As tensões surgidas pela concessão do Prémio Camões a em 2019

Paz Félix, Alberto

Literatura e Espetáculo

Mestrado em Literatura, Cultura e Diversidade

Curso 2019/2020 Índice Introdução...... 2 Biografia e atividade...... 2 Tensões...... 3 A comparação entre Bob Dylan e Chico Buarque...... 4 Heteronomia com o campo político...... 6 Prémio Camões...... 7 Sistema literário brasileiro...... 8 Conclusões...... 9 Bibliografia...... 12

1 Introdução

O objetivo do presente trabalho é desvelarmos as tensões existentes dentro dos sistemas literários existentes em países de língua portuguesa pelo anúncio no ano 2019 de outorgar o Prémio Camões a Chico Buarque de Hollanda, escritor e cantor brasileiro. Usando este exemplo, pretendemos saber em que medida estas tensões são provocadas pela condição do autor de letrista.

Além disso, também é do nosso interesse qualquer informação que ajude a compreender tanto a nomeação de Chico Buarque como o funcionamento do sistema literário brasileiro. A autonomia ou heteronomia do sistema, a transfusão de capitais ou tensões sucedidas em outros sistemas, ou mesmo a posição do autor escolhido dentro do campo são exemplos de informações relevantes que podem ajudar a nos aproximar ao objeto de estudo.

Para chegarmos a este objetivo, precisaremos descobrir como e onde se manifestam estas tensões que, na maior parte dos casos, são invisíveis. Usaremos, com este fim, fontes extraídas dos meios de comunicação nos que se recolhem as opiniões de agentes situados dentro e fora do campo literário acerca da nomeação. Sempre que for possível tentaremos pôr informações chegadas dos diversos países onde a língua portuguesa é oficial, para assim realizar um contraste sobre a receção de Chico Buarque dentro do Brasil e como foi recebido no resto dos países que conformam o sistema linguístico, aproveitando o caráter internacional do Prémio Camões.

Biografia e atividade

Chico Buarque de Hollanda, nascido em Rio de Janeiro o ano de 1944, é um dos mais destacados músicos e escritores brasileiros, conhecido mundialmente pela sua contribuição para a música popular brasileira, como são exemplos os seus discos Construção (1971) e Almanaque (1981). A sua posição central neste âmbito vem ademais marcada por colaborações que teve com outros músicos centrais formados no contexto cultural da Bossa Nova, como a canção Samba de Orly (1971), feita como colaboração entre Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Toquinho.

O autor também é conhecido pela sua participação no campo político, como férreo opositor à ditadura militar brasileira (1964-1985), indo ao exílio para a Itália, e também como partidário da esquerda política, mais em concreto do Partido dos Trabalhadores (PT), partido político que contou entre os seus fundadores à sua mãe Maria Amélia Buarque de Hollanda (1910-2010) e ao seu pai Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982). Também ganhou o autor reputação (má ou boa, isso depende da posição política de cada quem) pelo seu incondicional apoio ao ex-presidente Lula da

2 Silva, que conservou e mostrou mesmo durante o juízo deste último por corrupção, chegando até a realizar visitas na prisão ao antigo líder do PT depois da sua condena (Veja 2019).

Chico Buarque também acumulou, ao longo da sua vida, uma série de capitais simbólicos tanto no campo musical como no literário. Nos seus inícios, os seus prémios eram quase exclusivamente musicais, destacando o Troféu APCA pela categoria de “Melhor Letrista da Música Popular” (1973), o Troféu Imprensa a “Melhor cantor” (1975) e, finalmente, o Grammy Latino por “Melhor Álbum de Música Popular Brasileira” (2002) focado no seu álbum Cambaio. Porém, no ano 1991 Chico Buarque publica o seu primeiro romance, Estorvo, que ganha ao ano seguinte o Prêmio Jabuti, considerado um dos mais prestigiosos prémios literários do Brasil. Mais tarde, o autor ainda conseguirá duas vezes a mesma condecoração, em 2004 e em 2010, pelos romances Budapeste e Leite Derramado respetivamente. Graças a isto Chico Buarque converteu-se, nestas últimas décadas, num escritor e literato reconhecido, somando estes capitais ao seu lavor antigamente exclusivo do âmbito musical.

Tensões

Olhando em Google Académico, podemos notar que existem vários trabalhos, de maior ou menor extensão, acerca da obra musical de Chico Buarque como letrista e, portanto, considerando as letras das suas canções dentro da etiqueta “literatura”, relacionando-a sobretudo com a poesia. Podemos ver isto em Poesia e política nas canções de Bob Dylan e Chico Buarque de Ligia Vieira Cesar ou em Da singularidade na/da linguagem poética: um estudo enunciativo em canções de Chico Buarque de Sabrina Vier. “Poesia” e “linguagem poética” são as etiquetas usadas nestes dois casos para se referirem às letras das canções de Chico Buarque, que é o objeto de estudo destes trabalhos. Podemos concluir, portanto, que o campo académico (ou uma parte dele, no mínimo) não encontra diferença entre, por dizer dalgum jeito, “poesia cantada” e “poesia escrita”.

Dentro do Brasil, aparte da crítica de Olavo de Carvalho que referiremos mais adiante, só encontramos um artigo de opinião que encontra desacertada a nomeação de Chico Buarque, da autoria de Ademir Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores no Estado de Goiás e professor da Universidade Estadual de Goiás. Na opinião deste crítico, Chico Buarque não merecia o Prémio Camões pois os seus romances não têm qualidade:

Não invejo o Chico Buarque romancista, salvo seus caros amigos nos cadernos culturais. Não que sua literatura seja necessariamente ruim, não é, o conjunto fica entre o mediano e o bom. O problema é que isso parece pouco para alguém que é, com toda justiça, reconhecido como gênio em outra área de atuação artística, a música

3 popular. Chico Buarque escrevendo literatura é como Michael Jordan jogando beisebol ou Usain Bolt jogando futebol. (Luiz 2019)

O de Ademir Luiz é o único artigo que encontramos onde alguém que semelha ter capitais no campo afirma que o Prémio Camões é “literário” e que portanto um autor “gênio” na música mas “mediano” na literatura não merece a sua atribuição. Para Luiz, o escritor brasileiro Cristovão Tezza (que tem capitais no campo literário, entre eles dois Prêmios Jabuti, mas não é músico nem letrista) mereceria mais o título do que Chico Buarque, que só é “romancista” nas “horas vagas”. Para desvalorizar os capitais atribuídos ao autor no sistema literário, Ademir Luiz também faz menção do debate surgido no ano 2010 por ganhar o seu romance Budapeste o Prêmio Jabuti, que já na sua altura levantou suspeitas acerca do “viés político” do prémio (Tomazzoni 2010).

Fora do Brasil, porém, não encontramos críticas à nomeação de Chico Buarque. A maioria de meios comunicou a notícia considerando aceitável a decisão e lembrando a obra de Chico, como podemos ver, por exemplo, no Portal Galego da Língua (Da Silva 2019) ou na Rádio Televisão de Portugal (Aleixo 2019).

Analisando as declarações de membros do júri, se bem é verdade que na grande maioria dos casos eles só aludem a que o prémio é pelo “conjunto da obra” e o seu “caráter multifacetado” (Diário de Notícias 2019), notamos que o papel de Chico Buarque como letrista teve um papel decisivo, pois o escritor brasileiro Antônio Cícero (um dos membros do citado júri) pôs a canção de Construção como um exemplo de “poema até raro de se fazer” (Coutinho 2019), não só reconhecendo a letra da canção como “poema” mas também dando entender que esta foi um dos motivos principais da escolha de Chico Buarque ao Prémio Camões.

A comparação entre Bob Dylan e Chico Buarque

A proximidade entre o ano de entrega do Prémio Nobel a Bob Dylan (2016) e a do Prémio Camões a Chico Buarque (2019) faz que muitos meios relacionem aos dois autores, estabelecendo uma comparação entre ambos, ou quando menos uma relação, como faz Ademir Luiz (2019):

Sei que a justificativa dos membros do júri foi o reconhecimento do alcance do conjunto da obra do multiartista Chico Buarque, que é cantor, compositor, dramaturgo, jogador de futebol, símbolo sexual, entrevistado padrão em documentários diversos e, nas horas vagas, romancista. O que temos aqui é, claramente, um desdobramento do efeito do Prêmio Nobel concedido ao menestrel Bob Dylan, acrescido de certo tempero de manifesto político. Hoje, dar o Prêmio Camões para Chico Buarque é o mesmo que gritar “ele sim”.

4 Ademir Luiz, portanto, continuando na sua tese que Chico Buarque não conta com suficientes capitais no campo literário, compara aos dois autores e juntando outro elemento: afirma que a nomeação de Chico Buarque se deve a motivos políticos.

Porém, a diferença de Luiz, os meios de comunicação portugueses têm uma visão diversa, salientando a falta de capitais no campo literário de Bob Dylan. A obra “literária”, no sentido mais tradicional do termo, de Bob Dylan, resume-se no seu livro de poesia em prosa Tarantula (1971), compondo o resto dos seus livros recompilações de letras, desenhos e o primeiro volume duma série de autobiografias. Pela sua obra literária, Bob Dylan não ganhou nenhum reconhecimento simbólico, só ganhando prémios e certames exclusivamente no âmbito musical.

Este contraste na atribuição de capitais levou estes meios a afirmarem que Chico Buarque não só merecia o Prémio Camões, mas também o Prémio Nobel. Para Céu e Silva, por exemplo, a diferença é clara:

Tal como o poeta/letrista/músico norte-americano, também Chico Buarque é conhecido da maioria pelo que canta. Mas ambos têm uma outra faceta, sendo que aí Chico Buarque ainda leva mais vantagem. Não escreveu apenas Calabar e não teve parceria só com Ruy Guerra, a dramaturgia do brasileiro tinha gerado antes a peça Roda Viva e depois Gota d"Água, A Ópera do Malandro e O Grande Circo Místico. (Céu e Silva 2019)

Também continua o jornalista português afirmando que é a primeira vez que o Prémio Camões é concedido a um “letrista”, que ele considera poesia e, portanto, literatura. Rita Cipriano (2019) completa este argumento citando a Paulo Werneck, editor de Chico Buarque, afirmando que o único que impediu ao autor obter o Prémio Nobel no lugar de Bob Dylan foi o facto de escrever numa língua “tão periférica”. Outros meios, se bem seguem afirmando o “percurso marcadamente literário” da obra de Chico sobre a de Bob Dylan, não se atrevem a afirmar se o autor brasileiro merece ou não mais reconhecimentos. Existe, portanto, a hipótese (que parece provada nos parágrafos anteriores) que o debate surgido pelo Prémio Nobel a Bob Dylan ajudou na nomeação de Chico Buarque em dois aspetos: primeiro, já que aliviou tensões que podiam existir anteriormente e, segundo, por criar uma comparação entre os dois autores onde Chico Buarque semelhava estar numa posição mais confortável devido à combinação de capitais tanto no campo literário como no musical, algo que Bob Dylan não tem.

Encontramos também neste debate um ponto de discórdia no discurso nos dois países. Enquanto no Brasil se questiona a atribuição do Prémio Camões a Chico Buarque, em Portugal não só se elogia a escolha do autor para o prémio em questão, mas afirma-se que “não é suficiente” e que o autor merece mais reconhecimento internacional, mais concretamente o Prémio Nobel de

5 Literatura. Será esta uma diferença nascida dos seus respetivos sistemas literários ou mais bem uma consequência do contexto sócio-político com o que têm de interagir?

Heteronomia com o campo político

Poucos dias depois de ser anunciada a nomeação de Chico Buarque para o Prémio Camões, o presidente do Brasil Jair Bolsonaro anunciou que não firmaria o diploma (o diploma do Prémio Camões é, habitualmente, firmado pelos presidentes de Portugal e do Brasil) e que tinha até “31 de Dezembro de 2026” para assiná-lo (Ribeiro 2019). Se bem este certificado é só ceremonial e não entorpece a celebração do próprio prémio nem a entrega dos fundos destinados ao autor, rapidamente a imprensa brasileira fez eco da notícia. Houve reações por parte do próprio Chico, que ironizou dizendo que o facto de Bolsonaro não assinar o documento era um “segundo Prêmio Camões” (Cerioni 2019), como também do escritor moçambicano , que anunciou que ia contactar ao resto de premiados com a mesma distinção para fazer um comunicado conjunto frente ao “ataque” de Bolsonaro (África 21 Digital 2019). Mesmo teve lugar uma iniciativa online de firmas para apoiar o escritor e criticar a postura do presidente do Brasil (Benez 2019). Se bem outros premiados como o escritor cabo-verdiano Germano Almeida ou o português já se têm pronunciado a favor da nomeação de Chico, não se têm ainda posicionado frente às declarações de Bolsonaro (Belém 2019).

Este movimento no campo político levou também a um posicionamento em contra de Chico Buarque de escritores partidários de Bolsonaro. Em concreto, falamos do escritor Olavo de Carvalho (Forum 2019). Como indicam Ethel Rudnitzki e Rafael Oliveira (2019) num artigo sobre cinema publicado na revista Exame:

A fala de Bolsonaro se aproxima do discurso de Olavo de Carvalho. Para ele, existe um movimento global pela destruição da “cultura ocidental” movido por “esquerdistas” que tentam conquistar a hegemonia através da cultura, ocupando os espaços intelectuais, como as escolas e as universidades. Para vencer os fantasmas do “marxismo cultural”, é necessária uma “guerra cultural”, segundo o autoproclamado filósofo.

Portanto, a reação de Bolsonaro fica explicada pela sua política intervencionista na cultura, no nome do que Olavo de Carvalho chama de “guerra cultural” contra o “marxismo cultural”, neste caso, a obtenção de capitais literários ao vencer um prémio internacional um autor com fortes vínculos com a esquerda brasileira e o PT. Aparte de negar-se a firmar o documento, o governo comandado por Jair Bolsonaro também censurou vários atos de promoção de Chico Buarque, entre eles uma atuação em Berlim (Carta Capital 2019) e a projeção dum documentário sobre a biografia do autor em Uruguai (Putti 2019).

6 Porém, a parte do próprio Olavo, só seguiram a sua postura agentes bolsonaristas que participam nas redes sociais mas que não têm capitais fora da Internet. Um caso exemplar é o do próprio Olavo de Carvalho que, se bem tem uma grande presença nas redes sociais e uma variedade de obras publicadas (a grande maioria prosa de não-ficção sobre diversos temas, desde astrologia a história), não tem nenhuma condecoração no campo literário. O único prémio, acerca da sua obra ensaística, foi o Primeiro Prêmio em concurso de Ensaios sobre História Islâmica, outorgado pelo governo de Arábia Saudita (1986). De facto, apesar da sua proximidade com o presidente Bolsonaro, Olavo de Carvalho recebeu numerosos ataques por parte da imprensa e escritores brasileiros, aos que só pôde contestar através das redes sociais e outros meios digitais (Morais 2019).

Também cabe destacar que não encontramos informação sobre o posicionamento de nenhum dos escritores brasileiros vivos que ganharam o Prémio Camões, que são (1925), (1923), (1925), (1931) e (1935). Chico Buarque até afirmou estar “feliz e honrado de seguir os passos de Raduan Nassar” (TSF 2019), mas até o de agora esta homenagem não semelha ter gerado resposta. Isto poderia ser o resultado bem da falta de reação a um acontecimento ainda recente (pouco provável, já que isto não impediu de se pronunciarem Germano Almeida, Manuel Alegre e Mia Couto), bem medo a posicionar-se dentro do campo político uma vez intervindo Jair Bolsonaro no debate. Se for isto último, seria uma marca de heteronomia com o campo político, tanto do Prémio Camões como do sistema literário brasileiro. Exploraremos estes dois casos.

Prémio Camões

O Prémio Camões (criado no ano 1988), a diferença doutros prémios literários internacionais como o Prémio Nobel de Literatura, não é responsabilidade duma fundação ou associação de caráter social ou cultural mas é organizado pelos governos português e brasileiro. De facto, eles fazem turnos na cidade onde acontece a cerimonia de entrega, entre Rio de Janeiro e Lisboa (com a exceção da cidade brasileira de Salvador, que foi a cidade escolhida na cerimonia do 1999). Portanto, já mesmo desde o plano formal, o Prémio Camões não é autónomo do plano político.

Outro fator também a ter em conta é a data decidida para a entrega do prémio. No lugar de celebrar-se no mesmo ano do prémio, como sucedeu na maioria dos casos, desta vez adiou-se para o ano seguinte, quer dizer, o presente ano, em concreto para o 25 de abril de 2020, em Lisboa (Público 2019). Portanto, ao celebrar-se o ato em Lisboa o 25 de abril, data de aniversário da

7 Revolução dos Cravos de 1974, o ato não só se está a constituir como ato literário, mas também como um símbolo para os movimentos de esquerda, tanto portugueses como brasileiros.

Pretender dissociar a celebração do Prémio Camões do campo político é, portanto, impossível, pois é um prémio apoiado por instituições políticas e com uma grande participação dos agentes deste campo, como mostrou o próprio Bolsonaro mas também outros presidentes que se mostraram favoráveis à escolha de Chico Buarque, como o Primeiro-ministro português António Costa e o Presidente de Cabo Verde (Belém 2019). O Presidente da República portuguesa, Rebelo de Sousa, foi além na sua nota celebratória:

Esta decisão vem "na continuidade de uma marcante decisão da Academia Sueca" de atribuir o Nobel da Literatura ao músico norte-americano Bob Dylan, dando "à canção, género ancestralmente ligado à poesia, um estatuto de dignidade literária", refere o chefe de Estado.

"Premiar 'letristas' pode ser sujeito a discussão, mas premiar Chico Buarque só pode ser unânime, porque, tal como Bob Dylan para a língua inglesa, as canções de Chico traduzem um profundo conhecimento da tradição poética e um alargamento das fronteiras da linguagem musicada, trazendo um grau de sofisticação inédito à música que se diz, e bem, popular", defende Marcelo Rebelo de Sousa. (Jornal de Notícias 2019)

Deste jeito, se bem é um agente colocado só no campo político, o Presidente português reafirma a profunda relação entre poesia e música através das letras, se bem afirma que pode ser “sujeito a discussão”.

Sistema literário brasileiro

No ano 1991, o governo de Fernando Collor de Mello instituiu a Lei Federal de Incentivo à Cultura, também chamada informalmente como “Lei Rouanet”, usando o apelido do secretário de cultura na altura da enunciação da lei. Esta lei contempla, entre outras mais coisas, que uma percentagem do Imposto de Renda (IR) pode aplicar-se em ações de promoção cultural. Graças à criação desta lei, o tecido cultural brasileiro ganhou pulo na década de 90 e no início do século XXI, ajudada também pelo crescimento económico durante os mandatos de Lula da Silva (2003-2011).

Porém, depois da crise económica de 2014 e a instabilidade política que surgiu no processo de impeachment a Dilma Rousseff em 2016, com a população brasileira escandalizada com o descobrimento de numerosos casos de corrupção, a Lei Rouanet virou alvo de críticas. Por uma parte, de acusações de corrupção, como por exemplo quando um casamento de luxo foi pago através da Lei Rouanet (Alessi & Moraes 2016), mas também voltou comum acusar a esta lei por, supostamente, financiar a intelectuais e ativistas próximos do Partido dos Trabalhadores (PT). Entre estes críticos da lei há muitos agentes ligados à direita e a Jair Bolsonaro, atual presidente do Brasil,

8 que já tem eliminado o Ministério de Cultura (que era antes a entidade responsável de distribuir os fundos da lei) e ameaçou várias instituições brasileiras de promoção cultural, como a Agência Nacional do Cinema (Uribe & Brant 2019). Neste último ano, a censura tem intervindo ativamente na cultura brasileira, sendo o último exemplo o intento de retirar da Netflix o especial de Natal do grupo humorístico Porta dos Fundos, só impedido pela atuação do Supremo Tribunal Federal (Betim 2020).

Ainda apesar desta situação, segundo a informação transmitida pelo jornal El País, o 73% das produções culturais do Brasil têm suporte da Lei Rouanet (Oliveira 2019). Esta situação de dependência faz ao campo cultural brasileiro vulnerável frente a mudanças no campo político. Portanto, a falta de reações no campo literário brasileiro depois das declarações de Bolsonaro podem ser entendidas bem como um intento de procurar a autonomia do campo, evitando posicionamento num debate que se entenderia como político mais do que literário; bem poderia ser uma reação de medo ou de incerteza depois dos comentários de Bolsonaro. O posicionamento a favor de Chico Buarque é, no marco do debate polarizado no Brasil, um comentário em contra do presidente Jair Bolsonaro, e como já observamos no ano passado estar na contra do atual presidente leva, no mínimo, a uma possível perda de subvenções públicas.

Conclusões

Como resumo, podemos afirmar que não existe apenas debate acerca da condição de letrista de Chico Buarque, com a exceção da declaração já citada de Ademir Luiz, e que de facto a obra musical do autor foi um dos fatores decisivos na sua atribuição deste capital simbólico tão destacado nos sistemas literários de língua portuguesa. As tensões provocadas pela nomeação do agente ao Prémio Camões não foi tanto desde uma defesa da “literatura” entendida tradicionalmente, sem lugar para a música ou para as “letras” das canções, mas pelas profundas relações do autor com a esquerda, entrando em claro conflito com a nova viragem política no país produzida pela entrada no poder de Jair Bolsonaro, como indica a jornalista Regina Zappa, autora da biografia de Chico Buarque:

As críticas de hoje ao Chico não são voltadas ao seu trabalho, e sim aos seus posicionamentos políticos. Mas é importante observar que ele não mudou. Ele sempre se posicionou politicamente. Sempre manteve a coerência colocando-se à esquerda. No entanto, parte da sociedade desenvolveu um ódio tão grande ao PT e ao Lula que o estende a qualquer um que apoie o ex-presidente, ou até mesmo seja neutro. (Lucchese 2019)

Isto poderia ser devido a numerosos motivos já explicados anteriormente. A excessiva dependência do sistema literário brasileiro do campo político, o contexto de mudança política e de

9 debate polarizado no Brasil (a chamada “guerra cultural”) e também a relaxação depois da controvérsia acontecida na atribuição do Prémio Nobel a Bob Dylan em 2016 puderam provocar que a nomeação dum prémio inicialmente literário se convertera numa discussão política. Mesmo a única crítica aparentemente autónoma do campo político, a de Ademir Luiz, afirmava que a nomeação de Chico Buarque se devia a motivos políticos.

O contraste entre a reação dentro do Brasil e fora dele, quer dizer, no resto de países de língua oficial portuguesa, semelha confirmar a tese de Regina Zappa, pois como bem indica Euler de França Belém (2019):

Em Portugal, ao menos nos jornais e revistas consultados, não houve contestação à premiação, pois o brasileiro, criador cultural de obra muito ouvida e lida, é bem-visto pelos lusos. Críticos, escritores e políticos enalteceram suas qualidades artísticas. No Brasil, a recepção no geral foi positiva, mas nas redes sociais, dado o momento de conflagração política, o autor dos romances “Estorvo” (que mereceu análise de Roberto Schwarz, um dos mais importantes críticos brasileiros), “Benjamin”, “Leite Derramado” e “O Irmão Alemão” recebeu várias críticas (uma delas é recorrente: sua música superaria sua literatura). Prevalece, entre os detratores, uma interpretação política de sua obra, ou melhor, julga-se o escritor-compositor a partir de suas posições políticas pró-PT e Lula da Silva. A se aceitar a “tese” de que autores engajados não produzem boa literatura, a obra de Knut Hamsun, Louis-Ferdinand Céline, Erza Pound e Pierre Drieu la Rochelle deveria ser esquecida. Mas quem, com o mínimo de bom senso e conhecimento, há de olvidá-la?

Confirmamos também este fragmento, pois não encontramos nenhuma crítica a Chico Buarque fora do Brasil. Só, como já foi indicado, louvanças do seu lavor e mesmo a consideração já dita de que Chico Buarque não só merece o Prémio Camões, mas também merecia o Prémio Nobel. Se verdadeiramente o debate sobre a nomeação de Chico Buarque fosse provocado pela condição de letrista e/ou músico e não, como aparentemente é, por questões do sistema político brasileiro, não faria mais sentido que a reação fosse semelhante em todos os países de língua portuguesa? Por que existe uma diferença tão radical entre como a nomeação foi recebida no Brasil e em Portugal? Será uma diferença simplesmente no campo político, ou é uma barreira cultural entre os dois países?

Seria ótimo para a realização de futuros trabalhos sobre o reconhecimento de cantantes pela consideração lírica das suas letras optarmos por autores que não tenham uma posição central tão marcada no sistema literário como Chico Buarque, já que são tais os capitais que o autor tem no campo literário e editorial através dos seus romances que estes já validam o Prémio Camões mesmo sem contar a sua dimensão como letrista, ainda que esta seja reconhecida e mesmo louvada pelos diversos agentes cujas opiniões recolhemos no presente trabalho.

Outro fator de melhora para futuras investigações é a falta de fontes periféricas, já que a maior parte de informação encontrada nos meios de comunicação dos diversos países foram, quase

10 exclusivamente, de escritores ou outros agentes com posições centrais nos seus diferentes âmbitos. Isto deveu-se, fundamentalmente, à falta de conhecimentos prévios de meios de comunicação alternativos que puderam pôr o foco em escritores menos privilegiados. Nos poucos casos onde estes meios se pronunciaram, como é o caso do Portal Galego da Língua, jornal reintegracionista galego, tornamo-lo visível no presente texto. Porém, em outros meios alternativos dos que tínhamos conhecimento, como o blogue de cultura contemporânea africana Buala ou Novas da Galiza, outro jornal reintegracionista, não encontramos nenhuma informação sobre a nomeação de Chico Buarque ao Prémio Camões.

11 Bibliografia

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Putti, Alexandre (2019). Itamaraty censura exibição de filme sobre Chico Buarque no Uruguai. Carta Capital. Disp. em https://www.cartacapital.com.br/politica/itamaraty-censura-exibicao- de-filme-sobre-chico-buarque-no-uruguai/ [Consult. 11/01/2020].

Ribeiro, João Ruela (2019). Bolsonaro não promete assinar diploma do Prémio Camões para Chico Buarque. Público. Disp. em https://www.publico.pt/2019/10/09/culturaipsilon/noticia/ bolsonaro-assina-diploma-camoes-chico-buarque-ate-2026-1889370 [Consult. 12/01/2020].

Rudnitzki, Ethel & Oliveira, Rafael (2019). Produtoras de cinema embarcam em “guerra cultural” de Olavo e ganham apoio. Exame. Disp. em https://exame.abril.com.br/brasil/produtoras-de- cinema-embarcam-em-guerra-cultural-de-olavo-e-ganham-apoio/ [Consult. 12/01/2020].

Tomazzoni, Marco (2010). Prêmio Jabuti cria polêmica no meio literário. Último Segundo. Disp. em https://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/livros/premio-jabuti-cria-polemica-no-meio- literario/n1237829957945.html [Consult. 13/01/2020].

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Veja (2019). Chico Buarque visita Lula na cadeia: ele está ‘disposto e mais jovem’. Disp. em https://veja.abril.com.br/politica/chico-buarque-visita-lula-na-cadeia-ele-esta-disposto-e-mais- jovem/ [Consult. 12/01/2020].

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