A palavra-corpo e a performance poética em Arnaldo Antunes

A ndré Gardel

obra de Arnaldo Antunes vem trazendo poeta paulista contemporâneo não é mais um para o universo da cultura de massas, de epígono dos concretos; sua postura estética é, modo sistemático e com grande poder na verdade, pós-concreta, aponta para um novo inventivo, elementos expressivos que fin- rumo a partir do movimento, assim como os cam raízes em algumas das mais impor- três líderes iniciais do concretismo renovaram- tantesA experimentações de vanguarda do século se seguindo caminhos posteriores particulares e XX. Não que tais trocas, intercâmbios e livres revitalizantes. Mas a base é uma só: o instru- usos não ocorram, com certa freqüência, entre mental lingüístico e semiótico; a inserção da essas instâncias culturais; antes, pelo contrário, escrita ideogramática na escrita alfabética, que podemos dizer que fazem parte de seus proces- incorpora a estrutura analógica à lógica dis- sos constitutivos comuns, das origens à atuali- cursiva ocidental, subvertendo sintaxes, núcle- dade, particulares mesmo de suas configurações os vocabulares; a pesquisa gráfica e caligráfica abertas e permeáveis. E, muito menos ainda, revitalizando o verbal; a contaminação multi- que outros artistas brasileiros tão inventivos meios; a poesia visual de fundo cronstrutivista; quanto Arnaldo, dentro da música popular, no a proesia; a busca isomórfica de significação en- Brasil, não tenham feito semelhante aproxima- tre signo verbal e referente, similaridades fônicas ção e interferência de códigos culturais. O que e ambigüidades semânticas etc. Base que é solo salta aos olhos e diferencia a sua produção nutritivo para outras notas e atitudes entrarem multimídia, é a manutenção e continuidade, e se desenvolverem. tanto de sucesso comercial quanto de experi- Tais posturas estéticas, embutidas na mento, de um esforço criativo cuja plataforma criação e divulgação da obra de Antunes, têm básica é desentranhar do lugar comum, o inco- como meta o estabelecimento de uma verdadei- mum; da informação redundante, inovação; do ra reeducação dos sentidos, realizando uma es- banal cotidiano, poesia; dos padrões de norma- pécie de pedagogia da estranheza, ao tentaram lidade, estranheza. diminuir o fosso existente entre experimenta- A produção de Antunes parece ser um ção formal e comunicação ligada à indústria cul- desdobramento pop de linhas inventivas dese- tural. Isso se dá como uma continuação, em ba- nhadas pelo Concretismo. Parece apenas. O ses globalizadas atuais, da diversidade de

André Gardel é ator e pesquisador, doutorado pela UFRJ.

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interesses, discursos, interferências, culturas e contágios incessantes, vários campos de conhe- ritmos introduzidos pela Tropicália (por si só, cimento em trânsito, desviando seus sentidos, já uma deglutição pop de proposições moder- readquirindo força na migração poética, na nistas) na música popular brasileira, com uma interação de noções na imagem. Tudo isso para criação que navega na confluência dessas instân- injetar estranhamento numa ambiência que, cias, enfrentando de modo plural e muito pes- para funcionar, exige o já assimilado, o estável, soal o jogo artístico que se desdobra da dialéti- a não-novidade, e, também, dialeticamente, ca contemporânea entre novidade e tradição, para embeber positivamente de cotidiano múl- estética culta e de massas. tiplo, diálogo, clareza, fluxo vital a complexida- O movimento mais constante nessa pro- de formal, o trabalho com a linguagem. dução, com isso, é o de busca de uma possível Os meios expressivos de que Arnaldo se brasilidade desterritorializante, desfolclorizante, utiliza são diversificados e amplos: livros, dis- modulada pelo intuito de “transformar o óbvio cos, shows e ações performáticas, trabalhos de no inesperado.”1 E este procedimento vai do artes plásticas, caligráficas, gráficas, poemas microestético ao macrocultural, se apresentan- visuais e digitais, instalações, intervenções. do nas unidades mínimas significativas da ma- A multiplicidade dessa produção disponibiliza terialidade poética, na reconfecção arejante de um variado espectro de possibilidades de recep- máximas e ditos populares, nas suas propostas ção, que podem ocorrer, por exemplo, com de diálogo artístico intersemiótico. Trata-se de megashows realizados para multidões, em gale- um trabalho de desconstrução que se insinua rias de arte, a partir de videoclipes e programas como a contraface pós-moderna, reciclada, do musicais de tv, do uso artístico de objetos de espírito e olhar primitivistas das vanguardas. consumo, da visão de outdoors e outros espa- O frescor originário do “bárbaro tecnizado de ços urbanos, em palestras e recitais em bienais, Keyserling” (Andrade, 1978, p. 14). transmode- feiras de livros, escolas, centros culturais, em es- la-se nos olhos livres recriativos do estranho paços teatrais específicos para pequenas perfor- acústico/ eletrônico massivo, atravessados pelo mances, na leitura silenciosa livresca, na desejo interessado (no sentido mariondradino do ambiência hipertextual da internet. termo), mas não especializado, em produzir Como se vê, Arnaldo estabelece um livre uma “criação contaminada de vida, contami- trânsito entre a indústria “major” e a “minor”, nando a vida” (Antunes, 2000, p. 12) e que, ao entre os espaços “cults” e “bregas”, oficiais e al- mesmo tempo, sofra a interferência de várias ternativos, entre o erudito e o popular, entre os áreas do saber. “happy few” e a massa. E é justamente essa pos- Em outras palavras, para efetuar sua pe- tura transicional, de Hermes-Mercúrio multi- dagogia da estranheza poética na sociedade bra- cultural e interartístico, que propicia o exercí- sileira contemporânea de massas, Arnaldo exe- cio e ampliação do viés “pedagógico” de sua cuta, em sua práxis poética, um movimento produção, em essência, poética. Pois é a partir sinestésico que se desborda em multicultura- da potencialização das forças que tencionam a lidade e multidiscursividade: códigos distintos palavra poética, se distendendo e reverberando, vistos como mundos distintos inter-relacioná- de modo recorrente, em todos os meios de ex- veis, mundos distintos ouvidos como códigos pressão a que se dedica, que vem à tona seu assimiláveis, linguagem e vida interagindo em ideário último: a revitalização, multimídia, de

1 Antunes, Arnaldo. Entrevista concedida a Marili Ribeiro, suplemento Idéias-Livros do Jornal do Bra- sil, 27/09/1997.

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um estado de linguagem – primitivo, semiótico, mídia, de desobstrução e circulação inventiva da performativo – em que nome e coisa, objeto e percepção e dos sentidos, (re) vivida e cons- signo surgem como um único e mesmo fenô- truída pelo performer, esse “mago semiótico” meno pulsante. Num resgate de uma situação e (Glusberg, 2003, p. 103), com o intuito de que de um momento originários em que a lingua- reverbere no mundo, expandindo-se como ri- gem torna-se corpo e o corpo, linguagem. tual coletivo secular. Dar corpo à palavra significa reinaugurá- la em sua materialidade, desinvesti-la de sua função lógico-linear-discursiva abstrata, tão A palavra corpórea usual na tradição ocidental. Recuperar, por um lado, sua tactibilidade de signo verbal oriundo Os desdobramentos corpóreos da palavra poé- de um espaço sensório vivo e, por outro, de sig- tica se manifestam “por suas formas, suas ema- no plástico passível de reconfiguração gráfica e nações sensíveis, e não somente por seus senti- caligráfica, pictórica e ideogramática. No pri- dos” (Artaud, 1984, p. 157). Pois, segundo Paul meiro caso, o que se entremostra é o aspecto Zumthor, “tudo se passa como se a poesia tives- performativo e semiótico da palavra poética, es- se, entre os poderes da linguagem, a função de tado ritual da linguagem em que o verbo emer- acusar o papel performativo desta” (Zumthor, ge traspassado de fulgurações de ritmo, melo- 2007, p. 46). E é justamente pensando a língua dia, dança, gestos, modulações vocalizantes, como performance que Diderot, em sua Carta silêncios, pausas, formas-força situacionais que sobre os surdos-mudos, cria o conceito de energia aderem à palavra e fazem dela poesia, forma para definir a especificidade da linguagem poé- mutante aberta a recriações incessantes. No se- tica, portadora da unidade original da natureza: gundo, para aplicar um choque poético, antiar- bitrário, involutivo na escrita alfabética, com o “Por intermédio da sensação, diz ele, nossa intuito de que esta possa trazer em si sua pró- alma percebe várias idéias ao mesmo tempo, pria significação, assim como os hieróglifos, sob que são representadas sucessivamente pelo ordenamento paratático, em co-presença de sig- discurso. Se a sensação pudesse comandar vin- nos-coisa, articulando-se em fraseogramas ou te bocas simultaneamente, as múltiplas idéias atomizando-se em arranjos de morfemogramas, percebidas de modo instantâneo também se- por exemplo. riam expressas a um só tempo. Na falta des- A proposta deste trabalho é abordar a sas bocas, ‘vincularam-se várias idéias a uma poesia das performances de Arnaldo Antunes. só expressão’” (Mattos, 2005, p. 22). O que significa falar, basicamente, dos instan- tâneos de sua obra em que seu corpo, como au- Nessa concepção de poesia, a única forma tor e ator de uma individualidade, impregna-se de restaurar a exuberância do eixo da simulta- de presentidade poética; e, na mesma medida, neidade sensorial, submetido à sucessividade da dos momentos em que o verbo viajante da poe- lógica-lingüística, é o exercício de construção de sia se encontra mais preso à língua do corpo, linguagem sob a fórmula quanto “menos discur- isto é, nas suas vocalizações, no contexto rít- so, mais energia”, com o verbal podendo ser re- mico-melódico das canções ou na ambiência duzido “a uma palavra, a um gesto ou mesmo ao cênico-espacial de suas ações performáticas. silêncio total” (idem). Aqui, a estética do menos Tangenciando essas instâncias, a pedagogia da oswaldiana, cabralina e concreta é levada ao ex- estranheza de Arnaldo Antunes parece encon- tremo performativo, chegando à dimensão trar uma de suas regras rotativas fundamentais: extraverbal na qual outros códigos e não-códigos a recuperação, no corpo e na linguagem, de uma vêm em auxílio do poético para que a imanta- experiência originária humana, em clave mixed- ção corpórea não perca sua pulsação originária.

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Desconstrução necessária em uma civili- Em sua obra de poesia vocalizada e de zação como a Ocidental, fundada na idéia mo- perfomance poética, Arnaldo Antunes ecoa de derna de evolução científica, de novidade e de modos diversos as questões suscitadas por Di- excesso de informação, de sons e de imagens derot. Mas uma imagem que dialoga com a descartáveis e exangues, na qual a revivescência metáfora do filósofo e dramaturgo francês, com da entidade energética silêncio surge como vi- ares de afinidade eletiva, é a fotomontagem que tal. E é por meio de uma trajetória regressiva, fecha o livro Tudos (Antunes, 1993), em que o abordada a partir da história dos produtos ma- poeta aparece com um rosto sem olhos ou na- teriais inventados pelo ou próprios do homem, riz, composto só por quatro bocas superpostas com palavras desierarquizadas definindo fases, até à testa, todas com um leve sorriso saciado. para chegar aos primórdios dos tempos, que se Dentro da significação imediata sugerida pelo revela na letra/ poema O silêncio, presente no livro-conceito, a noção que a foto traz é a de CD do mesmo nome2 de Arnaldo Antunes: deglutição polifágica do mundo criado e do “antes de existir computador existia tevê/ antes mundo incriado, do mundo da natureza e do de existir tevê existia luz elétrica/ antes de exis- mundo astrofísico, dos nadas e silêncios, tir luz elétrica existia bicicleta/ antes de existir de tudos discursivos refeitos em linguagem bicicleta existia enciclopédia/ antes de existir contaminada, transdisciplinar e artística, duplo enciclopédia existia alfabeto/ antes de existir al- do universo em semiose infinita sob as leis pa- fabeto existia a voz/ antes de existir a voz existia radoxais e reconfigurantes da poesia. No entan- o silêncio/ o silêncio...”. O silêncio precisa ser to, se levarmos em conta a perspectiva dide- resgatado em meio ao mar de ruídos contem- rotiana, podemos ler o poema visual de Antu- porâneos, por ser “a primeira coisa que existiu”. nes também como alegoria do corpo aliviado A reeducação dos sentidos implicando na audi- por expor, de modo simultâneo, os tudos que ção regenerativa de “um silêncio que ninguém sente e percebe sem recorrer à redução a uma só ouviu”, no micro e macrouniversos, na vida e voz discursiva linear, emitida por uma só boca na morte, nas partes internas e externas dos se- não-poética. res: “...astro pelo céu em movimento/ e o som É o que podemos perceber na audição do do gelo derretendo/ o barulho do cabelo em CD que acompanha o livro 2 ou + corpos no crescimento/ e a música do vento/ e a matéria mesmo espaço (Antunes, 1997) e que funciona em decomposição/ a barriga digerindo o pão/ como uma transleitura vocal de poemas oriun- explosão de semente sob o chão/ diamante nas- dos de contexto gráfico-espacial. Tal procedi- cendo do carvão...”. A letra termina com a voz mento é recorrente na obra do poeta, que se or- poética retornando aos dias de hoje, para pedir ganiza como um tipo de máquina lúdica que atenção educada e apaixonada ao silêncio-signo não se esgota no modelo barroco, com poemas presente/ ausente em tudo como fonte de ener- circulando com roupagens diferentes, em dife- gia primal: “...vamos ouvir esse silêncio, meu rentes veículos expressivos, num jogo intratex- amor/ amplificado no amplificador/ do este- tual em que peças se alternam na produção po- toscópio do doutor/ no lado esquerdo do peito rosa de significados. Contudo, na operação de esse tambor”3. tradução intersemiótica em questão, verbivoco-

2 Antunes, Arnaldo. O silêncio (Arnaldo Antunes/ ). Encarte do CD O Silêncio, BMG/ Ariola, 1997. 3 Idem.

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visual, Antunes acrescenta a essa dinâmica o emergentes do processo que é “apenas pensa”. dado performativo específico do corpo. Se este Sobrepostos uns aos outros, numa escrita hori- já aparecia nas subterrâneas manifestações zontal trêmula, os signos gráficos que prolife- action-paiting de traços gestuais e entonativos ram da palavra título (pena/ pensa/ apenas/ deixados em poemas caligráficos (em Apenas; apensa/ a pena/ pen/ paz/ ás) vão, aos poucos, idem, p. 83), na tridimensionalidade da dobra- transmodelando-se em borrões, ao descerem na dura de páginas ocupadas por vocábulos em vertical do alto para a base da suposta torre, de- constelação sintática espacial (em Transborda; senho disforme por ecoar na sua figuração a idem, p. 72-3) ou, ainda, na dinâmica de folhe- idéia da fumaça de um cigarro angustiado de ar para animar a grafia do verbo cinético (em quem pensa ou está queimando a mufa. O du- Querer; idem, p. 26 e 38), agora o corpo se re- plo sonoro de Apenas apresentado no CD é vela verdadeiramente em sua fisicalidade, por brevíssimo, com duração de apenas 42 segun- meio das vocalizações de 13 poemas do livro. dos, o que faz lembrar, pelo mínimo grávido de A voz corpórea esplende ora de um tran- máximo, o esquete sonoro-visual beckttiano se encantatório de sibila, ora ressoa da costura pós-catástrofe Respiração (Berrettini, 2004, rapsódica de vocábulos sob domínio rítmico- p. 206), de apenas 35 segundos. melódico da respiração, do pulso e da pausa. As palavras surgem em volume baixo no O uso do sampler e da programação eletrônica arranjo vocal, parecendo vir de longe, em eco, permite ao telúrico da voz humana um desdo- como pensamentos, e vão aumentando até se brar-se timbrístico no espaço, uma alteração estabilizar numa altura de duas vozes médias em multiplicada do mesmo. O resultado acústico- chamada e resposta, que se alternam em um corpóreo-eletrônico desse efeito é o de uma câ- compasso binário, estabelecendo o ritmo de mara de ecos independentes, em que as varia- uma andadura, de um corpo que anda e pensa. ções da voz única do performer soam como as Contudo, se ligam pela consoante sibilante esse, emissões das muitas bocas que protagonizam a que se prolonga, insinuando um pedido de si- linguagem dos sentidos e das sensações do cor- lêncio para a pena do pensar com a cabeça po que as impulsiona. Dispõem-se sob confor- apensa ou, ainda, o sibilar da serpente, dona da mação jogralesca, coral, instrumental vocálica, árvore do conhecimento. Aos 26 segundos da sem perder, contudo, a autonomia, não-aletória performance, uma voz grave, que puxa para o ou indeterminante, e, sim, sob forte conceitua- chão, atravessa as outras duas com notas lon- ção experimental do régisseur, desenhando a gas, lentas, vindo do fundo para frente, inicial- ambiência de cada composição. mente mais baixa e logo mais alta, como se di- Para exemplificarmos a transcodificação minuísse o ritmo, parasse e fosse escrever à pena, do corpo plástico para o performativo da voz, viver a pena ou apenas viver. Os sintagmas que vamos nos deter na vocalização de Apenas. Trata- se constroem/ destroem na vocalização do poe- se de um poema visual-caligráfico que se afigu- ma podem ser atribuídos a uma primeira ou ter- ra como uma espécie de torre torta, negra, que ceira pessoa, a um personagem pensando con- sobressai do fundo branco da página. Erguida sigo ou a um narrador descrevendo a situação; por superposição de traços de escrita de vocá- a voz grave do final, que acaba por levar todas a bulos, sílabas e sintagmas que surgem, desdo- um fade out, pode ser apreendida como a fala brados, da repetição da palavra apenas, a ima- emitida pelo “eu” que pensa ou, talvez, a de mais gem da torre de ébano sugere uma ironia à torre um outro personagem, que chega e some... de marfim parnasiana, como seu duplo maldito A idéia pessoana de multiplicação das re- embriagado complementar, dessacralizando o flexões e refrações do espelho do ser em lingua- mito do poeta gênio isolado em pensamentos gem, prismada em poetas e obras poéticas, em profundos, por meio de uma das expressões vozes que saem do imaginário e invadem a vida,

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surge reconfigurada em Arnaldo, presa de modo sesso” (Artaud, 2007, p. 41). Como exemplo, intrínseco à construção do discurso verbal de Nome, de CD de título homônimo, no qual algumas de suas letras de canções. Em Fora de encontramos ainda Se não se, Entre ou Arma- si, do CD Ninguém, no trecho “eu fico oco/ eu zém,8 que apresentam atitudes estéticas que só fica bem assim/ eu fico sem ninguém em reafirmam a sua pedagogia da estranheza. Ex- mim.”4, o uso do verbo na terceira pessoa, fica, plícita, ainda, no grave cavernoso da voz a que inicia a trajetória de relacionamento do estra- recorre em canções como Desce, do CD O Si- nho com o outro e faz do eu ele, do criador cria- lêncio ou No fundo, do CD Ninguém, que tra- tura, do sujeito expandido romântico voz lacu- zem o peso da gravidade de uma voz de tuba nar cabralina, do ser existencial linguagem fincando os pés no chão, em contraponto in- poética, a partir da contribuição milionária de tencional e didático à padronização do gosto todos os erros oswaldianos. Por outro lado, a por canções que se deixam atravessar pelo vôo terceira pessoa materializa a saída de si, cristali- de vozes agudas cortando os céus do universo za a presença/ ausência do outro, e o ente nin- popular-comercial. guém se torna o mesmo. Na verdade, como em O seu olhar, do mesmo CD, “o seu olhar seu olhar melhora/ melhora o meu”5, alteridade e Performance poética mesmidade atuam juntas na compleição do ser. Pois, em O Buraco, do CD Silêncio, “o buraco Vamos abordar, agora, as performances poéti- ensina a caber/ a semente a não caber em si”6, e cas de Arnaldo Antunes a partir de duas pers- caber em si pode ser ficar preso no Buraco do pectivas básicas: em suas ações em shows ao vivo espelho, do mesmo CD, que não dá acesso ao e videoclipes, quando o artista se movimenta ao lado de cá, à comunicação com o mundo: “Mes- som instrumental de uma banda de música po- mo que me chamem pelo nome/ Mesmo que pular, e em recitativos de poemas, situações em admitam meu regresso/ Toda vez que eu vou a que ou atua sozinho ou divide seu trabalho com porta some”.7 outros performers. Contudo, em nenhum dos Nas canções de Arnaldo, a voz corpórea, casos as formas suscitadas se dão de modo iso- em ambiência rítmico-melódico-instrumental- lado, há sempre a presença simultânea de dife- acústico-eletrônica, se faz notar, principalmen- rentes linguagens estabelecendo diálogos, ten- te, nos momentos em que é usada no limite en- sões ou interferências intersemióticas. tre o canto e o berro, ou quando o poeta produz Estamos pensando aqui a performance, “o um grave profundo em suas performances vo- único modo vivo de comunicação poética” cais. O canto berrado de Antunes parece ema- (Zumthor, 2007, p. 34), nas palavras do teóri- nar de um corpo que confirma as palavras de co suíço-canadense Paul Zumthor, como o mo- Artaud sobre Van Gogh, quando diz que “é da mento da obra do poeta paulista no qual o cor- lógica anatômica do homem moderno nunca po do próprio artista torna-se meio e suporte ter podido viver, nem pensado viver, senão pos- de expressão. Com isso, a movimentação poéti-

4 Antunes, Arnaldo. Fora de si (Arnaldo Antunes). Encarte do CD Ninguém, BMG, 1995 5 Idem. O seu olhar (Paulo Tatit/ Arnaldo Antunes). 6 Idem. O Buraco (Arnaldo Antunes). Encarte do CD O Silêncio, BMG/Ariola, 1997. 7 Idem. O Buraco do Espelho (Arnaldo Antunes). 8 Idem. Músicas presentes no CD Nome, BMG, 1993.

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ca de uma voz lírica que se quer “ligada a você corruptela da palavra poesia, o que só ratifica o pelo chão” (Antunes, 2002) parece, finalmente, mergulho radical e lúdico na coloquialidade, mostrar-se na dinâmica de seu circuito inven- uma das fontes modernas de sua poética. A fra- tivo pleno, sempre exercido com o intuito de se que abre o livro é uma espécie de diálogo com disseminar um ritual de reeducação dos senti- o bordão popular Quem com ferro fere, com fer- dos: rodando sobre o mesmo eixo – acionado ro será ferido, colocado em xeque a partir da por associações inesperadas, similaridades, ana- mudança do tipo de metal que fere: “Quem logias, esbarros iluminadores, presença pela au- com ouro fere?”. A expressão Ponha a mão na sência, afirmação pela negação –, para que o sig- consciência, que chama a si quem perdeu a ra- no vire corpo e o corpo, signo. zão por motivo qualquer, aparece revigorada em Esse corpo signo que “é para ser usado”, tom libertário na letra Consciência, do CD Nin- que sabe que “ver dá vertigem” pois tem “um guém: “tire a mão da consciência e meta/ no olho na ponta de cada dedo”, produz uma “mú- cabaço da cabeça/ tire a mão da consciência e sica subcutânea” em que “o som ecoa no céu da ponha/ no buraco da vergonha...”9. Em Deci- boca”; e entende, sob a luz de “cine-pensamen- da, do CD Um som, as expressões de situações to”, movido por “vento dentro/ in-vento”, que limites Ou dá ou desce e é agora ou já, aparecem “o ar que contorna define a forma”, já que “o invertidas e reempenhadas: “...Decida/ Ou des- gesto é o principal”, na medida em que sente a ce ou desce/ Ou dá ou dá/ Decida/ É agora ou “pele viva à flor da carne”, numa “sensação com já/ É agora ou já...”10. A máxima liberou geral, sentimento dentro”, aprendendo, assim, que “o que usualmente tem o sentido popular de vale desejo comanda o desejo” e “a pele pede pele”. tudo, de mundo às avessas das inversões carna- Portanto, um corpo performativo, com um re- valescas, reconcebida na letra Macha Fêmeo, do pertório de conduta subjacente a uma poética e CD O silêncio, vira “liberal gerou”11, sugerindo a uma subjetividade, que desmascara a função o significado politicamente (in) correto que o reguladora cultural das atitudes convencionais mundo liberal propiciou à questão das sexuali- por ser “um demonstrativo dramático de ges- dades alternativas. tos, adquirindo o estatuto privilegiado de en- Essa mesma postura criativa, de extrair o frentar-se com o óbvio, o simples e o mais na- incomum do comum, se desnuda no uso do tural” (Glusberg, 2007, p. 90). corpo de Antunes como suporte de uma Uma postura criativa reincidente na po- indumentária, uma fisionomia e uma movi- esia de Arnaldo, no ato de desentranhar poéti- mentação coreográfica híbridas, funcionando co do não-poético, é a reconfecção de adágios como manifestações de sua pedagogia da estra- populares, ao redesenhar sentidos nas frases-fei- nheza na configuração de uma imagem públi- tas, jargões, clichês, como se fossem massa de ca, que mescla informações culturais contras- modelar. O nome do livro Psia (1986), segun- tantes. O seu traço fisionômico tradicional é o do o autor, é o feminino do ruído oral signifi- de um rosto imberbe, com olhos bem abertos, cativo psiu (Antunes, 1998, capa), e, também, mais para o sério ou para o êxtase contido do

9 Antunes, Arnaldo. Consciência (Edgard Scandurra/Arnaldo Antunes). Encarte do CD Ninguém, BMG, 1995. 10 Idem. Decida (Edgard Scandurra/ Arnaldo Antunes). Encarte do CD Um som, BMG, 1998. 11 Idem. Macha Fêmeo (Paulo Tatit/ Arnaldo Antunes/ ). Encarte do CD O Silêncio, BMG/ Ariola, 1997

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que para o riso largo, com um corte exótico de em choques, tensões e contrafluxos intercultu- cabelo entre a rebeldia punk e o clean pragmá- rais, transnacionais e multidiscursivos. E, por tico. A dança que realiza surge nos rápidos ins- último, como as obras trash de nosso gênio da tantes em que não canta, e se assemelha a es- Colônia Juliano Moreira, os trapos e restos que pasmos autômatos de um balé construtivista compõem o figurino usado pelo compositor re- clownesco, que se anuncia e não se configura, velam, por meio do trivial e do lixo, a objectua- sugere um caminho para, de imediato, borrá- lidade e a vulnerabilidade não-hierarquizada dos lo, indo para outro que também se deixa inter- elementos quando em trânsito vida/ arte. romper antes de ser concluído e, assim, sucessi- O multiculturalismo pulsando no que a vamente. Traz, nos dedos, anéis artesanais de Antropologia chama de cultura material, cujo metal, às vezes com outras sem grandes pedras, conhecimento traz o social para o âmbito do e usa pesados sapatos pretos nos pés, com design sensorial, aparece na personagem transnacio- entre o coturno e o executivo. Seu figurino, no nalizada, “anjo sem asa”, que “segue a moda de geral, alterna-se entre as cores preta, branca e ninguém”, “moda tem a sua só”. Misturando bege, vestindo ora quimonos, ora ternos formais informações diversas, lixo reciclado, fantasia de com as mangas das camisas de baixo muito lon- carnaval, badulaques múltiplos, o poeta com- gas e desabotoadas, que oscilam de acordo com põe um tipo híbrido: “... roupa de princesa/ em seus movimentos impermanentes. pele de plebeu...”, nas falas e nomes de coisas: Vamos nos deter, agora, em três ações es- “...vai de my cherri/ vai de mon amour.../ man- pecíficas de Arnaldo Antunes em shows ao vivo to de garrafa pet.../ óculos Ray-ban/ raios de e em videoclipes. A primeira é uma performan- tupã...”, nas roupas: “...no corpo collant.../ ca- ce em que letra e figurino dialogam na reflexão miseta de Che Guevara.../ de biquíni xale bata sobre o corpo como “campo de contradições ou avental.../ turbante importado/ lá de Bag- sociais e políticas, e não apenas instrumento de dá.../ México chapéu cabana.../ tanga de expressão cultural neutra” (Pavis, 2008, p. x). miçanga fina...”, nos apetrechos: “...jóia de bi- Trata-se da letra da canção Na massa, do CD juteria/ lantejoula e purpurina.../ ou com lenço Paradeiro12, que Arnaldo canta, em shows, ves- de cigano.../ capacete de bacana.../ gargantilha tindo uma indumentária que se assemelha a um no cangote.../ plástico metal/ árvore de natal...”, Parangolé que tivesse sido concebido pelo no corte de cabelo: “passa de cabelo moicano” e performer mexicano Guilhermo Gomez-Peña, nos movimentos: “...anda de abada/ dança o em parceria com o nosso artista plástico viden- bragada...”. Pele e roupa se confundem: “...usa te-esquizo-paranóico Arthur Bispo do Rosário... a roupa da pele da/ roupa da pele da roupa...”, Como o Penetrável de Hélio Oiticica, ganha numa construção exterior que sugere a interior forma-força expressiva não apenas revestindo o ao mesclar produtos arcaicos e high tech, vetores corpo mas, principalmente, com a vivência do das relações sócio-culturais, procurando uma ponteado contido/ expansivo da dança. Como identidade, uma diferença “na massa”, mas que as assemblages/ environments do autor da per- também se desconstrói na medida mesmo em formance/ instalação El Shame-man se encuentra que “some na massa”13. com el Mexican’t y com la hija apócrita de Frida A segunda ação performativa em que nos Cola y Freddy Krugger em Brasil, o corpo é meio debruçaremos é a do videoclipe Música para de veiculação de identidades e não-identidades ouvir, canção do CD Um som, dirigido por

12 ANTUNES, Arnaldo. Na massa (Davi Moraes/ Arnaldo Antunes). CD Paradeiro, BMG/Ariola, 2001. 13 Idem. Na massa (Davi Moraes/ Arnaldo Antunes). Encarte do CD Paradeiro, BMG/Ariola, 2001.

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Andrew Waddington e Toni Vanzolini; mais es- ser notado, assim como todos esses outros obje- pecificamente, sobre uma imagem-corpo que se tos, pela atriz que faz a personagem sugerida pela apresenta ao olhar no transcorrer do vídeo. letra. No final da encenação, o performer, ves- Concebida em linguagem inaugural de “cifra tido e caracterizado de boneco de pano, coreo- ótica” (Lehmann, 2007, p. 119) ou de uma grafa uma dança patética, chapliniana, pois não “espécie de hieróglifo vivo para ser decifrado” conseguiu se fazer notar e ser companhia daque- (Fernandes & Guinsburg, 2008, p. 18), cuja la mulher. função é propiciar uma aventura heurística re- Para Kleist, o duplo da marionete adqui- ceptiva que insira o leitor/ espectador na ativi- ria um contorno romântico de figura de funda- dade do tempo ritual da performance poética, a ção para o mundo da arte, do qual vontade e composição de Antunes sugere as metamorfo- consciência, características intrínsecas ao ho- ses de percepção implícitas na dinâmica do cor- mem, ente preso às leis da natureza, deveriam po-signo. O poeta surge dançando em passos ser abolidas para que se pudesse chegar ao en- saltitantes espasmódicos, braços esticados, todo cantamento e à beleza, fim próprio de uma cria- de preto, com um alto falante, um pouco mai- ção intelectual artística. Para Craig, como modo or do que o formato de sua cabeça, preso a ela de extrair da cena o mimetismo e recuperar as na altura do rosto. Tal ser-signo sugere que to- origens sagradas da encenação, é necessária a dos os sentidos e suas potências de conforma- incorporação da figura enigmáticas da superma- ção de linguagem, à exceção da audição, irmã- rionete, “descendente dos antigos ídolos de pe- ímã do canto, encontram-se transcodificados, dra dos templos”, “imagem degenerada de um trazendo junto suas especificidades latentes, no Deus” (Craig, 2003, p. 166); não para rivalizar ato de vocalização corporal rítmico-melódico- com a vida, mas para ir além dela, figurando instrumental, filtrada, modificada e ampliada um outro modo de presença do corpo huma- pela tecnologia, simbolizada pelo alto falante. no, “em estado de êxtase” (idem, p. 167). Para Esse corpo híbrido subjetivo/ objetivo que atra- Tadeusz Kantor, “os bonecos são algo como a vessa, meio gauche, o cenário do clipe, pode ser essência primordial e esquecida do ser humano, entendido como a figuração da produção musi- seu Eu-lembrança que ele continua a levar con- cal do performer, em viagem auto-expressiva de sigo” (Lehmann, 2007, p. 121), duplo do ator/ sua estranheza última, em pleno universo main- performer inaugural, um rebelde e herege por stream da indústria da música de massas. excelência, que ousou se desvincular da sua co- A terceira performance é a que Arnaldo munidade de culto, para retornar trazendo a realiza no videoclipe Essa mulher, música do CD experiência da morte para o mundo dos vivos; Paradeiro14. A letra da canção, que tematiza as daí seu Teatro da Morte, que faz do manequim ações no clipe, aborda a manutenção do desejo presença constante, por ser a figuração recorren- masculino mesmo sendo desprezado pela mu- te deste instante arcaico originário da arte. lher: “ela quer viver sozinha/ sem a sua compa- No videoclipe de Arnaldo Antunes, o nhia/ e você ainda quer/ essa mulher”, que “tem abismo entre homem e coisa é relativizado e um travesseiro mais macio/ do que o seu braço/ desfuncionalizado. E a troca, a comunicação, a e um acolchoado muito mais/ quente que o seu circulação, o diálogo se dá, antes, entre objeto e abraço”. O que salta à vista são os bonecos, fan- ser humano, pois ambos, após serem tragicomi- toches, títeres, marionetes, manequins, mamu- camente desprezados, acabam como joguetes do lengos, de diferentes formas e tamanhos, que se destino da mulher-deusa autônoma. E, no final, espalham pela casa, junto com inúmeros pro- terminam por revelar sua mesmidade inerente dutos industriais selados com a imagem do can- fundamental: o corpo-signo-mamulengo-clown tor (batom, almofada, colher de pau, marcador dançante, duplo grotesco pop tanto de um “es- de livro etc), que está em cena, cantando, sem tado de êxtase” primal, quanto metáfora da

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morte vital artística do ator/ performer arcaico, teatro, artes plásticas...Mas eu não quero que pré-moderno, que retorna, costeando a moder- ela seja diferente das outras bandas, porque, nidade, em pleno universo globalizado da cul- no fundo, é uma banda de rock. Minha ban- tura de massas informacional contemporânea. da é pintura. Muda a linguagem, mas o con- Podemos detectar as origens da perfor- ceito é sempre o mesmo” (Aguillar, 1984). mance nas seratas futuristas e dadaístas, nas experimentações da Bauhaus e do Black No recitativo performático da canção Mountain College, na action-paiting, no “Inclassificáveis”15, do CD O silêncio, que Ar- happening, na live art, no movimento Fluxus e naldo Antunes realizou no auditório da Sociesc na body art. Em Antunes, em seus recitativos de Joinville, em 29 de agosto de 2008, dentro performáticos, em suas performances intermí- da “V poesia em cena”, o poeta canta ao micro- dias, elementos pinçados dessas propostas sur- fone, todo vestido de preto, segurando folhas gem sob a batuta multidiscursiva do performer- de papéis na mão, acompanhado apenas pelo régisseur. Em interação comunicativa direta, som sintetizado de Marcelo Jeneci, com ima- com consciência de presença, o poeta canta/ re- gens múltiplas se alternados ao fundo, numa cita sua palavra corpórea, na intersecção de mo- tela. As linguagens se organizam por justapo- vimentos gestuais, enquanto são apresentados, sição e superposição, sem sucessão, fusão ou simultaneamente, vídeos, slides, vídeoperfor- transição, num simultaneísmo com instantes mances, performance plástico-caligráficas, sons ocasionais de diálogo entre voz/ som eletrônico de sua própria voz pré-gravados, alterados e e as imagens plásticas em movimento (do tipo manuseados no aparelho para intervenção em chamado/ resposta rítmica, com alternância suas vocalizações pelo próprio Arnaldo, emis- vaga-lume da luz à pulsação dos acentos da mú- sões de sons eletrônicos pontuais e ambientais sica), e outros momentos de autonomia dos có- executados por outros performers convidados. digos. As imagens passam por diferentes reinos, A primeira experiência marcante de Arnal- do natural, com a aparição de um peixe ver- do Antunes com a performance veio de sua par- melho no aquário, ao arquitetônico, com a vi- ticipação, em fins dos anos setenta, na Aguilar e são angular de uma iluminada vista do a Banda Performática. Criada e concebida pelo alto à noite, para finalizarem-se com formas ge- artista plástico José Roberto Aguilar, agregava ométricas azuis em fundo negro, se alterando poetas, dançarinos, atores, pintores em perfor- em número de elementos e composição abstra- mance musical. Nas palavras do líder da banda, ta formal. podemos apreender as bases do que será desen- A letra aborda a revitalização criativa do volvido posteriormente por Arnaldo Antunes: modelo étnico-cultural crioulo, a partir de lei- turas não-hifenizadas de nossa cultura, com “Eu não sou músico, sou pintor. Mas nada Arnaldo Antunes concebendo nosso universo me impede de ser band-leader da Banda cultural como desierarquizado, assistemático, Performática, porque atrás dela existe sem- rebelde e vital. O poema cantado/ recitado ini- pre um discurso sobre as artes plásticas, mas cia com perguntas indignadas, em resposta a como um conceito ou metalinguagem do uma possível afirmação de nossa etnia a partir rock. Minha banda é uma legião estrangeira do mito das três raças: “Que preto, que branco, de linguagens pois se serve de vídeo, dança, que índio o quê?/ Que branco, que índio, que

14 Antunes, Arnaldo. Essa mulher (Arnaldo Antunes). CD Paradeiro, BMG/Ariola, 2001.

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preto o quê?/ Que índio, que preto, que branco dois, tem três/ Não tem lei, tem leis/ Não tem o quê?/ Que preto branco índio o quê?/ Branco vez, tem vezes/ Não tem deus, tem deuses/ Não índio preto o quê?/ Índio preto branco o quê?” tem cor, tem cores/ Não há sol a sós”. O tira e Utilizando-se dos procedimentos barrocos da bota dos sintagmas – tem/ não tem – constrói a pergunta iniciativa, de simetria e de máquina dinâmica da dialética barroca, na qual a dife- composicional lúdica do poema, a voz poética rença se resolve em oposição, esta em simetria sugere que a ordem dos fatores e suas insinuan- e, por fim, em nova identidade na qual o mes- tes hierarquias não modificam o produto racial mo vira outro. Assim, descreve nossa recon- inclassificável da cultura brasileira. Que em sua fecção das leis oficiais em favor das leis que dinâmica e abertura de fluxos contínuos, pren- surgem no dia-a-dia das comunidades, com de e solta tipos e raças, como as palavras-valise aplicação prática na vida em detrimento de nos- de que se utiliza para expor a miscigenação sa abstração doutoresca; nossa multiplicidade constante, numa expressiva superposição lin- gradativa de tons e cores raciais e/ ou naturais; güístico-cultural: “Aqui somos mestiços mula- nossa pluralidade de possibilidades religiosas e tos/Cafusos pardos mamelucos sararás/ Cri- míticas em sincretismo negociante, em duplo louros guaranisseis e judárabes/ Orientupis expansivo: “não tem vez/ tem vezes”17. A am- orientupis/ Ameriquítalos lusos nipocaboclos/ bivalência fonética do verso final do refrão traz Iberibárbaros indo ciganagôs/ Somos o que so- nova reverberação espelhada, guardando, por mos/ Inclassificáveis”16 um lado, a possibilidade de leitura de todo tipo No refrão, a série de ambigüidades conti- de sol, negro inclusive (não há sol, há sóis) e, das no termo que nomeia a canção (Inclassi- por outro, a força solar que só brilha em nossa ficáveis) se entremostra para (in)definir nossa inevitabilidade agregante rotativa última (não brasilidade: “Não tem um, tem dois/ Não tem há sol a sós).

Referências bibliográficas

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15 Antunes, Arnaldo. “Inclassificáveis” (Arnaldo Antunes). CD O Silêncio (BMG/Ariola, 1997). 16 Idem. 17 Idem.

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RESUMO: Abordagem da obra de Arnaldo Antunes sob a perspectiva da poesia de suas performances, nas vocalizações e outras manifestações criativas. De como o autor, por meio de uma produção que prima por impregnar de imprevisto o clichê e o automatismo da informação massiva, se empenha em trabalhar com a materialidade da linguagem em diferentes instâncias midiáticas e expressivas. Proposta que leva a uma pedagogia inventiva da estranheza, tanto por resgatar, na contemporaneidade high tech da arte, uma experiência originária humana de circulação desobstruída da percepção e dos sentidos, quanto por tentar diminuir o fosso entre experimentação estética e comunicação de massas. PALAVRAS-CHAVE: Poesia e música popular. Performance. Jogo intersemiótico e multidiscursivo. Pedagogia da estranheza. Transculturalidade.

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