 2015 153 EH055_BOOK.indb 153 25/06/2015 17:35:34 Marcelo Thimoteo da Costa mais pobres. Tratava-se de uma operação estrategicamente disposta a meio caminho entre as ações meramente caritativas, tão próprias do catolicismo tradicional, e proposições mais radicais preconizadas pelos teólogos da libertação, que entre nós alcançaram inequívoca visi- bilidade entre meados dos anos 1970 e a década de 1980. Em suma: Zilda Arns, em virtude de sua confissão religiosa e como complemento dela, sentiu-se instada a intervir entre a parcela mais pobre da população brasileira. E, para tanto, elegeu uma via intermediária, equilibrando eclesiologias diversas. Uma opção pela prudência que viabilizaria o apoio e múltiplas alianças junto ao dividido universo católico de então. Uma escolha moderada que, eficaz no urdume de uma extensa rede de serviço social, logrando mobilizar milhares de voluntários em todas as dioceses brasileiras, revelaria também efeitos limitadores na ação da própria Pastoral. Uma atuação que, sem descartar explicitamente a necessidade de diagnóstico mais preciso das causas da desigualdade social em nosso país, deveria ser, em primeiro lugar, terapêutica, emergencial. Em tempos de tribulação: a praça pública e a Igreja brasileiras rganismo de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a O Pastoral da Criança nasceu duplamente marcada pelo signo da crise. O ano era 1983 e tanto o país como a Igreja Católica local, por razões diversas e em graus variados, viviam tempos de incertezas e sombras. Em termos nacionais, já correndo o terço final do mandato de João Baptista Figueiredo (1979-85), o último dos sucessivos generais que ocuparam a presidência da República desde o golpe civil-militar de março de 1964, a conjuntura econômica revelava-se particularmente preocupante. No triênio 1981-83, o Produto Interno Bruto (PIB) declinou 1,6% em média.3 A depressão na esfera produtiva fez o emprego e a renda nacionais recuarem, em termos com- parativos, mais que o verificado quando da grande crise de 1929.4 A gravidade da situação aumentou devido à resistência da inflação que, entre 1980 e 1982, atingiu índice anual su- perior ou muito próximo dos 100%. Em síntese e negando a teoria econômica mais ortodoxa, o desaquecimento do mercado interno não diminuiu o aumento continuado da carestia. Ao contrário, o país estava diante de um fenômeno conhecido por “estagflação”, estagnação econômica combinada com aceleração da dinâmica inflacionária. Dados os propósitos e também as limitações espaciais deste trabalho, será impossível avançar na discussão do delicado quadro da economia brasileira de então. Interessa, nestas linhas, grifar o mais elementar: a deterioração da economia brasileira de então impactou 154 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol. 28, no 55, p. 151-168, janeiro-junho 2015 EH055_BOOK.indb 154 25/06/2015 17:35:34 Pensando o Brasil profunda e negativamente a sociedade nacional, tendo efeitos particularmente perversos en- tre a população de baixa renda. Era esta a parcela da população com menor capacidade de se proteger da inflação, e para a qual a já frágil proteção do Estado, em qualquer dos níveis existentes, da Federação aos municípios, se mostrava ainda mais ineficiente, déficit potencia- lizado em conjuntura desfavorável. A Pastoral da Criança tinha como público alvo, exatamente, os mais empobrecidos da nação. Antes de prosseguir, um esclarecimento: não é objetivo destas linhas sugerir uma associação direta e unilateral entre a crise econômica do início dos anos 1980 e a gênese da Pastoral da Criança. As dificuldades enfrentadas pelo país, sobretudo entre suas camadas populares, tornaram tão somente mais necessária a citada Pastoral. Nesse sentido, para os fins desta análise, não basta replicar o pensamento teologal que enxerga na grave crise brasileira o kairós (i.e., “tempo oportuno”) do trabalho social, concebido como “missão”, encabeçado por Arns Neumann. Cumpre observar a história da própria instituição onde tal proposta de intervenção foi acolhida. Isto é, a ação da Pastoral da Criança em geral, e a de sua liderança maior, em particular, são mais bem compreendidas quando se ilumina o particular momento vivido pela Igreja Católica brasileira a partir do final dos anos 1970. Tensa conjuntura a ser abordada nos próximos parágrafos. Os anos 1980 trouxeram para a Igreja Católica do Brasil as incertezas advindas do acirramento de um conflito interno duradouro herdado da década anterior, uma divisão moti- vada por razões teológicas e pastorais – e também ideológicas e políticas. No mesmo período, cresceu notavelmente a repressão das instâncias doutrinárias romanas àquela que era a mais original (e polêmica) contribuição eclesiológica da América Latina, a Teologia da Libertação.