PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Lidia Zuin de Moura

Fotografando sombras Um olhar sobre as imagens obscuras de Gottfried Helnwein

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

São Paulo 2014 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Lidia Zuin de Moura

Fotografando sombras Um olhar sobre as imagens obscuras de Gottfried Helnwein

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Dr. Norval Baitello Junior.

São Paulo 2014

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Fotografando sombras Um olhar sobre as imagens obscuras de Gottfried Helnwein

Lidia Zuin de Moura

Resumo

Esta pesquisa visa investigar e compreender as estratégias discursivas empregadas nas construções das imagens de Gottfried Helnwein, fotógrafo e pintor hiperrealista austríaco. Suas obras unem o tema do nazismo e da violência numa estética soturna que dialoga com personagens da cultura pop. A pesquisa se divide em três eixos: 1. O contexto histórico e cultural vivido por Helnwein e a relação do público com suas imagens; 2. Os universos culturais que exerceram influência sobre Helnwein: Barroco e Tenebrismo, sombra junguiana, Acionismo Vienense, Pop Art, Hiperrealismo; 3. Análise das séries The Murmur of the Innocents (2009-2013), The Disasters of War (2007-2011), Epiphany (1993-1998) e The American Paintings (2000-2003), focando-se especialmente nos motivos da criança, da cultura pop, do nazismo e da religiosidade. O quadro teórico e metodológico constitui-se a partir das teorias da imagem de Vilém Flusser e de Aby Warburg, considerando-se também os conceitos de imagem arquetípica de C. G. Jung e de cultura pop para Daniel Boorstin e Roland Kelts.

Palavras-chave: Gottfried Helnwein, fotografia, hiperrealismo, cultura pop, nazismo, arquétipo da sombra

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Photographing shadows A look over the dark images of Gottfried Helnwein

Lidia Zuin de Moura

Abstract

The objective of this research is to investigate and comprehend the discursive strategies employed in the construction of the images by Gottfried Helnwein, an Austrian photographer and hyperrealist painter. His works reunite the theme of Nazism and violence in a grim aesthetics that dialogues with pop culture characters. The research is divided in three parts: 1. The historic and cultural context lived by Helnwein and the relationship of the public with his images; 2. The cultural universes that influenced Helnwein: Baroque and Tenebrism, Jungian shadow, Viennese Actionism, Pop Art, Hyperrealism; 3. The analysis of the series The Murmur of the Innocents (2009-2013), The Disasters of War (2007-2011), Epiphany (1993- 1998) and The American Paintings (2000-2003), focusing specially on the motives of the child, pop culture, Nazism and religiosity. The theoretical and methodological framework is constituted by the image theories of Vilém Flusser and Aby Warburg, by the concepts of archetypical image of C. G. Jung and pop culture of Daniel Boorstin and Roland Kelts.

Keywords: Gottfried Helnwein, photography, hyperrealism, pop culture, Nazism, shadow archetype

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Sumário

0.0 Introdução ...... p.6

1.0 Der Schattenspieler: Gottfried Helnwein num jogo de sombras ...... p.8

1.1 Recepção: a força da imagem ...... p.25

2.0 Traços ...... p.32

2.1 Barroco e Tenebrismo: as cores da sombra ...... p.32

2.2 Sombra junguiana: sobre deuses e moluscos ...... p.42

2.3 Acionismo Vienense: sombra como catarse ...... p.50

2.4 Pop Art: arte consumidora, imagem consumida ...... p.57

2.5 Hiperrealismo: foto sobre tela ...... p.64

3.0 Obra ...... p.73

3.1 The American Paintings: o fascínio pela imagem ...... p.75

3.2 The Murmur of the Innocents e The Disasters of War: cicatrizes da infância ...... p.87

3.3 Epiphany: assombrações do nazismo ...... p.111

4.0 Conclusão ...... p.122

5.0 Referências ...... p.128

6.0 Anexos ...... p.135

6.1 Entrevista ...... p.135

6.2 Cronologia ...... p.150

7.0 Notas de fim ...... p.162

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0.0 Introdução

Fotografando Sombras tem como proposta analisar a obra do fotógrafo e pintor hiperrealista austríaco Gottfried Helnwein (1948 – presente) a partir dos estudos da comunicação e da semiótica. Para isso, o trabalho é dividido em três principais eixos temáticos, sendo o primeiro focado em sua biografia, no qual procuramos entender o contexto em que o artista se situa histórica e geograficamente, compreendendo-o como indivíduo nascido logo após a Segunda Guerra Mundial, num país germânico e que se reestrutura após o conflito ao mesmo tempo em que recebe influência de outros países, por exemplo, os Estados Unidos.

Em seguida, a dissertação observa como o público se relaciona com o trabalho de Helnwein, separando casos específicos, como as instalações Selektion, em Colônia, no ano de 1988, e Epiphany, em Kilkenny, em 2001, causaram reações de terceiros, de modo a entender a dimensão do formato imagético como suporte comunicador além de sua proposta artística. Assim posto, o segundo eixo é aberto para a apresentação de possíveis tendências, traços reconhecidos na obra e na estética de Helnwein, a começar pela possível inspiração no movimento artístico Barroco e no Tenebrismo, que é percebido tanto como um aspecto visual quanto temático na obra do austríaco. Desse modo, no subcapítulo seguinte, é abordada a questão da sombra junguiana, conceito arquetípico estudado por Carl Gustav Jung que norteia a hipótese da presente pesquisa e que se une à figura metafórica do molusco abissal de Vilém Flusser, o Vampyroteuthis infernalis.

Assim retornamos aos movimentos artísticos quando abordarmos o Acionismo Vienense, que segue como outra proposta de influência em Helnwein, cuja obra também conta com ações realizadas no início de sua carreira. Em sequência, a Pop Art vem como outro traço que aparece como referência nas imagens do austríaco, quando estas trazem à tona sua memória infantil de chegada da cultura popular americana à Europa, com os quadrinhos da Disney, o cinema hollywoodiano e o American way of life. E esse mesmo movimento, o Hiperrealismo, estaria ligado ao seguinte, que é o estilo pictórico seguido por Helnwein ao pintar suas telas e ilustrações, todas sustentadas por fotografias, a maioria feita por ele mesmo.

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Ao fechar esse bloco temático, o terceiro e último eixo aborda quatro séries escolhidas para estudo. Nessa mesma parte da pesquisa, todos os assuntos anteriormente analisados serão revisitados a partir de exemplos, conforme as obras são mencionadas para a observação. Em The American Paintings (2000-2003), Helnwein faz uma exaltação à sua nostalgia, ao afeto sentido pela cultura americana durante sua infância e pinta três séries monocromáticas em que retrata diferentes cenas do cotidiano estadunidense, sejam elas dignas de bairros do subúrbio ou de telas de cinema. Já em The Murmur of the Innocents (2009-2013) e The Disasters of War (2007-2011), a cultura pop vem mais forte e acompanhada: bonecos da Disney se unem a action figures de animações japonesas (anime) enquanto Helnwein faz uma homenagem às gravuras de Francisco de Goya e apresenta o grande tema da sua obra, a criança divina, abandonada e ferida. E, finalmente, em Epiphany, as imagens das igrejas visitadas durante a infância do artista retornam junto à reminiscência do nazismo, quando Madonna segura Cristo com o semblante de Hitler em Epiphany I (Adoration of the Magi), de 1996.

Entre as imagens da própria infância e de uma infância divina, glorificada pelo artista, Helnwein cria uma metáfora que se repete pelos quadros e pelas fotografias, todos estes sendo mensagens, maneiras de se comunicar imageticamente com o público das exposições, das ruas onde os painéis de suas instalações são estendidos. Num jogo de luz e sombras, o artista esmaece o limite entre a história pessoal e a história do mundo e faz o convite para que aqueles que observam suas imagens também possam ter o olhar da criança, de todas e de tantas crianças que Helnwein já fotografou e pintou.

A pesquisa conta com citações em outras línguas, as quais foram traduzidas pela autora e contam com o texto original mencionado nas notas de fim.

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1.0 Der Schattenspieler: Gottfried Helnwein num jogo de sombras

No livro Mein Kinderösterreich: Kindheitserinnerungen an Niederösterreich (2007), de Karl Hohenlohe, Gottfried Helnwein escreve um capítulo intitulado “Zwischen Himmel und Hölle” (Entre o céu e o inferno) no qual relembra sua infância dividida entre dois cenários díspares: o céu da Baixa Áustria, estado no nordeste do país, onde seus avós tinham uma fazenda, e o inferno vienense, onde nasceu em 8 de outubro de 1948. Enquanto no campo o pintor e fotógrafo experimentou paisagens bucólicas do vilarejo de Staatz-Kautendorf, na capital ele teria a vivênciado as consequências do pós-guerra, as quais ele passaria a carregar pelo resto da vida e em suas obras.

Helnwein cresceu num tradicional bairro operário em Viena, o qual pertencia à zona de ocupação soviética. Após o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda do nazismo, a Áustria esteve sob a mira de três grupos. O primeiro era o quarteto de líderes do Partido Comunista Austríaco, formado por Ernst Fischer, Johann Koplenig, Franz Honner e Friedl Fuernberg. O segundo reunia um time misto da direita austríaca, do qual faziam parte pessoas que foram liberadas de prisões ou campos de concentração, que atuavam como líderes da resistência e outras que tinham acabado de sair da obscuridade adotada durante o governo de Hitler. Por último, havia ainda o arquiteto socialista e chanceler da Primeira República, Karl Renner, que fora advertido pela Terceira Frente do Exército Ucraniano de que assim que “se mostrasse confiável, o comando do Exército Vermelho iria ajudá-lo a ‘restabelecer uma ordem democrática’”1 (BROOK-SHEPHERD, 1997, p.377) na Áustria. E foi desse modo que Renner procurou por Stalin, que seria o único capaz de lhe prover o necessário para retornar ao poder.

Conformemente, ele [Karl Renner] combinou sua queixa formal à proposta de oferecer todos seus serviços à disposição do Exército Vermelho em prol do restabelecimento da República Austríaca. (...) Se Renner estava atrás de poder (...), Stalin estava atrás de uma figura venerável e respeitada que pudesse um dia liderar, para ele, uma frente esquerdista em Viena2 (BROOK-SHEPHERD, 1997, p.378).

De todo modo, Renner se sentia inseguro quanto ao apoio de Stalin, já que, em Moscou, sua reputação era de que ele se tratava de um “oportunista covarde que ajudou a pôr as tropas de Hitler dentro da Áustria sete primaveras antes”3 (BROOK-SHEPHERD, 1997, p.378). O austríaco então escreveu uma longa carta ao líder soviético, em “tons de servidão, 8 os quais podem ter refletido tanto o interesse próprio quanto sua consciência apreensiva”4 (Idem), na qual “listou suas qualificações ímpares à tarefa que tinha em mãos; e propôs ao ditador soviético deixar a Áustria ‘sob sua firme proteção’”5 (Ibidem). Em resposta, Stalin declarou que os socialdemocratas austríacos, junto ao Partido Comunista Austríaco, iriam refundar a República, seguindo a fórmula de criação das Frentes Populares que se observava no Leste Europeu. Isto é, continuariam um projeto de “eliminação (...) do desgoverno hitlerista e da influência alemã presente em toda a vida austríaca”6 (BROOK-SHEPHERD, 1997, p.382).

Assim, em 27 de abril de 1945, Karl Renner, Adolf Schärf (Partido Socialista Austríaco), Leopold Kunschak (Partido Popular Austríaco) e Johann Koplenig (Partido Comunista da Áustria) declararam a independência do país, fundando um governo provisório sob a supervisão do chanceler Renner e sob a aprovação do Exército Vermelho, bem como de Joseph Stalin. Esse formato administrativo permaneceu em funcionamento até dezembro do mesmo ano e, durante esse tempo, Renner esteve encarregado de fortalecer o gabinete, trazendo pessoas como o líder socialista moderado da Baixa Áustria Oskar Helmet e Raoul Bumballa, que representava o único movimento de resistência notável nessa primeira administração pós-Hitler. Nessa composição havia, no entanto, um desequilíbrio na presença de líderes de direita, já que estes apresentavam pouca experiência em tais cargos, além do fato de aquele governo provisório ter estado em comunhão com o socialismo soviético. E foi assim que, em 20 outubro de 1945, Renner recebeu uma carta do comandante-chefe soviético Marshal Koniev, na qual ele anunciava “que seu governo inauguraria, então, relações diplomáticas com a Áustria através da troca de embaixadas”7 (BROOK-SHEPHERD, 1997, p.383).

Apesar de dificilmente os russos terem sido capazes de aceitar o uso de eleições para a escolha de um novo e permanente líder político, eles estavam certos de que os comunistas austríacos iriam facilmente encontrar equilíbrio entre os dois outros partidos maiores, de modo que conseguiriam eleger uma quantidade razoável de representantes no parlamento8. Mas os resultados provaram o contrário. Quando as urnas foram esvaziadas, soube-se que o Partido Popular (antigo Partido Cristão Socialista, o mesmo de Renner) fora aclamado com 50% dos votos, enquanto os socialistas se mantiveram com 44,6% e os comunistas com menos de 5,5%.

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Os austríacos haviam passado por algumas horas sombrias na história, notavelmente em março de 1938. Esta foi uma de suas melhores. Ainda na zona de ocupação soviética, onde havia pressão mesmo através da mera presença das tropas russas, a rejeição ao comunismo era esmagadora. (...) Vários fatores especiais poderiam ser citados para explicar a ruptura. As orgias de estupro e pilhagem cometidas pelas tropas do Exército Vermelho (...) haviam atingido mulheres que contavam, no outono de 1945, 64% do eleitorado9 (BROOK-SHEPHERD, 1997, p.383).

Em dezembro de 1945, Renner se tornara o primeiro presidente da Áustria junto de Leopold Figl, também do Partido Popular Austríaco, que foi o primeiro chanceler eleito de um governo pós-guerra, isto é, a Segunda República Austríaca. A este novo homem no poder foi incumbido o papel de dirigir um país que se encontrava fraco, a ponto de sequer possuir soberania sobre seus próprios assuntos. Contudo, a população parecia acreditar que Figl seria capaz de conduzir a Áustria, vendo nele uma figura íntegra e destemida. No entanto, ele não seguiria sozinho nessa empreitada, já que Renner, dois meses antes das eleições, tinha começado a organizar uma espécie de coalizão que os ajudaria naquele momento de emergência. Esse grupo, formado por membros aprovados por um conselho dos países aliados, contava com Adolf Schärf como vice-chanceler, o líder socialista da Baixa Áustria Oskar Helmer como Ministro do Interior, e Karl Gruber como Ministro do Exterior, que era alguém que dava tanto aos tiroleses quanto à resistência uma representatividade no governo central.

Acima de tudo, a coalizão forneceu uma frente unida e relativamente estável, a qual o governo precisava para poder enfrentar todos os desafios dos anos de ocupação [nazista]. Quatro destes se destacam. O mais urgente era limpar toda a carnificina da guerra e encher o estômago da nação. Paralelo a isso veio a necessidade de ter de volta algumas medidas de independência diante do todo- poderoso Conselho dos Aliados, então instalado em Viena. A longo prazo vieram os dois principais problemas políticos domésticos: como eliminar, por um lado, o antigo legado nazista, enquanto ao mesmo tempo se tenta livrar da nova ameaça posta pelo comunismo e por seu poderoso patrono, o Exército Vermelho10 (BROOK-SHEPHERD, 1997, p.386).

Foi só a partir de 1947 que a Áustria passou a enxergar uma melhoria em suas condições. Com o Plano Marshall, o país começou a receber ajuda e a luta para conseguir comida diminuiu, de modo a normalizar sua situação econômica. No outono de 1948, houve um aumento do consumo diário de ração e já no começo de 1949, farinha e pão também passaram a ser distribuídos. Ainda assim, a miséria e a presença dos soviéticos continuavam a incomodar a população austríaca, como descreveu Helnwein:

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Eu cresci em dois mundos completamente diferentes: um em uma Viena pós- guerra – em Favoriten, um tradicional bairro operário, que então pertencia à zona de ocupação soviética. [Morava] em uma residência que se situava miseravelmente entre uma antiga casa de fundição da virada do século e uma indústria da época nazista que parecia um monstro cinza, a qual exibia no telhado o símbolo de seus novos mestres, isto é, uma grande estrela vermelha que iluminava a noite e espalhava seu ardor em meu quarto.

Na minha memória, tudo está enferrujado e empoeirado. As ruas estão desertas, nada se move, ninguém fala. As poucas pessoas que vejo são achatadas, volumosas e ranzinzas. Um mundo que é silêncio, nenhum ruído, nenhuma cor, nenhum movimento, mas que às vezes é quebrado pelo barulho de um grande caminhão que leva soldados armados pelas ruas.

Eu tinha a impressão de que o maior objetivo das pessoas que estavam à minha volta era serem ignoradas. A única coisa que elas pareciam temer era serem notadas, descobertas. Era um mundo pós-apocalíptico onde apenas alguns sobreviviam e estes cuidadosamente se escondiam nos escombros, onde continuavam morando, na esperança de que o eterno juiz pudesse esquecê-los.

Neste limbo passei parte de minha infância11 (HELNWEIN, 2007).

Na Áustria, Viena foi a cidade que mais sofreu as consequências da divisão e ocupação dos países aliados (França, Reino Unido e Estados Unidos) e da União Soviética. Mesmo depois de terem se retirado do país, em 15 de maio de 1955, quando foi declarado o Tratado de Independência da Áustria, pouca coisa pareceu ter mudado na capital. Em cada área se seguia um modo de vida que se assemelhava ao que levavam os povos dos países dominadores e, no caso do espaço tomado pelos aliados, havia pouca disparidade entre os que ocuparam e os que tiveram sua terra ocupada. Já na zona assimilada pela União Soviética, havia uma população que ascendia dos camponeses católicos provindos dos condados centrais, à época do Império Habsburgo. Essas pessoas permaneciam ainda muito presas à sua tradição. Segundo BROOK-SHEPHERD (1997), apenas os habitantes mais pobres poderiam achar possível aprender algo com os soviéticos, já que estes eram vistos como acostumados a um “padrão que parecia ser tão baixo que seus membros poderiam ter vindo de um planeta distante e primitivo”12 (p.414).

Por outro lado, a área que mais exerceu influência sobre os austríacos foi, justamente, a zona ocupada pelos Estados Unidos. Eles injetaram “um novo estilo de vida, e os austríacos ali foram os primeiros a provar os jeans e a experimentar a dieta massiva de hambúrguer e Coca-Cola”13 (Idem). Esses eram só os sintomas de algo muito maior que aconteceria ou, nas palavras de Brook-Shepherd, tratava-se de uma onda avançando junto à “maré cultural transatlântica que logo iria englobar não apenas a Áustria, mas toda a Europa”14 (Ibidem). 11

Distritos vienenses ocupados pelos países aliados após a Segunda Guerra Mundial

Em seu livro Framed Visions: Popular Culture, Americanization, and the Contemporary German and Austrian Imagination (1999), Gerd Gemünden analisa o impacto da cultura pop e da mídia de massa americana na Alemanha e na Áustria. Ele enxerga que a influência estadunidense moldou muito do caráter político, social e psicológico desses países que estiveram submetidos a tais referências estrangeiras durante o processo de reconstrução de suas identidades após a Segunda Guerra Mundial. Para ilustrar, Gemünden seleciona artistas contemporâneos como Rainer Werner Fassbinder, Wim Wenders, Elfriede Jelinek, Herbert Achternbusch, Monika Treut, Peter Handke e Rolf Dieter Brinkmann – destes, apenas Jelinek e Handke são austríacos.

Curiosamente, Gottfried Helnwein é citado nessa publicação que facilmente poderia usá-lo como exemplo, mas sua menção é reservada apenas à introdução, na qual o autor reflete sobre a importância do quadro Nighthawks, de Joseph Hopper, para uma geração de artistas germânicos. Nesse caso, Helnwein é lembrado por conta da aquarela que fez, em paródia dessa pintura. Intitulada Boulevard of Broken Dreams (1984), a ilustração se tornou tão popular que passou até mesmo a estampar camisetas, provavelmente porque, em vez de trazer os quatro estranhos da pintura original, Helnwein os substituiu por James Dean,

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Humphrey Bogart, e Elvis Presley como o atendente. De acordo com GEMÜNDEN (1999), na obra de Helnwein, “o realismo urbano de angústia e alienação de Hopper encontra a fetichização das estrelas na Pop Art”15 (p.8). O autor ainda assegura que, junto da interpretação da Pop Art, com seus discursos em defesa do trivial, a pintura de Hopper também foi entendida, na Alemanha, como parte de um movimento contra- ou antiarte.

As personagens que Helnwein escolheu para fazerem parte de sua aquarela têm uma conexão com a sua infância, bem como de toda uma geração crescida em Viena, durante o pós-guerra. Diante da cidade destruída pelo conflito, a população adulta permanecia em quietude e vergonha, enquanto as crianças e os jovens encontravam como uma alternativa os produtos culturais que os americanos levavam para a Áustria. Foi assim que o pintor começou a ter não apenas contato com a cultura pop americana, mas a desenvolver um fascínio que se estenderia durante a maturidade, tornando-se um dos motes de seu trabalho artístico.

Havia tanto silêncio e vazio, quando a guerra terminou. Todos estavam tentando se livrar do passado rapidamente – enterrando tudo – sua história, sua identidade e suas memórias. A geração de nossos pais era, espiritualmente, um tipo de morto. E dentro desse vácuo na nossa infância, a América jorrou Coca Cola, jeans, carros que pareciam naves espaciais, filmes, histórias em quadrinhos e rock’n’roll. A América apresentou um mundo mítico de maravilhas modernas e milagres. Havia belos anjos rebeldes como Elvis, Jimmy Dean, Brando e garotas de beleza desigual – coisas que nós nunca havíamos visto antes no nosso chamado mundo real. (...) O impacto desse choque cultural foi enorme16 (MAHER, 2004).

Em GEMÜNDEN (1999), há a interpretação, segundo os diretores de cinema Hans Jürgen Syberberg e Wim Wenders, junto do dramaturgo Botho Strauss, de que, no fim das contas, após a guerra, já se vislumbrava, na Alemanha, a reunificação do país a partir da busca pelos efeitos da “ocidentalização” e da “americanização”.

A maioria dos alemães nascidos durante ou imediatamente depois da guerra – aqueles que cresceram nos anos 1950 e no começo da década de 1960 – estava sofrendo para dissociar a si mesmos de uma nação que havia organizado e executado o Holocausto. Os braços abertos da cultura popular americana, por exemplo, foram uma forma de deslocar uma tradição considerada cúmplice ou, pelo menos, tentada pelo nazismo17 (GEMÜNDEN, 1999, p.196).

Isso poderia ser observado também na Áustria, conforme o depoimento de Helnwein em MAHER (2004) exposto anteriormente, quando o fotógrafo diz que as pessoas estavam tentando se esquecer de sua própria história, identidade e memórias. Mais especificamente, na

13 sua própria família o artista descobriu parentes que haviam lutado na guerra, fazendo parte do exército nazista. Em KONNO (2003), o fotógrafo comenta que encontrou fotografias de seu pai, seus avôs e tios vestidos com uniformes do exército de Hitler e isso gerou curiosidade nele, apesar de suas perguntas nunca serem respondidas – justamente pela vergonha e pela vontade de fugir desse passado. Mas Helnwein continuou convicto em seus questionamentos e, aos 18, resolveu tentar outra forma de comunicação com essas pessoas e esse tempo histórico: tornou-se artista.

À esquerda, foto da ação “Horch!”, em 1971, na galeria Mödling, em Viena; à direita, foto da ação “Sorgenkind”, nas ruas de Viena (Hetzgasse, no terceiro distrito Wien-Landstrasse), com Sandra, aos 6 anos de idade

Assim, mesmo não tendo muita noção sobre história da arte ou qualquer informação sobre estilos e técnicas, Helnwein entendeu que passaria a formular suas antigas questões, mas em forma de imagem – “Passo a passo, eu desenvolvi minha própria linguagem visual”18 (KONNO, 2003). De 1965 a 1969, Helnwein estudou na Höhere Graphische Bundes-Lehr- und Versuchsanstalt, em Viena, e de 1969 a 1973, cursou pintura na Akademie der bildenden Künste Wien, mas não chegou a graduar, porque não frequentava as aulas (MICHAELSEN, 2013). Foi nessa época que o austríaco começou a pintar aquarelas que, aliás, já tinham um estilo bastante realista ao ilustrar crianças enfaixadas e feridas. Obras como Unkeusches Kind, Peinlich, Gemeines Kind, Beautiful Victim, Da kräht er vor Vergnüngen e der kleine Mann fazem parte dessa primeira fase.

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Helnwein também já havia começado a fazer ações (Aktionen) em 1966. Ele se apresentava para pequenos grupos e, nessas ocasiões, cortava várias vezes o próprio rosto e as mãos com navalhas, ferramentas de gravura em madeira e pontas de esqui. Em entrevista (vide anexo), o artista conta que sequer imaginava que isso fosse arte, mas pensava mais nessas performances como uma forma de “ritualismo” ou “experimento”. Foram suas primeiras experiências usando sangue e bandagem em suas ações. E foi nessa mesma época, inclusive, que ele foi expulso da Höhere Bundes-Graphische Lehr- und Versuchsanstalt de Viena. Durante uma aula de nu artístico, sentindo-se entediado, Helnwein usou o próprio sangue para pintar um retrato de Hitler.

A primeira pintura de Hitler que eu fiz foi quando eu tinha acho que 18 ou 17 anos... Provavelmente 17. E eu me sentia perdido. Eu não era um artista, eu só estava na escola de design gráfico e durante toda a minha vida senti que não queria estar ali, no mundo em que vivia. Eu não gostava das pessoas, nunca gostei do sistema, das coisas que tinha que aprender. Nunca entendi porque eu deveria estudar aquilo, porque os professores eram tão cruéis. Eu sempre senti que as pessoas eram insensíveis. (...) Na escola, tudo era muito autoritário e opressivo. Então eu estava aprendendo sobre a época nazista, não muito porque ninguém falava sobre isso, mas eu estava sabendo mais e mais porque sempre pesquisava sobre, e de alguma forma aquela era minha conclusão. Eu via que Viena, no tempo em que vivia aqui, era como se fosse uma prisão. Esta [o retrato de Hitler] era uma imagem que me veio e foi por isso que eu pintei (Em anexo).

Indignados diante da pintura feita pelo aluno, os professores confiscaram a ilustração e um alvoroço se formou na escola. Segundo Helnwein, ele não imaginava que isso fosse acontecer – apenas pensou que iriam tomar o desenho e isso bastaria, mas a instituição toda se movimentou diante daquele acontecimento.

Era como se você tivesse posto seu dedo em algo que não pode, porque dói. Eles contemplaram a guerra, parte dela, então a nova república fingia não ter nada a ver com aquilo, como se fosse impossível, nós somos democratas, nós somos pessoas legais. Mas se alguém pintar tal coisa, todo o passado explode em suas faces e eles ficam realmente nervosos e incomodados. E então eu entendi quão poderosa uma imagem pode ser (Em anexo).

Não só Helnwein percebeu como é possível utilizar a estética como ferramenta, mas também não seria a última vez que ele pintaria Hitler, como este reapareceu em suas imagens ao longo dos anos 1970 e depois, novamente, em 2013 e 2014. Na Akademie der bildenden Künste Wien, após ter feito sua primeira pintura a óleo, Mutter, Du hier?, o austríaco pintou Führer, wir danken Dir!, fazendo menção ao fato de que aquela mesma escola havia rejeitado o ditador como um de seus estudantes cinquenta anos antes. 15

Os assuntos abordados por Helnwein chamavam a atenção do público, que era composto tanto por vítimas de campos de concentração até ex-oficiais da SS, como aponta CONNOLY (2000). Mesmo neonazistas começaram a querer saber mais sobre as pinturas do austríaco, chegando ao ponto de abordá-lo em seu estúdio. Nessa ocasião, esses jovens teriam confiado a Helnwein seus sonhos sobre supremacia alemã e chegaram mesmo a contar como eles estavam infiltrando um partido de extrema-direita no poder. Mas isso não pareceu muito para Helnwein:

A situação era muito pior no passado, quando o antigo líder do Partido Austríaco da Liberdade [Friedrich Peter] era um soldado da SS que tinha se envolvido em extermínios. Todos sabiam disso e estava tudo bem documentado, mas ele sempre dizia “eu não me lembro” e todos aceitavam isso19 (CONNOLLY, 2000).

A primeira experiência de Helnwein com fotografias aconteceu na mesma época, em 1970, quando fez um autorretrato usando bandagens e instrumentos cirúrgicos. Nesse ano, ele também começou a trabalhar com fotografia de crianças e teve sua primeira exposição solo na Nachtgalerie im Atrium, em Viena. Ele se destacava, especialmente depois de começar a andar pela capital vestido em uniforme nazista, a cabeça enfaixada e sangue falso escorrendo de sua boca. “Isso chamou a atenção de um negociante de arte, que passou a segui-lo e permaneceu fiel à criança terrível da Áustria desde então”20 (CONNOLLY, 2000).

Em 1971, essas ações na rua começaram a contar também com a participação de crianças, como foi no caso de Sorgenkind (Criança-problema), Hallo Dulder (Olá, mártir), Ewige Jugend (Sempre jovem), Sandra e Alt Wien (Antiga Viena). Consequentemente Helnwein inaugurava seu trabalho fotográfico com crianças, primeiro com imagens feitas em estúdio e depois também nas ruas. O tema estava de uma vez por todas fixado em sua obra, desde as aquarelas e agora também nas fotografias e ações, como afirmou o historiador da arte Peter Gorsen, em seu ensaio The Divided Self (1988). Após o austríaco ter pintado a imagem de crianças machucadas e abusadas, em 1969, as crianças enfaixadas se tornaram o grande tema de Helnwein a partir de 1971/72.

A criança é a personificação do indivíduo inocente, indefeso e sacrificado à mercê da força bruta. (...) Seu cometimento [de Helnwein] com os direitos das crianças não tem nada a ver com a “infantomania”, como é manifestado em uma socialmente isolada da “cultura infantil”, em uma comercializada “mídia infantil”, na criança como um assunto pedagógico e na transfiguração ideológica da própria infância de alguém. Helnwein deve também estar fora do Acionismo Vienense por não reduzir o corpo da criança a um mero material estético (tal como nas “performances materiais” de Günter Brus, e Otto Muehl), mas, em vez disso, confere uma função 16

simbólica ao representar o homem indefeso, sacrificado. O conceito sexual da criança no “Acionismo Vienense” (influenciado por Freud) é combatido pelo moralista e utópico Helnwein, com suas crianças como assexuadas figuras de salvação21 (GORSEN, 1988).

Em CONNOLLY (2000), é citado o caso do psiquiatra Dr. Heinrich Gross, que admitiu ter matado centenas de crianças na unidade pediátrica vienense Am Spiegelgrund, durante a guerra, ao envenenar a comida dos internos. Em entrevista (vide anexo), Helnwein conta que este caso teria o inspirado a pintar a aquarela Life not Worth Living (1979), na qual uma garota “dorme” sobre a mesa, com a cabeça dentro de um prato de comida. Isto porque após ter lido em um jornal uma entrevista concedida por Gross, na qual ele confessava seu crime, Helnwein percebeu que não houve nenhuma reação por parte dos austríacos, enquanto estes dedicaram todas suas emoções (no caso, a fúria) para o caso de um apresentador de televisão que apareceu num programa sem usar gravata.

Mais de três mil cartas teriam sido enviadas à emissora enquanto o psiquiatra era esquecido, até que Helnwein enviou sua aquarela e uma carta à revista austríaca Profil, que publicou ambos os conteúdos, causando uma imensa discussão de âmbito nacional. A comoção foi tão grande que, no dia do julgamento, parentes das vítimas seguravam fotos das crianças com “suas barrigas distendidas devido a experimentos com drogas, crânios presos a instrumentos de medição de cabeça. Os cérebros de mais de 400 delas acabaram dentro de jarros no porão do hospital onde Gross fazia experimentos com elas”22 (CONNOLLY, 2000).

Muito antes de começar a pintar, Helnwein já tinha esse interesse muito grande por crianças (vide entrevista, em anexo). Para ele, é como se crianças tivessem alguma “essência”, um “potencial utópico”: “Tudo é possível quando você olha para uma criança. (...) eu comecei a ficar surpreso em como a sociedade destrói isso, em vários níveis, através da educação, da manipulação”. Isto é, o artista acredita que a forma como o amadurecimento se dá através dos regimes educacionais e regulatórios da sociedade atual podem acabar “podando” a criança e as fazendo perder esse elemento sagrado que elas possuiriam inicialmente.

Mas mesmo que Helnwein tenha sua atenção voltada especificamente às crianças, elas também servem como uma metáfora, já que o artista se preocupa com a temática da violência e como essa se propaga não apenas no universo infantil e sim, como ele mesmo diz, na história da humanidade (entrevista em anexo). Suas aquarelas nos anos 60 e 70 de crianças enfaixadas e feridas causaram muito tumulto na Áustria naqueles anos, justamente porque os 17 jornais não falavam sobre o assunto (JERMANN, 2008), mantendo o mesmo silêncio da vergonha que Helnwein experimentou desde a sua infância com a memória do nazismo pós- guerra.

E a violência inescrupulosa, porém dissimulada, continuaria sendo algo relevante na cultura austríaca ainda durante os anos seguintes, reavivada principalmente no caso Fritzl, que ficou mundialmente conhecido em abril de 2008. Em dezembro desse ano, Helnwein concedeu uma entrevista à TRUCE Magazine, na qual mencionou esse crime, que diz respeito à austríaca Elisabeth Fritzl, de 42 anos, que procurou a polícia da cidade de Amstetten para relatar que fora mantida em cativeiro durante 24 anos, no porão da casa de sua família, num compartimento construído por seu pai, Josef Fritzl, quem a abusou sexualmente e a estuprou diversas vezes por todos aqueles anos. Isso repercutiu no nascimento de sete crianças e em um aborto. Sobre isso, Helnwein comenta:

A violência contra os fracos e indefesos é tão antiga quanto a raça humana. (...) Desde quando a Áustria, de repente, chamou a atenção do mundo outra vez, recentemente, por conta do caso Fritzl, a mídia internacional tem especulado sobre um ‘lado obscuro’ da Áustria e alguns têm prontamente lembrado que esse aspecto tem sido longamente tema da arte austríaca. Tanto na literatura quanto nas artes visuais. E foram minhas imagens, acima de tudo, que invadiram a consciência das pessoas. O tipo de gravura que a mídia internacional usa para ilustrar a Áustria, quando eles a notam, é perturbadora às vezes. Poucos anos atrás, quando eu estava na América e minha nacionalidade era descoberta, as pessoas imediatamente diziam: “Ah – Waldheim23!”, depois “Ah, Haider24!”, então era “Fritzl!”. Se não fosse e Mozart, a Áustria estaria ferrada25 (JERMANN, 2008).

No mesmo ano, Helnwein foi lembrado num artigo publicado no jornal alemão Süddeutsche Zeitung a respeito do caso Fritzl. No texto, o jornalista Holger Gertz escreve:

Amstetten entre o desconcerto e os exageros da mídia: uma masmorra no meio da cidade, um pai infligindo martírio a seus filhos – como nós tentamos reunir as peças do incompreensível.

A masmorra em Amstetten toca em algo que está profundamente dentro da medula dos austríacos, seu lado obscuro, espelhado em poemas de seus autores e nas imagens de Gottfried Helnwein, retratando pessoas com garfos enfiados em seus olhos ou garotas com sangue escorrendo em suas pernas. As pinturas de Helnwein são pesadelos que nos fala das masmorras em nossas cabeças26 (GERTZ, 2008)

Ainda em 2008, Helnwein havia conversado com jornalistas da Vanity Fair alemã, em junho, numa oportunidade em que o caso Fritzl também foi mencionado. Esse foi o momento no qual Helnwein discorreu sobre o motivo de acreditar que a Áustria, realmente, tenha uma 18 específica tradição de trevas. Ele cita exemplos que vão desde Kafka a Sacher-Masoch, bem como Thomas Bernhard e Hermann Nitsch, o qual fez parte do movimento artístico Wiener Aktionismus ou Acionismo Vienense. Segundo Helnwein, esse grupo não poderia ter sido criado “em Estocolmo ou em uma cidade onde há palmeiras. Comparadas às da Alemanha, as condições na Áustria são muito mais absurdas”27 (FISCHER; MICHAELSEN, 2008). Para justificar, ele cita o terrorista austríaco Franz Fuchs, que enviava cartas-bomba, as quais mataram quatro pessoas e que fizeram com que o prefeito de Viena Helmut Zilk perdesse parte de sua mão. “Ao tentar se matar com uma bomba caseira, ele [Fuchs] perdeu ambas as mãos. Na corte, ele acenou com seus membros amputados e exclamou slogans nazistas incessantemente. Isso é muito austríaco”28 (Idem).

Ainda durante a infância, Helnwein também observou esse aspecto obscuro na cultura austríaca. Por conta de uma educação católica rígida, ele ia à igreja frequentemente. Lá ele mantinha sua atenção voltada para os aspectos decorativos, os quais ele recorda, em entrevista:

Eu passei uma grande parte da minha infância na neblina do incenso nas naves de igrejas frias, circundado por mártires se contorcendo em êxtase e cobertos de sangue, corações flamejantes perfurados por espinhos, cruzes, instrumentos de tortura, stigmatas místicos e olhares de virgens moribundas, em contemplação, para o céu. O “quadrinho de imagens da bíblia”, a fantasmagórica e trêmula luz vermelha, os murmúrios em latim do padre e o monótono sussurrar de ladainhas e rosários, o cadáver mumificado em brocado desbotado, por trás de janelas semiopacas, a Missa Solene e as procissões acompanhadas pelo soar dos sinos – tudo isso cavou seu lugar profundamente na alma da minha infância! O cristianismo é a primeira religião a pôr dor, sangue e morte no centro de sua espiritualidade. Pela primeira vez, Deus não era apenas associado ao triunfo e ao poder cósmico, mas à miséria humana, à agonia, ao medo, indignidade, sofrimento, falha, ao sucumbir e à morte. O Cristianismo tem influenciado a história, a arte e a cultura dos últimos 2000 mil anos como nenhuma outra ideologia. Mas já muito cedo eu encontrei uma nova cultura totalmente diferente e enorme, a qual resultou nesse choque cultural para mim: eu encontrei o homem que mudou o curso da minha vida: o Pato Donald29 (JERMANN, 2008).

Entre as imagens violentas da guerra passada e as reminiscências agressivas dos ambientes sacros, Helnwein encontrou como alternativa – ou refúgio – o maravilhoso mundo da cultura pop americana, tendo escolhido como principal foco os produtos de Walt Disney. Este, inclusive, tornou-se alguém admirável para o austríaco, que chegou a dizer que Disney foi “sem dúvida o grande gênio artístico do século XX – um Leonardo da Vinci reencarnado, que voltou mais maduro e forte para criar a mais imensa obra de todos os tempos. Seu império estético mudou a face desse planeta”30 (HELNWEIN, 1989). Para o fotógrafo, Disney

19 realizou o grande sonho de um artista, que seria dar vida às suas próprias criações. Além disso, Helnwein entende que o americano foi uma grande inspiração para outros artistas renomados como Salvador Dalí, Aldous Huxley e Sergei Prokofiev, os quais trabalharam para sua empresa. “A Pop Art de Roy Lichtenstein e são meramente reflexos de todo esse extensivo fogo que quase nenhum artista da segunda metade do século XX pôde escapar”31 (HELNWEIN, 1989).

Maiores que os trabalhos de Christo, que as pirâmides e mesmo que Versalhes juntos, como aponta HELNWEIN (1989), as instalações da Disney demonstram essa superioridade através da influência de seus produtos, permanecendo firmes até os dias atuais. As imagens produzidas pela empresa ganharam tamanha força na mesma lógica que o artista austríaco explica:

Obviamente a imaginação e a ilusão são sempre muito mais poderosas e também maiores do que essa medíocre e entediante coisa chamada realidade. O que é realidade? Em algum momento ou lugar na história, ela foi a soberana – esse sacerdócio de poder – que definiu e disse o que a realidade era. Todos os sistemas educacionais tinham (e têm) apenas um propósito: fazê-lo concordar com a “verdade” ou “realidade” fabricada deles e com seus pequenos sistemas de valores, fazê-lo abandonar e trair sua própria realidade – sua própria mágica e seu ilimitado mundo interior – seu universo espiritual nativo. Obviamente seus pequenos sistemas de valores arbitrários e estúpidos variam de tempos em tempos e de nação para nação, mas seus métodos são sempre os mesmos: ameaças, punições, dor e terror caso você não se submeta. Foi de uma dessas “realidades” crepusculares da qual acordou a Viena do pós-guerra, e ela (realidade) foi criada pelas mesmas pessoas que tinham acabado de completar o assassinato de mais de 50 milhões de pessoas32 (KONNO, 2003).

O trabalho de Helnwein chamava tanto a atenção que, em 1971, na exposição Zoetus33 na Künstlerhaus, em Viena, pessoas não identificadas colaram adesivos com as palavras “entartete Kunst” (arte degenerada) em suas pinturas, isto é, o termo utilizado durante o período nazista às obras que desagradavam ao governo de Hitler. Na mesma época, durante a abertura de seus trabalhos exibidos na Galerie D., em Mödling, distrito próximo a Viena, o prefeito da cidade enviou a polícia para confiscar as imagens de Helnwein. No ano seguinte, sua exibição solo, na Galerie im Pressehaus, foi fechada após três dias, por conta de protestos e ameaças feitos pelo conselho. Helnwein comenta em KONNO (2003) que não estava preparado para essa “avalanche de reações emocionais” proporcionadas por suas aquarelas: “Fiquei muito surpreso ao perceber que, de repente, eu parecia possuir uma linguagem mágica e superior, capaz de atravessar tudo e alcançar o fundo dos corações das pessoas, movendo-as e comovendo-as”34. No entanto, isso não fez com que o artista amenizasse o conteúdo de suas 20 obras, já que em 1979 ele pintaria a anteriormente citada aquarela baseada no caso do psiquiatra Gross, Life Not Worth Living.

Em 1984, o austríaco tornou-se tema do documentário Helnwein, dirigido por Peter Hajek, e, no ano seguinte, o artista abriria uma exposição solo no museu Albertina, em Viena. À mesma época, Helnwein foi recomendado pelo pintor austríaco Rudolf Hausner a ser seu sucessor como professor de pintura na Universidade de Artes Visuais em Viena, porém acabou declinando a oferta e se mudou para a Alemanha, onde comprou um castelo medieval perto de Colônia e no qual morou e trabalhou até 1997. Helnwein também começou a experimentar pinturas abstratas e estilos expressivos nesse ano, mudando radicalmente o seu trabalho, que passou a ser feito em telas grandes, consistindo de várias partes (dípticos, trípticos etc). Suas novas obras combinavam fotografias gigantes e abstratas com pintura monocromática feita com tinta a óleo e acrílica. O pintor, inclusive, também usava reproduções de fotografias de guerra e pinturas de , pintor alemão do século XIX.

Em 1987, Helnwein lançou sua série de autorretratos intitulada Der Untermensch, a qual reúne imagens feitas entre 1970 e 1987. Estas são expostas no Musée d’Art Moderne em Strasbourg, na Alemanha. No mesmo ano foi realizada a ação Gott der Untermenschen (Deus dos sub-humanos) no Campo Kopal do exército austríaco, na qual o artista utilizou tanques e munição de verdade. Mas foi em 1988 que uma nova reação do público se sobressaiu. Em lembrança à (Noite dos Cristais), nome dado à noite de 9 de novembro de 1938, na qual ocorreram atos de violência contra judeus em diversas regiões da Alemanha e da Áustria, Helnwein inaugurou a instalação chamada Selektion (Ninth November Night), que dias depois seria vandalizada por anônimos35.

Em 1991, Helnwein começou a se focar na fotografia digital e nas imagens geradas por computador, com as quais ele combina técnicas clássicas de pintura a óleo. Segundo O’DONOGHUE (2008), Helnwein em 1996 usou pintura digital e um método com jatos de tinta para compor uma série de Madonnas, nas quais ele trouxe as figuras da Virgem Maria e do Menino Jesus de quadros feitos por Leonardo e Caravaggio, além de fotografias documentais da época do nazismo. Assim, ele pintou com tinta a óleo e acrílica por cima das imagens impressas, incorporando a pintura36 às fotografias que fizeram parte da série Epiphany, que se prolongaria com obras feitas até 1998. Um ano depois, Helnwein se mudou

21 para a Irlanda, onde comprou, em 2000, o castelo Gurteen de La Poer, no vilarejo de Kilsheelan, no condado de Tipperary, e que é sua residência até hoje.

Das oito pinturas feitas na série Epiphany, a que mais chama a atenção é a intitulada Epiphany I (Adoration of the Magi), datada de 1996. Isto porque ela toca na memória coletiva do cristianismo, fazendo menção ao nascimento de Jesus e à passagem dos três reis magos, porém Maria, na versão de Helnwein, é circundada por oficiais da SS que observam “com admiração a virgem idealizada, loira e kitsch”37 (PASCAL, 2006). É dito ainda, muitas vezes, que o bebê carregado pela Madonna se assemelha à figura infantil de Hitler.

Em 1998, Helnwein trabalhou com a banda alemã , tendo feito uma sessão de fotos que foi usada como capa do álbum Sehnsucht, o qual foi lançado com seis versões diferentes. Uma das fotos feitas com os integrantes do grupo parece também ter sido usada como referência para uma das pinturas da série Epiphany, a intitulada Epiphany III (Presentation at the Temple).

As parcerias musicais do artista, no entanto, não são novidade, já que um de seus autorretratos de 1982, uma fotografia em que Helnwein aparece com a cabeça enrolada em bandagens e com garfos enfiados nos olhos, tornou-se capa do LP Blackout da banda alemã Scorpions. No entanto, em 1998, seria a primeira vez que Helnwein faria um ensaio artístico com músicos, com exceção dos retratos Faces (1982-1991), no qual registrou os rostos de diferentes intelectuais e celebridades da cultura pop como Andy Warhol, Charles Bukowski, William S. Burroughs, Arnold Schwarzenegger, e Mick Jagger. Já em 2002, ele fez uma série multimídia com o então amigo e músico , na série intitulada The Golden Age, que gerou as artes do álbum The Golden Age of the Grotesque, lançado pelo americano.

Entre 2000 e 2003, Helnwein compôs a série The American Paintings que, inclusive, se desdobra em três grupos, um homônimo e os outros dois que levam o subtítulo Downtown e Paradise Burning. Ao todo, são 41 pinturas monocromáticas em azul, com exceção de The Red Gun (2010) e Downtown 20 (2002), que são em tons vermelhos. Segundo HELNWEIN (2000), a maneira como ele rearranja as personagens, acrescentando novos elementos e novos contextos, reflete como ele se lembrava dos Estados Unidos durante os anos 1950, em Viena. Estereótipos como o policial americano ou os filmes de ação, bem como a mulher de classe média americana são explorados junto de personagens da Disney e da onipresente figura da

22 criança – uma das pinturas, inclusive, intitulada American Madonna (2000), recebe o subtítulo de (Epiphany IV) por fazer menção à série passada.

Alguns anos depois, em 2007, Helnwein lançou a série de pinturas The Disasters of War, em homenagem ao pintor espanhol Francisco de Goya. Assim como nas imagens de The American Paintings, nas quais o austríaco acrescenta a presença de personagens da Disney, nessa nova coleção, Helnwein insere action figures de personagens de animações japonesas (anime) junto a crianças armadas, ensanguentadas, fardadas e por vezes enfaixadas. O nome da coleção faz referência às 82 placas feitas por Goya após ter sido chamado, em 1808, para pintar Zaragoza à época da Guerra Peninsular (1807-1814), mostrando os resultados do conflito entre espanhóis e franceses. A visão da morte e da destruição o inspirou a fazer tais ilustrações, que foram divididas em três categorias: Guerra, Fome e Bourbons e o Clero.

De 2009 a 2013, o austríaco se dedicou à série The Murmur of the Innocents, que contou com a reinterpretação em tela de fotografias feitas entre 2003 e 2005, intituladas Modern Sleep. Alguns cenários, objetos e personagens de The Disasters of War reinicidem nessa nova série, que parece uma continuação da anterior, mas que traz também retratos monocromáticos azuis intitulados Sleep e Payton Blue.

Em 2012, o austríaco realizou três exposições na Cidade do México: Faith, Hope and Charity (Museo Nacional de San Carlos), Song of the Aurora (Galería Hilario Galguera) e Santos Inocentes (instalação e exposição no Monumento a La Revolución). Esta última obra inaugurou uma nova estética na obra de Helnwein, quando as crianças deixam de ser assexuadas e finalmente perdem os traços germânicos (cabelos e olhos claros) ao serem garotas latino-americanas ou, mais especificamente, mexicanas. Também nesse ano a revista Forbes publicou um artigo com autoria de Jonathon Keats chamado The True Impact of Violence on Childhood? Why every American ought to see the paintings of Gottfried Helnwein, no qual escreve:

Dois dias depois do massacre na escola Sandy Hook, uma empresa de equipamentos para sobrevivência chamada Black Dragon Tactical criou um novo slogan para promover a venda de blindagem para mochilas. “Arme os professores”, a companhia declarou no Facebook. “Nesse meio tempo, faça com as crianças estejam à prova de balas”... A questão pode ser política, mas a resposta mais forte se localiza em um museu na Cidade do México, o Museo Nacional de San Carlos, na retrospectiva de pinturas e fotografias feitas pelo artista austríaco-americano Gottfried Helnwein. O trabalho extraordinário de Helnwein retrata a inocência frágil das crianças. Desprovidas de sentimentalismo adulto, suas imagens podem ser esmagadoras, especialmente 23

aquelas que mostram como a inocência se escasseia num mundo adulto38 (KEATS, 2012).

Gottfried Helnwein é casado com Renate e tem quatro filhos: Cyril, Mercedes, Ali Elvis e Wolfgang Amadeus. Todos eles são artistas, sendo Cyril fotógrafo, Mercedes pintora e escritora e Ali compositor e músico.

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1.1 Recepção: a força da imagem

Desde o início de sua carreira como artista, Helnwein esteve a observar a reação das pessoas diante de suas imagens: fossem aquarelas ou fotografias, ações ou pinturas em tela. O austríaco, aliás, escolheu a arte justamente como forma de manifestar suas perguntas (daí o título-citação da entrevista feita por Yuichi Konno (2003), My art is not an answer – it is a question) que não eram respondidas enquanto criança que cresceu em ambiente pós-guerra.

E mesmo depois de ter pintado Hitler e sido expulso da faculdade, foi em 1971 que ele experimentou pela primeira vez a censura. Como já mencionado, logo na abertura de sua exposição na Galerie D, em Mödling, Áustria, seus trabalhos foram confiscados pela polícia, que recebeu ordens do prefeito. No ano seguinte, protestos fizeram com que sua exposição se encerasse antes do prazo, na Casa da Imprensa, em Viena. Três dias após a abertura, visitantes e empregados da instituição ameaçaram greve caso não retirassem as obras de Helnwein.

No entanto, uma das mais emblemáticas represálias contra o austríaco ocorreu em Colônia, na Alemanha, no ano de 1988. Sobre isso, Helnwein comenta:

Quando eu fiz esse memorial em 1988, foi o aniversáio de cinquenta anos da Kristallnacht [Noite dos Cristais] e eu achava que era um ponto realmente crucial na época, porque foi o momento em que, subitamente, os alemães abertamente se puseram contra os judeus. Milhares de sinagogas foram queimadas em uma única noite, todos os negócios e lojas foram destruídos, eles [os judeus] foram perseguidos nas ruas, as pessoas eram mortas e isso era abertamente um assassínio. Ninguém deve duvidar que até então as pessoas diziam que não era tão ruim. Para mim, esse foi o verdadeiro começo do Holocausto... Eu fotografei os rostos de crianças e então as coloquei [próximas] dessa palavra mágica Selektion, que significa seleção: porque era isso o que eles estavam fazendo. Selecionar quem deveria viver e quem deveria ir à câmara de gás... Eu sempre pensei que, quando você olha para a essência desse horrível pesadelo, acho que é realmente a ideia de um pequeno grupo de pessoas que pode decidir e brincar de Deus, decidir quem tem o direito de viver e quem não tem39 (apud O’DONOGHUE, 2008).

Helnwein teve dificuldades para encontrar patrocínio para a instalação, já que ele havia planejado fazê-la com retratos fantasmagóricos de crianças, o que era bem diferente dos trabalhos conceituais encomendados pelas Câmaras Municipais alemãs. Segundo O’DONOGHUE (2008), a prefeitura de Colônia recusou a permissão para Helnwein expor suas fotografias em locais de propriedade pública. Mas ele conseguiu ser liberado para usar

25 um espaço privado, em posse de uma companhia ferroviária, e assim pôde seguir com a sua ideia.

De propósito, eu evitei usar qualquer material documental. Imagens de montanhas de corpos encontrados em Auschwitz ou em qualquer lugar tinham sido utilizadas tantas vezes que tinham perdido seu significado original. Eu senti que elas eram erradas para meu conceito. Eu queria fazer um balanço do nosso tempo. Isso significa, no ano em que eu fiz o projeto, eu quis mostrar crianças vivendo na Alemanha. Tirei foto de turcos, cristãos, de crianças deficientes, todos os tipos de crianças. Pedi às crianças que eu via na rua para posarem, filhos de amigos... Dizia a eles sobre o que era e deixava para as crianças decidirem a expressão facial40 (SCHMID, 2009).

O painel de quatro metros de altura, cem de largura e com dezessete fotografias foi exposto numa estação de trem localizada entre a Catedral de Colônia e o museu Ludwig, onde estão expostas obras de artistas como Andy Warhol e Roy Lichtenstein. No fim das contas, Helnwein viu vantagem na solução encontrada: “Eu pensei, isso é ótimo, porque agora tendo [a instalação] ao longo da ferrovia, faz ainda mais sentido. Ela foi a ferrovia que os deportou [os judeus] para os campos de concentração”41 (apud O’DONOGHUE, 2008).

Além do significado histórico, a estação na qual foi exposto o painel de Helnwein é a principal de Colônia e, sendo assim, milhares de pessoas passam por ela todos os dias. Portanto, vários foram os expectadores que puderam conferir os enormes e mórbidos rostos de crianças que o austríaco fotografou para a instalação: “Pintadas de branco, elas [as crianças] pareciam quase mortas, postas numa fileira aparentemente interminável, como se fosse uma seleção para um campo de concentração”42 (O’DONOGHUE, 2008). Isso chamava tanto a atenção dos transeuntes quanto da mídia, que se focou no assunto e gerou um debate público. Assim, dois dias depois da inauguração, os painéis foram vandalizados com cortes feitos nas imagens, à altura da garganta das crianças retratadas. Sobre isso, Helnwein disse:

Dois dias depois de [as fotografias] serem dependuradas, alguém cortou todas as gargantas e, quando eu vi, não sabia o que fazer. Isso nunca me chocou, porque acho que se você expõe em espaços públicos, a reação será parte daquilo que você expor. Você não poder controlar isso. Então eu decidi apenas consertá-las mais ou menos e deixá-las. E, na verdade, isso faz a obra muito mais poderosa. Para mim, sempre foi uma parte importante ver a reação43 (apud O’DONOGHUE, 2008).

Nesse sentido, a reação do público ocorre como diz O’DONOGHUE (2008), que entende que os murais de Helnwein criam espaços memoriais cujo objetivo não é “incorporar a memória, mas devolvê-la à comunidade; não para consolar, mas para provocar; não para permanecer fixa, mas para mudar e para demandar interação com o espectador”44. 26

Instalação Selektion (Ninth November Night), em Colônia, na Alemanha, em 1988. Fotografia.

Outro caso estudado pela mesma autora aconteceu em 2001, na Irlanda. Helnwein participou do Kilkenny Arts Festival com grandes painéis de suas obras, os quais foram dependurados em prédios da cidade de Kilkenny. Dentre as imagens escolhidas para o evento estavam três pinturas da série Epiphany, as quais foram feitas entre os anos de 1996 e 1998. A coleção traz motivos religiosos misturados aos nazistas, isto é, a inserção das figuras da Madonna e do Menino Jesus junto a homens vestidos em uniformes do exército de Hitler. Este é o caso da pintura Epiphany I (Adoration of the Magi) que, feita em tons monocromáticos de azul, representa a passagem bíblica da Adoração dos Magos, isto é, a visita que os três reis magos fazem a Jesus assim que este nasce (Mateus 2:11). As duas outras pinturas apresentadas também seguem essa mesma temática, sempre trazendo a criança em meio a oficiais em uniforme nazista – em Epiphany II (Adoration of the Shepherds) ainda há a presença da mãe/Madonna junto ao bebê, porém em Epiphany III (Presentation in the Temple), a figura materna desaparece.

Mas Helnwein ainda preparou novos trabalhos especialmente para sua instalação no Kilkenny Arts Festival. Para tal, ele fez mais uma série de retratos de crianças, então moradoras daquela cidade, mostrando um vestígio forte de sua antiga Selektion (Ninth November Night), instalação feita em Colônia em 1988. Tendo fotografado noventa e nove 27 crianças, apenas nove delas foram expostas no centro da cidade, em painéis de nove metros de altura.

Na intenção de levar arte às ruas de uma cidade ainda marcada por traços medievais, como é o caso de Kilkenny, Helnwein acreditou que as imagens das crianças locais envolveriam o público ao mesmo tempo em que as pinturas de inspiração religiosa fossem causar alguma reação nos habitantes daquele país católico. E, no fim das contas, suas imagens foram novamente vandalizadas. O’DONOGHUE (2008) conta que a pintura Epiphany I (The Adoration of the Magi) recebeu um jato de tinta vermelha e a fotografia de uma criança foi incendiada. Segundo o jornal The Kilkenny People, as obras estavam causando polêmica desde o começo do festival: “Um ex-prefeito da cidade, senhor Paul Cuddihy, inicialmente se opôs a dependurar uma pintura na prefeitura, por medo de que ela fosse mal interpretada como se fosse um apoio ao nazismo”45 (apud O’DONOGHUE, 2008).

Isso porque, no início, membros da Câmara Municipal tiveram acesso à pintura Epiphany II e sugeriram que uma ampliação fosse exposta na prefeitura, apesar de Helnwein já ter decidido colocá-la em outro lugar. E o debate sobre em qual lugar essas imagens seriam postas fez até mesmo com que a organização do festival fosse à imprensa para explicar o propósito da exposição:

Os temas da obra de Helnwein são os frequentemente difíceis assuntos sobre o preconceito, o ódio e a violência. Apesar de sua natureza difícil, é importante que esses assuntos sejam mencionados e que o debate seja sobre problemas como o nazismo, fascismo e sentimentos de ódio contra imigrantes e grupos minoritários. Esse é o assunto da obra de Gottfried Helnwein e o propósito é promover o debate público... Na Irlanda de hoje, onde nós enfrentamos cada vez mais incidentes de hostilidade contra imigrantes e grupos minoritários, este é um assunto legítimo a ser explorado através do trabalho artístico. Acreditamos que é apropriado e razoável usar prédios públicos para exibir arte para o público em geral em um festival que é voltado para o divertimento e estimulação do povo de Kilkenny e dos visitantes da cidade46 (apud O’DONOGHUE, 2008).

Esse tipo de situação faz parte do processo criativo de Helnwein. Como observa HONNEF (1996), o austríaco usa as artes plásticas e a mídia como instrumentos para seu espírito subversivo, inserindo nas imagens um fator que perturba o processo recíproco entre “um particular meio de expressão artística e a expectativa que, assim como se fosse, programada pela mídia. Esse fator de perturbação consiste em uma imperceptível troca no uso do repertório midiático”47. Ou seja, os elementos que compõem as imagens de Helnwein “atravessam a familiar relação entre a obra de arte e o observador e quebra o convencional 28 automatismo da percepção com um choque estético”48. Porém, isso só acontece no momento em que “o observador caiu na armadilha visual, enredando-se no jogo inteligente que o artista faz com a mídia artística, com as percepções que foram criadas e com as expectativas ligadas a elas, porque frequentemente as expectativas colorem a percepção, de verdade”49.

No momento em que Helnwein expõe, sem maiores explicações, seus trabalhos, ele faz com que as pessoas fiquem “emocionalmente afetadas, elas falam a respeito, ficam encantadas ou ultrajadas e protestam”50 (JERMANN, 2008). E esse choque acontece, segundo Helnwein, porque é “sempre a reação de uma sociedade baseada em seus sistemas de valores e suas regras; então, a única coisa que uma obra de arte pode fazer é tocar ou desafiar algumas estúpidas e arbitrárias regras”51 (O’DONOGHUE, 2008).

É por isso que eu sempre gosto de citar o conceito de arte segundo Marcel Duchamp: arte é um produto bipolar, ela é 50% o artista e 50% o público, o espectador, ele dizia. E o que acontece entre esses dois polos, algo como eletricidade, isso é arte. É o que chega mais perto daquilo que acho que a arte deve ser52 (apud O’DONOGHUE, 2008).

Apesar disso, não é exatamente o choque que o artista procura, já que ele acredita que essa reação, isoladamente, é infértil, uma vez que sua intenção é fazer com que as pessoas pensem (MCCARTHY, 2008). No entanto, este é um dos “poderes” que as imagens exercem sobre os observadores. Isso foi percebido por Aby Warburg ao entender que as imagens possuem tanto uma pós-vida (Nachleben) quanto uma fórmula de pathos (Pathosformel). Inspirado nessas noções, Giorgio Agamben, em Ninfas (2010), usa como exemplo o caso de Henry Darger, um homem que vivera confinado em um apartamento e que escrevera uma espécie de romance com quase trinta mil páginas, chamado In the Realms of the Unreal. A obra retratava, a partir de colagens, crianças estranguladas e postas em situações violentas e sádicas.

As então apelidadas “ninfas dargerianas” foram compreendidas por Agamben não apenas como matéria passional à qual o artista confere nova forma em seu trabalho, nem mesmo um molde para ajustar seus próprios materiais emocionais, mas o “motivo” das ninfas é um mecanismo de “originalidade e repetição de forma e matéria”53 (AGAMBEN, 2010, p.19). Isto é, essas personagens aparecem quase de modo arquetípico, trazendo (de volta) para o mundo material a força da imagética carregada pelo artista – as imagens sobrevivem no imaginário do observador (Nachleben) e ao mesmo tempo se mantêm em forma de paixão, seja esta positiva ou que causa sofrimento (Pathosformel)54. Feitas de tempo, “cristais de 29 memória histórica”55 (p.19), as fórmulas patéticas (ou de pathos) são “híbridos de matéria e forma, de criação e performance, de primeiridade e repetição”56 (p.18).

As imagens que compõem a nossa memória tendem, pois, de forma incessante, no curso de sua transmissão histórica, a fixar-se em espectros e [isso] se trata precisamente de restituí-las à vida. As imagens estão vivas, mas, como são feitas de tempo e memória, sua vida é já e sempre Nachleben, sobrevivência, ameaçada incessantemente e em processo de assumir uma forma espectral57 (AGAMBEN, 2010, p.23).

Assim, as imagens sobrevivem não apenas em nós, mas também na história, já que AGAMBEN (2010, p.27) considera que a Nachleben não é “um dado, mas requere uma operação cuja execução corresponde ao sujeito histórico”58. Nesse processo, “o passado – as imagens transmitidas pelas gerações que nos precederam – que parecia em si selado e inacessível, põe-se de novo, para nós, em movimento, volta a ser possível”59 (Idem). Elas permanecem na memória coletiva, noosfera (MORIN, 2002), e invariavelmente retornam como imagens exógenas veiculadas pela mídia e pelas artes e/ou então permanecem no âmbito das ideias particulares, como imagens endógenas60.

Dessa maneira, havendo estímulo de primeira parte, por exemplo, um quadro ou fotografia que se utilize de algum motivo tocante ao observador, gera-se uma reação, por exemplo, a de choque. EFAL (2000) cita um trecho de Aby Warburg: An Intellectual Biography, obra escrita por Ernst Gombrich em 1970, que explica bem esse procedimento:

É característico da mentalidade mitopoética (cf. Vignoli, Mito e Ciência) que para qualquer estímulo, seja este visual ou auditivo, uma causa biomórfica de uma definida e inteligível natureza seja projetada, a qual permite que a mente tome medidas defensivas (...) Esse tipo de reação defensiva, que tenta estabelecer uma conexão entre tanto o sujeito quanto o objeto com os seres de máximo poder, os quais podem ainda ser apreendidos em sua extensão, é o fundamental ato da luta pela existência (...) Isso deve ser entendido como uma medida defensiva na luta pela existência contra inimigos vivos cuja memória, no estado de despertar fóbico, tenta compreender em sua mais distinta e lúcida forma ao mesmo tempo em que também acessa seu máximo poder, de modo a tomar as mais efetivas medidas de defesa. Essas são tendências que estão abaixo do limiar da consciência. As imagens substituídas objetivam o estímulo, causando a impressão e criam uma entidade contra qual as defesas podem ser mobilizadas61 (apud EFAL, 2000, p.222).

É nesse choque e surpresa que são gerados os mecanismos de defesa, devido ao “traumático encontro com a ameaçadora força externa: a imagem”62 (EFAL, 2000, p.222). Essa medida, então, é tomada (ainda que inconscientemente) porque a imagem faz com que as pessoas usem “a força do caos primordial de acordo com suas necessidades”63 (Idem), isto é, a 30

Pathosformel, que traz em suas bases o estado primitivo do ser humano e que faz “a identificação e a junção do externo, estrangeiro, ameaçador, ‘Outro’, e da força não humana, com a imagem, a qual imprime dentro de si a presença primordial”64 (Ibidem). Nesse sentido, a imagem atua como uma “unificadora”.

Portanto, Helnwein traz de volta imagens (primordiais e também contemporâneas), de modo a mantê-las vivas (Nachleben) na memória de seu público, relembrando, por exemplo, o Holocausto e a violência (O’DONOGHUE, 2008), causando impacto (Pathosformel) nas pessoas a partir da lembrança e reconhecimento dos significados associados a esses motivos pictóricos. Ou seja, “o fato de um pintor (...) usar uma imagem que tem sua origem numa ‘Fórmula de Pathos’ é, para Warburg, evidência da necessidade da cultura em conectar com os movimentos primordiais e qualidades que dão vida às imagens primitivas”65 (EFAL, 2000, p.223).

A escolha, no caso de Helnwein, dos motivos é dada conforme sua obra “aparece de repente como a expressão autêntica da personalidade do autor, como réplica ‘material’ de sua constituição psíquica”66 (MUKAŘOVISKÝ, 1975, p.280), porém esta ainda faz sentido aos demais, causando reação nos observadores, porque o discurso íntimo se encontra com o discurso público, tornando a comunicação com outrem possível porque existe, dessa forma, “um grau de memória comum, e um texto67 se define pelo tipo de memória de que ele necessita para ser entendido. Reconstruindo o tipo de memória que partilham o texto e seu consumidor, descobre-se a imagem da leitura escondida nele” (FERREIRA, 2004, p.83). Ou seja, conforme a memória do autor, exposta em seus quadros, choca-se com a do observador, cria-se um novo parecer e assim se tem, a partir desta combinação de memórias, uma possível leitura da obra capaz de manter a imagem viva e efetiva. Os dois polos de Duchamp.

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2.0 Traços

2.1 Barroco e Tenebrismo: as cores da sombra

Levando em consideração que Helnwein viveu, durante a infância, na região de Favoriten, em Viena, é possível que o artista frequentasse alguma igreja nessa mesma localidade. Em entrevista (vide anexo), ele comenta não lembrar exatamente quais costumava visitar naquela localidade, apesar de se recordar de que havia uma muito próxima à sua casa e que era cuidada por freiras, na qual estudou durante o jardim de infância. Entre as possibilidades estão a gótica Salvatorkapelle, uma das mais antigas construções sacras da capital, e as barrocas igrejas de São José (Sonnenhofkirche) e de Santo Egídio (Pfarrkirche Oberlaa), além da igreja historicista românico-bizantina Santo Antonio de Pádua (Antonskirche)68. Além disso, Helnwein comentou também na entrevista que esteve em outras igrejas da Baixa Áustria, como foi o caso da igreja de Maria Taferl, no distrito de Melk, mas também esteve na basílica de Mariazell, igreja gótica construída no século XIV e que mais tarde foi ampliada recebendo retoques barrocos.

Assim, é possível dizer que Helnwein esteve exposto desde cedo às imagens sacras feitas conforme o estilo barroco, isto é, pinturas dramáticas e contrastantes que trabalhavam especialmente a técnica do chiaroscuro (claro-escuro) para reforçar a visualidade das cenas retratadas. Estas dão destaque a uma iconografia principalmente composta por representações do Sagrado Coração de Jesus e da Maria Imaculada. Alguns artistas barrocos, como os escultores Georg Rafael Donner e Giovanni Giuliani, o arquiteto Matthias Gerl e os pintores Johann Gottfried Auerbach e Bartolomeo Altomonte, fizeram parte da construção das igrejas de São José e de Santo Egídio, por exemplo.

Essa hipótese pode ser proposta conforme as descrições de pinturas dramáticas que Helnwein faz em JERMANN (2008) e pelo fato de suas próprias obras terem um aspecto visual muito parecido ao do barroco, especialmente no que diz respeito ao tenebrismo, estilo de pintura caracterizado por um contraste de luz e sombra muito forte criado a partir do chiaroscuro. É dito que Caravaggio foi quem inventou o tenebrismo, apesar de este ter sido usado por outros pintores como alemão Albrecht Dürer e a italiana Artemisia Gentileschi, que foi seguidora do italiano.

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O termo tenebrismo é normalmente usado ao fazer referência a pintores do século XVII em diante, mas tem em suas raízes justamente o trabalho de artistas como Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), Georges De La Tour (1593-1652) e Rembrandt van Rijn (1606-1669). Entre os mais conhecidos tenebristas estão os seguidores italianos e holandeses de Caravaggio, que são Francisco Ribalta, Jusepe de Ribera e os espanhóis Juan Bautista Maino e Juan Sánchez Cotán.

Segundo RZEPINSKA (1986), a partir de 1600, “as trevas ganharam ‘estatisticamente’ mais e mais espaço e, em várias pinturas italianas e espanholas, elas predominaram sobre a luz, frequentemente preenchendo dois terços ou mais da área da tela”69 (p.91). A autora ainda comenta que, com o passar do tempo, várias pinturas barrocas ganharam tons mais escuros por conta de mudanças químicas da própria tinta, mas existia mesmo à época uma preferência pelo contraste entre luz e sombra, fazendo com que diferentes obras fossem demarcadas por grandes espaços de escuridão. Essa característica foi o que as deu o nome de “pittura tenebrosa” ou pintura tenebrosa.

Apesar de alguns críticos terem apontado essa técnica como uma forma de “esconder nas sombras os defeitos do desenho”70 (RZEPINSKA, 1986, p.92), tendo feito pintores como Caravaggio e Rembrandt alvos dessas constatações,

Tal escuridão é um valor considerável tanto artística quanto psicologicamente e é indispensável para a amostragem de várias possibilidades da luz e para a introdução de um elemento de mistério, ambiguidade e atenuação. O contraste com as trevas dá à luz uma qualidade dinâmica e ressalta o elemento dramático e o pathos71 (RZEPINSKA, 1986, p.92).

Desse modo, esse reforço da escuridão nas imagens ainda dá às pinturas de tema bíblico tradicional um “clima exaltado e novos significados”72 (RZEPINSKA, 1986, p.93), tornando simplista a explicação de que esse tratamento de luz seja apenas uma influência de Caravaggio – no caso de seus sucessores – ou mesmo uma incapacidade do artista. Segundo a autora, Caravaggio apenas reforçou uma expressão que cresceria na época: “Esta foi uma poderosa tendência europeia que introduziu a escuridão, inseparável da luz, como um fator icônico e psicológico de essencial significância”73 (Idem).

Enquanto a luz era considerada o princípio da existência ou mesmo uma referência a Deus e ao paraíso, de onde Ele emana seu brilho, as trevas e a sombra sempre carregaram um significado negativo. Pensadores como Mestre Eckhart e Hildegard von Bingen enxergavam a 33 sombra e as trevas em associação com o “mal, negação, não-ser e pecado (...) e, por isso, eram consideradas negativas”74 (RZEPINSKA, 1986, p.97). Essa visão era compartilhada tanto por escolásticos quanto por místicos, além de filósofos como Marsilio Ficino, que dizia: “Odi maxime omnium tenebris (...) amo ante omnia lumen” (Eu odeio particularmente as trevas... Acima de tudo, amo a luz). Isto é, toda a cosmologia do pensador italiano gira em torno da “Luz Divina”, pondo o luminoso como maior valor em oposição às trevas como uma “pesada matéria inerte. A beleza se encontra(ria) no brilho e na graça da forma e não na obscura matéria inerte”75 (Idem).

No entanto, há correntes intelectuais que tratam as trevas como algo valioso sem deixar de tê-las como uma negação, assim entendendo que o sombrio é um indispensável complemento da luz. Campos espirituais e intelectuais como a astronomia e a ciência da projeção das sombras, ou mesmo as doutrinas herméticas e a alquimia, além de uma nova mística, são exemplos de pensamentos que entendem o obscuro de maneira não depreciativa. Ainda na religiosidade, São João da Cruz introduziu no fim do século XVI a chamada Teologia das Trevas, uma doutrina na qual o sombrio e o noturno são tratados como algo positivo.

A noite da alma não é a noite do pecado, não é algo negativo; pelo contrário, ela é indispensável para a conquista de uma perfeição espiritual e para o caminho direto a Deus. Em seus tratados Noche oscura e Subida Del Monte Carmelo, o grande místico espanhol distingue os seguintes estágios do progresso da alma: a noite ativa dos sentidos, a noite ativa do espírito e a noite passiva76 (RZEPINSKA, 1986, p.100).

Em Subida Del Monte Carmelo, São João da Cruz escreveu:

É por conta de três motivos que o curso da alma até a união com Deus é chamada Noite. Primeiro, por causa da posição de onde a alma parte, de modo que ela deve mortificar todos os desejos pelas coisas que ela possui no mundo e abandoná-las. Tal abandono e a falta dessas coisas são a noite para os sentidos humanos. Em segundo lugar, é chamada Noite por causa do jeito ou do meio pelo qual a alma deve ser usada de modo a obter a união. O caminho é pela fé, que é uma escuridão para a mente tal como as sombras da noite. Em terceiro lugar, é chamada Noite devido ao seu fim, este fim sendo Deus. Para a vida na Terra, Ele é também uma noite escura para a alma77 (apud RZEPINSKA, 1986, p.100).

Essa inspiração vem do século V, quando Pseudo Dionísio, o Areopagita, escreveu “Em que Consiste a Treva Divina” (DIONÍSIO, 2004). Sua obra, sempre preocupada com

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Deus, discute a reunião da alma humana com o Uno a partir da chamada teologia negativa, isto é, aquela que descreve Deus a partir daquilo que ele não é. Enquanto a teologia positiva pretende alcançar a divindade ao afirmá-la pela extrapolação das qualidades humanas, a teologia negativa entende que, mesmo superlativos, esses dons nunca serão suficientes para descrever a supremacia divina e, por isso, pretende-se negar mesmo a perfeição que possa ser empregada a Deus. Dionísio, portanto, aponta a essência de “Deus para além das palavras, de Deus sempre escapar ao conceito, testificando a insuficiência da linguagem” (BARBOSA, 2006, p.11).

São João da Cruz uniu tanto a teologia positiva quanto a negativa em seus escritos, especialmente Noche Oscura, seja este a poesia composta em Toledo, no ano de 1578, ou a prosa feita em Granada, em 1582-85. Tanto Dionísio quanto São João da Cruz abordaram a “treva divina”, percebendo que, para que a criatura possa alcançar a inefabilidade do Criador, ela precisa atravessar uma noite escura, as trevas. BARBOSA (2006, p.7) entende que, para se contemplar Deus, então, “é preciso adentrar na treva do mistério. Para realmente vislumbrá- lo, para além de suas manifestações, é preciso se esquecer de tudo, inclusive de si mesmo, pois que já não se pertence, mas sim Àquele que está além de tudo”. Ou seja, é preciso “abandonar-se”, adentrar no terreno da fé e da irracionalidade, numa treva que “causa aflição naqueles que a experimentam em um primeiro momento, mas que é fonte de toda luminosidade de contato com Deus quando é possível atravessá-la” (Idem).

Não há, a partir desse ponto de vista, outro jeito de se encontrar com o divino senão enfrentando a noite escura. Dionísio dizia que, apesar de a travessia causar “ânsia” – e “daí muitos se ocuparem apenas com a luminosidade e se ocultarem da escuridão interna” (BARBOSA, 2006, p.11) –, “é preciso atravessar a noite, e só é possível atravessá-la atravessando-se, (...) na verdade entrando mais ainda para dentro de si mesmo, pois só dessa forma é possível atravessar-se” (Idem). A poesia Noche Oscura de São João da Cruz narra, justamente, o trajeto que a Amada faz ao encontro do Amado – a alma humana em busca de Deus.

Nessa exultação da alma ela [a Amada] faz uma descoberta, a noite e a luz de seu coração são as mesmas. A noite se torna guia, pois permite o encontro tão desejado da Amada com seu Amado, que, se não tivesse adentrado nas trevas, não o teria encontrado. “Al menos se han armonizado: la luz y las sombras han terminado por ser lo mismo: ambas conducen al Amor, ambas son el Amor78” (BARBOSA, 2006, p.13).

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Ambos os textos de Dionísio e de São João da Cruz são obras místicas e, portanto, “a dualidade (...) não se faz excludente, mas sim perpassa o conceito” (BARBOSA, 2006, p.6). Então, sombra e luz não se anulam, mas se relacionam e, nessa interação, alcançam o equilíbrio. Para se chegar a isso, contudo, é preciso confinar-se no escuro, como também propôs Ignácio de Loyola em “Exercícios Espirituais” (1522-1524), quando na quarta regra sugere a desolação do espírito ao pôr-se nas trevas para se engrandecer espiritualmente. Essa ideia, bem como todas as propostas da obra, inclusive, tornou-se oficialmente reconhecida e recomendada pela Igreja Católica em 1548. Jesuítas e também os chamados Carmelitas Descalços, que são aqueles que seguem o ramo dos carmelitas reformados criado por Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, passaram a ter a noite como “um tempo propício para a concentração religiosa”79 (RZEPINSKA, 1986, p.101).

Levando-se em conta que o tratado Noche Oscura de São João da Cruz foi publicado entre os anos de 1582-85, nota-se que essa onda de pensamentos que pedem por uma revisão do valor da sombra veio em momento próximo ao que o físico e astrônomo Johannes Kepler também estava se voltando para este fator, dentro de sua área de estudo. Em sua obra Ad Vitellonem Paralipomena, Astronomia Pars Optica, publicada em 1604, mas iniciada no século anterior, ele faz um elogio às sombras e defende que demais estudiosos se voltem para elas, devido à sua importância:

Agora, se considerarmos quão conectada está a astronomia com o movimento do sol e quantos benefícios provêm da lua, ao participar do dia e da noite, à medida que todos os outros meios nos falham, podemos muito bem chegar à conclusão de que é nesses eclipses de corpos celestes que toda a astronomia é baseada. E essas mesmas sombras estão tão presentes nos olhos dos astrônomos, que tais falhas iluminam as mentes humanas com as mais preciosas imagens. Quão magníficas e recomendáveis a todas as nações são as considerações do elogio às sombras! Portanto, o astrônomo deve observar muito atenciosamente o tamanho da imagem mostrada pela lua ou pelo sol, seja com ou sem eclipse, e o tamanho da sombra projetada pela Terra na lua80 (apud RZEPINSKA, 1986, p.102).

CASATI (2001) lista mais de trinta avanços nos campos da astronomia, matemática, geografia e pintura que têm a sombra como um de seus principais responsáveis. No entanto, o autor remarca essa atenção voltada às trevas desde Platão até Galileu Galilei que, em 1610, poucos anos depois da publicação da obra de Kepler citada anteriormente, anunciou o novo modelo heliocêntrico copernicano. Além disso, Casati também aborda o uso da sombra na pintura, mencionando a ideia de Plínio, o Velho (23-79), de que a pintura também seria “filha da sombra” (p.215). O autor de A Descoberta da Sombra ainda indica que “em nenhuma 36 disciplina intelectual a luta com a sombra foi mais dramática do que na pintura” (p.216). Isso porque, segundo ele, todas as culturas tenderam à remoção das sombras projetadas pelas imagens.

As sombras não aparecem quase nunca nas imagens de culturas não ocidentais; e na arte ocidental até o Renascimento, sua sorte é variável. Mesmo em tempos recentes, a relação com a sombra é ambígua e imperfeitamente resolvida. Nas pinturas tenebrosas do maneirismo e do barroco, as sombras das coisas e das pessoas se perdem na escuridão de quartos mal iluminados (CASATI, 2001, p.217).

O autor entende que esse esquecimento da sombra se dê por questões de tabu cultural: “um motivo profundo poderia ser metafísico e depender das estranhas propriedades da sombra” (CASATI, 2011, p.217), já que “as sombras são imagens inquietantes, perigosos esconderijos para bandidos de tocaia, são duplicações aborrecidas das figuras” (Idem). Mas, ainda assim, elas são importantes elementos numa pintura, já que são responsáveis por dar forma e perspectiva aos elementos retratados.

Casati talvez entenda que, antes do Renascimento, as sombras não tinham tanta presença nas pinturas porque ainda existia pouca noção de perspectiva, tanto que o primeiro tratado sobre esse assunto, escrito por Andrea Pozzo e intitulado Perspectiva Pictorum et Architectorum, foi publicado somente nos anos de 1693 e 1698, em dois volumes. A arte medieval, como a bizantina, não tinha domínio sobre a técnica da perspectiva, que passou a ser utilizada a partir do Renascimento (século XV). Além desse aprimoramento na questão da espacialidade e iluminação, o trabalho com luzes e sombras em quadros se deu em mais quatro novas técnicas: sfumato, cangiante, unione e chiaroscuro. Esta última, caracterizada pelo forte contraste entre a luz e as sombras, é um aspecto marcante, justamente, do barroco, movimento que se iniciou no século XVII.

Podemos entender, então, que o barroco fez uma “reavaliação das sombras”81 (RZEPINSKA, 1986, p.103), seguindo a mesma tendência das descobertas científicas e mesmo pela importância que foi dada, no período, à magia e alquimia.

Ao contrário das noções que prevaleceram até recentemente, a alquimia e todas as ciências que abrangem a classificação do oculto ou hermético floresceram em larga escala não na Idade Média, mas no fim do Renascimento e no Barroco, paralelamente com o desenvolvimento das ciências naturais. Da metade do século XVI em diante, as doutrinas dos alquimistas ganharam uma gama cada vez maior graças às numerosas publicações de trabalhos impressos. Por volta de 1600, o número desses escritos aumentou rapidamente, comprovando quão profundamente o pensamento em termos de mágica invadiu a cultura intelectual e espiritual daquela época. A atitude da Igreja 37

com relação a essas ciências foi ambígua e inconstante. Práticas de “feitiçaria” eram condenadas e, ainda assim, a alquimia sempre foi um assunto de interesse de vários altos dignitários da Igreja. O contato dos pintores com a alquimia e a farmácia foi sempre por conta de procedimentos da pintura. É quase certo também que o simbolismo das cores, relacionado com os planetas, temperamentos, figuras mitológicas e fases individuais do processo alquímico era de conhecimento dos artistas82 (RZEPINSKA, 1986, p.103).

RZEPINSKA (1986) conta que o Cardeal Francesco Del Monte, que foi o mecenas de Caravaggio durante uma época, chegou a estudar textos alquímicos como aqueles escritos por Libavius, autor do tratado Alchymia recognita (1606). A autora ainda indica que vários historiadores da arte, ao interpretar obras, levaram essa relação da pintura com a alquimia em conta, porém não chegaram a dar atenção para as ligações desta com os simbolismos religiosos e cosmológicos dados à luz e às sombras, sendo as últimas “um dos pontos básicos de tratados hermético-alquímicos”83 (p.103).

No fim do século XVI, cada vez mais tratados alquímicos abordavam os motivos da umbra e do nigredo como uma “parte indispensável de toda a iniciação, de todo o sistema cósmico-psíquico”84 (RZEPINSKA, 1986, p.104). Isto porque a doutrina alquímica entende, conforme Aristóteles, que do caos da matéria prima emergiram quatro elementos (terra, ar, água e fogo), os quais possuem qualidades (frio, seco, úmido e quente). Combinados, eles levam à chamada teoria da transmutação dos elementos (transmutatio), na qual se entende que os metais têm algumas das qualidades desses elementos e, por isso, eles estão passíveis à transmutação alquímica. Contudo, além de possuir esse lado prático, RZEPINSKA (1986) lembra que a alquimia também teve sua faceta filosófica e mística: “ela se dedica à meditação e imaginação e, além disso, apresenta algo como uma cosmologia e um simbolismo existencial”85 (p.104).

Portanto, não é coincidência que Carl Gustav Jung tenha se dedicado ao estudo da alquimia, chegando ao ponto de escrever livros como Psychologie und Alchemie (1944), Studien über Alchemistische Vorstellunge (1929-1954) e Mysterium coniunctionis (1955-56). Na primeira obra, Jung tenta explicar, por exemplo, a relação entre a alquimia e o cristianismo, entendendo que a primeira é como um sonho em relação ao segundo “e da mesma forma que o sonho compensa os conflitos do consciente, assim o esforço da alquimia visa preencher as lacunas deixadas pela tensão dos opostos no cristianismo” (JUNG, 2011a, p.35). Ele enxerga esse sentido filosófico e psicológico na alquimia conforme cita a obra La Tradizione ermetica (1931), de Julius Evola, na qual o autor explica: 38

A constituição espiritual do homem pertencente aos ciclos pré-modernos da cultura era tal, que cada percepção física tinha simultaneamente um componente psíquico que o “animava”, conferindo à imagem um “significado” adicional e ao mesmo tempo uma tonalidade emotiva particular e poderosa. Assim sendo, a física antiga era ao mesmo tempo uma teologia e uma psicologia transcendental: pelo fato de receber os lampejos das essências metafísicas na matéria dos sentidos corporais. A ciência natural era ao mesmo tempo uma ciência espiritual e os múltiplos sentidos dos símbolos reuniam os diversos aspectos em um único conhecimento (apud JUNG, 2011a, p.259).

Isso entra de acordo com o chamado opus alchymicum, isto é, o processo de transmutação dos metais, o qual se divide em quatro estágios: nigredo (preto), albedo (branco), citrinnitas (amarelo) e rubedo (vermelho). O primeiro deles diz respeito ao caos primordial, a “massa confusa”, “matéria prima” de onde os elementos surgiram. Considerado a “segunda treva”, o nigredo é também, por vezes, chamado de tenebrositas, mortificatio, putrefactio ou melanosis. E seguindo a lógica explicada por Evola, de que se é aplicado um significado adicional a esses conceitos alquímicos, RZEPINSKA (1986, p.105) indica que o nigredo por vezes era tratado por nigro, nígrius nigro ou então comparado à “cabeça do corvo, carvão, chumbo, alcatrão ou osso queimado”86.

À medida que JUNG (2011a) conta sobre a alquimia como uma prática laboratorial, de pesquisa em química, mas que tem seus desenlaces filosóficos, o suíço propõe que o alquimista desconhecia “a verdadeira natureza da matéria. Ele a conhecia unicamente através de alusões. Na medida em que procurava investigá-la, projetava o inconsciente na escuridão da matéria, a fim de clareá-la” (p.261). E nessa intenção, o alquimista acabava, no fim, implicando um novo mistério ao projetar “seu próprio fundo psíquico desconhecido no que pretendia explicar (...) Tratava-se evidentemente não de um método intencional, mas de um acontecimento involuntário”. (Idem). Isto porque a projeção “nunca é feita – ela acontece, ela simplesmente está aí. Na obscuridade de algo exterior eu me defronto, sem reconhecê-la, com minha própria interioridade ou vida anímica” (Ibidem).

Assim sendo, Jung acredita que o alquimista praticava sua arte não por “acreditar teoricamente numa correspondência, mas tem uma teoria das correspondências pelo fato de vivenciar a presença da ideia na matéria (physis)” (JUNG, 2011a, p.261). Portanto, o psicanalista pensa ser melhor não procurar pelas conceituações filosóficas na alquimia, mas sim pelas projeções vivenciadas por aqueles que a pesquisavam. E esses procedimentos aconteciam sem a consciência do alquimista, mas mesmo assim ele a experimentava tal como uma “propriedade da matéria”, ainda que esta fosse, em realidade, seu inconsciente.

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Como é sabido, a ciência teve início com a observação das estrelas, nas quais a humanidade descobria as dominantes do inconsciente, os “deuses”, bem como as estranhas qualidades psicológicas do zodíaco – uma teoria completa e projetada do caráter. A astrologia é uma experiência primordial, como a alquimia. Projeções deste tipo repetem-se todas as vezes que o homem tenta explorar uma escuridão vazia, preenchendo-a involuntariamente com formas vivas (JUNG, 2011a, p.261).

Então, o estágio alquímico do nigredo pode estar relacionado a uma condição psicológica, como indica JUNG (2011a, p.289) ao citar a frase “de corpore, de quo canitur: Horridas nostrae mentis purge tenebras” (expurgai as pavorosas trevas do nosso espírito) presente no tratado alquímico Aurora Consurgens atribuído a Tomás de Aquino. O trecho fala tanto do nigredo quanto do dealbatio (alvejamento) ao pedir pela expurgação das trevas, solicitando isso justamente a Deus, uma vez que, como ele mesmo escreve, “Senior: Et facit omne nigrum album” (e Ele branqueia tudo que é negro). Para Jung, Pseudo-Tomás “sente ou vivencia deste modo o estágio inicial do processo alquímico como algo idêntico à sua própria condição psicológica” (Idem), isto é, o encontro com a própria sombra.

Tida como “a metade obscura da personalidade” (JUNG, 2011a, p.43), a sombra é um arquétipo que não funciona apenas como oposição, mas também como uma experiência de alteridade, com um outro dentro de si mesmo (JUNG, 2011b, p.373). Uma vez que o indivíduo volta para si, ele tem “o encontro com a própria sombra”:

A sombra é, no entanto, um desfiladeiro, um portal estreito cuja dolorosa exiguidade não poupa quem quer que desça ao poço profundo. Mas para sabermos quem somos, temos de conhecer-nos a nós mesmos, porque o que se segue à morte é de uma amplitude ilimitada, cheia de incertezas inauditas, aparentemente sem dentro nem fora, sem em cima, nem embaixo, sem um aqui ou um lá, sem meu, nem teu, sem bem, nem mal. É o mundo da água, onde todo vivente flutua em suspenso, onde começa o reino do "simpático" da alma de todo ser vivo, onde sou inseparavelmente isto e aquilo, onde vivencio o outro em mim, e o outro que não sou, me vivencia (JUNG, 2000, p.32).

Esse alerta de Jung entra em harmonia com o humor de “reavaliação das sombras” dado no período barroco, indo do campo místico e religioso ao científico87 e alquímico, no qual o nigredo era tanto visto como o mais primordial dos começos quanto o clamor por uma “necessária fase de morte e putrefação, de modo que a vida e a luz pudessem se erguer”88 (RZEPINSKA, 1986, p.106). Essa lógica, inclusive, estava dando o tom do movimento barroco que, assim como a astronomia, progrediu independentemente à divisão entre o catolicismo e protestantismo. Mesmo o pensamento místico se consolidava na Europa alheio a tais conflitos. 40

RZEPINSKA (1986) ainda cita diversos exemplos de tendências e ideias “revisionistas” que, durante aquela época estiveram a pensar o sombrio sobre outros pontos de vista. Um exemplo disso foi a Cabala, que chamou a atenção de dignitários e reformistas da Igreja Católica. Mas, no caso, a alquimia e o pensamento místico foram os principais motores responsáveis por amenizar a luta dualista nas correntes filosóficas e religiosas na relação entre a luz e as sombras, permitindo um novo olhar sobre esse aspecto.

E, baseado no conceito alquímico de nigredo, Jung trouxe já no século XX a questão existencial da prática antiga ao âmbito da psicologia, fazendo-nos pensar que existe, na psique humana, um lado primordial (ou primitivo), obscuro e no qual mantemos reprimidos estímulos e demais assuntos que nos incomodam. O psicanalista, seguindo os princípios da alquimia, pede por uma revisão da potencialidade dessa sombra, sugerindo a manipulação quase alquímica deste arquétipo, de modo a promover, justamente, a transmutatio – agora em nível psicológico.

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2.2 Sombra junguiana: sobre deuses e moluscos

Mencionado no capítulo anterior, o arquétipo da sombra proposto por Carl Gustav Jung aparece, por vezes, em sua obra como um lado obscuro da personalidade (ou psique) humana, mas também pode ganhar aproximações com o conceito da anima. Esta, conforme o psicanalista explica,

... não é alma no sentido dogmático, nem uma anima rationalis, que é um conceito filosófico, mas um arquétipo natural que soma satisfatoriamente todas as afirmações do inconsciente, da mente primitiva, da história da linguagem e da religião. Ela é um "factor" no sentido próprio da palavra. Não podemos fazê-la, mas ela é sempre o a priori de humores, reações, impulsos e de todas as espontaneidades psíquicas. Ela é algo que vive por si mesma e que nos faz viver; é uma vida por detrás da consciência, que nela não pode ser completamente integrada, mas da qual pelo contrário esta última emerge (JUNG, 2000, p.37).

Portanto, a anima rege a faceta irracional da psique humana, na qual residem os impulsos, sejam estes ativos ou reprimidos, como no caso da sombra. Ela, no entanto, é um arquétipo que “acredita no belo e bom, o conceito primitivo anterior à descoberta do conflito entre estética e moral” (JUNG, 2000, p.38). Para ela, “o bom nem sempre é belo e o belo não é necessariamente bom” (Idem). Ela segue a mentalidade dos homens primitivos, para os quais a ambiguidade não era um problema, bem como o moral. Assim, Jung acredita ser perigoso lidar com esse arquétipo,

...pois isso destruiria inibições morais e desencadearia forças que seria melhor permanecerem inconscientes. Como quase sempre, ela não está totalmente errada; pois a vida não é somente o lado bom, é também o lado mau. Porque a anima quer vida, ela quer o bom e o mau (JUNG, 2000, p.37).

Levando isso em consideração, a psicanálise pede por um retorno (ou confronto) ao inconsciente, de modo a cuidar do paciente que sofre de algum incômodo ou distúrbio psíquico ao fazê-lo encarar o próprio mal que o aborrece. Neste sentido, Jung propõe a defrontação com a própria sombra como forma de se criar tal conflito:

No processo do tratamento psíquico, a relação dialética conduz logicamente ao confronto do paciente com sua sombra, essa metade obscura da alma da qual nos livramos invariavelmente através de projeções, ora carregando o próximo – num sentido mais ou menos lato – de todos os vícios que são nossos, ora transferindo os próprios pecados para um mediador divino através da “contritio” ou da “attritio” mais amena. Sabemos sem dúvida que sem pecado não há arrependimento e sem arrependimento não há graça redentora; sabemos também que sem "peccatum 42

originale", o ato de redenção do mundo jamais teria ocorrido. Omitimos, porém, cuidadosamente, uma indagação que deveríamos fazer por boas razões: acaso representa o poder do mal uma vontade especial de Deus? Se como psicoterapeutas lidarmos com as pessoas que se confrontam com sua sombra mais negra, sentir-nos- emos frequentemente compelidos a admitir esse ponto de vista. Em todo caso, o médico não pode outorgar-se o direito de apontar as tábuas da Lei num gesto leviano de superioridade moral, dizendo: "Não deves". Deverá julgar objetivamente e ponderar acerca das possibilidades, pois sabe menos por sua educação e formação religiosas do que por intuição e experiência, que existe algo como uma “felix culpa”. Ele sabe que se pode perder não só sua felicidade, como também sua culpa decisiva, sem a qual o homem não atingirá sua totalidade. Esta última representa um carisma que não produz por astúcia ou habilidade; só podemos crescer em direção a ela, suportando o que o seu crescimento acarreta (JUNG, 2011a, p.41-42).

A sombra, então, ganha essa conotação negativa porque, apesar de primitivamente seus instintos estarem “além do bem e do mal”, diante da moralidade aplicada à civilização, os impulsos que compõem esse espaço da psique acabam tendo de ser reprimidos. Assim, Jung não defende a total libertação da sombra, diferentemente talvez de Friedrich Nietzsche e de sua crítica à “moralina” cristã que, no entanto, pede pelo cumprimento tão estrito de suas regras morais que chega a investir num sentimento de culpa por parte do fiel, pondo certos impulsos na posição de pecados – daí a ideia da projeção da culpa sobre a qual Jung comenta em citação anterior, já que uma vez cumprido o delito, caso arrependido, torna-se pecado, o qual passa a ser julgado por um mediador divino. No entanto, evitam-se tais atos e, dessa forma, essa irracionalidade é recalcada, assim como observa FLUSSER (2011a) ao utilizar uma espécie de fábula na qual o protagonista é um molusco abissal chamado Vampyroteuthis infernalis.

Ele é usado como alegoria para diferentes teorias do pensador tcheco-brasileiro, entre elas a questão da alteridade, seja ao pensá-la de maneira externa (como o outro que não sou eu) ou interna (o inconsciente, o outro em mim). E, dessa forma, esse personagem se encontra, em ambos os casos, não apenas a uma distância considerável, mas também numa região obscura: o abismo. Este é um habitat que ao Vampyroteuthis é habitual e “acolhedor” (FLUSSER, 2011a, p.65), mas a nós, humanos, é o inóspito, “terrificante” (Idem). Porém, se ainda quisermos nos encontrar com essa criatura, teremos que nos habituar ao inabitual, “já que não podemos habitar o inabitável. Se conseguirmos fazê-lo, poderemos contemplar o que nos é habitual como se fosse inabitual: ‘redescobrir’ o inabitual que é o homem” (Ibidem).

Assim, o encontro com a sombra é uma descida de mergulhador, de escafandrista: é preciso de equipamentos, de instrumentos que possibilitem a chegada até esse ambiente tão

43 profundo e opressivo, isto é, onde a pressão exercida é tão grande que é capaz de nos achatar, da mesma forma que faria o molusco explodir, caso fosse à superfície luminosa onde vivemos. No entanto, tal qualidade é trapaceira, já que o mundo que aparece é também o mundo das aparências: não é o mundo que brilha, mas que reluz ao refletir os raios do sol e, por isso, conhecemos os reflexos das coisas e não os verdadeiros objetos, que são, em realidade, escuros, sem luz própria. FLUSSER (2011a) pede para irmos além desses relances caso queiramos ver a verdadeira luz que as aparências escondem: “O mundo do Vampyroteuthis é noite escura, e o Vampyroteuthis emite raios a fim de fazer aparecer os objetos” (p.71).

A noite escura do Vampyroteuthis, então, parece ser algo como aquela de São João da Cruz: é a noite do espírito, da reflexão, do retorno para si mesmo. E uma vez que o mundo vampyrotêuthico são as trevas, entendemos que suas categorias ontológicas são diferentes das nossas:

São elas categorias da “paixão da noite”, quando as nossas são da “clareza do dia”. O mundo vampyrotêuthico é o do sonho, o nosso o da razão desperta. Por certo, tal diferença não deve ser exagerada. O Vampyroteuthis não é romântico puro, nem nós iluministas puros. (...) A nossa consciência é o inconsciente vampyrotêuthico, e vice- versa. (...) Seu Newton é Freud, seu Jung é Einstein (FLUSSER, 2011a, p.74).

Por isso ele se mantém recalcado, porque se emergir, explode: seja na forma física/biológica ou “na forma do romantismo assassino do tipo ‘nazismo’ da psicossociologia” (FLUSSER 2011a, p.127). Encontramos em Flusser, então, mais um possível paralelo entre o Vampyroteuthis e a sombra junguiana, agora levando em conta a sua emergência. JUNG (1988) propõe essa situação em seu ensaio Wotan, publicado pela primeira vez em Neue Schweizer Rundschau, nova série III/II (1936), e depois em “Ensaios sobre História Contemporânea” (1946).

O psicanalista suíço usa nesse texto o exemplo do deus germânico Wotan como representação mítica do humor alemão durante o governo de . Apesar de parecer uma comparação fantasiosa, se for pensar em deuses como superstições, JUNG (1988, p.8) explica que esse paralelo entre “Wotan redivivo e a corrente social, política e psíquica” da Alemanha àquela época “pode valer, ao menos, como semelhança ou como um ‘como se’. Na verdade, os deuses constituem personificações de forças psíquicas”. E esse seria um método que o autor usaria várias outras vezes ao longo de sua vida, dando inspiração ao seu seguidor,

44 o pós-junguiano James Hillman que, com o uso dos mitos, criou a vertente da psicologia arquetípica.

Mas no caso de Wotan, em específico, é que este estaria ligado a um arquétipo da fúria, do andarilho, do vento que sopra e provoca a tempestade, de uma irracionalidade que assombra e avassala mesmo aqueles que prezam pelo racionalismo. É por isso que Jung inicia seu ensaio mencionando alguns versos de Friedrich Nietzsche, nos quais o filósofo comenta sobre uma perturbação, um vento atormentador – como se Wotan já se anunciasse, ainda que o alemão se recusasse e quisesse não só matar Deus, mas também, por outro lado, tentasse trazer à tona a irracionalidade dos impulsos primitivos contidos, por sua vez, pela moralidade cristã tão criticada por ele. Wotan seria justamente isso. É o inconsciente tão bem guardado que, quando revelado, pede para ser refreado por conta de suas consequências:

O que ocorre realmente é que os alemães dispõem agora de uma oportunidade histórica única para aprender a ver no mais íntimo de si de que labirintos obscuros da alma o cristianismo pretendia salvar o homem (JUNG, 1988, p.10).

Para entendê-lo, Jung pede, logo no início de seu ensaio, que olhemos para o contexto do qual ele escreve não a partir de um ponto de vista econômico, político e psicológico. Ele ousa propor: “o velho Wotan com seu caráter abissal e inesgotável é uma explicação bem mais acertada do nacional-socialismo do que todos os outros três fatores reunidos” (JUNG, 1988, p.8). Isto porque, ainda que a reflexão econômica, política e psicológica também seja esclarecedora, “Wotan nos diz ainda mais, sobretudo, no que diz respeito ao fenômeno de ordem geral, diante do qual o não alemão, por mais profunda que seja a reflexão sobre seus fundamentos, vê-se desconcertado e incapacitado de compreender” (Idem). Quer dizer, aquilo que não se pode racionalizar se torna difícil de se atingir, ainda mais por aqueles que não experimentam – no caso, não alemães.

A Alemanha é um país de catástrofes espirituais em que certos fatos naturais convivem apenas na aparência de maneira pacífica com a senhora do mundo e da antiguidade da Ásia, da Trácia à Alemanha em direção à Europa, fazendo com que, exteriormente, os povos se amontoem como folhas secas e, interiormente, gerem pensamentos capazes de estremecer o mundo; é um Dioniso elementar que rompe e desfaz a ordem apolínea. Wotan é o nome desse desencadeador de tempestades (JUNG, 1988, p.10).

Ainda no ensaio Wotan, Jung menciona que este deus germânico está para os romanos sob o nome de Mercúrio, o qual é personagem muito caro às ideias que o psicanalista

45 desenvolve em sua obra Estudos Alquímicos (2011b), na qual ele explica melhor sobre esse encontro com o inconsciente, com a sombra que, no fim, é Wotan, também Mercúrio:

A confrontação com o inconsciente começa na maioria das vezes com o inconsciente pessoal, isto é, com conteúdos adquiridos pessoalmente que constituem a sombra (“moral”) e prossegue através dos símbolos arquetípicos, que representam o inconsciente coletivo. A confrontação tem por meta fazer cessar a dissociação. Para atingir esta meta terapêutica, a própria natureza, às vezes com ajuda e a arte do médico, provoca o choque e conflito dos opostos, sem os quais uma unificação não é possível. Isto não significa apenas uma tomada de consciência da oposição, mas também uma experiência de natureza peculiar, a saber, o reconhecimento de um outro, de um estranho em mim mesmo, isto é, de um ser cuja vontade é diferente, objetivamente presente, entidade da natureza dificilmente compreensível. Os alquimistas a designaram, com espantosa justeza, com o nome de Mercúrio. Este inclui, em seu conceito, o conjunto de manifestações tanto mitológicas como científicas, formuladas a seu respeito: ele é deus, gênio, pessoa, coisa e o eu que se oculta no mais íntimo do ser humano, tanto psiquicamente como somaticamente. Ele é a fonte de todos os opostos, ele é duplex et utriusque capax. Este fator fugitivo representa em cada um de seus traços o inconsciente, cujo confronto leva a uma concepção correta dos símbolos (JUNG, 2011b, p.373).

Ou seja, com esta citação reunimos outra vez o conceito da confrontação com o inconsciente como método terapêutico da psicanálise, reconhecendo nesse processo a presença de uma alteridade em si próprio, a qual se multiplica em arquétipos que são organizados conforme mitos, uma vez que deuses são metáforas ou representações de “forças psíquicas” (JUNG, 1988, p.8). Ao tornar-se consciente da oposição, o indivíduo acaba descobrindo o arquétipo da sombra, que é Mercúrio, mas também é Wotan.

E ao fazer esse processo reverso ou de busca dentro de si mesmo, é como se o paciente estivesse a praticar um trabalho mesmo arqueológico, o que nos levaria novamente a Vilém Flusser e ao seu pensamento voltado às ciências arqueológicas, ao lixo, isto é, tudo aquilo que quer ser ou que foi descartado. Aqui voltamos também em mais específico à obra de Helnwein, já que este faz, em certa medida, um processo escavatório, ao trazer à tona tudo aquilo que se busca deixar “debaixo do tapete”. Todas aquelas perguntas que não queriam lhe responder quando era criança (o nazismo, a guerra), os assuntos que a mídia não cobria (a violência infantil), o lado sombrio de cada um ou até mesmo o fato de trazer algo trivial como a cultura pop dos quadrinhos para o ambiente da alta cultura dos museus e galerias.

Isto porque o artista trabalha com o sentimento da culpa e o mal-estar causado por estes elementos. Como já mencionado no primeiro capítulo, Helnwein costuma comentar em suas entrevistas sobre o silêncio e o remorso experimentados pela população austríaca depois

46 do fim da Segunda Guerra Mundial. A vergonha dos crimes cometidos, fossem estes por eles próprios, parentes ou pessoas próximas, os quais passavam a ser transferidos não apenas à família, mas para todo o país, no caso da Alemanha e da Áustria.

Em Zurique de 1945, Jung tornou a escrever sobre o conflito, tendo publicado um artigo intitulado “Depois da catástrofe” em Neue Schweizer Rundschau e, um ano depois, em “Ensaios sobre História Contemporânea”. Nesse texto, ele analisa a questão do sentimento de culpa coletiva, pondo-o como conceito psicológico.

Do ponto de vista jurídico, a culpa só pode ser circunscrita a quem viola o direito; como fenômeno psíquico, porém, ela se estende para além dos limites espaciais e humanos. Um bosque, uma casa, uma família, e até mesmo uma aldeia em que tenha ocorrido um crime sente internamente a culpa psíquica além de ser acusada externamente (JUNG, 1988, p.18).

Como uma praga, a culpa contamina não apenas o solo em que o delito acontece, como explica Jung. Como suíço, ele poderia não se sentir culpado pelo que aconteceu num campo de concentração a duzentos quilômetros dali, mas se um hindu conversasse com Jung sobre o assunto, ele o teria como europeu e as distâncias contadas entre os continentes tornaria aquela entre a Suíça e Auschwitz irrelevantes. No entanto, nesse processo, a mecânica acaba levando a uma constante transferência de culpabilidades:

O mundo discrimina a Europa porque, em última instância, foi em seu solo que cresceram os campos de concentração. A Europa, por sua vez, segrega a Alemanha, apontando as nuvens de culpa que recobrem esse país e o seu povo, pois foi na Alemanha e pelos alemães que tudo isso aconteceu. Nenhum alemão pode negar, da mesma forma que nenhum europeu ou cristão, que o crime mais terrível de todos os tempos foi cometido em sua casa. A Igreja cristã pode cobrir com cinzas a cabeça e rasgar as vestes pela culpa de seus filhos, mas as sombras dessa culpa recaíram sobre eles e sobre toda a Europa, a mãe dos monstros. Da mesma maneira que a Europa precisa ajustar contas com o mundo, a Alemanha deve fazê-lo em relação à Europa. (...) A culpa coletiva psicológica é uma fatalidade trágica; atinge a todos, justos ou injustos, que, de alguma maneira, se encontravam nas proximidades do crime (JUNG, 1988, p.19).

Apesar de Jung acreditar que uma pessoa razoável seria capaz de distinguir o sentimento de culpa da verdadeira culpa, isto é, caso o indivíduo tenha realmente cometido alguma infração, ele é um tanto pessimista quanto a essa situação. Isso porque muita irracionalidade está envolvida nesse processo e ao dizer que a culpa coletiva se trata de um preconceito ou de uma condenação injusta, Jung não só concorda com essa colocação como também diz que essa é sua essência irracional: “ela jamais se pergunta pelo justo e o injusto, 47 ela é a nuvem sinistra que se levanta no lugar de um crime inexpiado” (JUNG, 1988, p.20). Como fenômeno psíquico, a culpa coletiva não condena aqueles que ela atinge, mas constata um fato.

Para entender isso, Jung propõe não apenas pensar o fato de que o homem vive em sociedade, mas que um crime cometido acaba suscitando sentimentos apaixonados e interessados por parte do público diante do delito. Tais emoções demonstrariam que “praticamente todo mundo, desde que não seja insensível ou apático de forma anormal, é excitado pelo crime. Todos vibram conjuntamente, todos se sentem dentro do crime, tentam compreendê-lo e esclarecê-lo... Algo se acende, o fogo do mal que flameja no crime” (JUNG, 1988, p.21). Citando Platão, o psicanalista suíço lembra que a visão do feio provoca o feio na alma e a indignação diante do criminoso provoca reação violenta e ao mesmo tempo apaixonante, na qual o espectador tenta punir o infrator já dentro da própria alma. E, dessa forma, “o assassinato acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós possibilitamos, em parte, a matança coletiva em nossas mentes e na razão direta de nossa proximidade e percepção” (Idem).

Como explica JUNG (1988, p.21), isso acontece porque nos deixamos seduzir pelo mal – o Vampyroteuthis emergiu sob a forma de romantismo do tipo nazismo, sob a forma de Wotan, Mercúrio, de sombra, irracionalidade. E, contaminados por suas impurezas, nossa indignação diante do crime ou daquilo que nos ofende cresce em forma de violência e em desejo de vingança à mesma medida que estamos dominados pelo sombrio, que é inescapável, porque “somos todos humanos e pertencemos igualmente à comunidade dos homens” – porque a sombra faz parte do que somos. Dessa forma, o crime se desenvolve numa das partes de nossa mente, proporcionando-nos uma satisfação secreta que, caso o indivíduo ainda tenha noções morais, pode ter uma resposta favorável provinda de outros compartimentos da psique. Contudo, outra vez, Jung é pessimista quanto a essa capacidade de julgamento:

Disposições morais fortes, porém, são infelizmente raras. Quando os crimes aumentam, a indignação predomina e o mal se converte em moda. De santo, louco e criminoso todos temos 'estatisticamente' um pouco. Graças a essa condição humana universal existe, em todas as partes, uma sugestibilidade correspondente ou propensão. A nossa época, isto é, os últimos cinquenta anos, preparou o caminho para o crime. Será que, por exemplo, o grande interesse pelos romances policiais não nos parece suspeito? (JUNG, 1988, p.21).

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Além de entendermos essa situação no contexto pós-guerra, podemos ainda estender tal descrição mesmo para os dias atuais, percebendo que essa sensação de culpa coletiva segue como sendo não apenas tema da obra de Helnwein como também produto das reações proporcionadas por ela. Uma vez que suas imagens tratam de tal época ou de algo que ofende o espectador, este se contamina pelo feio que, no entanto, é exposto de maneira esteticamente bela, ao estilo hiperrealista adornado por efeitos de chiaroscuro tal como no barroco, causando na audiência a mesma violência dos quadros no interior das almas que observam – daí alguns terem rasgado os painéis em Colônia, por exemplo. Talvez, sem perceber, os observadores se munem de armas tais como aquelas figuradas nas imagens e, em reação, eles as mutilam do mesmo modo que elas os fazem, ainda que de modo subjetivo.

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2.3 Acionismo Vienense: sombra como catarse

Nos anos 1960, em Viena, artistas como Günter Brus, Otto Mühl, Hermann Nitsch e Rudolf Schwarzkogler iniciaram um movimento rápido, porém forte que foi nomeado Wien Aktionismus ou “Acionismo Vienense”. Suas manifestações artísticas, que eram feitas em forma de happenings (performances improvisadas), tanto promoviam “ações com forte caráter ritualístico e religioso, onde sacrifícios de animais ou sevícias e mutilações ao próprio corpo do artista podiam ocorrer” (BAITELLO JR, 1990, p.88) quanto “happenings eróticos e orgiásticos que buscam a ruptura total com os tabus religiosos em relação ao corpo” (Idem).

Günter Brus (Ardning, 1938) ficou bastante conhecido por conta de sua ação Kunst und Revolution realizada na Universidade de Viena, em 1968. Nessa mesma ocasião, estavam presentes Otto Mühl e Oswald Wiener, que acompanharam o artista subir em uma cadeira, ferir-se com uma lâmina, urinar em um copo e depois beber, para então defecar e espalhar as fezes sobre o próprio corpo. Em seguida, Brus teria deitado no chão e começado a se masturbar enquanto cantava o hino nacional da Áustria. Em consequência, os três artistas presentes foram sentenciados a dois meses de prisão.

No caso de Otto Mühl (Grodnau, 1925 – Moncarapacho, 2013), antes de fazer parte do acionismo vienense, ele tem em sua biografia o fato de ter servido, ainda que forçadamente, à Wehrmacht alemã em 1943. Já promovido a tenente no ano seguinte, ele chegou até mesmo a participar de uma frente de infantaria, no caso, uma que participou da Batalha das Ardenas. Em 1962, com 37 anos, sua primeira Aktion, que recebeu o nome de Die Blutorgel, foi realizada em seu ateliê junto com Adolf Frohner e Hermann Nitsch. No ano seguinte, Mühl realizou a ação Fest des psycho-physischen Naturalismus, na qual ele atirou um armário de cozinha cheio de trigo e marmelada por uma janela, resultando em sua prisão durante catorze dias. Tornou-se principalmente conhecido pela criação da polêmica comuna experimental Friedrichshof, em 1972, a qual perdurou até os anos 1990. Em 1991, ele foi preso acusado pelos crimes de uso de drogas ilícitas e por manter relações sexuais com menores de idades enquanto liderava a comunidade. Depois de cumprir quase sete anos de prisão, Mühl pediu desculpas em público ao ler um discurso na coletiva de imprensa antes da abertura de sua exposição, em 2010, no museu Leopold em Viena. Em 26 maio de 2013 foi noticiada a morte do artista que, três anos antes, já havia anunciado que sofria de mal de Parkinson.

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Hermann Nitsch (Viena, 1938), além das ações, também se envolveu com pintura e música. No início de seus estudos, quando cursava ilustração na Wiener Graphische Lehr-und Versuchanstalt, ele se interessou por imagens religiosas de artistas como Rembrandt, Tintoretto e El Grego, tendo se influenciado, à época, pelas obras de Cézanne, Klimt, Munch e outros. Já a partir de 1957, Nitsch passou a prestar mais atenção às representações de cerimônias dionisíacas e isso iria se refletir nos seus trabalhos futuros, uma vez que nesse mesmo ano ele criou o chamado Orgien Mysterien Theatre. Este foi um festival de seis dias baseado nas ideias de Nitsch que seguiam a lógica da catarse, da psicologia freudiana e do teatro convencional, junto ao aspecto da orgia dionisíaca.

Na primeira ação realizada por Nitsch e seus amigos para o Orgien Mysterien Theatre, eles usaram carcaças de animais, entranhas e sangue, como se estivessem realizando um ritual. Panos, bandagens e outros tecidos também eram usados como materiais durante a encenação. Em 1974, na ação intitulada 48th Action, no teatro Modernes, houve o desmembramento de um cordeiro abatido, cujas entranhas e sangue foram jorrados contra um homem nu, enquanto o animal estava amarrado acima de sua cabeça. Segundo a historiadora de arte RoseLee Goldberg, essa performance de Nitsch, em termos ritualísticos, tenta mostrar “os instintos agressivos da humanidade que têm sido reprimidos e emudecidos pela mídia. Até mesmo o ritual de morte dos animais, tão natural aos homens primitivos, foram removidos da experiência do cotidiano moderno”89 (apud PELMUTTER, 1999). Para ela, “esses atos ritualizados eram um meio de se livrar de uma energia reprimida bem como um ato de purificação e redenção através do sofrimento”90 (Idem).

Isso porque Nitsch, no manifesto Theatre and Catharsis, mostra que sua obra possui exatamente o mesmo significado léxico do termo “catarse”, que no grego Katharsis significa limpar e purificar. O artista, desse modo, inclui a lógica dionisíaca do caos e o teatro para expandir essa noção, buscando “libertar as emoções reprimidas e os desejos através do efeito da catarse (...) [e] situa sua forma de catarse em algum lugar na fronteira da psicologia, do existencialismo e da religião91 (WILSON, 1997, p.46).

Portanto, enquanto a lógica da catarse aristotélica, por exemplo, estaria ligada a uma “purgação”, ou como indica MP Nichols & M Zax em Catharsis in Psychotherapy (1977), “um processo que releva a tensão e a ansiedade ao expressar emoções – as quais têm estado escondidas, reprimidas ou inconscientes”92 (apud WILSON, 1997, p.44), Nitsch não procura esse apaziguamento através de sua arte. Para WILSON (1997, p.51), o artista está mais 51 preocupado em “exercitar a vontade própria” do que causar uma “sensação de calma e satisfação” nos espectadores: “Intensidade parece ser a palavra-chave nesse diálogo, casada à ideia da linguagem de intensidade contida na estrutura ou forma desenhada de acordo com as complexas dinâmicas de intensidade”93 (Idem).

Diferentemente de Nitsch, Rudolf Schwarzkogler (Viena, 1940 – 1969) usou a estética da dor sem abusar do sangue, que foi principal acessório do anterior. Este, no entanto, adotou como parte de suas ações a automutilação e tornou-se conhecido especialmente por conta de suas fotografias, nas quais usava bandagens, enfaixando-se totalmente, seja o corpo ou a cabeça. Sua curta carreira, que consiste em apenas seis ações privadas e algumas coleções de notas e rascunhos, encerrou-se no fim dos anos 1960 num episódio que gerou rumores sobre a possibilidade de ele ter se matado ao cortar o próprio pênis em diversos pedaços durante uma Aktion, como foi divulgado em um artigo escrito pelo artista Chris Burden, nos anos 1970, na Newsweek Magazine. No entanto, este é um mito, já que a versão mais aceitável, segundo BARNES (2002), é de que o artista tenha se jogado da janela de seu apartamento por conta de um longo período em depressão profunda. O caso é que Schwarzkogler havia realmente feito uma ação na qual simulou a mutilação de seu próprio genital e um fotógrafo registrara o ato, o que não só fundamenta o mito como também nos faz perceber que seu trabalho tem uma carga sexual, assim como os demais acionistas, mas particularmente focando no tema da castração, da ferida e da cura.

De acordo a autora do livro The Sacrificial Aesthetic: Blood Rituals from Art to Murder (1999), Dawn Perlmutter, o público, de certa forma, tem um anseio por artistas que sejam capazes de “tanto aniquilar a si mesmos quanto exercitar a crueldade ao traçar o gradual casamento (ou união) entre a vanguardista arte performática e os subsequentes movimentos subculturais, como os clubes fetichistas e as intérpretes de vampiros”94 (apud BARNES, 2002). E para BARNES (2002), as fotografias de Schwarzekogler, nas quais corpos aparecem enfaixados, amordaçados e aparentemente sangrando, há uma relação com essa subcultura, ainda que exista um propósito diferente.

O curioso é notar que na década seguinte, nos anos 1970, Gottfried Helnwein iniciaria suas ações pelas ruas da mesma cidade onde Günter Brus, Otto Mühl, Hermann Nitsch e Rudolf Schwarzkogler estavam fazendo seus trabalhos e algumas coincidências aconteceriam sem, no entanto, conforme Helnwein confirma na entrevista em anexo, o conhecimento do artista estudado nesta dissertação. Sua primeira ação foi realizada em 1966, para um pequeno 52 público, quando Helnwein cortou o próprio rosto e mãos usando navalhas, instrumentos de gravura em madeira e água forte. Foi a primeira vez que usou bandagens. Na entrevista, ele declarou: “Quando eu fazia minhas primeiras performances e me mutilava, eu nem mesmo sabia, no começo, que aquilo era arte. Eu via como um ritualismo ou um experimento”.

Sua segunda ação, Die Akademie brennt (vide capítulo 6.1 Cronologia), foi feita em 1970, no mesmo ano quando fotografou seus primeiros autorretratos, os quais repetiram um pouco da estética da primeira Aktion: bandagens e instrumentos cirúrgicos. No ano seguinte, ele foi às ruas, levando consigo uma garota com o rosto enfaixado depois de fotografá-la em seu estúdio. Foi só nessa época que Helnwein conheceu o Acionismo Vienense:

Fiquei chocado, porque fiquei tipo, meu Deus, isso é exatamente o que eu fiz, e foi tão estranho. Mas o que eu entendo é que em certos momentos, em certos lugares, tudo está pronto para certas constatações na arte. Há épocas em que a sociedade realmente põe o artista na direção certa (Em anexo).

Considerando, então, que Helnwein não conhecesse mesmo o trabalho dos acionistas, pode-se entender que, realmente, havia um “espírito da época” na Viena dos anos de 1960 e 70 e que notavelmente ocorreu uma certa sincronia entre os artistas. No entanto, o que de fato diferencia Helnwein dos acionistas é que, conforme ele insere a criança em sua bagagem imagética, o artista não a utiliza apenas como modelo ou material das ações, dos quadros e fotografias. Como define GORSEN (1988), Helnwein usa o corpo da criança na “função simbólica de representar o indefeso e sacrificado humano”95. Para o historiador da arte, “o conceito sexualizado da criança no Acionismo Vienense (influenciado por Freud) é combatido pelo moralista e utópico Helnwein com a criança como uma figura assexuada e salvadora”96 (Idem).

No entanto, num primeiro momento suas aquarelas mostravam um lado menos intocável da criança, em específico a ambivalente Sonntagskind (1972), na qual uma garota aparece mostrando a língua enquanto segura um chocolate, em frente a uma porta cheia de anúncios publicitários, pela qual também passa um pato que carrega uma mochila e um picolé. A cena lúdica, contudo, destoa quando o observador descobre no braço da garota uma faixa usada para demarcar cegos, apesar de a personagem não demonstrar ser uma deficiente visual, além do fato de suas meias brancas estarem manchadas de sangue, o que implica a dúvida se é sua menarca, se é uma menstruação inesperada ou se, ainda, ela teria sido abusada e o doce que carrega fora um agrado que teria comprado seu silêncio (JOHNSON, 2004). 53

Em outro caso, como na aquarela The Intrusion (1971), vê-se ao fundo um adulto que põe a mão dentro da boca de um garoto, enquanto, no primeiro plano uma menina aparece amarrada à cama, de mão enfaixada, o que indica ferimento anterior. Esta lacrimeja ao ter, entre os lábios úmidos de saliva, o que parece ser o pé de uma mesa, repetindo o sentido fálico da cena em segundo plano. Se no início de sua carreira Helnwein procurava evidenciar os crimes cometidos contra crianças, principalmente por parentes próximos (JERMANN, 2008), é natural que essa obra tenha esse conteúdo, já que mostra uma cena teoricamente doméstica (pé da mesa, colchão abaixo da criança).

À esquerda, The Intrusion (1971). 54 cm x 62 cm. Aquarela, lápis de cor e lápis em papel cartão

Se em 1979 Helnwein decidiu ser sutil em Life not worth living, que criticava a reação dos austríacos diante do caso do psiquiatra Dr. Heinrich Gross, nos seus primeiros anos como artista ele ainda fazia estudos, com aquarela, de rostos de crianças mutiladas, tema que mais tarde reapareceria na série de fotografias Angels Sleeping (1999), na qual registrou fetos deformados. Em JERMANN (2008), Helnwein conta que desde muito cedo ele se envolveu com o tema da violência, especialmente com a violência contra crianças e que enquanto

54 pesquisava sobre o assunto, ele entrou em contato com várias fotografias forenses de crianças que eram agredidas e torturadas até a morte, na maioria das vezes por parentes próximos.

O número de crianças que morrem todos os anos dessa forma é muito alto. Você não esquece essas imagens tão facilmente. Nos anos 60 e 70, a mídia não falava desse tema geralmente. Naquela época, minhas primeiras aquarelas de crianças enfaixadas e machucadas causaram furor na Áustria, as pessoas colaram adesivos nas imagens declarando que eram “arte degenerada”. Exposições eram canceladas e uma vez meu trabalho foi confiscado de uma galeria pela polícia sob ordens do prefeito97 (JERMANN, 2008).

Nessa mesma época, no Brasil, Vilém Flusser escrevia em 1972 o artigo “A Consumidora Consumida”, publicado na revista Comentário. Esse texto trata, por um lado, sobre a sociedade do consumo e como esta produz mais do que é capaz de consumir e, uma vez que seus produtos são consumidos ou são restados, formam o que o autor chama de lixo, aquilo que já não faz mais parte da cultura, por já ter sido usado e descartado.

Ao se voltar para essa situação, Flusser nomeia seus estudos como “ciências arqueológicas”, uma vez que se ocupa do lixo que, no caso, não são necessariamente aqueles produtos consumíveis que sobraram na linha de produção ou os que foram consumidos e descartados, mas um “passado recusado, jogado fora” (BAITELLO JR, 2010, p.26). E tomando essa atitude é possível, então, entender como estão sendo condicionadas “as perspectivas da sociedade futura” (Idem).

Podemos deduzir que a sociedade de consumo, entulhando e entupindo o mundo de lixo, não permitiu o vazio necessário para o surgimento de outras possibilidades de vida social e cultural. E que sem a remoção do lixo “arqueológico”, adoecemos.

São assim as ciências arqueológicas (ecologia, psicanálise, etimologia, mitologia etc.) as causadoras de “grandes modificações revolucionárias que estão ocorrendo atualmente” (BAITELLO JR, 2010, p.26).

A lógica do lixo, apesar de suscitar uma primeira impressão negativa, no entanto, é a de transformadora da matéria. Conforme explica BAITELLO JR (2010, p.27), desde muito cedo o homem aprendeu a dar valor aos restos: provavelmente já no Neolítico o ser humano viu o potencial fertilizador da matéria orgânica nos próprios detritos e no dos animais. “Assim, a transmutação do lixo em fertilizante e em nova vida sempre fez parte da cultura humana como uma imagem positiva. Também em Flusser, com a ideia das ciências arqueológicas, aquelas que vão escavar o lixo esquecido e reaproveitá-lo como matéria prima” (Idem). 55

O autor utiliza a metáfora alquímica da mesma forma que é usada aqui e também em Jung conforme seu trabalho psicanalítico. Talvez não por acaso, mas porque estamos ainda falando sobre o nigredo, da putrefactio (vide capítulo 2.1), já que os acionistas vienenses lidam com automutilação, vísceras de animais, sexualidade e alguns até mesmo cometeram crimes, como foi o caso de Otto Mühl. Esses artistas lidaram com o lixo, que é a sombra, como se vê em Flusser:

Uma parte da geração mais nova revolve-se no lixo, tomada de uma nostalgie de la boue, reminiscente da saudade da natureza do romantismo. (Tomam eles, por engano ontológico, o lixo por natureza?). Contra tal inundação, nada pode o sistema de canalização e esgotos instalados por nossos antepassados vitorianos. Porque não se trata de inundação catastrófica devida à falta do sistema (como foi o nazismo); trata- se, pelo contrário, de infiltração constante e endêmica, devida à impotência da capacidade consumidora humana em acompanhar a sua capacidade produtora (FLUSSER, 1972, p.36).

Analisando esta citação, é provável que Flusser tenha dito, em metáforas, que o nazismo seja quando as emoções entram em desalinho, quando se descontrolam. O mesmo que apontou em Vampyroteuthis infernalis, aqui substituindo a comparação do molusco e da pressão exercida sobre o animal pelos esgotos vitorianos, lembrando-nos da rígida etiqueta vigente à época, como sendo a moral capaz de recalcar, em parte, tais sentimentos que explodiriam. E isto nos faz pensar que, afinal, ele está tratando dos dejetos que transitam por tais encanamentos (lixo) como emoções descontroladas, isto é, o inconsciente, a sombra.

Em vez de contornar esses assuntos e escondê-los, os acionistas vienenses os expunham de maneira literalmente explosiva, fazendo o trabalho arqueológico, resgatando temas que estavam sendo apenas jogados fora, entulhados e ignorados numa pilha de lixo, sem serem reciclados.

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2.4 Pop Art: arte consumidora, imagem consumida

Criado no início dos anos 1950 no Reino Unido e no fim da mesma década nos Estados Unidos, o movimento artístico Pop Art teve como alguns de seus principais artistas Andy Warhol, Claes Oldenburg, James Rosenquist e Roy Lichtenstein. Também conhecida como Neo Dada ou New Realism, a Pop Art recebeu esse nome específico de Lawrence Alloway em 1954, que definiu o gênero como inspirado por anúncios de revistas, pôsteres expostos na frente dos cinemas, folhetos e toda uma literatura “que comunicava forçosamente uma mesma mensagem”98 (REICHARDT, 1997, p.14).

Os artistas pop estavam interessados em retratar “o mundo que as pessoas conheciam, no qual elas trabalhavam e para o qual olhavam todos os dias”99 (MADOFF, 1997, p.XIII). E, assim, a pop art fazia parte do cotidiano daquela época: estava presente no café da manhã, na ida para o trabalho, nas horas de lazer.

Aqui estava um realismo que pôs a si próprio intencionalmente em face a uma sociedade que gostava de seu próprio tremendo mau gosto; uma sociedade que inelutavelmente se entregou ao romance em quadrinhos e aos escândalos em tabloide, à essa espécie particular de glamour – em parte lúrido, sexual e trágico – que era personificado por Elvis, Marilyn e Jackie100 (MADOFF, 1997, p.XIV).

Outra característica marcante da pop art, assim como visto no movimento anterior, o Expressionismo Abstrato, foi a tendência por compor telas de grandes dimensões e usar técnicas de repetição de imagens e sobreposição, como foi no caso de Lichtenstein, Oldenburg e Warhol. No entanto, o significado empregado por esses artistas era diferente daquele utilizado pelos antecessores Jackson Pollock e Mark Rothko. Segundo MADOFF (1997, p.XIV) os artistas pop trocavam “a espiritualidade do cansaço do mundo pelo sorriso (ou ironia) mundano” e tornavam “a grandeza de seus quadros à expressão de uma sociedade desfrutando sua imperial arrogância em escala transcontinental”101.

Os artistas pop, por vezes também chamados de “Common Image Artists” (artistas de imagens triviais), como no artigo Anti-sensibility painting (1997) de Ivan C. Karp, ao verem “beleza” em tudo, faziam com que os demais também fossem capazes de enxergar aquilo que a eles era percebido. O método consistia em equilibrar e amplificar as convenções da arte comercial, revelando o temperamento psicológico e estilístico de uma era antes mesmo de ela se tornar visível (KARP, 1997, p.89). E tudo isso sem optar por um discurso exagerado, como KARP (1997, p.88) explica, já que quando esses elementos vêm à tona, não conseguimos 57 enxergar sua poesia: “É o fato da figura por si mesma ser uma poesia. (...) O design é simples, quase simplório. Mas a simplicidade é viciante. Ela irrita os nervos”102.

Quer dizer, as imagens reveladas, por si só, geram uma sensação de nostalgia, como foi o caso de Lichtenstein ao pintar objetos populares dos anos 1940 e 50 antes mesmo de eles serem tidos como populares. Foi só depois de ganharem espaço em sua obra que eles ganharam importância na mentalidade da época. Portanto, para KARP (1997), o artista pop não é crítico e nem sensível, mas um profundo observador de encantamento bem humorado, sem ser sentimental. A Pintura de Imagens Triviais “não critica. Apenas registra”103 (p.89).

A atitude do pintor de imagens triviais é caprichosa e ligeiramente irônica. O ambiente é fascinante e por isso ele o observa. Ele precisa manter o senso do monumentalmente bizarro sem surrealismo ou então ele irá acabar com sua arte, assim como o Expressionismo Abstrato foi derrubado pelo lirismo104 (KARP, 1997, p.89).

Os artistas pop em vez de irem contra a proliferação do kitsch daquilo que lhe servia de inspiração ou de material artístico (folhetos, quadrinhos, cartazes e todo aquele estilo de vida americano), talvez acabassem confirmando o triunfo dessa vivência material, como explica SOLOMON (1997, p.92), que também se põe a questionar a ambiguidade do movimento:

Não podemos fazer nada senão ficar ansiosos ou cínicos sobre as atividades desses artistas (...) Nós suspeitamos que eles deliberem uma provocação à maneira dos dadaístas, a qual tem intenção política, então eles seriam pelo menos niilistas ou subversivos na melhor das hipóteses, ou na pior, nós tememos que eles estariam nos “trapaceando”, pedindo-nos para sermos sérios quando sabemos que é algo frívolo e sem valor105 (SOLOMON, 1997, p.92).

Talvez Andy Warhol tenha sido a mais emblemática e ambígua figura dentre os artistas pop, já que em muitos momentos pôs como filosofia de sua obra o elogio à superficialidade. Enquanto suas pinturas claramente fazem a conexão entre a arte e a cultura do consumo, Warhol também teve papel importante ao tornar a arte um negócio, começando por chamar seu estúdio de The Factory ou A Fábrica, o que já implica em um sentido de sistema industrial de produção. Dessa forma, portanto, Christin J. Mamiya aponta que a Pop Art não apenas “retratou e refletiu [a cultura consumista], mas também apropriou os mecanismos e estratégias da sociedade corporativista, seguindo o marketing eficaz desse movimento e sua absorção na matriz das instituições consumidoras”106 (apud GEMÜNDEN, 1999, p.45).

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Por mais esse motivo, a pop art ganhou uma ambiguidade extra e, no caso de Warhol, questiona-se a “distância crítica” na qual o artista se punha ao lidar com a relação arte e negócios, gerando interpretações conflitantes que vão desde uma opinião modernista, conforme GEMÜNDEN (1999, p.45) aponta, em que se entende que a arte de Warhol, assim como tudo que atende pelo gênero pós-moderno, “abandona a negatividade crítica porque se deleita nos excessos e contradições do capitalismo tardio”107. Já do ponto de vista pós- modernista, alguém poderia entender que a atitude antielitista de Warhol “põe em primeiro plano a inclusão em vez da exclusão enquanto salienta a fetichização da cultura consumista”108. Por outro lado, o autor opina que as pinturas e filmes de Warhol “consistem precisamente de uma exploração divertida de suas próprias ambiguidades, assim negando ao observador ou espectador a segurança de uma posição fixa”109. Para GEMÜNDEN (1999, p.46), esse é o efeito da fascinação de Warhol pela superfície, “uma fascinação que está no cerne de suas pinturas e filmes, seu estilo de vida, e sua própria ‘filosofia’. Como Stephen Koch diz: ‘Famoso por ser famoso, [Warhol] é pura imagem”110.

E essa fama reverberou pela Europa, como evidencia não só GEMÜNDEN (1999), mas também GELDZAHLER (1997) ao apontar que, apesar de os artistas pop americanos estarem trabalhando com regionalismos, por conta da mídia de massa, esses conteúdos chegaram ao público europeu. O autor explica que os americanos prepararam dois tipos de imagem dos Estados Unidos para serem apresentados aos europeus, desde 1945: “Kline, Pollock e de Kooning por um lado, e os artistas pop por outro, estão se tornando compreensíveis no exterior”111 (GELDZAHLER, 1997, p.66).

Foi dessa forma que Gottfried Helnwein apreendeu os Estados Unidos e passou a consumir a cultura pop daquele país e tornar-se admirador dos quadrinhos de Carl Banks, criador do Pato Donald. Não só ele como vários outros austríacos, alemães e toda uma geração de europeus que estava conhecendo aqueles produtos culturais. As influências partem desde um nível comportamental, como analisa Dick Hebdige, em Subculture: The Meaning of Style (1979) quando analisa a classe trabalhadora britânica ao entrar em contato com a cultura pop americana, até uma projeção de desejos de um novo mundo, revivendo o mito da terra prometida no século XX.

GEMÜNDEN (1999) lembra que desde Goethe e Kafka já havia um apreço pelos Estados Unidos como o novo mundo, diferente do velho. E vários autores se debruçaram, desde o século XIX, a imaginar o país sem nem ao menos ter pisado no continente americano, 59 mas mesmo quando houve a oportunidade de estar in loco, em estadias prolongadas ou em viagens mais curtas, essa idealização não deixava de acontecer: “os Estados Unidos frequentemente funcionam como um catalisador que põe em movimento a exploração não para o país estrangeiro, mas para os próprios visitantes”112 (GEMÜNDEN, 1999, p.19). Isto é, GEMÜNDEN (1999) acredita que quando um europeu se dedica a dar sua versão sobre os Estados Unidos, principalmente no caso das obras que ele analisa em seu livro, é capaz de o autor estar falando de um país imaginário, “um playground para a imaginação e um lugar onde o assunto vem a ser entendido através do constante jogo e da identificação com as reflexões de si mesmo como um outro”113 (Idem).

Assim, embora os artistas pop não tivessem uma intenção filosófica, que buscava “falar com nossos sentimentos em vez de nossas mentes”114 (SOLOMON, 1997, p.91), suas imagens inevitavelmente se transformariam em metáforas e influenciariam não apenas gerações, como artistas, fossem estes conterrâneos ou de outros continentes. Dore Ashton em A Simposium on Pop Art (1997) declara que, apesar de o artista pop não querer ser elaborado e oblíquo, ele acaba caindo numa armadilha.

O desejo impaciente de reduzir a realidade a objetos simples e sólidos que resistem a tudo – interpretação, incorporação, justaposição, transformação – aparece de novo e de novo na arte moderna. Mas é sempre ilusão. O artista que acredita que pode manter o “status original” de um objeto ilude a si mesmo. O caráter da imaginação humana é expansivo e alegórico. Você não pode “pensar” um objeto por mais de um instante sem ter uma mudança na mente. Os objetos têm sempre sido não mais que estímulos para a imaginação do boêmio. Nem um casaco, nem um secador de garrafas, nem uma garrafa de Coca Cola pode resistir à investida da imaginação. A metáfora é tão natural à imaginação quanto a saliva é à língua115 (ASHTON, 1997, p. 70).

GEMÜNDEN (1999) analisa a influência de Warhol na obra do poeta alemão Rolf Dieter Brinkmann, o qual claramente declarava sua admiração pelo americano, como no poema Andy Harlot Andy. A obra foi publicada no livro Godzilla (1968) e impressa sobre a foto do travesti Mario Montez vestido como a sex symbol Jean Harlow que, durante o filme Harlot (1964), de Warhol, come uma banana. O filme brinca com a ambiguidade do alimento e sua forma fálica, combinando o nome da personagem como sendo um anagrama: Harlow ou Warhol? A personagem e a obra forjam uma pretensa realidade num filme feito de forma amadora, na Factory. As cenas captadas estão fora de foco, demonstram tremulação na câmera e má captação de som. No fim das contas, a ideia da pop art, para Warhol, era que “qualquer um poderia fazer qualquer coisa”116 (p.55).

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Por esses e outros motivos o movimento recebeu críticas, à sua época, assim como as vanguardas modernistas, no sentido de se aquilo era realmente arte. Críticos como Hilton Kramer e John Canaday viam na pop art um declínio.

Esperando urgência moral, eles confrontaram uma arte que livremente negociava uma troca de almas por aquilo que parecia ser um gênero de antropologia social. Isto, nos olhos deles, era um pouco mais que assuntos triviais, hinos a excessos de mentes vazias. Eles seguiram o pronunciamento de Clement Greenberg, o mestre representante do expressionismo abstrato, julgando que nada tecnicamente interessante aconteceria nesse novo trabalho: os artistas pop recuaram na inovação formal117 (MADOFF, 1997, p. XV).

Mas, na realidade, os artistas pop estavam continuando uma inovação formal começada pelos dadaístas no início do século ao trazer a mídia para os museus. Enquanto aqueles recortavam jornais para fazer suas colagens, estes poderiam repetir o método, mas sem a mesma poética, trabalhando nesse momento com a questão do consumo, assim retomando a ideia abordada no capítulo anterior, isto é, o tópico do lixo discutido em A Consumidora Consumida (1972), de Vilém Flusser.

Nesse artigo, Flusser explica o sentido de produzir como sendo “arrancar pedaços à natureza, e dar-lhes valor e forma” (p. 36), enquanto consumir significa “gastar valores e formas e devolver os pedaços desvalorizados e desinformados à natureza” (Idem). Desse modo, cultura seria apropriar-se da natureza e dar sentido à ela e depois do desfrute, o descarte retornaria “vazio” ao local de início, formando o ciclo que adubaria novas reapropriações. A lógica do lixo transmutado.

Os artistas pop lidam com a natureza informada, com os objetos de consumo cada vez mais produzidos a essa época pós-Revolução Industrial (já período da chamada Revolução digital, fim dos anos 1960), a partir da qual não há mais escassez de bens, mas pelo contrário: produz-se tanto que a sociedade se torna “impotente para o consumo” (FLUSSER, 1972, p.35). No entanto, isso não significa que as pessoas estejam saciadas, mas existe ainda fome, num mesmo sentido de “vazio fisiológico, e tal qual a gula, vazio existencial” (BAITELLO JR, 2010, p.24).

Enquanto Harry Pross em Zwänge (1981) diagnostica na mídia a capacidade de gerar dependência (Medien als Droge, mídia como droga), Flusser trata do tema do “consumo do consumidor” a partir da metáfora da mulher, então simbolizada pela figura do côncavo, do receptáculo, enquanto o homem é representado pelo convexo. Em A Consumida Consumida, 61 o autor mostra os diferentes papéis exercidos pela mulher na sociedade e como ela está exposta à pressão exercida pela convexidade masculina.

A convexidade não pode tolerar que a concavidade exista: deve enchê-la. Por isso mesmo a concavidade é o lugar do engajamento e a meta da convexidade, e é na concavidade que a convexidade se realiza. “Encher o vazio” é, portanto, o lema que inspira toda a nossa cultura, e este lema pode ser lido tanto negativamente como “o horror do vácuo", quanto positivamente como "a conquista do espaço”. (...) Trocando por em miúdos tal lema, pode-se dizer que a masculinidade produz para o consumo da feminilidade. E esta será talvez uma resposta ingênua à pergunta: “Qual é o papel da mulher na sociedade do consumo?” “Consumir o produzido pelo homem” (FLUSSER, 1972, p.42).

Adiante, Flusser explica que a mulher não é apenas “do ponto de vista masculino, lata de lixo, embora por vezes glorificada” (FLUSSER, 1972, p.42). Ainda que se imagine a mulher como mero receptáculo, ela, no entanto, é uma trickster, que é consumida e também consome, devorando o homem, que a coisifica:

Porque a mulher, por ser lata de lixo, não consome apenas os produtos do homem, mas com isto, o próprio homem pouco a pouco, e mais ainda, o homem inteiro de corpo e alma. Ela é o precipício no qual o homem se lança no seu engajamento cego contra o vazio. De maneira que a mulher é consumidora não apenas dos produtos do homem, mas do próprio homem, e o homem vive para ser consumido por ela (FLUSSER, 1972, p.42).

A necessidade do convexo em preencher o côncavo, portanto, é uma falácia, porque apesar de a forma côncava ser oca, ela não é vazia. O homem é parte da mulher e ela é responsável por expeli-lo da mesma forma que o retoma, "no ato amoroso, para abrigá-lo, e portanto reencontrar a si mesmo. O homem é a parte alienada da mulher (e filho), e salva-se salvando a mulher (é esposo)" (FLUSSER, 1972, p.42). Mas, ainda assim, a humanidade segue uma lógica convexa, portanto masculina, e tenta preencher o que não é verdadeiramente vazio com lixo, porque este é "o método mais eficiente, (mais ‘racional’, como se diz atualmente). E o resultado, obviamente, é angustiante, pois a angústia é o clima que surge quando todos os buracos foram tapados" (Idem).

A mulher, portanto, é a grande consumidora que, angustiada, está sempre em situação de fome, ou mais precisamente gula: ela devora para criar vazios devoradores (BAITELLO JR, 2010, p.29). Como devoradora de homens, ela também é devoradora de cultura que, no entanto, é “realização de um projeto masculino” (FLUSSER, 1972, p.46). A pop art retrata esse projeto, de forma crua e sem cair no lirismo do gênero anterior, achando alguma ou outra

62 brecha para lidar com essa lógica do consumo e se enveredando numa ambiguidade difícil de destrinchar. O movimento seguinte, hiperrealismo, segue seus primeiros passos com características próximas à estética da pop art, para então tomar novos caminhos conforme obras de artista tais como Gottfried Helnwein.

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2.5 Hiperrealismo: foto sobre tela

No fim dos anos 1960 e 1970, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, o fotorrealismo atuou como uma evolução da Pop Art e como uma contravenção ao Expressionismo Abstrato e aos demais estilos de arte minimalista – assim como a Pop Art já estava sendo. Seguindo a tendência figurativa, o fotorrealismo, que na Europa118 ganhou o título de hiperrealismo (FABRIS, 2006, p.46), tinha como característica uma pintura totalmente baseada num suporte fotográfico. Isto é, segundo Louis K. Meisel (1981, p.13), que foi quem criou o termo “fotorrealismo”119 em 1968 e começou a trabalhar com o movimento nos Estados Unidos um ano antes, não existe uma pintura fotorrealista sem uma ou mais fotografias que tenham servido de base para a obra. Em seu livro Photo-Realism, lançado em 1980 e reimpresso em 1981, ele lista cinco características principais que qualificam um artista como contribuidor do movimento fotorrealista:

1. O Fotorrealista usa a câmera e a fotografia para adquirir informação. 2. O Fotorrealista usa meios mecânicos e semimecânicos para transferir informação à tela. 3. O Fotorrealista deve ter habilidade técnica para fazer a obra finalizada parecer uma fotografia. 4. O artista deve ter uma obra exposta como Fotorrealista no ano de 1972 para ser considerado um dos principais Fotorrealistas. 5. O artista deve se devotar pelo menos cinco anos de seus estudos e exposições à carreira Fotorrealista.

E assim como visto na Pop Art e no cinema de vanguarda, tal qual compara FABRIS (2006, p.44), no fotorrealismo há “uma atitude de imediatismo visual e de distanciamento emocional; em ambos, a literalidade da imagem torna o objeto denso e opaco, longe de todo significado narrativo e de toda implicação psicológica”. Por isso, há uma grande crítica feita às pinturas fotorrealistas, com relação à artificialidade de suas imagens.

Por acreditar que as obras dos fotorrealistas são triplamente artificiais, [William C.] Seitz propõe a utilização do termo “artifactualismo”, mais adequado, a seu ver, que realismo para dar conta da nova situação. Ao contrário de Courbet, Monet, Cézanne, Matisse, Hopper ou até mesmo Stuart Davis, os fotorrealistas não realizam uma transformação pessoal de objetos e fenômenos, pois lançam mão de imagens mecânicas de natureza bidimensional, como fotografias, diapositivos, projeções e materiais impressos. Se a fotografia foi usada desde Delacroix120 como um estímulo e uma fonte auxiliar pelos pintores, nunca o foi de maneira tão total e desembaraçada, 64

provocando uma “abreviação radical do processo criativo”, bem como um “novo olhar sintético” (FABRIS, 2006, p.44).

Isso porque os pintores fotorrealistas, como irei chamar aqueles que pertencem à primeira década do movimento, ou seja, artistas como Richard Estes, Chuck Close, Don Eddy, Ralph Goings, Richard McLean, Tom Blackwell e John Salt, tinham a preferência pelo registro de cenários urbanos, objetos ou de recortes de corpos humanos, assim como se estes também fossem coisas. Linda Chase, em Existential vs. Humanist Realism (1975), explica que enquanto nos anos 1950 o existencialismo de Albert Camus pedia por uma explicação a tudo, isto é, aquilo que o pensador chamava de “o absurdo”, “a confrontação entre a necessidade humana e ‘o despropositado silêncio do mundo’”121 (CHASE, 1975a, p.90), nos anos 1970, o fotorrealismo reagiu a isso retratando não o homem, mas o mundo. Eram pintados carros, caminhões, motos, carrinhos de cachorro-quente e vitrines, isto é, temas já abordados anteriormente na Pop Art e que eram cenários dos quais muitas vezes os pintores chegavam até mesmo a retirar a sujeira ou as pessoas originalmente fotografadas, como era o caso de Estes. KULTERMANN (1972) explica que os assuntos grandiosos dos pintores antigos já não eram mais importantes aos contemporâneos, como se vê no Fotorrealismo. Não há importância intrínseca no objeto retratado, ao menos não até que o fotorrealista dê algum a ele. “Pelo contrário, o artista procura todos os meios possíveis de evitar os trechos de realidade mais óbvios e sancionados e dar ao banal os fragmentos de significado ausentes de metáfora através da seleção artística e apresentação formal”122 (p.14). Kultermann indica que essa tendência também ocorre no Novo Realismo e na fotografia dos anos 1970. Já na Pop Art, no entanto, apesar de os temas serem parecidos, esses objetos eram retratados “como se fossem um reflexo na mente dos moradores urbanos, importantes perante o mundo da publicidade e dos meios de comunicação”123 (Idem), enquanto que, no Fotorrealismo, os artistas redescobrem esses mesmos itens através de uma aproximação “individual” e “direta”: “Esses artistas, também, fazem uso de clichês, fotografias e imagens pré-fabricadas como tema, mas os conceitos básicos mudaram”124 (Ibidem).

O realista dos anos 1970, no entanto, não pinta ideais românticos, mas procura apresentar a realidade direta e enfaticamente, enquanto mantém tanto a frieza quanto a objetividade. O alcance de sua visão da realidade é tão exato quanto envolvente. Ele começa com o detalhe e procura concebê-lo por inteiro; ele começa com qualquer objeto de sua escolha. Até mesmo um homem é apenas parte de uma realidade experimentada objetivamente e sem viés. Através da imagem de um homem, o artista constrói o ambiente do homem, sua casa, seu supermercado, sua rua, seu carro, e seu avião; com sua mesma percepção desprendida pelos eventos reais, ele apresenta um 65

choque com a polícia, como é mostrado, por exemplo, em “Riot” de Duane Hanson e “War Protest March” de Audrey Flack125 (KULTERMANN, 1972, p.22).

Richard Estes comenta sobre sua relação com a fotografia mostrando que esta não era apenas uma ferramenta de trabalho, mas entendendo que as fotos mudaram a forma como as pessoas percebem o real, ou talvez mais especificamente como os meios de comunicação já estavam fazendo isso: “A mídia tem que afetar a forma que você vê as coisas. Mesmo que você não veja TV, você é afetado por ela”126 (CHASE, 1975b, p.9). Já o fotorrealista Tom Blackwell diz que “as imagens fotográficas, os filmes, a TV e os jornais são tão importantes quanto os fenômenos reais. Eles afetam nossa percepção verdadeira dos fenômenos”127 (Idem).

MEISEL (1981, p.21) vai mais adiante e explica que o uso da fotografia, feito pelos fotorrealistas, portanto, oferece uma qualidade ainda maior, não apenas pelo fato de congelar o tempo e assim oferecer informações precisas de luz, sombra, tonalidade e composição, como também a visão da câmera, da lente, é uma visão de apenas “um olho”, diferente da humana (dois olhos), e, por isso mesmo, ainda que uma pintura se orientasse por uma fotografia, sem seguir a técnica fotorrealista, ela continuaria parecendo uma fotografia. Mesmo assim, o autor alerta que não necessariamente se a cena fosse pintada “ao vivo” ela pareceria mais real. Isso aconteceria porque estamos tão imersos numa “nova ‘realidade’ da mídia – jornais, livros, televisão, filmes – que agora percebemos tudo através da lente de um só olho aquilo que não experimentamos pela primeira vez, assim aumentando nossa percepção da realidade através de pinturas derivadas de fotografias”128 (MEISEL, 1981, p.21).

A partir dos depoimentos colhidos por Linda Chase, é possível ainda perceber que os fotorrealistas estão preocupados não apenas com a pintura realista de uma fotografia, mas entendem que o formato é uma nova ferramenta e fonte de informação. Richard Estes, por exemplo, possui uma grande liberdade ao fotografar. Ele faz várias imagens para poder obter bastante informação do local que irá pintar e assim pode incorporar tudo que capta com a câmera na tela. Porém, apesar de sua pintura ser baseada numa fotografia, ele não traduz na tela exatamente o momento afixado no filme. Isto é, como mencionado anteriormente, ele elimina as pessoas fotografadas, “porque elas distraem demais” (CHASE, 1975b, p.9) e também o lixo, pelo mesmo motivo e por questão estética. Ele explica ser uma “deficiência” de sua parte, já que procura manter a sujeira da cena, mas mesmo na fotografia já não é tão

66 sujo quanto na realidade, “ao vivo”: “Não é que eu tente fazer parecer daquele jeito, é que acontece”129 (CHASE, 1975b, p.9).

E, dessa forma, passa a existir na vertente americana a sensação que Annateresa Fabris compara à passada pelos retratos fotográficos tumulares, uma vez que tanto as pinturas quanto os retratos são, como argumenta Corrado Maltese, em Per uma semiologia dell’iconismo (1973), “duradouros, sinistramente despersonalizados em sua matriz tecnológica, fiéis, embora convencionalmente icônicos” (apud FABRIS, 2006, p.48). Da mesma forma, no hiperrealismo, a imagem afixa a vida ao simultaneamente negá-la. Em Estes, as paisagens urbanas mostram vitrines e carros em que suas peças cromadas, tão lustradas, dão “a impressão de serem alucinadas e irreais graças a cortes casuais e a uma tradução aparentemente fiel” (FABRIS, 2006, p.49).

Linda Chase explica que as pinturas de Richard Estes “têm uma pureza da qual o mundo está em falta”130 (CHASE, 1975b, p.10) e que, na realidade, todos os fotorrealistas têm, em parte, essa característica, porque eles não estão realmente tentando capturar o que há de bruto e sujo, mas também porque seu estilo está focado na “precisão e na limpeza da superfície da pintura”131 (Idem). Com isso, tem-se uma noção diferente daquela tão criticada pelos que tiveram o Fotorrealismo em pauta durante seus primeiros anos, já que Chase vê que, apesar de o gênero ser extremamente obediente à base fotográfica, no entanto, há uma diferença entre o que é real do fotografado e daquilo que é, enfim, transposto à tela. O próprio Estes chega a dizer, “Eu não acredito que a fotografia seja a última palavra sobre realidade”132 (KULTERMANN, 1972, p.13), o que enfatiza sua visão ou criação de uma nova realidade (hiperrealidade), de uma nova iconografia.

Citando os casos dos escultores hiperrealistas John de Andrea e Duane Hanson, além do pintor Chuck Close, Annateresa Fabris entende que há artistas que trabalham com esses paradoxos e metalinguagens num nível icônico. Aparentemente inspirados em René Magritte, esses hiperrealistas se mantém em um jogo entre o que é real e ilusão, tanto no âmbito da linguagem quanto no objeto e representação. E, por conta disso, a pintura fotorrealista ganha uma sensação de estranhamento, um “caráter fantasmático e senso de irrealidade”. FABRIS (2006) argumenta, ao citar a obra de Filiberto Menna, La linea analítica dell’arte moderna (1977), que os hiperrealistas não visam à representação, mas sim a uma espécie de “nomeação das coisas, à elaboração de um inventário ou dicionário Thesaurus, que transfere (por um

67 caminho diferente do ‘conceitual’) a consistência e o peso dos objetos para a concisão dos nomes e das definições” (apud FABRIS, 2006, p.48).

Com isso põe-se em xeque o nome do gênero. Italo Mussa, em Il vero più vero del vero: l’iperrealismo (1974), já adianta no título o que a vertente teria a propor, “O verdadeiro mais verdadeiro que o verdadeiro”, apesar de acreditar que o Hiperrealismo “não é o resultado de reconstruções do real, como na Pop art e na Mec art, nem de intervenções mais ou menos evidentes, como na fotogravura e na reprodução” (FABRIS, 2006, p.49). Aquilo que é minuciosamente traduzido nas telas dos artistas hiperrealistas tem, para Annateresa Fabris, já de início, cores falsas, porque seguem as tonalidades dos meios de comunicação de massa, isto é, a fotografia.

Italo Mussa usa as esculturas de John de Andrea como referencial daquilo que o autor quer dizer sobre a diferença entre o verdadeiro e a realidade. Ainda que a escultura hiperrealista possa vir a utilizar roupas de verdade ou até mesmo peruca feita com cabelo humano, há nela uma “irrealidade” que o autor explica como sendo parte da poética hiperrealista: “O verdadeiro de suas obras nada tem de realista, e muito menos de verossímil, mesmo se tudo nelas é verdadeiro. São demasiadas as contradições que impedem a determinação de um juízo crítico sobre o verdadeiro do verdadeiro” (apud FABRIS, 2006, p.49).

Ou seja, à medida que o artista hiperrealista tenta se aproximar o quanto mais possível da realidade, com o preciosismo de sua técnica, no entanto, ele se afasta dela ao também se distanciar do “verdadeiro” e trazer, despercebidamente, em sua poética, a ilusão. E, assim, o encontro com a pintura hiperrealista se torna não o olhar para a imagem artística, mas um vislumbre com a “desilusão”, como aponta Annateresa Fabris ao citar Jean Clair em seu texto L’adorabile illusione (1974). A apreciação desse tipo de arte passa a ser cada vez mais enganadora por sua forma tão bem acabada e, assim, é como se “a realização do metiê tivesse deixado de ser a recompensa da pintura para tornar-se seu enigma” (apud FABRIS, 2006, p.50).

Esta seja, talvez, a explicação para tantas críticas em torno da frieza técnica dada aos hiperrealistas. A maior parte dos textos dedicados ao gênero, escritos nas primeiras décadas em que a vertente se iniciou, mostra-se incomodada com esse aspecto, muitas vezes se perguntando o motivo para se pintar algo tão perfeitamente igual à fotografia quando esta já

68 existia como registro. MEISEL (1981, p.21) comenta que, mesmo na atmosfera liberal dos anos 1960, havia críticas sobre o uso da fotografia na pintura, como se isso fosse “trapaça”. Porém o autor argumenta que os impressionistas fizeram muitas de suas pinturas baseadas em desenhos, usando-os como meio de adquirir informações e ideias para suas composições, cores e formas, enquanto que os fotorrealistas fazem o mesmo, mas por meio da câmera em vez do bloco de desenho – “não porque eles não podem desenhar, mas porque eles iriam gastar anos tentando coletar as informações necessárias”133.

Ainda assim, há críticas e questionamentos como aqueles feitos por Jean-François Lyotard em Sketch of an Economy of Hyperrealism (1973). Uma vez que o hiperrealista deve seguir aquilo que é registrado pela câmera, seu trabalho é praticamente mecânico e o artista se torna, de certa forma, aquilo que Andy Warhol declarou: “Se eu pinto dessa forma, é porque eu quero ser uma máquina”134 (apud LYOTARD, 1973, p.107).

Apesar de a técnica hiperrealista ser histérica, como Lyotard a nomeia, pelo fato de ser tão precisa, o pintor acaba desregulando a “máquina foto-óptica”, assim como também evidenciou Linda Chase – porque há diferença entre as captações. Lyotard percebe no nível técnico, material, que o artista “supera a entropia” conforme “a tinta a óleo é mil vezes mais forte em cor e intensidade que o negativo; os tons são deslocados e repostos de outro lugar, as ondulações do cabelo e do tecido em particular são desenhados em sua morbidez”135 (LYOTARD, 1973, p.113). E ao fazer isso, o pintor exerce um trabalho histórico, no qual o hiperrealista, para Lyotard, replica o que é mais visível, menos natural e o que já existe. Porém, nesse procedimento, há ainda “a elevação das intensidades cromáticas, valores lineares de luz, ao passá-las pelo corpo do pintor, nas canalizações que vão do olho para a mão”136 (Idem).

Para isso, a maioria dos hiperrealistas se utiliza de dois métodos de “transferência” da fotografia para a tela, isto é, desenhando a partir da projeção da fotografia feita com um projetor opaco (como no caso de Bechtle, Bell, Blackwell, Cottingham, Flack, Goings, Kacere, Kleeman, Mclean, Salt e Schonzeit) ou então através da quadrícula, na qual é desenhada uma grade tanto na fotografia quanto na tela, seguindo as proporções para que seja transposta a imagem ao desenho – Chuck Close, Don Eddy e Jerry Ott são alguns dos pintores que se utilizaram desse método. Já Malcolm Morley ainda aproveitava a técnica já trabalhada por Andy Warhol, a da transferência por silkscreen, fazendo devidos aprimoramentos de acordo com seu estilo pictórico. 69

E assim se forma a parceria entre o pintor e mais uma máquina, além da fotográfica, agora a que projeta, da qual ele fica dependente para guiá-lo nas proporções e perspectiva. E Lyotard acaba questionando a relação:

Através dessa conjunção com o aparato foto-óptico, ele [o pintor] assume uma postura histérica, ele deseja que a máquina seja sua senhora, que ela governe seus gestos, corrija seus impulsos, conheça muito melhor que ele sobre perspectiva e construção e passagens e “realidade”. Ao mesmo tempo, ele quer governar essa máquina, ele a alimenta, ela trabalha apenas através dele e talvez para ele, mesmo se ele cortasse seu próprio corpo, eliminasse três quartos [de si] para fazê-la funcionar. Um trabalhador que quer ser sua própria máquina ao passo da escravidão, isso é histérico137 (LYOTARD, 1973, p.115).

Sem saber diagnosticar as razões do Hiperrealismo, Lyotard não entende se o gênero denuncia a produção moderna ou se é um gênero alienado. Sua conclusão parece ser que, enfim, “ele não denuncia nada (...) já que não pertence a ele [o gênero] o pensamento e a prática da crítica, e isso é o que faz possível pensar se é estúpido”138 (LYOTARD, 1973, p.115). E segue argumentando:

Se essa pintura tem qualquer força, é pelo fato de ser simplesmente afirmativa, repetitiva e, por causa dessa repetição, intensiva. Ao pintar fotos, sendo estas poderosas (...) Os objetos, brilhantes, contidos em si mesmos, totais, são as contrapartidas, eles nos falam, dos nossos corpos, divididos, obscuros, abertos para qualquer um139 (LYOTARD, 1973, p.115).

E por isso mesmo que nem todos os hiperrealistas seguiram essa mesma tendência “coisificante”, principalmente aqueles que sucederam a primeira geração ocupada pelos fotorrealistas como Robert Bechtle, Charles Bell, Chuck Close, Tom Blackwell, Don Eddy, Richard Estes, Audrey Flack, Ralph Goings, Malcom Motley. O chileno Claudio Bravo (1936-2011), durante sua vivência em Marrocos, pintou diversos quadros fotorrealistas que seguiram clara influência da pintura barroca e renascentista140, principalmente de pintores como Diego Velázquez, o qual Bravo, de certa forma, homenageia na pintura The guard and his son (1979) ao fazer referência à obra Las Meninas (1656). Nesse quadro, os personagens são retratados e repetidos ao fundo da tela, de onde se observam e também onde o pintor é espelhado e inserido outra vez num quadro dependurado no cenário – trata-se do autorretrato que Bravo havia pintado em 1975.

Já o espanhol Juan Francisco Casas (1976 – ) pinta retratos de jovens garotas e rapazes que aparecem nuas ou em momentos íntimos, em festas particulares ou em situações que expõem um estilo de vida característico de uma juventude que se expõe para o fotógrafo. O 70 artista, que usa caneta esferográfica azul para fazer suas obras, segue uma tendência de vários hiperrealistas contemporâneos, que é a de explorar a textura da água em contato com o rosto e corpo dos fotografados. Além disso, sua proposta, apesar de mais minimalista, é parecida com a de Terry Rodgers (1947 – ) que, no entanto, faz telas sobre a vida privada e noturna de jovens americanos da alta sociedade. Rodgers insere muitas cores e muitos personagens num mesmo espaço, o qual se torna pequeno para a cena orgiástica, quase boschiana.

Com o alemão Sebastian Krüger (1963 – ), há um hiperrealismo que se combina à caricatura, uma vez que o artista pinta o rosto de celebridades de maneira extremamente realista, porém às vezes distorcendo-as grotescamente em alguns detalhes. Também retratista, o chinês Paul Lung usa grafite para pintar rostos sorridentes, fazendo caretas, em diferentes ângulos. Assim como no caso de Close e Goings, aparentemente o artista registra pessoas próximas, porém Close fazia questão de pedir para que os retratados deixassem seus rostos “o mais sem expressão possível”141 (MEISEL, 1981, p.112). Ao serem anônimos, eles não têm nenhum peso iconográfico como no caso das celebridades de Krüger, senão a forma como posam, seu olhar. Finalmente o rosto humano retoma a sua função primordial, assim como nota Giorgio Agamben em Nudità (Editora Nottetempo, 2008):

O rosto é, por excelência, o lugar da expressão. Isso parece confirmar-se pelo fato de que, enquanto outras espécies animais apresentam frequentemente sinais expressivos mais vivazes justamente no corpo (os “olhos” do pelo do leopardo, as cores ardentes das partes sexuais do mandril, mas também as asas da borboleta e a plumagem do pavão), o corpo humano é singularmente privado de traços expressivos (apud Instituto Humanitas Unisinos, 2009).

Gottfried Helnwein, já nos anos 1970, ou mais precisamente em 1969, quando pintou suas primeiras aquarelas de crianças enfaixadas, iniciou sua carreira como hiperrealista, trazendo muitas das características básicas do movimento à sua obra. Não apenas a técnica minuciosa, mas assim como foi o caso de Claudio Bravo, reconhece-se em Helnwein um uso de luz e sombra comparável à arte barroca, de tendência tenebrista (vide capítulo 2.1), ainda que despretensiosamente, já que conforme conta na entrevista, em anexo, Helnwein não teve uma educação formal em arte.

E junto à observação de seu entorno católico austríaco, combinado à chegada da cultura pop americana, a partir da ótica infantil, Helnwein fixou-se numa obra basicamente retratista, ora composta por séries fotográficas de celebridades (Faces, 1982 – 1994) ou mesmo retratos hiperrealistas de mulheres notáveis (48 Portraits, 1991 – 1992), ora por 71 pinturas e fotografias de rostos e corpos de crianças que carregam tanta ou mais expressividade que os rostos pintados pelos artistas até então mencionados neste capítulo.

Muitas vezes essas crianças e adultos, que apareciam com mais frequência nessa primeira fase de aquarelas (1970-1988) da carreira de Helnwein, possuem o rosto deformado e se encontram em uma situação de violência muito mais explícita do que nas séries de pinturas a óleo e acrílica e fotografias mais recentes, como The Murmur of the Innocents (2009-2013) e The Disasters of War (2007-2011), nas quais as crianças estão sozinhas. Nos capítulos seguintes, a obra de Helnwein será analisada mais minuciosamente a partir de seus principais ícones e coleções escolhidas para estudo.

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3.0 Obra

A obra de Gottfried Helnwein vai ao encontro de alguns dos artistas mencionados nos capítulos anteriores, sejam eles acionistas vienenses ou hiperrealistas, que fazem parte do mesmo grupo do qual o austríaco é considerado parte. No entanto, estes últimos não são performáticos, como é o caso de Helnwein. Portanto, seu trabalho se inicia tanto imageticamente, no sentido de imprimir imagens em superfícies (aquarela em papel cartão), quanto em ações (Aktionen), nas quais ele usa o corpo como ferramenta, como foi o caso da sua primeira experiência, em 1966, quando se cortou com navalha e instrumentos de gravura. O sangue, junto das bandagens, também já eram elementos na composição do artista, nesse momento mais físico que pictórico, uma vez que mais tarde essa recorrência passaria a ser notada em suas fotografias e telas, feitas com tinta acrílica e a óleo.

Ainda nas ações, Helnwein também começou a inserir crianças, a primeira ocorrendo em 1971, e no ano seguinte passou a fotografar seus modelos. No início, o artista costumava trabalhar com seus próprios filhos, o primeiro dele, Cyril, tendo nascido em 1977, mas quando estes foram crescendo, Helnwein teve de procurar por outros colaboradores.

Ao iniciar a pintura de quadros, Helnwein estudava diferentes tipos de técnicas para incorporar o estilo hiperrealista. Apesar de suas primeiras obras em tela serem autorretratos abstratos, datados da década de 1980, já nos anos seguintes, ele reproduziu fotografias próprias em estilo hiperrealista. O’DONOGHUE (2008) declara que a técnica utilizada por Helnwein na série Epiphany (1996-1998) foi feita a partir de uma manipulação digital em que o artista combinou imagens de Madonnas e figuras da Virgem e da Criança de pinturas conhecidas, como as de Leonardo ou Caravaggio. Além disso, fotografias documentais nazistas foram usadas na composição que foi transferida na tela a partir de um método de jato de tinta. A partir daí, o artista teria pintado por cima com tinta a óleo e acrílica, “permitindo a pintura a subsumir e se tornar coexistente com a fotografia”142.

Em entrevista (vide anexo), Helnwein comenta que, no entanto, costuma projetar e delinear a tela para depois pintar, apesar de sempre experimentar diferentes técnicas de transferência da fotografia à tela – como o caso da impressão da marca d’água. No documentário The Silence of Innocence. The Artist Gottfried Helnwein (2009), de Claudia Schmid, Helnwein aparece delineando uma tela após projetar uma fotografia e diz, como se fosse uma resposta à crítica de Lyotard quanto à relação dos hiperrealistas com as máquinas: 73

As mídias são sempre meios subordinados, ferramentas sem significado por elas próprias. Eu gostaria de renunciá-las, apenas mostrar minhas visões com magia, tridimensionalmente. Mas eu não posso fazer isso. A tecnologia é sempre necessária. Mesmo na academia, eu recusava aceitar técnicas tradicionais e datadas. Eu simplesmente pintava com o meu velho estojo de tinta para crianças, usava giz de cera e lápis, tinta... E então misturava tudo. Uma técnica não muito aceitável para pintura. Mais tarde eu percebi que essas cores não eram permanentes e começavam a desaparecer. Então eu procurei por giz e aquarelas que fossem resistentes à luz. Era um processo de aprendizagem, todo tempo controlado por mim mesmo. Eu sempre trabalhei com novas mídias – usava aerógrafo, fotografia, desde o começo. Eu usava personagens dos jornais. Quando comecei a usar crianças na minha obra, consegui um jornal de pais com muitas fotos de bebês. E então eu usei as cabeças dessas revistas de crianças para meus retratos. Então eu sempre consegui o que queria dos meus arredores, como num supermercado. E eu acredito que esse é o único jeito para um artista trabalhar hoje em dia143 (SCHMID, 2009).

Assim como Helnwein menciona nessa citação, apesar de trabalhar com modelos, sua pesquisa de referências imagéticas também vem de fotografias de jornais e de imagens do cotidiano, em publicações, algo bastante trabalhado na Pop Art e também na primeira geração do Hiperrealismo, mas de maneira literal – transferindo a imagem do suporte midiático para a tela. Fazendo montagens, como em Epiphany, Helnwein construiu também a série The American Paintings (2000-2003), que inclui três secções, The American Paintings (2000), Downtown (2002) e Paradise Burning (2001-2003).

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3.1 The American Paintings: o fascínio pela imagem

A série The American Paintings é composta por pinturas monocromáticas feitas em tons de azul, branco e preto, exceto pelas obras The Red Gun (2000) e Downtown 20 (2002), nas quais o azul é substituído por vermelho. Essa escolha feita pelo artista em remover tons extras faria com que os observadores não tivessem demais distrações e focassem sua atenção no assunto da tela, como aponta JOHNSON (2004). Por outro lado, da mesma forma que uma fotografia em preto e branco parece real na sua função de captar um momento, ela passa a ter um fundo de falsidade quando levamos em conta que o mundo não é ausente de cores. Portanto, “Helnwein tira vantagem da experiência fotográfica e das expectativas de nossas mentes para criar pinturas que têm o mesmo nível de realidade/falsidade”144 (Idem).

Nessas pinturas, Helnwein retrata os Estados Unidos ao compor imagens que reúnem fotografias de jornais dos anos 1950 e 1960, as quais foram retiradas de arquivos de Nova Iorque e Los Angeles. Helnwein combinou cenas e pessoas (a maioria delas real), reorganizando-as em suas novas narrativas.

Eu rearranjei as cenas, introduzi novos personagens, criei novos relacionamentos e contextos. E então as pintei em preto e azul. É assim que eu me lembro da América no começo dos anos 1950, em Viena, onde eu nasci. A grande guerra havia terminado poucos anos atrás, mas a cidade ainda parecia indecisa se aquele era o fim do mundo ou se a vida devia continuar. Era um mundo estranho, triste e surreal. As ruas eram vazias, as casas escuras – muitas delas eram ruínas dos bombardeios. As poucas pessoas que eu via pareciam feias, grosseiras e depressivas. Eu nunca vi ninguém rindo e nunca ouvi ninguém cantando. Era um mundo sem som e sem cor. Tudo movia em câmera lenta, como musgo. Nós não tínhamos telefones, televisão, carros, música, fotografias, a não ser pinturas de pessoas torturadas na igreja católica, o que me causava uma grande impressão, assombrava-me nas noites insones da minha infância no limbo. E então, sem nenhum aviso, de repente havia a América. Quando eu vi a primeira foto do Elvis, eu fiquei num estado de choque, porque eu não podia acreditar que um ser humano podia ser tão bonito. Esse foi o começo de uma interminável inundação de imagens americanas que, de repente, veio até nós e começou a penetrar e transformar tudo145 (HELNWEIN, 2000).

Em entrevista (vide anexo), Helnwein conta que chegou a guardar a primeira foto que viu de Elvis Presley durante dois anos, como se esta fosse uma imagem de santo, para só depois ouvir sua música e então se surpreender novamente. O artista costumava também, ainda que com não muita frequência, ir ao cinema e assistir a filmes americanos, mencionando aqueles protagonizados por atores como James Dean e Charles Chaplin. Em seu texto sobre a coleção The American Paintings, ele conta que o mundo de seus pais estava 75

“exausto” e “vazio”, destruído pelo regime nazista, o qual havia derrubado museus, queimado livros. Muitos dos artistas, escritores e intelectuais haviam, inclusive, deixado o país ou sido mortos.

Fora desse vazio, nós crescemos num mundo de maravilhas que nós conhecíamos apenas dos filmes em preto e branco e fotografias, onde tudo era impecavelmente encenado e arranjado. Carros brilhantes que pareciam naves espaciais; policiais e garotas pálidas celestiais em iluminação perfeita estavam congeladas em poses incríveis, no lugar perfeito da fotografia, formando sombras longas e pretas. Como esses caras estavam segurando seus cigarros e o que eles faziam com a fumaça era uma obra de arte. As casas e as ruas de Nova Iorque e LA se tornaram nossas ruas. Nós sabíamos todos os detalhes dos interiores das casas da classe média americana146 (HELNWEIN, 2000).

Isso, no caso das crianças e jovens, filhos dos que haviam vivenciado a guerra. Em entrevista (anexo), Helnwein conta que a geração que vivenciou a guerra não gostava da cultura americana, achava “horrível”. Essas pessoas estavam preocupadas em negar o passado e a oportunidade delas era a de abraçar um novo sistema político democrático que oferecia o esquecimento, desde que adotassem aquele próximo regime. Helnwein conta que só naquele momento elas haviam percebido que o que havia acontecido durante o período nazista tinha sido ruim. E seus filhos estavam começando a questioná-las, o que era incômodo. Sem respostas, as crianças e adolescentes encontravam na cultura americana – como foi o caso de Helnwein e tantos outros – um novo lócus para se refugiar. Helnwein estava vivenciando (e gostando) da mudança do mundo, do cinza ao tecnicolor, da história à pós-história, como descreve Flusser, em um trecho do capítulo “Nossas imagens” do livro Pós-História:

O nosso mundo se tornou colorido. A maioria das superfícies que nos cercam é colorida. Paredes cobertas de cartazes, edifícios, vitrines, latas de legumes, cuecas, guarda-chuvas, revistas, fotografias, filmes, programas de TV, tudo está resplandecendo em tecnicolor. Tal modificação do mundo, se comparado com o cinzento passado, não pode ser explicada apenas esteticamente. As superfícies que nos cercam resplandecem em cor sobretudo porque irradiam mensagens. A maioria das mensagens que nos informam a respeito do mundo e da nossa situação nele é atualmente irradiada pelas superfícies que nos cercam.

(...) No passado recente o mundo codificado era dominado pelos códigos lineares dos textos, e atualmente o é pelo código bidimensional das superfícies. Planos como fotografias, telas de cinema e da TV, vidro das vitrines, tornaram-se os portadores das informações que nos programam. São as imagens, e não mais os textos, que são os media dominantes. Poderosa contrarrevolução de imagens contra textos está se processando (FLUSSER, 2011b, p.113).

Atentando para o fato de que as mudanças não se dão apenas no plano estético, Flusser aborda os turning points do século XX, para a midiatização, a tecnologia, a sociedade pós- 76 industrial, isto é, alguns dos assuntos que já concerniam a artistas daquela época, desde os modernistas até os acionistas vienenses, os artistas da Pop Art ou até mesmo os hiperrealistas.

Porém, é necessário mencionar que, num primeiro momento, a escrita foi revolução contra as imagens, como ocorreu entre os mesopotâmicos. Isto porque as imagens, em sua bidimensionalidade, precisam ser explicadas, uma vez que “representam o mundo para o homem, mas simultaneamente se interpõem entre o homem e o mundo (‘vorstellen’)” (FLUSSER, 2011b, p.115). Flusser explica que, ao representarem o mundo, as imagens são “como mapas, instrumentos para a orientação do mundo”, mas “enquanto se interpõem entre homem e mundo são como biombos, encoberturas do mundo” (Idem) e, por isso, a escrita teve de ser inventada “quando as imagens ameaçavam transformar os homens em seus instrumentos, em vez de servirem de instrumentos aos homens” (Ibidem).

Os primeiros escribas eram iconoclastas. Procuravam quebrar, perfurar imagens tornadas opacas, para novamente fazer com que sejam transparentes para o mundo. Para que as imagens novamente sirvam como mapas, em vez de serem “adoradas”. Tal engajamento revolucionário dos escribas é nitidamente sorvível em Platão e nos profetas: des-mitizavam imagens (FLUSSER, 2011b, p.115).

Obviamente uma não eliminou a outra e escrita e imagem conviveram, ainda que, contudo, em diferentes épocas cada uma tenha se sobressaído à outra. Com a invenção da prensa e a alfabetização geral, a dialética da leitura das imagens e dos textos se modificou, como nota Vilém Flusser, tanto que textos se tornaram mais baratos e as imagens foram se multiplicando, especialmente quando a fotografia foi inventada e desenvolvida em filme, vídeo, tecnoimagens. Estas, diferentes das produzidas por homens, são obras de aparelhos, os quais são “caixas pretas que são programadas para devorarem sintomas de cenas, e para vomitarem tais sintomas em forma de imagens. Os aparelhos transcodam sintomas em imagens. (...) São caixas que devoram história e vomitam pós-história” (FLUSSER, 2011b, p.118) – daí, pode-se entender, entre outras coisas, que Flusser estaria se referindo à pós- história como à era pós-mídia(s).

Como exemplo de aparelho, Flusser cita a televisão e atenta para o fato de que a história continua acontecendo, aliás, de maneira muito mais veloz que anteriormente, pelo fato de estar “sendo sugada para o interior do aparelho” (FLUSSER, 2011b, p.119) e, dessa forma, “os eventos se precipitam rumo ao aparelho com rapidez acelerada, porque [os eventos] estão sendo sugados, e parcialmente provocados pelo aparelho” (Idem), de modo que “a história toda, política, arte, ciência, técnica, vai destarte sendo incentivada pelo aparelho, a 77 fim de ser transcodada no seu oposto: em programa televisionado” (Ibidem). Isto é, as imagens passam do analógico ao digital, passam a ser notícia, tornam-se mídia, pós-história, tecnoimagem. E diferentes das imagens tradicionais, as tecnoimagens não são cenas, mas eventos, além de serem imagens. “Quem estiver por elas programado, vivencia e conhece a realidade magicamente”, diz FLUSSER (2011b, p.120). No entanto, estar inserido nessa magia não é um retorno à pré-historicidade, mas é fazer parte do que o autor chama de “programa”, a “magia pós-histórica”: “Quem estiver programado por tecnoimagens vive e conhece a realidade como contexto programado” (Idem). A atitude de Helnwein ao guardar a fotografia de Elvis, por si só, é um ritual de magia, como Flusser descreve: “Recortar a fotografia do jornal ou rasgá-la é agir ritualmente. A fotografia está sendo manipulada como em um ritual de magia. No fundo, não somos nós que a manipulamos, é ela que nos manipula” (FLUSSER, 2011c, p.81).

American Prayer (2000), tinta a óleo e acrílica em tela, 187 cm x 213 cm

No momento em que Helnwein entrou para esse “universo imagético” ou “universo fotográfico” da cultura pop americana, ainda criança, ele passou a pensar magicamente. Em sua vivência, ou na vivência europeia, estava ocorrendo uma transição da era escrita para a 78 imagética e a consciência do mundo, conforme Flusser indica, dá-se de forma diferente a partir desses dois formatos, uma vez que a escrita é linear e a imagem é bidimensional. Em Pós-História, ele explica:

O gesto de ler e escrever textos se passa em nível de consciência afastado de um passo do nível no qual imagens são cifradas e decifradas. Para a consciência imaginística o mundo é contexto de cenas: é vivenciado e conhecido por mediações bidimensionais, superfícies. Para a consciência textual o mundo é contexto de processos: é vivenciado e conhecido pela mediação de linhas. Para a consciência estruturada por imagens a realidade é situação: impõe a questão da relação entre os seus elementos. Tal consciência é mágica. Para a consciência estruturada por textos a realidade é devir: impõe a questão do evento. Tal consciência é histórica. Com a invenção da escrita a história se inicia (FLUSSER, 2011b, p.115).

Em Filosofia da Caixa Preta (2011c, p.32), Flusser diz algo semelhante com relação às imagens técnicas, lembrando que estas são “superfícies que transcodificam processos em cenas” e, como toda imagem, estas são mágicas e “seu observador tende a projetar essa magia sobre o mundo”. Além disso, o “fascínio mágico que emana das imagens técnicas é palpável a todo instante em nosso entorno”. O autor afirma que “vivemos, cada vez mais obviamente, em função de tal magia imaginística: vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos cada vez mais em função de tais imagens. Urge analisar que tipo de magia é essa”. No caso, Flusser estava interessado em criar uma filosofia da fotografia, mas aqui é necessário entendermos, em primeiro lugar, qual é a magia específica contida nos depoimentos de Helnwein, já que as lembranças relacionadas à sua infância sempre demonstram um relato emocionado (como em Memories of Duckburg, 1989) e vívido quanto à descoberta da cultura pop americana, especificamente quanto aos quadrinhos de Walt Disney – tanto que isso gerou as séries The American Dreams e outros quadros com a figura do Pato Donald ou diversas remitências ao universo da mídia de massa.

Para Flusser, a magia das imagens técnicas, da fotografia, publicidade, TV e cinema, não tem a ver com as imagens tradicionais – das paredes das cavernas ou de um túmulo etrusco. As imagens televisionadas não seriam capazes de se equiparar ao conteúdo ontológico do homem da caverna ou dos etruscos e essa nova magia sucede à consciência histórica, é “desmagicizante”.

A nova magia não visa modificar o mundo lá fora, como o faz a pré-história, mas os nossos conceitos em relação ao mundo. É magia de segunda ordem: feitiço abstrato. Tal diferença pode ser formulada da seguinte maneira: a magia pré-histórica ritualiza determinados modelos, mitos. A magia atual ritualiza outro tipo de modelo: programas. Mito não é elaborado no interior da transmissão, já que é elaborado por 79

um “deus”. Programa é modelo elaborado no interior mesmo da transmissão, por “funcionários”. A nova magia é ritualização de programas, visando programar seus receptores para um comportamento mágico programado (FLUSSER, 2011c, p.33).

Por programa Flusser entende o sistema dos acasos, uma terceira visão quanto à existência humana, sendo as demais a finalística e a causalística. A finalística é regida pelo destino, enquanto a segunda acompanha as ciências naturais, pedindo por noções de causalidade. Enquanto a visão finalística está mais relacionada ao pensamento religioso e determinista, a causalística se une ao pensamento biológico e a programática está composta por virtualidades e caos.

O conceito da visão programática é, pois, o acaso. Isto é o que é novo. Para o pensamento finalístico não há acaso: o que parece ser acaso é na realidade um propósito ainda desencoberto. Tampouco há acaso para o pensamento causalístico: o que parece ser acaso é na realidade causa ainda não descoberta. Mas para o pensamento programático é o contrário que ocorre. O que parece ser propósito, e o que parece ser causa, são na realidade acasos ingenuamente interpretados. (...) Com efeito: programas se parecem com propósitos, se vistos antropomorficamente. E se parecem com causas, se vistos mecanicisticamente. Destarte a visão programática revela o pensamento finalístico enquanto ideologia antromorficamente, e o pensamento causalístico enquanto ideologia objetificante. (...) A visão programática é a visão do absurdo (FLUSSER, 2011b, p.41).

O autor busca fundamentar esse conceito de programa como visão do absurdo porque cada vez mais ela se mostra como algo “consciente”, já que as causas passam a ser difíceis de serem mensuradas se pensadas a partir de um ponto de vista finalístico ou causalístico, quando se pensa a respeito da existência humana.

Em O Universo das Imagens Técnicas (2008), Flusser metaforiza dizendo que no centro da sociedade, há os emissores, “lugares viscosos que emitem raios imperativos para dispersar a sociedade” (p.99), que são como o Castelo de Kafka, como cebolas: “podem ser ‘explicados’ nível após nível, até não restar nada. É que nos centros da sociedade emergente não há ninguém nem nada” (Idem).

Mais pra frente, Flusser ainda diz que emissores são “lugares de algodão, lugares moles: software. Lugares onde se calcula, se computa e se programa” (FLUSSER, 2008, p.100) e que “há neles aparelhos que tendem a se tornar sempre menores e mais rápidos, bem como funcionários que apertam teclas e que tendem a constituir uma parte sempre crescente da sociedade” (Idem). Isto é, são os centros de onde são emitidas as mensagens, onde os funcionários apertam os botões e informam objetos – informam a natureza. Os Estados 80

Unidos foram, durante os anos 1960, um forte emissor de mensagens e o programa da cultura pop americana “programou” o imaginário de vários europeus, inclusive Gottfried Helnwein, que vivenciou magicamente e pós-historicamente aquelas imagens.

Mas aqueles conteúdos faziam parte de uma indústria, de um aparelho programado para fabricar celebridades, fantasias, cenários. Daniel Boorstin analisa esse fenômeno em The Image: A Guide to Pseudo-Events in America (1992), dizendo que uma vez que as celebridades são “manufaturadas”, fazemos delas “estrelas-guia” de nossos interesses e “ficamos tentados a acreditar que elas não são sintéticas de maneira alguma, que elas são de alguma forma ainda heróis divinos que agora abundam de uma maravilhosa prodigalidade moderna”147, porque mesmo em um século como o XX, no qual tantas guerras ocorreram, inclusive duas de proporção mundial, Boorstin aponta que “estamos desesperadamente agarrados às nossas crenças na grandeza humana. Por modelos humanos mais vívidos e mais persuasivos que comandos morais explícitos”148. O autor chega a alfinetar dizendo que agnósticos e ateus podem negar a existência de Deus, mas que eles demoram a negar a divindade de grandes agnósticos e ateus, de celebridades que defendem tal ponto de vista.

E isso porque os Estados Unidos, como indica Boorstin, talvez mais do que qualquer outro país, sabem produzir imagens e celebridades. Ao menos é isso que eles acreditariam:

Seduzidos, como nenhuma geração antes de nós, a acreditar que podemos fabricar nossas experiências – nossas notícias, nossas celebridades, nossas aventuras e nossas formas de arte – nós finalmente acreditamos que podemos fazer o nosso próprio parâmetro pelo qual tudo isso será medido. Que nós podemos fazer nossos próprios ideais. Esse é o clímax das nossas expectativas extravagantes. É expressado numa mudança total no nosso jeito americano de dizer: da conversa sobre “ideais” para a conversa sobre “imagens”149 (BOORSTIN, 1992).

Cientes disso, assim como os alemães já sabiam com Joseph Goebbels durante o Terceiro Reich, os americanos notaram que estavam vivendo na pós-história, numa era em que a “linguagem das imagens está em todos os lugares. Em todos os lugares ela tomou o posto da linguagem dos ideais”150 (BOORSTIN, 1992). Desse modo, se uma imagem correta é capaz de “eleger um presente ou vender um automóvel, uma religião, um cigarro ou um conjunto de roupas, por que ela não é capaz de fazer a própria América – ou o American Way of Life – algo próprio para venda ao redor do planeta?”151 (Idem).

E eles venderam, criando um imaginário, mesmo que sintético, como Boorstin acredita. A imagem, portanto, acaba sendo “planejada: criada para servir a um propósito, 81 passar certo tipo de impressão”152 (BOORSTIN, 1992), flutuando “em algum lugar entre a imaginação e os sentidos, entre as expectativas e a realidade. Por outro lado, também, ela é ambígua, porque ela não pode ofender”153 (Idem). Dessa forma, as imagens vão preenchendo necessidades, porque são algo que nós reivindicamos:

Ela [a imagem] deve servir aos nossos propósitos. Imagens são meios. Se a imagem de uma corporação ou ela própria ou a imagem de um homem ou ele mesmo não é útil, é descartado. Outro pode servir melhor. A imagem é feita para servir, talhada para nós. (...) A Revolução Gráfica tem multiplicado e vivificado as imagens. Novas máquinas têm feito mais acuradas e atrativas as réplicas de rostos, figuras humanas e voz, de paisagem e eventos, e usando novas máquinas para disseminar essas imagens. Com jornais, revistas, livros baratos, telefone, telégrafo, fonógrafo, filmes, rádio, televisão154 (BOORSTIN, 1992).

Essas réplicas, aliás, eram réplicas de modelos de uma sociedade que os próprios americanos estavam tentando seguir, como nota o autor: “Os americanos tentavam se encaixar nas imagens das ciências sociais da fronteira, das classes sociais e status. Cientistas sociais criavam essas imagens a partir de formas modais”155 (BOORSTIN, 1992).

Sociólogos eram então capazes de descrever o aldeão, a dona de casa suburbana (uma figura heroica que saía na capa da Time), o cientista, o pequeno empresário (que vivia em Middletown) ou executivo junior. (...) Os novos historiadores das ciências sociais produziram um grupo de caricaturas. Através de vários meios de popularização, tal caricatura se tornou a imagem em que um indivíduo era esperado (ou frequentemente tentava) se encaixar156 (BOORSTIN, 1992).

E esses estereótipos, ou caricaturas, aparecem no primeiro terço da série The American Paintings, seja como uma dona de casa que deixa um litro de leite quebrar no chão da cozinha, em The Catastrophe (2000), ou na recorrência dos típicos policiais americanos, em Cops I (Little Women) (2000), L.A. Confidential (Cops II) (2000), Cops III (The Threee Wise Men) e mesmo em American Madonna (Epiphany IV) (2000). Nos outros terços, em The American Paintings II – Downtown, vemos mais pinturas borradas de mulheres nuas, homens de rosto deformado e paisagens urbanas, como se fosse um cenário de um filme noir que continua em The American Paintings III – Paradise Burning, em que os estereótipos retornam na forma de detetives típicos dos filmes policiais americanos, mas no caso, eles interrogam o Pato Donald. Mais mulheres nuas são inseridas nessa série, crianças reaparecem, como no primeiro terço, mas agora junto de uma adulta, que é representada pela dançarina burlesca americana .

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Dark Hour, 2003, tinta a óleo e acrílica em tela. 152 cm x 96 cm

Ou seja, com The American Paintings, é possível enxergar que, a partir das tecnoimagens, duas realidades foram criadas: a americana e a de Helnwein, que se pode dizer a europeia. A primeira acompanhamos através dos quadros, apesar de ser um ponto de vista unilateral e “bem europeu”, como o próprio artista confessa (HELNWEIN, 2000), mas é explicitada a partir da análise de BOORSTIN (1992), que também diagnostica o poder das imagens na sociedade americana. No relato de Helnwein, ele discursa sobre como a inserção da imagética americana na Europa fez com que ele soubesse tão bem sobre o país e sua cultura, passando a admirar seus artistas e seus produtos, acreditando numa mensagem (imagem) de que os Estados Unidos seriam um país de liberdade – na entrevista em anexo, ele afirma que “A América tinha o sabor da liberdade”, comprando uma ilusão que os nativos produziam e, ao mesmo tempo, exportavam para a Europa.

O risco da insignificância é o perigo de substituir os sonhos americanos pelas ilusões americanas. De substituir os ideais pelas imagens, as aspirações pelo modelo. Nós arriscamos ser o primeiro povo na história a ser capaz de fazer suas ilusões tão vívidas, tão persuasivas, tão “realistas” que pode viver dentro delas. Nós somos as pessoas mais iludidas no planeta. Ainda assim nós ousamos não nos desiludirmos, porque nossas ilusões são nossas casas em que vivemos; elas são nossas notícias, nossos heróis, nossas aventuras, nossas formas de arte, nossa experiência.

Antigamente nós fomos salvos pela ameaça da ideologia pela ilusão em que os homens vivem em outros lugares, pelas imagens entre as quais nós vivemos. Nós 83

chegamos a pensar que nosso principal problema está lá fora. Como nós “projetamos” nossa imagem para o mundo? Ainda que o problema lá fora seja apenas um sintoma de nosso mais profundo problema em casa, nós chegamos a acreditar em nossas próprias imagens, até que nós nos projetamos fora desse mundo.

O “problema” lá fora é valioso, porém, como um sintoma. Ele pode nos lembrar que as pessoas não precisam viver num mundo de imagens, que nossa vida de imagens é uma vida estranhamente moderna, um Novo Mundo. E pode nos lembrar também de alguns perigos de termos nos persuadido tão bem quanto a isso157 (BOORSTIN, 1992).

Tanto os americanos quanto Helnwein estavam vivendo magicamente, do ponto de vista do pensamento flusseriano, já que vivenciavam o mundo a partir da imagem, de uma consciência imaginística. E essa magia, como já dito anteriormente, na pós-história, é o programa ao qual estão subordinados os funcionários submetidos aos aparelhos. Com isso, conclui-se que estes estariam presos, condicionados à imagem, ao programa, algo que Helnwein não admitiria, já que uma de suas maiores preocupações como indivíduo, mas também como artista, é a liberdade, como conta na entrevista em anexo.

Helnwein comentou nessa mesma oportunidade que, ao montar The American Series, ele não estava preocupado em construir nenhuma crítica aos Estados Unidos. Conta que não estava inclinado a formular questões políticas ao redor da Walt Disney ou da cultura pop americana, que “apenas via a estética na arte”, que “não sabia nada sobre dinheiro, não sabia nada sobre corporações” e que apenas visava à narrativa mágica do Pato Donald em Patópolis. Em outra ocasião, no entanto, Helnwein escreveu:

A que associo o nome Disney? Aos inspiradores e sagrados quadrinhos da minha infância, que me deram uma chance de escapar de um país nazista frio para um mundo de alegria e maravilha, ou a máquina multimilionária de Michael Eisner que sufoca o mundo158 (JOHNSON, 2004).

É possível ver, mesmo que sutilmente, algum apontamento irônico sobre os paradoxos na sociedade americana, como o quadro Art in America (2000), em que uma mulher loira pinta Eldon Edwards, um antigo líder da Ku Klux Klan, que reconstruiu o grupo nos Estados Unidos em 1953 e criou, dois anos depois, sua própria organização, U.S. Klans, Knights of the Ku Klux Klan, que tinha aproximadamente 15 mil seguidores em nove estados do país. Mas em raras ocasiões Helnwein tece críticas diretas a algum sistema político ou se põe em algum posicionamento ideológico, senão que é contrário à guerra e à violência.

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Na entrevista em anexo, Helnwein continua afirmando que Walt Disney é um gênio e não pretender tecer críticas quanto ao seu trabalho como um plano comercial, mas continua a considerá-lo apenas no nível artístico, nomeando-o “um dos maiores gênios que já existiu”. Contudo, houve uma oportunidade em que Helnwein comentou que, em um momento, os Estados Unidos deixaram de ter toda essa magia para ele. Em KONNO (2003), ele afirma:

Mas os tiros em Dallas que mataram Kennedy de repente acabaram com esse momento breve e inocente da história. O sonho acabou. Era o começo de uma longa descida – Vietnã, o assassinato de Martin Luther King, Watergate, o mercado de ações, Enron, a Guerra do Golfo, Columbine, 911 e assim por diante. Finalmente o império cristão-europeu está morrendo. O império romano está caindo novamente, como um gigante ferido fatalmente indo abaixo em câmera lenta.

Eu tenho um estúdio em Los Angeles e eu amo trabalhar lá, porque acho que é o lugar mais distante nesse processo de decadência, dessa vitória final do materialismo sobre o espírito. Quero estar no topo do presente e acho que é minha obrigação como artista presenciar como estamos nos dirigindo a esse admirável mundo novo, e ver quão habilmente esses novos mestres usam a mais antiga e mais comprovada ferramenta: o medo.

Afogando-nos com “notícias” sobre terroristas, doenças, drogas, abuso de menores, serial killers e desastres econômicos159 (KONNO, 2003).

Mais tarde também, com esse estúdio em Los Angeles, portanto conhecendo a verdadeira América – e não aquela através de imagens – Helnwein manteve fascínio pelos Estados Unidos, porém uma admiração contida pelo fato de que ele tem um lugar para voltar, seu castelo na Irlanda. No documentário The Silence of Innocence (2009), ele narra sobre a diversidade do local, mas diz ser difícil viver ali sem a tranquilidade de saber que pode retornar à sua casa na Europa.

A proposta, portanto, seria o “desencantamento” com a imagem, a “desmagicização” do pensamento para uma desprogramação do mesmo, porque até o momento Helnwein esteve programado pelo encantamento pelo universo ficcional da cultura pop americana e sua liberdade cerceada por aquilo que, no entanto, conforme Flusser, seria o que o escraviza.

Estar no universo fotográfico implica viver, conhecer, valorar e agir em função de fotografias. Isto é: existir em um mundo-mosaico. Vivenciar passa a ser recombinar constantemente experiências vividas através de fotografias. Conhecer passa a ser elaborar colagens fotográficas para se ter “visão de mundo”. Valorar passar a ser escolher determinadas fotografias como modelos de comportamento, recusando outras (FLUSSER, 2011c, p.93).

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Quando Helnwein preza pela liberdade ao mesmo tempo em que vive magicamente, ele entra no problema do fotógrafo de Flusser, que acredita ser livre e capaz de controlar o aparelho fotográfico, a câmera, quando, de acordo com o autor, ele seria funcionário e controlado pelo aparelho, programado por ele. E Helnwein, como pintor e fotógrafo, localiza- se, em parte, nessa metáfora, como será analisado mais adiante. O caso é que Flusser considera a máquina fotográfica diferente de um instrumento, de uma ferramenta, que depende da força humana para o trabalho (manual): é um dispositivo automático e, por isso, um “brinquedo”. O usuário pensa estar dominando suas funções, porém estas já estão programadas para funcionar à sua maneira independentemente do fotógrafo e mesmo assim, é capaz de passar a sensação de liberdade e autonomia a quem tem o objeto em mãos.

Por isso, Flusser propõe que “a tarefa da filosofia da fotografia é dirigir a questão da liberdade aos fotógrafos, a fim de captar sua resposta” (FLUSSER, 2011c, p.106). E ao longo de Filosofia da Caixa Preta, o autor conclui que é possível enganar o aparelho, no entanto, apesar de seu programa absurdo, porque ele ainda é “infra-humanamente estúpido (...) [e permite] introdução de elementos humanos não previstos (...)” (Idem) e que, no fim das contas, “liberdade é jogar contra o aparelho” (Ibidem). Desse modo, entendendo que é necessário jogar, aceitar a ludicidade, é preciso tornar-se Homo ludens, retornar à infância, ao mundo dos brinquedos e das crianças, porque como disse Picasso, numa citação que Helnwein frequentemente relembra em suas entrevistas: “Todas as crianças são artistas. O problema é como permanecer um artista quando você crescer”.

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3.2 The Murmur of the Innocents e The Disasters of War: cicatrizes da infância

Nas séries The Murmur of the Innocents (2009-2013) e The Disasters of War (2007- 2011), percebe-se uma personagem recorrente nas telas, a modelo que aparece sendo fotografada no documentário The Silence of Innocence (2009). Ora vestida numa farda branca ou preta, ora num vestido branco, ela também é vista com a cabeça enfaixada e suja de sangue, ao lado de uma cama, deitada ou em pé, segurando armas, próxima a brinquedos ou ela mesma transformada em um – isto principalmente em The Disasters of War. Na série mais recente, os brinquedos continuam fazendo parte do cenário, mas há também retratos, closes no rosto da (s) modelo (s) e mesmo alguns com estilo menos realistas, lembrando obras do começo da carreira de Helnwein, que estão inseridos em The Murmur of the Innocents. Portanto, as congruências estão tanto no uso de uma mesma modelo quanto no cenário e nos objetos, sendo que em The Murmur of the Innocents verifica-se a presença de bonecos de personagens da Disney, assim como as mesmas personagens de animações japonesas que já faziam parte de outras telas em The Disasters of War.

A série mais antiga recebeu esse nome em homenagem às 82 gravuras homônimas feitas pelo pintor espanhol , por quem Helnwein tem muita admiração. Em entrevista (anexo), o artista comenta:

Eu entendo sua preocupação com o sofrimento, o aspecto grotesco da vida, o estranho, o lado assustador e engraçado da vida e a dor, a destruição e a morte causadas pela guerra. E ao mesmo tempo em que ele pintava os ricos, ele também pintava a vida simples do campo. Então ele realmente abordou todos os aspectos da vida, de cima a baixo, dos humildes à corte do rei. Eu entendo isso. O jeito que ele fez isso estava transformando tudo. Você olha para a família real e vê que todas as figuras grotescas dos Caprichos estão também aqui, de uma maneira sutil. Mas ele estava sempre espreitando o lado obscuro da vida, especialmente quando estava perto de morrer, com suas figuras horríveis escuras em preto e branco. Mas, claro, elas eram lindas (Em anexo).

Antes de iniciar The Disasters of War em 2007, Helnwein ainda fez a série Los Caprichos (2006), também inspirada em Goya, com nove retratos de uma criança deitada, sendo que em cinco deles ela aparece enfaixada e em quatro, ensanguentada. Uma décima tela ainda foi adicionada, na qual, em tons de azul, há um retrato sorridente do personagem Mickey – é exatamente o mesmo boneco retratado na série The Murmur of the Innocents, em Annunciation (Mouse 12) e Mouse VI, mas em ângulo diferente. Em 1995, esse mesmo objeto

87 já havia sido também pintado em Mouse, mas em preto e branco, e ele também aparece na série The American Paintings III – Paradise Burning, no quadro Midnight Mickey (2001).

Além deste brinquedo, em The Murmur of the Innocents e The Disasters of War há outra versão de um antigo design do Mickey, uma boneca pintada em verde e que outrora também aparece em vermelho, segurando um coelho, um boneco de coelho, e bonecas de animações japonesas, como a personagem Rei Ayanami de Neon Genesis Evangelion (1995). Apesar de ser uma temática nova e estrangeira a Helnwein, que está acostumado ao imaginário ocidental de Walt Disney, em entrevista (anexo), ele conta que percebeu que a cultura japonesa tem permeado o Ocidente, especialmente na vivência das gerações mais jovens.

No início, eu comecei a frequentemente usar personagens de quadrinhos nas minhas pinturas como um tipo de oposição ou contrapartida aos jogadores, por outro lado, muito realistas na minha relativa. Era normalmente o Pato Donald, mas nesses últimos anos eu decidi usar personagens de anime. Fazia mais sentido no contexto com os temas dos meus trabalhos recentes (Em anexo).

No começo da indústria da animação japonesa, na década de 1940, artistas nipônicos como Osamu Tezuka tinham na realidade, como base, as animações de Walt Disney, para somente mais tarde passarem a fazer suas produções com um estilo independente. Nos anos 1960 lançaram animações em série como ASTRO BOY, que foi distribuída nos Estados Unidos pela NBC, e no fim dos anos 1970, começo dos 1980, muitas animações passaram a abordar narrativas do gênero ficção científica, com robôs gigantes, os chamados mechas – estética marcante na cultura pop japonesa. Foi o caso de Mazinger (1972), Gundam (1979), Macross (1982) e Patlabor (1982). Ainda nos anos 1980, clássicos da ficção científica japonesa como Akira (1982) entraram em cartaz nos cinemas e na década seguinte, em 1995, a série Neon Genesis Evangelion chegou à televisão.

Mesmo assim, a estética característica à animação (anime) e aos quadrinhos japoneses (mangá) é o aspecto “bonitinho” e expressivo do design dos personagens, como indica KELTS (2006, p.207), que é um resquício da inspiração em Walt Disney e também em Max Fleischer. Esse atributo não se reserva apenas ao âmbito artístico, mas torna-se um fenômeno cultural e mesmo sociológico – quiçá antropológico – dentro e fora do Japão, expandindo-se para além do continente, dominando diferentes povos e adaptando-se a diferentes culturas,

88 podendo-se dizer à maneira que a cultura pop americana fez durante a segunda metade do século XX.

Alguns [personagens de anime] são simples propagandas, obviamente, vendendo tudo, desde itens de sex shop a jeans da Levis, mas outros são indicativos do espírito nacional. De yuru chara até yurui ou desenhos descontraídos e relaxantes são mascotes de mangá usados para representar quase todas as regiões do Japão, símbolos da identidade que seus governos desejam projetar. Mangá de esportes, um gênero que não só gerou público nos Estados Unidos, mas que também apresenta séries especiais de atletas reais que se apresentam ao vivo durante um evento atlético – atletas olímpicos, jogadores de baseball durante as Séries Japonesas, jogadores de futebol durante a Copa e assim por diante.

Se você vive no Japão por um longo período, você é capaz de esquecer que está constantemente sendo confrontado por personagens de desenho – até você partir. Quando eu retorno aos Estados Unidos, eu sou, pelo contrário, confrontado por modelos e estrelas de cinema. Fotografias de verdade, mas essas imagens são mais realistas?160 (KEATS, 2006, p.207).

Assim, a incorporação da cultura imagética japonesa não seria tão difícil para um país como os Estados Unidos, que já vive num ritmo e numa lógica semelhantes, como vê Keats e também Daniel Boorstin em The Image (1992). Mas o que teria realmente chamado a atenção dos americanos – e talvez do resto do mundo – não foi apenas a estética, mas que o mangá e o anime são “frequentemente menos inibidos e mais diversos que as animações americanas, mais constrangedores em suas narrativas e no desenvolvimento de seus personagens”161 (KEATS, 2006, p.209). A indústria de animação japonesa, ao perceber que nunca iria chegar aos pés da poderosa máquina hollywoodiana, escolheu artistas visuais inovadores que apostassem em formatos e narrativas não convencionais.

Pelo menos, para nós, as narrativas japonesas vêm de um lugar diferente – um lugar que realmente existe, onde as regras são genuinamente diferentes e onde a imaginação parece sem limites, livre para explorar os terrenos obscuros das fantasias infantis e – como em tantos videogames com munições bonitinhas – o lado mais luminoso do combate162 (KELTS, 2006, p.2010).

Assim como Helnwein havia vivenciado um choque cultural e se sentido maravilhado com as novidades da cultura pop americana e das criações de Walt Disney, as novas gerações, nascidas no fim do século XX e começo do XXI têm se aventurado e se surpreendido com os produtos japoneses, como confirma KELTS (2006, p.211): “Através do anime e mangá, adolescentes americanos hoje estão experimentando um senso similar de um desejo transcultural”163. Para o autor, isso poderia ser o resultado de um “puro exotismo irracional, uma paixão por um lugar que é consagrado pela qualidade de sua arte”164 ou ainda poderia ser 89 um reflexo da insatisfação com a arte local. Isto é, se um rato ou um pato falante um dia foram anormais e surpreendentes para as pessoas, o Japão estava apresentando algo ainda mais extraordinário com o anime e, mais tarde, com a franquia Pokémon.

Diferentemente dos ícones da Disney como Mickey, Donald, Dumbo ou Nemo, um rato, pato, elefante e um peixe-palhaço, respectivamente, ou o Zé Colméia da Hanna Barbera, Pikachu é uma representação animada de precisamente nada que conhecemos no nosso mundo, introduzindo aos americanos apenas um aspecto da liberdade criativa da cultura popular japonesa165 (KELTS, 2006, p.17).

De qualquer maneira, algo fica evidente: tal como os americanos um dia fizeram, atualmente são os japoneses que estão conquistando o mundo, mas não com armas e sim com imagens, como alerta o jornalista Douglas McGray em Japan’s Gross National Cool (2002). Talvez uma resposta “pacífica” após a bomba de Hiroshima e Nagasaki? Quando Helnwein insere em The Disasters of War 19 (2007) uma action figure de uma personagem de anime usando o tradicional uniforme escolar japonês, em estilo marinheiro (seifuku), em frente a uma cena de guerra na qual um soldado resgata uma criança em meio a carros flamejantes, fica também a pergunta se o artista está fazendo essa metáfora.

The Disasters of War 19 (2007), tinta a óleo e acrílica em tela, 162 cm x 152 cm 90

Quando questionado sobre como ele trabalha a relação Oriente-Ocidente nesses específicos trabalhos em que as action figures de anime são inseridas, Helnwein apenas comenta, na entrevista em anexo, que as bonecas servem como referencial sintético em oposição à criança real que aparece nas cenas retratadas. No entanto, propõe-se aqui uma interpretação que vai além do que Helnwein tenha dito na entrevista e em demais ocasiões, já que poucas vezes discorre sobre o uso do anime em sua obra. Esta é a de que o Japão estaria seguindo os passos dos Estados Unidos e conquistando o mundo, bem como, obviamente incluindo os estadunidenses, com a tática da cultura pop, reerguendo-se como nação a partir dessa estratégia.

Depois do bombardeio, em 1945, nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, o Japão permaneceu ocupado pelos Estados Unidos durante sete anos, ou seja, até 1952. Foi assim que o país se reestruturou economicamente e passou a criar sua própria cultura popular, sendo capaz de difundi-la nos países ocidentais, como aponta ZAMINELLI (2011, p.2).

Sem poder aquisitivo confortante a população necessitava de entretenimento barato. E nesta fase de renovação da aprendizagem japonesa que se destaca o mangaká Osamu Tezuka (1928 – 1989). Considerado o pai do mangá e uma das figuras mais importantes do Japão do século XX, Tezuka revolucionou a arte gráfica japonesa junto com a arte da animação (ZAMINELLI, 2011, p.3).

Além disso, a autora argumenta que “desastres naturais, ocupações ou ataques de países estrangeiros são acontecimentos que estão presentes na história do Japão” (ZAMINELLI, 2011, p.6) e, por isso, os japoneses estão em constante clima de reconstrução. Então, por um lado, enquanto Helnwein se utilizou da cultura pop americana para se refugiar das sombras da guerra, os japoneses também produziram “entretenimento barato” para confortar a população e, em breve, também passaram a exportar esses produtos, criando um hype.

O Japão está reinventando potências novamente. Em vez de pôr em derrocada suas desgraças políticas e econômicas, a influência cultural global japonesa tem apenas crescido. Na verdade, desde a música pop até os eletrônicos, da arquitetura à moda, da comida à arte, o Japão tem grande influência cultural, agora muito maior do que tinha nos anos 1980, quando era uma potência econômica166 (MCGRAY, 2002).

McGray menciona uma pesquisa feita pelo economista alemão Kurt Singer, Mirror Sword and Jewel, que na década de 1930 estudou o contraste entre a “plasticidade” e a “resistência” da cultura japonesa à entrada das influências estrangeiras em seu cerne cultural.

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Mas, atualmente, o jornalista acredita que essa questão já foi superada pelo país, que se tornou uma nação globalizada também, assim como os Estados Unidos.

Ele [o Japão] teve êxito não apenas ao equilibrar uma cultura flexível, absortiva, agradável e compartilhada com uma mais privada, doméstica, mas também ao levar vantagem nesse equilíbrio ao construir uma força comercial global cada vez mais forte. Em outras palavras, a crescente presença da cultura japonesa tem criado uma forte máquina de national cool.

É impossível medir quão legal é uma nação. National cool é um tipo de “poder suave” – um termo que o decano de Harvard Joseph S. Nye Jr. cunhou mais de uma década atrás para explicar de maneiras não tradicionais como um país pode influenciar as vontades de outros países ou seus valores públicos. E o poder suave não se quantifica nitidamente. Quanto da hegemonia americana moderna se deu por conta do grande terreno ideológico de sua democracia, por exemplo, por quanto de suas grandes franquias corporativistas, de Hollywood, do rock e do jeans, ou de sua capacidade de fascinar e também de intimidar? National cool é uma ideia, um lembrete de tendências comerciais e produtos, e um dom de um país em desová-los pode servir para fins políticos e econômicos. Como Nye argumentou nessa revista mais de uma década atrás, “Há um elemento de trivialidade e mania no comportamento popular, mas é também verdade que um país que está montado em canais populares de comunicação tem mais oportunidades de enviar suas mensagens e de afetar as preferências dos outros”167 (MCGRAY, 2002).

Dessse modo, o Japão se torna ainda mais visível, para além de seus videogames, músicas, roupas, animações, quadrinhos e sushi. Mas conforme seu exemplo ocidental, os Estados Unidos, o país além de vender sonhos também tem seus excessos. Isto é, enquanto Hollywood produz suas estrelas, o Japão também tem a mesma prática, com a diferença que seus ídolos se dividem entre seres humanos e sintéticos, isto é, animações. Como KELTS (2006, p.207) relata em seu livro, mesmo um nativo chega a comentar que a cultura japonesa pode ser considerada quase “infantil” por conta dessa grande presença de desenhos. Porém, tal visualidade no país já é antiga, vindo desde os ideogramas kanjis até a ikebana, que são tradicionais arranjos de flores. Além disso, a religião nacional, o xintoísmo, é politeísta e fundamentalmente animista, isto é, a crença de que “todas as coisas, mesmo os objetos inanimados, são habitados por kami, espíritos ou deuses”168 (Idem). Assim, o autor cita, em sequência, a construção do aeroporto Kansai, que possuía à época do livro uma representação em desenho, com olhos gigantes.

E como a música tubular e as canções de pássaros piando emitidas das caixas de som ao longo das plataformas de trem, áreas externas de compras e toda e qualquer fachada de loja, os vários personagens ilustrados tendem a adicionar uma mais suave e lúdica atmosfera, ou um lampejo de uma fantasia, de um sonho imaginativo a uma cultura urbana lotada, urgente e que trabalha intensivamente169 (KELTS, 2006, p.208).

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Afora esse lado kitsch, há ainda uma outra face que vai além das explosões ao estilo hollywoodiano e mesmo das batalhas intermináveis de animações como Dragon Ball Z (1989) ou das lutas travadas entre robôs gigantes (mechas). A cultura pop japonesa reserva um gênero de animações e quadrinhos pornográficos conhecidos como hentai que, como indica a tradutora Lisa Kato, é um termo científico que significa “metamorfose”: “Quando um inseto entra em ‘hentai’, significa que está em transformação’”170 (KELTS, 2006, p.127). A palavra é formada por dois kanjis: hen e tai, que significam algo como “estranha metamorfose/transformação”. O termo também é usado pelos japoneses como adjetivo para se referir a alguém com fetiche, isto é, a um “pervertido”. E um dos mais triviais temas nas histórias é o tipo da adolescente, estudante que veste uniforme tradicional japonês (seifuku), tal como as figure arts que Helnwein utilizou em seus quadros.

Uma das que mais chama a atenção, por exemplo, é a personagem que aparece com os joelhos e mãos apoiados no chão, nas obras The Disasters of War 7 (2007) e The Disasters of War 8 (2007) e que também retorna, sozinha, em The Murmur of the Innocents 9 (2009). Outra é a boneca da personagem Rei Ayanami, de Neon Genesis Evangelion, que vestida num uniforme mais adulto (apesar de a personagem, na história original, ser uma adolescente), aparece com o tornozelo e pulsos algemados a um poste, numa pose de inclinação sexual em The Disasters of War 6 (2007).

A existência de bonecas e de representações como essas, que no caso poderiam ser consideradas ecchi (erótico) em vez de hentai, na cultura pop japonesa acontece porque, desde os anos 1980, ocorre no Japão o que Setsu Shigematsu (1999) chama de "Complexo Lolita Erótico”, no qual os ilustradores de mangá têm tornado “norma” a estética chamada rorikon para os quadrinhos e animações japonesas. O termo originalmente se refere à predileção de homens de meia idade por garotas jovens que “poderiam ter idade para serem suas filhas” – isto é, tanto o termo quanto a tendência fazem menção à obra de Vladimir Nabokov.

Contudo, SHIGEMATSU (1999, p.129) aponta que, segundo o artigo The Beautiful Young Girl Syndrome: The Desire Known as Rorikon, de Akagi Akira, no mundo dos ilustradores de mangá e dos consumidores desses quadrinhos e animações, o estilo rorikon mudou seu sentido original e não mais aponta para casais formados entre homens de meia idade e garotas jovens, nem pornografia com uma criança, já que não seria a idade da garota o elemento atrativo, mas sua "fofura" (kawairashii). E é por isso que, mesmo no âmbito erótico, o kitsch japonês, o que é kawaii aparece com aspecto infantil. 93

The Disasters of War 7 (2007), tinta a óleo e acrílica em tela, 281 cm x 199 cm

Ao mesmo tempo, no entanto, essas bonecas colegiais são acompanhadas pela modelo infantil de Helnwein, que veste um uniforme militar branco, segurando uma arma enquanto tem os olhos enfaixados por uma bandagem – assim como Helnwein costumava fazer em suas primeiras ações (Aktionen) junto das crianças que convidava. Num misto de intenções eróticas representadas pelo brinquedo e de violência induzida pelo armamento, vê-se quase que um resumo de alguns dos produtos ofertados pela cultura pop, seja esta ocidental ou oriental, ainda que existam diferenças entre essas sociedades e suas culturas – tanto no sentido imagético quanto cultural.

Mas Helnwein parece ter a opinião de que a violência transmitida e reforçada pela cultura pop faz com que o público tenha seus valores afetados. No documentário The Silence of Innocence (2009), o artista comenta que “a violência toma um sentido diferente se você assiste mortes mil vezes por dia em videogames ou filmes”171.

Quando a dor, tortura, assassinato, quando corpos explodindo e sangue esguichando são nosso estoque de entretenimento, então há uma troca de valores para a morte. Tudo é tão instantâneo. Eu sou um assassino. Eu atiro em pessoas, explodo casas. E é tão real que se torna realidade. Uma nova realidade – sem consequências. Adicione a isso uma quantidade de psicotrópicos e drogas consumidas no Ocidente, especialmente nos Estados Unidos, o que distorce a realidade ainda mais. A combinação de todas essas influências pode contribuir possivelmente a alguém 94

fazendo um vídeo para anunciar que ele irá se matar e ainda muitos outros. E deixando uma mensagem final “Vocês se lembrarão de mim” antes de ir para o colégio e atirar a sangue frio todos à sua frente172 (SCHMID, 2009).

O Massacre de Columbine parece ser um acontecimento importante para Helnwein. Ocorrido em 20 de abril de 1999 no Condado de Jefferson, Colorado, Estados Unidos, o incidente envolveu dois estudantes, Eric Harris e Dylan Klebold, de 18 e 17 anos respectivamente, os quais atiraram em vários colegas e professores do Instituto Columbine. Eles mantinham, previamente, um site no qual publicavam seus níveis no jogo Doom, um game de tiro em primeira pessoa (first person shooter). Nesse blog, Harris fazia piadas e relatos sobre a escola, seus pais e amigos. Mas, em seguida, o estudante começou a postar instruções de como fazer explosivos, além de textos que demonstravam sua revolta contra a sociedade. Mais tarde, Harris também passou a fazer ameaças por meio do site.

Antes do ataque à escola, a dupla resolveu fazer uma série de gravações, na qual registraria todo seu arsenal de bombas e armas que foi mantido em segredo, mostrando como ambos haviam adquirido aqueles objetos ilegalmente e como conseguiram escondê-los em casa, enganado seus pais sobre suas atividades. Também filmaram a si próprios treinando tiro ao alvo em colinas e em regiões próximas ao Instituto Columbine. E no dia 20 de abril, trinta minutos antes do ataque, Harris e Klebold fizeram um vídeo de despedida pedindo desculpas aos pais e amigos. Além disso, é conhecido que Harris fazia uso de antidepressivos, por conta de seu comportamento agressivo e inclinações suicidas.

No entanto, também foi gerada polêmica em cima desse fato por conta de ambos os adolescentes serem jogadores de videogames de tiro e porque a dupla ouvia bandas de metal como KMFDM e Rammstein. Mas foi o americano Marilyn Manson que foi posto pela mídia como culpado pelo caso por conta de seus vídeos e sua estética, que poderiam ser capazes de incitar esse tipo de comportamento entre os jovens. “Os assassinos adoravam o esquisito do rock, Manson”173 e “Maníaco adorador do demônio disse às crianças para matarem”174 foram alguns exemplos de manchetes que acusavam o músico americano de ser incentivador do crime, apesar de mais tarde terem confirmado que a dupla sequer era fã de Marilyn Manson175.

Pouco depois Helnwein fotografaria Manson para a série The Golden Age (2003), que geraria mais outras quatro sequências e o clipe , parte do álbum The Golden Age of Grotesque (2003), além da direção de arte do clipe Doppelherz (2003) e da concepção da tour 95

The Golden Age of Grotesque (2003). Mas o mais importante é que nessa colaboração feita entre os artistas, houve uma oportunidade para que os dois trabalhassem o caso Columbine sobre o ponto de vista de que, também nesse incidente, eram crianças a segurarem armas.

Crianças e armas são um grande problema na sociedade atual, especialmente na América, explica Helnwein. Um aspecto dessas imagens se refere aos tiros do Instituto Columbine, quando Manson foi culpado. E agora todo o país está indo para a guerra. A América adora armas. Todos os dias você escuta sobre o abuso de crianças. Há casos com a Igreja Católica Romana. Nós estamos vivendo numa sociedade maluca. Acredito que um artista de verdade sempre irá refletir a sociedade na qual está vivendo (KERRANG, 2003).

Ver uma criança segurar uma arma vai contra a ideia da criança incapaz de se defender, da criança fragilizada, que é um pressuposto também acreditado por Helnwein, que diz: “Uma criança está à mercê, dependente do comportamento dos adultos. Crianças podem ser abusadas, crianças podem ser machucadas, não podem se defender”176 (SCHMID, 2009). No entanto, no momento em que uma criança empunha uma metralhadora, ela é, em tese, capaz de se proteger, de machucar os outros e a si mesma, causando massacres, como o de Columbine. Ela tem sua inocência ferida pelos males, pelas sombras do mundo, mas tem seus olhos cobertos com bandagem (como se isso reforçasse ainda mais as trevas em que ela está inserida) e mune-se enquanto veste a indumentária de um exército sombrio – lembrando que o casaco branco provavelmente se refere a um casaco naval, semelhante àquele utilizado por Marilyn Manson durante a sessão de fotos The Golden Age, que foi, inclusive, inspirado pela roupa da atriz em Seven Sinners (1940), durante a canção The Man’s in the Navy.

À esquerda, Marlene Dietrich, fotografia. À direita, The Disasters of War 24 (2007), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 242 cm x 195 cm 96

Em CERISOLA (2012), Helnwein comenta que desde muito cedo as crianças estão sob ataque e que, apesar de serem vulneráveis e dependerem da proteção dos adultos, algo que ele considera muitas vezes ausente, crianças são “muito resistentes e seu potencial espiritual e estético é enorme”177.

Crianças devem ser protegidas e consideradas algo precioso, importante. Incomoda- me ver como crianças são hoje negligenciadas, abusadas, maltratadas e oprimidas. O desafio é enorme, porque elas estão sendo envenenadas de muitas formas: químicos, a poluição do meio ambiente, as drogas nas ruas, remédios, a sociedade pornográfica, a mídia de massa, televisão, internet... Então, desde muito cedo, elas estão sobre constante ataque178 (CERISOLA, 2012).

Essa é a preocupação central do trabalho de Helnwein, desde suas ações até suas aquarelas, fotografias e quadros. Como ele explica em SCHMID (2009): “Eu queria mostrar uma pessoa – como criança e como um homem. Essas eram as imagens-chave da minha obra. O homem sendo o perpetrador, também, a criança, a vítima”179. E isso o artista diz, no documentário, logo após ser inserido um comentário em que menciona uma obra que, segundo ele, vem o “assombrando”. Trata-se do livro “O Aventuroso Simplicissimus”, publicado em 1668 por Hans Jakob Christoffel von Grimmelshausen.

A história é sobre uma criança órfã vagando entre as tropas em fúria, assistindo-as torturar as pessoas, embebedando-se. A criança está surpresa – ela não entende esses atos e descreve-os do ponto de vista de uma criança, descreve a surpresa diante desse estranho mundo adulto. As protagonistas das minhas pinturas, as principais atrizes são, na verdade, sempre garotinhas. De certa forma, eu vejo o mundo através dos olhos das crianças, nas minhas pinturas180 (SCHMID, 2009).

Em I Walk Alone (2003), quadro que faz parte da série The American Paintings III – Paradise Burning, é possível ver um reflexo dessa inspiração de Helnwein em “O Aventuroso Simplicissimus”, já que a pintura é uma garota vendada por bandagens a andar em meio a corpos espalhados no chão. Mas, por toda sua obra, a criança segue como uma espectadora e refém desse “estranho mundo adulto”, um mundo sombrio que tende a corrompê-la, a vesti-la com seus uniformes e a fazê-la agir violentamente, a munir-se contra diferentes formas de abuso, até mesmo contra a mídia de massa que um dia foi salvadora do próprio artista.

Na entrevista em anexo, Helnwein declara que crianças sempre foram para ele algo muito especial e que têm um “potencial utópico”: “Tudo é possível quando você olha para uma criança. E então, de alguma forma, eu comecei a ficar surpreso em como a sociedade destrói isso, em vários níveis, através da educação, de manipulação”. Para ele, essas

97 influências externas fazem com que as crianças “percam o brilho que elas tinham no começo” e assim, quando se tornam adultas, já “não há muito mais da esperança, daquele calor que há nos olhos das crianças”.

Elas [crianças] têm imaginação, contam histórias, inventam coisas. Seu universo é infinito. Mas para os adultos, tudo é limitado. Eles têm medo das coisas, são ansiosos. Eles perderam o próprio universo. Para mim, crianças são algo sagrado, algo como seres espirituais, acima de tudo. E, ao mesmo tempo, quando eu vi como esse mundo é algo brutal, como ele abusa das crianças, geralmente de várias maneiras, eu vejo isso como um tipo de metáfora para o conflito que está ocorrendo na história da humanidade. Como se a força brutal e física do universo material estivesse contra os espíritos, que são sensíveis, sutis, o oposto. Luz. Eu sempre pensei que crianças são as coisas mais lindas e saber que elas são violentadas e punidas e que elas estão sofrendo... Isso sempre foi algo que me assustou. Eu sempre estive pensando nisso e essa foi a razão pela qual eu comecei a pintar, porque esse era o assunto. Eu não sabia como lidar com isso. Ninguém falava sobre isso. Então, eu pensei: talvez eu desenhe. Então eu comecei a desenhar e a pintar e essa foi a verdadeira motivação e razão de eu ter começado a pintar (Em anexo).

Portanto, é possível perceber através desse relato que Helnwein emprega às crianças não apenas uma importância afetiva, uma preocupação, mas uma simbologia, uma metáfora artística que dá a elas um valor estético correlato às imagens. Ao observar os quadros, verifica-se a estética barroca já mencionada em capítulo anterior (vide capítulo 2.1), em que a personagem aparece em fundo vazio e iluminada por uma luz que vem de fora, de uma fonte não visível à cena retratada no quadro. Com isso, a criança não apenas é elemento estético de contraste cromático como também, simbolicamente, concorda com a fala de Helnwein ao ser representada como um ser de luz em meio às sombras do ambiente-cenário, representando, dessa forma, o mundo sombrio em que a criança-atriz se insere.

Propõe-se, desse modo, relacionar a criança, na obra de Helnwein, ao arquétipo junguiano da criança divina, o qual acaba por ser muito disseminado a tantas outras figuras mitológicas da criança, como a do Menino Jesus. Este, aliás, foi diversas vezes representado no período barroco, recebendo semelhante tratamento cromático, como explica RZEPINSKA (1986, p.93): enquanto a fonte de luz era frequentemente invisível no quadro, vindo de fora da tela, há ainda exemplos de obras em que o brilho “emana da Criança181, do Espírito Santo, ou dos anjos, assim sendo claramente de natureza metafísica”182. Dessa forma, como aponta JUNG (2000, p.159) a criança divina está sempre acompanhada de alguma característica mágica, mesmo no folclore, quando aparece “sob a forma de anões, elfos, como personificações de forças ocultas da natureza” ou ainda como o homúnculo de metal que representava os metais alquímicos “e principalmente o Mercúrio renascido em sua forma 98 perfeita (como hermafrodita, filius sapientiae ou como infans noster)”. O autor ainda considera que “graças à interpretação religiosa da ‘criança’”, sua figura era interpretada não apenas tradicionalmente, mas também como “irrupção do inconsciente” – isto é, mantendo a sua natureza anterior como Mercúrio. Por conta disso, o psicanalista formula mais à frente que o motivo da criança representa “o aspecto pré-consciente da infância da alma coletiva” (JUNG, 2000, p.162).

The Disasters of War 13 (2007), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 125 cm x 180 cm

Faz, ainda, parte do motivo da criança a noção de futuro, o que Helnwein constantemente menciona como sendo uma sensação de “esperança”:

Uma criança representa para mim uma oportunidade para um tipo diferente de humanidade. Ver uma criança significa esperança. Você sabe que esse ser, em

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princípio, é capaz de criar, de perceber. É altamente sensitivo. Cada criança é um artista183 (SCHMID, 2009).

JUNG (2000, p.165) indica que esse sentimento de antecipação pelo futuro está frequentemente associado ao motivo da criança e que é ainda mais comum que essa ânsia por desenvolvimento seja esperada que as crianças divinas realizem. Explicando a partir do processo de individuação, o autor argumenta que o indivíduo colocaria a criança na função de preparadora de uma futura transformação da personalidade e, nesse sentido, ela faria a síntese dos elementos conscientes e inconscientes da personalidade:

É, portanto, um símbolo de unificação dos opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador de completitude. Devido a este significado, o motivo da criança também é capaz das inúmeras transformações acima mencionadas (...) A meta do processo de individuação é a síntese do si-mesmo (JUNG, 2000, p.165).

Considerando aqui, no entanto, a criança como figura no processo não de individuação, mas na narrativa do mundo, ela viria como “portadora de luz, ou seja, amplificadoras da consciência, essas figuras de criança vencem a escuridão” (JUNG, 2000, p.170). Além disso, crianças têm como característica a androginia que, apesar de Helnwein só usar garotas como modelo, já houve oportunidades em que jornalistas confundiram-nas com meninos (KEATS, 2012). Esse aspecto é importante porque, uma vez que a criança tem a função da união dos opostos (luz e sombra), está na androginia, portanto no hermafroditismo, a representação mais forte dessa junção que, inclusive, vem desde os deuses cosmogônicos e que também era discutido mesmo durante a Idade Média e na mística católica ao abordar esse traço em Cristo.

Na medida em que a cultura se desenvolve, o ser originário bissexual torna-se símbolo da unidade da personalidade do si-mesmo, em que o conflito entre os opostos se apazigua. Neste caminho, o ser originário torna-se a meta distante da autorrealização do ser humano, sendo que desde o início já fora uma projeção da totalidade inconsciente. A totalidade humana é constituída de uma união da personalidade consciente e inconsciente. Tal como todo indivíduo provém de genes masculinos e femininos e o seu sexo é determinado pela predominância de um ou outro dos genes, assim na psique só a consciência, no caso do homem, tem um sinal masculino, ao passo que o inconsciente tem qualidade feminina. Na mulher, dá-se o contrário (JUNG, 2000, p.175).

Mas Helnwein dá mais atenção aos valores da anima, por isso escolhendo fotografar apenas garotas – ainda que, no início da carreira, tenha utilizado seu filho Ali como modelo, porque “se parecia um pouco como uma garota – tinha cabelo comprido. Ele era muito

100 paciente e tinha uma expressão incrível”184 (SCHMID, 2009). Em entrevista (anexo), o artista comenta que ao pensar em crianças e na forma como ele gostaria de retratá-las, estava claro desde muito cedo que eram garotas as melhores opções para como ele representaria essa imagem.

As qualidades que elas [crianças] têm, mesmo angelicais, qualidades não físicas. Eu as vejo mais em garotas do que em garotos, em geral. Mas em garotos há mais uma tendência à força física e a questão do “macho”. É diferente. Garotas têm um potencial a serem mais espirituais, eu acho (Em anexo).

Assim como mencionado anteriormente, a anima é a manifestação feminina no inconsciente masculino enquanto o animus é a manifestação masculina no inconsciente feminino. Contudo, cada um destes arquétipos possui uma característica específica, sendo que a anima, além de carregar sua natureza feminina, ainda traz em sua palavra a origem latina do verbo animar, dar movimento ao que é vivo: alma. No entanto, Jung não quis relacionar seu conceito aos dogmas cristãos que dizem respeito à alma, mas às ideias de um autor da Antiguidade chamado Macróbio e à filosofia clássica chinesa, “na qual anima (po e gui) é concebida como uma parte feminina ctônica da alma” (JUNG, 2000, p.71).

Sendo vista como alma (Seele, em alemão), a anima ainda é associada por JUNG (2000, p.209) ao termo em língua germânica saiwalô, que estaria próximo do grego όλος: multicolorido, cintilante, em movimento, mutável. Essa palavra, aliás, como menciona o autor, também carregaria o significado de astucioso e enganador, dando “verossimilhança à definição alquímica da anima como Mercúrio” (Idem). E assim retornamos ao conceito da criança como Mercúrio, mas também como anima, hermafrodita e, portanto, unificador de opostos.

Mas se levarmos em conta sua natureza anímica e alquímica como Mercúrio, devemos recordar também dos apontamentos feitos no capítulo 2.2, em que foi estudado o conceito da sombra junguiana e onde é mencionado que ambos os conceitos de anima e sombra estão constantemente próximos na obra de Jung. Isto é, “no sentido psicológico, a anima tem muitas vezes um amante ilegítimo, que personifica a sombra” (JUNG, 2011c, p. 297). Em parte porque a sombra faz parte do inconsciente humano, ambiente próprio à anima, da mesma forma que o Vampyroteuthis navega nas profundezas dos oceanos – mesmo que em certos momentos este suba demais à superfície e a pressão o faça explodir na forma sangue, outro elemento marcante na imagética de Helnwein e sobre o qual ele comenta:

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O sangue tem realmente um significado muito forte. Até mesmo mágico, mítico, considerando que eu cresci numa cultura em que o sangue tem uma forte relevância também. As primeiras imagens que vi quando criança eram de seres humanos torturados, encharcados de sangue. Jesus sendo flagelado, sua coroa de espinhos, o coração de Jesus de qual uma chama irrompe, escorrendo sangue. Então era sempre algo realmente sobre sangue. E a frase principal do Redentor: “Quem se alimenta de minha carne e bebe meu sangue tem vida eterna”. Na igreja nós cantávamos: “Jesus, derrama Teu sangue dentro do meu coração cristão”. E era sempre sobre sangue185 (SCHMID, 2009).

Como austríaco, Helnwein está acostumado a uma específica cultura, a qual ele, em entrevista para FISCHER, MICHAELSEN (2008) disse ser uma “tradição de trevas” (eine Tradition der Dunkelheit). Apesar de quando criança ter renunciado a realidade vienense e se refugiado nos quadrinhos do Pato Donald, mais tarde se mudando para Colônia, na Alemanha, e então para Kilkenny, na Irlanda, foi só assim, morando em outros países, que Helnwein passou a observar melhor as características de seu país natal.

De repente, eu vi que há algo, uma parte muito importante do meu lar espiritual e eu gosto dessa cultura da época do Barroco, quando você percebe que a Áustria sempre teve a morte e as trevas como uma importante parte da cultura. E é por isso que você tem a cultura austríaca com artistas como Kafka, Franz Xaver Messerschmidt, Schubert e outros grandes escritores. Há muitos artistas que estão interessados no outro lado, no lado obscuro. Mas ao mesmo tempo a arte austríaca tem um lado muito doce e brilhante que muito frequentemente vem à tona, vai aos Awards. Então você tem o mais doce dos doces e o mais obscuro dos obscuros, o que é algo realmente barroco. Acho que o Barroco foi um dos períodos mais importantes em Viena, porque você tem dois componentes históricos (Em anexo).

Na entrevista em anexo, Helnwein menciona a época em que a peste negra atingiu a Europa e especificamente a Áustria, matando milhares de pessoas no país, isto já no início do período barroco: “As pessoas continuavam morrendo e morrendo, havia buracos enormes nos quais os corpos eram jogados e ninguém sabia o que fazer. Então a morte era algo realmente próximo”. Com o tempo, o barroco se desenvolveu e a Igreja passou a coordenar ainda mais os assuntos, mandando construir grandes igrejas, compondo grandes sinfonias, erguendo esculturas, o que Helnwein chama de tática de contrainformação: “Porque os protestantes não têm imagens, eles não gostam de imagens, esculturas, vamos fazê-los ficar extasiados. Tudo o que havia em termos de estética e arte”.

Helnwein comenta que, por conta dessa estratégia, portanto, nas igrejas barrocas “tudo era teatro. Os tempos barrocos eram basicamente viver num palco”. O artista explica que “nessas igrejas você via Eros e os mais belos anjos e mulheres, uma garota em êxtase e um

102 esqueleto dançando, você via crânios e morte. E também, numa igreja católica há muito sangue, dor e tortura”. Porém, no barroco, tudo isso era teatral: “Não era algo realmente assustador, nem ruim ou mal, como na Espanha, na Inquisição”. Para Helnwein, esse foi o momento em que a Igreja Católica tornou-se “absolutamente cruel, totalmente destrutiva, muito assustadora”, enquanto que no barroco, era apenas teatro, palco. “Era um tempo de visões muito artísticas da morte, humor, êxtase, beleza, Eros, tudo num mesmo palco”.

E eu acho que isso tem uma grande influência na Áustria, porque Viena, pelo que sei, é muito teatral. Tudo é tipicamente e intensivamente performático. Mesmo quando nós falamos, é sempre performance. Os vienenses são tão poéticos com as palavras, com um monte de expressões de linguagem... Isso é a Áustria para mim (Em anexo).

Assim, o uso do sangue em suas obras passa a ser um prolongamento simbólico de suas experiências e observações como austríaco, levando em consideração essa teatralidade e convivência harmônica entre opostos, novamente trazendo uma proposta barroca. Nesse caso, sua função é simbolizar a ferida, o sangue fresco derramado sobre a vítima, que por vezes aparece enfaixada.

Mas na obra de Helnwein, chega a não ser tão necessário o sangue para que sua intenção seja passada ao observador – portanto, realça-se seu fator teatral. Essencialmente retratista, ele procura escolher as melhores expressões faciais para que a mensagem seja traduzida em seus quadros. No documentário The Silence of Innocence (2009) é possível ver o processo de como Helnwein trabalha com a modelo em seu estúdio, a mudança do comportamento da criança sorridente e agitada quando o artista pede para que ela deite no chão e pense que ninguém gosta dela, para que ela se mova lentamente diante da câmera, assim mudando sua expressão.

A transformação de um rosto, tanto interna quanto externamente, é um processo fascinante. Um rosto realmente muda o tempo todo, segundo a segundo, e qualquer tipo de ocorrência interna é projetado de uma forma através da expressão186 (SCHMID, 2009).

Como aponta BAITELLO (2012, p.100), “dentre todos os tipos mais poderosos de imagens está a imagem do rosto” e está no rosto humano reunido “um grande número de movimentos e (micromovimentos) gestuais”. Assim como em outros primatas, na face humana há “um elevado número de traços expressivos: a boca (...) e seus movimentos, os diferentes olhares (que podem revelar as intenções e disposições), o franzir da testa e os movimentos de sobrancelhas, o balançar de cabeça, os muitos músculos faciais”.

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Por conta dessas constantes modificações é que os hiperrealistas, que compõem suas imagens com tantos detalhes, acabam utilizando fotos como seus suportes – mesmo porque não apenas as expressões mudam constantemente, como as pessoas vão se modificando com o tempo, envelhecendo. Mas dentre todos os detalhes do rosto, talvez sejam os olhos a principal parte a decidir a expressão facial de um indivíduo. Ainda que as modelos posem muitas vezes de olhos fechados nas imagens de Helnwein, é na “dinâmica dos olhos do retrato [que se pode] mostrar diante do espectador de modo linear quando lhe mostram para o que se dirige o semblante do olhar representado no retrato” (LOTMAN, 1993). É de competência do fotógrafo, assim como do pintor, transmitir esse olhar através da lente, bem como na tela.

Emoções podem, assim como devem, dominar meios técnicos; ainda que a verdade seja também uma grande força a ser negligenciada; é como a gravidade do grande planeta ao qual nós estamos invisivelmente grudados: ubíqua, teimosa, indispensável. O retratista, assim como a maioria dos outros fotógrafos, é obrigado a trabalhar com o que está lá, e ele escapa a essa obrigação ao seu próprio risco; mas ao cooperar com isso, ele faz milagres187 (MADDOW, 1977, p.400)

E nesse teatro de olhares e expressões, Helnwein conta a história de uma criança arquetípica que é divina, mas também abandonada. Ela é posta no vazio da tela, que é preenchida, às vezes, apenas por uma cama coberta por um simples lençol branco ou então quando é confrontada por brinquedos desproporcionais, num lusco-fusco assombroso. É como se “nada no mundo [desse] boas-vindas a este novo nascimento, mas apesar disso ele é o fruto mais precioso e prenhe de futuro da própria natureza originária; significa em última análise um estágio mais avançado da autorrealização” (JUNG, 2000, p.169).

Nesse ambiente inóspito, essas crianças estão sendo, aos poucos, corrompidas. Seus brinquedos são assustadoramente desproporcionais, por vezes eróticos, pintados em vermelho como se estivessem banhados de sangue (The Disasters of War 1). Tal qual numa linha narrativa, essas crianças-atrizes se mostram por vezes sozinhas, frágeis e talvez mesmo assustadas, ainda em trajes infantis (vestido branco, sempre reforçando na cor a pureza da personagem), para então reaparecer, em sequência mesmo numeral (The Disasters of War 3), enfaixada e suja de sangue diante de si mesma como um brinquedo jogado sobre a cama, vestida com a farda que fatalmente vestiria no futuro: o traje sombrio da criança corrompida e que deixa de ser criança ao perder seu brilho original, o qual já não existe nos adultos, como indica Helnwein, na entrevista em anexo.

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À esquerda, Murmur of the Innocents 13 (2009), tinta a óleo e acrílita sobre tela. À direita, instalação de Helnwein na Cidade do México, em 2012, fotografia

Apesar de em 2012 o artista ter fotografado crianças mexicanas, de etnia latina e, portanto, de pele morena, para as séries Santos Inocentes e Faith, Hope and Charity, Helnwein comenta que, no início de sua carreira, ele só tinha a oportunidade de trabalhar com garotas austríacas – “não tínhamos negras na Áustria, naquela época” (em anexo). Portanto, ainda que o uso da pele pálida não seja uma constatação em suas pinturas e fotografias, Helnwein reforça esse aspecto nas crianças fotografadas usando maquiagem branca em seus rostos, como é possível ver em SCHMID (2009).

Eu sempre estive enfatizando a pele branca, muito pálida, porque quando elas [as crianças] estão pálidas, há ainda menos pedaço de carne, está mais dissolvido no espírito. Então quando fotografei as garotas no México, eram principalmente garotas com pele escura e eu as achei incrivelmente bonitas e tão inocentes, tão incríveis. Mas com uma estética de cor diferente. Foi fascinante, um grande trabalho (Em anexo).

Assim como essas garotas no México, a (s) garota (s) fotografada (s) em The Murmur of the Innocents e The Disasters of War também passa essa mesma inocência, mas através dessa estética pálida, de reforço cromático no tom branco, à qual Helnwein estava acostumado. E tanto nessas obras anteriores quanto nas fotografias feitas com as crianças mexicanas, há esse resquício da inocência representada pelo olhar da criança. O artista explica essa vivência à revista Esquire a partir de seu trabalho feito na Cidade do México:

Eu não vivi no México e por essa razão eu tenho um ponto de vista estrangeiro. Mas acima de tudo, o que eu reconheço é o sofrimento humano, eu posso ver que a mesma tragédia se repete e essa tragédia é provocada pela ganância e a falta de respeito pela dignidade humana, e é sempre mais óbvia a falta de respeito para com as crianças. Esse é o verdadeiro problema. Quando eu vejo o México de uma perspectiva externa, é muito triste, porque é tradicionalmente um país de pessoas agradáveis e felizes. Quando você pensa sobre o potencial que existe numa sociedade como essa, e ao mesmo tempo a enorme quantidade de sofrimento e maldade que chegou ao México –

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drogas, traficantes, corrupção, assassinatos intermináveis e, especialmente, pessoas sem ajuda – nós temos a impressão que ninguém acredita que há algo que possa ser feito. É assustador. Mas acima de tudo eu penso nas crianças, e que precisamos começar a proteger e defendê-las.

Para a instalação do Monumento a La Revolución, eu fotografei e trabalhei com crianças mexicanas. A inocência e felicidade delas era muito tocante, parecia que elas não estavam cientes da maldade e das ameaças dessa sociedade, porque seus pais a protegiam disso. Se uma criança é protegida por tempo suficiente para ganhar confiança e força para lutar contra, então há esperança188 (CERISOLA, 2012).

Como Helnwein comenta, essas crianças que ele teve a oportunidade de fotografar no México tiveram a proteção de seus pais e, talvez por isso mesmo, tinham em sua face a inocência que o artista procurava para capturar com suas lentes. Caso contrário, elas já estariam machucadas o suficiente por um mundo de sombras, o mundo dos adultos, de violência, o qual as obriga a empunhar armas e portar-se não mais como garotinhas feridas, em vestidos rendados, mas em fardas militares, que já carregam em si uma simbologia e um instinto bélico, adotando uma nova postura diante do jogo.

Utiliza-se o termo jogo porque retornamos à questão pós-histórica proposta por Vilém Flusser. Dessa forma, entendemos assim que, apesar de Helnwein talvez não ter seguido essa mesma interpretação, no entanto, ele demonstra preocupação com questões como a liberdade e com a criança como indivíduo criativo e o pensamento infantil como liberador em comparação ao adulto – seguindo-se a lógica da citação de Picasso frequentemente lembrada por Helnwein (“Todas as crianças são artistas. O problema é como permanecer um artista quando você crescer”). Com isso, propõe-se aqui a metáfora do adulto como funcionário e da criança como o artista que subverteria o aparelho e o programa a partir de sua imaginação, constantemente brincando com o aparelho e com o programa até esgotar suas possibilidades – uma vez que a própria brincadeira infantil consiste, enfim, em repetição, como indica BENJAMIN (1987, p.252): “Sabemos que a repetição é para a criança a essência da brincadeira, que nada lhe dá tanto prazer como 'brincar outra vez'”.

Em CAILLOIS (1990), vemos que o jogo e a brincadeira até antes de Johan Huizinga, autor de Homo Ludens (1955), obra em que o autor discorre sobre a importância de tais práticas na vida humana, eram algo considerado apenas como uma prática infantil, próprio de crianças. No entanto, Caillois reforça que o jogo está inserido na cultura humana e chega a classificar os tipos de jogos e definir as práticas lúdicas, exemplificando-as dentro do universo adulto.

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O espírito do jogo é essencial à cultura, embora jogos e brinquedos, no decurso da história, sejam efetivamente os resíduos dessa cultura. Incompreensíveis sobreviventes de uma situação caduca ou empréstimos pedidos a uma cultura estrangeira e que se encontram destituídos do seu sentimento naquela em que se inserem, são sempre alheios ao funcionamento da sociedade onde aparecem. (...) Então, não seriam certamente jogos, no sentido em que se fala de jogos de crianças, mas pelo menos comungavam da essência do jogo, precisamente como Huizinga a define. Mudou a sua função social, mas não a sua natureza (CAILLOIS, 1990, p.81).

Mais adiante, contudo, o autor passa a entender que os jogos infantis, em sua maioria tendem a ser miméticos (Mimicry), no qual os pequenos imitam os adultos:

Os jogos das crianças consistem sobretudo, e muito naturalmente, na actividade mimética em relação aos adultos, da mesma maneira que a sua educação tem por objectivo prepará-los para virem a ser, por seu turno, adultos carregados de efectivos, e já não imaginárias, responsabilidades, daquelas que não basta dizer “não jogo mais” para que sejam abolidas. Ora começa exactamente aqui o verdadeiro problema, pois é preciso não esquecer que os adultos, por sua vez, não deixam de se dedicar a jogos complexos, variados e até perigosos, que continuam a ser jogos pois são vividos como tal. Embora a fortuna e a vida possam estar envolvidas, tanto ou mais do que nas actividades ditas sérias, os jogos distinguem-se (imediatamente) destas últimas, ainda que estas apareçam ao jogador como sendo menos importantes para si do que o jogo que o apaixona. De facto, o jogo mantém-se delimitado, fechado e, em princípio, sem uma repercussão relevante na solidez e na continuidade da vida colectiva e institucional (CAILLOIS, 1990, p.85).

Assim, o autor assume que as crianças, mesmo em seus jogos, estão condicionadas a entrar à fase adulta, imitando-os – isto é, na brincadeira de boneca em que a garota finge ser mãe ou quando o garoto finge ser soldado ao carregar armas de plástico antes mesmo de ser chamado para o combate real. A questão é que, mesmo que, no futuro, a garota não se torne mãe ou o garoto não faça parte do exército, de qualquer maneira, eles estão antecipando uma prática adulta quando ainda crianças. O programa já os vai moldando para se tornarem funcionários sem mesmo perceberem, porque são todos, inevitavelmente, parte do programa até se “tornarem artistas” – crianças que por ventura escapem desse desejo de uma maturidade funcionária.

Talvez seja por isso que Helnwein critica o sistema educacional na entrevista em anexo e diz em CERISOLA (2012) que sua melhor obra de arte foi a forma como ele criou seus filhos: “Eu os dei liberdade infinita, respeito e amor”189.

A coisa mais importante, quando você tem um filho, é respeitá-lo ou respeitá-la como alguém único, precioso e importante, mesmo que ele tenha um pequeno corpo, pense nele ou nela como uma grande personalidade.

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Acho que eu fiz isso do jeito certo: meus filhos tiveram liberdade, eles sempre estiveram em contato com a arte. Talvez seja por isso que todos eles se tornaram artistas – músicos, pintores e escritores – e isso é algo que me faz feliz. Eu tenho uma família grande, com um monte de filhos e netos, e a melhor parte é que eles são todos artistas; então quando nós nos reunimos para o jantar, é um prazer brincar com eles e conversar sobre arte, música, política, história e filosofia190 (CERISOLA, 2012).

Mas ainda que a criança esteja livre para jogar e brincar e que no próprio jogo e na brincadeira existam as ideias de liberdade e invenção, CAILLOIS (1990, p.11) indica que há, por outro lado, conceitos de limites e de regras que definirão a prática, indicando o que é permitido e o que é proibido. Por conta disso, o jogo pode ainda ser um processo civilizacional e disciplinador, apesar de Caillois supor que aos jogadores a “única coisa que faz impor a regra é a vontade de jogar” (Idem). Contudo, nesse nosso caso, levando em conta a lógica flusseriana, os jogadores inevitavelmente seguem as regras pelo fato de estarem programados para tal e, no máximo, haveria a possibilidade de tentar achar brechas ao experimentar combinações “de sorte e de destreza, dos recursos recebidos do azar ou da sorte e da mais ou menos arguta inteligência que as põe em prática e que trata de tirar delas o máximo proveito” (Ibidem) – porque o jogo com os aparelhos é uma brincadeira com o absurdo e não depende tanto da inteligência quanto do acaso, como visto anteriormente, no capítulo 3.1.

Como aponta HUIZINGA (2007, p.235), "a vida deve ser vivida como jogo". Desse modo, é preciso continuar brincando, jogando, repetindo e contando com o acaso, persistindo contra a lógica do absurdo dos aparelhos sombrios, supostamente representados ora por brinquedos gigantes encobertos por sangue, por elementos eróticos que se entremearam na cultura pop, pelo cenário da guerra e pelo martírio da criança divina e abandonada ao abdicar de sua inocência para mesmo, por vezes, de olhos vendados (talvez feridos ou apenas alheios à vergonha de seus atos), segurar armas e destruir aquilo que a fere: porque ninguém mais, senão ela mesma, pode defendê-la. Por isso as crianças de Helnwein são ora indefesas, feridas e inocentes, mas também fortes e provocativas.

Seu assunto é a condição humana. A metáfora de sua arte, apesar de incluída em seus autorretratos, era dominada pela imagem da criança, mas não a criança despreocupada e feliz da imaginação popular. Em vez disso, Helnwein criou uma imagem profundamente perturbadora, mas convincentemente provocadora da criança ferida. A criança cicatrizada fisicamente e a criança cicatrizada emocionalmente, por dentro191 (JOHNSON, 2004).

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Robert Flynn Johnson vai ainda mais adiante citando o historiador de arte Peter Gorsen que, ao analisar a obra de Helnwein, argumenta que a criança é a “personificação da inocência, da desproteção, do indivíduo sacrificado à mercê da força bruta”192 (apud JOHNSON, 2004). A criança, “como inocente, criança de luz, cujas feridas na cabeça e nas mãos emitem luz como stigmatas irradiantes, (...) é tornada heroína ao ser uma sofredora e uma figura salvadora”193 (Idem). Assim, Johnson menciona em seguida as feridas de Cristo e o martírio dos santos, tal como aqui lembramos dos stigmatas de Anna Katharina Emmerich, freira agostiniana nascida no século XVIII, beatificada em 2004 pelo papa João Paulo II, e que desde criança já tinha visões. Em diferentes quadros, Anna Katharina aparece com a cabeça enfaixada com bandagens, assim como na obra The Ecstatic Virgin Anna Katharina Emmerich (1885), do pintor austríaco Gabriel von Max.

À esquerda, The Ecstatic Virgin Anna Katharina Emmerich (1885), de Gabriel von Max, óleo sobre tela. À direita, Crocodile Rock (1978), de Gottfried Helnwein, aquarela em papel cartão

Em análise da exposição da série Angels Sleeping (1999), composta por quadros de fetos deformados que também fizeram parte de uma série fotográfica de mesmo nome, também de 1999, das instalações Apokalypse (1999), Between Heaven and Earth (2000) e SOUL (2005)194, OZUNA (2008) diz que a série de pinturas poderia ainda se chamar “Todos saúdam a criança ferida” (All Hail to the Wounded Child) pelo fato de que o centro das obras são as “irreparáveis crianças feridas (tanto externa quanto internamente) como inocentes vítimas da guerra”195.

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As crianças nas obras de Helnwein podem também representar a criança perdida ou destruída em todos nós, não apenas vítimas da guerra, mas vítimas da sociedade moderna, com toda essa violência estúpida e atração perversa às passeatas agressivas e confusões. Se há uma trilha sonora para essa exposição, seria um longo e infinito grito196 (OZUNA, 2008).

A guerra, portanto, é apenas uma das opções de violência às quais a criança pode estar submetida e também uma metáfora na obra de Helnwein, como ele menciona na entrevista em anexo. Nascido logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e sendo austríaco, o artista cresceu em meio aos escombros e à memória recente do conflito e à sombra do que havia sido o nazismo. Apesar de este aparecer diversas vezes de maneira literal em sua obra, seja em forma de uniforme ou de símbolos e personagens, nesta pesquisa considera-se que, acima de tudo, Helnwein utiliza o fato histórico como uma alegoria desse contexto violento em que a criança-atriz está inserida como ser de luz em contraponto à sombra representada pelo nazismo, já previamente, no capítulo 2.2, também relacionado à sombra junguiana. A seguir, ao observar a série Epiphany e demais imagens em que esses ícones específicos aparecem na obra de Helnwein, entenderemos melhor essa relação.

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3.3 Epiphany: assombrações do nazismo

A série Epiphany (1993-1998) consiste em oito telas feitas com tinta a óleo e acrílica, seguindo o mesmo estilo monocromático de The American Paintings, em tons azulados. Aqui, no entanto, a temática pop não faz remitência aos ícones da cultura americana ou japonesa, mas sim à mescla das temáticas de pinturas renascentistas e barrocas ao mundo contemporâneo. Isto é, a linha narrativa bíblica se encontra com a realidade do século XX, no que concerne tanto à tecnologia das comunicações e a vivência em torno dela, bem como à Segunda Guerra Mundial.

Com isso, observamos quadros como Annunciation (1993), no qual uma garota moderna vê televisão e é surpreendida por um vulto de anjo que do aparelho escapa e, conforme diz o título, parece anunciar, assim como nos quadros antigos (os quais, por consequência, seguem a liturgia), que a Virgem Maria conceberia Jesus Cristo. A passagem, inserida no Evangelho de São Lucas, descreve que o anjo Gabriel teria entrado onde Maria estava e lhe falou:

“Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo”. Ela perturbou-se com estas palavras e começou a pensar qual seria o significado da saudação. O anjo, então, disse: “Não tenhas medo, Maria! Encontraste graça junto a Deus. Conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. Ele será grande; será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai. Ele reinará para sempre sobre a descendência de Jacó, e o seu reino não terá fim (Lucas 1:26-38).

Em seguida, novos quadros voltam a apresentar o universo infantil, logo após o nascimento desse Cristo prenunciado. Desta vez, no entanto, a criança aparece acompanhada da mulher tornada mãe, Madonna, a Virgem Maria que é capaz de dar suporte ao frágil e deformado nascituro, como se vê em Untitled (after Andrea Mantegna197), de 1993. Inspirada no quadro Madonna and Child, pintado por Andrea Mantegna por volta de 1480, a tela de Helnwein se esmaece em sombras ao representar mãe e filho quando o austríaco, contudo, inclui a criança enrolada em bandagens, como se o corpo desta estivesse ferido.

JOHNSON (2004) reconhece nos detalhes desta obra que o Cristo de Helnwein aparece com o rosto “terrivelmente desfigurado e mutilado”198 e que no ano em que o artista teria divulgado a imagem, ele estaria simbolicamente “confrontando a hipocrisia dos sérvios cristãos que, enquanto conduziam seu reino de terror e assassinato, sob o eufemismo de ‘limpeza étnica’, mantiam a defesa do cristianismo contra o avanço dos muçulmanos”199. Para 111 o autor, trata-se de a “história se repetindo e Helnwein utiliza a história para comentar as mais recentes falhas da civilização na tentativa de ser civilizada”200 (JOHNSON, 2004).

Com isso, Helnwein passa a ter a função de transmitir uma mensagem através de suas obras, da maneira que somente a arte seria capaz de fazer. Na entrevista em anexo, ele mostrou acreditar que, diferentemente da mídia, artistas (mesmo os midiáticos) podem atuar na sociedade com um papel distinto e atingir o público de outra maneira quando o assunto é violência, horror ou dor.

Como artista, acho que há uma parte da arte em que eu quero educar e inspirar as pessoas. E então eu espero, através da estética e educação, que você possa inspirar as pessoas. Acho que é possível, mas não diretamente. A maioria das pessoas duvida que a arte possa fazer isso diretamente, mas acho que a arte é a mais poderosa coisa que existe, justamente porque ela não é direta, não é certa, você leva tempo, você pode ser muito sutil. Não é diretamente visível, mas a arte pode transformar, mudar tudo. E a ausência da arte é um desastre. Porque em várias ditaduras, com Hitler, Mussolini, Franco, Mao, você tem uma ausência de arte, a arte é suprimida, porque eles sabem, a arte é um problema para eles, então eles precisam queimar livros, poemas, música. Poucos artistas podem mudar isso. Porque a estética viaja muito mais rápido que discursos estúpidos de ditadores, assim como uma música ou algo estético viaja muito mais rápido que qualquer outra coisa tão rápido quanto a velocidade da luz (Em anexo).

A série Epiphany, dessa forma, tende a ser mais pontual ao inferir precisamente em certos assuntos específicos, como, por exemplo, o tema do nazismo, que é uma constante na obra de Helnwein. Mesmo este tendo uma carga metafórica, como será analisado mais adiante, ele não deixa de aparecer nas imagens, seja de maneira indicativa ou literal, tal qual acontece em Epiphany I (Adoration of the Magi), de 1996. Como mencionado no capítulo 1.1, essa série chegou a ser exposta em Kilkenny, na Irlanda, em evento que causou polêmica devido ao seu conteúdo misto, porque combina elementos bíblicos e históricos, no que diz respeito à imagética nazista, quando substitui os reis magos por oficiais nazistas quando estes visitam Maria na passagem litúrgica (Mateus 2:11).

Os rostos dos oficiais em uniformes nazistas observando seu líder são genuinamente tirados de uma fotografia201. Adolf Hitler é substituído pela figura sentada de uma jovem e distinta mulher loira ariana num vestido branco, segurando com ambas as mãos, sobre seu joelho, uma criança em pé, nua e de cabelos estranhamente escuros, a qual tem em seu rosto certa similaridade com seu predecessor na fotografia original. A face da Madonna, mostrando seu filho a ser honrado pelos pastores que se ajoelham, é quase uma paráfrase literal da pintura intitulada La Madonna Del Rosario, finalizada por Michelangelo Merisi da Caravaggio, em 1607202. Helnwein evidentemente conhece essa pintura muito bem, já que ela pode ser vista no Museu Kunsthistorisches em Viena. Ao se ajoelharem, religiosamente prostrados diante da Madonna, os pastores são transformados em assegurados e assertivos imperiosos oficiais da SS e 112

Wehrmacht, decorados com cruzes de ferro e folhas de carvalho. Em contraste com o original, a Madonna abaixa seus olhos para longe do direto e superior olhar do oficial da SS que se prostra à sua frente, do lado esquerdo, assim como também [foge] do nitidamente profundo olhar do oficial da Wehrmacht à direita, que imprudentemente examina o bebê Jesus nu. A conotação de exame da pureza racial é relativamente óbvia e requer nenhum lembrete. Na imagem, Helnwein trabalha sincreticamente com a memória histórica e cultural. Ele intercala entre os motivos da obra de arte da pintura barroca italiana com a autêntica documentação do barbarismo, tomada a partir de, entre tantos outros recursos, mas não exclusivamente de, o ambiente da cultura e da educação germânicas203 (NEDOMA, 2008).

Aparentemente, assim como PASCAL (2006), NEDOMA (2008) e BREMBECK (1997) também chegaram à mesma conclusão de que o bebê carregado pela Madonna ariana possui as feições de Adolf Hitler, apesar de o último ter posto no título de seu artigo que "Hitler é melhor como Virgem Maria" (Hitler ist besser als Mutter Maria). De qualquer maneira, a criança não escapa da inspeção racial, seja ela no papel do Führer ou de criança como futuro, daí podendo ser relacionada à nação que a Madonna-Hitler tem em suas mãos. Mas o que chama a atenção no quadro e o que faz com que a obra seja tão sensível ao público é o fato de Helnwein ter relacionado a cultura cristã ao culto do Führer na era nazista.

A estratégia de movimento dentro de uma fissura, as trocas de sentido criadas nos elementos individuais da composição pictórica, usando uma precisão quase mágica de representação, dá a Helnwein a possibilidade de criar novas conexões, pontes que providenciam um atalho de entendimento de verdadeiros significados do conteúdo dos verdadeiros eventos históricos, os quais, em adição, são frequentemente incompletos ou estão, portanto, sem solução e resultado204 (NEDOMA, 2008).

Em JOHNSON (2004), é possível verificar a própria anotação de Helnwein a explicar suas intenções quanto à série Epiphany, quando descreve o seguinte, com relação à trilogia de quadros Epiphany I (Adoration of the Magi), de 1993, Epiphany II (Adoration of the Shepherds), de 1998, e Epiphany III (Presentation at the Temple), também de 1998:

Na trilogia Epiphany, eu me refiro diretamente à minha (nossa) experiência histórica. A mais significante questão na linha do tempo ocidental é o Cristianismo e o mundo predominantemente masculino que conquista e oprime. O constante assassínio dos “fracos” – mulheres, crianças, os judeus e outras etnias, minorias, por meio das Guerras Santas, Cruzadas e o constante extermínio dos inferiores205 (apud JOHNSON, 2004).

Numa empreitada que poderia ser vista como blasfêmia, Helnwein circunda a Madonna e a criança com oficiais nazistas e a transforma numa loira ariana kitsch a segurar o Salvator Mundi que ao mesmo tempo carrega a luz do filho de Deus e a sombra do anjo caído.

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Segundo os gnósticos, Lúcifer seria a sombra de Jesus, isto é, a face invertida do filho de Deus, daí existindo até mesmo a expressão Christus Lúcifer. Escreve Samael Aun Weor, conhecido também como Mestre Samael, autor colombiano ligado ao ocultismo e ao gnosticismo:

Resulta a todas as luzes claro e evidente que Lúcifer é a antítese do Demiurgo Criador, sua sombra viva, projetada no fundo profundo do microcosmos homem. Lúcifer é o guardião da porta e das chaves do santuário, para que não penetrem nele senão os ungidos que possuem o segredo de Hermes206 (WEOR, 1972, p.9).

Tal natureza dupla é apontada conforme a criança do quadro Epiphany I apresenta um semblante que lembraria o de Hitler ao mesmo tempo em que representaria, dentro do contexto narrativo, a figura de Cristo no colo da Virgem Maria dentro do modelo escolhido pelo artista. Desse modo, o estudo visa a entender, além das questões políticas e históricas da temática abordada por Helnwein, mas principalmente quais seriam as metáforas e poéticas próprias que o artista oferece através de sua obra. Como referido na entrevista em anexo, Helnwein estaria utilizando tais elementos, no caso, o nazismo, tanto por sua suma importância e impacto, mas também por conta da proximidade, geográfica e temporal, dada a biografia do artista.

Acho que é algo mais simbólico, mas também obviamente toca no assunto. Não estava totalmente abordando essa história em específico [período nazista], eu só a usei porque estava muito próxima ao meu passado. Há certamente alguns tópicos estéticos e aspectos que são mais simbólicos, mas é amplo, não é apenas o nazismo que vem diretamente, eu apenas o usei. Como pintor, eu posso utilizar qualquer coisa e eu gosto de usar pessoas, como você vê, e meu trabalho é principalmente feito de pessoas e rostos e eu usei muitas pessoas da história, imagens e gente que conheci. Mas é um significado mais simbólico, eu acho (Em anexo).

Assim, a pesquisa procura entender o nazismo na obra de Helnwein além do seu significado histórico e político, mas principalmente arquetípico, tornando-se uma metáfora daquilo que a sombra junguiana bem resume em seu conceito. Quando questionado a respeito disso, Helnwein, na entrevista anexada, comenta que seus trabalhos não falam especificamente de um período da história, mas se utilizam de uma estética e de elementos estéticos, de objetos e de temáticas para mencionar algo mais amplo. Isto é, o nazismo seria uma representação, um ícone, um exemplo dos desdobramentos da sombra.

[O tema da minha obra] não está situado em um ano específico da história, eu apenas uso para mostrar... Mas é totalmente num sentido universal. Os lugares obscuros da humanidade vêm de muito antes dos tempos nazistas, obviamente. E reincidem hoje.

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As pessoas não usam uniforme mais, mas esse tipo de trevas continua por aí (Em anexo).

Assim como visto no capítulo 2.2, quando foi estudado o conceito da sombra junguiana, em determinado momento na obra de Jung, a ascensão do nazismo foi relacionada à sombra e à ascenção da deidade Wotan – e do mesmo modo foi feita uma comparação ao livro Vampyroteuthis infernalis, de Vilém Flusser. Desse modo, retomamos aqui essa ideia, fixando-se primeiramente na imagem do quadro Epiphany I (Adoration of the Magi) e na personagem da criança-Hitler que carrega sua dupla natureza de luz e sombra, assim como também foi conferido no capítulo anterior, ao mencionarmos as séries The Murmur of the Innocents e The Disasters of War. Não é de se estranhar, portanto, que, nesse momento, encontremos determinada indicação na obra de Helnwein, ainda que essa série seja anterior àquelas estudadas no capítulo 3.2.

Epiphany I (Adoration of the Magi) (1996), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 333 cm x 210 cm

Mas é preciso, ainda mais, prestar atenção no que Helnwein escreveu e é mencionado no texto de JOHNSON (2004), no que diz respeito às suas preocupações quanto à trilogia Epiphany. Se até então sua obra esteve voltada para a criança como ser de luz, puro e inocente, também frágil diante do perpetrador adulto, dessa vez passamos a perceber que, porém, Helnwein compartilha essa posição fragilizada com outros personagens, dando à

115 criança a condição de “baú semântico”, no qual estão inseridas outras vítimas: as crianças abandonadas e perseguidas pelos grandes perpetradores da história, sejam eles o Cristianismo, o Nazismo ou qualquer outra instituição, ideologia ou aparelho que, enfim, resulte em sombra, em “trevas que continuam por aí” (apud JOHNSON, 2004).

Com isso, é possível reconhecer na obra de Helnwein séries que abordam tanto o abuso infantil (principalmente nas aquarelas, de maneira mais literal) quanto o Holocausto (como foi o caso da instalação Selektion), isto é, a vítima neste último exemplo são todos aqueles perseguidos pelo nazismo (judeus, homossexuais, negros etc), sejam eles crianças ou adultos, mas que são representados, nas imagens de Helnwein, por crianças. Agora, em Epiphany, Helnwein põe em evidência mais uma parcela que se vê exposta e fragilizada por diferentes “irrupções da sombra”: a mulher. Em SCHMID (2009), o artista reflete sobre a condição do sexo feminino ao longo da história e comenta: “É um fato que toda a violência, a tortura, a queima das bruxas, inquisições, orgias de violência que marcaram a história humana têm sido cometidas quase sem exceção por homens”207.

Unindo-se isso à sua valorização pelas características da anima, como visto no capítulo anterior, é compreensível a defesa de Helnwein a favor das mulheres, assim como fez Flusser em seu texto A Consumidora Consumida (1972), quando traça uma trajetória histórica de revoluções femininas em busca da demarcação de território em resposta à convexidade masculina. E Helnwein ainda acrescenta:

A psique humana parece ter uma necessidade inerente de destruir, de matar, de causar dor e de pôr toda vida em risco. Essa proximidade da morte, esse desejo de morte, é parte de ser homem. E eu ainda conheço muitos homens que só se sentem bem quando estão numa briga, quando quebram o nariz de alguém. Então eles ficam eufóricos – eles se sentem vivos208 (SCHMID, 2009).

Talvez esses impulsos digam menos a Mercúrio do que diriam a Marte e a um “terrível amor pela guerra”, como descreve o título do livro do pós-junguiano James Hillman (A Terrible Love of War, 2004). E nessa mesma obra, o autor brinca que se a guerra fosse deixada apenas para Apolo, Hermes (Mercúrio) ou Atena, “jogos de guerra, planos de guerra e manobras mentais seriam suficientes”209 (HILLMAN, 2004, p.92).

Mais adiante, o autor ainda descreve um incidente ocorrido entre Ares e Afrodite, o deus da guerra e a deusa do amor. A história, narrada por Homero, no oitavo livro da Odisséia, trata sobre como esses deuses se apaixonaram dentro do palácio do esposo de

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Afrodite, Hefesto. “O Sol, que vê tudo, observa-os em sua aliança ilícita e conta ao seu marido [de Afrodite] (...). Ele imediatamente planeja vingança”210 (HILLMAN, 2004, p.104). Escondido, Hefesto flagra os amantes. O crime faz com que ele se sinta duplamente traído, tanto pela sua esposa quanto por Ares, que é seu irmão, já que ambos são filhos de Hera. Em resposta, ele grita, e seus gritos são tão altos que os outros deuses vão até a porta do quarto para observar o evento.

Eles comentam, riem, tentam adivinhar qual será a pena que Afrodite terá que pagar por ter traído o esposo. É nesse momento que Apolo pergunta a Hermes como ele se sentiria no lugar de Ares, pego e exposto, no que o deus mensageiro responde que ficaria feliz de trocar de lugar com o deus da guerra, desde que pudesse se deitar com Afrodite. Os deuses novamente caem na gargalhada, menos Poseidon, que oferece pagar a penalidade do adultério no lugar de Ares. Hefesto aceita e os dois amantes são afastados para lugares distantes.

Com essa anedota, Hillman procura mostrar a atração entre os supostamente opostos: guerra e amor, violência e suavidade, atrocidade e beleza. Mas, nessa mesma ocasião, há a presença de Hermes a tentar fazer parte da cena, porque, de qualquer maneira, ele não está tão desvinculado de Afrodite, como o autor descreve:

Os deuses não podem aparecer sozinhos. Hermes-Mercúrio é mutuamente implicado com Afrodite de modo que ela também é hermética, isto é, dissimulada, dupla, incapaz de ser encurralada. E ela é hermafrodítica, uma imaginada ponte entre diferenças incomuns, uma flagrante metáfora entre lógica e fato211 (HILLMAN, 2004, p.176).

Isso confirma, outra vez, as relações entre a anima e a sombra, bem como o hermafroditismo da criança. Da mesma forma que a criança, em sua complexidade, a mulher tende a ser encurralada por diferentes irrupções da sombra, seja ela a Inquisição, a sociedade predominantemente masculina e convexa (FLUSSER, 1972), encaixando-se na zona de opressão à qual Helnwein se refere como “minorias” (apud JOHNSON, 2004).

Contudo, apesar de ser sensível às mulheres, Helnwein não deixa de vê-las como indivíduos adultos (portanto, diferentes da essência infantil) e, assim, na trilogia Kiss, de 1998, a criança aparece em cenas nas quais a mulher é posta na posição do perpetrador. Ao observar também os desenhos dessa mesma década, em 1993, há duas ilustrações em que Helnwein posiciona essas duas animas em situação de confronto, em Mother’s Day e Mother’s Day 2 – mesmo que na primeira obra a criança seja aquela a penetrar a faca no peito nu da mulher ou mãe. 117

Dessa forma, está presente ainda nesse período da obra do artista a temática do abuso e da pedofilia, seja ela praticada pelo homem ou pela mulher e isso é possível de ser observado tanto nas telas quanto nas ilustrações, porém esses exemplos se encontram fora das séries fechadas. Nos anos 1990, mesma época de Epiphany, as ilustrações The Doubting Thomas (1993) e The Christening Present II (1993) abordam o tema da pedofilia. Já as telas Lest you forget (1995) e Untitled (1998), na qual uma garota esconde o rosto com as mãos, mencionam a vergonha e a incapacidade de reação diante do abuso, enquanto Untitled (1998), que vislumbra um homem a inserir, de ponta cabeça, um garoto dentro de um balde, denuncia a violência, ainda que de maneira incomum.

À esquerda, Kiss I (1998), tinta a óleo e acrílica sobre tela. À direita, Mothers Day 2 (1993), lápis de cor em papel

Apesar de nessas imagens mencionadas Helnwein colocar as mulheres no papel do perpetrador, há, em sua obra, espaço para elas dentro do “baú semântico” ocupado pela posição da criança quando ela tem a função da mãe, de Madonna, de Virgem Imaculada – só assim ela detém um dos dons da criança, a pureza (virgindade), e assim estaria teoricamente outra vez próxima dos valores da anima. Ela é protetora da criança e irá fazer o possível para que esta não perca a sua luz e se entremeie nas sombras do mundo, perdendo sua essência infantil. Por isso aparece sempre, em Epiphany, junto do filho – a exceção de Annunciation (1993), quando ainda está para saber que se tornará mãe. E em todas essas oportunidades, a

118 criança está em perfeitas condições, menos em Untitled (after Andrea Mantegna) (1993), mas é evidente que a mãe sofre pelas feridas do filho e o abraça em proteção.

Quando sozinha, a criança novamente é entregue ao caos do mundo adulto, o qual ela não pode entender, de tal maneira como se seus olhos estivessem vendados, como mostra Helnwein no quadro Die Erweckung des Kindes (The Resurrection of the Child), de 1997. Junto de I Walk Alone (2003), este é mais um quadro que parece trazer à tona as memórias de Helnwein quanto à narrativa de “O Aventuroso Simplicissimus”, já que a pintura mostra uma garota em meio à correria de policiais e homens adultos. Suas mãos estão enfaixadas, seus joelhos cobertos por curativo. Ela é segurada por um estranho que tenta retirar sua venda, a qual é uma bandagem – como se essa protegesse a cicatrização de sua vista ferida ao mesmo tempo em que cobre do que ela pode ver a mais. Essa mesma garota reaparece em Late Regret (1997), levitando próxima a homens uniformizados.

Ainda sozinha, outra garota é representada sobre uma mesa circundada por nove homens, alguns deles com o rosto deformado e coberto por um tapa olho em Epiphany III (Presentation at the Temple), de 1998. Vale ressaltar que, dentro da trilogia Epiphany, a criança está acompanhada da mãe nos dois primeiros quadros, sendo observada por oficiais em ambas as cenas. Isso porque Helnwein opta por uma composição pictórica conhecida como Sacra Conversazione, um tipo de obra comum na Itália. Segundo ZEHNDER (1996), nessa organização, “santos se punham numa piedosa conversa ao redor do trono da Mãe de Deus. Helnwein combinou ambos os tipos de figura – a animada e a contemplativa – e criou uma cena, com tais metades, um senso de proximidade e participação com o observador”212 (Idem).

Em Epiphany II (Adoration of the Shepherds), de 1998, oficiais nazistas sorriem para o bebê, que aponta para eles. Estes parecem bem menos inquisitivos que aqueles que aparecem em Epiphany I (Adoration of the Magi), de 1996, mesmo que continuem sendo personagens do Terceiro Reich. Isso provavelmente porque, de acordo com o subtítulo, a obra esteja se tratando da passagem bíblica da Adoração dos Pastores, que é baseada no relato do Evangelho de Lucas (Lucas 2:16-20), no qual se conta que um anjo aparece para um grupo de pastores dizendo que na cidade de Davi um Salvador nasceu, enquanto outros anjos se aproximavam cantando glória. É dito que os pastores seguiram apressadamente para Belém, de modo a conhecer Jesus.

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Até que na última obra da trilogia a criança é encontrada desacordada e em meio a homens que, no entanto, não vestem uniformes com insígnia nenhuma, apenas ternos, mas apresentam deformidades em suas faces e olham diretamente para o observador. Essa característica é um traço constante na obra de Helnwein, seja na criança ou no adulto, mas sempre na face. Sobre isso, ele comenta:

De fato, as faces das pessoas que eu pinto estavam sempre machucadas, mutiladas. Há dificilmente uma face que não mostre um tipo de desfiguração. Algumas vezes as faces eram cobertas com bandagem ou tinham machucados sobre a boca, porque esses são órgãos com os quais nós nos comunicamos, sentimos, expressamo-nos. Alguém que tem os olhos cobertos com bandagem, a boca bem fechada, com uma fita, será isolado – não pode comunicar, não pode sentir213 (SCHMID, 2009).

Durante 1998, Helnwein também trabalhou a mesma deformidade facial apresentada em Epiphany III (Presentation at the Temple) na série de fotografias Rammstein (1998), na qual o artista usou como modelos os membros da banda alemã que dá título ao ensaio. Com fitas adesivas enroladas e pressionadas contra o rosto dos músicos, Helnwein conseguiu deformar suas faces e expressões depois de já tê-los fotografado no ano anterior, quando seus rostos foram pintados de branco e adornados com instrumentos cirúrgicos – assim como Helnwein fazia consigo mesmo em seus autorretratos no começo da carreira.

Aparentemente, é dessa sessão Rammstein de 1998 que Helnwein toma como base para Epiphany III os rostos e as poses dos homens que circundam a mesa onde a garota deita adormecida ou morta. A cena tem a morbidez de “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp” (1632), de Rembrandt, apesar de obviamente a pintura se referir a uma passagem bíblica, a apresentação de Jesus no templo. De acordo com o Evangelho, conta-se que Maria e José levaram o Menino Jesus ao Templo de Jerusalém quarenta dias depois de seu nascimento para que fosse realizado o ritual de purificação de Maria, depois que seu parto fosse completado. Lá encontraram Simeão, um homem que recebeu a promessa de não morrer antes de ver Cristo e que, ao se deparar com Jesus no Templo, profetizou a redenção do mundo pela criança – isto é, ele já previu que Jesus iria salvar o povo de Israel e que seria mártir por eles, assumindo o arquétipo da criança divina: “Luz para revelação aos gentios, E glória do teu povo de Israel” (Lucas 2:29-32). Simeão também repetiu isso a Maria (Lucas 2:34-35), revelando o destino do filho em salvação dos demais.

Desse modo, a mãe tem a função, na série Epiphany, de encaminhar e proteger a criança-luz em meio às trevas para que esta cumpra sua trajetória dentro de seu arquétipo

120 como criança divina, porque ela seria a única salvação diante de adultos deformados, corrompidos pelas trevas e incapazes de sonhar, de ter a imaginação suficiente parar brincar com o aparelho – como se vê em Epiphany III (Presentation at the Temple). Novamente, portanto, a pesquisa entende, em conjunto com as falas de Helnwein e interpretação que vai adiante que, desse modo, a criança vem como símbolo de luz em contraste a um mundo de sombras que, em Epiphany, vem representado pela sombra do nazismo.

Assim, as cenas retratada em Die Erweckung des Kindes (The Resurrection of the Child), de 1997, e Late Regret, também de 1997, podem ser entendidas como posteriores à sequência narrativa da trilogia Epiphany, como se Die Erweckung des Kindes tratasse da passagem litúrgica da ressurreição de Cristo após este ter se sacrificado pelo povo de Israel (cumprindo sua trajetória de criança divina) e Late Regret sendo o arrependimento pelos pecados cometidos pelos agentes sombrios (homens uniformizados) diante da criança ferida, uma vez reconhecida a sua função salvadora e natureza mística. Como polos opostos, esses indivíduos não deixam de ser retratados por Helnwein como adultos, homens e uniformizados, já que esta é a sua imagética como artista e metáfora para representar o mal diante da figura de salvação que é a criança ferida, representada por uma menina de vestido e coberta por bandagens.

121

4.0 Conclusão

Ao mesmo tempo em que Helnwein elege, em sua obra, ícones que representam esteticamente uma dicotomia simbólica de luz e sombra, suas criações tendem a ganhar um significado e um apelo que fazem com que as pessoas se sintam comovidas pelo conteúdo dos quadros, ilustrações e fotografias. Isso porque Helnwein é um fotógrafo de sombras e a seu público oferece nada mais que as trevas do mundo (e dos indivíduos que o habitam) de forma hiperrealista – “o verdadeiro mais que verdadeiro”, como diria Italo Mussa (apud FABRIS, 2006). Segundo o próprio artista, a fotografia é “a principal mídia para todos os artistas que trabalham de alguma maneira realista”214 (JOHNSON, 2004), uma vez que “as pessoas hoje percebem e conhecem o mundo principalmente a partir de reproduções bidimensionais e filmes. É uma mídia altamente manipulável”215 (Idem).

Eu fico fascinado com as quase ilimitadas possibilidades de troca e distorção da realidade. Quando parece uma fotografia, as pessoas pensam que é real. Então eu sempre tive a sensação de que uma imagem muito fotográfica teria mais impacto, um poder mais sugestivo216 (JOHNSON, 2004).

Isso, combinado à época em que Helnwein estava inserido quando começou a pintar, com 18 anos, já era quase começo dos anos 1970, quando a Pop Art estava no seu auge e o Hiperrealismo tinha seu início à interação com a última. Apesar de, na entrevista em anexo, o artista comentar que não teve uma educação propriamente artística durante a juventude, foi nas igrejas que, durante a infância, ele teve contato com as primeiras obras de arte e é provável ele tenha observado trabalhos que seguissem o estilo barroco, como visto no capítulo 2.1: “Mais uma vez eu tenho que voltar para minha infância sombria, em que meu único contato com a cultura era a escura e fria Igreja Católica Romana, com todas aquelas pinturas e esculturas de pessoas torturadas e corpos sagrados”217 (KONNO, 2003). Por isso, não é de se estranhar que, na mente de Helnwein, os lugares obscuros estejam ocupados tanto pelas imagens do nazismo quanto pelas do cristianismo, como se observou na série Epiphany (1993-1998).

Desse modo, ele seguiria um estilo realista (ou hiperrealista), com remitências à cultura pop, que era uma tendência da época e também uma forma de negar a realidade que ele não apreciava: a do fim da Segunda Guerra Mundial e que faria homenagem a uma das melhores coisas da sua infância, os quadrinhos de Walt Disney e toda a cultura pop americana que, inclusive, mostrou a Helnwein e aos europeus um novo ritmo e estilo de vida. Essa 122 influência é retratada pelo artista, de acordo com seu ponto de vista, em The American Paintings (2000-2003). Mas é em The Murmur of the Innocents (2009-2013) e The Disasters of War (2007-2011) que Helnwein realmente discute, mesmo que talvez inconscientemente, o poder da imagem e da cultura pop ao utilizar objetos de consumo tanto do mercado ocidental quanto oriental, ao trabalhar com a questão das animações japonesas (anime) e dos quadrinhos (mangá).

A todo o momento, percebe-se que há uma fascinação pela imagem, tanto quando Helnwein relembra suas passagens infantis, seu apreço pelos quadrinhos e pela cultura pop ou quando se analisa a cultura americana e a japonesa, evidentemente próximas no sentido imagético, como se viu no capítulo 3.2. Desse modo, Helnwein vivencia o mundo magicamente, através das imagens, segundo o pensamento flusseriano, e utiliza a estética como base e método de comunicação com o mundo, acreditando e firmando-se na fórmula de pathos desde o momento em que, quando se tornou artista, percebeu que suas imagens podiam comover e mover as pessoas muito mais que suas perguntas (verbais e lineares) podiam fazer quando era criança.

Na entrevista anexada, Helnwein conta que quando entrou na universidade, todos os estudantes tinham um discurso “neomarxista” e que costumavam debater sobre Lênin. O artista comenta: “Isso era a mesma coisa novamente, apenas uma variação diferente. Eu não queria viver aquela ditadura, só que uma nova. Isso não é liberdade. Quer dizer, agora você marcha para um diferente Führer”. Apesar de acompanhar as manifestações e as revoltas àquela época, Helnwein se punha contra esse tipo de posicionamento a favor de qualquer ideologia, talvez porque preferia estar sempre contra qualquer sistema fixo? Em entrevista mais tarde, ele chegou a dizer: “Eu não me encaixo a nenhum sistema”218 (MICHAELSEN, 2013). O que parece ser certo na filosofia de vida do artista é que sua prioridade é a liberdade e, para ele, liberdade seria algo diferente daquilo que aqueles jovens estavam planejando. Como já mencionado anteriormente, para Helnwein, liberdade e estética são dois pontos importantes, no entanto, sua conclusão é: “Mas estética é liberdade” (entrevista em anexo).

Nesse sentido, quando FLUSSER (2011b, p.117) escreve sobre a relação texto e imagem ao longo da história, ele indica que na inversão da relação “texto-homem”, a chamada “textolatria” é caracterizada principalmente por meio das ideologias, que são sustentadas a partir do suporte textual e verbal (manifestos, textos, discursos etc). Portanto, parece fazer sentido a posição de Helnwein como alheio ou mesmo contrário às ideologias 123 fixas, sendo estas calcadas no texto enquanto o artista vive magicamente, pós-historicamente, ao firmar-se num universo imagético. Mas isso também significa viver no mundo dos funcionários e dos aparelhos e, por esse motivo, é preciso tomar cuidado para não estar programado por eles – se é que é possível não estar condicionado a isso, ao seu absurdo.

Para tanto, seria preciso brincar com os aparelhos, jogar com as possibilidades até elas se esgotarem e repetir com a mesma persistência e inocência de uma criança com seus brinquedos. Essa é a razão para que elas sejam as protagonistas das imagens de Helnwein, as crianças divinas que vêm a um mundo de trevas programadas, onde os adultos-funcionários trabalham condicionados por aparelhos – sejam estes ideologias como o nazismo ou quaisquer outras possibilidades que oprimam uns aos outros ou que busquem eliminar as tentativas de mudança, as crianças e/ou os artistas, que são aqueles que enxergam as brechas e são capazes de brincar/criar dentro do funcionamento do mundo, tentando subvertê-lo a partir de sua ótica transmutadora.

Como artista, Helnwein vem com uma mensagem forte e sombria, que pode causar tanto encantamento quanto repulsa, como aconteceu nos casos de Kilkenny e Colônia (capítulo 1.1) ou tantos outros (vide Cronologia, em anexo) em que o austríaco se deparou com um público acuado, ofendido, a interagir com a força da imagem. Assim como a própria sombra ou o molusco mencionado anteriormente, no capítulo 2.2, a obra de Helnwein...

...articula o inefável, não luta contra a perfídia da matéria, mas contra a perfídia do receptor da mensagem. Não são os objetos que ele quer violentar ao impor-lhes informação nova, é o outro que deve ser violentado para ser informado. Para o Vampyroteuthis, a memória do outro é o que para nós são pedra e língua. O Vampyroteuthis é escultor e escritor contra o outro. Martela e compõe o outro. A vocação do Vampyroteuthis é o outro. É durante a violação do outro que o Vampyroteuthis vai se realizando. É por tal luta contra o outro que ele vai adquirindo vivências novas. É tal luta que o fascina, que absorve seu interesse. Tal feedback entre emissor e receptor, tal diálogo, é a essência da arte do Vampyroteuthis (FLUSSER, 2011a, p.114).

Desde KONNO (2003), Helnwein já havia dito: “Minha arte não é uma resposta, é uma pergunta”219, isso porque seu objetivo é justamente alcançar sua audiência e manter uma conversa com ele: “Meu público é o grande caso de amor da minha vida. Sou obcecado pelo meu público e tudo que quero fazer com minha arte é tocá-los e movê-los e abraçá-los forte”220. Helnwein ainda acrescenta: “Mas eu também os escuto e levo suas respostas muito a sério, porque eles [os indivíduos do público] e outros artistas são os únicos que me ensinaram qualquer coisa”221. 124

E ele ainda é capaz de alcançar uma audiência abrangente, fazendo uso da mídia, como a revista austríaca Profil, na qual publicou a aquarela Life not worth living, em 1979, e também a TIME Magazine, quando seu retrato de John F. Kennedy foi capa do volume 122 n.21, em 14 de novembro de 1983, o que fez com que ele atingisse um público que chega à casa dos milhares. Isso sem contar suas instalações, vistas também por milhares que passam pelas ruas durante o dia e a noite. Em outubro de 2013, no encerramento da sua exposição de retrospectiva no museu Albertina em Viena, foram contabilizados 1,4 milhão de visitantes no estabelecimento, o que fez da exibição a mais bem sucedida de um artista vivo realizada ali222.

Em Helnwein, isso seria uma expressão de um construtivo e de um constitutivo desejo de se engajar seriamente. Seu trabalho sempre foi direcionado ao homem comum das ruas, com a intenção de tirá-lo de seu pensamento familiar e estereotipado, para sensibilizá-lo e guiá-lo para uma direção alternativa223 (NEDOMA, 2008).

Portanto, a intenção dessa pesquisa é mostrar como a obra de Helnwein é capaz de provocar um procedimento semelhante àquele do conflito com a (própria) sombra, uma vez que o conteúdo de suas imagens (ou as próprias imagens) poderia ser comparado ao próprio arquétipo da sombra junguiana. As imagens exógenas compostas pelo artista entram em choque com o público, que recupera de sua memória as imagens endógenas e, dessa forma, a reflexão é promovida. Nesse processo, é possível a repercussão de reações tanto agressivas quanto afetivas, sejam aquelas que rasgam os painéis de instalações como a Selektion, em Colônia, ou então neonazistas que procuram por Helnwein em seu estúdio (CONNOLY, 2000) ou mesmo colecionadores de arte como Peter Ludwig, do Museu Ludwig, que mais tarde chegou a doar 53 obras de Helnwein ao Museu Estatal Russo de São Petersburgo. Ainda William Burroughs chegou a conhecer o trabalho de Helnwein e sobre ele comentou: “É função do artista evocar a experiência do reconhecimento-surpresa: mostrar ao observador o que ele sabe, mas não sabe que sabe. Helnwein é o mestre do reconhecimento-surpresa”224 (BURROUGHS, 1992).

Para Helnwein, o mais importante, acima de tudo, é a discussão levantada por seus quadros, fotografias e ilustrações. Ele indica: “A arte é um produto bipolar, ela é 50% o artista e 50% o público. (...) E o que acontece entre esses dois polos, algo como eletricidade, isso é arte”225 (apud O’DONOGHUE, 2008). Helnwein faz com que as pessoas fiquem “emocionalmente afetadas, elas falam a respeito, ficam encantadas ou ultrajadas e protestam”226 (JERMANN, 2008).

125

No começo dos anos 1970, uma exposição na Vienna Pressehaus chegou a causar rebelião entre os funcionários e fez com que o evento fosse fechado três dias depois da abertura. Em SCHMID (2009), Helnwein conta que houve uma disputa entre a equipe e a organização, porque estavam ameaçando greve caso suas obras não fossem removidas.

Eu falei com um editor de um jornal conservador, o qual estava muito chateado e insistiu em conversar comigo. Ele disse: “Por que você faz essas imagens horríveis? Você deve ser louco. Elas ficam na cabeça, eu não consigo dormir mais”. Eu perguntei a ele se ele tinha lutado na última Guerra, o que ele confirmou. Eu perguntei: “Você viu pessoas morrerem?”. Ele disse: “Claro”. “E você pôde dormir?”. “Certamente”, ele disse. “Era a guerra”. Eu perguntei se ele havia matado pessoas. “Talvez”, ele disse. “Isso tirou o seu sono?”, eu perguntei. “Não”. Então eu disse: “Mas certamente você frequentemente verá fotos na sala de imprensa, as quais são também terríveis de imprimir?”. “É verdade”, ele respondeu. “Não é estranho que minhas pinturas, nada mais que papel cartão com alguns miligramas de pintura, um pouco de goma de árvore para a liga, nada mais, pura ficção, possam tirar o seu sono? Que você não possa esquecê-las?”. Nesse momento, eu percebi que não era minha obra que preocupava as pessoas ou as aborrecia. Eram as próprias imagens dentro de suas cabeças. Eu entendi que minhas imagens aparentemente desencadeavam algo em seu subconsciente. Mas as imagens que eles carregavam em suas próprias mentes causavam o aborrecimento227 (SCHMID, 2009).

Assim, como já mencionado anteriormente, o encontro com a obra de Helnwein é como o encontro com a sombra, o encontro com o Vampyroteuthis infernalis em seu aquário, nadando em violência reprimida pelo vidro-tela, assim como narra Flusser, nos últimos parágrafos de seu livro:

O observador fascinado fica, ele também, paralisado. Não apenas por terror, mas igualmente por embaraço. O terror é justificado, porque sabemos o que aconteceria se o vidro do aquário cedesse: o nazismo nos ensinou isto. Mas igualmente é justificado o embaraço. As modificações da pele do bicho são prova de quão desesperadamente ele procura se comunicar conosco. Não sabemos como comportar-nos sem cometermos impropriedades. Não podemos bater com o cachimbo contra o vidro para convidá-lo a fazer gestos idiotas, como se ele fosse um chimpanzé ou um bebê no berço. Nem podemos estender-lhe a mão em gesto de paz que encerre a guerra de vida e morte que travamos há incontáveis milhões de anos. Nem ainda podemos dar-lhe as costas num gesto de asco, gesto este que preferiríamos, dada a nossa condição de burgueses bem pensantes que somos. O guarda do aquário, vendo o embaraço, toma a atitude de especialista: “Não se preocupe, isto aqui não passa de um molusco”. E se perguntamos: “Por que o senhor deu um pneu para brincar, como se fosse um chimpanzé, não um molusco?”, o guarda engole uma exclamação de surpresa, diz coisa incompreensível, e afirma ser hora de fechar o aquário, conforme regulamento do sindicato ao qual pertence.

Assim vai emergindo o Vampyroteuthis: sob a forma de parentes mais ou menos próximos nos aquários da Europa e dos Estados Unidos. Sob a forma de três cadáveres no mar da China. Sob a forma de serpentes devoradoras de navios nos mitos da humanidade. Sob a forma de ornamentação nos vasos fenícios e gregos. Sob a forma de ideologias sangrentas nos programas políticos da dita “direita”. Sob a forma de 126

anseio de orgasmo permanente, de revolução permanente, nos programas políticos da dita “esquerda”. Vai surgindo sob as formas mais inesperadas nas análises psicológicas, nas lógicas e nas teológicas, e nas futurologias de todo tipo. Em todos esses lugares, o Vampyroteuthis vai surgindo como nosso próprio espelho. Como antípoda nosso, no qual todos os nossos aspectos são invertidos. Pois contemplar tal espelho, a fim de reconhecer-se nele, e a fim de poder alterar-se graças a tal reconhecimento, é o propósito de toda fábula, inclusive esta (FLUSSER, 2011a, p.113).

Com essa citação que encerra uma das obras de Flusser, finaliza-se também esta pesquisa, que deixa como proposta a intenção de que Gottfried Helnwein estaria justamente oferecendo o caminho das sombras, do enfrentamento das trevas e dos lados mais sombrios da psique humana para que haja a reflexão e a discussão que ele, desde criança, foi incapaz de criar verbalmente, com suas questões silenciadas. Seu desafio, assim, não é dos mais fáceis, não é de fácil compreensão, mas foi assim que também orientou JUNG (2011b, p.280): “Não se chega à claridade pela representação da luz, mas tornando consciente aquilo que é obscuro”.

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ZEHNDER, Günter. Madonna. Rheinisches Ladnesmuseum . 1996. Disponível em: (Acesso: 6 março 2014)

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6.0 Anexos

6.1 Entrevista

Entrevista realizada com Gottfried Helnwein no dia 22 de maio de 2013, em Viena, Áustria.

Quando criança, você costumava ir à igreja porque teve uma educação católica bastante forte. Em quais ia? Eu morei em Favoriten, que era um bairro operário, o décimo distrito de Viena. Mas eu não sei o nome da igreja.

É que eu gostaria de saber sobre a arquitetura das igrejas que você frequentava. Eu li nas suas entrevistas que este foi o seu primeiro contato com a arte. É verdade. É um bom raciocínio. Bem, eu estive em várias igrejas. Havia uma igreja bem perto de nossa casa, a qual era cuidada por freiras e onde eu tive meu jardim de infância. Mas nós íamos a muitas igrejas, mesmo no interior do país, onde meus avós tinham uma fazenda. Nós íamos à igreja lá. Então, essas eram as únicas que eu via quando era criança, porque não havia muita propaganda e não tinha nada na televisão depois da guerra. Havia apenas igrejas e era lá onde eu, de repente, vi murais e grandes pinturas. Aliás, uma missa pode, às vezes, durar muito tempo, então você fica sentado por uma hora ou até mais. Muito tedioso para uma criança. Então você olha ao redor, vê as figuras e diz: “Meu Deus, o que está acontecendo?”. Mas não há uma igreja em específico. Mas se você é uma pesquisadora, essa é uma pergunta muito boa. Infelizmente não há uma igreja que eu possa exemplificar. São várias.

É apenas para tentar identificar se essas imagens fariam parte de algum movimento artístico em especial, por exemplo, o barroco. Sim, provavelmente era da época do barroco ou do iluminismo. Eu estive em Mariazell, que é uma igreja famosa. Estive em Maria Taferl e também numa igreja onde meus avós viviam, Staatz, um vilarejo na Baixa Áustria. Então estas seriam algumas igrejas que vêm à minha cabeça.

Ainda sobre o barroco, eu reconheço uma influência dele no seu trabalho. Você o aprecia e o considera, como artista? Sim, eu gosto muito da arte tradicional do ocidente, mas não diria que me foco especialmente no barroco. Eu acho que há obras incríveis mesmo no período gótico, no renascimento, mas também no barroco e também mais tarde, no século XVIII e XIX. Então, eu não diria que o barroco é muito especial para mim, mas uma parte de um todo. É uma grande cultura que começa pouco antes do Renascimento e termina basicamente no começo do século XVIII. Quer dizer, é o maior e mais importante período da cultura no mundo, na história da 135 humanidade. Nunca antes e nem depois nós tivemos algo em tão curto tempo e em tão limitado espaço. Tantos gênios e pessoas criativas. Gigantes da arquitetura, literatura, música. E mais e mais eu diria que sou inspirado por esses grandes espíritos criativos que ansiavam por arte. Porque antes, quando você olhava para qualquer lugar ou tempo, nada pode ser digno de comparação. No Egito e na China havia principalmente uma cultura de arte industrial. Eles tinham uma certa estética e certos símbolos e eles eram produzidos em massa. Era algo bonito e eles tinham uma arquitetura bonita, mas não se compara em nada ao Renascimento que, para mim, é muito precioso. No começo, quando eu comecei a pintar, eu realmente não era muito influenciado, porque eu não sabia sobre essas coisas. Eu não tive essa educação quando criança e, exceto as pinturas nas igrejas, as quais não tinham nada de famoso, eu não havia visto muito. Então eram normalmente as artes triviais que me interessavam. Eram os quadrinhos e o rock’n’roll.

Eu perguntei isso porque o seu uso da técnica do chiaroscuro se parece muito com as pinturas de Caravaggio ou Artemisia Gentileschi, por exemplo. Você está certa, mas isso se deu de outra forma. Quando eu comecei, eu não sabia nada sobre esses pintores. Muito cedo, ainda que não nas primeiras pinturas, eu comecei a usar exatamente essa técnica de luz e sombra. E foi assim que eu comecei. Foi realmente algo que eu desenvolvi sozinho e então, mais tarde, vendo Caravaggio, eu fiquei encantado. Eu tive várias experiências em que eu reconheci algo que eu, de certa maneira, já havia tentado fazer e uma delas foi essa técnica do Caravaggio. E quando eu vi, eu pensei, “meu deus, isso é tão familiar, está tão próximo do meu coração”. Esse tipo de experiência nos faz sentir tão perto do artista, mais do que se pudéssemos estar pessoalmente com ele, mesmo se a pessoa estivesse sentada na sua frente e você a conhecesse. Por exemplo, há pessoas que eu nunca conheci, elas já se foram há muito tempo, não sobraram nem mesmo seus ossos, mas através da arte, a alma, o universo interior ainda está lá e você pode entrar nele. E é algo que eu posso sentir. É quase uma experiência religiosa. Eu me sinto tão honrado, tão feliz, tão iluminado e tocado. É permitido para mim, estar perto de alguém. E algumas vezes eu vejo algo que é muito familiar ao meu próprio trabalho. Acho que isso é uma conquista quando você vê algo com o que você possa se inspirar, mas não foi o meu caso. No meu caso, eu desenvolvi por mim mesmo e então eu vi que, ah, aquilo já existia.

Você sempre pintou crianças andróginas e loiras, mas recentemente você fez uma exposição no México e fotografou garotas latino-americanas. Quer dizer, não são mais loiras e andróginas. O que isso representa no seu trabalho? Por algum motivo, eu só me interessava por crianças. Sempre. Mesmo muito antes de começar a pintar. Crianças, para mim, eram os seres mais preciosos que existiam. Eu sempre as tive como algo especial. Crianças têm uma essência, têm tantas possibilidades. Você olha para uma criança e há todo um potencial utópico. Tudo é possível quando você olha para uma criança. E então, de alguma forma, eu comecei a ficar surpreso em como a sociedade destrói isso, em vários níveis, através da educação, de manipulação. As crianças perdem o brilho que elas tinham no começo. Elas perdem, e quando você vê a maioria dos adultos... Não há muito mais da esperança, daquele calor que há nos olhos das crianças. Elas têm imaginação, contam histórias, inventam coisas. Seu universo é infinito. Mas para os adultos, tudo é limitado. Eles têm medo das coisas, são ansiosos. Eles perderam o próprio universo. Para mim, crianças são algo sagrado, algo como seres espirituais, acima de tudo. E, ao mesmo tempo, quando eu vi como esse mundo é algo brutal, como ele abusa das crianças, geralmente de várias maneiras, 136 eu vejo isso como um tipo de metáfora para o conflito que está ocorrendo na história da humanidade. Como se a força brutal e física do universo material estivesse contra os espíritos, que são sensíveis, sutis, o oposto. Luz. Eu sempre pensei que crianças são as coisas mais lindas e saber que elas são violentadas e punidas e que elas estão sofrendo... Isso sempre foi algo que me assustou. Eu sempre estive pensando nisso e essa foi a razão pela qual eu comecei a pintar, porque esse era o assunto. Eu não sabia como lidar com isso. Ninguém falava sobre isso. Então, eu pensei, talvez eu desenhe. Então eu comecei a desenhar e a pintar e essa foi a verdadeira motivação e razão de eu ter começado a pintar.

Mas por que você pintava crianças loiras e andróginas? Por algum motivo, quando eu penso em crianças, de modo a mostrar o que eu quero mostrar, estava claro desde o começo que deveria ser garotas. Eu não sei, eu nunca pensei nisso. As qualidades que elas têm, mesmo angelicais, qualidades não físicas. Eu as vejo mais em garotas do que em garotos, em geral. Mas em garotos há mais uma tendência à força física e a questão do “macho”. É diferente. Garotas têm um potencial a serem mais espirituais, eu acho. E minhas garotas, obviamente, eram alemãs e austríacas. No começo, austríacas, porque nós não tínhamos negras na Áustria, naquela época. Eu nunca tinha visto um negro ou uma pessoa de pele escura naquele tempo. Estas eram as crianças que eu via. Eu acho que se eu tivesse estado no México ou em outras partes do mundo onde há pessoas com pele escura, eu teria as usado como modelo. Então não se trata de uma afirmação. É só que eram as garotas que eu havia encontrado. E agora que eu estive no México e fiz toda uma série de fotografias com garotas [latinas], eu realmente devo dizer, é verdade, realmente algo está começando a ficar diferente. Porque eu sempre estive enfatizando a pele branca, muito pálida, porque quando elas são pálidas, há ainda menos pedaços de carne, está mais dissolvido no espírito. Então quando eu fotografei essas garotas no México, eram principalmente garotas com pele escura e eu as achei incrivelmente bonitas e tão inocentes, tão incríveis. Mas com uma estética de cor diferente. Foi fascinante, um grande trabalho.

Eu estava pensando se alguma vez você foi mal interpretado por sempre usar crianças loiras e brancas enquanto você também tem o nazismo como um de seus temas. Como se alguém fosse pensar sobre arianismo, por exemplo. Não, pelo contrário (risos). Interessante você dizer isso. Eu posso ver que alguém que vive numa cultura multiétnica pode enxergar isso, mas eu vivia num país onde todos eram loiros ou tinham cabelo castanho. Você não via nada [diferente disso], simplesmente não existia. Quando eu era criança, eu nunca tinha visto um negro. Negros estavam apenas nos desenhos animados ou ilustrações, mas eu nunca havia visto ninguém. Não é uma verdade absoluta, é só onde eu cresci. Acho que se eu tivesse na China, elas [as crianças] seriam todas garotas chinesas, sabe? Mas foi uma decisão usar apenas meninas. Foi uma escolha apenas estética e nunca um questionamento.

Você nomeou suas coleções The Disasters of War e Los Caprichos a partir das obras de Goya. Quem é ele para você? Goya é um dos grandes artistas que eu realmente admiro. No começo, os únicos pintores que eu conhecia eram os pintores românticos, do Romantismo, século XVIII na Áustria e na Alemanha. Isso era a única coisa que eu sabia e a única arte que eu tinha uma relação mais

137 próxima e íntima. Mas, além disso, inclusive Goya, eu só fui aprender mais tarde. Ainda assim, ele se tornou algo importante para mim. Há muitos trabalhos artísticos que eu admiro, mas alguns artistas ou obras que são tão próximos de mim que é quase assustador. É tão íntimo. Goya seria algo desse tipo. Eu vejo algumas obras e as acho tão familiares, a forma como ele pensa. Eu pensaria isso, eu faria isso. Há outros artistas que eu admiro que me surpreendem completamente e eu não gosto menos deles e há alguns que são totalmente surpreendentes, completamente exóticos... É tão fascinante! Mas com Goya, seria algo mais do meu próprio universo. Eu entendo sua preocupação com o sofrimento, o aspecto grotesco da vida, o estranho, o lado assustador e engraçado da vida e a dor, a destruição e a morte causadas pela guerra. E ao mesmo tempo em que ele pintava os ricos, ele também pintava a vida simples do campo. Então ele realmente abordou todos os aspectos da vida, de cima a baixo, dos humildes à corte do rei. Eu entendo isso. O jeito que ele fez isso estava transformando tudo. Você olha para a família real e vê que todas as figuras grotescas dos Caprichos estão também aqui, de uma maneira sutil. Mas ele estava sempre espreitando o lado obscuro da vida, especialmente quando estava perto de morrer, com suas figuras horríveis e escuras, em preto e branco. Mas, claro, elas eram lindas.

Você também gosta do conceito de arte de Duchamp, então eu acredito que também aprecie os artistas modernos do começo do século XX. Qual é a contribuição deles no seu trabalho artístico? Eu não vejo uma influência direta no meu trabalho, mas no meu modo de pensar, na minha filosofia. É também algo que eu não gostaria de deixar de ter. É surpreendente para mim, eu diria. Eu sou muito grato pelo fato de que essas pessoas tenham existido, porque isso acrescenta pontos de vista que eu não tive. E eu acho que esse é também o propósito da jornada da vida, que você tenha mais pontos de vista que não sejam os seus. Porque assim você coleta mais pontos de vista e, no fim da sua vida, você terá aprendido tanto. Você terá aprendido a ver o mundo a partir dos olhos dos outros com tanta frequência que, de repente, você terá uma visão muito mais ampla. Para mim, esses artistas modernos são muito importantes. Malevich, que fez quadrados pretos, você tem Duchamp, Kandinski, os dadaístas... Eu acho que eles todos eram um enunciado. Era tudo algo necessário. Alguém tinha que cortar o nó górdio ao ditar completa simplicidade. Eu gosto disso, porque é quando a arte se torna uma ditadura num bom sentido. De repente, Malevich inicia uma narrativa plana e dita completa redução e simplicidade. Eu acho isso fantástico. E Duchamp, ele é muito divertido e tem um pensamento muito bom. Porque ele faz você pensar “por quê?” e a resposta é porque eu, como artista, declaro que seja. É um ready-made. A tragédia é que o que eu realmente gosto em Duchamp é que ele fez seus poucos enunciados e então parou de fazer arte e, então, acho que começou a jogar xadrez. Na verdade, eu comprei algumas peças que ele fez e acho que elas foram jogadas fora ou algo do tipo, então quando você vê algumas delas em museus, elas são todas cópias. Não há originais. E eu acho que esse é provavelmente o maior estatuto dele. Ele pôde fazer poucas considerações, mas com integridade. E essa é algo que eu gostaria de fazer. Você não repete, não faz séries apenas para ganhar dinheiro. Isso eu realmente devo dizer que é algo respeitável da parte deles. Quando você olha para os artistas que temos desde então, vemos milhares fazendo cópias. De novo e de novo. E nunca melhora. É ridículo. Você vai aos museus e tem um buraco no chão, isso é abusar da originalidade daquele enunciado. Quer dizer, esses caras são grandes heróis para mim. Copiar isso não faz sentido.

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Qual é a importância do Acionismo Vienense para você e para o seu trabalho? Outra vez, foi uma experiência de reconhecimento, de um reconhecimento surpreendente. Porque quando eu fazia minhas próprias performances e me mutilava, eu nem mesmo sabia, no começo, que aquilo era arte. Eu via como um ritualismo ou um experimento. Eu fiz aquelas fotografias com crianças enfaixadas, mas foi muito depois. Foi no começo dos anos 1970 que aprendi sobre o Acionismo Vienense e então fiquei chocado, porque fiquei tipo, meu deus, isso é exatamente o que eu fiz, e foi tão estranho. Foi realmente algo irritante, porque eu não entendia como alguém [faria o mesmo]. Era algo único, quem faria algo assim? Mas o que eu entendo é que em certos momentos, em certos lugares, tudo está pronto para certas constatações na arte. Há épocas em que a sociedade realmente põe o artista na direção certa. Então, eu acho que isso acontece com frequência com artistas que moram na mesma área, na mesma sociedade, mesmo que eles não se conheçam, que eles tenham uma mesma solução estética. Esse foi o caso. Nesse sentido, eu devo dizer que quando eu olho para o Acionismo Vienense, eu meio que entendo. Porque eu sei que Viena, onde eu morei, era uma sociedade horrível, uma época muito tenebrosa, por várias razões, e eu entendo muito bem por que eles fizeram aquilo naquele momento. Acho que era quase a única possibilidade de se reagir ao que estava acontecendo com a sociedade. Como artista, você sentia que o único jeito de reagir era pela anarquia e que você tinha que gritar. Qualquer outra coisa não faria sentido. Porque essas pessoas, a sociedade, elas eram tão insensíveis, tão estúpidas, que sutilezas seriam um completo desperdício. Então esse momento demandou uma estética indefectível que fosse capaz de machucar. É isso que o Acionismo Vienense foi para mim. E quando eu penso nisso, eu penso em Günter Brus. Eu o respeito muito. Ele também encerrou suas performances há muito tempo e se tornou publicitário e escritor. Ele é muito poético. Eu realmente respeito muito este homem.

Ainda sobre esse desejo de chocar e romper com a sociedade, estava pensando sobre as pinturas que você fez durante sua época de faculdade. Tinha o mesmo sentido? Chocar e mostrar algo? Não, não era para chocar. O choque nunca foi minha ideia, era mais... Era muito cedo ainda. A primeira pintura de Hitler que eu fiz foi quando eu tinha acho que 18 ou 17 anos... Provavelmente 17. E eu me sentia perdido. Eu não era um artista, eu só estava na escola de design gráfico e durante toda a minha vida senti que não queria estar ali, no mundo em que vivia. Eu não gostava das pessoas, nunca gostei do sistema, das coisas que tinha que aprender. Nunca entendi por que eu deveria estudar aquilo, por que os professores eram tão cruéis. Eu sempre senti que as pessoas eram insensíveis. Eu era muito sensível para o meu ambiente, como um elfo que caiu num mundo de porcos, de animais selvagens. Tudo era tão brutal. E na escola, tudo era muito autoritário e opressivo. Então, eu estava aprendendo sobre a época nazista, não muito porque ninguém falava sobre isso, mas eu estava sabendo mais e mais porque sempre pesquisava sobre, e de alguma forma aquela era minha conclusão. Eu via que Viena, no tempo em que vivia aqui, era como se fosse uma prisão. Esta era uma imagem que me veio e foi por esse motivo que pintei. Eu não tinha ideia porque isso iria, caso fosse, incomodar alguém. Eu não tinha pensado nas consequências. Eu só pensei “Eu sou quem chegou a essa conclusão, porque eu me sinto assim. Eu sinto a presença disso”. Então eu o pintei [Hitler] pela primeira vez quando eu deveria pintar um nu, o que achei muito entediante depois de um tempo. Eu pintei aquilo e então vi os professores surtarem. Todo mundo ficou nervoso, todos saíram correndo como galinhas e eu pensei: “Merda, o que é isso? O que está acontecendo? Uau”. E foi realmente interessante, porque eu não esperava por isso, só imaginava que eles fossem tomar o desenho e não fazer muito caso. Mas não, tudo parou. Eles 139 correram, confiscaram e correram outra vez, voltaram totalmente nervosos. Era como se você tivesse posto seu dedo em algo que não pode, porque dói. Eles contemplaram a guerra, parte dela, então a nova república fingia não ter nada a ver com aquilo, como se fosse impossível, nós somos democratas, nós somos pessoas legais. Mas se alguém pintar tal coisa, todo o passado explode em suas faces e eles ficam realmente nervosos e incomodados. E então eu entendi quão poderosa uma imagem pode ser. Eu pensei: “Meu deus, uma imagem tem tanto poder” e isso foi realmente algo que me fez pensar o que é ser um artista. É ter uma magia, um poder. O que as imagens podem fazer, como você pode manipular, mudar e instigar a realidade. Eu gosto disso.

Lembrando o caso Heinrich Gross, você mencionou numa entrevista que as pessoas não deram muita atenção a isso até você pintar a aquarela Life not worth living, publicada na revista Profil. Isso depois de ter lido uma entrevista com Gross, a qual foi ignorada pelo público. Eu li a entrevista num jornal e fiquei chocado. Lá dizia “Eu matei 800 crianças” e eu fiquei, caramba, quer dizer, que diabos é isso? E então, veja, assim eu esperava que as pessoas ficassem chocadas e reagissem. Mas ao mesmo tempo, na televisão, nada relacionado a isso, havia um apresentador que apareceu sem usar uma gravata, apenas camisa branca. E isso causou um alvoroço. Acho que quase três mil cartas foram enviadas. As pessoas surtaram. O cara deveria ser julgado, deveria ser morto, porque esse é o fim do mundo! Um homem sem gravata. E é isso o que eu quero dizer, as pessoas estavam incomodadas porque alguém não estava usando uma gravata. Para mim, isso tem a ver com essa mídia, porque aqui, se alguém aparece com uma camisa e sem gravata, então as pessoas enlouquecem, ficam completamente histéricas, enquanto aqui alguém diz “ah, eu matei 800 crianças” e nada, nenhuma reação. Então, eu pensei, que porcaria é essa? Quer dizer, eles são malucos? Foi aí que eu decidi: “Eu quero pintar isso”. Muito simples, nada exagerado, nada sensacionalista, bem sutil e publiquei uma pequena carta para ele [Heinrich Gross]. E aí teve uma grande resposta. A reação foi sobre a pintura, por algum motivo. De repente, as pessoas ficaram realmente incomodadas. Então, a pintura realmente impulsionou muita discussão sobre aquilo. Ver minha pintura fez com que, repentinamente, eles entendessem o que esse homem fez.

Talvez o motivo disso tenha algo a ver com o que você disse antes, sobre a imagem ter certa magia de fazer as pessoas mais emotivas, de tocar as pessoas. Mais do que palavras, imagens podem ter tal impacto.

Sim, acho que elas têm. Na verdade, o editor-chefe escreveu certa vez uma carta aberta para a revista e ele disse que isso é realmente estranho e frustrante para um jornalista, porque nós descobrimos tantos escândalos nesse país, casos de corrupção e outras grandes coisas, mas nunca tivemos a reação, mesmo diante de assassinatos, como tivemos quando Helnwein fez a pintura. As pessoas enlouqueceram. Assim faz você pensar que uma imagem como essa pode ir mais fundo do que ele com seus trabalhos.

Você acha que a mídia influencia o seu trabalho?

Uau, essa é uma pergunta complexa. O problema com a mídia que eu tenho é que, hoje, você tem principalmente a mídia de massa, que é um fardo que eu carrego, porque, na verdade, é propaganda, não tem muito a ver com a realidade. Hoje nós temos provavelmente apenas uma 140 agência de notícias, quer dizer, oficialmente talvez três ou quatro, mas, na realidade, é apenas uma fonte que produz toda a mídia para toda uma rede e isso tudo vem da América. Eles inventaram isso, eles sabiam que se eles quisessem conquistar o mundo no século 20, no 21, mesmo com o maior exército de todos os tempos, com o maior serviço secreto, que eles têm, você precisa de algo que é muito mais poderoso. Você precisa ter controle da mídia, especialmente hoje. Porque mesmo com as ideias, as imagens sendo transmitidas tão rapidamente, a mídia, quem quer que controle isso controla o planeta. Nesse sentido, o establishment americano é realmente incrível, eles são tão espertos que criaram a maior máquina de propaganda de todos os tempos, tanto que posso dizer que a propaganda de Goebbels, da época nazista, era idade da pedra comparada a eles, era realmente estado da arte. Eles sabem como manipular as pessoas e isso é realmente convincente quando você filmes por todo o planeta. Você pode estar em qualquer lugar, eles são rápidos. O que eles não dizem, os eventos realmente importantes, eles não mencionam. E então você tem um monte de porcariazinhas que o distraem e das quais ninguém precisa saber, apenas para te dar sensações, distrações... Eu acho que cada vez existe menos jornalismo independentemente, é tudo uma grande máquina de propaganda e a maior parte das pessoas apenas acredita nisso. E a chance é que nós temos a internet. Há uma chance. Eu não sei por quanto tempo isso vai durar, porque há agora um campo independente de pessoas que escrevem em blogs, também ex-jornalistas. Você consegue se você souber como pesquisar. Você pode ter um monte de informações incríveis que provavelmente não conseguiria. Eu não sei por quanto tempo a internet será tão livre quanto ela é agora, eles estão trabalhando nisso, em limitá-la, mas nesse instante você pode ter um monte de informação. Para mim, para minha pesquisa, porque eu pesquiso muito, isso faz tudo muito mais claro quão manipulada e estúpida a mídia de massa é. Como eles manipulam as pessoas, como eles as distraem. Então eu acho que tenho problemas com esses governos, com esses bancos, bancos internacionais e grandes corporações e essa mídia. Acho que eles são as maiores ameaças no planeta e eles trabalham muito bem juntos. E em segredo.

Eu perguntei isso porque a mídia o influenciou a pintar a aquarela Life not worth living, mas na Comunicação Social, quadrinhos são considerados um tipo de mídia também e você os trouxe para a arte também, assim como fez a Pop Art ao trazer a mídia aos museus.

Eu sempre tive interesse na mídia pelo seu poder de criar uma realidade, entende? Porque se você repetir algo com muita frequência, as pessoas pensar que aquilo é real, vão pensar que é desse jeito. E você pergunta: “Como você sabe?” e eles dizem: “Ah, eu vi no noticiário”. Ah... É isso que acontece. Você não estava no 7 de setembro, não estava lá quando algo aconteceu na China ou em algum lugar. Você leu. Esse poder da mídia, isso sempre me fascinou. E é verdade. Quero dizer, a mídia é algo basicamente neutro, pode ser uma ferramenta de comunicação muito efetiva para nosso mundo, nunca antes as comunicações puderam viajar tão rapidamente e tão longe, o que é realmente bom, mas minha atenção está muito mais voltada à grande quantidade de abusos cometidos. No entanto, como eu disse, há também uma cultura de mídia alternativa que faz o oposto, que dá a informação e as pessoas espalham isso, disparam, dispersam. Então eu gosto da mídia, porque mídia significa comunicação.

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Você disse numa entrevista que a Áustria tem uma tradição de trevas. Isso parece bem claro quando você se lembra da sua infância e menciona alguns crimes. Mas além dessas memórias da guerra e tais incidentes, você vê algo a mais na cultura e no humor austríaco que caracteriza essa característica obscura?

Sim, quer dizer, a cultura austríaca é minha cultura, é de onde eu venho, é onde estou arraigado e isso eu não posso mudar, mas devo dizer que desde que deixei a Áustria e passei a morar fora, o que faz um bom tempo, eu comecei a apreciar a qualidade da tradição cultural austríaca. De repente, eu vi que há algo, uma parte muito importante do meu lar espiritual e eu gosto dessa cultura da época do Barroco, quando você percebe que a Áustria sempre teve a morte e as trevas como uma importante parte da cultura. E é por isso que você tem a cultura austríaca com artistas como Kafka, Franz Xaver Messerschmidt, Schubert e outros grandes escritores. Há muitos artistas que estão interessados no outro lado, no lado obscuro. Mas ao mesmo tempo a arte austríaca tem um lado muito doce e brilhante que muito frequentemente vem à tona, vai aos Vienna Awards. Então você tem o mais doce dos doces e o mais obscuro dos obscuros, o que é algo realmente barroco. Acho que o Barroco foi um dos períodos mais importantes em Viena, porque você tem dois componentes históricos. Um foi a praga, porque ela atingiu a Europa duas vezes e na Áustria matou a maioria das pessoas. Na segunda vez, no início do Barroco, as pessoas continuavam morrendo e morrendo, havia buracos enormes nos quais os corpos eram jogados e ninguém sabia o que fazer. Então a morte era algo realmente próximo e, quando tudo acabou, de repente era o período do alto Barroco, quando tudo era feito de acordo com o que a Igreja ditava e os assuntos [dos quadros] eram produtos da Igreja. Este era o maior problema para mim, e a ideia era a contrainformação. Do tipo, vamos fazer as mais incríveis igrejas, a mais fantástica música, esculturas, ouro, anjos, porque os protestantes não têm imagens, eles não gostam de imagens, esculturas, vamos fazê-los ficar extasiados. Tudo que havia em termos de estética e arte, sabe? O que era uma ideia muito boa, porque de repente todos os artistas, todos os estúdios conseguiram aquele trabalho. Nessas igrejas barrocas, tudo era teatro. Os tempos barrocos eram basicamente viver num palco. Tudo era teatral. Nessas igrejas você via Eros e os mais belos anjos e mulheres, uma garota em êxtase e um esqueleto dançando, você via crânios e morte. E também, numa igreja católica há muito sangue, dor e tortura. Então, há um elemento, mas no Barroco, tudo era transformado em teatro. Não era algo realmente assustador, nem ruim ou mal, como na Espanha, na Inquisição. Isso foi quando a Igreja começou a se tornar absolutamente cruel, totalmente destrutiva, muito assustadora, mas no Barroco, era apenas teatro, palco. Era um tempo de visões muito artísticas da morte, humor, êxtase, beleza, Eros, tudo num mesmo palco. E eu acho que isso tem uma grande influência na Áustria, porque Viena, pelo que sei, é muito teatral. Tudo é tipicamente e intensivamente performático. Mesmo quando nós falamos, é sempre performance. Os vienenses são tão poéticos com as palavras (risos), com um monte de expressões de linguagem... Isso é a Áustria para mim.

Nessa relação entre luz e sombras, você atribui algum significado especial pessoalmente e como artista?

Acho que é assim que vejo a vida. Minhas principais paixões, além da estética, é história, então o que eu vejo realmente é essa batalha entre beleza, salvação e estética. Por exemplo, nesse planeta nós tivemos os mais incríveis gênios, tivemos Mozart e tantos outros, e você pensa, como isso é possível, é tão divino, esse cara é um deus, e então você tem o pior dos piores no mesmo planeta. Eles todos têm corpos, eles parecem similares, mas isso não é algo que você pode... Isso está te irritando... Você não pode aguentar alguém olhando para a sua 142 faca. Seu nome é Doutor Mengele, ele entra para a SS, ele quer trabalhar num campo de concentração e fazer experimentos com essas crianças inocentes e torturá-las. Ele é um cara de boa aparência, muito simpático, muito educado, boas maneiras, e há esse sujeito que provavelmente está trabalhando em Am See. Não tem uma aparência tão boa assim, seu nome é Schubert e ele é como anjo por dentro. Então, eu vejo sempre essas discrepâncias entre esses dois elementos, quase como o Maniqueísmo, uma antiga religião baseada num velho profeta, Mani, e o princípio era a luz e a sombra, o oposto do bom e o ruim. Isso é o que eu sempre vejo, esse extremo contraste entre algo que é positivo, bom e divino, e você tem algo que é completamente destrutivo e mau. Nas sociedades compostas por esses caras, as pessoas parecem as mesmas, elas são todas amigáveis, mas quando você pesquisa mais a fundo, como eu fiz, aí você vê, porque eu queria saber quão ruim isso pode ficar, o que as pessoas fazem, e isso é difícil, quando você descobre o que as pessoas estão fazendo nesse planeta e o que fizeram. É tipo, de tirar o fôlego. Você tem que parar, porque você estremece. Mas é importante saber, porque está lá. Por outro lado, há gênios que, meu deus, músicos, alguns pintores ou escritores, eles só podem ser não-humanos. Nesse sentido, é como eu vejo a arte também. Pessoalmente, eu gosto muito mais de arte e objetos minimalistas, mas eu gosto da narrativa, do espírito, talvez não da estética, mas do espírito do Barroco.

Digo isso porque quando você usa o tema do nazismo nas suas pinturas, estava pensando se você faz para mencionar apenas o evento histórico ou se é algo mais simbólico.

Acho que é algo mais simbólico, mas também obviamente toca no assunto. Não estava totalmente abordando essa história em específico, eu só a usei porque estava muito próxima ao meu passado. Há certamente alguns tópicos estéticos e aspectos que são mais simbólicos, mas é amplo, não é apenas o nazismo que vem diretamente, eu apenas o usei. Como pintor, eu posso utilizar qualquer coisa e eu gosto de usar pessoas, como você vê, e meu trabalho é principalmente feito de pessoas e rostos e eu usei muitas pessoas da história, imagens e gente que conheci. Mas é um significado mais simbólico, eu acho.

Porque você usa símbolos pontuais do nazismo, por exemplo, uniformes, oficiais da SS, mas no meu estudo eu tenho uma teoria de que talvez você, em vez de estar falando exatamente apenas sobre o nazismo, em termos de um evento histórico, acho que está tentando falar sobre essa face obscura da humanidade, assim como o arquétipo da sombra de Jung.

Você está certa, absolutamente, é isso que eu quero dizer. É num sentido universal. Não está situado em um ano específico da história, eu apenas uso para mostrar... Mas é totalmente num sentido universal. Os lugares obscuros da humanidade vêm de muito antes dos tempos nazistas, obviamente. E reincidem hoje. As pessoas não usam uniforme mais, mas esse tipo de trevas continua por aí.

E você acha que, por esse motivo, talvez mesmo quase 70 anos depois de a guerra ter acabado, suas pinturas continuam tocando pessoas como brasileiros, que não viveram pessoalmente tais acontecimentos?

Eu acho, quando olho para a História da Arte, que todos os pintores usam a moda, as pessoas do seu tempo, normalmente. E quando observo Shakespeare, por exemplo, ele escreve sobre 143

Macbeth. Macbeth era para ser um pequeno rei escocês, não muito importante na história e toda a peça é sobre Macbeth e outra é sobre Ricardo III. Aconteceu há muito tempo na história, mas quando você olha para Macbeth, é tão universal, tão fresco, tão contemporâneo, porque é uma história sobre a ambição pelo poder, tanto que o faz completamente insano. Nessa viagem, você tem que mesmo começar a matar. É tão relevante até hoje. Você tem camadas, uma que é esta especificamente de uso histórico, mas que também é universal, como uma obra de arte, para todos os tempos e para todas as pessoas. Então eu vejo isso nas minhas pinturas, eu as exponho em vários países e é muito interessante ver como as pessoas reagem a elas. E é um pouco diferente, claro. Se essas pinturas são vistas por judeus sobreviventes do Holocausto, então há um significado um pouco diferente, elas desencadeiam diferentes lembranças daquelas que se desencadeariam caso você mostrasse as imagens para um chinês, mas eu acho que a essência do que eu quero mostrar, todos eles, por algum motivo, entendem. Isso acontece com qualquer tipo de arte. Porque, quando Goya descreve os desastres da guerra, ele fala sobre a guerra dos franceses contra os espanhóis, mas obviamente ela significa todas as guerras. Nesse sentido, a pintura Guernica, ela não significa essa pequena cidade, ela significa toda cidade onde as pessoas são assassinadas. Ela significa a insanidade da guerra. Acho que está no sentido universal das obras, de qualquer maneira.

Ao pintar a violência, algumas das suas imagens podem conter a mensagem do Memento mori. Gostaria de saber qual é a sua relação com a morte, com a ideia da morte.

Memento mori. Acho que é importante saber. Especialmente quando você envelhece, você percebe que há muito menos tempo. Saber que você tem que morrer, que todos têm que morrer, é muito interessante. Pode assustar as pessoas, pode excitar alguém acreditar que a miséria acabou. A morte é sempre parte da vida, você pode não pensar nela, mas ainda é parte da vida. Acho que, para um artista, especialmente, é um princípio importante, é por isso que vejo em muitas pinturas caveiras ou símbolos da morte. Como artista, é essa a questão, eu acho, você lida com a vida e a morte e isso também o faz ver que o que você tem é limitado, faz você reconsiderar as coisas. Você sabe que tem certo tempo, sabe que tem que conquistar algo, fazer algo. Não quer partir, não sem antes ter feito algo que tenha mudado seu planeta um pouquinho ou contribuído de alguma forma. Acho que as pessoas não se doam completamente, isso é realmente importante. Acho que é bom ser lembrado que não temos muito tempo, então mova seu traseiro e faça alguma coisa. Você tem muito tempo!

Você acha que ao mostrar cenas violentas, as pessoas podem pensar sobre isso e, assim, preveni-las de cometer essas atitudes no futuro?

Novamente, eu não sei. Eu estava pensando no Goya, por que ele descreveria os desastres da guerra tão profundamente? E eu sempre pensei que ele achou que seria necessário forçar as pessoas a lembrar disso, porque você vê e pensa quão horrível é aquilo de modo que dificilmente faria tal com as pessoas. E quanto mais as pessoas realmente verem isso, não fugindo, há uma chance de a história não se repetir. Mas se você não procurar por isso, se você fugir, se esquecer, se tiver amnésia, o que é confortável, toda a dor vai embora, mas o problema é: a história então se repete, porque as pessoas cometem os mesmos erros e os mesmos desastres. Então a ideia é forçar as pessoas a olharem e não a esquecer. Você não tem que repetir as mesmas coisas, é sempre o que eu e outros artistas dizemos sobre o Holocausto, porque o Holocausto foi o mais severo, o mais destrutivo e o mais insano ataque contra a humanidade. E já seria esquecido, se não existissem pessoas que estivessem constantemente 144 falando sobre isso. Como foi esquecido já, acho que nos anos 1970, já havia desaparecido, e então nos Estados Unidos alguém pensou sobre uma série de televisão chamada Holocaust. Nessa série de televisão, era também para pessoas jovens, porque ninguém sabia sobre o assunto, então de repente todos falavam sobre isso, todos escreviam a respeito novamente. E outro artista filmou A Lista de Schindler. Houve muitos esforços de diferentes artistas, de modo a fazer as pessoas lembrarem exatamente do que aconteceu, o que realmente aconteceu aqui. Acho que é importante. O Holocausto é um exemplo, mas significa muito mais que isso. Se você procurar, o Holocausto é um exemplo muito bom. Porque o que há de único sobre o Holocausto? Porque em tão curto tempo, com tão incrível eficiência, tantas pessoas foram mortas, mas a tão sangue frio, não com raiva, apenas com disciplina, trabalho duro e obediência. E isso torna ainda mais frio e calculista, ainda mais satânico e maligno e chocante do que outros genocídios, eu acho. E isso aconteceu em tempos modernos. Se você pensar em Genghis Khan, sim, foi ruim, mas é tão diferente, não é conosco, são pessoas muito diferentes, outra cultura, outro tempo. Mas, na Alemanha, eles eram pessoas educadas que iam à ópera, falavam diferentes línguas, falavam Latim, sei lá, pessoas que tinham boas maneiras, ótimos engenheiros, então era uma grande sociedade civilizada. E então eles se sentam e dizem, como é que vamos nos livrar dos judeus? Quantos temos na Conferência de Wannsee? Onze milhões na Europa. Ok. Então nós temos que nos livrar de onze milhões de corpos num curto período, nas indústrias? Vocês têm que construir câmaras de gás. Alguma coisa desse tipo. As pessoas se sentam e resolvem um problema. Isso choca. Isso, eu acho, é a grande ameaça da contemporaneidade. E eu acho que as pessoas deveriam conversar sobre isso, têm que forçar os outros a lembrar disso. Porque se você sabe disso, se tem isso em mente, se você vê isso retornando, então você não irá dizer o mesmo discurso. Na próxima ditadura, o uniforme irá parecer diferente. Você terá ternos e gravatas, mas a receita será a mesma. Se você sabe bem a história, você sabe imediatamente, você sabe, você grita, não é nenhum tipo de idiota. Mas se não sabe de nada, acredita em tudo. Mesmo se Hitler não tivesse vindo, eles teriam feito a mesma coisa. Então a educação é realmente importante. Como artista, acho que há uma parte da arte em que eu quero educar e inspirar as pessoas. E então eu espero, através da estética e educação, que você possa inspirar as pessoas. Acho que é possível, mas não diretamente. A maioria das pessoas duvida que a arte possa fazer isso de diretamente, mas acho que a arte é a mais poderosa coisa que existe, justamente porque ela não é diretamente, não é certa, você leva tempo, você pode ser muito sutil. Não é diretamente visível, mas a arte pode transformar, mudar tudo. E a ausência da arte é um desastre. Porque em várias ditaduras, com Hitler, Mussolini, Franco, Mao, você tem uma ausência de arte, a arte é suprimida, porque eles sabem, a arte é um problema para eles, então eles precisam queimar livros, poemas, música. Poucos artistas podem mudar isso. Porque a estética viaja muito mais rápido que discursos estúpidos de ditadores, assim como uma música ou algo estético viaja muito mais rápido que qualquer outra coisa, tão rápido quanto a velocidade da luz.

Ele era um garoto chamado Elvis, que começou a cantar na América, e em muito pouco tempo todo o planeta sabia suas músicas e todos conheciam sua face, todos a reconheciam. E a América tentou oprimi-lo. Eles estavam assustados, no começo, não era para as pessoas mostrarem na televisão. Então quando não puderam mais pará-lo, eles proibiram de mostrá-lo da pélvis para baixo, apenas para cima, porque se vissem o jeito que ele se movia, as pessoas fariam amor como selvagens, e eles não queriam isso. Então você vê como pessoas poderosas ficam assustadas diante de artistas? É por isso que frequentemente eles os colocam em gulags, campos de concentração, proíbem obras de arte com censura. Então, eu acho que a arte pode mudar algo.

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Porque eu estava pensando, a mídia sempre está tentando nos lembrar sobre os escândalos e os grandes casos de violência e assassinato, mas você acha que ela tem o mesmo impacto que a arte ao falar sobre os mesmos assuntos?

Não, é o oposto. Parece que é similar e é o oposto. Não é verdade. Porque quando você assiste à quantidade de notícia que nós temos, e o horror, na maioria das vezes são catástrofes que você ouve falar sobre. Catástrofes, terror, ameaça. A única coisa que isso faz, quando você olha em volta, é deprimir as pessoas, fazê-las menos felizes, menos otimistas, menos confiantes. As pessoas têm medo do futuro, ele as amedronta. E esse é o propósito. Acho que isso é algo importante. Qual é o propósito? O propósito da mídia é assustar as pessoas. É o que as pessoas poderosas querem. Porque se você assustar as pessoas, se dizer que os terroristas estão em todos os lugares, então o que as pessoas irão fazer? Elas irão querer entregar sua liberdade por segurança. Esse é o combinado. O governo diz “Nós iremos protegê-lo, você só tem que ceder os seus direitos, sua liberdade e então iremos protegê-lo”. E isso é um prejuízo.

A mídia é o oposto. A arte pode falar sobre a mesma coisa, sobre horror, sobre dor, mas quando você olha para a pintura de Hieronymus Bosch, por exemplo, havia a tortura, a insanidade, horrores, monstros, morte... Cidades estão pegando fogo... Mas veja as pessoas nos museus observando-as. Elas abandonam as pinturas deprimidas? Elas querem cometer suicídio depois disso? Não. As pessoas olham e se sentem “uau!”. Elas se sentem mais brilhantes, por alguma razão, e isso é estranho, porque é algo ruim, mas é tão bonito, meu deus, como ele pôde pintar isso? Então é basicamente a mágica de um artista. Você pode escolher algo tão horrível que ninguém nem pode olhar para aquilo e então com a estética torná-lo em alguma coisa que irá salvá-lo, aliviá-lo. Isso mostra que a alma ou a estética, que realmente vem da alma, é muito mais poderosa que qualquer outra coisa, qualquer outra coisa do planeta. Até mesmo a morte você pode transformar em algo bonito. É por isso que a arte é o oposto, o exato efeito oposto da mídia. Se eles falam sobre o mesmo assunto, está em universos diferentes. A mesma coisa com Shakespeare, em outro período, quando ele fala sobre Ricardo III. É sobre uma ditadura insana, mas é bonito. Você olha para a linguagem, que é tão bonita. Quer dizer, é algo que dura para sempre. Então é exatamente o oposto do que a mídia seria.

Você comenta em algumas entrevistas que quando você era criança, você encontrou uma foto de seus parentes usando uniforme nazista e que eles não queriam falar sobre aquelas memórias tanto quanto as outras pessoas ao seu redor. Como eles estavam lidando com aquele passado recente, enquanto eles estavam vivendo com uma nova geração que não havia vivenciado a guerra e que estava mais interessada na cultura popular americana? Os adultos também tinham interesse nisso?

Não, para os adultos, a cultura popular americana era horrível. Por exemplo, os quadrinhos eram considerados algo realmente ruim e normalmente eram proibidos. E quando eu disse uniformes nazistas, eles não eram uniformes da SS, eles eram tipo soldados. Todos eram soldados. Mas de qualquer forma, o uniforme era do exército de Hitler e aquilo era algo que também me assustava. “Por que você foi?” era a minha pergunta. E eu realmente perguntei a eles, mas não obtive uma resposta. Por que você iria? Porque eu nunca colocaria um uniforme e mataria por alguém. Nunca, jamais. Mas para eles, eles já estavam quebrados há muito tempo. Eles eram disciplinados a obedecer, obedecer, obedecer. Todo o propósito da vida é obedecer. Isso eu vi um milhão de vezes e é por isso que eu adotei como meu mote: “Desobedeça, desobedeça, desobedeça”. Essa é a coisa mais importante. Meus filhos, eles lhe 146 garantem, eu sempre digo: “Desobedeça, discorde”. Acho que o mais importante que você pode dizer a uma pessoa jovem ou uma criança é descubra quem você é e nunca deixe ninguém lhe manipular ou lhe diminuir ou lute por isso. É a coisa mais preciosa que você tem. Não há autoridades acima de você. Haverá grandes pessoas com as quais você irá aprender, mas tem que ser decisão sua se você quer fazer aquilo. Então nenhum sistema deve ser permitido a manipular ou dizer a você o que você deve fazer.

Para retornar à pergunta, quando questionei meus pais, essa geração dos meus pais, eles não podiam falar sobre isso. Não que eles não quisessem, mas eles não confiavam em mim, eu nunca iria entender o que eles fizeram. Eles só perceberam mais tarde que isso tinha sido ruim. Mas você tem também uma chance, se você esquecer tudo agora, completamente, e se tornar totalmente democrático e parte do novo sistema. Então eles disseram sim, não tem nada de bom sobre o passado e ninguém tem um passado. Mas nossa geração, alguns de nós decidimos fazer perguntas, o que era muito desconfortável para os pais. Então eles não tinham uma resposta, apenas “você não entende, você é só uma criança”, sabe? Alguém que nunca vivenciou a guerra não poderia saber de nada. E isso era um grande precipício formado entre as gerações. É por isso que houve tantas revoltas, rebeliões e revoluções de estudantes e jovens. Mas eu pessoalmente vi as mais antigas revoluções estudantis. Eu me sentia muito como um revolucionário, eu queria entender e saber para onde a corrente política estava indo todo o tempo. Mas eu tinha devaneios violentos, sabe? Quando eu vi, mais tarde na universidade, todos os estudantes com um discurso neomarxista, discutindo Lênin... Isso era a mesma coisa novamente, apenas uma variação diferente. Eu não queria viver aquela ditadura, só que uma nova. Isso não é liberdade. Quer dizer, agora você marcha para um diferente Führer. E eu disse não, isso não é liberdade. Liberdade para mim é algo diferente. Para mim, eu devo dizer, sou obcecado pela ideia de liberdade. Liberdade e independência são as coisas mais importantes para mim. Liberdade e estética. Mas estética é liberdade.

Há certa crítica contra a cultura americana na sua série The American Paintings. Por que a cultura pop americana foi um tipo de salvadora quando você era criança e o que ela se tornou para você quando você cresceu?

Sim, ela foi [uma salvadora], porque era como luz num universo escuro. Uma cor num universo sem cor. Porque, para mim, era tudo preto e branco e realmente não havia cores. Tudo era lento, muito lento. Era como eu sentia. E era muito escuro e não havia cores. E cinza. Então quando eu abri minha primeira revista em quadrinhos do Pato Donald, foi como abrir uma porta para um novo universo. Um universo de cores. A primeira vez que eu experimentei cores, espaço, espaço sem fim e velocidade e possibilidades intermináveis. Então eu estava entrando no paraíso. Para mim, isso foi realmente importante. E também os filmes. Quando eu vi os filmes em preto e branco – Charles Chaplin, James Dean – alguns filmes americanos bem antigos. Eu não vi muitos. E então teve o Elvis. E o Elvis eu vi numa figura de uma goma de mascar, como uma foto antiga. Eu não sabia quem era ele, não sabia seu nome, nunca havia ouvido sua música e quando vi sua foto, eu pensei: “Meu Deus, ele é o ser mais bonito que eu já vi na minha vida”. Eu disse: “Como um ser humano pode ser tão bonito?”. Então eu guardei essa foto como a figura de um santo e dois anos mais tarde eu ouvi a música pela primeira vez e eu fiquei extasiado novamente e, meu Deus! É como se essa música invadisse as suas entranhas, sabe? É diferente. A América tinha o sabor da liberdade. Você pensava: “Eu quero ir lá”. E quando eu fiz a série America [The American Paintings], foi na verdade uma forma de lembrar os tempos dos primeiros filmes em preto e branco que eu vi, quando não havia filmes e todas aquelas coisas. Há talvez algumas críticas sutis sobre a 147

América, mas é mais algo sentimental sobre certo período no tempo e uma estética e é uma lembrança de certo tempo que é muito importante e que me dava esperança.

Porque há uma relação entre a Disney e a cultura popular americana, propaganda e o capitalismo, em geral. Você enxerga isso?

Naquela época, eu não via isso, porque eu apenas via a estética na arte. Eu não sabia nada sobre dinheiro, não sabia nada sobre corporações. Não sabia que elas existiam. Patópolis e o Pato Donald não são desse mundo, eles são do Paraíso. Sabe o Tio Patinhas? Ele tem um monte de dinheiro. Não é dinheiro de verdade, é tipo dinheiro do céu. Eu não pensava sobre isso, mas eu devo dizer que capitalismo é um termo que pode ser usado para muitas coisas. O capitalismo de então era totalmente diferente do atual. Ele mudou. Acho que Disney fez muito dinheiro, mas ele o usou para produzir arte. Ele foi um dos maiores gênios que já existiu. Mas hoje o capitalismo tomou uma reviravolta ruim, então está decaindo. Porque agora ele tem se tornado totalmente destrutivo. Do tipo, dominando outros países, bombardeando-os, roubando seus recursos, possuindo campos de tortura. Então hoje o capitalismo, assim como os neoconservadores, eles realmente criaram algo novo. Acho que o capitalismo no tempo de Walt Disney era algo diferente de hoje em dia.

Mas essas referências à cultura pop Americana que você tem no seu trabalho têm mais a ver com seus sentimentos como criança ou como adulto?

Como dizer? Isso depende em quais pinturas elas estão. Acho que quando as pinturas novas se referem ao sangue, a diferentes tipos de quadrinhos, como mangá ou anime, os quais não são a minha estética, para mim é algo diferente, uma geração diferente – minha estética era a Disney e esse tipo de coisa. Mas eu vejo como esse tipo de estética penetra no planeta, é como uma nova realidade e também como jogos de computador e a moda, há muita influência disso, da publicidade. E isso tudo se mistura com propaganda e distração, e ao mesmo tempo você tem guerra, guerra como um entretenimento nos filmes, guerra nos jogos de computador, você mata pessoas nos jogos de computador. Ou as mesmas pessoas, quando elas envelhecem, elas trabalham para o exército ou para a CIA e se sentam em frente de telas e jogam a mesma coisa com um joystick, exatamente a mesma coisa, mas agora é real e eles vão e matam uma família, no Paquistão ou algo do tipo. Mas é o mesmo jogo: matar pessoas. Então é algo que é interessante o que eu proponho, não diretamente, mas indiretamente.

Continuação da entrevista, feita por e-mail.

Por que você escolheu usar bonecos de anime? O que a cultura japonesa significa para você?

Anime sempre foi muito estrangeiro e estranho para mim. Não é minha estética, mas eu percebi um dia que essa estranha criação japonesa tem permeado nossa cultura, especialmente uma geração mais nova, em um grau notável.

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No início, eu comecei a frequentemente usar personagens de quadrinhos nas minhas pinturas como um tipo de oposição ou contrapartida aos jogadores, por outro lado, muito realistas na minha relativa. Era normalmente o Pato Donald, mas nesses últimos anos eu decidi usar personagens de anime. Fazia mais sentido no contexto com os temas dos meus trabalhos recentes.

Neon Genesis Evangelion tem algum significado para você e para as pinturas em que uma das personagens aparece?

Não, eu escolhi essa personagem intuitivamente e quanto mais eu trabalhava com essa silenciosa garota de cabelo azul, mais eu gostava dela.

Em muitos casos, os ideais e morais ocidentais são diferentes dos orientais. Quando você põe uma boneca de anime ao lado de uma criança ocidental, o que você quer dizer?

Nos trabalhos aos quais você se refere, eu apenas penso numa criança versus uma boneca (criança artificial), não nenhuma questão racial ou étnica.

Eu percebi que, na exposição no Albertina, as pessoas tinham a mania de ir muito perto da pintura para ver as marcas do pincel ou talvez tentar entender como você pintou algo tão realista como uma fotografia. Quais técnicas você usa?

Eu geralmente projeto e delineio e depois pinto. Mas eu sempre experimento diferentes técnicas de como transferir minha composição final para a tela. Às vezes eu imprimo uma marca d’água nas telas e depois pinto totalmente e frequentemente mudo com muitas camadas de pinceladas. Eu ainda experimentos muitos métodos diferentes. Mas concordo totalmente com Picasso quando ele disse: “Eu gostaria de chegar ao ponto em que o observador não pode ver como eu pintei meu quadro. O que importa? Meu único desejo é que nada senão emoção seja causada pela minha imagem”.

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6.2 Cronologia228

 8 de outubro: Nascimento 1948 Filho de Joseph Helnwein, trabalhador administrativo, e de Margarethe Helnwein, dona de casa, Helnwein cresce entre a depressão vienense pós-guerra e a fazenda de seus avós na parte rural da Baixa Áustria.

1854 Ganha de seu pai a primeira revista em quadrinhos alemã da Disney.

1955 Helnwein passa a frequentar a escola católica Schulbrüder, em Viena. Passa a se envolver com os rituais da religião, tornando-se coroinha e faz amizade com jesuítas. 1960 Tenta ingressar em diferentes escolas de ensino médio, primeiramente na Bundesgymnasium e depois na BRG4 Bundesrealgymnasium, mas não consegue se adaptar. Deste ano até 1969, estuda na Höhere Bundes-Graphische Lehr- und Versuchsanstalt 1965 (Escola Superior Federal de Educação Gráfica e Experimentação), em Viena. Torna- se amigo de Manfred Deix, Friedrich Hechelmann, Bernhard Paul e Joseph Bramer.  Primeira Aktion (ação) para pequenos públicos 1966 Helnwein corta o próprio rosto e mãos com navalhas, instrumento de gravura em madeira e usa água forte durante a ação. Primeiro trabalho com bandagens.  Peregrinação Helnwein vai a pé de Viena a Veneza com seu amigo Manfred Deix, ficando vários 1968 dias sem comer ou dormir.  Expulsão da Höhere Bundes-Graphische Lehr- und Versuchsanstalt Helnwein usa seu próprio sangue para pintar a imagem de Adolf Hitler (Führer) e causa transtorno entre os professores. A administração confisca a pintura.  Nova escola 1969 Deste ano até 1973, Helnwein estuda pintura na Academia de Belas Artes, em Viena. Foi a mesma universidade na qual, em 1907 e 1908, Adolf Hitler tentou ingressar, mas que foi nas duas oportunidades rejeitado nos cursos de arte.229  Início hiperrealista Helnwein começa a trabalhar numa série de aquarelas de crianças feridas e enfaixadas.  Ganha o prêmio Meisterschul-Preis da Academia de Belas Artes de Viena 1970  Nova série hiperrealista de crianças feridas e primeiras pinturas a óleo Helnwein segue uma pesquisa intensiva de vários formatos estéticos triviais como visto em quadrinhos, propaganda e filmes, aplicando as conclusões em seus trabalhos.  Aktion Die Akademie brennt A ação Die Akademie brennt (A academia queima) contou com a participação de mais dois colegas de classe e vários ativistas contratados. Helnwein organizou uma rebelião na Academia de Belas Artes em Viena. O motivo era a recusa dos professores em aceitar que representantes dos alunos participassem dos exames de ingresso na instituição. O evento foi planejado e coreografado por Helnwein, que fez com que os professores se mantivessem trancados numa sala, nas quais atearam fogo às portas. O prédio se encheu de fumaça, a pintura derreteu das paredes, janelas foram quebradas e sérios danos foram causados à instalação. A “revolta dos 150

estudantes na Academia de Belas Artes de Viena” se tornou manchete por toda a Áustria. No dia seguinte, Helnwein e seus colegas foram pegos por guardas da universidade e receberam uma multa. A ministra das artes e ciências austríaca à época, Hertha Firnberg, declarou que a ação foi política e que todas as investigações e procedimentos criminais foram abortados diante da constatação.  Primeiro casamento Helnwein se casa com Ilse R.  Primeira exposição solo na Galerie Atrium, em Viena A exposição abriu com o retrato de Hitler feito por Helnwein e mais seis imagens de crianças.  Primeiros autorretratos Fotografias de si mesmo usando bandagem e instrumentos cirúrgicos.

Obras: Aquarelas: Unkeusches Kind, Peinlich, Gemeines Kind, Der Eingriff. A óleo: Mutter, Du hier?; Führer, wir danken Dir!  Helnwein funda o grupo Zoetus, em Viena 1971 Faziam parte Franz Moelk, Jochen Wahl, Gottfried Helnwein, Ulrich Gansert, Franz Zadrazil e Thomas Moog.  Prêmio Kardinal König Na exposição Zoetus na Kunsthalle Kunstlerhaus em Viena, pessoas não identificadas colam adesivos com as palavras “entartete Kunst” (arte degenerada) nas pinturas de Helnwein.  Pinturas confiscadas Na abertura de sua exposição na Galerie D, em Mödling, cidade próxima à capital, trabalhos de Helnwein são confiscados pela polícia, sob ordens do prefeito.  Primeira aktion com crianças Primeiro em seu estúdio e depois nas ruas de Viena, Helnwein continuaria suas performances nos anos seguintes.  Protestos fecham exposição na galeria da Pressehaus 1972 Sede dos maiores jornais da Áustria, a Pressehaus recebeu os trabalhos de Helnwein para uma exposição que, no entanto, foi descontinuada três dias depois por conta de fortes protestos feitos por visitantes e empregados, além de ameaças de greve por parte do conselho dos funcionários.  Ações Sorgenkind e Ewige Jugend, em Viena  Helnwein trabalha numa série de pinturas feitas com caneta e tinta, giz e lápis  Com arranhões e raspagens, Helnwein cria “stigmatas de luz” em uma série de fotos de crianças e autorretratos  Primeira edição de uma gravura Meine Buben haben einen Türken in die 1973 Schlucht  Primeira capa para a revista Profil A imagem Selbstmord in Österreich, que mostrava uma garotinha cortando os pulsos, fez com que vários leitores ficassem ofendidos e cancelassem a assinatura.

Performances: Sandra (em Stubenbastei, Viena); Gifttanz (Viena); Pinocchio (Viena), Hallo Dulder! (Viena) Fotografia: Selbstportrait mit Schmunzelhilfe  Aktion Sandra (numa galeria em Stubenbastei, Viena) 151

 Aktion Gifttanz (em Viena)  Prêmio Theodor Körner 1974  Helweins Sehtest O filme, produzido pela ZDF (TV Nacional Alemã), foi dirigido por Heinz Dieckmann.  Aktion Weisse Kinder Performance com quinze crianças enfaixadas na Kärntnerstrasse, centro de Viena.  Helnwein trabalha numa série de desenhos feitos com caneta e tinta 1975 Unser Entenbischof; Zwei amerikanische Ärzte behelligen eine Patientin; Mullatin Erika in ihrem Haus; Das Wannenwunder von Watras; Metallippe zum Lächeln; Das Grubenunglück; Korrekturspange; Assistent Assmann; Hilfe für Mann ohne Kinn.  Helnwein e Ilse se divorciam.  Aktion Allzeit Bereit 1976 Realizada no mais popular mercado vienense, o Naschmarkt.  Aktion St. Stephen, com Robert Schoeller Helnwein dependura um boneco de abelha gigante nas costas numa ação em Viena.  Aktion Cafe Alt Wien Helnwein enfaixa o rosto com bandagens e faz sua ação em um café fundado em 1936. Atualmente não é considerado um estabelecimento luxuoso, mas sua fama é relacionada aos eventos inusitados que ali aconteceram, como a ação de Helnwein. Desde 1980, o Kaffee Alt Wien tem funcionado apenas à noite.  Helnwein viaja pelos Estados Unidos durante meses 1977  Início de seu relacionamento com Renate Kurrer  Cyril, filho de Helnwein, nasce  Exposição solo no museu Albertina, em Viena, de desenhos a caneta e tinta 1979  Mercedes Xenia, filha de Helnwein, nasce  Life not worth living Após o psiquiatra austríaco Dr. Heinrich Gross assumir ter envenenado a comida de crianças no hospital pediátrico onde trabalhava, Helnwein pinta a aquarela Life not worth living. A imagem é publicada na revista Profil e causa polêmica no país.  Ação no Ano Internacional da Criança No dia 1º de janeiro de 1979, a UNESCO proclamou aquele como o Ano Internacional da Criança. Inspirados nisso, R. Höpfinger e E. Regnier distribuem doces e brinquedos com fotos de crianças machucadas feitas por Helnwein aos transeuntes em Zurique.  Helnwein encontra Andy Warhol, em Viena 1981  Deste ano até 1985, Helnwein se dedica a uma série de autorretratos e ações que, algumas vezes, incluem seus filhos  Início da amizade com o poeta H.C. Artmann  Song for Helnwein – Boulevard of Broken Dreams O poeta e dramaturgo austríaco Wolfgang Bauer escreve a balada Song for Helnwein – Boulevard of Broken Dreams. O aposto leva o mesmo nome da aquarela feita por Helnwein em 1984, a qual foi uma reinterpretação da pintura Nighthawks, de . Nesse mesmo ano, Helnwein e Bauer também começam uma amizade.  Helnwein se casa com Renate, em Viena 1982  Ali Elvis Donald Dagobert Lancelot, filho de Helnwein, nasce  A Faculdade de Artes Visuais (Hochschule für Angewandte Wissenschaften), em Hamburgo, oferece uma cadeira a Helnwein 152

Helnwein pede para que não haja testes e restrições de idade como pré-requisitos para seus estudantes, já que gostaria de ter liberdade para aceitar qualquer pessoa, inclusive crianças. A faculdade rejeita o pedido como sendo algo contra o regulamento da universidade e Helnwein recusa a oferta.  Helnwein se encontra com os Rolling Stones, em Londres Mick Jagger, Keith Richards, Ron Wood, Charlie Watts e Bill Wyman posam para Helnwein.  Peter Sager escreve um artigo sobre Helnwein na revista Zeit  Participação do talk-show Teestunde No programa transmitido pela Rádio Nacional Austríaca, Helnwein usa palavras obscenas para insultar Sam T. Cohen, inventor da bomba de nêutrons, acusa o médico de Elvis Presley de assassinato e critica o sistema educacional referindo-se ao grande número de suicídios cometidos por estudantes. Helnwein, inclusive, sugere para que os jovens fiquem longe da escola. O diretor da Rádio Nacional Austríaca (ORF) fica estarrecido com as declarações e cancela o programa.  Helnwein se encontra com em Düsseldorf  Autorretrato de Helnwein se torna capa do LP Blackout da banda de rock alemã Scorpions Em 1987, Klaus Albrecht Schroeder, diretor do museu vienense Albertina, pronunciou-se sobre essa imagem frequentemente reproduzida: “É difícil negar que o simbolismo da agressão e da vulnerabilidade do bem conhecido e variado autorretrato de Helnwein, com a cabeça enrolada em bandagem, olhos cegados por garfos cirúrgicos e boca aberta para um grito, é algo como uma metáfora autoevidente para uma estipulação humana elementar da existência nos dias de hoje”230.  Retrato de Kennedy pintado por Helnwein se torna capa da revista Time na edição que lembra os 20 anos de aniversário de morte do presidente americano  Exposição solo no Museu Municipal de Munique 1983 Mais de cem mil pessoas visitam a exposição.  ZDF e ORF (emissoras de televisão nacionais da Alemanha e da Áustria) produzem o filme Helnwein, dirigido por Peter Hajek Em Los Angeles, Helnwein contra , que participa do filme.  Emissora de TV da Bavária produz um filme sobre Helnwein, dirigido por Hans-Dieter Hartl  Rettet die Donau (Salve o Danúbio) O colecionador de arte e patrono austríaco Hans Dichand financia uma campanha com grandes outdoors contendo as obras de Helnwein por toda a Áustria, pondo-se contra a destruição da última grande floresta ribeirinha na Europa feita pela companhia austríaca de energia Donau Kraftwerke AG.  Helnwein encontra Andy Warhol em sua Factory, em Nova Iorque Warhol posa para o austríaco.  Helnwein, o filme de Peter Hajek, abre a Semana Austríaca no festival 1984 berlinense de cinema Berlinale A obra ganha o prêmio Adolf Grimme e, no mesmo ano, recebe também os prêmios Eduard Rhein e Golden Kader da cidade de Viena.  Helnwein se encontra com artista da Walt Disney, Carl Banks, criador do Pato Donald O austríaco continua afirmando que aprendeu mais sobre arte e sobre a vida com o personagem que com as escolas nas quais estudou231. 153

 Autorretrato feito com colagens é a contribuição de Helnwein para a exposição “1984 – Orwell and the Present Day” no Museu de Arte Moderna, em Viena  The Hindustan Times publica artigo sobre Helnwein “Gottfried Helnwein: Conhecido como “Rembrandt da Navalha” ou “O Boris Karloff da Arte”, Helnwein é o homem que os austríacos mais amam odiar. Ele choca as pessoas. Suas pinturas são cenas do cotidiano, altamente realistas, mas há uma forte e mórbido vestígio em muitas delas. Crianças com lâminas, faces em extremo estresse, com medo ou dor. Intensamente humano, frequentemente selvagem, mas sempre impressionante. Eu descobri que ele é um sensível e emotivo ser humano”232.  Início da amizade com Marlene Dietrich Gottfried e Renate Helnwein foram duas das poucas pessoas que Marlene convidava para visitá-la em sua casa e que se mantiveram próximas até o fim de sua vida.  Exposição coletiva Kunst und Integration  Autorretrato é exibido na exposição Köpfe und Gesichter na Darmstadt Kunsthalle  Autorretrato é capa da revista italiana L’Espresso  O retrato de Gromyko O gabinete de Gromyko, Ministro do Exterior soviético, tenta adquirir o retrato que Helnwein fez do político e que foi capa da revista Time, mas a pintura já era parte de uma coleção do Smithsonian Institute em Washington D.C.  Mudança no formato 1985 Na Alemanha, Helnwein muda radicalmente seu método e começa a fazer pinturas em larga escala, formada por várias partes (dípticos, trípticos etc). Assim, ele combina murais fotográficos com o abstrato e a pintura monocromática em óleo e acrílico, usando reproduções de pinturas e fotografias de guerra feitas por Caspar David Friedrich.  Exposição solo no museu Albertina, em Viena Catálogo com textos de Walter Koschatzky e Peter Gorsen  Helnwein compra um castelo medieval próximo a Colônia e ao rio Reno, no qual trabalha e vive até se mudar para a Irlanda, em 1997  Rudolf Hausner recomenda Helnwein para ser seu sucessor O austríaco é convidado a dar aulas especiais de pintura na Universidade de Artes Visuais de Viena. Helnwein recusa e muda-se de Viena para a Alemanha, com sua família.  Revista Time encomenda capas com o político chinês Deng Xiaoping, feitas por Robert Rauschenberg e Gottfried Helnwein  Autorretratos em larga escala metamorfoseados 1986 Helnwein retrabalha seus autorretratos de homem gritando com garfos nos olhos e inicia uma série fotográfica de dramatização própria, usando temas como o herói agonizante, o soldado da SS, o sofredor, o amigo das crianças e o cadáver mumificado.

Obras: Gott der Untermenschen; Das stille Leuchten der Avantgarde; Bete Herr, denn wir sind nah!; Eine Träne auf Reisen; Der Tod des Expertentums; Partisanenliebe; Blitzkrieg der Lieb; Geheime Elite; Gefäss der Leidenschaft.  Helnwein – Der Untermensch, na França 1987 Autorretratos feitos entre 1970 e 1987 são exibidos numa exposição solo no Musée d’Art Moderne, em Estrasburgo. O curador-chefe de museus da cidade, Roland 154

Recht, comentou: “O vienense Helnwein é parte de uma tradição que retorna ao século XVIII, ao qual também pertencem as esculturas de careta feitas por Messerschmidt, sobre quais os pupilos de Freud escreveram um longo tratado. Vê-se também a comum inspiração desses trabalhos com aquela de Arnulf Rainer ou Nitsch, dois outros vienenses, que mostraram seus próprios corpos como referências de ferimento, dor e morte. Vê-se também que essa fascinação pela linguagem corporal vai de encontro com os expressivos gestos na obra de ”233.  Instalação e ação (exposição-ópera) Der Untermensch, na Kunsthalle Bremen Imagens, música, ação, teatro espontâneo e vídeo são os formatos utilizados por Helnwein nessa instalação que conta com homens vestidos de soldados nazistas, os rostos pintados em preto e mãos que puxam vacas pelos corredores da Kunsthalle.  Numa exibição solo no Freie Volksbühne, em Berlim, as pinturas Moral e Losing Time são roubadas. As obras nunca foram recuperadas  Exposição solo no Museu Leopold Hoesch, em Düren, e no Villa Stuck, em Munique  Novo formato: desenho em pastel De 1987 a 1989, Helnwein trabalha numa série de desenhos em pastel: Der Tod des Pinocchio; Gott in Panik; Modern Sleep; Burnt Angel e outros.  Wolfgang Amadeus, filho de Helnwein, nasce  Aktion Gott der Untermenschen Helnwein realiza a ação no campo Kopal do exército austríaco, em fevereiro de 1987. O artista usa tanques e munição de verdade.  Desenhos em giz de cera Paralelamente às pinturas em larga escala e de múltiplas partes, bem como às fotografias, Helnwein começa a trabalhar com giz de cera nas ilustrações Knabe und Neger; Triumph der Wissenschaft; Nachgeburt der Venus; Das Lügengebet.  Exposição solo no Museu Mittelrhein, em Koblenz, e no teatro Freie Volksbühne, em Berlim Debate sobre “Violência, Sexualidade, Antiguidade” com Heiner Müller, Hans Neuenfels, Ernest Bornemann e Helnwein.  Exposição solo no Museu Folkwang, em Essen 1989  Helnwein se encontra com William S. Burroughs, em Lawrence, Kansas  Exposição solo no Musée de l’Elysée, em . Instalação Neunter 1990 November Nacht  Design de palco e figurino de Die Verfolgung und Ermordung Jean Paul Marats, dargestellt durch die Schauspielgruppe dês Hospizes zu Charenton unter Anleitung des Herrn de Sade (A perseguição e assassinato de Jean Paul Marat, interpretada pelo grupo dramático do Hospício de Charenton, sob direção do Monsieur de Sade), de , dirigido por Hans Krenik, no Staatstheater, em Stuttgart  Instalação Kindskopf 1991 Na igreja Minoriten, em Krems, no Niederösterreichisches Landesmuseum. Helnwein faz um quadro de 6x4m de uma cabeça de criança para a abside da basílica gótica. Dez dias depois da abertura, ele pinta seus filhos Amadeus, Ali Elvis e Mercedes numa tela de larga escala, a qual ele dispõe na basílica.  Convite de visita em Praga Karel VII Schwarzenberg, chanceler de Václav Havel e presidente da República Tcheca, convida Helnwein para ir a Praga. Schwarzenberg recebe o austríaco em seu

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escritório no Castelo de Praga, sede do presidente da República Tcheca, e discute os trabalhos de Helnwein.  48 Retratos Helnwein trabalha na série 48 Portraits, com 48 retratos monocromáticos vermelhos de mulheres feitos com tinta a óleo, em tela, em contrapartida aos 48 Portraits (1971) de , no qual apenas homens são retratados em tons de cinza. O ciclo de pinturas é primeiro exibido na Galerie Koppelmann, em Colônia, e depois é adquirido pelo colecionador Peter Ludwig, para o Museu Ludwig, em Aachen.  Exposição solo da série de fotografias Faces 1993 Realizado no Rheinisches Landesmuseum, em Bonn, o evento contou com retratos de Charles Bukowski, John Cale, William S. Burroughs, Keith Richards, , Leni Riefenstahl, Arnold Schwarzenegger, Roland Topor, Heiner Müller, Keith Haring, Willy Brandt, Michael Jackson, Arno Breker, Andy Warhol e Mick Jagger.  James Brown Helnwein encontra o músico na Alemanha e o convida para posar para uma sessão de fotos.  Exposição solo no museu Josef Albers, em Bottrop, na Alemanha  Exposição da série Faces no Munich Stadtmuseum  Exposição Aktion-Reaktion Obras de artistas do Acionismo Vienense (Rainer, Nitsch e Brus) são expostas junto às de Helnwein na Fundação Fiecht, na Áustria  Helnwein encontra Lech Walensa, presidente da Polônia, na Alemanha. Ela posa para uma sessão de retratos  Torino Fotografia 1989, Biennale Internationale A exposição coincide com os 150º aniversário da fotografia e a curadora Daniela Palazzoli convida artistas como , Gottfried Helnwein e Clegg & Guttmann para fazerem parte do evento.  Helnwein faz o design de palco e o figurino de Oedipus, de Sófocles, no Teatro Coreográfico de Hans Krenisk, em Heidelberg  Trabalha no design de palco e no figurino de Carmina Burana, de Carl Orff, na ópera Bayerische Staatsoper O evento, que abria o Festival de Munique de 1990, chamou a atenção de Wolfgang Sawallisch, diretor da Staatsoper, que viu o figurino radical criado por Helnwein e, chocado, imediatamente marcou uma coletiva na qual anunciou a demissão de Helnwein e do diretor Hans Kresnik.  Cooperação com o dramaturgo alemão Heiner Müller e o coreógrafo Hans Kresnik, numa peça sobre Antonin Artaud Heiner Müller sobre Helnwein: “Como uma pessoa amigável como Helnwein é capaz de fazer suas – excelentes – pinturas refletindo os horrores desse século? Ou é isso que ele não é capaz de não fazer?”234.  Os trabalhos fotográficos de Helnwein, feitos entre 1970 e 1989, são publicados por Daí Nipon, no Japão. Com texto de Toshiharu Ito  Exposição solo da série de fotografias Faces no Centre International 1994 Contemporain d’Art, em Montreal  Martin Kippenberger Helnwein encontra o pintor alemão em Colônia depois de ter feito, em 1987, a pintura Kippi Blue, um retrato de Kippenberger. Dois anos antes, Kippenberger já havia feito a pintura Kaputtes Kind, Martin Kippenberger (nach Helnwein), inspirada 156

nos desenhos de Helnwein feitos em 1972.  Exposição solo no Mittelrhein-Museu Koblenz, na Alemanha  Helnwein trabalha na série Fire Pinturas monocromáticas com os rostos de Arthur Rimbaud, Jim Morrison, Malcolm X, Mishima, Mayakovski, Rosa Luxemburgo, Ulrike Meinhof e outros.  Exposição solo no Städtisches Museum, em Schleswig na Alemanha  Das Jahrzehnt der Malerei Pintores austríacos da Coleção Schömer de Viena são expostos na Kunstverein, em Augsburg, Alemanha.  Helnwein trabalha intensivamente no desenvolvimento de novas técnicas Novas técnicas de mídia mista incluem a combinação de imagens feitas em computador, pintura e novos componentes utilizados na tela (tinta a óleo, acrílica e jato de tinta).  Exposição It’s only Rock and Roll, Phoenix Museum of Art, Arizona 1995  Instalação de um retrato monocromático em azul de 25x16 metros em um prédio no centro de Viena  Instalação Ninth November Night – Selektion em Berlim, Kulturbrauerei  Exposição coletiva no Ludwig Museum Schloss Oberhausen: Versuche zu trauern  Exposição solo no Museu de Belas Artes em Otaru, Japão. Instalação 1996 Neunter November Nacht  Palco e figurino de Pasolini no Schauspielhaus Theatre em Hamburgo  Colecionadores e fundadores de diversos museus, Peter e Irene Ludwig, visitam o estúdio de Helnwein no Schloss Burgbrohl Eles adquirem mais de 100 obras, entre elas Kindskopf, 48 Portraits, Dresden e uma encomenda feita a Helnwein para que pintasse seus retratos ao Museu Estadual Russo de São Petersburgo.  Helnwein começa a pintar a série Epiphany  Exposição coletiva no Museu de Arte Moderna de São Francisco  Helnwein trabalha na série de fotos Poems  Helnwein se muda com sua família para , na Irlanda 1997 Em 1998, eles se mudam para um castelo em Tipperary, onde moram até hoje.  A pintura Dresden de Helnwein é exposta na abertura da exposição coletiva do Museu Ludwig no Museu Nacional Chinês de Belas Artes, em Pequim  Sessão fotográfica com a banda alemã de Rammstein no Schloss Burgbrohl  Die Hamletmaschine, de Heiner Müller Versão de Gert Hof e Gottfried Helnwein, com Les Tambours Du Bronx e Casper Brötzmann.  Retrospectiva no Museu Estadual Russo, em São Petersburgo Os colecionadores Peter e Irene Ludwig doam 53 obras de Helnwein do Museu Ludwig ao Museu Estadual Russo em São Petersburgo.  Exposição Götter, Helden und Idole, Ludwig Galerie Schloss Oberhausen, 1998 Alemanha  Exposição solo na Galeria Modernism em São Francisco  O colecionador Fritz Gruber doa a instalação Poems ao Museu Ludwig em Colônia  Segunda sessão de fotos com a banda Rammstein, no Schloss Burgbrohl 157

 Exposição solo no Museu Wäinö Aaltonen em Turku, Finlândia  Sessão de fotos com Chuck Close, em Nova Iorque 1999  Exposição Innovation/Imagination: 50 years of Polaroid Photography, Anselm Adams, São Francisco  Exposição 20 years modernism, modern masters and contemporary art, Galeria Modernism, São Francisco  Exposição solo Apokalypse e instalação na igreja gótica dominicana em Krems, Áustria  Exposição coletiva Ghost in the Shell, Photography and the Human Soul, 2000 1850-2000, Los Angeles County Museum of Art  Instalação Poems na exposição Augenblick und Endlichkeit – das von der Photographie geprägte Jahrhundert, Museu Ludwig, Colônia, Alemanha  Inspirado pelas pinturas recentes de Helnwein, o escritor argentino Rodrigo M. Malmsten cria a peça Kleines Helnwein  Helnwein trabalha na série The American Paintings, pinturas monocromáticas azuis com uma visual surreal de uma América inspirada por filmes noir e fotografias de jornais da década de 1950 e 60  Inspirado pela natureza aos arredores de seu novo lar na Irlanda, Helnwein começa a pintar paisagens  Exposição solo na Galeria Robert Sandelson, Londres  O Museu de Arte Moderna de São Francisco apresenta a pintura Mouse I (1995) de Helnwein na exposição The Darker Side of Playland: Childhood Imagery from the Logan Collection  Instalação Fall of the Angels na exposição Between Earth and Heaven, New 2001 Classical Movements in the Art of Today, no Museu de Arte Moderna, em Oostende, Bélgica  Design de palco e figurinos da ópera de Strawinsky Rake’s Progress na Opera Estadual de Hamburgo (Hamburgische Staatsoper), dirigida por Jurgen Flimm e conduzida por Ingo Metzmacher  Exposição coletiva no museu Albertina em Viena e no Museum der Bildenden Künste em Budapeste, Austrian Artists Now  Exposição solo na Butler House e instalação na cidade de Kilkenny no festival anual Kilkenny Arts Festival, com imagens de rostos de crianças e com a pintura Epiphany I  Helnwein abre seu estúdio em Los Angeles com uma retrospectiva de seus 2002 trabalhos  Ator visita Helnwein em seu estúdio em Los Angeles e o convida para participar de um projeto de vídeo e torna seu colecionador  Exposição coletiva In the blink of na eye – photo art, Museu Kunst der Gegenwart, Coleção Essl, Klosterneuburg, Viena  Helnwein começa uma série de projetos visuais com Marilyn Manson  Exposição coletiva na The Lead White Gallery em Dublin  Exposição solo Downtown (The American Paintings II) na Galeria Modernism em São Francisco  Helnwein trabalha em uma série de paisagens americanas. Seu primeiro trabalho é Death Valley I  Exposição Comic Release: Negotiating Identity for a New Generation no 2003 Museu de Arte da Universidade do Arizona 158

 Exposição coletiva Comic Release: Negotiating Identity for a New Generation no Centro de Artes Contemporâneas de Nova Orleans, na Galeria Regina Miller Gougers, Universidade de Carnegie Mellon  Exposição e performance com Marilyn Manson no Volksbühne Berlin  Exposição coletiva Comic Release: Negotiating Identity for a New Generation no Museu de Arte de Pittsburg, The Carnegy-Mellon Foundation  Exposição coletiva Human Stories no Museu Ludwig em Budapeste  Helnwein continua seus trabalhos com Marilyn Manson em The Golden Age of Grotesque  Exposição coletiva Meisterwerke der Fotografie: Face to Face na Galerie der Stadt Stuttgart  Exposição solo Paradise Burning na Galeria Modernism em São Francisco  Instalação dos outdoors Modern Sleep no L.A. Artshow em Santa Mônica  Produção do documentário Ninth November Night Dirigido por , o documentário fala sobre as crianças e o Holocausto na obra de Gottfried Helnwein. Conta com comentários de Sean Penn, Maximilian Schell, Jason Lee e texto introdutório de Simon Wiesenthal.  Premiere do documentário Ninth November Night no Museum of Tolerance, em Los Angeles  Helnwein recebe cidadania irlandesa 2004  Primeira exposição das paisagens de Helnwein sob o título Irish and other landscapes na Galeria Municipal de Crawford, em Cork, Irlanda  Helnwein cuida do palco, iluminação, vídeo e figurino da peça Das Paradies und die Peri de Robert Schuhmann, em Düsseldof  Helnwein dá palestra na Academia Central de Belas Artes em Pequim  O Museu de Belas Artes de São Francisco organiza a primeira exposição solo de Gottfried Helnwein em um museu americano: The Child, works by Gottfried Helnwein no California Palace of the Legion of Honor  Exposição Superstars. Das Prinzip Prominenz in der Kunst. Von Warhol bis 2005 Madonna na Kunsthalle Wien e Kunstforum Wien  A primeira neta de Helnwein, Croí Sequoia, nasce  Exposição Austrian Contemporary Art and Post-War Painting – The Essl Collection no Museo de Arte Contemporáneo de Monterrey (Marco), México  Helnwein se torna um dos membros fundadores da fundação italiana de artes Armonia  Junto de Marilyn Manson, Helnwein se torna um dos membros fundadores da Celebretarian Corporation  Helnwein colabora com Manson no filme e projeto artístico Phantasmagoria  O documentário Ninth November Night é exibido na Academy of Motion Picture Arts and Science em Beverly Hills, California  Helnwein faz instalação para a exposição Soul no Museu de Arte Moderna em Ostend  Colaboração com Maximilian Schell em Rosenkavalier, de para a ópera de Los Angeles  Marilyn Manson se casa com Dita Von Teese no castelo de Helnwein, na Irlanda  Exposição solo Beautiful Children no Museu Ludwig, Schloss Oberhausen e Wilhelm Busch Museum Hannover 159

 Customização do palco e figurino para a primeira produção israelense da 2006 ópera Rosenkavalier de Richard Strauss, em Tel Aviv  Exposição solo na Décima Primeira Bienal Internacional de Fotografia e Arte Fotográfica em Houston, Artists Responding to Violence, Galeria Mackey  A prefeitura da cidade de Filadélfia homenageia Helnwein por suas contribuições artísticas ao manter a memória do Holocausto viva  Customização do palco e figurino da ópera parte I, Rheingold e Walküre, para a Bonn Opera  Exposição Los Caprichos (In Memory of Francisco de Goya) na Galeria Modernism em São Francisco  Exposição American Prayer na Galeria Nacional Du Grand Palais em Paris  TV austríaca produz documentário The Provocateur sobre Helnwein  Exposição Radar no Museu Denver de Arte Moderna e Contemporânea  Exposição solo Face it! no Museu Lentos de Arte Moderna em Linz  O governador da Baixa Áustria, Erwin Pröll, dá a Helnwein o título de 2007 embaixador honorário do estado da Baixa Áustria  O Museu de Arte Contemporânea de Essl expõe as obras de Helnwein no aniversário do estabelecimento, no evento Passion for Art – 35 years Essl Museum  O Museu de Belas Artes de Montreal expõe a pintura American Prayer de Helnwein como parte da exposição Once Upon a Time Walt Disney: The Sources of Inspiration for Disney  Helnwein é curador e organizador da retrospectiva do lendário quadrinista Carl Banks no Karikaturmuseum Krems na Áustria  Exposição solo no Fotomuseo, Museu Nacional de Fotografia em Bogotá  Obras de Helnwein são incluídas na exposição Rembrandt to Thiebaud: A decade of Collecting Works on Paper no Museu de Belas Artes de São Francisco  Museu Ludwig de Budapeste, Museu de Arte Contemporânea, Concept Photography – Dialogues & Attitudes  A Society premia Gottfried Helnwein com o Goose Egg Nugget Award  O Museu de Arte Virtual no Second Life abre com uma retrospectiva das obras de Helnwein  A série Disasters of War (In Memory of Francisco de Goya II) é exibida na Galeria Modernism em São Francisco  Helnwein faz o design de palco e figurinos para a segunda parte da ópera 2008 Der Ring des Nibelungen, Sigfried e Die Götterdämmerung  Exposição solo I walk alone na Galeria Natalie e James Thompson, na Universidade Estadual de San Jose  Instalação The Last Child na cidade de Waterford, Irlanda  Filmagens de um documentário sobre Helnwein na Califórnia, em Sacramento  Angels Sleeping - Retrospectiva da obra de Helnwein na Galeria Rudolfinum em Praga  Helnwein recebe o prêmio Steiger Art 2009 O Prêmio Steiger honra personalidades por sua retidão, abertura, humanismo e 160

tolerância.  O filme Helnwein – The Silence of Innocence de Claudia Schmid é selecionado para exibição no 24º Festival Internacional de Documentários de Munique  Exposição coletiva Decadence now! Visions of excess! na Galeria 2010 Rudolfinum, Praga  Helnwein cria junto de a composição visual da ópera israelense  Instalação Ninth November Night em Israel  Exposição solo I was a child em Friedman Brenda, Nova Iorque  Helnwein muda para um estúdio maior em Los Angeles  Confrontação dos 48 Portraits de Gerhard Richter e os 48 Portraits de Gottfried Helnwein numa dupla instalação na exposição Undeniable Me na Galeria Rudolfinum em Praga  Retrospectiva Inferno of the Innocents no Museu de Arte Crocker em 2011 Sacramento, Califórnia  Documentário sobre o trabalho de Helnwein na ópera The Child Dreams  Éala Cheyenne Helnwein e Louisiana Kidd Helnwein nascem  Três exposições de Helnwein acontecem na Cidade do México 2012 Exposição solo Faith, Hope and Charity, no Museo Nacional de San Carlos; Song of the Aurora, na Galería Hilario Galguera; instalação e exposição no Monumento a la Revolución.  Retrospectiva no Museu Albertina, em Viena 2013 A retrospectiva no Museu Albertina em Viena foi vista por 250.000 visitantes. Foi a mais bem-sucedida exposição de um artista vivo na história do Albertina.  Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo 2014 A coleção Ludwig do Museu Estatal Russo de São Petersburgo chega ao CCBB-SP e traz a série 48 Portraits e o quadro Kindskopf (1991) de Gottfried Helnwein ao Brasil. É a primeira vez que o artista é exposto no país.  Novos quadros divulgados no perfil oficial de Gottfried Helnwein no Facebook: Untitled e Head of a Child 16 (Croí) Com dimensões de 139cm x 195cm, Untitled traz a figura de Hitler sorrindo para uma garotinha com a cabeça de um Mickey em estilo antigo, enquanto Head of a Child 16 (Croí) é um retrato da neta de Helnwein, Croí Sequoia Helnwein. Ambos seguem uma série, o primeiro é um monocromático de uma série sem título, que em 2013 também já tinha um antecessor no qual Hitler observava outro boneco do (divulgado apenas no perfil do deviantArt de Helnwein), enquanto Head of a Child é uma série de retratos de crianças mais conhecido pelo seu nome em alemão, Kindskopf.

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1.0 Notas de fim

1 Once he had shown himself to be trustworthy, the Red Army Command would assist him in ‘re-establishing a democratic order’. 2 He had accordingly combined his formal protest with an offer to place all his services at the Red Army’s disposal for the re-establishment of the Austrian Republic. (...) If Renner was after power (...), Stalin was after a venerable and respected figure who might one day lead a combined left-wing front for him in Vienna. 3 He was, after all, the cowardly opportunist who had helped to wave Hitler’s troops into Austria seven springtimes before. 4... in tones of servility which may have reflected both self-interest and na uneasy conscience. 5 In tones of servility which may have reflected both self-interest and an uneasy conscience. (…) Listed his unique qualifications for the task in hand; and called on the Soviet dictator to take Austria ‘under his mighty protection’. 6 Elimination (…) of Hitlerite misrule and of German influence throughout the whole of Austrian life. 7 That his government would now open diplomatic relations with Austria through an exchange of envoys. 8 Brook-Shepherd comenta em seu livro The Austrians, numa nota de rodapé, que ele estava servindo na Intelligence Organisation of the British High Commission no palácio de Schönbrunn, em Viena, à época. Além disso, o autor teria sido Secretário da secreta Junta do Comitê de Inteligência (Joint Intelligence Committee, JIC). Segundo ele, era estimado que os comunistas pudessem conquistar de 20 a 25% das 165 cadeiras do novo parlamento austríaco (BROOK-SHEPHERD,1997, p.383). 9 The Austrians have lived through some dingy hours in history, notably in March 1938. This was one of their finest. Even in the Soviet-occupied zone, where there was pressure through the mere presence of Russian troops, the rejection of Communism was overwhelming. (…) Various special factors could be cited to explain the débâcle. The orgies of rape and plunder committed by Red Army troops (…) had struck at women, who accounted, in the autumn of 1945, for 64 per cent of the electorate. 10 Nonetheless, the coalition provided that united and relatively stable front which the government required to master all the challenges of the occupation years. Four of these can be singled out. The most urgent was to clear away the carnage of war and to fill the nation’s stomachs. Parallel with that went the need to win back some measure of independence from the all-powerful Allied Council now installed in Vienna. In the longer term came the two main domestic political problems: how to dispose, on the one hand, of the Nazi legacy, while at the same time warding off the new threat posed by Communism and its powerful patron, the Red Army. 11 Ich bin in zwei völlig gegensätzlichen Welten aufgewachsen: einmal im Wien der Nachkriegszeit - in Favoriten, einem traditionellen Wiener Arbeiterbezirk, der damals zur sowjetischen Besatzungszone gehörte. In einem Haus, das ein kümmerliches Dasein zwischen einer Gießerei aus der Jahrhundertwende und einem grauen Monstrum von Fabrikanlage aus der Nazizeit fristete, welches nun auf dem Dach das Zeichen seiner neuen Herren trug, nämlich einen gewaltigen roten Stern, der des Nachts illuminiert war, und seine Glut in meine Kinderstube goss. In meiner Erinnerung ist alles rostig und staubig. Die Straßen sind wie ausgestorben, nichts bewegt sich, niemand spricht. Die wenigen Menschen, die ich sehe, sind gedrungen, unförmig und grantig. Eine Welt, die stille steht, ohne Geräusche, ohne Farbe, ohne Bewegung, nur manchmal durchbrochen vom Knattern eines klobigen Lastwagens, der vollbeladen mit russischen Soldaten mit Karacho durch die Straße fährt. Ich hatte das Gefühl, das höchste Ziel der Menschen um mich herum war, übersehen zu werden. Das einzige, was sie zu fürchten schienen, war, aufzufallen, entdeckt zu werden. Es war eine Welt, wie nach einem schlampigen Weltuntergang, wo eben doch ein paar überlebt hatten, die nun vorsichtig und geduckt in den Trümmern weiter dahinvegetierten, in der Hoffnung, der ewige Richter möge sie übersehen. In dieser Vorhölle verbrachte ich einen Teil meiner Kindertage. 12 Whose living standards seemed to be so low that its members might have come from some distant and primitive planet. 13 …of a new lifestyle, and the Austrians there were the first to try on jeans, and to sample the mass diet of hamburger and Coca-Cola. 14 …of a transatlantic cultural tide which was soon to engulf not just the whole of Austria, but the whole of Europe. 15 Hopper’s urban realism of angst and alienation meets Pop art’s fetishization of the star. 16 There was such a silence, such a void, when the war was over. Everyone was hastily trying to get rid of the past - to bury everything - their history, their identity and their memory. Our parents' generation was spiritually kind of dead. And into this vacuum of our childhood gushed America with Coca Cola, blue-jeans, cars that looked like spaceships, movies, comic-books and rock 'n' roll. America presented a mythical world of modern wonders and miracles. There were beautiful rebellious angels like Elvis, Jimmy Dean, Brando and girls of 162

unearthly beauty - things that we had never seen before in our so-called real world. (…) The impact of this culture shock on us was enormous. 17 Most Germans Born during or immediately after the war – those who grew up in the 1950s and early 1960s – were at pains to dissociate themselves from a nation that had organized and executed the Holocaust. The open embrace of American popular culture, for example, was one way to displace a tradition considered complicitous with, or at the very least tainted by, Nazism. 18 Step by step I developed my own visual language. 19 The situation was far worse in the past, when the former Freedom Party leader [Friedrich Peter] was an SS soldier who had been involved in the exterminations. Everyone knew about it and it was well documented, but he always said, 'I don't remember,' and everyone accepted that. 20 It caught the eye of an art dealer who signed him up and has remained faithful to Austria's enfant terrible ever since. 21 The child is the embodiment of the innocent, defenseless, sacrificed individual at the mercy of brute force. (...)His commitment to the rights of children has nothing to do with "infantomania", as manifested in a socially isolated "children's culture", in a commercialized "children's media", in the child as a pedagogical subject, and in the ideological transfiguration of one's own childhood.. Helnwein must also be set apart from Viennese Actionism as he does not reduce the child's body to mere aesthetic material (as in the "material actions" of Günter Brus, Hermann Nitsch, and Otto Muehl), but instead endows it with a symbolic function in representing defenceless, sacrificed man. The sexualistic concept of the child in (Freud-influenced) "Viennese Actionism" is countered by the moralist and utopian Helnwein with the child as a sexless salvation figure. 22 Their bellies distended from drug experimentation, their skulls clamped in head-measuring instruments. The brains of more than 400 of them ended up pickled in jars in the basement of the hospital where Gross experimented on them. 23 Kurt Josef Waldheim (1918-2007) foi um político e diplomata austríaco que ocupou os postos de Secretário Geral das Nações Unidas de 1972 a 1981 e de presidente da Áustria de 1986 a 1992. Durante sua candidatura à presidência, em 1985, no entanto, foi levantada a polêmica de que Waldheim teria prestado serviço de inteligência à Wehrmacht durante a Segunda Guerra Mundial. A controvérsia chamou atenção internacional e fez mesmo com que fosse aberta uma investigação sobre sua vida entre os anos de 1938 e 1945. 24 Jörg Haider (1950-2008) foi um político austríaco que ocupou duas vezes o cargo de governador da Carinthia, que foi líder do Partido Austríaco da Liberdade (FPÖ) e diretor da Aliança pelo Futuro da Áustria (Bündnis Zukunft Österreich, BZÖ), uma frente partidária que se segregou do FPÖ. A polêmica em torno de sua pessoa está nos comentários que Haider fazia a favor de políticas nazistas e em suas opiniões xenofóbicas ou antissemitas. 25 Violence against the weak and defenseless is as old as the human race. Worldwide, there are probably more slaves now than there were in the time that slavery was legal. Since Austria suddenly came to the world’s attention again recently as a result of the Fritzl case, the foreign media have been speculating about Austria’s ‘dark side’, and some have promptly been reminded that this aspect has long been a theme in Austrian art. In literature as well as in visual art. And it was my pictures, above all, that invaded people’s consciousness. The sort of woodcut picture that the international media uses to illustrate Austria, when they notice it at all, is annoying sometimes. A few years ago when I was in America and my nationality was brought up, people would immediately say: ‘Ah – Waldheim!’, later: ‘Ah, Haider!’, then it was ‘Fritzl!’. If it weren’t for Arnold Schwarzenegger and Mozart, Austria would be fucked. 26 Amstetten between discomposure and media-hype: A dungeon amidst the town, a father inflicting martyrdom onto his children - how we struggle to put the pieces of the incomprehensible together. The dungeon in Amstetten touches something deep inside the marrow of the Austrians, their dark side, mirrored in the poems of their authors and in the Images of Gottfried Helnwein, depicting people with forkes pusched into their eyes. Or Girls with blood running down their legs. Helnwein's paintings are nightmares, they tell of the dungeons in our heads. 27 Viennese Actionism could not arise in Stockholm or a city where there are palm trees. 28 When trying to kill himself with a pipe bomb, he lost both his hands. In the courtroom, he waved his stumps and cried incessantly Nazi slogans. That's very Austrian. 29 I spent a large part of my childhood in a fog of incense in the naves of cold churches, surrounded by martyrs writhing in ecstasy and covered in blood, flaming hearts wreathed in thorns, crosses, instruments of torture, mystical stigmata and dying virgins gazing in rapture towards heaven. The ‘bible picture book-comic’ the ghostly flickering red lamp, the Latin murmurings of the priest and the monotonous whispering of litanies and rosaries, the mummified corpse in faded brocade behind semi-opaque windows, the High Mass and processions accompanied by the ringing of bells – all this dug its way deep into my childhood soul! 163

Christianity is the first religion to have put pain, bleeding and death at the centre of its spirituality. For the first time, God is not only associated with triumph and cosmic power, but with human wretchedness, agony, fear, indignity, suffering, failure, succumb and death. Christianity has influenced the history, art and culture of the last 2000 years like no other ideology. But very early on I encountered a totally different, huge, new culture, which resulted in a culture shock to me: I met the man, that changed the course of my life: . 30 Walt Disney is undoubtedly the great artistic genius of the 20th century - a reincarnated Leonardo da Vinci, who came back matured and stronger, to create the most immense artwork of all times. His aesthetic empire has changed the face of this world. 31 The pop-art of Roy Lichtenstein and Andy Warhol are solely the reflection of this extensive fire that almost no artist of the second half of the 20th century can escape. 32 Of course imagination and illusion are always so much more powerful and bigger than this mediocre and boring thing called reality. What is reality? At any given time or place in history it was always the ruler - this priesthood of power - that defined and told you what reality is. All the education-systems had (and have) only one purpose: to make you agree with their fabricated "truth" or "reality" and the attached little belief-systems, and to abandon and betray your own reality - your own magic and boundless inner world - your spiritual home- universe. Of course their arbitrary, stupid, little belief-systems vary from time to time and from nation to nation, but their methods are always the same: threats, punishment, pain and terror, if you don't submit yourself. It was one of these twilight-zone "realities" that I woke up to in post-war Vienna, created by the very same people that had just completed the killing of 50 million people. 33 Esse foi o nome dado ao grupo de artistas criado por Gottfried Helnwein, em 1971. Eram membros Gottfried Helnwein, Franz Moelk, Jochen Wahl, Ulrich Gansert, Franz Zadrazil e Thomas Moog. 34 I was quite surprised to realize that suddenly I seemed to be in possession of a superior magic language, capable of cutting through everything and reaching deep into the hearts of people and moving and touching them. 35 Essa ocorrência é melhor abordada no capítulo “Recepção”. 36 Em entrevista (vide anexo), Helnwein ainda comenta que às vezes projeta a imagem e delineia antes de pintar, às vezes faz impressão de marca d’água na tela e depois pinta, testando diferentes técnicas. 37 In awe of the idealised, kitsch-blonde Virgin. 38 Two days after the Sandy Hook school massacre, a survival gear company called Black Dragon Tactical composed a new slogan to promote sales of armored backpack inserts. “Arm the teachers,” the company declared on Facebook. “In the meantime, bulletproof the kids” (...) The question may be political, but the keenest response is to be found in a museum in Mexico City, the Museo Nacional de San Carlos, at a retrospective of paintings and photographs by the Austrian-American artist Gottfried Helnwein. Helnwein’s extraordinary work depicts the fragile innocence of children. Devoid of grown-up sentimentalism, his images can be overwhelming, especially those that show how that innocence falters in an adult world. 39 When I did this memorial in 1988, it was the fifty year anniversary of Kristallnacht and I thought Kristallnacht was really a crucial point in time because it was the moment when suddenly the Germans openly went against the Jews. Thousands of synagogues burnt down in one night, all the businesses and stores were destroyed, they were chased in the streets, the people were dead and that was open killing. There could be no doubt for anybody, until then people said it was not that bad. For me, that was the actual beginning of the Holocaust really…I shot all the faces of the children then I put [them next to] this magic word Selektion which means selection; because that was what they were doing. Selecting who should live and who should go to the gas chamber…I always thought that when you look for the essence of this horrible nightmare then I think its really the idea that a small group of people can decide and play God and decide who has the right to live and who does not. 40 On purpose I avoided using any documentary material. Images of mountains of corpses found in Auschwitz and elsewhere had been used so often that they have lost their original significance. I felt, they were wrong for my concept. I wanted to take stock of our time. That means, in the year in which I made the project I wanted to show children living in Germany. I took shots of Turkish, Christian, of handicapped children, all kinds of children. I asked kids, I'd see in the streets to pose, the kids of friends... I told them what it was about and left it to the children to choose a facial expression. 41 I thought, this is great because now having them along the railway it makes even more sense. It was the railways that deported them to the concentration camps. 42 Painted white, they appear almost death like, lined up in a seemingly endless row as if for concentration camp selection. 43 Two days after they were hung somebody cut all the throats and when I saw, I didn’t know what to do, it never shocked me because I think if you show art in public places then the reaction will be a part of whatever it 164

will be, you can’t control that. So then I decided to just patch it up roughly and leave it and actually it makes the piece so much more powerful. For me it was always an important part to see a reaction. 44 Helnwein’s murals create memorial spaces where the aim is not to embody the memory but give it back to the community, not to console but to provoke, not to remain fixed but to change and to demand interaction from the viewer. 45 A former mayor of the city, Mr Paul Cuddihy, initially objected to a painting being hung on the City Hall for fear it might be misinterpreted as lending support to Nazism. 46 The subject matter of Helnwein's work are the often-difficult subjects of prejudice, hatred and violence. Despite their difficult nature it is important that these subjects are addressed and debate takes place regarding issues like Nazi-ism, fascism and feelings of hatred towards immigrants and minority groups. This is the subject matter of the work of Gottfried Helnwein and the purpose is to promote public debate…In the Ireland of today where we are faced with increasing incidents of hostility towards immigrant and minority groups this is a legitimate subject for exploration through artistic work. It is our belief that it is appropriate and reasonable to use public buildings to exhibit art for general public display in a festival which is staged for the enjoyment and stimulation of the people of Kilkenny and visitors to the city. 47 ... a particular medium of artistic expression and the expectation which is, as it were, programmed by that medium. The disturbance factor consists in an imperceptible shift in the use of the medium's repertoire. 48 ... cut across the familiar relationship between the work of art and the viewer and break up the conventional automatism of perception with an aesthetic shock. 49 ... the viewer is in the visual trap, has become entangled in the artist's intelligent play with the artistic media, with the perceptions they have created and with the expectations attached to them, because expectations often actually colour perception 50 ... affected emotionally, they talk about it, they are enthralled or they are outraged and protest. 51 Shock is always the reaction of a society based on their belief system and their rules; so the only thing a piece of art can do is touch or challenge some of the arbitrary stupid rules. 52 What is shocking?...Shock is always the reaction of a society based on their belief system and their rules; so the only thing a piece of art can do is touch or challenge some of the arbitrary stupid rules. That’s why I always like to quote Marcel Duchamp’s concept of art, art is the bipolar product, it is 50% the artist and 50% the public, the onlooker, he said. And what happens between these two poles, something like electricity, that is art. That comes the closest to what I think art should be. 53 ... originariedad y repetición, de forma y materia. 54 EFAL (2000, p.222) considera uma aproximação entre a Pathosformel de Warburg com a interpretação de Nietzsche sobre a cultura clássica grega, entendendo que esta apresentava uma combinação dinâmica de elementos dionisíacos (o caótico, cambiante e violento) e apolínico (o simétrico, calmo, harmônico e racional). 55 Cristales de memoria histórica. 56 ... híbridos de materia y de forma, de creación y performance, de primeridade y repetición. 57 Las imágenes de que está hecha nuestra memoria tienden, pues, de forma incesante, en el curso de su transmisión histórica, a quedar fijadas en espectros, y se trata precisamente de restituirlas a la vida. Las imágenes están vivas, mas, hechas como están de tiempo y de memoria, su vida es ya y siempre Nachleben, supervivencia, amenazada sin cesar y en trance de asumir una forma espectral. Liberar las imágenes de su destino espectral es la tarea tanto Darger como Warburg - en el límite de un riesgo psíquico esencial - confían uno a su novela interminable y otro a su ciencia sin nombre. 58 ...un dato, sino que requiere una operación, cuya ejecución corresponde al sujeto histórico. 59 ...el pasado - las imágenes transmitidas por las generaciones que nos han precedido - que parecía en sí sellado e inaccesible, se pone de nuevo, para nosotros, en movimiento, vuelve a hacerse posible. 60 Sobre o conceito de imagens endógenas e exógenas, ver BELTING (2006). 61 It is characteristic of mythopoetic mentality (cf. Vignoli, Myth and Science) that for any stimulus, be it visual or auditory, a biomorphic cause of a definite and intelligible nature is projected which enables the mind to take defensive measures […] This kind of defensive reaction by means of establishing a link between either the subject or the object with beings of maximal power which can yet be grasped in their extension, is the fundamental act of the struggle of existence […] This may be understood as a defensive measure in the struggle for existence against living enemies which the memory, in a state of phobic arousal, tries to grasp in their most distinct and lucid shape while also assessing their full power in order to take the most effective defensive measures. These are tendencies below the threshold of consciousness. The substituted image objectifies the stimulus causing the impression and creates an entity against which defenses can be mobilized. 62 ... the traumatic encounter with the threatening external force: the image. 63 ... the force of the primordial chaos according to his needs. 165

64 ... the identification and merging of the external, foreign, menacing, “Other”, and non-human force, with the image, which imprints within itself the primordial presence. 65 The fact that a painter (...) uses na image that has its source in a “Pathos Formula” is, for Warburg, evidence of the culture’s need to connect with the primordial movements and qualities that enlivened the primitive image. 66 …aparece de repente como la expresión auténtica de la personalidad del autor, como réplica “material” de su constitución psíquica. 67 O termo “texto” aqui empregado é o mesmo utilizado pelo semioticista Iuri Lotman (1996), isto é, a noção de texto de cultura. 68 A arquitetura historicista recebe esse nome por se basear em estilos históricos e artesãos. O movimento teve início no século XIV, logo após o neoclassicismo, e promoveu , justamente, um retorno arquitetônico e pictórico ao classicismo. No caso, a igreja de Santo Antônio de Pádua foi construída com inspiração da estética românico- bizantina e contou com o trabalho do pintor historicista August Wörndle e dos arquitetos Franz Neumann (projeto) e Josef Schmalzhofer (execução). A referência utilizada para a construção exterior da igreja foi a românica Basílica de Santo Antônio de Pádua (Pádua) e da bizantina Basílica de São Marcos (Veneza), ambas situadas na Itália. 69 From about 1600 onwards darkness took up "statistically" more and more space, and in numerous Italian and Spanish pictures it predominated over light, frequently spreading over two-thirds or more of the area of the canvas. 70 Like Caravaggio, Rembrandt too was accused of hiding in shadow his defects in drawing. 71 Such darkness is a value active both artistically and psychologically and is indispensable for displaying various possibilities of light and for introducing an element of mystery, ambiguity, and understatement. The contrast with darkness lends to the light a dynamic quality and brings in the element of drama and pathos. 72 ...an exalted mood and new meanings. 73 This was a powerful European trend which introduced darkness, inseparable from light, as an iconic and psychological factor of essential significance. 74 Darkness was associated with evil, negation, non-being, and sin (Eckhart, Hildegard of Bingen), and was thus evaluated as negative. 75 ... "a heavy inert matter". Beauty lies in the brightness and grace of a form and not in obscure inert matter. 76 The soul's nightis not the night of sin, it is not something negative; on the contrary, it is indispensable for the attainment of spiritual perfection and on the way leading to God. In his treatises Noche oscura and Subida del Monte Carmelo the great Spanish mystic distinguishes the following stages of the soul's progress: the active night of the sense, the active night of the spirit, and passive night. 77 It is for three reasons that the progress of the soul towards its union with God is called Night. First, because of the position from which the soul departs, as it must mortify all the lusts regarding the things it has in the world and abandon them. Such an abandonment and the lack of these things are a night for the human sense. Secondly, it is called Night because of the way or the means which the soul must use in order to achieve the union. That means is faith, which is such a darkness for the mind as the shadows of night. Thirdly, it is called Night owing to the end, this end being God. In life on earth He is also a dark night for the soul. 78 Ao menos se harmonizaram: a luz e as sombras terminaram por ser o mesmo: ambas conduzem ao Amor, ambas são o Amor. 79 ...the night as a time suitable for pious concentration. 80 Now, if one considers how closely the rest of astronomy is connected with the motion of the sun and how many benefits are received from the Moon, partaking in day and night, when all other means fail us, he may well come to the conviction that it is on these eclipses of the heavenly bodies that the whole of astronomy is based, so much so that this very darkness is the eyes of astronomers, these flaws illuminate human minds with the most precious images. How magnificent and recommendable to all nations are the considerations of the eulogy of a shadow! Therefore, the astronomer must observe very carefully the size of the picture shown by the Moon or the Sun, whether with or without eclipse, and the size of the shadow cast by the Earth on the Moon. 81... “re-evaluation of darkness”. 82 Contrary to the notions prevailing until recently, alchemy and all the sciences coming within the term of occult or hermetic flourished on the largest scale not in the Middle Ages but in the Late Renaissance and in the 166

Baroque, parallely with the development of natural science. From the mid-1 6th century onwards the doctrines of alchemists gained an increasingly wide range thanks to numerous publications of printed works. From about 1600 the number of these writings rose rapidly, testifying how deeply thinking in terms of magic pervaded the intellectual and spritual culture of that time. The attitude of the Church towards these sciences was equivocal and changeable. "Wizard" practices were condemned, and yet alchemy was a subject of interest for numerous high church dignitaries. The contact of painters with alchemy and pharmacy had always been lively on account of the procedure of making paints. It is also almost certain that the symbolism of colours, related with the planets, temperaments, mythological figures, and indivual phases of alchemic process, was known to artists. 83 ...one of the basic threads of hermetic-alchemic treatises. 84 ...an indispensable part of the whole initiation, of the whole of the cosmic-psychic system. 85 It lays stress on meditation and imagina-tion and, in addition, presents something like cosmology and existential symbolism. 86 ...raven's head, coal, lead, tar, or burnt boné. 87 Johannes Kepler chegou aescrever em seu livro Ad Vitellonem Paralipomena. Astronomia Pars Optica (1604) a afirmativa “Tenebrae sunt activas qualitas”, isto é, as trevas são qualidades ativas. 88...the necessary phase of death and putrefaction in order that life and light might arise. 89 Such activities sprang from Nitsch’s belief that humankind’s aggressive instincts had been repressed and muted through the media. Even the ritual of killing animals, so natural to primitive man, had been removed from modern day-experience. 90 These ritualized acts were a means of releasing that repressed energy as well as an act of purification and redemption through suffering. 91 ... freeing of repressed emotions and desires through the effect of catharsis. (…) locates his form of catharsis somewhere on the border of psychology, existentialism and religion. 92 …a process that relieves tension and anxiety by expressing emotions – emotions that have been hidden, restrained, or unconscious. 93 Intensity seems to be the key word in this dialogue, coupled with the idea of a language of intensity, contained within a structure or form designed according to the complex dynamics of intensity. 94 ... either annihilate themselves or to exercise cruelty by tracing the gradual marriage (or blurring) between avant-garde Performance Art with subsequent subculture movements. 95 ...function in representing defenceless, sacrificed man. 96 The sexualistic concept of the child in (Freud-influenced) "Viennese Actionism" is countered by the moralist and utopian Helnwein with the child as a sexless salvation figure. 97 The number of children, who die every year in this way, is very high. You don’t easily forget those pictures. In the 60s and 70s the media didn’t generally take up this theme. Back then, my first pale watercolours of bandaged and wounded children caused an uproar in Austria, people put stickers on the pictures declaring them to be ‘’, exhibitions were cancelled and once my work was confiscated from a gallery by the police under the Mayor’s orders. 98 … forcefully communicating a single message. 99 The world that people knew, that they worked in and looked at every day. 100 Here was a realism that thrust itself knowingly in the face of a society that liked its garishness larger than life; a society ineluctably drawn to cartoon romance and tabloid scandal, to that particular species of glamour - in parts lurid, sexual, and tragic - that was embodied by Elvis and Marilyn and Jackie. 101 Exchanging world-weary spirituality for smiling (or smirking) worldliness, the Pop artists went at bigness in their canvases as the expression of a society enjoying its imperial swagger on a transcontinental scale. 102 The poetry is invisible. It is the fact of the picture itself which is the poetry. (…) The design is simple, almost simple minded. But the simplemindedness is vicious. It grates against the nerves. 103 It does not criticize. It only records. 104 The attitude of the Common Image painter is whimsical and slightly ironical. The environment is overwhelming, and thus he observes it. He must maintain the sense of the monumentally bizarre without surrealism or else he will defeat his art, just as Abstract Expressionism was winded by lyricism. 105 We cannot help but be anxious or cynical about the activities of these artists (…) We suspect them of deliberate provocation in the manner of the Dadaists, that is to say of political intention, so that they might seem to be nihilists at the very least, or subversives at best, or even worse, we fear that they might be "putting us on," asking us to take seriously activities which we know to be frivolous and valueless. 106 Pop art not only depicted and reflected [consumer culture] but also appropriated the mechanisms and strategies of corporate society, ensuing the effective marketing of this movement and its absorption into the matrix of consumer institutions.

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107 … abandons critical negativity because it delights in the excesses and contradictions of late capitalism 108 … foregrounds inclusion rather than exclusion while highlightining the fetishization of consumer culture. 109 … consists precisely in the playful exploitation of their own ambiguities, thereby denying the viewer or spectator the security of a fixed position. 110 … a fascination that is at the core of his paintings and films, his lifestyle, and his self-fashioned “philosophy”. As Stephen Koch puts it: “Famous for being famous, [Warhol] is pure image”. 111 Kline, Pollock and de Kooning on the one hand, and the pop artists on the other, are becoming comprehensible abroad. 112 … the United States often function as a catalyst that sets in motion the exploration not of a foreign country but of the visitors themselves. 113 … a playground for the imagination and a site where the subject comes to understand itself through constant play and identifications with reflections of itself as an other. 114 … these artists speak to our feelings rather than to our minds. 115 The impatient longing to reduce reality to solid simple object which resists everything - interpretation, incorporation, juxtaposition, transformation - appears again and again in modern art history. But it is always delusive. The artist who believes that he can maintain the "original status" of an object deludes himself. The character of the human imagination is expansive and allegorical. You cannot "think" an object for more than an instant without the mind's shifting. Objects have always been no more than cues to the vagabond imagination. Not an overcoat, not a bottle dryer, not a Coca-Cola bottle can resist the onslaught of the imagination. Metaphor is as natural to the imagination as saliva to the tongue. 116 …anyone could do anything. 117 Expecting moral urgency, they confronted an art that freely traded soul-searching for what appeared to be a genre of social anthropology. Here, in their eyes, was little more than trivial subject matters, hymnns to bubble- headed excess. They followed the pronouncement of Clement Greenberg, Abstract Expressionism's master spokesman, judging that nothing technically interesting happened in this new work: the Pop artists retreated from formal innovation. 118 MEISEL (1981, p.12) indica que os franceses foram os que passaram a usar o termo hiperrealismo para se referir aos fotorrealistas. 119 MEISEL (1981, p.12) explica ter dado esse nome ao gênero conforme sua aparência e método de criação. O termo foi aparecer em via impressa pela primeira vez em janeiro de 1970, no catálogo da exposição Twenty-two Realists, realizada no Whitney Museum. Foi a primeira exposição na década a dar espaço para esses novos artistas. 120 No século XIX, pintores como Ingres, Delacroix, Corot, Courbert, Manet, Seurat, Monet, Degas, Cézanne e Munch usaram fotografias como suporte para suas pinturas. Em 1862, foi aberto um processo em Paris que resultou no veredito de que a fotografia também era uma forma de arte. Vários artistas participaram da causa e tanto fotógrafos quanto pintores apresentaram vários argumentos à corte. No entanto, Ingres foi contra a fotografia. Udo Kultermann (1972) conta que seu argumento contra a “reprodução mecânica da realidade”, como era vista a fotografia, era que esta era um “desafio às suas [do pintor] capacidades realistas na arte” (p.12). 121 ... the confronation between the human need and “the unreasonable silence of the world”. 122 On the contrary, the artists seek with all possible means to avoid the more obviously sanctioned and declamatory bits of reality and to give the banal, unmetaphorical fragments significance through artistic selection and formal presentation. 123 ... as if by reflection in the minds of urban dwellers, helpless before the world of advertising and the mass media. 124 These artists, too, make use of clichés, photographs, and prefabricated images as subject matter, but the basic concepts have changed. 125 The realist of 1970, however, does not paint romantic ideals, but seeks to present reality directly and emphatically, while maintaining both coolness and objectivity. The range of his view of reality is exact as well as encompassing. he starts out with a detail and seeks to conceie it as a whole; he begins with any object of his choice. Even a man is only part of a reality experienced objectively and without bias. Along with the picture of a man the artist constructs man's environment, his house, the supermarket, the street, the car, and the airplane; with the same detached perception towards real events, he presents the clash between police and demonstrators, as it is shown, for instance, in Duane Hanson's "Riot" and Audrey Flack's "War Protest March". 126 Media has to affect the way you see things. Even if you don't watch TV you're affected by it. 127 ... photographic images, movies, TV, newspaper are as important as actual phenomena. They affect our perception of actual phenomena.

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128... the new "reality" of the media - newspapers, books, television, movies - that we now perceive through the one eye of the lens all things which we have not experienced firsthand, thus enhancing our perception of reality in photoderived paintings. 129 It's not that I try to make it look like that, it's just what happens. 130 ... have a purity the world lacks. 131 ...precision and cleanliness of paint surface. 132 I don't believe the photograph is the last word in reality. 133 ... not because they cannot draw, but because they would spend years trying to gather the necessary information. 134 ... if I paint this way, it is because I want to be a machine. 135 ... oil is a thousand times stronger in colour and intensity than the negative; the accents are displaced and replaced somewhere else, the undulations of hair and fabric in particular are rendered in their morbidness. 136... the elevation of chromatic intensities, linear values of light, by passing them through the painter’s body, in the canalisations that go from the eye to the hand. 137 Through the entirety of his photo-optic apparatus, he assumes an hysterical posture, he wishes this machine were his mistress, that she govern his gestures, correct his impulses, know much better than he about perspective and construction and passages and “reality”. At the same time, he wants to govern this machine, he feeds it, it works only through him and maybe for him, even if he has to cut up his own body, eliminate three quarters in order to make it work. A worker that wants to be his own machine by dint of enslaving it is hysteric. 138 It denounces nothing, it seems to me, since it does not at all belong to the thought and practice of critique, and this is what makes it possible to wonder if it is stupid. 139 If this painting has any force, it is due to the fact that it is simply affirmative, repetitive and, because of this repetition, intensive. By painting photos, but powerful ones (...) The objects, sparkling, self-contained, total, are the counterparts, it tells us, of our bodies, divided, obscure, open to elsewhere. 140 Audrey Flack já denunciava alguma influência e referência aos pintores clássicos, já que sua obra trazia o motivo do vanitas, como em Wheel of Fortune (Vanitas) (1977-78). MEISEL (1981, p.242) considera a obra da pintora, a única mulher dos primeiros fotorrealistas, bastante emocional e carismática, o que chega a ser até “antitético” (sic) ao movimento. 141 ... the face would be as expressionless as possible. 142 ... allowing the paint to subsume and become coexistent with the photograph. 143 Media are always subordinate means, tools with no meaning of their own. I'd like to forgo them, just show my visions by magic, three dimensionally. But I can't do that. Technology was always a need. Even at the Academy, I refused to accept traditional outdated techniques. I simply painted with my old paint-box for children, used crayons and pencils, ink... and then mixed them all together. Not quite the accepted technique for painting. Later I realized that the colors were not permanent and started to fade. So I looked for crayons and water colors which would be lightfast. It was a learning process, controlled at all times by myself. I always worked with new media - I used airbrush, photography, right from the start. I got subjects out of journals. When I started using kids for my work, I got a parenthood journal with lots of baby pictures. And then I used the heads of these magazine kids for my portraits. So I always took what I needed from my surroundings, like in a supermarket. And I believe that this is the only way for an artist to work nowadays. 144 Helnwein has taken advantage of our mind’s photographic experience and expectations to create paintings that have the same degree of reality/falsehood. 145 I rearranged the scenes, introduced new characters, and created new relationships and contexts. And then I painted them in black and blue. That's how I remember America back then in the early Fifties in Vienna, where I was born. The big war had ended a few years ago, but the city still seemed undecided as to whether this was the end of the world or if life should go on. It was a strange, sad and surreal world. The streets were empty, the houses dark - many of them in ruins from the bombings. The few people I saw seemed ugly, clumsy, and depressed. I never saw anybody laughing and I never heard anybody sing. It was a world without sound and colour. Everything moved in slow motion, like slime. We had no phones, no television, no cars, no music, no pictures, except the paintings of tortured people in the Roman Catholic church which made a deep impression on me, haunting me in the sleepless nights of my childhood limbo. And then, without any warning, suddenly there was America. When I saw the first picture of Elvis I was in a state of shock, because I couldn't believe that a human being could be so beautiful. That was the beginning of the never-ending flood of American images that suddenly came over us and started to penetrate and transform everything. 146 And out of this void we grew up into a world of wonders that we knew only from black and white movies and photographs where everything was impeccably staged and arranged. Shiny cars that looked like spaceships; 169

cops and celestial, pale girls in perfect light were frozen into amazing poses always in the right spot of the picture, casting long, black shadows. How these guys were holding their cigarettes and what they did with the smoke was a piece of art. The houses and the streets of New York and LA became our streets. We knew all the details of the interior of the American middle-class home. 147 Having manufactured our celebrities, having willynilly made them our cynosures - the guiding stars of our interest - we are tempted to believe that they are not synthetic at all, that they are somehow still God-made heroes who now abound with a marvelous modern prodigality. 148 ... we have desperately held on to our belief in human greatness. For human models are more vivid and more persuasive than explicit moral commands. 149 Tempted, like no generation before us, to believe we can fabricate our experience - our news, our celebrities, our adventures, and our art forms - we finally believe we can make the very yardstick by which all these are to be measured. That we can make our very ideals. This is the climax of our extravagant expectations. It is expressed in a universal shift in our American way of speaking: from talk about "ideals" to talk about "images". 150 ... the language of images is everywhere. Everywhere it has displaced the language of ideals. 151 ... elect a President or sell an automobile, a religion, a cigarette, or a suit of clothes, why can it not make America herself - or the American Way of Life - a salable commodity all over earth? 152 ... it is planned: created especially to serve a purpose, to make a certain kind of impression. 153 ... somewhere between the imagination and the senses, between expectation and reality. In another way, it is ambiguous, for it must not offend. 154 It must serve our purposes. Images are means. If a corporation's image or itself or a man's image of himself is not useful, it is discarted. Another may fit better. The image is made to order, tailored to us. (...) The Graphic Revolution has multiplied and vivified images. By new machines to make accurate, attractive replicas of face, figure, and voice, of landscape and events, and by new machines to disseminate these images. By newspapers, magazines, cheap books, telephone, telegraph, phonograph, movies, radio, television. 155 Americans tried to fit themselves into social science images of the frontier, economic classes, and status. Social scientists built up these images from modal forms. 156 Sociologists then were able to describe the villager, the suburban housewife (a heroic figure featured on a Time cover), the scientist, the small businessman (who lived in Middletown), or the junior executive. (...) The new social science historians produced group caricature. Through various means of popularization, such caricature became the image into which an individual was expected (and often tried) to fit. 157 The threat of nothingness is the danger of replacing American dreams by American illusions. Of replacing the ideals by the images, the aspiration by the mold. We risk being the first people in history to have been able to make their illusions so vivid, so persuasive, so "realistic" that they can live in them. We are the most illusioned people on earth. Yet we dare not become disillusioned, because our illusions are the very house in which we live; they are our news, our heroes, our adventure, our forms of art, our experience. Formerly we were saved from the menace of ideology by the elusiveness which men live elsewhere, by the images among which we live. We have come to think that our main problem is abroad. How to "project" our images to the world? Yet the problem abroad is only a symptom of our deeper problem at home. We have come to believe in our own images, till we have projected ourselves out of this world. The "problem" abroad is valuable, however, as a symptom. It can remind us that men need not live in a world of images, that our life of images is a strangely modern, New World life. And it can remind us also of some of the dangers of having so successfully persuaded ourselves. 158 What do I associate with the name Disney? The inspiring sacred comics of my childhood that gave me a chance to escape from the cold Nazi country into a world of joy and wonder, or Michael Eisner’s multi-billion dollar machine that smothers the world. 159 But the bullets of Dallas that killed Kennedy suddenly ended this innocent, brief moment in history. The dream was over. It was the beginning of our long way down – Vietnam, the killing of Martin Luther King, Watergate, the stock market, Enron, the Gulf-wars, Columbine, 911 and so on. Finally the western-Christian empire is dying. The Roman empire is falling again, like a fatally wounded giant going down in slow motion. I have a studio in Los Angeles and I love to work there, because I think it’s the furthest point in this process of decay, this final victory of materialism over the spirit. I want to be on the edge of the present and I think it’s my obligation as an artist to witness how we are heading for this brave new world, and to watch how skillfully its new masters use the oldest and most proven tool: fear. Drowning us with “news” about terrorists, diseases, drugs, child abuse, serial-killers and economic catastrophes. 160 Some are simply advertisements, of course, selling everything from sex shops to Levi’s jeans, but others are indicative of the national spirit. Yuru chara—from yurui characters, or laid-back, soothing, relaxing cartoon icons—are manga mascots used to represent almost every region of Japan, symbols of the identity their local 170

governments wish to project. Sports manga, a genre that has not found an audience in the United States, features special series following the lives of athletes during a given real-life athletic event—Olympic athletes, baseball players during the Japan Series, soccer players amid the World Cup, and so on. If you live in Japan for an extended period,you’re likely to forget that you are constantly confronting cartoon characters— until you leave. When I return to the United States, I am instead confronted by models and movie stars. Real photographs, but are the images more realistic? 161 ... are frequently less inhibited and more diverse than American animations,more compelling in their narrative and character developments. 162 At least, for us, Japanese narratives come from somewhere else—a somewhere that actually exists, where the rules are genuinely different and where the imagination seems boundless, free to explore the darker terrains of childhood fantasy and—as in so many vídeo games featuring cute-looking animated ammunition—the lighter side of combat. 163 Via anime and manga, American teenagers today are experiencing a similar sense of transcultural longing. 164 ... sheer irrational exoticism,an infatuation with a somewhere else that is consecrated by the quality of the art itself. 165 Unlike Disney icons such as Mickey, Donald, Dumbo, or Nemo, a mouse, duck, elephant, and clown fish, respectively, or Hanna Barbera’s Yogi Bear,Pikachu is na animated representation of precisely nothing we know in our physical world, introducing Americans to just one aspect of Japanese pop culture’s creative freedom. 166 Japan is reinventing superpower again. Instead of collapsing beneath its political and economic misfortunes, Japan's global cultural influence has only grown. In fact, from pop music to consumer electronics, architecture to fashion, and food to art, Japan has far greater cultural influence now than it did in the 1980s, when it was an economic superpower. 167 It has succeeded not only in balancing a flexible, absorptive, crowd-pleasing, shared culture with a more private, domestic one but also in taking advantage of that balance to build an increasingly powerful global commercial force. In other words, Japan's growing cultural presence has created a mighty engine of national cool. It is impossible to measure national cool. National cool is a kind of "soft power" -- a term Harvard dean Joseph S. Nye Jr. coined more than a decade ago to explain the nontraditional ways a country can influence another country's wants, or its public's values. And soft power doesn't quantify neatly. How much of modern American hegemony is due to the ideological high ground of its democracy, for instance, how much to its big corporate franchises, to Hollywood, to rock music and blue jeans, or to its ability to fascinate as well as intimidate? National cool is an idea, a reminder that commercial trends and products, and a country's knack for spawning them, can serve political and economic ends. As Nye argued in this magazine more than a decade ago, "There is an element of triviality and fad in popular behavior, but it is also true that a country that stands astride popular channels of communication has more opportunities to get its messages across and to affect the preferences of others." 168 ... all things, even inanimate objects, are inhabited by kami, spirits or gods. 169 And like the piped-in music and twittering bird songs emitting from speakers along train platforms, outdoor shopping areas, and every other storefront, the various illustrated characters tend to add a softer, more playful atmosphere, or a flash of dreamy imaginative fantasy, to a crowded, urgent, and intensely hard-working urban culture. 170 When insects go through ‘hentai,’ we mean a transformation. 171 Violence takes on a different sense if I can watch death 1000 times a day in video games or video films. 172 When pain, torture, killing, when exploding bodies and squirting blood is our stock entertainment, then there's a shift in the value of death. Everything is instant. I'm a killer. I shoot down people, blow up houses. And it's so real that it becomes reality. A new reality - without consequences. Add the amount of psychotropics and of drugs consumed in the West, especially in the US, which distorts reality even more. The combination of all these influences may contribute possibly to someone making a video to announce that he will kill himself and so many others. And leaving a final message "You will remember me" before going to High School and shooting in cold blood everyone in sight. 173 Killers Worshipped Rock Freak Manson. 174 Devil-Worshipping Maniac Told Kids To Kill. 175 Ver em http://www.mlive.com/news/grand-rapids/index.ssf/2009/04/separating_myth_from_fact_on.html. 176 A child is at the mercy of, dependent on the behavior of adults. Children can be abused, children can be hurt, cannot defend themselves. 177 But at the same time children are very resistant and their spiritual and aesthetic potential is huge.

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178 Children must be protected and considered something precious, important. It bothers me to see how neglected, abused, mistreated, and oppressed children are today. The challenge is enormous because they are being poisoned by various elements: chemicals, environmental pollution, street drugs, medical drugs, a pornographic society, mass media, television, Internet… So, from a very young age, they are under constant attack. 179 I wanted to show a person - as child and as man. Those were the key figures of my work. The man being the perpetrator, too, the child, a victim. 180 The tale is about an orphan child wandering about between troops on the rampage, watching them torture people, get drunk. The child is amazed - it doesn't understand these acts and describes them from the view of a child, describes this amazement about this strange adult world. The protagonists of my paintings, the main actors, are actually always little girls. In a way, I see the world through the eyes of the children in my paintings. 181 Essa técnica de iluminação pode ser verificada na obra de Helnwein no quadro Madonna I (1996). 182 ... emanates from the Child, the Holy Spirit, or the angels, thus being clearly of a metaphysical nature. 183 A child represents to me an opportunity for a different kind of humanity. Seeing a child means hope. You know this being is in principle able to create, to perceive. It is highly sensitive. Each child is an artist. 184 ... looking a bit like a girl - long hair. He was very patient and had an incredible expression. 185 Blood has indeed a very strong significance. Magical even, mythical, considering that I grew up in a culture where blood has a strong religious relevance, too. The first images I saw as a child, were of tortured, blood- bathed human beings. Jesus being flagellated, his crown of thorns, the heart of Jesus from which a flame erupts, oozing blood. So it was actually always about blood. And the key phrase of the Redeemer: "Except ye eat My flesh and drink My blood, ye have no Eternal Life." In church we sang: "Jesus, press Thy bloody smart into my Christian heart." It was always about blood. 186 The transformation of the face, both internally and externally, is a fascinating process. A face actually changes all the time, second by second, and any kind of occurrence inside is projected in a way onto its expression. I believe that we have the power by a look, by magic, to change reality around us entirely. There's no uniform, defined condition of our existence, and one single event, perceived by different people, will become a myriad of events. Especially artists and children are able to change their reality at will. If you don't like it, you smash it, make a new one. 187 Emotion can, as indeed it should, dominate technical means; yet truth is too great a force to be neglected; it's like the gravity of the huge earth to which we are invisibly attached: ubiquitous, stubborn, indispensable. The portraitist, like most other photographers, is obliged to work with what is there, and he escapes this obligation at his own risk; but cooperating with it, he can do miracles. 188 I haven’t lived in Mexico and for that reason I have an external point of view. Nevertheless, what I recognize is the human suffering, I can see that the same tragedy repeats itself, and this tragedy is provoked by greed and the lack of respect towards human dignity, and it's always most obvious in the lack of respect towards children, that is the real problem. When I see Mexico from an external perspective it is very sad because it is traditionally a country with warm and happy people. When you think about the potential that exists in a society like this, and at the same time the enormous amount of suffering and evilness that arrived to Mexico –drugs, drug dealers, corruption, never-ending killings and, specially, people’s helplessness- we get the impression that nobody believes that there is something that can be done. That’s scary. But first of all I think of the children, and that we must start to protect and defend them. For the Monumento a la Revolución installation, I’ve photographed and worked with Mexican children. Their innocence and happiness was very touching, it seemed they were not aware of the evilness and threats of this society, because their parents protected them. If a child is protected long enough to gain confidence and strength to fight back, then there’s hope.

189 I gave them unlimited freedom, respect and Love. 190 I think the best thing I’ve done is the way I raised my children. I gave them unlimited freedom, respect and love. The most important thing when you have a child is to respect him or her as somebody who is unique, precious and important, even though there is a little body, think of him or her as a great personality. I think I did OK: my children had freedom, they were always in touch with art. Maybe that’s why they all became artist – musicians, painters, photographers and writers- and that is something that makes me happy. I have a big family, lots of children and grandchildren, and the best part is that they all are artists; so when we get together for dinner it is a joy to fool around with them and to talk about art, music, politics, history and Philosophy.

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191 A clarity of vision in his subject matter was emerging in Helnwein’s art that was to stay consistent throughout his career. His subject matter was the human condition. The metaphor for his art, although it included self-portraits, was dominated by the image of the child, but not the carefree innocent child of popular imagination. Helnwein instead created the profoundly disturbing, yet compellingly provocative image of the wounded child. The child scarred physically and the child scarred emotionally from within. 192 ... embodiment of the innocent, defenseless, sacrificed individual at the mercy of brute force. 193 as an innocent, child of light, whose head and hand injuries emit light rays like self-radiating stigmata, he is heroized into a sufferer and a savior figure. 194 Helnwein teve acesso a uma coleção de fetos, a qual estudou antes de fotografar e pintar suas séries. Em SCHMID (2009), o artista conta que no século XVIII, as pessoas tinham grande interesse nas ciências naturais e o imperador austríaco fundou em Viena uma coleção patológica, na qual, entre outras coisas, havia uma coleção de bebês recém-nascidos com deformações. Eles permaneciam disponíveis para que fossem pesquisados futuramente. “Quando você olha para eles, entende que cada uma dessas pequenas faces representam um diferente tipo de personalidade. Pense que cada um desses pequenos corpos carregou vida cerca de 200 anos atrás, por um segundo, por alguns momentos e então morreu, deixando sua marca. Como pequenas esculturas criadas pela vida em si, capturadas em um segundo movediço. Se as pessoas pudessem apenas ver como crianças sorriem pacificamente, com pequenos corpos esverdeados ou avermelhados. Outros expressam dor, confusão. Alguns se parecem com velhos encarquilhados. Eu experimentei isso como um profundo aspecto do milagre da vida”. 195 ... irreparably wounded children (both externally and internally) as the innocent victims of war. 196 The children in Helnwein’s works may also represent the lost or destroyed child in all of us, not only as victims of war, but as victims of modern society, with all its mindless violence and perverse attraction to aggressive mobs and disturbances. 197 Há uma ilustração feita por Helnwein que recebe esse mesmo nome e também é datada de 1993. 198 ...terribly disfigured and maimed. 199 ... confronting the hypocrisy of Christian Serbs who, while conducting their reign of terror and murder, under the euphemism of “ethnic cleansing,” maintained that they were defending Christianity against the inroads of the Moslems. 200 It is history repeating itself, and Helnwein utilizes history to comment on the latest failure of civilization to be civilized. 201 BREMBECK (1997) indica que Helnwein retirou de uma foto que encontrou nas coleções da Bayerische Staatsbibliothek. 202 ZEHNDER (1996) compara a pose da mãe e filho à escultura de Michelangelo "Maria with the Child (1503- 05), exposta na igrea de Santa Maria em Bruxelas, na Bélgica. 203The figures of the officers in Nazi uniforms observing their leader are genuinely taken from an old photograph. Adolf Hitler is replaced by a seated figure of a young, distinctly Aryan blonde woman in a white dress, holding up with both hands upon her knee a standing, naked, strangely dark haired male infant, who in his face bears certain similarities to his predecessor in the original photograph. The figure of the Madonna, displaying her son to be honoured by the kneeling shepherds, is almost a literal paraphrasing of the painting entitled La Madonna del Rosario, finished by Michelangelo Merisi da Caravaggio in 1607. Helnwein evidently knows this painting well, since this can be seen in the Kunsthistorisches Museum in Vienna. The kneeling, religiously prostrated shepherds before the Madonna are transformed into self-assured, assertively imperious SS and Wehrmacht officers decorated with iron crosses and oak leaves. In contrast with the original, the Madonna lowers her gaze away from the direct and superior gaze of the SS officer standing in the foreground on the left side, as well as from the starkly searching gaze of the Wehrmacht officer on the right, who impudently examines the naked baby Jesus. The connotation with the examination of racial purity is relatively obvious and requires no reminder. In the image Helnwein works syncretically with historical and cultural memory. He interweaves motifs of the masterful work of Italian baroque painting with authentic documents of ultimate barbarism, taken from, amongst other sources but by no means exclusively, the environment of Germanic culture and education. 204The strategy of movement within a fissure, the created shifts of meaning of the individual elements of the pictorial composition using an almost magically precise representation, provides Helnwein with the possibility of creating new connections, bridges which provide a short cut to understanding the actual meanings of the content of real historical events, which in addition are frequently unfinished or have thus far not found a solution and outcome. 173

205 In the Epiphany trilogy, I refer directly to my (our) own historical background. The most significant issue on the time track of the occident is Christianity and the male dominated world of conquering and oppression. The constant slaughter of the "weak"-women, children, the Jews, and other ethnic minorities, through holy wars, crusades and the constant extermination of the inferior. 206 Lembrando que Hermes é deus grego associado ao deus romano Mercúrio e que ambos têm como qualidade a sua natureza dupla e volátil, já mencionada no capítulo 2.2 quando estudamos o conceito da sombra e mais tarde, no capítulo 3.2, ao verificarmos essa mesma qualidade na criança como um homúnculo de metal. 207 It's a fact that all the violence, the torture, the burning of witches, inquisitions, orgies of violence which mark human history, have been committed nearly without exception by men. 208 Human psyche seems to have an inherent need to destroy, to kill, cause pain and put all life at risk. This proximity to death, this death wish, is part of being male. And I still know many men, who only feel really good if they've been in a fight, broke someone's nose. Then they're euphoric - they feel alive. 209 ... war games, war plans, and maneuvers of the mind would be enough. 210 The Sun, who sees all, observes them in their illicit dalliance, and tells the husband (...). He immediately plots revenge. 211 The gods cannot appear alone. Hermes-Mercurius is mutually entailed with Aphrodite so that she is also hermetic, that is, secretive, duplicitous, unable to be pinned down. And, she is hermaphroditic, na imagined bridging of unlike differences, a flagrant metaphor beyond logic and fact. 212 In this latter type of work, saints stand in pious conversation around the throne of the Mother of God. Helnwein has merged both types of picture - the animated and contemplative - and has given the scene, with its half figures, a sense of closeness to the viewer and participation by the viewer. 213 In fact, the faces, the people whom I painted were always hurt, maimed. There is hardly a face, which does not show some disfigurement. Sometimes the faces were bandaged or had injuries about the mouth, because that's where the organs are, with which we communicate, sense, express ourselves. Someone whose eyes are bandaged, whose mouth is closed tight, with a clamp, will be isolated - can't communicate, can't sense. 214 ... the key medium for all artists who work in some kind of realistic manner. 215 People today perceive and know the world mainly through two–dimensional reproductions and film. It’s a highly manipulative media. 216 I’m fascinated by its almost unlimited possibilities to shift and twist the reality. When it looks like a photograph people think it’s real. So I always had the feeling a very photographical image has more impact, more suggestive power. 217 Again I have to go back to my bleak childhood, where my only contact with culture was the dark and cold Roman Catholic church with all these paintings and sculptures of tortured people and sacred corpses. 218 Ich kann mich in kein system einfügen. 219 My art is not an answer, it is a question. 220... my audience is the great love-affair of my life. I am obsessed with my public, and all I want to do with my art is touch them and move them and to hold them tight. 221 That is all I care about. But I also listen to them and take them and their responses serious, because they and other artists are the only ones that ever taught me anything. 222 Essa informação foi publicada no Facebook oficial de Gottfried Helnwein. Vide link: http://goo.gl/ZKFA6p. 223 In Helnwein this is an expression of a constructive and constitutive will to engage in serious. His work has always been addressed to the ordinary man in the street, in which the intention is to disturb him out of his familiar and stereotypical thinking, to sensitise him and guide him in an alternative direction. 224 It is the function of the artist to evoke the experience of surprised recognition: to show the viewer what he knows but does not know that he knows. Helnwein is a master of surprised recognition. 225 Art is the bipolar product, it is 50% the artist and 50% the public, (...) And what happens between these two poles, something like electricity, that is art. 226 The people are affected emotionally, they talk about it, they are enthralled or they are outraged and protest. 227 I spoke to an editor of a conservative newspaper, who was very upset and insisted to talk to me. He said: "Why do you make these horrible pictures? You must be crazy. They stay in my mind, I can't sleep anymore". I asked him, if he'd been fought in the last War, which he confirmed. I asked: "Have you seen people die?". He said: "Of course". "And could you sleep?". "Sure", he said. "It was war". I asked if he'd killed people. "Maybe", he said. "Does that rob you of your sleep?", I asked. "No". Then I said: "But surely you will often get to see photos in your newsroom, which are too terrible to print?". "True", he replied. I asked if he lost sleep over it. "No. That's reality". Then I understood. I said to him: "Isn't it strange that my paintings, nothing more than cardboard with a few milligrams of paint on it, a bit of tree gum for bonding, no more, pure figments, that they can rob you of your sleep? That you can't forget them?". At this moment I realized that it was not my work, which got people worried and upset. It was their own images inside their heads. I understood that my pictures 174

apparently triggered something in their subconsciousness. But the images they carried in their own minds caused the upset. 228 Linha do tempo publicada no site oficial de Gottfried Helnwein. Ver em: 229 No site de Helnwein, está escrito: “Este foi provavelmente o maior erro que qualquer universidade cometeu. (Graças a Deus que Helnwein não foi rejeitado)”. Ver em: < http://www.helnwein.com/kuenstler/biografie/artikel_799.html> 230 It is hard to deny, that the aggression- and vulnerability-symbolism of Helnwein's well-known and multiple- varied selfportrait of a bandaged head, eyes blinded by surgical forks and mouth opened wide to form a scream; is something of a self-evident metaphor for an elementary human stipulation of today's existence. Disponível em: . 231 A conversa entre os dois foi transcrita e publicada no site oficial de Helnwein. Ver em: . 232 Gottfried Helnwein: Called the 'Razor Blade Rembrandt' or 'the Boris Karloff of Art', Helnwein is the man most Austrians love to hate. He schocks people. His paintings are scenes from every-day life, highly realistic, but there's a sharp, morbid streak in many of them. Children with razors, faces under extreme stress or in fear or in pain. Intensly human, often savage, but always stunning. I found him to be a sensitive, warm human being. Ver em: 233 The Viennese Helnwein is part of a tradition going back to the 18th century, to which Messerschmidt's grimacing sculptures also belong, on which one of Freud's pupils wrote a long treatise. One sees, too, the common ground of these works with those of Arnulf Rainer or Nitsch, two other Viennese, who display their own bodies in the frame of reference of injury, pain, and death. One can also see this fascination for body language goes back to the expressive gesture in the work of Egon Schiele. Ver em: 234 How does a friendly person like Helnwein stand making his - excellent - painting into a mirror of the terrors of this century? Or is it that he can't stand not doing it? Ver em: < http://www.gottfriedhelnwein.com/kuenstler/biografie/artikel_901.html>

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