A Palavra-Corpo E a Performance Poética Em Arnaldo Antunes Naldo
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
A palavra-corpo e a performance poética em Arnaldo Antunes A ndré Gardel obra de Arnaldo Antunes vem trazendo poeta paulista contemporâneo não é mais um para o universo da cultura de massas, de epígono dos concretos; sua postura estética é, modo sistemático e com grande poder na verdade, pós-concreta, aponta para um novo inventivo, elementos expressivos que fin- rumo a partir do movimento, assim como os cam raízes em algumas das mais impor- três líderes iniciais do concretismo renovaram- tantesA experimentações de vanguarda do século se seguindo caminhos posteriores particulares e XX. Não que tais trocas, intercâmbios e livres revitalizantes. Mas a base é uma só: o instru- usos não ocorram, com certa freqüência, entre mental lingüístico e semiótico; a inserção da essas instâncias culturais; antes, pelo contrário, escrita ideogramática na escrita alfabética, que podemos dizer que fazem parte de seus proces- incorpora a estrutura analógica à lógica dis- sos constitutivos comuns, das origens à atuali- cursiva ocidental, subvertendo sintaxes, núcle- dade, particulares mesmo de suas configurações os vocabulares; a pesquisa gráfica e caligráfica abertas e permeáveis. E, muito menos ainda, revitalizando o verbal; a contaminação multi- que outros artistas brasileiros tão inventivos meios; a poesia visual de fundo cronstrutivista; quanto Arnaldo, dentro da música popular, no a proesia; a busca isomórfica de significação en- Brasil, não tenham feito semelhante aproxima- tre signo verbal e referente, similaridades fônicas ção e interferência de códigos culturais. O que e ambigüidades semânticas etc. Base que é solo salta aos olhos e diferencia a sua produção nutritivo para outras notas e atitudes entrarem multimídia, é a manutenção e continuidade, e se desenvolverem. tanto de sucesso comercial quanto de experi- Tais posturas estéticas, embutidas na mento, de um esforço criativo cuja plataforma criação e divulgação da obra de Antunes, têm básica é desentranhar do lugar comum, o inco- como meta o estabelecimento de uma verdadei- mum; da informação redundante, inovação; do ra reeducação dos sentidos, realizando uma es- banal cotidiano, poesia; dos padrões de norma- pécie de pedagogia da estranheza, ao tentaram lidade, estranheza. diminuir o fosso existente entre experimenta- A produção de Antunes parece ser um ção formal e comunicação ligada à indústria cul- desdobramento pop de linhas inventivas dese- tural. Isso se dá como uma continuação, em ba- nhadas pelo Concretismo. Parece apenas. O ses globalizadas atuais, da diversidade de André Gardel é ator e pesquisador, doutorado pela UFRJ. 223 R4-A3-AndreGardel.PMD 223 15/04/2009, 08:26 ssala ppreta interesses, discursos, interferências, culturas e contágios incessantes, vários campos de conhe- ritmos introduzidos pela Tropicália (por si só, cimento em trânsito, desviando seus sentidos, já uma deglutição pop de proposições moder- readquirindo força na migração poética, na nistas) na música popular brasileira, com uma interação de noções na imagem. Tudo isso para criação que navega na confluência dessas instân- injetar estranhamento numa ambiência que, cias, enfrentando de modo plural e muito pes- para funcionar, exige o já assimilado, o estável, soal o jogo artístico que se desdobra da dialéti- a não-novidade, e, também, dialeticamente, ca contemporânea entre novidade e tradição, para embeber positivamente de cotidiano múl- estética culta e de massas. tiplo, diálogo, clareza, fluxo vital a complexida- O movimento mais constante nessa pro- de formal, o trabalho com a linguagem. dução, com isso, é o de busca de uma possível Os meios expressivos de que Arnaldo se brasilidade desterritorializante, desfolclorizante, utiliza são diversificados e amplos: livros, dis- modulada pelo intuito de “transformar o óbvio cos, shows e ações performáticas, trabalhos de no inesperado.”1 E este procedimento vai do artes plásticas, caligráficas, gráficas, poemas microestético ao macrocultural, se apresentan- visuais e digitais, instalações, intervenções. do nas unidades mínimas significativas da ma- A multiplicidade dessa produção disponibiliza terialidade poética, na reconfecção arejante de um variado espectro de possibilidades de recep- máximas e ditos populares, nas suas propostas ção, que podem ocorrer, por exemplo, com de diálogo artístico intersemiótico. Trata-se de megashows realizados para multidões, em gale- um trabalho de desconstrução que se insinua rias de arte, a partir de videoclipes e programas como a contraface pós-moderna, reciclada, do musicais de tv, do uso artístico de objetos de espírito e olhar primitivistas das vanguardas. consumo, da visão de outdoors e outros espa- O frescor originário do “bárbaro tecnizado de ços urbanos, em palestras e recitais em bienais, Keyserling” (Andrade, 1978, p. 14). transmode- feiras de livros, escolas, centros culturais, em es- la-se nos olhos livres recriativos do estranho paços teatrais específicos para pequenas perfor- acústico/ eletrônico massivo, atravessados pelo mances, na leitura silenciosa livresca, na desejo interessado (no sentido mariondradino do ambiência hipertextual da internet. termo), mas não especializado, em produzir Como se vê, Arnaldo estabelece um livre uma “criação contaminada de vida, contami- trânsito entre a indústria “major” e a “minor”, nando a vida” (Antunes, 2000, p. 12) e que, ao entre os espaços “cults” e “bregas”, oficiais e al- mesmo tempo, sofra a interferência de várias ternativos, entre o erudito e o popular, entre os áreas do saber. “happy few” e a massa. E é justamente essa pos- Em outras palavras, para efetuar sua pe- tura transicional, de Hermes-Mercúrio multi- dagogia da estranheza poética na sociedade bra- cultural e interartístico, que propicia o exercí- sileira contemporânea de massas, Arnaldo exe- cio e ampliação do viés “pedagógico” de sua cuta, em sua práxis poética, um movimento produção, em essência, poética. Pois é a partir sinestésico que se desborda em multicultura- da potencialização das forças que tencionam a lidade e multidiscursividade: códigos distintos palavra poética, se distendendo e reverberando, vistos como mundos distintos inter-relacioná- de modo recorrente, em todos os meios de ex- veis, mundos distintos ouvidos como códigos pressão a que se dedica, que vem à tona seu assimiláveis, linguagem e vida interagindo em ideário último: a revitalização, multimídia, de 1 Antunes, Arnaldo. Entrevista concedida a Marili Ribeiro, suplemento Idéias-Livros do Jornal do Bra- sil, 27/09/1997. 224 R4-A3-AndreGardel.PMD 224 15/04/2009, 08:26 A palavra-corpo e a performance poética em Arnaldo Antunes um estado de linguagem – primitivo, semiótico, mídia, de desobstrução e circulação inventiva da performativo – em que nome e coisa, objeto e percepção e dos sentidos, (re) vivida e cons- signo surgem como um único e mesmo fenô- truída pelo performer, esse “mago semiótico” meno pulsante. Num resgate de uma situação e (Glusberg, 2003, p. 103), com o intuito de que de um momento originários em que a lingua- reverbere no mundo, expandindo-se como ri- gem torna-se corpo e o corpo, linguagem. tual coletivo secular. Dar corpo à palavra significa reinaugurá- la em sua materialidade, desinvesti-la de sua função lógico-linear-discursiva abstrata, tão A palavra corpórea usual na tradição ocidental. Recuperar, por um lado, sua tactibilidade de signo verbal oriundo Os desdobramentos corpóreos da palavra poé- de um espaço sensório vivo e, por outro, de sig- tica se manifestam “por suas formas, suas ema- no plástico passível de reconfiguração gráfica e nações sensíveis, e não somente por seus senti- caligráfica, pictórica e ideogramática. No pri- dos” (Artaud, 1984, p. 157). Pois, segundo Paul meiro caso, o que se entremostra é o aspecto Zumthor, “tudo se passa como se a poesia tives- performativo e semiótico da palavra poética, es- se, entre os poderes da linguagem, a função de tado ritual da linguagem em que o verbo emer- acusar o papel performativo desta” (Zumthor, ge traspassado de fulgurações de ritmo, melo- 2007, p. 46). E é justamente pensando a língua dia, dança, gestos, modulações vocalizantes, como performance que Diderot, em sua Carta silêncios, pausas, formas-força situacionais que sobre os surdos-mudos, cria o conceito de energia aderem à palavra e fazem dela poesia, forma para definir a especificidade da linguagem poé- mutante aberta a recriações incessantes. No se- tica, portadora da unidade original da natureza: gundo, para aplicar um choque poético, antiar- bitrário, involutivo na escrita alfabética, com o “Por intermédio da sensação, diz ele, nossa intuito de que esta possa trazer em si sua pró- alma percebe várias idéias ao mesmo tempo, pria significação, assim como os hieróglifos, sob que são representadas sucessivamente pelo ordenamento paratático, em co-presença de sig- discurso. Se a sensação pudesse comandar vin- nos-coisa, articulando-se em fraseogramas ou te bocas simultaneamente, as múltiplas idéias atomizando-se em arranjos de morfemogramas, percebidas de modo instantâneo também se- por exemplo. riam expressas a um só tempo. Na falta des- A proposta deste trabalho é abordar a sas bocas, ‘vincularam-se várias idéias a uma poesia das performances de Arnaldo Antunes. só expressão’” (Mattos, 2005, p. 22). O que significa falar, basicamente, dos instan- tâneos de sua obra em que seu corpo, como au- Nessa concepção de poesia, a única forma tor e ator de uma individualidade, impregna-se de restaurar a exuberância do eixo da simulta- de presentidade poética; e, na mesma medida, neidade sensorial, submetido