Trabalho E Rotinas Uma Feitoria No Rio Benim 1
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
NO LADO AFRICANO DO TRÁFICO: TRABALHO E ROTINAS UMA FEITORIA NO RIO BENIM 1 Marcus J. M. de Carvalho 2 Em 1837, a marinha inglesa apreendeu dois navios negreiros no rio Benim, algo em nada surpreendente, não fosse a documentação encontrada neles, pegos realmente de surpresa por uma escuna de guerra, que entrou rio adentro, desafiando as altíssimas ondas da barra que a impelia para o naufrágio, a rasura do rio para os pesados barcos de guerra e, simplesmente, começou a atirar em um dos dois navios sem nenhum aviso prévio. Foi um salve-se quem puder para os tripulantes dos dois navios negreiros que estavam ancorados muito perto um do outro. Tanto que o capitão de um dos navios pulou na água do jeito que estava. Foi preso completamente nu agarrado às correntes do leme do barco. O mesmo aconteceu com o gerente geral das operações da empresa de traficantes, ou o “primeiro feitor” no Benim, como diziam suas instruções, João Baptista Cézar, preso também nu, quando nadava em direção à praia. O brigue Camões escapou ileso do bombardeio, mas o Veloz não. Ficou seriamente avariado. Por sorte não havia africanos a bordo. No meio da papelada encontrada pelos ingleses nos dois navios, estava a correspondência do sujeito encarregado de tomar conta dos mais de duzentos cativos que seriam embarcados para o Brasil. Um emprego estranho para nós, mas certamente essencial para o bom funcionamento de uma firma voltada para o tráfico de escravos. Havia uma hierarquia bem definida entre os vários funcionários da feitoria que circulavam pelo estuário do rio Benim, comprando gente, negociando, lidando com a nobreza africana em diferentes níveis. As cartas tratavam ainda do abastecimento da feitoria e das muitas providências necessárias ao bom andamento dos negócios, da nobreza africana, dos outros europeus que tinham feitoria por lá. Entre os principais assuntos, obviamente, estava a própria relação entre os empregados da firma lá no rio Benim. Relação difícil, conturbada, já que a morte estava sempre a espreita. Esses assuntos foram tratados na correspondência com os donos da empresa, estabelecidos no Recife. Uma correspondência que nunca chegou lá, pois foi também apreendida. Somados a outros dados existentes sobre os traficantes envolvidos, esses papéis revelam detalhes relevantes sobre o funcionamento de uma feitoria do tráfico depois de 1831 no golfo do Benim. O objetivo deste trabalho, portanto, é contribuir para a História Social do tráfico atlântico de escravos. 1 Texto apresentado no 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba (UFPR), de 13 a 16 de maio de 2015. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ 2 Professor Titular de História da UFPE. Agradeço ao CNPq pelo apoio a esta pesquisa. 1 A ira do comandante escuna inglesa Fair Rosamond, o tal que já chegou atirando sem aviso algum, merece ser explicada. Dois dias antes, ele avistou a escuna Veloz saindo do rio Benim com cativos para levar para Pernambuco. Ao perceber a presença inglesa, o capitão da Veloz espertamente fez meia volta e reentrou no rio em direção a feitoria onde embarcara os cativos. Chegando lá, desembarcou as duas centenas de pessoas que tinha a bordo, à espera de um momento melhor para zarpar. O comandante da Fair Rosamond sabia da rasura do rio Benim, inapropriado para os pesados barcos de guerra com seus muitos canhões e demais apetrechos de guerra. Mandou então um barco armado rio adentro para tentar capturar a Veloz, que estava ancorado ao lado de outro navio negreiro, o Camões, que também esperava por sua preciosa carga humana. As tripulações de ambos os navios, e todo mundo em terra que trabalhava naquela feitoria do tráfico, estavam subordinados a uma empresa de traficantes sediada no Recife, cujo gerente era José Francisco de Azevedo Lisboa, mais conhecido por “Azevedinho” na cidade, conforme informaria o cônsul inglês em Pernambuco alguns anos mais tarde. Ao se ver confrontado pelo barco enviado da Fair Rosamond, o comandante do Veloz não se intimidou e simplesmente mandou bala com os dois canhões que trazia no convés. O barco inglês teve de recuar, levando feridos e ao menos dois marinheiros mortos. O tenente Oliver, comandante da Fair Rosamond, não perdoou esse atrevimento e atacou os negreiros que estavam ancorados próximos à povoação de Bobi (Bobim, Bobi, Boby, Boededoe, Obobi, Louboo, Boubi) que, segundo Richard Burton ficava na margem esquerda do rio Benim.3 Para ter um pretexto para apreender os dois navios negreiros, já que nenhum dos dois tinha cativos a bordo, o tenente Oliver achacou o “primeiro feitor” da feitoria, Cézar, o tal que foi preso nu, constrangendo-o a escrever para uma “rainha” local, que enviou 138 cativos a bordo do Camões. E foi com essas 138 vítimas do tráfico que o Camões seguiu para Serra Leoa. Esse estratagema foi flagrado pela Comissão Mista, que absolveu o Camões de qualquer acusação, afinal de contas, foi o oficial inglês que providenciou este embarque e não os traficantes. Mas da metade das pessoas embarcadas morreriam nessa inusitada viagem de um navio negreiro, carregado e guiado pela marinha inglesa encarregada de reprimir o tráfico. Esse caso já foi trabalhado em estudos anteriores.4 Há, todavia, alguns documentos apreendidos ainda não utilizados pela historiografia, os quais, acrescentados a outras fontes existentes sobre os traficantes atuantes em Pernambuco nessa época, nos permitem entender melhor as redes formadas pelos negociantes de escravos, bem como o cotidiano de uma feitoria do tráfico no apogeu da sua 3 Apud T.E.A Salubi, “Origins of Sapele Township”, in Peter P. Ekeh (Edit.), History of the Urhobo People of Niger Delta (Ikeja, Lagos: Urhobo Historical Society, 2007), p. 104. 4 João Pedro Marques, “Tráfico e supressão no século XIX: o caso do brigue Veloz, Africana Studia, n 5 (2002). REIS, João José; GOMES, F. S; CARVALHO, M. J. M. O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c.1822 - c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 2 ilegalidade.5 Isso em um dos pontos mais tradicionais do comércio de cativos no Golfo do Benim, a Guiné do portugueses quinhentistas, ou a África Ocidental, como prefere chamar a historiografia anglófona. Temos assim um nexo entre dois pontos antigos do tráfico. O rio Benim e Pernambuco. O atual rio Benim, ou o “rio Formoso ou Rio de Benim”, como o chamavam os traficantes na documentação aqui utilizada, era o caminho direto para o antigo e poderoso reino do Benim e Oeri (Oere, Warri, Iweri, Ode Itsekiri), outra grande cidades do tráfico, então sob a suserania do Benim. O porto da cidade do Benim era Gotto (ou Ughoton, Gwato). Essa era uma área integrada à rede luso-hispano-atlântica do tráfico antes existência das capitanias hereditárias no Brasil. Havia um caminho fluvial de Gotto tanto para a região dos lagos, onde podia alcançar Lagos e os outros portos do tráfico do Golfo de Benim, como para Bonny, no golfo de Biafra. Cativos vendidos no mercado da cidade do Benim, portanto, chegavam tanto ao golfo do Benim como ao golfo de Biafra. Por estar no interior, a cinquenta kms de Gotto, seu porto fluvial, a cidade do Benim praticamente está ausente dos censos sobre o tráfico para as Américas. Mas ela ocupava um importante lugar no fluxo de cativos do interior da atual Nigéria para os portos do litoral. A suserania do Obá inclusive era muito extensiva nessa época, quando reinava Osemwede, cujo reinado durou de 1816 a 1848.6 Segundo Anene, apesar da decadência em relação aos séculos anteriores, foi nessa época que o reino do Benim atingiu sua maior extensão territorial no XIX.7 Do outro lado desse nexo, Pernambuco, onde o tráfico se consolidou muito cedo. Foram para lá mais da metade dos quase vinte mil cativos enviados da África para o Brasil no século XVI e 41 por cento dos 238 mil que entraram entre 1601 e 1630. Pode-se dizer até, que o tráfico para o Brasil começou ali, na velha capitania de Duarte Coelho. Depois da invasão holandesa, em 1630, Pernambuco foi diminuindo sua participação relativa no comércio atlântico de escravos, mas permaneceu recebendo gente até a abolição do tráfico na década de 1850. Pernambuco teve essa característica pouco compartilhada nas Américas, tráfico atlântico intenso do XVI ao XIX. Aliás, foi lá também a última apreensão de uma navio negreiro com cativos a bordo no Brasil, em 1855. Em termos de volume de desembarques de gente da Áfria, Pernambuco foi o terceiro ponto do Brasil, atrás da Bahia e Rio de Janeiro e quarto das Américas, logo depois da Jamaica e na frente do Haiti e de Cuba.8 5 As páginas seguintes são baseadas na documentação referente aos navios Veloz e Camões encontrada na caixa: FO 315/69 National Archives, Londres, Inglaterra. 6 Foi ele que, junto ao Olugun Ajan (ou Obá Osinlokun) de Onim (Lagos), enviou ao Brasil um representante, Manuel Alves Lima, em 1824, o que fez deles os primeiros chefes de Estado a reconhecerem a Independência. José Honório Rodrigues, Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, p. 170. Alberto da Costa e Silva, Um Rio Chamado Atlântico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 11, 54. 7 J. C. Anene, “Benin, Niger Delta, Ibo and Ibibio Peoples in the Nineteenth Century” in J. F. Ade Ajayi, e Ian Espie, (Orgs.), A Thousand Years of West African History, Nova York: Humanities Press, 1972, p. 302. 8 ELTIS, David E RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven e Londres: Yale University Press, 2010, Mapa n. 10, p. 17. 3 Em 1837, portanto, o tráfico era uma rotina a mais no cotidiano econômico e social da província, que gozava do privilégio de ser o ponto das Américas mais perto da África devido aos movimentos das correntes atlânticas e ventos.