UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Artes

JULIA STATERI

O VIDEOGAME E AS COMPLEXIDADES POSSÍVEIS:

PROCESSOS DE CRIAÇÃO, EMERGÊNCIA E FRUIÇÃO

CAMPINAS

2016

JULIA STATERI

O VIDEOGAME E AS COMPLEXIDADES POSSÍVEIS:

PROCESSOS DE CRIAÇÃO, EMERGÊNCIA E FRUIÇÃO

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora, na Àrea de Artes Visuais.

Orientador: PROF. DR. EDSON DO PRADO PFUTZENREUTER

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA, E ORIENTADA PELO PROF. DR. EDSON DO PRADO PFUTZENREUTER

CAMPINAS

2016

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos mestres e amigos que se foram tão cedo, deixando um vazio material, ainda que nos iluminando com as recordações de nossas conversas regadas a café.

À minha querida amiga e mentora Célia Maria Escanfella, quem me motivou através do exemplo.

Ao grande artista e ser humano Wilton Luiz de Azevedo, por ver em seus alunos algo que eles costumavam falhar em reconhecer.

AGRADECIMENTOS

Deixo a minha mais profunda gratidão ao meu orientador, professor doutor Edson do Prado Pfutzenreuter, pelo voto de confiança depositado na minha figura acadêmica. Este tornou-se o primeiro passo desta árdua jornada de quase quatro anos, entre a introspecção da leitura e a busca de informações pertinentes, dispersas no cenário mercadológico.

Agradeço a atenção desinteressada e os conselhos edificantes do professor, filósofo e escritor, professor doutor Paulo Roberto Monteiro de Araújo. Seus pareceres pontuais ofereceram um norte no momento do desespero.

Em especial, expresso meu reconhecimento pela dedicação incansável dos meus pais, também professores, – os meus primeiros – enquanto procurei dar sentido à minha pesquisa e carreira docente.

RESUMO

O objetivo deste trabalho é relacionar as decisões criativas tomadas pelos desenvolvedores de games à reação expressa pelo seu público consumidor. Com isto, pretende- se provar a tese de que os videogames são meios capazes de tornar mais estreita a relação entre o público geral e a arte. Para tal, serão contextualizados alguns dos conceitos relativos à própria arte, aos games e à complexidade. Finalmente, serão analisados processos de desenvolvimento de games, segundo a narrativa de profissionais da área, o que se dará a partir de uma generalização proposta pela descrição de uma metodologia especifica e do estudo de três produtos distintos presentes no mercado.

Palavras-chave: Videogames – criação – método – complexidade – emergência

ABSTRACT

The purpose of this work is to relate the projectual decisions made by game developers to the reaction expressed by its consumers. With this, it’s intended to prove the thesis that videogames are mediuns able to bring the relationship between general public and art closer. This will be done by contextualizing some of the concepts of art itself, games and complexity. Finally, game development processes will be analyzed, according to the narrative of professionals, which will take place from a generalization proposed by the description of a specific methodology and a study of three different products that can be found on the market.

Keywords: Videogames – creation – method – complexity – emergency

SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO ...... 11

II. ARTE ...... 13

1. Três paradigmas da arte ...... 14

a) O paradigma da funcionalidade...... 16

b) O paradigma da arte para poucos ...... 24

c) O paradigma da exibição ...... 29

III. GAME ...... 47

1. Três paradigmas dos videogames ...... 60

a) O paradigma da diversão ...... 60

b) O paradigma do sucesso ...... 63

c) O paradigma da originalidade ...... 66

II. PROBLEMA - O videogame enquanto meio artístico ...... 75

III. HIPÓTESE - O videogame como arte pautada pela complexidade ...... 78

1. Complexidade ...... 79 2. Emergência ...... 86 3. Videogames e as complexidades possíveis – MDA Framework ...... 92

a) A complexidade pela Estética ...... 96

b) A complexidade pela Dinâmica...... 99

c) A complexidade pela Mecânica...... 101

IV. PROCESSO DE CRIAÇÃO ...... 104

1. Conceituação ...... 115 2. Pré-produção ...... 121 3. Produção ...... 132 4. Pós-produção ...... 143

V. ANÁLISE – O processo de projetar experiências ...... 152

1. Lords of Shadow ...... 153 2. Sunset ...... 170 3. Shiny ...... 186

VI. CONCLUSÃO ...... 193

VII. REFERÊNCIAS ...... 198

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I. INTRODUÇÃO

O estudo da arte, no campo científico-acadêmico, quase sempre se apresenta como um desafio que não pode ser aceito sem alguma gravidade. Enquanto sabemos que a elaboração de uma tese de doutorado implica na adoção das especificidades metodológicas que orientam o raciocínio científico, – o que é necessário, diga-se de passagem, para conferir densidade e estrutura aos estudos realizados – por outro lado, paira sobre o pesquisador da área de humanas a sombra da redução do significado em função da compreensão técnica. Algo inaceitável para os que têm por seu objeto de pesquisa o imaterial, do qual se faz a arte.

Neste trabalho, pretende-se provar a tese de que os videogames são meios capazes de tornar mais estreita a relação entre o público geral e as diversas formas de arte encontradas no contexto contemporâneo. Esta tese, se comprovada, tem por objetivo principal fomentar o discurso da aceitação artística dos videogames enquanto meio (em lugar de defende-lo enquanto suporte determinante para existência ou não de uma artisticidade), haja visto que estes solapam a própria concepção do que é defendido qualitativamente como arte por determinados grupos formados, principalmente, por acadêmicos e críticos especializados. Ainda, pretende-se relacionar as decisões criativas tomadas pelos desenvolvedores de games à reação expressa pelo seu público consumidor.

Para tal, a partir de uma metodologia que converge os pensamentos Karl R. Popper e Thomas Kuhn, inicialmente será trabalhada uma abordagem hipotético-dedutiva respaldada por um processo de desconstrução paradigmática. Partindo de um levantamento bibliográfico, serão contextualizados paradigmas relativos aos campos das artes e dos videogames. Estes modelos podem representar o pensamento de uma época ou a expressão do conhecimento popular, o que nos é relevante se pensarmos no papel do consumidor como fruidor pertencente a ambas as situações. Tais paradigmas serão levantados e rebatidos segundo o propósito desta tese, a qual será devidamente separada em segmentos pontuais que facilitarão o acompanhamento do raciocínio que será conduzido.

Em decorrência de trabalhos anteriores que vêm responder a esta questão dos jogos como arte, - embora não de maneira frequente e contundente no território nacional – se evitará discorrer sobre um assunto já debatido. Para que se mantenha o foco nas relações estabelecidas entre público, produtor e objeto produzido, parte-se da premissa que os videogames sejam 12

considerados como expressões artísticas. Embora possa parecer óbvio, é válido o reforço no sentido de que, ainda que os videogames possam ser considerados como expressões artísticas, nem todos o serão apenas em decorrência de se constituírem enquanto este meio. Como, da mesma forma, pode-se afirmar que a escultura é uma forma de arte, embora nem todo mármore talhado o seja.

Apresentados os conhecimentos prévios acerca da temática que se desenrola, estabelecido o problema e a conjectura sob a forma da solução hipotética, veremos métodos particulares ao desenvolvimento de games – como é o caso do MDA Framework. Estabelecido este embasamento, será realizada a análise dos processos de desenvolvimento apresentados por produtores – através de documentações disponibilizadas ao público – em diferentes situações: Primeiramente, veremos o processo de desenvolvimento do título Castlevania: Lords of Shadow, desde o histórico da franquia até o lançamento deste que visava ser o produto que expandiria a abrangência do público ocidental. Em seguida veremos como se deu a criação de Sunset, um game produzido por dois artistas que pretendiam aplicar os preceitos de seu manifesto artístico à produção técnica. Por fim, conheceremos a trajetória de Shiny, um produto brasileiro de iniciativa independente e autofinanciada.

Entendemos que, segundo Lakatos e Marconi (2003) sobre o pensamento de Popper, a ‘confirmação’ de uma hipótese seja impossível de se atingir dado o fato de que seria necessário acumular, comparar e analisar todos os casos do presente, do passado e do futuro para que houvesse a certeza de uma única verdade. O uso do termo ‘corroboração’, parece-nos mais plausível e em concordância com o espírito da academia, pois este entende que – no momento da investigação científica – não foi descoberto um caso concreto negativo, embora tome conhecimento que, a qualquer momento, pode surgir um fato que invalide a hipótese apresentada. Assim tem ocorrido na história da ciência e assim se caracteriza o próprio ambiente acadêmico.

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II. ARTE

A subjetividade expressa um conceito que foge à interpretação. Como definir logicamente, algo que – mesmo que se paute pela técnica, ainda que subentenda um método - se constrói no campo do sensível?

O conceito de arte já foi exaustivamente debatido em diversos momentos, pelos mais variados ângulos: como parte de uma historiografia das obras, como uma extensão da vivência pessoal dos artistas ou mesmo por meio da chamada ‘sociologia da arte’. Existe, entretanto, um problema de compatibilidade dessas abordagens, pois a história das obras de arte não vem a explicar do que se trata a arte propriamente dita. Bem como a visão biográfica dos artistas, embora auxilie na compreensão da elaboração de suas respectivas obras, não define o que as torna, de fato, ‘arte’. Quanto à sociologia, buscando compreender os fenômenos sociais nos quais a arte se insere, delimita-os e formula questões que partem para uma solução quantitativa e impessoal. Ainda que tracem um panorama importante para a compreensão de contextos e reverberações interpretativas por parte do povo, estes esforços podem ser vistos como uma simplificação do real significado da ‘arte’.

Sabendo que não existe consenso nessa definição, foi selecionada para menção neste trabalho a visão – no campo da filosofia – de Jacques Rancière (2005), em especial no que diz respeito ao seu posicionamento na transcrição “Da partilha do sensível e das relações que estabelece entre política e estética”. O autor considera que:

A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. É a partir dessa estética primeira que se pode colocar a questão das “práticas estéticas”, no sentido em que entendemos, isto é, como formas de visibilidade das práticas da arte, do lugar que ocupam, do que “fazem” no que diz respeito ao comum. (2005, p.17)

14

Recorrendo à Platão para destacar três maneiras a partir das quais a arte pode ser praticada (signos mudos, superfície dos signos que seriam como pinturas e espaço do movimento dos corpos), Rancière nos conduz ao questionamento de como esta pode ser percebida no sentido comunitário. Estas formas definiriam, então, o modo como as obras fariam política independentemente das intenções ou ideologias que as regessem (2005). São paradigmas que, segundo o autor, postos no contexto do século XIX e início do XX se transformariam radicalmente, já que os signos sofreriam um entrelaçamento:

Pensemos, por exemplo, no papel assumido pelo paradigma da página sob suas diferentes formas que excedem a materialidade da folha escrita: temos a democracia romanesca, a democracia indiferente da escrita, simbolizada pelo romance e seu público. Mas temos também a cultura tipográfica e iconográfica, esse entrelaçamento dos poderes da letra e da imagem, que exerceu um papel tão importante no Renascimento e que vinhetas, fundos de lâmpada e inovações diversas da tipografia romântica ressuscitaram. (RANCIÈRE, 2005, p. 20)

O mesmo vale para a quebra com a bidimensionalidade (‘plano’) na intenção tridimensional das obras renascentistas, de certo modo corrompendo o preceito do ‘plano’ platônico como algo ‘não vivo’.

Recorrentes, as três formas apresentadas por Platão, não mais dariam conta de abranger todos os modos dos fazeres artísticos onde as figuras da comunidade se posicionariam esteticamente, entretanto estas importam para tornar visível a relação entre a política e a estética que nos interessa particularmente para a compreensão de nossa problemática.

1. Três paradigmas da arte

Para melhor compreender a natureza sensível e estabelecer a problemática do relacionamento existente entre esta e uma política, há que se apresentar os modelos que – num determinado tempo, senão num espaço próprio – cuidaram para que fosse preservada uma aura de misticismo, afastando do cotidiano e da intimidade este e outros saberes subjetivos. 15

Antes de mais nada, todavia, há que se definir com clareza com que carga concreta estamos lidando ao falar dos ‘paradigmas’. Diria Thomas Kuhn (2006) que se deve considerar como a própria história descreve especificidades estabelecidas como regras consolidadas e aceitas num determinado momento. O público em geral possui uma visão, em geral adaptada de um paradigma que pode ser tido como global, sob a qual vive, trabalha e estabelece suas pesquisas.

Cientistas podem concordar que um Newton, um Maxwell ou um Einstein produziram uma solução aparentemente duradoura para um grupo de problemas especialmente importantes e mesmo assim discordar, algumas vezes sem estarem conscientes disso, a respeito das características abstratas específicas que tornam essas soluções permanentes. Isto é, podem concordar na identificação de um paradigma, sem entretanto entrar num acordo (ou mesmo tentar obtê- lo) quanto a uma interpretação ou racionalização completa a respeito daquele. (KUHN, 2006, p. 68-69)

Que a identificação de um problema e o estabelecimento de um paradigma são essenciais para a evolução da pesquisa, qualquer que seja sua área de desenvolvimento, não há dúvida. Existe, entretanto, uma diferenciação crucial quando abordamos paradigmas no âmbito das Ciências Humanas ou das Artes: Enquanto paradigmas de áreas como as da Física ou da Química se constroem por meio de um processo lógico de experimentação pautado por mecanismos de controle, que pode ser replicado para a confirmação do resultado esperado, – o que pode, inclusive, conferir este caráter de ‘permanência’ a que Kuhn se refere – no campo da subjetividade, a tentativa de estabelecer um método lógico, por si só, pode ser bastante ingrata. Mesmo nas Ciências Sociais, onde existe a generalização, é possível a realização de pesquisas de campo que trabalhem com a coleta de dados concretos, levando a resultados que – ao menos num primeiro momento – possam ser confirmados pela repetição de processos guiados pelos mesmos indicadores a serviço do pesquisador original, tais como os recortes por região, faixa etária, classe social, bem como a preocupação com a seleção de amostragem adequada.

Em se tratando da arte, são estabelecidos modelos teóricos que podem ser pautados pelo contexto histórico no qual estes se instituem, - motivo pelo qual vemos a tentativa de se explicar o que é arte com base numa historiografia das obras – e/ou pela linha ideológica de grupos que aceitam um determinado estilo como oficial – como ocorreu com a própria arte clássica e seu preceito da arte ‘Bela’ e ‘Moral’. 16

Por se tratarem de produtos oriundos – principalmente, embora não exclusivamente – de uma elaboração subjetiva, tanto os jogos, quanto (ou enquanto) objetos estéticos de qualquer ordem, estão sujeitos ao julgamento do senso comum. O ‘juízo de gosto’ longe de ser visto como um problema, pode ser considerado, sim, como uma consequência natural diante de qualquer coisa, principalmente produtos artísticos. Não raro, porém, este juízo que foge às amarras do criticismo consciente, ganha força suficiente para se consolidar em um paradigma que pode vir carregado de pré-concepções ideológicas que devem ser problematizadas e, quase sempre, atualizadas em função do novo cenário vigente. Assim sendo, buscaremos a compreensão e a atualização dos paradigmas referentes àquilo que chamaremos de um modo abrangente – próprio do julgamento comunitário a que queremos aludir – ‘arte’ para, no capítulo posterior darmos lugar a semelhante indagação no terreno dos videogames.1

a) O paradigma da funcionalidade

Na tentativa de compreender e explicar a arte, uma das principais abordagens utilizada na historiografia da arte foi a associação entre as obras (em momentos históricos diversos) e alguma função específica para sua existência. Esta prática se mantém nos dias de hoje, em especial no ambiente da educação superior, sendo que um dos trabalhos mais respeitados foi o desenvolvido por Ernst Hans Josef Gombrich (1979). Neste compêndio sobre “A História da Arte”, Gombrich considera que o início da arte teria se estabelecido ainda na Pré-História, associado à necessidade humana de expressar sua religiosidade, enquanto desenvolve uma linha do tempo relacionando a história das obras e dos artistas à funcionalidade, explícita ou não, do processo de criação.

Se aceitarmos o significado de arte em função de atividades tais como a edificação de templos e casas, realização de pinturas e esculturas, ou tessitura de padrões, nenhum povo existe no mundo sem arte. Se, por outro lado, entendermos por arte alguma espécie de belo artigo de luxo,

1 Daqui por diante será referido como ‘videogame’ - ou simplesmente ‘game’ na abreviação comum à jogadores e desenvolvedores brasileiros - o jogo de entretenimento eletrônico, independentemente da plataforma de seu funcionamento (seja ela o computador pessoal, computador portátil, tablet, smartphone ou console de qualquer marca e origem). No que diz respeito à forma escrita, embora sejam corretas tanto a forma separada (vídeo game), quando a apresentação num único termo, parece mais coerente - em se tratando da nomenclatura que representa um meio muito maior que a mera soma de suas partes - a segunda utilização. Será tratado por ‘jogo’ quando se buscar um sentido mais abrangente, podendo se tratar de produtos analógicos ou digitais. 17

algo para nos deleitar em museus e exposições, ou certa coisa especial para usar como preciosa decoração na sala de honra, cumpre-nos entender que esse uso da palavra constitui um desenvolvimento muito recente e que muitos dos maiores construtores, pintores ou escultores do passado nunca sonharam sequer com ele. [...] Todos sabemos que existem belos edifícios e que alguns deles são verdadeiras obras de arte. Mas dificilmente existirá uma construção no mundo inteiro que não fosse erigida para um fim particular. Aqueles que usam esses edifícios como lugares de culto ou de entretenimento, ou como residências, julgam-nos em primeiro lugar e acima de tudo por padrões de utilidade. (GOMBRICH, 1979, p. 19)

O autor não se refere apenas às obras da atualidade, mas faz referência a períodos anteriores da história: “No passado, a atitude para com pinturas e estátuas era frequentemente semelhante. Não eram consideradas meras obras de arte, mas objetos que tinham uma função definida.” (GOMBRICH, 1979, p. 20). Mostra preocupação detalhista em pormenorizar o contexto no qual o artista vive e constrói a obra de arte, dirigindo o entendimento do estudioso pelo cenário político e socioeconômico onde há idealização e apresentação.

Vemos que para entendimento da obra e seu processo de construção, a contextualização continua essencial. Preocupa-nos, todavia, o viés excessivamente pragmático que pode advir desta visão funcionalista, num momento em que a arte sofre com uma desvalorização perante outras importâncias que podem ser vistas como necessidades básicas inerentes ao ser humano. Existe, atualmente, uma crise global que é não apenas econômica, mas também política (obviamente) e que envolve questões fronteiriças urgentes, tanto no montante territorial, quanto no dos limites daquilo que nos faz humanos. Enquanto enfrentamos uma crise global que nos faz pesar o que nos une e o que nos separa de nossos vizinhos, repensando o caminho que estamos trilhando, parece tentador nos agarrarmos a uma explicação funcionalista da arte para mostrar a importância de sua presença. Porém, talvez seja justamente quando a humanidade parece falhar em sua lógica, que a arte surja para nos lembrar do que somos feitos.

Em escalas de abstração e de absorção diversas, a arte está presente nas nossas vidas. Algumas vezes de maneira tão intrínseca que nós sequer paramos para refletir sobre ela. Podemos dizer que é justamente pelo fato de que os sentimentos a respeito de uma obra são desencadeados de maneira subjetiva, que parece-nos difícil racionalizar a arte. Ao tentarmos fazê-lo, – se este for mesmo o caso – devemos ter cautela, pois nos arriscamos a adotar uma postura reducionista que poderia ser danosa. É verdade que a arte provoca reações emocionais diversas que podem ir da apreciação à repulsa, entretanto, há muito mais por trás do 18

planejamento e desenvolvimento de uma obra do que sensações puras. Qualquer musicista poderia descrever a complexa matemática presente na divisão métrica existente nos compassos, da mesma forma que um pintor dedica-se a exercícios não menos trabalhosos para compor uma tela com a sensação de profundidade oferecida pela perspectiva. A arte possui, sem sombra de dúvida, sua parcela técnica e racional.

Isto posto, não se pretende negar o caráter técnico e racional presente em algumas das formas de expressão artística, - como é o caso da música, cuja composição depende do conhecimento sobre métrica e harmonia - mas sim alertar para o uso da cautela ao se associar arte e função. Para isso, vamos recordar alguns dos pontos críticos tocados por Walter Benjamin a respeito da chamada ‘arte engajada’.

Cabe aqui um parêntese quanto à utilização, neste trabalho, do autor cuja tese referente às ‘artes mecânicas’ Rancière taxou de “duvidosa” (2005, p. 45). Enquanto Rancière afirma ter aproximado um paradigma científico do que chama de um ‘paradigma estético’, ao se referir à noção das artes mecânicas, Benjamin teria reduzido as

[...] propriedades estéticas e políticas de uma arte a partir de suas propriedades técnicas. As artes induziriam, enquanto artes mecânicas, uma modificação de paradigma artístico e uma nova relação da arte com seus temas. Essa proposição remete a uma das teses mestras do modernismo: a que vincula a diferença das artes à diferença de suas condições técnicas ou de seu suporte ou medium específico. (RANCIÈRE, 2005, p. 45-46)

Veremos, adiante, como Benjamin aponta para o entedimento do artista como sujeito presente numa estrutura política, social e econômica. Portador de ‘um certo nível’ de autonomia, mas não de liberdade total como podemos ser levados a crer em se tratando das expressões subjetivas. Quanto à constituição de um veículo através do qual a arte pode ser feita – e neste trabalho tratamos da relação direta entre arte e tecnologia – consideramos que Rancière teria ido além e revisto, ele próprio, o paradigma estabelecido por Benjamin. Como posto por Rancière:

É preciso, no meu entender, que se tome as coisas ao inverso. Para que as artes mecânicas possam dar visibilidade às massas ou antes, ao 19

indivíduo anônimo, precisam primeiro ser reconhecidas como artes. Isto é, devem ser praticadas e reconhecidas como outra coisa, e não como técnicas de reprodução e difusão. (2005, p.46)

Tratamos da arte, acima de qualquer funcionalidade que lhe tenha sido imposta histórica ou politicamente. Interessa-nos dar, com Rancière, este passo a mais na estipulação da arte independente de seu suporte. Vejamos, porém, algumas das questões levantadas por Benjamin ao propor a compreensão do autor como produtor na conferência de 27 de abril de 1934 no Instituto para o Estudo do Fascismo.

Retomando a República de Platão, Benjamin nos lembra da exclusão dos poetas pelo bem da comunidade e do Estado. Numa comunidade “perfeita”, a presença e participação destes seres subjetivos, seria supérflua e até mesmo prejudicial. Partindo desta observação, Benjamin indaga sobre a autonomia do artista, sua liberdade de criação. Nos termos de hoje, podemos pensar que o artista teria liberdade ilimitada de expressão. Tal consideração seria errônea. Como na observação do autor, ainda hoje o artista sofre pressão social para decidir “a favor de que causa colocará sua atividade” (BENJAMIN: 2012). Por mais autônomo que se mostre este ser, o artista encontra-se caracterizado dentro de uma estrutura política, social e econômica que lhe cobra um posicionamento pessoal. Este posicionamento - por maior que seja o desejo de neutralidade do artista, com relação às suas obras – é transmitido ao produto final que entrará em contato com o fruidor. Para Benjamin, forma-se uma dicotomia entre tendência e qualidade. Existiria a suposição comum – refutada prontamente pelo autor – de que a tendência correta superaria a importância da qualidade. Todavia, a solução estaria no entendimento de que toda obra de tendência justa deve, necessariamente, ser portadora de todas as outras qualidades.

Para provar sua suposição, o autor parte do princípio que as relações sociais são pautadas pelas relações de produção. Se uma obra encontra-se de acordo com as relações produtivas estabelecidas pelo espírito de uma época, esta obra pode ser dita reacionária. Por sua vez, se uma obra é incompatível com estas relações e propõe algum tipo de transformação, ela é tida como revolucionária. Independentemente do posicionamento de uma obra quanto às relações produtivas de uma época, é preciso compreender – antes – como esta obra se situa dentro desta mesma relação. No que diz respeito às obras literárias, Benjamin faz uma análise materialista quanto à técnica adotada, em especial no jornalismo. A questão técnica abordada 20

seria, segundo o autor, mais interessante do que o debate dito estéril da forma versus conteúdo, ao que se faz uma exemplificação com a obra dadaísta:

Pense-se no dadaísmo. A força revolucionária do dadaísmo estava em sua capacidade de submeter a arte à prova de autenticidade. Os autores compunham naturezas-mortas com o auxílio de bilhetes, carretéis, pontas de cigarro, aos quais se associavam elementos pictóricos. O conjunto era posto numa moldura. O objeto era então mostrado ao público: vejam, a moldura faz explodir o tempo; o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais que a pintura. (BENJAMIN, 128)

Para o autor, a técnica pode ser utilizada para produzir trabalhos que abasteceriam o aparelho produtivo vigente sem transformá-lo. Ainda que fossem produzidas obras de conteúdo político revolucionário, se estas obras não apresentarem qualidades técnicas que potencializem mudanças, estas mesmas obras apenas alimentariam as relações de produção. A técnica do dadaísmo revolucionou, por levantar o questionamento quanto à autenticidade de uma obra composta por elementos virtualmente sem valor dispostos num ambiente de reflexão. Por outro lado, a exemplo da fotografia que glamouriza o desolamento da miséria, se propõe a fruição do objeto que seria – por outras técnicas – de denúncia e demanda de mudanças sociais. A solução para este impasse, tanto na literatura, quanto na fotografia ou na música, seria a fusão entre técnica (ou forma produtiva) e conteúdo. O fim da dialética entre forma e conteúdo.

Para moldar uma nova maneira de produção, o autor deveria proporcionar a outros que se tornem também produtores. Benjamin vê, assim, a necessidade de colaboração por parte dos leitores de um texto literário ou os espectadores de uma obra. Ora, para nosso momento tecnológico isso não é nenhum mistério, – haja vista a configuração participativa amplamente presente desde a web 2.0, na qual o usuário torna-se também um autor de seus próprios conteúdos – entretanto, pode-se ver em Brecht um primeiro esboço, no campo do teatro, de semelhante gênero.

A transformação da superstrutura, que decorre muito mais lentamente do que a da infraestrutura, necessitou de mais de meio século para tomar válida a alteração das condições de produção, em todos os domínios da cultura. Só hoje se pode indicar sob que forma isso sucedeu. A essas 21

indicações colocam-se certas exigências de prognóstico. Mas estas exigências correspondem menos a teses sobre a arte do proletariado depois da tomada de poder, para não falar da sociedade sem classes, do que a teses sobre as tendências de evolução da arte, sob as condições de produção actuais. (BENJAMIN, 1955)

Benjamin observa, na capacidade da reprodução de obras, o fenômeno que teria alterado as condições de produção e de consumo da própria arte. Para o autor, a reprodução, em si, nada tem de novo, já que – pelos mais diversos fins – as obras de arte vêm sendo reproduzidas desde o período clássico, como ocorreu com os gregos e seus processos de fundição do bronze e cunhagem de moedas. Entretanto, a produção de bens para o consumo massivo – ainda que este consumo em massa sequer pudesse ser comparado ao que hoje consideramos como tal – alterou, ao longo do curso da história, as relações entre produtores, obras de arte e consumidores.

A caráter de exemplo, ele cita as mudanças ocasionadas na literatura graças à evolução do processo de impressão. Acompanhando a impressão, as artes gráficas viriam “ilustrar o cotidiano”, para serem gradativamente substituídas pela fotografia, algum tempo depois. A fotografia – e o cinema – capturaria o olhar à velocidade de um clique, acompanhando a fala e o pensamento do artista com o domínio sobre esta nova técnica. As técnicas de reprodução, pouco a pouco, conquistariam uma vertente artística própria, como que incapazes de se relegarem unicamente a remontar a historiografia das obras de outros tempos. Perante as técnicas artísticas tradicionais, as técnicas de reprodução jamais deixariam de guardar características únicas que – ao contrário de servirem de justificativa para afastá-las do campo das artes – modificariam a definição de arte, na medida em que instituiriam uma nova linguagem artística.

Para Benjamin, o primeiro rompimento das obras de arte baseadas nas técnicas de reprodução, ocorreria com referência ao conceito de autenticidade tradicionalmente consolidado. Se antes era possível determinar a autenticidade de uma obra artística pela sua existência única, pela sua composição e até mesmo pela ação do tempo sobre o seu suporte, no que diz respeito à fotografia – por exemplo – pouco se pode dizer a esse respeito. Na fotografia a autenticidade não é aquela do objeto fotografado, do papel no qual é feita a revelação ou mesmo do tipo de câmera utilizada para captar a incidência de luz sobre o tema pretendido. A autenticidade estaria no olhar do artista, na escolha de determinado enquadramento, no 22

momento capturado e congelado. Estaria na capacidade que a técnica traz de observar até mesmo aquilo que não pode ser observado a olho nu, de conferir ao objeto em cena propriedades que vão além do que ele é capaz de oferecer naturalmente.

Benjamin culminaria dizendo, então, que o que falta à obra de arte na era da reprodutibilidade técnica é o conceito de aura. A reprodução “libertaria” o objeto reproduzido do seu domínio tradicional ao trazê-lo para um “local de ocorrência em massa”. A reprodução atualizaria o objeto reproduzido, trazendo-o para um novo contexto – não sem produzir um abalo no conceito, até então tradicional, de arte – e para uma nova relação entre obra e fruidor. Neste momento, para Benjamin, a representação máxima destas mudanças seria o filme – com o potencial para mudanças sociais das mais significativas e, por outro lado, portador virtual da destruição de uma herança cultural tradicional. Tivesse o autor entrado em contato com os videogames, grande seria a possibilidade de considerá-los um passo adiante das potencialidades fílmicas (tanto criativas, quanto destrutivas).

Ora, nada de mais natural nesta evolução do conceito de arte, dado que o autor nos alerta para as mudanças na percepção sensorial em decorrência da existência coletiva da humanidade. Esta organização do meio graças à percepção sensorial seria condicionada tanto naturalmente, como historicamente. Não apenas a arte sofre alterações na sua constituição ao longo dos períodos históricos, mas também sua percepção. Para Benjamin, se pudermos compreender as alterações no meio – médium – com o qual atua nossa percepção, como indicadores da decadência do conceito aurático, seria possível entender também as condições sociais da decadência à qual somos contemporâneos. Se uma obra de arte surgiu – no período clássico, digamos – com propósitos ritualísticos, séculos mais tarde a interpretação feita desta mesma obra seria diferente do proposto na sua elaboração inicial. Não obstante, sua singularidade – ainda que passível de múltiplas interpretações – constitui sua aura. A fotografia seria, assim, o primeiro meio de reprodução realmente revolucionário, fazendo despontar questionamentos que seriam respondidos por uma nova postura doutrinária, uma teologia da arte pela arte, o ideal de que a arte deveria ser pura, sem função social ou qualquer outra função.

Vale lembrar que, independente da opinião que possamos formar a respeito de uma “arte engajada”, ao longo da história, a arte teve diversas funções sociais, desde seu caráter – como anteriormente mencionado – ritualístico, até a busca de uma expressão individual e melhor compreensão do sujeito no momento atual. Dado que a função da arte pode ser intrínseca, seria questionável a própria doutrina de uma arte pura, que poderia ser vista como 23

uma tentativa de responder de maneira segregadora à crise provocada pela inserção de novos processos tecnológicos no meio artístico. A reprodutibilidade técnica da obra de arte teria o poder de romper com a questão da autenticidade, de tal modo, que a função social da arte seria liberta de sua ritualística – ou mesmo da construção mítica do gênio artístico - para adentrar no terreno político, trazendo o poder e o papel de produtor um pouco mais próximos do público em geral. De outro lado, a facilidade na recepção das obras de arte a partir da reprodução também ajudou a desconstruir as características de culto das obras de arte mantidas ocultas, ou de exposição limitada. Onde o acesso se faz democrático, ocorre uma desmistificação no modo como é apreciada a obra de arte.

O autor observa que a controvérsia, ocorrida no século XIX, quanto ao valor artístico da fotografia em oposição à pintura, embora não fizesse mais sentido, pareceu se repetir no século XX quando se deu a exploração da linguagem cinematográfica. Eis que, em pleno século XXI, incorre-se no mesmo erro ao se falar do videogame. A cada ciclo, a cada nova tecnologia lançada ao campo das artes, é necessário compreender que o modo que definimos a arte também se atualiza.

Se as mudanças ocorridas entre a relação do artista com o público forem consideradas como a principal causa para a perda da aura do filme, em comparação à peça teatral, com os videogames esta relação é retorcida a ponto da quarta parede tornar-se extremamente fina e transparente. O ator foi substituído pelo avatar,2 – há casos, ainda, em que o personagem do jogo não é visto, mas substituído por meras extensões de seu corpo a reagir em decorrência dos impulsos do jogador, como nos jogos em primeira pessoa - assim, enquanto ‘sujeito’, este não pode mais se adaptar às reações do seu público, tão pouco pode ignorar passivamente o distanciamento proporcionado pela tela impassível do cinema ou do televisor. Por mais que o avatar tome emprestadas as características físicas, os movimentos ou a voz de um ator, ele não reflete mais uma persona única, mas sim torna-se uma ferramenta para o desenrolar da história, onde o jogador torna-se também agente3. Já no âmbito da criação, somos

2 O avatar é a representação virtual do jogador no ambiente proporcionado pelo jogo. Pode se tratar de uma imagem bi ou tridimensional, de uma presença em terceira ou primeira pessoa, personalizável ou não, representando as interações que o jogador realiza para com o jogo. 3 O conceito de “agência” no campo dos videogames é recorrente e tem se popularizado nos últimos anos. Originalmente “player agency”, diz respeito à capacidade que o jogador tem de interagir de maneira significativa no ambiente oferecido pelo game. 24

lembrados no texto de Benjamin que a situação da escrita sofreu mudanças com relação ao número de autores em comparação ao número de leitores. Com a popularização da leitura e expansão da imprensa, o número de escritores – ainda que informais – cresceu consideravelmente. A diferenciação entre autor e público tornou-se mais e mais difusa. Na realização dos filmes, o mesmo ocorreu. Agora observamos o mesmo fenômeno com os jogos de videogame e a cena independente de criadores, que assumem a autoria e desenvolvem produtos que exploram diferentes propostas de arte, narrativa e entretenimento.

Com esta amplificação na difusão da cultura e da arte, bem como a popularização de seus meios de produção, passamos ao segundo paradigma da arte que nos interessa abordar: o dar arte para poucos.

b) O paradigma da arte para poucos

Vimos como o conceito de arte se forma em decorrência do contexto. Para compreender a obra, parece óbvio dizer – a essa altura – quão importante é a necessidade de trazer uma contextualização social sobre os signos, discursos e linguagens característicos de sua elaboração. Por essa razão é importante compreender as raízes do mito sobre a existência de um ‘gênio artístico’, bem como a constituição do que pode ser entendido como o ‘gosto’.

Benjamin (1994), em observação da obra de Charles Baudelaire aponta para o tom crítico adotado no século XIX sobre a observação das multidões que se formavam nas mais novas metrópoles pós Revolução Industrial: o lírico, confrontado com a expressão máxima do capitalismo, teria se impressionado com a inquietação da massa, composta por indivíduos de costumes e fazeres diversos. A dinâmica de suas relações interpessoais se alterando em função das novidades tecnológicas e dos meios de transporte - que diria ele se nos visse tomando os metrôs, imersos em nossos smartphones? É no confinamento dos espaços abarrotados, na forçosa convivência e proximidade com o semelhante, que o indivíduo encontra-se diante de suas próprias fragilidades. Entre as observações de Baudelaire e Balzac, surge a figura do fisionomista. Aquele que seria capaz de identificar um gênio entre a multição.

É claro que, antes destas observações, a figura do gênio artístico vinha se construindo e se reforçando sobre os estereótipos da excentricidade e do comportamento retraído, em muito graças aos interesses da burguesia. Independentemente do trabalho de 25

pesquisa, do esforço pelo domínio da técnica, ainda hoje, somos confrontados com a defesa ferrenha (em especial por parte do senso comum) acerca do ‘dom’. Daquilo que tornaria o gênio nascido como alguém especial, eliminando-se o seu contexto, a influência familiar e social de seu desenvolvimento pessoal, bem como sua diligência no trabalho. O que pode parecer uma ‘opinião’ inofensiva, é uma construção com um peso social que apóia algo de gravidade: ‘o gênio é nascido especial, diferente’. Sob esta premissa, ‘alguns nascem melhores que outros’. Alguns ‘nascem para ser mais do que outros’. Uma ideia que conduz ao conceito de superioridade de uns sobre outros que, infelizmente, já sabemos onde vai dar.

A defesa de uma ‘arte para poucos’ não passa apenas pela questão da genialidade na elaboração, mas também pela formação de um gosto que vem fundamentada ideologicamente por um acordo estético.

Para Luc Ferry (1994, p.22) o entendimento da estética passa pela compreensão do que poderia ser chamado simplesmente de “gosto”. O autor parte da tese de que as relações estabelecidas com as obras teriam sofrido, ao longo da passagem do tempo, um retraimento. Assim, a obra contemporânea seria aquela mais fortemente dependente da interpretação individual do fruidor:

[...] ao passo que, para os Antigos, a obra é entendida como um microcosmo – o que permite pensar que exista fora dela, no macrocosmo, um critério objetivo, ou melhor, substancial do Belo -, para os Modernos, a obra só ganha sentido em referência à subjetividade, vindo a se tornar, para os Contemporâneos, expressão pura e simples da individualidade: estilo absolutamente singular que não quer ser mais em nada um espelho do mundo, mas sim criação de um mundo, o mundo no interior do qual se move o artista e no qual temos, sem dúvida, permissão para ingressar, mas que de modo algum se impõe a nós como um universo a priori comum. (FERRY, p.23)

Atente-se para esta ideia da “criação de um mundo” pelo artista, quando o que se discute neste trabalho são especificamente obras que propõem a construção de espaços virtuais nos quais se propõem desafios para aqueles que se interessarem neste tipo de experiência. Assim, se o gosto na antiguidade socrática era baseado numa ideia do ‘Belo’ harmônico e 26

ordenado, o que se apreende de boa parte das obras contemporâneas é que este conceito não mais se aplica. O conceito de ‘Belo’ tornou-se subjetivo, e a apreciação estética passou a se fundamentar muito mais na experiência proposta pela obra do que na perfeição de sua realização técnica.

Ainda, o autor vê a história da estética como a história da subjetividade, quando a visão e representação de um mundo divinal se retiram para dar lugar ao palpável e humano, ao multifacetado. Seria conquistada, então, uma autonomia do sensível, ao longo de cinco momentos.

Sob certos aspectos, tudo se passa como se a estética começasse onde a filosofia contemporânea parece encontrar seu ponto culminante: pela questão do relativismo. Graças às criticas marxiana e nietzscheana da metafísica, sob a influência – também -, das ciências sociais, habituamo-nos progressivamente com a ideia de que não existem valores em si, intemporais e eternos. Consideramos de bom grado toda norma, toda instituição intelectual, moral ou política, como o produto de uma história cujo sentido a reconstrução supostamente esgota. É pouco dizer que vivemos hoje uma “crise do universal”. (FERRY, p. 43- 44)

O autor inicia propondo um momento ao qual chamou de “pré-história da estética”, delineada especialmente no período do século XVII pela oposição entre o classicismo, que atribui à arte a função de reproduzir com fidelidade a natureza, e a expressão do sentimento e das paixões humanas. Tal conflito perduraria ainda durante o século XVIII onde se enfrentariam as visões do cartesianismo (racionalista) e a pascaliana (ou sensualista). Seriam firmados os princípios do individualismo4, constituindo a primeira estética, através da qual se daria o retraimento de uma visão pautada no divino para o campo do humano, numa autonomia da sensibilidade.

O segundo momento, então, consistiria no que foi chamado pelo autor de “momento kantiano”. Aquela recém-criada estética, estaria ainda ligada ao platonismo que atribui a

4 Anteriormente o autor deixa claro que, por “individualismo”, deve-se compreender um conceito descritivo e sem juízo de valor que não se deve confundir com o “egoísmo”, mas sim diz respeito à relação dos indivíduos com o mundo. 27

verdadeira beleza unicamente à verdade e ao bem, ao passo que Kant se libertaria do paradigma classicista que reduz o belo à ilustração desta verdade de temáticas enobrecidas. A beleza conquistaria, assim, substância própria, deixando de depender de representações externas à sua essência para buscar finalidade e autenticação.

Passa-se, em seguida, ao momento hegeliano. Neste, a autonomia conquistada pela sensibilidade em Kant, viria a sofrer, pois para Hegel o campo da estética voltaria a figurar como aquele no qual são elaboradas as ideias. Não se pode dizer que os ideiais do classicismo dos séculos XVII e XVIII tenham sido superados nessa releitura de uma arte voltada, uma vez mais, à manifestação da verdade, embora, para Hegel, seja caracterizada uma historicidade na construção artística, ainda que de consideração inferior perante os questionamentos ocorridos na filosofia. A construção do gênio cede lugar a um “sujeito absoluto” do qual apenas a própria filosofia poderia dar conta de compreender.

Paradoxalmente, o momento nietzscheano, tece relações com a proposição de Kant a respeito da autonomia do sensível. Reafirma-se a legitimidade da visão humana, contra o estabelecimento de uma divindade. Substitui-se o sujeito absoluto de Hegel pelo “sujeito cindido”, subjetivo, representativo do individualismo de Nietzsche. Este sujeito confronta o estabelecimento de uma verdade absoluta, pois apresenta a visão multifacetada das interpretações diversas. Nesse âmbito, nem mesmo o campo da filosofia poderia dar conta de captar tal realidade múltipla, sendo esta representação relegada à arte.

O momento a que chegamos seria, finalmente, o da “morte das vanguardas e advento da pós-modernidade”. Momento no qual deixa de existir a verdade por si mesma, para que se faça a construção de um mosaico de pontos de vista diversificados, antagonistas, característicos do sujeito cindido nietzscheano. No final do século XX, na política, na sociedade democrática e na arte, não há mais espaço para as vanguardas ou para as elites estéticas do século XIX, orientadas por uma linha ideológica estabelecida em consenso. O que passa a ter importância, nessa nova construção artística, é a figura do sujeito autêntico, muitas vezes contraditório, e sua relação com o mundo que o cerca – tal qual a maneira como aquele percebe e interpreta a este. Fecha-se o foco do retraimento temático no sujeito que, ao interpretar sua própria história e propagá-la para outrem, compreende melhor a si mesmo e ao seu papel social.

Interessa-nos esta compreensão dos momentos definidos por Ferry, não para buscar um aprofundamento no terreno da historiografia e da filosofia da arte, mas sim para 28

conhecermos as alterações propiciadas às relações entre a expressão artística e o sujeito. Do delineamento de uma estética, ainda que primordial, entre os séculos XVII e XVIII, à autonomia do sensível e centralização no sujeito cindido nietzscheano, a arte passou de representação do divino mediada pela verdade absoluta, a expressão e compartilhamento da visão de mundo pessoal. Partindo destas bases e complementado pelo apoio da tecnologia, temos o momento atual, com suas facilidades, tanto no que diz respeito aos saberes técnicos e ferramentais envolvidos na criação artística, quanto ao compartilhamento das obras.

Se na antiguidade, o ofício do artista era aprendido por meio de demoradas observações em meio a uma cadeia hierárquica que ia do pupilo ao mestre apadrinhado por mecenas da igreja ou da nobreza, atualmente a informação para formação do artista pode vir das mais diversas fontes. A experiência pessoal não pode ser mensurada. Embora a formação estrutural e acadêmica das artes ainda influencie o repertório artístico, bem como os conhecimentos a respeito de papéis sociais e históricos das artes, o artista pode se formar nas ruas, na indústria ou mesmo de modo autodidata. Nisto, não há novidade, porém nunca antes houve tamanha legitimidade nestes casos. Ainda, se a formação do artista clássico exigia conhecimentos sobre pigmentação, qualidade de materiais e suportes, bem como um investimento inicial no ferramental necessário para a realização de um trabalho adequado, atualmente a tecnologia fornece um ambiente de trabalho acessível a mínimo custo, ou mesmo sem custos, pelo recurso do software livre5.

Desnecessário seria dizer que esta democratização trouxe consigo o compromisso - praticamente obrigatório, diga-se de passagem – da inclusão digital do artista (como em qualquer outra categoria de profissão). É impossível desfrutar das informações ilimitadas, das

5 O movimento de software livre parte do princípio do compartilhamento de conhecimento praticado pela inteligência coletiva que existe graças à conexão com a rede mundial de computadores. A proposta surgiu em meados da década de 80, quando Richard Stallman – então programador no laboratório de inteligência artificial do MIT (Massachusetts Institute of Technology) – tornou-se um ativista contra a proibição de acesso ao código fonte de softwares que, por sua vez, foram desenvolvidos graças ao conhecimento combinado de muitos programadores. O primeiro passo foi compilar e distribuir softwares livres, com o código-fonte aberto, para que os usuários pudessem acessar não apenas os programas gratuitamente, mas também os códigos que os compunham e – caso tivessem conhecimentos de programação – alterá-los conforme sua necessidade. Posteriormente, foi produzido um sistema operacional livre e desenvolvida uma Licença Pública Geral (GPL), também conhecida como copyleft, para garantir os direitos autorais de softwares, livros, músicas e imagens produzidas sob os preceitos do movimento, evitando a apropriação indevida por empreendedores oportunistas. 29

redes profissionais e pessoais, das relações enriquecedoras para as quais a distância física não mais importa, sem antes dedicar parte de um tempo precioso na formação e “alfabetização” dentro deste mundo virtual. Um mundo onde forma e conteúdo dificilmente se distinguem e no qual se torna claro o dilema da complexidade abordado pelo pensamento de Edgar Morin e seus sucessores. No mais, um mundo onde o paradoxo entre coletividade e individualidade precisa encontrar um centro para existir harmonicamente.

c) O paradigma da exibição

Em seu trabalho “Cenário da Arquitetura da Arte”, a museógrafa Sonia Salcedo Del Castillo (2008) aborda, com desenvoltura crítica, o objeto de sua carreira. No prefácio do mesmo título, o professor doutor Agnaldo Farias, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, resume a construção do paradigma que nos interessa quando explica a transição que houve entre as paredes forradas de obras no século XIX e o padrão do “cubo branco” das décadas iniciais do século XX. Esta forma de exposição, supostamente neutra e acrítica, serviria à obra de arte no período modernista. Entretanto, com as mudanças na maneira como consumimos cultura, o espaço expositivo viu-se novamente diante de uma crise que demandava mudanças. A autora apresenta uma mudança de paradigmas da chamada “caixa branca” para uma “caixa preta”, o espaço expositivo visto como algo flexível, como ocorre na cena teatral. Apesar deste reconhecimento, a montagem de exposições, por vezes, – mais freqüentes do que gostaríamos - se sustenta com base num modelo ultrapassado, pautado quase que pela pura taxonomia. Aparentemente, com isso pretende-se demonstrar certo grau de legitimidade, ou seriedade, na transposição de obras e objetos para o ambiente museológico. Algo que já fora criticado no final da década de 60, como veremos no exemplo a seguir.

Com o propósito de questionar a institucionalização do sistema artístico, conta Castillo (2008) que Broodthaers teria criado uma obra de título Museu de Arte Moderna. Este museu sem visitantes, se dedicaria à categorização de objetos mundanos, sem valor real, organizados sistematicamente.

A proposta de Broodthaers revela-se como uma manifestação crítica a essa taxonomia a que todos os objetos são submetidos nos museus, uma 30

vez que, em seu falso museu, ele incluíra toda sorte de objetos, artificialmente ordenados de forma semelhante à comumente adotada pelos museus. (CASTILLO, 2008, p. 208)

É interessante observar que o posicionamento criticado pelo artista continua sendo adotado, com sua sistematização a serviço da legitimação do que está dentro de um ambiente específico, entre paredes que separam supostas grandes obras das tais artes mundanas. A autora alerta:

Mas esse espaço tornou-se inadequado sobretudo para o conjunto de experiências artísticas que, justamente por questionarem esse espaço institucional da arte, criaram novos meios para sua veiculação, circulação e exibição pública. (CASTILLO, 2008, p. 209)

A ‘separação das obras selecionadas como dignas da exibição pública no espaço sacramental museológico’, o ‘direcionamento ao público seleto de freqüentadores destes espaços’. Já sabemos que, por mais que uma obra procure mostrar neutralidade, quando muito ela pode ser construída para acompanhar o contexto social e político no qual se insere, seguindo com seu fluxo. Já vimos com Benjamin que, se a obra não questiona o ambiente no qual surgiu, ela pode ser considerada como uma obra reacionária, enquanto, revolucionária é a obra que suscita mudanças que o artista julgue necessárias. A ideologia imagética de uma época seria, então, considerada positivista. A ideologia predominante de uma sociedade, representa como sua classe dominante vê o mundo. Portanto, a ideologia imagética subsequente deste posicionamento serve como modo de reafirmar esta visão de mundo positivamente. Diante deste panorama, temos que considerar que a maneira pela qual a obra é apresentada ao público também contribui com esse positivismo. Consequentemente, todo trabalho enaltecido como ‘obra prima’ por uma crítica que esteja a serviço da classe dominante nesse contexto, reafirma e está em comum acordo com a ideologia também em domínio. É somente quando de sua aceitação por esta classe, que cria-se o discurso justificador da sua diferenciação perante outras produções. Podemos ser tentados a acreditar que exista algum fator ligado ao ‘espírito’ de uma obra que o relacione àquele caráter eterno e atemporal ligado ao conceito das ‘Belas Artes’, porém, não nos deixemos enganar. Uma obra de arte é capaz de mudar sua natureza interpretativa com o passar do tempo – como já vimos, a obra perde seu papel como objeto de 31

culto - tornando-se, deste modo, a representação de um conjunto de valores inteiramente novo. Clarificando, não é a obra propriamente dita que sobre alteração, mas o discurso que se cria sobre esta, a justificativa que a constrói e defende enquanto ‘obra prima’ se flexibiliza de maneira coerente com a política vigente.

Mesmo no caso dos videogames, com toda a polêmica envolvendo seu valor cultural e artístico, isto já ocorre. Observa-se, em particular, o reconhecimento inédito dos videogames como fenômeno cultural à parte, por meio das exposições que lhes são consagradas. Elas se multiplicaram nos últimos tempos, tanto na França – “MuseoGames”, no Conservatoire National des Arts ET Métiers (Cnam), “Game-Story”, no Grand Palais, “Joue le jeu”, na Gaîté Lyrique, “Jeux vidéo”, na Cité dês Sciences – quanto nas mais variadas localidades estrangeiras: “The Art of Video Games”, em Washington, o Computerspielmuseum, em Berlim, “Excellence in Design”, no Museum of Modern Art (MoMA) em Nova York etc. (TRICLOT, 2014: p. 9)

Os videogames, vistos anteriormente como entretenimento vazio, são transpostos para o ambiente do museu onde ganhariam a categoria de ‘obras de arte’. Embora seja de extrema importância este reconhecimento dos videogames como parte de nossa cultura, bem como a abertura para discutir o valor artístico das obras surgidas neste meio, é preciso pensar criticamente este reposicionamento. Compreender o que ele nos diz. O videogame só pode ser analisado enquanto obra (artística ou não) quando posto em funcionamento, quando jogado. Ainda que estas exposições se utilizem, não raro, de recursos interativos para permitir aos visitantes uma breve experiência do jogo, este contato não substitui a relação construída entre jogo e jogador durante a fruição que ocorre no ambiente original para o qual este foi criado (seja no conforto do lar, ou nas casas de diversão – como é no caso dos arcades6.).

Estas exposições, organizadas para ascender os videogames à condição artística, também nos transmitem a mensagem de que seria necessário um aval da crítica especializada da área de artes para separar “o joio do trigo”, a ‘arte’ da ‘não arte’, estratificando as obras ‘maiores’ das que seriam menos significativas. Seria igualmente injusto selecionar, por exemplo, alguns entre os artistas populares, transpondo suas obras para o ambiente museológico para atribuir a elas mérito semelhante ao das obras clássicas, quando elas se opõem justamente

6 “Arcades” são máquinas de diversão encontradas em centros específicos para jogos de entretenimento eletrônico. No Brasil, tanto estes centros quanto suas máquinas ficaram mais conhecidos pela denominação de “fliperama” ou “fliper”. 32

a este posicionamento formalizador. Chega a ser doloroso observar como alguns dos defensores do videogame como arte pareceram respirar mais aliviados, se agarrando a esta justificativa engendrada no sistema de validação herdado do pensamento classicista para provar seu ponto de vista. É preciso compreender que os videogames transitam entre a indústria de massa e o campo da arte, se relacionando – no que diz respeito aos aspectos de consumo, mais do que de produção – até mesmo à cultura popular, independentemente de qualquer tentativa de legitimação que se procure impor a eles:

[...] os videogames passaram a constituir uma cultura, dividida como tantas outras entre produção industrial e criações populares. Tal acontecimento faz sentido do ponto de vista da história cultural e das culturas populares. Ele é testemunho da invenção de novas referências às imagens e às ficções e de uma inflexão considerável na evolução das maneiras de jogar. Entretanto, o significado dos videogames ultrapassa o fenômeno lúdico: eles constituem a única forma de cultura que se pratica, seja para o melhor ou para o pior, no coração da principal tecnologia de poder do mundo contemporâneo, a informática, e que acompanha a “digitalização” do mundo. Os próprios objetos do jogo são programas, bases de dados, sistemas simulados. (Idem, p. 8)

Diante do diferencial dos videogames, como cultura praticada, parece-nos tolo tentar realizar qualquer tipo de análise do valor artístico de uma destas obras em comparação às obras surgidas em outros períodos e outros contextos, na esperança de que uma estética imutável possa solucionar qualquer questão de incoerência. Como comparar valores de uma obra clássica com uma produção contemporânea? Porque tanto esforço para tratar destas nos mesmos termos?

Vemos em Canclini, teórico defensor da valorização de uma arte elaborada pelo povo e para o povo, a crítica da obra como objeto fetichizado, numa correlação com as questões da inspiração artística ou do gênio criativo. O autor nos diz:

Supõe-se que as obras de arte transcendem as transformações históricas e as diferenças culturais e, por isso, estão sempre disponíveis para serem desfrutadas – como ‘uma linguagem sem fronteiras’ – por homens de 33

qualquer época, nação ou classe social: para receber sua ‘revelação’, segundo o vocabulário de filósofos como Juan Luis Guerrero, basta cultivar uma atitude de ‘contemplação’ e ‘acolhimento’. Essa aproximação irracional e passiva do público é o correlato da inspiração ou do gênio, atribuídos ao criador para justificar o caráter excepcional das obras. Com ele, a estética liberal não oferece explicações racionais acerca do processo de produção nem acerca do processo de recepção da arte; apenas se interessa pela obra como objeto fetichizado. (1980, p. 8)

O autor nos explica ainda que, graças aos novos meios de comunicação e à presença da criatividade estética dentro dos bens utilizados no nosso cotidiano, o acesso ao consumo de arte tornou-se maciço, propiciando a destituição do caráter de genialidade excepcional dos produtores de arte. Tal configuração dos fatos, em contrariedade com os ideais das classes dominantes, suscitou nestas a necessidade de reafirmar sua separação das culturas chamadas de “dependentes”. Assim surge a tentativa de legitimar um modo ‘puro’ de se conceber a ‘arte pela arte’.

A idéia da ‘arte pela arte’, ou da ‘forma’ superando a ‘função’ - graças à definição da estética – surge por meio de explicações arbitrárias, alimentadas de maneira impositiva num sistema conduzido pedagogicamente. É-nos ensinado ‘o que é a arte’ pela própria dignificação da ideia da ‘arte pela arte’. Entretanto, atualmente, tal definição encontra-se ainda mais desgastada perante os novos meios de comunicação e novas possibilidades de criação artística. Torna-se claro o quanto o gosto seria, então, algo produzido socialmente.

Não podemos nos esquecer, entretanto, que o exame da arte como mera ideologia faz esquecer que esta também tem participação nas relações materiais de produção, distribuição e venda. Pensar a arte puramente como ideologia, nos leva a separar o momento da criação - que ocorreria no campo das ideias e da subjetividade - do da produção. Sabemos que o fator econômico influi sobre a arte, pois, como já comentado, existe uma demanda por este tipo de produção diante da qual o artista pode ou não conservar determinado nível de autonomia. Ainda, essa separação conduz para uma dicotomia entre ‘forma’ e ‘conteúdo’, que reduz a variedade de linguagens artísticas à compreensão do conteúdo. Canclini nos diz:

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[...] fala-se de idéias musicais no mesmo sentido de idéias poéticas ou novelísticas, esquecendo-se as diferentes relações semânticas que cada arte estabelece com seus condicionamentos sociais, seus diversos sistemas de signos e técnicas de composição. (1980, p.22)

Para o problema desta cisão entre material e ‘espiritual’, encontraríamos a saída nas bases da teoria marxista onde (Canclini, 1980, p.23) “para estudar um fato social, não devemos partir do que os homens dizem ou imaginam a respeito dela (a superestrutura), mas do modo como produzem os bens materiais (a estrutura). ” Para compreender a arte, não podemos considerá-la como nos ensinou a escola burguesa, defensora ferrenha da estética imutável ao longo do tempo, mas devemos situá-la (a exemplo de Walter Benjamin) no tempo e espaço como parte das capacidades produtivas de uma época. A obra de arte não apenas se resignificaria dentro de diferentes épocas, como o próprio significado da arte mudaria em função das possibilidades produtivas destas.

Para Benjamin, dilemas como o da autenticidade artística não têm lugar quando se pensa na produção da arte na era da reprodutibilidade técnica. A obra deste tempo não se funda mais a partir do mito, da significação ritual, mas é erigida com base na política:

Os gregos eram obrigados, pelo estágio de sua técnica, a produzir na arte valores eternos. A essa circunstância devem seu valor eminente na história da arte, a partir do qual os que vieram depois puderam determinar o seu valor próprio. Não há dúvida de que o nosso lugar se encontra no pólo oposto ao dos gregos. Nunca antes as obras de arte foram tecnicamente reprodutíveis em escala tão elevada e extensão tão ampla como hoje. No cinema temos uma forma, cujo caráter de arte, pela primeira vez, é determinado de parte a parte por sua reprodutibilidade. (2012, p.49-51)

Ao longo de diversos períodos artísticos, é possível notar uma preocupação reincidente com o meio e com o processo através do qual a obra seria construída. Uma preocupação até mesmo superior àquela dispensada à obra em si. Confunde-se o meio e a linguagem com a própria obra, no questionamento de sua legitimidade enquanto arte. Ocorreu 35

com o meio fotográfico, como bem relata Benjamin, quando se teria questionado mais sobre a fotografia ser ou não considerada como arte do que sobre as transformações que o uso deste invento, como um meio de produção, traria para a arte. O mesmo ocorreu com o cinema, ao passo que seus respectivos teóricos foram buscar elementos de culto, de mito e significação tradicionais para associar ao meio que defendiam. Não nos caberia aqui cometer o mesmo erro ao tentar estabelecer uma identificação no videogame com elementos de uma arte clássica, quando este faz parte de outra esfera. O videogame, bem como o cinema, é meio, e alguns de seus produtos podem ser artísticos, enquanto outros possuem diferente finalidade. Depois de algum tempo de contato com um meio podemos dizer, sem grande dificuldade, que alguns de seus produtos possuirão maior ou menor quantidade de características esteticamente voltadas à fruição, enquanto uma boa quantidade destes não possuirá valor subjetivo digno de nota.

Estamos acostumados a separar a cultura – tida sempre, na visão positivista, como a representação do que é bom e belo – dos novos meios. Marshall McLuhan diria:

Será precisamente em decorrência do fato de estabelecermos a mais ampla separação entre cultura e os novos meios que nos tornamos incapazes de encarar os novos meios como cultura séria? Será que quatro séculos de cultura de livro nos hipnotizaram numa tal concentração sobre o conteúdo dos livros e dos novos meios que não podemos reconhecer que a própria forma de qualquer meio de comunicação é tão importante quanto qualquer coisa que ele transmita? (2002, p. 153 – 154)

Para o autor, numa época em que a produção e distribuição de mercadorias só perde para o empacotamento de informações, é possível invadir culturas inteiras com ideais de conhecimento e diversão. Para ele “[...] a imprensa sobrepujou o livro no século XIX, porque o livro chegava tarde demais. A página do jornal não era uma mera ampliação da página do livro. Era, como o cinema, uma nova forma de arte coletiva. ” (2002, p. 155). Hoje a forma de arte coletiva a enfrentar a mesma desconfiança e resistência é o videogame.

É claro que Benjamin nos alerta para os perigos da tecnicização quando de sua permeabilidade entre as grandes massas, embora reconheça que esta teria criado os meios para tratar uma psicose existente em decorrência da repressão constante de emoções, necessária para 36

a adequação à chamada civilização. Esta repressão naturalmente poderia ocasionar explosões de violência ou histeria que, através do cinema encontrariam uma expiação catártica. Mesmo a risada coletiva seria vista, segundo o autor, como uma erupção prematura e saudável para a psicose de massa. Não se pode negar, porém, que a quantidade de filmes (e também de videogames) voltados para o grotesco e escatológico, que é consumida de maneira acelerada, denota os perigos que rondam uma sociedade reprimida.

O desenvolvimento das tecnologias facilitou o acesso à arte para um maior número de pessoas, independentemente de sua classe social. Este rompimento da ‘arte pela arte’ assusta os defensores da dita “arte séria” e diferencial. Talvez poucos tenham expressado de maneira tão clara os perigos aos quais a defesa da ‘arte pela arte’ conduz quanto Benjamin, ao citar o manifesto de Marinetti:

‘Faça-se arte, pereça o mundo’ , diz o fascismo, e espera a satisfação artística da percepção sensorial transformada pela técnica, tal como Marinetti confessa, da guerra. Isso é evidentemente a consumação da arte pela arte. A humanidade, que outrora, em Homero, foi um objeto de espetáculo para os deuses olímpicos, tornou-se agora objeto de espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu um grau que lhe permite vivenciar sua própria destruição como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a situação da estetização da política que o fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização da arte. (2002, p.123)

Assumir tal politização pode causar desconforto, principalmente para o artista, visto por Canclini como um produtor. Já compreendemos, no entanto, que, desejando ou não produzir uma obra de arte engajada, o artista se posiciona a partir do momento que produz e exibe sua obra. Este posicionamento pode ser revolucionário, ao se formular a partir de uma postura antagônica com a classe opressora, ou pode ajudar a reafirmar a ideologia dominante, caso o artista trabalhe conscientemente sob os preceitos políticos desta ou, ainda, se escuse de qualquer posicionamento. Pois, ao evitar se posicionar, afirma ainda o autor, o artista apenas ajuda na manutenção da supremacia de uma ideologia dominante.

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Trabalhar a arte é exercitar a contradição no seu sentido mais dialético. São apresentadas as incongruências sociais e pessoais, pois o próprio artista é vítima do conflito entre suas crenças pessoais e os valores da sociedade que o acolhe (ou repudia). Uma arte voltada à libertação da classe dependente não se sustenta unicamente na representação da realidade de um grupo social, pois este é também o modo de ação dos artistas e autores populistas a serviço da ideologia de domínio. A arte de libertação, nos diz Canclini (1980, p.31) é caracterizada por um posicionamento crítico por parte do artista.

Se as descobertas estéticas se nutrem no desenvolvimento social e tecnológico, é evidente que não surgem de ímpetos solitários de inspiração, mas são resultado de uma interação dialética com o meio. É inversamente, o fato de que os avanços tecnológicos e sociais não sejam automaticamente a causa de todas as conseqüências que a elaboração artística desenvolve no campo perceptivo, nas formas lingüísticas e, às vezes, na mesma ação social; o fato de que essa elaboração artística (por exemplo, na arte pop e na arte cinética) repercuta, por sua vez, no desenvolvimento social (arquitetura, desenho, comunicações), suscitando novos avanços, demonstra que há uma tarefa específica dos artistas. (p.32-33)

O artista, então, desempenharia um papel fundamental de crítica social, na medida em que expressa uma visão de mundo própria a partir da construção de suas obras. Este trabalho criativo impulsiona avanços na sociedade dentro da qual se insere, leva-nos a pensar criticamente e questionar as verdades estabelecidas tanto pelas estruturas de poder, quanto pela grande mídia. É necessário que o artista tenha autonomia na produção e distribuição de seus trabalhos, garantindo a diversidade cultural.

Pensando a questão da equidade na produção e na fruição artística, surge a preocupação com o público e sua relação de interpretação com a obra. O autor explica que ainda no século XX prevalece o preconceito com relação à arte popular, enquanto arte que surge em meio ao povo como expressão de sua cultura, para seu próprio consumo. Em contrapartida, existiria ainda a aversão à popularização da arte que ameaçaria a obra com a perda de seu valor simbólico. Vemos aqui uma série de fatores a serem considerados.

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No que diz respeito à arte popular, esta pode se manifestar com base nas tradições e costumes relativos à identidade de um grupo social específico – o que garantiria uma aproximação entre seus produtores e consumidores na medida em que preservaria o cerne de sua cultura. O meio destas manifestações tenderia a sofrer variações, assumir novas formas, ao que seriam mantidos os valores culturais germinais. Seria o caso, por exemplo, de blocos carnavalescos de rua que passaram a se organizar e expor o resultado de seus trabalhos através de redes sociais como o Facebook. Embora a importância original da tradição do carnaval de rua se mantenha, graças à adesão ao meio digital este evento passa a ganhar novas proporções (Novamente, vale salientar que não está em julgamento se esta é uma mudança positiva ou negativa. Interessa-nos observá-la).

Quanto à deturpação que poderia existir na interpretação da arte por um público “despreparado”, ou ainda, quanto aos riscos da perda de simbolismo das obras conforme o contato do público, há de se convir que mudanças na compreensão do conteúdo das obras de arte sempre existiram e sempre existirão, seja por razão da passagem do tempo (descontextualização do período histórico no qual a obra foi elaborada), da mudança espacial (a transposição da obra para um espaço que não está preparado para recebê-la), ou da diferença do repertório dos interpretes. Direcionar o problema – se é que podemos considerar esta característica como tal – através da culpabilização do intérprete seria adotar uma postura simplória.

Ora, as obras de arte podem ser constituídas pelo artista tendo em mente um público primário, isso não implica, porém, que esta mesma obra não possa ser apreciada por um intérprete alheio ao perfil pretendido. Em ultima instância, embora aqui se pretenda defender a fruição estética como a transcendência do sistema comunicacional, as obras de arte são interpretadas subjetivamente. Nem mesmo o próprio artista tem o direito de deslegitimar a experiência do intérprete. Não há uma maneira única e correta de se interpretar uma obra de arte, como não há – nem mesmo no sistema da comunicação – uma maneira única de se interpretar uma mensagem, sem “ler nas entrelinhas” de alguma forma.

Benjamin também argumentava que essa expansão gradual, até mesmo imperceptível, nos níveis de percepção das pessoas mediante a familiarização com o cinema, juntamente com a recepção do estilo de filme coletivo e suas dimensões prazerosas, eram passos decisivos em 39

direção à consciência possibilitada pela nova tecnologia. Em outras palavras, essas tecnologias de mídia , na época uma novidade, abriam amplas possibilidades para que um vasto número de pessoas tivesse acesso ao poder cultural e para a energização da cultura popular. (DOWNING, p. 100-101)

O acesso à arte e à cultura, mesmo que através de meios considerados familiares, devolvem ao interprete um sentido de autonomia interpretativa. O interprete passa a se ver como participante daquela realidade e começa a se imaginar também como o possível produtor de obras que expressem sua visão da sociedade da qual faz parte. Realmente, são infinitas as variáveis que podem alterar o significado que se pretende transmitir, inclusive a que se refere ao repertório pessoal do intérprete. Porém, excluir o interprete da experiência de fruição, unicamente em decorrência de seu repertório anterior, seria tão negativo quanto colocá-lo em uma posição determinista de submissão e anular sua subjetividade. O mesmo ocorre quando da negação da importância criativa e política da arte popular. A maneira sisuda pela qual a arte popular costuma ser encarada pela elite, está relacionada diretamente à oposição estabelecida pela Revolução Industrial entre o trabalho e o ócio, entre a aridez da obrigação e o prazer do jogo. Diz o próprio Canclini:

A que se deve essa incapacidade de falar alegremente dos problemas populares? Por que uma arte útil e responsável, mesmo mobilizadora, não pode também divertir? Definitivamente, essa atitude reproduz a cisão entre trabalho e ócio, característica do sistema social burguês. Deve haver, numa estética popular, uma crítica das concepções individualistas da fruição e do jogo, mas para reivindicar a fruição coletiva. Se não queremos deixar apenas nas mãos dos meios de comunicação de massa e necessidade de entretenimento, se desejamos libertá-la da manipulação, devemos fazer com que a arte constitua um instrumento para reconstruir criativamente as experiências sensíveis e imaginativas do povo. O desenvolvimento da arte popular supõe representar a realidade de acordo com o conhecimento necessário para transformá-la e, simultaneamente, oferecer a representação, de tal modo que seu estilo esteja afirmando, sem dizê-lo, que a fruição é um direito de todos os homens. Socializar a arte quer dizer também redistribuir o acesso ao prazer e ao jogo criador. (p.33-34)

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A arte popular seria então aquela produzida pela própria classe trabalhadora ou por artistas que representassem seus interesses. O seu foco não está no consumo visto como resultado da mercantilização visando lucros, mas sim no oferecimento de uma atividade (ou utilidade) voltada para o prazer e para a satisfação do grupo social que a cria e compartilha. A arte popular seria, nesse sentido, a arte de libertação da classe trabalhadora, a expressão subjetiva do povo, o resgate de sua identidade e auto-estima. Diferencia-se da ‘arte para as massas’, a qual é produzida pela máquina industrial, tendo por objetivo a transmissão de conceitos do interesse dominante às classes “dependentes” proporcionando, ainda, lucros aos detentores dos meios de sua difusão. Vemos o exemplo claro do uso de meios como o rádio e a televisão, nos quais a amplitude da difusão da mensagem é a principal preocupação. Não há o menor interesse em satisfazer necessidades reais dos consumidores, como também não se pode esperar qualquer intenção de realizar mudanças sociais ou mesmo de estimular o pensamento crítico através destas produções. Infelizmente, a maior parte das produções cinematográficas e dos videogames se posiciona justamente no âmbito da ‘arte para as massas’. Não devemos nos iludir, como já tido, pelo meio. Há também muitos produtos deste intento sob a forma de mídias consolidadas há mais tempo, como é o caso dos livros.

Ainda tomando por base as definições de Canclini (p.75-76) e retomando a questão da arte popular, é preciso deixar claro – até pela consideração feita anteriormente da importância da amplitude de difusão para a propagação de uma arte para as massas – que o caráter popular não se relaciona ao critério estatístico da quantidade de pessoas atingidas. Com freqüência, vemos que é estabelecido um elo que compreende como ‘popular’ tudo aquilo que é amplamente difundido. Não nos interessa compreender o povo como uma massa passiva, inerte e indiferenciada. Sabemos que em meio a este existem subgrupos de variados interesses e causas, cada qual com sua representatividade em meio à arte. Cada qual com seu vocabulário de valores e sua expressividade. Também não nos interessa associar o ‘popular’ unicamente ao que é folclórico, por entendermos que os interesses e objetivos do povo variam em função do tempo, independente de suas raízes e tradições. A arte popular, como arte de libertação, independe de seu conteúdo social ou da politização de seus artistas, pois – como já vimos – a própria reafirmação da expressividade do povo, a subjetividade de seus artistas, por si só, representa a liberdade que estes exigem dentro do sistema social no qual se encontram.

Percebam que anteriormente tratamos, em diversos momentos, do artista como ‘produtor’. Entendemos a obra de arte como produção a despeito da concepção teológica de um 41

‘algo’ imaginado por “criadores todo-poderosos”, trazendo-a para o contexto social e considerando-a como um produto de técnicas e procedimentos específicos. A arte, como produção, reconhece a influência do âmbito econômico para sua realização e propagação, entende-se como parte de um processo de elaboração, transmissão e interpretação. A obra de arte, enquanto produto, atende à demanda (social) de um público específico que agirá como seu interprete (embora não se destine única e exclusivamente à apreciação deste). Como produto, a obra de arte também é consumida para que se concretize o ciclo de sua existência. Se a obra de arte não é apresentada ao seu público – o que pode ocorrer devido, principalmente, a fatores econômicos – ela sequer pode ser considerada como tal, pois sua mensagem não foi recebida, não teve chance de ser devidamente considerada e interpretada. Este fato torna-se ainda mais claro se considerarmos o processo de elaboração do videogame, que já depende de fatores econômicos para sua existência e, mais ainda, da participação de seus intérpretes – os jogadores – para se fazer existir enquanto obra.

Se considerarmos que a transcrição da partitura de uma música, ou o instrumento que a interpretará, não caracterizam em si, a música, é óbvio o raciocínio de que a música só existe quando o código da partitura é interpretado pelo músico (de posse do conhecimento necessário para decodificá-la) munido do instrumento adequado. O que ocorre no momento da interpretação em si – se esta for executada corretamente – será a música. O mesmo vale para o videogame, formado por um conjunto de elementos encapsulados num arquivo executável que só será de fato um jogo quando houver ação de ao menos um jogador sobre ele. O jogador deverá possuir conhecimento prévio do funcionamento do jogo, a menos que o propósito do jogo seja justamente o de confundir este primeiro. Importante é que se compreenda que, numa instância das mais básicas, o código programático não é videogame enquanto não sofrer a ação do jogador.

Já fizemos neste a defesa do direito a interpretação pelo indivíduo, independente da classe a qual este pertença. A separação das classes, todavia, é determinante para a propagação das produções artísticas que serão posteriormente apreciadas. Detentora do poder econômico, a classe dominante ditará – numa separação clara – o que será produzido para o seu próprio consumo, do que será designado para o consumo da massa. Nos meios de comunicação em larga escala, o povo é convertido em espectador passivo, alheio aos métodos de produção.

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A importância de socializar a arte está na transformação deste público em produtor. Diante do monopólio exercido pela elite sobre os sistemas de comunicação em massa, os pequenos produtores ou produtores independentes voltam-se para um canal paralelo de distribuição. Em se tratando das formas mais comuns de arte popular, este canal pode significar uma gravadora caseira de CD’s ou DVD’s, uma apresentação nas ruas ou o upload de um vídeo na internet. No que diz respeito aos videogames, a distribuição é quase sempre feita online, o que – por si só – já reduz o campo de ação àqueles que possuem tal acesso. Na internet, a dificuldade de difusão não está na publicação do conteúdo online, mas sim na capacidade deste conteúdo atingir o público visado perante um mar de informações que cresce exponencialmente a cada minuto. O produtor de videogames que decidir atingir um determinado público estará entre dois caminhos igualmente penosos de se seguir: ou ele procurará a ajuda de uma publisher (o equivalente a uma editora e distribuidora de videogames) e sujeitará seu projeto às alterações determinadas por esta para atender à maior demanda, visando o lucro; ou ele publicará seu trabalho de maneira independente, correndo o risco de ser sufocado em meio à quantidade de informações em oferta na internet.

Desse modo, uma estratégia libertária, no que diz respeito a qualquer arte popular, envolve a criação de canais de distribuição, de transmissão de mensagens. Estes canais não podem estar alheios aos principais veículos de informação. Ao contrário, devem atuar também nestes, para ganhar força e trabalhar a formulação do exercício crítico de seu público.

Produzir arte envolve uma dedicação que vai além da expressão criativa. Exige o desenvolvimento do raciocínio estratégico necessário para reunir forças diferenciais que agirão juntas em prol de um objetivo maior: buscar verba para o fomento da obra, reunir as diferentes inteligências complementares para participar do ato, convencer os canais de distribuição da importância em propagar sua obra, engajar suficientemente o seu trabalho com o público visado, etc. Deve, ademais, estar consciente da existência de um sistema de censura aliado ao aspecto econômico: se o seu trabalho colocar, de alguma forma, os interesses da classe dominante em perigo ou, se sua obra simplesmente expuser a contradição existente entre os interesses do povo e desta mesma classe, ele simplesmente não será produzido.

Nota-se, então, que mais do que um mobilizador de forças, o artista produtor deverá ter inteligência e sutileza suficientes para tratar de temas que digam respeito à sociedade e tragam à tona as mudanças que precisam ser discutidas, enquanto busca o seu espaço com a 43

devida cautela. Este não deve, contudo, se iludir ao esperar o apoio dos consumidores para o qual se volta a indústria de massa. Aqueles que se encontram em posição de conforto, ainda que não façam parte da classe dominante propriamente dita, se agarrarão aos seus privilégios com unhas e dentes, para continuar a ter seus “desejos atendidos”, sendo mimados enquanto maioria - no que diz respeito à sua posição na construção social. Pois o sistema capitalista alimenta uma cumplicidade esperançosa entre aqueles que esperam um dia assumir o seu posto entre a classe dominante, numa ilusão meritocrática que ignora, propositalmente, qualquer disparidade social criada por ele mesmo. Para tal, a censura exerce sua função política muito bem, distorcendo a mensagem transmitida para ocultar a verdade. Perante esta maquina sinistramente arquitetada, o primeiro a sofrer com a censura é o próprio artista. Considerando todos os fatores expostos acima, este sofre um lapso entre sua subjetividade e a construção de sua obra por meio do que Canclini (p. 127) chama de “autocensura”.

No que diz respeito ao meio específico dos videogames a tecnologia trouxe algumas facilidades na demanda por mudanças neste sistema de dependência econômica:

O advento da distribuição digital que afrouxou os domínio dos grandes editores e comerciantes de periféricos e mais recentemente a atração pelos sistemas de financiamento colaborativo como o Kickstarter (ou o Catarse, no Brasil) deram espaço apara nichos de mercado que permitem que pequenas equipes existam, propondo jogos fora dos cânones da indústria. A questão estética é inseparável da política. O domínio dos departamentos de marketing sobre os processos de produção dos bens culturais leva, muitas vezes, à repetição infinita das mesmas receitas comprovadas, numa lógica de blockbusters. Em contrapartida, a autonomia das equipes de produção é uma condição essencial da criatividade e do assumir riscos no plano estético. (TRICLOT, p. 9)

Com um maior nível de autonomia econômica, o artista pode experimentar no meio sem que sua preocupação principal esteja na venda de uma idéia. Claro que a importância da propagação da mensagem não seria de modo algum diminuída, ao contrário, a clareza da informação pode ser mantida quando há comunicação direta entre artista produtor e público, sem a intermediação e o jugo de um mercado massificado. Por isso mesmo Triclot afirma que este é um artista voltado para os ‘nichos’. Seu trabalho, em lugar de trazer uma postura impositiva, relaciona-se com grupos específicos, respeitando seus dilemas característicos. 44

Mas e se pensarmos, seguindo a vertente indicada por Stephen Kline, Nick Dyer- Witheford e Greig de Peuter (2003), os videogames como a “mercadoria ideal do capitalismo”? Seria o videogame uma metáfora do modo de produção capitalista com foco na lucratividade, arraigado tão intricadamente ao nosso modo de vida a ponto de abandonarmos o próprio prazer criativo em troca de uma atividade repetitiva recompensada por pontuações e rankings que elegem o jogador melhor “adestrado”? Afinal, não podemos nos esquecer que – atualmente – a maioria dos videogames com quais temos contato se origina justamente por meio da indústria cultural voltada à massa.

Seriam necessários novos conceitos para se diferenciar os videogames que se apresentam enquanto meios de expressão artística, daqueles que são produzidos para o consumo de uma demanda privilegiada. Ainda, não se pode afirmar que o julgamento crítico destas obras seja sumário. Enquanto existem videogames mais ou menos complexos, a presença de valores subjetivos também pode estar mais ou menos presente nestas obras.

Quanto à fruição é especialmente interessante observar o posicionamento do público a exemplo do que nos relata o autor com relação ao posicionamento crítico. Enquanto aquilo que é convencional é apreciado praticamente sem criticismo por parte do fruidor, toda obra que propõe-se revolucionária ou inovadora de alguma maneira é vista com potencial aversão. Tal reação seria mediada pelo comportamento da massa que, a medida que opiniões são expressas, controlaria a validade das manifestações. Enquanto estas questões não poderiam ser levantadas com relação à forma isolada e tradicional da apreciação de uma obra como a pintura, no momento em que a arte tencionou apresentar-se para o consumo das massas sua recepção passou a ser coletiva e simultânea. Benjamin, é claro, se referia ao cinema, entretanto – para o propósito deste trabalho – podemos dizer que o mesmo ocorreria com os jogos de videogame voltados para a massa, em especial com os jogos de videogame online e massivos. Embora a fruição de um jogo produzido para o mercado de massa possa se dar de maneira isolada, – um jogador em apreciação solitária - como dito, o próprio modo de produção visa a a propagação massiva deste tipo de obra, assim o consumo seria considerado massificado. Mais uma vez, tal consideração não apresenta nenhum disparate se relembrarmos que o próprio Raymond Williams (1990) em suas teorias sobre o rádio já dissertava sobre a recepção deste enquanto meio de comunicação massivo, – broadcast – quando a prática teria surgido em decorrência das transmissões realizadas, de maneira compulsória, pelos nazistas durante o período da Segunda Grande Guerra. 45

No que diz respeito aos jogos online massivos (independente de seu gênero), fica mais clara esta apreciação crítica mediada pelo próprio comportamento da massa, num feedback em tempo real. Se uma nova implementação é realizada no ambiente do jogo, o retorno da comunidade é mensurado facilmente e – uma vez dado o veredicto – as vozes destoantes são sistematicamente apagadas pela própria maioria esmagadora.

Ainda, a massa implica novas qualidades de comportamento perante a apreciação da arte. Quantidade, passou a associar-se à qualidade, pois um maior número de consumidores – numa análise um tanto rasa – tornou-se índice para duas possibilidades de julgamento (em ambos os casos prejudiciais): por um lado, a obra apreciada pela massa passa a ser vista como um exemplo claro de sucesso. Se uma quantidade massiva de apreciadores lhe dá crédito, pareceria simplesmente justo oficializar o status da obra em questão. Por outro lado, a obra apreciada pela massa passa a ser vista (principalmente por críticos, curadores especializados e acadêmicos), como uma expressão de entretenimento vazio e banal. A simples constatação de sua aceitação massiva, anularia qualquer intenção revolucionária que ela pudesse carregar, qualquer subterfúgio vanguardista e questionador, num veredicto sumário.

Na visão de Benjamin, esta problemática se resumiria à uma antiga concepção de que a arte exige recolhimento, enquanto as massas procurariam entretenimento rápido e superficial. Sabemos hoje que o sujeito cindido possui várias maneiras de ver o mundo e de ver-se neste mundo através da arte. Este sujeito encontra-se num tempo acelerado, no contexto do questionamento constante da verdade. Para ele, nem sempre o insight implica o recolhimento.

Benjamin utiliza o exemplo da arquitetura, um protótipo de arte cuja recepção se daria de maneira distraída e coletiva. Desde a antiguidade muitas formas de arte surgiram, desapareceram e ressurgiram. Entretanto a necessidade de habitações acompanhou a humanidade ao curso de sua evolução nas mais diversas culturas. O sujeito pode apreciar o trabalho arquitetônico em recolhimento, como quando se encontra diante de um prédio histórico numa viagem turística. Todavia, pode apreciar este mesmo trabalho de maneira tátil, ou ao vivenciar sua funcionalidade, transitar por ele, acompanhado de muitos outros receptores – cada qual com sua visão e repertório próprios.

Essa recepção distraída vai perfeitamente ao encontro dos meios como o cinema e o videogame, no qual o valor de culto é rejeitado, formando uma atitude muito mais crítica no público que os aprecia. Certamente, por essa razão o cinema causou tanta discussão e temor ao 46

oferecer um novo meio – médium – através do qual o público se tornaria a própria crítica, rompendo o caráter sagrado e inquestionável da arte cultuada nos museus. O videogame deve muito a esta herança e sofre com as mesmas repercussões e mediações: por um lado o sucesso de seus títulos ganha peso para que, por vezes sem um julgamento mais cuidadoso, uma obra ganhe o status de arte e seja cultuada num novo ambiente (como veremos a seguir); por outro, existe dificuldade de compreensão dos críticos, artistas e historiadores da arte puristas em compreender como a tecnologia, e mais, como a interação desta como o público, altera o que se conhece como arte e a forma como ela é consumida e criticada.

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III. GAME

Segundo a concepção de alguns dos primeiros teóricos de jogos, como Johan Huizinga – no início do século XX - e outros que deram continuidade a este trabalho seguindo sua linha de pensamento, a cultura e o jogo estariam atrelados de uma maneira tão intrincada que tornaria difícil separar um do outro. A cultura surgiria sob a forma do ‘jogo’, mesmo quando do exercício de atividades que atuariam sob a esfera das necessidades de subsistência nas sociedades ancestrais – como é o caso da caça e de seu caráter lúdico. Para Huizinga (1980, p.53) “A vida social reveste-se de formas suprabiológicas, que lhe conferem uma dignidade superior sob a forma de jogo, e é através deste ultimo que a sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo. ” Assim, à medida que o jogo se despe de seu elemento lúdico, ele galga outra importância e suas regras se cristalizam em outros setores da sociedade. Seja através do folclore, da poesia, da política ou da religião. No caso destes dois últimos setores, o jogo passa a ser encoberto pela ritualística própria à solenidade ou ao sagrado. As regras tornam-se então ritos a serem seguidos, desprovidos de sua ludicidade original.

Como separar o ‘jogo’ do ‘não-jogo’, quando seus limites não são claros e sua existência não se relega apenas à evolução humana? Os animais também participam de atividades lúdicas, através das quais aprendem habilidades que serão úteis à sua sobrevivência futura. Porém, seria essa ludicidade considerada, em si mesma, ‘jogo’, nos termos necessários para a compreensão posterior de produções complexas associadas às novas tecnologias?

Não se pode falar sobre o estudo dos jogos, no contexto da academia, sem mencionar, mesmo que brevemente, um pouco da história envolvendo o seu surgimento e permanencia. No decorrer deste capítulo serão abordados alguns dos conceitos elaborados por expoentes deste campo, com a intenção de apresentar um embasamento suficientemente consistente por sobre o qual serão construídas e defendidas as premissas que compõem esta tese.

Para facilitar tal compreensão, primeiramente devemos eliminar a associação que possa ser feita com um campo teórico que não é do interesse deste trabalho, mas sim da matemática e da ciência estatística: a assim chamada “Teoria dos Jogos” foi formulada na década de quarenta por John Von Neumann e Oskar Morgenstern visando principalmente a 48

compreensão dos jogos de ‘zero-soma’, que formalizam a tomada de decisões racionalizadas num ambiente controlado.

Nos interessa, por outro lado, a compreensão do jogo como manifestação cultural e ferramenta de interação social, para os quais encontramos aporte em teóricos da filosofia e antropologia como, o anteriormente citado, Johan Huizinga com seu consagrado Homo Ludens e Roger Caillois com Os jogos e os homens: A máscara e a vertigem. Em se tratando do meio específico dos videogames, é necessário recorrer a um aporte que compreenda as mudanças ocorridas tanto nas possibilidades criativas proporcionadas pela evolução tecnológica, quanto aquelas de ordem sócio-comportamental, que dizem respeito à relação entre jogador e jogo, jogador e grupo (sejam jogadores aliados ou competidores) e, obviamente, jogador e mundo fora do jogo. Para tal, recorreremos às considerações de estudiosos da área, como os pesquisadores Bernard Suits, Gonzalo Frasca, dentre outros.

Evitaremos também as linhas que defendem tanto o que Suits (1978, p. 146) chamou de autotelismo radical, quanto o instrumentalismo radical, em razão de nossa visão sistêmica e social da constituição do jogo a partir da instituição de regras e pressuposição de objetivos.

No autotelismo radical, defende-se o entendimento do jogo como uma atividade unicamente resolvida em si mesma (independente de regras, inclusive), o que seria contraditório à definição assumida, como veremos logo mais.

Por outro lado, no instrumentalismo radical, qualquer atividade organizada por regras poderia ser considerada como um jogo. Aqui, indo ao extremo oposto do posicionamento anterior, são ignorados tanto a motivação quanto o desejo de jogar que parte da busca pelo prazer que caracteriza o jogador. Poderíamos considerar todo trabalho como um jogo, pelas regras que são instituídas à sua elaboração? Seria possível considerar a própria ordem social como um jogo, dadas as regras de conduta às quais estamos atrelados, sem ceder à esquizofrenia da própria situação? Ousaríamos encarar a guerra como um jogo, pesando unicamente suas regras sem levar em conta suas consequências? Não é, aqui, este o “jogo” que nos interessa.

Quando falamos em ‘jogar’, linguisticamente a própria construção do significado nos leva à contemplação de uma diferente gama de atividades que oferecem a sensação de 49

realização em si mesmas, sem que (ao menos num primeiro momento) haja necessidade de serem realizadas com nenhum outro propósito que não o da própria fruição (o que também pode ser dito do caráter apreciativo da experiência artística). Torna-se mais clara esta constatação ao apelarmos para a análise deste mesmo termo em outros idiomas: ‘to play’, no inglês, pode significar tanto o engajamento na atividade do jogo, quanto pode remeter ao ato de tocar um instrumento, de interpretar um papel numa ocasião que demande o esforço dramático, como ocorre também na significação do verbete ‘jouer’ em francês.

O que mais nos interessa nessa observação é compreender a separação do ‘jogo’ e do ‘não-jogo’ como uma dialética (da moral ocidental pós-implementação do modelo de produção fordista, diga-se de passagem) entre tudo aquilo que é considerado ‘sério’ e ‘divertido’7, entre tudo o que é tido como ‘trabalho’ e tudo o que transmite alguma forma de ‘prazer’. Tirando um momento para esta reflexão, parece-nos bastante clara a associação que pode ser feita entre as importâncias do jogo e da arte numa sociedade produtivista.

O jogo seria então a expressão ultima da resistência que construímos contra este produtivismo que nos é imposto de maneira alienante (ainda mais vertiginosamente, no que diz respeito à contemporaneidade).

Mindful of the ancient canon that the quest for knowledge obliges us to proceed from what is more obvious to what is less obvious (…), let us start with the commonplace belief that playing games is different from working. Games therefore might be expected to be what work, in some salient respect, is not. Let us now baldly characterize work as 'technical activity,' by which I mean activity in which an agent seeks to employ the most efficient available means for reaching a desired goal. Since games, too, evidently have goals, and since means are evidently employed for their attainment, the possibility suggests itself that games differ from technical activities in that the means employed in games are not the most efficient. Let us say, then, that games are goal-directed activities in which inefficient means are intentionally chosen. For

7 Que não se compreenda aqui que fazemos um contraponto entre a seriedade e o divertimento colocando todos os jogos no campo do risível. Procura-se unicamente apresentar o contraponto elaborado socialmente para defender a valoração do trabalho como atividade de importância superior (ideologicamente posto como um dos caminhos para o enobrecimento dos seres humanos) em relação ao jogo, tido frequentemente como mero passatempo fútil dos desocupados. 50

example, in racing games one voluntarily goes all round the track in an effort to arrive at the finish line instead of 'sensibly' cutting straight across the infield.8 (SUITS, 1978, p.22)

Para Suits, então, os jogos seriam atividades direcionadas à realização de determinado objetivo através de passos pré-estabelecidos (como veremos em mais detalhes a seguir) que se caracterizam pela sua ineficiência. Afinal, a ‘eficiência’ é item imprescindível ao trabalho bem realizado que alimenta a indústria na era do consumo acelerado. Portanto, tal definição – embora sua grande amplitude de aplicação (o que se pretende resolver adiante) – encontra-se em plena conformidade com o contexto do presente trabalho.

Por ‘atingir um objetivo através de um meio ineficiente’ podemos compreender o germe do que seriam consideradas as regras. As regras nada mais são senão as leis que estipulam os limites de ação do jogador para atingir ao objetivo final do jogo. Assim o jogador deverá, primeiramente, assumir tais regras como leis absolutas e incontestáveis por intermédio das quais conhecerá suas limitações para percorrer uma série de obstáculos. Partindo destas restrições, ele deverá ter como intenção sincera atingir a vitória estipulada como o objetivo final do jogo. Embora pareça óbvia esta explanação, há que se compreender que esta define a única maneira pela qual o jogador exerce, de fato, a atividade do jogar. Suits (1978, p. 46) nos apresenta alguns comportamentos que rompem o compromisso com as regras ou com o objetivo final, comprovando que, ao adotar alguma destas posturas, o suposto jogador não estaria realmente ‘jogando o jogo’.

8 Em tradução livre da autora: “Tendo consciência do antigo cânone que estabelece a busca por conhecimento partindo do que é mais óbvio para o que é menos óbvio (…), vamos começar pela crença popular de que jogar jogos é diferente de trabalhar. Se espera que os jogos, portanto, sejam aquilo que o trabalho – em alguns aspectos consideráveis – não é. Vamos agora caracterizar grosseiramente o trabalho como uma ‘atividade técnica’, pelo que quero considerar como e atividade na qual um agente busca empregar os meios mais eficientes disponíveis para alcançar um objetivo desejado. Como os jogos também, evidentemente, possuem objetivos, e como os meios são evidentemente empregados para atingir a estes, a possibilidade sugere, por si só, que os jogos diferem das atividades técnicas pelo fato de que os meios empregados nos jogos não são os mais eficientes. Digamos, então, que os jogos são atividades direcionadas por objetivos nas quais o emprego de meios ineficientes é intencionalmente escolhido. Por exemplo, nos jogos de corrida o participante voluntariamente percorre todo o trajeto num esforço para atingir a linha de chegada no lugar de, simplesmente, cortar caminho pelo meio da pista.” 51

É possível separar os comportamentos daqueles que se prestam à atividade do jogo sem, no entanto, se comprometer verdadeiramente com o ato de jogar, por meio de três personagens distintas: o trifler ou, em tradução livre, leviano, é aquele que – embora se atenha às regras instituídas como limitações de ação do jogo - persegue um objetivo diferente do prelusório. Para que se possa compreender o impacto deste comportamento, há que se definir os objetivos lusório e prelusório.

Já vimos que ‘fins’ (objetivos) e ‘meios’ são dois elementos do jogo, sendo este uma atividade que possui um objetivo e que envolve a tomada de decisões. O terceiro componente do jogo diz respeito, como pudemos perceber, às ‘regras’, pois serão estas que limitarão o campo de ação do jogador e tornarão o ato de jogar um exercício no qual se atingem fins por meios propositalmente ineficientes, caracterizando assim algum tipo de desafio. Para Suits, a própria atitude do jogador seria considerada como o quarto elemento do jogo. Esta seria chamada de ‘atitude lusória’ (cuja raiz advém do latim ‘ludus’ e que deu origem também ao termo ‘lúdico’ para se referir a tudo o que é ligado, de alguma forma, à atividade do jogo).

Quando se fala de ‘atitude lusória’, se faz referência à predisposição do jogador em tomar parte do jogo, seguindo suas regras e buscando seu objetivo. Este, por sua vez, pode ser subdividido como ‘objetivo lusório’ ou, aquele no qual o jogador busca simplesmente ganhar o jogo e ‘objetivo prelusório’, que diz respeito à tarefa específica que precisará ser completa para que se obtenha sucesso no jogo. Se um jogador participa de uma partida de futebol, o objetivo lusório de seu time é ganhá-la. Já o objetivo prelusório que permitirá esta vitória consiste em marcar quantos gols forem possíveis respeitando, obviamente, as regras previamente estabelecidas. As regras constitutivas do jogo estão ligadas aos objetivos prelusórios, na medida em que uma determinada combinação de ações e realização de tarefas será necessária para que se atinja o objetivo lusório da vitória. As regras formam o jogo enquanto instituição, pois elas compreendem o que o jogador pode ou não fazer num espírito de jogo justo. Tais regras, se bem elaboradas, garantem o equilíbrio entre os jogadores e balanceiam a dificuldade do desafio que será enfrentado, pois impedem os jogadores de atingirem o objetivo lusório pelo meio mais rápido e eficaz enquanto, simultaneamente, oferecem um cenário de equidade entre aqueles que participam do jogo.

Voltando ao, anteriormente citado trifler, – compreendido como aquele que segue as limitações das regras buscando, porém, um objetivo diferente do prelusório – cabe a 52

compreensão de que tal comportamento desse personagem rompe com a atividade do jogar tanto quanto o daqueles que veremos a seguir. Num jogo de xadrez, por exemplo, o trifler seguiria todas as regras de movimentação das peças, entretanto, em lugar de buscar o xeque- mate do rei adversário ele buscaria, digamos, fazer com que seis de suas peças chegassem ao lado oposto do tabuleiro. Embora ele seguisse a instituição do xadrez, não se poderia dizer que ele estaria jogando xadrez, pois seu objetivo é outro que não o prelusório da jogada final, do ‘xeque-mate’.

Outro personagem, o cheater ou trapaceiro, também rompe com o compromisso do jogar. Embora ainda reconheça a instituição do jogo, fará de tudo para atingir o objetivo prelusório a todo custo. O que envolve quebrar as regras. Por não respeitar as regras e não aceitar o desafio de atingir o objetivo lusório por um caminho ineficiente, o cheater também não pode ser considerado como engajado na atividade do jogo.

Por fim, resta-nos o spoilsport que, em nosso linguajar ficaria compreendido como o ‘estraga prazeres’. Este personagem sequer reconhece o objetivo ou as regras do jogo e, se num primeiro momento ele se envolve com a atividade do jogo, o faz unicamente para jogar tudo para o alto e atrapalhar os jogadores que realmente estão envolvidos no jogar.

Embora nos exemplos anteriores tenhamos visto apenas jogos competitivos com mais de um jogador, em meio à constituição social humana, os jogos podem ser elaborados tanto na configuração individual quanto coletiva. É, porém, nos jogos antitéticos que são exercitadas, de modo mais exigente, as habilidades criativas, de trabalho em grupo e competitivas.

No jogo individual também é possível observar um caráter de desafio a ser superado que poderia ser associado à mesma força orientadora da competitividade que Caillois (1986, p. 43) teria chamado de agon. Em lugar de superar um oponente o jogador deverá sobrepujar aos próprios limites, sejam eles físicos ou intelectuais. A própria concepção poderia parecer um tanto difusa para pensarmos os jogos de tabuleiro, o que não ocorre ao imaginarmos o esportista que tenta quebrar seu próprio limite de tempo. Seu oponente é seu limite pessoal, seu desafio é realizar uma determinada tarefa (como percorrer a pé um certo trecho de pista) em tempo menor do que o resultado anteriormente obtido. 53

Para compreender melhor o que representa a força competitiva do agon e como ela se encaixa com suas complementares para resultar em diferentes experiências lúdicas, é necessário ter uma visão do que Caillois chamou de ‘categorias fundamentais’ dos jogos. Notemos que, inicialmente, o autor se refere a dois princípios opostos que precisariam estar em equilíbrio para que a atividade do jogo pudesse ocorrer:

Casi por completo, en uno de los extremos reina um principio común de diversón, de turbulência, de libre improvisación y de despreocupada plenitud, mediante la cual se manifiesta cierta fantasia desbocada que podemos designar mediante el nombre de paidia. Em el extremo opuesto, esa exuberância traviesa y espontânea casi es absorbida o, en todo caso, disciplinada por una tendencia complementaria, opuesta por algunos conceptos, pero no por todos, de su naturaleza anárquica y caprichosa: uma necessidad creciente de plegarla a convencionalismos arbitrarios, imperativos y molestos a propósito, de contrariarla cada vez más usando ante ella tretas indefinidamente cada vez más estorbosas, con el fin de hacerle más difícil llegar al resultado deseado. Éste sigue siendo perfectamente inútil, aunque exija una suma cada vez mayor de esfuerzos, de paciencia, de habilidad o de ingenio. A este segundo componente lo llamo ludus9. (1986, p. 41-42)

Para Caillois os jogos seriam caracterizados por uma ‘gratuidade’, uma ‘esterilidade’, dado o fato de constituírem um tipo de atividade que se resolve em si mesma, sem visar um produto ou a criação de um bem de consumo. Talvez, tanto o jogo quanto a arte sofram com a desvalorização crescente em meio à sociedade contemporânea calcada numa economia de moldes industriais justamente por representarem um ‘fim’ e não um ‘meio’ (no

9 Em tradução livre da autora: “Quase por completo, em um dos extremos reina um princípio comum de diversão, de turbulência, de livre improvisação e de despreocupada plenitude, mediante a qual se manifesta certa fantasia debochada que podemos designar mediante o nome de paidia No extremo oposto, essa exuberância travessa e espontânea quase é absorvida ou, em todo caso, disciplinada por uma tendência complementar, oposta por alguns conceitos, mas não por todos, de sua natureza anárquica e caprichosa: uma necessidade crescente de ligá-la a convencionalismos arbitrários, imperativos e propositalmente incômodos, de contrariá-la cada vez mais usando de problemas indefinidamente cada vez mais trabalhosos, com o fim de tornar cada vez mais difícil chegar ao resultado desejado. Este segue sendo perfeitamente inútil, ao que exige uma soma cada vez maior de esforços, de paciência, de habilidade ou de engenho. A este segundo componente chamo de ludus.” 54

sentido que tal ‘meio’ seria o caminho para a produção de algo que se pudesse vender e consumir). Como ‘fim’ o jogo não seria visto tal qual uma atividade de importância em meio a esta configuração social, por mais que a experiência de seu jogar transforme à nossa subjetividade. O mesmo ocorre com a arte. Tanto que as tentativas de se salientar o valor de ambos, quase sempre, se voltam para seus papéis na economia, no sistema de produção e consumo: “[...] a empresa Activision, que distribui o Call of Duty, vangloriava-se: US$ 1 bilhão em mercadorias tinham sido arrecadados no dia do lançamento do jogo.” (BERGERON; NADEAU; 2014, p. 12) Quanto vale, hoje, um Van Gogh? A questão não é levantada pensando- se no valor subjetivo, ou mesmo histórico das obras do artista, mas sim no seu potencial como bem de investimento, seu capital. Voltemos à nossa discussão sobre as categorias fundamentais que compõem os jogos, acreditando que enquanto ‘fins’, tanto jogo quanto arte, possuem seu respectivo valor. Imensurável na moeda que acabamos de citar.

Embora Caillois tenha uma compreensão diferente de ‘jogos’ e ‘não-jogos’ da aqui apresentada, sua exposição das categorias fundamentais dos jogos é bem elaborada e serve de fomento, ainda atualmente, para os estudiosos da área. As forças da euforia do paidia e da orientação do ludus, embora conflitantes, encontram equilíbrio ao trabalhar os fundamentos do agon, alea, mimicry e do ilinx. O mais comum é que estes não apareçam de maneira isolada, mas sim combinados para dar diferentes profundidades à experiência do jogar e ao desafio do jogo em si.

O agon caracteriza um grupo de jogos que trabalha o esforço competitivo. A maioria dos jogos antitéticos anteriormente mencionados possui o agon em evidência, pois este pressupõe o enfrentamento de antagonistas em condições idealizadas de igualdade (através das regras) tendo como parâmetro uma ou mais qualidades: velocidade, resistência, coordenação, raciocínio lógico e/ou estratégico, etc. Embora o agon seja mais comum em jogos com dois ou mais competidores, é possível a existência de jogos agonísticos individuais. Nestes, o jogador colocaria a prova sua própria resistência física, seu próprio recorde de tempo (como já citado no exemplo anterior do corredor que busca superar seus limites) ou, ainda, se disporia a resolver um intrincado jogo de lógica, reorganizar um baralho na sequência correta segundo regras específicas (como no jogo de Paciência) e, mais recentemente, jogaria contra a máquina num título de videogame.

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Alea é o termo escolhido pelo autor para designar a oposição exata do agon. Enquanto o agon determina os jogos cuja decisão de vitória depende do esforço e da capacidade do jogador, o alea caracteriza – como o próprio nome diz – a influência do aleatório sobre o resultado final. Exemplos puros desta categoria fundamental podem ser encontrados nos jogos de cara ou coroa, dados, roleta, bingo, enfim, aqueles para os quais se costuma atribuir caráter de sorte (ou da falta dela). Não é por acaso que os jogos envolvendo apostas em dinheiro se encontram fortemente atrelados a esta categoria, recebendo a designação de ‘jogos de azar’. Para o jogador que busca um desafio a ser superado, jogos baseados apenas na sorte são bastante frustrantes. A característica randômica do alea, entretanto, mostra sua importância quando de seu balanceamento com outras categorias. O jogo de Paciência, anteriormente citado, é um exemplo desta combinação. Embora o sucesso do jogador dependa da sua capacidade de realizar movimentos baseados em estratégias que visem liberar as cartas necessárias das pilhas às quais estão confinadas, existe um caráter aleatório no embaralhamento das mesmas. É justamente este elemento de surpresa que torna o jogo desafiador e a dificuldade variável a cada jogada. Em jogos coletivos, o elemento aleatório pode favorecer o competidor que está em desvantagem, oferecendo-lhe uma esperança de virada e mantendo seu interesse na experiência do jogar. Jogos que não prevêem este tipo de reviravolta, podem se tornar desanimadores para os jogadores menos experientes ou que cometem erros decisivos no início do jogo, os quais definiriam sua derrota sem chance de recuperação.

Todo jogo pressupõe um investimento no universo ficcional, no momento da aceitação de uma ilusão em um ambiente controlado (ao qual Huizinga teria chamado de ‘círculo mágico’). Assim, os jogos estão diretamente ligados ao conceito de ‘mimese’, de simulação e de interpretação. O mimicry alimenta, em especial, esta necessidade interpretativa ao se encontrar diretamente ligado aos jogos (primordiais) de ‘faz de conta’. O instinto mimético que existe na natureza (seja entre insetos, mamíferos ou outras classes animais), surge como a primeira ferramenta do aprendizado. Através da ludicidade da imitação, da assunção de papéis, do uso de máscaras (metafóricas ou não), somos colocados em contato com o mundo que nos cerca e respondemos a ele supondo regras que nem sempre são muito definidas. Por essa razão, os jogos de interpretação como ‘polícia e ladrão’, ‘casinha’, etc., ficam no limiar do que a maior parte dos teóricos considera, de fato, como ‘jogo’. Afinal, se os jogos devem oferecer um objetivo a ser alcançado por meio de regras específicas, como poderíamos interpretar o ‘faz de conta’ neste contexto? 56

Suits (1978, p. 130) clarifica esta problemática ao apontar a existência de ‘jogos abertos’, ou seja, jogos que não possuem um final fechado, um objetivo outro que não manter a continuidade da atividade que oferece prazer. Embora subjetivas, as regras do ‘faz de conta’ dizem respeito à qualidade da emulação que ocorre, a qual deve estar de acordo com a situação temática proposta pelos jogadores para que o objetivo de manter a atividade pelo maior tempo possível possa ser atingido. O ‘faz de conta’ pode, inclusive, ocorrer individualmente, desde que o jogador se disponha a interpretar situações antagônicas. Embora aos adultos isso possa parecer bobagem, as crianças não encontram restrições em brincar sozinhas e criar histórias até quando lhes parecer conveniente. Todavia, quando em dupla ou em grupo, o exercício criativo torna-se mais fértil graças ao repertório interpretativo de cada participante. No ‘faz de conta’ o “roteiro” da história contada é definido simultaneamente à ação, pelo improviso. Boas deixas mantêm a ação correndo e bons jogadores são aqueles que oferecem boas deixas. Estas são as regras implícitas neste jogo aberto, onde todos são vitoriosos enquanto o prazer da atividade tiver continuidade.

Podemos considerar o ilinx intrinsecamente ligado ao mimicry pelo fato, já explicado, de que os jogos dependem de um desprendimento da realidade para poderem ocorrer. Se fossemos definir o ilinx puro ele corresponderia a essa exata sensação de desconexão com a estabilidade do mundo fora do jogo. No que diz respeito aos videogames, o conceito diretamente ligado a esta desconexão com a realidade seria o de ‘imersão’. A critério de exemplo, basta jogar qualquer edição de Guitar Hero10 para compreender o quão literalmente vertiginoso um videogame pode ser. Os controles do joystick ou da guitarra que emula um instrumento real trazem relação com um braço deste em perspectiva que funciona como uma pista a qual percorremos em alta velocidade para coletar acordes musicais no ritmo da música que toca. Ao olhar fixamente para esta trilha - concentrados tanto na música, quanto nas informações visuais – nos desconectamos completamente dos estímulos externos. Antes de diagnosticar a qualquer estudante (jovem ou adulto) com TDA (Transtorno de Déficit de

10 Guitar Hero é um videogame cuja primeira edição foi lançada em 8 de novembro de 2005 nos Estados Unidos. Produzido pela Harmonix Music Systems e distribuído pela RedOctane, a franquia publicou seu ultimo jogo, Guitar Hero: Warriors of Rock, pela Activision em 24 de setembro de 2010, encerrando a série. O primeiro título, lançado para a plataforma PlayStation 2 da Sony, permitia ao jogador utilizar o joystick (o dispositivo de controle padrão para inserir impulsos interpretados pelo console) ou uma guitarra desenvolvida especificamente para o jogo. 57

Atenção), seria bastante produtivo vê-lo em ação jogando Guitar Hero para compreender até que ponto o problema de aprendizado tem origem num possível transtorno comportamental realmente e não na qualidade dos estímulos que lhe são oferecidos.

Vistas estas explanações, é possível compreender que, para qualquer jogo até hoje criado, encontramos aplicada ao menos uma destas ‘categorias fundamentais’ de Caillois. Todavia, o mais comum será encontrarmos mais de uma destas em combinação. A reflexão do autor serve para começarmos a pensar os jogos em termos de experiência e de comportamento do jogador, o que nos conduz a uma visão social do jogar.

O estimulo para a interação social nos jogos analógicos (não-digitais) ocorre quando de seu caráter coletivo. Não devemos nos iludir, no entanto, ao considerar todos os videogames individuais, em contrapartida, como isolantes sociais, pois desafios bastante semelhantes aos encontrados nos jogos coletivos tradicionais podem ser vistos na programática da máquina. Enquanto nos jogos analógicos são exercitadas habilidades de trabalho em equipe e superação do oponente, uma experiência similar pode ser encontrada por aquele que joga o videogame, pois ele deverá coordenar ações em harmonia com o que é proposto pela programação na medida em que enfrenta desafios e oponentes virtuais. Vale lembrar também que ainda no meio eletrônico, é possível a utilização de recursos tecnológicos que proporcionem a conectividade entre jogadores de modo que a socialização entre inteligências humanas (e não somente entre humano e máquina) possa ocorrer.

Os jogos de destreza, em particular, são aqueles que mais atraem a atenção de espectadores. Tanto que não existe dúvida de seu papel na cultura de uma sociedade. Estes jogos agonísticos são vistos, principalmente, sob a forma de competições desportivas: futebol, vôlei, corrida, salto com vara e uma infinidade de variações prezando a superação do oponente seja por meio do condicionamento físico aliado à técnica ou destes complementados pelo raciocínio estratégico. A fascinação exercida sobre os espectadores destes jogos serve ao propósito social do compartilhamento de uma experiência coletiva o que pode tanto nos aproximar enquanto iguais que torcem pelo sucesso de um mesmo time, como nos seccionar em grupos distintos que cultivam uma rivalidade (muitas vezes) mais agressiva do que a dos próprios esportistas que acompanhamos.

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Atestar que a cultura vem do jogo, como defende Huizinga, ou que o jogo surge de uma cultura degradada que perde seu propósito na sociedade, como apresenta Caillois, não modificará o fato de que jogo e cultura estão mesclados de maneira a formar um produto tão indistinto que, mesmo as experiências que o conduzem podem ser encontradas como manifestações no mundo real: nossa necessidade de nos afirmarmos melhores do que os nossos semelhantes, provando superioridade em alguma habilidade; nosso temor pelas forças do destino e tentativas vãs para controlar o incontrolável através de um sistema de crenças; nossas máscaras e comportamentos para fazer parte de uma configuração social ou mesmo rejeitá-la; nossa curiosidade e busca pela solução de pequenos e grandes mistérios; nossa necessidade de fuga pela embriaguez, pela desconexão em dados momentos da vida cotidiana, etc.

Embora não se possa dizer que conhecer os jogos de um grupo social basta para compreendê-lo, certamente é possível entender, através destes, seu sistema de valores ou, no mínimo, seus recursos escapistas. Os jogos e a maneira como estes são ‘consumidos’ nos dizem muito sobre a configuração de uma sociedade. O sucesso das loterias federais e dos sorteios a dinheiro em geral, por exemplo, vem da tentativa de desafogar a pressão exercida pelo sistema capitalista que prega uma meritocracia e uma igualdade de oportunidades que, sabemos, está longe de ser real. A loteria, este alea sedutor, oferece um atalho. Uma chance do cidadão comum abandonar o papel de oprimido para ocupar o campo da elite. Sabemos, no entanto, que ‘a banca sempre ganha’. O único possuidor de qualquer garantia de retorno dos seus investimentos é aquele que institui as regras deste jogo em particular.

Os jogos nos oferecem a possibilidade de exercitar, num ambiente controlado, as habilidades que utilizaremos socialmente no ‘não-jogo’. Se elaborados de maneira equilibrada, os jogos podem representar um território rico para o desenvolvimento de aptidões sociais importantes para a convivência. O jogo propõe um ambiente idealizado onde, a princípio, todos possuem as mesmas possibilidades de sucesso. Enquanto ocorre o jogar, quando se firma o compromisso com as regras e com a ficção, é deixada de lado qualquer diferença que exista entre os jogadores no mundo do ‘não-jogo’. Neste universo mágico e temporário, não importa a etnia, a classe social, o gênero ou a orientação sexual dos jogadores. Há potencial para o crescimento pessoal e social em cada jogador.

Num âmbito menos subjetivo, surgem questões que Frasca (2004, p.85) apresenta em seu texto Videogames of the Oppressed: Critical Thinking, Education, Tolerance, and Other 59

Trivial Issues: “É possível criar videogames que lidem com questões políticas e sociais? Videogames podem ser utilizados como ferramentas para encorajar o raciocínio crítico? Os videogames oferecem um caminho alternativo para a compreensão da realidade? ”11. O autor nos apresenta uma proposta metodológica para o game design ‘não Aristotélico’, criticando o fato de que os games buscam referenciais narrativo-poéticos que atrapalham o exercício do distanciamento crítico. A resposta seria encontrada, então, na simulação, no potencial do que pode ocorrer, ao passo que a narrativa – segundo Frasca – diria respeito àquilo que já aconteceu e, portanto, teria esgotado as possibilidades criativas e críticas do jogador.

Frasca sugere a aplicação da teoria dramática de Augusto Boal - dramaturgo brasileiro responsável pela criação do Teatro do Oprimido na década de 70 – na criação de jogos que trabalhariam com a quebra da ‘quarta parede’12 que separa jogador de personagem, mantendo a ilusão e o engajamento com a narrativa. Enquanto no teatro isso seria atingido ao chamar o espectador para a ação, – por essa razão denominado de ‘interator’ – nos videogames tal objetivo seria atingido ao lembrar o jogador de seu papel, rompendo com a ilusão e propiciando o distanciamento crítico desejado. Nesse ponto, o autor nos apresenta soluções possíveis da utilização destas premissas na proposição de exercícios que envolvem a criação de videogames e de personagens customizados para o jogo The Sims13.

Independentemente de concordarmos com o método defendido por Frasca e de suas sugestões de aplicação que vão além do próprio videogame em si, vale salientar – como dito em resposta no mesmo texto, por Mizuko Ito (2004, p.85) – a chamada para ação que questiona

11 Tradução livre do inglês realizada pela própria autora. No original: “Is it possible to design videogames that deal with social and political issues? Could videogames be used as a tool for encouraging critical thinking? Do videogames offer an alternative way of understanding reality?” 12 O conceito de ‘quarta parede’ teve origem no teatro, onde um muro imaginário se formaria entre o palco – fechando uma espécie de cubo, dentro do qual estariam os atores em performance – e a plateia.

13 The Sims é um jogo de simulação de vida criado pelo designer norte americano Will Wright. Lançado pela primeira vez em fevereiro de 2000, desenvolvido pela Maxis e publicado pela Eletronic Arts, a franquia hoje se encontra na quarta versão, lançada em setembro de 2014. Ao longo de seus lançamentos e expansões o título ganhou detalhes que tornassem a atividade da simulação mais plausível. Na quarta e ultima versão foi realizada uma ação de marketing oferecendo para download gratuito um laboratório de criação de personagens altamente customizáveis, para o qual seria possível definir até mesmo traços de temperamento. 60

os papéis economicamente delineados dos jogadores e dos produtores, da esfera privada e da esfera pública, do comercial e do não-comercial. Esta chamada para a ação, entretanto, envolve o domínio de conhecimentos que – há algum tempo atrás – sequer seriam considerados passíveis de assimilação pelos jogadores moderados e casuais. Hoje, como aponta Zimmerman (2004, p.85) ainda em resposta no mesmo texto, existe o oferecimento de ferramentas facilitadoras que democratizam para o jogador o papel de produtor de conteúdos alternativos. Para se compreender o despontamento desta tendência democratizadora, há que se compreender primeiro a origem do próprio videogame, bem como alguns de seus paradigmas específicos.

1. Três paradigmas dos videogames

É da natureza do paradigma desintegrar-se, pouco a pouco, para ser substituído por novos modelos que se encaixam de maneira mais coerente com seu tempo, com o contexto vigente.

O cenário deve ser levado em conta de maneira completa para que o novo paradigma não destoe e ajude a impulsionar novas elaborações e questionamentos. Assim funciona, por exemplo, o método da pesquisa científica. Não há verdade que dure para sempre. As descobertas no campo da ciência são revistas, reposicionadas e – muitas vezes – questionadas para serem substituídas por ‘verdades mais atuais’. É um erro acreditar na verdade absoluta e imutável, em se tratando do campo da pesquisa científica. Mesmo o presente trabalho, enquanto escrito, passou por diversas alterações e adaptações ao longo de quatro anos. Certamente, algum tempo após sua publicação, será revisto e questionado. Não pode haver orgulho defensivo no campo acadêmico. No que diz respeito, especificamente, aos paradigmas ligados aos videogames, aqui abordaremos aqueles que podem tornar mais problemática a aproximação entre estes e a arte. Iniciaremos com o paradigma da ‘diversão’.

a) O paradigma da diversão

Para qualquer jogador que venha acompanhando os títulos lançados nas ultimas duas décadas, pelo menos, já está bastante claro que nem todo game é construído para ser engraçado. O videogame, embora ainda se pense o contrário por aqueles que não conheçam 61

suas particularidades enquanto mídia, nem sempre diverte no sentido do oferecimento de uma experiência risível. Seu propósito pode ser bem outro, aliás.

Vale lembrar que, em se tratando do senso comum, ou mesmo daqueles que estão envolvidos nas discussões relevantes ao campo da cultura e da arte, nem todos estão acostumados e jogar videogames. Muitos desses podem conhecer videogames de uma maneira superficial, embora desconheçam a grande variedade de gêneros e subgêneros de jogos existentes.

Comumente, a sociedade de um modo geral, tende a pensar nos videogames como obras superficiais, voltadas para crianças ou pessoas imaturas e sem senso crítico. É igualmente comum vermos a maneira negativa como a mídia tradicional costuma relacionar comportamentos nocivos à quantidade de horas que um indivíduo dedica aos videogames, extrapolando casos específicos por meio de uma generalização que prejudica a compreensão deste meio.

No que diz respeito aos jogos analógicos – os jogos tradicionais e não digitais, como os de cartas ou de tabuleiro – existe uma visão cultural bastante diferente. O jogo de xadrez, por exemplo, tem seus benefícios reconhecidos amplamente. Um enxadrista terá sua imagem associada à de um intelectual, um estrategista paciente. Ainda, dificilmente veremos a imagem do jogo de xadrez associada à de uma atividade engraçada, risível, sem que isso cause qualquer confusão ou estranhamento. O jogo de xadrez é visto como uma atividade de contemplação, raciocínio e assunção de riscos calculados.

Tal diferenciação pode parecer discrepante, num primeiro momento. Entretanto, ela existe por uma razão bastante clara: a maior parte dos jogos analógicos tradicionais nasceu de maneira intrínseca à cultura da humanidade. Os jogos que hoje são tidos como ‘clássicos’, surgiram e foram evoluindo junto às culturas pelas quais foram adotados, assimilando-as, se alterando em função delas.

Por outro lado, temos os videogames que são ainda muito recentes, se pensarmos nos termos do desenvolvimento da cultura humana. Surgindo em função de uma tecnologia, os videogames têm se desenvolvido em função dos nossos gostos, embora ainda não sejam culturamente aceitos com a mesma naturalidade dos jogos analógicos. Veremos mais detalhes a respeito desta evolução tecnológica adiante. No momento, vale citar como exemplo o caso do título Spacewar!, de 1961, o qual foi criado – boa parte – em função das capacidades e 62

limitações do seu equipamento de suporte. Atualmente esta situação se reverte: Temos videogames – e o dinheiro que esta indústria movimenta – impulsionando o desenvolvimento tecnológico. São criadas máquinas com performance específica para oferecer o melhor resultado em entretenimento e fruição.

É esperado que as novas tecnologias causem estranhamento e resistência. Daí a importância – uma das motivações deste trabalho – em se trabalhar pela formação de pontes entre produtores, sociedade e crítica.

No Brasil, vivemos um momento de transformações no setor cultural: A Lei de Audiovisual sofreu alterações para contemplar o fomento aos jogos eletrônicos. No período de elaboração do presente trabalho, a Prefeitura de São Paulo, por meio do Spcine, lançou um edital direcionando um total de R$1.480.000,00 para a produção de games14. Também vimos, recentemente, o lançamento do primeiro videogame contemplado pela Lei Rouanet, Toren15. Mesmo editais de secretarias municipais de cultura do interior já prevêem o desenvolvimento de jogos eletrônicos no texto de seu edital, como é o caso do FICC – Fundo de Investimentos Culturais de Campinas. É tanto crucial, quanto inevitável, para o desenvolvimento do setor de jogos eletrônicos no país, que os videogames sejam compreendidos enquanto mídia e produtos culturais, ganhando credibilidade nos mais diversos níveis da sociedade.

A tecnologia vem mudando a maneira como a cultura é produzida e os videogames são um exemplo claro desta movimentação: é possível desenvolver games com colaboradores distantes, graças à conexão com a internet. Ainda, com base em ferramentas gratuitas e de uso intuitivo, torna-se possível desenvolver games em grupos reduzidos, ou até individualmente.

No que diz respeito à arte e ao papel do artista dentro deste cenário, as fronteiras que antes se delimitavam por conta do suporte utilizado ou do domínio de técnicas específicas,

14 O edital, cujo período de inscrição contempla de 08/10/2016 a 11/11/2016, tem por finalidade patrocinar a produção de dezesseis projetos de games, com os objetivos de fomentar e ampliar a produção brasileira em âmbito regional, nacional e global, ampliar a oferta de desenvolvedores de games no mercado e incentivar o desenvolvimento da identidade artística e cultural dos games no Brasil, oferecendo oportunidades a criadores iniciantes.

15 Lançado em maio de 2015, Toren foi a primeira produção nacional a captar recursos através da Lei Rouanet. O game da produtora Swordtales, de Porto Alegre, contou com um orçamento de R$ 400.000,00 e foi disponibilizado em versões para PC e PlayStation 4 com vendas por download nos valores de R$19,99 e R$29,99 respectivamente. 63

tornam-se mais e mais difusas. Já no escopo da produção cultural, a tecnologia facilitou o desenvolvimento de obras coletivas, que envolvem a coordenação das mais diversas frentes de trabalho.

No caso específico dos videogames, as possibilidades existem nas mais diversas escalas, variando em função da complexidade e extensão do projeto pretendido. As obras mais singelas podem ser desenvolvidas até mesmo individualmente, enquanto as superproduções – que demandam um imenso esforço coletivo para poderem surgir – podem envolver centenas de pessoas.

Cada tipo de produção possui potencialidades e limitações, não necessariamente proporcionando experiências risíveis. Algumas propostas são, inclusive, propositalmente desconfortáveis, por tratarem de temas densos em teor de denúncia ou de expiação catártica.

Talvez se possa dizer que, mais do que com qualquer tecnologia, o material com o qual os videogames trabalham seja a emoção. Proporcionar algum tipo de reação emocional, prevista ou imprevista, não é uma tarefa que possa ser levada de maneira trivial. A esta capacidade de incutir um resultado emocional para os estímulos acionados pelo jogador através da programação, está ligado o paradigma do ‘sucesso’.

b) O paradigma do sucesso

É bastante corriqueiro ouvirmos falar a respeito dos videogames considerados, por veículos de comunicação específicos da área e pelo público jogador, como sendo ‘sucessos’.

O respaldo para a consagração de um título costuma variar entre a quantidade de cópias vendidas, o tempo que o título consegue se manter no mercado (não raro, tornando-se uma franquia16), ou ainda, sua representatividade enquanto parte da história dos videogames.

O conhecimento e a utilização destes dados não podem ser desconsiderados,

16 Uma franquia é um licenciamento para a utilização de uma marca, de uma tecnologia ou até mesmo de um modeço de negócios. O acorde de utilização destes é firmado entre franqueador – aquele que cede os direitos de uso – e franqueado – aquele que recebe os direitos. No caso dos games, títulos que tenham feito sucesso costumam gerar sequencias, bem como subprodutos, - todos licenciados - o que caracteriza o modelo de franquia. 64

entretanto, considerar apenas um destes aportes para defender um videogame como sendo um ‘sucesso’ seria adotar uma visão bastante estreita do que ‘ser bem-sucedido’ pode significar.

Para que se possa concluir que um projeto, qualquer que seja ele, obteve sucesso, há que se avaliar seus objetivos. Um projeto só pode ter alguma chance de obter sucesso se seus objetivos forem bem delimitados, afinal o sucesso – posto de forma simplificada – consiste em conseguir equilibrar suas expectativas e a realidade vigente com o intuito de atingir um objetivo específico. Seja na elaboração de um videogame ou na criação de uma obra de arte, a definição acima se mantém.

A quantidade de cópias vendidas pode não ser um elemento a se pesar para avaliar o sucesso de uma obra direcionada para um público muito específico, por exemplo, que trate de uma temática que diga respeito a um nicho. Todavia, se a obra em questão atingiu a este público da maneira esperada, ela obteve sucesso em seus objetivos.

Por outro lado, falando principalmente dos videogames (embora o mesmo pudesse ser dito do cinema), uma obra comercial também pode ter importância subjetiva. Quantidade de público e qualidade da obra não são - como se diria numa defesa superficial da cena alternativa - inversamente proporcionais. A constatação de um grande volume de vendas não deve se tornar paradigmática para conferirmos o status de arte às obras mais populares, como não deve, tampouco, tornar-se um elemento impeditivo para que seja realizada uma análise crítica mais detalhada que pode, sim, confirmar o valor subjetivo do objeto em questão.

Em retrospecto, verdadeiros marcos na história dos videogames poderiam ser considerados – na visão simplista apresentada anteriormente – como projetos fracassados, pelas mais diferentes razões. Afinal, para que sejam estabelecidos modelos bem-sucedidos, obras que sirvam de referência para outras elaborações futuras, é necessária a experimentação inicial, caracterizada por uma sucessão de tentativas e erros.

Como veremos em mais detalhes ao falarmos dos videogames, Computer Space, o projeto de Nolan Bushnell que faturaria a base de moedas (uma espécie de antecessor do fliperama), poderia ser considerado um fracasso. Entre os engenheiros, colegas de Bushnell, o game era apreciado, porém para o público geral que pagaria para jogá-lo os controles eram complicados demais, o que tornou sua dinâmica frustrante. Embora com um péssimo faturamento, a primeira tentativa de Bushnell deu margem a criação dos fliperamas funcionando a base de moedas que se tornariam uma verdadeira febre pouco tempo depois. 65

O fracasso momentâneo trouxe consigo uma valiosa lição para desenvolvedores de jogos e game designers: Não se pode desconsiderar o público que jogará o seu jogo. Se a obra não constrói uma relação com o público para o qual ela se destina, não será possível atingir os objetivos esperados junto a ele.

Histórias de um sucesso fácil e sem obstáculos, apresentadas quase como a expressão narrativa da determinação do destino, são extremamente prejudiciais para aqueles que se propõem a dedicar esforços com seriedade a qualquer área. Além de reforçarem o mito do gênio criativo, oferecem um panorama totalmente fora da realidade que pode ser frustrante. Desta configuração podem surgir dois resultados igualmente danosos: O interessado pode se lançar de cabeça em uma área, acreditando ser predestinado a obtenção do sucesso de maneira fácil e – por que não dizer – indolor, para ter seus sonhos estilhaçados diante da dura realidade a qual não pesquisou e para a qual não se preparou devidamente; Pode também, em situação oposta e não menos perniciosa, desistir completamente de se aventurar numa área para a qual “não tem o dom”, desestimulado por nunca ter sido visto (portanto, nem visto a si mesmo) como um gênio imbuído de “vocação” para tais atividades. Assim sendo, neste espaço não reforçaremos tal mito, nem nos dedicaremos a debater a respeito de uma elaboração cultural que segrega, fecha portas e aumenta distâncias entre criadores e fruidores, produtores e consumidores.

A exemplo de Bushnell, que aprendeu com seus erros anteriores, podemos dizer que o sucesso de uma tecnologia inovadora está na facilidade de sua compreensão, na assimilação de sua navegação e na percepção rápida de controle. Preferencialmente, sem o uso de manuais de instrução. O jogo Pong atende a estes requisitos, tornando-se o primeiro produto da empresa Atari.

Entretanto, talvez graças a essa característica processual de observarmos elementos de sucesso em obras que nos servem de referência para implementá-los nos nossos próprios projetos, surge o paradigma da ‘originalidade’. Afinal a Atari teria de responder a um processo de plágio e seria futuramente plagiada em decorrência de sua aceitação no mercado. Para compreendermos o conceito de originalidade, vamos compreender um pouco da história dos videogames.

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c) O paradigma da originalidade

Segundo Leonard Herman (2001, p. 19), tentar apontar o momento exato em que os videogames teriam sido inventados é algo difícil. Como a maior parte das invenções tecnológicas às quais estamos acostumados atualmente, o surgimento do videogame deu-se como parte de um processo gradual que envolve bases econômicas, técnicas e sociais. Talvez pudéssemos apontar Ralph Baer como o criador dos consoles de videogame em 1972, mas ignoraríamos o fato de que Nolan Bushnell lançou o arcade em 1971. Ainda, em 1968, Ralph Baer teria patenteado os jogos para TV, enquanto muitos outros nomes teriam contribuído para o surgimento do próprio conceito de entretenimento eletrônico, como Willy Higinbotham, que teria criado um jogo que funcionava a partir de um osciloscópio nos anos 50. Para nossos propósitos, vamos lembrar que o videogame – enquanto aparelho eletrônico – nada mais é do que um computador. Partindo disto, poderíamos considerar suas bases estruturais fundadas nos idos dos anos 40.

Com o despontar da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da América julgaram necessário realizar o cálculo da trajetória balística de projéteis o mais rápido e acuradamente possível. O governo, então, investe na criação de um aparelho eletrônico capaz de realizar este cálculo no tempo recorde de 30 segundos, o ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Calculator). Por conta da complexidade dos cálculos que ENIAC precisava realizar, este apresentava alguns problemas de mau-funcionamento, super-aquecimento, além de ser extremamente desafiador para ser reprogramado – funcionando a base de inúmeros fios que precisavam ser desconectados e reconectados. As pesquisas tecnológicas financiadas pelo governo continuariam e teriam um importante papel no surgimento dos jogos eletrônicos, especialmente quando em 1958 o Laboratório Nacional Brookhaven do Governo dos EUA para pesquisas nucleares abriu suas portas para visitas públicas.

Cansado das apresentações informativas sobre os experimentos realizados, o físico Willy Higinbottan decidiu criar uma interface com a qual o público pudesse interagir e que lhes agradasse visualmente. No osciloscópio, ele criou a abstração de um jogo de tênis, com uma linha reta representando a rede e uma “bola” se movendo de um lado ao outro da tela. A partir de caixas de controle ligadas ao aparelho, os jogadores poderiam devolver a bola quando ela estivesse no seu lado da rede, projetando-a para o lado do oponente. Sem antever a repercussão econômica que sua inovação causaria, Higinbottan sequer requereu patente e, como conta 67

Herman, ainda que o fizesse, por conta de um acordo da sua contratação, os direitos pertenceriam ao seu empregador naquela época.

Foi na academia, em 1962, que Steve Russell, um graduando de engenharia do Massachusetts Institute of Technology, decidiu criar um jogo para o computador da faculdade. Com uma temática voltada para a ficção científica, o jogo Spacewar! apresentava duas naves que poderiam ser controladas cada qual por um jogador respondendo mutuamente a ataques com projéteis semelhantes a mísseis enquanto um sol as atraia para o seu centro gravitacional. Spacewar! se tornou famoso entre os estudantes que, além de jogá-lo podiam alterar seu código. Logo o jogo se espalhou entre os estudantes de outras universidades no país, chegando à Universidade de Utah, onde em meados de 1965, Nolan Bushnell cursava engenharia, então com 22 anos. A essa altura, embora tanto Bushnell quanto outros visionários dos games pensassem numa maneira de trazer este tipo de entretenimento para o jogador comum, os computadores ainda eram itens muito grandes e extremamente caros, disponíveis apenas para pesquisadores militares e acadêmicos.

Quase simultaneamente, Ralph Baer (então gerente de desenvolvimento de produtos para a Sanders Associates, uma companhia militar) buscava usos alternativos para a televisão. Com o aval do diretor do departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Sanders, ele completou um game básico de tênis. Em janeiro de 1968, Baer deu entrada na primeira patente de videogame da história. A montagem em escala, distribuição e venda do primeiro console de videogame encontrou muitos obstáculos, dentre os quais a principal preocupação dos possíveis parceiros, – os manufaturadores de eletrodomésticos – o temor de que o aparelho pudesse danificar os televisores. Assim, mesmo impressionados com a proposta, Philco, General Electric, Zenith, dentre outros, não se interessaram em produzir os consoles. Na década de 70, com a criação dos microchips, os videogames dariam um novo salto evolutivo.

Foi neste período que Nolan Bushnell se graduou e mudou-se com esposa e filha para a Califórnia, onde passou a trabalhar como pesquisador para a Ampex, a companhia responsável pela invenção do videocassete. Quando os microcomputadores começaram a se popularizar, Bushnell viu a chance de retomar o projeto da época da faculdade para trazer o Spacewar! aos arcades. Em 1971, Nolan Bushnell abandonou a Ampex com um colega e lançou o primeiro videogame que faturaria a base de moedas, o Computer Space. 68

Ainda que pioneiro, seu lançamento foi um fracasso. Embora fosse interessante para os engenheiros que formavam o círculo de convivência de Bushnell, o game não interessava às pessoas comuns. A primeira tentativa do desenvolvedor não levou em consideração o público, que julgara o game como extremamente complexo de ser jogado.

Com base nesta experiência, Bushnell percebeu que o sucesso de algo assim tão inovador dependeria da facilidade dos jogadores em potencial compreenderem o jogo sem a necessidade de ler qualquer tipo de manual de instrução. Assim surgiu a Atari, com primeiro protótipo de Pong sendo colocado em um bar de Sunnyvale.

Em novembro de 1972 a Atari já estava produzindo e vendendo seu primeiro videogame, embora não escapasse ilesa de um processo por plágio. Ainda assim, a Atari teve um bom faturamento e logo passou a ser copiada por seus competidores. Bushnell se viu forçado a movimentar-se para além do mercado dos arcades. Apesar do receio quanto ao avanço rumo aos lares dos consumidores, a Atari tornou-se a primeira empresa a estar no mercado de arcades e consoles. Entretanto, em 1976, vendo suas suspeitas de que o console seria um produto de venda sazonal confirmadas (com o grosso das vendas apenas durante o período do Natal), Nolan Bushnell vendeu a Atari.

Foi apenas dois anos depois que esta prática de vendas passou a ser questionada e o marketing dos consoles de videogame tornou-se presente durante o ano todo. Enquanto o Pong era um jogo único, o VCS (Video Computer System) da Atari permitiria o lançamento de cartuchos com novos jogos para manter o jogador interessado e comprando mesmo fora do período de Natal. Em 1979, a Atari deixaria de investir em arcades para focar no desenvolvimento de jogos para console.

Enquanto isso, o mercado japonês de jogos possuía companhias de arcade produzindo e licenciando jogos para o mercado americano, a exemplo de títulos ainda hoje famosos como Space Invaders e Pac-Man. Com o intuito de produzir hits específicos para o mercado americano, a Nintendo – cujo presidente era Hiroshi Yamauchi – abriu uma divisão americana. Inicialmente localizada em Nova Iorque e depois reposicionada em Redmond (Washington), a Nintendo of America encontrou dificuldades na criação do tão esperado game de sucesso. 69

No Japão, o designer Shigeru Miyamoto estava trabalhando em um projeto que se acreditou ser compatível com o público americano: Jumpman. O roteiro era bastante simples: um carpinteiro (o jumpman) deveria salvar sua namorada que fora sequestrada por um gorila. Para cumprir seu objetivo ele precisaria subir em plataformas enquanto escaparia dos barris atirados pelo gorila em questão. Quando foi lançado no mercado americano o título ganhou novo nome: Donkey Kong. Conforme o previsto, Donkey Kong foi um sucesso nos Estados Unidos, representando o início de um esforço global para a conquista de espaço na emergente indústria dos videogames. Quando ainda se descobria como fazer jogos, os erros (como o de Bushnell) eram parte do processo de aprendizado. No caso de Bushnell o consumidor não foi levado em conta. Já com Miyamoto, o consumidor e o mercado foram essenciais para o posicionamento do jogo.

Disto tiramos que a tecnologia do videogame surge de um investimento feito com propósitos militares, - o computador para processar dados - que ganha à academia com o objetivo de que as pesquisas forneçam informações úteis. Finalmente esta tecnologia chega ao consumidor médio, com o propósito de inflar a economia.

Interessa-nos perceber aqui que a inovação tecnológica dos videogames não veio atender a uma demanda do público, mas se apresentou como uma proposta de entretenimento que levou alguns anos até ser aceita e integrada à rotina familiar. Sua linguagem causou estranhamento fora do ambiente acadêmico, ao que foi necessário buscar referências familiares para os possíveis usuários. Estas referências foram encontradas no vocabulário televisivo e, posteriormente e mais aprofundadamente, no cinematográfico.

Atualmente, os videogames continuam a se beneficiar das inovações tecnológicas, agregando-as aos consoles que se assemelham, cada vez mais, com centros de entretenimento que integram conexão com a internet e redes sociais próprias (como ocorre com a Playstation Network, - PSN - a rede de usuários do console PlayStation, desenvolvido pela Sony), bem como serviços de assinatura para os amantes de seriados e filmes (ainda no caso do PlayStation, há uma parceria entre a PSN e a Netflix).

Tanto a tecnologia do computador pessoal, como a do videogame surgiu muito antes da ideia de sua integração ao ambiente familiar tornar-se viável. Havia, obviamente, a questão do custo de produção de um bem tecnológico que precisava ter saída em larga escala, entretanto 70

não se pode negar a apreensão dos círculos sociais – em especial os mais tradicionais, como é o caso do seio familiar – com relação às ‘ameaças’ que uma nova mídia poderia representar.

Pode parecer estranho falar de "movimento social" quando se trata de um fenômeno habitualmente considerado como "técnico". Eis, portanto, a tese que vou tentar sustentar: a emergência do ciberespaço é fruto de um verdadeiro movimento social, com seu grupo líder (a juventude metropolitana escolarizada), suas palavras de ordem (interconexão, criação de comunidades virtuais, inteligência coletiva) e suas aspirações coerentes. (LEVY, p. 123)

Toda nova tecnologia traz consigo uma apreensão quanto à sua repercussão. Em Tecnopólio: A rendição da cultura à tecnologia o autor Neil Postman se utiliza da narrativa sobre o rei Thamus – encontrada em Fedro de Platão – para criticar a postura parcial com relação às novas tecnologias e como elas são vistas como a própria manifestação da salvação ou decadência de determinadas culturas. Thamus indaga sobre as diversas invenções do deus Theuth, dentre elas a escrita. Tanto para Thamus quanto para o autor, porém, a tecnologia não é tida como algo neutro. Sua forma determinaria também sua função, o que é bastante sensato de se observar embora atualmente isso não costume ocorrer com frequência:

Thamus simplesmente aceita como certo – e, por conseguinte, não acha necessário dizer – que a escrita não é uma tecnologia neutra, cujo bem ou dano depende do uso que se faça dela. Ele sabe que os usos de qualquer tecnologia são determinados, em grande parte, pela estrutura da tecnologia em si, isto é, que suas funções resultam de sua forma. Esse é o motivo pelo qual Thamus não está preocupado com o que as pessoas irão escrever; ele esta preocupado com o fato de que as pessoas irão escrever. É absurdo imaginar Thamus avisando, à maneira do tecnófilo-padrão de hoje, que os malefícios da escrita poderiam ser minimizados, desde que ela fosse usada apenas para a produção de certos tipos de textos (digamos que para a literatura dramática, mas não para a história ou para a filosofia). Ele veria tal aviso como uma extrema ingenuidade. (POSTMAN, p.17)

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Da escrita para o videogame, a ideia de neutralidade continua a ser transmitida sem que a questionemos. Ao dizer que uma tecnologia não possui neutralidade, o autor não está propondo o julgamento do que é bom ou mau, – ambos conceitos morais extremamente discutíveis – mas sugere que compreendamos esta pelo prisma sob o qual foi criada. Daí a importância de conhecermos, neste caso específico, o surgimento e desenvolvimento dos games. Um game pode ser considerado como tal, segundo algumas especificidades vistas por estudiosos da área de jogos que vimos anteriormente. Estas especificidades delimitam sua forma e influenciam, por conseguinte, sua função. Estes limites se encontram em constante mudança, pois a tecnologia do game está viva, se apresenta líquida e permeável a outros meios, parecendo que jamais se solidificará.

Se pensarmos para além da organização econômica, a tecnologia toma parte na reorganização social e, inclusive, na maneira do próprio cidadão se enxergar dentro da sociedade. Postman, então, recorre a Marx para reforçar seu raciocínio. Aqui recorremos à obra original citada, pois Marx (2007, p. 155) afirma “O trabalho organiza-se, divide-se de outra maneira, segundo os instrumentos de que dispõe. O moinho manual supõe outra divisão do trabalho que o moinho a vapor. ” Como poderíamos afirmar, então, que o conteúdo do que é produzido não seria afetado pelo modo de produção proposto? Ainda:

Não temos a necessidade de relembrar que os grandes progressos da divisão do trabalho tiveram início na Inglaterra depois da invenção das máquinas. Desse modo, os tecelões e os fiandeiros eram em sua maioria camponeses, tais como ainda os encontramos em países atrasados. A invenção das máquinas acabou por separar a indústria manufatureira da indústria agrícola. O tecelão e o fiandeiro, reunidos outrora em uma só família, foram separados pela máquina. Graças à máquina, o fiandeiro pode morar na Inglaterra enquanto o tecelão reside nas Índias Orientais. (MARX, p. 160)

Embora Marx não pudesse prever a sociedade à qual Postman chamou de ‘tecnocrata’, seus argumentos levantados em meados do século XIX são de grande valia para a discussão da mudança na produção de bens mediante a divisão do trabalho. Nos nossos dias, a ‘máquina’ repercute sobre a produção de bens como na de serviços e incorre mesmo sobre a subjetividade artística, que se torna massificada. Para Marx, a ‘máquina’ degrada o operário, 72

destituído dos saberes de sua profissão e da sua expressividade sobre o que é produzido. No que diz respeito ao desenvolvimento de games para a indústria de massa, a especialização atinge o ápice da divisão fordista do trabalho quando temos equipes com centenas de desenvolvedores, artistas e sonoplastas envolvidos na criação de uma obra sobre a qual pouco ou nada são capazes de influenciar no resultado final. A visão que importa é a visão do diretor (como ocorre também com o circuito comercial cinematográfico, conhecido como blockbuster), não a dos trabalhadores envolvidos na produção, no desenvolvimento.

Entretanto, trabalhos de grande escala e complexidade nem sempre implicam na massificação e na precarização dos trabalhadores envolvidos em seu desenvolvimento. Se pensarmos na evolução do pensamento em rede – o qual Pierre Levy chamou de ‘inteligência coletiva’ - para a construção de conhecimento e na sua aplicação para a solução de problemas complexos, é possível fugir da armadilha armada pela ‘máquina’.

O conceito de inteligência coletiva de Pierre Levy, o crowdsourcing e o peering17 representam algumas das mudanças na nossa maneira de pensar e de construir o conhecimento. Uma maneira que deriva da nossa adaptação a um sistema de informação que evolui constantemente. A automação mudou a maneira como vemos o mundo. A tecnologia mudou a maneira de se produzir cultura e os games são um exemplo claro desse fato: é possível desenvolver games com colaboradores distantes. É possível desenvolver um game isoladamente, num grupo de cinco ou de quinhentos participantes. No que diz respeito à arte e ao papel do artista, as fronteiras que anteriormente poderiam ser delimitadas pelo suporte ou pela técnica encontram-se difusas. Se a possibilidade do desenvolvimento de obras coletivas - envolvendo forças das mais diversas - degradaria o artista, é um questionamento difícil de responder, dado que seu método de criação parece determinar os papéis dos produtores, até certo ponto, influenciando no resultado final. No caso dos videogames, existem diferentes

17 “Crowdsourcing” foi um termo utilizado pela primeira vez em 2004 pelo colunista da revista Wired Jeff Howe e que diz respeito à alimentação de um grande sistema de informações com base na participação coletiva de usuários conectados em rede. A Wikipédia seria um exemplo de uma enciclopédia desenvolvida pelos conhecimentos de um número gigantesco de contribuintes em rede, sofrendo diversas alterações e correções ao longo de sua existência até que atingisse um resultado estável. Já o conceito de “peering” (bastante semelhante ao primeiro) foi desenvolvido por Don Tapscott e utilizado em seu livro “Wikinomics: Como a colaboração em massa pode mudar o seu negócio” e propõe que problemas complexos em termos de escala podem ser quebrados em pequenos pedaços que seriam resolvidos, cada um, por um usuário conectado à internet. 73

propósitos e dimensões: das obras mais singelas que podem ser desenvolvidas por um único designer, àquelas que caracterizam verdadeiras superproduções que demandam um imenso esforço coletivo para poderem existir.

A construção artística é um processo, o processo é pautado por um contexto e faz parte de uma evolução histórica. Como pensar a originalidade nestes termos? A própria historiografia da arte não viria confirmar que a chamada ‘cópia’ seria parte do processo de aprendizagem dos artistas? Ao que parece, o limite do que é aceitável como cópia ou releitura, encontra-se em outro campo que não o dos processos pois, tecnicamente, a originalidade total e absoluta é uma impossibilidade histórica.

A instituição do estilo particular de uma época, por exemplo, surge em decorrência de ideologias de seu tempo. Se o artista busca aceitação, ele incorre no estilo que é esperado dele, em especial em períodos como o Renascentista e o Neoclássico. Vemos caracterizado em outros momentos, como na época em que se deu o movimento impressionista, o desejo do artista em romper com a conformidade ideológica, questionando a moral por trás do estilo padronizado. Mais importante do que receber a aceitação do público – já que, de fato, a reação é contrária – o artista tenciona criticar a ideologia imagética vigente.

Atualmente, não nos encontramos num período caracterizado por um estilo específico ou por um movimento artístico que traga os ditames do nosso tempo. O artista possui relativa liberdade para explorar uma linguagem própria, embora a preocupação com a aceitação não tenha mudado tão drasticamente no campo das artes, comerciáveis ou não. Há aqueles que buscam, através dos mais diversos meios (o dos videogames incluído), extrapolar os limites da linguagem iconográfica, partindo para experiências sensoriais que vão da sublimação à repulsa. Por outro lado, existem os que buscam uma expressividade mais aprazível e de maior aceitação pela maioria do público, por objetivos diversos: Transmitir uma mensagem clara, produzir uma obra comerciável, conduzir a uma reflexão crítica de maneira mais didática, etc.

Ambas as manifestações, embora divergentes em diversos pontos, possuem seu valor. Reconhecendo o processo histórico e o referencial dentro do qual se reelaboram enquanto obras, fogem do fantasma da retroalimentação dos jogos clonados. São soluções que se apropriam do que veio antes, reconhecem e compreendem sua existência, seu processo e sua história para inovar através da incrementação, dando um passo além.

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Esta incrementação pode vir sob formas variadas: Um protagonista construído em profundidade, que fuja do estereótipo, ainda vigente, do ‘homem branco heterossexual heróico’; um jogo híbrido, que combine mecânicas de diferentes gêneros de uma maneira inesperada; uma contribuição da realidade pessoal por parte do autor, enquanto indivíduo, para a construção de um conhecimento que é coletivo. Esta é a essência da originalidade revista na atualização deste paradigma.

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IV. PROBLEMA - O videogame enquanto meio artístico

A história nos mostra que, quando do surgimento de uma nova tecnologia, ocorre uma reação de resistência à implementação em diversas áreas. Enquanto esta resistência é combatida nas áreas das Ciências Exatas e Biomédicas, ação que vem acompanhada de relatórios precisos no aumento da produtividade ou dos números de sucesso na realização de procedimentos específicos, nas Ciências Humanas e na área das Artes, quase sempre esta resistência se mantém por algum tempo. É como se existe um zéfiro de autenticidade nos suportes e nas expressões que se tornam tradicionais com o passar dos anos. A tecnologia questiona a linguagem artística a um ponto tal, que torna difícil até mesmo à crítica especializada determinar quais são os artistas e quais são os “embusteiros”. Como vimos, com a facilidade de reprodução oferecida pelos meios tecnológicos, a arte sofreu um grande impacto e a figura do artista deixou de parecer inatingível para o povo, de modo geral. Claro, sabemos que ainda existem barreiras neste sentido. Entretanto, fazemos parte de uma era na qual a arte e a cultura passaram a ser vividas e consumidas por (quase) todos, com maior facilidade de acesso.

A arte parece se pautar em resgates e releituras, bem como as inovações tecnológicas. Quando questionamos o próprio conceito da originalidade, nos damos conta que os grandes nomes que entraram para a história como inovadores, tomaram parte de uma cadeia de conhecimento construído coletivamente. Ao contrário de desmerecer a inteligência e o sucesso dessas figuras, celebramos sua contribuição como parte de um caminho que conduz a humanidade rumo ao seu melhor. No caso das artes que se apóiam na tecnologia, seja no caso da fotografia, do cinema ou dos games, vemos claramente essa mesma cadeia de conhecimento se manifestando. Embora nem todas as obras se construam coletivamente, sabemos que as obras precisam surgir de um acordo entre – ao menos – duas pessoas: o artista que a elabora e o apreciador que dela fruirá. Nesse sentido, podemos nos arriscar a considerar a arte como um sistema que se emparelha à comunicação. Um emissor, um meio e um receptor. Para quem fala a arte, sem alguém que a aprecie?

Essa comparação torna-se ainda mais próxima em se tratando dos videogames, que são elaborados como projetos que trazem mensagens (mais ou menos claras, morais ou amorais), que carregam ou negam um sentido. Seja qual for o papel pretendido pelo criador, estruturalmente o game se constrói como um projeto lógico, procedural. O cinema traz esta 76

lógica do procedimento no seu formato narrativo ainda que, em propostas diversas, busque negar a linearidade do roteiro. Está preso à construção de uma narrativa para poder existir. Novamente, esta narrativa pode ser aristotélica ou tão fluída como a expressão onírica do subconsciente, mas continuará sendo uma narrativa. É nessas características que as obras se prendem ao seu suporte, embora não dependa precisamente do suporte em si a discriminação entre as obras artísticas ou não artísticas.

Não nos interessa questionar diretamente o que torna determinados videogames obras de arte ou não, por nos parecer claro que tal questão se pauta numa prerrogativa errônea: a de que o suporte, por si só, é capaz de separar o que é arte do que não é. Não negamos que o suporte possui características mais ou menos estruturais que influenciarão no teor da obra, afinal é o suporte que dá fundamento e materializa (o que parece-nos estranho dizer em respeito àqueles que são virtuais e portanto ‘potenciais’) os ideais do artista. Entretanto, questionar se os videogames são arte é colocar o suporte à frente da decisão e da capacidade do artista. Não se questiona se as pinturas são arte. Não se questiona se as esculturas são arte. Não há dúvida se a expressão do corpo performático é arte. No entanto, durante muitos anos se questionou se o cinema seria arte e, hoje, vemos este mesmo receito direcionado aos videogames. Sendo o artista o seletor do suporte, do meio, que melhor lhe convém, vale dizer que o valor da obra dependerá – em realidade – da capacidade deste e do procedimento aplicado pelo mesmo na construção daquela. Retomando a analogia anterior, basta concluir dizendo que ‘a pintura pode ser arte, o que não significa que toda pintura o seja’.

Isso estabelecido, o principal problema abordado por este trabalho é por que os videogames, enquanto meios artísticos, não são vistos com a mesma credibilidade pela crítica de arte especializada e pela academia, se comparados às expressões mais consolidadas da arte? A quem esta resistência interessa e quais são as teorias construídas como base para a negação do videogame enquanto meio expressivo válido?

Ora, já vimos algumas das explicações relacionadas aos conceitos das obras de arte ‘reacionárias’ e ‘revolucionárias’, bem as principais razões – no contexto da história da arte – pelas quais houve interesse das classes dominantes (em recortes temporais e espaciais diversos) em manter a produção e o consumo de arte numa esfera elitizada (econômica, social e culturalmente), como forma de reafirmação da sua autoridade. Ainda que, quando se fale em videogames, a principal associação seja relativa aos títulos produzidos como parte de uma indústria cultural de massa, entendemos que o mercado atual produza desde títulos massivos 77

que atendem única e exclusivamente ao propósito do acréscimo de faturamento das grandes produtoras, até obras focadas em nichos específicos produzidas num circuito independente. A abordagem relativa às questões de ideologia e manutenção do poder exercido pela classe dominante, relegaremos aos estudiosos da área de Ciências Sociais, por entendermos que o escopo deste trabalho não pretende tratar de questões tão profundas e que estão fora da nossa alçada. Assim, resta-nos oferecer um melhor entendimento do processo de criação que envolve a produção de um videogame, bem como das forças determinantes do sucesso – financeiro ou conceitual – do mesmo. Com isso, pretendemos desconstruir a argumentação falaciosa que coloca o suporte a frente do artista, mostrando que tudo pode ser compreendido através dos processos de elaboração e experiênciação.

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V. HIPÓTESE - O videogame como produto pautado pela complexidade

Para que possamos construir a tese deste trabalho, partimos da hipótese de que o videogame é, antes de mais nada, um objeto complexo. Esta proposta será defendida deste capítulo em diante, entretanto, há que se partir do embasamento necessário ao entendimento do próprio conceito de complexidade aqui apropriado. Os conceitos que serão utilizados, são aplicados tanto no processo de elaboração da pesquisa científica como na metodologia de desenvolvimento de videogames.

Veremos, inicialmente a definição de complexidade segundo a visão de Edgar Morin, expressa em diversos textos, dentre os quais o mais conhecido é o Da necessidade de um pensamento complexo. Este trata, especificamente, dos problemas de uma educação baseada na propagação de informações fragmentadas – antagonista ao modo de pensamento holístico, o qual vê o conhecimento de forma global e integradora. Partindo deste estudo, entraremos em contato com a proposta de John Conway, voltada especificamente à complexidade nos videogames. Para Conway (2004), o traço mais importante desta complexidade seria a experiência da jogada significativa. Visto o conceito de complexidade, abordaremos a ideia da emergência segundo a visão de Thomas Kuhn, cuja linha de pesquisa segue paralelamente à lógica do raciocínio científico. Sabe-se que, para o desenvolvimento do raciocínio científico, se estabelece como premissa a ‘inexistência de verdades imutáveis’, por conseguinte, as teorias científicas são formuladas com base na proposição de um paradigma (tese) que tentará responder a um problema previamente delineado. O autor nos mostrará que, em decorrência do surgimento de novas problemáticas, são criados novos paradigmas – em substituição aos antigos modelos. Pensando os videogames como sistemas complexos, podemos considerar que as regras seriam os paradigmas que estabelecem a mecânica de jogo. Entraremos em contato com o MDA Framework, para compreender como esta ‘mecânica’ trará a emergência de uma dinâmica comportamental de jogo, tangível – de maneira mais ou menos subjetiva – a partir de um modelo ‘estético’. Posteriormente, veremos uma explicação mais aprofundada sobre este framework18, desenvolvido por Robin Hunicke, Marc LeBlanc e Robert Zubek, quando abordarmos a questão metodológica do processo de criação de um videogame.

18 Na área de desenvolvimento de software, o framework é uma abstração que pode reunir padrões de código, interfaces, classes e objetos visando a solução de problemas recorrentes de maneira flexível. 79

Veremos que os videogames podem ser vistos, não apenas como sistemas, mas também como ‘sistemas complexos’ dos quais emergem padrões de comportamento. Para tal, iniciemos com a compreensão do próprio conceito de complexidade.

1. Complexidade

O conceito de ‘pensamento complexo’, vem sendo utilizado por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento. No que diz respeito à compreensão de sistemas, a ideia do pensamento complexo surge de observações e análises de diversos objetos de estudo, como por exemplo os organismos biológicos e os sistemas planetares. Edgar Morin, valeu-se desta ideia para tecer uma crítica ao sistema tradicional de educação, caracterizado pela delimitação do conhecimento por áreas e pela subcategorização em forma de disciplinas específicas. Este modelo falha, principalmente, em proporcionar as possíveis relações entre os campos do conhecimento para que seja possível construir novos saberes de forma integrada ou, como costumamos chamar atualmente, interdisciplinar.

Para Morin, ainda que fosse realizada esta separação por disciplinas, a problemática poderia ser minimizada caso não ocorresse – como é comum – um isolamento destas, como o que costuma ser praticado no ensino básico, onde aprendemos conteúdos herméticos, entre os quais não conseguimos ver relação. Seria enriquecedor se estes conteúdos estivessem em contato e troca constantes, para que se potencializasse a construção do conhecimento, mais do que a mera transmissão de informações sem que haja o exercício crítico.

Ainda que a educação tenha evoluído nas ultimas décadas, tanto em função de novos modelos de ensino, quanto da implementação de novas tecnologias, o modelo de ensino a imperar é o da transmissão de informações sem questionamento, tendo por figura central o professor como protagonista. Neste modelo, as avaliações aplicadas visam cobrar a memorização de conteúdos e a capacidade do aluno em responder as questões propostas da maneira esperada pelo professor. Assim, há pouca liberdade do aluno em encontrar soluções divergentes para os problemas apresentados pelo educador ou, indo um pouco além disto, de exercitar a identificação de problemas – em primeiro lugar – para pensar em soluções criativas. Num modelo centrado no professor, muitas vezes o aluno questionador é visto como um elemento problemático a ser “contornado”. 80

O pensamento complexo surge, então, da necessidade de rever os antigos modelos educacionais por meio da realização de conexões entre as disciplinas, o que propicia a visão do conhecimento como algo global. Para citar um exemplo, no ensino fundamental e médio, a aplicação de um modelo educacional holístico poderia vir a facilitar a compreensão de disciplinas complementares como é o caso da geografia, da história, da literatura e da arte. O autor explica que para conhecermos o próprio espírito humano, estudaríamos não apenas a psicologia, como também os aspectos fisiológicos do cérebro como vistos pela biologia. Isso já ocorre, se pensarmos nos avanços educacionais implementados em decorrência da neurociência, que auxilia na aplicação de estratégias mais eficazes de ensino pela compreensão do funcionamento cerebral dos educandos em diversas fases de seu amadurecimento.

Embora Morin não condene a organização dos conhecimentos por meio de disciplinas diversas, sua crítica está direcionada para a maneira como estas resistem isoladamente, ignorando a composição de um cenário panorâmico da combinação de saberes. As disciplinas seriam, então, partes compositoras de um todo muito maior e em constante evolução. Grande parte dos problemas enfrentados pela sociedade contemporânea não podem ter sua resolução relegada aos esforços isolados de especialistas, políticos ou economistas, mas sim, dependem de uma combinação estratégica da visão destes e de muitos mais elementos que tomam parte neste sistema.

Independentemente da área do conhecimento do pesquisador ou da especialidade do profissional, sempre existirá um grau de permeabilidade entre sua área específica e os campos adjacentes. Este contato, mesmo que discreto – a princípio – gera questionamentos e torna necessário o exercício do pensar sobre a complexidade. Para que este potencial possa ser aproveitado, há necessidade de rever estratégias e métodos de trabalho, bem como de desenvolver as habilidades necessárias ao domínio de atividades em grupo ou gerenciamento de equipes multidisciplinares.

Em seu livro Grammatical Man, o autor Jeremy Campbell (1982) propõe a existência do que ele chama de uma ‘barreira de complexidade’. Esta barreira, embora – nos termos explicados pelo autor - exista e possa ser calculada matematicamente, é difícil de ser compreendida conceitualmente. Numa simplificação, podemos dizer que um ‘sistema complexo’ é formado por muitas partes, mas que nem sempre um sistema que possui muitas partes pode ser considerado como um ‘sistema complexo’. Há que se compreender também que a construção de um sistema complexo não implica apenas no desenvolvimento de um sistema 81

com muitas partes capazes de se relacionar entre si de diferentes formas, mas sim na elaboração de um sistema no qual as partes tornem-se capazes de fazerem coisas e serem coisas que não eram esperadas delas originalmente, ou seja, apresentando comportamentos emergentes. Compreenderemos um pouco melhor este pensamento a partir das explicações a seguir.

No que diz respeito à arte nos games, nos interessa saber que a complexidade é fator essencial à emergência de uma experiência subjetiva. Na maior parte das vezes, quando uma obra é elaborada, existe a possibilidade de prever qual será a relação entre o público fluidor e a obra. Entretanto, especialmente nas obras que existem enquanto sistemas complexos, torna-se mais difícil prever todas as reações possíveis. Quem trabalha com sistemas complexos sabe disso e conta com esta imprevisibilidade para oferecer experiências inovadoras ao público.

No ano de 2013, quando já me encontrava envolvida na pesquisa destes conceitos na área dos videogames, apresentei, no Simpósio Brasileiro de Games e Entretenimento Digital - SBGames, um artigo intitulado O uso da metodologia iterativa na criação de videogames como sistemas emergentes. Algumas das reflexões levantadas naquele trabalho, transcrevo de modo mais elucidativo (espero) adiante, trazendo o foco para as complexidades possíveis numa comparação que sugiro ser feita utilizando o MDA Framework.

Ainda utilizando um exemplo de Conway, podemos deixar a compreensão do sistema complexo mais clara. O autor cita uma simples mesa como exemplo de um sistema. A mesa é um ‘todo’, com funções próprias. Poder ser utilizada para apoiarmos materiais sobre seu tampo, estudarmos, escrevermos, nos sentarmos diante dela para partilhar uma refeição com outras pessoas, etc. Esta totalidade é formada por partes mais simples: No mínimo, pernas e tampo.

Entretanto, por mais versátil que possa ser uma mesa, por mais inusitado que possa se apresentar a sua forma, a mesa não poderia ser considerada como um 'sistema complexo'. Isso ocorre porquê a mesa não prevê a emergência de comportamentos, o que surge do sistema mesa, de seu uso, são comportamentos previstos, esperados.

Em contraponto, o autor nos mostra que até o mais simples dos jogos analógicos pode ser considerado como um sistema complexo. Isso ocorre pelo fato de que os jogos, por sua natureza, permitem que os jogadores tenham liberdade na interpretação do conjunto de suas regras, por mais limitadas que estas sejam. Os jogadores possuem repertórios dos mais diversos, assim sendo, a interpretação das regras pode variar. Individualmente, estes jogadores são 82

imprevisíveis, portanto o comportamento que emerge em função das regras interpretadas também o será.

Conway admite a existência de jogos que fugiriam a esta constante. Tão restritivos que não apresentariam o grau de complexidade mínimo necessário para a emergência de comportamentos imprevistos. Entretanto, para o autor, tais jogos não ofereceriam a possibilidade de 'jogadas significativas' aos seus jogadores. Estas 'jogadas significativas' seriam aquelas possibilidades de ação, dentro do ambiente de jogo, que permitem ao jogador um determinado grau de escolha para que este sinta que sua subjetividade foi suficientemente respeitada. As 'jogadas significativas', bem como a complexidade articulada dentro do ambiente do jogo, podem existir não somente nos jogos analógicos, mas também nos digitais, dadas, é claro, as possíveis limitações tecnológicas e de desenvolvimento existentes até então.

Seria fácil supor que tal complexidade surgiria graças à quantidade de elementos agregados ao sistema, ou mesmo, por conta das relações existentes entre os agentes que fazem parte deste mesmo sistema. Porém, o jogo é o perfeito exemplo de uma complexidade que emerge de regras simples.

Para citar outro exemplo bastante básico, tomemos a analogia esquemática de um sistema comunicacional: a conversa entre dois indivíduos. Neste sistema há poucos componentes: um sujeito emissor, um sujeito receptor, sendo que ambos alternam seus papéis. O som da fala é propagado através de algum meio específico que pode ser o mais simples possível, como o ar, ou qualquer outro meio de comunicação artificial, como um telefone ou a própria internet. Para que este sistema possa funcionar conforme o esperado, supõe-se que a mensagem emitida pelo emissor será captada e compreendida pelo receptor, o qual lhe responderá com o retorno coerente.

Para que o funcionamento deste sistema possa se estabelecer desta forma, também é necessário que a mensagem enviada tenha se dado por meio de um código (um idioma ou uma determinada forma de escrita, por exemplo) préviamente atribuido, de compreensão tanto do emissor, quanto do receptor. Ainda, para uma perfeita compreensão da mensagem, deve ocorrer uma baixa contaminação por qualquer forma de ruído (o que poderia acontecer caso a conversa se desse numa rua movimentada e barulhenta ou através de uma conexão de internet instável).

Vemos que, mesmo se tratando de um sistema primordial e inerente aos seres humanos, o exemplo da comunicação apresenta diversos fatores que o tornam um sistema 83

complexo. O contexto da mensagem transmitida, as características do meio de propagação desta, bem como o repertório dos indivíduos envolvidos, são fatores que podem levar à emergência de comportamentos diversos.

Também é possível identificarmos um sistema complexo colocando-o em comparação a outros tipos de sistemas que, por diversas razões, não poderiam ser considerados complexos. Na diferenciação por meio desta comparação, podemos dizer se o sistema analisado é complexo ou não. Christopher Langton (1995), pioneiro da matemática voltada à inteligência artificial, propõe que compreendamos a complexidade dos sistemas a partir de quatro níveis: fixo, periódico, complexo e caótico.

Com base no método comparativo proposto pelo autor, torna-se bastante restrito aquilo que pode ser considerado como um sistema complexo.

Podemos começar dizendo que os sistemas fixos são aqueles considerados imutáveis. A relação entre os elementos que compõem este tipo de sistema é sempre a mesma. Retomando a exemplificação de Conway, podemos considerar uma televisão desligada como sendo um sistema fixo; A grade que constitui a tela de uma televisão, seja qual for sua resolução, é composta por uma determinada quantidade de pixels. Cada um desses pequenos pedacinhos da tela recebe uma informação específica de um estado, para compor uma imagem. No que diz respeito a uma televisão desligada, a informação recebida por cada pixel será sempre a mesma: estado desligado ou ausente de luz. Tal estado, enquanto a configuração do sistema estiver inalterada, é o exemplo perfeito de um sistema fixo.

Suponhamos, porém, que os pixels que compõem esta mesma grade, passem a oscilar entre dois estados: ligado, ou branco e desligado, ou preto. Estes estados se alternariam de maneira consecutiva e repetida, por um período infinito num padrão pré-determinado. A televisão passaria, então, a representar um sistema, ainda simples, porém agora periódico.

Num sistema caótico, os elementos compositores estão em constante movimento, de maneira randômica, seus estados e relacionamentos são imprevisíveis. Uma televisão em estática é o exemplo claro deste sistema. Os pixels da tela recebem ainda, neste exemplo, apenas dois tipos de informação (ligado ou branco, desligado ou preto), entretanto é impossível saber em que momento quais pixels da grade manifestarão um desses estados.

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Afinal, pelo processo de comparação e eliminação, teremos o sistema complexo: Mais complicado e surpreendente que um sistema periódico, embora não tão imprevisível e dinâmico como um sistema caótico, o sistema complexo permite a emergência de comportamentos inesperados com base nas regras que constituem sua própria existência.

No caso específico dos jogos, já vimos que o poder de decisão do jogador não pode ser desconsiderado. Independentemente da quantidade de elementos e regras que tornam o jogo possível, é fator imprescindível ao jogo, enquanto sistema complexo, a jogada significativa.

O jogador é a força motriz do jogo, é a peça essencial que colocará este sistema em funcionamento. Enquanto o jogador não toma seu papel, exercendo o controle e iniciando o jogo, o sistema existirá apenas potencialmente, como um conjunto de regras estáticas, aguardando para se relacionar e serem articuladas pelo jogador.

Neste âmbito, surge a jogada significativa. Seja com base nas regras propostas num jogo analógico, ou partindo da programação num ambiente digital, o jogador estará livre para agir dentro de um contexto suficientemente limitado, ao passo que o sistema ‘jogo’ deverá responder devidamente. O determinante que tornará, ou não, tal ação, tal jogada, significativa, será a natureza do relacionamento entre a ação e a respectiva resposta.

Podemos partir do exemplo de um jogo de tabuleiro baseado num labirinto unicursal simplificado. Este seria composto por casas sequencialmente numeradas em ordem crescente, digamos, de um a vinte e dois (Figura 1).

Figura 1 - Labirinto Unicursal

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Proporíamos, então, ao jogador, representado por um peão, o objetivo de, saindo da primeira casa, atingir o vigésimo segundo e último espaço. O critério da movimentação do peão que representa o jogador em questão seria o número sorteado na rolagem de um dado com seis lados. Após rolar o dado o jogador poderia, unicamente, mover seu peão em ordem crescente, respeitando o valor de casas sorteado. Ora, ainda que o jogador enfrente outros participantes na tentativa de ultrapassá-los nesta versão simplória de uma 'corrida', tal desafio se relega exclusivamente ao fator ‘sorte’ de uma rolagem aleatória. Não há qualquer poder de decisão por parte do jogador, portanto, não existe possibilidade de 'jogada significativa'.

Não devemos confundir os conceitos de 'jogada significativa' e 'complexidade'. Uma vez que a jogada significativa corresponde à relação existente entre as ações perpetradas pelo jogador e a resposta oferecida pelo sistema a essas ações, a complexidade diz respeito à relação entre as partes que compõem o próprio sistema. Como estamos tratando dos jogos enquanto sistemas complexos, ambos os conceitos encontram-se interligados: Necessariamente, onde há jogadas significativas, determinados aspectos do sistema serão complexos (como veremos adiante por meio do MDA Framework).

O aspecto complexo de um jogo pode, por exemplo, vir sob a forma de estratégias e dinâmicas comportamentais intrincadas; Das relações sociais estabelecidas nos jogos coletivos, sejam eles analógicos ou digitais, massivos ou não; A complexidade do jogo pode vir de sua estrutura narrativa imersiva, mesmo que unicamente no campo da cognição, ou até mesmo da pressão e do engajamento psicológico envolvidos no ato de apostar dinheiro da vida real.

Com base nessas possibilidades, podemos retomar o exemplo anterior do nosso jogo de corrida para corrigí-lo, passando a oferecer algumas escolhas de jogadas significativas. Poderíamos substituir o trajeto fixo de vinte e duas casas em ordem crescente, por um labirinto com diferentes opções de percurso e com casas que representariam desafios diversos. Ainda que a movimentação fosse aleatória e baseada na rolagem de um dado com seis lados, algumas das casas do labirinto ofereceriam desafios que atrasariam ou ofereceriam algum tipo de vantagem ao jogador. A cada desafio superado, o jogador poderia ganhar uma determinada quantidade de pontos para acumular e arriscar em apostas que poderiam lhe render vantagens com relação aos seus oponentes. Em suma, com a adição de elementos que potencializem as ações e decisões dos jogadores, a jogada significativa passa a ser uma realidade. A relação entre as ações que são realizadas pelo jogador e o retorno oferecido pelo sistema proposto pelas regras 86

do jogo, traz à tona padrões de comportamento imprevistos: Como funcionará a dinâmica do jogo socialmente entre os jogadores? Veremos perfis de jogo mais conservadores ou mais dispostos a arriscarem seus pontos? Ao surgimento de tais padrões de comportamento imprevistos, damos o nome de 'emergência'.

2. Emergência

Já vimos que a emergência ocorre quando das relações estabelecidas num sistema limitado por regras previamente consolidadas. No que diz respeito à utilização deste conceito no campo dos jogos, a compreensão da emergência de comportamentos inesperados está diretamente ligada ao oferecimento de possíveis jogadas significativas. Para retomar, entretanto, uma definição mais tradicional, podemos recorrer ao capítulo A Anomalia e a Emergência das Descobertas Científicas, do livro A Estrutura das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn (2006), é possível encontrar a compreensão do conceito de emergência a partir da maneira como novas teorias científicas surgem, pela modificação de paradigmas estabelecidos por teorias anteriores.

O surgimento de novos paradigmas se dá nas mais diversas áreas teóricas, tanto nas Humanidades quanto nas Ciências Exatas, para explicar fenômenos observados e analisados. Quando as limitações de um paradigma vigente são percebidas, é estabelecida uma nova abordagem, o que substitui este por um novo paradigma. Novas teorias emergem, a ciência marcha normalmente em seu desenvolvimento. Assim sendo, não podemos dizer que existam certezas na ciência, ou em qualquer área do conhecimento, mas sim que é possível estabelecer considerações que são temporariamente verdadeiras, dentro de um contexto.

Em se tratando dos jogos, as experiências emergem dos paradigmas criados pelas próprias regras. Em função do processo de desenvolvimento dos jogos - o que inclui uma série de testes que são repetidos com amostragens representativas do público-alvo visado - tais paradigmas são alterados repetidamente até que se estabeleça um produto final. Neste ponto, ainda que os jogadores possam interpretar, com base em seus repertórios, as regras de um jogo analógico, ou escolher com certo nível de liberdade suas ações em jogo (digital ou não) através da jogada significativa, uma vez que as regras tenham sido colocadas em funcionamento - os paradigmas atuais tenham se estabelecido no momento da fruição da experiência - não existe possibilidade de contestação sem que isto incorra na destruição (ainda que temporária) do 87

sistema proposto pelo jogo. Quando interrompemos a experiência para questionar as regras, colocamos esta em suspensão até que toda dúvida tenha sido sanada. Se, ainda assim, optarmos por alterar as regras preestabelecidas, o sistema proposto até então rui, entra em decomposição, para ser substituído por um outro, que conduz a um diferente tipo de experiência.

Reside aí a grande dificuldade de balanceamento de um jogo quanto do estabelecimento de regras e da estruturação dos recursos de mecânica, tanto nas propostas analógicas, quanto digitais. Deve-se oferecer aos jogadores um conjunto de regras com valor de lei, que prezem pelo estabelecimento de um cenário democratizado, justo e equilibrado, ainda que desafiador.

Em via da necessidade estrutural da fixação destas regras, uma maneira de assegurar sua assertividade está em buscar mantê-las as mais claras e simples possível. Quanto mais sucintas forem mantidas as regras, maior a possibilidade de emergirem comportamentos inesperados destas. Afinal, quanto mais detalhadas as definições que compõem a mecânica - que preveem ações, comportamentos e reações dos jogadores – menor a flexibilidade de ação dos jogadores no sistema proposto. Quanto maior a quantidade de regras e componentes para que um jogo possa existir enquanto um sistema funcional, mais difícil será o processo de garantir um campo de ação na experiência da jogada significativa dentro deste sistema.

Recorrendo novamente ao exemplo do jogo de Xadrez, temos um tabuleiro delimitando a movimentação de peças que desempenham ações bastante específicas.

O tabuleiro apresenta casas brancas e casas pretas, sobre as quais são dispostas dezesseis peças para cada um dos dois desafiantes. As peças do Xadrez, se diferenciam pela sua capacidade de movimentação: cavalos se movimentam em L, bispos na diagonal, peões seguem sempre em frente apenas uma casa por vez, etc. Entretanto, as possibilidades de jogadas às quais o jogador tem acesso a partir destas movimentações limitadas são infinitamente variadas.

Prova disso é o fato de que jogadores aficionados do Xadrez, tanto profissionais quanto amadores, dedicam-se ao estudo das jogadas e estratégias praticadas por enxadristas ao longo dos séculos, sem que seja possível exaurir todas as possibilidades de jogadas imagináveis. O Xadrez apresenta regras simples e claras, cuja variedade de comportamentos passíveis de emergir é praticamente infinita.

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Podemos transpor esta mesma lógica para o caso do videogame pois, ainda que tenhamos um ambiente com a complexidade de estruturação e desenvolvimento de um MMORPG19, existe uma determinada quantidade de regras – programáticas, mais do que interpretativas - que estabelecem as leis que imperam neste microuniverso virtual. Dentro destas, o jogador terá liberdade para tomar certas ações que não necessariamente tenham sido previstas de antemão pelos desenvolvedores.

Ainda se tratando dos MMORPGs, o jogador adepto deste gênero de game poderá adotar uma postura exploratória, desvelando o mundo que se apresenta para ele, seus segredos; Poderá, também, interessar-se mais pelas possibilidades narrativas do cenário, retomando o role play (interpretação de papéis) existente nos tradicionais jogos de RPG analógicos e presenciais; talvez se interesse em procurar monstros para combater e subir de nível, adquirindo itens e artefatos poderosos, relacionando-se amigavelmente com outros jogadores para formar um grupo ou uma guilda que se auxilie mutuamente ou, pelo contrário, posicionar-se como um antagonista.

Sendo assim, embora as possibilidades de ação do jogador de um MMORPG sejam limitadas tanto pela mecânica que se apresenta, quanto pela programação que torna possível a elaboração deste ambiente virtual, existem atuações potenciais suficientemente abrangentes para considerarmos este um sistema complexo gerador de comportamentos emergentes.

Para que possamos considerar um videogame como sendo um sistema complexo do qual emergem comportamentos imprevisíveis, devemos retomar a ideia – anteriormente exemplificada – de que este tipo de sistema vai muito além da soma de suas partes. Ao observarmos a própria maneira como os videogames são compostos, isso se torna muito claro, dado o fato de que estes se formam pela integração de efeitos sonoros, trilhas compostas por músicos que visam construir a atmosfera dos cenários bi ou tridimensionalmente apresentados visualmente, dentre outros. O jogador transita neste espaço virtual, quase sempre conduzido por uma narrativa engajante que se apresenta linearmente ou não. Alguns títulos, inclusive, apresentam uma estreita relação com a linguagem cinematográfica, o que faz com que transitem

19 Um MMORPG ou Massive Multiplayer Online Role Playing Game é um subgênero do RPG ou, tradicionalmente, jogo de interpretação de papéis. Os MMORPGs são jogados por uma quantidade massiva de usuários conectados a servidores Online. As propostas de cenário são das mais variadas, abrangendo desde temas de fantasia medieval até ficção científica. 89

entre mídias diversas e recorram ao repertório do jogador para a compreensão de referenciais externos. Cortes, transições, ângulos e tomadas constroem a história que impulsiona o jogador a continuar jogando, avidamente, rumo ao desfecho.

A combinação destes e de muitos outros elementos que se combinam para entregar a obra que é o game, representa muito mais do que sua simples soma. Trata-se de uma integração, uma relação interdisciplinar que resulta num produto inteiramente novo, no qual cada parte se relaciona para oferecer ao jogador uma experiência única, resultando em algo que não seria passível de execução de qualquer outra maneira.

Isoladamente, poderíamos analisar a trilha sonora de um videogame, ou sua arte de conceito, ou sua história, etc. Esta análise, no entanto, diria muito pouco a respeito do jogo colocado em funcionamento. O mesmo vale para as regras do jogo, transcritas na programação responsável pela construção e apresentação do videogame ao jogador. O modo como estas regras são estabelecidas pela programação até pode ser analisado isoladamente, em nome da compreensão da lógica adotada pelo desenvolvedor. Entretanto, será pelo funcionamento deste código, em harmonia com todos os elementos do game, que compreenderemos a obra completa. As regras são descritas de maneira lógica, sucinta, para apresentar o ambiente do jogo da maneira mais funcional possível. Tais regras, tal programação, não preveem todas as possíveis combinações de ações passíveis dos jogadores.

Um videogame é descrito através de um código fonte como qualquer outro software. Tal código, embora seja construído linearmente, pode ser encapsulado e acessado de maneira não linear, conforme a necessidade de rodar algoritmos específicos surja durante seu funcionamento.

Estes acessos podem ser disparados em resposta a uma ação do jogador ou até mesmo ser programados randomicamente, como é o caso do encontro aleatório com inimigos em diversos games.

Um desenvolvedor pode escrever o código de um game no qual, digamos, as funções responsáveis pela configuração do ambiente do jogo e pela movimentação do personagem se apresentam logo no início.

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Posteriormente, o desenvolvedor pode descrever o funcionamento do sistema de batalha e, por fim, alguns diálogos automáticos para o jogador acessar através de NPCs20. Mesmo que estas informações tenham sido ordenadas, da maneira aqui apresentada, no momento de sua criação, isso não significa que o jogador só possa estabelecer um diálogo com um NPC depois de ter entrado em uma batalha. Tais funcionalidades são estabelecidas para acesso conforme a demanda do jogador. Ou seja, mesmo que o código se apresente linearmente, as respostas adequadas costumam ser oferecidas ao jogador conforme a necessidade se apresenta.

Acessos não lineares tornam possível o surgimento de interações combinadas entre os jogadores. Tais ações dependem do contexto, ou seja, podem ser realizadas conforme a utilização combinada de objetos com funções específicas.

Retomando o exemplo do MMORPG, consideremos a existência de personagens com diferentes atributos de ataque e de defesa. Vamos supor, ainda, que um jogador controle um personagem portando um escudo, enquanto seu colega controla um arqueiro. Seria possível, através das forças combinadas destes personagens distintos, arquitetar um modo de ataque efetivo também em defesa, posicionando o escudeiro na dianteira, enquanto o arqueiro lança suas flechas nos inimigos distantes. Estando o arqueiro livre para impedir o avanço dos inimigos com suas flechas, o escudeiro, por sua vez, protegeria ambos contra os ataques daqueles capazes de se aproximar. Esta estratégia só se torna possível graças à combinação dos atributos específicos destes dois personagens. Ora, são programadas as características de diversos tipos de personagens diferentes, mas não são previstas todas as combinações possíveis de ações a serem realizadas pelos jogadores. Estas possibilidades de ação dão margem à jogada significativa.

Numa outra situação, ainda tratando dos personagens que utilizamos como exemplo, vamos supor que o contexto do ataque seja alterado: O arqueiro e o escudeiro seriam colocados num terreno mais baixo do que aquele ocupado pelos seus adversários. A formação que anteriormente se mostrava vantajosa passa a não fazer sentido, uma vez que o escudeiro

20NPCs ou Non-Playable Characters são personagens controlados pela programação do jogo. Os jogadores podem agir junto destes personagens por diversas razões, como coletar informações importantes sobre o enredo a partir de diálogos pré-programados, ou desbloquear missões que podem resultar em algum tipo de ganho, como o de experiência (pontos de experiência ou XP) ou de itens. 91

não seria capaz de impedir ataques vindos de cima – como o de outros arqueiros – enquanto deixa seu companheiro livre. Ambos seriam encurralados com alguma facilidade. Uma vez mais, embora o terreno seja definido programaticamente como uma parte do game, os desenvolvedores não vislumbrarão a infinidade de possibilidades de embates que ocorreriam ali, pelas mais diversas combinações de tropas compostas pelos jogadores. Tais combinações e contextualizações caracterizam um sistema complexo do qual emergem padrões comportamentais diferenciados, em conformidade com a ocasião.

Enquanto o resultado da ação combinada dos personagens faz surgir um padrão que implica na vitória dos jogadores, – no primeiro exemplo – a mesma combinação, reposicionada num novo contexto, muito provavelmente resultará na derrota destes.

Podemos encontrar um outro exemplo de jogada significativa ao observarmos as preferências e particularidades que os jogadores manifestam para aumentar o nível de evolução de seus personagens. Enquanto alguns preferem combater inimigos randômicos encontrados numa mesma área do jogo durante bastante tempo (prática conhecida como Power Levelling21), outros preferem realizar Side Quests22, tarefas paralelas ao enredo principal do jogo, cumprindo desafios propostos por NPCs para ganhar recompensas.

Obviamente, a despeito dos exemplos aqui apresentados, esta emergência de comportamentos pode ocorrer nos mais diversos gêneros de videogames e não apenas nos MMORPGs. Vale a pena acrescentar também que, infelizmente, nem todos os comportamentos emergentes são positivos ou construtivos para o ambiente do jogo. Algumas manifestações podem se mostrar, inclusive, extremamente tóxicas, o que exige um trabalho árduo dos desenvolvedores para manter o balanceamento, especialmente nos jogos de mundo aberto.

21Power Levelling consiste na prática de enfrentar repetidamente inimigos que ofereçam um determinado grau de desafio, até que seja possível superar, com folga, o seu nível. Suponhamos que uma determinada área do game possua inimigos de décimo nível, enquanto o personagem controlado pelo jogador possui nível oito. O praticante de Power Levelling, provavelmente, só se dará por satisfeito ao atingir o nível vinte, conseguindo destruir seus inimigos com um só ataque.

22Uma Side Quest é uma atividade opcional, paralela ao enredo principal do jogo, que pode ser realizada pelo jogador em troca de algum tipo de recompensa: Pontos de experiência (XP), moeda do jogo, artefatos, etc. 92

A emergência de comportamentos tóxicos é facilmente observada em jogos do gênero shooter (jogos de tiro), o que acaba desestimulando rapidamente os jogadores que respeitam o fair play. Geralmente, a culpa deste desequilíbrio é dos próprios desenvolvedores (e aqui não me refiro unicamente aos programadores, mas a toda equipe envolvida no game design e no balanceamento). Se um game oferece, digamos, uma vantagem substancial ao jogador que rouba itens de seus adversários ou age de alguma forma que possa ser considerada antiética pelos seus colegas jogadores, é muito provável que ele continue a adotar este comportamento apesar das reclamações que possa vir a suscitar. Para um bom balanceamento, as regras devem privar pela estabilidade do ambiente proposto pelo jogo, embora também devam oferecer suficiente liberdade de escolha aos jogadores para continuarem interessantes e respeitarem a adoção de jogadas significativas. Seria bastante ingênuo da parte do game designer e dos desenvolvedores em geral, ignorar a possibilidade da emergência de comportamentos nocivos. Se a mecânica de um game torna muito fácil para o personagem subir de nível ao arremessar granadas, matando não somente seus inimigos, mas também seus aliados, não será surpresa se granadas começarem a explodir indiscriminadamente no campo de batalha virtual. A mecânica oferece o ferramental para que os comportamentos possam se configurar no ambiente proposto.

Veremos em mais detalhes, a seguir, os papéis da Mecânica, da Dinâmica e da Estética na estruturação do videogame como um sistema complexo, na emergência de comportamentos e na orquestração de experiências subjetivas.

3. Videogames e as complexidades possíveis – MDA Framework

O MDA framework, foi apresentado à comunidade acadêmica por meio de um artigo intitulado MDA: A Formal Approach to Game Design and Game Research, publicado por Robin Hunicke, Marc LeBlanc e Robert Zubek para descrever formalmente a teoria transmitida durante uma oficina de game design e tuning (ajustes finos no balanceamento do jogo) que teve palco em várias edições da Game Developers Conference (GDC) de San Jose, entre 2001 e 2004.

O objetivo dos autores, ao apresentar este framework, foi a proposição de uma abordagem para a compreensão dos jogos capaz de minimizar a distância entre a prática, que envolve o game design e o desenvolvimento de jogos, a crítica e a área da pesquisa técnica: 93

MDA is a formal approach to understanding games – one which attempts to bridge the gap between game design and development, game criticism, and technical game research. We believe this methodology will clarify and strengthen the iterative processes of developers, scholars and researchers alike, making it easier for all parties to decompose, study and design a broad class of game designs and game artifacts.23 (2016, p.1)

No artigo, os autores explicam que todos os artefatos, digitais ou não, são criados com base em alguma metodologia de design, a qual serve para orientar na condução do processo e assegurar a qualidade do trabalho. As análises iterativas, quantitativas e qualitativas, auxiliam no design de duas formas: Na avaliação do resultado final para refinar a implementação e na reflexão sobre a própria implementação para refinar o resultado (2016, p.1).

Abordando o problema de ambas as perspetivas é possível identificar com maior precisão as interdependências características do processo de elaboração dos jogos, que possuem especificidades tão particulares à sua natureza.

No que diz respeito aos jogos eletrônicos, aos videogames própriamente ditos, este processo de análise é ainda mais importante, dado o fato de que, como vimos, estes se caracterizam como sistemas dos quais é possível a emergência de comportamentos imprevistos. Qualquer alteração que seja realizada no processo de elaboração, resultará numa reação em cadeia que, finalmente, alterará completamente a experiência que se propõe como resultado final.

O processo do desenvolvimento de um game é interdisciplinar por natureza, envolvenvo pessoas oriundas de áreas diversas que, em algum momento, precisarão orientar seus esforços para desenvolver estruturas particulares ao funcionamento deste tipo de produto, focando na experiência que será proporcionada através do ato e jogar. Os autores chamam isso de 'coerência sistemática'(2016, p.1):

23 Em tradução livre da autora: “MDA é uma abordagem formal para o entendimento dos jogos, a qual tenta formar uma ponte sobre a lacuna existente entre game design e desenvolvimento, crítica de jogos e pesquisa técnica de jogos. Nós acreditamos que esta metodologia irá clarear e fortalecer os processos iterativos de desenvolvedores, acadêmicos e pesquisadores, tornando mais fácil para todas as partes decompor, estudar e criar uma ampla classe de designs e artefatos de games. 94

Systematic coherence comes when conflicting constraints are satisfied, and each of the game’s parts can relate to each other as a whole. Decomposing, understanding and creating this coherence requires travel between all levels of abstraction – fluent motion from systems and code, to content and play experience, and back.24

Os videogames, como outros produtos comuns à indústria do entretenimento, são produzidos, consumidos e depois (normalmente) deixados de lado. Sua produção se dá pelo trabalho criativo de produtores independentes ou de empresas especializadas, para chegar nos jogadores, seus consumidores. Entretanto, diferentemente de outros produtos de existência mais disciplinar e linear, – como é o caso dos livros, dos filmes e da música – o consumo dos games costuma ocorrer de maneira um pouco menos previsível. Um livro é lido do começo ao fim (embora livros técnicos possam servir para consultas não-lineares); Um filme é assistido durante um tempo de duração específico, dentro do qual uma mensagem é transmitida; Um game pode ser jogado de diferentes formas, suas informações podem ser acessadas em diferentes ordenamentos, dependendo de sua construção, como já vimos, ele pode gerar padrões de comportamento inesperados. O MDA Framework, formaliza este consumo – não só dos videogames, mas todos jogos, de modo geral – ao analisar três componentes distintos deste produto em especial: as regras, o sistema e a diversão. A estes componentes são relacionadas as contrapartes do design, respectivamente: Mecânica, Dinâmica e Estética.

A ‘Mecânica’ descreve os componentes necessários para a estruturação do jogo, suas regras, sua base. Nos videogames, isto também diz respeito à representação via código e aos algoritmos.

A ‘Dinâmica’ diz respeito ao funcionamento da mecânica em tempo real, sobre a qual os jogadores têm poder de ação e decisão. São levadas em consideração, então, as ações do jogador e as reações previstas pelo sistema em resposta.

24Conforme tradução livre da autora: “A coerência sistemática surge quando restrições em conflito são satisfeitas e cada parte o jogo pode se relacionar uma com a outra num todo. Decompor, compreender e criar esta coerência requer a transição entre todos os níveis de abstração – o movimento fluente dos sistemas e código, para o conteúdo e experiência do jogar, e de volta. 95

A ‘Estética’ corresponde à resposta emocional que se espera evocar no jogador quando este entra em contato com o sistema. Diz respeito aos fatores que envolvem o caráter de diversão do jogo.

É interessante observar o destaque dado pelos autores para a ideia do jogo como artefato, mais do que como meio. Ideia esta considerada, por estes, fundamental para a utilização do framework proposto. O que os autores defendem é que o conteúdo de um jogo seria o seu comportamento e não a mídia que fluiria através deste para o jogador. Assim, pensando nos jogos como artefatos, tornaria possível enxergá-los também enquanto sistemas que constroem comportamentos através da ação do jogador em contato com este. Ora, já defendemos anteriormente os jogos enquanto sistemas – complexos, inclusive - utilizando justamente um sistema comunicacional para exemplificar as diversas forças atuantes na compreensão da transmissão de uma mensagem. Talvez a preocupação apresentada pelos autores, dê-se pelo fato de sua definição a respeito de meio, de mídia, partir da área de engenharia de software. Na área do design, dedicada à solução de problemas (e não ao 'desenho' como superficialmente pode se pressupor), o entendimento da 'mídia' é bastante abrangente. A fala é mídia, o texto é mídia, o código escrito é mídia, a escrita poética é mídia também. Assim sendo, não vemos como um problema o videogame ser enxergado como mídia, haja visto que isso não o impede de ser, também, considerado como um sistema.

O MDA Framework pode ser utilizado para analisar um jogo em duas perspectivas: a do designer e a do jogador (Figura 2). Da perspectiva do designer, a mecânica fornecerá a base para a emergência de um comportamento dinâmico que resultará numa determinada experiência estética. Do ponto de vista do jogador, a estética oferece a ambientação, a temática da experiência que surge numa dinâmica observável, graças à uma estrutura operacional oferecida pela mecânica.

Figura 2 - Perspectivas do designer e do jogador 96

Os autores encorajam a utilização de ambos os pontos de vista para aqueles que trabalham com o desenvolvimento de jogos. (2016, p. 2). É importante, mais do que ter um pensamento voltado para as características estruturais necessárias para a composição do jogo, voltar a questão para a elaboração da experiência estética à qual se pretende atingir. Este pensamento desloca as tradicionais preocupações iniciais de “como será o sistema de pontuação”, “como se dará a movimentação do personagem”, ou ainda, “como serão calculados os danos dos ataques”, para a questão mais importante da produção: “Qual a experiência estética que pretendo oferecer ao jogador?”

Seguindo o exemplo dos autores, que orientaram suas explicações com base na ordem com a qual os jogadores têm contato com o videogame, começaremos trazendo alguns exemplos a partir de jogos que se destacaram pela complexidade de sua experiência estética, passaremos para as questões de dinâmica, para finalmente nos valermos das observações a cerca da mecânica.

a) A complexidade pela Estética

No MDA Framework, a ‘estética’ corresponde ao fator de 'diversão' do jogo. Como visto anteriormente, o que se considera como diversão não necessariamente está associado ao campo do risível. Uma atividade pode entreter e engajar sem se apresentar como engraçada. O autor Marc LeBlanc apresenta, tanto no referido artigo, quanto em seu website25, oito modalidades de divertimento: Sensação, fantasia, narrativa, desafio, companheirismo, descoberta, expressão e submissão.

Numa rápida explanação, compreendemos estas modalidades da seguinte forma: A 'sensação' diz respeito ao jogo como um sentido de prazer (embora o autor não dê muitos detalhes a respeito desta modalidade, penso que este sentido pode estar associado à nossa necessidade de buscar prazer através dos jogos. Isso pode ocorrer por intermédio de uma experiência fantástica que vivenciamos jogando, ou mesmo por recurso catártico); A 'fantasia' se refere ao jogo como faz de conta. Os jogos que se valem desta modalidade oferecem uma experiência na qual o jogador pode se colocar no papel dos personagens, vivenciando a sensação de agência de uma maneira razoavelmente convincente; A 'narrativa' tensiona o drama

25http://ww.8kindsoffun.com 97

como parte imprescindível à estrutura do jogo; A modalidade do 'desafio' vê a experiência do jogo como uma sucessiva superação de obstáculos cujo grau de dificuldade aumenta progressivamente; No que diz respeito ao 'companheirismo' são as relações sociais que devem ser privilegiadas quando se pensa na construção do jogo. Jogos que propõem algum tipo de parceria ou troca de recursos, muitas vezes para enfrentar um desafio em comum, trabalham com esta modalidade; A 'descoberta' faz referência ao jogo como um cenário não mapeado, no qual o jogador precisa explorar para prosseguir com a experiência; A 'expressão' se vale da possibilidade do jogador utilizar o jogo como uma ferramenta de autoconhecimento ou descoberta pessoal. Os jogos que utilizam esta modalidade costumam permitir ao jogador que ele possa jogar de formas diversas, escolher sua postura dentro do jogo e das atividades disponíveis, expressando sua própria identidade e subjetividade dentro do jogo; Finalmente, a 'submissão' corresponde aos jogos que servem como um passatempo. Mais ainda, são jogos que nos fazem perder a noção do tempo, impulsionando nossa vontade de continuar jogando.

Para LeBlanc, estas modalidades cobrem alguns dos fatores de diversão existentes, embora ele admita que possam existir outros que ficaram de fora desta lista. Ainda, tais modalidades podem ser combinadas entre si para compor experiências estéticas mais ou menos complexas.

Para citar um exemplo amplamente conhecido, considere-se um dos títulos da franquia Assassin's Creed, o Revelations26. Neste título é possível controlar, em diferentes momentos do jogo, os personagens Desmond, Ezio e Altaïr, devidamente introduzidos nos títulos anteriores. Embora possa ser jogado como uma obra independente, pelo fato da continuidade narrativa ser muito importante para a série, o jogador perderá bastante do entendimento da histórica caso não esteja familiarizado com os games anteriores.

Assassin's Creed: Revelations é um game de ação em terceira pessoa com elementos de stealth (ações que devem ser realizadas de maneira sorrateira, sem que os inimigos detectem você. Um exemplo são os assassinatos que devem ser cometidos sem que ninguém perceba) e a possibilidade de jogar online numa proposta de mundo aberto.

26Desenvolvido pela Ubisoft Montreal e publicado pela Ubisoft no dia 15 de novembro de 2011. Foi lançado para Playstation 3, Xbox 360 e PC. 98

Com esta breve descrição, podemos considerar que Revelations (bem como a maioria dos títulos da franquia, exceto talvez por alguns desdobramentos para smartphone, que trazem uma proposta diferente se valendo do mesmo cenário), combina as modalidades Sensação, Fantasia, Narrativa, Desafio, Descoberta e, no que diz respeito à versão Online, Companheirismo.

Neste caso específico, os jogadores são impulsionados por duas forças: A narrativa e a competitividade. A história deve engajar suficientemente o jogador, fazendo com que este sinta vontade de continuar jogando e vendo o que acontece aos personagens que controla ou simplesmente com os quais se identifica. Da mesma forma, os desafios estabelecidos e os inimigos a serem derrotados, devem ser apresentados de maneira clara, para que o jogador sinta vontade de sobrepujá-los. É especialmente importante o trabalho de balanceamento, sobre o qual falaremos um pouco mais adiante, que deverá graduar a dificuldade dos obstáculos que não podem ser tão fáceis que o interesse seja perdido e nem tão difíceis a ponto do jogador sentir-se frustrado por não conseguir vencê-los.

A grande questão é, com base no que vimos até então sobre o caráter estético do MDA Framework, podemos dizer que Assassin's Creed: Revelations é um game que traz um determinado grau de complexidade? A resposta que defendemos aqui é: Cognitivamente, sim. As sensações estéticas apresentadas nos oito tipos de diversão são percebidas pelo jogador, pelo “receptor”, se recorrermos àquele tradicional modelo comunicacional. Toda a experiência estruturada pela mecânica e sustentada pela dinâmica, é traduzida em sensação através da estética. Esta, por sua vez, pode ser interpretada de maneiras diversas dependendo da percepção do jogador em questão.

Tais mudanças podem ser influenciadas pelo contexto cultural do jogador, pelo seu repertório anterior, pela qualidade e pela quantidade das experiências vivenciadas por estes. Neste caso os fatores idade, classe social e até mesmo gênero têm muito a contribuir para a maneira como a experiência do jogar é recebida. Por exemplo, um jogador que tenha por volta dos trinta anos de idade, muito provavelmente terá vivenciado experiências de uma qualidade totalmente diferente daquelas experimentadas por um jogador de doze anos.

No que diz respeito à classe social, podemos supor que jogadores com um alto poder aquisitivo têm maior facilidade em adquirir uma variedade de jogos e de novos consoles, o que alimenta a expansão de seu repertório. Quanto ao gênero, embora muitas barreiras venham 99

sendo quebradas ao longo dos anos, ainda resiste o preconceito – até mesmo dentro do ambiente familiar – contra mulheres que jogam, o que pode atrasar a construção do repertório das jogadoras em comparação ao dos jogadores, os quais são incentivados desde a mais tenra idade a jogarem jogos com grande grau de dificuldade.

Em suma, na medida que a experiência estética de Assassin's Creed permite aos jogadores a fruição em níveis diversos: Seja pela apreciação da narrativa, pela exploração dos mapas ou mesmo pelo envolvimento social oferecido pela versão Online, podemos considerar este um game cognitivamente complexo no que diz respeito ao seu caráter estético.

b) A complexidade pela Dinâmica

A dinâmica é o elemento que trabalhará para criar a experiência estética (HUNICKE, LEBLANC & ZUBEK, 2016). Recorrendo ao exemplo anterior do Assassin's Creed: Revelations, podemos considerar que a estética do Desafio é criada pelos obstáculos que aparecem gradativamente em maior nível de dificuldade para o jogador. Neste título, especificamente, os desafios podem ser apresentados por assassinatos mais difíceis de serem realizados sem atrair a atenção, ou mesmo conversas que precisam ser escutadas sem que sua presença seja detectada. Já no caso da estética da Descoberta, o mapa do jogo vai sendo desvelado e você tem áreas cada vez maiores para investigar, com itens que podem ser encontrados e coletados. Neste nível da análise composicional com base no MDA Framework, a dinâmica deve levantar questões claras sobre problemas concretos. O exemplo oferecido pelos autores é o do jogo Monopoly, o nosso Banco Imobiliário.

Um problema existente no Monopoly é o fato de que quanto mais os jogadores que estão na dianteira enriquecem, mais efetivos são os recursos empregados para penalizar os jogadores que ficam para trás. Ou seja, no Monopoly, quando existe um certo distanciamento entre os que estão ganhando e os que estão perdendo, a maneira como o jogo se apresenta apenas dificulta para que os jogadores em dificuldade dêem a volta por cima. Tamanho desequilíbrio apenas faz com que os jogadores que estão perdendo sintam-se frustrados, rompendo com o engajamento e tendo vontade de abandonar o jogo. Seria possível equilibrar esta situação ao propor que a progressão para os jogadores que detém as riquezas fosse mais lenta. Entretanto, - conforme apontado pelos autores – isso faria com que o alinhamento do jogo de criar 'monopólios' fosse perdido. 100

Cabe aqui pesar se o mais importante, neste caso, é tornar um jogo fiel a realidade ou equilibrado e interessante a todos os seus jogadores.

A dinâmica pode ser vista como o comportamento que emerge das ações possíveis ao jogador no exercício do jogo. Por essa razão, a dinâmica está diretamente ligada à existência da complexidade nos jogos.

Como não é possível prever com toda certeza o comportamento que será adotado pelos jogadores, o que se pode fazer é estabelecer estruturas que resultarão em um número possível de decisões. Quanto maior a variedade dessas decisões, maior o potencial de complexidade do jogo em questão. Alguns destes comportamentos, principalmente os indesejados, podem ser identificados através de processos de testes e evitados por ajustes nas ações e ferramentas propostas pela mecânica.

Para citar um exemplo eletrônico do comportamento de abandono de um game por conta da limitação no poder de decisão do jogador, ainda na franquia Assassin's Creed, o título Black Flag27 apresenta mais de uma fase stealth – na qual o jogador precisa realizar alguma ação sem ser detectado – que não pode ser contornada de nenhuma forma. Enquanto o jogador não conseguir realizar a missão sem ser visto, o jogo não progride. Mesmo que o personagem seja um assassino hábil, o jogador não pode realizar um confronto direto. Não existem caminhos alternativos que ele possa fazer para atingir seu objetivo e, em algumas situações, ele não pode matar seus inimigos com armas de longa distância. Nesse aspecto, não há jogada significativa, mas sim um recurso de roteiro linear, o que, por si só não seria um problema, se a proposta não se apresentasse de uma maneira tão truncada.

Delinear ações e ferramentas que tornem possível a emergência de comportamentos complexos é trabalho da mecânica, como veremos a seguir.

27Assassin's Creed IV: Black Flag foi desenvolvido pela Ubisoft Montreal e lançado pela Ubisoft em outubro de 2013. Com o mesmo gênero mesclando ação e aventura com stealth dos outros títulos, Black Flag traz como cenário a época dourada da pirataria no início do século XVIII. O título foi lançado para PC (Windows), PlayStation 3 e 4, Xbox 360 e One, bem como Wii U. 101

c) A complexidade pela Mecânica

Todos os mecanismos de controle disponibilizados para o jogador, com o intuito do desenvolvimento da experiência de jogo, fazem parte da mecânica. Isso inclui ações e comportamentos (mais os designados que os emergentes, embora tenhamos de contar com o surgimento destes), junto de todo o conteúdo do jogo, que pode ser separado em fases, recursos, sistema de batalha, pontuação, etc. Todos estes componentes, combinados na mecânica do jogo são o suporte da dinâmica do gameplay28 (HUNICKE, LEBLANC & ZUBEK, 2016).

Pode parecer um pouco obscuro diferenciar os três componentes do MDA Framework, especialmente no que diz respeito à dinâmica e à mecânica, que se entrelaçam de uma maneira muito próxima. Entretanto, a critério de exemplo, podemos dizer que um jogo como o Assassin's Creed: Revelations possui como mecânica: Habilidades de escalada, embate físico, uso de armas, etc. Estes podem produzir, como dinâmica, o uso estratégico de pontos do mapa (modalidade estética da Descoberta) para preparar armadilhas, realizando assassinatos mais eficientes.

O mesmo vale, como já vimos, para jogos analógicos. Um exemplo seria o jogo de Poker que, como muitos outros jogos de carta, possui mecânicas de embaralhamento das cartas e de realização de apostas, das quais pode vir a emergir uma dinâmica de blefe. Este tipo de comportamento, potencializado pela mecânica, embora emergente e espontâneo por parte do jogador, é o que tanto nos interessa no entendimento dos jogos como sistemas complexos.

Anteriormente, vimos alguns problemas identificados na dinâmica estabelecida pelos jogadores, tanto no caso do Monopoly, citado pelos autores, quanto no caso do game Assassin's Creed IV: Black Flag. Através de ajustes na mecânica destes jogos, ou seja, na parte estrutural destes, é possível balancear os resultados da dinâmica.

No que diz respeito aos problemas apresentados pelos autores, o Monopoly apresenta um distanciamento crescente entre jogadores que estão ganhando (os que detém a

28Parece haver uma discordância na tradução do termo gameplay para o português brasileiro. Enquanto algumas fontes chamam o gameplay de “jogabilidade”, esta associação seria errônea, dada a existência de um termo para se referir à jogabilidade em inglês: playability. Até o presente momento, não parece coerente tentar traduzir a terminologia que se refere mais à dinâmica comportamental do jogo do que à maneira como ele é jogado, ou ao funcionamento por suas regras, o que diria respeito à jogabilidade. 102

maior parte da riqueza do jogo), e os jogadores que estão perdendo (os que seriam pobres). Vimos que isto desmotiva o jogador que está perdendo, já que há chances cada vez menores de reverter seu quadro. Além disso a partida é muito demorada, o que torna um jogo sem grandes reviravoltas ainda mais massante. São sugeridas algumas modificações na mecânica por parte dos autores do MDA Framework: A inclusão de bônus ou subsídios para os jogadores “pobres”, - os que estão perdendo e não conseguem acumular riquezas no jogo - bem como penalidades e taxas para os jogadores “ricos”. Estas taxas poderiam ser calculadas, segundo eles, quando os jogadores realizam ações específicas, como sair da cadeia ou ultrapassar um determinado limite no seu monopólio. No que diz respeito à duração do jogo, poderiam ser utilizados mecanismos de pressão sobre o uso do tempo, para adiantar as jogadas. Todas essas propostas de alterações na mecânica ofereceriam melhorias significativas no balanceamento do jogo, diminuindo o distanciamento entre os jogadores que estão perdendo e os vencedores, o que motivaria a todos os envolvidos.

Quanto ao problema apresentado na dinâmica de Assassin's Creed IV: Black Flag, vimos que, em determinadas fases, o jogador não possui outra opção senão permanecer incógnito e indetectável ao realizar nocautes ou assassinatos, o que desconsidera o direito à jogada significativa por parte do jogador, o qual pode querer simplesmente assassinar o maior número de inimigos possíveis para atingir seus objetivos. Seria compreensível, até certo ponto, que o jogo não permitisse essas ações em determinados trechos do jogo pela coerência da narrativa apresentada. Entretanto, o protagonista é capaz de assassinar transeuntes comuns, pacíficos e indefesos, sem que isso cause o fim do jogo imediatamente. Assim sendo, deveriam ser oferecidas opções de jogadas significativas, tais como: O jogador poder tomar um caminho diferente para chegar ao seu destino final, poder matar ou nocautear seus inimigos e sair correndo, poder usar armas tranquilizantes à distância para atordoar seus inimigos e seguir seu caminho - como é possível fazer nas demais fases do jogo. Vale salientar que, se existe uma preocupação real quanto à coerência narrativa do game em face às decisões tomadas pelo jogador, é possível programar diferentes consequências para as ações selecionadas. Um jogador que opte por resolver seus problemas sempre matando seus inimigos, por exemplo, poderia ser visto como alguém a ser temido, um companheiro imprevisível, mais do que como um assassino competente e calculista.

Note-se que os problemas aqui identificados são o resultado de reflexões por parte de jogadores que tiveram contato com o produto final. Desequilíbrios na mecânica são graves e podem fazer com que toda a dinâmica degrade e a estética simplesmente não consiga ser 103

experienciada pelo jogador. Problemas de balanceamento devem ser detectados o quanto antes, para evitar o retrabalho e o fracasso que, quase sempre, envolvem a perda de muito tempo e dinheiro.

Para compreender melhor estas e outras procupações envolvidas na produção de games, passaremos à compreensão do processo de criação. A este ponto do trabalho, espera-se que tenha se tornado clara a defesa de que os videogames, enquanto sistemas complexos dos quais emergem comportamentos imprevistos, são capazes de oferecer experiências estéticas em consonância com a subjetividade do jogador – a partir da proposição de situações em que seja possível fazer uso da ‘jogada significativa. Estes produtos, são construídos com o intuito de se relacionarem com um público – mais ou menos amplo – e de se fazerem entender. Vimos que é característico dos jogos a definição de objetivos claros, de modo que, mesmo os games que colocam o jogador na situação de desorientação, cumprem o seu papel - desde que o façam propositalmente.

O compromisso com a entrega de uma experiencia coerente para o público é firmado durante o processo criativo, para que se garanta a aproximação entre o produto e o jogador. Tal compromisso nem sempre é firmado na elaboração de outras expressões artísticas, razão pela qual a familiaridade com estas, costume ficar relegada mais à crítica especializada e à academia do que àqueles que estão fora desta esfera.

Em razão do entendimento da produção de games, veremos agora como se desenrola o processo de criação partindo do método iterativo. O mais indicado para o sucesso na aplicação deste framework.

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VI. PROCESSO DE CRIAÇÃO

Com base nas considerações a respeito do Framework MDA, bem como na discussão anterior a respeito dos conceitos de complexidade e emergência, pudemos compreender a importância da proposição de jogadas significativas no desenvolvimento dos jogos, sejam estes analógicos ou não. Se existe a pretensão de se desenvolver um jogo que seja compreendido como um sistema complexo, há que se elaborar ações que respeitem (dentro dos limites possíveis impostos pelo meio), a subjetividade do jogador, oferecendo a ele um número razoável de escolhas. O jogo se desvela como um espaço de exploração que deve ser suficientemente flexível para a realização das jogadas significativas.

Caso o jogo em questão tenha sido projetado como um autêntico sistema complexo, propiciador de comportamentos emergentes, o jogador será envolvido, engajado, pelas oportunidades de realização de jogadas significativas. Tal obra, mostrará mais potencial para manter o interesse do jogador por extensos períodos de tempo, na medida em que este poderá realizar diferentes combinações de ações e estratégias para a obtenção de resultados dos mais variados.

Obviamente, o desenvolvimento de um jogo com este grau de equilíbrio não é puramente intuitivo. Ao contrário, envolve a aplicação de metodologias de trabalho elaboradas ao longo de anos de experiências documentadas e compartilhadas por designers do mundo inteiro.

Neste trabalho, defendemos a utilização da metodologia iterativa, que ocorre através de ciclos repetidos de prototipagem, testes e implementação do feedback coletado. De modo geral, a metodologia iterativa adota um modelo com três estágios: Design, protótipo e avaliação. Das metodologias iterativas existentes, a mais conhecida e utilizada pelos desenvolvedores de software é chamada Scrum, que organiza as etapas do projeto em ciclos chamados Sprints.

Como o desenvolvimento de um videogame em muito se assemelha ao desenvolvimento de outros softwares, não é de se surpreender que a metodologia Scrum tenha sido adotada também pelos profissionais desta área.

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Por meio dos referidos ciclos é possível identificar problemas prematuramente, adequando principalmente a mecânica, para a entrega de um resultado estético adequado ao que se propõe logo na definição do conceito. Isto é feito tanto por meio do balanceamento, quanto por meio do que é chamado de tuning, o que seria traduzido ao pé da letra como “sintonização”.

No Brasil, como a prática do design de games é ainda bastante recente em comparação a outros países, o conceito de tuning frequentemente se encontra misturado à ideia de balanceamento.

Tratam-se, de fato, de atividades bastante próximas no processo de ajuste de um jogo. Entretanto, enquanto o balanceamento, normalmente, diz respeito aos ajustes de pontuação, do grau de dificuldade dos desafios propostos ou da estruturação da mecânica própriamente dita, o tuning se refere a ajustes mais sutis que devem ser realizados tanto na mecânica, quanto na dinâmica e na estética.

O vocabulário estético do designer, por exemplo, auxiliará no processo de assegurar que a aplicação dos objetivos de jogo esteja de acordo com os princípios básicos definidos no projeto, elaborado logo no processo inicial de conceituação.

O tuning também não deve ser confundido com os ajustes finais no ‘material’ do jogo, chamado de polishing, ou “polimento”. Estes retoques finais garantem a entrega de um conteúdo refinado para o melhor aproveitamento do jogador que vivenciará a experiência do jogo.

Por meio da realização de testes controlados, com usuários que representem o público-alvo dos jogos em questão, emergem modelos dinâmicos que servirão, convenientemente, como identificadores dos pontos problemáticos que precisam ser revistos.

Uma análise comum aos criadores de boardgames (ou jogos de tabuleiro) e que pode ser consultada a partir de sites específicos29 é a da probabilidade de rolagem de dados. A imagem a seguir (Figura 3) apresenta as curvas de probabilidade dos resultados para rolagens de três dados com quatro (preto), seis (amarelo), oito (azul) e dez lados (verde).

29A página http://anydice.com apresenta uma calculadora que cria tabelas e gráficos estatísticos para o número de dados que o usuário escolher, com a quantidade de faces escolhidas e até mesmo a possibilidade de somar modificadores (o que é bastante útil para sistemas de batalha em jogos como os de RPG). 106

Figura 3 - Gráfico de probabilidade de rolagens

Este tipo de análise é importante para se considerar a progressão do jogo, a movimentação das peças controladas pelos jogadores, o grau de dificuldade dos inimigos enfrentados por meio de rolagens de dados, em suma, todos os fatores de um jogo de tabuleiro que devem ser decididos por este recurso randômico.

Com tantos detalhes para se levar em conta, é compreensível a necessidade (muitas vezes ignorada principalmente por designers iniciantes) de se documentar o projeto. O GDD ou Game Design Document, é o recurso por meio do qual todos os envolvidos no processo de desenvolvimento têm acesso às informações que estabelecem as etapas de produção do jogo, seus objetivos, dentre outros. Trazendo a discussão para o campo das artes, o GDD poderia ser comparado com o Memorial da Obra. Em ambos os casos, há uma certa resistência em traduzir a expressão criativa para o caráter documental, visto como engessado. Este preconceito persiste, quase sempre, pelo fato de, tanto artistas quanto game designers, verem tais documentações como uma obrigação penosa e limitadora que, uma vez terminada, jamais será consultada ou atualizada. Nada está mais distante da realidade. Um bom GDD deve se manter em atualização constante. Todas as reuniões, processos de testes e feedbacks devem ser levados em consideração e influenciar no conteúdo do GDD. Ao assegurar o processo e a participação de todos os membros da equipe, numa obra coletiva – como costuma ser o caso do videogame - é possível garantir resultados positivos junto ao público. Obviamente, existem fatores externos que podem influenciar na aceitação da obra, todavia, quanto maior o controle no processo de desenvolvimento e testes, menores as chances do projeto degringolar.

Em suma, é importante entender que propostas originais trazem problemas em potencial difíceis de serem previstos na etapa da documentação. Partir para a execução do 107

projeto com base numa documentação excessivamente detalhada, ao ponto de se tornar restritiva, pode trazer mais problemas do que facilidades, especialmente no caso de propostas inovadoras que precisam ser testadas constantemente e corrigidas. A utilização de explicações em linhas gerais, explicando os objetivos e o funcionamento de cada nível do jogo, torna mais prática a atualização constante da documentação. Isso é especialmente importante na definição da mecânica, que oferecerá a estrutura para a experiência que se visa propor, de modo que precisa ser testada e refinada para entregar o resultado desejado.

Outras preocupações – como a equipe, o tempo e os recursos disponíveis – devem ser levadas em consideração. Suponhamos que, além de propor uma mecânica inovadora, o projeto de um game demande o uso de ferramentas cuja tecnologia não é familiar para a equipe de desenvolvimento. Seria, neste caso, necessário prever no seu cronograma um período de tempo especialmente designado para o aprendizado e a apreensão desta nova tecnologia. Ainda assim, caso a equipe não tenha conseguido dominar suficientemente a ferramenta necessária, sua utilização será mais lenta, podendo resultar, inclusive, em maior ocorrência de erros. Caso esta ferramenta tenha sido adquirida ou licenciada para o projeto e seja mal aproveitada, tal decisão pode representar uma má utilização dos recursos financeiros.

Por essa razão é sensato dizer que o uso de tecnologias recém lançadas ou com as quais a equipe tenha pouco contato, precisa ser estudado e considerado com cuidado pois, na maioria dos casos, o jogador nem ao menos perceberá no resultado final a utilização destes recursos. Normalmente, a inovação percebida pelo jogador está na proposta estética, na dinâmica do jogo e, para os mais atentos, na mecânica que amarra isso tudo de maneira funcional. A interface, a narrativa, o tom do jogo, são percebidos e sentidos, enquanto o engine30 no qual o mesmo foi desenvolvido nem sequer passa pela cabeça da maior parte dos jogadores. Em muitos casos, as tecnologias mais recentemente lançadas podem até mesmo apresentar algumas instabilidades que costumam ser corrigidas em versões posteriores.

30Engines, Game Engines ou “Motores de Jogos”, traduzindo literalmente para o português, são softwares para o desenvolvimento de jogos. Estes softwares podem ser mais ou menos intuitivos. Enquanto alguns apresentam interfaces que não exigem conhecimentos em linguagem de programação, trabalhando com comandos de clicar e arrastar, outros demandam um entendimento mais do que mediano de lógica e de código. 108

Caso o projeto esteja correndo sob a supervisão e a cobrança de uma publisher31, torna-se ainda mais imperativo o cuidado com os prazos. A equipe terá de se responsabilizar pela entrega de um produto final, pronto para a publicação, que atenda à todas as especificações que foram combinadas e oficializadas por meio de contrato prévio. Geralmente, como no momento de firmar o acordo é apresentada a documentação do game, torna-se muito difícil alterar o projeto em pontos que sejam considerados cruciais. Daí a importância de se elaborar uma documentação precisa, porém, não especificista - que não tenha flexibilidade.

Isso vale também para jogos que tenham sido aprovados em editais públicos, algo que vem se tornando cada vez mais comum para impulsionar o desenvolvimento de games no Brasil. Seja no caso de editais que oferecem uma verba fechada para o desenvolvimento ou dos processos que se valem de Leis de Incentivo Fiscal, é importante descrever o projeto suficientemente para que os avaliadores sejam capazes de compreender o que se pretende fazer e qual a justificativa para a proposta. Entretanto, há que se considerar todos os procedimentos de testes que envolvem o desenvolvimento de um game, pela sua natureza emergente (como já vimos). Portanto, o resultado entregue deve estar de acordo com a justificativa, os objetivos e o contexto do projeto, embora possa sofrer alterações sutis com relação ao seu funcionamento para atingir da melhor forma possível o público-alvo.

Em muitos casos, especialmente na cena brasileira de games, os projetos que se concretizam são bancados pela própria equipe. Nesse sentido, existe uma maior flexibilização dos prazos, bem como mais liberdade para a realização das alterações que se mostrarem necessárias. A documentação pode ser alterada sem medo e o único ‘porém’ que tem se mostrado recorrente em vários grupos é o abandono do projeto. Como grupos independentes não costumam estipular uma deadline, postergando a finalização do projeto, ou ainda, - empolgados com a liberdade de modificar o projeto sem prestar contas a nenhum contratante - acabam aumentando mais e mais o escopo de trabalho, o que acaba resultando em trabalhos incompletos.

Nestes casos, a aplicação de uma metodologia iterativa e o estabelecimento de prazos através de um cronograma é ainda mais recomendável. A metodologia iterativa visa estabelecer metas que envolvam todos os participantes do projeto, desde os game designers e

31Publisher seria o equivalente para os jogos do que uma editora é para os livros. Ela irá publicar o jogo desenvolvido pelo estúdio. 109

programadores, até mesmo aos testers (testadores) primários, que podem fazer parte da equipe na detecção de bugs32 (o que não substitui os testes realizados com pessoas externas ao projeto). A cada etapa, os responsáveis devem se ater aos seus respectivos escopos, que representam fragmentações de metas maiores e mais complexas. Este controle torna as tarefas mais fáceis de serem cumpridas e o objetivo mais plausível de ser atingido, passo a passo, o que também evita o retrabalho.

Exemplificando, se a estruturação do código possui problemas e se encontra em fase de elaboração e testes, é desnecessário que os artistas envolvidos no projeto trabalhem na criação dos gráficos que serão utilizados no produto final. Os responsáveis pela programação devem produzir um protótipo minimamente viável com a ajuda dos artistas visuais, – que podem tanto criar gráficos simples e provisórios, quanto buscar recursos disponibilizados gratuitamente Online – visando a realização de uma primeira sessão de testes. Nesta sessão é possível que se identifiquem não apenas problemas com a mecânica do jogo, mas também com a interface, com a proporção dos elementos na tela, o que proporcionará aos artistas visuais informações importantes para serem incorporadas no próximo protótipo. Estes ciclos de testes devem ocorrer até que o produto tenha adquirido a estabilidade necessária para ser finalizado e polido.

É importante compreender que, se o game designer propõe uma experiência estética, que emergirá dinamicamente graças à estruturação de uma mecânica pautada por princípios que possuam alguma falha, todo o projeto precisará sofrer correções. Tais falhas podem ocorrer tanto na programação, quanto na relação entre jogador e interface, no fator de diversão, na compreensão da mensagem que se deseja passar, etc.

A melhor maneira de identificar falhas prontamente e evitar longos processos de retrabalho é estabelecer diversas etapas de testes, sendo que, o primeiro deles deverá ocorrer assim que for produzido um protótipo viável. Este protótipo representa um ambiente provisório, sem gráficos refinados, funcionando a partir de uma programação básica, porém funcional. Com a definição de ciclos de testes e implementação de alterações após a análise do feedback, a metodologia iterativa facilita a detecção e correção de erros. Entretanto, se o projeto já tiver caminhado bastante sem passar por nenhuma fase de testes e os envolvidos no desenvolvimento já tiverem gasto um bom tempo na sua produção, a frustração ao identificar erros será grande.

32 Um bug é um defeito apresentado pelo mal funcionamento de um programa. 110

Será ainda mais difícil abrir mão do que foi criado, mesmo que os resultados dos testes apontem claramente para este caminho.

No que diz respeito ao game design propriamente dito, se as ideias propostas forem conceitualmente frágeis - insustentavelmente difíceis de serem desenvolvidas - o apego pode gerar justificativas quaisquer para evitar alterações de projeto. Embora esta seja uma reação humana compreensível, deve haver humildade e persistência tanto por parte do game designer, quanto de toda a equipe envolvida. Levando em conta os resultados coletados dos processos de teste, o grupo deverá repensar conceitos, buscando o direcionamento correto da proposta. Muitas vezes, retirar o conteúdo problemático não basta, pois o game pode se tornar um produto remendado e sem a visão de uma direção de arte.

No livro Game Design: Theory & Practice, o game designer Richard Rouse, traz relatos basados nas suas experiências profissionais a respeito da teoria e da prática do desenvolvimento de jogos. O autor defende a adoção de um processo orgânico que se assemelha, em muito, à proposta da metodologia iterativa. Um dos procedimentos defendidos pelo autor é que se desenvolva apenas aquilo que é essencialmente necessário para o jogo, em primeiro lugar. Posteriormente, são realizados os passos incrementais, onde o game ganharia mais detalhes e um maior refinamento.

Já vimos que a simplificação das regras propostas pelo jogo, ao contrário de ser um problema, pode representar a liberdade do campo de ação do jogador. Regras simples, se elaboradas com o foco no oferecimento de jogadas significativas, podem ser combinadas e utilizadas em diferentes contextos para entregar uma experiência subjetiva ao jogador. É possível, desta forma, aproveitar o jogo não apenas como um sistema complexo, mas também como um ambiente do qual emergem comportamentos imprevistos.

Mesmo mantendo a simplicidade, podemos criar experiências inovadoras e coerentes. Para tal, é necessário que a equipe – game designer e desenvolvedores – mantenha o foco no estabelecimento de um conjunto de regras que propicie ações combinadas, mudanças contextuais e o relacionamento entre as partes que compõem o sistema.

Para o sucesso do projeto, é imprescindível a compreensão, por parte da equipe como um um todo, do conceito e dos objetivos que regem o jogo. Dessa forma, com foco, é possível encontrar situações problemáticas antecipadamente, para uma correção rápida. 111

Quando todos compreendem o teor da experiência que se pretende propor, a possibilidade do resultado final se mostrar coerente será maior.

Rouse (2005, p. 287) defende que, a melhor maneira de estabelecer um processo de trabalho para o desenvolvimento de games, é através da elaboração de pequenas partes, tarefas fundamentais, até que estas estejam o mais completas possível. Depois desse desenvolvimento essencial será possível evoluir gradualmente para as etapas seguintes da produção. Neste processo, estão previstas as realizações de testes, a coleta do feedback por parte dos jogadores que atuam como testers e a correção de quaisquer falhas que forem identificadas, sejam estas técnicas ou conceituais.

Com a limitação do desenvolvimento de um protótipo, é possível averiguar se a mensagem está sendo transmitida e recebida corretamente, se o funcionamento programático das mecânicas está adequado e se a experiência que se pretende construir para o jogador atinge o efeito pretendido. Com esta base construída, testada, ajustada e reforçada, é possível construir com mais solidez, integrando novos elementos que podem trazer maior profundidade à obra ou apenas acentuar detalhes relevantes.

É comum que, tanto artistas, quanto programadores, prefiram trabalhar de maneira isolada nas tarefas sobre as quais assumem a responsabilidade. Isto se acentua se pensarmos nos grupos de desenvolvimento que se formam pelo globo, graças à facilidade da conexão através de programas de gerenciamento e de videoconferência pela internet. Todavia, mesmo que a possibilidade de trabalhar com colegas distantes possa se mostrar enriquecedora, há que se tomar o cuidado para integrar todos os membros da equipe no conceito comum ao game que se pretende desenvolver.

Mesmo que, num primeiro momento, pareça apenas mais lógico que o artista trabalhe sozinho e que cada programador trabalhe na escrita do código que lhe diz respeito, é importante lembrar que, não havendo união entre a equipe, o conceito do jogo pode ser compreendido de diferentes maneiras, fazendo com que o resultado final se torne uma colcha de retalhos. O GDD é um grande aliado para a visão seja alinhada, desde que trabalhado de maneira dinâmica, com atualizações frequentes. Sua mera leitura e acompanhamento, não substituem reuniões periódicas para a sincronização da equipe.

Após a elaboração e testes do protótipo, com implementação dos acertes da mecânica, da dinâmica e da estética, torna-se possível produzir um pedaço do jogo da maneira 112

mais próxima do resultado final que se pretende apresentar quanto possível. Este protótipo funcional de alta fidelidade, deverá ser avaliado pela equipe com um olhar bastante crítico.

Possivelmente, após as etapas iniciais de prototipagem e testes, a equipe terá adquirido maior maturidade nas suas habilidades de produção, bem como no conhecimento do que seu público deseja. Desta forma, é bastante provável que a equipe esteja capacitada, neste ponto do processo de criação, para julgar se o que foi desenvolvido até então representa o melhor dos seus esforços.

O autor nos relembra da importância de se apresentar uma proposta simples, já que é mais fácil adicionar elementos e aumentar o nível de detalhamento de um projeto originalmente sintético, do que tentar simplificar um projeto desenhado para ser um emaranhado de elementos interconectados.

No que diz respeito à criação de uma fase de um game, quase sempre, a simplificação se refere à alteração de uma mecânica pensada e estruturada programaticamente para oferecer um determinado desafio. A simplificação, além de frustrante para os envolvidos na criação, representaria uma mudança neste desafio e, portanto, no objetivo proposto pelo game.

No Brasil, onde encontramos dificuldades financeiras para a viabilização de projetos culturais, em geral, este tipo de protótipo costuma ser elaborado como uma fase de demonstração, ou ‘demo’. A criação de uma fase demo do projeto pode ser aproveitada por grupos que visam buscar fomento externo para sustentar seu projeto. A apresentação de uma fase completa, com uma mecânica equilibrada e o oferecimento de uma experiência que traga algo de inovador, é a melhor maneira de comprovar a capacidade da equipe, a qualidade de seu trabalho e uma amostra do que a obra se tornará quando finalizada.

Como a fase demo desenvolvida dará o tom da obra e a apresentará para aqueles que tiveram contato com ela, é especialmente importante que se pense cautelosamente qual parte, do game como um todo, deverá ser desenvolvida. Cronologicamente, tendemos a desenvolver a primeira fase do jogo primeiro. Entretanto, é altamente recomendado que o início do trabalho de elaboração seja dado pelo meio do projeto. Rouse (2005, p.288) recomenda esta estratégia com base em sua própria experiência:

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Once you have many of the elements of your game mechanics working and you are happy with them, the next step is to make an entire section of the game that functions just like you want it to play in the final game. In many game genres this means one particular level of the game. You may think you have all of the components of your gameplay functional, but once you actually try to make an entire area playable you will quickly discover what you forgot to implement or failed to anticipate. Concentrate on getting this one level as close to a final state as possible before moving on to the creation of the other levels. If you are observant you will learn many lessons about how level design must work for your particular game throught the creation of this one level, lessons that will help to eliminate the element of guesswork from the creation of the other levels in the game. Once you are done with this level, it will no longer be the best you can do; you will have learned a lot, and subsequent levels you create will be better planned from the beginning. Thought you do not need to throw away this prototype level yet, keep in mind that you should probably scrap it before the game ships.33

Vale dizer que é possível - nos projetos mais simples e que não tenham falhado em passar por todas as etapas de testes - aproveitar mesmo esta fase prototipada para sua incorporação no jogo finalizado, desde que sejam feitos os devidos ajustes para que a qualidade seja mantida e o conjunto final da obra se apresente de maneira coerente.

Além das questões de organização da equipe que, ao desenvolver uma fase no meio do jogo como parte do processo de aprendizagem e avaliação, evolui e passa a trabalhar melhor, deve-se observar que a primeira fase de um game transmite a sensação de como este correrá dali por diante. A primeira fase deve passar, com clareza, a temática, criando a atmosfera adequada dentro da qual se desenrolará o game. Isso é possível de ser feito tanto através da

33Em tradução livre da autora: “Uma vez que você tenha muitos dos elementos da sua mecânica de jogo funcionando e você esteja feliz com eles, o próximo passo é fazer uma seção inteira do jogo que funcione exatamente como você quer vê-la no jogo final. Em muitos gêneros de jogo isso representa um nível (ou uma fase) do jogo em particular. Você pode pensar que tem todos os componentes do seu gameplay funcionais, mas, uma vez que você realmente tente criar uma área jogável inteira, você rapidamente descobrirá o que você esqueceu de implementar e falhou em antecipar. Concentre-se em tornar esta fase o mais próximo de um estado final quanto possível antes de seguir em frente com a criação das outras fases do jogo. Uma vez que você tiver terminado esta fase, ela não mais será o melhor que você pode fazer; você terá aprendido muito e fases subsequentes que você criar serão melhor planejadas logo do começo. Embora você não precise jogar fora essa fase prototipada ainda, tenha em mente que você provavelmente deverá removê-la antes do lançamento do jogo. 114

estética do jogo, – incluindo os elementos mais óbvios como narrativa, gráficos, efeitos sonoros e música – quanto da dinâmica que se oferece ao jogador e dos elementos disponibilizados pela mecânica. Ou seja, a experiência precisa ser entregue através do equilíbrio adequado dos componentes apresentados pelo MDA Framework, o que só poderá ser feito quando a equipe dominar o processo de criação e tiver se organizado devidamente.

Com base no uso do MDA Framework, espera-se que, antes mesmo do processo de prototipagem, o game designer seja capaz de antecipar como os elementos do game se relacionarão entre si, proporcionando diversas opções de ação para os seus jogadores: Os componentes que serão disponibilizados se complementarão como objetos capazes de proporcionar ações combinadas? Serão estes mesmos objetos passíveis de sofrer alterações contextuais? Das ações realizadas poderão emergir padrões comportamentais? Algum destes padrões poderá se caracterizar como sendo de um comportamento tóxico (que poderá ser danoso para a estabilidade do jogo e/ou para a experiência dos jogadores envolvidos)?

As fases finais do game também deverão receber um cuidado especial, tanto para oferecer uma conclusão consistente da experiência que se constrói, como com o intuito de impressionar ao jogador para que este fique atento a novos lançamentos da equipe que o criou.

Assim sendo, recomenda-se que as fases finais do game sejam desenvolvidas nas etapas mais avançadas do cronograma de trabalho da equipe.

Resolvida a questão da ordem de elaboração das fases e estipuladas as etapas de desenvolvimento, a equipe deverá estar sempre atenta aos problemas que podem ser detectados durante a elaboração da primeira parte do trabalho. É possível que surjam falhas que tenham passado em branco durante a realização dos primeiros testes, ou ainda que, ao agregar novos elementos ao protótipo – até então enxuto – novas questões possam despontar. Por essa razão é necessário realizar novos testes a cada encerramento de ciclo, implementando correções, ajustando e balanceado, mantendo o foco numa entrega com baixos riscos de insucesso.

Prova disso é a necessidade de balanceamento da dificuldade do jogo, dado que as fases precisam ser testadas com públicos diversos dentre o espectro que o game visará atingir. Realizar testes com a própria equipe envolvida no processo de criação não basta, dado que esta mesma equipe já terá se costumado com os desafios propostos, com a navegação e o funcionamento dos comandos do game, bem como, até mesmo, com seus defeitos. É necessário realizar testes com uma amostragem significativa de jogadores que represente o público visado. 115

Estes testes precisam seguir parâmetros claros de controle, tais como: A separação de grupos estereis (que não tenham tido contato uns com os outros) para a realização dos testes antes e depois de implementadas as mudanças identificadas como necessárias; Ou ainda, a observação, sem condução por parte da equipe, de como o jogador se comporta num primeiro contato com o game.

Se possível, estes testes devem ser gravados (com a devida autorização por escrito dos jogadores, resguardando-lhes a imagem pessoal), para futuras análises junto da equipe, o que deverá responder a qualquer dúvida quanto a navegabilidade e a usabilidade da interface do game, bem como a facilidade ou dificuldade do jogador em identificar e aprender intuitivamente - ou por meio de tutorial facilitado e jogável (idealmente) - os controles do game. Disto trata a metodologia iterativa na criação do videogame como um sistema complexo do qual emergem comportamentos imprevistos: Fases de elaboração, seguidas de testes e da implementação das atualizações necessárias.

Vistas, em linhas gerais, algumas das preocupações do processo de criação, veremos, a seguir, as divisões correspondentes às etapas de desenvolvimento dos games. Esta visão será dada segundo o ponto de vista do produtor, um papel (coerente com a visão de Canclini, que já vimos) que pode ser assumido pelo próprio game designer quando o projeto ocorre em menor escala. O produtor pode ser também o desenvolvedor, o artista gráfico, etc, assumindo papéis diversos para dar conta de lançar a obra em questão.

1. Conceituação

O produtor pode trabalhar tanto para uma empresa de publishing, quanto para uma desenvolvedora - ou estúdio - num processo que é coberto por cinco etapas: O conceito (ou processo de conceituação), a pré-produção, a produção, a pós-produção e o aftermarket (o que corresponde ao trabalho efetuado depois do game ser lançado no mercado). Cobriremos, com base na experiência profissional compartilhada por Tom Sloper34 (2010) no texto Game

34Tom Sloper é professor da USC – University of Southern California, designer e produtor de games há mais de 30 anos, com trabalhos lançados para a maior parte de consoles de 2600, 7800 e Vectrex até Playstation, Xbox 360, e DS, além de títulos para PC, Mac, Internet e IPTV. Sloper já trabalhou para a Sega, Atari, Activision e Yahoo. Para mais informações pode-se acessar o diretório da universidade através do endereço 116

Production and Project Management, as quatro primeiras etapas, sendo que as questões pertinentes ao aftermarket serão abordadas junto da etapa de pós-produção.

Como as informações sobre esta ultima etapa são voltadas a uma especialidade da área de marketing, não é do interesse desta pesquisa o aprofundamento neste tema.

Quando o produtor, ou mesmo o estúdio contratado para desenvolver um game, estabelecem o acordo com uma publisher, geralmente é esta quem define o conceito que orientará o projeto.

É comum que, em se tratando de games primariamente mercadológicos, o conceito seja definido de uma maneira lógica, pautada por pesquisas de mercado baseadas em títulos que anteriormente foram bem-sucedidos nas suas vendas.

Sloper (2010) cita como exemplo os games que geram sequências e acabam se tornando franquias, bem como aqueles baseados em filmes que foram sucesso de bilheteria. O autor cita, ainda, publishers que detém uma determinada tecnologia e que lançam games para mostrar o que pode ser feito com ela.

Por outro lado, temos o trabalho dos desenvolvedores, designers e estúdios independentes. Embora, de modo geral, estes não recebam apoio financeiro, suas ideias não são tolhidas pelas demandas do mercado. A limitação encontrada por eles é pautada pela falta de tempo e recursos, o que acaba fazendo com que o resultado final da obra seja mais simples do que o dos jogos comerciais.

Isso, não necessariamente, resulta numa experiência inferior em termos de qualidade. O propósito e a entrega são diferentes.

Se valendo de um exemplo hipotético, Slope (2010, p.792) elucida como se daria a demanda da publisher para a desenvolvedora, tendo como objetivo a criação de um game comercial baseado numa fraquia existente:

http://itp.usc.edu/faculty-staff/tom-sloper/. 117

[…] orders have come down that the producer must produce a game based on the company's successful game franchise, Ultimatt Combatt. The producer's job is to produce Ultimatt Combatt III. Certain guidelines are usually handed down to the producer with the assignment. For instance, the game should be an RTS, should use at least a few of the characters from Ultimatt Combatt II, should include an online component, and should add new features inherent on other games that are currently gaining wide consumer acceptance. The producer should create a concept design document at this point.35

Como é possível ver pelo exemplo de Sloper, muitas são as exigências transmitidas pelo contratante na elaboração de um game que tenha sido encomendado. Há necessidade de se atender a um mercado que já se encontra acostumado com propostas reforçadas título após título, o que torna arriscado partir para a inovação. É comum que se cobre novidades nos jogos que são encontrados no mercado, entretanto, é ainda mais comum ver como os títulos que fogem ao ‘lugar comum’ são rechaçados pelos consumidores acostumados a alguns clichés. Estrategicamente, as publishers não deixam de inovar por falta de imaginação ou de profissionais criativos ao seu dispor, mas pelo temor da recepção negativa de seus consumidores.

No campo dos jogos independentes vemos que existe uma maior liberdade nesse sentido. O receio é menor, pois não há muito o que se perder. É no campo independente que vemos grandes mudanças drásticas ocorrendo, principalmente, no conteúdo dos games, com o surgimento de títulos que trazem à tona discussões de teor político e social, bem como críticas satíricas até mesmo à própria indústria dos jogos.

Os pequenos estúdios e profissionais autônomos que buscam por algum tipo de fomento, como é o caso das Leis de Incentivo Fiscal, encontram-se no meio termo entre a satisfação do mercado e a liberdade (se é que podemos chamar assim) criativa. Buscam o

35Em tradução livre pela autora: […] “recebemos ordens de que o produtor deverá produzir um jogo baseado na franquia de sucesso da companhia, Ultimatt Combatt. O trabalho do produtor é produzir o Ultimatt Combatt III. Algumas orientações são transmitidas ao produtor com a tarefa. Por exemplo, o jogo deverá ser um RTS (Real-time strategy, ou Estratégia em tempo real), deverá usar ao menos alguns dos personagens de Ultimatt Combatt II, deverá incluir um componente online e adicionar novas características inerentes a outros jogos que estejam ganhando amplamente a aceitação dos consumidores. O produtor deverá criar um documento de design de conceito partindo disto. ” 118

desenvolvimento de um mercado de games preocupado também com a qualidade de suas produções enquanto bens culturais. Estão sujeitos à recepção do público e da crítica, bem como à opinião dos pareceristas que avaliam seus projetos.

Se selecionados para figurar através de alguma lei de incentivo, deverão convencer aos seus patrocinadores de que seu projeto é capaz de trazer algum tipo de benefício para a imagem de sua empresa, associando-a a algo positivo perante à sociedade.

Realizando a devida captação de recursos, deverão prestar contas de tudo o que foi feito, prevendo uma contrapartida social.

Podemos resumir o panorama da criação de jogos, sua relação com o fomento e suas respectivas responsabilidades da seguinte forma:

Liberdades Limitações Responsabilidades Desenvolvedora Possui recursos Não possui grandes Responde aos seus Consolidada financeiros para liberdades cria- contratantes, acio- contratar quantos tivas, pois atende nistas, investidores e profissionais forem diretamente à consumidores mais necessários, comprar publisher ou às fiéis. tecnologia de ponta e demandas de mer- contratar empresas cado. Estrategica- terceirizadas mente, produz especializadas. aquilo agrada à maioria do público comprador. Produtora cultural Quando consegue Suas propostas Prestação de contas, ou profissional fomento (seja de um devem respeitar o transparência, contra- autônomo investidor ou por direcionamento dos partida social, atenção edital), é capaz de editais. Está sujeito e respeito ao que foi contratar profissio- à aprovação de previamente especifi- nais que garantam o pareceristas que cado e aceito via sucesso do resultado não possuem projeto por escrito. final. Dependendo experiência com do investimento en- games. Ao traba- volvido, consegue lhar por Lei de entregar um resulta- Incentivo Fiscal, do de excelente deverá captar re- qualidade, graças às cursos de patroci- forças profissionais nadores, cujos envolvidas. interesses são: O abatimento de im- postos e a visibi- lidade positiva de sua marca. 119

Liberdades Limitações Responsabilidades Estúdio ou artista A liberdade criativa A verba é o maior Estúdios e artistas Independente é enorme. limitador dos independentes só Especialmente no artistas e estúdios estão sujeitos às que diz respeito ao independentes, mesmas leis nacionais conteúdo. Desde que seguida pela falta e internacio-nais que não sejam infringi- de tempo. Haja quaisquer outros das leis de copyright visto que a maioria grupos e cidadãos. ou que o game destes criadores Como não recebem (como qualquer possui algum fomento externo, não outro produto emprego para seu estão sujeitos a prestar midiático) não faça sustento enquanto contas ou responder apologia ao crime, produz games nas por mudanças de pro- incorra em difama- horas vagas. Isto jeto. Entretanto, isto ção, etc., o conteúdo faz com que os também significa que pode ser o mais projetos costumem eles não pos-suem váriado, sem neces- se apresentar tecni- prazos ou cobranças sariamente se preo- camente mais sim- que os façam seguir cupar em agradar ao ples de serem em frente com mercado. executados. trabalho que, frequen- temente, acaba sendo abandonado antes de sua conclusão. Tabela 1 - Relações entre fomento e responsabilidade das desenvolvedoras

Vale salientar que a divisão realizada nesta tabela – criada apenas a critério de esclarecimento - não pode ser tomada como um consenso. Há muitos estúdios autointitulados independentes que atuam com o apoio de grandes empresas ou que são incentivados pelo governo e pela indústria. Isso ocorre tanto no Brasil, quanto no exterior. Neste trabalho, não nos interessa abordar a questão do uso da terminologia 'indie' ou 'independente', segundo o que é considerado correto por esses ou aqueles defensores de seu respectivo ponto de vista. Entendemos, com a finalidade da simplificação, como “artistas independentes” ou “estúdios independentes”, aqueles que desenvolvem obras sem nenhum tipo de fomento externo, com base, unicamente, em seus próprios recursos e esforços. Chamamos de “profissionais autônomos” ou “produtoras culturais”, pessoas físicas e jurídicas, respectivamente, que recebem algum tipo de apoio externo aos seus próprios recursos financeiros para o desenvolvimento de seus trabalhos.

O documento de conceito pode ser escrito tanto pelo produtor, quanto pelo game designer, o qual, por sua vez, pode ser interno ao projeto ou contratado como consultor sob um termo de confidencialidade. O propósito deste documento é o de comunicar a visão do game 120

para que todos os envolvidos consigam compreendê-la. De modo geral, deve conter a história completa do game, bem como seus cenários, o desenvolvimento da personalidade e a aparência de cada personagem. Deve, ainda, especificar como será a interface e como se desenrolarão os níveis, as fases, com suas possíveis graduações de dificuldade (que serão balanceadas por meio de testes durante o desenvolvimento, posteriormente).

No que diz respeito a games primariamente mercadológicos, este documento deve trazer uma breve análise dos concorrentes, apontando para opiniões de revistas especializadas e comentários de jogadores que representem seu público-alvo. O intuito é compreender o porquê da preferência destes pelos títulos concorrentes, apresentando uma solução para aumentar o interesse no produto proposto. Quando se trata de um produto licenciado, há necessidade de discutir cada passo com o detentor da marca, antes da aprovação final do documento. O nome do game também será definido neste momento, embora, por razões mercadológicas, ele possa ser alterado antes do lançamento.

De posse destes elementos principais, é necessário produzir um sumário executivo para apresentar aos investidores ou diretores da companhia. Esta apresentação é chamada de green light meeting (algo como “reunião de sinal verde”) e, nas companhias que fazem parte do circuito comercial da indústria de games, costuma contar com a presença dos representantes da publisher, executivos da distribuidora, da licenciadora, de vendas, de marketing, de finanças e das divisões internacionais (Sloper, 2010). Após a apresentação, cada um destes participantes comentará suas respectivas preocupações no que diz respeito à área que representam. Neste caso, é importante mostrar o embasamento mercadológico para cada decisão tomada, o que faz com que estes representantes fiquem mais tranquilos quanto as probabilidades de aceitação pelo público. Projetos muito inovadores, - para não dizer 'revolucionários', já que estes não poderiam existir no ambiente da indústria de massa - têm enormes chances de serem cortados por se mostrarem como um investimento muito arriscado.

Caso o projeto receba “sinal verde”, passando a contar com todos os recursos necessários para o desenvolvimento, será o momento de estabelecer um cronograma, um orçamento de produção e de lançamento. Isso poderá ser feito nas fases que veremos a seguir. Quanto ao documento de conceito detalhado, poderá ser incorporado ao GDD posteriormente, para consulta de todos os envolvidos no projeto.

121

2. Pré-produção

Com o conceito do game definido e aprovado (seja pelo contratante, pelos órgãos de fomento ou por acordo entre a própria equipe – em outras realidades), chega o momento de começar a organização com foco nos processos que correrão durante o desenvolvimento. Esta é a ocasião de criar o GDD e selecionar o restante da equipe.

Geralmente, quando se trabalha para uma publisher ou se tem um projeto aprovado por uma Lei de Incentivo Fiscal, é necessário trabalhar com uma documentação que não sofra grandes alterações futuras. Como comentado anteriormente, uma boa documentação deve ser detalhada o suficiente para especificar todas as etapas de trabalho, porém não deve se apresentar de maneira muito restritiva, em especial se ela não puder sofrer alterações após ser aprovada pelos fomentadores do projeto.

Vale mencionar que alguns editais, pela sua abrangência, exigem uma menor quantidade de detalhes com relação ao que precisa ser desenvolvido no projeto. Enquanto editais que possuem um propósito e uma verba específica são bastante precisos quanto ao escopo dos projetos aceitos no processo de inscrição, requisitando, portanto, algo semelhante a um Memorial Descritivo da obra. Esta exigência pode ser coberta pelo desenvolvimento da documentação do conceito e de um cronograma anexo a um orçamento físico-financeiro. Já as Leis de Incentivo Fiscal, que funcionam com base em programas de desenvolvimento cultural, podem vir a demandar até mesmo a elaboração de um protótipo funcional.

Qualquer que seja o caso, pesa na avaliação do projeto o currículo dos envolvidos e o histórico de trabalhos previamente elaborados. Portanto, embora pareça um passo arriscado investir no desenvolvimento do protótipo de um projeto que não se sabe se será aprovado, este tipo de experiência pode contar para a elaboração de um portfólio que trará maior credibilidade ao artista ou produtor quando de sua inscrição em processos futuros.

O GDD pode ser desenvolvido internamente, pelo game designer que faz parte da equipe, ou ainda, por uma empresa de desenvolvimento ou designer freelancer especializado neste tipo de atividade. Normalmente, o risco em se trabalhar com profissionais externos - que não estejam envolvidos diretamente no processo de criação do começo ao fim - ocorre por conta das necessidades de alterações que possam surgir e, em consequência disto, pela tomada de decisões por outros profissionais, o que pode distorcer a proposta original. Entretanto, é compreensível que partes do projeto sejam desenvolvidas separadamente, por questões 122

principalmente financeiras: Projetos grandes seriam muito dispendiosos para as desenvolvedoras se estas tivessem de contratar programadores, designers, artistas, etc., em tempo integral.

Tanto no caso de desenvolvimentos internos, quanto externos, é necessário planejar como será realizada a seleção do time que trabalhará no projeto. A alocação de pessoal interno requere que o produtor desenvolva um plano de pessoal (staffing plan), enquanto contratações externas demandam a criação de um “pacote de oferta” ou “pacote de licitação” (bid package). Em ambos os casos, o essencial é deixar bastante óbvias quais as qualidades buscadas no profissional ou na empresa que atuará no desenvolvimento do projeto.

No plano de pessoal, por exemplo, o produtor deverá estabelecer qual a equipe necessária para o desenvolvimento do projeto e quais as atribuições de cada profissional envolvido neste processo. Deve descrever as atividades que serão desenvolvidas, levando em consideração os detalhes da carga horária e da remuneração envolvidas nesta prestação de serviços. Poderá ser utilizada a mão de obra já existente na empresa, transferida de outras áreas ou pode ser necessário realizar novas contratações.

Em se tratando de jogos independentes (sem fomento externo), pode ser especialmente desafiador engajar trabalhadores voluntários e mantê-los motivados (principalmente quando o projeto em questão é algo a ser desenvolvido no tempo livre dos envolvidos). Ainda assim, é necessário estabelecer papeis bem definidos e selecionar pessoas com habilidades condizentes com as tarefas que serão por elas desempenhadas. Caso seja necessário buscar auxílio fora do seu círculo de contatos pessoal, é extremamente importante deixar claro quando o caráter do trabalho for voluntário ou ainda, caso se trate de um investimento com propósitos comerciais, qual será a porcentagem recebida por cada membro do grupo caso o game consiga obter algum lucro. Infelizmente são comuns os casos de grupos independentes que publicam pretensas vagas de emprego, exigindo uma boa dose de preparo dos candidatos, sem deixar em evidência que o trabalho a se desenvolver seria feito de forma voluntária. Além de fazer com que o grupo em questão se exponha ao ridículo, perdendo qualquer credibilidade em projetos futuros, tal prática consome um tempo precioso de profissionais que buscam uma colocação estável no mercado.

Quando o produtor opta pela contratação de uma entidade externa, o primeiro passo é buscar opiniões de conhecidos ou recomendações confiáveis. Idealmente, para que seja 123

realizada esta transação, o GDD deve estar completo. Entretanto, o que costuma ocorrer é apresentação da documentação de licitação, o bid package.

Como a documentação de licitação contém dados essenciais para a compreensão do projeto por parte da empresa desenvolvedora que o assumiria, é importante o estabelecimento de um contrato de confidencialidade, bem como um NDA ou Nondisclosure Agreement.

It's standard operating procedure for developers to sign confidenciality agreements and NDAs when asked to bid on a project, even when they've gdone projects for the publisher previously. Once the NDA is signed, the producer can share the information with the developer. The producer can tell the developer about the concept verbally, but the developer needs detailed information. (SLOPER: 2010, p. 796)36

Para ser capaz de fazer uma proposta orçamentária, a desenvolvedora precisa conhecer desde o conceito até o posicionamento do game que será produzido. Algumas das questões que devem ser respondidas pelo bid package são: Qual o público-alvo do game? Quais são os concorrentes deste produto? Quantos níveis, personagens, mapas, missões e afins o game terá? Com qual tecnologia o game será desenvolvido? Qual a previsão de lançamento? Quanto se pretende investir no game (ele será um AAA37 ou uma produção mais enxuta)? Some-se as respostas destas perguntas à própria situação da desenvolvedora que deve, não apenas ter equipe e tempo hábil para a realização do projeto, mas também experiência anterior no mesmo escopo daquele que é cotado (grau de complexidade do game, gênero, orçamento, plataforma, etc.). Ou seja, ambos os lados do acordo precisam estar alinhados quanto as demandas e a capacidade de atendimento destas.

36Em tradução livre da autora: “É procedimento padrão para desenvolvedores assinar acordos de confidencialidade e NDAs quando estes participam de concorrências em projetos, mesmo quando eles já trabalharam anteriormente para a publicadora (publisher). Uma vez que o NDA tenha sido assinado, o produtor pode compartilhar a informação com a desenvolvedora. O produtor pode dizer à desenvolvedora sobre o conceito verbalmente, mas a desenvolvedora precisa de informação detalhada. ”

37Games AAA ou triple-A são assim classificados por se tratarem de produções com grandes orçamentos. 124

Como em qualquer licitação ou concorrência, o trabalho de análise é feito dos dois lados. No que diz respeito à publisher, é do interesse trabalhar com uma desenvolvedora que tenha um bom portfólio - com games desenvolvidos dentro do mesmo escopo que o projeto cotado se propõe a atender. Quanto à desenvolvedora, é importante saber orçar um valor justo pelo seu trabalho - competitivo o suficiente para fazer frente a concorrência, porém capaz de remunerar adequadamente todos aqueles que serão mobilizados durante o projeto. Um valor muito alto pode perder a concorrência, entretanto, um valor muito baixo pode ter consequências desastrosas se aprovado pela publisher.

Segundo Sloper (2010), algumas desenvolvedoras podem chegar a pedir royalties sobre as vendas do game. Entretanto, esta prática é pouco comum atualmente, em função dos riscos envolvidos (se o game não vender bem, a desenvolvedora arcará com um rombo orçamentário).

Sejam quais forem os termos do acordo, tão logo o produtor tenha selecionado a desenvolvedora e feito o acerte quanto ao valor que será investido no trabalho, chega o momento de fechar o contrato.

Geralmente, a instituição que possui mais poder (é maior e possui mais capital) é aquela quem dita as regras e estabelece o contrato. Em geral a publisher, enquanto contratante, é quem elabora o contrato, com base na assessoria jurídica da qual dispõe. À desenvolvedora, resta entrar em acordo quanto ao que será desenvolvido - o que costuma envolver a criação de uma fase demo dentro dos parâmetros especificados pela documentação que é anexada. Os detalhes quanto aos prazos de pagamento também são detalhados neste contrato, o que comumente envolve o depósito de um sinal para a desenvolvedora começar a trabalhar. Questões de propriedade intelectual também são especificadas e, quase sempre, a publisher é a detentora destes direitos.

Feitos os devidos acertes, são estabelecidos os marcos do projeto (originalmente chamados de milestones). Dividir o projeto em etapas é recomendado ainda que você esteja trabalhando por conta própria, principalmente por conta da organização necessária à elaboração de um projeto que demanda a gestão de tarefas simultâneas. Esta prática auxilia a manter a motivação durante o desenvolvimento e ter uma noção clara dos prazos, que podem ser reajustados conforme a necessidade. Em se tratando de grandes projetos, é essencial que esta divisão seja planejada com cautela - o volume de trabalho deve ser coerente com a equipe e o 125

tempo disponibilizados, para que não haja surpresas negativas e desacordos por conta da entrega da contratada à contratante. Assim sendo, os marcos precisam não apenas trazer em qual etapa do desenvolvimento o game deve se encontrar em determinada data, mas também abordar de maneira objetiva e específica o que de fato precisa ser desenvolvido até o prazo estipulado.

Figura 4 - Exemplo de um cronograma organizado como gráfico de Gantt

Suponhamos que um marco defina o desenvolvimento completo de uma fase do game com o funcionamento do personagem protagonista. Para que a desenvolvedora não entregue algo diferente do esperado pela publisher, é importante definir por escrito qual seria o funcionamento e todas as ações que envolvem o protagonista: Quais são as movimentações que o personagem precisa fazer? Ele utilizará armas ou itens? O personagem estabelecerá conversas com NPCs? A listagem de todas as possibilidades de ação do personagem influencia diretamente no escopo do trabalho e no prazo de entrega.

É importante que a descrição dos marcos possibilite a qualquer pessoa que faça o acompanhamento (seja do lado da desenvolvedora ou da publisher) a compreensão do escopo de trabalho sem que restem dúvidas. Os termos utilizados devem ser universais ou acordados entre as partes envolvidas. Deve-se levar em consideração que o contrato estabelecido depende de entregas para a realização dos pagamentos e se essas entregas não estão acordadas de maneira clara, é possível que haja discordância sobre o que foi cumprido ou não.

Antes que se comece qualquer tipo de desenvolvimento, é prioritário que todos os marcos tenham sido descritos e aprovados por ambas as partes. Para que seja realizado o pagamento após a conclusão de um marco, é necessário contar com a aprovação do produtor e 126

da própria publisher. Por essa razão, segundo Sloper (2010), tipicamente, o pagamento não é realizado na entrega de cada marco, mas sim conforme a aprovação do material desenvolvido nele. Este detalhe extremamente relevante costuma ser estabelecido por contrato, da mesma forma que se determina também o prazo disponível para que o produtor aprove o marco entregue. O período de aprovação pode variar de um marco para outro, dependendo da quantidade de material a ser avaliado, bem como do seu detalhamento. Se o marco entregar uma fase completa, com muitas ações para serem verificadas, o produtor provavelmente levará mais tempo para dar sua aprovação do que o que seria gasto para explorar um simples cenário navegável sem grandes interações.

Depois da assinatura do contrato, com todos os marcos estabelecidos, a primeira tarefa a ser realizada será o desenvolvimento do TDD (Technical Design Document). Espera- se que, chegado este ponto da negociação, o GDD já esteja completamente pronto. Será a partir dele que a desenvolvedora começará a trabalhar no TDD: “Se podemos considerar o GDD como a definição do problema, o TDD pode ser visto como a declaração da solução. ”38 (BLAIR, 1993 apud SLOPER, 2010).

The purpose of the TDD is to lay the foundation for the programming work, identify the technical challanges and put into place a plan for dealing with them, and to specify what technology will be used, what equipment is needed, and what personnel will be employed in creating the game's code. And, most importantly, to make a detailed task list.39(SLOPER, 2010, p.799)

Como é possível imaginar, o processo de elaboração do TDD, a descrição dos marcos e o estabelecimento de um cronograma, são eventos que estão interligados. Pode ser difícil descrever os marcos sem ter um TDD à disposição. Assim sendo, o autor nos alerta que a ordem dos acontecimentos pode se alterar em decorrência da organização adotada pelas entidades envolvidas no processo.

38Originalmente: “If one regards the GDD as a statement of the problem, the TDD can be viewed as a statement of the solution. ” 39Em tradução livre da autora: “O propósito do TDD é estabelecer a fundação para o trabalho de programação, identificar os desafios técnicos e estabelecer um plano para lidar com eles, especificar qual tecnologia será utilizada, qual equipamento será necessário e qual pessoal será empregado para criar o código do jogo. E, mais importante do que tudo, criar uma detalhada lista de tarefas. ” 127

Particularmente, em se tratando de projetos menores, é sempre recomendável ter o GDD o mais definido quanto possível. Desse modo, será possível traduzir, na linguagem técnica e pragmática do TDD, o que se deseja fazer pelo bem da compreensão de toda a equipe. Desenvolvedores independentes ou pequenos produtores, frequentemente se encontram na situação de terem seus projetos rejeitados ou postergados por tempo indeterminado. Por esta razão, quanto mais detalhada estiver a documentação, maior será a facilidade em resgatar estes trabalhos numa oportunidade futura.

O processo de documentação, longe de ser visto como um esforço perdido, deve ser visto como um tempo investido numa obra que terá o potencial para desenvolvimentos futuros.

Seja qual for a grandeza do projeto, o estabelecimento de um cronograma é essencial para colocar todos os marcos descritos e as tarefas identificadas em datas concretas, levando em consideração possíveis feriados, férias de funcionários e dando margem a possíveis imprevistos. Essa organização, que pode ser feita a partir das mais diversas ferramentas Online (como o Trello40) e Offline (como o Microsoft Excel), deve ser rascunhada regressivamente desde a data de lançamento pretendida pela publisher até o período atual, dando margem para possíveis atrasos.

Dependendo do projeto, alguns produtores podem optar por iniciar o trabalho com o desenvolvimento dos assets - os ‘recursos’ do jogo. Caso a desenvolvedora tenha assets de projetos anteriores, ela poderá reaproveitá-los para começar o processo de programação enquanto, simultaneamente, os modeladores e artistas trabalharão nos recursos necessários à implementação para a versão demo.

Os sonoplastas ou sound designers também poderão trabalhar simultaneamente, haja visto que o andamento de seu trabalho não influencia o processo de programação.

É importante, todavia, manter a atenção para os processos de implementação e testes, evitando qualquer tipo de retrabalho que possa ser desencadeado por uma fase do desenvolvimento 'passando na frente' de outra que precisaria ser verificada.

Isto pode acontecer, por exemplo, com gráficos que sejam finalizados para um trecho do jogo que precise sofrer grandes modificações.

40 https://trello.com/ 128

Ou seja, a divisão do trabalho, se não for bem racionalizada, pode romper por completo com o planejamento estabelecido no cronograma.

Atrasos no lançamento do game representam um grande problema. Um dos pontos críticos do projeto é o da produção e disponibilização da beta41 do game, com todos os recursos implementados e a qualidade que esta etapa demanda.

Num estágio tão próximo do lançamento oficial um atraso pode colocar tudo a perder. Para a publisher, isto significa mais gastos do que o previsto, além de dificuldades com o público que aguarda o lançamento do game anunciado – e algumas vezes já comprou o produto no pré-lançamento – já que é bastante comum trabalhar a divulgação do game antes mesmo deste ser concluído.

Se a desenvolvedora resolver reduzir o tempo de produção para cumprir o prazo, poderá optar por alocar mais funcionários para quebrar as tarefas existentes em pedaços ainda menores. Quando foi apresentado o conceito de peering provou-se que grandes problemas podem ser quebrados em pedaços menores, para serem resolvidos por mais pessoas.

41A versão beta de um game é aquela que ainda está em desenvolvimento e sofrerá alterações antes da versão final ser lançada. Esse versionamento diz respeito às diversas fases de teste que um game pode possuir, começando pela versão alpha, a qual – por se tratar da mais instável – costuma ser testada internamente. Corrigidos os problemas identificados nesta versão, é desenvolvida uma versão closed beta, que será testada tanto pela equipe, quanto por pessoas selecionadas especificamente para esta tarefa. Neste momento é importante ter pessoas que representam o seu público-alvo testando o seu game, para que a recepção do jogo possa ser avaliada, bem como a resposta aos detalhes da interface e à experiência de um modo geral. Obviamente, neste ponto do projeto, se a publisher e a desenvolvedora fizeram seu trabalho corretamente, pautando-se em pesquisas para tomar decisões de projeto, não deve haver surpresas que peçam grandes modificações na estrutura do game. Passada esta etapa de testes, o chamado open beta é aquele com o qual o público terá contato de fato. Jogos online costumam trabalhar com esta versão durante algum tempo, utilizando o feedback dos próprios jogadores para corrigir bugs antes do lançamento comercial. Jogos comercializados em mídias físicas ou que não foram planejados para oferecer uma experiência de multiplay (para que os jogadores possam se enfrentar em rede), não possuem esta versão. Entretanto, alguns jogos comercializados em mídias físicas ou por download em networks específicas para plataformas (como a PlayStation Network ou a Xbox Live), podem atualizar conteúdos através de DLCs (Downloadable Contents). Alguns DLCs podem ser cobrados separadamente do valor do jogo original, prática bastante mal por um bom número de jogadores, que sentem ter comprado um jogo inacabado e que precisa de “pedaços”, pelos quais a empresa está cobrando, para oferecer uma experiência completa. 129

Entretanto, esta prática adiciona complexidade a todo o processo, o que exige um acompanhamento mais próximo e uma integração maior por parte de toda a equipe. Os membros da equipe devem entender perfeitamente quais são suas tarefas e até onde devem seguir no desenvolvimento, para não fazerem os mesmos trabalhos que seus colegas ou deixarem alguma lacuna.

O produtor deve estar atento para a distribuição das tarefas adequadas a cada função e ao melhor uso do tempo de todos os envolvidos. Todavia, somente isto não basta. Manter o foco no essencial é a melhor maneira de utilizar o tempo de desenvolvimento produtivamente. O GDD trará todas as expectativas para o game, tanto as mais fundamentais para a entrega de uma obra funcional, quanto aquelas que adicionarão maior profundidade à experiência e que, havendo necessidade de reduzir o detalhamento do projeto, poderão ser postergadas (talvez até mesmo abandonadas).

Com os objetivos do game bem definidos, o produtor pode analisar o plano de tarefas e alocar times de desenvolvimento para as demandas mais trabalhosas, deixando os elementos de fácil criação e implementação mais para o final do projeto. É papel do produtor da desenvolvedora, fazer a intermediação com o produtor da publisher (quando houver) e com o próprio corpo executivo desta (Figura 5). O produtor deve delegar funções, supervisionando os chefes de cada equipe, embora deva estar atento a todo o ambiente.

Figura 5 - Estrutura de projeto (Imagem adaptada de The Computer Game Design Course) 130

Caso o produtor já tenha alguma experiência anterior, conseguirá identificar os gargalos do projeto facilmente, tomando as decisões necessárias para o processo fluir sem grandes obstáculos.

Como estamos falando de pré-produção, vale salientar que toda esta organização irá influenciar na maneira como o dinheiro investido no projeto será distribuído entre as diversas etapas do processo de desenvolvimento. A publisher tem um budget, um montante de verba que pode ser utilizado para a produção.

Se estivermos falando de um projeto que funcione a partir de Leis de Incentivo, esta premissa ainda é válida, haja visto que o valor apresentado na previsão orçamentária deverá ser respeitado pelo produtor que, em decorrência de seu compromisso, deverá prestar conta destes gastos no balanço final.

Mesmo que estejamos falando de desenvolvedores independentes, pode ser que os participantes decidam levantar uma verba de seus recursos próprios, ou ainda, recorrer a um crowdfunding42. Seja qual for o caso, é necessário ter uma definição de quanto dinheiro será investido no projeto e para onde esse dinheiro irá.

A estrutura de projeto que aqui vem sendo descrita, parte do modelo existente em grandes empresas de desenvolvimento. Como este cenário pode ser considerado o mais volumoso, - tanto no que diz respeito à quantidade de trabalho e de pessoas envolvidas, quanto ao tamanho do investimento financeiro – pareceu interessante partir deste nível de detalhamento e controle para o oferecimento de um panorama realista do processo de desenvolvimento em meio à indútria de games. Dentre as despesas que o budget deve cobrir, estão as seguintes: O salário dos funcionários; A contratação dos prestadores de serviços; A compra de equipamentos, softwares e licenças para o uso de determinadas tecnologias; Despesas com reuniões, deslocamentos, malotes de documentos, consultorias jurídicas, dentre outras.

Esta documentação, como o orçamento de qualquer projeto empresarial, deve se apresentar em detalhes, com explicações dos porquês de cada direcionamento da verba que será utilizada. Para fins de praticidade da consulta, costuma-se oferecer uma versão resumida anexa

42 O termo crowdfunding teve origem segundo o mesmo conceito apresentado para o crowdsourcing. Trata-se do fomento realizado por apoiadores em massa, que se identifiquem com a proposta de um projeto apresentado em plataformas específicas na Internet. Alguns exemplos de plataformas de crowdfunding são: Kickstater, Catarse e Kickante – sendo as duas ultimas brasileiras. 131

ao volume detalhado. Um orçamento bem detalhado, facilitará o processo de análise de lucratividade do projeto (P&L – Profit and Loss Analysis), chamado comumente nas mais diversas áreas do empreendedorismo de ROI (Return On Investment), ou cálculo do retorno sobre o investimento.

Este cálculo serve para avaliar se o investimento no game se paga e chega a gerar lucro. A fórmula é bastante simples: Basta realizar um levantamento dos seus ganhos e deduzir deles a quantidade investida. Este resultado deve ser dividido pelo mesmo número do investimento. No exemplo abaixo (Figura 6), suponhamos que se tenha ganho R$700.000 em vendas de um game no qual foi investido um total de R$500.000. A dedução do investimento sobre o ganho daria um total de R$200.000 que seriam divididos por R$500.000. O valor obtido seria 0,4 o qual se pode transformar em porcentagem multiplicando-se por 100. Neste exemplo, podemos dizer que o retorno sobre o investimento foi de 40%.

Figura 6 - Fórmula do ROI

Para que seja possível apresentar um cálculo correto, é necessário que todas as despesas de projeto estejam descritas no orçamento geral, por mais ínfimas que possam parecer num primeiro momento. Isso envolve não apenas o orçamento do desenvolvimento, mas também os custos com marketing, licenciamento da marca utilizada (se houver), custo de manufatura e logística (no caso de mídias físicas), etc. Para que o cálculo seja realizado antecipadamente, estes valores serão comparados com o total da previsão de vendas que serão geradas pelo produto, razão pela qual é igualmente importante ter uma projeção realista deste número.

É comum vermos empresas dos mais diversos setores anunciando orgulhosas o seu alto faturamento, bem como empresários do mercado de games exibindo quanto seus títulos 132

preferidos faturaram em vendas. Entretanto, a única maneira de saber se um negócio fechou a conta “no positivo”, ou se um título foi um sucesso financeiro para seus produtores, é através da apuração do lucro real. Existem títulos que faturam grandes quantias e que, ainda assim, deixam grandes rombos orçamentários, podendo causar a falência da publisher.

Em suma, de posse de toda a documentação do GDD, TDD, cronograma, orçamento completo coerente com o budget, chega o momento de encerrar a fase de pré-produção para apresentar esta proposta novamente ao comitê (green light comittee), em busca de aprovação. Recebendo o 'sinal verde', é hora de partir para a produção de fato.

3. Produção

De posse de todo o planejamento e com a aprovação de todos os envolvidos, é chegada a hora de colocar a produção em andamento. No desenvolvimento de grandes títulos, que despendem de muito tempo para serem concluídos, os primeiros meses são reservados para a construção do que seria a ‘fundação’ de todo o código. Paralelamente, são desenvolvidos os assets (recursos visuais, sonoros, etc.) que serão utilizados nas primeiras etapas de implementação. Estes recursos servirão aos propósitos do game, mas também terão a importante função de apresentarem uma previsão visual do projeto em andamento. Como a criação do código pode levar algum tempo até ser possível apresentar algum tipo de resultado funcional, o produtor poderá apresentar à publisher uma amostra do que está sendo feito em termos de recursos.

Em projetos menores, é de grande valia a experiência (ou ao menos a noção) na área de programação por parte do produtor. Com este conhecimento será possível acompanhar o trabalho dos programadores com mais propriedade, certificando se o andamento segue conforme os marcos estabelecidos, com as tarefas sendo cumpridas adequadamente.

Caso o produtor não tenha este tipo de experiência, ou ainda, caso se trate de um projeto maior (quando o produtor é mais especializado e a função de supervisão da programação recai sobre um gerente da área), é necessário depositar uma boa dose de confiança naqueles que são responsáveis por esta fatia do projeto. Se a programação não sai no prazo previsto, a apresentação de assets não vai garantir que os pagamentos baseados em marcos continuem sendo realizados. As tarefas precisam caminhar paralelamente. 133

Para que os assets possam ser criados é necessário gerar uma lista de tudo o que poderia ser considerado “arte para o game”. Ora, o que é chamado de “arte” no setor de produção tem um sentido muito mais pragmático do que vimos por aqui em termos conceituais. Neste caso, os recursos de “arte” nada mais são senão todos os aqueles aplicáveis, os quais o diretor de arte deve conseguir identificar a partir do GDD: sprites43, elementos da interface, cinematics44, texturas, etc. Segundo Jim Thompson, Barnaby Berbank-Green e Nic Cusworth (2007), autores de The Computer Game Design Course, a tarefa de desconstruir os elementos do projeto deve ser uma das primeiras realizadas. A ordenação desta produção sob a forma de tarefas é igualmente importante, pois alguns destes recursos serão necessários antes de outros:

One of the earliest tasks in a Project is to perform a breakdown of the assets required in the game. This is na elemento-by-element listo f the actual art contente required for the game design – characters, objects, game mechanics, levels, interface elements and soo n. It form an essential parto f the Game Design Document [...] and part of the production strategy. The asset lis is a catalogue of goals that must be achieved.45

Tal lista deve se apresentar de maneira organizada, contendo informações relevantes para quem for criar cada item, tais como: Quais as dimensões e o formato (extensão) de arquivo o asset deve ter; qual a nomenclatura (dentro da padronização estipulada no projeto) com a qual o asset deverá ser salvo; Onde o asset será utilizado, bem como uma descrição trazendo quaisquer informações relativas à criação (se há necessidade de consultar alguma concept art presente no GDD, por exemplo). O produtor acompanhará o desenvolvimento

43Em computação gráfica, sprite é um objeto bidimensional que pode se apresentar estaticamente ou animado (uma sequencia de sprites, cada um representando um frame de animação), tomando parte numa cena do game. 44Cinematics são animações sobre as quais o jogador não tem interação. Podem ser introdutórias ao game ou cutscenes, cenas que interrompem o controle do jogador sobre o personagem para apresentar alguma informação. 45 Em tradução livre da autora: “Uma das primeiras tarefas num projeto é realizar uma decomposição dos recursos necessário no jogo. Trata-se de uma lista de elemento por elemento do conteúdo de arte necessário para o game design – personagens, objetos, mecânicas de jogo, níveis, elementos de interface e assim por diante. Isto forma uma parte essencial do Game Design Document e parte da estratégia de produção. A lista de assets (recursos) é um catálogo de objetivos que precisam ser atingidos. ” 134

desses recursos de perto, verificando em que data a tarefa de criação foi alocada para determinado profissional, aprovando os rascunhos, fazendo revisões, calculando os ajustes necessários a cada retrabalho, etc.

Deve-se manter o alinhamento com o conceito e a visão original do game, contudo, o produtor (ou o diretor de arte) também deve estar atento e fornecer o feedback adequado a cada rejeição, para que as devidas correções possam ser feitas com facilidade. Uma lista de assets bem elaborada, - com boa descrição - costuma evitar que o trabalho volte, uma vez que o criador conseguirá compreender exatamente o que se espera dele.

Os formatos nos quais os arquivos de assets precisam ser produzidos são decididos durante a elaboração do TDD, haja visto que cada engine demanda um formato de arquivo diferente (seja de recursos 2D, 3D ou sons). Assim, é necessário seguir o que foi estipulado para entregar recursos que possam ser implementados sem maiores problemas.

Com este acompanhamento atencioso, o produtor conseguirá detectar quaisquer dificuldades que venham se construindo pouco a pouco, sendo capaz de propor soluções antes que um cenário problemático se estabeleça com gravidade. Estes pontos críticos, são chamados por Sloper (2010) de “bandeiras vermelhas”, podem significar não apenas problemas de design, mas também pessoais (dinâmica da equipe), ou até mesmo de falta de verba.

Projetos de games, pela sua própria constituição, dependem de equipes multidisciplinares. Já sabemos que, em empresas dos mais diversos setores, sempre há algum tipo de atrito entre os profissionais que trabalham juntos durante algum tempo. Isso não é novidade. As divergências entre as opiniões existentes nas empresas de games podem parecer, talvez, um pouco mais drásticas, por envolverem profissionais das áreas criativa e técnica. A velha rixa entre Exatas e Humanas pode se desenrolar aqui.

É recomendável que o produtor busque inspirar na sua equipe a colaboração e a compreensão. O trabalho dos programadores não ganhará corpo sem a dedicação dos artistas que criarão os recursos visuais e sonoros do game. Por outro lado, sem os esforços dos programadores, os recursos criados pelos artistas, modeladores, sonoplastas, jamais criará vida para se apresentar numa obra única que transmita as sensações pretendidas. É necessário fazer com que toda a equipe compreenda o encontro dos seus empenhos para produzir algo que somente será possível interdisciplinarmente. 135

O mais comum é que as equipes trabalhem separadas, tendo, como ponto centralizador, o produtor. Esta abordagem não está, necessariamente, errada. Pode, contudo, vir a produzir uma obra rasa, em comparação com aquela na qual o produtor tenha trabalhado para fazer com que todos os envolvidos compreendessem os conceitos que se pretende transmitir - partindo de seus diferentes pontos de vista para dar ideias e enriquecer o trabalho de seus colegas com opiniões construtivas. Obviamente, este modelo pode se mostrar bastante desafiador de ser levado a cabo, mesmo por equipes pequenas e, talvez, seja impraticável em equipes muito grandes (games como os mencionados triple-As podem envolver equipes com mais de 300 pessoas - contando com os trabalhadores terceirizados e empresas prestadoras de serviços).

No que diz respeito às equipes desenvolvedoras de projetos independentes, a maior dificuldade, em termos de pessoal, esta em encontrar comprometimento entre parceiros que dediquem parte de seu tempo voluntariamente a um projeto. Coordenar prazos pode ser bastante complicado quando se tem um emprego fixo e se desenvolve um projeto em paralelo. Questões de ordem particular podem surgir em meio ao desenvolvimento do projeto, o qual será posto de lado, caso os envolvidos não estejam verdadeiramente dedicados à sua conclusão. Por isso, não raro, muitos designers, artistas e programadores se viram como podem para criar seus jogos individualmente, no seu próprio ritmo.

Enquanto problemas com o pessoal costumam ser contornáveis, - principalmente no caso das grandes desenvolvedoras que possuem departamentos próprios para lidar com estas questões – problemas de design e financeiros podem ser graves e aparecer interligados. Se o game não for pautado por um projeto claro, com a definição objetiva do tipo de diversão que quer transmitir (a ‘estética’ esperada), pode levar algum tempo até todos os envolvidos perceberem que as decisões tomadas não foram as melhores.

O game pode estar num estágio avançado de desenvolvimento antes dos desenvolvedores, produtores e da própria publisher, perceberem que ele não é divertido. Isso implicará em alterações de projeto que mudarão completamente o escopo de trabalho e o orçamento. Este seria o pior tipo de retrabalho que poderia acontecer.

Por outro lado, o game pode caminhar bem, as entregas estarem em dia com a publisher e os pagamentos, ainda assim, não saírem. As razões podem ser muitas, desde problemas financeiros por parte da contratante, até brechas de contrato que não determinaram 136

as datas de pagamento claramente. Com toda a estrutura que o desenvolvimento de um game voltado para a indústria de massa demanda, esse atraso no pagamento pode romper o fluxo de trabalho - para dizer o mínimo.

Em alguns casos, o ritmo do desenvolvimento vai bem, porém a publisher pode requisitar alterações de projeto. Tais decisões de alteração são motivadas, quase sempre, por uma análise do mercado e da concorrência. Novos atributos podem ser adicionados para tornar o game mais atraente e vendável.

Todos os desenvolvimentos adicionais ou trabalhos que precisarem ser refeitos em decorrência de alterações requisitadas pela publisher são considerados fora do escopo original do cronograma e do orçamento inicial. Assim sendo, não apenas o prazo de lançamento pode ser alterado, como o orçamento precisará ser recalculado. Toda essa atualização, obviamente, precisará ser documentada e aprovada novamente em reunião (green light review), antes de qualquer mudança prática.

Se a burocracia de uma grande empresa pode nos causar espanto, no outro extremo temos a facilidade de alterar o projeto ao nosso bel prazer quando trabalhamos de maneira independente. Todavia, o que pode parecer uma grande vantagem, na verdade pode configurar um problema. Projetos que não são bem definidos inicialmente e sofrem alterações frequentes, costumam ou resultar em produtos mal elaborados, - que se propõem a objetivos diversos, sem atender a nenhum em especial - ou simplesmente não ser concluídos - dadas as infinitas alterações e implementações que surgem a cada nova reunião entre os envolvidos. Que se saliente aqui, uma vez mais, a importância de um bom projeto e de uma boa documentação. Uma vez mais, vale a pena dizer que a documentação deve ser suficientemente flexível e constantemente atualizada. Os objetivos do projeto, no entanto, - sua estética, sua diversão - devem estar claros desde o início.

O produtor não é apenas aquele que acompanha o processo, mas aquele que determina o momento certo para as tarefas serem iniciadas, de acordo com o calendário proposto. Uma vez que a programação tem início, os recursos podem começar a ser desenvolvidos em paralelo, o que inclui a produção dos arquivos de áudio. Enquanto acompanha e identifica os setores problemáticos, o produtor pode aumentar prazos de determinadas tarefas, suprimir de outras, realocando pessoal conforme necessário. Os recursos de som também passam pela sua aprovação e são desenvolvidos conforme a listagem dos 137

recursos necessários. Estes assets incluem efeitos sonoros, música e gravação de voz (fala dos personagens e narrador, se houver). As criações musicais devem respeitar a descrição presente na lista de requisição quanto ao gênero, o ‘clima’ que se pretende criar, a duração da trilha, ao passo que exemplos podem ajudar bastante o compositor – como referências - na sua criação.

Enquanto os diálogos gravados se passam com atores contratados para tal (voice actors), as músicas podem ser licenciadas para utilização no game. É comum que partes tão específicas do game sejam terceirizadas: A gravação de sons e de scripts costuma ser realizada por estúdios especializados, enquanto o próprio roteiro da história e o os diálogos podem ser desenvolvidos por um roteirista contratado unicamente para isso – o processo de gravação deve correr sob acompanhamento do produtor e do roteirista, os quais devem se certificar que a entonação das falas está de acordo com o que se espera do personagem; Músicos, tanto interpretes quanto compositores, podem ser contratados para criar trilhas sonoras para games. Atualmente é bastante comum encontrarmos títulos com trilhas sonoras criadas por grandes compositores que já possuem uma carreira consolidada atendendo estúdios de cinema de Hollywood. Para a surpresa de alguns, mesmo orquestras como a Bratislava Symphony Orchestra46, já gravaram trilhas sonoras para games.

Na esfera dos games independentes, caso não seja possível contar com a parceria de um músico voluntário, existem muitos repositórios de músicas royalty-free e/ou disponíveis sob licença Creative Commons47. O mesmo vale para vários outros tipos de recursos, tais como sprites, efeitos sonoros, personagens e cenários modelados em 3D, etc. Há que se considerar, no planejamento, o tempo que será gasto “garimpando” estes recursos na internet – haja vista a imensa quantidade de materiais disponíveis, dos mais diversos níveis de qualidade. É necessário separar o que melhor serviria ao projeto.

46Em outubro de 2010 foi lançado o título Castlevania Lords of Shadow, para o qual o compositor espanhol, Oscar Araujo, criou a trilha sonora que foi gravada sob a interpretação da Orquestra Sinfônica de Bratislava, na Eslováquia.

47Criada pelo professor Lawrence Lessig, da Universidade de Stanford, a Creative Commons é uma organização sem fins lucrativos que tem por objetivo a expansão e a propagação de obras criativas disponíveis para reutilização por meio de licenças específicas, as CC licenses. Sob licenças de direitos autorais livres os utilizadores podem permitir o compartilhamento e uso de seu trabalho criativo sob condições à sua escolha: Desde CC0 – uma licença que permite o uso total do material publicado, inclusive sem necessidade de atribuição, até CC BY-NC-ND – a qual permite o compartilhamento do trabalho com atribuição ao autor, embora não permita derivações de nenhum tipo, nem utilização comercial. 138

Quando todos os recursos e a programação forem colocados para funcionar em conjunto, chega o momento de atingir o marco que Sloper (2010) chama de “Prova de Conceito” ou “Primeiro Jogável” (First Playable). Neste momento o produto que foi construído pela equipe multidisciplinar, supervisionada pelo produtor, começa a se parecer de fato com um videogame:

The producer has been waiting for this moment to gauge the project's progress. He or she has seen and approved the graphics and sounds, but now the pieces are to be joined together and made interactive. He or she profoundly hopes that the resulting whole will be considerably more than merely the sum of the various parts. It also has to be entertaining and enjoyable.48 (SLOPER: 2010, p. 816)

Este é, de fato, o momento aguardado para que seja posta à prova a capacidade, da equipe e do produtor, de entregar um produto que se apresente com a complexidade da qual falamos anteriormente. Mais do que combinar recursos de diferentes origens, diferentes linguagens, o resultado deve se apresentar como uma previsão do que a experiência deverá entregar para o jogador quando o game atingir sua completude. É possível identificar, a partir deste primeiro game demonstrativo, se a preocupação com a complexidade – caso ela tenha se feito presente na elaboração do conceito – foi respeitada durante o processo de elaboração.

Economicamente, este marco também representa muito para as outras partes envolvidas no processo: Os executivos da publisher, os detentores dos direitos das marcas licenciadas, os responsáveis pelo marketing. Os olhos de todos estes interessados estarão voltados para o que foi produzido, julgando os resultados e decidindo se o caminho tomado se conformou com suas expectativas.

Este é um momento bastante delicado pois, dependendo do resultado apresentado, podem surgir questionamentos quanto às possibilidades de sucesso do projeto e o desempenho do produtor. Antes de mais nada, – ainda que se saiba que não será possível entregar um First Playable excepcional – é importante se certificar de que as principais requisições da publisher

48Em tradução livre da autora: “O produtor esteve esperando por este momento para mensurar o progresso do projeto. Ele, ou ela, tem visto e aprovado os gráficos e sons, mas agora os pedações devem ser unidos e se tornar interativos. Ele, ou ela, espera profundamente que o todo resultante será consideravelmente mais do que a mera soma das várias partes. O resultado também deve ser interessante e agradável. ” 139

estejam presentes e funcionais. Dando pela falta de algum elemento que o cliente considere de destaque para o game, a sensação de incompletude pode parecer ainda maior. Isto posto, o autor apresenta a tática do “dividir para conquistar”, recomendando que os participantes sejam abordados, ao menos inicialmente, em separado.

Permitir que os executivos revisem o jogo individualmente, pode causar uma impressão melhor do que o enfrentamento de todos de uma só vez - quando apenas um comentário negativo pode colocar tudo a perder. O mesmo vale para o contato com o detentor da propriedade intelectual para projetos licenciados. O relacionamento com o detentor da propriedade licenciada deve ser cultivado ao longo de todo o projeto, o que facilitará a aprovação e evitará surpresas indesejáveis na maior parte dos casos. Sobre as armadilhas existentes no desenvolvimento de produtos baseados em obras licenciadas, Berbank-Green, Cusworth e Thompson (2007, p. 171) dizem:

Licensing existing copyrighted material such as a film or a book can seem like a sure-fire winner, especially if the original is popular. Licences like this are, however, extremely expensive. In developing the game you must ensure that you meet existing fans’ expectations, while also attracting gamers. The owner of a licence may retain the right to be involved within the development of the game and dictate what can and cannot be included. They may not agree with your ideas and proposals for a great game. This can be very awkward and not always conducive to the development of a successful game.49

Quando se fala de desenvolvimento para plataformas diversas, como Xbox e PlayStation, também se deve levar em conta a apresentação do projeto para os representantes destas. Enquanto, em menor escala, pequenos produtores e desenvolvedores independentes reclamam da burocracia das plataformas de vendas Online para seus mobile games, o contato com os representantes de consoles pode ser muito mais complicado.

49 Em tradução livre da autora: “Licenciar materiais protegidos pelas leis de direitos autorais, como um filme ou um livro, pode parecer uma maneira de conseguir sucesso garantido, principalmente se a obra original é popular. Licenças assim, entretanto, são extremamente caras. No desenvolvimento do jogo, você deve se assegurar de que atingirá as expectativas dos fãs enquanto atrai jogadores. O detentor da licença pode se ater ao direito de envolvimento no processo de criação do jogo e ditar o que pode ou não ser incluído. Este, pode ou não concordar com suas ideias e propostas para um ótimo jogo. Esta situação pode ser muito estranha, nem sempre conduzindo ao desenvolvimento de um jogo de sucesso. ” 140

O First Playable deve ser apresentado para o representante de interesse e precisa estar suficientemente desenvolvido para empolgá-lo.

Atingindo resultados positivos, o produtor deve manter todos os envolvidos atualizados, incentivando a equipe para aproveitar o impulso e passar à próxima etapa da produção – não se deve relaxar neste ponto do projeto. Sloper (2010) explica que, da mesma forma que podemos dividir a produção de um game em três etapas (pré-produção, produção e pós-produção), também podemos dividir a própria etapa de produção ainda em três partes: produção inicial, produção intermediária e produção final).

A parte da produção inicial se encerraria com a apresentação do First Playable, quando as partes, criadas separadamente, começam a se unir para fazer sentido. A produção intermediária deve acompanhar este impulso positivo, se caracterizando por uma dedicação intensa para atingir as metas, mantendo a qualidade e o ritmo - paralelamente a esta etapa, tem início o trabalho dos responsáveis pelo marketing. A produção final, por sua vez, seria aquela na qual a programação ainda esteja nos ultimos estágios do desenvolvimento, embora todos os recursos necessários já tenham sido produzidos.

Como pudemos perceber, o produtor é um profissional multitarefa, que deve mostrar habilidade para acompanhar diversos processos que ocorrem simultaneamente - supervisionando equipes, lidando com problemas técnicos e pessoais, respondendo a investidores e parceiros dos mais diversos setores. Esta figura é responsável por fazer o projeto acontecer. É quem direciona as forças atuantes através de um objetivo comum, fazendo com que o projeto resulte num produto satisfatório, transmitindo a experiência desejada. O produtor é o que Gui Bonsiepe (2011) chamaria de um designer de processos.

Na produção intermediária, onde está o grosso do desenvolvimento, o produtor pode (e deve, no caso de grandes projetos) delegar funções. Podem ser definidos gerentes de produção das áreas de programação e de artes, para responderem diretamente ao produtor (Figura 5, p. 129). Estes profissionais devem ser confiáveis e acompanhar o cronograma tanto quanto o próprio produtor, se certificando de que as produções serão entregues dentro dos prazos previstos. Se possível, deve-se manter a margem de segurança destes prazos, para o caso de imprevistos que sempre podem ocorrer. Na produção intermediária - especialmente pelo volume do trabalho previsto - existe a maior probabilidade dos problemas que não são identificados rapidamente serem engolfados numa “bola de neve” (Sloper, 2010). Qualquer 141

atraso neste ponto do desenvolvimento, costuma significar um retardamento na data de lançamento. Problemas identificados no processo de design, por exemplo, precisam ser identificados nas fases iniciais do projeto, pois representariam um grande retrabalho numa etapa avançada como esta. Problemas de pessoal podem ser graves, caso um importante membro da equipe de desenvolvimento saia do projeto e outro profissional precise ser contratado e treinado. Quanto às questões técnicas, costumam ser pouco comuns nesta etapa, caso a metodologia iterativa de testes (Figura 7) tenha sido aplicada com seriedade.

TESTES DESIGN

PROTOTIPAGEM

Figura 7- Ciclo de Iteração

Mudanças e qualquer outra forma de aumento do escopo de trabalho devem ser evitadas quanto possível, embora o relacionamento com as sugestões criativas, tanto da equipe de desenvolvimento, quanto dos executivos e do pessoal de marketing (os dois ultimos, especialmente), precise ser mantido diplomaticamente.

No estágio final da produção, todos os assets devem estar prontos e a codificação está a ponto de ser completa. Segundo Sloper (2010), alguns designers de níveis (level designers) podem estar trabalhando na criação de novas fases, sem que isso gere a necessidade de novos assets. Entra em cena o trabalho da equipe de Controle de Qualidade (QA – Quality Assurance), enquanto a mediação com a equipe de marketing (que, como já vimos, está trabalhando ativamente) é feita pelo produtor. Neste momento, muitos projetos que são 142

divulgados com um working title (algo que poderíamos traduzir como “título provisório”), recebem agora seu título definitivo, ao passo que o reforço de marca é trabalhado pela equipe de marketing em suas campanhas. Para a continuidade destas campanhas, aliás, torna-se necessária a produção de materiais condizentes com o atual estágio de desenvolvimento do game. Imagens de tela que mostrem os gráficos definitivos do produto, vídeos mostrando o funcionamento do gameplay e até mesmo entrevistas com parte da equipe, costumam ser captados neste momento.

Sloper (2010), partindo de sua própria experiência numa realidade ainda distante da brasileira, defende a importância da preparação de uma demo para a E3 (Electronic Entertainment Expo). Trata-se da mais destacada feira internacional que traz as tendências e novidades da indústria dos videogames. É importante que a demo esteja suficientemente bem preparada para causar uma boa impressão durante sua apresentação na E3, gerando uma expectativa ainda maior quanto ao seu lançamento.

No Brasil, temos eventos de menor escala que servem ao propósito tanto do lançamento de games, quanto do posicionamento de produtores e desenvolvedores perante o mercado, seus concorrentes e possíveis parceiros.

O evento de maiores proporções - quando do desenvolvimento deste trabalho - é o BGS, ou Brasil Game Show, cuja edição de 2016 contou com mais de 300.000 visitantes e 180 marcas expositoras (nem todas do setor de games, todavia). Segundo o website do próprio evento, a edição de 2015 reuniu mais de 250 empresas cadastradas, propiciando o agendamento de mais de 500 reuniões com foco em negócios.

A fase demo pode ser apresentada e distribuída nos mais diversos canais midáticos: pode sofrer reviews (revisões críticas) por canais especializados, contando com o apoio de influenciadores digitais que podem ajudar a reunir público interessado na espera do lançamento.

Pode, ainda, ser disponibilizada para download tanto nas redes de consoles para as quais o game será portado futuramente (PlayStation Network e Xbox Live), quanto nas plataformas de venda Online e gestão de direitos digitais, como é o caso da Steam.

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4. Pós-produção

Com todos os recursos criados e devidamente integrados à programação do game, neste ponto todos os objetivos de projeto e os requerimentos previstos no processo de design - acordados nas reuniões de aprovação - já devem ter se cumprido. Adentra-se na etapa chamada de pós-produção.

Nesta etapa são realizados os ajustes finais cuja necessidade foi identificada pelos mais recentes testes da equipe de controle de qualidade. Da equipe dedicada ao projeto, restam apenas os programadores, enquanto outros profissionais trataram de ser realocados para novos empreendimentos. A equipe de marketing encaminha a criação do material gráfico necessário para o lançamento - desde a embalagem das mídias físicas até as peças promocionais para veiculação digital. Os departamentos de vendas e operações se preparam para a produção das mídias físicas de acordo com a previsão estipulada das vendas.

Grandes títulos, vendidos internacionalmente, devem passar por um processo chamado de “localização”. Enquanto os games independentes podem ser distribuídos exclusivamente Online, em dois ou mais idiomas diferentes (em geral o inglês costuma ser utilizado como o principal), - geralmente contando com as habilidades de tradução da própria equipe - grandes projetos comerciais precisam ser devidamente localizados. Sloper (2010, p. 824) explica:

At one time, games were merely translated. However, users complained about the poor use of their language. Sometimes, just translating the words doesn't result in an enjoyable play experience. Most American gamers are familiar with butchered English in games (or films) coming from other countries, particularly Asian countries. […] However, American games that are merely translated (rather than localized) for non-English-speaking territories can also generate such snickers.50

50Em tradução livre da autora: “Houve um tempo em que os jogos eram meramente traduzidos. Entretanto, os usuários reclamaram quanto ao mau uso do seu idioma. Algumas vezes, simplesmente traduzir as palavras não resulta numa experiência de jogo satisfatória. Muitos jogadores (norte) americanos são familiares ao Inglês massacrado nos jogos (ou filmes) que vêm de outros países, particularmente dos países asiáticos. Entretanto, jogos (norte) americanos que são simplesmente traduzidos (ao invés de serem localizados) para territórios onde o Inglês não é a linguagem nativa, também podem gerar constrangimentos. 144

Segundo o autor, num cenário ideal, os lançamentos no idioma original e das versões localizadas devem ocorrer simultaneamente (o que é chamado de sim-ship). Contudo, o que costuma ocorrer na realidade é que a versão primária tem seu lançamento antes das versões localizadas.

Quem determina para quais territórios o game será localizado é o departamento internacional da empresa, - no caso dos projetos internos - ou a própria publisher através do contrato - quando o projeto é externo e a desenvolvedora está prestando um serviço.

Os desafios da localização de um game são diversos. Dentre eles, podemos citar a diferença do volume de texto necessário para se transmitir um mesmo significado em idiomas diversos. Em decorrência disto, botões ou áreas da interface que levam texto precisarão ser desenhados para suportar variações de conteúdo. No caso dos idiomas baseados em iconografias, - como é o caso daqueles oriundos do continente asiático - embora ocupem menos espaço para transmitir uma mensagem do que a linguagem fonográfica, são caracterizados por ideogramas com uma grande quantidade de detalhes, o que demanda a utilização do texto num tamanho maior, para garantir a legibilidade.

Existem também as questões relacionadas às gravações dos áudios de diálogos. Os games podem ser legendados, mas como a localização busca transmitir uma experiência completa para o jogador, isso pode significar investir em dublagens. Os riscos ligados à esta prática nos são conhecidos graças às nossas experiências com filmes: Falta de sincronia, pobreza da interpretação e inexperiência dos dubladores, são alguns dos problemas que podem arruinar a dublagem de um game. A tradução preparada para a dublagem não é a mesma realizada para um livro, por exemplo. Tradutores que trabalham em textos que serão dublados precisam ter experiência na escrita de roteiro.

Somado a estes fatores, é sempre importante conhecer o contexto cultural dos países para os quais os games serão localizados. Maneirismos e comportamentos que podem ser aceitáveis no país de origem do game, podem ser considerados ofensivos em outros territórios. O mesmo vale para simbologias e violência gráfica. O que nos leva, também, à questão da classificação etária.

145

The Entertainment Software Rating Board (ESRB) is the non-profit, self-regulatory body that assigns ratings for video games and apps so parents can make informed choices. The ESRB rating system encompasses guidance about age-appropriateness, content, and interactive elements. As part of its self-regulatory role for the the ESRB also enforces industry-adopted advertising guidelines and helps ensure responsible web and mobile privacy practices under its Privacy Certified program. ESRB was established in 1994 by the Entertainment Software Association (ESA). (ESRB, 2016)51

O ESRB é membro da IARC, International Age Rating Coalition, ou Coalisão Internacional de Classificação Etária. Seu sistema de classificação foi desenvolvido com base na consulta de especialistas sobre o desenvolvimento infantil, entrevistas de pais e responsáveis, bem como no estudo de outros sistemas de classificação etária pré-existentes. O sistema classificatório do ESRB age mais como uma sugestão de conteúdo apropriado do que como uma proibição, o que atende melhor às necessidades identificadas junto aos pais e responsáveis.

Tendo em vista o desenvolvimento dos games como produtos interativos, torna-se mais relevante a análise dos potenciais riscos envolvidos na utilização do produto como um todo, do que simplesmente a proibição de determinado conteúdo para certa faixa etária. Por exemplo, algumas interações envolvem o compartilhamento da localização atual do usuário (por meio da ativação do GPS), o que pode ser considerado um risco à segurança do mesmo, principalmente em se tratando de um menor de idade.

O sistema do ESRB funciona em três partes: A Classificação Categórica, que sugere a idade apropriada para cada produto classificado; O Descritor de Conteúdo, que indica qual conteúdo pode ter gerado a classificação; E, por fim, os Elementos Interativos, que avisam ao usuário sobre interações que compartilham informações pessoais ou sua localização.

51Em tradução livre da autora: “O conselho classificatório de software de entretenimento (ESRB) é um corpo sem fins lucrativos, autorregulatório, que atribui classificações para videogames e aplicativos possibilitando aos pais fazerem escolhas conscientes. O sistema de classificação ESRB engloba orientações sobre o que é apropriado para cada idade, conteúdo e elementos interativos. Como parte de seu papel autorregulatório para a indústria dos videogames, o ESRB também faz cumprir orientações adotadas pela indústria quanto à publicidade e ajuda a assegurar a responsabilidade na web e práticas pela privacidade mobile com base no seu programa de Privacidade Certificada. O ESRB foi estabelecido em 1994 pela Associação de Software de Entretenimento (ESA). ” 146

No Brasil, a Classificação Indicativa também faz parte da IARC e é de responsabilidade no Ministério da Justiça e Cidadania do Governo Federal. O objetivo desta classificação etária é o de proteger, tanto crianças, quanto adolescentes, de conteúdos que possam ser prejudiciais ao seu desenvolvimento físico e psíquico - de acordo com os estabelecimentos do Estatuto da Criança e do Adolescente. O Ministério da Justiça e Cidadania dispõe de um Guia Prático de Classificação Indicativa52, elaborado em 2006, que ajuda no entendimento básico das informações necessárias aos produtores de audiovisuais, jogos digitais e RPGs que tenham necessidade de classificar seus conteúdos.

No que diz respeito a jogos e aplicativos, existem dois processos possíveis de classificação: Quando a distribuição é feita em mídia física – CD, DVD, Blue-ray, cartuchos ou afins – a classificação é realizada pelo próprio órgão em até 30 dias, com publicação do resultado no Diário Oficial da União. É necessário o encaminhamento da ficha técnica, de uma sinopse e de uma cópia ou vídeo de gameplay com conteúdos suficientemente abrangentes para que a classificação possa ser realizada. O envio pode ser feito por e-mail ou pelos Correios; No caso da distribuição ser realizada unicamente por meio de download, a classificação pode ser realizada pelo próprio produtor. É necessário seguir, tanto os padrões classificatórios brasileiros, quanto os da IARC, o que possibilita que o game possa ser comercializado tanto em território nacional quanto nos países abrangidos pela classificação internacional.

Como a classificação etária gera diretamente um impacto nas vendas, é importante pensar na adequação do conteúdo ao público-alvo desejado logo no início do projeto, especialmente durante o processo de roteirização e design. Realizar qualquer corte ou adaptação no final do projeto, além de frustrante, mostra um desperdício tanto da verba, quanto do tempo investido no desenvolvimento.

No caso dos games vendidos em mídia física, a classificação etária deve vir na parte da frente da embalagem, facilitando a identificação do conteúdo. Embalagem esta que tem por objetivo conquistar o consumidor e fazê-lo comprar o game disposto na prateleira, devendo, portanto, conter (quase sempre) uma arte representando claramente a temática do game em questão, o logotipo do título e a plataforma para a qual a mídia se destina. O logotipo da publisher costuma vir também na parte da frente da embalagem, enquanto o da desenvolvedora

52O qual pode ser encontrado no seguinte endereço: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao- e-conteudos-de-apoio/publicacoes/comunicacao/guia-pratico-da-classificacao-indicativa 147

normalmente vem na parte de trás - ou pode nem aparecer, dependendo do tipo de contrato realizado entre as partes envolvidas. Ainda na parte de trás da embalagem, são mostradas cenas capturadas diretamente do jogo, apresentando ações que possam ser interessantes para os jogadores que representam o público-alvo. Tendo em vista que o propósito da embalagem é gerar consumo, é bastante comum que sejam criadas diversas versões para apresentação a um grupo focal53.

A maneira como os games têm sido desenvolvidos e vendidos vem alterando as demandas para o seu lançamento. Como a maioria dos games para PC pode ser encontrada para compra, com facilidade, por download em plataformas de venda online, a necessidade de impressão e manufatura de embalagens para estes jogos vem diminuindo cada vez mais. Uma característica particular destas embalagens, é a apresentação dos requerimentos do sistema para que o game possa rodar corretamente. Tais informações ainda são dispostas nas páginas dos games vendidos através das plataformas Online. Muda, também, a facilidade no estorno da compra - quando o game não funciona, apesar do sistema do jogador atender aos requerimentos necessários. Geralmente, em menos de vinte e quatro horas é possível receber seu dinheiro de volta, caso o game comprado não funcione como deveria. Entretanto, o jogador precisa estar atento: As regras das plataformas de venda costumam determinar um limite de quantas horas de jogo o jogador pode ter acumulado para que seja possível realizar a devolução do dinheiro – no geral, um máximo de duas horas.

Um outro elemento que vem caindo em desuso é o manual de instruções. Enquanto nos games do final da década de 80 e boa parte da década de 90 possuíam grandes manuais de instruções (alguns funcionando mais como guias de jogo, do que apenas como manuais), atualmente o que se espera dos games é que o jogador consiga aprender a jogar de maneira empírica – ou seja, ‘simplesmente jogando’. Por meio do conceito ao qual Kevin Werbach (2012) – professor da Universidade da Pensilvania e fundador do Supernova Group, empresa da área de consultoria em tecnologia - chama de scaffolding, os games devem apresentar, pouco a pouco, os controles que o jogador terá de dominar para poder jogar. Os desafios são propostos em grau crescente de dificuldade, dando tempo para que o jogador possa se acostumar antes de as exigências das atividades propostas aumentem. A aplicação prática e correta deste conceito,

53O grupo focal consiste numa técnica de coleta de dados em pesquisas qualitativas utilizada, em especial, pela área de marketing para identificar a resposta de possíveis consumidores ao lançamento de determinados produtos ou peças gráficas. 148

faz com quem manuais extensos sejam facilmente substituídos por mapas de controle que apresentam apenas os comandos básicos do game, de acordo com as características do joystick utilizado pelo console que o jogador possui.

Figura 8 - Controles de Metal Gear Solid 4: Guns of the Patriots para PlayStation 3

Ainda que o setor de marketing tenha preparado todos os itens necessários para a venda, antes que o game possa ser lançado é necessário realizar os ultimos e ajustes finos imprescindíveis para a entrega de um bom produto. A equipe de Controle de Qualidade deverá se certificar da realização os testes finais.

Já vimos que o trabalho de testes tomou diversas etapas até que é chegado este ponto do projeto. Alterações drásticas de projeto já foram identificadas e implementadas há muito tempo. Aqui são considerados os testes necessários para garantir uma entrega mais do que meramente “adequada”. Um produto devidamente refinado e de boa qualidade. Dependendo do tamanho do game e do tempo disponível para este processo (que não costuma ser muito), é necessário envolver um grande número de profissionais ao mesmo tempo. Para que tudo saia dentro do previsto, há necessidade de se elaborar um Plano de Teste. Neste, o escopo do game é analisado com base nas documentações (GDD e TDD), para se estabelecer quanto tempo demoraria o processo de testes e quanto do orçamento seria direcionado para tal. Note-se que, este processo precisa estar previsto logo no início do planejamento geral, ainda que ele vá ocorrer, de fato, apenas no final do desenvolvimento. 149

Existe, no mercado, uma série de softwares destinados ao controle de bugs. Basta saber que, independentemente daquele selecionado pela equipe, o mesmo funcionará como um banco de dados no qual os testers identificarão problemas e os lançarão para serem solucionados. Do outro lado deste processo, os programadores identificarão o que pode ter causado o bug em si e solucionarão o problema, excluindo aquela demanda da lista de tarefas apresentada pelo software.

Para que o processo flua corretamente, é necessário que os dados referentes ao bug estejam devidamente explicitados. Sloper (2010) comenta que alguns dos campos a serem preenchidos quando se reporta um bug são os seguintes: Nome do tester; Status do bug (novo, aberto, fechado); Severidade do bug (fatal, severo, médio, sugestão); Tipo do bug (crash/colapso, glitch/defeito gráfico, etc.); Localização (em que lugar do programa o bug ocorreu); Descrição detalhada do bug, dentre outros.

O autor comenta que o campo mais importante e também o mais difícil de ser preenchido é aquele que deve descrever o que ocorreu. O tester deve comunicar o problema identificado de modo que o programador, ao ler sua descrição, consiga compreender exatamente o que ele quis dizer. Neste caso, deve-se explicar com clareza e objetividade qual o problema, onde ele ocorreu, o que o tester estava fazendo antes deste ocorrer, o que deveria acontecer, o que acabou acontecendo no lugar e porque isso é um problema (neste ultimo caso, ajudando a definir a gravidade da situação descrita).

Sloper explica que a posição do Controle de Qualidade e a do produtor podem ser vistas, num primeiro momento, como antagônicas. O produtor quer ver o game lançado, enquanto a responsabilidade do Controle de Qualidade é a de não deixar o game sair da desenvolvedora enquanto ele não estiver funcionando dentro do esperado. Ao contrário de gerar conflito, esta relação deve ser vista como complementar, dado que o papel do Controle de Qualidade é o de garantir que o game seja colocado nas prateleiras (virtuais ou não) como um bom produto, que venda bem e não cause uma má repercussão. Este também é o desejo do produtor, que quer transmitir, através de seu produto, a experiência arquitetada. Todavia, os testers podem se apresentar perfeccionistas e se ater a detalhes que já foram discutidos em momentos anteriores do projeto. Cabe ao produtor a palavra final sobre quais os bugs que devem ser corrigidos e quais os problemas apresentados que, na realidade, não possuem suficiente gravidade para serem levados em conta a essa altura do projeto. É esperado que, neste momento, a publisher esteja pressionando toda a equipe pelo lançamento do game, então 150

preciosismos devem ser evitados. Na indústria dos games, - e do entretenimento, de modo geral - o papel da publisher é o de se preocupar com as vendas em primeiro lugar, como coloca Sloper (2010, p. 832): “A publisher está no negócio de vender games. Se o game nunca é lançado, o game não pode ser vendido. Se games não são vendidos, os testers, programadores, artistas e produtores não podem continuar recebendo seus contracheques. ”54

Uma vez que o game passe pelo Controle de Qualidade, o departamento de operações é acionado para cuidar da manufatura das cópias físicas - o que envolve a prensagem dos CDs, DVDs ou Blue-Rays, bem como a impressão e montagem das embalagens e quaisquer itens adicionais.

No caso de produções em grande escala, a cotação dos materiais que serão produzidos é feita neste momento e o contrato costuma ser fechado pela publisher. Produtoras menores precisam se preocupar com todo o processo, desde a elaboração até a impressão de materiais, criação de um plano de comunicação e de marketing com a verba que terão em mãos. Não há espaço para despesas de ultima hora.

Dando conta de tudo isso, é o momento de refletir sobre o que foi feito. A prática de escrever um relatório de postmortem55, após a conclusão de um projeto, é extremamente importante para o desenvolvimento do produtor, da equipe e, em muitos casos, para a comunidade desenvolvedora de games em geral, uma vez que este documento pode ser publicado abertamente em canais de interesse.

Esta etapa pode ser vista como uma “autópsia” do game, uma vez que o projeto está fechado, concluído, e não sofrerá mais nenhuma alteração. Seu objetivo é o de refletir sobre os problemas que surgiram no decorrer do desenvolvimento, as soluções encontradas e qual o aprendizado que se pôde tirar deste processo.

54 Originalmente: “The publisher is in business to sell games. If the game is never released, the game can't be sold. If games aren't sold, the testers, programmers, artists, and producers can't continue receiving paychecks. ” 55 Postmortem originalmente significa “após a morte” e diz respeito ao exame realizado por médicos legais para determinar a causa da morte de um indivíduo. Em meio a comunidade desenvolvedora de games, o significado se refere à análise realizada pelos criadores sobre um jogo já finalizado, refletindo sobre o que foi feito durante o projeto, o que deu certo e o que poderia ser melhorado em produções futuras. 151

No capítulo seguinte, serão utilizados de documentos publicados por desenvolvedores, bem como entrevistas onde foram feitas reflexões a respeito da produção de seus respectivos títulos e diários Online de desenvolvimento.

Com base nesta captação e organização de informações, pretende-se realizar uma análise sobre o processo de produção de três games com diferentes proporções e impactos. O intuito é o de compreender o peso da recepção dos jogadores e da crítica especializada da área de games nas decisões que são tomadas durante a produção.

152

VII. ANÁLISE – O processo de projetar experiências

No capítulo anterior vimos, em detalhes, como se dá o processo de desenvolvimento de um game. A descrição apresentada foi pautada pela situação mais complexa que se poderia encontrar – tratando do processo de desenvolvimento relativo a um game voltado para a indústria do entretenimento de massa, utilizando uma grande equipe e envolvendo forças atuantes externas tais como a publisher e as empresas prestadoras de serviço terceirizadas. Mencionamos, em alguns momentos, problemas característicos de projetos em menor escala, diferenciando algumas particularidades do território nacional, inclusive.

Dando prosseguimento a este trabalho, partiremos para a análise de documentações referentes ao desenvolvimento de jogos que já foram postos no mercado. O critério para a seleção destes títulos deu-se por conta da quantidade de informações oficiais disponíveis publicamente para que se pudesse descrever com detalhes os interesses aqui abordados. Trataremos, primeiramente, de um game feito para atender às demandas de consumo de massa, um triple-A. Posteriormente, analisaremos o diário de desenvolvimento de um game produzido através de arrecadação por crowdfunding para, por fim, refletirmos a respeito dos dilemas apresentados por uma equipe de criadores independentes.

Nesta reflexão, nos interessa compreender se as decisões tomadas ao longo dos processos de criação e desenvolvimento dos games levaram em conta as questões abordadas como tema central desta tese: Por que os videogames, enquanto meios artísticos, não são vistos com a mesma credibilidade pela crítica de arte especializada e pela academia, se comparados às expressões mais consolidadas da arte? A quem esta resistência interessa e quais são as teorias construídas como base para a negação do videogame enquanto meio expressivo válido? Bem como outras questões relacionadas a estas primeiras que podemos levantar: De que maneira a demanda do público afeta a a forma como games são produzidos em diversas escalas? A responsabilidade que o produtor possui com relação à aceitação pelo público afeta as decisões criativas que precisam ser tomadas, prejudicando, assim, o resultado final idealizado durante o processo de projeção? Se a reposta para esta questão é sim, o impacto dessas decisões pode influenciar na credibilidade da obra diante da crítica de arte especializada e pela academia?

Passemos então às observações de caráter documental, deixando as respostas destas questões para a conclusão desta tese. 153

1. Castlevania Lords of Shadow

Produzida e publicada pela Konami56, a franquia Castlevania começou com o lançamento do primeiro título no Japão, em 1986, Akumajo , um game do gênero 'ação e aventura' com movimentação do tipo 'plataforma' (o personagem controlado pelo jogador pode se movimentar, tipicamente caminhando e pulando sobre plataformas que compoem cenários cujas telas se complementam numa rolagem, tradicionalmente, da esquerda para a direita). Neste título, o jogador podia explorar o “akumajo Drácula”, ou “o castelo demoníaco de Drácula”, que mais tarde ficaria conhecido como Castlevania.

O roteiro se desenrola sob a premissa de um herói - parte de um clã que caça vampiros - denominado , o qual deve enfrentar Drácula e seus seguidores malignos que querem subjugar a humanidade.

A série, lançada no Japão para o Famicom Disk System, só ganhou maiores repercussões fora do país de origem (em especial, nos Estados Unidos) quando passou a ser portada para os cartuchos de NES (Nintendo Entertainment System).

Apesar da proposta do roteiro não ser inovadora, – a empresa concorrente, Capcom, havia lançado o jogo de monstros Ghost's 'n Goblins em 1985 - Castlevania conseguiu oferecer uma combinação bem-sucedida de ação e desafios à habilidade do jogador, numa ambientação de terror gótico remontando referências do século XVII.

Mesmo os controles, que deixavam a desejar, adicionaram um certo grau de dificuldade o jogador que, ao invés de reclamar, abraçou como uma característica do título:

Castlevania faltered a bit in its controls. Compared to the acrobatics of Metroid and Rygar’s protagonists, Simon Belmont is a sluggard. Yet his slow pace and fixed-arc jumps may have helped in a strange way. Castlevania’s side-scrolling levels were precise, risky challenges, and Simon’s limited mobility forced even more caution on the player, constantly reminding them how outmatched a mere human was against sine wave Medusa Heads and regenerating skeletons. It was just enough

56A é uma corporação teve sua origem em 21 de março de 1969, fundada por Kagemasa Kozuki. Em 1973, a Konami era uma indústria limitada que manufaturava máquinas de entretenimento e arcades. Seu capital, na época, era de 1 milhão de ienes (o que equivaleria hoje a R$32.189,79). 154

to convince young players that dying was their fault, and not the game’s. Less than a decade later, Resident Evil would pull much the same trick with its own limited controls.57(CIOLEK, 2014)

Daí por diante, foram lançados, no total, dez títulos da franquia, acompanhando o gênero do game original, até que em 1999 – graças às novas possibilidades oferecidas pelo console Nintendo 64 – veríamos a transição do tradicional jogo de plataforma para um ambiente em 3D. Castlevania: Legacy of Darkness representa toda a dificuldade encontrada por produtores que se viram obrigados a abandonar o que conheciam – produzir excelentes jogos bidimensionais – por conta da pressão crescente que existia no surgimento de títulos em 3D.

Dois anos após o lançamento de Castlevania: Symphony of the Night, em 1997, – um jogo bidimensional numa plataforma com suporte para a tridimensionalidade, o primeiro PlayStation, que ainda hoje é considerado pelos fãs da franquia como um dos melhores títulos da série - Castlevania: Legacy of Darkness inaugurou a era dos títulos tridimensionais da série dividindo a crítica: Enquanto a apresentação gráfica dos níveis impressionava (para a época), os cenários eram muito repetitivos e os controles pareciam confusos. Posteriormente, foram lançados mais três títulos utilizando gráficos bidimensionais, em função do console portátil para a qual foram portados: O Advance (apenas as versões mais recentes suportam gráficos tridimensionais).

Foi somente com o lançamento de Castlevania: Lament of Innocence, em 2003, que a empreitada no mundo dos gráficos tridimensionais começou a atingir resultados satisfatórios para a série. Lançado para PlayStation 2, o título trouxe um roteiro para explicar como tudo começou em Castlevania, numa ambientação que se passaria no ano de 1094. Tendo como

57Em tradução livre da autora: “Castlevania deixou um pouco a desejar nos seus controles. Comparadas às habilidades acrobáticas dos protagonistas de Rygar e Metroid, Simon Belmont é um preguiçodo. Ainda assim, seu andar lento e seus pulos num arco fixo podem ter ajudado de uma maneira estranha. Os níveis de rolagem lateral (side-scrolling) eram precisos, desafios arriscados, e a mobilidade limitada de Simon demandava ainda mais cuidado do jogador, constantemente lembrando-o o quão em desvantagem um mero humano se encontrava diante de ondas sinuosas de Cabeças de Medusa (voando na sua direção) e esqueletos capazes de se regenerar. Foi o suficiente para convencer jovens jogadores que, quando o protagonista morria, a culpa era deles e não do jogo. Menos de uma década depois, Resident Evil usaria o mesmo truque com seus próprios controles limitados. ”

155

protagonista Leon Belmont, o título trabalharia com a conhecida premissa do herói ao resgate da dama em perigo. Leon, contaria com o apoio de seu amigo, o estrategista Mathias Cronqvist e do alquimista Rinaldo Gandolfi, responsável por criar o lendário chicote conhecido como , arma que já vinha aparecendo nos jogos da série, passada de geração a geração no clã dos Belmont. Embora Leon tenha partido ao resgate de sua esposa Sara, levada pelo lorde vampírico Walter Berhard, seria surpreendido ao descobrir que o verdadeiro vilão é na verdade Mathias, quem se tornaria o próprio Drácula e antagonizaria o clã Belmont até o fim dos tempos.

As revelações deste titulo serviriam de fomento para o andamento dos lançamentos subsequentes, enquanto a utilização do 3D para um game de ação, – sem a dependência da movimentação baseada nas tradicionais plataformas, com fases baseadas de pulos de precisão - se mostrou muito mais promissora do que a primeira tentativa com o Nintendo 64.

The PlayStation 2 was far more adept at handling a 3D Castlevania than the Nintendo 64, and Lament of Innocence built some impressively large bosses and elaborate environments. Leon’s complement of standard Castlevania weapons, from the knife to the cross-boomerang, was boosted as he acquired new elemental powers. In other respects, Lament of Innocence stepped away from both prior generations of Castlevania, lacking both the earliest games’ platform-jumping precision and the school’s variety of explorative powers. Drawing some influence from the recent success of Capcom’s Devil May Cry, Lament dedicated itself to combat first and foremost.58 (CIOLEK, 2014)

As modificações na maneira como o jogo se apresentava foram recebidas com aprovação pelos jogadores, de modo que os títulos que se seguiram foram lançados praticamente sem intervalo entre si. Enquanto Castlevania: Dawn of Sorrow foi lançado para o

58Em tradução livre da autora: “O PlayStation 2 foi muito mais propício para comportar um Castlevania 3D do que o Nintendo 64 e “Lament of Innocence” construiu alguns chefes de fase incrivelmente grandes, bem como ambientes elaborados. As tradicionais armas complementares de Castlevania, utilizadas por Leon, da faca ao bulmerangue de cruz, foram melhoradas conforme ele adquiria novos poderes elementais. Em outros aspectos, “Lament of Innocence” afastou-se das gerações anteriores de Castlevania, deixando de fora os pulos de precisão em plataformas e a variedade exploratória dos jogos na linha Metroidvania. Lançando alguma influência sobre sucessos recentes como “Devil May Cry”, da Capcom, “Lament of Innocence” dedicou-se, em primeiro lugar, ao sistema de combate. 156

console portátil Nintendo DS, Castlevania: Curse of Darkness foi lançado no mesmo ano, 2005, para PlayStation 2. Infelizmente, enquanto o primeiro foi visto pela crítica como um tributo a títulos prévios da série, – tratando-se, inclusive, de mais um título bidimensional da franquia - o segundo não foi considerado um sucesso financeiro, tendo vendido menos de meio milhão de cópias - metade da marca que Lament of Innocence conseguiu atingir.

Decidindo investir mais em títulos para console portátil, a Konami obteve um bom resultado de vendas tanto com Castlevania: Portrait of Ruin, lançado em 2006, quanto com Castlevania: Order of Ecclesia, lançado em 2008, ambos para Nintendo DS.

O próximo impacto negativo que a franquia sentira, viria de sua tentativa de lançar um título ainda mais distante da mecânica com a qual os fãs estariam acostumados: Castlevania: Judgement foi lançado para Nintendo Wii em 2008, numa tentativa de aproveitar o recurso diferencial do sensor de movimento que o console possuia. Para tal, a Konami decidiu abandonar completamente qualquer referencial que tornava Castlevania aquilo que os fãs estavam acostumados a esperar, criando um jogo de luta em 3D com os personagens mais famosos da franquia, independemente de qualquer lógica temporal existente nos roteiros até então desenvolvidos. Ainda, todo o visual dos personagens foi recriado por Takeshi Obata (desenhista da série de mangás – histórias em quadrinhos - Death Note), o que não agradou aos fãs acostumados ao estilo dos desenhistas anteriores da série, como a ilustradora Ayami Kojima.

O gênero do game não era o que os fãs estavam acostumados e também não conseguiu atrair os entusiastas de jogos de luta, os quais acharam a proposta muito simples. Segundo Ciolek (2014): “Judgment provou ser tanto um desastre de crítica, quanto comercial, levando a Konami a realizar sua transformação mais drástica. ” 59 A transformação em questão seria Castlevania: Lords of Shadow.

Recapitulando, até então a Konami foi responsável pelo lançamento de Castlevania, Castlevania II: Simon's Quest, Castlevania: The Adventure, Castlevania III: Dracula's Curse, Super Castlevania IV, Kid Dracula, Castlevania: The Rondo of Blood, Castlevania Bloodlines, Castlevania: Dracula X, Castlevania: Symphony of the Night, Castlevania Legends, Castlevania 64, Castlevania: Circle of the Moon, Castlevania: Harmony of Dissonance, Castlevania: Aria of Sorrow, Castlevania: Lament of Innocence, Castlevania: Dawn of Sorrow, Castlevania: Curse

59Originalmente: “Judgment proved both a critical and commercial disaster, and this led Konami to give Castlevania its most drastic makeover yet. ” 157

of Darkness, Castlevania: Portrait of Ruin, Castlevania: Order of Ecclesia e Castlevania: Judgment, totalizando vinte e um títulos, dentre os quais algumas edições especiais e relançamentos não estão listados aqui.

Com a recepção negativa de Judgment e tendo perdido terreno nos idos de 2010, Castlevania havia servido de referência para alguns de seus maiores concorrentes e a franquia precisava se reinventar. Até então, seus títulos eram desenvolvidos por uma equipe japonesa, pautados por uma linguagem visual e um roteiro influenciados diretamente pelos animes (desenhos animados) e mangás do país. Deixando de lado a continuidade das produções coordenadas por , – cujo primeiro envolvimento com a série se deu através de Symphony of the Night e o ultimo foi na produção de Judgment - Castlevania: Lords of Shadow foi produzido externamente. A Konami contratou a desenvolvedora espanhola Mercury Steam, sob a supervisão de Hideo Kojima – criador da franquia de sucesso Metal Gear – para criar um produto para o PlayStation 3 dentro das novas expectativas do público internacional: Um game com uma narrativa envolvente, sombrio e violento, de uma qualidade cinematográfica que o classificasse como triple-A.

Embora seja considerado um título não-canônico, - por não seguir a cronologia do roteiro condutor da série - Castlevania: Lords of Shadow apresenta personagens que apareceram em títulos anteriores, trazendo-os para o contexto de seu próprio cenário. É o caso, por exemplo, do lobisomem Cornell, um dos protagonistas de Castlevania 64, que surge no título como um dos “senhores da sombra” que deve ser enfrentado por Gabriel, o primeiro Belmont e personagem principal de Lords of Shadow. A premissa do roteiro não se distancia dos títulos considerados clássicos da série: Gabriel está em busca de vingança pela morte de sua esposa, Marie. O que ele não espera é ser surpreendido com a revelação de que fora o próprio assassino desta, vindo a se tornar então o próprio vilão da franquia em pessoa, Drácula.

Embora tenha sido comparado com outros títulos do momento em certas características de gameplay, Lords of Shadow conseguiu sucesso no seu objetivo de se equiparar a outras franquias de ação do momento, unindo forças criativas das mais diversas esferas, como o compositor de sua trilha sonora, Oscar Araujo, acompanhado pela já mencionada Orquestra Sinfônica de Bratislava e o ator britânico Patrick Stewart (famoso por seus papeis tanto na televisão, quanto no cinema), formado pela Royal Shakespeare Company, o qual trabalhou na dublagem do personagem Zobek. 158

Castlevania: Lords of Shadow pode ser analisado enquanto trilogia, dado o fato que ao primeiro jogo, seguiu-se a produção da continuação, Castlevania: Lords of Shadow 2, bem como o título para o console portátil Nintendo 3DS, Castlevania: Lords of Shadow – Mirror of Fate. A trilogia, - cuja elaboração tomou um total de sete anos - como um todo, segue a linha temporal proposta pelo primeiro game, ou seja, pode ser analisada separadamente dos tradicionais games de Castlevania - inclusive pelo fato de ter sido produzida pela Mercury Steam. Para fins deste trabalho, analisaremos apenas o primeiro título, o mais emblemático desta fissão com a série original e do qual derivaram-se os subsequentes produtos. Ainda assim, serão feitos alguns apontamentos ocasionais referentes aos outros dois títulos da trilogia, a mero critério comparativo.

Ainda que a recepção por parte dos fãs puristas - defensores das séries tradicionais da franquia - tenha sido um bocado negativa, o público jogador em geral aprovou o título inovador. De fato, em 2013, o produtor da Konami, Dave Cox, anunciou que Lords of Shadow teve as melhores vendas de toda a série. (CIOLEK, 2014).

Em apresentação à GDC (Game Developers Conference) Europe de 2011, Enric Alvarez, diretor responsável por Castlevania: Lords of Shadow e um dos proprietários da Mercury Steam, trouxe suas reflexões de postmortem. Alvarez (2011), começa comentando que o desenvolvimento deste primeiro título tomou um total de três anos, num período em que a competitividade da crescente indústria da área atingiu o seu ápice. Nestas circunstâncias, todos os criadores de games querem ter sucesso e deixar bons produtos, que sejam lembrados durante muitos anos. Contudo, comenta o diretor, todos estão sujeitos a falhas. No caso do primeiro Castlevania: Lords of Shadow, havia uma história a ser contada: A da transição de Gabriel da luz para a escuridão. Isso foi feito tanto através da narrativa, quanto visualmente.

Durante entrevista a Albert García (2014) para o site da Espanha, Alvarez explica sua visão para o primeiro título da trilogia:

Es tan complicado y meritorio hacer un juego sin ningún tipo de historia como hacerlo con una buena historia. Nosotros queríamos contar una historia muy grande y muy intensa y por lo tanto quisimos que el jugador creyese de veras que estaba allí. La única forma de conseguirlo es que la inmersión fuese lo más potente posible. Y una de las variables fundamentales para lograr esto en un juego de este estilo es que el mundo del juego sea creíble. No realista, creíble. Si pretendíamos 159

mostrar el viaje de un personaje a través de una serie de etapas con una aventura que más que una aventura es un viaje para encontrarse a si mismo teníamos que presentar un juego en el cual no se viera el castillo hasta prácticamente la mitad porque queríamos insistir en el hecho de que nuestra historia no empezaba en el castillo, no empezaba con Drácula, no empezaba con los vampiros. No, empezaba con el primer Belmont.60

Para Alvarez, a probabilidade de se obter sucesso nos seus esforços é maior quando se faz aquilo que se gosta, com apreciação e divertimento. O diretor explica que a indústria de games não é fácil e muitas vezes não é justa, assim o melhor é obter prazer durante o processo de trabalho. Caso você falhe, comenta, ao menos terá aproveitado este tempo de dedicação e se divertido: “É claro que se divertir trabalhando não é o oposto de trabalhar duro” (ALVAREZ, 2011). Gostar do que se faz é uma excelente motivação que mantém o produtor e a equipe seguindo em frente durante o processo árduo do desenvolvimento. Ainda, quem gosta e se diverte fazendo seu trabalho, age como um socializador das conquistas da empresa, gerando uma identificação com o público que aprecia de videogames. O pessoal da equipe é importante, mais ainda, ele deve estar alinhado aos valores que a empresa defende e procura propagar através de seus trabalhos.

Um dos maiores desafios enfrentados pela Mercury Steam foi a diferença cultural ao assumir a produção de um game, até então sempre desenvolvido no Japão, e trabalhar com ele através de uma visão ocidental. Seria impossível considerar que uma saga com mais de vinte anos de existência deveria ser desprezada para que a visão ocidental a substituisse como algo “melhor”. Entretanto, em diversas ocasições, Alvarez afirmou que a Konami deixou seu estúdio bastante livre para trabalhar na versão ocidentalizada de Castlevania, graças à associação de Hideo Kojima ao projeto, como um dos produtores. O que foi confirmado por Dave Cox, então

60 Em tradução livre pela autora: “É tão complicado criar um jogo sem nenhum tipo de história como fazê-lo com uma boa história. Queríamos contar uma história muito grande e intensa, por isso queríamos que o jogador sentisse como se estivesse ali. A única maneira de conseguí-lo foi garantir que a imersão fosse o mais potente possível. E uma das variáveis fundamentais para alcançar este objetivo no jogo deste estilo é que o mundo do jogo seja crível. Não realista, crível. Se pretendiamos mostrar a viagem de um personagem através de uma série de etapas com uma aventura que, mais que uma aventura, é uma viagem para encontrar a si mesmo, teríamos de apresentar um jogo no qual o castelo aparece somente na metade, porque queríamos insistir que a nossa história não começava no castelo, não começou com Drácula, não começava com os vampiros. Não, começava com o o primeiro Belmont. ”

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produtor da Konami durante a época (YIN-POOLE, 2016). Em união com Dave Cox, Alvarez começou a trabalhar num novo conceito, numa nova visão para este Castlevania. Foi solicitado que eles apresentassem uma proposta que contemplasse toda a saga, ainda que fosse inovadora61.

Compartilhando um pouco de sua experiência na referida apresentação à GDC de 2011, Alvarez conta que quando a Mercury Steam estava no início, as publishers queriam ter uma ideia de como ficariam os jogos antes de fechar algum contrato, demandando um sample (uma amostra desenvolvida segundo a proposta tratada). A Mercury Steam, porém, ainda era um estúdio pequeno e sem tantos recursos. Não seria possível entregar um sample pelo o qual a publisher não pagaria, apenas a critério de proposta. Em contato com Carlos Rodriguez, - que viria a se tornar o líder de tecnologia de Castlevania: Lords of Shadow - este sugeriu que a proposta fosse apresentada de maneira diferente: Um pequeno vídeo do que seria possível fazer, com imagens cuja qualidade impressionasse, com uma boa ideia de qual seria a iluminação, etc. Foi produzido então um teaser (vídeo de amostra) de poucos segundos, para mostrar o que o estúdio conseguiria fazer com seus recursos. Isto foi feito em 2005, gerando os primeiros contratos com publishers da Mercury Steam, algumas semanas depois da apresentação. O trabalho incorporado de três pessoas gerou esta pequena amostra no formato de um vídeo que possibilitou a assinatura dos primeiros contratos da desenvolvedora.

Três anos depois o estúdio foi contatado pela Konami, buscando sua visão para a saga Castlevania. Da mesma forma, eles apresentaram um vídeo do que pretendiam fazer - uma fase demo teria custado mais de um ano para ser feita e para apresentar a visão do estúdio. Uma desenvolvedora de menores proporções precisa ser criativa para apresentar exemplos de samples para publishers e fechar trabalhos gerar ônus ou tomar toda a mão de obra disponível.

Ainda em entrevista à Eurogamer Espanha (2014), Alvarez comenta a estruturação de sua equipe:

El estudio ha ido creciendo en función de la magnitud de los proyectos. En Mercury Steam nos gusta trabajar con equipos pequeños de poca gente porque se consigue un ambiente más familiar y todo el mundo

61 Vimos que projetos inovadores não costumam ser bem vistos, em especial quando existe o licenciamento de uma franquia. Neste caso, especificamente, a Konami estava pronta a abandonar a franquia Castlevania em decorrência dos fracassos anteriores e já estava focando na produção de títulos voltados apenas para consoles portáteis. A inovação, neste caso, foi um risco calculado para ampliar o mercado consumidor no ocidente. 161

ayuda a la motivación y calidad del trabajo. En cambio, en los entornos con mucha gente se despersonaliza todo muy rápido y al final eso acaba repercutiendo en la calidad del producto y en la satisfacción de la gente que está aquí. Por lo tanto, cuando yo al principio decía que el primer Castlevania lo habíamos hecho un equipo que en su punto más álgido éramos sesenta, mucha gente de la industria del videojuego aún no se lo cree.62

O time da Mercury Steam tinha sessentas pessoas, para o desenvolver um jogo com aproximadamente vinte horas quando, comenta Alvarez, o normal para este gênero é um total de oito horas de jogo, no máximo. Portanto, o volume do que era necessário desenvolver num jogo desse porte era assustador e o orçamento era modesto para a produção de um game Triple- A. Alvarez não comenta de quanto foi o budget, mas afirma que – até a época em que ocorreu a entrevista ao Eurogamer.es – a Espanha nunca desenvolveu um game tão grande quanto este.

Coordenar uma equipe de profissionais diferentes, com motivações e comportamentos diferentes para que todos trabalhassem com o foco no mesmo objetivo, foi um grande desafio. Os líderes de departamento eram pessoas muito confiáveis e a política da empresa, segundo Alvarez, era meritocrática.

Para atingir os objetivos é necessário manter a estrutura do time o mais simples possível. Os diretores de arte de Castlevania foram Jose Luiz Vaello e Juan Antonio Alcázar, resposáveis pelo trabalho de seus artistas.

A organização, gerenciamento e planejamento foram realizados num único departamento de produção, que foi quebrado em subáreas de tecnologia, design, etc. O departamento de produção, sob responsabilidade de Rafael Martinez e Jose Raluy, dividiu o gerenciamento entre o departamento de design, artes e tecnologia. O processo utilizado no

62 Em tradução livre da autora: “O estúdio tem aumentado em função da magnitude dos projetos. Na Mercury Steam, gostamos de trabalhar com equipes pequenas, de poucas pessoas, porque se consegue um ambiente mais familiar e todo mundo ajuda na motivação e na qualidade do trabalho. Por outro lado, em ambientes com muitas pessoas, tudo se torna impessoal rapidamente e isso acaba repercutindo na qualidade do produto e na satisfação das pessoas que trabalham aqui. Portanto, quando eu disse que o primeiro Castlevania foi desenvolvido com uma equipe que atingiu o máximo de sessenta pessoas, muitas pessoas na indústria dos videogames não acreditaram. ”

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estúdio é fluido e possibilita muita troca. Os profissionais devem circular, inclusive no sentido físico da coisa, já que não há grandes divisórias mesmo no espaço de trabalho - para que todos possam perambular e perceber como seus colegas estão trabalhando.

Figura 9 - Fotos do estúdio da Mercury Steam apresentadas na GDC 2011.

Luiz Miguel Quesada e Henrique Ventura, junto do próprio Alvarez, foram os responsáveis pelo design do game Castlevania: Lords of Shadow, entretanto muitas ideias vieram de contribuições de outras pessoas do time que se destacaram graças a abertura proporcionada por esse sistema de trabalho. Alvarez comenta que tal modelo contribuiu para a otimização do desenvovimento de Castlevania: Lords of Shadow, embora tenha cumprido com seu papel de produtor ouvindo apenas as ideias devidamente defendidas e embasadas. O time de design também filtrava cautelosamente as ideias que chegavam a eles, para garantir que a visão original fosse respeitada.

A publisher quer resultados e demanda ver pelo que está pagando, portando deve ser mantida atualizada. Enquanto a publisher cuida da visibilidade do produto, o estúdio precisa 163

enfrentar uma série de tomadas de decisão para que as melhores implementações sejam feitas. Decisões estas que se a publisher tivesse de tomar, sem o conhecimento de causa que a desenvolvedora possui, não seria possível assegurar os melhores resultados no produto final.

Isto não quer dizer que a publisher não possa opinar sobre o trabalho que é desenvolvido. Alvarez comenta que o contato com a Konami foi bastante intenso, ao longo dos anos de desenvolvimento.

Ao final do desenvolvimento, a Kojima Productions esteve junto da Mercury Steam por algumas semanas, inclusive, o que possibilitou uma integração essencial para o resultado final do trabalho.

Em termos de tecnologia utilizada, a Mercury Steam fez questão de desenvolver o próprio código fonte que serviu de base para a Lords of Shadow e outros jogos lançados posteriormente. Isso foi crucial para um projeto como o Castlevania: Lords of Shadow, com programadores e modeladores 3D trabalhando conjuntamente para tornar possível a criação de cenários amplos ou reduzidos com a iluminação e o nível de detalhamento adequado.

A demanda por ferramentas específicas para solucionar problemas de cada projeto desafiador que surge, faz com que a Mercury Steam desenvolva sua tecnologia.

Apesar da rejeição que existe em parte do público jogador por quick time events63, o game apelou para este recurso como solução narrativa – na cena dos Titãs (Figura 10), por exemplo – de uma maneira que tornou a transição entre o controle do jogador e a cena mais suave. A maior parte dos quick time events utilizados no jogo, representaram uma maneira de, sem implementar nada novo, apresentar uma cena interessante.

No combate dos titãs, entretanto, foi necessário criar algumas mecânicas novas de combate por estágios, onde o jogador destruiria partes subsequentes do inimigo, que é enorme. Castlevania é um hack 'n' slash64 em 3D, então foi difícil decidir se valeria a pena criar uma mecânica somente para o combate dos Titãs, algo que não apareceria durante a maior parte do

63 Quick time event é um recurso utilizado no gameplay por meio do qual o jogador precisa realizar ações específicas utilizando o joystick logo após o surgimento de uma instrução na tela. Esta ação contextualizada permite controle limitado do personagem durante cenas sequenciais do game – cut scenes ou cinematics. 64 Hack ‘n’ slash é um gênero de game onde o personagem principal explora cenários enquanto combate inimigos, geralmente, fazendo uso de armas para combate corpo a corpo ao invés de armas de fogo. 164

game. A equipe se empolgou com a ideia e se referenciou em Shadow of Colossus, – um título que investe no combate de inimigos massivamente grandes - resolvendo assumir este desafio e acreditando, hoje, que o esforço valeu a pena.

Figura 10 - Gabriel combatendo um Titã

Os Titãs se tornaram uma parte distinta e espantosa do gameplay, incorporados à atmosfera do game. Segundo Alvarez, a ideia nunca foi chegar tão longe quanto Shadow of Colossus, entretanto a equipe também não pensou muito no nível de complexidade que a criação dos Titãs demandaria, até que foi tarde demais. O caminho foi longo e demorado para que a ideia funcionasse, mesmo sendo mais simples que o referencial original. Alvarez defente que, em alguns momentos, vale a pena se arriscar por uma ideia mesmo quando as chances estão contra você.

Tal postura se reflete na maneira como a equipe da Mercury Steam lidou minuciosamente com os detalhes dos jogos da trilogia, ao que Alvarez (2014) comenta:

[...] nos preguntamos si no tendríamos que dejar de hacerlo porque lleva mucho trabajo y requiere un trabajo manual intenso y a veces parece que la gente hoy en día está en otra honda. Pero bueno, siempre se 165

agradece encontrar personas que se ve que lo han apreciado y que lo comentan y que de alguna manera lo aprecian. Nosotros trabajamos así, tratamos con el mismo cuidado, por ejemplo el combate del juego, que tiene muchas capas de profundidad, capas de trabajo que se han hecho aquí. El mismo cuidado que en la animación de los personajes, en los modelos. Estamos hablando de videojuegos, hay limitaciones técnicas y uno se sale como puede, nunca puedes hacer el 100% de lo que puedes, pero la verdadera gracia de un videojuego no está en eso, está en la integración, es decir, hacer un modelo muy complejo no es muy difícil, hacer un nivel muy chulo tampoco lo es mucho, lo difícil es integrarlo todo en una pieza que tenga atractivo visual, jugable, narrativo, emocional, etc. Aquí está el verdadero reto. Nosotros tendemos a tratar los contenidos de esta manera global.65

O produtor explica que a verdadeira dificuldade em se criar um game está na harmonização de um único produto com gráficos atraentes, boa jogabilidade, história engajadora, enfim, o gerenciamento dos conteúdos que tornam isto possível de acontecer numa única experiência. Embora considere que o combate seja o grande diferencial da trilogia, Alvarez reconhece que existem todos estes e mais alguns fatores a se considerar, como por exemplo os quebra-cabeças de lógica propostos principalmente no primeiro título da trilogia, os quais oferecem um desafio a parte, agradando a uns e desagradando a outros tantos.

Embora a recepção ao primeiro game da trilogia tenha sido boa, vale salientar que os outros dois títulos (em especial Lords of Shadow 2), foram duramente criticados pela imprensa especializada. Problema que se agravou ainda mais com a propagação de denuncias realizadas anonimamente por um suposto ex-funcionário insatisfeito da Mercury Steam (YIN- POOLE, 2016). Para Alvarez (2014), a imprensa especializada carece de profissionalismo para separar opiniões e gostos pessoais de análises bem embasadas:

65 Em tradução livre da autora: […] “nos perguntamos se deveríamos deixar de fazê-lo, porque exige um trabalho manual intenso e às vezes parece que as pessoas hoje em dia estão interessadas em outra coisa. No entanto, sempre gostamos de encontrar pessoas que tenham apreciado e que comentam de alguma maneira o que fazemos. Nós trabalhamos assim, tratamos com o mesmo cuidado, por exemplo, o sistema de combate, que tem muitas camadas de profundidade, o mesmo cuidado na animação dos personagens e dos modelos. Estamos falando de videogames, há limitações técnicas e se faz o melhor que pode, nunca é possível fazer 100% do que se pretende, mas a verdadeira graça de um videogame não está nisso, está na integração, ou seja, fazer um modelo muito completo não é muito difícil, fazer um nível muito legal também não é muito, o difícil é integrar tudo em uma peça que seja visualmente atraente, jogável, narrativa, emocional, etc. Aqui está o verdadeiro desafio. Nós tendemos a tratar o conteúdo globalmente. ”

166

El análisis va fundamentalmente del objeto y la opinión va fundamentalmente del sujeto que opina. Puedes decir, 'a mi me me gusta mucho el rock pero no soporto la ópera', esto es una opinión, no un análisis. Si tuviera que hacer un análisis de "Don Giovanni" no sabría ni por donde empezar y este ejercicio de honestidad falta en la prensa de videojuegos. Hay mucha gente que analiza videojuegos y no está a la altura del videojuego que analiza. Esto es un problema porque después esto influye en la decisión de compra de la gente, y después también tiene una influencia a nivel de les oportunidades de los desarrolladores, porque estamos en un mundo en el que la simplificación de la información está a la orden del día y si puedes catalogar a un desarrolladora en función de la nota que tiene en Metacritic pues lo haces.66

Alvarez (2014) reforça que, ao passo que a indústria dos videogames tem crescido de maneira gigantesta, a imprensa não acompanhou este desenvolvimento. Pessoas inexperientes, sem o menor conhecimento técnico sobre produção, escrevem revisões sobre jogos em revistas oficiais. Ainda, em entrevista para Garcia (2014), o produtor comenta que os próprios fãs rejeitaram a proposta desta releitura, – a equipe chegou a receber uma carta com ameaças de morte em seu estúdio, após o lançamento do primeiro game - o ódio aumentou especialmente desde Mirror of Fate:

Mirror of Fate fue maltratado injustamente, no por toda la prensa sino por parte de la prensa que no nos ha perdonado ni nos perdonará nunca que hayamos cambiado la órbita de la saga. Hay mucha gente que esto no nos lo perdonará nunca y todo lo que digan sobre nosotros estará teñido de odio y resquemor.67

66 Em tradução livre da autora: “A análise é, fundalmentalmente, sobre o objeto e a opinião é, fundamentalmente, sobre o sujeito que opina. Você pode dizer, ‘gosto muito de rock, mas não suporto ópera’, isso é uma opinião, não uma análise. Se você tiver de fazer uma análise de Don Giovanni, não saberia nem por onde começar e esse exercício de honestidade falta na imprensa de videogames. Há muita gente que analisa videogames e não está à altura do videogame que analisa. Isto é um problema porque depois isto influencia na decisão de compra das pessoas, e depois também tem uma influência a nível das oportunidades dos desenvolvedores, porque estamos num mundo em que a simplificação da informação está na ordem do dia e se pode classificar um desenvolvedor de acordo com a nota que tem no Metacritic, é o que ocorre. ”

67 Em tradução livre da autora: “Mirror of Fate foi insjustamente maltratado, não por toda a imprensa, mas por aquela parte da imprensa que não nos perdoou e nunca nos perdoará por mudar a órbita da saga. Há muita gente que não nos perdoará nunca por isso e tudo o que disserem sobre nós estará tingido pelo ódio e rancor. ” 167

Ainda, em entrevista para Yin-Poole (2016) do Eurogamer.net, Alvarez comenta:

The other relevant fact, and for me personally an important one, is gamers' feedback is essentially positive. Not from Castlevania hardcore long-time fans, because they hated us from the day we released the first Lords of Shadow. But if you go out there you'll see the users' score is far from the critics' score. We love that the critics like our games. It affects sales in a positive way, and also you always want to please as many people as possible with your work. But despite the bad opinion from reviewers, you have to admit there are a lot of people that loved the game, which means it's nowhere near as bad as it looked like from checking reviews.68

Quando o assunto é ‘crítica’, há veículos que ditam tendências no mundo dos videogames. Quando questionado por Garcia (2014) sobre a antecipação da pontuação dada a Castlevania: Lords of Shadow 2 pela revista Edge na dianteira de outros canais jornalísticos, Alvarez responde:

Este es otro tema importante. Hay unas cuantas publicaciones que marcan tendencia y a partir de aquí hay otras publicaciones que las siguen y no se atreven a desviarse mucho. El primer LOS, que tiene un 85 en Metacritic, también obtuvo malas notas de webs importantes, y aún así el juego estaba en lo alto. Es cierto que a la Edge el primero les gustó y este no les ha gustado. Pero también encuentro que esto que ha pasado es totalmente injusto. Hay que ser ciego o idiota para darle un 4/10 a un juego de esta calidad. Con un 4/10 la gente interpreta que es un juego cutre, mal hecho, que se rompe, con unas mecánicas que no funcionan, con unos gráficos espantosos, y si yo fuera analista esto lo sabría, con lo cual no me parece que LOS2 se merezca una puntuación de juego cutre.69

68 Em tradução livre da autora: “O outro fato relevante, e para mim, pessoalmente, importante, é que o feedback dos gamers é essencialmente positivo. Não o dos fãs hardcore de longa data de Castlevania, por que eles nos odiaram desde o dia em que lançamos o primeiro Lords of Shadow. Mas se você sair por aí verá que a pontuação dos usuários é bem distante da pontuação da crítica. Nós amamos que os críticos gostem dos nossos games. Isso afeta as vendas de uma maneira positiva, e também você sempre quer agradar o máximo de pessoas possível com seu trabalho. Mas a despeito da má opinião dos revisores, você tem que admitir que há um monte de pessoas que amou o jogo, o que significa que nem de perto ele ficou tão ruim quanto ficou parecendo ao se chegar as revisões. ” 69 Em tradução libre da autora: “Este é outro tema importante. Há um certo número de publicações que marcam tendência e a partir daqui há outras publicações que as seguem e não se atrevem a se desviar muito. O primeiro Lords of Shadow teve 85 no Metacritic, também teve notas baixas em sites importantes, e ainda assim o jogo estava lá no alto. É certo que a Edge 168

Em entrevista a Yin-Poole do Eurogamer.net (2016), Dave Cox tem uma explicação um pouco diferente a respeito da revisão recebida pela sequência, embora comente que mesmo com o alarde feito pela imprensa, o game ainda é um dos mais vendidos de todos os tempos e foi visto pela Konami com um jogo lucrativo:

The difference between the first game and the second game was the first game had the player going on a journey. It had a lot of different environments. It had a feeling of exploring a world. The second game was closer and more confined. It was more about the journey within Dracula himself. The first one resonated more because of that more epic quest, that journey. The second one obviously didn't.70

Por fim, em especial o feedback da continuação Lords of Shadow 2, que ocorre na mesma plataforma do primeiro game (PlayStation 3), pegou a todos de surpresa, conta Cox a Yin-Poole (2016), haja visto que muitas das decisões que foram implementadas, no que seria a evolução do primeiro game, foram pautadas pelas críticas recebidas como feedback:

It caught everybody by surprise. In hindsight perhaps it was to be expected. The first game had a fixed camera, whereas the second game had a free camera - one of the big criticisms of the first game was, we'd like to have a free camera, so we did that for the second one. We greatly improved the combat. It was much more fluid, much more in-depth than the first game. I think that's generally agreed. The adventure element was still there. The characterisation was still there. Internally, the reviews within Konami were very positive. I would go and present the game to senior management in Japan, including Mr. Kojima, and got very strong, positive feedback. So yeah, it did catch us all a bit by surprise.”71

gostou do primeiro e não gostou deste. Mas também acho que isso que aconteceu foi totalmente injusto. Há que ser cego ou idiota para dar uma nota 4 de 10 a um jogo dessa qualidade. Com 4 de 10 as pessoas interpretam que é um jogo decadente, mal feito, que quebra, com mecânicas que não funcionam, com uns gráficos horríveis, e se eu fosse um analista saberia disso, com o qual me parece que Lords of Shadow 2 não mereça uma pontuação de um jogo de baixa qualidade. 70 Em tradução livre da autora: “A diferença entre o primeiro e o segundo jogo foi que o primeiro jogo tinha o jogador indo numa jornada. Ele tinha uma série de ambientes diferentes. Tinha um sentimento de exploração de um mundo. O segundo jogo foi mais próximo e mais confinado. Foi mais sobre a jornada interior do próprio Drácula. O primeiro repercutiu mais por causa daquela aventura épica, daquela jornada. O segundo, obviamente, não. ” 71 Em tradução livre da autora: “Pegou a todos de surpresa. Em retrospectiva, talvez já devesse ser esperado. O primeiro jogo teve uma câmera fixa, enquanto o segundo teve uma 169

Embora tenham atendido a algumas das demandas mais técnicas apontadas pelos seus jogadores, a equipe não atendeu exatamente ao que era esperado em termos de roteiro, ambientação e desenvolvimento do personagem, segundo conta o próprio Alvarez. Entretanto, a decisão final cabe ao produtor ou produtores responsáveis pelo game que, mesmo se pautando em pesquisas e críticas especializadas ou de jogadores, deve ter uma visão clara do que deseja fazer para não se perder no processo de atender a todas as espectativas sem um foco definitivo. As críticas são duras de serem aceitas, depois de anos dedicados à produção de um game deste porte, entretanto é sempre produtivo refletir sobre o que pode ser feito melhor no próximo projeto.

Sobre o rumo futuro da empresa, a autopublicação é algo com a qual eles se consideram preparados para lidar, especialmente dado o fato de que isso pode ser feito de forma totalmente digital, nos dias de hoje. Cox que, tendo se afastado da Konami, hoje trabalha na Mercury Steam, comenta a Yin-Poole (2016):

We're able to. We've got the platforms now. With ID@Xbox, Microsoft is supporting us. The guys at Sony are supporting us. Steam is out there. There are lots of ways of delivering content. The old days of pressing discs and having to have distribution, having all that money behind you, are gone now. You can release the game and it's out there straight away for the public to consume and let us know what they think. Five years ago, you couldn't have done that, really. Not the way we want to, anyway.72

A autopublicação é um recurso para estúdios menores e a proximidade com o público é muito maior, realmente. A seguir veremos uma produtora que trabalhou com este tipo de recurso para oferecer um produto diferente do que está disponível no mercado de massa.

câmera livre – uma das maiores críticas ao primeiro jogo foi porque os jogadores queriam uma câmera livre, então nos fizemos isso no segundo. Nos melhoramos muito o combate. Ele ficou muito mais fluido, muito mais profundo que o primeiro jogo. Creio que isso seja consenso geral. O elemento de aventura ainda estava lá. A caracterização ainda estava lá. Internamente, as revisões junto à Konami foram todas positivas. Eu ia apresentar o jogo à gerência sênior no Japão, incluindo o Sr. Kojima, e recebia feedbacks extremamente positivos. Então, sim, pegou a todos nós um pouco de surpresa. ” 72 Em tradução livre da autora: “Nós somos capazes. Nós temos as plataformas agora. Com ID@Xbox, Microsoft está nos apoiando. Os caras da Sony estão nos apoiando. Stem está aí. Há muitas maneiras de entregar conteúdo. Os tempos antigos de prensar discos e distribuir, tendo todo aquele dinheiro por trás de você, acabaram agora. Você pode lançar o jogo e está aí diretamente para o público consumir e nos deixar saber o que eles acham. Cinco anos atrás, você não poderia fazer isso, sério. Não do jeito que queremos, de qualquer modo. ” 170

2. Sunset

Tale of Tales é um estúdo de desenvolvimento de games que foi fundado na Bélgica por Auriea Harvey e Michaël Samyn em 2003, funcionando desde então. O estúdio possui um direcionamento e uma missão em particular: […] “criar arte elegante e emocionalmente rica para o entretenimento computacional interativo”73 (Tale of Tales, 2016).

Por se tratar de um estúdio conduzido por artistas, o foco dos trabalhos do Tale of Tales está na busca da beleza e do prazer, criando arte para todas as pessoas e distribuindo os trabalhos Online de maneira acessível. Do ponto de vista da missão de design, a dupla espera que os videogames possam ser diversos e significativos como qualquer outro meio. Para isso, busca criar experiências jogáveis que sejam interessantes tanto para jogadores, quanto para não- jogadores, engajando-os em narrativas poéticas através de controles simples.

Auriea Harvey e Michaël Samyn tiveram educação formal em áreas direta ou indiretamente ligadas às artes. Harvey estudou escultura na Parsons School of Design em Nova Iorque, enquanto Samyn estudou design gráfico na Sint-Lucas Gent, na Bélgica. A dupla se conheceu em 1999, como membros de um coletivo de artistas Online, e começou a colaborar imediatamente. Em 2002, passou a focar em videogames e em 2015, abandonou a produção comercial, por motivos que serão vistos a seguir.

Antes de falar sobre a produção do game Sunset, é importante compreender melhor a visão de trabalho da dupla – a qual conta com a contruibuição de colaboradores ocasionais, dependendo do projeto que se desenvolve – e do peso que é dado por esta a respeito dos videogames e da arte interativa de um modo geral. Além do The Beautiful Art Program74, um texto escrito pela dupla em ocasião do décimo aniversário do estúdio e apresentado no

73 Originalmente, no site http://tale-of-tales.com : [...] “to create elegant and emotionally rich art for computers interactive entertainment.” 74Trata-se de um texto escrito por Auriea Harvey e Michaël Samyn pela ocasião do décimo aniversário do estúdio Tale of Tales. Nele é abordado o uso da tecnologia do videogame na criação artística, mais especificamente do que os autores chamam de Bela Arte. São apresentados os tópicos do software enquanto meio (medium), da atmosfera imersiva que é proposta na fruição dos videogames, do ritmo de trabalho lento e focado nos detalhes, da originalidade, do desenvolvimento do próprio talento, da ambição em se criar algo mais do que simplesmente 'bom', do foco na beleza, da beleza como política, do fazer beleza ao invés de arte para atrair espectadores que não são artistas e, por fim, da prática de se trazer beleza e prazer para todos. 171

Independent Games Sumit de Colônia, em 2013, também foi composto o Realtime Art Manifesto, apresentado no Mediaterra Festival of Art and Technology, em Atenas, no ano de 2006. Sobre o manifesto, os autores explicam:

Realtime 3D is the most remarkable new creative technology since oil on canvas. It is much too important to be wasted on computer games alone. This manifesto is a call-to-arms for creative people (including, but not limited to, video game designers and fine artists) to embrace this new medium and start realizing its enormous potential. As well as a set of guidelines that express our own ideas and ideals about using the technology. 75 (HARVEY & SAMYN, 2006)

Nesta chamada para a ação, os autores defendem a utilização do 3D em tempo real como um meio para a expressão artística, explicando que sua utilização não deve ser relegada apenas à criação comercial de videogames ou à mera modificação de produtos comerciais pelos artistas. Defendendo que o 3D em tempo real deva ser visto como uma forma de arte por si só, eles categoricamente afirmam:

Realtime 3D [...] It is much too important to remain in the hands of toy makers and propaganda machines. We need to rip the technology out of their greedy claws and put them to shame by producing the most stunning art to grace this planet so far. (And claim the name “game” for what we do even if it is inappropriate.)76 (HARVEY & SAMYN, 2006)

Tendo dado o tom do manifesto, Harvey e Samyn chamam os artistas para assumirem a responsabilidade criativa ao invés de se esconderem atrás das decisões que são tomadas com base nas pesquisas de mercado. A visão do artista deve imperar sobre questões

75 Em tradução livre da autora: “3D em tempo real é a mais notável nova tecnologia criativa desde o óleo sobre tela. É importante demais para ser desperdiçada em jogos de computador apenas. Este manifesto é uma chamada à ação para pessoas criativas (incluindo, mas não limitadas a, designers de videogames e artistas plásticos) abraçarem este novo meio e começarem a perceber seu enorme potencial. Bem como um conjunto de diretrizes que expressam nossas próprias ideias sobre o uso da tecnologia. ” 76 Em tradução livre da autora: “3D em tempo real é importante demais para permanecer nas mãos de fabricantes de brinquedos e máquinas de propaganda. Nós precisamos arrancar a tecnologia de suas garras gananciosas e fazê-los passar vergonha ao produzir a mais impressionante arte a agraciar este planeta até então. ” 172

comerciais que, segundo afirmam, devem colaborar com outros artistas mais habilidosos, ignorando os críticos e os fanboys77 para focar no público que realmente interessa ao seu trabalho:

Commercial games are conservative, both in design as in mentality. They eschew authorship, pretending to offer the player a neutral vessel to take him or her through the virtual world. But the refusal to author results in a mimicing of generally accepted notions, of television and other mass media.78 (HARVEY & SAMYN, 2006)

Eles pontuam: “Pare de fazer jogos. Seja um autor. ”79

O direcionamento dado pelo manifesto, volta-se para o 'sentir', mais do que para o 'parecer'. O ambiente oferecido pelo criador, segundo defendem os autores, deve transmitir uma sensação específica, envolvendo o usuário numa sensação de realidade que é transmitida pelo controle em tempo real. Não precisa parecer real, em termos de qualidade e renderização, – estética contra a qual se posicionam - mas deve transmitir a sensação de realidade através do controle.

A experiência oferecida, em si, deve ser humanizadora, o que acontece através do ato de se contar histórias. Inerente à cultura, a prática de contar histórias elimina a alienação que desencadeia a agressão (HARVEY & SAMYN, 2006), ensinando àquele que acompanha, sobre si mesmo e sobre seus semelhantes. Propõe-se que, pela própria natureza do realtime 3D, não se deva ater à linearidade, mas abraçar à não-linearidade. Esta é a diferença do pensar ‘poético’, defendido no manifesto. O artista que trabalha com um ambiente em tempo real deve estar pronto para utilizar a interatividade e a imersão para contar uma história à uma platéia de uma pessoa só.

77 Fanboys são fãs incondicionais de determinadas marcas, franquias ou plataformas de games. O termo é pejorativo, haja visto que se tratam de pessoas com as quais não se consegue argumentar, por não aceitarem opiniões contrárias às suas, quanto ao objeto de sua adulação.

78 Em tradução livre da autora: “Jogos comerciais tão conservadores, tanto em design, quanto em mentalidade. Eles evitam a autoria, fingindo oferecer ao jogador uma embarcação neutral para leva-lo ou leva-la pelo mundo virtual. Mas a recusa do autor resulta numa repetição de noções aceitas de modo geral, da televisão e de outras mídias de massa. ”

79 Originalmente: “Stop making games. Be an author. ” 173

Em nome desta liberdade da interatividade, os autores fazem um apelo:

Don't make games. The rule-based structure and competitive elements in traditional game design stand in the way of expressiveness. And often, ironically, rules get in the way of playfulness (playfulness is required for an artistic experience!).80 (HARVEY & SAMYN, 2006)

As regras não devem nublar a experiência que o artista pretende transmitir ao usuário. O pensamento defendido tão enfaticamente no manifesto, na verdade, está em acordo com o direcionamento de boa parte dos game designers da atualidade. Quando o jogador é obrigado a pensar demais nas regras, ao invés de tê-las incorporadas naturalmente à experiência, isso significa que a mecânica não foi trabalhada adequadamente.

Os autores também rejeitam a arte moderna, como tendendo a ser cínica, autorreferenciada, temendo a beleza e o significado. Para eles a Game-art é arte moderna, quando o artista deveria fazer Art-games – provavelmente pensando na arte em primeiro lugar. O mesmo vale para o conceitualismo, que afastaria as pessoas comuns da arte.

A arte deve, segundo os autores, ser feita para pessoas e não como mera documentação, ser experienciada e não algo para se ler a respeito. Isso pode ser feito abraçando a tecnologia, especialmente para reproduzir e distribuir arte. Com isso, torna-se possível desenvolver o que chamam de “economia punk”, competindo com desenvolvedores comerciais.

A solução seria vender diretamente para o seu público aquilo que eles não encontram nos produtos comerciais: Originalidade, conteúdo com profundidade e uma estética alternativa. Foi exatamente partindo deste preceito que Tale of Tales lançou Sunset.

Sunset is a game in which you fall in love with somebody you never meet – as the passion rises, the city outside explodes and burns. We were super excited about that idea, but we also wanted to reach more

80 Em tradução livre da autora: “Não faça jogos. A estrutura baseada em regras e os elementos competitivos no game design tradicional ficam no caminho da expressividade. E frequentemente, ironicamente, regras ficam no caminho da brincadeira (brincadeira é requerida para uma experiência artística)!” 174

people with Sunset, so we did some research and added a million other things.81 (SAMYN: 2015)

Os artistas comentam que, originalmente, a ideia para a criação de Sunset surgiu há cerca de dez anos, quando pretendiam criar um game em primeira pessoa no qual o jogador pudesse controlar um fantasma que mudaria os itens de um apartamento de lugar - tais mudanças, realizadas durante a noite, influenciariam as vidas dos habitantes durante o dia. A ideia ganhou outras dimensões através de um novo roteiro, no qual o fantasma seria substituído por uma faxineira imigrante. A proposta ficou parada durante o tempo que se seguiu, - conforme o estúdio foi lançando outros produtos como The Path, Fatale e Vanitas - para ser resgatada com o aumento no interesse dos jogadores por jogos exploratórios em primeira pessoa. Precisamente o tipo de jogo que os artistas gostariam de produzir.

Para oferecer ao público uma experiência que fosse compreensível, principalmente em se tratando de um gênero de game estabelecido há bastante tempo, os artistas começaram sua pesquisa. A preocupação foi a de se entregar algo que fosse devidamente entendido e aceito, em lugar de se trabalhar com impulsos e tomar decisões instintivas. Com base em fóruns de discussão e blogs de revisão de games, foi possível perceber que, para criar um game que não se destacasse pela ação, ele deveria oferecer uma história interessante. Como a dupla, até então, não havia criado produtos que se pautassem por narrativas lineares, – admitidamente por insegurança em escrever - este foi o momento de começar a estudar para desenvolver uma história e contá-la. Dada a familiaridade dos artistas com soluções tecnológicas, foi através da utilização do programa Contour que o roteiro de Sunset começou a ganhar forma. Contour é um software para roteiristas e escritores criado por Jeff Schechter, criador do sistema e indicado ao prêmio Emmy. O sofware trabalha com a clássica estrutura de roteiro em três atos, que podem ser quebrados em quarenta e quatro pontos de virada (plot points). Esta fórmula ajuda a estruturar coerentemente roteiros e, ao conhecê-la, torna-se fácil analisar a composição de diversas histórias famosas presentes nos mais diversos meios. Obviamente, o sistema não garante a uma fórmula para o sucesso, mas auxilia na organização e no direcionamento do impulso criativo por meio de um propósito.

81 Em tradução livre da autora: “Sunset é um jogo no qual você se apaixona com alguém que nunca conheceu – conforme a paixão surge, a cidade explode e queima. Nós estávamos super excitados pela ideia, mas também queríamos alcançar mais pessoas com Sunset, então nós fizemos algumas pesquisas e adicionamos um milhão de outras coisas. ” 175

Por meio deste sistema, os artistas criaram Angela - a protagonista e faxineira que seria controlada pelo jogador - e Gabriel, - aquele que não é visto - o dono do apartamento. Os personagens compartilham do papel de órfãos simbólicos, pois Angela é imigrante, enquanto Gabriel foi destituído de seu status social e separado de sua família. Esta simbologia os aproxima, mesmo apesar de suas diferenças óbvias. No primeiro ato, o Generalísimo Ricardo Miraflores é apresentado como um ditador tirânico. Este constitui uma ameaça tanto à Gabriel, quanto à Angela, o que estabelece uma relação de preocupação mútua, dado um possível interesse romântico que poderia existir entre estes.

Na segunda parte do game, a protagonista encontra uma maneira de derrotar o vilão, tornando-se uma “guerreira”, no sentido figurativo. Entretanto, não há, em realidade, uma maneira pela qual ela possa derrotá-lo senão pela transformação do próprio vilão que, adquirindo novos conhecimentos, alteraria sua índole e seus ideais.

Neste ponto do desenvolvimento, os artistas admitem – o que é compreensível dado o teor do manifesto publicado anteriormente pelos mesmos – sentirem-se desconfortáveis com esta tentativa de produzir algo no que eles acreditam e que, ao mesmo tempo, fosse apreciado por um público mais amplo.

Entretanto, com a adição de detalhes relevantes para a profundidade da história e da experiência que se pretendia oferecer, o game foi ganhando corpo em alinhamento com a missão defendida pelo estúdio.

Como a maior parte dos jogadores de títulos produzidos pelo Tale of Tales pertence aos Estados Unidos ou ao Reino Unido, os artistas optaram por trabalhar com uma localização que não fizesse parte de um território familiar que parecesse familiar. Optou-se pela ambientação na América Latina, o que resultou num distanciamento que foi reforçado pela temporalidade: o game se passaria em 1972. Com este rompimento da familiaridade, esperava- se propor uma ficção mais crível:

As it turns out, 1972 is a super interesting time. It’s when the 20th century broke in two and different visions of society clashed head-on. The conservative mundane well-to-do bourgeoisie was confronted with the escalating demands for liberty and civil rights from countless 176

minorities. In 1972 the world shifted from a modern fairy tale land to a hard and cynical reality. We had discovered the man behind the curtain and still live in the shadow of that schism as the postmodern crisis remains unresolved.82 (SAMYN: 2015)

Em busca de referências, os artistas encontraram os primeiros filmes do agente 007, cuja temática de espionagem poderia se associar à aura criada pela investigação dos materiais que podiam ser encontrados no apartamento a ser explorado. As revistas Playboy da época também traziam fotos do sonho de consumo do homem solteiro: Coberturas duplex (Figura 11) equipadas com todo o conforto que a tecnologia poderia oferecer para uma vida vibrante em meio a uma metrópole. A decoração era eclética.

Figura 11- Imagem de referência utilizada pelos artistas e postada no blog de desenvolvimento. Originalmente publicada na revista Playboy.

82 Em tradução livre da autora: “Como se constata, 1972 é um momento super interessante. É quando o século XX se partiu em dois e diferentes visões da sociedade colidem. A burguesia conservadora mundana bem-comportada foi confrontada com as crescentes demandas por liberdade e direitos civis de incontáveis minorias. Em 1972 o mundo mudou de um conto de fadas moderno, para uma realidade dura e cínica. Nós descobrimos o homem por trás da cortina e ainda vivemos na sombra daquela separação conforme a crise pós-moderna permanece sem solução.” 177

A inspiração para a criação do apartamento do game veio, principalmente, das fotografias dos apartamentos de Yves Saint-Laurent, abarrotados de esculturas gregas, pinturas cubistas, flores e ornamentos de todos os tipos. Este era o tom dos anos 70 que os artistas pretendiam recriar a partir do game. Ainda faltava, porém, uma parte importantíssima a ser abordada no enredo do game: A negritude.

The final, huge, piece of the narrative puzzle was blackness. Auriea is black. In fact, she’s a black American immigrant just like the player’s character. 1972 Is the year when the trial against Angela Davis took place. It’s a long and complex story that by now we know way too much about but suffice it to say that this was a crucial point in the American civil rights movement. The trial demonstrated exactly how racist (and sexist) the American establishment really was and Miss Davis became a symbol for Black Power, almost as prominent as Malcom X and Martin Luther King.83 (SAMYN: 2015)

O nome da protagonista, Angela, foi dado em homenagem à Angela Davis. Sunset se propõe a ser uma narrativa revolucionária, confrontando o jogador com questões sociais que demandam reflexão e, por que não, ação. O game acabou se tornando, para os artistas, um veículo para assuntos que fazem parte de suas vivências e lhes são preocupantes. Tornou-se uma metáfora sobre como eles vêem o mundo.

Para transmitir esta visão, a dupla teve de estudar uma maneira de produzir o game, - como tantos outros projetos antes deste - sem conhecimentos profundos sobre linguagens de programação. A solução foi utilizar o engine gratuito Unity 3D, fazendo uso de um recurso chamado PlayMaker, que simplifica o processo de codificação através de uma interface visual (Figura 12).

83 Em tradução livre da autora: “O enorme pedaço final do quebra-cabeça narrativo era a negritude. Auriea é negra. De fato, ela é uma imigrante afroamericana exatamente como a personagem do jogador. 1972 é o ano quando o julgamento contra Angela Davis aconteceu. É uma história longa e complexa sobre a qual sabemos muito mais coisas agora, mas é suficiente dizer que tratou-se de um ponto crucial no movimento dos direitos civis americanos. O julgamento demonstrou exatamente o quão racista (e sexista) a fundação americana realmente foi e a Senhorita Davis se tornou um símbolo do Poder Negro, quase tão proeminente quanto Malcom X e Martin Luther King.” 178

Figura 12 - Interface visual de um dos trechos programáticos de Sunset

Sem precisar se preocupar excessivamente com a composição do código, os artistas puderam se concentrar no que realmente lhes interessava: a criação do ambiente e da experiência que se pretende transmitir. Samyn (2015) defende uma teoria de que o espírito de uma década não pode ser definido pelos seus anos iniciais. No caso de Sunset, que se passaria no ano 1972, o estilo que definiria o visual, a atmosfera e a sonoridade seria, então, o dos anos 60.

No design gráfico e de produto, ou mesmo na arquitetura, o estilo predominante ainda é aquele iniciado e consolidado nos anos 60. O tributo à tecnologia, presente nos múltiplos aparelhos para o conforto no lar se misturam ao ecletismo pelo qual ficou conhecida a década de 70, “antevistos em 1968 no (filme) Barbarella de Vadim e Odisséia no Espaço de Kubrick.”84 (SAMYN, 2015).

No cenário político e social, o espírito contestador dos anos 60 se manteve vivo na década seguinte. Angela Davis foi solta em 1972, num cenário em que a tensão entre uma elite autoritariamente conservadora e uma parcela da sociedade que demandava equidade de direitos

84 Originalmente: [...] “premonitioned in 1968 in Vadim’s Barbarella and Kubrick’s Space Odyssey. ” 179

crescia mais e mais. Por um lado, o movimento hippie dos anos 60 abriu as portas para a experimentação e a libertação sexual, questionando os estereótipos de gênero. Por outro, as mulheres continuaram a ser objetificadas e terem sua sexualidade explorada em nome de campanhas publicitárias ou do entretenimento - como nos filmes de James Bond. O mesmo dilema se aplicou ao aparecimento de mais personagens negros na mídia - presentes, sim, porém quase sempre estereotipados ou sexualmente objetificados (em especial no caso das mulheres).

O game de uma produtora pequena, - que trabalha com apenas uma pequena parcela do orçamento dos jogos comerciais lançados para multiplas plataformas – Sunset conseguiu um financiamento coletivo no valor de U$67.636,00 pelo Kickstater, tendo recebido apoio de um total de 2.228 pessoas. Ainda assim, há sempre o peso da comparação. Enquanto games triple- A buscam gráficos cada vez mais realistas, - que demandam um processamento de alta performance dos computadores e consoles em geral - os jogos produzidos em menor escala precisam encontrar uma linguagem visual própria, que os permita serem reconhecidos, compreendidos e apreciados. Uma das soluções às quais a maior parte dos criadores independentes recorre é investir num visual retrô:

The popular solution to the impossibility of competing with that stuff (simply because indies don’t have that kind of money) is to go retro. Making your game look old on purpose is a huge time saver and taps into the audience’s nostalgia. This would have been an interesting area to explore for Sunset, especially given that Sunset is set in the year that Pong was released: 1972. But we decided against that.85 (SAMYN, 2015)

Os criadores de Sunset se identificam com o imagético detalhado e a ambientação dos espaços navegaveis tridimensionais. Para criar lugares interessantes por onde os jogadores queiram passear e explorar, bem como personagens com os quais ele possa se identificar, a linguagem que a dupla buscava era mais figurativa e mais realista – embora ainda guardando determinado grau de estilização - do que o visual retrô pixelizado proporcionaria.

85 Em tradução livre da autora: “A solução popular para a impossibilidade de competir com esse tipo de coisa (simplesmente porque indies não tem esse tanto de dinheiro) é partir para o retrô. Fazer seu próprio jogo parecer velho de propósito poupa muito tempo e toca na nostalgia da sua audiência. Esta teria sido uma área interessante para explorar com Sunset, especialmente pelo fato de Sunset se passar no ano em que Pong foi lançado: 1972. Mas nós decidimos ir contra esta ideia. ” 180

O grande desafio estava em oferecer um nível de realismo que eles fossem capazes de criar com bem menos recursos do que os games cinematográficos encontrados no mercado.

O que a dupla percebeu foi que, mesmo não abrindo mão de uma linguagem figurativa com um espaço tridimensional navegável, seria possível entregar uma experiência esteticamente interessante, dentro do orçamento, sem que isso afetasse negativamente a percepção do jogador sobre a obra. O jogador costuma buscar o game como uma válvula de escape, uma fantasia num mundo ficcional dentro do qual ele possa se distanciar da realidade. Com base nisso, o ‘quão realista’ os graficos se apresentam não é a verdadeira questão a ser levantada, mas sim o ‘quão engajado’ o jogador está no mundo que lhe foi proposto. Isso pode ser feito através de um bom gameplay, de uma boa história e não necessariamente de uma linguagem visual em particular.

It wasn’t just practical reasons that drove us to stylization in Sunset. Conceptually, realism is easy. This is probably one of the reasons why it’s so ubiquitous in a field where technology dominates. Copying what you see is a straightforward idea and offers a clear goal to compare your efforts to. When done literally, there’s no artistically creative thinking required.86 (SAMYN, 2015)

A estilização de Sunset, então, resolveria tanto a questão da limitação técnica, quanto abriria maiores possibilidades para a criação e a transmissão da visão artística dos produtores. No rompimento com o compromisso do realismo, em equilíbrio com a busca pelo figurativo – sem apelar para a abstração completa – os artistas conseguiram harmonizar a mensagem que se visava transmitir. Para realçar os contornos geométricos e as linhas limpas do recurso arquitetônico setentista, a iluminação foi exagerada num por do sol literal (Figura 13), entremeado na narrativa literária e visual do game. Angela visitaria o apartamento sempre ao final da tarde, para encontrar um mundo enclausurado de tons alaranjados.

86 Em tradução livre da autora: “Não foram apenas razões práticas que nos levaram à estilização em Sunset. Conceitualmente, realismo é fácil. Esta é, provavelmente, uma das razões pelas quais é tão ubíquo num campo onde a tecnologia domina. Copiar o que você vê é uma ideia direta e oferece um objetivo claro com o qual comparar seus esforços. Quando feito literalmente, não é necessário nenhum pensamento criativo. ” 181

Figura 13 - O apartamento banhado pelo sol da tarde de Sunset.

Partindo da apreensão da fala de Fumito Ueda, - game designer responsável por , um dos jogos que influenciou os artistas - foram dados detalhes ao que realmente importava, deixando o restante do ambiente difuso e quase disperso. Neste ambiente, fotografias que pertenceriam a Ortega tiveram de ser trabalhadas para parecer estilizadas (Figura 14) e não contrastarem agressivamente com a proposta visual:

A side effect of deviating from reality is that photographs look really weird in our world. And there’s lots of family photos of Ortega, and newspapers and magazines. So Auriea developed a style of fudging with photographic collages, halftone effects, and drawings that makes the pictures still read as photographs but look like they belong in our stylized apartment.87 (SAMYN, 2015)

87 Em tradução livre da autora: “Um efeito colateria de desviar da realidade foi que fotografias parecem realmente estranhas no nosso mundo. E há um monte de fotos da família de Ortega, e jornais e revistas. Então Auriea desenvolveu um estilo de falsificação com colagens fotográficas, efeitos de meio-tom, e desenhos que fazem as imagens ainda serem lidas como fotografias, mas parecendo pertencer ao nosso apartamento estilizado. ” 182

Figura 14 - As fotografias trabalhadas digitalmente para combinarem com a proposta estilizada do game.

Na história de fundo do personagem Gabriel Ortega, temos um amante de artes que pôde se tornar um curador e patrono cultural graças ao seu casamento com Maria Luisa Veleta, uma mulher rica. O apartamento de Ortega reflete essa personalidade: Um colecionador que luta para resgatar obras de arte, discos, livros, de uma sociedade que decai graças a um regime de opressão.

As posses de Ortega contrastam com o cenário do apartamento modernista, o qual ele detesta. Um modernismo que rompe com a beleza da forma, pasteurizando com seu estilo internacional, desumanizando a arte. Razão pela qual Ortega leva este nome, em homenagem ao filósofo espanhol José Ortega y Gasset que, em 1925 publicou A desumanização da arte. (SAMYN, 2015).

Both Angela and Gabriel attack the oppressive sterility of the modernist penthouse in their own way. Gabriel introduces what would be considered kitsch. Paintings, sculptures, antiques and even pieces of furniture that bring story and color and organic form into the austere apartment. It’s an act of rebellion. Angela attacks the architecture through domesticity: through simple acts of housekeeping and decoration, she forces the perpendicular walls to form a home for Gabriel, and to some extent for herself. Not the grand sublime gestures 183

of great art but the simple loveliness of pretty things. Putting a flower in a vase, hanging a curtain, mending a sweater suddenly become the most subversive acts of all.88

Para Samyn, a estética da sensibilidade está contaminada pelo consumismo e pela cultura pop. Segundo o autor, os museus abarrotados de peças de arte são deixados em segundo plano pelo público que prefere o consumo rápido de filmes blockbusters e conteúdo disponibilizado pela internet. Comenta, ainda, que para os padrões da indústria dos videogames, quando um produto é considerado um trabalho de arte, isso é visto como algo negativo: “Aspirar beleza e grandiosidade é considerado pretensioso.”89 (SAMYN, 2015)

A dupla se interessou pelos videogames como ambientes de exploração e pelos seus personagens como gatilhos para a criação de histórias que nem sempre seguiam o roteiro originalmente proposto pelos criadores dos títulos que eles jogavam. A partir de suas experiências pessoais, os artistas começaram a vislumbrar as possibilidades de utilização dos videogames como veículos para a proposição de novas realidades e situações que pudessem ser interpretadas subjetivamente, em conformidade com o contexto da cultura conteporânea onde o retraimento não diminui as características complexas do cenário.

Como a dupla vê os videogames mais ligados à arquitetura do que aos filmes, de um modo geral, a maneira como eles se relacionam com este meio é a da proposição de espaços de exploração. A proposta, mais do que do oferecimento de uma nova realidade, é a de complementar a experiência que o jogador já possui na vida real, enriquecendo-a com o prazer e a beleza deste transito por um mundo imaginário.

Entretanto, todo esse investimento em trazer para os consumidores de games os princípios que se assemelham em muito aos encontrados na arte clássica, não parece ter surtido

88 Tradução livre da autora: “Tanto Angela, quanto Gabriel, atacam a esterilidade opressiva da cobertura modernista cada um à sua maneira. Gabriel introduz o que poderia ser considerado kitsch. Pinturas, esculturas, antiguidades e até mesmo peças de mobiliário que trazem história e cor e forma orgânica para dentro do apartamento austero. É um ato de rebelião. Angela ataca a arquitetura através da domesticidade: Por simples atos de serviços domésticos e decoração, ela força as paredes perpendiculares a formarem um lar para Gabriel, e para alguma extensão para ela mesma. Não os grandiosos e sublimes gestos da grande arte, mas a simples amabilidade das coisas bonitas. Colocar uma flor em um vaso, pendurar uma cortina, consertar um suéter, subitamente se torna o mais subversivo de todos os atos. ”

89 Originalmente: “To aspire to beauty and greatness is considered pretentious. ” 184

o resultado esperado, haja visto que um mês após o lançamento comercial de Sunset, seus criadores “admitiram a derrota” num texto intitulado And the sun sets..., postado no blog de desenvolvimento do game.

Com doze anos de existência e conseguindo se sustentar através de projetos para sua audiência de nicho, Tale of Tales chegou a um ponto em que a expansão parecia o próximo caminho a se trilhar. À frente do estúdio, Harvey e Samyn enxergaram este direcionamento como uma obrigação moral, dizem, mais do que como uma maneira de ganhar dinheiro. Seu propósito era “tentar transformar o mundo num lugar melhor ao compartilhar a arte através dos videogames”90 (HARVEY & SAMYN, 2015).

Como na Bélgica o fomento para a criação de videogames como arte encontrava-se num momento de crise, os artistas resolveram se voltar para o público consumidor, visando uma abrangência maior do que sua audiência tradicional. A abordagem, porém, foi infeliz. Na tentativa de defender a sua visão, acima de conhecer (e atender) os desejos deste “público mais amplo”, os artistas não conseguiram atingir seu objetivo.

Mesmo tendo arrecadado no Kickstarter cerca de U$40.000 a mais do que o valor esperado, os artistas relataram que a quantidade de cópias entregues do game depois de um mês foi cerca de 4.000, sendo que boa parte destas não constitui venda, mas sim a entrega aos apoiadores do próprio projeto. Naquele momento o estúdio se encontrava com dificuldades para se manter em funcionamento, enquanto buscava uma maneira de pagar suas dívidas.

Depois dessa experiência negativa, o estúdio se posicionou de maneira categórica, enfatisando que, a despeito de sua tentativa de fazer games para uma audiência mais ampla, não obteve sucesso. Tendo declarado publicamente que não faria mais videogames – ou ao menos videogames comerciais – a Tale of Tales publicou os seguintes tópicos na sua postagem final sobre o Sunset:

Being wrong will set you free

We studied successful games and applied our findings to the design of Sunset. And while the inclusion of certain conventions seems to have helped some people enjoy the game, it didn’t affect the size of our audience much.

90 Originalmente: “To make the world a better place through the sharing of art as videogames” [...] 185

We spent a lot of money on a PR company who got us plenty of press, took some work and worries off our shoulders, and found us other marketing opportunities. But it didn’t help sales one bit.

We even took out an advertisement on Rock, Paper, Shotgun, where we figured the people most interested in Sunset would be gathered. They must all use AdBlock because that had no effect whatsoever.

We worked hard on presenting a gentler Tale of Tales to the public. Which basically meant that Michaël was forbidden to talk in public and Auriea often just smiled at the camera, parroting words whispered in her ears by communication coaches. Didn’t make a difference.

So now we are free. We don’t have to take advice from anybody anymore. We were wrong. Everybody whom we consulted with on Sunset was wrong.91 (HARVEY & SAMYN, 2015)

Três meses depois, tendo vendido cerca de dezessete mil cópias de Sunset, o estúdio conseguiu se recuperar das dívidas, mas os artistas não mudaram de opinião quanto à criação de jogos comerciais.

Estabilizando sua situação financeira a partir de doações, crowdfunding e patrocínio pela plataforma Patreon, a dupla se reaproximou dos ideiais declarados em 2006 através do Realtime Art Manifesto, anteriormente apresentado.

91 Em tradução livre da autora: “Estar errado vai te libertar: Nós estudamos jogos de sucesso e aplicamos nossas descobertas em Sunset. E, apesar da inclusão de certas convenções parecerem ter ajudado algumas pessoas a apreciar o jogo, isso não afetou muito o tamanho do nosso pú- blico; Nós gastamos muito dinheiro com uma companhia de relações públicas que nos conse- guiu muita visibilidade na imprensa, tirou algum trabalho e preocupações dos nossos ombros, e nos encontrou oportunidades de marketing. Mas isso não ajudou nas vendas nem um pouco; Nós até mesmo colocamos anúncios no Rock, Paper, Shotgun, onde nós percebemos que a maior parte das pessoas interessada em Sunset estaria reunida. Eles devem todos usar AdBlock, porque isso não teve efeito algum; Nós trabalhamos duro para apresentar uma versão mais su- ave do Tale of Tales ao público. O que basicamente significou que Michaël foi proibido de falar em público e Auriea só sorriu para a câmera, repetindo palavras sussurradas nos ouvidos dela pelos consultores de comunicação. Não fez diferença. Então agora nós estamos livres. Nós não temos que receber conselhos de mais ninguém. Nós estávamos errados. Todos aqueles com os quais nos consultamos sobre Sunset estavam errados. 186

3. Shiny

No ano de 2014 foi fundada a companhia independente de desenvolvimento de games Garage 227 Studios, atualmente contando com um estúdio em São Paulo, Brasil, um escritório em Los Angeles, Califórnia e uma equipe de oito integrantes.

O game Shiny foi a primeira produção totalmente independente do grupo, – contando, então, com apenas os três sócios fundadores como integrantes - no sentido que esta iniciativa não recebeu nenhum tipo de recurso externo ao estúdio para poder acontecer. Todo o fomento necessário para o desenvolvimento do game foi conseguido por meio da arrecadação resultante de projetos anteriores da empresa, bem como pelo pagamento recebido por aulas ministradas na Axis – School of Visual Effects – uma escola especializada em efeitos visuais, Game Design, 3D e Concept Art localizada também em São Paulo.

Através de um artigo de três partes publicado na versão online da revista Galileu intitulado O processo por trás da criação de um Jogo Indie, um dos co-fundadores da Garage 227 Studios, Daniel Monastero, relata os passos que levaram ao desenvolvimento deste que foi um game selecionado pela IGN Brasil como o melhor jogo brasileiro da Brasil Game Show.

Partindo do princípio da ‘jogabilidade em primeiro lugar’, um dos oito valores adotados pela Blizzard Entertainment, – desenvolvedora de games com renome internacional fundada em 1994 - Monastero (2015) explica que a proposta era a de se criar um game do gênero plataforma, onde seriam propostos obstáculos para o jogador ultrapassar por meio de pulos. Visualmente, seria desenvolvido um ambiente 3D no qual se utilizaria uma câmera fixa numa perspectiva relativa, resultando numa vista “cavaleira” à qual os game designers comumente chamam de 2.5D (lê-se “dois D e meio”). O diferencial do jogo estaria no recurso da iluminação - que faz referência ao título - partindo do personagem controlado pelo jogador. Em via disto, a energia utilizada pelo personagem teria uma limitação e seria consumida aos poucos. Uma vez terminada esta energia o personagem morreria e o jogador perderia a partida.

A ideia do projeto, conta Monastero (2015), surgiu em 2013 e com um título ligeiramente diferente: Shine. Na ocasião, a equipe chegou a desenvolver o concept design de Kramer (Figura 15), o protagonista, além de uma fase demo para apresentação a um estúdio Norte Americano, com o objetivo de conseguir uma parceria - que acabou não se concretizando. 187

Figura 15 - Primeiros rascunhos de Kramer, o protagonista de Shiny.

Sem desanimar, a equipe continuou refinando a ideia original, tratando de abandonar a ideia da iluminação própria do personagem e desconectando, portanto, o visual deste da associação com uma grande lâmpada ambulante. Com a proposta do personagem se alterando e sem a necessidade do controle de iluminação previsto anteriormente no gameplay, a equipe decidiu migrar do engine até então utilizado – Unity – para o Unreal 4 Engine, dada a sua familiaridade com a versão anterior do mesmo (Unreal 3) e o fator custo, que era, então, de U$19,00. Atualmente, o desenvolvedor auto-financiado tem a vantagem de dispor destes engines gratuitamente. O pagamento é feito apenas a partir de um determinado faturamento: 188

Hoje, Unreal Engine 4 e Unity 5 são gratuítas e qualquer um pode baixar e usar. A remuneração dos fabricantes delas é baseada em Royalties Share - paga-se 5% do faturamento para a a partir dos U$ 3.000 brutos arrecadados com o produto produzido usando a engine. (MONASTERO, 2015)

A preocupação com a maneira que o jogo seria fomentado, bem como com o custo de produção, mostra o posicionamento da equipe, a qual vê o desenvolvimento de games como qualquer outro empreendimento empresarial. O Garage 227 Studios visa gerar lucros com seus projetos, para poder reinvestir em novos produtos e se expandir ao longo do tempo. Desta forma, nada mais lógico que elaborar de um plano de negócios para orientar o processo com base em objetivos bem definidos. Foram estabelecidos, assim, três objetivos gerais e sete objetivos específicos.

Os objetivos gerais compreenderam, primeiramente, o desejo de empreender e, em consequencia disso, expressaram a necessidade de se conhecer melhor o mercado no qual se pretendia atuar. Monastero (2015) explica que no ano de 2014 a equipe buscou a formalização do estúdio com base na consultoria de um escritório contábil. O impulso veio atender à demanda, conta:

[...] a necessidade de emissão de notas fiscais para diversos clientes; junção de vários conhecimentos dentro de um mesmo lugar para buscar novos e mais complexos projetos e, por fim, gerar responsabilidade e comprometimento com o crescimento sustentável da empresa.

Segundo o autor, a equipe se vê motivada pela perspectiva de lucrar com seus trabalhos e investir em novos projetos. A paixão pela criação de games, compartilhada pelo time, caminha lado a lado com a ambição de crescimento do estúdio enquanto empresa reconhecida pelo mercado. Para evitar riscos desnecessários, é preciso conhecer a realidade dos custos envolvidos no desenvolvimento, bem como “traçar objetivos de longo prazo para seus projetos” […] (MONASTERO, 2015).

Para se tomar decisões estratégicas, é necessária a compreensão do cenário onde se atua. Conhecer o mercado de games independentes no Brasil e no mundo se tornou mais fácil 189

graças ao compartilhamento de informações pela internet. Alguns sites específicos da área ganharam reconhecimento e hoje possuem credibilidade entre os desenvolvedores para servirem como fonte de pesquisa, trazendo relatos sobre os processos de desenvolvimento e as experiências – positivas ou negativas – de outros criadores.

Criar um game também envolveria uma boa dose de planejamento no que diz respeito à imagem que o estúdio pretendia passar diante de outros desenvolvedores e de possíveis jogadores:

Nós que teríamos que nos apresentar ao "mundo" como estúdio, artistas e empresários. Para isso precisaríamos estar abertos a todo tipo de experiência advinda dessa exposição, aprender com nossos erros, receber críticas, elogios e conselhos e, por fim, buscarmos sempre fazer o melhor trabalho possível. (MONASTERO, 2015)

Assim, uma parte dos esforços do time foi definir uma estratégia básica de divulgação, trabalhando nos campos do marketing e das relações públicas, para que o esforço criativo de Shiny fosse reconhecido e a imagem transmitida para o público fosse coerente com a intenção da equipe.

Dados estes estabelecimentos gerais, Monastero (2015) discrimina os objetivos específicos do projeto de Shiny:

1. Terminar de produzir o jogo, inteiro, final, de verdade verdadeira! 2. Ser aprovado no Steam Greenlight. 3. Demonstrá-lo na BGS 2014 de alguma forma (na época não sabíamos se seríamos expositores ou se simplesmente apareceríamos lá com um laptop de baixo do braço). 4. Estabelecer relacionamento com empresas fabricantes de consoles: Microsoft, Nintendo e Sony. 5. Negociar com pelo menos um publisher. 6. Gerar portfólio para nossas competências como empresa. 7. Ter lucro suficiente para pagar a produção do jogo.

Com um bom delineamento das metas do lançamento de Shiny, a equipe trabalhou para documentar o roteiro do game, seus níveis e um cronograma organizado. Como o método de trabalho do estúdio privilegia a definição do gameplay em primeiro lugar, a roteirização 190

surgiu depois, em função deste primeiro. No caso de Shiny, o enredo evoluiu de maneira coerente com o processo de desenvolvimento. A seleção da trilha sonora, por exemplo, influenciou na roteirização de alguns momentos do game, em decorrência da sensação que se visava transmitir ao jogador. A solução para conduzir o processo foi definir, em linhas gerais, a narrativa principal do game:

Kramer 227 é um robô que foi abandonado há muito tempo. Após um grave acidente ele acorda sozinho, com pouca energia e apenas duas diretrizes: encontrar mais energia para sobreviver e tentar reparar os danos causados pelo acidente. Há muito tempo desligado ele é um robô com problemas de energia. A cada passo, cada pulo, cada minuto ele perde energia. Energia é vida, energia é limitada, como você vai usá-la? (MONASTERO, 2015)

Com base nessa storyline92 o grupo pôde construir fluxogramas (Figura 16) com os principais acontecimentos do game os quais deram origem à definição dos níveis (Figura 17).

Figura 16 - Um dos fluxogramas simplificados de Shiny.

Figura 17- Rascunho de um dos níveis de Shiny.

92 Storyline é o resumo que traz a ideia principal e o conflito que serão transformados no roteiro. Devido ao seu caráter de síntese, uma boa storyline costuma ter até cinco linhas. 191

As tarefas foram então divididas entre os membros da equipe, visando agilizar a prototipagem do game. Os níveis foram rascunhados em maiores detalhes e suas respectivas artes de conceito foram criadas para servirem de referência à modelagem em 3D que viria a seguir, utilizando o software Autodesk Maya LT – também utilizado nas animações do game.

Apesar de terem papéis definidos, os membros da equipe trabalharam de maneira integrada, contribuindo ativamente no desenvolvimento das tarefas uns dos outros. Uma sinergia que se provou bastante eficiente, como relata Monastero (2015):

[...] vocês podem ver um concept art do nosso artista Vitor Furtado para um dos desafios encontrados no capitulo 2 do Shiny, uma fase industrial. Para esse objeto o Vitor detalhou bastante a arte, aproveitou para descrever o funcionamento da maquina e, assim ajudou a preparar o terreno para as animações que serão feitas por mim. [...] o modelo já terminado, modelado e texturizado também pelo Vitor que, como todos nós do Garage 227 atua como coringa, ele produz concept art e depois modela e texturiza, reduzindo, assim, o tempo de produção.

Figura 18 - À esquerda, a concept art de Vitor Furtado. À direita, o modelo tridimensional pronto.

A equipe trabalhou na criação dos assets tridimencionais utilizando ferramentas como Adobe Photoshop, Z-Brush e o plug-in Quixel SUITE, compondo, aos poucos o visual desejado para o game. Com os modelos prontos, passou-se à estruturação de seus esqueletos e 192

ao processo de rigging93 consecutivamente. Após toda a preparação, todos os assets foram portados para o Unreal Engine 4, onde o game de fato foi construído.

Nesse momento a iluminação começa a ser colocada, efeitos e a programação é criada para dar vida ao jogo, configurações de controles, energia, morte e tudo mais, na Engine é onde o trabalho começa e depois termina, o jogo é o mais importante. (MONASTERO, 2015)

Quando da composição deste trabalho, o game se encontrava a venda pela Steam, e seria lançado ainda no mês vigente (outubro) para o Xbox, tendo perspectivas de lançamento para o PlayStation. Shiny é um game plataforma não violento. Isto o torna recomendável para crianças a partir de 6 anos de idade, embora a equipe tenha idealizado o projeto como sendo voltado ao público adulto.

Embora a parte de desenvolvimento da Garage 227 Studios seja centralizada aqui no Brasil, a parte de relações públicas e marketing fica a critério do escritório localizado em Los Angeles, contando com parcerias com empresas como Microsoft e Sony (IGN Brasil, 2016).

Um diferencial no relacionamento entre os desenvolvedores e a comunidade gamer, deu-se pela colaboração de alguns representantes desta na criação dos achievements94 de Shiny. A equipe sabia da importância em se propor desafios que destravariam conquistas, haja visto que muitos jogadores têm esse interesse ou, até mesmo, jogam com o foco em desbloquear todas essas possibilidades. Todavia não se sabia exatamente quais desafios seriam interessantes para o público-alvo. Com base nesse diálogo com estes colaboradores externos, foi possível criar desafios interessantes e manter uma postura positiva diante das críticas construtivas da comunidade gamer.

93 Antes de ser animado, um modelo em 3D precisa passar por um processo onde são estabelecidos o seu esqueleto (bones) e as juntas que conectarão suas partes e farão o corpo se mover em conformidade. Este processo é chamado de rigging.

94 Achievements são conquistas colecionáveis que podem ser desbloqueadas quando o jogador cumpre determinadas tarefas no game. 193

VIII. CONCLUSÃO

O estudo e pesquisa tendo o videogame como objeto de interesse vêm se popularizando ao longo dos anos, acompanhando a consolidação deste que é um meio promissor para se contar histórias, gerar empatia e transmitir experiências. Ainda assim, em diversos setores encontramos concepções previamente estabelecidas e generalistas quanto ao valor expressivo e cultural deste meio. Em parte, - como pudemos ver na apresentação de uma breve história do surgimento do videogame – por se tratar de uma tecnologia emergente que, apesar de tomar forma em meio à academia, rapidamente tomou contornos comerciais. O que havia sido, inicialmente, experimentação, tornou-se uma ciência voltada ao propósito de entreter para lucrar. Por outro lado, temos artistas, acadêmicos, críticos de artes, produtores, etc., que, muitas vezes, se valem da insubstancialidade do conceito artístico para reforçar o distanciamento, ainda consideravelmente grande, existente entre o público geral e a arte. Cria-se um processo de “elitização” artística, reforçado pelos paradigmas da ‘arte pela arte’ e da exibição museológica como certificação do que deve ou não ser considerado arte.

Quase no mesmo período em que se iniciou esta pesquisa, houve afirmações na grande mídia por parte de figuras públicas afirmando categoricamente que o videogame não faria parte da cultura. No começo do século XX, o teórico Johan Huizinga versava sobre os jogos como cultura, salientando a importância de sua propagação tanto por adultos, quanto por crianças. Pode-se dizer que discussões sobre a importância da arte e o caráter cultural dos jogos serão recorrentes ainda por algum tempo. Principalmente levando em conta o caminhar das nossas condições sócio-culturais no presente momento, quando os valores são pautados, quase exclusivamente, por cifras monetárias.

O artista, é claro, não está alheio a esta situação. Negar a existência do sistema, não vai poupar ninguém de sofrer as consequências do meio no qual se está inserido. Assim, uma maneira de mudar a realidade das relações de produção, - buscando reconhecimento de órgãos públicos, instituições acadêmicas e curadorias especializadas – é se infiltrar e compreender o funcionamento de todo o processo. Foi isso o que se tentou fazer aqui.

Se os desenvolvedores de videogames querem ver suas obras serem respeitadas enquanto meios de expressão que podem proporcionar experiências estéticas, devem aprofundar suas pesquisas no campo da subjetividade. É importante, entretanto, que se 194

mantenha o equilíbrio entre o conhecimento acadêmico e o da indústria, pois o game depende do jogador, depende da estruturação lógica para transmitir uma sensação ou uma narrativa que fale a este elemento externo. Sem o engajamento deste, não há sentido em se utilizar tal meio.

O exercício da pesquisa, entretanto, é uma atividade que consome quem a pratica, envolvendo, tragando e formando armadilhas capazes de conduzir ao isolamento e a alienação como somente o vício nas bases teóricas, retroalimentadas, é capaz de fazer. A pesquisa na área de arte, mais ainda a de teor acadêmico, não deve existir para inflar egos, expandir status, ou pior, distanciar, ainda mais, o artista da sociedade na qual ele toma parte. Deve, sim, levantar questionamentos, identificar problemas e trabalhar com base na contextualização social, econômica e política para tentar aproximar a população das expressões artíticas e manifestações culturais.

Vimos que esta população, enquanto público consumidor, tem suas próprias demandas. Na maior parte das vezes, os produtos de entretenimento que são desenvolvidos, longe de atender à essas exigências, impõem um determinado modelo com o qual o consumidor acaba por se acostumar, se satisfazendo. Esta formatação torna difícil a proposição de novas ideias, como pudemos ver pela narrativa exposta na documentação de Sunset. Jogos de grandes proporções, para um público genérico, sempre deixarão uma parcela não atendida. Pudemos ver a expressão deste fato entre os fãs da saga original de Castlevania.

Há, no entando, brechas entre tais abordagens, com as quais se pode trabalhar dignamente, arrecadando capital para o reinvestimento em novos produtos que podem (por que não?) carregar propostas estéticas complexas. Para cada game lançado tendo em vista o público de massa, - seja este título de grandes ou pequenas proporções – há um sem número de minorias que não tiveram seus anseios atendidos. Pode-se trabalhar com estes nichos, numa produção mais democratizada. Pode-se proporcionar a formação destas mesmas minorias para que elas passem a produzir também seus videogames. Em suma, podemos nos utilizar da popularização dos conhecimentos de produção e da facilidade em conectar pessoas numa “inteligência coletiva”, para diversificar a produção, artística e socialmente.

No que diz respeito, especificamente, aos problemas abordados por este trabalho, podemos formular algumas respostas que condizem com a realidade do momento. Como vimos na apresentação deste, as respostas que surgem da investigação científica nada mais são senão paradigmas temporários que estão sujeitos à reavaliação futura. Por essa razão, são apresentadas 195

considerações pertinentes ao momento de publicação deste trabalho, as quais, ocasionalmente, precisarão ser revistas.

Nos perguntamos a razão dos videogames, se vistos como meios artísticos, terem sua credibilidade questionada tanto pela crítica de arte especializada, quanto pela academia. Partimos do critério comparativo estabelecido por este mesmo “júri”, o qual possui mais facilidade na aceitação de propostas artísticas pautadas pela utilização de médiuns mais tradicionais, tais como a pintura, a escultura e a fotografia. Ora, a resposta para este dilema peculiar pode ser encontrada na observação feita a respeito, justamente, deste ultimo meio. Aqui, nos baseamos nas considerações de Walter Benjamin que levanta a problemática da reprodutibilidade e da autenticidade da obra, ainda tão atual. Vimos que o meio carrega, sim, características próprias que pesam sobre a maneira que a obra é elaborada. Não poderia ser diferente. Entretanto, o julgamento costuma ocorrer de maneira inversa, partindo do suporte para se atribuir maior ou menor valor a uma obra, o que, fatalmente, incorre no erro. Não se pode dizer, então, que o meio seja totalmente estéril, porém, de outro lado, não se pode afirmar que o meio carregue todas as características qualitativas determinantes da valoração estética de uma obra.

Isso nos leva ao segundo questionamento levantado na problematização deste trabalho, referente a quem se presta o serviço da desvalorização do game enquanto meio artístico. Esta resistência na aceitação do game enquanto possível produto passível de fruição estética interessa a uma elite que conceitualmente exerce domínio sobre as classes que podem ser chamadas de ‘dependentes’. Existem duas maneiras pelas quais esta elite intelectual pode agir: através da resistência pura e simples, trabalhando a descredibilização e negação das expressões de arte populares ou, em ultima instância, consumidas por um público amplo e; num segundo momento – que estamos vendo surgir, a medida que a pura negativa perde sua força – pela tentativa de separar quais as formas de expressão artística que se valem da tecnologia e que podem ser legitimadas, muitas vezes, por conceitos que já não fazem sentido em meio à forma de consumo praticada na contemporaneidade. Busca-se separar, catalogar e legitimar quais os games – embora isso ocorra com outras manifestações artísticas contemporâneas, este é o foco do qual tratamos aqui – detentores de potencialidade estética e quais aqueles que podem ser vistos como mero entretenimento. Ora, vimos que a tendência é que estas divisões se tornem cada vez mais difusas e que a necessidade de legitimação por meio de críticas formais ou espaços expositivos diminua, talvez ao ponto de desaparecer num futuro não muito distante. Esta probabilidade certamente assusta a uma determinada classe de críticos, artistas e 196

formadores de opinião, pois o que mais se ouve são brados alarmistas sobre como “não se consome arte hoje em dia”, quando na verdade a maneira de consumir arte está simplesmente se atualizando. Paralelamente, a maneira como se faz arte também está se modificando – espero, com uma certa dose de otimismo, para melhor – por meio da popularização dos fazeres, dos saberes e das ferramentas. No que diz respeito aos games, os jogadores sentem-se mais próximos dos criadores, vêem-se capazes de contar suas próprias histórias e encontram, nos nichos, pessoas dispostas a conhecer sua realidade.

Tal proximidade faz com que os produtores de games, nas mais diversas escalas, - dos independentes, às grandes desenvolvedoras – pesem com maior cautela as decisões criativas que são tomadas. Se antes se produzia, pura e simplesmente, para o publico comprador mais amplo possível, atualmente, quem produz, procura alinhar seus interesses pessoais às demandas de públicos mais diversificados, sem deixar de lado a viabilidade financeira do projeto. Obviamente, resiste a produção da indústria de massa (sobre a qual muito pode ser dito nos mais diversos setores, não somente no de games), a qual deve se manter estável por um bom tempo. Todavia, o espaço para produções alternativas só vem crescendo a cada dia. O público, por sua vez, estando mais a par dos processos de produção, vem se tornando mais e mais crítico. As decisões finais ainda são tomadas pelo produtor, mas a opinião do público passou a ser levada em conta desde que se desenvolveu um processo específico para a criação de videogames que herda do marketing a prática dos testes de aceitação. Mais recentemente, - em função das novas mídias e do surgimento de influenciadores entre aqueles que, até então, não eram vistos como comunicadores – as opiniões tornaram-se mais exacerbadas e difíceis de serem ignoradas pelos produtores. A era do consumidor passivo ficou para trás e lidar com a crítica se tornou bem mais difícil. Para os responsáveis pelo marketing e pelas relações públicas, as novas mídias adicionaram uma incógnita à equação: os influenciadores, como o próprio termo diz, não apenas personificam os gostos de seus semelhantes em meio ao público geral, mas influenciam suas opiniões. Neste processo, embora a aura sacra das obras de arte tenha se desconstruído, podemos dizer que se forma uma nova aura entorno das obras contemporâneas. Em se tratando dos games, esta aura pode ser composta pelo julgamento positivo ou negativo dos canais de comunicação, da crítica especializada e dos influenciadores. É uma característica de nossa época, inundada por ofertas de produtos dos mais diversos, que tenhamos nossa atenção capturada pelos títulos de maior destaque: seja pelos comentários elogiosos ou negativos. Desta forma é difícil afirmar que não seremos de alguma forma influenciados logo neste primeiro contato em nosso julgamento sobre uma obra. O mesmo pode ser dito da academia. 197

É importante que, enquanto estudiosos da área de artes, de comunicação, de games ou afins, bem como representantes da indústria desenvolvedora, do mercado, da cena independente ou da academia, procuremos nos manter neutros no primeiro contato com uma obra, para que sejamos justos na análise e no julgamento desta. É nosso papel não nos destituirmos da responsabilidade de formarmos uma opinião pautada por princípios mais universais que o mero juízo de gosto ou que a pressão da opinião de outrem. Chamo os colegas a esta reflexão e à assunção deste papel de maneira responsável.

198

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