REVISTA PAN AMERICAN

REVISTA PANAMERICANA DE SALUD PÚBLICA / PAN AMERICAN JOURNAL OF PUBLIC HEALTH  PANAMERICANA JOURNAL OF DE SALUD PÚBLICA PUBLIC HEALTH

NÚMERO ESPECIAL DE ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NO BRASIL: 40 ANOS DE ALMA-ATA

Editorial

 Saúde universal com equidade, sem deixar ninguém para trás

Artigos

 Papel da gerência das unidades básicas na APS

 Telessaúde para apoiar a educação permanente em saúde

 Acesso à mamografia no Brasil

 Avaliabilidade do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A

 Revisão da Política Nacional de Atenção Básica

 Alma-Ata and primary health care in a middle-income city

 Monitoramento em saúde na APS VOL. 42 NOVEMBRO DE 2018  Programa Mais Médicos e iniquidades em saúde

 Consultórios na Rua e atenção básica

 HIV/Aids e APS no Brasil

 Atenção primária na saúde indígena

 Interculturalidade e política de atenção às populações indígenas

Os artigos podem ser baixados gratuitamente a partir de https://bit.ly/2Pz9G2V

Vol. 42, novembro de 2018 doi: https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.210 Sobre a Revista Pan-Americana de Saúde Pública

A Revista Pan-Americana de Saúde Pública é o periódico científico e técnico da Organi- zação Pan-Americana da Saúde (OPAS). Publicado desde 1922, é um dos mais antigos periódicos dedicados à promoção da saúde nas Américas. Publicado em inglês, espanhol e português, é um periódico de acesso aberto, revisado por pares e on-line. Sua missão é servir como um importante veículo para a divulgação de informações científicas sobre saúde pública de importância internacional, relacionada à missão essencial da OPAS de fortalecer os sistemas nacionais e locais de saúde e de melhorar a saúde dos povos das Américas.

www.paho.org/journal @pahowho_journal

Sobre o número especial de atenção primária à saúde no Brasil: a 40 anos de Alma-Ata

Há quarenta anos, os países membros da Organização Mundial da Saúde acordaram em Alma-Ata um conjunto de princípios com o propósito de proteger e de promover a saúde de todas as pessoas, entendendo a atenção primária à saúde como princípio norteador de todo o sistema de saúde integral. Desde a Declaração de Alma-Ata, em 1978, os países da Região das Américas registraram enormes progressos, crescimento econômico e melhorias em seus sistemas de saúde. No entanto, há ainda muitos desafios na Região, como a pobre- za e a desigualdade, os obstáculos que impedem o acesso à saúde, os modelos de atenção pouco eficientes, a segmentação dos sistemas de saúde, a fragmentação dos serviços, a insuficiência de recursos financeiros para o setor da saúde e as limitações de governança e de liderança.

Este número especial da Revista Pan-Americana de Saúde Pública, publicada em comemo- ração do 40º aniversário da Declaração de Alma-Ata, apresenta caminhos inovadores para que o Brasil siga com o aperfeiçoamento da atenção primária à saúde, o fortalecimento dos sistemas de saúde, a melhora da saúde e do bem-estar de suas populações e o enfrenta- mento dos desafios e das tendências emergentes na Região das Américas. REVISTA PAN AMERICAN PANAMERICANA JOURNAL OF DE SALUD PÚBLICA PUBLIC HEALTH Vol. 42, Novembro de 2018 ISSN 1020 4989

Fundada em 1922 com o nome de Boletín Panamericano de Sanidad

Número especial de atenção primária à saúde no Brasil: a 40 anos de Alma-Ata

EDITORIAL

Saúde universal com equidade, sem deixar ninguém para tras Joaquín Molina 1

ARTIGOS

Importância do gerenciamento local para uma atenção primária à saúde nos moldes de Alma-Ata Luceime Olivia Nunes, Elen Rose Lodeiro Castanheira, Adriano Dias, Thais Fernanda Tortorelli Zarili, Patrícia Rodrigues Sanine, Carolina Siqueira Mendonça, José Fernando Casquel Monti, Josiane Fernandes Lozigia Carrapato, Nádia Placideli e Maria Ines Battistella Nemes 3 Utilização do Programa Telessaúde no Maranhão como ferramenta para apoiar a Educação Permanente em Saúde Ariane Cristina Ferreira Bernardes, Liberata Campos Coimbra e Humberto Oliveira Serra 13

Estratégia Saúde da Família, saúde suplementar e desigualdade no acesso à mamografia no Brasil Antônio Carlos Vieira Ramos, Luana Seles Alves, Thaís Zamboni Berra, Marcela Paschoal Popolin, Marcos Augusto Moraes Arcoverde, Laura Terenciani Campoy, José Francisco Martoreli Júnior, Luís Velez Lapão, Pedro Fredemir Palha e Ricardo Alexandre Arcêncio 23 Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A no Brasil: um Estudo de Avaliabilidade Wanessa Debôrtoli de Miranda, Eliete Albano Azevedo Guimarães, Daniela Souzalima Campos, Laís Santos Antero, Nathália Ribeiro Mota Beltão e Zélia Maria Profeta da Luz 33

Política Nacional de Atenção Básica no Brasil: uma análise do proceso de revisão (2015-2017) Erika Rodrigues de Almeida, Allan Nuno Alves de Sousa, Celmário Castro Brandão, Fabio Fortunato Brasil de Carvalho, Graziela Tavares e Kimielle Cristina Silva 41

Remembering Alma-Ata: challenges and innovations in primary health care in a middle-income city in Latin America Adriano Massuda, César M. S. Titton, and Paulo Poli Neto 49 Dezesseis anos de monitoramento em saúde na atenção primária em uma grande metrópole das Américas Sylvia Grimm, Alexandre Padilha, Katia Cristina Bassichetto e Margarida Lira 59

Programa Mais Médicos: como avaliar o impacto de uma abordagem inovadora para superação de iniquidades em recursos humanos Allan Claudius Queiroz Barbosa, Pedro Vasconcelos Amaral, Gabriel Vivas Francesconi, Carlos Rosales, Elisandréa Sguario Kemper, Núbia Cristina da Silva, Juliana Goulart Nascimento Soares, Joaquim Molina e Thiago Augusto Hernandes Rocha 67 Contribuições das equipes de Consultório na Rua para o cuidado e a gestão da atenção básica Everson Rach Vargas e Iacã Macerata 75

Cuidado, HIV/Aids e atenção primária no Brasil: desafio para a atenção no Sistema Único de Saúde? Eduardo Alves Melo, Ivia Maksud e Rafael Agostini 81

O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil Anapaula Martins Mendes, Maurício Soares Leite, Esther Jean Langdon, e Márcia Grisotti 87

Análise crítica da interculturalidade na Política Nacional de Atenção às Populações Indígenas no Brasil Leo Pedrana, Leny Alves Bomfim Trad, Maria Luiza Garnelo Pereira, Mônica de Oliveira Nunes de Torrenté e Sara Emanuela de Carvalho Mota 93 Pan American Journal Editorial of Public Health

Em setembro de 1978, líderes mundiais firmaram um compromisso histórico Saúde universal para o alcance do direito à saúde na primeira Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, considerando que gozar do melhor estado de saúde com equidade, é um direito fundamental de todo ser humano e uma das metas sociais mais importantes. A Declaração de Alma-Ata sobre Atenção Primária de Saúde, como é sem deixar conhecido esse mítico documento, tem sido um guia fundamental para o desen- volvimento dos sistemas de saúde da maioria dos países do mundo nas últimas ninguém quatro décadas. Paralelamente a esse acontecimento global, o Brasil passava por um momento para trás histórico de redemocratização, que alcançou, entre seus marcos, o fim do governo militar e a promulgação de uma nova Carta Magna em 1988, denominada de Constituição Cidadã. Nesse contexto, relevantes atores nacionais, com a partici- Joaquín Molina1 pação de lideranças políticas, profissionais de saúde, intelectuais e movimen- tos estudantis e sindicais, agrupados no movimento da Reforma Sanitária, promoveram debates e reflexões que culminaram na transformação dos modelos de gestão e atenção à saúde. Como consequência, findou-se o modelo assisten- Como citar Molina J. Saúde universal com cial individualista, segmentado e com forte influência do atendimento médico equidade, sem deixar ninguém para trás. Rev privado, dando lugar ao Sistema Único de Saúde (SUS), público, universal e Panam Salud Publica. 2018;42:e173. https:// gratuito. doi.org/10.26633/RPSP.2018.173 A criação do SUS foi o maior movimento de inclusão social na história do Brasil. O SUS é um dos maiores sistemas de saúde do mundo com acesso univer- sal a serviços e ações de promoção da saúde. Um sistema assegurado na Constituição Federal de 1988, que consagrou a saúde como “direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visam à redução do risco de doença e de outros agravos e possibilitando o acesso univer- sal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação”. O SUS distingue o desenvolvimento social do Brasil atual e dignifica todos os brasileiros e brasileiras.

A Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) considera o Brasil como uma referência obrigatória de nação compro- metida com a universalidade em saúde e de gestão pública participativa, e como fonte de conhecimentos para a região das Américas e países de outras latitudes. A estruturação e os resultados do SUS no Brasil são internacionalmente divulgados, geram interesse científico e são valorados positivamente.

Neste ano de 2018, comemoramos a feliz coincidência dos 40 anos da Declaração de Alma-Ata e os 30 anos do SUS. A publicação deste suplemento especial da Revista Panamericana de Salud Pública é uma forma de celebrar os progressos e as inúmeras conquistas, além de registrar os avanços e desafios do Brasil no campo da saúde de sua população.

Estamos cientes de que um SUS forte é vital para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Temos absoluta certeza de que um SUS que se movi- menta impactará toda a sociedade brasileira, sendo um caminho incontornável para o alcance das mais desafiadoras metas e aspirações de desenvolvimento e bem-estar do país e de seus cidadãos. 1 Organização Pan-Americana da Saúde/ Organização Mundial da Saúde, Brasília (DF), A OPAS/OMS no Brasil tem envidado esforços em prol de uma agenda Brasil. de Cooperação Técnica para o fortalecimento e a sustentabilidade do SUS.

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos da Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 IGO, que permite o uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o trabalho original seja devidamente citado. Não são permitidas modificações ou uso comercial dos artigos. Em qualquer reprodução do artigo, não deve haver nenhuma sugestão de que a OPAS ou o artigo avaliem qualquer organização ou produtos específicos. Não é permitido o uso do logotipo da OPAS. Este aviso deve ser preservado juntamente com o URL original do artigo.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 1 Editorial Molina • Saúde universal com equidade, sem deixar ninguém para trás

Esperamos que os manuscritos deste Suplemento possam contribuir para o registro da trajetória de construção do sistema de saúde brasileiro, além de identificar algumas lições aprendidas e favorecer a melhor compreensão dos desafios atuais. Estão aqui abordados temas relevantes, como atenção primária à saúde, saúde indígena, educação permanente, equidade em saúde e desenvol- vimento de recursos humanos.

Acreditamos que as experiências apresentadas neste suplemento dedicado ao Brasil, em comemoração aos 40 anos da Declaração de Alma-Ata, servirão como fonte de inspiração para outros países em um momento histórico em que a Região das Américas se posiciona para ser a primeira Região do mundo a alcançar a saúde universal com equidade, sem deixar ninguém para trás.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 2 Pan American Journal Artigo original of Public Health

Importância do gerenciamento local para uma atenção primária à saúde nos moldes de Alma-Ata

Luceime Olivia Nunes,1 Elen Rose Lodeiro Castanheira,1 Adriano Dias,1 Thais Fernanda Tortorelli Zarili,1 Patrícia Rodrigues Sanine,1 Carolina Siqueira Mendonça,1 José Fernando Casquel Monti,2 Josiane Fernandes Lozigia Carrapato,1 Nádia Placideli1 e Maria Ines Battistella Nemes3

Como citar Nunes LO, Castanheira ERL, Dias A, Zarili TFT, Sanine RR, Mendonça CS, et al. Importância do gerenciamento local para uma atenção primária à saúde nos moldes de Alma-Ata. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e 175. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.175

RESUMO Objetivo. Descrever as características da gerência das unidades de atenção primária à saúde e o perfil dos gerentes e discutir as implicações desses elementos para a efetivação dos pressu- postos do Sistema Único de Saúde no Brasil de forma coerente com as proposições de Alma-Ata. Métodos. Estudo descritivo, transversal, com dados colhidos pelo questionário de Avaliação da Qualidade de Serviços de Atenção Básica (QualiAB), um instrumento autoaplicado via web. O QualiAB foi respondido voluntariamente por 157 gerentes de unidades básicas de saúde de 41 municípios do estado de São Paulo entre outubro e dezembro de 2014. Resultados. Das 157 unidades, 67 (42,7%) eram unidades de saúde da família e 58 (36,9%) eram unidades básicas de saúde de organização “tradicional”; 95 (60,5%) se localizavam em região urbana periférica. No momento do estudo, oito (5,0%) unidades não possuíam gerente e oito (5,0%) eram gerenciadas por secretários municipais de saúde. Quase 80% dos gerentes eram enfermeiros e desempenhavam múltiplas funções além da gerência. O matriciamento (supervisão técnica como forma de educação permanente) era feito em 75 (47,7%) unidades; 60 (38,2%) unidades não contavam com nenhum tipo de matriciamento. A participação em pro- cessos avaliativos foi referida por 130 (82,8%) serviços. Os principais desdobramentos induzi- dos por avaliações foram planejamento e reprogramação das atividades com participação da equipe multiprofissional em 40 unidades (25,5%) e definição de um plano anual de atividades em 38 (24,2%). Não tiveram acesso aos resultados das avaliações 29 unidades (17,8%). Conclusão. O estudo recoloca a importância da gestão do trabalho e a necessidade de (re) investir na formação e valorização do gerenciamento local como estratégia para efetivar uma atenção primária à saúde capaz de promover a saúde como direito e condição de cidadania.

Palavras-chave Gestão em saúde; administração de serviços de saúde; atenção primária à saúde; Brasil.

1 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita 2 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), 3 Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Filho, Faculdade de Medicina de Botucatu, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, São Medicina, São Paulo (SP), Brasil. Botucatu (SP) Brasil. Correspondência: Luceime Carlos (SP), Brasil. Olivia Nunes, [email protected]

Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos da Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 IGO, que permite o uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o trabalho original seja devidamente citado. Não são permitidas modificações ou uso comercial dos artigos. Em qualquer reprodução do artigo, não deve haver nenhuma sugestão de que a OPAS ou o artigo avaliem qualquer organização ou produtos específicos. Não é permitido o uso do logotipo da OPAS. Este aviso deve ser preservado juntamente com o URL original do artigo.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 3 Artigo original Nunes et al. • Papel da gerência das unidades básicas na APS

A Conferência Internacional sobre O gerenciamento na APS é sumaria- integralidade (3-5) e redefiniram o papel Atenção Primária à Saúde (APS) realiza- mente tratado nas publicações da da gerência das UBS. da em Alma-Ata, em 1978, definiu a APS PNAB de 2006 (13) e de 2011 (3), que Nesse contexto complexo, o presente como chave para a implementação de definem: “compete às Secretarias Muni- estudo objetiva descrever as caracterís- um sistema de saúde que promova o de- cipais de Saúde e ao Distrito Federal ticas da gerência de unidades de APS senvolvimento social e a saúde como di- organizar, executar e gerenciar os servi- em relação à coordenação do trabalho e reito (1). As recomendações de Alma-Ata, ços e ações de atenção básica” (13, p. 12; à gestão municipal e discutir suas impli- ao lado de estudos que demostram maior 3, p. 32). A PNAB de 2017 (14) r­etoma a cações para a efetivação de serviços de efetividade e eficiência de sistemas base- necessidade da gerência local, reco- APS baseados nas diretrizes e pressu- ados numa APS forte (2), influenciaram o mendando a existência de um postos do SUS e coerentes com as pro- sistema de saúde brasileiro no sentido de ­profissional dedicado a esse fim e defi- posições de Alma-Ata para produção do priorizar um maior investimento na APS, nindo algumas de suas atribuições. cuidado. especialmente a partir da implantação do ­Diferentemente do proposto na reforma Sistema Único de Saúde (SUS) nos anos da Secretaria da Saúde ocorrida no esta- MATERIAIS E MÉTODOS 1990. Com o SUS, a APS, ou atenção bási- do de São Paulo nos anos 1970 (15, 16), ca, conforme denominada pela política de acordo com a qual a função de ge- O presente estudo, descritivo, quanti- brasileira, foi instituída como principal rência era privativa de médicos com es- tativo e transversal, utilizou dados sobre porta de entrada no sistema e como res- pecialização em saúde pública, o gerência obtidos pela aplicação do Ques- ponsável pela ordenação do cuidado in- gerente agora recomendado deve ter tionário de Avaliação da Qualidade de tegral e articulação com as redes de “preferencialmente” nível superior, não Serviços de Atenção Básica (QualiAB) atenção à saúde (RAS) (3-5). A execução ser integrante­ das equipes vinculadas à (22) e pela ficha de cadastro dos gerentes das ações de APS passou a ser responsa- UBS e possuir experiência na atenção das UBS. O QualiAB foi aplicado entre bilidade da gestão municipal, amparan- básica (14). outubro e dezembro de 2014, a partir de do-se no exercício de práticas gerenciais Idealmente, o gerente de UBS teria adesão voluntária, em cinco regiões de e sanitárias democráticas e participati- atribuições de planejamento, coordena- saúde do estado de São Paulo. Essas cin- vas, sob forma de trabalho em equipe, ção, direção e controle das ações realiza- co regiões de saúde reúnem 68 municí- conforme a Política Nacional de Atenção das pela equipe e deveria cotejar pios, com 1 624 623 habitantes (23), e 303 Básica (PNAB) (3-5). conhecimentos e habilidades técnicas, UBS (24). Participaram do estudo 157 Tomando-se por foco a dimensão orga- administrativas e psicossociais, articular UBS, localizadas em 41 (63,1%) municí- nizacional, para que a APS possa cum- a equipe de trabalho e dar acesso aos pios de diferentes tamanhos, com predo- prir o papel previsto pelo SUS faz-se usuários no planejamento participativo mínio daqueles de pequeno porte necessária uma gerência das unidades (6-9). Nessa perspectiva, o gerente é um (<25 000 habitantes) (23). básicas de saúde (UBS) capaz de coorde- agente-chave, sendo o responsável pela O QualiAB é um instrumento estrutu- nar a equipe de modo a orientar o pro- coordenação do trabalho da equipe e rado, de autorresposta, preenchido via cesso de trabalho segundo os objetivos e pela coerência das ações com os princí- web, que objetiva avaliar a qualidade or- finalidades propostos para esse nível de pios e diretrizes da PNAB. No entanto, a ganizacional dos serviços de APS. O ins- atenção. Nesse sentido, é atribuição da literatura sobre o tema aponta a quase trumento foi desenvolvido em 2007 (22, gerência traduzir o projeto sanitário defi- inexistência da gerência técnica na APS 25) e atualizado em 2014 e 2016 (www. nido pelas políticas públicas, construin- do SUS, seja pela ausência de um profis- abasica.fmb.unesp.br). Tem resultados do, com a equipe local e a comunidade, sional que a exerça ou pela descaracteri- analisados segundo diferentes recortes estratégias que transformem princípios zação desse papel (17-19). A gerência é (26, 27). A versão de 2014 era composta em ações, ou seja, que traduzam funda- hoje caracterizada como sendo absorvida por 126 questões de múltipla escolha que mentos políticos em práticas concretas por atividades mais administrativas, às geravam indicadores de assistência e de nos serviços de saúde (6-9). quais se somam ações de assistência dire- gerência. Neste estudo, foram analisadas A gerência das UBS é apontada por ta, com pouco tempo disponível para o 31 questões sobre gerência, que incorpo- Weirich et al. (10) como cenário onde os trabalho de coordenação técnica da equi- ram tanto aspectos mais diretamente re- problemas podem ser identificados, pe (8-10, 18, 20). lacionados ao gerenciamento local como atendidos ou encaminhados para outros Por outro lado, a descentralização da alguns mais dependentes da gestão mu- níveis de atenção, sob responsabilidade e gestão para os municípios e as políticas nicipal, considerando-se que a interface coordenação imediata da gerência, de de incentivo para implementação da Es- entre ambos incide sobre a qualidade da modo a manter um bom fluxo e contra- tratégia Saúde da Família (ESF) como atenção realizada. fluxo com a RAS. No entanto, há evidên- modelo organizacional prioritário am- Os passos da participação na pesquisa cias de que a baixa capacidade gerencial pliaram o número de serviços e redefini- foram: adesão voluntária do município limita o acesso aos serviços de saúde, ram as bases nas quais se dá a gestão do pelo secretário municipal de saúde, ca- produz concentração de esforços em trabalho na APS, estabelecendo uma dastro da unidade pela equipe local, cria- princípios administrativos tradicionais nova relação entre gestão municipal e ção de usuário e senha para responder ao ou defasados e dificulta a sistematização gerenciamento das UBS (9, 21). Essas me- questionário com garantia de sigilo e re- de dados (8, 9) e o planejamento de ações, didas permitiram avançar na implemen- comendação para que as respostas fos- acarretando insatisfação do usuário, con- tação das diretrizes ético-normativas do sem definidas em conjunto com a equipe. flitos interpessoais e sobrecarga de traba- SUS sinteticamente representadas nos Todo o processo foi realizado on-line, lho (10-12). princípios de universalidade, equidade e com termo de consentimento livre

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Nunes et al. • Papel da gerência das unidades básicas na APS Artigo original e esclarecido tanto para os secretários TABELA 1. Características dos gerentes de 157 unidades básicas de saúde em 41 a municipais como para os gerentes locais. municípios do centro-oeste paulista, Brasil, 2014 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Característica No. % Medicina de Botucatu – UNESP (parecer Sexo 1.314.674). Feminino 141 89,8 Masculino 16 10,2 RESULTADOS Profissional que exerce a gerência da Unidade Enfermeiro 124 79,0 Características gerais dos serviços Outro 17 10,8 Secretário municipal de saúde 8 5,1 Das 157 unidades participantes, 136 Assistente social 6 3,9 (86,6%) eram diretamente vinculadas à Médico 1 0,6 gestão municipal e 17 (10,8%) presta- Unidade não possui gerente 1 0,6 vam serviços por meio de contratos de Formação dos gerentes que responderam “Outro” gestão com Organizações Sociais/Fun- Técnico de enfermagem 6 35,2 dações. Os seguintes arranjos organiza- Auxiliar de enfermagem 4 23,5 cionais foram observados: 67 (42,7%) Nutricionista 2 11,8 unidades de saúde da família (USF), Administrador 1 5,9 58 (36,9%) UBS “tradicionais” (equipes Advogado 1 5,9 compostas por médicos de diferentes Farmacêutico 1 5,9 ­especialidades, sem agentes comunitá- Contadora 1 5,9 rios), 29 (18,5%) UBS “tradicionais” com Auxiliar de consultório dentário 1 5,9 programa de agentes comunitários de Tempo de atuação na saúde (anos) saúde ou com a presença de equipes de saúde da família e três (1,9%) UBS <1 7 4,4 “tradicionais” ou USF integrada a 1 a 3 33 21,0 pronto-atendimento. 4 a 7 47 30,0 O período de funcionamento das uni- 8 a 15 47 30,0 dades era: em 114 (72,6%), todas as ma­ >15 23 14,6 nhãs e tardes; em 12 (7,6%), todas as Tempo de atuação na unidade atual (anos) manhãs, tardes e noites; e 31 unidades <1 55 35,0 (19,4%) funcionavam em apenas um dos 1 a 3 54 34,4 períodos. Quanto à localização geográfi- 4 a 7 26 16,6 ca, 95 (60,5%) estavam localizadas em 8 a 15 19 12,1 região urbana periférica, 49 (31,2%) >15 anos 3 1,9 em região urbana central e 13 (8,3%) em Vínculo empregatício zona rural. Empregado público Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) 58 36,9 Servidor público estatutário 40 25,5 Perfil dos gerentes ou responsáveis Contrato CLT 36 22,9 pela coordenação das unidades Cargo comissionado 19 12,1 Contrato temporário pela administração pública regido por legislação especial 2 1,3 No momento de aplicação do questio- Contrato temporário por prestação de serviço 2 1,3 nário, oito (5,0%) unidades não possuí- Carga horária semanal da gerência am gerente e oito (5,0%) eram gerenciadas 40 horas 140 89,2 por secretários municipais de saúde. O 30 horas 13 8,3 perfil dos gerentes locais está descrito na 20 horas 1 0,6 tabela 1. Como mostra a tabela, quase Outra 3 1,9 80% dos gerentes eram enfermeiros e de- a Resultados obtidos pela aplicação do instrumento QualiAB (www.abasica.fmb.unesp.br). sempenhavam múltiplas ações, confor- me descrito na tab­ ela 2. De fato, nenhum dos enfermeiros que desenvolvia ativi- reuniões agendadas de acordo com o Infraestrutura e insumos básicos dade de gerência declarou dedicação ex- surgimento de problemas (68 unidades, clusiva a esse cargo. 43,3%) ou por meio de reuniões perió- Quanto a estrutura física e equipamen- dicas ou visitas para supervisão técnica tos, 107 unidades (68,2%) relataram bom Interface entre a gestão municipal programada (63 unidades, 40,1%). Oito estado de conservação, 106 (67,5%) rela- e o gerenciamento local unidades (4,9%) não possuíam meca- taram uma estrutura com ventilação e nismos formais de articulação com o iluminação adequada, 149 (94,9%) infor- O relacionamento entre a gerência nível municipal. Dessas, duas eram ge- maram possuir banheiros para usuários, das unidades e a gestão municipal se renciadas pelo secretário municipal de 149 (94,9%) tinham sala de espera, 115 dava principalmente por meio de saúde. (73,2%) tinham número suficiente de

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 5 Artigo original Nunes et al. • Papel da gerência das unidades básicas na APS

TABELA 2. Atividades realizadas pelo enfermeiro que atuava como gerente em 124 Entre os serviços que ofereciam vaci- a unidades básicas de saúde em 40 municípios do centro-oeste paulista, Brasil, 2014 nação, a BCG era aplicada em 105 (66,9%) e a pneumocócica 23 valente era aplicada Atividades No. % em 91 (58,0%). A vacinação não era reali- Recepção, avaliação e orientação de casos “extra” (demanda espontânea) 98 79,0 zada em 25 serviços (22,3%). Registro de seus atendimentos em prontuário 97 78,2 Os exames realizados nas unidades Orientações para gestantes, hipertensos/diabéticos, entre outros 95 76,6 eram: hemoglicoteste (HGT) em 154 Orientação para uso correto de medicamentos 95 76,6 (98,1%), teste de gravidez na urina em Consulta de enfermagem de casos “extra” 94 75,8 131 (83,4%), teste rápido para HIV em 74 Supervisão do acolhimento realizado pelo auxiliar/técnico de enfermagem 92 74,2 (47,1%), teste rápido para sífilis em Gerenciamento da unidade 90 72,6 72 (45,9%), testes de hepatite B em 35 Visita domiciliar 88 71,0 (22,3%), hepatite C em 37 (23,6%), eletro- Notificação epidemiológica 87 70,2 cardiograma (ECG) em oito (51,0%) e co- Participação em reuniões de equipe multiprofissional 87 70,2 leta de exames clínicos laboratoriais em Aconselhamento em infecções sexualmente transmissíveis/Aids 86 69,4 102 (65,0%) serviços. Supervisão da equipe de enfermagem/agentes comunitários de saúde 85 68,5 Consulta de seguimento programático 84 67,7 Acesso e composição da rede Coleta de citologia oncótica 81 65,3 de atenção Coordenação das reuniões de equipe multiprofissional 74 59,7 O tempo médio de espera entre o en- Atividades de educação permanente da equipe 74 59,7 caminhamento e a consulta para espe- Grupos educativos/assistenciais 73 58,9 cialidades nos serviços de referência era Atendimento de urgência/emergência 72 58,1 de 1 a 3 meses, com maior espera nas Avaliação dos faltosos em consulta 66 53,2 seguintes especialidades: oftalmologia, Prescrição de medicamentos para condições com protocolo pré-estabelecido 37 29,8 otorrinolaringologia, ortopedia, gastren- Participação no Conselho de Unidade de Saúde 29 23,4 terologia, cardiologia, neurologia, psi- Outros 2 1,6 quiatria e fisioterapia. A tabela 3 mostra a a Resultados obtidos pela aplicação do instrumento QualiAB (www.abasica.fmb.unesp.br). rede de apoio municipal ou regional para os serviços de APS. TABELA 3. Rede de apoio técnico e social para 157 UBS em 41 municípios do centro- oeste paulista, Brasil, 2014a Investimentos em formação continuada - matriciamento e Serviços de apoio municipais ou regionais No. % oportunidades de formação Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) 136 92,5 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) 101 68,7 O matriciamento, ou seja, supervisão Ambulatórios de especialidades 75 51,0 técnica como forma de educação perma- Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) 75 51,0 nente, era feito em 26 (16,6%) unidades Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) 69 46,9 pelo Núcleo de Apoio à Saúde da Família Ambulatório Médico de Especialidades 62 42,2 (NASF) e em 49 unidades (31,2%) por Serviços de atenção à mulher 55 37,4 equipe multiprofissional externa à uni- Serviços de atenção ao idoso 43 29,3 dade; 60 (38,2%) unidades não contavam Equipes multiprofissionais 40 27,2 com nenhum tipo de matriciamento. O Serviços de atenção à criança 37 25,2 profissional que mais participou das es- tratégias de capacitação e formação con- Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) 35 23,8 tinuada foi o enfermeiro, em 147 Ações comunitárias ligadas a igrejas 24 16,3 unidades (93,6%), seguido pelo médico Organizações não governamentais 22 15,0 em 110 (70,1%), pelo auxiliar/técnico de Outros 11 7,5 Não tem acesso a serviços de apoio 3 2,0 enfermagem em 97 (61,8%) e pelo pesso- al administrativo em 50 unidades a Resultados obtidos pela aplicação do instrumento QualiAB (www.abasica.fmb.unesp.br). (31,8%). As temáticas mais abordadas nas formações foram: infecções sexual- cadeiras, 110 (70,1%) tinham banheiro no referiram falta eventual dos medicamen- mente transmissíveis (IST) e Aids, em 113 consultório ginecológico, 106 (67,5%) ti­ tos para hipertensão e diabetes, sendo (72,0%), Saúde da Mulher em 99 (63,1%) nham consultórios em número suficiente, que 27 (16,6%) não dispensavam esses e acolhimento e atenção à demanda es- 141 (89,8%) tinham mesa para exame gi- medicamentos; e 96 (61,1%) possuíam to- pontânea em 85 (54,1%)). necológico, 123 (78,3%) tinham geladeira dos os medicamentos legalmente previs- exclusiva para vacinas, 67 (42,7%) ti­ tos. Além disso, 151 (96,2%) unidades Gerenciamento local e coordenação nham carrinho de emergência e 50 (31,8%) distribuíam preservativo masculino, 127 do trabalho tinham desfibrilador. (80,9%) distribuíam anticoncepcional Do total de serviços, 38 (24,2%) não oral e duas (1,3%) não dispensavam mé- Quanto à periodicidade das reuniões de dispensavam medicamentos; 20 (12,7%) todos contraceptivos. equipe no ano anterior ao preenchimento

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Nunes et al. • Papel da gerência das unidades básicas na APS Artigo original do questionário, 60 unidades (38,2%) TABELA 4. Principais obstáculos para a melhoria da qualidade da atenção à saúde referiram ter sido semanal e 39 (24,8%) referidos por 157 UBS localizadas em 41 municípios do centro-oeste paulista, Brasil, a mensal. Informaram ausência de perio- 2014 dicidade ou de reuniões 23 unidades (14,6%). As principais pautas das reuni- Obstáculos No. % ões de equipe no último ano haviam sido: Falta de contrarreferência dos serviços especializados 78 53,8 em 141, rotinas da unidade (89,8%), em Falta de recursos humanos 72 49,7 135 (86,0%), organização do trabalho, in- Excesso de demanda 70 48,3 formes em 128 (81,5%), planejamento de Inadequação do espaço físico 68 46,9 ações em 127 (80,9%), atualizações técni- Inadequação da postura dos usuários 67 46,2 cas em 103 (65,6%) e discussão de casos Má remuneração dos profissionais 65 44,8 em 95 (60,5%). Falta de política de pessoal por parte da Secretaria/Prefeitura 55 37,9 Os principais obstáculos citados para Falta de retaguarda de serviços especializados para referência 50 34,5 um bom desempenho das UBS, dificul- Falta de mobilização da comunidade 44 30,3 tando a coordenação do trabalho, estão Necessidade de informatizar o registro de dados 43 29,7 listados na tabela 4. Falta de articulação/interação com serviços de urgência/emergência 32 22,1 Oscilação nas diretrizes políticas locais, devido a troca de prefeito/secretário 30 20,7 Planejamento e avaliação Não cumprimento do horário médico 29 20,0 Falta de capacitação da equipe técnica de enfermagem e/ou de saúde bucal 27 18,6 Falta de compromisso dos profissionais médicos 21 14,5 A definição da área de abrangência Falta de realização do trabalho em equipe 20 13,8 das unidades era feita de modo centrali- Falta de capacitação adequada da equipe de nível universitário 16 11,0 zado pela Secretaria Municipal de Saúde Falta de medicamentos 14 9,7 (SMS) e com base em critérios adminis- Falta de compromisso da equipe técnica de enfermagem e/ou de saúde bucal 12 8,3 trativos em 76 unidades (48,4%); por Falta de compromisso dos profissionais de nível universitário 8 5,5 processo participativo, levando em con- Outros 5 3,4 ta a realidade local e facilidade de acesso Não existem obstáculos importantes a serem vencidos 13 8,3 em 47 (29,9%). Não possuíam definição a Resultados obtidos pela aplicação do instrumento QualiAB (www.abasica.fmb.unesp.br). de área de abrangência 22 unidades (14,0%). Os sistemas de informação utili- zados e os dados com alguma forma de TABELA 5. Sistemas de informação e dados registrados rotineiramente em 157 UBS registro de rotina podem ser observados em 41 municípios do centro-oeste paulista, Brasil, 2014a na tabela 5. Nos 3 anos anteriores ao preenchimen- Sistemas de informação No. % to do questionário, 111 (70,7%) serviços Sistema Informatizado do Pré-Natal (SIS Pré-Natal) 103 70,1 haviam realizado estudos sobre a reali- Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN) 96 65,3 dade local por meio de dados dos pro- Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) 82 55,8 gramas (pré-natal, atenção à criança, Sistema de informação próprio do município 71 48,6 atenção a hipertensos e diabéticos). Em Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (e-SUS/SISAB) 67 45,6 33 unidades (21,0%), nenhum tipo de le- Sistema Informatizado de Cadastro e Acompanhamento de Hipertensos e Diabéticos 48 32,7 vantamento havia sido realizado. (SIS HIPERDIA) A participação em um ou mais proces- Outros sistemas de informação 31 21,1 sos avaliativos foi referida por 130 Gerenciamento de Informações Locais 5 3,4 (82,8%) serviços, sendo: 76 (48,4%) no Não alimenta nenhum sistema de informação 8 5,4 Programa Nacional de Melhoria do Dados com registro de rotina Acesso e da Qualidade da Atenção Bási- Número de procedimentos 146 99,3 ca (PMAQ), 62 unidades (39,5%) com Consultas médicas 141 95,9 avaliações organizadas pela SMS, 45 uni- Consultas de enfermagem 136 92,5 dades (28,7%) com avaliações pelo siste- Número de pacientes atendidos 133 90,5 ma QualiAB, 31 (19,7%) com avaliações Número de coletas de Papanicolaou 127 87,8 organizadas pela própria unidade e sete Número de atendimentos “extra” (casos de demanda espontânea) 121 82,3 (4,3%) com outras avaliações. Número de visitas domiciliares 121 82,3 Os principais desdobramentos indu- Consultas odontológicas 120 81,6 zidos por processos de avaliação foram: Consultas por faixa etária 113 76,9 planejamento e reprogramação das ativi- Número de vacinas realizadas 110 74,8 dades com participação da equipe mul- Número de grupos realizados 90 61,2 tiprofissional em 40 unidades (25,5%) e Consultas por equipe multiprofissional 59 40,1 definição de um plano anual de ativi- Faltas em atendimentos agendados 59 40,1 dades das unidades em 38 (24,2%). Não Primeiro atendimento no ano (por paciente) 37 25,2 tiveram acesso aos resultados das ava- Outros 10 6,8 liações 29 unidades (17,8%). Quanto às Não existe registro de dados 1 0,7 modificações induzidas pelas avaliações, a Resultados obtidos pela aplicação do instrumento QualiAB (www.abasica.fmb.unesp.br).

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 7 Artigo original Nunes et al. • Papel da gerência das unidades básicas na APS

82 unidades (52,2%) referiram a realiza- Quanto a medidas de apoio à vigilân- multiplicidade de tarefas assumidas ção de mudanças no gerenciamento e or- cia em saúde, a avaliação dos resultados pelo gerente enfermeiro compromete ganização da assistência e 21 (13,4%) não dos exames era feita em 89 unidades a efetividade do trabalho de gestão realizaram modificações. (56,7%) quando os exames chegavam no (9, 11, 33). Dos serviços pesquisados, 72 (45,9%) serviço; em 45 unidades (28,7%) quando A formação para gerenciamento da não possuíam conselho local de saúde o paciente comparecia para atendimen- APS foi secundarizada nas últimas dé- da unidade. Nas unidades com con­ to; em 18 unidades (11,5%) quando os cadas. As deficiências mais apontadas, selho local, os principais temas aborda- resultados chegavam na unidade, mas não só no Brasil como na América Lati- dos nas reuniões no último ano foram: apenas para os exames considerados na e Central, recolocam a necessidade em 61 (71,8%), problemas relativos ao prioritários (mamografia, exames do de ampliar a formação dos gerentes em atendimento; em 44 (51,8%) planeja- pré-natal, exames de urgência, entre ou- temáticas relativas aos campos da admi- mento de atividades educativas na co- tros); e em cinco unidades (3,2%) no dia nistração, epidemiologia e metodologia munidade e diagnóstico e priorização agendado para a consulta, mesmo que o operacional (19, 34). dos problemas do território; em 27 paciente faltasse. Em relação às dificuldades para o ge- (31,8%), conferência municipal de saú- A convocação de faltosos, em apoio à renciamento local, os obstáculos aponta- de. Em seis unidades (7,0%) não houve vigilância em saúde, era feita para: ges- dos concentram-se em itens “externos” à reunião no último ano. tantes em 122 (77,7%) unidades; vacina- governabilidade da própria unidade, tais As reclamações dos usuários podiam ção em 119 (75,8%); resultados de exames como falta de recursos humanos, espaço ser feitas: diretamente para a gerência alterados em 116 (73,9%); tuberculose ou físico e “inadequação” na postura dos em 122 (77,7%) unidades; por caixa ou hanseníase em 111 (70,7%); recém-nasci- usuários em seguir as normas e limites livro de sugestão/reclamações em 86 do de risco em 97 (61,8%); recém-nascido de serviços que dificultem o acesso. (54,8%); por sistema de ouvidoria da em 87 (55,4%); e revisão pós-parto/puer- Questões mais internas à organização do SMS em 85 (54,1%); diretamente com pério e adulto crônico (hipertensão arte- trabalho foram referidas com menor fre- o nível central em 50 (31,8%); e no Conse- rial e diabetes) com risco de complicação quência, como a dificuldade em realizar lho Municipal de Saúde em 43 (27,4%). em 82 unidades (52,2%). A convocação trabalho em equipe ou a falta de capaci- Somente três (1,9%) unidades referiram de faltosos não era realizada em nove tação ou compromisso de diferentes pro- não possuir canais de reclamação. (5,7%) unidades. fissionais (9). Para tratar dos obstáculos à gestão, é Organização do fluxo assistencial DISCUSSÃO essencial a integração entre gerência e gestão municipal, que não pode ficar O gerenciamento do fluxo assistencial Diversas proposições de Alma-Ata – restrita aos momentos em que surgem priorizou questões relacionadas à orga- por exemplo, questões relativas a des- problemas. Deve basear-se no conheci- nização de estratégias de agendamento, centralização da gestão, planejamento, mento e compromisso dos sujeitos en- de atendimento à demanda espontânea e avaliação, financiamento e uso de tec- volvidos com a efetivação de ações de medidas que viabilizam ações de vigilân- nologias – mantêm-se como desafios APS coerentes com as diretrizes de inte- cia em saúde. para muitos sistemas nacionais de saú- gralidade, universalidade e equidade. O agendamento de consulta nos servi- de (28). Em termos operacionais, a De- A manutenção da estrutura e insumos ços era feito: com hora marcada para claração apontava a necessidade de necessários, aliada à relativa autonomia cada paciente em 60 unidades (38,2%); definir a quem caberia a responsabilida- da gerência na coordenação do trabalho para todos os pacientes no início do tur- de de coordenar o trabalho e resolver da equipe, devem ser expressão de no em 57 unidades (36,6%); e para grupo problemas administrativos, técnicos e um projeto que promova a saúde como de pacientes por hora em 31 unidades sociais relacionados às ações desenvol- direito, como proposto pelo SUS (3, 5, (19,7%). Em nove unidades (5,7%) as vidas em cada serviço, assinalando a 9, 31). O gerenciamento das unidades consultas não eram agendadas, só aten- importância da preparação de adminis- ­precisa atender as especificidades de diam demanda espontânea. tradores e planejadores em todos os ní- cada região sem abdicar desse projeto Não realizavam atendimento da de- veis do sistema (1). e sem que haja omissão do papel de co- manda espontânea quatro (2,5%) ­serviços. No presente artigo, observamos que a ordenar o planejamento e a organiza- Nas 153 unidades que realizavam esse maioria dos gerentes nas UBS tinha ção do processo de trabalho (8, 9). As atendimento, o fluxo era organizado por ­formação em enfermagem. A predomi- ­situações observadas de gerência exer- triagem médica ou de enfermagem se- nância de gerentes com formação em en- cida diretamente pelo secretário muni- gundo critérios de gravidade e/ou evolu- fermagem e do sexo feminino também cipal de saúde mostram-se inadequadas, ção aguda em 72 (47,1%); em 45 (29,4%) a foi relatada em outros estudos (8, 17-20, já que esse é um cargo de indicação po- própria recepção orientava o fluxo e en- 29-31). Embora a enfermagem seja uma lítica, sem exigência de formação na caminhava ou não para atendimento; em das poucas carreiras na área de saúde área e que requer atuação macroinstitu- 32 unidades (20,9%) o encaminhamento que contempla conteúdos de adminis- cional (8, 31). era feito por auxiliar ou técnico de enfer- tração, diferentes estudos (30, 32) apon- Somente 29,9% dos serviços definiram magem, com supervisão, segundo crité- tam que esses conteúdos não são a área de abrangência por meio de plane- rios de risco e/ou vulnerabilidade; e era suficientes para preparar os profissio- jamento participativo. O processo de ter- feito por médico ou enfermeiro de acordo nais para a complexidade de gerenciar ritorialização (3), com a participação dos com protocolo de estratificação de risco serviços de APS. Somada à falta de for- profissionais e da comunidade, permite em três unidades (2,0%). mação específica para essa função, a conhecer a realidade da área onde a

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Nunes et al. • Papel da gerência das unidades básicas na APS Artigo original unidade está inserida e planejar ações demanda seja uma medida de cuidado capacidade de dar respostas às necessi- que atendam às necessidades de saúde integral e não uma simplificação da as- dades de saúde. Cabe à gerência local, da população, ampliando a capacidade sistência. A predominância do pronto com apoio técnico e político da gestão de resposta do serviço. Na organização atendimento tende a reproduzir uma municipal, o papel de articular recursos e do fluxo, destaca-se o elevado número de atenção pontual e dirigida à queixa, necessidades, em conjunto com a equipe serviços que mantinham o agendamento substituindo medidas de seguimento e com a participação dos usuários, para de todos os usuários no início de cada longitudinal e comprometendo a inte- efetivação de um trabalho capaz de pro- período de atendimento, reproduzindo gralidade do cuidado. mover a saúde como direito e condição uma prática tradicional que amplia o Como limitações do presente estudo, de cidadania. tempo de espera de cada usuário e prevê devem-se reconhecer os limites da parti- uma elevada proporção de faltas para cipação por adesão voluntária e dos ins- Agradecimentos. Este trabalho é parte encaixe da demanda espontânea, que trumentos de autorresposta, em função do Projeto “Atenção Básica: atualização e tende a ser priorizada. da variação do rigor e compromisso dos validação do instrumento QualiAB para O acesso ao atendimento pela deman- participantes, além da impossibilidade nível nacional”, financiado pelo CNPq da espontânea deve ser garantido sem de generalização dos achados. Entretan- (Processo Nº 485848/2012-0) e um pro- substituir, nem colocar em segundo pla- to, o presente estudo recoloca em ques- duto do mestrado de LON. no, o seguimento periódico dos que vi- tão a importância da gestão do trabalho vem, por exemplo, com condições para efetivação de uma APS que siga as Conflitos de interesse. Nada declara- crônicas, ou estão em determinadas fa- bases lançadas na Declaração de Alma- do pelos autores. ses do ciclo de vida, como crianças e ido- Ata e reafirmadas internacionalmente e sos (17). As UBS são a principal porta no Brasil. Declaração. As opiniões expressas no de entrada do SUS e cabe a elas acolher, No contexto atual, faz-se necessário manuscrito são de responsabilidade ex- ­fortalecer o vínculo e possibilitar um (re)investir na formação de gestores clusiva dos autores e não refletem neces- cuidado com longitudinalidade (2). A como estratégia para o desenvolvimento sariamente a opinião ou política da pergunta que se faz é como conseguir de processos de trabalho coerentes com RPSP/PAJPH ou da Organização Pan-­ que a garantia de atendimento à livre os princípios de uma APS integral e com Americana da Saúde (OPAS).

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 9 Artigo original Nunes et al. • Papel da gerência das unidades básicas na APS

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ABSTRACT Objective. To describe the characteristics of the management process in primary health care units as well as the profile of managers, and to discuss the implications of Importance of local these elements in implementing the principles of Brazil's Unified Health System principles in Brazil in accordance with the principles of the Alma-Ata Declaration. management for delivery Method. This descriptive, cross-sectional study used data collected with the Primary of primary health care Care Service Quality Assessment tool (QualiAB), a self-administered, web-based ins- according to Alma-Ata trument. QualiAB was voluntarily answered by 157 unit managers from 41 municipa- lities in the state of São Paulo from October to December 2014. principles Results. Of 157 units, 67 (42.7%) were family health care units and 58 (36.9%) were “traditional” units; 95 (60.5%) were located in urban peripheries. At the time of the study, eight units (5.0%) did not have a manager and eight (5.0%) were managed by the city health secretary. Almost 80% of the managers were nurses and performed multiple tasks in addition to management. Multidisciplinary support (technical super- vision as a means of continuing education) was available in 75 units (47.7%); 60 (38.2%) did not have any kind of multidisciplinary support. Participation in evaluative processes was mentioned in 130 units (82.8%). The main results of evaluations were planning and reprogramming of activities with the engagement of the multiprofessio- nal team in 40 units (25.5%) and definition of an annual activity plan in 38 (24.2%). Twenty-nine units (17.8%) did not have access to the results of evaluations. Conclusion. The study supports the importance of work process management and the need to (re)invest in training and upgrading of local management skills as a strategy to produce primary health care that is capable of promoting health as a right and a necessary condition of citizenship.

Keywords Health management; health services administration; primary health care; Brazil.

10 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Nunes et al. • Papel da gerência das unidades básicas na APS Artigo original

RESUMEN Objetivo. Describir las características de la gestión de las unidades de atención pri- maria de salud y el perfil de los gerentes, y analizar las implicaciones de esos elemen- Importancia de la gestión tos en la puesta en práctica de los principios del Sistema Único de Salud de Brasil de forma coherente con las propuestas de Alma- Ata. local para una atención Métodos. Estudio descriptivo, transversal, con datos recolectados a través del cues- primaria de salud según las tionario de Evaluación de la Calidad de Servicios de Atención Básica (QualiAB), un propuestas de Alma-Ata instrumento autoadministrado a través de Internet. En total 157 gerentes de Unidades Básicas de Salud de 41 municipios del estado de São Paulo respondieron voluntaria- mente el QualiAB entre octubre y diciembre de 2014. Resultados. De las 157 unidades, 67 (42,7%) eran unidades salud de la familia y 58 (36,9%) eran unidades básicas de salud de organización “tradicional”; 95 (60,5%) estan ubicadas en una región urbana periférica. En el momento del estudio, ocho (5,0%) unidades no poseían gerente y ocho (5,0%) eran gestionadas por secretarios municipa- les de salud. Casi el 80% de los gerentes eran enfermeros y desempeñaban múltiples funciones además de la gerencia. En 75 (47,7%) unidades se disponía de apoyo multi- disciplinario (supervisión técnica como forma de educación permanente); 60 (38,2%) unidades no contaban con ningún tipo de apoyo multidisciplinario. La participación en procesos de evaluación fue referida por 130 (82,8%) servicios. Las principales modi- ficaciones inducidas por las evaluaciones fueron la planificación y reprogramación de las actividades con participación del equipo multiprofesional en 40 unidades (25,5%) y la definición de un plan anual de actividades en 38 (24,2%). No tuvieron acceso a los resultados de las evaluaciones 29 unidades (17,8%). Conclusión. El estudio subraya la importancia de la gestión del trabajo y la necesi- dad de reinvertir en la formación y valorización de la gestión local como estrategia para hacer efectiva una atención primaria de salud capaz de promover la salud como derecho y condición de ciudadanía.

Palabras clave Gestión en salud; administración de los servicios de salud; atención primaria de salud; Brasil.

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Pan American Journal Artigo original of Public Health

Utilização do Programa Telessaúde no Maranhão como ferramenta para apoiar a Educação Permanente em Saúde

Ariane Cristina Ferreira Bernardes,1 Liberata Campos Coimbra1 e Humberto Oliveira Serra2

Como citar Bernardes ACF, Coimbra LC, Serra HO. Utilização do Programa Telessaúde no Maranhão como ferramenta para apoiar a Educação Permanente em Saúde. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e134. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.134

RESUMO Objetivo. Avaliar a utilização dos serviços ofertados pelo Núcleo Estadual de Telessaúde do Maranhão como ferramenta para apoiar a Educação Permanente em Saúde (EPS) para os profissionais de saúde da atenção básica. Métodos. Esta pesquisa descritiva com abordagem quantitativa utilizou dados da Plataforma Nacional de Telessaúde referentes aos anos de 2015 e 2016. Para avaliar a utilização das teleconsul- torias nos municípios e unidades de saúde maranhenses, foram calculadas a taxa de utilização mensal do sistema e a média mensal de solicitações por município e unidade básica de saúde. As teleconsultorias foram descritas quanto ao profissional solicitante, assuntos mais solicitados, satisfação e resolutividade das respostas. As atividades de teleducação foram classificadas pelo número de pontos e participantes conectados. Resultados. No período de janeiro de 2015 a dezembro de 2016 foram realizadas 13 976 tele- consultorias oriundas de 47 municípios, a maioria de pequeno porte (até 40 mil habitantes) e com baixo índice de desenvolvimento humano municipal (de 0,512 a 0,768). A média de utilização geral das teleconsultorias e a taxa de utilização mensal por município e unidade de saúde foram superiores às encontradas na literatura. Os enfermeiros e os agentes comunitários de saúde foram os profissionais mais ativos. Dos profissionais que fizeram a avaliação do serviço (opcional), mais de 80% informaram ter suas dúvidas atendidas. Conclusões. Os indicadores de utilização do Núcleo de Telessaúde do Maranhão são mais posi- tivos do que os de outros serviços de telessaúde no Brasil e em outros países. Isso demonstra que o serviço é sustentável, com potencial para apoiar a atenção básica e ser utilizado como ferramenta de EPS.

Palavras-chave Telemedicina; educação continuada; atenção primária à saúde; Brasil.

A telessaúde contempla o uso de tec- saúde. Contribui ainda para ampliar o O Programa Nacional Telessaúde Bra- nologias de informação­ para comuni- acesso a serviços de saúde qualifica- sil Redes foi criado em 2007 pelo Ministé- cação a distância entre profissionais de dos, superando barreiras temporais,­ so- rio da Saúde brasileiro para desenvolver ciais, culturais e geográficas e a falta de ações de apoio à atenção à saúde e de 1 Universidade Federal do Maranhão, Departamento profissionais e recursos (1, 2). Apesar Educação Permanente em Saúde (EPS) de Saúde Pública, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, São Luís (MA), Brasil. disso, tanto no Brasil quanto em outros para equipes de atenção básica. As ações Correspondência: Ariane Cristina Ferreira países, estudos mostram que a utili- do Programa são realizadas por Núcleos Bernardes, [email protected] 2 Universidade Federal do Maranhão, Departamento zação dos serviços de telessaúde ainda é de Telessaúde que planejam, executam, de Medicina II, São Luís (MA), Brasil. baixa (3, 4). monitoram e avaliam o desempenho de

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 13 Artigo original Bernardes et al. • Telessaúde para apoiar a educação permanente atividades técnicas, científicas e adminis- profissionais de saúde, pautada no mo- sempre iniciada pelo profissional de saú- trativas, em especial a produção e a ofer- delo biomédico e na fragmentação do de, motivado por suas necessidades coti- ta de teleconsultoria, telediagnóstico e saber, foge à lógica das necessidades dos dianas. Para a teleconsultoria, qualquer teleducação (5). As atividades de EPS serviços de saúde, principalmente quan- profissional de saúde da atenção básica, desenvolvidas pelo Programa visam à do inseridos nas equipes de Estratégia de vinculado e cadastrado em um Núcleo de educação para o trabalho na perspectiva Atenção Básica. A EPS, enquanto política Telessaúde, envia uma mensagem off-line da melhoria da qualidade do atendi- do SUS voltada para a gestão e a for- pela Plataforma Nacional de Telessaúde. mento, da ampliação do escopo de ações mação dos trabalhadores de saúde, pode A mensagem é recebida e mediada por ­ofertadas pelas equipes de atenção bási- proporcionar mudanças positivas nos in- um telerregulador, que define qual é o ca, da mudança das práticas de atenção, dicadores de saúde dos municípios, na melhor teleconsultor para responder ao da organização dos processos de traba­ medida que promove ações e serviços caso (5). Um exemplo de solicitação é o lho e do fortalecimento da atenção ­básica, voltados às necessidades de saúde da po- seguinte: o profissional de saúde atende que deve ser a ordenadora dos serviços pulação (11, 12). uma gestante que convive com um com- no Sistema Único de Saúde (SUS) no No Maranhão, o Núcleo Estadual de panheiro que foi diagnosticado com tu- ­Brasil (6–8). Telessaúde do Hospital Universitário berculose. O profissional de saúde quer Na oferta da teleducação, merecem da Universidade Federal do Maranhão saber se essa gestante pode realizar o exa- destaque as webpalestras, que abordam (HUUFMA), que está em funcionamento me de prova tuberculínica (PPD) para in- temas baseados nas demandas dos pro- desde o final de 2014, oferece teleconsul- vestigação da infecção latente pelo M. fissionais de saúde e nas estratégias do toria e teleducação para 47 municípios tuberculosis e realiza o pedido de telecon- Ministério da Saúde. São ministradas no estado. Assim, o objetivo do presente sultoria sobre manejo da situação. por especialistas da área temática, trans- estudo foi avaliar os indicadores de utili- O telerregulador é um profissional mitidas por web conferência utilizando zação dos serviços ofertados pelo Núcleo de nível superior e com experiência na o software­ Mconf, e são de livre acesso, Estadual de Telessaúde do Maranhão, atenção básica que analisa e classifica as podendo ter participação de acadêmicos a partir das diretrizes para a oferta de solicitações feitas pelos profissionais de da área da saúde e de profissionais que ­teleconsultorias e teleducação como fer­ saúde. O telerregulador faz ainda a audi- não são vinculados ao Núcleo de Teles- ramenta para apoiar a EPS para os pro- toria interna das respostas para garantir saúde. Cada webpalestra é gravada, fissionais de saúde da atenção básica. a qualidade das informações transmiti- editada e transformada em um objeto das. Já o teleconsultor é um profissional de aprendizagem, que se caracteriza por MATERIAIS E MÉTODOS da área da saúde, também de nível supe- ser um documento audiovisual disponi- rior, que responde as dúvidas dos solici- bilizado para livre acesso nas platafor- Trata-se de uma pesquisa descritiva tantes com base em evidências científicas mas Acervo de Recursos Educacionais com abordagem quantitativa que utilizou adequadas às características loco-regio- em Saúde (ARES, https://ares.unasus. dados secundários da Plataforma Nacio- nais e com caráter educacional (7). gov.br/acervo/) e YouTube. nal de Telessaúde do Brasil e informação Para avaliar a utilização das telecon- Como mostra uma pesquisa realizada sobre os monitoramentos realizados por sultorias, foram calculadas as taxas de no Brasil (9), até 2015 a oferta de serviços meio do Sistema de Gerenciamento de utilização mensal do sistema. Define-se a de telessaúde era realizada por 42 Nú- Atividades de Tele-Educação e Sistema de taxa de utilização mensal como a razão cleos em 1 917 municípios de 14 estados Monitoramento das Teleconsultorias do entre o número de municípios ativos no das cinco regiões do país. Entre esses es- Núcleo Telessaúde no Maranhão (http:// período (ativos = que realizaram ao me- tados encontra-se o Maranhão, localiza- telessaude.huufma.br/portal/). Os dados nos uma solicitação no mês) e o número do na região Nordeste, com área de se referem aos anos de 2015 e 2016. total de municípios com o sistema imple- 331 983 km² e com 7 000 229 habitantes A Plataforma Nacional de Telessaúde mentado. O mesmo indicador foi calcu- distribuídos em 217 municípios (10). Em do Brasil foi produzida por parceria lado levando em consideração a razão 2014, todos os municípios maranhenses ­entre o Ministério da Saúde e a Universi- entre o número de unidades básicas de ofertavam serviços de atenção básica; dade Federal do Rio Grande do Sul saúde (UBS) ativas no período e o núme- 67,7% da população recebiam acompa­ (UFRGS), sendo utilizável por qualquer ro total de UBS cadastradas no Núcleo de nhamento familiar pelas equipes das Es- Núcleo de Telessaúde do país. Possui Telessaúde Maranhão. tratégias de Atenção Básica, incluindo uma entrada de dados simplificada, que Foram calculadas, também, a média 2 014 equipes cadastradas da Estratégia facilita o acesso aos serviços, aliada a mensal de solicitações por município Saúde da Família (ESF) e 1 258 equipes uma saída de dados complexa, composta com sistema implementado e ativo, con- de saúde bucal. Nesse mesmo ano, havia por tabelas planas de estrutura e proces- siderando como numerador o total men- 15 766 agentes comunitários de saúde so, que acumulam variáveis de solici- sal de solicitações respondidas e como (ACS) em atividade. Entretanto, persis- tação, telerregulação, resposta e avaliação denominador o total de municípios com tem no estado problemas de saneamento das teleconsultorias (9). o sistema implementado e ativos, sepa- básico e indicadores epidemiológicos A teleconsultoria pode ser definida radamente. O mesmo indicador foi cal- de baixa qualidade, a exemplo do coefi- como um contato feito por um profissio- culado levando em consideração as UBS ciente de mortalidade infantil e da razão nal de saúde com um teleconsultor para cadastradas e as ativas. de mortalidade materna, que em 2014 discutir dúvidas sobre manejo, condutas As teleconsultorias realizadas no perío- eram de 24,8/1 000 nascidos vivos e de e procedimentos clínicos, ações de saúde do foram classificadas quanto ao profis- 79,4/100 000 nascidos vivos, respectiva- e questões relativas ao processo de traba­ sional solicitante, município de origem, mente (10). A formação acadêmica dos lho na atenção básica. A teleconsultoria é com respectiva população e índice de

14 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Bernardes et al. • Telessaúde para apoiar a educação permanente Artigo original desenvolvimento humano municipal No ano de 2015 foram realizadas 6 075 Sinais/sintomas dos dentes/gengivas (IDHM), classificação dos assuntos mais teleconsultorias oriundas de 261 UBS e (dados não apresentados em tabela). solicitados, satisfação dos profissionais e 313 equipes de saúde cadastradas; e no Como a avaliação dos serviços é opcio- resolutividade das respostas das telecon- ano de 2016, foram realizadas 7 901 tele- nal, cerca de 75% das solicitações foram sultorias. As informações sobre popu- consultorias oriundas de 270 UBS e 356 avaliadas. Nessas, mais de 80% dos solici- lação foram obtidas no Censo de 2010 equipes cadastradas, totalizando 13 976 tantes referiram ter suas dúvidas total- (13), e sobre o IDHM, no Atlas do Desen- teleconsultorias. A média da taxa de uti- mente atendidas. Quanto ao nível de volvimento Humano no Brasil (14). A lização das teleconsultorias, em todo o satisfação dos profissionais com as respos- ­resolutividade da resposta das telecon- período analisado, foi de 35,6% para os tas das teleconsultorias, em 2015 cerca de sultorias e a satisfação geral do profis- municípios e de 19,8% para as UBS. Em 58,8% se mostraram muito satisfeitos, se- sional com o sistema foram verificadas relação à utilização das teleconsultorias guidos de 37,9% satisfeitos. Em 2016, por meio de um questionário eletrônico por município, a média de utilização ge- 44,6% se mostraram muito satisfeitos e padronizado, que é utilizado opcional- ral por município com sistema imple- 52,8% satisfeitos. O nível de insatisfação mente pelos usuários que solicitam mentado e por município ativo foi de com as respostas das teleconsultorias com- teleconsultorias. 13 e 38 teleconsultorias/município/mês, preendendo as categorias muito insatisfei- Os assuntos mais questionados nas te- respectivamente. Já em relação à média to e insatisfeito foi de 2,3% em 2015 e 1,5% leconsultorias foram categorizados pela de utilização geral por UBS cadastradas e em 2016 (tabela 4). Classificação Internacional de Atenção ativas, a média foi de 2 e 10 teleconsulto- Foram desenvolvidas atividades de te- Primária, versão 2 (CIAP 2), que é consi- rias/unidade de saúde/mês, respectiva- leducação por meio de 151 webpalestras derada a mais adequada para ser utiliza- mente (tabela 1). (96 em 2015 e 55 em 2016), com a exe- da na atenção básica. Apresenta um Em 2015, havia 2 479 profissionais de cução de três projetos voltados para os sistema de codificação simples, em dois saúde cadastrados na Plataforma, sendo diversos temas das áreas de Atenção Bá- níveis: o primeiro define o sistema orgâ- 42% ACS, 14,3% médicos, 14% enfermei- sica, Saúde Mental e e-SUS. Essas ativi- nico, representado por 17 capítulos, e o ros, 9,7% técnicos de enfermagem e 4% dades tiveram 5 745 participantes em segundo define sete componentes, repre- cirurgiões dentistas. Os demais profissio- 1 921 pontos conectados no ano de 2015 e sentados por números que discriminam nais, que correspondiam a 16%, eram 4 596 participantes em 1 578 pontos co- queixas e sintomas, diagnósticos de tria- ­auxiliares de saúde bucal, assistentes so- nectados, em 2016 (tabela 5). gem e preventivos, medicações, trata- ciais e assistentes administrativos. Já em Em 2015, foram registradas 96 ativida- mentos e procedimentos terapêuticos, 2016, existiam 2 974 profissionais cadas- des de teleducação, com 4 248 partici- resultados de exames, componente ad- trados, permanecendo, praticamente, a pantes do Maranhão e participantes de ministrativo, acompanhamento e outros mesma predominância das categorias mais 21 estados brasileiros. Nesse perío- motivos de consulta e diagnósticos e profissionais cadastradas na Plataforma, do, o sistema de monitoramento ainda doenças (15). As atividades de teledu- havendo apenas um aumento no número não fornecia informações sobre a catego- cação foram classificadas pelo número de médicos cadastrados (tabela 2). ria profissional dos participantes. Já em de pontos (número de computadores li- Metade das solicitações de teleconsul- 2016 foram registradas 55 atividades de gados à atividade de teleducação no mo- torias, nos 2 anos do estudo, foram teleducação, com participantes de 24 es- mento em que a mesma ocorreu) e ­realizadas pelos ACS. No entanto, os en- tados brasileiros, sendo 3 364 do Maran- participantes conectados. fermeiros foram os profissionais que hão. A maioria dos participantes nas A análise estatística foi realizada mais utilizaram o serviço, com uma mé- webpalestras direcionadas para atenção usando o Stata, versão 11.0. Variáveis ca- dia de 4,4 solicitações no ano de 2015 e básica eram enfermeiros e estudantes da tegóricas foram expressas em números de 4,9 em 2016 (tabela 2). área da saúde. Na área de saúde mental, absolutos e porcentagem. Para análise Os temas das teleconsultorias distri- os participantes eram psicólogos, tera- dos dados, foi comparada a distribuição buem-se em todos os capítulos e compo- peutas ocupacionais e assistentes sociais. das frequências das variáveis seleciona- nentes da CIAP 2. Em relação aos No e-SUS, os participantes eram, em sua das nos anos do estudo. A pesquisa foi componentes da CIAP 2, a maioria das maioria, digitadores e enfermeiros (da- aprovada pelo Comitê de Ética em solicitações referiu-se ao componente de dos não apresentados em tabela). ­Pesquisa do Hospital Universitário da diagnósticos e doenças e ao componente Os temas da atenção básica com maior ­Universidade Federal do Maranhão de procedimentos diagnósticos e preven- participação no ano de 2015 foram direito (CAAE nº 72765317.0.0000.5086, parecer tivos (tabela 3). Os capítulos com maiores da mulher em saúde, transmissão vertical nº 2.315.668). solicitações foram A e D. Dentro do capí- de HIV, tuberculose, lesões elementares tulo A – Geral e inespecífico houve 1 370 da pele e Chikungunya. Em 2016, os te- RESULTADOS (23,2%) solicitações em 2015 e 2 367 mas com maior participação foram esti- (31,2%) solicitações em 2016 classificadas mulação precoce para crianças com Em 2015, o Núcleo de Telessaúde no sob o título Educação em saúde/aconse­ microcefalia, vírus da Zika e microcefalia, Maranhão ofertava serviços para 45 muni- lhamento/dieta. Houve um aumento de testagem rápida no diagnóstico das hepa- cípios maranhenses; em 2016, houve 4,8% em 2015 para 11,2% no ano de 2016 tites virais, assistência pré-natal e cam- ­expansão para 47 municípios. A maioria nas solicitações classificadas como Den- panha nacional de vacinação. Já na área são municípios de pequeno porte (32 gue e ouras doenças virais. Dentro do ca- de saúde mental, em 2015 os temas com ­municípios), com até 40 mil habitantes, e pítulo D – Digestivo, houve 102 (1,7%) maior participação foram redução de da- baixo IDHM, com variação de 0,512 a solicitações em 2015 e 117 (1,5%) solici- nos, matriciamento de saúde mental e 0,768 (­dados não apresentados em tabela). tações em 2016 classificadas sob o título drogas na atenção básica. Em 2016, os

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 15 Artigo original Bernardes et al. • Telessaúde para apoiar a educação permanente

TABELA 1. Evolução da utilização de teleconsultorias do Núcleo Estadual de Telessaúde Maranhão, segundo situação dos municípios e das unidades de saúde no estado, Brasil, 2015 e 2016 Informação relativas aos municípios Informações relativas às unidades de saúdea No. Taxa de Média de Média de Taxa de Média de Média de Período Municípios Municípios UBS solicitações utilização utilização utilização por UBS ativas utilização utilização utilização por cadastrados ativos cadastradas mensal geral municípios ativo mensal geral UBS ativa Jan/15 8 10 3 30,0 0,8 2,7 143 4 2,8 0,1 2,0 Fev/15 13 12 4 33,3 1,1 3,3 166 6 3,6 0,1 2,2 Mar/15 61 17 10 58,8 3,6 6,1 187 14 7,5 0,3 4,4 Abr/15 138 17 9 52,9 8,1 15,3 188 19 10,1 0,7 7,3 Mai/15 335 44 10 22,7 7,6 33,5 257 31 12,1 1,3 10,8 Jun/15 485 44 11 25,0 11,0 44,1 257 43 16,7 1,9 11,3 Jul/15 733 44 14 31,8 16,7 52,4 257 58 22,6 2,9 12,6 Ago/15 854 44 29 65,9 19,4 29,4 257 124 48,2 3,3 6,9 Set/15 1 198 45 21 46,7 26,6 57,0 261 87 33,3 4,6 13,8 Out/15 953 45 19 42,2 21,2 50,2 261 72 27,6 3,7 13,2 Nov/15 668 45 18 40,0 14,8 37,1 261 71 27,2 2,6 9,4 Dez/15 629 45 18 40,0 14,0 34,9 261 65 24,9 2,4 9,7 Jan/16 704 46 16 34,8 15,3 44,0 268 57 21,3 2,6 12,4 Fev/16 621 47 13 27,7 13,2 47,8 270 53 19,6 2,3 11,7 Mar/16 640 47 14 29,8 13,6 45,7 270 51 18,9 2,4 12,5 Abr/16 849 47 12 25,5 18,1 70,8 270 68 25,2 3,1 12,5 Mai/16 704 47 17 36,2 15,0 41,4 270 68 25,2 2,6 10,4 Jun/16 1 198 47 18 38,3 25,5 66,6 270 67 24,8 4,4 17,9 Jul/16 728 47 15 31,9 15,5 48,5 270 58 21,5 2,7 12,6 Ago/16 716 47 15 31,9 15,2 47,7 270 55 20,4 2,7 13,0 Set/16 250 47 13 27,7 5,3 19,2 270 39 14,4 0,9 6,4 Out/16 576 47 15 31,9 12,3 38,4 270 50 18,5 2,1 11,5 Nov/16 655 47 13 27,7 13,9 50,4 270 48 17,8 2,4 13,6 Dez/16 260 47 11 23,4 5,5 23,6 270 32 11,9 1,0 8,1 Fonte: Plataforma Nacional de Telessaúde e Sistema de Monitoramento das Teleconsultorias do Núcleo Telessaúde Maranhão. a Ser cadastrado denota cadastro no Programa de Telessaúde; ser ativo denota utilização do serviço de teleconsultoria no mês; taxa de utilização: municípios ativos/municípios cadastrados e UBS ativas/UBS cadastradas; média de utilização geral: total mensal de solicitações respondidas/total de municípios cadastrados e total mensal de solicitações respondidas/total de UBS cadastradas; média de utilização dos ativos: total mensal de solicitações respondidas/total de municípios ativos e total mensal de solicitações respondidas/total de UBS ativas.

TABELA 2. Solicitação de teleconsultorias por profissional de saúde cadastrado na Plataforma do Núcleo Estadual de Telessaúde do Estado do Maranhão, Brasil, 2015 e 2016

2015 2016 Profissão Profissionais Solicitação/ Profissionais Solicitação/ Solicitações (%) Solicitações (%) cadastrados (%) profissão cadastrados (%) profissão Agente comunitário de saúde 1 042 (42,0) 3 240 (53,3) 3,1 1 224 (41,1) 3 891 (49,2) 3,1 Enfermeiro 345 (14,0) 1 544 (25,4) 4,4 414 (14,0) 2 041 (25,9) 4,9 Técnico de enfermagem 239 (9,7) 388 (6,4) 1,6 288 (9,7) 955 (12,1) 3,3 Médico clínico 356 (14,3) 231 (3,9) 0,6 521 (17,5) 76 (1,0) 0,1 Cirurgião dentista 97 (4,0) 115 (2,0) 1,1 105 (3,5) 313 (4,0) 2,9 Assistente administrativo 51 (2,1) 62 (1,0) 1,2 52 (1,7) 106 (1,3) 2,0 Auxiliar em saúde bucal 50 (2,0) 59 (0,9) 1,1 47 (1,6) 86 (1,1) 1,8 Assistente social 44 (1,7) 32 (0,5) 0,7 64 (2,1) 25 (0,3) 0,3 Outras profissões 255 (10,2) 404 (6,6) 1,5 259 (8,8) 408 (5,1) 1,5 Total 2 479 6 075 2 974 7 901 Fonte: Plataforma Nacional de Telessaúde e Sistema de Monitoramento das Teleconsultorias do Núcleo Telessaúde Maranhão. temas com maior participação foram DISCUSSÃO presente estudo forneceram informações atuação do psicólogo na saúde mental, importantes sobre o apoio à atenção drogas e suicídio e desafios da saúde A análise dos indicadores de utili- ­básica no estado do Maranhão, espe- mental no Brasil (dados não apresenta- zação dos serviços de teleconsultoria e cialmente no que tange a educação per- dos em tabela). da ­teleducação no Maranhão obtidos no manente dos profissionais de saúde.

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TABELA 3. Assuntos mais tratados nas teleconsultorias segundo capítulos e experiências internacionais (4). A taxa de componentes da Classificação Internacional de Atenção Primária, versão 2 (CIAP 2), utilização mensal por município e unida- Maranhão, Brasil, 2015 e 2016 de de saúde também mostrou-se supe- rior ao encontrado na literatura (3, 9). 2015 2016 Classificação CIAP 2 Total Apesar disso, apenas 36% dos municí- No. % No. % pios com o sistema implementado e 20% Por capítulo das unidades de saúde cadastradas utili- A - Geral e Inespecífico 2 935 49,9 4 501 59,3 7 436 zaram as teleconsultorias. B - Sangue, Sistema Hematopoiético, Linfático e Baço 183 3,1 142 1,9 325 Destaca-se que um dos critérios, defini- D - Digestivo 517 8,8 589 7,8 1 106 dos pelo Comitê Gestor Estadual do Teles- F - Olho 70 1,2 81 1,1 151 saúde no Maranhão, para seleção dos H - Ouvido 22 0,4 39 0,5 61 municípios e UBS que seriam contempla- K - Circulatório 241 4,1 200 2,6 441 dos no Projeto do Telessaúde era possuir L - Musculoesquelético 96 1,6 94 1,2 190 adesão ao Programa de Valorização do N - Neurológico 181 3,1 166 2,2 347 Profissional da Atenção Básica e/ou P - Psicológico 122 2,1 100 1,4 222 ­Programa Mais Médicos. O Programa de R - Respiratório 107 1,8 220 2,9 327 ­Valorização do Profissional da Atenção S - Pele 223 3,8 312 4,1 535 Básica (PROVAB) foi instituído no Brasil T - Endócrino/Metabólico e Nutricional 203 3,5 140 1,8 343 em 2011, com o objetivo de valorizar e esti- U - Urinário 70 1,2 79 1,0 149 mular profissionais de nível superior a W - Gravidez, Parto e Planejamento Familiar 396 6,7 402 5,3 798 comporem as equipes multiprofissionais X - Genital Feminino 428 7,3 441 5,8 869 da atenção básica em municípios com Y - Genital Masculino 84 1,4 78 1,0 162 maior percentual de pobreza, em áreas re- Z - Problemas Sociais 8 0,1 2 0,0 10 motas e de difícil acesso. Por sua vez, o Por componente Programa Mais Médicos tem como objeti- Queixas e sintomas 1 322 22,5 1 367 18,0 2 689 vo diminuir a carência de médicos nas re- Procedimentos diagnósticos e preventivos 1 776 30,3 2 785 36,7 4 561 giões prioritárias para o SUS, a fim de Medicação, tratamento e procedimentos terapêuticos 260 4,5 302 4,0 562 reduzir as desigualdades regionais na área Resultados 2 0,0 1 0,0 3 da saúde e também promover uma reo- Administrativo 84 1,5 132 1,7 216 rientação na formação médica no ­Brasil. Encaminhamentos e outros motivos da consulta 3 0,1 0 0,0 3 No entanto, o que observamos no Diagnósticos e doenças 2 419 41,2 2 999 39,5 5 418 ­Maranhão foi uma utilização menor dos Total 5 886 100,0 7 586 100,0 13 472a serviços do Telessaúde pelos profissionais Fonte: Plataforma Nacional de Telessaúde e Sistema de Monitoramento das Teleconsultorias do Núcleo Telessaúde médicos em comparação a outros estados Maranhão. brasileiros (9). Vale ressaltar que o Mara­ a Total de solicitações nos 2 anos: 13 976; dessas, 13 472 solicitações foram classificadas pela CIAP 2. nhão possui a menor razão de médicos por habitante no país (0,87 médico por TABELA 4. Resolutividade e grau de satisfação com as respostas das teleconsultorias, 1 000 habitantes); além disso, o número de Maranhão, Brasil, 2015 e 2016 médicos por 1 000 habitantes é pelo menos 11 vezes maior na capital que no interior Resolutividade/satisfação 2015 2016 do estado (16). Total Resposta à dúvida No. % No. % Estudos anteriores (17, 18) sobre a uti- Atendeu totalmente 4 057 88,8 4 920 82,9 8 977 lização das teleconsultorias por médicos Atendeu parcialmente 464 10,1 963 16,2 1 427 revelam que fatores relacionados à in- Não atendeu 49 1,1 52 0,9 101 fraestrutura de informática das UBS, à Total 4 570 100,0 5 935 100,0 10 505a falta de informação sobre o serviço de Nível de satisfação teleconsultoria e à falta de treinamento Muito satisfeito 2 698 58,8 2 646 44,6 5 344 para uso de teleconsultoria se mostraram Satisfeito 1 736 37,9 3 134 52,8 4 870 como variáveis independentemente as- Muito insatisfeito 54 1,2 44 0,7 98 sociadas à não utilização do serviço pelos­ Insatisfeito 50 1,1 45 0,8 95 médicos. Indicam também que a pouca Indiferente 47 1,0 68 1,1 115 familiaridade do profissional com a in- Total 4 585 100,0 5 937 100,0 10 522a formática é um dos entraves que influen- Fonte: Plataforma Nacional de Telessaúde e Sistema de Monitoramento das Teleconsultorias do Núcleo Telessaúde cia a decisão dos médicos de utilizar esse Maranhão. serviço. Além disso, a resistência cultural a As demais solicitações não avaliadas pelos profissionais de saúde. e a relutância em mudar a prática diária afetam a adoção de novas tecnologias Os resultados relativos aos serviços de número de teleconsultoria/UBS/mês) (19, 20). ­teleconsultoria no período mostram acima da encontrada em estudos que Na análise da média de utilização por uma média de utilização geral (número avaliaram ­outros Núcleos de Telessaú- município ativo, foram encontrados dois de ­teleconsultorias/município/mês e de brasileiros (3, 9) e também em picos, em abril e junho de 2016, devido à

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 17 Artigo original Bernardes et al. • Telessaúde para apoiar a educação permanente

TABELA 5. Pontos e participantes conectados em 151 webpalestras sobre os temas inespecífico da CIAP 2, sobretudo no tí- das áreas de atenção básica, e-SUS e saúde mental desenvolvidas pelo Núcleo tulo de Educação em saúde/aconselha- Estadual de Telessaúde do Estado do Maranhão, Brasil, 2015 e 2016 mento/dieta. Tendo em vista que a CIAP 2 é centrada no paciente, e não na doença 2015 2016 Participação em webpalestras Total ou diagnóstico etiológico, essa tendência No. % No. % de poucos diagnósticos, ou mesmo clas- No. de pontos conectados 322 16,8 169 10,7 491 sificações sem um sistema-alvo definido, Temas da saúde mental 322 16,8 169 10,7 491 representa um importante contingente Temas da atenção básica 652 33,9 603 38,2 1 255 da demanda na atenção básica, já regis- Temas do e-SUS 947 49,3 806 51,1 1 753 trada em outro estudo. Além disso, Total 1 921 100,0 1 578 100,0 3 499 ­ressalta a importância do atendimento No. participantes generalista na atenção básica como filtro Temas da saúde mental 947 16,5 436 9,5 1 383 para a rede de saúde (28). Temas da atenção básica 2 574 44,8 2 327 50,6 4 901 Indicadores de satisfação são impres- Temas do e-SUS 2 224 38,7 1 833 39,9 4 057 cindíveis para a avaliação da qualidade Total 5 745 100,0 4 596 100,00 10 341 do serviço. É importante apontar, neste Fonte: Sistema de Gerenciamento de Atividades de Tele-Educação do Núcleo Telessaúde Maranhão. estudo, para o considerável percentual de avaliações realizadas, apesar de seu caráter opcional. Também foi marcante utilização maior do serviço por um deter- realização da teleconsultoria e evidên- o percentual elevado de satisfação e re- minado município, sendo o número total cias sobre a necessidade de mudança no solução das teleconsultorias, como tam- de municípios ativos nesse período ainda processo de trabalho para incorporar bém se verifica em outros estudos pequeno. Na análise da média de utili- esse serviço na rotina de trabalho (24). nacionais (22, 23, 29). A partir desses zação por unidade de saúde ativa foi en- Pesquisas (22, 25) relataram que a tele- dados, entende-se que esse serviço con- contrado um pico em junho de 2016, consultoria contribui para o desenvolvi- tribui para a educação permanente, a devido à utilização maior do serviço por mento de habilidades e competências, autonomia e a resolutividade no proces- determinada UBS. Tais aumentos na de- propicia mais segurança, reduz a sen- so de trabalho dos profissionais que uti- manda devem-se à aplicação de novas ro- sação de isolamento profissional imposto lizaram o serviço. tinas na implementação e monitoramento pelas distâncias geográficas e propicia Quanto à teleducação, apesar da dimi- do serviço, através da realização de capa- aos pacientes de municípios pequenos e nuição na oferta do serviço no ano de citações e fortalecimentos, com ênfase não remotos o acesso a atenção básica mais 2016, gerando redução do número abso- só na maior utilização do sistema, mas qualificada e resolutiva, especialmente luto de pontos conectados e participantes também na sensibilização e motivação de na América Latina e Caribe. nas webpalestras naquele ano, é impor- municípios e UBS inativos. Os enfermeiros, seguidos dos ACS, tante destacar que houve ampliação na Apesar de vários estudos (3, 21–23) ­foram os profissionais mais ativos nas área de abrangência dos pontos conecta- ­relatarem a baixa utilização das telecon- solicitações de teleconsultorias. Pesqui- dos nos estados e cidades brasileiras. sultorias como um problema e uma sas de diversos Núcleos de Telessaúde No Brasil, país de grandes dimensões ­realidade nacional e internacional, os in- no Brasil mostram ampla participação territoriais e contrastes sociais, econômi- dicadores encontrados neste estudo nos dos enfermeiros nas teleconsultorias, cos e culturais, a oferta da teleducação é permitem fazer uma avaliação positiva com aumento gradativo ao longo dos um importante instrumento de difusão de dos serviços para o estado Maranhão. anos, como em Pernambuco (26), Minas conhecimentos, proporcionando o prota- Tal achado pode ser justificado pelos Gerais (3) e Rio Grande do Sul (23). Na gonismo, a participação ativa e a interação treinamentos realizados desde a implan- pesquisa de Schmitz e Harzheim (9), que entre acadêmicos e profissionais da saú- tação do sistema nos municípios, bem analisaram todas as teleconsultorias rea- de de diferentes instituições, contribuindo como pelas ações de fortalecimento e lizadas pelos Núcleos de Telessaúde bra- para a melhoria da qualidade do atendi- sensibilização rotineiras realizadas nos sileiros em funcionamento, os enfermeiros mento e do ensino em saúde (30, 31). A municípios e UBS, em especial naquelas destacaram-se tanto no número absoluto incorporação da telessaúde contribui para que passavam muito tempo sem utilizar de solicitações quanto no percentual de potencializar os programas de educação a ferramenta. Além disso, a facilidade de usuários ativos. É importante ressaltar permanente, possibilitando o desenvolvi- uso pode, também, ter influenciado a que a educação em saúde representa mento de profissionais de saúde com pos- utilização das teleconsultorias, como ci- uma parte do processo de trabalho do tura crítica e reflexiva e comprometidos tado no estudo de Gagnon et al. (24). enfermeiro da atenção básica. Esses pro- com a qualidade no desenvolvimento das O treinamento inexistente ou inade- fissionais, ao desenvolverem tais ações, práticas de saúde (32, 33). quado é um fator negativamente associa- buscam melhorar as condições de vida e De acordo com Godoy et al. (34), a uti- do à implementação das tecnologias de saúde da população, a fim de prevenir lização das ferramentas e instrumentos informação e comunicação. Assim, o trei- doenças, melhorar as condições de vida da informática é uma estratégia positiva namento para uso do serviço de telecon- e saúde e, consequentemente, promover para capacitar os profissionais em suas sultoria deve envolver a apresentação do a saúde da população (27). práticas assistenciais, pois possibilita a serviço, o exercício prático na utilização Os assuntos mais questionados nas troca de informações entre profissionais e do mesmo, explicações sobre benefícios e ­teleconsultorias no Maranhão foram instituições de ensino e pesquisa, auxilia dificuldades e sobre aspectos legais da ­categorizados no Capítulo A - Geral e os trabalhadores no exercício de sua

18 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Bernardes et al. • Telessaúde para apoiar a educação permanente Artigo original profissão e facilita o atendimento, contri- detalhamento de informações encontra- compreensão das dificuldades no uso dos buindo para maior resolutividade em das nas publicações e a aplicação de dife- serviços de telessaúde com vistas à for- ­nível local. Torna-se fundamental incenti- rentes metodologias para construção de mulação de estratégias para superá-las. var a participação crescente, não só da indicadores dificultaram a análise. Ape- equipe de enfermagem, mas de todos os sar disso, os resultados produzidos trou- Conflitos de interesse. Nada declara- ­profissionais que compõem a equipe xeram informações importantes para o do pelos autores. assistencial. Núcleo de Telessaúde no Maranhão. Uma limitação deste estudo foi a Em conclusão, os dados aqui apresen- Declaração. As opiniões expressas no ­dificuldade de comparar efetivamente tados apontam para a necessidade de manuscrito são de responsabilidade ex- a ­utilização dos diferentes serviços de mais pesquisas sobre telessaúde no que clusiva dos autores e não refletem neces- ­telessaúde, pois não se encontram facil- diz respeito aos fatores associados à utili- sariamente a opinião ou política da RPSP/ mente na literatura indicadores e nú- zação da telessaúde no Maranhão e no PAJPH ou da Organização Pan-Americana­ meros precisos de produção. O pouco Brasil. Tais estudos possibilitariam maior da Saúde (OPAS).

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 19 Artigo original Bernardes et al. • Telessaúde para apoiar a educação permanente

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ABSTRACT Objective. To assess the usage of services provided by the State of Maranhão Telehealth Program, Brazil, as a tool to support continuing health education for primary Use of Maranhão Telehealth care workers. Method. This quantitative, descriptive study used data from the Brazilian National Program as a tool to support Telehealth Platform for the years 2015 and 2016. To assess teleconsultations requested continuing health education by municipalities and health care units in the state of Maranhão, the monthly system usage rate and the mean monthly request rate per municipality and primary health care unit were calculated. Teleconsultations were described regarding the requester’s profession, most frequent topics, and satisfaction with/usefulness of the response provided. Tele-education activities were classified according to the number of computers and users logged into the activity. Results. From January 2015 to December 2016, 13 976 teleconsultations were pro- vided, requested by 47 municipalities. Most municipalities were small (up to 40 thou-sand residents) and scored low on the municipal human development index (0.512 to 0.768). The mean overall usage rate and the monthly usage rate by municipality and unit were higher than those reported in the literature. Nurses and community health agents were the most active requesters. Of the users who completed the optional evaluation, over 80% stated that their question was answered. Conclusions. The usage indicators for the state of Maranhão Telehealth Program were more positive than those reported by other telehealth services in Brazil and abroad. This indicates that the Program is sustainable, with good potential to support primary care and be used as a tool for continuing health education.

Keywords Telemedicine; education, continuing; primary health care; Brazil.

20 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Bernardes et al. • Telessaúde para apoiar a educação permanente Artigo original

RESUMEN Objetivo. Evaluar la utilización de los servicios ofrecidos por el Núcleo Estatal de Telesalud de Maranhão como herramienta para apoyar la educación permanente Utilización del Programa de sobre la salud de los profesionales que prestan atención primaria. Métodos. En esta investigación descriptiva con enfoque cuantitativo se utilizaron Telesalud en el estado de datos de la Plataforma Nacional de Telesalud referentes a los años 2015 y 2016. Con el Maranhão como herramienta fin de evaluar la utilización de las teleconsultas en los municipios y unidades de aten- para apoyar la educación ción primaria de dicho estado, se calcularon la tasa de utilización mensual del sis- tema y el promedio mensual de solicitudes por municipio y por unidad de atención permanente sobre la salud primaria. Las teleconsultas se describieron según el profesional solicitante, los temas más frecuentes, la satisfacción con las respuestas y el carácter resolutivo de estas últi- mas. Las actividades de teleducación se clasificaron según el número de puntos y de participantes conectados. Resultados. Entre enero del 2015 y diciembre del 2016 se realizaron 13 976 telecon- sultas provenientes de 47 municipios, en su mayoría de tamaño pequeño (con una población máxima de 40 000 habitantes) y con índice bajo de desarrollo humano (de 0,512 a 0,768). El promedio de utilización general de las teleconsultas y la tasa de utilización mensual por municipio y por unidad de atención primaria fueron supe- riores a los citados en las publicaciones pertinentes. Los miembros del personal de enfermería y los agentes de salud comunitarios fueron los profesionales más activos. Se aclararon las dudas, según lo expresado por más de 80% de quienes hicieron la evaluación (opcional) del servicio. Conclusiones. Los indicadores de utilización del Núcleo de Telesalud de Maranhão son más positivos que los de otros servicios de telesalud en Brasil y otros países. Eso demuestra que el servicio es sostenible y tiene potencial para apoyar la atención primaria de salud, así como para servir de herramienta de educación permanente sobre la salud.

Palabras clave Telemedicina; educación continua; atención primaria de salud; Brasil.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 21

Pan American Journal Artigo original of Public Health

Estratégia Saúde da Família, saúde suplementar e desigualdade no acesso à mamografia no Brasil

Antônio Carlos Vieira Ramos,1 Luana Seles Alves,1 Thaís Zamboni Berra,1 Marcela Paschoal Popolin,2 Marcos Augusto Moraes Arcoverde,3 Laura Terenciani Campoy,1 José Francisco Martoreli Júnior,1 Luís Velez Lapão,4 Pedro Fredemir Palha1 e Ricardo Alexandre Arcêncio1

Como citar Ramos ACV, Alves LS, Berra TZ, Popolin MP, Arcoverde MAM, Campoy LT, et al. Estratégia Saúde da Família, saúde suplementar e desigualdade no acesso à mamografia no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e166. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.166

RESUMO Objetivo. Avaliar a associação entre o acesso à mamografia no Brasil e a cobertura pela Estratégia Saúde da Família (ESF) e pela saúde suplementar. Métodos. Realizou-se um estudo ecológico com dados obtidos do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). A tendência da série temporal foi analisada pelo método de Prais-Winsten utilizando-se como unidades de análise as unidades federativas brasileiras. Para investigar a relação entre a variável dependente – mulheres de 50 a 69 anos que nunca realizaram exame de mamografia – e as independentes, de cober- tura de ESF ou saúde suplementar e socioeconômicas, realizou-se análise de regressão linear múltipla. Resultados. O Acre foi o único estado que não apresentou tendência crescente da ­cobertura da saúde suplementar. Roraima, Tocantins, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba apresentaram tendência estacionária para a cobertura pela ESF, enquanto as demais unidades federativas apresentaram cobertura crescente. Observou-se associação significativa entre nunca ter realizado mamografia na idade de 50 a 69 anos e as variáveis renda média per capita e cobertura pela ESF e saúde suplementar (R2=0,77; P < 0,001). Conclusão. A desigualdade no acesso a mamografia é uma realidade no Brasil. Tanto a saúde suplementar quanto a Estratégia Saúde da Família têm contribuído para melhoria do acesso dessas mulheres.

Palavras-chave Atenção primária à saúde; Estratégia Saúde da Família; saúde suplementar; ­mamografia; desigualdades em saúde; Brasil.

1 Universidade de São Paulo (USP), Escola de 3 Universidade Estadual do Oeste do Paraná O câncer de mama é a segunda neopla- Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto (UNIOESTE), Campus de Foz do Iguaçu, Centro sia que mais mata mulheres no Brasil, (SP), Brasil. Correspondência: Antônio Carlos de Educação, Letras e Saúde, Foz do Iguaçu (PR), Vieira Ramos, [email protected] Brasil. com 57 960 novos casos e 14 388 mortes 2 Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), 4 Universidade Nova de Lisboa, Instituto por esse câncer em 2016 (1). Por trás des- Instituto de Ciências da Saúde, Campus de Sinop, de Higiene e Medicina Tropical, Lisboa, ses números estão grandes desigualda- Sinop, (MT), Brasil. Portugal. des que têm caracterizado a saúde no

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 23 Artigo original Ramos et al. • Acesso à mamografia no Brasil

Brasil (2) – um estudo mostra que, quan- público e privado de atenção (6-8, 10, 11), programa estatístico Stata 13 usando o do os dados são estratificados por ma- não foram encontrados estudos de am- método de análise autorregrada conhe- crorregiões e estados, existe tendência plitude nacional e que utilizam recursos cido como Prais-Winsten com vista à au- de declínio ou estabilização das taxas cartográficos para avaliar a distribuição tocorreção temporal da primeira ordem de mortalidade nas regiões com maior da cobertura por esse exame. dos resíduos. desenvolvimento socioeconômico e au- O resultado dessa análise é a alteração mento dessas taxas nas regiões com me- MATERIAIS E MÉTODOS percentual anual denominada taxa de nor desenvolvimento (3). ­incremento anual e seu respectivo inter- A mamografia é o principal exame de Foi realizado um estudo ecológico valo de confiança de 95% (IC95%). A rastreamento do câncer de mama. A co- (12), considerando como unidades de ­tendência é considerada decrescente se bertura por mamografia acima de 70% análise as 27 unidades da federação. O ambos os valores do intervalo de con- pode reduzir em 20 a 30% a mortalidade Brasil possui 26 estados e um Distrito fiança são negativos, crescente se esses em mulheres com idade de 50 anos ou Federal agrupados em cinco macrorregi- valores são positivos e estacionária quan- mais (4). Entretanto, estudos realizados ões: Norte (Rondônia, Acre, Amazonas, do o intervalo de confiança cruza o valor no Brasil apontam coberturas insatisfa- Roraima, Pará, Amapá, Tocantins), zero, ou seja, limite inferior e superior fi- tórias de mamografia na maioria dos ­Nordeste (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio cam com sinais opostos (14). ­estados das regiões Norte, Nordeste e Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, No presente estudo, a desigualdade Centro-Oeste (4-8). Entre as razões le- Alagoas, Sergipe, Bahia), Sudeste (Minas em saúde é assumida como situações que vantadas para essa situação, destacam- Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, implicam algum grau de injustiça, asso- -se o déficit de recursos humanos e a São Paulo), Sul (Paraná, Santa Catarina, ciadas a condições sociais que sistemati- distribuição desigual de mamógrafos, Rio Grande do Sul) e Centro-Oeste camente colocam grupos em desvantagem com concentração nas capitais e centros (Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, quanto à possibilidade de usufruir de urbanos (4). A distribuição inadequada ­Goiás e Distrito Federal) (13). oportunidades e recursos em saúde (15). desses equipamentos, sob viés da gestão Segundo o Censo de 2010 do Institu- Para o estudo, foi selecionada como indi- pública, aguça as desigualdades, geran- to Brasileiro de Geografia e Estatística cador de desigualdade a proporção de do sofrimento, mutilações e mortes (6-8). (IBGE), o Brasil possui população de mulheres com idade de 50 a 69 anos O não acesso à mamografia é destacado 190 755 799 habitantes, Índice de Gini de que nunca realizaram mamografia. Esse na literatura como um importante mar- 0,608, produto interno bruto (PIB) de indicador, extraído da PNS, foi adotado cador de desigualdade em saúde (2), R$ 3 885 847 002, renda média domiciliar como variável dependente. A idade de sendo relevante investigar o fenômeno à per capita de R$ 767,02 e taxa de desem- 50 a 69 anos é a faixa etária prioritária luz dos seus determinantes. prego de 7,42 por habitante; 34,67% da para programas de rastreamento popula- Um questionamento que pode ser le- população têm renda de menos de meio cional do câncer de mama no Brasil (16). vantado em vista desse cenário é se as salário mínimo (13). Para o estudo, foram O indicador escolhido permite avaliar a políticas de incentivo para melhoria e utilizadas variáveis referentes aos siste- adequação do acesso a mamografia, pos- expansão da atenção primária à saúde mas de saúde público e suplementar, in- sibilitando a identificação de situações de (APS), orientada pela Estratégia Saúde dicadores de cobertura e desempenho do desigualdade (2-5). da Família (ESF), têm contribuído para o SUS e variáveis sociodemográficas. Com o propósito de verificar a relação acesso das mulheres à realização da ma- A tabela 1 lista as variáveis obtidas da variável dependente com as variáveis mografia, frente, inclusive, ao acesso via do Departamento de Informática do SUS independentes sociodemográficas e de saúde suplementar – setor que abriga os (DATASUS) que englobam informações serviços de saúde, foi utilizada a técnica serviços de saúde prestados exclusiva- do IBGE, do Cadastro Nacional de Esta- de regressão linear múltipla para a sele- mente na esfera privada, detendo rela- belecimentos de Saúde (CNES), da ANS, ção do melhor modelo explicativo (17). ção jurídica direta entre prestadores e do Departamento de Atenção Básica Para a seleção desse modelo, o algoritmo usuários por meio de planos de saúde. (DAB) e da Pesquisa Nacional de Saúde de stepwise e o critério de informação Embora sem vinculação ao Sistema Úni- (PNS) referentes às 27 unidades federati- Akaike (AIC) foram usados para ajuste, co de Saúde (SUS) no Brasil, a saúde su- vas brasileiras. Avaliou-se a tendência sendo que para a escolha do modelo con- plementar é regulada pelo Estado por temporal da proporção de cobertura po- siderou-se o menor valor de AIC (17). meio da Agência Nacional de Saúde Su- pulacional da ESF e a taxa de cobertura Em seguida foi realizado o teste de plementar (ANS) (9). da saúde suplementar no período de 2005 Shapiro-Wilk para testar a normalidade Diante do exposto, o presente estudo a 2016. Sendo “y” os valores da série tem- dos resíduos da regressão (17). A análise teve por objetivo avaliar a associação da poral e “x” a escala de tempo, a reta de de regressão linear múltipla foi realizada ESF e da saúde suplementar na redução ajuste entre os pontos da série temporal no software Rstudio versão 3. Para incor- das desigualdades no acesso à mamogra- cuja tendência se pretendeu estimar foi poração das variáveis no modelo seguiu-­ fia no Brasil, evidenciando as áreas críti- definida pela equação linear y=b0+b1x. se a recomendação de Zuur et al. (18), cas dessa situação de saúde, a distribuição Para reduzir a heterogeneidade de com eliminação de outliers e certificação geográfica dos mamógrafos SUS e não ­variâncias dos resíduos da análise de quanto a homogeneidade da variância, SUS e as tendências de cobertura pelas ­regressão temporal, aplicou-se a trans- normalidade, colinearidade, relação en- duas modalidades de atenção. É impor- formação logarítmica dos valores de tre x e y, interação e independência do tante destacar que, embora tenham sido y (14). Assim, as taxas de cobertura erro do modelo. conduzidas investigações que mensuram (­logarítmicas) foram calculadas pelo soft­ Como determina a legislação brasilei- a cobertura de mamografia nos sistemas ware ­Excel. A análise foi realizada com o ra, por ter utilizado dados secundários

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TABELA 1. Variávieis (dependente e independentes) utilizadas no estudo sobre acesso à mamografia no Brasil, 2005 a 2016

Fontea Variável Definição PNS Variável dependente: proporção de Número de mulheres de 50 a 69 anos de idade que nunca realizaram exame de mamografia dividido pelo total de mulheres de 50 a 69 anos de idade que mulheres de 50 a 69 anos de idade, em determinado espaço geográfico no ano considerado. nunca realizaram exame de mamografia IBGE Produto interno bruto (PIB) per capita Valor do PIB municipal per capita, calculado como PIB municipal do ano dividido pela população do mesmo ano. IBGE Taxa de analfabetismo por ano segundo Percentual de pessoas com 15 anos ou mais de idade que não sabem ler e escrever pelo menos um bilhete simples, unidade da federação no idioma que conhecem, na população total residente da mesma faixa etária, em determinado espaço geográfico, no ano considerado. IBGE Renda média domiciliar per capita Média das rendas domiciliares per capita das pessoas residentes em determinado espaço geográfico, no ano considerado. IBGE População sem instalação sanitária Proporção da população residente que não possui instalação sanitária. ANS Taxa de cobertura por planos de saúde Razão entre o número de beneficiários e a população em uma área específica. Na ANS TABNETb, o cálculo é feito para as grandes regiões, unidades da federação, capitais e regiões metropolitanas, por sexo e faixa etária. DAB Proporção de cobertura populacional Número de unidades de ESF multiplicado por 3 450 (média de pessoas acompanhadas por unidade de ESF) divido pela estimada por ESF população em determinado espaço geográfico no ano considerado, com limitador de cobertura 100%. CNES Cobertura de mamógrafos SUS e não Número de mamógrafos SUS e não SUS pelo total de mamógrafos, segundo unidade da federação, no ano SUS por estabelecimento considerado. Fonte: DATASUS, 2017. a ANS: Agência Nacional de Saúde; CNES: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde; DAB: Departamento de Atenção Básica; IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; PNS: Pesquisa Nacional de Saúde. b TABNET: Informações em Saúde do DATASUS.

de acesso público, cujas informações de apresentam tendência estacionária, en- DISCUSSÃO identificação individual não estão dispo- quanto os demais estados apresentaram níveis, o estudo não precisou de aprova- cobertura crescente. O presente estudo teve por objetivo ção por comitê de ética em pesquisa. A figura 2A mostra proporção de avaliar a associação da ESF e da saúde ­mamógrafos do SUS em comparação suplementar com a redução das desi- RESULTADOS aos mamógrafos não SUS por unida- gualdades de acesso à mamografia no de da federação. O maior percentual Brasil, evidenciando as áreas críticas des- A figura 1 apresenta a renda domiciliar de ­mamógrafos SUS foi observado em sa situação de saúde, a distribuição geo- per capita em 2010, a porcentagem de Roraima, Amazonas e Tocantins, com gráfica dos mamógrafos SUS e não SUS e ­mulheres de 50 a 69 anos que nunca ha- 87,5%, 84,7%, 79,4%, respectivamente; as tendências de cobertura pelas duas viam realizado mamografia e a compara- em contrapartida, Distrito Federal, Rio modalidades de atenção. Os achados re- ção entre o crescimento da ESF e da de Janeiro e Pará obtiveram 87,8%, velaram uma tendência de crescimento saúde suplementar de 2005 a 2016 em 66,8% e 60,3% de mamógrafos pelo sis- tanto da ESF como da saúde suplemen- cada uma das unidades da federação. tema não SUS. A figura 2B mostra a tar, embora tenham sido observadas di- As maiores rendas domiciliares per capita densidade de mamógrafos por 1 000 ferenças significativas entre as duas concentraram-se nas regiões Centro-­ mulheres de 50 a 69 anos. A maior den- modalidades em todas as unidades fede- Oeste e Sudeste, sendo os líderes Brasí- sidade está em São Paulo, Minas Gerais, rativas brasileiras. Nos últimos anos, lia, São Paulo e Rio de Janeiro, com Rio de Janeiro e em toda costa litorânea houve grande expansão da ESF em todo rendas médias per capita de R$ 1 665,42, brasileira. o território nacional devido ao incentivo R$ 1 036,51 e R$ 993,21, respectivamente. Em relação ao modelo obtido pela re- do Ministério da Saúde (19-21), todavia Quanto às mulheres de 50 a 69 anos que gressão linear múltipla, observou-se que com ritmos diferentes entre os estados, nunca realizaram mamografia, um alto a variável dependente foi explicada por como evidenciado no estudo. percentual foi detectado em grande par- três das variáveis testadas, as quais al- Apesar dos estados de Roraima, te dos estados do Norte e Nordeste, cançaram associação estatisticamente ­Tocantins, Maranhão, Piauí, Rio Grande ­especialmente Maranhão, Acre e Pará, significativa. Segundo os resultados, as do Norte e Paraíba apresentarem ten- com percentuais de 41,9%, 41,5% e 40,7%, variáveis e seus parâmetros foram os dência temporal estacionária quanto ao respectivamente. ­seguintes: renda média domiciliar per crescimento da cobertura da ESF, tais A tabela 2 mostra a tendência tempo- ­capita (β = -0,013; IC95% = -0,027 a -0,001; ­estados apresentaram altas coberturas ral das taxas de cobertura da ESF e saú- P = 0,041), cobertura pela ESF (β= -0,242; dessa modalidade nos períodos de 2005 de suplementar para o período de 2005 a IC95% = -0,446 a -0,039; P = 0,021) a 2016. Em regiões onde a cobertura já é 2016. Todas as unidades da federação e ­cobertura pela saúde suplementar elevada, torna-se desafiador sustentá-la apresentaram tendência crescente da (β= -0,804; IC95% = -1,157 a -0,452; (20). Outro fato que pode explicar a ten- taxa de cobertura de saúde suplementar, P < 0,001). Para os demais parâmetros, o dência estacionária é a dificuldade de exceto o Acre, que apresenta tendência AIC foi = 95,969, R2 = 0,77 e P < 0,001. O fixação de profissionais de saúde, sobre- estacionária. Em relação à cobertura pela teste de Shapiro-Wilk (P = 0,517) confir- tudo médicos, em cidades do interior do ESF, Roraima, Tocantins, Maranhão, mou a normalidade dos resíduos do mo- Norte e Nordeste (22). Entretanto, o cres- Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba delo de regressão linear proposto. cimento da ESF se reflete na diminuição

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FIGURA 1. A) Renda domiciliar per capita, B) porcentagem de mulheres de 50 a 69 anos que nunca haviam realizado mamografia e C) crescimento da ESF e da saúde suplementar, 2005 a 2016, Brasil

de taxas de internação hospitalar, me- 1990 pode ser explicado pela conjuntura provavelmente se relaciona à alta cober- lhoria de indicadores operacionais, di- e estabilidade econômica naquele mo- tura da saúde suplementar e à alta ren- minuição de desigualdades em saúde e mento (26-28). Todavia, dado o cenário da per capita nessas regiões. melhoria da qualidade de vida (23, 24). atual de desgaste financeiro e desempre- O estudo mostrou que as regiões Nor- Outro resultado evidenciado no estudo go (na casa dos 12 milhões), essa situação te e Nordeste, com menor densidade de é a expansão da saúde suplementar no pode ter se modificado. mamógrafos, também apresentaram me- Brasil. Conforme a literatura, observa-se Na comparação entre a porcentagem nor taxa de cobertura de mamografia, que o crescimento da saúde suplementar de mamógrafos SUS e não SUS por esta- fenômeno que também foi observado se fortaleceu a partir da década de 1990, belecimento de saúde, tem-se que oito por outros autores (2). No estudo, é níti- alcançando uma cobertura de 24,9% em estados do Norte e Nordeste apresen- da a má distribuição geográfica desses 2016 (25). tam percentuais superiores a 60% de equipamentos, o que favorece a baixa Malta et al. (25), ao descreverem as co- mamógrafos SUS em comparação com o cobertura da mamografia e compromete berturas de planos de saúde, relatam que Distrito Federal, Rio de Janeiro, São a acessibilidade geográfica das mulhe- as populações das regiões Sudeste e Nor- Paulo e Pará, que apresentaram percen- res, especialmente as que residem em te têm a maior e a menor cobertura por tuais superiores a 60% de mamógrafos municípios pequenos e no interior, já planos de saúde, respectivamente, o que não SUS. Segundo Oliveira et al. (5), que essas tecnologias estão concentradas corrobora os achados deste estudo. Ain- houve maior financiamento do SUS nas regiões metropolitanas (6). da, segundo os resultados, o único esta- para aquisição de mamógrafos, refletin- Há uma estimativa de que apenas do que não apresentou tendência de do crescimento em escala nacional, bem 43,7% dos exames esperados segundo a crescimento da saúde suplementar foi o como em aumento na região Norte. No necessidade foram realizados no SUS, o Acre, da região Norte. O aumento do nú- Rio de Janeiro e no Distrito Federal, o que deve colocar as autoridades sani- mero de planos de saúde na década de alto percentual de mamógrafos não SUS tárias e gestores em alerta (6). Como a

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TABELA 2. Tendência temporal das taxas de cobertura pela Estratégia Saúde da Família dos estados com maior proporção de a e pela saúde suplementar, Brasil, 2005 a 2016 pessoas em condição de vulnerabilidade social extrema, sendo necessário avançar Macrorregião/unidade Estratégia Saúde da Família Saúde suplementar em termos de políticas públicas para a da federação Coeficiente (IC95%) Tendência Coeficiente (IC95%) Tendência melhoria da justiça e da equidade. Norte Outro estado crítico em termos de Rondônia 0,036 (0,027 a 0,045) Crescente 0,022 (0,004 a 0,041) Crescente acesso foi o Maranhão, onde, entretanto, Acre 0,011 (0,003 a 0,018) Crescente 0,006 (-0,001 a 0,014) Estacionária percebe-se certa proporcionalidade na Amazonas 0,012 (0,006 a 0,018) Crescente 0,032 (0,011 a 0,053) Crescente oferta de mamógrafos. Na maioria dos Roraima 0,001 (-0,008 a 0,010) Estacionária 0,023 (0,009 a 0,037) Crescente estados do Nordeste, o mamógrafo é Pará 0,034 (0,019 a 0,049) Crescente 0,016 (0,011 a 0,020) Crescente ­oferecido pelo SUS, e nessas regiões Amapá 0,018 (0,007 a 0,030) Crescente 0,009 (0,004 a 0,015) Crescente observam-­se coberturas elevadas de ESF. Tocantins 0,001 (-0,027 a 0,029) Estacionária 0,026 (0,023 a 0,029) Crescente O acesso à mamografia foi prejudicado Nordeste na Paraíba, talvez em decorrência de fa- Maranhão 0,005 (-0,007 a 0,017) Estacionária 0,028 (0,022 a 0,034) Crescente lhas na coordenação do cuidado da mu- lher na ESF ou na organização das redes Piauí -0,004 (-0,026 a 0,018) Estacionária 0,029 (0,023 a 0,034) Crescente de atenção à saúde. Ceará 0,012 (0,007 a 0,019) Crescente 0,024 (0,019 a 0,028) Crescente De acordo com Oliveira et al. (5), Rio Grande do Norte -0,004 (0,027 a 0,020) Estacionária 0,018 (0,009 a 0,026) Crescente ­houve um aumento importante da cober- Paraíba 0,000 (-0,002 a 0,002) Estacionária 0,015 (0,012 a 0,018) Crescente tura do exame de mamografia nas mu- Pernambuco 0,009 (0,008 a 0,011) Crescente 0,009 (0,001 a 0,018) Crescente lheres com baixa renda, por conta da Alagoas 0,005 (0,004 a 0,006) Crescente 0,026 (0,019 a 0,032) Crescente expansão do número de mamógrafos Sergipe 0,004 (0,002 a 0,006) Crescente 0,023 (0,018 a 0,029) Crescente ­financiados pelo SUS. Chor et al. (2) Bahia 0,019 (0,016 a 0,023) Crescente 0,015 (0,011 a 0,019) Crescente apontaram que entre as mulheres que ti- Sudeste nham renda de até R$ 100 reais, 62% ha- Minas Gerais 0,015 (0,013 a 0,017) Crescente 0,015 (0,005 a 0,024) Crescente via realizado mamografia. Em São Paulo, Espirito Santo 0,015 (0,013 a 0,016) Crescente 0,013 (0,005 a 0,021) Crescente praticamente 76% das mulheres com essa Rio de Janeiro 0,032 (0,027 a 0,038) Crescente 0,006 (0,002 a 0,010) Crescente renda teve a mamografia realizada; em São Paulo 0,026 (0,022 a 0,029) Crescente 0,007 (0,003 a 0,011) Crescente Fortaleza, por sua vez, a proporção foi de Sul 39%, o que evidencia as desigualdades Paraná 0,016 (0,014 a 0,019) Crescente 0,017 (0,014 a 0,021) Crescente regionais. Adicionalmente, Chor et al. (2) Santa Catarina 0,011 (0,009 a 0,013) Crescente 0,011 (0,003 a 0,019) Crescente concluem que usar o SUS, ter baixa esco- Rio Grande do Sul 0,031 (0,024 a 0,038) Crescente 0,016 (0,007 a 0,025) Crescente laridade e baixa renda, ser solteira e ido- Centro-Oeste sa levam as mulheres a não buscarem a Mato Grosso do Sul 0,016 (0,013 a 0,019) Crescente 0,018 (0,013 a 0,023) Crescente mamografia. Ao confrontar os resultados Mato Grosso 0,009 (0,006 a 0,014) Crescente 0,024 (0,015 a 0,033) Crescente da presente investigação com os de Chor Goiás 0,008 (0,007 a 0,010) Crescente 0,030 (0,024 a 0,035) Crescente et al. (2), observa-se que a baixa renda Distrito Federal 0,068 (0,046 a 0,090) Crescente 0,010 (0,001 a 0,020) Crescente também esteve associada ao não acesso. a Tendência decrescente: ambos os valores do intervalo de confiança negativos; tendência crescente: ambos os valores do Todavia, os resultados não foram concor- intervalo de confiança positivos; tendência estacionária: intervalo de confiança cruza o valor zero, ou seja, limite inferior dantes em termos do uso do SUS; a ESF e superior ficam com sinais opostos. aparece como um provável fator de pro- teção na presente investigação. É importante destacar que no SUS distância implica uma importante barrei- O presente estudo, a partir das estatís- há diferentes modalidades de APS, dife- ra no acesso ao exame, uma alternativa ticas aplicadas, evidenciou uma asso- renças que devem ser consideradas, sob pode ser a adoção de sistemas itineran- ciação significativa entre nunca ter pena de viés ou erro de leitura. A moda- tes. Entretanto, isso deve ser temporário, realizado mamografia na idade de 50 a lidade tradicional (unidades básicas de com data aprazada e estabelecida. Pelos 69 anos, renda per capita e cobertura pela saúde tracionais) está composta de mé- resultados do estudo, entende-se que o ESF e saúde suplementar. Tal resultado dico generalista, ginecologista, pediatra, acesso é resultado da oferta universal, da leva à constatação de que o acesso das enfermeiros e auxiliares de enfermagem. interiorização dos equipamentos e da mulheres à mamografia tem-se dado por Sua atenção organiza-se na lógica da de- distribuição da renda, tudo isso permea- meio das duas modalidades de atenção, manda espontânea, mais inclinada ao do por políticas de proteção sensíveis aos achado relevante em termos de políti- atendimento das condições agudas ou condicionantes observados no estudo cas públicas. Contudo, vale destacar a agudizadas (31). A ESF, por sua vez, está (5). Na literatura, há evidências sobre de- ­figura 2, que mostra algumas áreas críti- fundamentada nos preceitos da Decla- terminantes do acesso à mamografia cas quanto ao acesso das mulheres nas ração de Alma-Ata (32), que propõem numa perspectiva geográfica (29), sobre regiões Norte e Nordeste, como Acre e uma APS que responda de forma perma- conhecimento das mulheres em achar o Pará, onde, além de poucos, os mamó- nente, sistematizada e responsável à exame necessário (29) e sobre a organiza- grafos estão em sua maioria vinculados maior parte das necessidades de saúde ção dos serviços de saúde para a oferta e ao sistema privado. Especificamente so- de uma população, através do desenvol- demanda (30). bre o Acre, deve-se mencionar que é um vimento de equipes multiprofissionais,

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 27 Artigo original Ramos et al. • Acesso à mamografia no Brasil

FIGURA 2. A) Proporção de mamógrafos SUS e não SUS e B) densidade de mamógrafos por 1 000 mulheres de 50 a 69 anos, Brasil, 2016 N A W E s

B

% Mamógrafos SUS e não SUS por estabelecimento % Mamógrafos SUS % Mamógrafos não SUS Densidade de mamógrafos por 1 000 mulheres de 50-69 anos

km 0 420 840 1.68

em território definido, que permite o le- de ­compra, como no estado de São Paulo. trabalhos qualitativos, visando a com- vantamento das necessidades de saúde Os resultados indicam ainda que a maior preender as dificuldades das mulheres de forma organizada e resolutiva (33). parte dos mamógrafos nas regiões Sul e na busca por mamografia e suas experi- Essa tem como diretrizes a integralidade Sudeste está no setor privado, o que ências com aqueles serviços, assim e a equidade da atenção, a coordenação e pode intensificar as desigualdades nessas como análises comparativas da ESF a longitudinalidade do cuidado das fa- regiões, especialmente naquelas popula- com outras modalidades de atenção, mílias e pessoas (33); desse modo, talvez ções que não têm planos privados e que considerando as vivências e experiên- por não considerar essa distinção (entre residem em áreas com baixa cobertura cias sob o prisma da qualidade, segu- unidades básicas de saúde tradicionais de ESF. Fica claro que há uma fragilida- rança e satisfação. e ESF), Chor et al. (2) tenham encontrado de do Estado na regulação e distribui- que o uso do SUS estava associado ao ção desses insumos para a equidade em CONCLUSÃO não acesso à mamografia. Outro ponto ­saúde. O teto dos gastos públicos sobre a saúde suplementar levantado (PEC 55), que congela o financiamento do O estudo possibilitou identificar as ten- por Azevedo e Silva et al. (11) é que ter SUS por 20 anos, compromete ainda mais dências de cobertura pela ESF e saúde su- plano privado de saúde é um dos fatores a sustentabilidade de uma política de ESF plementar no Brasil e como essas duas que mais se associaram positivamente universal (34). modalidades de atenção têm impactado o com ter requisição para exame de ma- Como limitações do presente estudo, acesso à mamografia. Pelos achados, ob- mografia. Contudo, morar nas regiões a utilização de dados secundários pode servou-se que a distribuição geográfica Norte e Nordeste reduz as chances de ter gerado algum viés pela incompletu- dos mamógrafos influencia diretamente a exame nessa modalidade. de ou presença de informações ignora- cobertura do exame de mamografia na Um importante achado deste estudo das. Outra limitação é a heterogeneidade faixa etária de 50 a 69 anos, principalmen- é que, embora o Norte e o Nordeste entre os estados, que não é captada te nas regiões Norte e Nordeste, em que ­tenham maior cobertura de ESF, não é quando se faz a opção por investigar as há menor densidade de mamógrafos. nessas regiões que se concentram os ma- desigualdades por unidade federativa, A expansão da ESF e da saúde suple- mógrafos, talvez devido ao fato de que a havendo quase que uma homogeneiza- mentar tem possibilitado o aumento do disponibilidade e a oferta dos equipa- ção das informações no interior des- acesso às mamografias no Brasil, porém, mentos siga a lógica do mercado, com se agregado. Para estudos futuros, em algumas regiões do país, o impacto concentração em áreas com maior poder seria oportuno o desenvolvimento de da saúde suplementar é superior ao da

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ESF, principalmente porque os mamó- pena de mais mulheres adoecerem e de Financiamento 001 - e do Conselho grafos estão, em sua maioria, no sistema morrerem pelo câncer de mama no Bra- ­Nacional de Desenvolvimento Científico privado. Uma preocupação é que nessas sil, o que é uma condição injusta e e Tecnológico (CNPq) pela concessão regiões (Sul e Sudeste) também há uma inaceitável. da bolsa produtividade em pesquisa baixa cobertura de ESF, o que faz com (Processo 305236/2015-6). que as mulheres não tenham acesso a ne- Conflitos de interesse. Nada declara- nhuma das duas modalidades. do pelos autores. Declaração. As opiniões expressas A desigualdade na distribuição de no manuscrito são de responsabilidade mamógrafos no Brasil perdura como Agradecimentos. O presente trabalho exclusiva dos autores e não refletem entrave à equidade no acesso ao exame foi realizado com apoio da Coordenação ­necessariamente a opinião ou política de mamografia. São urgentes medidas de Aperfeiçoamento de Pessoal de da RPSP/PAJPH ou da Organização no sentido de reverter o quadro, sob ­Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código Pan-­Americana da Saúde (OPAS).

REFERÊNCIAS

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 29 Artigo original Ramos et al. • Acesso à mamografia no Brasil

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ABSTRACT Objective. To evaluate the association between access to mammography and coverage by the Family Health Strategy (FHS) and supplementary (private) health Family Health Strategy, insurance. Method. An ecological study was performed with data obtained from the private health care, and Unified Health System Data Processing Department (DATASUS). Time trends were inequalities in access to analyzed using the Prais-Winsten method, using the Brazilian federal units (states) mammography in Brazil as units of analysis. Multiple linear regression was used to investigate the relationship between the dependent variable – women aged 50 to 69 years who had never had a mammogram – and the independent variables (coverage by the FHS or supplementary health insurance and socioeconomic aspects). Results. Acre was the only Brazilian state for which a growth trend in supplementary health coverage was not observed. Roraima, Tocantins, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, and Paraíba showed a stable trend for FHS coverage; all other federal states showed an increase in coverage. A significant association was observed between never having had a mammogram at 50 to 69 years of age and two variables: mean per capita income and FHS and supplementary health coverage (R2=0.77; P < 0.001). Conclusion. Unequal access to mammography is a reality in Brazil. Both supplementary private health care and the FHS have helped to improve health care accessibility for Brazilian women.

Keywords Primary health care; Family Health Strategy; supplemental health; mammography; health status disparities; Brazil.

30 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Ramos et al. • Acesso à mamografia no Brasil Artigo original

RESUMEN Objetivo. Evaluar la asociación entre el acceso a la mamografía en Brasil y la cober- tura prestada por la Estrategia de Salud Familiar (ESF) y por la salud suplementaria. Estrategia de Salud Familiar, Métodos. Se realizó un estudio ecológico con datos obtenidos del Departamento de Informática del Sistema Único de Salud (DATASUS). La tendencia de la serie salud suplementaria y temporal fue analizada mediante el método de Prais-Winsten utilizando como uni- desigualdad en el acceso a dades de análisis las entidades federativas brasileñas. Para investigar la relación la mamografía en Brasil entre la variable dependiente —mujeres de 50 a 69 años que nunca se habían reali- zado una mamografía— y las independientes, de cobertura por la ESF o salud suplementaria y las variables socioeconómicas, se realizó un análisis de regresión lineal múltiple. Resultados. Acre fue el único estado que no presentó una tendencia creciente para la cobertura por la salud suplementaria. Roraima, Tocantins, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte y Paraíba presentaron una tendencia estacionaria para la cobertura por la ESF, mientras que las otras entidades federativas mostraron una cobertura en ascenso. Se observó una asociación significativa entre el hecho de nunca haberse realizado una mamografía entre los 50 y los 69 años y las varia- bles renta media per cápita, cobertura por la ESF y la salud suplementaria (R2 = 0,77; P <0,001). Conclusión. En Brasil, la desigualdad en el acceso a la mamografía es una realidad. Tanto la salud suplementaria como la Estrategia de Salud Familiar han contribuido a mejorar el acceso de estas mujeres a la mamografía.

Palabras clave Atención primaria de salud; Estrategia de Salud Familiar; salud complementaria; mamografía; disparidades en el estado de salud; Brasil.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 31

Pan American Journal Artigo original of Public Health

Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A no Brasil: um estudo de avaliabilidade

Wanessa Debôrtoli de Miranda,1 Eliete Albano Azevedo Guimarães,2 Daniela Souzalima Campos,3 Laís Santos Antero,3 Nathália Ribeiro Mota Beltão3 e Zélia Maria Profeta da Luz1

Como citar Miranda WD, Guimarães EAA, Campos DS, Antero LS, Beltão NRM, Luz ZMP. Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A no Brasil: um estudo de avaliabilidade. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e182. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.182

RESUMO Objetivo. Descrever as etapas do estudo de avaliabilidade do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A (PNSVA) no Brasil. Métodos. Estudo com abordagem qualitativa que adotou como referencial o sistema de sete elementos proposto por Thurston e Ramaliu. Foram realizados análise de documentos, revisão teórica sobre o PNSVA e encontros com referências técnicas para a elaboração da linha do tempo e modelos teórico e lógico do Programa. O modelo lógico subsidiou a elaboração de dois questio- nários a serem utilizados para avaliar a implantação do PNSVA. Foi realizada a validação de conteúdo das perguntas avaliativas dos questionários por meio da técnica Delphi. Resultados. O estudo possibilitou compreender a evolução das estratégias para prevenção e controle da deficiência de vitamina A no país, além do funcionamento do PNSVA e seu contexto externo. O modelo lógico revelou-se uma ferramenta valiosa para identificar áreas específicas que devem ser priorizadas em avaliações futuras. A validação dos questionários indicou que esses instrumentos abordam questões necessárias para a avaliação da implantação do Programa em municípios. A etapa da técnica Delphi foi de grande importância para guiar ajustes perti- nentes quanto ao conteúdo e à forma de apresentação de algumas questões, o que certamente aumentará o poder analítico da ferramenta. Conclusão. O estudo de avaliabilidade apontou a possibilidade de avaliações posteriores do PNSVA. Espera-se que os resultados desta investigação auxiliem futuras avaliações em países que adotam ações semelhantes às do Brasil.

Palavras-chave Avaliação em saúde; deficiência de vitamina A; vitamina A; política de saúde; Brasil.

A deficiência de vitamina A (DVA) é prevalentes em todo mundo, atingindo Entretanto, em vários países latino-ame- uma das carências nutricionais mais grande parte da população infantil em ricanos, a DVA ainda é considerada um países em desenvolvimento, principal- grave problema de saúde pública, como mente crianças menores de 5 anos de ida- é o caso de México, Jamaica, Haiti e Co- 1 Fiocruz Minas, Instituto René Rachou, Belo de (1). lômbia (2). As taxas na África subsaaria- Horizonte (MG), Brasil. Correspondência: Observa-se tendência de declínio na na e no sul da Ásia permaneceram altas e Wanessa Debôrtoli de Miranda, wanessa.debor- prevalência mundial de DVA, tendo sido praticamente inalteradas, em 48% e 44%, [email protected] 2 Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), relatadas reduções significativas no perí- respectivamente (3). Em regiões onde há Faculdade de Enfermagem, São João Del Rei odo de 1991 a 2013 no leste e sudeste da redução da prevalência de DVA, essa re- (MG), Brasil. 3 Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais Ásia e Oceania, de 42% para 6%, e na dução é frequentemente atribuída a (SES - MG), Belo Horizonte (MG), Brasil. América Latina e Caribe, de 21% a 11%. ações governamentais, em especial à

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 33 Artigo original Miranda et al. • Avaliabilidade do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A administração em massa de altas doses MATERIAIS E MÉTODOS operacionalização do PNSVA; 4) ativi- de vitamina A às crianças nos últimos 20 dades, que são os meios utilizados em anos (4). Realizou-se um estudo de avaliabilida- cada subcomponente para atingir resul- No Brasil, estudos têm identificado de com abordagem qualitativa, baseado tados específicos; 5) resultados interme- prevalências de 10% a 20% de níveis de no sistema dos sete elementos proposto diários; e 6) impacto do PNSVA. retinol sérico abaixo de 0,70 μmol/L, por Thurston e Ramaliu (11): a) descrição Com o objetivo de identificar indica- condição que caracteriza a hipovitami- do programa, identificando as metas, os dores de interesse para a avaliação do nose A como problema moderado a gra- objetivos e as atividades que o consti- Programa, foram definidas perguntas ve de saúde pública (5–7). Com o objetivo tuem; b) identificação e revisão dos do- avaliativas a partir do modelo lógico. Fo- de prevenir e controlar a DVA, o Ministé- cumentos disponíveis no programa; c) ram selecionadas perguntas referentes a rio da Saúde adota, desde 1983, a distri- modelagem (modelo lógico do progra- estrutura, atividades e resultados de to- buição em massa de megadoses da ma, dos recursos disponíveis, atividades dos os subcomponentes identificados. As vitamina A para crianças de 6 a 59 meses pretendidas, impactos esperados e cone- perguntas selecionadas foram classifica- de vida. Ao longo dos anos, as ações de xões causais presumidas); d) supervisão das de acordo com os critérios de rele- controle da DVA foram expandidas e for- do programa, ou obtenção de um enten- vância: prioridade, utilidade, capacidade talecidas. Essas ações são, atualmente, dimento preliminar sobre como o pro- de gerar informações importantes e regulamentadas pelo Programa Nacio- grama opera; e) desenvolvimento de um viabilidade. nal de Suplementação de Vitamina A modelo teórico da avaliação (MTA); f) Considerando-se a necessidade da (PNSVA) (8), organizado de forma seme- identificação de usuários da avaliação e participação de diferentes atores envol- lhante em todas as unidades federativas outros principais envolvidos; e g) obten- vidos com o PNSVA em nível municipal do país. ção de um acordo quanto ao procedi- para responder as perguntas, estas fo- As evidências de DVA no país e os es- mento da avaliação. ram dispostas em dois questionários: forços do governo para a prevenção Para a descrição do PNSVA foram re- um direcionado à gestão do Programa dessa deficiência apontam para a neces- alizadas a análise de documentos técni- (a ser respondido por um profissional sidade e a importância de avaliar a im- cos e do arcabouço legal, disponíveis da saúde referência técnica do PNSVA plantação do PNSVA. A incorporação em sites governamentais na Internet, no município), contemplando 43 ques- da avaliação à rotina dos serviços em compreendendo o período de 1988 (ano tões, e outro à assistência (profissionais todos os níveis do sistema de saúde, de criação do SUS) a 2016, além de revi- da atenção primária à saúde), com 49 passando pela avaliação da situação de são de literatura científica. Concomitan- questões. saúde da população, dos serviços e dos temente, foram realizadas quatro visitas Para a validação de conteúdo dos resultados das ações é uma das ferra- à Secretaria de Estado de Saúde de Mi- questionários utilizou-se a técnica de mentas de suporte para a consolidação nas Gerais (SES/MG) para verificar Delphi (13). Foram convidados a partici- do Sistema Único de Saúde (SUS) como é a operacionalização do Progra- par do painel de juízes 22 indivíduos, (9, 10). ma nos municípios e identificar os inte- dentre eles: doutores e especialistas no O estudo de avaliabilidade, etapa an- ressados (stakeholders) que poderiam campo da nutrição e representantes terior à avaliação propriamente dita, é contribuir e apoiar a avaliação. Esse do Programa no Ministério da Saúde, uma importante estratégia, pois permite conjunto de procedimentos subsidiou a na SES/MG, nas Gerências Regionais compreender a intervenção em profun- sistematização do conhecimento dispo- de Saúde e em municípios de Minas didade e planejar, previamente, a forma e nível no período mencionado para a ela- Gerais. o foco das avaliações posteriores: um dos boração dos modelos teórico e lógico do Utilizando-se o software LimeSurvey, objetivos do estudo de avaliabilidade é PNSVA e para a obtenção de um acordo foi solicitado a cada um dos juízes que identificar as áreas críticas a serem prio- quanto ao procedimento do estudo de avaliassem cada questão dos questioná- rizadas na avaliação (11). avaliabilidade. rios quanto a pertinência, necessidade e O presente estudo teve por objetivo A modelagem do PNSVA, desenvol- clareza do enunciado, classificando a descrever as etapas do estudo de avalia- vida a partir do modelo lógico (12), que questão em uma escala de opinião: CP: bilidade do PNSVA, tendo em vista que sintetiza os principais componentes do concordo plenamente, C: concordo, esse Programa ainda não teve uma ava- Programa em uma imagem de como o NN: não discordo nem concordo, D: liação anterior. O estudo de avaliabilida- sistema deve supostamente funcionar, discordo, DP: discordo plenamente. Os de abrangeu a exploração do processo garantiu a identificação dos componen- membros do painel poderiam, ainda, histórico das ações de controle e preven- tes e das relações causais presumidas, sugerir novos critérios ou modificações ção da DVA no país, os contextos interno­ permitindo a identificação de per­ guntas àqueles apresentados. e externo do Programa, a modelagem até avaliativas para a investigação do O grau de concordância das respostas o planejamento e a verificação da possi- ­Programa nos municípios de Minas foi encontrado a partir do percentual de bilidade da avaliação de sua implantação Gerais. O modelo foi estruturado em: questões classificadas na escala CP e C. em municípios do estado de Minas Ge- 1) componentes, identificados a partir Foi considerado como ponto de corte rais. Espera-se que os resultados deste dos objetivos específicos do PNSVA; para obtenção do consenso um valor aci- estudo possam subsidiar i­nvestigações 2) subcomponentes, ações necessárias ma de 70% (13). de ações que visem a prevenir e a contro- dentro de cada componente para que O projeto de avaliação do PNSVA no lar a DVA em regiões em que a DVA ain- se alcance o impacto desejado; 3) es- Estado de Minas Gerais foi aprovado da representa um importante problema trutura, ou seja, recursos físicos, orga- pelo Comitê de Ética em Pesquisa de saúde pública. nizacionais ou simbólicos necessários à do Instituto René Rachou, Fiocruz

34 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Miranda et al. • Avaliabilidade do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A Artigo original

­Minas (CAAE: 57957316.6.0000.5091). país. O PNSVA foi regulamentado em Modelo lógico, recursos, Aos participantes foi apresentado o ter- 2005, porém o Brasil iniciou as ações de atividades, impactos e conexões mo de consentimento livre e esclareci- suplementação de vitamina A para crian- causais e entendimento preliminar do, sendo o anonimato garantido por ças de 6 a 59 meses já em 1983, durante os de como o PNSVA opera meio do uso de códigos para a identifi- dias nacionais de vacinação em áreas cação dos mesmos. consideradas de alto risco para a defici- Quanto aos elementos c) modelagem ência (16). (modelo lógico do Programa) dos recur- RESULTADOS No modelo teórico do PNSVA, esque- sos disponíveis, atividades pretendidas, matizado na figura 2, é possível obervar impactos esperados e conexões causais A partir da análise dos elementos a) o contexto externo do Programa. presumidas e d) supervisão do PNSVA, descrição do Programa, identificando as O PNSVA é um dos programas inseri- ou obtenção de entendimento prelimi- metas, os objetivos e as atividades que o do na estratégia de Prevenção e Controle nar de como o PNSVA opera, para al- constituem e b) identificação e revisão de Agravos Nutricionais da Política Na- cançar o objetivo do Programa são dos documentos disponíveis, verifica- cional de Alimentação e Nutrição planejadas atividades direcionadas a mos que a expansão das ações de con- (PNAN), responsabilidade da Coordena- dois componentes distintos. O primeiro trole da DVA se deu com a criação, em ção Geral de Alimentação e Nutrição é a suplementação profilática medica- 1994, pelo Ministério da Saúde, do Pro- (CGAN), hierarquicamente subordinada mentosa de vitamina A, ação que deve grama Nacional de Controle da DVA ao Departamento de Atenção Básica ser por curto prazo. O segundo (14). No ano de 2001 houve a ampliação (DAB) do Ministério da Saúde. é a promoção da alimentação saudável da suplementação de vitamina A para as O DAB coordena no país outras ações, para prevenção da DVA, medida que puérperas, e em 2005 foi instituído o programas e estratégias que, apesar de deve ser utilizada a médio e longo PNSVA, sendo as ações de controle da fazerem parte do contexto externo ao ­prazo. O modelo lógico, apresentado na DVA intensificadas, culminando em PNSVA, têm em sua essência objetivos figura 3, subsidiou a elaboração dos 2012 na expansão do Programa para correlatos de apoio a educação alimen- questionários a serem utilizados para todo território nacional. Destaca-se que tar e nutricional e melhora nas condi- avaliar a implantação do PNSVA, em julho de 2016 a suplementação de ções de saúde de crianças. São estas: a ­contribuindo, assim, para o plano de puérperas foi suspensa em todo o país Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil, avaliação. após extenso debate com especialistas Programa Bolsa Família, conjunto de es- que consideraram que, apesar de a su- tratégias da Promoção da Saúde e da Desenvolvimento de modelo plementação aumentar a disponibilida- Alimentação Adequada e Saudável, Po- teórico da avaliação, identificação de de vitamina A no leite materno, não lítica Nacional de Atenção Integral à de usuários da avaliação e havia evidências contundentes quanto Saúde da Criança (PNAISC), Programa procedimento da avaliação aos benefícios em relação à saúde mater- Saúde na Escola (PSE), Vigilância Ali- na e infantil (15). mentar e Nutricional, Estratégia Saúde Quanto aos elementos e) desenvol- Na figura 1 está representada uma li- da Família (ESF), Núcleos de Apoio à vimento de um MTA; f) identificação nha do tempo onde é possível observar Saúde da Família (NASF), Consultório de usuários da avaliação e outros prin- alguns marcos do PNSVA e as estratégias na Rua e Unidade Básica de Saúde Flu- cipais envolvidos; e g) obtenção de um adotadas para a prevenção da DVA no vial (UBSF). acordo quanto ao procedimento de uma

FIGURA 1. Linha do tempo das estratégias para prevenção e controle da deficiência de vitamina A no Brasila

Portaria 2 160 – Ampliação das ações “Programa Nacional de de suplementação para Controle da deficiência puérperas nas áreas de Vitamina A” de risco Ampliação do PNSVA para Suspensão da Distribuição de Vitamina A municípios pertencentes à suplementação de integrada ao Programa Amazônia Legal e alguns vitamina A para Nacional de Imunização Programa é retomado pelo CGPAN Distritos Sanitários puérperas em todo nas áreas de risco Especiais Indígenas o país

1981 1983 1988 1994 1997 1999 2001 2005 2010 2012 2016

“Projeto de Combate à Programa paralisado Portaria 729 –“Programa Ampliação do PNSVA no Hipovitaminose A” com extinção do Nacional de território nacional ao (INAN) INAN Suplementação de integrar a “Ação Brasil Vitamina A” Carinhoso” Introdução de alimentos Aquisição de cápsulas fortificados com vitamina A de vitamina A através da pelo INAN Farmanguinhos a CGPAN: Coordenação Geral da Política de Alimentação e Nutrição; INAN: Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição; PNSVA: Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A. Farmanguinhos: Laboratório ­Farmacêutico Federal Farmanguinhos, Laboratório Oficial do Ministério da Saúde do Brasil.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 35 Artigo original Miranda et al. • Avaliabilidade do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A

FIGURA 2. Modelo teórico do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A, Brasila

Política Nacional de CGAN DAB MS Alimentação e Nutrição

Marcos legais -Lei 8 080, de 19 de setembro de 1990 Prevenção e Controle de -Portaria 710, de 10 de junho de 1999 Documentos técnicos Agravos Nutricionais -Amamenta e Alimenta -Portaria 2 246, de 18 de outubro de 2004 -Projeto Suplementação de megadose de Brasil -Portaria 729, de 13 de maio de 2005 Vitamina A no pós-parto imediato nas -Programa Bolsa -Lei 11 346, de 15 de setembro de 2006 matemidades/hospitais (2002) Família -Sisvan: orientações básicas para coleta, -Promoção da Saúde e -Portaria 648, de 28 de março de 2006 processamento, análise de dados e Programa Nacional de da Alimentação -Portaria 687, de 30 de março de 2006 informação em serviços de saúde (2004) Suplementação de Adequada e Saudável Vitamina A -PNAISC -Portaria 154, de 24 de janeiro de 2008 -Cadernos de Atenção Básica: carências de micronutrientes (2007) -PSE -Portaria 2 488, de 21 de outubro de 2011 -Alimentação e nutrição para as famílias do -Vigilância Alimentar e -Portaria 2 715, de 17 de novembro de 2011 Programa Bolsa Família: manual para os Nutricional -ESF -Portaria 2 446 de 13 de novembro de 2014 agentes comunitários de saúde (2007) -Guia alimentar para a população -NASF -Portaria 2 436, de 21 de setembro de 2017 brasileira: promovendo a alimentação Prevenir e/ou controlar a deficiência -Consultório na rua -Portaria de Consolidação 02 de 28 de saudável (2008) nutricional de vitamina A por meio da -UBSF setembro de 2017: Anexos I, III e XXII -Dez passos da Alimentação Saudável para suplementação profilática e promoção crianças menores de 2 anos (2013) da alimentação adequada e saudável -Manual de condutas gerais do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A (2013) -Alimentos regionais brasileiros (2015) -Nota técnica 135/2016: encerramento de suplementação de puérperas (2016) a CGAN: coordenação geral de alimentação e nutrição; DAB: Departamento de Atenção Básica; ESF: Estratégia Saúde da Família; NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família; PNAISC: Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança; PSE: programa saúde na escola; Sisvan: Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional; UBSF: Unidade Básica de Saúde da Família.

avaliação, este estudo foi proposto e observações foram referentes ao número instrumento útil para explorar a teoria, conduzido por pesquisadores do Insti- de questões. Alguns avaliadores conside- propósitos e objetivos do PNSVA na ela- tuto René Rachou da Fundação Oswaldo raram os questionários extensos e sugeri- boração de modelos capazes de esclare- Cruz (Fiocruz Minas) e teve adesão de 15 ram a condensação de algumas perguntas, cer os contextos interno e externo e para interessados, engajados em diferentes ní- a melhoria de alguns enunciados quanto a verificar a plausibilidade das relações veis de atuação no PNSVA. O grupo de clareza e a inserção de outras questões que entre o problema, a estrutura do Progra- 15 interessados incluiu pesquisadores e julgavam pertinentes. ma, as suas atividades e os resultados referências técnicas do Programa em ní- Após as modificações consideradas esperados a curto, médio e longo prazo. vel estadual e regional. Ademais, houve pertinentes, o questionário destinado à O estudo de avaliabilidade do PNSVA reconhecimento de outros interessados gestão, que tinha 43 questões, passou a possibilitou ainda o desenvolvimento de na avaliação, como os profissionais da ter 29. Dentre essas questões, uma abor- um plano para avaliações posteriores. atenção primária à saúde (APS) (referên- dou a estrutura do Programa, 11 aborda- No campo das ações políticas, inclusi- cia técnica municipal, enfermeiros e nu- ram o processo e 17 foram destinadas ve das políticas de saúde, a avaliação tricionistas) e os usuários do Programa especificamente às atividades relaciona- vem ganhando centralidade nas discus- (crianças de 6 meses a 5 anos de idade). das à suplementação com megadoses de sões. O reconhecimento da necessidade Dos 22 convidados a participar da téc- vitamina A. Já o questionário destinado à de sistemas e estratégias capazes de re- nica Delphi, oito realizaram a avaliação assistência, que tinha 49 questões, passou troalimentar de forma ágil, eficiente e dos questionários. O grau de concordân- a ter 37, das quais cinco contemplaram a oportuna tanto os programas quanto os cia encontrado na validação de conteúdo estrutura, 11 abordaram a promoção da serviços de saúde vem favorecendo a foi de 92,7% quanto à pertinência e ne- alimentação saudável para a prevenção crescente pressão social para o desen- cessidade das questões e de 86,5% quan- da DVA e 21 foram destinadas à suple- volvimento da cultura de avaliação no to à clareza para o questionário destinado mentação com megadoses de vitamina A. Brasil (17). Isso explica, ao menos em à assistência do PNSVA. Para o questio- Os questionários estão disponíveis aos parte, o crescimento relevante de publi- nário destinado à gestão do Programa, o interessados mediante contato com o au- cações sobre avaliação em saúde no grau de concordância foi de 97,84% para tor correspondente do presente artigo. país, sobretudo a partir de meados dos a pertinência e necessidade das questões anos 2000 (18). e 92,97% para a clareza. DISCUSSÃO Pesquisas avaliativas têm sido utiliza- De forma geral, os juízes relataram das para gerar informações que apoiem que ambos os questionários são claros e A presente investigação apontou que e orientem a tomada de decisão, favo- de fácil compreensão. As principais o estudo de avaliabilidade foi um recendo a compreensão da realidade no

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FIGURA 3. Modelo lógico do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A no Brasil

Resultados Componentes Subcomponentes Estrutura Atividades Impacto Intermediários

- Identificar público alvo. - Verificar data da última suplementação na caderneta de Triagem saúde da criança. - Definir estratégias para - Planejamento de suplementação. estratégias para a suplementação - Realizar a suplementação na sala adequadas à de aplicação de medicamentos. realidade local. Suplementação - Seguir o calendário de administração. Suplementação profilática - Registrar o recebimento, - Garantia da medicamentosa o estoque, doses administradas conservação de vitamina A e perdidas no sistema de gestão. adequada dos suplementos, em crianças do - Registrar a suplementação no Registro de minimizando sua 6º até o 59º mês mapa diário e na caderneta de informações perda. Curto prazo de idade saúde da criança.

Suplementos de - Analisar as informações do vitamina A, sistema de gestão referentes - Envolvidos no programa Análise de informações local ao estoque, perda do suplemento adequado e cobertura, planejando ações de adequadamente para otimização sempre que capacitados e - Redução da armazenamento necessário. sensibilizados. deficiência de dos vitamina A. suplementos, computador, - Acondicionar os suplementos na - Alcance da meta Estocagem impressora, farmácia do estabelecimento de - Melhoria no anual de acesso à saúde, em local fresco, arejado e estado geral de suplementação de Internet, protegido da claridade. saúde da vitamina A. recursos população alvo. humanos, conjunto de leis, - Realizar cursos, treinamentos Capacitação dos formulários e e / ou oficinas para profissionais profissionais regulamentos, envolvidos no programa sobre material sua operacionalização e ações de educativo. promoção da alimentação saudável com ênfase na prevenção de deficiência de - Aumento da vitamina A. duração do aleitamento materno. Promoção da Apoiar por meio de ações - Aumento do alimentação individuais e coletivas: consumo de saudável para Educação alimentar e alimentos fonte de prevenção da - amamentação e consumo de nutricional vitamina A pela deficiência de alimentos fonte de vitamina A, população alvo. vitamina A pela gestante, durante acompanhamento de pré-natal. Médio e longo prazo - amamentação exclusiva e continuada e inclusão de - Profissionais alimentos fonte de vitamina A na preparados para a alimentação complementar educação durante o acompanhamento de nutricional com crescimento e desenvolvimento enfoque na DVA. infantil.

cotidiano do trabalho, transformando as um plano de avaliação mais consisten- O modelo lógico foi essencial para ideias e práticas. Nesse contexto, o estu- te e com maior credibilidade (11). Com compreender as premissas teóricas do do de avaliabilidade é considerado uma este objetivo, no contexto da APS, é PNSVA, permitindo a identificação das importante estratégia para verificar em crescente o interesse de pesquisadores perguntas avaliativas, fundamentais que medida uma intervenção pode ser em realizar essa abordagem avaliativa para a condução da avaliação. Por avaliada, favorecendo a elaboração de (19–21). meio dele foram identificados dois

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 37 Artigo original Miranda et al. • Avaliabilidade do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A componentes distintos com o objetivo melhoria do Programa (11). Para tanto, aumentará o poder analítico da comum de reduzir a DVA em crianças desde sua idealização, a presente investi- ferramenta. menores de 5 anos: a suplementação gação contou com a parceria da gestão Pode-se considerar que uma limitação profilática medicamentosa com vitami- do PNSVA do estado de Minas Gerais. do estudo foi a utilização de questioná- na A e a promoção da alimentação Houve ainda preocupação na identifica- rios on-line para realizar a técnica Delphi. saudável. ção e inclusão de demais partes interes- Apesar de possibilitar maior alcance de Ressalta-se que a suplementação profi- sadas na avaliação, em especial por meio potenciais respondentes, esse formato lática medicamentosa é o foco central de da técnica Delphi. leva a perdas amostrais consideráveis. ação na maior parte dos 80 países que A negociação entre os atores interessa- O estudo de avaliabilidade confirmou têm programas de controle da DVA (22). dos e envolvidos em processos avaliati- a possibilidade de realizar uma avaliação A administração em massa de altas doses vos é uma importante característica do sistemática de caráter mais extenso. A de vitamina A em crianças nos últimos que Guba e Lincoln (29) denominam de apropriação do processo histórico das 20 anos é frequentemente relacionada à avaliação de quarta geração, que se con- ações de prevenção da DVA e dos mode- redução mundial de sua deficiência ao trapõe às gerações anteriores à década de los teórico e lógico do PNSVA poderão longo do tempo, especialmente em regi- 1980. O engajamento de pessoas interes- contribuir para verificar se a estrutura ões carentes (4). Porém, estudos apon- sadas na avaliação constitui-se na abor- disponível, as atividades planejadas e os tam que a cobertura e a sustentabilidade dagem mais desejável para identificar produtos gerados são suficientes para desses programas são um desafio cons- problemas e explicações do objeto avalia- atender aos objetivos propostos. Ade- tante (23–25), reforçando a importância do, favorecendo a incorporação dos re- mais, a partir desse estudo, foram cons- de sua avaliação. Apesar de os progra- sultados na tomada de decisão para truídas, com a participação de atores mas de suplementação de vitamina A te- aperfeiçoar, ampliar ou alterar a inter- interessados na avaliação, perguntas rem contribuído para reduzir as taxas de venção (10). avaliativas oportunas para a avaliação mortalidade em menores de 5 anos, acre- Tanaka e Tamaki (10) relatam que, para da implantação do Programa, a ser reali- dita-se que, enquanto ação isolada, não estruturar um processo avaliativo que te- zada futuramente no estado de Minas abordam o problema subjacente da in- nha a capacidade de apoiar a tomada de Gerais. O plano de avaliação fortalece o gestão alimentar inadequada da VA e decisão da gestão em saúde e responda poder da ferramenta de avaliação e a uti- de sua deficiência crônica em crianças aos anseios das partes interessadas, é ne- lização de seus achados pela gestão, tan- em idade pré-escolar em países em cessário que um conjunto de princípios to em nível nacional, estadual, regional ­desenvolvimento (26), justificando a ne- seja levado em consideração: 1) utilida- quanto municipal. cessidade de avaliação do segundo com- de: garantia da abordagem de questões Pretende-se que o presente estudo en- ponente do Programa apresentado pelo relevantes; 2) factibilidade e viabilidade: riqueça o debate sobre a necessidade de modelo lógico, a promoção da alimenta- a avaliação deve ter boa relação de custo- metodologias de avaliação que possibili- ção saudável. -benefício; 3) propriedade: garantia da tem investigar aspectos que vão além da Ao investigar a trajetória da educação ética e 4) precisão: garantia de que os cobertura e efetividade do Programa e alimentar e nutricional nos programas achados possam ser considerados corre- que sejam capazes também de explorar a oficiais de controle da DVA no país, Ro- tos. A inclusão dos interessados é uma relação entre os componentes do Progra- drigues e Roncada (27) revelaram que, maneira de garantir uma avaliação de ma e desses com o contexto. Portanto, ao longo dos últimos 40 anos, essas qualidade, atendendo os padrões da ava- sugere-se que pesquisadores de outras ações não se efetivaram ou sofreram in- liação, em especial a utilidade e a regiões que se propõem a investigar terrupções, ocorrendo de forma tempo- propriedade. ações de prevenção da DVA realizem es- rária e sem avaliação. Os autores O padrão de utilidade foi garantido, tudos de avaliabilidade como este para assumiram, porém, que o PNSVA apre- também, durante a validação das ferra- garantir que sua avaliação seja capaz de senta importantes avanços ao considerar mentas de coleta de dados por meio da desvelar a efetividade ou não das ações, que a educação alimentar e nutricional técnica Delphi. A seleção das perguntas elencando suas fragilidades e fortalezas. deve acontecer paralelamente à suple- avaliativas é um ponto crucial no proces- mentação, não devendo ser considerada so de avaliação. Quando não há clareza Agradecimentos. Os autores agrade- como uma medida pontual. nessas perguntas, o produto não é uma cem o apoio do Programa de Pós-Gradu- Além da exploração do contexto da in- avaliação, e sim um diagnóstico. A au- ação em Saúde Coletiva do Instituto tervenção, outro item relevante na ava- sência dessa clareza acarretará no acú- René Rachou – FIOCRUZ Minas e da Co- liação em saúde é identificar se os mulo de dados e de informações que ordenação de Aperfeiçoamento de Pes- resultados serão utilizados e se há indi- poderão não ser úteis na tomada de deci- soal de Nível Superior (CAPES). cativo de sustentabilidade da interven- são para alterar determinada situação de ção (28). Para isso, a avaliação em saúde saúde da população (10). Conflitos de interesse. Nada declara- não pode ser realizada apenas pela A avaliação do painel de juízes indicou do pelos autores. gestão. que as questões elaboradas abordam as- A cooperação efetiva dos envolvidos pectos necessários para a compreensão Declaração. As opiniões expressas no no processo de implantação de uma in- da implantação do PNSVA nos municí- manuscrito são de responsabilidade ex- tervenção contribui, desde os primeiros pios. Esta etapa foi de grande importân- clusiva dos autores e não refletem neces- achados do estudo, para a análise e inter- cia para guiar ajustes pertinentes quanto sariamente a opinião ou política da pretação dos dados do estudo de avalia- ao conteúdo e à forma de apresentação RPSP/PAJPH ou da Organização Pan- bilidade, podendo gerar subsídios para a de algumas questões, o que certamente -Americana da Saúde (OPAS).

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 39 Artigo original Miranda et al. • Avaliabilidade do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A

ABSTRACT Objective. To describe the steps of the Brazilian Vitamin A Supplementation Program (PNSVA) evaluability assessment. Method. The present qualitative study employed the seven-element system pro- Vitamin A Supplementation posed by Thurston and Ramaliu. The study involved document analysis, conceptual Program in Brazil: review of PNSVA, and meetings with technical experts to assemble a time line and the Program’s theoretical and logical frameworks. The logical framework supported the evaluability assessment elaboration of two questionnaires to be used for PNSVA evaluation. The question- naires were validated using the Delphi method. Results. The analysis revealed the evolution of vitamin A control and prevention strategies in the country, and provided information on the functioning of PNSVA and on its external context. The logical framework was found to be an invaluable tool for detecting specific priority areas for future assessments. The validation of the question- naires indicated that they did in fact cover topics that are necessary to evaluate the implementation of PNSVA in municipalities. The Delphi step was essential to guide adjustments regarding question content and format, which served to increase the ana- lytic power of the instruments. Conclusion. The evaluability assessment indicated that future PNSVA evaluations will be possible. It is expected that the present results may be useful in countries devel- oping similar initiatives as the one described in Brazil.

Keywords Health evaluation; vitamin A deficiency; vitamin A; health policy; Brazil.

RESUMEN Objetivo. Describir las etapas del estudio de evaluación del Programa Nacional de Suplementación de Vitamina A (PNSVA) en Brasil. Métodos. Estudio con enfoque cualitativo que adoptó como marco de referencia el Programa Nacional de sistema de siete elementos propuesto por Thurston y Ramaliu. Se realizó análisis de Suplementación de documentos, revisión teórica del PNSVA y reuniones con expertos técnicos para la elaboración del cronograma y los marcos teórico y lógico del Programa. El modelo Vitamina A en Brasil: un lógico ayudó a elaborar dos cuestionarios para ser utilizados en la evaluación del estudio de evaluación PNSVA. Los cuestionarios fueron validados utilizando el método Delphi. Resultados. El estudio permitió comprender la evolución de las estrategias para pre- venir y controlar la deficiencia de vitamina A en el país, además del funcionamiento del PNSVA y su contexto externo. El modelo lógico representó una herramienta valiosa para identificar áreas específicas que deben ser priorizadas en evaluaciones futuras. La validación de los cuestionarios indicó que estos instrumentos abordan temas nece- sarios para la evaluación de la implantación del Programa en los municipios. La apli- cación del método Delphi fue muy importante para guiar los ajustes pertinentes en cuanto al contenido y la forma de presentación de algunos temas, lo que con certeza aumentará el poder analítico de la herramienta. Conclusión. El estudio de evaluación señaló la posibilidad de evaluaciones futuras del PNSVA. Se espera que los resultados de esta investigación ayuden a futuras eva- luaciones en países que adopten acciones similares a las de Brasil.

Palabras clave Evaluación en salud; deficiencia de vitamina A; vitamina A; política de salud; Brasil.

40 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Pan American Journal Artigo especial of Public Health

Política Nacional de Atenção Básica no Brasil: uma análise do processo de revisão (2015–2017)

Erika Rodrigues de Almeida,1 Allan Nuno Alves de Sousa,1 Celmário Castro Brandão,1 Fabio Fortunato Brasil de Carvalho,2 Graziela Tavares1 e Kimielle Cristina Silva3

Como citar Almeida ER, Sousa ANA, Brandão CC, Carvalho FFB, Tavares G, Silva KC. Política Nacional de Atenção Básica no Brasil: uma análise do processo de revisão (2015–2017). Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e180. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.180

RESUMO Objetivo. Apresentar e discutir acontecimentos relacionados ao processo de revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) no Brasil, de modo a evidenciar narrativas que possam contribuir para análises futuras sobre a formulação, implementação e avaliação dessa Política. Métodos. Trata-se de relato de experiência de participantes do processo de revisão da PNAB, a partir da análise de conteúdo complementada por análise documental. Resultados. O processo de revisão da PNAB, ocorrido entre 2015 e 2017, foi fortemente marcado por disputas técnico-políticas entre o Ministério da Saúde e as instâncias representa- tivas de secretarias municipais e estaduais de saúde. As principais mudanças introduzidas pela nova versão da PNAB são a possibilidade de financiamento de outros modelos de organi- zação da atenção básica além da Estratégia Saúde da Família; a ampliação das atribuições dos agentes comunitários de saúde; a construção da oferta nacional de serviços e ações essenciais e ampliadas da atenção básica; e a inclusão do gerente de atenção básica nas equipes. Conclusões. A implementação da nova PNAB, fruto de disputas travadas no campo da gestão interfederativa, dependerá da confluência de interesses no sentido da efetivação de uma atenção primária acessível e resolutiva, fortalecendo o Sistema Único de Saúde, o que requer substancialmente a participação e o protagonismo da sociedade na luta pelo direito à saúde no Brasil.

Palavras-chave Política de saúde; atenção primária à saúde; Estratégia Saúde da Família; avaliação em saúde; Brasil.

1 Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à A atenção primária à saúde (APS) foi as pessoas vivem e trabalham, coloca- Saúde, Departamento de Atenção Básica, Brasília (DF), Brasil. Correspondência: Erika Rodrigues de concebida, a partir de Alma-Ata, como dos ao alcance universal de indivíduos e Almeida, [email protected] oferta de cuidados primários essenciais, ­famílias da comunidade, possibilitando 2 Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de fundamentados em tecnologias e méto- sua plena participação, a um custo com o Saúde Pública Sérgio Arouca, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Saúde Pública, dos apropriados, cientificamente com- qual a comunidade e o país possam arcar Rio de Janeiro (RJ), Brasil. provados e socialmente aceitáveis. Esses em cada fase de seu desenvolvimento, 3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), cuidados devem estar disponíveis o mais no espírito de autoconfiança e autodeter- Instituto de Medicina Social, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. proximamente possível dos lugares onde minação (1, 2).

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 41 Artigo especial Almeida et al. • Revisão da Política Nacional de Atenção Básica

Nos países em desenvolvimento, a APS SUS e o primeiro nível de atenção de quadros de gestão do Ministério da foi originalmente “seletiva”, concentran- uma rede hierarquizada e organizada ­Saúde (14, 19), em 2006 o cenário político do-se em poucas intervenções de alto em complexidade crescente. É definida para a formulação da PNAB se mostrou ­impacto para combater as causas mais em formato abrangente, compreenden- bastante conturbado, gerando grande in- prevalentes de mortalidade infantil e do ações de promoção e proteção da segurança institucional, sobretudo pela ­algumas doenças infecciosas (3). Com o saúde, prevenção de agravos, riscos e reforma ministerial ocorrida à época (14) passar do tempo, propostas abrangentes doenças, diagnóstico, tratamento e rea- e pelo fato de que uma série de ações foram sendo implementadas, baseadas bilitação da saúde (7). Esse conceito está ­estruturantes da própria política ainda nas recomendações da Declaração de previsto na Constituição Federal brasi- não havia sido realizada, como, por ­Alma-Ata (4). leira de 1988 e nas normas que regula- exemplo, a regulamentação da categoria A partir da década de 1980, a mudan- mentam o SUS. profissional do agente comunitário de ça no perfil demográfico e epidemiológi- Na linha do tempo de construção da saúde (ACS), que se deu apenas em ou- co da população em todo o mundo, APS brasileira, os primeiros cuidados tubro do mesmo ano. aliada a contextos econômicos restriti- primários remontam à Reforma Carlos Buscando preservar a centralidade da vos, ao aumento das despesas em saúde Chagas, com a criação, em 1920, de pos- ESF e consolidar uma APS forte, em decorrentes da incorporação desordena- tos de profilaxia rural voltados ao com- 2011 houve uma primeira revisão da da de tecnologias de alto custo, à inefici- bate a endemias e epidemias de agravos PNAB. Em síntese, o novo texto manteve ência e baixa qualidade dos serviços e às prioritários à época (8). Até a década de a essência de 2006 e introduziu impor- mudanças no papel do Estado impulsio- 1980, quando foi criado o SUS, prevalece- tantes inovações voltadas à ampliação naram reformas organizacionais dos sis- ram modelos centralizados e campanhis- do acesso, cobertura e resolubilidade temas de saúde em diversos países das tas, com oferta de ações voltadas ao da atenção básica, com destaque para a Américas e da União Europeia (4, 5). controle das grandes endemias e consi- flexibilidade da carga horária médica, a O objetivo dessas reformas foi a otimiza- deradas como “medicina pobre para po- introdução de novos arranjos de equipes ção dos custos em saúde e a coordenação bres”, com uma concepção assistencialista e o Programa Nacional de Melhoria do entre os níveis assistenciais, com fortale- e curativa (9–11). Acesso e da Qualidade na Atenção ­Básica cimento dos serviços de APS e a melho- A partir de então, experiências de orga- (PMAQ-AB) (20). Tais ações vêm sendo ria da qualidade e eficiência (5). nização dos cuidados primários foram implementadas desde então, em contra- Na América do Sul, as reformas dos desenvolvidas em todo o país e serviram ponto a um cenário nacional de instabili- sistemas de saúde ocorreram, geralmen- como precursoras de ações e programas dade econômica e política. te, em conjunto com processos de demo- governamentais instituídos pelo Estado Da publicação da PNAB 2011 até os cratização, embutidas em mudanças brasileiro e inspirados em modelos de dias atuais, diversos programas e ações econômicas, sociais e legais/constitucio- APS de países como Canadá, Cuba, foram modificados ou instituídos na nais mais amplas que colocavam a saúde ­Suécia e Inglaterra. No início da década atenção básica, como o Programa Mais como direito humano fundamental, a de 1990, foram instituídos o Programa de Médicos, as ações e instrumentos para ser desenvolvida como parte das políti- Agentes Comunitários de Saúde (PACS) consolidação da integração ensino-­ cas públicas que enfatizavam a equida- e o Programa Saúde da Família (PSF) – serviço, as ações de regulação vincula- de ­social e a democracia participativa. que passou a ser Estratégia Saúde da das ao Telessaúde Brasil Redes, dentre Os modelos de saúde biopsicossocial e ­Família (ESF) em 2006 (12–15) –, conside- outras. No intuito de incorporar tais intercultural subjacentes a tais reformas rados o marco de uma nova proposta na- ações à PNAB, iniciou-se, em 2015, a se- também implicavam maior ênfase na cional de APS e parte de uma estratégia gunda ­revisão dessa política. ­família, na comunidade, na provisão de governamental para reestruturar o siste- A formulação e revisão de políticas serviços e políticas intersetoriais e na ma e o modelo assistencial do SUS ­públicas são apresentadas há mais de participação social (6). (16, 17). A tabela 1 apresenta as principais 20 anos pelo campo das ciências sociais Em 2007, a Organização Pan-Americana estratégias, ações e programas instituídos como um processo cíclico. Segundo Faria­ da Saúde e a Organização Mundial da ao longo da trajetória de consolidação da (21), a década de 1990 testemunhou, nas Saúde (OPAS/OMS) lançaram as bases de atenção básica brasileira, a partir da insti- democracias ocidentais de uma maneira um movimento de renovação da APS nas tuição do PACS e PSF. geral, e na América Latina particular- Américas, buscando estimular ­reflexões Com a instituição e a implementação mente, a busca de fortalecimento da acerca da implementação de políticas con- das diversas ações, percebeu-se, então, a “função avaliação” na gestão governa- dizentes com os princípios e valores de- necessidade de elaborar uma política na- mental, sendo implementados diferentes fendidos em Alma-Ata e fomentar­ novas cional que não apenas agrupasse as dis- sistemas de avaliação das políticas públi- reformas para organizar e fortalecer os tintas iniciativas, mas revisasse muitas cas, justificados pela necessidade de sistemas nacionais de saúde orientados delas, com vistas a definir prioridades e “modernização” da gestão pública no pela APS, inclusive o sistema de saúde otimizar os gastos públicos. Instituiu-se contexto das reformas de Estado. Assim, brasileiro (4). um grupo de trabalho no Ministério da compreender o processo de implementa- No Brasil, durante o processo de im- Saúde, em 2003, que produziu a Política ção de políticas pode se traduzir em im- plementação do Sistema Único de Saú- Nacional de Atenção Básica (PNAB), portante elemento de aperfeiçoamento de (SUS), as práticas de APS passaram ­publicada em março de 2006 (14, 18). da ação governamental (22, 23). a ser denominadas de atenção básica, Em que pese o fato de que, em Tendo como premissa a avaliação implementada como política de Estado. 2003, importantes quadros militantes da como componente da gestão em saúde e A atenção básica é porta de entrada do ­Reforma Sanitária passaram a compor os tendo como propósito fundamental dar

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TABELA 1. Principais estratégias, ações e programas instituídos ao longo da trajetória outros pontos de vista, convergentes ou de consolidação da atenção básica, Brasil, 1991 a 2017 não com os apresentados aqui. Em outras palavras, os autores assumem a perspecti- Ano Estratégias/ações/programas va bourdieusiana (25) da ausência de neu- 1991 Criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde. tralidade na verdade científica disposta 1994 Criação do Programa Saúde da Família. neste manuscrito. 1998 Implantação do piso de atenção básica (montante de recursos financeiros federais destinados à viabilização de ações de atenção básica à saúde nos municípios, em substituição ao pagamento RESULTADOS E DISCUSSÃO por produção); criação do Sistema de Informação da Atenção Básica. 1999 Publicação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Processo de revisão da PNAB 2017: 2001 Implantação da saúde bucal no Programa Saúde da Família. arena de disputa 2003 Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família I; Criação do Programa Bolsa Família. 2004 Criação da Política Nacional de Saúde Bucal. Desde a publicação da primeira PNAB, 2005 Instituição da autoavaliação para melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. em 2006, foram percebidos avanços im- 2006 Regulamentação profissional dos agentes comunitários de saúde; publicação da Política Nacional de portantes no campo da ampliação do Atenção Básica, da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde e da Política acesso da população a ações de atenção Nacional de Promoção da Saúde; Programa Saúde da Família se torna Estratégia Saúde da Família. básica, como se observa na figura 1. 2007 Criação do Programa Saúde na Escola. De 2007 a 2017, houve ampliação da co- 2008 Criação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família; inclusão do microscopista na Estratégia Saúde da Família. bertura populacional pela ESF, variando 2009 Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família II. de 48% a 64%. As equipes de saúde ­bucal também apresentaram aumento 2010 Criação das equipes de saúde da família ribeirinhas e custeio de unidades básicas de saúde fluviais. na cobertura (29,9% para 41,2%). Houve, 2011 Reformulação da Política Nacional de Atenção Básica; criação do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica, do Programa de Requalificação de Unidades Básicas ainda, ampliação de 25,3% no número de de Saúde, do Programa Melhor em Casa, do Programa Academia da Saúde; das equipes de Consultório ACS, com crescimento contínuo, excetu- na Rua; do Telessaúde Brasil Redes e do Brasil Sorridente Indígena; revisão da Política Nacional de ando-se o último biênio, onde houve re- Alimentação e Nutrição. dução de 0,7%. 2012 Criação do Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica. Além disso, uma série de programas 2013 Criação do Programa Mais Médicos e substituição do Sistema de Informação da Atenção Básica pela e estratégias foram implementadas na estratégia e-SUS Atenção Básica. busca de ampliar o acesso e a integrali- 2014 Publicação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade; revisão dade do cuidado na atenção básica. da Política Nacional de Promoção da Saúde. 2017 Reformulação e publicação da nova Política Nacional de Atenção Básica. Contudo, persiste o desafio da baixa ­resolubilidade desses serviços (26, 27). Diante desse cenário, gestores munici- pais e estaduais de saúde, por intermé- suporte aos processos decisórios no âm- iriam subsidiar a análise, apropriando- dio do Conselho Nacional de Secretarias bito do sistema de saúde, o presente tra- -se dele e deixando-se invadir por Municipais de Saúde (CONASEMS) e do balho apresenta e discute acontecimentos ­impressões e orientações. Em seguida, Conselho Nacional de Secretários de relacionados ao processo de revisão da parte do material foi selecionado e agru- Saúde (CONASS), mostraram interesse PNAB, concluído em 2017, com vistas a pado de forma semelhante ao que foi em debater a PNAB então vigente, de introduzir narrativas que possam contri- descrito nos documentos investigados, modo que fosse discutida, sobretudo, a buir para análises futuras sobre a formu- a partir de recortes e extração das ampliação do financiamento federal para lação, implementação e avaliação dessa ideias mais relevantes, formando, assim, outras modalidades de organização da política. os temas. atenção básica e a possibilidade de novos Mediante leitura e releitura do material arranjos na composição da ESF. Em para- MATERIAIS E MÉTODOS considerado relevante, as informações fo- lelo, o relatório da 15ª Conferência Na- ram agrupadas de acordo com dimensões cional de Saúde, realizada em 2015, O presente artigo é um relato de experi- temáticas, emergindo três categorias para propôs garantir o processo de revisão da ência de um grupo de participantes da análise e discussão: processo de revisão PNAB, de modo a discutir a composição gestão federal da atenção básica no pro- da PNAB 2017; principais mudanças e e a carga horária de profissionais da ESF cesso de revisão da PNAB, ocorrido no inovações introduzidas na PNAB; e inte- e os critérios de distribuição de habitan- período de 2015 a 2017, complementado resses e elementos constitutivos das mu- tes por equipe. por análise documental. Foram utilizados, danças e inovações à PNAB. Assim, em 2015, o Departamento de como fontes de informação, documentos e Em que pese o esforço de análise crítica Atenção Básica (DAB) do Ministério outros registros pessoais das reuniões, do material sistematizado, é importante da Saúde deu início a um conjunto de ­encontros e oficinas acerca da revisão da reconhecer o lugar de fala e implicação reuniões, oficinas e fóruns envolvendo PNAB, além de relatórios gerenciais e do- dos autores e destacar que a maior parte trabalhadores, gestores, usuários e pes- cumentos técnicos e normativos oficiais. do conteúdo aqui apresentado deriva de quisadores. O objetivo desse esforço Por meio de triangulação de fontes relatos e registros pessoais. Adicional- foi colher subsídios para a construção de e dados, procedeu-se à análise de conte- mente, há clareza de que se trata de uma estratégias voltadas à agenda de fortale- údo (24). Primeiramente, os autores esta- das versões possíveis de compreensão do cimento da atenção básica para os próxi- beleceram contato com os materiais que processo, sendo plausível a existência de mos anos e, assim, atualizar a PNAB.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 43 Artigo especial Almeida et al. • Revisão da Política Nacional de Atenção Básica

FIGURA 1. Número de agentes comunitários de saúde, de equipes de Saúde da Família e de equipes de Saúde Bucal, Brasil, 2007–2017

Agentes comunitários de saúde Equipes de saúde da família e saúde bucal 42 119 40 162

34 715 32 295 266 217 264 275 30 328 250 607 257 936 27 324 234 767 25 905 24 467 210 964 23 150 21 425 18 982 15 694

2007 2009 2011 2013 2015 2017 2007 2009 2011 2013 2015 2017 Equipes de Saúde da Família Equipes de Saúde Bucal

Fonte: Departamento de Atenção Básica/Ministério da Saúde do Brasil.

Inicialmente, o processo de revisão ob- se mobilizou em torno da revogação de dos ACS e dos agentes de combate às en- jetivou afirmar fundamentos e diretrizes tais normativas. Por outro lado, as porta- demias (ACE): um sobre as atribuições estratégicas para a PNAB, reforçando a rias acolheram parcialmente a demanda e outro sobre o aumento do piso salarial; ESF como prioritária para a expansão e do CONASEMS por ajustes na composi- e liminar que proibia os enfermeiros de consolidação da atenção básica. Um se- ção das equipes e representaram os es- ­solicitarem exames na atenção básica, gundo objetivo foi a introdução de mu- forços do Executivo federal em buscar ­decorrente de ação movida pelo Conse- danças na perspectiva de ampliação do maior base de apoio entre os entes lho Federal de Medicina. Remonta desse acesso, acolhimento e resolubilidade da federados. período, ainda, a opção da gestão muni- atenção básica, respeitando diferentes Daí em diante houve substancial tran- cipal do Rio de Janeiro em fechar servi- realidades. sição governamental, tendo assumido o ços de atenção básica, agenda que, Contudo, o processo de revisão foi in- Ministério da Saúde o engenheiro e de- equivocadamente, foi atrelada ao proces- terrompido, tendo em vista os importan- putado Ricardo Barros. Com ele ingres- so de revisão da PNAB. tes acontecimentos políticos ocorridos no saram novos atores políticos, abrindo Com isso, movido pelo alinhamento cenário nacional em 2015, que produzi- uma janela de oportunidades para que político entre os membros do alto escalão ram expressivas mudanças no Executivo instituições que vinham pautando o das instâncias componentes da Comissão federal. Em virtude de reformas ministe- ­Ministério da Saúde para retomada da Intergestores Tripartite (CIT), o processo riais conduzidas no governo da Presiden- agenda de revisão da PNAB, tais como o de revisão foi recolocado enquanto prio- te Dilma Rousseff, houve mudança na CONASEMS e o CONASS, pudessem re- ridade na agenda governamental, mesmo gestão do Ministério da Saúde, com a saí- colocar suas pautas centrais, agora de não havendo consenso entre os técnicos da do ministro Arthur Chioro e ingresso forma mais incisiva, por possuir maior sobre sua tempestividade. Notadamente, do deputado Marcelo Castro. Tal transi- alinhamento político com os novos com- esse complexo contexto, sucintamente ção objetivou dar sustentação política ao ponentes da gestão ministerial. apresentado, provocava tensão ao longo governo Dilma, especialmente no Con- Vale destacar que uma das primeiras de todo o processo de revisão, pois a todo gresso Nacional (28). Em que pesem tais ações relacionadas à agenda da atenção momento novos elementos surgiam e im- intervenções, o processo culminou com o básica realizada pela nova gestão do portantes questões foram perdidas na impeachment da Presidente em agosto de ­Ministério foi a revogação das portarias arena de disputa. Assim, a agenda esteve 2016, sendo o cargo assumido pelo então 958 e 959, em 9 de junho de 2016 (portaria suscetível a mudanças na linha organiza- Vice-Presidente da República, Michel GM/MS 1 132), em um esforço de conci- tiva pensada até então para a política de Temer. liação do novo governo com as entidades atenção básica, e projetos concorrentes Merece destaque a publicação, nesse representativas dos ACS. Por outro lado, àqueles historicamente defendidos no período de instabilidade político-institu- tal medida também resultou de pactua- campo da saúde coletiva estiveram pre- cional, das portarias ministeriais 958 e ção com o CONASEMS, sob o compro- sentes nas mesas de negociação. 959, de 10 de maio de 2016, que permi- misso ministerial de retomar a revisão da Em síntese, na correlação de forças, tiam a composição de equipes de saúde PNAB. as agendas defendidas pelo CONASS e da família sem ACS, podendo estes se- Paralelamente, havia um acirrado CONASEMS tiveram maior respaldo rem substituídos por técnicos de enfer- campo de disputas corporativas, tanto na político para aprovação diante do con- magem. Tal publicação gerou grande esfera legislativa quanto na judiciária. junto de tomadores de decisão da CIT, insatisfação por parte da categoria, que Destacam-se dois projetos em benefício em detrimento daquelas defendidas

44 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Almeida et al. • Revisão da Política Nacional de Atenção Básica Artigo especial pelo corpo técnico do DAB. Este se es- consulta pública. Durante 15 dias, foram propostas em discussão (29, 30). ­Apesar forçava para defender os princípios e reunidas 8 901 proposições ao texto em desse cenário, a agenda de revisão foi con- diretrizes da atenção básica, do modelo análise, as quais foram apreciadas e par- cluída, com a publicação da portaria 2 436 da ESF como prioritário, do resgate de cialmente incorporadas no texto. Em 31 de 21 de setembro de 2017, republicada 7 elementos debatidos entre 2011 e 2016 e de agosto de 2017 o texto final foi pactu- dias depois no anexo XXII da portaria de de um processo de revisão participativo ado na CIT. consolidação nº 02 (7). e plural, que também atendesse às ex- Vale destacar que, durante todo o pro- pectativas de trabalhadores e usuários cesso ocorrido em 2017, a revisão da PNAB 2017: principais mudanças do SUS. PNAB foi questionada pelos movimentos e inovações Apesar desse esforço, ao longo de 2017 sociais, pesquisadores e trabalhadores do a agenda ocorreu majoritariamente entre SUS. Tais questionamentos englobaram A tabela 2 apresenta uma síntese das gestores dos três entes, o que foi, inclusi- desde a justificativa de revisão em um principais mudanças ou inovações incor- ve, questionado pelo Conselho Nacional momento de instabilidade política, econô- poradas à PNAB em 2017. A nova PNAB de Saúde. Em resposta, a CIT propôs mica e social, até críticas em torno das publicada em 2017 passou a reconhecer,

TABELA 2. Comparativo entre a PNAB 2011 e a PNAB 2017 segundo eixos temáticos, Brasil, 2018a

Eixos temáticos PNAB 2011 PNAB 2017 Financiamento de modelos de Apenas o modelo da ESF era financiado com recursos – Mantém o financiamento das equipes de saúde de família como organização da atenção básica federais. prioritário e passa a financiar, com valor inferior, as eAB. ACS/ACE – ACS obrigatório na ESF (1 para cada 750 pessoas; – ACS obrigatório na ESF, em número a depender da necessidade e perfil máximo de 12 por equipe). epidemiológico local. Em áreas de vulnerabilidade, um ACS para – Definição de oito atribuições para ACS. máximo de 750 pessoas, cobrindo 100% da população, sem número – Coordenação do trabalho do ACS apenas pelo máximo por equipe; facultativo na eAB. enfermeiro. – Incorpora as atribuições do ACE e acrescenta 11 atribuições comuns – ACE não compunha equipe de saúde da família/eAB. entre ACS e ACE; – Atualiza e amplia para 12 as atribuições dos ACS; – Coordenação do trabalho do ACS passa a ser responsabilidade de toda a equipe (nível superior). Integração entre atenção básica Não mencionava. Introduzida tanto no campo da gestão e organização de serviços quanto e vigilância em saúde na produção do cuidado, como responsabilidade dos entes e de todos os profissionais. Núcleos Ampliados de Saúde Denominados Núcleos de Apoio à Saúde da Família Denominação alterada para Núcleo Ampliado de Saúde da Família e da Família e Atenção Básica (NASF), podendo atuar junto à ESF, incluindo equipes Atenção Básica (NASF-AB), passando a apoiar, além das equipes de saúde ribeirinhas, fluviais e Consultório na Rua. da família, as eAB. Gerente de atenção básica Não mencionava. – Reconhece a figura do gerente de UBS, recomendando sua inserção como novo membro da equipe, com previsão de apoio financeiro federal. – Gerente deve ter nível superior, preferencialmente da área da saúde. Composição das equipes – Equipe de saúde da família: médico, enfermeiro, – ACE pode ser incluído na equipe de saúde da família. técnico /auxiliar de enfermagem e ACS. – eAB deve seguir parâmetros da equipe de saúde da família, sendo – Complementarmente, equipe de saúde bucal e NASF. facultado compor com ACS e ACE. – Sem definições para eAB. Oferta nacional de serviços e ações – Não possuía. – Incorporada na busca de garantir a oferta de serviços essenciais no essenciais e ampliados da AB âmbito da AB a toda a população e a ampliação da resolubilidade da AB. Territorialização/vínculo Usuário só podia se vincular a uma UBS. É facultado ao gestor possibilitar que o usuário se vincule a mais de uma UBS. Segurança do paciente Não mencionava. – Incorporada como atribuição de todos os membros da equipe. Regulação Abordado de forma superficial e pouco clara. – Atribui aos profissionais a função de contribuir nos processos de regulação do acesso a partir da AB; – Aponta o Telessaúde Brasil Redes e protocolos como ferramentas de apoio à regulação. Pontos de apoio Não mencionava. – Reconhecidos como estrutura da AB para atendimento a populações dispersas, respeitando normas gerais de segurança sanitária. Carga horária semanal das equipes – Equipes de saúde da família = 40h. – Equipes de saúde da família: 40h para todos os membros da equipe. – Cinco tipos de equipe de saúde da família com – eAB: 40h por categoria profissional (máximo de três profissionais e diferentes composições de carga horária médica. mínimo de 10h por categoria). Cobertura populacional por equipe – 3 000 a 4 000 pessoas por equipe. – 2 000 a 3 500 pessoas, com parâmetros baseados nos riscos e vulnerabilidades do território. Educação permanente e formação – Distribuídas ao longo do texto, porém não versava – Incorporadas ao processo de trabalho das equipes, com estrutura física em saúde sobre formação em saúde e estrutura física para e ambiência adequada para tal. essas ações. – Incorpora o ensino na saúde, destacando o papel da AB como lócus de formação, pesquisa e extensão. Prazo para implantação de equipes Não mencionava. Define 4 meses para implantação de equipes credenciadas em portaria. a AB = Atenção básica; ACE = agente de combate a endemias; ACS = agente comunitário de saúde; eAB = equipe de atenção básica; ESF = Estratégia Saúde da Família; NASF = Núcleo de Apoio à Saúde da Família; NASF–AB = Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica; PNAB = Política Nacional de Atenção Básica; UBS = Unidade Básica de Saúde.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 45 Artigo especial Almeida et al. • Revisão da Política Nacional de Atenção Básica financeiramente, outros modelos de or- da atenção básica, reconhecida durante o que, na contramão da ampliação do in- ganização da atenção básica que não o processo de revisão da PNAB como “car- vestimento público em saúde, o que se modelo da ESF. A ESF ainda mantém-se teira de serviços”, é importante destacar tem de concreto é a sua limitação, vide a como prioritária para a expansão e conso- que tal agenda foi incorporada com base emenda constitucional 95/2016, a nova lidação da atenção básica no Brasil, tendo em informações produzidas nos dois proposta de financiamento do SUS – uni- sido, inclusive, definido valor inferior ­primeiros ciclos do PMAQ-AB, que evi- ficação dos blocos de financiamento –, e para o financiamento das novas equipes denciaram que uma parcela expressiva a elevação dos gastos na atenção básica de atenção básica (eAB). Apesar desse das equipes de saúde não tem ofertado com o lançamento do Programa de Infor- dispositivo, alguns estudos têm sinaliza- ações consideradas essenciais e típicas da matização de Unidades Básicas de Saúde do a preocupação de que tal medida atenção básica. e do Programa de Formação Técnica para ­possa causar retrocesso no modelo de or- Apesar de tal cenário e do fato de inú- Agentes de Saúde. Entretanto, o grau de ganização da atenção básica e, ainda, a meros municípios já terem implantado prioridade desses programas talvez não provável perda de recursos para outras suas carteiras de serviço, somados à seja eminentemente urgente para o atual configurações, em um contexto de retra- existência de estudos (34, 35) que com- momento da APS no Brasil e seu desenho ção do financiamento da saúde (30). provam que a definição dessas carteiras parece não ser o mais adequado. Adicio- Mesmo com o fato de a PNAB 2017 de- contribui para a diminuição das iniqui- nalmente, deve-se considerar nesse cená- finir que a eAB deva seguir os mesmos dades na oferta de ações e serviços de rio a iminência de aprovação de projeto princípios e diretrizes previstos para a atenção básica, outros estudos (29, 30) de Emenda Constitucional que propõe ESF, e que deva ter caráter transitório, criticam a inovação, definindo-a como a ampliação do piso salarial dos ACS uma crítica que tem se apresentado é a um descompromisso com o princípio e ACE. possibilidade de essa equipe não ter, em da integralidade que tendencia a confi- Finalmente, vale ressaltar que a imple- sua composição, o ACS. Tal crítica é con- gurações em torno de cuidados míni- mentação da PNAB não dependerá ex- tundente quando se reconhece o papel mos, recuperando a concepção de APS clusivamente do seu texto, mas sim do central do ACS na mobilização e orienta- seletiva. desenrolar do emaranhado de interesses ção comunitária, assim como na compre- corporativos, políticos e econômicos que ensão e inserção territorial (31). CONSIDERAÇÕES FINAIS se fizeram fortemente presentes durante Ainda com relação aos ACS, a nova todo o processo de discussão e reformu- PNAB amplia suas atribuições, em conso- A abertura da agenda de revisão da lação da Política. A expectativa é de que nância com a nova redação dada pela lei PNAB 2017 se deu de forma participati- esses interesses possam confluir no sen- 13 595/2018 à lei 11 350/2006, que regula- va, conciliando a demanda apresentada tido da efetivação de uma APS acessível menta o trabalho dos agentes. Essa inova- pela gestão tripartite com a necessida- e resolutiva, fortalecendo o SUS como ção tem sido questionada por entidades de manifesta nas instâncias de controle um todo. A concretização dessa expecta- da saúde coletiva e considerada como social. Entretanto, a intensificação da tiva, contudo, depende substancialmen- descaracterização do trabalho do ACS, ­agenda em um momento político instá- te da participação e do protagonismo da por priorizar atividades de cunho clínico vel fragilizou, sobremaneira, a sustenta- sociedade na luta pelo direito à saúde no (30). Embora esse posicionamento seja ção técnica dos debates, apesar das Brasil. válido, é importante refletir que a amplia- pouco aparentes, mas significativas, con- ção das atribuições dos ACS é agenda da quistas no campo das disputas entre a Agradecimentos. Os autores agrade- própria categoria, que pleiteou junto ao fundamentação técnica e os interesses cem a todos os técnicos do Departamen- Congresso Nacional tais dispositivos, político-corporativos. to de Atenção Básica/Ministério da vide o projeto de lei 6 437/2016. Assim, Dessa forma, ao final do processo, pu- Saúde envolvidos no processo de revisão qualquer análise sobre tal agenda requer blicou-se uma Política fruto da arena de da Política Nacional de Atenção Básica. reflexões mais profundas e o reconheci- disputas travadas no campo da gestão mento dos elementos e agentes que a interfederativa, em que prevaleceram os Conflitos de interesse. Os autores de- impulsionaram. interesses de parte dos atores, ao passo claram a existência de conflito de inte- A PNAB 2017 reconhece, ainda, o papel que algumas inovações defendidas tecni- resses, visto serem técnicos do quadro do gerente de atenção básica, recomen- camente foram incorporadas à Política de trabalhadores do Departamento de dando sua inserção na equipe, a depen- de forma tímida e superficial. Tal ele- Atenção Básica/Ministério de Saúde - der da necessidade local, inclusive com mento deve despertar maior atenção às Brasil e participantes do processo de re- apoio financeiro federal. Diversos estu- propostas vigentes, e ser considerado em visão da Política Nacional de Atenção dos (32, 33) têm reportado a importância futuras análises sobre a implementação Básica. desse agente na composição das equipes da atual PNAB. de atenção básica. Dados oficiais do Mi- Somado a esse fato, o cenário político-­ Declaração. As opiniões expressas nistério da Saúde apontam a atuação de econômico brasileiro se coloca como gran- no manuscrito são de responsabilidade centenas de gerentes em várias localida- de desafio à operacionalização da nova exclusiva dos autores e não refletem des do país. Política. A implantação das diretrizes ­necessariamente a opinião ou política No que diz respeito à oferta nacional contidas no texto depende de importan- da RPSP/PAJPH ou da Organização de serviços e ações essenciais e ampliados te indução financeira federal, enquanto Pan-Americana­ da Saúde (OPAS).

46 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Almeida et al. • Revisão da Política Nacional de Atenção Básica Artigo especial

REFERÊNCIAS

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 47 Artigo especial Almeida et al. • Revisão da Política Nacional de Atenção Básica

ABSTRACT Objective. To describe and discuss events associated with the latest review of the national primary health care (PHC) policy in Brazil (Política Nacional de Atenção Básica, National primary health PNAB) so as to highlight narratives that may contribute to future analyses focusing on the formulation, implementation, and assessment of this policy. care policy in Brazil: an Method. Participant observation report of the PNAB review process, based on con- analysis of the review tent and document analyses. process (2015–2017) Results. The review process of PNAB, which took place between 2015 and 2017, was strongly marked by technical and political dispute between the Ministry of Health and authorities representing municipal and state health departments. The main changes introduced by the new version of PNAB are the financing of other PHC organizational models in addition to the Family Health Strategy; attribution of additional responsibilities to community health agents; introduction of a national set of core and extended PHC services and actions; and introduction of a manager role as part of PHC teams. Conclusions. Implementation of the revised PNAB, which was the result of inter- federation dispute, will depend on the convergence of interests in a PHC that is accessible and effective, strengthening the Unified Health System. This will substan- tially require societal engagement and leadership in the fight for the right to health in Brazil.

Keywords Health policy; primary health care; Family Health Strategy; health evaluation; Brazil.

RESUMEN Objetivo. Presentar y discutir los acontecimientos relacionados con el proceso de revisión de la Política Nacional de Atención Básica (PNAB) en Brasil, de manera de Política Nacional de obtener información que pueda contribuir a futuros análisis sobre la formulación, implementación y evaluación de esa política. Atención Básica en Brasil: Métodos. Se evaluó el relato de la experiencia de los participantes del proceso de un análisis del proceso de revisión de la PNAB a partir del análisis de contenido, complementado por un análisis revisión (2015–2017) documental. Resultados. El proceso de revisión de la PNAB, que tuvo lugar entre 2015 y 2017, presentó marcadas disputas técnico-políticas entre el Ministerio de Salud y las ins- tancias representativas de las secretarías municipales y estatales de salud. Los prin- cipales cambios introducidos por la nueva versión de la PNAB son la posibilidad de financiamiento de otros modelos de organización de la atención básica además de la Estrategia Salud de la Familia, la ampliación de las atribuciones de los agentes comunitarios de salud, la construcción de la oferta nacional de servicios y acciones esenciales y ampliadas de atención básica, y la inclusión del gerente de atención básica en los equipos. Conclusiones. La implementación de la nueva PNAB, fruto de las disputas entabla- das en el campo de la gestión interfederativa, dependerá de la confluencia de intereses hacia la efectivización de una atención primaria accesible y resolutiva, fortaleciendo el Sistema Único de Salud, lo que requiere la participación y el protagonismo de la sociedad en la lucha por el derecho a la salud en Brasil.

Palabras clave Política de salud; atención primaria de salud; Estrategia de Salud Familiar; evaluación en salud; Brasil.

48 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Pan American Journal Special report of Public Health

Remembering Alma-Ata: challenges and innovations in primary health care in a middle-income city in Latin America

Adriano Massuda,1 César ­M. S.­ Titton,2 and Paulo Poli Neto3

Suggested citation Massuda A, Titton CMS, Neto ­PP. Remembering Alma-Ata: challenges and innovations in primary health care in a middle-income city in Latin ­America. Rev Panam Salud ­Publica. 2018;42:e157.­ ­https:// doi.org/10.26633/RPSP.2018.157

ABSTRACT The year 2018 is an opportune time to explore health system reforms and primary health care (PHC) in Brazil, given the anniversaries of the Alma-Ata Declaration (40 years) and of the Constitution of Brazil (30 years), the basis of the Unified Health System (SUS).­ In this context, health system analysis in the municipal setting is an important instrument for acknowledging achievements and innovations, as well as weaknesses and thr­ eats. Due to the principle of decen- tralization of SUS, municipalities have assumed a leadership role in health policy development and implementation.­ The cities also come first in expressing the failures of the health system and the consequences of austerity ­measures. Thus, analysis of health system transformations at the municipal level are fundamental to studying PHC achievements and ­gaps. This report identifies the challenges and innovations of PHC implementation in Curitiba, beginning with a brief history of the city’s health system ­development. The city was a pioneer in linking urban planning with health system design, improving access to health care, and obtain- ing better health outcomes over the past 30 years.­ This report covers those years, as well as the challenges and strategies implemented during the most recent political cycle (2013 – ­2016). There are substantial lessons that can be garnered from the experience of this middle-income city in Latin America, lessons that may be useful as the region moves toward the Sustainable Development Goal of Universal Health Coverage by 2030.­

Keywords Primary health care; health care reform; international acts; universal health coverage; Brazil; Latin ­America.

The 40th anniversary of the Declaration Both provide substantive lessons in on PHC globally; however, distinct of Alma-Ata (1) and the 30th anniversary achievements and challenges for Latin meanings emerged according to regional of the Constitution of Brazil (2), which America as the region moves towards the and local ­contexts. In countries of Latin created the country’s Sistema Único de Strategic Sustainable Development Goal America, health system reforms were in- Saúde (Unified Health System; SUS), make (SDG) of Universal Health Coverage fluenced by principles of equity, solidar- 2018 an opportune time to explore health (UHC) by 2030 (3).­ ity, and collective action to overcome system reforms and the experiences of The Declaration of Alma-Ata has been social inequalities ­(4). In Brazil, the SUS primary health care (PHC) ­initiatives. a guiding force for health policies based was implemented in the early 1990s (5), and soon thereafter, the municipalities 1 Harvard ­T. H. Chan School of Public Health, 2 Faculdade Evangélica do Paraná, Curitiba, Harvard University, Boston, Massachusetts, Paraná, ­Brazil. assumed a leading role for its United States of ­America. Send correspondence to 3 Departamento de Saúde Coletiva, Universidade ­expansion (6). PHC has been central to Adriano Massuda, [email protected]­ Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, ­Brazil. strengthening SUS, particularly through

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 49 Special report Massuda et al. • Alma-Ata and primary health care in a middle-income city the Family Health Strategy (FHS) intro- system (Table ­1). PHC services were first 2012, and to ­8.6 in 2016; control of infec- duced by the National Policy for Primary implemented in the late 1970s, prompted tious diseases, such as tuberculosis; Care ­(7). Major improvements have been by the Alma-Ata recommendations to elimination of vertical transmission of achieved, including expanded coverage, provide alternatives to the hospital for HIV in 2013; and decrease in the hospi- better health outcomes, and reduced the poor population that had migrated talization rate due to conditions that can health inequalities (8, ­9). However, sig- from rural areas to the ­city. Municipal be treated by outpatient services ­(23). nificant disparities persist across geo- PHC units provided care based on verti- graphic areas and among population cal health programs for population CHALLENGES AT THE groups (10, ­11). groups and target diseases: child and MUNICIPAL LEVEL Furthermore, gaps in PHC functions maternal care, infectious diseases con- remain present in Brazil, even where the trol, and later, some noncommunicable Despite the advances, Curitiba faces SUS has had substantial progress (12). and chronic diseases, such as hyperten- challenges typical of any big city in Latin The recommendations from Alma-​Ata sion, diabetes, and mental health ­(20). ­America. In 1980 – 2013, there was rapid still sound fr­ esh. For many Brazilians, In the 1990s, with the implementation population growth in Curitiba and its PHC services are not regularly the first of the SUS, Curitiba became one of the metropolitan area, from ­1.5 million to ­3.5 level of contact; these services are usu- first cities in the country to assume full re- million ­people. This demographic transi- ally available only where people live, sponsibility for health system manage- tion increased the proportion of those not where they work; and PHC services ment. The city was divided into “health middle-aged and ­elderly. The epidemio- are frequently unable to start a “contin- districts” to organize health planning and logical shifts have resulted in a triple uous health care process” within them- coordination (21).­ PHC coverage gradu- ­burden of diseases: increased violent selves, less so if specialized services are ally incr­ eased. In 1992, the Family Medi- deaths—Curitiba was ranked 42nd most ­involved. Such flaws in PHC are wors- cine concept was introduced through violent city in the world in 2013 (24); ex- ening rapidly due to the recent eco- cooperation with the Government of pansion of chronic noncommunicable nomic and political crises and the ­Canada. Since then, a dual model of PHC diseases, including cardiovascular, can- long-term austerity measures that have organization has been in place in the city­ . cer, and mental health disorders; and per- followed (13).­ The cities are where the The “conventional model,” based on in- sistence of infectious diseases, with high health system failures are being exposed ternal medicine physicians, pediatricians, rates of leptospirosis mortality, late diag- first (14).­ Thus, analysis of health sys- gynecologists, nursing professionals, and nosis of HIV/AIDS, and increasing inci- tem transformations at the municipal community health agents, who cover dence of congenital ­syphilis. Meanwhile, level are fundamental to understanding wider areas, predominated in the central the health system expanded in services PHC achievements and gaps.­ PHC units; and the “family health” and management complexity, increasing The objective of this report was to model, with each multiprofessional team its costs and requiring permanent inno- identify challenges and innovations in (including a general ­practitioner) respon- vation capacity, especially in ­PHC. PHC implementation in Curitiba, the sible for a list of territory-defined popula- Popular demands regarding the mu- capital of the state of Paraná, in southern tion, was implemented in new and nicipal health system were one of the ­Brazil. Although this city may not be rep- peripheral PHC ­units. Curitiba was also a drivers for a government change in 2013, resentative of the entire country, given its pioneer in the inclusion of dental teams in with the elected mayor emphasizing very high Municipal Human Develop- PHC ­(20). ­participative management, innovation, ment Index (15), it is a notable example From 2000 onwards, health care net- transparency, and humanization of pub- of a well-established public health sys- works were ­established. The “Curitibana lic ­policies. The municipal planning for tem in a large city in a middle-income Mother” program was among the first to the 4-year period from 2014 – 2017 (17) country (16) of the Latin ­America. The coordinate prenatal care between PHC defined the following five major chal- historical context of Curitiba’s municipal units and maternity hospitals (22).­ Out-​ lenges for the SUS in ­Curitiba. health system was reviewed, followed of-hospital services were created follow- by an analysis of recent PHC gaps and ing national policies and guidelines for 1. Lack of access to primary care the strategies implemented to address emergency care (Serviço de Atendimento them in 2013 – ­2016. Data used came Móvel de Urgência and Unidade de Pronto Despite the city’s 109 PHC units (in from a review of the available literature; Atendimento; UPA) and for mental health 2013), covering virtually the entire terri- government data, including the munici- (Centro de Apoio Psicossocial), among tory, access was a major ­problem. The pal health plan for 2014 – 2017 (17); an- ­others. predominant model of organization, nual management reports for 2013 – 2016 In parallel to the SUS, private health based on vertical programs, provided (18); and selected health indicators from services grew, offering outpatient, hospi- medical appointments mostly for indi- epidemiologic bulletins ­(19). tal, and diagnostic services.­ From 2000 – viduals who “fit” into the hypertension, 2016, the population covered by private diabetes, mental health, and maternal HISTORIAL CONTEXT health insurance in Curitiba rose from and child health services ­programs. This 38% to ­52%. left few consultations, offered on a first- Curitiba has been a pioneer in urban Since the SUS implementation, there come basis, for ­others. As a consequence, planning, urban design innovations, has a significant improvement in indica- long queues formed in the early morn- public transportation, and environmen- tors: reduction of infant mortality (Fig- ing, before the units even opened for the tal ­policy. Over time, these advances in- ure 1); reduction of maternal mortality, day, and many people sought care in duced the growth of the municipal health from ­53.6 / 100 000 in 1996 to ­23.9 in emergency clinics ­instead.

50 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Massuda et al. • Alma-Ata and primary health care in a middle-income city Special report

TABLE ­1. Highlights of the health system in the city of Curitiba, Paraná, Brazil, 1950 – 2016

Context 1950 1970 1980 1990 2000 2010 2016 International Alma-Ata Millennium Development Sustainable Development (1978) Goals Goals National Political Democracy Military dictatorship Democracy (1964 – 1985) Impeachment 1991: Fernando Collor; 2016: Dilma Rousseff Economy Growth Debt Debt Growth Growth Crisis and austerity Health system organization Public Social Security Unified Health System (SUS) National health policies Hospital-based and public Sanitary SUS implementation Family Health Strategy and health shrinkage of the SUS health campaigns reform networks (emergency, mental health, ­etc.) Local population Curitiba 180 575 624 362 1 052 147 1 313 094 1 586 848 1 751 907 1 893 997 Metropolitan area 1 563 880 2 094 260 2 813 237 3 223 836 3 537 894 Local health services Health care model Hospital- First PHC Creation of Municipalizing of Health Networks Stagnation of New trend of reduction of based + units (vertical Municipal health services (“Curitibana Mother”) PHC growth PHC public programs) Health health Secretariat campaigns (1986) Hospital beds (per 1 000) ­7.46 ­6.83 ­5.93 Primary care units 10 53 104 109 110 Urgent care units (UPA) 1 8 9 Psychosocial care (CAPS) 1 12 12 Private plans coverage ­38.2% ­52.0% ­52.3% Local health indicators Pregnancies with 7+ prenatal visits ­62.6% (1995) ­75.1% ­89.8% ­89.6% Vaccine coverage (polio) ­94.3% ­96.5% ­98.2% ­91.4% Childbirth by cesarean ­48.3% (1994) ­48.4% ­59.1% ­58.8% Source: Prepared by the authors from study ­data.

2. Long waiting time to secondary In the 2000s, urgent units were created 5. Fiscal debt and administrative care apart from ­hospitals. In 2013, there were rigidness eight urgent care units, the UPAs, offering The SUS in Curitiba has municipal 24-hr ­service. However, these services The growth of SUS services in Curitiba services for medical and non-medical ­absorbed the failures of the health system, happened without the corresponding specialties, and contracts private ser- such as the low performance of PHC and funding from the federal and state gov- vices for outpatient and diagnostic lack of hospital ­beds. As a consequence, ernments, requiring increased resources ­support. Long waiting lists for consulta- the UPAs became points of extreme ten- from the municipal tr­ easury. From the tions with specialists (average was < 3 sion, overwhelmed by simple cases that early 1990s – 2013, the percentage of mu- months, but up to 2 years) was one of should be seen by PHC and by severe nicipal revenue for health grew from 7% the main complaints of the ­population. cases that should be admitted to the to around ­18%. In 2016, the total budget Low level of interaction among PHC ­hospital. ­ for health was R$ ­1.62 billion (R$ ­858.26 and secondary care persisted despite per-capita; US$ ­268.20), 52% funded by some established mechanisms for com- 4. Underuse of information for the ­municipality. Despite the increase in munication, ­i.e., a partially-integrated health evaluation municipal investment, the budget did electronic medical ­records. Most of the not cover the total health cost.­ As a con- specialists’ availability was for continu- Even though the health surveillance sequence, a fiscal debt of approximately ing care, which should be done by the sector (consisting in epidemiologic, 10% of the annual budget was ­incurred. PHC, and only about 10% – 20% were sanitary, and environmental surveil- In addition, national and municipal open for new cases.­ As a result, special- lance) was municipalized during the regulations governing human resources ized care was overbooked with patients SUS implementation, it lacked integra- created challenges regarding the specif- whose conditions could have been tion with the health care units.­ As a ics of diverse professional categories treated by PHC ­services. consequence, in spite of having expan- (> 7 500 health professionals hired by the sive databases and generating a broad municipality) and services of varying 3. Overwhelmed emergency services range of data, health surveillance was levels of ­complexity. A public municipal seldomly used for performance evalu- foundation to manage specialized ser- Emergency and urgent care were histor- ation or for improving health care vices was created in 2012, but administra- ically performed by hospitals in Curitiba.­ ­delivery. tive issues for human resources ­persisted.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 51 Special report Massuda et al. • Alma-Ata and primary health care in a middle-income city

FIGURE ­1. Infant mortality rate (< 1 year of age) in the city of Curitiba, Paraná, Brazil, 1994 – 2016

20.3 19.9 20 18.0 16.6 15.9 15.0 14.7 15 13.6 12.4 11.8 11.9 11.2 10.5 10.5 9.9 10 9.1 9.5 9.0 8.8 8.8 9.0 8.7 7.7

Child < 1 year old deaths/ 000 newborns 5

0

1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 Year

Source: Prepared by the authors with data from the Ministry of Health of Brazil, SIM Mortality Information System / SINASC - Information System on Live ­Births.

INNOVATIONS AT THE • Provide person-centered care, ­oriented for everyone in its territory­ . A practi- MUNICIPAL LEVEL toward families and communities; cal guide was established to guide • Stimulate civil and community par- PHC managers and professional The key point for the municipal plan- ticipation in health care; teams in implementing strategies to ning of 2014 – 2017 (14) was the redefini- • Increase comprehensive care at the PHC address acute and chronic needs, of- tion of roles, functions, and organization units, at home, and in other places, fering same-day appointments as a to enhance the role of PHC in the health throughout all phases of the lifecycle; gold standard ­(29). ­ ­system. To develop a more accessible, • Minimize the possibility of unexpected b. Enhancing nursing clinical ­care. To comprehensive, and efficient PHC, the harm done to the individual and/or the support increased access in PHC, central idea was inducing the transfor- population by a health intervention; the role of nurses in clinical care mation of vertical-based health practices • Develop health surveillance activities was foster­ ed. PHC units were re- to a horizontal and integrated model of throughout the area under the aus- built so that each nurse would have organization based on interaction among pices of the PHC team; their own clinical ­room. In 2012 – health networks in each health district • Develop relationships of attachment 2015, appointments with nurses ­(25). Theoretical and methodological and continuity of care between health nearly tripled.­ This allowed in- concepts used as references were Star- professionals and the public; crease of care, even for patients of field’s systematization of PHC (26), Cam- • Coordinate patient care when it in- well-established programs, such as pos’ “amplified clinic” and participative volves secondary or tertiary health “Curitibana Mother­ .” The number management (27), and the guidelines of ­services. of prenatal care appointments per the National Basic Care Policy ­(7). Sev- pregnancy increased from ­6.44 to eral strategies were implemented: ­7.42 from 2012 to 2016 (18).­ It also Improving access enabled offering more medical ap- pointments for acute situations Definition of a new normative To facilitate the role of PHC as the (Figure ­2). framework main gateway to the health system, a set c. Priority for the family health model.­ of measures were ­implemented: Some PHC units were changed from A normative framework for the role of a. Reclaiming the role of PHC in acute the conventional model to the Family PHC in the health system was estab- ­situations. The role of PHC units in Health ­model. Thus, the number of lished by a Municipal Decree in 2013 (28).­ acute care had been mostly dismissed Family Health units increased from It redefined guidelines and set common since the creation of urgent care 55 of the 109 PHC units in January goals for all PHC services in Curitiba­ to: ­centers. It was essential that PHC re- 2013, to 66 of 110 PHC units in 2016, • Be the main gateway to the SUS of sume its role of assisting in all health expanding from 185 to 225 Family Curitiba; requests, including acute situations, Health teams in the ­city. ­

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FIGURE ­2. Number of primary health care medical and nursing appointments in Unified Health System (SUS), city of Curitiba, Paraná, Brazil, 2012 – 2016

2 000 000

1 500 000

1 000 000 appointments in SUS Curitiba Number of Primary Health Care

500 000

0 2012 2013 2014 2015 2016

medical 1 756 324 1 985 586 2 023 096 1 916 508 1 864 092 appointments nurse 304 092 533 914 857 129 893 821 862 272 appointments

Source: Prepared by the authors with data from annual Government Reports of the Curitiba Municipal Health Secretariat ­(16).

d. Reorganization of appointment Community Health Agent for the for health ­professionals. In addition, the ­scheduling. Several strategies were given ­area. Typically, this would hap- portfolio has begun to serve as a basis for developed to increase access to care pen days or weeks after the initial organizing continued education for staff at PHC units: avoidance of schedul- ­request. Instead, this requirement and for procuring new equipment (30, ing too far in advance (no more than was replaced by full registration ­31). The purpose of the services portfolio 2 months ahead); allowing people to upon request at the PHC unit with was ­to: get appointments within 48 hours of just a few simple ­documents. the request; reducing the use of a g. Priority for vulnerable gr­ oups. Em- a. Provide comprehensive ­performance. pre-evaluation room (with low reso- phasis on access for vulnerable Some procedures that had been per- lution capacity); and incentives for groups that did not often visit the formed by PHC decades ago, by 2013 scheduling by telephone or e-mail health ­units. In 2013, four multi-pr​ o- were rare and required reinstating: (implemented by some ­units). fessional teams of “Mobile Clinics” removal of cerumen from the ear, e. Extended hours at PHC ­units. Some (Consultórios na Rua) were created to small wound sutures, minor surger- PHC units (up to 11 of the 109, at least provide PHC for the homeless popu- ies, cauterization, biopsies, insertion one in each health district) extended lation, estimated to be about 4 000 of intrauterine devices, alcoholic de- their hours of operation from people living in several parts of Cu- toxification, handling of common 6:00 ­p.m. to 10:00 ­p.m. in order to ritiba, but mostly in the central ­area. musculoskeletal problems, common serve the public beyond the typical mental health issues (e.g.,­ anxiety), working hours and to reduce the like- Service portfolio for PHC ­etc. These interventions started to be lihood that those with urgent re- monitored in each PHC unit, reveal- quests treatable by the PHC would A portfolio of services was created, ex- ing differences according to model of seek care at an urgent care ­center. ­ plaining the actions offered by the PHC care (Table ­2). ­ f. Reduction of organizational ­barriers. units and detailing the expected compre- b. Guide technical and material ­support. Previously, a person was only granted hensiveness of each health team.­ The Part of the continuing education of full registration with the city portfolio consists of two guides, one de- health professionals was directly linked health system after their address was scribes the municipal SUS to its users; the to the use of new equipment, such as confirmed by meeting with the other, provides a profile of PHC services electrosurgery devices and spirometers

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 53 Special report Massuda et al. • Alma-Ata and primary health care in a middle-income city

or digital electrocardiograms, but most b. Technical and pedagogical special- shorter waiting times for ­most. Expe- was directed toward broadening the ized support for PHC in ­loco. Family riences of clinical regulation were im- clinical care capability of each profes- Health Support Groups (Núcleo de plemented through in-person or sional on a multiprofessional PHC Apoio à Saúde da Família; NASF) virtual ­evaluation. For example, in ­team. A fundamental step in this pro- ­provide specialized support for early 2013, there were 763 pregnant cess was training professionals to offer ­PHC. NASF is composed­ of multi­ women who were waiting up to new ­services. This was accomplished professional teams: nutritionists, 4 months for specialized prenatal gradually in a variety of ways by each ­pharmacists, physical ­educators, care due to risks identified at ­PHC. health district and PHC unit. physiotherapists, and psychologists.­ With rapidly-implemented, in-per- Other specialists, such as pediatri- son evaluations of all of them, contin- Coordination of care cians, gynecologists, psychiatrists, uous monitoring of the virtual queue, infectiologists, and gerontologists and fast track strategies to prioritized In a complex health system with were included according to local cases, the waiting times were reduced ­different specialized services operating needs and to enhance the compre- to a few weeks ­(18). ­ ­under various organizational logistics hensiveness of the ­NASF. Each NASF d. Virtual regulation by tele-health.­ This (emergency, mental health, hospital, out- was charged with supporting PHC experience started with ­neurology. patient specialties, etc.),­ PHC must play teams in a given geographic ar­ ea. Every referral from PHC to secondary a fundamental role in ­coordination. Sev- Clinical care actions (individual or in care had to be virtually discussed with eral strategies were developed to im- group) were encouraged, in addition a dedicated team of family physicians prove this capacity (Figure ­3): to collective care/educational r­oles. who were supported by the neurolo- Also, case management and review gists of a tertiary-level teaching hospi- a. Collaborative ­care. Collaborative care of waiting lists of patients referred tal, using the Tele-health (Telessaúde) in the PHC multiprofessional teams for secondary care led to improved national softwar­ e. Cases treatable at was fostered, along with expanding clinical competence in PHC.­ PHC received adequate care and were the clinical roles of all of its profes- c. Clinical regulation of referrals to not put on the wait list; while sionals—even pharmacists who had ­specialties. As there were many wait- ­situations with higher complexity or rarely assisted patients directly befor­ e. ing lists, those not in charge of NASF red flags were addressed promptly by Collaboration was boosted by greater were monitored with different strate- neurologists and/or specialized proximity of physicians’ and nurses’ gies, aiming to achieve waiting list ­exams. A few months after implemen- offices at the ­units. Common health management according to clinical tation, in 2013, the wait for a new ap- issues that are better tackled by a col- priorities and ­vulnerability. Even pointment with a neurologist dropped laborative effort required that each though an existing computer system from almost 2 years to less than 1 professional’s role be clarified; for ex- was being used to organize the month ­(32). ample, actions to be taken by nutri- queues, this was done passively, and e. Improvement in referrals and tionists, physical educators, and there were so many cases marked ­counter-referrals. Regulation be- physicians caring for a person with “priority,” that any case not marked tween PHC and specialized care also obesity, or interventions by psycholo- as such would not able to get an resulted in educational opportunities gists, nurses, and physicians when ­appointment. Gradually, from 2013 for health professionals and impor- assisting a person who has attempted onward, these virtual queues be- tant changes in referral behavior: re- ­suicide. came “actively” regulated, leading to duction of referrals by PHC to secondary care and an increased counter-referrals by secondary and TABLE ­2. Primary health care (PHC) units performing select procedures, according to tertiary care to ­PHC. model of care (family health or conventional PHC unit), in the city of Curitiba, Paraná, Brazil, 2014 LOOKING AHEAD Total (%) Family health units (%) Conventional units (%) Exploring the local experiences of Suture ­53.1 ­68.5 ­33.3 ­innovative municipalities in decen­ Abscess drainage ­57.3 ­81.5 ­26.2 tralized health systems provides Ingrown nail surgery ­41.2 ­61.1 ­16.7 ­outstanding contributions to under- Skin biopsy ­32.3 ­44.4 ­30.9 standing health systems in the Latin Subcutaneous procedure ­21.9 ­33.3 ­7.1 American ­context. In Curitiba, the his- Ear wax removal ­69.8 ­96.3 ­35.7 torical analysis highlights the key role Intrauterine device insertion ­73.9 ­74.1 ­73.8 of urban planning in the implementa- Wart cautherization ­61.5 ­70.4 ­50.0 tion of PHC, influenced by the Al- Bladder cateter ­98.9 ­100.0 ­97.6 ma-Ata recommendations before there Nasogastric tube ­89.6 ­94.4 ­83.3 were any national policies for the ­area. Special wound dressing ­85.4 ­92.6 ­76.2 After 40 years, the expansion of Unerupted teeth ­36.4 ­35.2 ­38.1 PHC changed the model of hospi- Source: Prepared by the authors with 2014 data from the City of Curitiba, Department of Primary Care, tal-based health ­care. However, the Curitiba Municipal Health ­Secretariat. sub-​optimal functioning of PHC is an

54 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Massuda et al. • Alma-Ata and primary health care in a middle-income city Special report

FIGURE ­3. Regulation of referrals from primary health care to specialized care, mediated by family health support groups (NASF) teams or tele-health, in the SUS of the city of Curitiba, from 2014 to ­2016

Pediatric hospital CAPS Tertiary (Mental Health unit) hospital

Psychologist Psychiatrist TELE-HEALTH Pediatric NeurologistPediatrician

Cardiologist Family Health Team Geriatrician

Infectious (General Practitioner, Nurse, educator Diseases Nurse Technician/Assistant, Physical Specialized Community Health Agent) Units

PRIMARY CARE UNIT

Infectologist Nutritionist Oral Health Team Endocrinologist (Dentist, Dental Health

Technician and Assistant) Physiotherapist Orthopedist NASF Pharmacist Gynecologist Tertiary Specialized Speech therapist Maternity hospital hospital Dentistry Unit SECONDARY CARE

TERTIARY CARE

Referral + specialized support by tele-health

Referral + presently specialized support

Source: Prepared by the authors from study ­data.

important cause of health system fail- Thus, the structural weaknesses of health professionals working in primary ures, ­requiring permanent capacity for SUS, aggravated by austerity, threaten health care in 2013 – ­2016. ­innovation. the achievements so recently obtained.­ The prioritization of PHC in the health Sadly, disruption of successful health Conflicts of interest. Adriano Mas- system in Curitiba, together with the in- policies and reduction of public suda was Secretary of Health in Curitiba troduction of the innovative practices de- health services are underway in Bra- from January 2013 – July ­2015. César scribed in this report, produced increased zil (13, ­33). ­M. ­S. Titton was Secretary of Health access, improved performance, and better Finally, we highlight the fundamental in Curitiba from August 2015 – coordination of care by PHC ­teams. The role of international guidelines for health December ­2016. Paulo Poli Neto was investment in improving professional systems in hard ­times. In the midst of a Director of the Primary Care Depart- clinical skills and the ability to work military dictatorship, Alma-Ata’s recom- ment at the Secretariat of Health of through multiprofessional teams in health mendations promoted the first experi- Curitiba from January 2013 — April networks that interact with the various ences of PHC in ­Brazil. Today, in a context ­2016. The authors declare no other specialized care services were some of the of austerity, the SDGs reaffirm the right to conflicts of ­interest. more successful measures taken.­ universal health care—not just basic pack- However, more than organizational ages for the poor—to prevent setbacks Disclaimer. Authors hold sole respon- changes, health system innovation in- and to enable better health for all.­ sibility for the views expressed in the volves the transformation of people manuscript, which may not necessarily and cultures, demanding time and Acknowledgements. We would like to reflect the opinion or policy of the RPSP/ continuity to become well established.­ thank the City of Curitiba and all the SUS PAJPH and/or ­PAHO.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 55 Special report Massuda et al. • Alma-Ata and primary health care in a middle-income city

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56 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Massuda et al. • Alma-Ata and primary health care in a middle-income city Special report

RESUMEN El año 2018 es un momento oportuno para explorar las reformas del sistema de salud y la atención primaria de salud (APS) en Brasil, dados los aniversarios de la Declaración de Alma-Ata (40 años) y de la Constitución de Brasil (30 años), las bases del Sistema Recordando a Alma-Ata: Único de Salud ­(SUS). En este contexto, el análisis del sistema de salud en el ámbito municipal es un instrumento importante para reconocer los logros e innovaciones, así desafíos e innovaciones en como las debilidades y amenazas.­ Debido al principio de descentralización del SUS, la atención primaria de salud los municipios han asumido un papel de liderazgo en el desarrollo y la implementación en una ciudad de ingresos de políticas de ­salud. Las ciudades también son las primeras en expresar las deficien- medios en América Latina cias del sistema de salud y las consecuencias de las medidas de austeridad.­ Por lo tanto, el análisis de las transformaciones del sistema de salud a nivel municipal es fundamental para estudiar los logros y las brechas de la ­APS. Este informe identifica los desafíos y las innovaciones de la implementación de la APS en Curitiba, comenzando con una breve historia del desarrollo del sistema de salud de la ­ciudad. La ciudad fue pionera en vincular la planificación urbana con el diseño del sistema de salud, mejorar el acceso a la atención sanitaria y obtener mejores resultados de salud en los últimos 30 años.­ Este informe se enfoca en ese periodo, así como los desafíos y las estrategias implementados durante el ciclo político más reciente ­(2013-2016). Hay lecciones sustanciales que se pueden obtener de la experiencia de esta ciudad de ingresos medios en América Latina, que pueden ser útiles a medida que la región avanza hacia el Objetivo de Desarrollo Sostenible de la cobertura univer- sal de salud para el año ­2030.

Palabras clave Atención primaria de salud; reforma de la atención de salud; actos internacionales; cobertura universal de salud; Brasil; América ­Latina.

RESUMO O ano de 2018 é um momento oportuno para explorar as reformas do sistema de saúde e atenção primária à saúde (APS) no Brasil, considerando os aniversários da Declaração de Alma-Ata (40 anos) e da Constituição do Brasil (30 anos), as bases do Sistema Único Relembrando Alma-Ata: de Saúde ­(SUS). Neste contexto, a análise do sistema de saúde no cenário municipal é um instrumento importante para reconhecer realizações e inovações, bem como desafios e inovações na fraquezas e ­ameaças. Devido ao princípio de descentralização do SUS, os municípios atenção primária à saúde assumiram um papel de liderança no desenvolvimento e implementação de políticas em uma cidade de renda de ­saúde. As cidades também são as primeiras a expressar os fracassos do sistema de saúde e as conseqüências das medidas de austeridade.­ Assim, a análise das transfor- média na América Latina mações do sistema de saúde no nível municipal é fundamental para o estudo das conquistas e lacunas da ­APS.

Este relatório identifica os desafios e inovações da implementação da APS em Curitiba, começando com uma breve história do desenvolvimento do sistema de saúde da ­cidade. A cidade foi pioneira em vincular o planejamento urbano com desenho dos sistemas de saúde, melhorando o acesso aos serviços de saúde e obtendo melhores resultados de saúde nos últimos 30 ­anos. Este relatório abrange esses anos, assim como os desafios e estratégias implementados durante o ciclo político mais recente ­(2013-2016). Há lições substanciais que podem ser extraídas da experiência desta cidade de renda média na América Latina, lições que podem ser úteis à medida que a região avança em direção ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da cobertura universal de Saúde até ­2030.

Palavras-chave Atenção primária à saúde; reforma dos serviços de saúde; atos internacionais; cober- tura universal de saúde; Brasil; América ­Latina.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 57

Pan American Journal Artigo especial of Public Health

Dezesseis anos de monitoramento em saúde na atenção primária em uma grande metrópole das Américas

Sylvia Grimm,1 Alexandre Padilha,2 Katia Cristina Bassichetto1 e Margarida Lira1

Como citar Grimm S, Padilha A, Bassichetto KC, Lira M. Dezesseis anos de monitoramento em saúde na atenção primária em uma grande metrópole das Américas. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e183. https:// doi.org/10.26633/RPSP.2018.183

RESUMO O presente artigo relata a institucionalização do monitoramento de indicadores sobre o desem- penho da atenção primária à saúde (APS) em uma grande metrópole das Américas, com 7 milhões de usuários no sistema público de saúde. A partir da experiência de desenvolvimento e uso, há 16 anos, do Painel de Monitoramento da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, foi desenvolvido o Painel de Gestão da Atenção Básica, fornecendo um conjunto de indicadores selecionados sobre o comportamento desse nível de atenção ao longo do tempo. O Painel de Gestão foi incorporado à reorganização da governança, envolvendo dirigentes e técnicos dos diversos níveis, capacitados com um método de cogestão de organizações, com apoio da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS). A experiência de uso desse Painel de Gestão aumentou também a efetividade na comunicação das informações do Painel de Monitoramento, apoiando a implementação de mudanças no modelo de organização para consolidar os atributos de acesso, longitudinalidade, integralidade e coor- denação do cuidado na APS. A robustez da série histórica dos dados e o envolvimento dos implementadores dessa iniciativa fortaleceram a confiança das equipes na utilização das infor- mações geradas. A metodologia de monitoramento captou mudanças no período em análise, orientando os envolvidos quanto às diferenças entre regiões intramunicipais. O monitoramento é prática que possibilita a utilização ágil e oportuna de dados secundários, fundamental para o enfrentamento dos problemas evidenciados.

Palavras-chave Políticas públicas; avaliação em saúde; atenção primária à saúde; indicadores de saúde; Brasil.

Avaliar o desempenho das políticas efetividade e eficiência. Experiências e social e contribuído para a constru- no campo da saúde tem sido uma ex- de monitoramento e avaliação têm ga- ção de conceitos que se concretizaram pectativa presente na atividade com- nhado protagonismo como práticas em diversos modelos de expansão da plexa de gestão dos serviços de saúde, orientadoras das ações em curso, tornan- cobertura e organização da rede de considerando a necessidade de maior do-se ­importantes ferramentas geren- atenção primária à saúde (APS) (5). ciais para o aprimoramento de políticas ­Entretanto, no município de São Paulo,

1 Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, ­públicas (1–4). Brasil, onde 7 milhões de usuários utili- Coordenação de Epidemiologia e Informação, São Desde a Declaração de Alma-Ata, zam a rede de atenção primária do Sis- Paulo (SP), Brasil. Correspondência: Sylvia a proposta de “Saúde para todos no tema Único de Saúde (SUS) anualmente Grimm, [email protected] 2 Faculdade São Leopoldo Mandic, Campinas (SP), ano 2000”, entre tantas outras iniciati- (6, 7), esse processo passou por aproxi- Brasil. vas, tem gerado mobilização política mações e distanciamentos dos preceitos

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 59 Artigo especial Grimm et al. • Monitoramento em saúde na APS estabelecidos nesses movimentos, com trabalho, a base territorial e comunitária em questão utiliza uma metodologia experimentação de diversos modelos da cobertura populacional e o esforço de adequada para o monitoramento, tendo de organização de serviços em períodos constituir a APS como centro de uma o período mais recente disponível como bem marcados. rede de atenção coordenadora do cuida- o centro da sua análise. É disponibilizado No início dos anos 1980, a primeira do (12). Tal modelo passou a influenciar a em rede para gestores e técnicos por expansão foi baseada no modelo de reorganização da APS no município de meio de um aplicativo, o que facilita a in- ações programáticas em saúde, com or- São Paulo, cuja rede incluía, naquele mo- terface com os usuários e automatiza a ganização dos serviços de atendimento mento, 453 unidades básicas de saúde obtenção de relatórios específicos. baseada em análise de riscos epidemio- (UBS), com 4,4 milhões de pessoas aten- No mesmo período (2013-2016), foi im- lógicos. Esse modelo foi definido de for- didas pela ESF, 98 AMA, cerca de 9 mi- plantado o Colegiado de Gestão da ma centralizada, entendendo a APS lhões/ano de consultas médicas básicas e ­SMS-SP, coordenado pelo secretário mu- como parte de uma rede de serviços hie- mais de 20 milhões de receitas atendidas nicipal de saúde à época, que envolveu rarquizada por níveis de complexidade pela rede municipal do SUS (6, 7). Essa as áreas da atenção básica e de média e (8). No início da década de 1990, exata- reorganização ocorreu em um contexto alta complexidade, regulação, urgência e mente quando se iniciava a implemen- de profunda desigualdade, com influên- emergência, vigilância em saúde e os res- tação do SUS em todo o Brasil, o cia dos determinantes sociais em saúde pectivos gestores das seis regiões intra- município de São Paulo se afastou das no acesso aos serviços e nas formas de municipais de saúde, subdivididas em suas diretrizes e estabeleceu uma rede adoecimento, resultando em realidades 26 supervisões locais. A frequência de própria de serviços de APS, adotando distintas na mesma cidade (14). reuniões era semanal, intercalando-se um modelo de contratação de cooperati- Como parte do enfrentamento desses momentos presenciais e por videoconfe- vas médicas privadas, com característi- desafios, o órgão gestor da saúde no mu- rência para reduzir o afastamento dos cas de acesso não universal e fortemente nicípio de São Paulo, no período de 2013 gestores das respectivas regiões de saú- voltado para especialidades médicas, a 2016, estabeleceu algumas estratégias de. Nesse Colegiado, o Painel de Gestão denominado Plano de Atendimento à prioritárias para o fortalecimento da da Atenção Básica passou a ser pautado Saúde (PAS) (9). APS: o Plano Estratégico de Gestão e mensalmente, permitindo a divulgação, No início dos anos 2000, o município Monitoramento da Secretaria Municipal debate e análise de resultados. Essa ini- de São Paulo retomou o compromisso de Saúde de São Paulo (SMS-SP) e um ciativa teve como pressupostos a necessi- com os princípios do acesso universal e acordo de cooperação com a Organiza- dade de aumentar a efetividade nas o governo local passou assumir a gestão ção Pan-Americana da Saúde (OPAS)/ comunicações dos resultados das ações e do conjunto de unidades da rede de Brasil (15). Tais estratégias se desdobra- ampliar a oferta de conteúdos e condi- APS. Em parte dessas unidades, foi im- ram em quatro ações: 1) desenvolvimen- ções para apoio de gestores e técnicos plantado o modelo da Estratégia Saúde to de um programa de investimento em nos diferentes níveis do sistema de saúde da Família (ESF), que inseria médicos de infraestrutura nas UBS; 2) adesão e im- municipal na tomada de decisão, funda- família e agentes comunitários de saúde plementação do Programa Mais Médi- mental para o enfrentamento das desi- (ACS) nas equipes (10). Na segunda me- cos (PMM) (16) direcionado às UBS que gualdades observadas. tade dessa mesma década, visando à apresentavam maior dificuldade no pro- O objetivo deste artigo é apresentar a ampliação do acesso, foi implantado um vimento desses profissionais; 3) reorga- experiência de institucionalização do modelo de unidades de pronto-atendi- nização dos processos de trabalho das monitoramento como estratégia de mento, denominadas Assistência Médi- AMA, integrando-as às equipes das acompanhamento das ações propostas ca Ambulatorial (AMA). Esse modelo, UBS, tendo como pressupostos os atri- para o fortalecimento da APS no municí- entretanto, não permitia a longitudinali- butos do acesso de primeiro contato, pio de São Paulo, no ano de 2016, por dade no acompanhamento dos casos longitudinalidade, integralidade, terri- meio da construção e utilização do Painel atendidos, sendo que muitas dessas uni- torialização comunitária e coordenação de Gestão da Atenção Básica. dades compartilhavam os espaços físi- do cuidado, como previsto no documen- cos das equipes da rede de APS existente, to municipal de diretrizes, amplamente MATERIAIS E MÉTODOS competindo com o modelo estabelecido discutido nas instâncias de participação até então (11). da comunidade e em consulta pública O Painel de Gestão da Atenção Básica A partir de 2011, os governos munici- eletrônica (17); e 4) desenvolvimento, pode ser definido como um conjunto de pais no Brasil passaram a ser incentiva- em parceria com a OPAS, de um proces- dados referentes a indicadores selecio- dos técnica e financeiramente pelo so de educação permanente com cerca nados, analisados ao longo de período Ministério da Saúde, e orientados pelas de 300 profissionais de saúde da própria estabelecido para fins de monitoramento diretrizes da Política Nacional de Aten- rede municipal e das estruturas de ges- de aspectos estratégicos. O processo de ção Básica (PNAB) do SUS (12), no senti- tão envolvendo as instituições formado- trabalho para a construção desse Painel do de recuperar e reafirmar a experiência ras (18, 19). de Gestão da Atenção Básica envolveu a da ESF, pautada pelos atributos da APS, Essa demanda se constituiu como uma formação de um grupo de trabalho sob como apresentado no relatório global de oportunidade de disponibilizar todo um responsabilidade da Coordenação de saúde da Organização Mundial da Saúde conhecimento acumulado no desenvol- Epidemiologia e Informação (CEInfo), (OMS) (13). A PNAB tem como pilares o vimento de um instrumento de monito- com representantes da então Coordena- acesso aberto e acolhedor, considerando ramento para apoio à tomada de decisão, ção da Atenção Básica, das áreas técnicas as necessidades dos usuários, a organiza- o Painel de Monitoramento da SMS-SP que faziam interface com a atenção básica ção multiprofissional do processo de (20, 21), existente desde 2001. O Painel e da assessoria do gabinete. Esse grupo

60 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Grimm et al. • Monitoramento em saúde na APS Artigo especial fez uma revisão crítica de cada ação para ou da média móvel simples centrada e somente um deles: “número de consultas a escolha de indicadores que represen- apontar situações de tendência e sazona- médicas básicas, exceto as de urgência tassem a síntese dos diferentes aspectos lidade após testar significância estatísti- em atenção básica”, por representar, ao a serem monitorados, levando em conta ca. O desempenho dos indicadores mesmo tempo, tanto um aspecto de aces- os critérios de validade, oportunidade, também é analisado por meio do contro- so como de mudança de modelo de aten- disponibilidade, desagregação e gover- le estatístico do processo para identificar ção à saúde (que estava sendo buscada). nabilidade, importantes para a prática de forma eficaz alterações bruscas nos Optou-se, ainda, por apresentar o indica- do monitoramento (22), privilegiando o processos analisados. O Painel de Moni- dor para o município de São Paulo e para uso de dados secundários, disponibiliza- toramento tem passado por contínuos as coordenadorias regionais de saúde em dos pelas diferentes áreas e demais siste- processos de atualização e aprimora- dois períodos distintos, que correspon- mas de informação de interesse. A partir mento, sendo que o mais recente contou diam à primeira e à última discussão no dos temas escolhidos (consultas médicas, com o apoio da OPAS na contratação de Colegiado de Gestão (22 de fevereiro de odontológicas e de enfermeiros, agenda, consultoria específica (23). Os dados 2016 e 28 de novembro de 2016), ainda recursos humanos, ouvidoria e supri- anuais e mensais, desempenhos e ten- que estes não sejam completamente mentos) foram selecionados 21 indicado- dências dos indicadores têm sido apre- equivalentes, como recomendado para res (15) (figura 1). sentados em um único quadro para estudos comparativos. Essa opção teve Foi também definido o período a ser facilitar a compreensão da análise a ser como objetivo apresentar de forma mais considerado como série histórica (2012 a efetuada (15) (figura 2). clara as mudanças ocorridas em cada es- 2016) e as unidades de medida dos indi- Para a apresentação mensal do Painel paço durante o ano de monitoramento cadores selecionados (razões, números de Gestão da Atenção Básica no Colegia- (2016). médios anuais e proporções). Para a aná- do de Gestão da SMS-SP, os indicadores Os seguintes procedimentos foram in- lise dos indicadores, foi utilizada a meto- selecionados eram disponibilizados pre- cluídos no indicador “número de consul- dologia estatística existente no aplicativo viamente, em forma de eslaides, para to- tas médicas básicas, exceto as de urgência do Painel de Monitoramento da SMS-SP: dos os participantes. Isso facilitava a em atenção básica”, com o respectivo desempenho de cada indicador nos últi- possibilidade de uma discussão amplia- código da Tabela Unificada do SUS (SIG- mos 7 meses em relação à série histórica da e descentralizada, alcançando os ges- TAP) (disponível em http://sigtap.data- e tendência nos últimos 48 meses. Essa tores dos diferentes níveis do sistema, já sus.gov.br/tabela-unificada/app/sec/ metodologia permite captar e sinalizar que também se utilizava a estratégia de inicio.jsp): consulta ao paciente curado de oportunamente situações de desempe- teleconferência. tuberculose (tratamento) (0301010013), nho indesejável dos indicadores acompa- Apesar de o Painel de Gestão da Aten- consulta com identificação de casos nhados e realizar uma previsão futura, ção Básica conter vários indicadores, novos de tuberculose (0301010021), utilizando modelo Holt-Winters aditivo para este estudo optou-se por apresentar consulta médica em atenção básica (0301010064), consulta para acompanha- mento de crescimento e desenvolvimen- to (0301010080), consulta para avaliação FIGURA 1. Elenco de indicadores do Painel de Gestão da Atenção Básica, Município clínica do fumante (0301010099), con- de São Paulo, Brasil, 2016a sulta de pré-natal (0301010110), consulta 1 Reclamações na Ouvidoria puerperal (0301010129), consulta/aten- 2 Solicitações de serviços na Ouvidoria dimento domiciliar na atenção básica 3 Consultas Médicas Básicas (Urgência e Não Urgência) (0301010137), atendimento para indica- 4 Consultas Médicas Básicas não Urgência ção/fornecimento de diafragma uterino 5 Consultas Médicas de Urgência em Clínica Básica (0301040010) e atendimento para indi- 6 Consultas Médicas de Urgência Especializada (Hospitais, AMA 24h, UPA, PA, PS) cação/fornecimento e inserção do DIU 7 Primeira Consulta Odontológica (0301040028). 8 Consulta Enfermeiro Esperava-se que as equipes das UBS 9 Internações por Condições Sensiveis à Atenção Básica (ICSAB) assumissem de modo continuado o cui- 10 Consultas Ofertadas na atenção básica (agenda) dado das pessoas que até então eram 11 Consultas Agendadas na atenção básica 12 Tempo médio de espera na atenção básica (dias) atendidas no modelo de pronto-atendi- 13 Perda primária na Atenção Básica mento. Nesse sentido, para ilustrar a mu- 14 Absenteísmo na Atenção Básica dança ocorrida, são apresentados os 15 7 ou mais Consultas de Pré Natal realizadas entre nascidos em hospitais SUS resultados da evolução do indicador se- 16 Médicos Existentes nas Unidades AB lecionado no período, considerando a si- 17 Médicos Contratados para unidades AB tuação em 2015 e 2016 (anterior e 18 Itens por faixa de desabastecimento - 0 – 10% de unidades (medicamentos e MMH) posterior à implantação das diversas ini- Itens por faixa de desabastecimento - 11 – 30% de unidades (medicamentos e MMH) ciativas para o fortalecimento da APS), Itens por faixa de desabastecimento - 30% e mais de unidades (medicamentos e MMH) por meio das análises de desempenho e 19 Solicitações de Suprimentos na Ouvidoria de tendência, comparando-se os dois 20 IDM -% adesão -% hs contratadas/previstas -% hs presentas/contratadas momentos considerados. 21 Solicitações de consultas médicas especializadas pela AB A experiência aqui apresentada se con- a Reproduzido de (15), com autorização. AB: atenção básica; AMA: Assistência Médica Ambulatorial; MMH: figurou como uma iniciativa de aprimo- material médico-hospitalar; PA: pronto atendimento; PS: pronto socorro; UPA: Unidade de Pronto Atendimento. ramento da gestão, com o uso de dados

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 61 Artigo especial Grimm et al. • Monitoramento em saúde na APS

FIGURA 2. Apresentação sintética dos dados anuais e mensais, desempenhos e tendências obtidas pelo Painel de Monitora- mento da Secretaria Municipal de Saúde (série externa), município de São Paulo, Brasil, novembro de 2016a

2012 2013 2014 2015 Ago/2016 Set/2016 Out/2016 MUNICÍPIO DE SÃO PAULO Desempenho Tendência Razão de Consultas por Habitantes No Consultas Médicas Básicas (Urgência e Não Urgência) 1,46 1,46 1,31 1,21 1.455.706 1.348.126 ...

Consultas Médicas Básicas não Urgência 0,67 0,66 0,67 0,67 890.963 814.435 ... Bom, 7 pt acima Consultas Médicas de Urgência em Clínica Básica 0,79 0,79 0,64 0,54 564.743 533.691 ... Estável Consultas Médicas de Urgência Especializada 0,49 0,50 0,48 0,46 450.363 448.909 ...

Primeira Consulta Odontológica 0,06 0,05 0,04 0,04 42.901 39.041 ... Estável Consulta Enfermeiro 0,25 0,25 0,27 0,30 342.967 321.815 ... Bom, 7 pt acima Internações por Condições Sensiveis à Atenção Básica 0,46 0,47 0,46 0,44 4.665 4.313 ... (ICSAB) Número Médio Mensal No Desempenho Tendência

Consultas Ofertadas na atenção básica (agenda) 734.625 760.806 766.160 729.332 983.947 872.683 798.082 Bom, 7 pt acima Consultas Agendadas na atenção básica 635.801 679.685 705.300 718.922 1.044.038 940.166 862.132 Excelente, 7 pt acima Tempo médio de espera na atenção básica (dias) 34 32 29 25 14 14 14 Bom, 7 pt abaixo Número médio Semanal Semanas 45, 46 e 47 Desempenho Tendência

Reclamações na Ouvidoria ...... 176 194 221 177 Solicitações de serviços na Ouvidoria ...... 299 348 378 278

Solicitações de Suprimentos na Ouvidoria ...... 71 515 663 554 Alerta, 7 pt acima Proporção Desempenho Tendência Perda primária na Atenção Básica 26,6 20,2 17,1 12,8 14,0 13,4 13,5 Bom, 7 pt abaixo Absenteísmo na Atenção Básica 31,1 30,2 29,0 27,9 27,3 27,8 28,7 Bom Solicitações de consultas médicas especializadas pela AB 24,5 22,3 21,1 19,7 14,4 15,6 15,1 Bom, 7 pt abaixo Consultas de Pré Natal realizadas entre Nascidos em Hospitais SUS 67,8 69,1 68,8 70,4 76,5 ...... Melhoria a Reproduzido de (15), com autorização.

secundários e indicadores tradicional- pode-se observar um incremento grada- regionais, com valores pontuais va- mente utilizados em saúde. Dessa forma, tivo e mensal do número de consultas, riando de 14,2% a 17,4%. A tendência não houve necessidade de submissão apontando uma tendência de aumento observada no início do monitoramento deste projeto ao Comitê de Ética em Pes- significativa, considerando todo o perío- (22 de fevereiro de 2016), considerando quisa da SMS-SP. do. O desempenho, no momento desta a série histórica analisada, apresentava etapa de monitoramento (informações significância para duas coordenadorias RESULTADOS até setembro de 2016), apresentava-se (Leste e Sul), sendo que a primeira foi como “bom”, com 7 pontos acima da de queda e a segunda de aumento. Essa A figura 3 mostra o desempenho do in- média. Contribuíram para esse resulta- situação inicial sofreu mudanças no últi- dicador “número de consultas médicas do os meses de março a setembro de mo momento de monitoramento (28 de básicas, exceto as de urgência em atenção 2016. Além dos 7 meses já citados que novembro de 2016), quando cinco das básica” no município de São Paulo du- apresentaram valores acima da média seis coordenadorias analisadas e o mu- rante todo o período analisado, bem no período analisado, foram observados nicípio apresentaram tendência signifi- como os meses que deram origem aos re- 4 meses (março, junho, julho e setembro cativa de aumento. sultados apresentados na tabela 1. No pe- de 2016) com valores entre 1 e 2 desvios Quanto à análise de desempenho, ríodo analisado, janeiro de 2012 a padrão (DP) e 1 mês (agosto de 2016) que considera o resultado dos últimos dezembro de 2015, anterior à implanta- com valor entre 2 e 3 DP calculados a 7 meses, apenas as coordenadorias Les- ção das ações planejadas para a reestrutu- partir da média. te e Norte apresentaram algum resul- ração da APS, não se verificou tendência Na tabela 1 pode-se observar que a tado, sendo na Leste um desempenho de aumento ou de redução significativa variação percentual do “número de con- indesejado (7 pontos abaixo da média) ou algum desempenho (figura 3). sultas básicas exceto urgência” foi de e na Norte um desempenho considera- Na figura 3B, referente ao período de aumento, tanto para o município de São do “bom”. Também para esta análise outubro de 2012 a setembro de 2016, Paulo quanto para as coordenadorias ­foram observados resultados positivos

62 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Grimm et al. • Monitoramento em saúde na APS Artigo especial

FIGURA 3. Número de consultas médicas básicas, exceto as de urgência em atenção em cinco coordenadorias regionais e no básica, em dois períodos selecionados, município de São Paulo, Brasil município de São Paulo no último mo- mento de monitoramento. no de consultas médicas básicas, exceto de urgência A Município São Paulo, Jan 12 – Dez 15, HWA(99.77%) – gráfico gerado em 22/06/2016 DISCUSSÃO 900000 A gestão de serviços de saúde pressu- 800000 põe o desafio de articular interesses indi- viduais, corporativos e coletivos nem sempre convergentes, o que requer 700000 ­conhecer a pluralidade dos contextos vi- venciados nos diferentes espaços de ope- ração dos serviços, criando condições 600000 para responder adequadamente às dis- tintas necessidades. Nesse sentido, a 500000 construção de instrumentos de monitora- mento e avaliação e sua utilização ­pelas equipes dos diferentes níveis do sistema 400000 de saúde contribuem para apoio ao pro- cesso de tomada de decisões no SUS (24). Jul 15 Jul 14 Jul 12 Jul 13 Set 15 Set 14 Set 12 Set 13 Fev 16 Fev 15 Fev 14 Fev 13 Fev 12 Abr 16 Abr 15 Out 15 Abr 14 Out 14 Abr 12 Out 12 Abr 13 Out 13 Jan 16 Jan 15 Mai 15 Jun 15 Dez 15 Jan 14 Mai 14 Jun 14 Dez 14 Mai 12 Jun 12 Dez 12 Jan 13 Mai 13 Jun 13 Dez 13 Jan 12 Mar 16 Mar 15 Mar 14 Nov 15 Mar 13 Nov 14 Mar 12 Nov 12 Nov 13 Ago 15 Ago 14 Ago 12 Ago 13 Além disso, a ampliação da oferta da no de consultas médicas básicas, exceto de urgência B atenção como política nacional tem de- Município São Paulo, Out 12 – Set 16, Tendência (+), Sazonalidade, mandado dos gestores e profissionais HWA (99.91%) Bom, 7 pontos acima – gráfico gerado em 28/11/2016 aprimoramento e agilidade na formula- ção de soluções mais adequadas a esse 900000 contexto, o que exige uma postura mais crítica e reflexiva sobre suas práticas. É 800000 importante ressaltar, no entanto, que propostas sistematizadas e implementa- das de monitoramento e avaliação não 700000 asseguram por si que as decisões toma- das na gestão da saúde sejam baseadas nos conhecimentos que esses processos 600000 produzem (23). A experiência aqui apresentada é sin- 500000 gular, pois permitiu o acompanhamento sistemático de indicadores previamente selecionados e de ações consideradas 400000 prioritárias pela gestão, capazes de cap- tar o caminho percorrido durante o ano Jul 15 Jul 16 Jul 14 Jul 13 Set 15 Set 16 Set 14 Set 13 Fev 16 Fev 15 Fev 14 Fev 13 Abr 16 Abr 15 Out 15 Out 16 Abr 14 Out 14 Out 12 Abr 13 Out 13 Jan 16 Jan 17 Jan 15 Mai 15 Jun 15 Dez 15 Mai 16 Jun 16 Dez 16 Jan 14 Mai 14 Jun 14 Dez 14 Dez 12 Jan 13 Mai 13 Jun 13 Dez 13 Mar 16 Mar 15 Mar 14 Nov 15 Nov 16 Mar 13 Nov 14 Nov 12 Nov 13 Ago 15 Ago 16 Ago 14 Ago 13 de 2016, o que não é convencional. Desta- ca-se a contribuição dessa prática para o Fonte: SIA-SUS/Painel de Monitoramento da SMS-SP.

TABELA 1. Variação percentual e análise de desempenho e tendência do indicador “número de consultas médicas básicas, exceto urgência” para o município de São Paulo e Coordenadorias Regionais de Saúde, fevereiro a novembro de 2016a

No. consultas Desempenho Tendência Coordenação Variação % 2015 2016 22 fev 2016 28 nov 2016 22 fev 2016 28 nov 2016 CENTRO 155 379 177 443 14,2 — Bom — Ç LESTE 1 746 318 2 031 980 16,4 7 pontos abaixo Bom, 7 pontos acima È — NORTE 1 555 245 1 793 001 15,3 Bom Bom, 7 pontos acima — Ç OESTE 444 092 521 381 17,4 — Melhoria — Ç SUDESTE 1 467 441 1 696 852 15,6 — Bom, 7 pontos acima — Ç SUL 2 428 052 2 834 883 16,8 — Melhoria, 7 pontos acima Ç Ç Município de São Paulo 7 796 527 9 055 540 16,1 — Bom, 7 pontos acima — Ç Fonte: SIA-SUS/Painel de Monitoramento da SMS-SP. a Síntese do resultado dos últimos sete pontos da série analisada. Desempenhos não satisfatórios são: ATENÇÃO, ALERTA ou CRÍTICO. Os desempenhos satisfatórios, com base nos sinais mensais são BOM, MELHORIA ou EXCELÊNCIA. Além de considerar a sequência de sinais mensais segundo as faixas, foram acrescidos três desempenhos não esperados que são destacados: 1) a existência de sete pontos seguidos acima ou abaixo da média; 2) a sequência de sete pontos em ascensão ou decréscimo e 3) a inversão recente de uma tendência.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 63 Artigo especial Grimm et al. • Monitoramento em saúde na APS processo de implementação de uma polí- das práticas em busca de melhores saúde afirmadas no relatório global da tica de reorganização do modelo de aten- resultados. OMS, intitulado Atenção primária mais ção na APS em rede extremamente O uso da informação é um desafio do que nunca (13). Essas apontam para complexa, pela sua dimensão de grande para a gestão dos sistemas de saúde e o a reorganização dos serviços de saúde metrópole, pelo histórico de mudanças monitoramento é uma prática que possi- em torno das necessidades das pessoas, em relação à organização da APS e pelas bilita organizar, qualificar e difundir da- de forma a substituir o comando e con- profundas desigualdades de acesso e re- dos secundários dos diferentes sistemas trole autoritário, mas também o laissez- solutividade da sua rede. de informação do SUS de forma ágil e -faire descomprometido, por uma Acredita-se que um dos fatores que oportuna. Os dados secundários dos Sis- liderança com base na negociação, par- contribuíram para a aceitação do Painel temas de Informação do SUS (SIASUS) ticipativa e inclusiva, exigida pela com- de Gestão da Atenção Básica – ou seja, o permitem apresentação da produção am- plexidade dos sistemas de saúde conjunto de dados referentes aos indica- bulatorial apenas 3 meses após o mês de contemporâneos. dores selecionados no período estabele- competência. No aplicativa da SMS-SP, Os presentes resultados revelam a in- cido de análise – foi a confiança existente as informações podem ser analisadas no corporação do atendimento da demanda na origem dos dados – o Painel de Mo- mês de competência para 95% dos da- não agendada, até então absorvida pelas nitoramento da SMS-SP, que acumula dos. Dessa forma, as mudanças tempo- unidades e equipes de pronto atendi- uma experiência de cerca de 16 anos, rais podem ser captadas, o que é mento, no processo de trabalho das equi- passando por um processo de desenvol- fundamental para o enfrentamento dos pes multiprofissionais, assegurando o vimento e aprimoramento participativo problemas evidenciados. cuidado continuado na atenção primá- contínuo junto a gestores e técnicos dos A utilização da informação para a to- ria. A inclusão do “primeiro atendimento níveis central e regional da SMS-SP, o mada de decisão é uma cultura ainda em às urgências médicas e odontológicas” que tem favorecido o fortalecimento do construção e tem contribuído para fo- representou um desafio importante a ser processo de análise conjunta e descen- mentar as discussões dos diferentes te- monitorado. Buscava-se atenuar a “rigi- tralizada. Outro aspecto a ser conside- mas que envolvem as prioridades da dez” da adscrição territorial, com vistas rado é que a opção de utilizar o gestão. Esta experiência foi capaz de des- ao atendimento à demanda espontânea, Colegiado de Gestão da SMS-SP como pertar o interesse dos diferentes atores agenda programática e ampliação do espaço de divulgação e debate mensal envolvidos e potencializou a utilização acesso da população. do Painel de Gestão da Atenção Básica, crítica das informações em saúde. Permi- Avalia-se que a experiência apresen- mesmo com a disponibilidade do apli- tiu o desenvolvimento de habilidades e tada, de construção e implantação do cativo Painel de Monitoramento da promoveu subsídios para a correção de Painel de Gestão da Atenção Básica, foi SMS desde 2009 (25), fortalece a prática rumos, caminhando assim para o alcance bem-sucedida, uma vez que conjugou a do monitoramento de indicadores que dos resultados desejados. disponibilização de informações perti- não acontecia no gabinete, de forma sis- O espaço que foi assegurado para a nentes com a criação de condições para tematizada e coletiva. Vale ainda ressal- compreensão do processo de constru- a inserção do monitoramento e avalia- tar que a reorganização das estruturas ção da informação possibilitou que as ção com periodicidade definida, como de governança, seja o Colegiado de ges- decisões sobre as ações a serem encami- estratégia de transformação do sistema tão, ­reunindo a alta direção e a direção nhadas fossem tomadas de forma mais de saúde. Como consequência, houve descentralizada, seja a constituição de objetiva e efetiva, ampliando a confian- favorecimento da formação, do apren- uma rede de apoiadores institucionais ça sobre as informação disponibiliza- dizado, do debate e da reflexão dos responsáveis pelas UBS, configuram-se das, o que legitimou esse processo envolvidos. Esse processo, por conse- ambas como iniciativas baseadas em dentro da SMS-SP. Considera-se, ainda, guinte, contribuiu para a melhoria das um método de cogestão de coletivos que a cooperação técnica com a OPAS/ condições de saúde da população. Esta que pressupõe a produção de sujeitos Brasil representou um apoio substancial iniciativa permitiu que fossem feitas durante a gestão e implementação de para disparar e dar qualidade a esse avaliações sobre o objeto em análise e políticas e organizações. Nesse sentido, movimento de mudança no âmbito da delineadas estratégias conjuntas de en- o Painel de Monitoramento da SMS-SP, rede da APS, buscando implementar o frentamento, corrigindo possíveis des- o Painel de Gestão da Atenção Básica e conjunto de diretrizes estabelecido na vios em torno do objetivo determinado, as novas estruturas de governança PNAB (12) e no PMM para o Brasil (14). o que se configurou como um apoio constituíram-se como instrumentos po- Para tanto, em curto espaço de tempo, importante para que as instâncias deci- líticos organizacionais de implementa- foram desenvolvidas estratégias de sórias pudessem aperfeiçoar o desem- ção (26). apoio institucional e supervisão; quali- penho do SUS. A participação da alta direção e da di- ficados técnicos e gestores da rede mu- reção descentralizada nas discussões dos nicipal de saúde para exercer esses Conflitos de interesse. Nada declara- resultados teve o potencial de fortalecer papéis; construídos arranjos institucio- do pelos autores. a confiança nas informações e aumentar nais; e orientado o processo de criação a capacidade de utilização dessas ferra- de novas ferramentas de tecnologia da Declaração. As opiniões expressas no mentas por parte das equipes para busca informação para monitorar e orientar as manuscrito são de responsabilidade ex- das mudanças apontadas. O caráter par- estratégias (7). clusiva dos autores e não refletem neces- ticipativo como mecanismo de aproxi- O conjunto das estratégias prioritá- sariamente a opinião ou política da mação da realidade das ações é um rias adotadas de fortalecimento da APS RPSP/PAJPH ou da Organização Pan- fator importante para o fortalecimento dialoga com as reformas no campo da -Americana da Saúde (OPAS).

64 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Grimm et al. • Monitoramento em saúde na APS Artigo especial

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 65 Artigo especial Grimm et al. • Monitoramento em saúde na APS

ABSTRACT The present article describes the institutional integration of primary health care (PHC) performance monitoring in a metropolis in the Americas where 7 million people use the public health care system. Based on the development, 16 years ago, Sixteen years of primary of the São Paulo City Health Department Monitoring Panel, a PHC Management health care monitoring in a Panel was developed, providing information on the behavior of a set of selected large metropolis in indi-cators at this level of care over time. The Management Panel was incorporated into the process of governance reorganization, involving management and technical the Americas staff at various levels, who were trained in a co-management method with support from the Pan American Health Organization/World Health Organization (PAHO/ WHO). The experience with the Management Panel was also useful to increase the effectiveness with which the information provided by the Monitoring Panel was communicated, supporting the implementation of changes in the organizational model to consolidate the PCH attributes of access, longitudinality, comprehensiveness, and coordination of care. The robustness of the historical data series and the involvement of the implementers of this initiative helped to increase trust in the information generated. The monitoring method captured changes over time and guided those in-volved regarding the differences between city regions. Monitoring is a strategy that enables the swift and timely use of secondary data, and was essential to meet the challenges identified in this health care system.

Keywords Public policy; health evaluation; primary health care; health status indicators; Brazil.

RESUMEN El presente artículo describe el proceso de integración institucional del monitoreo de la atención primaria de salud (APS) en una metrópolis de las Américas donde 7 millo- nes de personas utilizan el sistema público de salud. A partir del desarrollo y el Dieciséis años de monitoreo empleo, desde hace 16 años, del Panel de Monitoreo de la Secretaría Municipal de en salud en la atención Salud de São Paulo, se desarrolló un Panel de Gestión de la APS que brinda informa- ción sobre el comportamiento de un conjunto de indicadores seleccionados en este primaria en una gran nivel de atención a lo largo del tiempo. El Panel de Gestión se incorporó al proceso de metrópolis de las Américas reorganización de la gobernanza, involucrando a los líderes y técnicos de diversos niveles, que recibieron capacitación en un método de cogestión con el apoyo de la Organización Panamericana de la Salud/Organización Mundial de la Salud (OPS/ OMS). La experiencia con el Panel de Gestión también fue útil para aumentar la efec- tividad con la que se comunicó la información proporcionada por el Panel de Monitoreo, apoyando la implementación de los cambios en el modelo organizacional para consolidar los atributos de acceso, longitudinalidad, integralidad y coordinación de cuidados en la APS. La robustez de la serie de datos históricos y el compromiso del equipo que implementó esta iniciativa contribuyeron a aumentar la confianza de los equipos en la información generada. El método de monitoreo captó los cambios durante el período analizado y guió a los profesionales involucrados respecto de las diferencias entre las regiones de la ciudad. El monitoreo como estrategia permite el uso rápido y oportuno de datos secundarios, lo cual es esencial para enfrentar los problemas identificados.

Palabras clave Política pública; evaluación en salud; indicadores de salud; atención primaria de salud; Brasil.

66 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Pan American Journal Artigo especial of Public Health

Programa Mais Médicos: como avaliar o impacto de uma abordagem inovadora para superação de iniquidades em recursos humanos

Allan Claudius Queiroz Barbosa,1 Pedro Vasconcelos Amaral,2 Gabriel Vivas Francesconi,3 Carlos Rosales,4 Elisandréa Sguario Kemper,3 Núbia Cristina da Silva,1 Juliana Goulart Nascimento Soares,5 Joaquín Molina3 e Thiago Augusto Hernandes Rocha3

Como citar Barbosa ACQ, Amaral PV, Francesconi GV, Rosales C, Kemper ES, Silva NC, et al. Programa Mais Médicos: como avaliar o impacto de uma abordagem inovadora para superação de iniquidades em recursos humanos. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e185. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.185

RESUMO Apesar de decorridos 40 anos da divulgação dos princípios de Alma-Ata, ainda persistem desafios para a consolidação da atenção primária à saúde (APS) como eixo norteador dos sistemas de saúde ao redor do globo. Dentre os desafios ainda presentes, merecem destaque as questões associadas à iniquidade na distribuição de recursos humanos em saúde. A experiência do Programa Mais Médicos (PMM) no Brasil é um exemplo de proposta voltada para a abordagem dessa agenda incon- clusa de Alma-Ata. Ao modificar aspectos centrais da formação, provimento e alocação de profissio- nais médicos, o PMM mostrou-se uma saída viável para minimizar os desafios de escassez de profis- sionais. As avaliações do PMM, embora incipientes, produziram evidências positivas quanto a ampliação do acesso e melhoria da qualidade da APS no Brasil, um país de médio desenvolvimento econômico. Apesar disso, é premente a geração de evidências mais sólidas a respeito do impacto do PMM sobre indicadores de desempenho da APS. O debate apresentado ao longo deste trabalho dis- cute a necessidade de se viabilizar estudos quase-experimentais capazes de mensurar o impacto do PMM junto à saúde da população. O artigo propõe, então, um conjunto de diretrizes que pode se configurar como um modelo aplicável para abordar desafios associados à escassez de profissionais em países de médio e baixo desenvolvimento econômico.

Palavras-chave Recursos humanos; assistência à saúde; distribuição de médicos; alocação de ­recursos para a atenção à saúde.

Há 40 anos, a Declaração de prioridades a serem abordadas para a questões relacionadas à saúde ­Alma-Ata definiu as bases da atenção superação dos desafios enfrentados (1). ­Embora diversas nações tenham primária, elencando uma série de pelos diferentes países no que tange às envidado esforços para operacionali- zar os princípios da atenção primária à saúde (APS) defendidos em Alma-Ata, 1 Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Correspondência: Thiago Augusto Hernandes não foi possível, até o presente mo- Departamento de Administração, Belo Horizonte Rocha, [email protected] (MG), Brasil. 4 Organización Panamericana de Salud/ mento, superar a agenda definida em 2 Universidade Federal de Minas Gerais, Organización Mundial de Salud (OPS/OMS), San 1978 (2). Departamento de Economia, Belo Horizonte José, Costa Rica. A despeito da impossibilidade de (MG), Brasil. 5 Universidade Federal de Juiz de Fora, 3 Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Departamento de Administração, Juiz de Fora abordar, de modo satisfatório, os desa- Mundial da Saúde (OPAS/OMS), Brasília (DF), (MG), Brasil. fios que se faziam presentes em 1978,

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 67 Artigo especial Barbosa et al. • Programa Mais Médicos e iniquidades em saúde

é importante reconhecer que o cenário efetivamente refletem o impacto do PMM de provisão de médicos para ampliar o atual difere daquele de Alma-Ata. Pas- na saúde da população: para um progra- acesso a serviços de saúde por parte de sados 40 anos, é possível observar inú- ma inovador é necessário identificar for- populações até então desassistidas, mo- meras evidências sobre a efetividade e mas inovadoras de avaliação. dificam, em médio e longo prazo, a es- a eficiência da APS. Países com siste- trutura de formação de médicos no Brasil mas de APS fortes têm melhores indica- INIQUIDADE NA (10). Ao reestruturar a forma como são dores de saúde a um menor custo (2). DISTRIBUIÇÃO DE RECURSOS alocados os profissionais e alterar a lógi- A diminuição de co-pagamentos, a am- HUMANOS E ESTRATÉGIAS ca de formação médica, o PMM coloca a pliação do leque de serviços da APS, o PARA SUPERAÇÃO – O provisão de médicos para a APS no cen- alinhamento entre os serviços oferta- PROGRAMA MAIS MÉDICOS tro da discussão política em saúde do dos e as necessidades das populações país. Além disso, atribui à GRHS um estão associados a melhores desfechos A iniquidade na distribuição de profis- ­papel norteador da política de APS de saúde (3). sionais médicos é um problema de escala brasileira. Esses avanços foram expressivos, mas global desde a década de 1960 (6). Além Quase 5 anos após o início do PMM, ainda há muito que fazer, especialmente da má distribuição, há também o proble- surge agora a necessidade de se de- no contexto dos países de baixo e médio ma da escassez de médicos, especialmen- monstrar a efetividade do programa desenvolvimento econômico (low and te em áreas mais vulneráveis e remotas quanto a questões como ampliação do middle income countries, LMIC). Sem (7). Essas questões têm afetado nações acesso, melhoria da qualidade, mu- ­fortalecimento da APS, não é possível pobres e ricas e, até o presente momento, dança na lógica de formação de profis- assegurar que os entraves atuais, rela- se configuram como um desafio não sionais e impacto sobre indicadores de cionados a desempenho, baixa qualida- ­superado (8). A situação brasileira, até saúde populacional. O PMM é uma es- de, falta de acesso, iniquidades, escassez meados de 2013, não era diferente do tratégia fundamental para a superação de profissionais e desalinhamento entre ­panorama global. das iniquidades sociais e das desigual- o cuidado ofertado e as demandas da Ao longo dos últimos anos, o Sistema dades regionais no Brasil (11). Nesse comunidade possam ser adequadamen- Único de Saúde (SUS) brasileiro vem sen- sentido, a geração de evidências pode te abordados (4). do reestruturado, com ações que priorizam consolidar o PMM como uma via possí- Para muitos LMIC, a temática da am- a atenção básica (9). As iniciativas em- vel para abordar iniquidades com a po- pliação do acesso ainda é um ponto críti- preendidas visam a diminuir as vulnerabi- tencialidade de aplicação em outras co. Esses países não conseguiram lidades a que certos grupos populacionais regiões das América. equacionar um suporte adequado para estão expostos (9). Apesar desses esforços, iniciativas de fortalecimento da APS (4). a questão do acesso ainda persiste como PREMÊNCIA NA GERAÇÃO DE Dentre os fatores que contribuem para um problema crônico em determinadas lo- EVIDÊNCIAS SOBRE OS esse cenário estão a escassez de políticas calidades. Diante disso, o PMM foi dese­ RESULTADOS DO PMM públicas, baixa governança, crescimento nhado como estratégia para repensar a populacional, sistemas de saúde inade- lógica de formação e provimento de profis- A análise realizada, no presente artigo, quados, escassas avaliações de iniciati- sionais médicos, mediante uma parceria quanto aos aspectos vinculados à GRHS vas da APS e ausência de políticas entre a Organização Pan-Americana da no Brasil mostra uma tendência de mu- voltadas à gestão de recursos humanos Saúde (OPAS), Ministério da Saúde do dança nos indicadores de recursos hu- em saúde (GRHS). A escassez de fundos Brasil e governo de Cuba. manos em saúde. Por exemplo, para este de pesquisa contribui para agravar essa O PMM foi instituído em 2013 com o trabalho, utilizou-se uma metodologia situação (4). Um trabalho de revisão objetivo de aumentar a disponibilidade de clusters espaciais para analisar as apontou a falta de evidências rigorosas de profissionais médicos para o SUS, taxas de rotatividade de profissionais para apoiar a implantação de políticas de principalmente em áreas que apresenta- médicos, a partir de dados do Cadastro APS e o desenvolvimento de práticas de vam baixo número de médicos por habi- Nacional de Estabelecimentos de saúde GRHS, especialmente em LMIC (5). tante (6). Foram contemplados três eixos: (CNES). Esse exercício evidenciou uma O presente trabalho pautou-se na agen- mudança na matriz curricular dos cursos drástica redução na rotatividade médica da inconclusa de Alma-Ata e na premên- de medicina e ampliação de vagas; rea- em regiões que, antes da implantação do cia de gerar evidências que abordem parelhamento das unidades básicas de PMM, apresentavam valores elevados de esses desafios. O trabalho enfoca uma ini- saúde (UBS); e provimento emergencial rotatividade. Soma-se a isso a manu- ciativa implementada com base na reali- de médicos através da contratação de tenção dos valores baixos de rotativida- dade brasileira, destinada à resolução de médicos brasileiros, brasileiros formados de para os anos seguintes (figura 1). iniquidades na alocação e provimento de no exterior e estrangeiros por um perío- Embora não tenham sido focados exclu- profissionais médicos: O Programa Mais do de 3 anos (prorrogáveis por mais 3) sivamente os municípios com PMM, a Médicos (PMM). A estruturação do PMM para atuarem em localidades com escas- análise demonstra uma modificação no tem-se mostrado uma alternativa viável à sez de profissionais (6). Até meados de panorama do país após o início do resolução de problemas que ainda se fa- 2015, havia 18 240 profissionais atuando programa. zem presentes nas Américas e que re- em 81% dos municípios brasileiros e a Outro exemplo se debruçou sobre o montam às discussões de Alma-Ata. previsão de criação de 11,5 mil novas va- tempo de permanência médio, em anos, Entretanto, a avaliação desse Programa gas de graduação em medicina (9). dos profissionais médicos nas equipes de tem-se mostrado um desafio no sentido Os três eixos que constituem o PMM, atenção básica. Nos anos que seguem a da compreensão de quais indicadores além de agregar medidas emergenciais implantação do programa, houve uma

68 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Barbosa et al. • Programa Mais Médicos e iniquidades em saúde Artigo especial

FIGURA 1. Clusters espaciais de valores associados à rotatividade de profissionais médicos da atenção básica, Brasila

2008 2009 2010 2011

0 170340 680 1,020 1,360 Quilometros

2012 2013 2014 2015

Fonte: elaborado pelos autores a partir de dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). a Vermelho: clusters espaciais com alta rotatividade médica; azul: clusters com baixa rotatividade de médicos; amarelo: regiões que não foram categorizadas como pertencentes a clusters estatisticamente significativos.

inversão de tendência nos dados da sé- de trabalhos mais amplos de mapeamen- de estudos dessa natureza pode ser ex- rie. Mesmo tomando as necessárias pre- to de evidências. Um trabalho sobre pa- plicada em função do pequeno lapso cauções para evitar uma associação norama da produção científica associada temporal entre a implantação do progra- espúria, é possível observar que o tempo ao PMM consolidou um levantamento ma e o tempo necessário para que seja de permanência médio dos médicos nas sistematizado acerca dos resultados obti- possível observar efeitos sobre indicado- equipes da APS, que vinha em tendência dos pelo PMM (17). Nessa publicação, res de saúde populacional. Assim, é váli- de queda, a partir de 2014 se inverteu na foram identificados 82 trabalhos sobre o da a hipótese de que muitas pesquisas maior parte das regiões brasileiras PMM. Desses, 54 trabalhos foram anali- estejam em desenvolvimento ou que te­ (­figura 2). sados quanto às categorias de análise de nham sido concluídas recentemente e seus A despeito dessas evidências mais implantação, efetividade, mídia, limi- resultados não tenham sido publicados. ­gerais sobre o panorama de recursos tações e críticas, formação e análise cons- A complexidade do PMM e suas múlti- ­humanos no Brasil, outros estudos se titucional e jurídica (17). O panorama plas nuances e facetas acabam por se re- ­debruçaram sobre evidências associadas geral evidenciou que as avaliações do fletir no processo de geração de ao PMM. Tais trabalhos abordaram PMM são positivas, apontando resulta- evidências de impacto. Tasca e Pêgo des- ­elementos associados a formação (12), dos satisfatórios em relação a ampliação tacam que, para uma avaliação adequada satisfação do usuário (13), repercussão do acesso, equidade, satisfação dos de iniciativas complexas como o PMM, em relação ao volume de internações usuários, humanização do cuidado, au- não basta medir indicadores tradicionais, por condições sensíveis (ICSAP) (14), mento de cobertura da APS, ampliação como o número de médicos ou a rotativi- distribuição dos médicos (15), redução da rede de assistência e efeito sobre gru- dade. É preciso identificar outros tipos de iniquidades (6) e avaliações de de- pos específicos de ICSAP (17). de resultados e práticas inovadoras que sempenho utilizando abordagem quase-­ Entretanto, o PMM ainda não gerou permitam qualificar a APS, e que tenham experimental (16). um grande volume de artigos publica- sido viabilizadas pelo PMM (18). Apesar Para além dos resultados pontuais dos, especialmente para a avaliação de dos inúmeros avanços pontuais produzi- destacados, é preciso frisar a importância resultados efetivos (17). Parte da carência dos pelos estudos até aqui apresentados,

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 69 Artigo especial Barbosa et al. • Programa Mais Médicos e iniquidades em saúde

FIGURA 2. Tempo médio de permanência, em anos, dos profissionais médicos junto às equipes de atenção primária, Brasil

30 Antes da implantação do PMM Após implantação do PMM

25

20

15

10

5

0 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 Centro-Oeste Nordeste Norte Sudeste Sul

Fonte: elaborado pelos autores a partir de dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). poucas foram as iniciativas com delinea- cadeia causal; 2) compreender o contex- O passo 2 implica a compreensão de mento quase-experimental. Esse tipo de to; 3) antecipar a heterogeneidade; 4) contexto de inserção da política. Nesse desenho metodológico permite avaliar proceder uma avaliação rigorosa de im- passo é preciso detalhar aspectos so- qual parcela de um determinado resulta- pacto fazendo uso de contrafactuais; 5) ciais, políticos e econômicos que pos- do em saúde pode ser atribuída, exclusi- realizar uma análise factual rigorosa; e sam modular os efeitos da política (20). vamente, ao PMM. 6) utilizar métodos e abordagens mistas. No contexto específico do PMM, é pre- O desafio de avaliar políticas em saúde ciso levar em conta aspectos sociode- Uma proposta para avaliar o segundo esses princípios repousa na di- mográficos relacionados às regiões de impacto do PMM e outras políticas ficuldade de conseguir agregar evidên- inserção das equipes, perfil da popu- públicas cias que permitam cumprir cada uma lação beneficiada e ajustar eventuais dessas etapas (20). desfechos ao momento político de crise Os delineamentos quase-experimen- Considerando essa lacuna, pode-se vivenciado pelo Brasil. Nesse ponto re- tais representam o melhor desenho me- procurar um parâmetro que permita pousa um primeiro desafio operacional. todológico disponível para avaliar aplicar o modelo de Howard White As estatísticas vitais, os dados sociode- políticas públicas, que raramente envol- junto ao contexto do PMM. Mensurar o mográficos e de nível de renda, por vem algum tipo de aleatorização no mo- impacto de políticas implica comparar exemplo, somente são divulgados, mento da implantação. Somente com métricas de sujeitos que tenham sido anualmente, por município. Entretanto, esse tipo de abordagem é possível ava- expostos à intervenção com métricas em diferentes localidades de um mes- liar, satisfatoriamente, o impacto de polí- de sujeitos que não tenham sido expos- mo município, por exemplo, Belo Hori- ticas públicas – entendendo-se impacto tos à mesma intervenção. A complexi- zonte, há bairros com índice de como o efeito sobre uma variável de des- dade do meio social atribui a essa desenvolvimento humano (IDH) cor­ fecho que pode ser atribuído a uma inter- tarefa nuances de inviabilidade. Assim respondentes à Suíça e à África do Sul, venção pregressa e cuja magnitude foi ­sendo, é preciso mimetizar a situação, separados apenas por uma avenida controlada pelo efeito de confundidores. para ser possível identificar o impacto (21). Assim, uma abordagem, para dar A presente discussão oferece uma alter- de políticas (20). conta de contextualizar, adequadamen- nativa que permite abordar essa lacuna, O mapeamento da cadeia causal de te, os diferentes cenários necessários apresentando uma abordagem sólida um programa (passo 1) pode ser feito para permitir uma avaliação de impac- para a geração de evidências sobre o im- pela análise detalhada de como a inter- to, precisa ser feita com a maior granu- pacto de ações de recursos humanos em venção deve alcançar o impacto preten- laridade possível. saúde. dido. No caso de políticas públicas como Outro desafio operacional está relacio- Howard White (19) aborda os princí- o PMM, isso pode ser feito através da nado ao passo 3. A antecipação de pios básicos que permitem evidenciar o análise de portarias, regulamentações e ­heterogeneidade permite dimensionar impacto de políticas públicas. Ele define diretrizes gerais, que definem como seria variações no impacto de acordo com o de- os passos essenciais como: 1) mapear a esperado que a política funcionasse. senho da intervenção, as características

70 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Barbosa et al. • Programa Mais Médicos e iniquidades em saúde Artigo especial dos beneficiários ou o contexto socioe- Saúde (CNES), foi possível geolocalizar geolocalização de ICSAP. A aplicação conômico e temporal (20). É preciso, en- todas as equipes do país que receberam dessa abordagem conjuntamente com a tão, desenvolver abordagens que deem profissionais do PMM (figura 3). definição de uma área de abrangência conta de tratar com a maior granularida- A partir do mapeamento das unidades potencial das equipes torna possível atri- de possível as informações contextuais básicas de saúde (UBS), foram criadas buir a uma UBS uma carga de ICSAP. disponíveis para antecipar os efeitos de áreas de abrangência potencial, refletindo Um piloto dessa metodologia foi aplica- eventuais agentes confundidores que pos- uma porção de território de responsabili- do por Rocha et al. (24) junto às ICSAP sam modular os resultados obtidos. dade de cada UBS do país. Essa metodo- processadas por hospitais brasileiros do O segundo e terceiro passos são a base logia já foi utilizada no passado com estado de Goiás (figura 4). para definir o que está estipulado no pas- relativo sucesso em um estudo destinado O resultado da espacialização de ICSAP so 4, ou seja, a avaliação satisfatória do a avaliar a equidade no acesso a serviços evidenciou diferentes padrões de agrupa- impacto das políticas. A definição de con- de atenção básica (22). Uma vez definida mento, o que destaca a importância da trafactuais é o que permite mimetizar a essa área, é possível obter dados dos seto- nova abordagem para atender os pressu- situação hipotética de comparação entre res censitários incluídos em cada área po- postos estabelecidos por Howard White. aqueles não expostos à intervenção frente tencial. A partir disso, é possível obter Ao agregar informações dos setores censi- àqueles expostos. Quanto melhor for a dados sobre saneamento básico, razão de tários, das áreas de abrangência potencial, capacidade de definir contrafactuais ri- sexos, nível de escolaridade, renda e com- das equipes de atenção básica e das ICSAP gorosos, melhores serão as chances de posição familiar. Esse conjunto de dados geolocalizadas, torna-se possível separar identificar diferenças pré e pós-exposição é uma medida valiosa para cumprir o que equipes PMM das equipes não PMM para que sejam atribuíveis à política que se está estipulado nos passos 2 e 3 do mode- fins de comparação. Essa comparação está avaliando (20). Para manejar os desa- lo de Howard White. pode ser feita de forma controlada pelos fios entre os passos 2 e 4, foi desenvolvi- A medida de desfecho selecionada confundidores sociodemográficos, de ren- da uma metodologia mista para o para se avaliar o impacto do PMM foram da e saneamento básico, de forma a mime- estabelecimento de relações entre o PMM as ICSAP, uma vez que as mesmas se tizar a situação de exposição ou não à e desfechos em saúde, da forma mais gra- configuram como uma medida sintética intervenção. Como a série histórica das nular possível para o contexto brasileiro. e expressiva da qualidade dos serviços ICSAP cobre um período entre 2008 até Graças à disponibilidade de infor- de atenção primária prestados à popu- 2018, é possível traçar uma linha de base mações estruturadas, mesmo que com lação (23). Apesar dessa vantagem, as pregressa ao PMM e acompanhar a sua algumas fragilidades, em sistemas de in- ICSAP são divulgadas apenas de forma evolução após a implantação do PMM. formação em saúde, foi possível desen- agregada pelo DATASUS, não permitin- Os passos 5 e 6 definidos pelo modelo volver uma abordagem inovadora para a do, até recentemente, sua vinculação a de Howard White podem ser então im- definição de contrafactuais rigorosos equipes ou unidades de saúde. Para con- plementados. Isso significaria uma sobre- para o PMM. A partir dos dados do Ca- tornar essa dificuldade, Rocha et al. (24) posição geográfica das informações sobre dastro Nacional de Estabelecimentos de desenvolveram uma abordagem de mapeamento das áreas de cobertura ­potenciais das UBS e geolocalização de ­ICSAPs. A análise factual rigorosa pode FIGURA 3. Geolocalização das unidades básicas de saúde (UBS) que receberam pro- ser feita pela comparação de desfechos de fissionais do Programa Mais Médicos, Brasil, dezembro de 2015 equipes de atenção básica do PMM com equipes não PMM. O arcabouço de passos Todas UBS com PMM exemplificado à luz do PMM pode ser re- plicado para outras iniciativas voltadas para a atenção primária. A tradução do arcabouço aqui descrito para outros con- textos nas Américas será balizada por es- pecificidades locais, mas, uma vez respeitada a sequência de passos aqui de- talhada, é possível delinear abordagens sólidas para a avaliação de impacto de políticas de GRHS.

PERSPECTIVAS PARA AS AMÉRICAS

O uso de metodologias quase-experi- mentais para a avaliação de políticas públi- cas é algo desejável, pois, em diversas circunstâncias, não é possível adotar ­delineamentos baseados em ensaios ran- domizados. Assim, as abordagens qua- se-experimentais se configuram como o Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). melhor padrão possível para a avaliação

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 71 Artigo especial Barbosa et al. • Programa Mais Médicos e iniquidades em saúde

FIGURA 4. Geolocalização de internações por condições sensíveis à atenção primária em hospitais de Goiás, Brasil, 2015 Infecções de Doenças Doenças de imunização Gastroenterite infecciosa Anemia Deficiência nutricional nariz, garganta e ouvido cerebrovasculares

Doenças Insuficiência Pneumonias Asma Hipertensão Angina Pectoris pulmonares cardíaca

Doenças Infecções Infecções de Úlcera Epilepsia inflamatórias dos Diabetes mellitus urinárias e de rim pele e subcutâneas gastroinstestinal órgãos pélvicos

Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH). de impacto de políticas públicas. Já exis- enfrentam problemas comuns, como a ser adaptados para outras regiões das tem recomendações específicas para a falta de suporte político e financeiro (26). Américas que enfrentam iniquidade na ­implantação de estudos avaliativos orien- A despeito desses desafios, a saída apon- distribuição de profissionais de saúde. O tados segundo esses princípios (25). O uso tada no estudo perpassa o intercâmbio de uso de metodologias mistas tem criado de modelagens baseadas em ensaios com práticas, o planejamento prévio de ações, condições para superar os desafios vin- desenho stepped wedge tem ganhado popu- a avaliação de iniciativas e a dissemi- culados ao delineamento de estudos laridade graças à sua capacidade de abar- nação de programas bem-sucedidos. quase-experimentais para avaliação de car as características das políticas públicas A abordagem destacada ao longo do políticas. Os percalços superados pelo e, ainda assim, permitir delineamentos presente trabalho aponta algumas me- PMM podem servir de lição para o apri- quase-experimentais. didas conceituais e de avaliação de im- moramento de práticas e contribuir para Dal Poz et al. (26) conduziram um inte- pacto para o manejo dos desafios da o arranjo mais eficaz de iniciativas públi- ressante estudo que avaliou os progra- GRHS. Destaca ainda a potencialidade cas dedicadas a abordar a escassez de mas voltados para a GRHS nas Américas. do PMM em abordar desafios que per- profissionais de saúde. Os autores destacam a fragmentação e a sistiam há décadas. Sem prover a ade- segmentação dos sistemas de saúde dos quada distribuição de profissionais, Conflitos de interesse. Nada declarado países latino-americanos e caribenhos. com o perfil de formação correto e com pelos autores. Tais características constituem uma ba- a capacidade de ofertar cuidados de rreira importante para ampliar a cobertu- saúde onde os mesmos são necessários é Declaração. As opiniões expressas no ra, alcançar cuidados de saúde primários impossível assegurar o pleno cumpri- manuscrito são de responsabilidade ex- integrados e reduzir a ineficiência e a des- mento dos parâmetros básicos definidos clusiva dos autores e não refletem neces- continuidade dos cuidados (26). Destaca- em Alma-Ata. sariamente a opinião ou política da ram ainda que os programas orientados A abordagem adotada pelo PMM e o RPSP/PAJPH ou da Organização Pan-­ para a GRHS, em 15 países das Américas, desenho avaliativo aqui ilustrado podem Americana da Saúde (OPAS).

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ABSTRACT Despite the 40 years elapsed since the Alma-Ata principles were first launched, a series of challenges still persists for the consolidation of primary health care (PHC) as More Doctors recruitment the backbone of health care systems around the world. Among these challenges, espe- cially noteworthy are the issues associated with the inequality in the allocation of program: a new approach to human resources. The experience of the More Doctors Program (Programa Mais overcome inequalities in Médicos, PMM) in Brazil is an example of initiatives that tackle this inconclusive Alma- human resources Ata agenda. By changing key aspects of physician training, provision, and allocation, PMM was shown to be a feasible alternative to minimize the challenge of physician shortage. Assessments of PMM, even though preliminary, have produced positive evi- dence showing increase in access and improvement of PHC quality in Brazil, a middle income country. Nevertheless, the generation of more robust evidence regarding the impact of PMM on PHC performance indicators is urgent. The discussion proposed in the present article emphasizes the need to prioritize quasi-experimental studies to measure the impact of PMM on population health. The article thus introduces a set of guidelines that may become a useful model to approach challenges associated with the shortage of health care professionals in low and middle income countries.

Keywords Human Resources; delivery of health care; physicians distribution; health care rationing.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 73 Artigo especial Barbosa et al. • Programa Mais Médicos e iniquidades em saúde

RESUMEN A pesar de que han transcurrido 40 años desde la proclamación de los principios de Alma-Ata, aún persisten desafíos para la consolidación de la atención primaria de Programa Más Médicos: salud (APS) como columna vertebral de los sistemas de atención de salud en todo el mundo. Entre estos desafíos, se destacan los problemas asociados con la desigualdad cómo evaluar el impacto de en la distribución de recursos humanos. La experiencia del Programa Más Médicos un enfoque innovador para (PMM) en Brasil es un ejemplo de las iniciativas que abordan esta agenda inconclusa superar las inequidades en de Alma-Ata. Al cambiar aspectos clave de la capacitación, la provisión y la asignación de médicos, el PMM demostró ser una alternativa viable para minimizar el desafío de recursos humanos la escasez de profesionales. Las evaluaciones del PMM, aunque preliminares, han pro- ducido evidencias positivas que muestran un aumento en el acceso y mejora de la calidad de la APS en Brasil, un país de ingresos medios. Sin embargo, urge generar evidencia más sólida sobre el impacto del PMM en los indicadores de desempeño de la APS. La discusión propuesta en este trabajo enfatiza la necesidad de priorizar estu- dios cuasiexperimentales para medir el impacto del PMM en la salud de la población. El artículo propone un conjunto de directrices que pueden convertirse en un modelo útil para abordar los desafíos asociados con la escasez de profesionales de la salud en países de ingresos bajos y medios.

Palabras clave Recursos humanos; prestación de atención de salud; distribución de médicos; asigna- ción de recursos para la atención de salud.

74 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Pan American Journal Artigo especial of Public Health

Contribuições das equipes de Consultório na Rua para o cuidado e a gestão da atenção básica

Everson Rach Vargas1 e Iacã Macerata1

Como citar Vargas ER, Macerata I. Contribuições das equipes de Consultório na Rua para o cuidado e a gestão da atenção básica. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e170. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.170

RESUMO Como parte do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, os Consultórios na Rua e suas equipes foram criados tendo como função prioritária o desenvolvimento de cuidados pri- mários e a garantia de acesso às ações e serviços de saúde para populações em situação de rua no próprio ambiente da rua, criando vínculos dessa população com outros serviços que não sejam somente de urgência e emergência. Seu escopo de atividades envolve, além da atenção, a proteção contra os riscos a que essa população está exposta, combinada com a busca da garantia de seus direitos. Nesse sentido, os Consultórios na Rua buscam efetivar a equidade e o acesso a ações e serviços de saúde para uma população sem domicílio fixo dentro de um sistema baseado essencialmente na adscrição territorial da população. Assim, a criação do Consultório na Rua inaugura novos modos de cuidar em saúde e, consequentemente, novos modos de fazer a gestão do processo de trabalho. A partir dessa articulação entre cuidado e gestão, o presente artigo discute três planos de intervenção onde se dá a prática das equipes de Consultório na Rua – a própria rua, a sede/unidade de referência e as redes institucionais­ –, sua relação com os demais serviços de atenção primária à saúde (APS) e a sua contribuição para reconciliar a APS com os seus atributos fundamentais, para além da adscrição do ­território geográfico.

Palavras-chave Gestão em saúde; acesso universal aos serviços de saúde; atenção primária à saúde; pessoas em situação de rua; Brasil.

Desde a Declaração de Alma-Ata, em cuidados de alta densidade ­tecnológica e pontuais às crônicas, situações essas que 1978 (1), a atenção primária à saúde no tratamento de agravos previamente acabam por demandar um acompanha- (APS) se consolidou como serviço prefe- instalados. mento longitudinal. rencial e porta de entrada dos sistemas No Brasil, as equipes de Consultório As eCR têm como função prioritária o de saúde. A estruturação desse nível de na Rua (eCR) foram instituídas a partir desenvolvimento de cuidados primá- atenção reforça a importância da atenção da segunda edição da Política Nacional rios, prestando assistência voltada aos primária em um contexto de saúde his- de Atenção Básica (PNAB), de 2011. agravos mais prevalentes das pessoas toricamente constituído pela atuação em ­Tratam-se de equipes itinerantes que em situação de rua, com distribuição de atuam, privilegiadamente, em pontos de insumos e orientações em saúde, e ga- maior concentração de pessoas em situa- rantindo o acesso às ações e serviços a 1 Universidade Federal Fluminense (UFF), ção de rua. As ações dessas equipes se partir da própria rua, criando vínculos Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Correspondência: Everson diversificam de acordo com as necessi- dessa população com outros serviços Rach Vargas, [email protected] dades de saúde identificadas, das mais que não sejam somente de urgência e

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 75 Artigo especial Vargas e Macerata • Consultórios na Rua e atenção básica emergência (2). Além disso, seu escopo que organizam a APS são colocados divisão e mecanização dos processos de de atividades envolve a proteção contra em xeque: nem todos os habitantes de trabalho, que deveriam ser centralmente os risco a que essa população está expos- um território são domiciliados; e os controlados em seus mínimos gestos. ta, combinada com a busca da garantia ­processos de saúde-doença biológicos, O campo da saúde coletiva tomou como de seus direitos. subjetivos e sociais estão articulados e problema a gestão taylorista (6), apos- Os Consultórios na Rua surgiram em mutuamente apoiados. tando que a alteração dos modelos de um contexto de ampliação dos direitos Foi para aumentar o grau de equida- atenção passava pela alteração dos mo- sociais no Brasil pela extensão de políti- de do Sistema que o Consultório na Rua delos de gestão: desenvolver outra ra- cas públicas a populações que antes não se institucionalizou. A vulnerabilidade cionalidade para os processos de gestão, tinham acesso a direitos básicos garanti- dessa população evidencia as vulnera- diferente da administrativa ou privada. dos pela Constituição brasileira, de bilidades das práticas de cuidado do Assim, há uma especificidade da ges- ­forma a intervir nos coeficientes de desi- SUS, mas também mostra que o traba- tão no campo da saúde: a gestão do pro- gualdade social. Também contribuíram lho das eCR traz uma série de inova- cesso de trabalho e as práticas de para o seu surgimento a aposta, por par- ções para a prática de cuidado na APS, cuidado, embora sejam dimensões dis- te do Ministério da Saúde, na APS como bem como para a gestão do processo de tintas, são inseparáveis (7). As práticas ordenadora do sistema e a priorização trabalho. de cuidado são coproduzidas com as das redes de atenção à saúde (RAS); o A partir disso, o presente texto é uma práticas de gestão. Em toda prática de controverso e questionável plano de en- reflexão construída com base em uma gestão, há uma dimensão de cuidado, e frentamento ao crack, surgido no bojo série de experiências, em diferentes em toda prática de cuidado, há uma di- dos megaeventos realizados nos anos campos, com o Consultório na Rua: mensão de gestão. A especificidade dos 2010 no Rio de Janeiro (Copa do Mundo ­experiência de trabalho vivida na processos de gestão na área da saúde é da FIFA e Olimpíadas) (3); e a crescente ­construção inicial de um desses dispo- que eles devem estar integrados com a organização e participação do Movimen- sitivos, na cidade do Rio de Janeiro; produção do cuidado. Produzir cuidado to Nacional da População em Situação de ­experiência de pesquisa de doutorado é construir uma prática a partir das espe- Rua na arena política das grandes cida- acerca da prática de cuidado realizada cificidades do objeto de cuidado: pessoas des brasileiras. por essa mesma equipe, a qual gerou e territórios singulares. Contudo, a pro- A criação das eCR se justifica pela um documento técnico sobre a prática; dução do cuidado envolve um certo grande vulnerabilidade das populações e experiência de construção de material modo de produzir gestão, ou seja, o gerir em situação de rua, juntamente com a didático para um curso de formação o processo de trabalho em saúde é fazer a baixa capacidade da rede de atenção bá- de profissionais para o Consultório na gestão do cuidado. sica (como se denomina a APS no Brasil) Rua (5). Essa gestão do trabalho em saúde irá se existente de acolhê-las. Esse fato reflete A partir de questões suscitadas pela ocupar com a coordenação do trabalho, uma infinidade de dificuldades relacio- implementação dessas equipes na APS envolvendo os diversos atores ­implicados nadas ao modelo de APS adotado no brasileira, pretende-se traçar um panora- em seu território de práticas­ – trabalha- ­Brasil, que, em linhas gerais, inclui a or- ma de como as eCR contribuem para re- dores, usuários, ­comunidade. Daí o senti- ganização a partir de domicílio fixo para conciliar os demais serviços de APS com do reafirmado da cogestão (7). Assim, na a definição de um território adscrito. suas diretrizes e sua missão. Esta análise diretriz de uma cogestão, gerir não signi- Esse modelo impede o acompanhamento foca, especificamente, em como o modo fica ­colocar-se sobre o trabalho e o territó- da dinâmica da rua e impõe uma barreira de realizar a gestão do processo de traba- rio onde ele se desenvolve­ – perspectiva histórica no acesso dessas pessoas aos lho da eCR está extremamente articulado clássica – a fim de regulamentá-​los. Signi- serviços de saúde. com as práticas de cuidado, não haven- fica, isso sim, posicionar-se com o traba- O território de vida da população em do, portanto, separação entre gestão e lho e o território, fazendo composição situação de rua coloca uma série de de- atenção em saúde. Essa articulação pro- com e a partir deles. Nesse sentido de safios ao SUS no que diz respeito à con- movida pelas eCR pode, enfim, apontar gestão, o cuidado não é pensado como cretização de seus princípios, entre os alguns problemas que são re-apresenta- uma ação sobre o outro – concepção hie- quais a construção da integralidade do dos para os demais serviços de APS, rarquizada, ­verticalizada e centralizada, cuidado, ou seja, o desenvolvimento de como, por exemplo, as equipes de Saúde taylorista. Escapando da função tutelar, um olhar mais integral e menos “espe- da Família. classicamente atribuída ao cuidar, a efeti- cialista” nas práticas de cuidado. Isso se vação do cuidado não depende somente desdobra em duas questões: na maneira GESTÃO E CUIDADO EM da técnica ou da ação central do trabalha- como geralmente se considera o territó- SAÚDE: O PROCESSO DE dor, mas envolve os vários ­atores, rio – apenas como demarcação geográfi- TRABALHO ­recursos e dinâmicas do território de ca ou matriz do domicílio – de forma ação. Território, aqui, tem o sentido de ca- que só fariam parte desse território A gestão, originada no campo da ad- tegoria que define relações complexas e aqueles oficialmente domiciliados nele; ministração, é pensada como atividade situadas entre diversos vetores, e que en- e na maneira como os diferentes saberes que tem a função de exercer um manda- volve dimensões objetivas e subjetivas de uma equipe multiprofissional com- to sobre o trabalho e qualificar seus (4). E é nessa relação com, no e a partir­ do põem uma prática de atenção, de modo ­processos. Na modernidade, a gestão território, e não sobre ou contra ele, que o que as dimensões biopsicossocias não ganhou centralidade na produção in- cuidado se faz como prática coletiva, de- sejam desmembradas (4). Junto à popu- dustrial, sendo caracterizada, nos exem- mocrática e inclusiva, seguindo­ a diretriz lação em situação de rua, os conceitos plos de Taylor e Ford, por racionalização, de uma clínica ­ampliada (4, 6, 7).

76 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Vargas e Macerata • Consultórios na Rua e atenção básica Artigo especial

Em um cuidado verticalizado e centra- unidade de referência; e as redes institu- Os aspectos invisíveis da rua apre- lizado em procedimentos, saúde e usuá- cionais (saúde e intersetoriais). Por esses sentam-se como dinâmicas relacionais rio se tornam categorias universais e não planos perpassam toda a gestão e a pro- que usuários ou grupos estabelecem situadas, e o cuidado assume uma peri- dução do cuidado. A noção de planos ul- num determinado território. Essa di- gosa função de gestão calculada da vida trapassa a ideia de espaço como espaço mensão subjetiva da rua fala das rela- (8). Cuidado e gestão do processo de cui- físico euclidiano, fixo, imutável, com cla- ções que se estabelecem nela, do lugar dado se fazem no encontro com sujeitos e ra demarcação, visível, com fronteiras que ela ocupa na vida dos sujeitos (lu- territórios, sendo esse encontro um dos bem definidas. Compreendemos que tais gares afetivos e simbólicos). Apesar de momentos mais singulares do processo planos estão presentes uns nos outros, esses aspectos não serem palpáveis, de trabalho em saúde (9). O modo de tornando possível identificar influências eles existem, e na hora de organizar o gestão desse trabalho deve se apropriar e modos de atuar que um plano exerce processo de trabalho é preciso conside- dessa mesma perspectiva: uma gestão sobre os outros. Assim, o plano afirma a rá-los. Isso cria a necessidade de repen- com; uma cogestão. Cogestão é uma di- dependência entre os diferentes espaços sar e reconsiderar as estratégias e os retriz. Perpassa os processos no campo do trabalho, já que eles não se estabele- conceitos de saúde e, ainda, o engaja- da saúde em maior ou menor grau, mas çam como unidades estáveis. mento no território. Deve-se entender o sempre está, em alguma medida, presen- Na perspectiva transdisciplinar (11), território, senti-lo; enxergá-lo e respirar te. A gestão não se limita ao ato do gestor, compreendem-se os espaços de trabalho seus ares. mas está nos atos clínicos e em todos os como porosos à multiplicidade de fluxos A “sede/unidade de referência” é tra- âmbitos dos serviços e do processo de que os atravessam. Por constituírem-se dicionalmente compreendida como local trabalho. de aspectos objetivos e subjetivos, esses onde se organizam e se dão as práticas de Na perspectiva da cogestão, o cuidado planos se interpenetram, se misturam. cuidado. Como plano de intervenção do e a política também são inseparáveis Há um pouco da rua na sede/unidade Consultório na Rua, a sede se faz presen- (4, 10): a gestão assume e cria condições de referência e há um pouco da sede/ te também na rua e na rede, indo além para o cuidado. Ele é necessariamente unidade de referência na rua, por exem- das práticas propriamente realizadas e político, na medida em que está sempre plo. A rua como plano denota não só o previstas na unidade de saúde. O princi- inserido em um campo de disputas, de seu sentido objetivo, como demarcação pal fator que define um espaço de cuida- relações de poder, podendo produzir física, mas também subjetivo - certas do é o aspecto relacional (12): a maneira práticas tanto de dominação quanto de qualidades da rua em meio à sede/uni- de organizar e operar os processos e os liberação e produção de autonomia. Há dade de referência. fluxos de trabalho na sua relação com a sempre o risco de se produzir, como efei- O plano de intervenção “rua” é o terri- realidade do território e do sujeito, com tos subjetivos, o constrangimento e a pa- tório de vida das pessoas que são cuida- seus modos de viver. Dessa forma, um dronização dos modos de viver. Essa é das. Esse território é muito diferente dos espaço de cuidado é realizado através de uma problemática que se coloca especial- territórios de vida mais comuns em uma um modo de entrar em relação, para mente na APS, cujos serviços atuam de cidade. É território de moradia e de vida além da estrutura e limites do serviço no maneira muito próxima ao cotidiano da sem ser domiciliar. Entendido não so- qual estão lotados os trabalhadores, ou vida dos usuários. mente por sua organização física e geo- até mesmo para além dos procedimentos Assim, a gestão do cuidado na APS gráfica, mas também por sua organização tradicionais, rapidamente classificados tem especificidades que trazem a neces- combinada a um funcionamento subjeti- como cuidado. Podem ser constituídos sidade de deslocamentos da gestão vo, caracterizando-se tanto por aspectos espaços de cuidado na rua da mesma for- ­advinda da administração privada. visíveis quanto por aspectos invisíveis. ma que podemos ter uma sede ou um ­Especialmente na prática das eCR, tanto Os aspectos visíveis da rua são os que equipamento da rede que, embora tenha o cuidado como a gestão devem cons- podem ser mapeados e sistematizados: o o mandato do cuidado, efetivamente não truir e gerir o processo de trabalho tendo número de pessoas, a delimitação territo- cuida. como principal ponto de apoio a relação rial, os dados epidemiológicos que subsi- O aspecto relacional do espaço de cui- do serviço/equipe com o território. diam a avaliação e o monitoramento das dado é percebido quando o Consultório práticas, as situações concretas de violên- na Rua torna-se referência no território, PLANOS DE INTERVENÇÃO DAS cia, os recursos, o tamanho, a movimen- seja na sua presença na rua, seja na sede EQUIPES DE CONSULTÓRIO tação, entre muitos outros. O território ou na rede. De uma maneira ou de outra, NA RUA adscrito de uma equipe é composto, en- a sede se faz presente na rua e a rua se faz tão, por tipos de população em situação presente na sede. É preciso organizar o A prática do Consultório na Rua, com de rua (mais fixas, mais itinerantes), ato- espaço da sede como uma espaço de aco- sua aposta em uma proximidade e atua- res variados que se fazem presentes lhimento para os usuários, onde os flu- ção no território e a partir de suas singu- ( ­moradores de rua, comerciantes, polícia, xos do espaço se adequem à rua: laridades, mostra que o processo de agentes de outras políticas públicas, flexibilização e alteração dos horários de trabalho se dá através de subdivisões, a transeuntes, traficantes, grupos de exter- funcionamento, dos documentos exigi- partir de planos de intervenção das mínio, instituições religiosas, etc.), recur- dos para atendimento, dos modos de ou- eCR. Por sua vez, esses planos exigem sos que o território oferece à população vir, falar e orientar, enfim, acolher. Em gestão dos processos de trabalho mais em situação de rua (comida, dinheiro, nossa experiência isso exigiu, por exem- específicos. local para dormir, outros serviços assis- plo, ter sempre um trabalhador do Con- O Consultório na Rua tem três planos tenciais) e tipos de agravos em saúde sultório na Rua na sede, para facilitar as fundamentais de atuação: a rua; a sede/ mais prevalentes, entre outros. relações entre os usuários do Consultório

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 77 Artigo especial Vargas e Macerata • Consultórios na Rua e atenção básica na Rua e os profissionais e usuários de à saúde são igualmente importantes e responde de maneira mais eficaz tanto à outros programas; exigiu manter uma se relacionam horizontalmente. Devem organização interna do sistema de ­saúde sala de espera que considerasse as urgên- focar-se no ciclo completo de atenção a quanto aos desafios do cenário socioe- cias não só do corpo biológico, mas uma condição de saúde e têm responsa- conômico, ­demográfico, epidemiológico ­também subjetivas e sociais – como por bilidades sanitárias e econômicas inequí- e sanitário dos territórios. A constitui- exemplo alguém que precisaria ir a uma vocas por sua população (14). Em que ção da rede fundamenta-se na concep- entrevista de emprego, ou alguém que pese a relevância de organização interna ção de que a APS deve resolver os estava desaparecido há muito tempo, do seu funcionamento, o Sistema Único problemas mais comuns de saúde, coor- ou que estava em crise de abstinência de de Saúde (SUS) no Brasil não pode se denando o cuidado dos usuários que drogas. apresentar como alternativa absoluta estejam em todos os outros pontos de No contexto de uma política de saúde para atender a complexidade das de- atenção (13). Sendo assim, a construção voltada para uma população historica- mandas apresentadas pelas populações da rede é uma tarefa inseparável do cui- mente à margem dos serviços de saúde, em situação de rua. Assim, a rede inter- dado e exige tempo na agenda dos tra- é importante considerar que as inúmeras setorial também compõe esse plano de balhadores das eCR para construí-la e situações graves apresentadas por essa intervenção do Consultório na Rua. para mantê-la aquecida. população, associadas à atual fragmen- A rede se faz presente na dimensão tação do trabalho em rede e à insuficiên- rua, por exemplo, quando algum comer- CONSIDERAÇÕES FINAIS cia de retaguarda clínica na atenção ciante ajuda no tratamento de um pa- secundária e terciária, produzem a ne- ciente, quando o Serviço de Atendimento As problemáticas e aspectos aqui bre- cessidade de o Consultório na Rua dis- Móvel de Urgência (SAMU) entra em vemente levantados ganham relevo a por de um espaço para resolutividade de ação, ou quando é necessário dialogar partir de experiências concretas com o questões específicas: curativos, exame com a polícia, os traficantes ou os mora- Consultório na Rua, e não dizem respeito citopatológico. Mesmo sendo itinerante, dores da área. No plano sede, um exem- apenas ao trabalho dessas equipes. a equipe precisa ter uma sede de referên- plo da presença da rede seria a construção Quando confrontamos a realidade mais cia, que tenha porta aberta à população de um projeto terapêutico integrado com ampla dos serviços de APS, vemos mui- em situação de rua, que possa ser utiliza- outro serviço. O Consultório na Rua tem tos pontos de comunicação, principal- da sem restrições, sem necessidade de a função de tecer e aquecer a rede, crian- mente no que diz respeito à relação entre nenhum tipo de autorização, um espaço do relações, negociando, entendendo a prática de cuidado, gestão do processo onde a pessoa em situação de rua tenha lógica e a função de cada serviço, aco- de trabalho e território. Cada vez menos seu direito de acesso garantido. É preci- lhendo suas dificuldades, mas também o Consultório na Rua aparece como um so que se crie, no plano da rua, o plano tensionando a acolhida da rua e suas es- serviço especializado. Ele figura também da sede: espaço de encontro e acolhi- pecificidades. Na construção desse pla- como um serviço analisador, ou seja, que mento itinerante, junto ao local onde no, está intrínseca toda a perspectiva do coloca em análise as práticas em saúde. pessoa habita. A existência da sede, cuidado e de organização do processo de Para além de se constituir como uma com seus recursos e fluxos, não ficará trabalho das eCR, que aponta para a ur- estrutura voltada para os cuidados pri- restrita às paredes do serviço, mas acon- gência em se pensar práticas e políticas mários, para a prevenção e a promoção, tece e atravessa o plano da rua e da rede que atendam à necessidade da rua. com alta capacidade de capilarizar as e, consequentemente, o seu modo de ­Sobretudo, pensar sobre como construir ações de saúde, a APS se caracteriza por funcionamento. uma rede intersetorial. ser um serviço de base territorial. Isso O plano de intervenção “rede” se refe- Articular uma rede é fazer fluir o servi- não significa apenas “adscrição de terri- re aos espaços físicos (serviços) e às lógi- ço em suas dinâmicas interna e externa. tório”, o que, em última análise, restrin- cas organizacionais dos equipamentos A articulação não é responsabilidade ge toda a potencialidade desse nível de da saúde, de outras políticas públicas e apenas dos gestores, mas se caracteriza atenção. No Brasil, não é raro serviços de da sociedade civil, na relação com o tra- na função-gestor, ou seja, de todos os tra- APS se tornarem limitados ao espaço de- balho do Consultório na Rua. O plano balhadores e, inclusive, do usuário. Fazer­ limitado da sede/unidade de referência, rede é composto pelos seus pontos fluir é estabelecer fluxos que ajudem o ficando alheios à dinâmica territorial. (­serviços e ações específicas de saúde e trabalho a se consolidar, que permitam O que, por sua vez, impele sua práti- de outros setores) e também pelos modos que o acompanhamento se efetive e que ca a centrar-se no procedimento como esses serviços, trabalhadores e usu- desfaçam “nós” de comunicação e bar- “­queixa-conduta”, descaracterizando o ários entram em relação. reiras com o intuito de tornar o trabalho que queremos afirmar como cuidado. O A recente construção das redes de tanto mais resolutivo quanto mais for modo de relação entre equipe e território atenção à saúde (RAS) (13) realça o pecu- compartilhado. aqui exposto pode fornecer elementos liar trabalho realizado pela APS, que tem As redes se constituem em arranjos primordiais para as práticas de cuidado como prerrogativa a coordenação do cui- entre os diferentes serviços de saúde e também para as práticas de gestão do dado e a ordenação das diferentes redes nos territórios para desconstruir a frag- cuidado. em seu território. As RAS devem ter mentação das práticas de saúde susten- A gestão do processo de trabalho ­missão e objetivos comuns, operando de tadas apenas pela lógica de atendimentos aqui proposta é realizada, radicalmente, ­forma cooperativa e interdependente, pontuais aos agravos, geralmente cen- a partir das demandas construídas na trocando recursos. Não devem ser esta- trada na lógica orgânica-biológica. ­relação entre dinâmicas da equipe e di- belecidas hierarquias entre os diferentes ­Experiências demonstram que a inte- nâmicas do território. Construir a gestão componentes. Todos os pontos de atenção gração sistêmica prevista pelas RAS do trabalho nessas bases – a base da

78 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Vargas e Macerata • Consultórios na Rua e atenção básica Artigo especial relação –, pode permitir reconciliar o e atenção; ampliar a capacidade de con- de bolsa de doutorado (2011-2015) e à modelo de APS com a sua missão: cuida- siderar e intervir junto aos vários vetores Equipe POP RUA (Consultório na Rua do de 80% dos agravos em saúde através que compõem uma situação complexa, Rio de Janeiro, Centro, 2010-2013). de uma lógica territorial: no, através e seja de um indivíduo, grupo ou comuni- com o território, sendo efetivamente um dade. Uma reconciliação entre APS e ter- Conflitos de interesse. Nada declarado equipamento de ampliação de acesso. ritório, pela construção de novas práticas pelos autores. Contudo, esses modos de relação com o de atenção diretamente implicadas em território permitem não somente um au- novas práticas de gestão do processo de Declaração. As opiniões expressas no mento da abrangência, mas também um trabalho para o SUS. manuscrito são de responsabilidade ex- aumento do grau da capacidade de cui- clusiva dos autores e não refletem neces- dar de situações complexas, onde vários Agradecimentos. À Coordenação de sariamente a opinião ou política da concorrem. Um duplo sentido de am- Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível RPSP/PAJPH ou da Organização Pan-­ pliação: ampliar a capacidade de acesso Superior (CAPES) pela concessão Americana da Saúde (OPAS).

REFERÊNCIAS

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 79 Artigo especial Vargas e Macerata • Consultórios na Rua e atenção básica

ABSTRACT As part of the Unified Health System (SUS) in Brazil, a Street Outreach Program was created with the goals of delivering primary health care (PHC) and guaranteeing Contributions of Street ac-cess to health initiatives for homeless populations in the street environment itself, connecting these populations to other services beyond urgent care and Outreach teams to primary emergency facilit-ies. The Program’s scope of action involves, in addition to health care and management health care, protecting this population against the risks to which they are exposed combined with an effort to guarantee their rights. In this sense, the Street Outreach Clinics strive to ensure equity and access for people with no fixed address, within a system that essentially relies on geographical catchment areas to provide health care. Thus, the establishment of Street Outreach Clinics has introduced new modes of providing health care, and consequently new modes of managing work processes. Based on this articulation between care and management, the present article discusses three levels of intervention for the work of Street Outreach Clinics and teams (the street itself, the health care unit, and institutional networks ), as well as the relationship between this Program and other PHC services and its contribution to reconciling PHC with its essential attributes, beyond catchment areas.

Keywords Health management; universal access to health care services; primary health care; homeless persons; Brazil.

RESUMEN Como parte del Sistema Único de Salud en Brasil, los Consultorios en la Calle y sus equipos fueron creados teniendo como función prioritaria prestar cuidados prima- Contribuciones de los rios y garantizar el acceso a las acciones y servicios de salud para poblaciones en si- tuación de calle, en el propio ambiente de la calle, creando vínculos en esa población equipos de Consultorio en la con otros servicios que no sean solamente los de urgencia o emergencia. Su alcance Calle para el cuidado y la involucra, además de la atención, la protección contra los riesgos a que está expuesta gestión de la atención básica esa población, combinada con la búsqueda de la garantía de sus derechos. En ese sentido, los Consultorios en la Calle buscan hacer efectiva la equidad y el acceso a las acciones y servicios de salud para una población sin domicilio fijo dentro de un siste- ma basado esencialmente en la adscripción territorial de la población. Así, la creación del Consultorio en la Calle inaugura nuevos modos de cuidados de la salud y, en consecuencia, nuevos modos de gestionar el proceso de trabajo. A partir de esa arti- culación entre cuidado y gestión, el presente artículo discute tres planos de interven- ción donde se da la práctica de los equipos de Consultorio en la Calle (la propia calle, la sede o unidad de referencia y las redes institucionales), su relación con los demás servicios de atención primaria de salud y su contribución para reconciliar la atención primaria de la salud con sus atributos fundamentales, además de la adscripción del territorio geográfico.

Palabras clave Gestión en salud; acceso universal a los servicios de salud; atención primaria de salud; personas sin hogar; Brasil.

80 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Pan American Journal Opinião e análise of Public Health

Cuidado, HIV/Aids e atenção primária no Brasil: desafio para a atenção no Sistema Único de Saúde?

Eduardo Alves Melo,1 Ivia Maksud2 e Rafael Agostini2

Como citar Melo EA, Maksud I, Agostini R. Cuidado, HIV/Aids e atenção primária no Brasil: desafio para a atenção no Sistema Único de Saúde? Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e151. https://doi.org/10.26633/ RPSP.2018.151

RESUMO No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) prevê a organização de uma rede hierarquizada e regionalizada de serviços de saúde tendo a atenção primária à saúde (APS) como ordenadora e porta de entrada para os serviços. Recentemente, novas diretrizes e experiências brasileiras designaram para a APS um papel de maior protagonismo no tema das políticas de HIV/Aids, que até então desenvolviam-se, no seu componente assistencial, centralmente em serviços espe- cializados. Este artigo contextualiza e problematiza esse recente processo de descentralização do cuidado às pessoas vivendo com HIV/Aids no SUS. A partir de 2011, novas tecnologias diag- nósticas (como os testes rápidos) foram implantadas na APS no Brasil, ampliando o acesso à testagem e promovendo um aumento do número de diagnósticos de HIV na APS. A partir de 2013, diretrizes e recomendações incentivaram também o acompanhamento de pessoas com HIV/Aids no âmbito da APS. Nesse contexto, o presente artigo examina a relação entre APS e atenção especializada, as questões de acesso, estigma e confidencialidade na APS e o modo de organização e funcionamento das equipes de saúde da família, notadamente a vinculação formal entre moradores a equipes. Conclui-se que o enfrentamento de vários desafios – de ordem moral, ética, técnica, organizacional e política - é necessário para ampliar as possibilidades de acesso e a qualidade do cuidado na APS para as pessoas vivendo com HIV/Aids no Brasil.

Palavras-chave Atenção primária à saúde; síndrome de imunodeficiência adquirida; assistência inte- gral à saúde; Brasil.

O Sistema Único de Saúde (SUS) do social. Prevê um sistema organizado em cultural (4). Esses atributos colocam, Brasil, criado a partir da Constituição redes de atenção à saúde (RAS) hierarqui- para a APS (também chamada no Brasil de 1988, representa a materialização zadas e regionalizadas (1), visando à pro- de atenção básica), a missão desafiadora ­jurídico-institucional das lutas dos movi- dução de cuidados integrados e integrais de operar como base de ordenamento e mentos pela reforma sanitária e tem e à racionalização diante dos problemas porta de entrada preferencial das RAS como princípios e diretrizes centrais a gerados pela fragmentação das ações de no SUS, com alta resolutividade (clínica e universalidade, a equidade, a integrali- saúde e pelos custos em saúde (2, 3). sanitária) e integração com os demais dade, a descentralização e o controle Internacionalmente, a atenção primá- serviços que compõem as RAS. ria à saúde (APS) tem sido pensada a No Brasil, o SUS apresenta avanços e 1 Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de partir de alguns atributos, destacando-se inovações – em áreas como imunização, Saúde Pública (ENSP), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. primeiro contato, acessibilidade, longi- saúde mental, APS, HIV/Aids e trans- Correspondência: [email protected] 2 Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Fernandes tudinalidade e coordenação do cuida- plantes, entre outras – que, entretanto, evi- Figueira, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. do, abordagem ampliada e competência denciam uma implantação mais através

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 81 Opinião e análise Melo et al. • HIV/Aids e APS no Brasil de programas e políticas específicas e e o programa nacional no Ministério da de qualquer PVHA para o tratamento parciais do que de modo sistêmico e inte- Saúde, em 1986 (6). Depois desses anos antirretroviral e a adoção do tratamento grado (3). Isso se deve, ao menos em par- iniciais, a epidemia passou a ser caracte- como prevenção; e a incorporação da te, a problemas como o subfinanciamento, rizada por um intenso processo de res- dose fixa combinada como primeira à gestão envolvendo três entes federa- postas colaborativas, incluindo desde ­linha de tratamento, com a inclusão de dos autônomos (União, estados e municí- pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) novos medicamentos. pios), à influência do setor privado de até áreas técnicas (7, 8). De acordo com dados epidemiológi- saúde, à profunda heterogeneidade re- A história brasileira foi marcada cos oficiais, entre 1980 e 2017 foram noti- gional do Brasil e ao contexto de implan- pelo desafio de incorporar as respostas à ficados 882 810 casos de Aids no Brasil, tação do SUS (desfavorável a políticas de epidemia em longo prazo. O trabalho sendo 576 245 (65, 3%) em homens e proteção social universais), o que acaba conjunto entre diversos setores e atores 306 444 (34, 7%) em mulheres. Os casos conformando “vários SUS”. As dispari- passou por acordos de empréstimo jun- estão mais concentrados nas regiões Su- dades socioeconômicas e regionais se ex- to ao Banco Mundial para financiamen- deste (52, 3%) e Sul (20, 1%), seguidas pressam também em termos de saúde e to das atividades de prevenção durante das regiões Nordeste (15, 4%), Norte de sistema de saúde, sendo a administra- as duas primeiras décadas. Além disso, (6, 1%) e Centro-Oeste (6, 0%). De 2007 ção de um sistema tão descentralizado o Brasil inovou ao incorporar os medi- até 2017, foram notificados 194 217 casos um desafio complexo (5). camentos antirretrovirais ao SUS, con- de infecção pelo HIV no Brasil. No ano Recentemente, novas diretrizes nacio- trariando recomendações do Banco de 2014, a principal via de transmissão nais e experiências locais têm colocado a Mundial. Essa medida promoveu uma entre indivíduos com 13 anos ou mais foi APS em posição de protagonismo no alteração radical nos quadros clínicos e a sexual, em ambos os sexos. Entre indi- tema do HIV/Aids, com papel de manter epidemiológicos, resultando na redução víduos menores de 13 anos, a quase tota- e ampliar ações de promoção, prevenção da mortalidade e no aumento da expec- lidade dos casos teve como via de e diagnóstico e de incorporar o acompa- tativa de vida das PVHA (7, 8). infecção a transmissão vertical (12). nhamento de usuários com HIV. Até en- Ao longo dessa história, o modelo clí- tão, as políticas de HIV/Aids, nas quais nico adotado foi inicialmente de acom- APS NO BRASIL o Brasil tem se destacado no cenário panhamento na atenção especializada, mundial, tinham seu componente assis- em geral por médicos infectologistas. Os A APS é um elemento estratégico na tencial desenvolvido principalmente nos serviços de atenção especializada (SAE), constituição das RAS no SUS. A ESF vem serviços especializados. de caráter ambulatorial, estavam inseri- sendo considerada uma estratégia de re- Considerando esses aspectos, o objeti- dos em policlínicas e hospitais. Os diag- orientação do modelo assistencial no vo deste artigo é contextualizar o recente nósticos eram realizados nessas mesmas SUS, tendo se expandido a praticamente processo de descentralização do cuidado unidades e, posteriormente, se concen- todos os municípios e regiões brasileiras às pessoas com HIV/Aids para o âmbito traram nos Centros de Testagem e Acon- a partir de indução financeira federal fei- da APS no Brasil – tema ainda escasso na selhamento (CTA). A participação da ta pelo Ministério da Saúde, sendo uma literatura científica – e problematizar po- APS nesse processo só foi intensificada expressão do processo de descentraliza- tencialidades e desafios como o direito depois dos anos 2000, por meio de sua ção intensificado a partir dos anos 1990. das pessoas com HIV/Aids a uma aten- responsabilização pelas ações de preven- A ESF tem maiores coberturas em territó- ção integral (considerando necessidades ção e aconselhamento e, recentemente, rios com populações em situação de de saúde, acesso a ações e serviços bem de testagem (9, 10). O acompanhamento maior vulnerabilidade social (13). Atual- como direitos humanos), por um lado, e a das PVHA a partir de uma estratificação mente, existem cerca de 41 mil equipes necessidade de fortalecer a APS e sua in- de riscos foi a última etapa do processo de saúde da família, o que representa tegração nas RAS, por outro. Ressaltamos de descentralização do cuidado e a sua uma cobertura de aproximadamente aqui o entendimento de que a ­construção implantação está em curso de forma inci- 65% dos 204 milhões de brasileiros. e a implantação de políticas públicas são piente em alguns municípios. A Política Nacional de Atenção Básica processos sociopolíticos nos quais distin- Sendo assim, em anos mais recentes, o (PNAB) coloca, para a APS, as funções tos atores e projetos/agendas se apresen- cenário das respostas à epidemia de de base e porta de entrada preferencial tam, comportando inclusive ações e HIV/Aids vem sendo significativamente da RAS, de ser resolutiva e de coordenar reações em distintos planos e arenas, tais alterado no Brasil, numa tentativa de o cuidado dos usuários, adotando dire- como o plano governamental, dos servi- adequação a metas globais de controle trizes como territorialização, adscrição ços de saúde e da sociedade civil. (11). Em relação à prevenção, destacam- de clientela e trabalho em equipe, entre -se a incorporação dos testes rápidos no outros, e desenvolvendo ações de pro- HIV NO BRASIL SUS e sua paulatina descentralização moção, prevenção, cura, manutenção da para a APS, a partir da Estratégia Saúde saúde, reabilitação e redução de danos, Os primeiros casos de infecção pelo da Família (ESF), e para unidades mó- considerando pessoas e coletividades HIV datam do início da década de 1980, veis, em parceria com a sociedade civil; em seus contextos cultural e socioeconô- nos Estados Unidos. No Brasil, as respos- a ampliação e unificação das ações para mico (14). tas à epidemia se iniciaram em 1982, an- a profilaxia pós-exposição (PEP); e a in- A principal forma de organização da tes da constituição do SUS, com a criação corporação da profilaxia pré-exposição APS no Brasil é através das equipes de das primeiras organizações de mobiliza- (PrEP) para determinadas populações saúde da família, com médico generalis- ção comunitária, o programa estadual no âmbito do SUS. No campo da atenção, ta, enfermeiro, técnico de enfermagem e de São Paulo (região Sudeste), em 1983, por sua vez, destacam-se a elegibilidade agentes comunitários de saúde (ACS),

82 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Melo et al. • HIV/Aids e APS no Brasil Opinião e análise podendo incluir profissionais de saúde Brasil e para o SUS, tem sido objeto de atribuições de médicos, resultando num bucal, bem como suporte de profissio- muitos protestos e preocupações quanto tratamento inadequado a PVHA. Seria o nais como psicólogos, nutricionistas, ao risco de enfraquecimento da ESF e caso de pensar que isso configura um ­fisioterapeutas e psiquiatras, entre ou- ­reforço de um modelo de APS residual e embate entre duas formas/lógicas de tros, conformando Núcleos de Apoio à anterior à ESF. ­fazer medicina, ou entre duas epistemo- Saúde da Família (NASF) que realizam logias do cuidado, uma mais integral/ práticas como discussão de casos, atendi- O CUIDADO ÀS PESSOAS holista e outra mais biomédica (19)? mentos conjuntos e ações coletivas, bus- VIVENDO COM HIV/AIDS NA Como pensar um “cuidado compartilha- cando ampliar a capacidade de cuidado APS BRASILEIRA do” nesse caso? Proposições como a do da APS. Cada equipe de saúde da família apoio matricial, presente na experiência é responsável por cuidar, em média, de Entre os anos de 2011 e 2012, o Ministé- dos NASF, no qual especialistas e gene- 3 000 pessoas, podendo variar para mais rio da Saúde introduziu novas tecnolo- ralistas se relacionam em torno de casos ou menos a depender das características gias diagnósticas na APS, com destaque, concretos e realizam ações como discus- do território e da população (grau de conforme já mencionado, para os testes são de casos e consultas conjuntas, po- vulnerabilidade social, por exemplo). Os rápidos (gravidez, sífilis e HIV, entre ou- dem ser um caminho fértil. ACS se caracterizam por morar no mes- tros), ampliando o acesso à testagem e o O segundo elemento de problematiza- mo bairro onde se localizam os serviços aumento do diagnóstico de HIV na APS ção refere-se às questões de acesso, estig- que abrigam as equipes de saúde de fa- em todas as regiões do país. A partir de ma e confidencialidade na APS. Uma mília e a população sob sua responsabili- 2013, o Ministério da Saúde passou a das justificativas para a descentralização dade, sendo considerados mediadores adotar também diretrizes e recomenda- do acompanhamento das PVHA seria a entre população e serviços de APS. Os ções de incentivo ao acompanhamento facilidade de acesso à atenção. No entan- serviços da atenção básica, denomina- de pessoas com HIV/Aids (com quadro to, a literatura aponta o receio de PVHA dos genericamente de unidades básicas de baixo risco) na atenção básica dos mu- de terem sua sorologia revelada para a de saúde (UBS), são geridos pelos muni- nicípios (18). Simultaneamente, alguns comunidade a partir do compartilha- cípios, a partir de diretrizes nacionais e municípios brasileiros com grande inves- mento de informações e decisões na financiamento compartilhado entre mu- timento na estruturação da APS, como equipe multiprofissional, característica nicípios, estados e União. Curitiba e Rio de Janeiro (localizados nas das equipes de saúde de família (10). Em As três principais linhas de atuação da regiões Sul e Sudeste, respectivamente), que medida a territorialidade pode, por- APS no SUS são o acolhimento da de- passaram efetivamente a descentralizar tanto, ampliar as possibilidades de cui- manda espontânea, garantindo acesso, a o cuidado a pessoas com HIV para a APS dado ou exposição a preconceitos? oferta de cuidado continuado e a atenção (18). Ainda que ações de promoção e pre- O terceiro elemento a ser destacado aos problemas/riscos coletivos em saúde venção sobre HIV já estivessem difundi- diz respeito ao modo de organização e (15). Para tanto, a APS é organizada de das nas equipes de saúde da família, o funcionamento das equipes de saúde modo territorial, com alto grau de proxi- diagnóstico de novos casos (em todas as de família, notadamente a vinculação midade à dinâmica social e às condições regiões) e, principalmente, o acompa- formal de moradores a equipes. Cada e modos de vida das pessoas. Num país nhamento de usuários com diagnóstico equipe de saúde de família é responsá- diverso, desigual e grande como o Brasil, positivo (em alguns municípios) são pro- vel por um território geográfico, com há diferentes realidades de APS que coe- cessos muito recentes, cercados de polê- vinculação da população que nele resi- xistem com elementos comuns (16). mica e ainda pouco estudados. de ou, em ­alguns casos, trabalha. Exis- Assim como outros componentes do Considerando as trajetórias de cons- tem alguns limites nessa organização. SUS, a APS enfrenta limitações e proble- trução da APS no Brasil e da resposta De um lado está a noção formal de vín- mas, a despeito dos avanços. É importan- brasileira ao HIV, formulações desenvol- culo, que deveria supor uma relação de te sinalizar, ainda, que algumas práticas e vidas na saúde coletiva brasileira e em confiança, importante para uma pessoa ações já são incorporadas à atenção bási- outros campos de saber, bem como o que vê sua vida afetada pelo diagnósti- ca de maneira ampla, como aquelas vol- contexto mais geral do SUS e do Brasil, co de HIV. Uma noção mais ampliada tadas à saúde da criança, ao cuidado alguns elementos requerem atenção es- de vínculo poderia comportar uma pré-natal e ao cuidado de pessoas com pecial. O primeiro deles é a relação entre aproximação mais efetiva entre profis- diabetes e hipertensão. Por outro lado, APS e atenção especializada, conside- sionais de saúde e usuários. Isso possi- ações no campo da saúde mental, da rea- rando a centralidade do médico no bilitaria, a saber, conversas sobre temas bilitação e de condições como HIV/Aids, acompanhamento das PVHA. Embora como prevenção, sexualidade, uso de ainda que existam, são menos caracterís- “compartilhado” entre os dois “níveis” drogas e outros, impactando fortemen- ticas da atenção básica, ou realizadas nes- de atenção, segundo a proposta progra- te a vinculação real de um usuário a se espaço de modo mais parcial. mática, o cuidado que se opera pelos ser- uma equipe de saúde de família. De ou- Houve uma importante inflexão na viços de saúde pode se configurar como tro lado está o receio da exposição e do PNAB e em outras políticas nacionais di- uma tensão. Na experiência brasileira, estigma, que podem fazer com que al- rigidas à APS no Brasil entre os anos de médicos que estão na APS, generalistas, guns usuários prefiram ser acompanha- 2011 e 2014, com destaque para o Progra- podem ser vistos por médicos especialis- dos longe de onde vivem. ma Mais Médicos (17). Por outro lado, a tas como “recém-formados” ou “em fim Isso nos faz acreditar ser necessária recente revisão normativa da PNAB, de carreira”, com formação deficitária uma atenção especial ao vínculo real ocorrida em 2017, num cenário social, para o “manejo” da infecção, sobrecarga existente ou produzido entre usuário e político e econômico negativo para o de trabalho e funções que não seriam equipe de saúde de família, bem como à

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 83 Opinião e análise Melo et al. • HIV/Aids e APS no Brasil constituição de regramentos flexíveis, uma inovação social em saúde que mere- externa (suporte e interação de médicos sob risco de descuidar de um usuário e ce ser problematizada. de família com infectologistas da atenção não garantir seu direito à saúde em virtu- Este artigo teve como objetivo con- especializada) e política (condução da de do modo de organização e funciona- textualizar esse processo de descentra- agenda e diálogo entre diferentes atores e mento do serviço de saúde, configurando lização, bem como indicar elementos perspectivas). Parece-nos que o enfrenta- uma barreira. configurados como tensões, desafios e mento desses desafios pode ser positivo possibilidades, considerando ainda o ca- para PVHA, quiçá ampliando as possibi- CONSIDERAÇÕES FINAIS ráter recente deste movimento e a exis- lidades de acesso e qualidade do cuida- tência de poucos estudos e pesquisas. do, e para a APS, que se qualificaria para As políticas dirigidas a HIV/Aids e É importante destacar os desafios de or- este e outros desafios. APS no Brasil possuem diferentes trajetó- dem moral (relativos ao tema da sexuali- rias. Recentemente, no Brasil, tais políti- dade e ao estigma relacionado a práticas Conflitos de interesse. Nada declara- cas se aproximaram – inicialmente, pela sexuais), ética (relativos ao sigilo e à con- do pelos autores. incorporação de um importante papel de fidencialidade num contexto de trabalho testagem e diagnóstico do HIV na APS em equipe territorializada), técnica (ma- Declaração. As opiniões expressas no (com ênfase maior em gestantes) e, poste- nejo clínico e formação dos profissionais), manuscrito são de responsabilidade ex- riormente, por meio de diretrizes e expe- organizacional interna (flexibilidade da clusiva dos autores e não refletem neces- riências municipais de descentralização APS para adaptar seus modos de organi- sariamente a opinião ou política da RPSP/ do cuidado a PVHA para a APS, suscitan- zação, considerando necessidades e ex- PAJPH ou da Organização Pan-Americana­ do polêmica e novos esforços. Trata-se de pectativas dos usuários), organizacional da Saúde (OPAS).

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84 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Melo et al. • HIV/Aids e APS no Brasil Opinião e análise

ABSTRACT In Brazil, the Unified Health System (SUS) consists of a hierarchical and regionalized network of health services coordinated from the primary health care (PHC) level, which is also the entry point into the system. Recently, as a result of HIV/AIDS management at new guidelines and experiences in Brazil, PCH has been assigned a more the primary care level in substantial role in the care and management of people living with HIV/AIDS, tasks traditionally performed at specialized clinics. The present article Brazil: a challenge for the contextualizes and explores the problems involved in this recent process of Unified Health System? providing decentralized care to people living with HIV/AIDS in the context of the SUS. Since 2011, new diagnostic technologies (such as rapid testing) have become available at PHC units in Brazil, expanding access to testing and leading to an increase in the number of HIV diagnoses performed at the PHC level. Since 2013, new guidelines and recommendations have also supported care for people with HIV/AIDS in PHC units. The present article examines the relationship between PHC and specialized care, issues of access, stigma, and confidentiality in PHC, and the mode of organization and functioning of family health teams, especially the formal link between residents in catchment areas and health teams and workers. In conclusion, many challenges–moral, ethical, technical, organizational, and political–have to be faced in order to increase access and quality of care in the context of PHC for people living with HIV/AIDS in Brazil. Keywords Primary health care; acquired immunodeficiency syndrome; comprehensive health care; Brazil.

RESUMEN En Brasil, el Sistema Único de Salud (SUS) prevé la organización de una red jerarqui- zada y regionalizada de servicios de salud, teniendo la atención primaria en salud (APS) como ordenadora y puerta de entrada para los servicios. Recientemente, nuevas directrices y experiencias brasileñas otorgaron a la APS un papel de mayor protago- Cuidados de pacientes nismo en el tema de las políticas de VIH/sida, que hasta entonces desarrollaban su con VIH / sida y atención componente asistencial centralizado en servicios especializados. Este artículo contex- tualiza y explora los problemas de este reciente proceso de descentralización del primaria en Brasil: cuidado a las personas que viven con VIH/sida en el SUS. A partir de 2011, desafíos para la atención nuevas tecnologías diagnósticas (como las pruebas rápidas) fueron implantadas en el Sistema Único de en la APS en Brasil, ampliando el acceso a la prueba y promoviendo un aumento del número de diagnósticos de VIH en la APS. A partir de 2013, las directrices y Salud? recomendaciones incentivaron también el seguimiento de las personas con VIH/sida en el marco de la APS. En este contexto, el presente artículo examina la relación entre la APS y atención especializada, los temas de acceso, estigma y confidencialidad en la APS y el modo de organización y funcionamiento de los equipos de salud de la familia, así como la vinculación formal entre los habitantes y los equipos de APS. Se concluye que es necesario enfrentar varios desafíos (de orden moral, ético, técnico, organización y política) para ampliar las posibilidades de acceso y la calidad del cuidado en la APS para las personas que viven con VIH/ sida en Brasil. Palabras clave Atención primaria de salud; síndrome de inmunodeficiencia adquirida; atención integral de salud; Brasil.

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Pan American Journal Opinião e análise of Public Health

refletem desigualdades historicamente descritas entre esses O desafio da atenção povos e os demais segmentos. A participação social ainda se mantém frágil, e suas discussões refletem a insatisfação dos primária na saúde usuários. A descontinuidade do cuidado somada à carência e alta rotatividade de profissionais, assim como a necessidade indígena no Brasil de estabelecer diálogos interculturais que promovam a arti- culação com saberes tradicionais, são fatores que desafiam a efetividade da PNASPI. O cuidado ainda é centrado em prá- Anapaula Martins Mendes,1 ticas paliativas e emergenciais, geralmente baseado na remo- ção de pacientes, gerando altos custos. A superação desses 2 Maurício Soares Leite, desafios depende do fortalecimento da APS e de seu reconhe- Esther Jean Langdon3 cimento enquanto importante marco regulador do modelo organizacional da PNASPI. e Márcia Grisotti4 Palavras-chave Atenção primária à saúde; saúde de populações indígenas; população indígena; Brasil. Como citar Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e184. https://doi.org/10.26633/ RPSP.2018.184 No Brasil, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem mais de 890 mil índios, distribuídos em todos os esta- dos e correspondendo a 0,4% da população brasileira. RESUMO Esse grupo, distribuído em 505 terras indígenas, ocupa 12,5% do território nacional. Apesar do contingente No Brasil, o direito à saúde pleiteado pelos povos indígenas populacional não tão expressivo em relação ao total da dialoga com diferentes marcos regulatórios, incluindo a população brasileira, esses povos apresentam imensa Declaração de Alma-Ata, a qual propõe e valoriza a atenção sociodiversidade, incluindo 305 grupos étnicos falan- primária à saúde (APS) como promotora de maior acesso e tes de 274 idiomas. Fundamental para a discussão pro- forma de minimizar as desigualdades em saúde. No âmbito posta pelo presente artigo é o quadro epidemiológico, do Sistema Único de Saúde (SUS), o subsistema de atenção que, guardadas as particularidades de cada povo, em à saúde indígena (SASI) e a Política de Atenção à Saúde dos termos gerais é marcado por indicadores de saúde am- Povos Indígenas (PNASPI) foram criados como estratégia plamente desfavoráveis frente ao restante da popula- para garantir o acesso à saúde aos povos indígenas. A PNASPI prevê atenção diferenciada às populações ção brasileira (1–3). ­indígenas com base na diversidade sociocultural e nas parti- Anteriormente à reformulação da Constituição bra- cularidades epidemiológicas e logísticas desses povos e sileira, em 1988, os povos indígenas eram tutelados focando no desenvolvimento da APS com garantia de inte- pelo Estado. Privados de direitos, a trajetória esperada gralidade da assistência. O presente artigo traz reflexões era uma progressiva assimilação pelo restante da po- acerca da implementação da PNASPI, destacando os avan- pulação brasileira. Essa postura impedia que esses ços e desafios apresentados durante esse percurso. Apesar grupos protagonizassem as tomadas de decisão de dos crescentes recursos financeiros disponibilizados para acordo com suas reais necessidades. Assim, a implementar o subsistema de saúde indígena, as ações têm Constituição de 1988 teve grande impacto sobre a cria- apresentado poucos resultados nos indicadores de saúde, que ção de políticas públicas voltadas aos povos indígenas, considerando a iniciativa de retirar de seu texto a tutela 1 Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós- para torná-los cidadãos de fato e de direito. Entre os Graduação em Saúde Coletiva (PPGSC/UFSC), Florianópolis (SC), direitos concedidos está a garantia de atenção diferen- Brasil. Correspondência: [email protected] ciada à saúde (2–4). 2 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Centro de Ciências da Saúde, Departamento de Nutrição, Florianópolis (SC), Brasil. A conferência internacional de Alma-Ata, em 1978, 3 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Programa de Pós- foi um marco nas discussões relacionadas ao desenvol- Graduação em Antropologia Social, Florianópolis (SC), Brasil. 4 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Programa de Pós- vimento da atenção primária à saúde (APS) como Graduação em Sociologia Política, Florianópolis (SC), Brasil. base para a efetivação da saúde enquanto direito

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 87 Opinião e análise Mendes et al. • APS indígena

­fundamental e a redução das desigualdades estabeleci- na direção de uma atenção diferenciada, com foco na das entre povos. Nesse conceito, a APS se dá através de APS (7). ações que têm foco na articulação entre diferentes seto- Em 1999, através da lei 9 836, foi instituído o SASI, res, considerando um conceito ampliado de saúde (5). passando a gestão da saúde indígena para a Fundação Sendo assim, cabe aos governos, em conjunto com as Nacional de Saúde (FUNASA). O SASI tinha como práticas de participação social, estabelecer normas e missão instituir, no âmbito territorial indígena, a APS e políticas que regulem estratégias para reduzir as ini- a continuidade da assistência nos diferentes níveis de quidades e desigualdades relacionadas à saúde e que atenção, atendendo às especificidades de cada povo se reflitam, de forma direta, no desenvolvimento dos (o que incluía desde questões de cunho sociocultural países. Essas iniciativas, com base na situação local, até aspectos logísticos e epidemiológicos), respeitando devem promover a integralidade da assistência, com- seus saberes tradicionais e garantindo a participação e preendendo o acesso aos serviços e aos cuidados de o controle social no processo de gestão (3, 4, 8). Também diferentes profissionais, incluindo os “praticantes tra- em consonância com as diretrizes de Alma-Ata, as dicionais” (5, 6). equipes de saúde incorporaram trabalhadores indíge- Diversos movimentos foram instituídos nos anos nas, que ocuparam as novas funções de agentes indíge- 1980 no Brasil em prol de mudanças no sistema de nas de saúde e agentes indígenas de saneamento (4, 5). saúde brasileiro, resultando na criação do Sistema A partir da criação do SASI foi elaborada a PNASPI. Único de Saúde (SUS). Mobilizações nesse sentido Essa política deveria ser implementada de acordo com também foram realizadas pelo segmento indígena, os princípios do SUS, dando ênfase à descentralização que não conseguia se ver inserido nas propostas gene- das ações e dos recursos e a universalidade, integrali- ralistas do SUS e que possuía necessidades específicas dade, equidade e participação social, com destaque (2, 4). A Declaração de Alma-Ata já trazia como para as questões relacionadas à diversidade cultural, objeto de discussão a implementação de ações de APS étnica, geográfica, epidemiológica, histórica e política. visando à redução das desigualdades em saúde com Como modelo organizacional, foram criados os foco nas especificidades de cada povo, proposta Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Ao ­seguida no processo de construção do Subsistema todo, são 34 no país, havendo, dentro desses, outras de Atenção à Saúde Indígena (SASI) a partir das instâncias responsáveis pela assistência à saúde em di- ­conferências de saúde protagonizadas pelos povos ferentes níveis, como os polos base, as unidades ou ­indígenas (5–7). postos de saúde e as casas de saúde indígena (8). Nesse contexto, o objetivo deste artigo é discutir a A participação social se dá através dos conselhos trajetória de implementação da Política Nacional de locais – geralmente situados em uma aldeia ou grupo Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) no de aldeias em determinada terra indígena – e distritais Brasil, com seus marcos regulatórios, desde sua cria- de saúde indígena, que apoiam a regulamentação da ção, no ano de 2000. Espera-se assim trazer reflexões gestão dos distritos e levam as discussões locais para acerca dos desafios vivenciados na execução da as conferências distritais. A escolha dos conselheiros é PNASPI e na redução das desigualdades em saúde, feita pelas comunidades indígenas. A partir daí, as dis- historicamente descritas entre os povos indígenas. cussões se ampliam nas Conferências Nacionais de Saúde Indígena (8). A POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS CRIAÇÃO DA SECRETARIA ESPECIAL DE SAÚDE INDÍGENA E SITUAÇÃO ATUAL No Brasil, a 1a Conferência Nacional de Proteção à DA ATENÇÃO À SAÚDE INDÍGENA Saúde Indígena (CNPSI), realizada em 1986, foi um dos primeiros momentos em que o Estado ouviu dife- Durante a 4° Conferência Nacional de Saúde dos rentes lideranças indígenas para discutir propostas re- Povos Indígenas, em 2006, foram reivindicadas melho- lacionadas à formulação de diretrizes voltadas à saúde rias na situação de saúde e questionada a gestão da desses povos, assumindo como legítimas suas necessi- FUNASA. O órgão vinha sendo alvo de duras críticas, dades e especificidades e tendo como foco a APS. Até que incluíam sucessivas denúncias de corrupção e então, a atenção à saúde indígena vinha sendo gerida ­desvios de recursos. Em uma discussão sobre o finan- sucessivamente pelos mais diversos setores e órgãos, ciamento e a gestão do SASI, Garnelo e Maquiné com ações desenvolvidas a partir de uma perspectiva (9) descrevem uma lista de sites com grande volume de paliativa e atividades descontinuadas, com poucos im- denúncias, incluindo grandes jornais, organizações pactos na situação de saúde (3, 4, 7). não governamentais e órgãos estatais de fiscalização e A proposta inicial da 1a CNPSI foi a de que a gerên- comunicação. Como resultado, formaram-se grupos cia da atenção à saúde indígena fosse vinculada ao de trabalho que posteriormente impulsionaram a cria- Ministério da Saúde, gestor do SUS no Brasil. Essa ção de uma secretaria diretamente ligada ao Ministério discussão se estendeu em uma segunda conferência, da Saúde. que mobilizou ainda mais os indígenas e teve a parti- Em 2010, foi aprovada a criação da Secretaria cipação paritária de delegados indígenas e não indí- Especial de Saúde Indígena (SESAI) (7, 9). O que sua genas. Naquele momento, a proposta estava voltada à criação traz de novo é, em última instância, a existên- mudança no modelo de atenção à saúde desses povos cia de um órgão responsável unicamente pela saúde

88 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Mendes et al. • APS indígena Opinião e análise indígena, que até então havia sido coordenada por além das crianças, as gestantes) e desnutrição, princi- setores dentro de outros órgãos ou instituições que palmente entre menores de 5 anos, contrastando com a tinham atribuições mais amplas, por vezes sequer li- obesidade e o sobrepeso encontrados nas mulheres mitadas aos povos indígenas. Nesse novo formato, adultas. O perfil aponta para a importância crescente contudo, não estão ausentes os desafios operacio- das doenças crônicas não transmissíveis para os povos nais: Garnelo e Maquiné (9) também apontam que, indígenas. O inquérito registrou ainda precárias condi- dentre as secretarias diretamente ligadas ao ções sanitárias e taxas elevadas de internação de crian- Ministério da Saúde, a SESAI é a única que contem- ças por diarreia e infecções respiratórias, o que indica a pla simultaneamente responsabilidades tanto pela baixa resolutividade das ações na APS (16). gestão como pela execução das ações e programas de Outra dificuldade relacionada à implementação saúde, o que exige do órgão uma robusta estrutura dessa política se refere ao uso do Sistema de administrativa. Informações da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), A 5° Conferência, em 2013, foi a primeira subse- restrito aos profissionais e gestores que o utilizam. quente à criação da SESAI. Entre as principais reinvin- Além da limitação de acesso às informações, desta- dicações expressas nessa ocasião estava a garantia da cam-se os problemas relativos à confiabilidade dos assistência integral, para além da atenção básica. Outra dados (3, 13, 17) e à comunicação com os demais siste- reivindicação era de que a atenção primária fosse forta- mas de informação do SUS. Isso dificulta o planeja- lecida em associação e respeitando os saberes tradicio- mento de acordo com as reais necessidades de cada nais indígenas, o que parecia não se consolidar mesmo local e um monitoramento que permita avaliar o de- após a criação da secretaria. A 5ª Conferência foi objeto senvolvimento de ações, os avanços e limites da de críticas importantes, que indicavam limitações no PNASPI e, consequentemente, a situação de saúde controle social e na participação dos representantes in- da população indígena (2, 13, 14). dígenas e questionavam a aprovação de propostas Alguns autores têm descrito a presença de estrutu- vistas como contraditórias (3, 4, 10). ras de saúde precárias e insumos e equipamentos es- cassos que, somados à alta rotatividade de profissio- UMA AVALIAÇÃO CRÍTICA SOBRE A nais e à complexidade logística encontrada em algumas IMPLEMENTAÇÃO DA PNASPI regiões, têm reflexos negativos na qualidade da presta- ção de serviços dentro dos territórios indígenas. Mesmo com a criação e implementação da SESAI, Cuidados paliativos e atenção emergencial têm sido persistem os problemas e desafios enfrentados antes priorizados, caracterizando o enfraquecimento da pela FUNASA. Vale assinalar que a disponibilidade de APS. Em relação à alta rotatividade dos profissionais, o recursos financeiros não se constituiu em empecilho, não estabelecimento de vínculo tende a inviabilizar o seja no período de gestão da FUNASA, seja após a cria- reconhecimento das especificidades culturais que per- ção da SESAI. Na verdade, as análises disponíveis meiam o cuidado em saúde desses povos (3, 4, 18). sobre o financiamento do SASI mostram crescimento A estruturação dos Conselhos de Saúde parece um considerável e praticamente constante dos recursos ganho real dos povos indígenas no que diz respeito disponíveis desde os seus primeiros anos de existên- às diretrizes da política. A participação social tem cia, à exceção talvez dos primeiros momentos após a como objetivo permitir que os indígenas se insiram criação da SESAI. Para dar uma ideia da progressão, o nas estratégias de planejamento e avaliação dos ser- orçamento de 2010 foi 3 vezes maior que o de 2002, viços prestados a seus povos e consequentemente chegando a R$ 379 000 000,00 (3, 4, 9). Em 2015, alcan- busquem maior resolutividade para os problemas. çou o montante de R$ 1 533 659 105,00 (11). Porém, esse controle social enfrenta sérias barreiras No entanto, se os dados indicam uma evolução sig- para a sua real concretização, a despeito da previsão nificativa e consistente dos recursos aprovados e exe- legal de instâncias de controle social no subsistema. cutados, não é possível falar em melhora proporcional Ainda, durante as conferências, as vozes ativas nem dos indicadores de saúde (3, 9, 11, 12). A despeito de sempre são as dos indígenas (3, 4). Cardoso (4) e uma relativa escassez de dados demográficos e epide- Shankland et al. (15) relatam experiências onde os miológicos sobre os povos indígenas do país – quando próprios indígenas julgam precária a atuação de comparados aos dados disponíveis para o restante da alguns conselheiros. população brasileira – é evidente o quadro de marcan- Um grande desafio que persiste é o da realização da tes desigualdades que persistem após quase 20 anos de diretriz que propõe a articulação entre as chamadas existência do subsistema. Alguns importantes indica- “medicinas tradicionais” e o sistema médico oficial. dores, como a mortalidade geral, materna, número de Análises recentes sugerem que as iniciativas oficiais de internações e óbitos por doenças respiratórias e doen- incorporação das práticas e saberes nativos resultaram ças infecciosas e parasitárias na infância e doenças na constituição de dispositivos de controle pelo Estado, transmissíveis colocam a saúde indígena em franca com uma perspectiva essencialmente integracionista. desigualdade (13–15). O quadro de precariedade se Além disso, as propostas oficiais de uma atenção dife- confirma no Inquérito Nacional de Saúde dos Povos renciada parecem ser vistas como problemáticas pelos Indígenas, o único inquérito em saúde de abrangência próprios gestores, e a própria racionalidade biomédica nacional realizado entre esses povos. Esse inquérito re- impede a flexibilização das ações em direção ao diá- gistrou elevadas prevalências de anemia (atingindo, logo intercultural (3, 4, 18–20).

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 89 Opinião e análise Mendes et al. • APS indígena

CONCLUSÕES elevada rotatividade parecem muito distantes de serem solucionados. Embora desejável, um balanço categórico do pro- Ao mesmo tempo, há que se mencionar a persistên- cesso de implementação da PNASPI no Brasil mostra- cia de uma distância inaceitável entre diversos indica- -se pouco produtivo, e talvez nem sequer factível. dores de saúde registrados entre povos indígenas e o Houve, por certo, avanços importantes, com ganhos restante da população brasileira, sendo o segmento reais no cenário da saúde indígena no país. No entanto, indígena sistematicamente desfavorecido. Reflexos da em termos gerais, os dados disponíveis seguem apon- manutenção dessas iniquidades em saúde estão em tando para enormes distâncias entre o que a PNASPI pauta nas discussões das conferências nacionais de prevê e a precariedade com que a mesma se concretiza saúde indígena e nos recorrentes discursos de insatis- no cotidiano vivido pelos povos indígenas. Se por um fação dos usuários com a atenção à saúde de seus lado é possível afirmar que, a despeito de todas as difi- povos. Apesar de a estruturação e construção da culdades enfrentadas a partir da criação do subsistema PNASPI corroborarem as propostas descritas na de saúde indígena, a Política teve impactos positivos Declaração de Alma-Ata, pensando a APS como estra- no cenário da saúde indígena no país, é também verda- tégia para viabilizar o direito à saúde através do acesso, deiro que os impactos foram limitados. com vistas a reduzir as desigualdades, estimulando a Parece mais sensato, talvez, pensar em ganhos ainda participação social e a formação dos profissionais, parciais, em muitos aspectos positivos, mas distantes assim como a manutenção do vínculo entre esses pro- dos objetivos propostos pela PNASPI. São inegáveis fissionais e sua população adstrita, podemos analisar progressos, como o aumento do acesso desses povos que, de maneira integral, essa APS não se efetiva. aos serviços de saúde, inclusive nas regiões mais remo- tas do país. O foco na APS, como propõe Alma-Ata, Agradecimentos. O desenvolvimento do projeto mesmo que frágil em sua efetivação no panorama indí- está vinculado à Bolsa Fundação CAPES/PDSE Edital gena, trouxe uma importante mudança de perspectiva 47/2017 (processo n° 88881.190163/2018–01). em relação às práticas vigentes anteriormente à incor- poração da saúde indígena pelo Ministério da Saúde. Conflitos de interesse. Nada declarado pelos autores. A participação e o controle social avançaram significa- tivamente, mas encontram ainda sérias barreiras à sua Declaração. As opiniões expressas no manuscrito são efetivação. A gestão da SESAI ainda se mostra centrali- de responsabilidade exclusiva dos autores e não refle- zada e limitada pelo modo como seu quadro de pes- tem necessariamente a opinião ou política da RPSP/ soal é composto; os problemas com a formação de pro- PAJPH ou da Organização Pan-Americana da Saúde fissionais para a atuação em ambientes interétnicos e a (OPAS).

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ABSTRACT In Brazil, the right to health claimed by indigenous peoples interacts with various regulatory milestones, including the Alma-Ata Declaration, which proposes and highlights primary health care (PHC) as a means to increase The challenge of access and minimize health inequalities. As part of the Brazilian Unified providing primary Health System (SUS), an indigenous health subsystem (SASI) was estab- healthcare care lished, along with a National Policy for the Care of Indigenous Peoples (PNASPI), as a strategy to ensure health care access for these populations. to indigenous peoples PNASPI aims to provide differentiated health care to indigenous popula- in Brazil tions, considering the sociocultural diversity and the epidemiological and logistic peculiarities associated with the care of these peoples and focusing on the provision of comprehensive care. The present article discusses the implementation of PNASPI, highlighting achievements and challenges faced during this process. Despite the growing financial resources made available for the implementation of the indigenous health subsystem, the initiatives developed thus far have had little impact on health indicators, which reflect historical inequalities in relation to other population segments. Indigenous social control is still fragile, and the discussions in this arena show the dissatisfaction of users toward the system. The discontinuity of care, added to the shortage of and high turnover of health care workers and the need to establish intercultural dialogues that promote articulation with traditional knowledges, challenge the effectiveness of PNASPI. Care is still centered on palliative and emergency measures, usually based on relocation of patients for treatment, which is associated with high cost. To overcome these challenges, PHC must be strengthened and recognized as a regulatory milestone by the PNASPI organizational model.

Keywords Primary health care; health of indigenous peoples; indigenous population (public health); Brazil.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 91 Opinião e análise Mendes et al. • APS indígena

RESUMEN En Brasil, el derecho a la salud reclamado por los pueblos indígenas interac- túa con varios marcos regulatorios, incluida la Declaración de Alma-Ata, que propone y destaca la atención primaria de salud (APS) como un medio El desafío de brindar para aumentar el acceso a la salud y minimizar las desigualdades en materia atención primaria de de salud. Como parte del Sistema Único de Salud de Brasil (SUS), se crearon salud a los pueblos el subsistema de salud indígena (SASI)y la Política Nacional de Atención de Salud de los Pueblos Indígenas (PNASPI), como estrategias para garantizar indígenas en Brasil el acceso a la atención médica de estas poblaciones. La Política tiene como objetivo brindar atención de salud diferenciada a las poblaciones indígenas, considerando la diversidad sociocultural y las peculiaridades epidemiológi- cas y logísticas asociadas con la atención de estos pueblos y centrándose en dispensar una atención integral basada en la APS. En este artículo se discute la implementación de la Política, y se destacan los logros y desafíos enfren- tados durante este proceso. A pesar de los crecientes recursos financieros disponibles para la implementación del subsistema de salud indígena, las iniciativas desarrolladas hasta ahora han tenido escaso impacto en los indi- cadores de salud, que reflejan desigualdades históricas en relación con otros segmentos de la población. La participación social aún es débil, y las discu- siones en este campo revelan la insatisfacción de los usuarios con el sistema. La falta de continuidad de la atención, sumada a la escasez y alta rotación de los trabajadores de la salud, así como la necesidad de establecer diálogos interculturales que promuevan la articulación con los conocimientos tradi- cionales, cuestionan la efectividad de la Política. La atención aún se centra en prácticas paliativas y de emergencia, generalmente basadas en la reubica- ción de los pacientes para tratamiento, lo que se asocia con un alto costo. La superación de estos desafíos depende del fortalecimiento de la APS y de su reconocimiento como marco regulador importante del modelo organizativo de la Política.

Palabras clave Atención primaria de salud; salud de poblaciones indígenas; población ­indígena; Brasil.

92 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Pan American Journal Opinião e análise of Public Health

Análise crítica da interculturalidade na Política Nacional de Atenção às Populações Indígenas no Brasil

Leo Pedrana,1 Leny Alves Bomfim Trad,1 Maria Luiza Garnelo Pereira,2 Mônica de Oliveira Nunes de Torrenté1 e Sara Emanuela de Carvalho Mota1

Como citar Pedrana L, Trad LAB, Pereira MLG, Torrenté MON, Mota SEC. Análise crítica da interculturalidade na Política Nacional de Atenção às Populações Indígenas no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e178. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.178

RESUMO A preocupação com um cuidado culturalmente apropriado e intercultural, baseado na articula- ção e complementariedade entre saberes em saúde, vem sendo uma prioridade para garantir a atenção primária à saúde (APS) dos povos indígenas desde a Conferência de Alma-Ata. No Brasil, país de significativa variedade sociocultural no contexto indígena sul-americano, existe há 16 anos uma Política Nacional de Atenção à Saúde das Populações Indígenas (PNASPI) focada no conceito de atenção diferenciada. Esse conceito, considerado como incom- pleto e contraditório, é variavelmente operacionalizado na APS de indígenas. Sendo assim, o presente artigo propõe uma análise da formulação e operacionalização desse conceito na PNASPI. Essa análise torna evidente o caráter etnocêntrico da PNASPI, as numerosas contra- dições e negligências que não contemplam de fato o intercâmbio e articulação com o saber tra- dicional e as visões êmicas indígenas de saúde e dos processos de padecimento/cura. A reversão dessas limitações exigirá maior reflexividade, questionamento e vigilância epistemológicos tanto das ciências sociais e políticas quanto dos movimentos sociais e de controle social indíge- nas para redefinir em termos interculturais a APS de indígenas no Brasil.

Palavras-chave Saúde indígena; interculturalidade; política pública; atenção à saúde; Brasil.

As orientações da Declaração de Único de Saúde (SUS), no Brasil a APS medidas para aprimorar a saúde da ­Alma-Ata há 40 anos fundamentam o deve ser ofertada universal e gratuita- ­comunidade” (2). desenho dos modelos sanitários nacio- mente, de acordo com as demandas e Como outras nações, o Brasil também nais centrados na igualdade de acesso à necessidades do território, e consideran- busca garantir serviços de saúde públi- atenção primária à saúde (APS). Consi- do os determinantes e condicionantes ca universais, integrados, apropriados derada porta de entrada, coordenado- de saúde (1). Nos territórios indígenas e compreensivos (3) e ações de cuidado ra do cuidado e ordenadora das ações e do país, as ações de APS são ofertadas culturalmente apropriadas, respeitan- serviços disponibilizados no Sistema através do Subsistema de Atenção à Saú- do as especificidades e direitos sociocul- de Indígena (SASI), sob uma perspectiva turais conforme a Convenção 169 da participativa e intercultural, da qual os ­Organização Internacional do Trabalho 1 Universidade Federal da Bahia (UFBA), Instituto de Saúde Coletiva (ISC), Salvador (BA), Brasil. agentes comunitários indígenas e prati- (OIT) (4). Tais ações e serviços devem ser Correspondência: Leo Pedrana, leo.pedrana@ cantes tradicionais participam como fundamentados na articulação com os sa- gmail.com 2 Fundação Oswaldo Cruz, Centro de Pesquisas “importantes aliados” dos profissionais beres e práticas tradicionais indígenas em Leônidas e Maria Deane, Manaus (AM), Brasil. da atenção primária “na organização de saúde através da introdução de novos­

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Rev Panam Salud Publica 42, 2018 93 Opinião e análise Pedrana et al. • Interculturalidade e política de atenção às populações indígenas conceitos nas políticas públicas, transfor- de postura etnocêntrica e estritamen- (9) em termos de operacionalização e mação das formas organizativas dos mo- te tecnológica dos profissionais de quais são os pontos negligenciados ou delos de atenção e definição de novas saúde, em todos os níveis do país contraditórios que (des)orientam o modus práticas de cuidar. Não obstante, os indí- (Deputado Sérgio Arouca, Sala de operandi dos profissionais da saúde. genas seguem sendo considerados, em Sessões, em 29 de junho de 1994) (8). Para abordar a questão da atenção dife- nível global, um dos grupos ­populacionais renciada evoca-se a concepção de inter- mais vulneráveis. O fosso entre as condi- A “abordagem diferenciada e global” culturalidade crítica de Catherine Walsh ções de saúde dos indígenas e aquelas prevista na Política Nacional de Atenção (16, p. 4-5), na qual encontramos categorias das sociedades nacionais “envolventes” à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) que podem ser referenciadas ao campo da persiste, ou seja, a iniquidade na saúde (9, p. 28) estabelece a criação do SASI, saúde indígena: um processo de relação, indígena segue sendo um problema prio- ­definido como um subsistema “comple- comunicação e aprendizagem entre cultu- ritário na agenda mundial (5). mentar e diferenciado” do SUS (9, p. 13), ras a partir de condições de respeito, legiti- Na América do Sul, a trajetória históri- concebido com base em elementos de midade mútua, simetria e igualdade; um ca de criação de diversos modelos e especificidade e diferenciação estrutura- intercâmbio entre pessoas, conhecimen- ­estratégias institucionais de APS para as dos “sob a bandeira” da atenção dife- tos, saberes e práticas culturalmente dife- populações indígenas, orientados pela renciada em contextos considerados rentes para desenvolver um novo sentido interculturalidade, é marcada pela luta interculturais (10). entre elas na sua diferença; um espaço de dos movimentos sociais indígenas e pela Estudos empíricos que analisaram a negociação e tradução, onde as desigual- postura crítica pós-colonial das análises operacionalização da PNASPI eviden- dades e relações de poder da sociedade acadêmicas (6). Por sua vez, o Brasil, ciam um modelo de assistência que pro- são reconhecidos e confrontados. país de extensão continental e vasta hete- duz uma “normatização inclusiva” (11) e rogeneidade étnico-linguístico-cultural, o predomínio de práticas assistencialistas “Diferenciado”: sentidos e ­incorporou o reconhecimento dos direi- e que hegemonizam as diferenças (12). aplicações práticas na PNASPI tos diferenciados dos indígenas com a Prevalece uma interculturalidade funcio- Constituição de 1988, mas ainda limitan- nal, na qual “o reconhecimento e respeito O termo “diferenciado” se apresenta do esses direitos a aspectos sociais e cul- à diversidade cultural se convertem em na PNASPI sobretudo em relação ao turais, deixando em segundo plano a uma nova estratégia de dominação que “modelo diferenciado de organização de garantia dos direitos à soberania, à auto- ofusca e mantém, ao mesmo tempo, a serviços”, considerando “formas ociden- determinação e à representação no pro- ­diferença colonial através da retórica dis- tais convencionais” (9, p. 1), com menor cesso de tomada de decisões políticas, cursiva do multiculturalismo” (13, p. 4, ênfase sobre as “práticas sanitárias” perpetuando resquícios de uma herança tradução livre dos autores). (9, p. 13). A preocupação com a “adequa- histórica de colonização e escravidão. Assim, os estudos apontam que a ção” do sistema público de saúde aos sis- No campo do direito à saúde, o movi- operacionalização da PNASPI não tem temas tradicionais de saúde centra-se, mento indígena reivindicou, a partir da favorecido a produção de ações em saú- portanto, sobre questões formais e “tec- I Conferência Nacional de Proteção à de afinadas com as lógicas culturais e as nologias apropriadas” (9, p. 6) em um Saúde Indígena, em 1986, um subsiste- ­demandas efetivas das comunidades sentido genérico, baseado na visão etno- ma de atenção voltado às especificida- ­indígenas. Em realidade, tem produzido cêntrica de organização dos serviços. des dos seus povos. Isso se efetivou efeitos contrários aos princípios e pres- Na diretriz relativa ao “monitoramento anos mais tarde, através da “lei ­Arouca”, supostos fundantes da política, especial- das ações de saúde”, o habitus biomédico com a criação de um modelo de atenção mente no que diz respeito à adaptação se reflete na preocupação em definir crité- com enfoque integral e diferenciado (7), e ao aperfeiçoamento do funcionamen- rios e indicadores estritamente epidemio- considerando que: to e à adequação da capacidade do lógicos como instrumentos que deverão SUS às “necessidades específicas” de “permitir a identificação dos riscos e das O processo de saúde/doença dos saúde das “comunidades culturalmente condições especiais que interferem no povos indígenas é o resultado de de- diferenciadas”, referenciadas na “saúde processo de adoecer” e “que avaliem a terminantes socioeconômicos e cul- ­diferenciada” (14). saúde e, indiretamente, a atenção à saú- turais, que vão desde a integridade A saúde coletiva e a antropologia de” (9, p. 16). De fato, o monitoramento territorial e da preservação do meio coincidem ao enfatizar a opacidade e a da saúde indígena não é definido em ter- ambiente, à preservação dos siste- complexidade do conceito de atenção di- mos interculturais: não prevê indicadores mas médicos tradicionais desses po- ferenciada, refletidas tanto no texto da para monitorar as práticas interculturais vos e da preservação da cultura PNASPI quanto na sua implementação de cuidado, nem tampouco considera a como um todo, da autodeterminação (15). Por outro lado, algumas análises participação das comunidades indígenas política e não somente pela assistên- se revelam pouco críticas frente às fragi- na gestão, implementação e acesso aos cia à saúde prestada. É da máxima lidades apontadas, contribuindo para dados (17). O Sistema de Informação da importância observar a formação de invisibilizar contradições, lacunas e Saúde Indígena (SIASI) não é de público recursos humanos adequados a pres- pressupostos etnocêntricos presentes na acesso e a sua implementação privilegia tarem assistência médico-sanitária aos referida política. Nesse contexto, o pre- metas quantitativas sem considerar vari- povos indígenas, levando em conta o sente artigo se propõe a interrogar quais áveis de natureza qualitativa da efetivi- conhecimento e o respeito às medici- aspectos do complexo conceito de aten- dade do cuidado intercultural. nas tradicionais dessas populações, ção à saúde diferenciada são claramente Em outro trecho da PNASPI, alude-­ procurando estratégias de mudanças definidos na Política de Saúde Indígena se a “serviços diferenciados” (9, p. 15) na

94 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Pedrana et al. • Interculturalidade e política de atenção às populações indígenas Opinião e análise

­lógica da integralidade, aqui entendida saúde indígena (EMSI), que operam na Isso se reflete na hierarquização das re- como acesso e continuidade do tratamen- APS voltada a esse grupo, é outro aspec- lações nas EMSI, baseada no conhecimen- to ­entre níveis de complexidade diferen- to que salta aos olhos, uma vez que sua to especializado das patologias como clara tes, e “por intermédio de diferenciação de composição e parametrização variam de demonstração do predomínio hegemônico ­financiamento”. O modelo de gestão do acordo com “o número de habitantes, a da biomedicina na concepção de atenção SASI se estrutura seguindo uma lógica dispersão populacional, as condições de diferenciada. Não está prevista a reciproci- piramidal na qual se inserem numerosas acesso, o perfil epidemiológico, as ne- dade na apropriação e incorporação de empresas privadas e organizações não cessidades específicas para o controle outros saberes em saúde pelos outros pro- governamentais, diferenciando o modelo das principais endemias” (9, p. 14). Tor- fissionais das EMSI (médico, odontólogo, de atenção desse subsistema no SUS em na-se evidente a falta de referência às enfermeiros, técnicos e assistentes). termos de maior dependência da terceiri- competências comunicativo-relacionais O percurso de compreensão do sentido zação na assistência: uma fragmentação e linguístico-culturais necessárias para a de cuidado das comunidades assistidas e que envolve desde os trabalhadores até mediação em contextos interculturais da aproximação ao processo de saúde-­ os serviços essenciais como transporte considerando as 274 línguas indígenas doença e ao saber tradicional em saúde ­sanitário e limpeza. brasileiras (18). não se dá com base em processos inter- Os aspectos mais claramente orienta- Assim, o aspecto multidisciplinar da culturais de troca, intercâmbio, reconhe- dos a uma perspectiva intercultural e composição das EMSI se reduz a priori e a cimento recíproco, bi-direcionalidade e ­indigenista da PNASPI, tais como a arti- fortiori quase que exclusivamente aos pro- polissemia de práticas de fazer a saúde culação entre saberes, respeito de práti- fissionais da saúde pública stricto sensu, diferentes. Isso demonstra uma outra cas e valores do sistema tradicional e a reproduzindo exatamente o modelo de contradição com os pressupostos que consideração e reconhecimento da diver- equipe da Estratégia Saúde da Família fundamentam a lei nacional no que se re- sidade, constam na seção das diretrizes (ESF) do SUS não diferenciado. A defini- fere a articulação e respeito entre saberes, farmacológicas (9, p. 17). Essas diretrizes ção organizativa do modelo de atenção na uma vez que a sua operacionalização, pa- explicitam a valorização das práticas far- APS exclui, portanto, a contribuição de radoxalmente, não prevê a inclusão no macológicas tradicionais como estratégia especialistas de outros saberes da saúde, sistema de saúde público dos especialis- de articulação entre saberes fitoterápicos, como o cuidador tradicional indígena, ou tas tradicionais (pajés, rezadores, benze- através da “avaliação e adaptação dos campos e disciplinas acadêmicas orienta- dores, raizeiros, parteiras). protocolos padronizados de interven- das à interculturalidade na saúde, pois a ção”, além de ressaltar a questão do “con- “colaboração sistemática de antropólo- CONSIDERAÇÕES FINAIS trole de qualidade e vigilância em relação gos” (9, p. 14) não se efetiva necessaria- a possíveis efeitos iatrogênicos” (9, p. 18). mente na oferta cotidiana de atenção às A análise do texto da PNASPI eviden- No entanto, a dita articulação entre far- comunidades indígenas do Brasil. A visão cia uma visão intercultural funcional, macologia ocidental e tradicional indíge- eurocêntrica da PNASPI considera os pro- mais que crítica e operacional, do fazer na fica aberta a leituras ambíguas: por um fissionais das EMSI como “brancos” e re- diferenciado em relação à atenção à saúde lado, manifesta-se uma preocupação pelo presentantes da “medicina dos brancos”, indígena, que passa pelos extremos do et- impacto da troca cultural de um objeto, o ocidental e biomédica. Isso ocorre apesar nocentrismo até as contradições sobre os medicamento farmacológico e, por outro do aumento considerável, nos últimos pressupostos da articulação entre saberes, lado, aparece uma perspectiva unidire- anos, da profissionalização de indígenas central para a concepção de atenção cional de apropriação de conhecimento, que atuam na saúde indígena além dos ­diferenciada. Ao retomar como referência das práticas fitoterápicas e dos segredos agentes indígenas de saúde (AIS) (19). o conceito de inteculturalidade crítica, a do ofício da pajelança de tipo predatório, Outra lacuna importante diz respeito à análise evidencia os nós que viram obstá- não complementar. ausência de investimento em processos culos e barreiras para o entendimento de Fica claro que os elementos de diferen- de formação diferenciados, estruturados atenção diferenciada como um processo ciação do SASI são definidos nas primeiras­ com base no conhecimento tradicional do de interação mutuamente construído, diretrizes da PNASPI com ênfase na for- contexto local e competências relacio- compartilhado e validado. As ambiguida- malidade da organização dos ­serviços. A nais e comunicativas interculturais, capa- des ou ambivalências que permeiam a substancialidade do cuidado diferenciado zes de produzir relações de cuidado noção de atenção diferenciada se apresen- ofertado é atravessada por contradições, a efetivamente diferenciadas (20). Embora a tam como empecilhos à construção de partir da dominante visão biomédica da PNASPI reconheça a centralidade da for- ­novas práticas interculturais de cuidar saúde e da atenção à saúde indígena. mação “como instrumento fundamental conforme as intenções expressas nas pre- A lógica monocultural e unidirecional de adequação das ações dos profissionais missas fundantes da legislação nacional. subjacente à política nacional se revela e serviços de saúde do SUS às especifici- As conferências nacionais, expressões também na diretriz “articulação dos siste- dades da atenção à saúde dos povos indí- do ponto de vista de indígenas e sanitaris- mas tradicionais”, na medida em que não genas” (9, p. 16), é prevista exclusivamente tas indigenistas, seguem demandando e prevê, como o próprio título sugere, o para uma categoria de profissional, o sugerindo estratégias interculturais como SUS como objeto de articulação com os AIS, a partir de uma concepção que se a inclusão dos especialistas tradicionais demais sistemas médicos tradicionais, arrisca em termos assimilacionistas e in- nos serviços de atenção à saúde indígena supostamente subalternos ou periféricos. tegracionistas como “uma estratégia que e uma formação intercultural para os A natureza epidemiológica dos crité- visa favorecer a apropriação, pelos povos ­profissionais não indígenas. Porém, em rios que definem o perfil e as competên- indígenas, de conhecimentos e recursos termos institucionais, a vocalização das cias das equipes multiprofissionais de técnicos da medicina ocidental”. visões êmicas indígenas sobre a saúde é

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 95 Opinião e análise Pedrana et al. • Interculturalidade e política de atenção às populações indígenas fortemente limitada pelo caráter consulti- explicitando a visão êmica indígena sobre e coletiva. Nesse sentido, esperamos que vo das instâncias de controle social indí- os processos de adoecimento e cura em a análise proposta possa tornar-se um gena (conselhos e conferências nacionais uma perspectiva de múltiplos sistemas ­instrumento útil para concretizar novas de saúde indígenas) que por vezes cons- terapêuticos. Isso permite focar os proces- estratégias de restruturação e indigeniza- trange a concreta participação no proces- sos de hibridismos e distinções entre as cão da interculturalidade nas práticas de so de tomada de decisão sobre a saúde epistemes e vislumbrar possibilidades de atenção à saúde no âmbito do subsistema pública indígena. articulação e integração entre as práxis de público voltado às populações brasilei- A perspectiva crítica da política de atenção à saúde indígena em um sentido ras originárias. atenção pode ser, nesse sentido, um meio intercultural. O processo de revisão da estratégico para superar as barreiras erigi- PNASPI que culmina com a realização da Agradecimentos. O estudo teve apoio das pela tendência monolítica da biome- próxima 6ª Conferência Nacional de Saú- do Conselho Nacional de Desenvolvi- dicina, expressão de hegemonia cultural de Indígena deve (re)considerar os funda- mento Científico e Tecnológico (CNPQ) sobre as silenciosas resistências e domínio mentos interculturais da noção de atenção pela concessão de bolsa de doutorado ao dos adormecimentos dos milenares sabe- diferenciada, tanto em nível de política primeiro autor. res comunitários indígenas. como de episteme científica, e construir Faz-se necessário empreender um exer- estratégias para efetivá-los nas práxis dos Conflitos de interesse. Nada declarado cício rigoroso de autorreflexão e de vigi- sujeitos que ofertam cuidado em saúde pelos autores. lância epistemológica capaz de construir aos povos indígenas. um processo virtuoso de reflexão crítica Ao considerar a reforma sanitária bra- Declaração. As opiniões expressas intercultural que passa pelo reconheci- sileira como um processo em construção no manuscrito são de responsabilidade mento institucional e científico das episte- (22), podemos pensar uma nova era de ­exclusiva dos autores e não refletem ne- mologias do saber indígena em saúde e interculturalidade promovida pelo ati- cessariamente a opinião ou política da pela análise de práticas e saberes tradicio- vismo dos indígenas em sinergia com a RPSP/PAJPH ou da Organização Pan-­ nais comunitários de autoatenção (21), pesquisa cientifica implicada, aplicada Americana da Saúde (OPAS).

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96 Rev Panam Salud Publica 42, 2018 Pedrana et al. • Interculturalidade e política de atenção às populações indígenas Opinião e análise

ABSTRACT Concern for culturally appropriate and intercultural care, based on linkages and complementarity among health knowledges, has been a priority for ensuring primary health care for indigenous peoples since the Alma-Ata Conference. In Critical analysis of Brazil, a country with significant sociocultural variety in the South American interculturality in the indigenous context, a National Policy for the Care of Indigenous Peoples (PNASPI) was established 16 years ago, focusing on the notion of differentiated care. This National Policy for the concept, considered incomplete and contradictory, has been variably Care of Indigenous operationalized in indigenous primary health care. Therefore, the present article Peoples in Brazil proposes an analysis of the formulation and operationalization of this concept in PNASPI. The analysis brings to light the ethnocentric nature of PNASPI, the numerous contradictions and oversights that fail to encompass the exchanges and linkages with traditional knowledges and with indigenous emic views of health and processes of illness/cure. The reversal of these limitations will require greater epistemological reflexivity, questioning, and surveillance of both the social and political sciences, as well as social movements and indigenous social control, to redefine indigenous primary health care in Brazil in intercultural terms.

Keywords Health of indigenous peoples; cultural competency; public policy; health care (public health); Brazil.

RESUMEN La preocupación por un cuidado culturalmente apropiado e intercultural, basado en la articulación y complementariedad entre saberes en salud, es una prioridad para garantizar la atención primaria de salud de los pueblos indígenas desde la Conferencia de Alma-Ata. En Brasil, un país con una significativa variedad sociocultural en el con- Análisis crítico de la texto indígena de América del Sur, existe desde hace 16 años una Política Nacional de interculturalidad en la Atención a la Salud de las Poblaciones Indígenas (PNASPI) enfocada en el concepto de atención diferenciada. Este concepto, considerado incompleto y contradictorio, es eje- Política Nacional de cutado de manera variable en la atención primaria de salud de las poblaciones indíge- Atención a las Poblaciones nas. Este artículo propone un análisis de la formulación y ejecución de ese concepto en Indígenas en Brasil la PNASPI. Este análisis hace evidente el carácter etnocéntrico de la PNASPI, las numerosas contradicciones y negligencias que no contemplan de hecho el intercambio y la articulación con el saber tradicional y las visiones émicas indígenas de salud y de los procesos de enfermedad/curación. La reversión de esas limitaciones requerirá mayor reflexividad, cuestionamiento y vigilancia epistemológica tanto desde las ciencias sociales y políticas como desde los movimientos sociales y de control social indígenas para redefinir en términos interculturales la atención primaria de salud de estas poblaciones en Brasil.

Palabras clave Salud de poblaciones indígenas; competencia cultural; política pública; atención a la salud; Brasil.

Rev Panam Salud Publica 42, 2018 97 Sobre a Organização Pan-Americana da Saúde

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) é a agência internacional especializada em saúde pública das Américas. É a agência especializada em saúde do Sistema Interamericano e funciona como escritório regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para as Américas. A OPAS proporciona coopera- ção técnica em saúde aos países membros no combate às do- enças crônicas não transmissíveis e seus determinantes, forta- lecimento dos sistemas de saúde e resposta às emergências e aos desastres. A Organização promove cooperação técnica en- tre países e trabalha em parceria com os Ministérios da Saúde e outras instituições governamentais, organizações da sociedade civil, outras agências internacionais, universidades e outros. A OPAS promove a inclusão da saude em todas as políticas e no engajamento de todos os setores para assegurar que as pesso- as vivam mais e com melhores anos de vida.