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NO LADO AFRICANO DO TRÁFICO: TRABALHO E ROTINAS UMA FEITORIA NO RIO BENIM 1

Marcus J. M. de Carvalho 2

Em 1837, a marinha inglesa apreendeu dois navios negreiros no rio Benim, algo em nada surpreendente, não fosse a documentação encontrada neles, pegos realmente de surpresa por uma escuna de guerra, que entrou rio adentro, desafiando as altíssimas ondas da barra que a impelia para o naufrágio, a rasura do rio para os pesados barcos de guerra e, simplesmente, começou a atirar em um dos dois navios sem nenhum aviso prévio. Foi um salve-se quem puder para os tripulantes dos dois navios negreiros que estavam ancorados muito perto um do outro. Tanto que o capitão de um dos navios pulou na água do jeito que estava. Foi preso completamente nu agarrado às correntes do leme do barco. O mesmo aconteceu com o gerente geral das operações da empresa de traficantes, ou o “primeiro feitor” no Benim, como diziam suas instruções, João Baptista Cézar, preso também nu, quando nadava em direção à praia. O brigue Camões escapou ileso do bombardeio, mas o Veloz não. Ficou seriamente avariado. Por sorte não havia africanos a bordo. No meio da papelada encontrada pelos ingleses nos dois navios, estava a correspondência do sujeito encarregado de tomar conta dos mais de duzentos cativos que seriam embarcados para o Brasil. Um emprego estranho para nós, mas certamente essencial para o bom funcionamento de uma firma voltada para o tráfico de escravos. Havia uma hierarquia bem definida entre os vários funcionários da feitoria que circulavam pelo estuário do rio Benim, comprando gente, negociando, lidando com a nobreza africana em diferentes níveis. As cartas tratavam ainda do abastecimento da feitoria e das muitas providências necessárias ao bom andamento dos negócios, da nobreza africana, dos outros europeus que tinham feitoria por lá. Entre os principais assuntos, obviamente, estava a própria relação entre os empregados da firma lá no rio Benim. Relação difícil, conturbada, já que a morte estava sempre a espreita. Esses assuntos foram tratados na correspondência com os donos da empresa, estabelecidos no Recife. Uma correspondência que nunca chegou lá, pois foi também apreendida. Somados a outros dados existentes sobre os traficantes envolvidos, esses papéis revelam detalhes relevantes sobre o funcionamento de uma feitoria do tráfico depois de 1831 no golfo do Benim. O objetivo deste trabalho, portanto, é contribuir para a História Social do tráfico atlântico de escravos.

1 Texto apresentado no 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba (UFPR), de 13 a 16 de maio de 2015. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ 2 Professor Titular de História da UFPE. Agradeço ao CNPq pelo apoio a esta pesquisa.

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A ira do comandante escuna inglesa Fair Rosamond, o tal que já chegou atirando sem aviso algum, merece ser explicada. Dois dias antes, ele avistou a escuna Veloz saindo do rio Benim com cativos para levar para Pernambuco. Ao perceber a presença inglesa, o capitão da Veloz espertamente fez meia volta e reentrou no rio em direção a feitoria onde embarcara os cativos. Chegando lá, desembarcou as duas centenas de pessoas que tinha a bordo, à espera de um momento melhor para zarpar. O comandante da Fair Rosamond sabia da rasura do rio Benim, inapropriado para os pesados barcos de guerra com seus muitos canhões e demais apetrechos de guerra. Mandou então um barco armado rio adentro para tentar capturar a Veloz, que estava ancorado ao lado de outro navio negreiro, o Camões, que também esperava por sua preciosa carga humana. As tripulações de ambos os navios, e todo mundo em terra que trabalhava naquela feitoria do tráfico, estavam subordinados a uma empresa de traficantes sediada no Recife, cujo gerente era José Francisco de Azevedo Lisboa, mais conhecido por “Azevedinho” na cidade, conforme informaria o cônsul inglês em Pernambuco alguns anos mais tarde. Ao se ver confrontado pelo barco enviado da Fair Rosamond, o comandante do Veloz não se intimidou e simplesmente mandou bala com os dois canhões que trazia no convés. O barco inglês teve de recuar, levando feridos e ao menos dois marinheiros mortos. O tenente Oliver, comandante da Fair Rosamond, não perdoou esse atrevimento e atacou os negreiros que estavam ancorados próximos à povoação de Bobi (Bobim, Bobi, Boby, Boededoe, Obobi, Louboo, Boubi) que, segundo Richard Burton ficava na margem esquerda do rio Benim.3 Para ter um pretexto para apreender os dois navios negreiros, já que nenhum dos dois tinha cativos a bordo, o tenente Oliver achacou o “primeiro feitor” da feitoria, Cézar, o tal que foi preso nu, constrangendo-o a escrever para uma “rainha” local, que enviou 138 cativos a bordo do Camões. E foi com essas 138 vítimas do tráfico que o Camões seguiu para Serra Leoa. Esse estratagema foi flagrado pela Comissão Mista, que absolveu o Camões de qualquer acusação, afinal de contas, foi o oficial inglês que providenciou este embarque e não os traficantes. Mas da metade das pessoas embarcadas morreriam nessa inusitada viagem de um navio negreiro, carregado e guiado pela marinha inglesa encarregada de reprimir o tráfico. Esse caso já foi trabalhado em estudos anteriores.4 Há, todavia, alguns documentos apreendidos ainda não utilizados pela historiografia, os quais, acrescentados a outras fontes existentes sobre os traficantes atuantes em Pernambuco nessa época, nos permitem entender melhor as redes formadas pelos negociantes de escravos, bem como o cotidiano de uma feitoria do tráfico no apogeu da sua

3 Apud T.E.A Salubi, “Origins of Sapele Township”, in Peter P. Ekeh (Edit.), History of the Urhobo People of Niger Delta (Ikeja, : Urhobo Historical Society, 2007), p. 104. 4 João Pedro Marques, “Tráfico e supressão no século XIX: o caso do brigue Veloz, Africana Studia, n 5 (2002). REIS, João José; GOMES, F. S; CARVALHO, M. J. M. O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c.1822 - c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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ilegalidade.5 Isso em um dos pontos mais tradicionais do comércio de cativos no Golfo do Benim, a Guiné do portugueses quinhentistas, ou a África Ocidental, como prefere chamar a historiografia anglófona. Temos assim um nexo entre dois pontos antigos do tráfico. O rio Benim e Pernambuco. O atual rio Benim, ou o “rio Formoso ou Rio de Benim”, como o chamavam os traficantes na documentação aqui utilizada, era o caminho direto para o antigo e poderoso reino do Benim e Oeri (Oere, , Iweri, Ode Itsekiri), outra grande cidades do tráfico, então sob a suserania do Benim. O porto da cidade do Benim era Gotto (ou Ughoton, Gwato). Essa era uma área integrada à rede luso-hispano-atlântica do tráfico antes existência das capitanias hereditárias no Brasil. Havia um caminho fluvial de Gotto tanto para a região dos lagos, onde podia alcançar Lagos e os outros portos do tráfico do Golfo de Benim, como para Bonny, no golfo de Biafra. Cativos vendidos no mercado da cidade do Benim, portanto, chegavam tanto ao golfo do Benim como ao golfo de Biafra. Por estar no interior, a cinquenta kms de Gotto, seu porto fluvial, a cidade do Benim praticamente está ausente dos censos sobre o tráfico para as Américas. Mas ela ocupava um importante lugar no fluxo de cativos do interior da atual Nigéria para os portos do litoral. A suserania do Obá inclusive era muito extensiva nessa época, quando reinava Osemwede, cujo reinado durou de 1816 a 1848.6 Segundo Anene, apesar da decadência em relação aos séculos anteriores, foi nessa época que o reino do Benim atingiu sua maior extensão territorial no XIX.7 Do outro lado desse nexo, Pernambuco, onde o tráfico se consolidou muito cedo. Foram para lá mais da metade dos quase vinte mil cativos enviados da África para o Brasil no século XVI e 41 por cento dos 238 mil que entraram entre 1601 e 1630. Pode-se dizer até, que o tráfico para o Brasil começou ali, na velha capitania de Duarte Coelho. Depois da invasão holandesa, em 1630, Pernambuco foi diminuindo sua participação relativa no comércio atlântico de escravos, mas permaneceu recebendo gente até a abolição do tráfico na década de 1850. Pernambuco teve essa característica pouco compartilhada nas Américas, tráfico atlântico intenso do XVI ao XIX. Aliás, foi lá também a última apreensão de uma navio negreiro com cativos a bordo no Brasil, em 1855. Em termos de volume de desembarques de gente da Áfria, Pernambuco foi o terceiro ponto do Brasil, atrás da Bahia e Rio de Janeiro e quarto das Américas, logo depois da Jamaica e na frente do Haiti e de Cuba.8

5 As páginas seguintes são baseadas na documentação referente aos navios Veloz e Camões encontrada na caixa: FO 315/69 National Archives, Londres, Inglaterra. 6 Foi ele que, junto ao Olugun Ajan (ou Obá Osinlokun) de Onim (Lagos), enviou ao Brasil um representante, Manuel Alves Lima, em 1824, o que fez deles os primeiros chefes de Estado a reconhecerem a Independência. José Honório Rodrigues, Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, p. 170. Alberto da Costa e Silva, Um Rio Chamado Atlântico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 11, 54. 7 J. C. Anene, “Benin, Niger Delta, Ibo and Ibibio Peoples in the Nineteenth Century” in J. F. Ade Ajayi, e Ian Espie, (Orgs.), A Thousand Years of West African History, Nova York: Humanities Press, 1972, p. 302. 8 ELTIS, David E RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven e Londres: Yale University Press, 2010, Mapa n. 10, p. 17.

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Em 1837, portanto, o tráfico era uma rotina a mais no cotidiano econômico e social da província, que gozava do privilégio de ser o ponto das Américas mais perto da África devido aos movimentos das correntes atlânticas e ventos. Por essa razão, nenhuma viagem da África para as Américas era mais curta do que para Pernambuco. Assim, os navios negreiros que velejavam essa rota, chegavam depressa e, portanto, perdiam pouca gente, melhor dizendo, podiam se arriscar em vir sobrecarregados, pois a viagem era rápida, diminuindo o tempo de contágio, ou a morte por sede ou fome. A própria viagem de um dos navios apreendidos, o Camões, está bem documentada e testemunha essa facilidade. O navio deixou Luanda com passaporte das autoridades lusitanas para ir a Cabo Verde e Ambriz. Todavia, 34 dias depois, apareceu no Recife em lastro, como acontecia com navios negreiros, depois de 1831, que saiam da costa da África, desembarcavam os cativos em alguma das praias do tráfico e dali seguiam para algum porto legal onde o navio seria reparado, a tripulação paga e preparada nova viagem para contrabandear cativos. Ao chegar no Recife, o cônsul lusitano emitiu novo passaporte para o Camões admitindo tacitamente que o barco parara no Recife no caminho de sua rota de Luanda a Ambriz, passando por Cabo Verde. Por absurda que possa parecer essa rota para nós, com o Recife no meio do caminho entre Luanda, Ambriz e Cabo Verde, na realidade isso era típico de navios negreiros, que sempre poderiam alegar maus ventos ou avarias para justificar viagens estranhas, desde que pudessem passar por territórios onde conseguiriam papéis legais confirmando a rota absurda. O fato é que, entre sua saída de Luanda, passagem por Ambriz, onde provavelmente foram embarcados os cativos, desembarque dessas pessoas em Pernambuco e chegada no Recife, passaram-se apenas 34 dias. Ora, por mais rápido que tenha sido o embarque dos cativos em Ambriz e o desembarque em alguma praia de Pernambuco, fica claro que a viagem foi muito, muito rápida. Não mais que umas quatro semanas, se muito, se deixarmos apenas uns poucos dias para embarque e desembarque da delicada carga humana. Antes da lei antitráfico de 1831, o Diário de Pernambuco anunciava a chegada de navios negreiros na cidade, trazendo gente dos portos ao sul da linha do equador. É possível que alguns desses navios tenham, na realidade, ido buscar gente ao norte do equador, mas como não sabemos quantos, tudo que nos resta é tomar os dados como eles se apresentam. Pois bem, em 32 viagens de navios negreiros de Angola para o Recife listadas no jornal, entre 1827 e 1830, a duração média era de apenas 27,56 dias de viagem. Ao ser capturado no rio Benim, a viagem do Camões para Serra Leoa foi mais longa do que para Pernambuco, 39 dias. Era essa a vantagem comparada de Pernambuco: distância curta de qualquer ponto da costa da África. Na era do comércio atlântico ilegal de cativos, também facilitava a forma como se delineava o litoral da província. Segundo o relatório de Aires de Casal de 1809, Pernambuco contava com alguns dos melhores portos naturais da costa brasileira. Portos apropriados para as pequenas e rápidas embarcações empregadas no tráfico depois de 1831. Se Pernambuco foi apenas o terceiro porto do tráfico brasileiro no XIX, isso se devia apenas a decadência do açúcar e do algodão, pois, em termos de navegabilidade, era para lá a menor

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viagem possível desde a costa da África e a geografia do seu litoral também contribuía para os desembarques. De tudo isso deduz-se a facilidade com que o tráfico permaneceu atividade rotineira e lucrativa na província desde o XVI até a metade do XIX. E uma rotina tranquila, sem maiores sobressaltos, com baixos riscos em relação a outros portos de economias mais dinâmicas, mas com viagens mais longas e atribuladas desde a costa da África, como era o caso do Caribe. Uma palavra sobre as fontes aqui tratadas. Os documentos apreendidos em um navio negreiro eram analisados pela marinha e autoridades diplomáticas inglesas envolvidas nos trabalhos das comissões mistas. Os documentos que eles consideravam mais relevantes eram traduzidos para o inglês e, posteriormente, publicados nos Parliamentary Papers, a base para inúmeros estudos sobre o tráfico para as Américas. Os originais em português muitas vezes eram descartados. Mas o que não era, voltava para caixas que hoje estão disponíveis no Arquivo Nacional na Inglaterra. Foi o que aconteceu com a documentação encontrada nos brigues Veloz e Camões. A versão traduzida encontra-se online e é facilmente acessível. Todavia, descontando papéis esfarelados pelo tempo nas caixas do National Archives, há documentos que, talvez, não tenham sido considerados importantes pelos ingleses e por isso não foram traduzidos e outros tantos efetivamente traduzidos, mas com aqueles problemas comuns a traduções, que muitas vezes deixam escapar sentidos mais precisos, detalhes semânticos e coloquialismos, que explicam mais do que a tradução, por vezes literal demais, imprecisa ou mesmo omissa. O acesso à documentação original daqueles navios permite-nos averiguar detalhes não observáveis nos Parliamentary Papers. Esses manuscritos são a base deste estudo. Eles relatam o estabelecimento de uma “feitoria” do tráfico no rio Benim. Entre os documentos capturados, chamou a atenção dos ingleses um contrato manuscrito, que estabelecia a empresa dona do negócio. Era uma sociedade mercantil, sediada em Pernambuco, cujo objetivo era “expor-se a especulações e risco marítimo”. O capital inicial montava oitenta contos de réis pertencentes a vinte acionistas com cotas iguais. Para cumprir sua finalidade, a firma deveria estabelecer uma feitoria no rio Benim. Azevedinho era o “caixa diretor” da “sociedade”. Todos os navios seriam comprados em seu nome, mesmo que, na realidade não lhe pertencessem, dizia o contrato. Azevedinho não estava sozinho na administração da empresa, pois deveria consultar seus “adjuntos” Joaquim Leocádio d’Oliveira Guimaraens e Manoel Alves Guerra. No Benim haveria três feitores, João Baptista Cézar, Manuel Delgado e Joaquim Gomes Coimbra. Um quarto empregado, Antonio Fernandes Vianna ficaria em Príncipe, dando apoio às operações na costa da África. Os “interesses líquidos”, ou seja, os lucros da empresa, seriam divididos em 24 partes iguais. Vinte cotas iriam para os vinte investidores, as quatro cotas restantes, seriam divididas, uma para Azevedinho, duas para João Baptista Cézar e Manuel Delgado, sendo a última cota dos lucros dividida igualmente entre Joaquim Gomes Coimbra e Antonio Fernandes Vianna. Esses quatro empregados, junto com os capitães dos navios negreiros, estavam no topo da hierarquia funcional da empresa. Mas havia outros tantos empregados não tão bem remunerados. Desde alguns que

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eram pagos com salários e comissões em cativos, até os trabalhadores dos escalões mais baixos, conforme veremos mais adiante. Os riscos eram imensos. Morria-se muito nas feitorias do tráfico e o rio Benim já era conhecido pelo seu clima enfermiço, na expressão da época. Os ingleses apreenderam a correspondência da empresa, ou ao menos uma parte dela, trazendo aspectos do cotidiano desses empregados que trabalhavam na feitoria. Idealmente, eles deveriam seguir as instruções enviadas por Azevedinho, que indicavam que deveriam sempre se comportar de forma decente e morigerada. Enfatizava ainda Azevedinho, que deveriam expressar alguma religiosidade, deveriam obedecer os superiores, terem unidade de propósitos e, principalmente, saber como se conduzir diante da nobreza africana. Essa última uma recomendação fundamental, pois a área onde seria estabelecida a feitoria estava sob a suserania do reino do Benim. Além de negociarem na cidade do Benim e com o Rei que os levou para conhecer outras feitorias em seus territórios, os subordinados de Azevedinho também estiveram em Oeri, outra duas importante cidade do tráfico. Conheceram também a nobreza local e adquiriram cativos. A feitoria não era apenas um estabelecimento, pois seus agentes circulavam entre a cidade do Benim, Oeri, o porto fluvial de Gotto e a povoação de Bobi, já perto da embocadura do rio Benim, no litoral. Toda a nobreza cobrava “presentes” dos traficantes. O excesso desses presentes – a forma africana de se taxar o comércio de escravos – era a principal dificuldade dos empregados nas negociações, pois, segundo informaram, era tudo mais caro do que esperavam. Coimbra, Cézar, Vianna e Delgado culpavam Gomes, o capitão do Camões, pelas dificuldades em adquirir cativos, pois teria sido ele quem repassou informações por demais otimistas aos acionistas da firma em Pernambuco. Essas taxas, geralmente, eram pagas em produtos variados, cachaça, fumo, tecidos, facas, etc. Outros itens das instruções indicam detalhes da organização da firma. Azevedinho enfatizou a necessidade de mandar alguém morar perto do telégrafo, colocado pelos ingleses, para poderem se comunicarem melhor com o Brasil. A correspondência entre empregados da empresa no rio Benim demonstra que havia um sistema de envio de cartas e bilhetes bastante eficaz. Para ser mais exato e exemplificando, chegaram até nós vários bilhetes e cartas que circulavam entre os agentes da empresa. Havia mensagens que saíam da cidade do Benim, ou de Gotto, por exemplo, até Bobi, já perto do encontro entre o rio e o mar, ou mesmo até os navios que ficavam ancorados no rio Benim não muito longe da terra, mas não tão perto, pois havia recomendações muito estritas sobre a segurança das embarcações, onde havia mercadorias valiosas estocadas para reabastecer os armazéns da empresa. A comunicação entre Gotto, Oeri e Bobi, alcançáveis de barco, deveria ser feita com o lanchão da empresa. Mesmo os empregados não deveriam jamais ser autorizados a ir a bordo dos navios, a não ser em perigo de vida. A segurança dos barcos da empresa, portanto, era fundamental para a empresa. Da correspondência entre os empregados, percebe-se também que os capitães dos navios negreiros, embora também funcionários da firma, tinham uma posição muito próxima do topo da hierarquia, como a que gozava Cézar, o gerente geral das operações no rio Benim. O capitão do Camões, ao sair do

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Recife, foi indicado por Azevedinho para montar a feitoria a ser administrada por Cézar, pois, segundo as instruções era alguém que conhecia bem a área. Todavia, entre os capitães, aparentemente havia também uma hierarquia, pois a correspondência de Antonio Gomes da Silva, capitão do Camões, com Joaquim Pedro de Sá Faria, capitão do Veloz, denota uma certa preeminência de Faria. Um parte importante do protocolo de relações entre os traficantes e a nobreza africana era, como vimos, o pagamento de taxas, através de “presentes”, cujos valores variavam de acordo com a nível de importância dos interlocutores. No topo desta hierarquia, estava o próprio rei do Benim. Mas havia, o príncipe Jali, uma “rainha, “homens grandes”, “bocas do rei” (mensageiros) e até um “padre”, literalmente, que lá morava, e que recebeu um garrafão de aguardente por sua colaboração. É importante notar que o principal depósito de mercadorias eram os próprios navios. Todavia, à medida em que as negociações iam avançando pelo interior, os produtos eram solicitados por diferentes agentes e localidades diversas. Às vezes, as mercadorias viajavam grandes distâncias. Delgado e Coimbra, por exemplo foram a Gotto, ao reino do Benim e a Oeri negociar escravos. Em Gotto, o porto fluvial do qual se ia a cidade do Benim, foi construída um armazém para abrigar as mercadorias que trouxeram de barco. Pelo que contaram, o local era de difícil acesso, pois ficava no topo de uma colina. Certamente pensavam que assim estariam melhor protegidos. O transporte das mercadorias, todavia, foi penoso. Pelo que se depreende da correspondência, várias pipas de aguardente caíram. Levaram “tombos”, provavelmente com alguma perda, tanto que Delgado e Coimbra, em carta a Azevedinho, mencionaram que estava certo o “marinheiro Emigdio”, ao dizer que era mais vantajoso trazer a aguardente em barricas. Essas estruturas de armazenamento e moradia, todavia, também não dispensavam algum conforto. Entre as coisas pedidas por Delgado e Coimbra para seu conforto estavam, facas, garfos, colheres, xícaras e pires Não há menção à construção de estruturas para aprisionar as pessoas que seriam embarcadas para o Brasil, mas como as cartas tratam, principalmente, da compra de gente em diferentes mercados e do abastecimento, alimentação e cuidados com essa gente, é evidente que devia haver alguma estrutura com essa finalidade. Escrevendo a Azevedinho em agosto de 1837, Cézar falou que já tinha 130 escravos na praia, na feitoria, mas a estrutura da casa era muito precária. Disse na carta que essa era a mesma “casa” que antes fora utilizada por “Claudio”, um capitão de navio negreiro que trabalhava para Manoel Alves Guerra, um dos homens que participava da empresa de traficantes de Pernambuco. Certamente isso dificultava a segurança. Em um dado momento, numa correspondência sem data, ocorreram algumas fugas, o que levou o principal empregado na feitoria, João Baptista Cezar, a escrever a Joaquim Gomes Coimbra reclamando irritado da situação. Dizia para Coimbra perguntar ao Antonio, provavelmente Antonio Cândido da Silva, o que estava acontecendo, pois, haviam-lhe dito que “faltavam” 7 cativos, todavia, depois, haviam aparecido 8, ou seja, Cezar não estava entendendo que contagem de fugas era essa. Desconfiava que estava tudo meio

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fora de controle. Ao final do bilhete, arrematou que, pelo visto... “os escravos não tem fugido todos por não quererem”. Incomodado avisou ainda que, “de noite” ele iria pessoalmente ver o que estava acontecendo. Esse último aviso de Cézar indica que o local onde ficavam aprisionados os cativos era diferente do lugar onde estavam estocadas as mercadorias. As mercadorias estavam em Gotto, ou nas suas proximidades, enquanto que os cativos estavam nas imediações de Bobi, perto de onde estavam ancorados os navios negreiros. Cézar estava em um dos navios quando disse que de noite iria pessoalmente averiguar as coisas no local onde estavam os cativos. Ou seja, a distância do navio até o local do cativeiro era longe o suficiente para justificar a troca de bilhetes, mas perto o bastante para que ele pudesse ir até lá no mesmo dia. Para resolver o problema das fugas, Cezar pediu dois guardas a “rainha”, no que foi atendido, segundo informou a Coimbra em um bilhete. Aparentemente, os cativos que fugiram foram recapturados, mas isso só foi possível com a ajuda da nobreza local africana. A tal “rainha” inclusive mandou avisar ao Cezar que ele deveria dar alguma coisa em recompensa pela captura do fugitivo. Como era a rotina na escravidão, havia castigos. Antonio Cândido da Silva, o empregado encarregado de cuidar dos cativos – o tal que não contava direito os fugitivos – em uma outro bilhete sem data, mencionou que havia recapturado um cativo que havia fugido, “escondido no mato” e que o havia castigado com “uma dúzia de bolos”. Não sabemos quantos africanos trabalhavam na feitoria. Mas havia africanos engajados nos serviços, principalmente na vigilância dos cativos a serem embarcados. Isso, é claro, a um custo, pago à nobreza africana, que não cedia nem fornecia nada que não fosse por um preço. E quando falo que tudo custava, incluo aí até a tarefa de enterrar os mortos, que não eram poucos. Morria-se muito em feitorias como aquela, como demonstrou uma historiografia que já é antiga, pois o regime epidemiológico e a lógica brutal do tráfico não poupavam ninguém. Nem os empregados da companhia. A tal “rainha”, mencionada várias vezes na correspondência da firma, cobrava 20 panos para enterrar uma pessoa. Tanto que, quando um empregado espanhol morreu, seu chefe, o Delgado, mencionado acima, preferiu jogá-lo no mar a pagar esse preço. Esse foi o mesmo preço cobrado para enterrar uma menina cativa, que também veio a falecer em uma outra ocasião. Não sabemos quantas pessoas, africanos ou não, morreram nos meses sobre os quais dispomos de fontes sobre a feitoria. Mas sabemos com certeza da morte não apenas do espanhol e da menina africana, mas também do principal cuidador dos cativos aprisionados, Joaquim Teixeira Alves Bastos, bem como do marinheiro Urbano. Entre os serviços dos africanos provavelmente também estava carregar os produtos negociados em troca de cativos, e, talvez, a própria transmissão da correspondência interna da empresa na costa da África. Alguns bilhetes mostram que circulavam até vales para pagar serviços eventuais necessários ao bom andamento dos negócios. Uma notinha, datada de 27 de julho de 1837, assinada por Antonio Cândido da Silva, o tal empregado encarregado de cuidar dos cativos a espera de embarque, dizia simplesmente: “A quem este me apresentar entregarei quatro facas”. Ora, um bilhete deste tipo, só pode significar que ele

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esperava que alguém o trouxesse de volta, com alguma coisa. Era um vale, dinheiro em sua forma mais primitiva, digamos assim, que certamente circulou até chegar nas mãos da pessoa que iria lhe trazer alguma coisa qualquer que ele necessitava. Como a nota foi guardada e não rasgada e jogada fora, é razoável pensar que, talvez, tenha sido utilizada mais de uma vez. Cândido estava sempre escrevendo a respeito da comida para os cativos e de outros tantas providências necessárias ao desempenho de suas funções. Um outro bilhete dele, desta vez endereçado ao capitão do Camões, datado de 31 de julho de 1837, pedia que pagasse “a este preto” trinta e cinco panos “em facas, aguardente e lenço”. Isso indica que um “pano” servia no rio Benim como um equivalente geral, ou seja moeda de troca, nas negociações locais. Como a maior parte da correspondência de Cândido trata da alimentação dos cativos, acredito que esse valor tenha sido o custo da compra de provisões, algo sempre em falta, diante do constante aumento de pessoas aprisionadas para serem embarcadas. Algum africano, portanto, recebeu do “Senhor Capitão” uma quantia de facas, aguardente e lenços equivalentes a trinta e cinco panos. Coimbra, Delgado e Cézar, os três principais agentes da firma no rio Benim, são autores de narrativas expressivas sobre suas negociações no interior. Em alguns momentos, entusiasmados com as possibilidades de negócios lucrativos. Escrevendo da cidade de Benim em 30 de junho de 1837, Coimbra, por exemplo, relatou que estava impressionado com a pujança da cidade de Benim, com suas casas grandes, e uma “grande rua”. Achou “bunito” [sic]. A feira da cidade, era ainda maior do que a de Gotto. Segundo ele, havia mais de 4 mil pessoas vendendo mercadorias lá. Na mesma data, Coimbra escreveu a Faria confirmando que ainda não haviam comprado ninguém, mas que eram muito “bonitos” também os panos do Benim. Eram longas as estadias Benim, Oeri e Gotto. Mas próximo da costa, em Bobi, ficava o local para onde eram enviados os cativos adquiridos. Apesar dessas impressões positivas e esperanças de lucros, eram também imensas as dificuldades encontradas e as distâncias a serem percorridas. No dia 10 de agosto de 1837, Delgado escreveu uma carta de Gotto a Faria, o comandante do Veloz, ancorado próximo a Bobi. Segundo anotou Faria do próprio punho no envelope, ele recebeu a carta no dia 16. Seis dias depois portanto. Não eram curtas as distâncias. Não sabemos exatamente quanta gente trabalhava nessa feitoria. Mas sabemos que havia funcionários de várias nacionalidades entre brasileiros, portugueses, espanhóis e africanos. Esses últimos trabalhando na vigilância dos cativos ou em serviços eventuais. Um indicativo da variedade de funções necessárias ao bom andamento dos negócios está nos empregados trazidos no Camões que, como vimos era apenas um dos navios da empresa. Do Recife para o rio Benim embarcaram dois tanoeiros, um cozinheiro, um sangrador e barbeiro e um “servente”. Todos ganhariam 24 mil réis mensais, “pagos ali (no rio Benim) em gênero, pelo preço da feitoria”. O “tempo de engajo” era de um ano, se não adquirissem alguma “moléstia” que os impossibilitasse de servir. Esses 24 mil réis era um salário que, dificilmente, atrairia

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alguém para um emprego tão arriscado, do outro lado do Atlântico. Todavia a cada um desses empregados era facultado enviar ao Brasil em cada navio da companhia “um praça livre de frete”. Ou seja, na linguagem cifrada do tráfico, cada um desses empregados poderia enviar um cativo por sua conta e lucro ao Brasil, em cada viagem feita pelos navios da “sociedade”. Isso aumentava exponencialmente o valor dos emolumentos desses empregados. De fato, a correspondência indica que, pelos menos Cézar, o empregado mais graduado, tentou enviar cativos em um dos navios apreendidos, consignados a seus parentes. Havia pelo menos dois navios negreiros no momento do ataque da Fair Rosamond. Ora mesmo que tenha sido impossível alcançar o que pretendia o contrato social da empresa – um navio por mês – enviar apenas dois cativos por ano, já seria um salário bastante atraente para os pobres pé-rapados que trabalhavam nas funções mais vis da feitoria. Os “sócios” no Brasil, todavia, não eram ingênuos e sabiam também como podar essa possibilidade. Ao cozinheiro, por exemplo, dizia Azevedinho que adiantou 25 mil réis. Ao “tanoeiro Cunha” também. A menção ao pagamento dos 24 mil réis em “gêneros”, e o lembrete de Azevedinho de que os adiantamentos deviam ser descontados, indica que a feitoria e os navios deviam ter estoques de mercadoria a serem vendidos aos empregados – como aguardente e fumo por exemplo – como se fosse um barracão dos engenhos de Pernambuco. Era assim na marinha mercante legal, onde os navios vendiam a crédito o que desejavam os marujos. Na costa da África, esses produtos certamente eram ainda mais caros. A vida desses empregados não era fácil. Azevedinho deixou claro nas suas instruções que, caso desejassem, os feitores e “meio-feitores” na África deveriam demitir os funcionários vindos do Brasil. Foi exatamente isso que aconteceu com o tal “servente” enviado por Azevedinho. Foi demitido por Antonio Candido da Silva, o sujeito que tomava conta dos cativos. Não sabemos se conseguiu voltar ao Brasil em algum dos navios da companhia, ou se terminou se juntando à comunidade de marítimos que por um motivo ou outro, terminavam na costa da África por mais tempo do que desejavam, fracassando no desejo de enriquecimento rápido que certamente movia as pessoas pobres a se aventurarem em empregos desse tipo. Às vezes, isso acontecia por motivos fortuitos. Um marinheiro sem nenhuma relação com a firma, segundo contou Coimbra a seus chefes, foi negociar na cidade do Benim, inadvertidamente, sem presentes para o Rei. Como punição, não o deixou mais sair de lá. Fazia tempo que estava ali. Diretamente relacionado ao nosso caso, foi o que aconteceu com 19 espanhóis que foram colocados no Veloz no meio do oceano atlântico e foram parar na feitoria no Benim. Eram tripulantes de um navio negreiro capturado por um navio inglês, que simplesmente abordou o Veloz em sua viagem ao rio Benim, e largou os prisioneiros lá, aos cuidados no capitão do navio da empresa do tráfico. Faria, o capitão do Veloz, narrou esse episódio, que aliás, não é único nem inusitado. Os ingleses largaram inúmeras tripulações de navios negreiros onde quer que desejassem, inclusive no litoral africano. Quanto aos espanhóis, o que iriam fazer eles no rio Benim? A documentação fala que havia outras feitorias

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próximas. Uma era inglesa, outra espanhola. Não sabemos nada sobre as demais. Eram essas as alternativas dos desempregados, ou trabalhavam para gente envolvida no tráfico, ou para os ingleses que negociavam óleo de palma no mesmo local. Não é preciso muita imaginação para perceber que, para a tripulação de um navio negreiro apreendido, a primeira opção era mais viável. Vale salientar, todavia, que embora súditos da nação que combatia o tráfico, os ingleses de Bobi tinham relações para lá de amistosas com os traficantes da feitoria. Jantavam, bebiam e festejavam juntos. Trocavam produtos entre si e ao menos em uma ocasião, enquanto Delgado e Coimbra estavam em Gotto, em 25 de junho de 1837, enviaram correspondência a Cezar através de um negociante de óleo de palma inglês, Mr Miller, que tinha sua feitoria de “legal trade” também em Bobi. Escrevendo para Azevedinho, Cézar admitiu a amizade que terminou desenvolvendo com dois ingleses, o “senhor Miller” e o “senhor Oppo”, que tinham feitoria em Bobi para comprar óleo de palma. Afirmou que não havia como viver ali sem esse tipo de colaboração.9 Não sabemos o que aconteceu exatamente com os 19 marinheiros espanhóis colocados no Veloz, na viagem de ida para Bobi, pelo comandante da escuna inglesa que capturou o negreiro onde estavam. Mas sabemos que pelo menos um deles empregou-se na feitoria, mais exatamente, no local onde estavam os cativos aprisionados. Era um dos encarregados de cuidar das pessoas que seriam embarcadas para o Brasil. Sabemos disso através de uma carta de 5 de agosto de 1837 de Antonio Cândido da Silva a seus superiores. Todavia, queixava-se Antonio Cândido, o novo empregado só queria saber de dormir. Numa ocasião, já insatisfeito com o serviço do espanhol, Antonio Cândido mandou que ele fosse raspar os dentes dos “moleques”, para prevenir o iscrabute [sic] (escorbuto). Seu trabalho, todavia, não contentou Antonio Cândido que o mandou embora. Talvez o eterno sono do pobre marinheiro espanhol fosse realmente preguiça diante das poucas vantagens pecuniárias que certamente recebia por seus serviços, pois, como foi parar lá à revelia da empresa, certamente não era pago da mesma forma. Se é que era pago. Mas, talvez a tal preguiça já fosse um sinal da doença que o acometeu acarretando sua morte. Provavelmente a mesma doença que também iria contrair o chefe imediato do próprio Antonio Cândio, o “senhor Bastos”, levando-o também à morte, deixando Antonio Cândido sem seu superior imediato. Em carta do seu próprio punho a respeito da morte do espanhol, Antonio Cândido disse que o corpo já fedia, pelo que o jogou no mar, economizando assim “20 panos” dos cofres da empresa, pois, como vimos, era esse o preço cobrado pela “rainha” local para enterrá-lo. Como seria de esperar em uma empresa envolvendo navios, viagens atlânticas, empregados nas mais diversas atividades, pagamento de despesas variadas, inclusive à nobreza africana, havia uma escrituração a ser feita na feitoria. Para isso foram enviados do Recife por Azevedinho dois livros e três cadernos. Esses últimos para “lançamentos volantes”. Lamentamos que esses livros e cadernos não tenham chegado até nós.

9 Sobre a relação amistosa entre os empregados da feitoria do tráfico e os negociantes ingleses na mesma área, veja-se: REIS, GOMES e CARVALHO, O Alufá Rufino, cap. 10.

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Sabemos todavia que, em suas instruções a Delgado, Azevedinho enfatizou que ele deveria tomar conta das coisas, como “primeiro feitor” até a chegada de Cézar, quer seria o gerente geral das operações no rio Benim. Todavia, enfatizava Azevedinho, como Delgado escrevia mal, deveria solicitar a ajuda dos “meio feitores” Coimbra e Vianna para a correspondência. De fato, a leitura dos bilhetes de Delgado confirmam o que disse Azevedinho. A empresa, todavia, previu essa dificuldade e ofereceu a solução na caligrafia limpa de Coimbra, pois Vianna, como vimos, morava nas ilhas Príncipe. São vários os bilhetes assinado por “Coimbra por Delgado”. É importante notar a relevância do letramento dos envolvidos em uma empresa deste tipo. Há vários pedidos por papel e tinta, principalmente por parte dos agentes que viajavam para negociar. Antonio Cândido, por exemplo, escrevia sofrivelmente, mas diante da doença do seu chefe imediato, o Senhor Bastos, não restou a ele outra solução a não ser tomar a frente dos cuidados necessários para manutenção e vigilância dos cativos. Seus bilhetes não foram traduzidos pelos ingleses. A Comissão Mista que julgou o caso do Veloz e do Camões provavelmente não se interessava por suas dificuldades, por sua necessidade de demonstrar que não foi por culpa sua que morreu uma “preta”, ou pelos detalhes das compras de inhame, cabritos, galinhas, os pagamentos de 20 panos para enterrar gente, ou seus pedidos por farinha, carne seca, feijão, toucinho, medicamentos, unguentos, pedra pomes, pus vacínico, utensílios os mais diversos, desde tesouras para cortar os cabelos dos cativos a objetos para o próprio conforto, como pratos, xícaras, aguardente, vinho, vinagre, bolacha, manteiga, açúcar, etc. Algumas vezes, alguns desses produtos chegavam através dos ingleses de Bobi. Foi assim, por exemplo, que Cândido conseguiu comprar umas galinhas para o Senhor Bastos, a serem pagas com “facas” que solicitou a seus superiores na feitoria. Eram muitas as necessidades de Antônio Cândido. Sua correspondência, às vezes apressada, em letra sofrível, em bilhetinhos sem data, é das fontes mais ricas de que dispomos sobre as rotinas da feitoria. Mesmo porque, diante da incapacidade física de seu chefe, o Bastos – doente desde que desembarcou – cabia a ele uma das funções mais importantes da feitoria: cuidar dos cativos. A morte do senhor Bastos praticamente pode ser narrada paulatinamente a partir dos bilhetes enviados por Antonio Cândido a seus superiores. São bilhetes geralmente sem data, mas é possível ver que a estadia de Bastos em Bobi foi rápida e letal. Aparentemente nunca conseguiu exercer plenamente suas funções de cuidador de cativos encarcerados para serem embarcados em um navio negreiro, se é que podemos descrever em uma sentença a sua função na feitoria. Cézar inclusive era muito otimista em relação a suas habilidades profissionais, pois em carta de 25 de julho de 1837, admitiu que os cativos não estavam sendo tratados a contento, todavia, achava que, com a chegada do Bastos, as coisas iriam melhorar. No dia 05 de agosto, todavia, Antonio Cândido menciona que Bastos já estava doente. Haviam se passado, portanto, apenas dez dias entre a carta de Cézar dizendo que ele estava para chegar e a sua grave enfermidade, informada por Cândido. Obviamente é impossível saber exatamente do que se tratava, mas provavelmente era malária. As febres altas, ao ponto de serem seguidas de delírios, eram rotina naqueles “climas pouco

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salutares”, na expressão que constava do contrato estabelecendo a firma. Muitos adoeceram em algum momento, para não dizer praticamente todos que deixaram escritos até nós. As cartas de Cézar e Faria a suas esposas, por exemplo, praticamente insinuam uma despedida, diante da possibilidade iminente de morte a qualquer momento. Na correspondência subsequente de Antonio Cândido fica claro o estado cada vez pior de Bastos, de tal forma que, num dado momento, nem chegou a comer a canja feita com as galinhas compradas aos ingleses. Algumas semanas depois de sua chegada, se muito, Bastos pediu um padre para se confessar. No dia 17 de agosto, Antonio Cândido escreveu um bilhete informando que Bastos estava indo para o litoral, pois desejava ser embarcado. É nesse momento que aparece – crua – a dureza, a sordidez do tráfico ... para com seus empregados. Bastos chegou em Bobi e escreveu do próprio punho um bilhete para Gomes, o comandante do Camões, pedindo, humildemente para embarcar e esperar os navios da companhia. Tal como seu subalterno Antonio Cândido, Bastos escrevia sofrivelmente. Levava consigo algumas galinhas. Essa troca de correspondência, primeiro um aviso de Antonio Candido informando que Bastos estava deixando a sua companhia para ser embarcado e depois um bilhete do próprio Bastos para o comandante do Camões, indica que havia uma certa distância entre o local onde estavam os cativos e o ponto de onde se pegava um barco para alcançar os navios. É bom lembrar que os navios ficavam ao largo, no meio do rio Benim. Era preciso ir de canoa ou barco até eles. Também é bom lembrar agora as instruções iniciais de Azevedinho para seus funcionários. Elas eram claras a esse respeito, pois proibiam terminantemente o embarque dos empregados, a não ser em perigo de vida. Pois bem, Gomes obedeceu essas instruções e não autorizou Bastos a embarcar. No meio da papelada apreendida pelos ingleses há um bilhete de Gomes para Faria, o comandante do Veloz, explicando sua atitude. É através desse bilhete que sabemos que Bastos não foi autorizado a embarcar. Quando Gomes escreveu esse bilhete, talvez Bastos já estivesse morto, pois o tom da carta é claro: Gomes estava se justificando por não deixado ele embarcar. Argumentava ele, que não iria deixar um empregado da firma “desamparar a feitoria por qualquer motivo que seja”. Só deixaria Bastos embarcar por ordem expressa do próprio Faria, o comandante do Veloz. Bastos, todavia, não resistiu a enfermidade que o acometeu e faleceu ali, no litoral do rio Benim. Seu inventário foi feito a bordo do Veloz em 18 de setembro de 1837. Viveu menos de dois meses na costa da África. Não sabemos se foi enterrado, pelo preço de “vinte panos”, como cobrava a rainha, ou se também foi jogado no mar como a menina cativa e o espanhol, seu subalterno, que não escovou a contento os dentes dos pobres meninos que esperavam ser embarcados para o Brasil. É possível que tenho ido parar no mar, economizando os cobres da empresa. Mas, se existe algo que é parte do cotidiano do tráfico é a sua onipresente, e calma, sordidez. O que surpreende da documentação encontrada no Veloz e Camões, portanto, não são os relatos das mortes, o desespero dos cativos ou dos empregados enfermos, mas os detalhes das negociações e das rotinas dos

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trabalhadores engajados numa feitoria do tráfico no rio Benim. Trabalhadores preocupados em explicar suas dificuldades a seus superiores. Entre elas, a incapacidade de comprar gente pelos preços que esperavam inicialmente. A correspondência descrevia ainda a tensão e os conflitos entre eles mesmos. Pela correspondência que chegou até nós, quem parece ter causado mais problemas foi Gomes, o comandante do Camões. Aparentemente, esperava-se muito dele, pois era o mestre de um dos navios e reconhecido por Azevedinho como alguém que conhecia bem o lugar onde a feitoria estava sendo estabelecida. Todavia, segundo Delgado, as informações que deu em Pernambuco não correspondiam à realidade encontrada no rio Benim. Mais grave ainda, foi a sua conduta. Desentendeu-se com Viana, com Delgado, com Cézar, até com o rei do Benim. Segundo Cézar, ele vendia mercadorias a crédito sem autorização, apossou-se de bens da empresa e bebia tanto que terminou ficando conhecido como “moxaquari” – bêbado, na língua local. Quanto à nobreza africana, para os empregados, era imensa sua soberba. Em carta datada de 8 de julho de 1837, Coimbra escrevia para Faria, comandante do Veloz: “Não me é possível explicar o quanto é atrevido o rei deste lugar e a sua corja pois só pessoalmente”. Comentaram em várias cartas o poder discricionário do rei do Benim, capaz de decidir e impor o que queria. Na primeira visita que fizeram à cidade do Benim, Coimbra e Delgado não levaram presentes para o rei. Segundo contou Coimbra a Cézar em carta de 30 de junho de 1837, foi enorme a comoção quando descobriram esse deslize. Deslize terrível, pois o próprio Azevedinho já havia indicado em suas instruções o cuidado que se deveria ter com os protocolos locais. Há muito que se sabia que uma visita à nobreza africana era acompanhada de presentes, a contrapartida africana das taxas e emolumentos cobrados na outras margens do Atlântico. Foram salvos por um africano, um tal de Antonio, que havia morado na Bahia e pôde servir de intérprete, intermediando a tensa negociação, que terminou com Delgado ficando como garantia da dívida, enquanto Coimbra saia para conseguir as mercadorias necessárias para compensar a desfeita ao rei do Benim. O rei sabia do seu poder. O comércio não era um monopólio régio, mas ele não fluía sem sua autorização prévia. Segundo os agentes da empresa era impossível comprar qualquer coisa, um cabrito sequer, sem que o ele abrisse o mercado. Angustiados, os funcionários estavam espremidos entre as demandas dos patrões e as exigências da nobreza africana que sabia muito bem o quanto valia as mercadorias que tinham à venda. No final, os dois navios foram capturados pelos ingleses. Não sabemos quantas embarcações da rota do tráfico para Pernambuco operaram na feitoria nos anos seguintes, sequer se ela continuou operante depois desse fiasco no momento de sua fundação. Mas é possível que não tenha sido esse o seu fim, pois o delta do Niger continuou uma região exportadora de cativos por mais alguns anos até a intervenção inglesa e os nomes dos principais chefes, como Azevedinho, continuariam aparecendo nos anais do tráfico por mais algum tempo. Cézar, o principal “feitor” da empresa em Bobi, morreria em 1847 na cidade do Porto, deixando no Recife viúva e 5 filhos menores. Não eram muitos os seus bens. Entre eles, 5 cativos. Todos angolanos. Urbano, um marinheiro empregado da firma, morreu miserável, como demonstra o breve inventário de seus pertences

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feito a bordo do Veloz, a 9 de setembro de 1837. Quase nada tinha, além de “cinco camisas rotas” e apetrechos de uso pessoal. Bastos, que certamente esperava fazer alguma fortuna em seu emprego de cuidador de cativos a espera de embarque para o Brasil, também deixou pouca coisa no Benim. Mais roupas e objetos de uso pessoal do que o marinheiro Urbano, mas nada também digno de nota. O tráfico deixou uma memória quase mítica dos seus principais beneficiários, gente rica, encastelada em posição de poder, ungidos de títulos de nobreza nos dois lados do Atlântico. Chegaram até nós relatos sobre gente que saiu do nada para a riqueza intermediando a vinda de gente da África para as Américas. De fato, algumas histórias de vida demonstram que algumas dessas lendas eram baseadas em fatos. Todavia, a massa dos trabalhadores do tráfico não fez parte dessa fina camada de traficantes realmente bem sucedidos. O marinheiro Urbano, o espanhol demitido, Bastos e o angustiado Antonio Candido, sempre afogado em suas tarefas, tipificam melhor a carreira da gente mais simples envolvida no tráfico. Não alcançaram fortuna alguma, como aliás costuma acontecer com a maioria das pessoas empregadas em negócios especulativos e de alto risco como era o tráfico atlântico de escravos. Bibliografia SALUBI,T.E.A. “Origins of Sapele Township”, in EKEH (Edit.)Peter P., History of the Urhobo People of Niger Delta (Ikeja, Lagos: Urhobo Historical Society, 2007) MARQUES, João Pedro. “Tráfico e supressão no século XIX: o caso do brigue Veloz, Africana Studia, n 5 (2002). REIS, João José; GOMES, F. S; CARVALHO, M. J. M. O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c.1822 - c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982. COSTA E SILVA, Alberto da. Um Rio Chamado Atlântico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. ANENE, J. C. “Benin, Niger Delta, Ibo and Ibibio Peoples in the Nineteenth Century” in AJAYI, J. F. Ade; ESPIE, Ian (Orgs.), A Thousand Years of West African History, Nova York: Humanities Press, 1972. ELTIS, David E RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven e Londres: Yale University Press, 2010.

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