PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC‐SP

Programa de Estudos Pós‐Graduados em Comunicação e Semiótica

Paola Prestes Penney

POESIA AUDIOVISUAL: Narrativas poéticas no cinema documentário de

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

2011

Paola Prestes Penney

POESIA AUDIOVISUAL: Narrativas poéticas no cinema documentário de Werner Herzog

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Lucia Isaltina Clemente Leão.

SÃO PAULO 2011

Banca Examinadora:

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______AGRADECIMENTOS

Ao apoio do meu círculo afetivo, Maria Adelaide Amaral, Meei‐huey Wang, Silvana Lagnado, Niki Pozzo di Borgo, Ana Estela de Sousa Pinto, Daniela Mattos, Matias Lancetti, Cássia Adduci, Flávia Dietrich, Denise Pollini, Luciana Chen e Juliana Kase.

Aos meus filhos Stephen, Alexia e Barbara pela colaboração e incentivo.

A Mauro Giorgetti, pela ajuda na pesquisa musical dos documentários de Werner Herzog.

A Rainer Standke, pela longa entrevista sobre Lições da escuridão.

A Eduardo Escorel, que pensa o cinema de maneira crítica e rigorosa sin perder la ternura.

A Cida Bueno, da Secretaria do Programa de Estudos Pós‐Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC.

À CAPES, pela bolsa de estudos.

Aos membros da banca, por sua pontual e valiosa contribuição, Arlindo Machado e Flávio Brito.

À minha orientadora Lucia Isaltina Clemente Leão, pela orientação e postura generosa ao compartilhar seu conhecimento.

Ao Ugo. RESUMO

Este estudo investiga os processos de construção de narrativas poéticas em cinema documentário e seus resultados. Para tanto, será analisada a questão da poesia audiovisual que é construída por meio de imagens, sons e palavras. Esta análise servirá como base para se estabelecer a questão proposta neste estudo, a criação de linguagens poéticas e o mapeamento de novas fronteiras de comunicação e percepção sensíveis no contexto da produção de cinema documentário. Três documentários do cineasta alemão Werner Herzog são estudados: Fata Morgana, de 1971, Lições da escuridão, de 1992 e Além do azul selvagem, de 2005, que, no contexto desta dissertação, compõem uma trilogia poética do diretor. Com base nessas obras e material documental sobre o diretor, a pesquisa procura trazer um entendimento dos processos criativos de Herzog e as transformações desses processos, em cada etapa de realização dos filmes, da escolha de dispositivos à montagem, analisando comparativamente de que maneira são articulados texto, imagem e som. Para tanto, o estudo destas três obras está estruturado em dois momentos: a realização (análise técnica), e o resultado (análise da linguagem poética ou artística). A metodologia de análise adotada atende a critérios técnicos sensíveis. A fundamentação teórica engloba Gaston Bachelard, Arlindo Machado e Gilles Deleuze, com o objetivo de revelar os processos de criação de linguagem audiovisual em cinema documentário que transcende os limites do gênero.

Palavras‐chave: documentário, poéticas, Werner Herzog, Lições da escuridão, Fata Morgana, Além do azul selvagem

ABSTRACT

This study investigates the processes through which poetic narratives are constructed in documentary cinema and their results. In order to do so, the question of the audiovisual poetry that is formed through images, sounds, and words will be analyzed. In its turn, this analysis will serve as the basis of the proposition of this study, the creation of poetic languages, and the mapping of new discernible frontiers of communication and perception in the context of the production of documentary cinema. Three documentaries by the German filmmaker Werner Herzog are analyzed – Fata Morgana (1971), Lessons of darkness (1992), and (2005) – which, in the context of this dissertation, constitute a poetic trilogy. Based on these works and documental material on the director, this project aims to elucidate Herzog’s creative processes and their transformations in each phase of realization of those films, from the choices in conceptual approach to the editing, by comparatively analyzing the way text, image, and sound are worked together. To this end, the study of these three works is founded in two moments: the realization (technical analysis) and the result (analysis of the poetic or artistic language). This methodology satisfies technical criteria as much as it does sensibility criteria, and when combined with Gaston Bachelard’s, Arlindo Machado’s, and Gilles Deleuze’s concepts of image, this study reveals the processes of audiovisual language creation in documentary cinema that transcend the limits of the genre.

Key‐words: documentary, poetic, Werner Herzog, Lessons of darkness, Fata Morgana, The wild blue yonder SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS...... 04

ABSTRACT ...... 05

RESUMO...... 06

INTRODUÇÃO...... 09

CAPÍTULO 1 ‐ O DOCUMENTÁRIO COMO EXPERIÊNCIA POÉTICA...... 13 1.1. A voz poética...... 14 1.2. O olhar da maginação ...... 16 1.3. Dispositivos criativos...... 18 1.4. A reinvenção do documentário ...... 20

CAPÍTULO 2 ‐ WERNER HERZOG, POETA AUDIOVISUAL ...... 25 2.1. Um epicentro poético ...... 26 2.2. O êxtase da música e da palavra...... 29 2.3. Paisagens mentais e seus personagens ...... 39 2.4. A articulação de sonhos...... 59 CAPÍTULO 3 ‐ UMA TRILOGIA POÉTICA ...... 68 3.1. Terra, céu e espaço...... 69 3.2. Fata Morgana: deserto e danação...... 78 3.3. Lições da escuridão: o Apocalipse em treze quadros...... 102 3.4. Além do azul selvagem: o círculo poético se fecha ...... 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 135

APÊNDICE...... 142 Entrevista com Rainer Standke, montador de Lições da escuridão...... 143

ANEXOS...... 159 1. Declaração de Minnesota ...... 160 2. Ficha técnica dos filmes estudados ...... 163 3. Filmes de Werner Herzog ...... 165 4. Documentários sobre Werner Herzog e seus filmes citados ...... 180 5. Filmes de outros diretores citados ...... 181 6. Óperas dirigidas por Werner Herzog...... 182 7. Índice iconográfico...... 184

FONTES BIBLIOGRÁFICAS...... 187 1. Bibliografia...... 188 2. Artigos...... 190 3. Teses e dissertações ...... 190 4. Webgrafia ...... 190

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INTRODUÇÃO 10

A escolha de um tema de pesquisa costuma ter diversos motivos e seu recorte uma miríade de implicações que, ao contrário de nos dispersar, representa o desafio de dever nos direcionar, para que possamos responder à questão que impulsiona a pesquisa. No caso deste estudo, a escolha do cinema documentário como tema está estreitamente ligada à minha atividade de documentarista, que me obriga a refletir sobre esse gênero de fazer cinematográfico todos os dias. Em primeiro lugar, no que tange o escopo do trabalho, tendo realizado documentários de linguagem experimental, decidi que me debruçaria – pela primeira vez por escrito – sobre o documentário como produção audiovisual poética, ou filme‐ ensaio. Para tanto, queria que a pesquisa fosse composta tanto por elementos que me são familiares e de apelo sensível – o apreço pela poesia e pelo cinema documentário –, como elementos que representassem um desafio intelectual – a apreensão de um processo criativo vinculado a uma cultura distante da minha. Ao unir emoção e razão, eu procurava atingir um dos objetivos almejados: gerar um trabalho que oferecesse uma perspectiva original e uma reflexão aprofundada sobre a questão. Mas, a importância de se falar sobre o documentário poético não pode ter uma origem pessoal apenas. A produção do denominado filme‐ensaio tem crescido dentro da produção audiovisual mundial, ampliando a comunicação entre várias áreas de criação como cinema, literatura, artes visuais, música e teatro. Essa crescente interdisciplinaridade do documentário incrementa sua produção em termos quantitativos, mas também sua relevância em termos criativos, e abrangência no campo das artes e da comunicação. Se esses fenômenos mereceram o reconhecimento do público e de teóricos, foram de fato, até agora, pouco mapeados e estudados. Assim, o principal objetivo deste estudo é oferecer, por meio do recorte específico da linguagem poética encontrada nos documentários de Werner Herzog, uma análise e interpretação da transformação dos processos criativos do documentário e a linguagem audiovisual poética que dela decorre. No primeiro capítulo, é abordada a questão da transformação da linguagem em cinema documentário, visando fornecer bases históricas e conceituais para se vislumbrar os novos contornos do panorama na produção de documentários das últimas décadas até hoje. Contudo, se nesse estágio de reflexão ampliado não cabe 11 mais a pergunta: “O documentário é realidade ou ficção?”, a pergunta que se surge no lugar é, “Então, o que é documentário?”. No artigo O Filme‐Ensaio, Arlindo Machado desvincula a noção de ensaio do formato literário. Ao associar o ensaio ao formato cinematográfico, Machado afirma a possibilidade de se construir um pensamento não fundamentado na linguagem escrita ou verbal, mas por meio de enunciados audiovisuais:

Se o documentário tem algo a dizer que não seja a simples celebração de valores, ideologias e sistemas de representação cristalizados pela história ao longo dos séculos, esse algo a mais que ele tem é justamente o que ultrapassa os seus limites enquanto documentário. O documentário começa a ganhar interesse quando ele se mostra capaz de construir uma visão ampla, densa a complexa de um objeto de reflexão, quando ele se transforma em ensaio, em reflexão sobre o mundo, em experiência e sistema de pensamento assumindo, portanto, aquilo que todo audiovisual é na sua essência: um discurso sensível sobre o mundo. Eu acredito que os melhores documentários, aqueles que têm algum tipo de contribuição a dar para o conhecimento e a experiência do mundo, já não são mais documentários no sentido clássico do termo; eles são, na verdade, filmes‐ ensaio (ou vídeos‐ensaios, ou ensaios em forma de programa de televisão e hipermídia). (MACHADO, 2003: 10, grifos do autor)

E, no âmbito da questão que é colocada neste estudo, se o documentário pode ser um ensaio construído a partir de sons e imagens, pode ele, pelo mesmo viés, ser poesia? No segundo capítulo, além do conceito proposto por Machado, essa questão é também investigada à luz de Gaston Bachelard, que define a criação poética como um processo não ensimesmado, mas, pelo contrário, aberto, vital e em comunicação com outras formas de pensamento e processos criativos. Nesse capítulo, Werner Herzog é apresentado como poeta audiovisual: na medida em que recorre a alicerces poéticos na construção de seus filmes, ele transcende a condição de cineasta ao criar uma linguagem original que, apesar de autoral e, portanto, subjetiva, torna‐se universal ao engendrar um resultado que está em comunicação com obras de outros autores, sejam elas literárias, musicais ou pictóricas, e, não menos importante, em comunicação com o público de cinema e televisão. A estrutura fílmica constituída por imagem, palavra e som e a articulação desses elementos é analisada por meio da trilogia poética composta, no contexto 12 deste estudo, pelos filmes Fata Morgana (1971), Lições da escuridão (1992) e Além do azul selvagem (2005). Em diversos textos que abordam a obra de Herzog, esses filmes são denominados ora documentários, ora ensaios fílmicos, ora ficção científica. Mas não é tanto a nomenclatura referente ao gênero como sua composição que, no caso, nos interessa: a finalidade da análise é o aprofundamento da reflexão sobre os elementos conceituais e formais que tornam um filme uma obra poética tão adequada ao termo quanto sua versão tradicional, o poema escrito com palavras, ou seja, a busca por um genuíno espírito e fazer poéticos oriundos de sons e imagens. Se no segundo capítulo são comentados os elementos poéticos que aproximam os três filmes e fazem deles referências na realização de filmes‐ensaio, no terceiro capítulo, cada um dos filmes é abordado individualmente em um processo analítico técnico. Eles são comentados linearmente, ou plano‐sequência após plano‐sequência. As imagens e os elementos sonoros de cada filme são descritos, relacionados entre si, mas também dialogam com outras obras, de filmes à obras literárias, a fim de propiciar uma interpretação e entendimento sensível do processo criativo em questão e seu resultado. O documentário que nasce dos processos estudados representa uma renovação no fazer cinematográfico que caminha em direção à interdisciplinaridade e, por esse motivo, estabelece novas possibilidades de expansão no âmbito da criação de linguagens audiovisuais.

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CAPÍTULO 1. O DOCUMENTÁRIO COMO EXPERIÊNCIA POÉTICA

Nunca a poesia é mais uma do que quando ela se diversifica. (Gaston Bachelard, A poética do devaneio) 14

1.1. A voz poética

À primeira vista, poesia e documentário talvez não sejam percebidos como parceiros naturais para a composição de um binômio criativo, como acontece no caso da música e da dança. Essa aparente incompatibilidade tem origem na relação que, de um modo geral, se estabeleceu entre cinema documentário e fato real ao longo do século XX. Contudo, como será demonstrado neste estudo, apesar dessa contumaz associação, o documentário possui uma imanência poética que sobrevive a correntes estéticas, ideologias, e orientações pedagógicas e científicas. O cerne do trabalho apresentado é, portanto, o documentário que não está confinado à linguagem jornalística ou didática, que não se submete ao fato ou às fronteiras pouco confiáveis daquilo que se denominou “realidade”. Mas, se por um lado a relação do documentário com a “realidade” é algo que se questiona, pois mediada pela linguagem audiovisual, por outro, essa discontinuidade com relação a um compromisso com uma narrativa realista e factual não causa mais estranhamento. Isso porque, há algum tempo, essa noção representa apenas a primeira etapa em direção à questão final deste estudo: a criação e consolidação de uma linguagem de forma e fundo poéticos por meio do cinema documentário. Em uma pesquisa com este recorte, faz sentido lembrar que o filme usualmente designado como marco oficial do início do cinema não é uma encenação (ou ficção), mas o registro de um acontecimento rotineiro da vida. Ou seja, um registro documental. A chegada do trem à estação de la Ciotat (L'arrivée d´un train en gare de La Ciotat), curta‐metragem de 1895 de autoria dos irmãos Auguste e Louis Lumière é, como diz o título, o registro da chegada de um trem na estação de uma cidade francesa. No filme, além do trem, o espectador vê pessoas saindo do trem, indo e vindo pela plataforma da estação do ponto de vista de uma câmera fixa. No início do cinema, o olhar descobre um novo território de exploração visual, intermediado por uma máquina, no qual, diferentemente da fotografia, o ser humano tem a sensação de poder encapsular segmentos importantes de um tempo linear por meio de imagens aparentemente em movimento. Nesse momento, não existe ainda a preocupação de se separar documentário de ficção. Aliás, sequer existe o termo “documentário” para definir o gênero, supostamente cunhado algumas décadas mais 15 tarde por John Grierson. O interesse está no registro em si das imagens, que adquirem novas camadas de interesse ao serem registradas e mostradas repetidas vezes. O olhar do cineasta procura a graça e o poder de uma imagem em princípio corriqueira, exercendo um tipo de controle sobre o tempo – ou a ilusão de controle –, conferindo, assim, um novo sentido às coisas, e, consequentemente, uma nova percepção do mundo. Em 1929, portanto trinta e quatro anos depois dos primeiros ensaios fílmicos dos irmãos Lumière, Dziga Vertov realiza O Homem com a câmera. O cinema já havia incorporado outras funções além de registrar e entreter, e o filme denotava um olhar imbuído de um ideal social de contornos construtivistas. Vertov desconstrói o fazer cinematográfico de fantasia (no sentido de alienação burguesa) mediante a exposição de seus mecanismos. No entanto, ele realiza um filme que não consegue conter o deslumbramento diante daquilo que a câmera‐olho vê e registra. Nessa obra seminal de Vertov, há liberdade de criação poética na captação de imagens e, sobretudo, na montagem. Apesar da intenção construtivista que impregna as artes no período, Vertov desconstrói o fazer cinematográfico no aspecto técnico, mas não deixa de construir no lugar um cinema de concepção visual poética: ele se permite imaginar situações para além da realidade, como o pequeno cineasta em pé sobre uma câmera gigantesca, objetos inanimados movendo‐se sozinhos, e situações onde a imagem encenada e a imagem documental são articuladas com a finalidade de se compor uma realidade imaginada pelo autor (sempre com uma função social), e materializada na mesa de montagem. Quase um século depois de sua realização, o que permanece do filme de Vertov não é tanto o ideário político que o motivou, mas a poesia de suas imagens. Ao citar as experiências fílmicas de Dziga Vertov na então denominada União Soviética, faz‐se necessário mencionar seu contraponto ocidental: a experimentação poética de artistas e cineastas como René Clair, Jean Epstein, Man Ray, Marcel Duchamp e Joris Ivens por volta do mesmo período. Como explica Bill Nichols,

A experimentação poética no cinema origina‐se sobretudo do cruzamento do cinema com diversas vanguardas modernistas do século XX. Essa dimensão poética desempenha papel fundamental no surgimento de uma voz do documentário. O potencial poético do cinema, no entanto, continua quase totalmente ausente no “cinema de atrações”, em que a “exibição” 16

tem prioridade sobre a “fala poética”. [...] A vanguarda floresceu na Europa e na Rússia na década de 20. Sua ênfase em ver as coisas de uma outra maneira, pelos olhos do artista ou cineasta, teve um imenso potencial libertador. Ela livrou o cinema da reprodução daquilo que aparecia diante da câmera, para prestar uma homenagem à maneira pela qual “aquilo” poderia tornar‐se a matéria‐prima não só do cinema narrativo, mas também de um cinema poético. Esse espaço além do cinema convencional se tornou o campo de provas das vozes que falavam com os espectadores em linguagens diferentes da do longa‐metragem de ficção. (NICHOLS, 2005: 123‐126)

Todavia, o objetivo aqui não é traçar a história do cinema documentário no século XX – tarefa já executada com competência por vários historiadores e teóricos da área –, mas apontar a importância de seu papel dentro da produção cinematográfica, em geral, pelo viés de seu caráter imaginativo, experimental e de suas possibilidades poéticas. Neste início de século XXI, o documentário conheceu, no Brasil e no mundo, um crescimento significativo. Porém, não cresceu em uma única direção, muito pelo contrário. A proliferação de documentários segue adiante, gerando uma multiplicação – ou ramificação – de conteúdos, assim como visíveis mudanças na forma do gênero. O documentário se afasta a passos largos da noção de didatismo, verossimilhança e do papel de porta‐voz de ideologias, desvencilhando‐se da associação com o real e do compromisso com a verdade histórica. Afirma‐se, não mais como uma etapa ou um exercício a ser cumprido antes de um cineasta “ascender” ao cinema de ficção, mas como gênero independente e autossuficiente, pois flexível, de realização mais ágil e barata do que o tradicional cinema de ficção. É, portanto, arena ideal para questionamentos estéticos e conceituais, para a experimentação de novas linguagens e para o aprofundamento da relação entre realizador, espectador e o mundo.

1.2. O olhar da imaginação

A noção de poesia como invenção ou mentira não é novidade. Trezentos anos antes de Cristo, Aristóteles escrevia: “Con respecto a la poesía es preferible algo 17 imposible, pero creíble, que algo posible, pero no creíble.” (ARISTÓTELES, 2003: 120)1. E:

Puesto que el poeta es imitador, lo mismo que el pintor o cualquier otro realizador de imágenes, es necessário que imite siempre de una de las tres maneras siguientes: o bien como son o eran las cosas, o bien como dicen o parecen que son, o bien como deben ser. (2003: 115). 2

Vinte e três séculos mais tarde, Fernando Pessoa escreveria os versos3,

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.

Ele seria secundado por Roland Barthes: “É preciso que haja trapaça em algum lugar para que haja arte.”4, e também por Abbas Kiarostami, que diria sobre o fazer cinematográfico:

Seja documentário ou ficção, é tudo uma grande mentira que contamos. Nossa arte consiste em contá‐la de maneira que as pessoas acreditem. Que uma parte seja documentário e outra uma reconstituição, é nosso método de trabalho, e ele não diz respeito ao público. O mais importante é que 5 alinhamos uma série de mentiras para chegarmos a uma verdade maior.

1 “A respeito da poesia, é preferível algo impossível, porém crível, que algo possível, porém não crível.” (Tradução nossa) 2 Posto que o poeta é um imitador, como o pintor ou qualquer outro realizador de imagens, é necessário que imite sempre de uma das três maneiras seguintes: ou como são ou eram as coisas, ou como dizem ou parecem que são, ou como deveriam ser. (Tradução nossa) 3 Cf. PESSOA, Fernando. Autopsicografia in Obra Poética, p. 164. 4 BARTHES, Roland. Fragments de Voix. Archives Sonores Ina. Série Les Grandes Heures. Depoimento para Jean‐Marie Benoist e Bernard‐ Henri Lévy, fevereiro de 1977. 5 Informação verbal a partir do documentário Abbas Kiarostami, verdades e mentiras, Jean‐Pierre Limosin, 1994. 18

Visto a longevidade da questão do real versus fantasia que suscitam os processos criativos, este estudo não pretende ter o alcance de tratar da natureza da poesia, cujos limites indefiníveis pairam há milênios sobre a realidade e a ficção, sem nunca escolher nem uma nem outra: Propõe revelar a recente aproximação do documentário de uma intenção poética, abraçando‐a explicitamente em seu processo de realização. No texto A direção do olhar, Eduardo Escorel propõe outro tipo de embate: uma dualidade entre o olhar ficcional e o documental, sendo o olhar para dentro do cinema de ficção e o olhar para fora, do documentário. No entanto, Escorel admite a possibilidade de uma simbiose entre esses dois movimentos, exemplificada pelo filme Imagens do inconsciente (1983‐86), de Leon Hirszman:

Embora, em sentido estrito, Imagens do inconsciente seja um documentário, a realidade observada e registrada, como o próprio título indica, é a materialização visual do mundo interior. Ou seja, o olhar para fora do documentarista capta o olhar para dentro dos personagens e procura recriar, em procedimento paralelo ao da ficção, a história de vida de três artistas psicóticos que misturam, em suas obras, sonho e realidade. De um lado, Leon considera que o filme é “científico, didático”, de outro afirma que é narrado “através dos próprios quadros que eles pintaram expressando seus mundos interiores”. Uma visão objetiva, documental, sobre processos terapêuticos em que a expressão da subjetividade tem papel central. Num só filme, observação da realidade e história de vida recriada. Um filme híbrido. Documentário, sem dúvida, mas com marcas características da ficção. (ESCOREL, 2005: 103, grifos do autor)

O olhar da imaginação não se confina aos limites da física ou da lógica. Permite‐ se procurar a tradução poética do ser humano no mundo e dentro de si próprio. Torna‐ se assim aquilo que todo audiovisual é na sua essência: um discurso sensível sobre o mundo. (MACHADO, 2003: 68)

1.3. Dispositivos criativos

Diferentemente do filme de ficção, o filme documentário pode prescindir de um roteiro. Talvez, por esse motivo, o documentário tenha criado outros meios para se pautar, organizar e controlar o seu processo criativo, como dispositivos. Um dispositivo 19

é uma estratégia narrativa cujo objetivo é criar uma situação não controlada, a qual só pode acontecer por meio da aplicação desse dispositivo. Ele pode ser comparado às regras de um jogo ou ser a diretriz de um processo criativo audiovisual. Diferentes dispositivos têm sido utilizados na construção de narrativas experimentais e poéticas. Em As cinco obstruções (2003) de Lars von Trier, são impostas regras (ou desafios) ao cineasta Jorgen Leth que, em princípio, visam a dificultar seu processo criativo. Porém, cada obstrução faz com que Leth se supere, criando um novo filme. No caso, a obstrução não é apenas um dispositivo, pois, além de ser uma estratégia narrativa, possui a função dramática de um terceiro personagem, ao lado de Von Trier e Leth. Ela é intermediária na relação entre os dois cineastas, expondo ao espectador suas tensões, irritação e admiração. Outro exemplo de estratégia narrativa construída por meio de um dispositivo é encontrada no documentário Jogo de cena (2007), de Eduardo Coutinho: cada depoimento foi colhido segundo regras criadas pelo realizador e o resultado do trabalho está nas situações geradas por essa estratégia. Porém, da mesma maneira que um dispositivo pode ser aplicado para causar um determinado impacto, ele pode também ser utilizado com a finalidade oposta, amenizar impactos, como, por exemplo, aquele gerado por uma situação de filmagem. O Cinema Direto americano obedeceu a regras rígidas com essa finalidade. Por meio delas, pretendeu chegar o mais perto possível do registro de um momento “real”, permitindo que uma situação e seus personagens seguissem seu curso como se a equipe de filmagem não estivesse presente. A não interferência dos realizadores, a câmera invisível (ou quase), os planos longos e de observação, a proibição do uso de trilha musical, narração ou voice‐over estão entre algumas regras do Cinema Direto. Apesar da situação de um documentário do Cinema Direto acontecer independentemente de um dispositivo, o resultado dessa não interferência é tão determinante sobre o resultado do trabalho quanto a interferência do dispositivo de Coutinho em Jogo de Cena. Pois, se a ação se desenrolaria independentemente da presença da equipe de filmagem, ela se desenrolaria de outra maneira. Contudo, apesar de todo esse cuidado estratégico na captura de um momento “real”, não seria correto dizer que os documentários de Albert e David Maysles, Robert Drew, Frederick Wiseman, D. A. Pennebaker e Richard Leacock sejam desprovidos de 20 teor poético. Como no caso de Vertov, a imanência poética do cinema documentário parece não poder ser brecada por teorias sobre a realidade, uma noção de verdade ou dispositivos. Faz‐se viva e presente não naquilo que é real ou encenado, mas naquilo que o documentário torna visível ao espectador, da articulação de imagens e sons às emoções.

1.4. A reinvenção do documentário

O compromisso do cinema de ficção com a necessidade de êxito comercial aliado ao pouco caso com relação ao cinema documentário por parte de redes de televisão e distribuidores de filmes talvez tenha dado tempo ao documentário de incubar a sua espontânea reinvenção. Transformações conceituais, assim como o advento de novas mídias e meios, como o DVD e a internet, esfumaçaram a noção de filme de arte e filme comercial. O cinema de ficção busca, há anos, maneiras de recuperar seu público e prestígio, propondo alternativas por vezes artificiais, que denotam uma maior preocupação com sua sobrevivência imediata do que com a qualidade da linguagem cinematográfica. Filmes interativos e fórmulas cinematográficas moldadas por formatos oriundos da internet tendem a surtir interesse por um tempo limitado, ou até aparecer outra ferramenta que represente, mais uma vez, a possibilidade de “modernização” do cinema. A busca pela inovação da linguagem cinematográfica de ficção tem raízes na necessidade de resgate de um prestígio do passado. Cria‐se, assim, um impasse: Por um lado, olha‐se para trás, e, por outro, projeta‐se um futuro onde é negado ao cinema de ficção o direito de permanecer fiel a abordagens tradicionais que ainda são capazes de narrar uma história de maneira eficaz. Essa dicotomia dificulta a criação de uma linguagem audiovisual coesa, direcionada e genuinamente inovadora. Na sua busca por novas linguagens, o cinema de ficção tem lançado mão de diversos recursos, como sofisticados efeitos visuais e sonoros. Por outro lado, não deixou de lado a prática de recorrer ao documentário, inserindo material documental em meio às sequências encenadas. Esse fenômeno não é recente, assim como filmes de ficção inspirados em documentários, como são os casos de Socorro Nobre (1995) e 21

Central do Brasil (1998), de Walter Salles, e Edifício Martinelli (1975) e Sábado (1995) de Ugo Giorgetti. Ônibus 174 (2002) de José Padilha deu origem à ficção de Bruno Barreto, Última parada 174 (2008). Werner Herzog ficcionalizou seu documentário O pequeno Dieter quer voar (1998), realizando O sobrevivente (2006). Essa tendência tem dado sinais de que está crescendo: nos últimos anos – ou desde a realização de filmes como Duas ou três coisas que sei dela (1967) de Jean‐Luc Godard –, afirma‐se no panorama da produção cinematográfica mundial um gênero em que o grau de imbricamento entre material documental e ficcional é tão estreito que acena para um novo tipo de linguagem audiovisual. É o caso de Documentiroso (1980), de Agnès Varda, Caro Diário (1993) e Abril (1998), de Nanni Moretti, Irmãs jamais (2010), de Marco Bellocchio, e Isto não é um filme (2011), de Jafar Panahi (com a colaboração de Mojtaba Mirtahmasb). Enquanto isso, o documentário que não segue o modelo de programa jornalístico ou didático permanece ignorado pela televisão, e o documentário que não apresenta uma narrativa histórica – ou biográfica – tem dificuldade de encontrar espaço nas salas de cinema. No entanto, em vez de obrigar‐se a mudar para agradar, esses documentários simplesmente migraram para as galerias de arte, museus e instituições culturais. Esse êxodo não lhes valeu um reconhecimento de massa, nem financeiro. No entanto, agregou valor ao gênero, municiando o documentário poético para ensaiar sua entrada em festivais de cinema, fazendo, assim, o caminho de volta para aquele que se supõe ser seu ponto de origem: o cinema e a televisão.6 Chris Marker, autor de obras como Sans soleil (1983) e La Jetée (1962) ampliou o horizonte da exploração de possibilidades poéticas do som e da imagem. La Jetée é uma ficção científica feita a partir de uma montagem de fotografias. Werner Herzog se refere ao seu documentário Além do azul selvagem (2005) como “fantasia em ficção científica”. Posto que ficção científica é uma narrativa sobre algo que ainda não aconteceu, o termo parece conter um pleonasmo. Ou não, se aceitarmos não ser a comprovação dos dados científicos utilizados no filme, a maior preocupação do diretor

6 No 16o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade de 2011, o júri da mostra competitiva de longas‐metragens brasileiros atribuiu a Menção Honrosa ao documentário Aterro do Flamengo (2010), de Alessandra Bergamaschi. O documentário segue uma linha de trabalho que Bergamaschi vem desenvolvendo há anos, no âmbito das artes visuais. A premiação do trabalho aponta para uma ampliação do horizonte na produção de cinema documentário em meios de difusão e divulgação que não são marginais, tampouco exclusivamente inerentes às artes visuais. 22 ao construir sua fábula. O filme Além do azul selvagem será abordado no decorrer deste estudo. Por hora, noto apenas que o filme de Marker pode fazer jus à definição de Herzog, uma fantasia em ficção científica, ou seja, uma dupla invenção, na medida em que o aspecto científico também está sujeito à intenção e intervenção poéticas do realizador. Mas não é só a arte e a poesia que estão à escuta da ciência. Inversamente, a ciência também pode estar à escuta da arte e da poesia, como aponta Patrick Wilcken no livro Claude Lévi‐Strauss – O poeta no laboratório (2011). Nele, é abordada a vocação artística de Lévi‐Strauss na juventude e o olhar lírico que essa vocação imprimiu em seu trabalho como etnólogo ao longo da vida, notadamente nas fotografias que fez de índios bororos e caduveus. Essa possibilidade poética na ciência corrobora a visão de Bachelard sobre a necessidade de porosidade e diversidade para a criação de uma poesia una:

Comment entrer dans la poético‐sphère de notre temps? Une ère d’imagination libre vient de s´ouvrir. De toute part, les images envahissent les airs, vont d´un monde à l´autre, appellent et l´oreille et les yeux à des rêves agrandis. [...] Les âges poétiques s’unissent dans une mémoire vivante. Le nouvel âge réveille l’ancien. L’ancien âge vient revivre dans le nouveau. Jamais la poésie n´est aussi une que lorsqu´elle se diversifie. (BACHELARD, 2009: 23) 7

Construções narrativas experimentais de intenção poética, como os filmes de Marker e a trilogia de Godfrey Reggio, Koyaanisqatsi, vida fora de equilíbrio (1982), Powaqatsi, vida em transformação (1988) e Naqoyqatsi, vida como guerra (2002), aproximam o cinema documentário das artes visuais. Se pensarmos nos filmes que Andy Warhol realizou na década de 1960, surge a pergunta: É possível afirmar que Chris Marker é cineasta documentarista e Andy Warhol artista visual, ou vice‐versa? Não seriam ambos, as duas coisas? A pergunta pode ser feita com relação a trabalhos mais recentes, como no caso de Shirin Neshat e Bill Viola, cuja produção evoca o espírito experimental dos ensaios

7 Como entrar na poético‐esfera de nosso tempo? Uma era de imaginação livre acaba de se abrir. De todas as partes, as imagens invadem os ares, vão de um mundo para outro, chamam os ouvidos e os olhos para sonhos ampliados. [...] As idades poéticas se unem dentro de uma memória viva. O novo tempo desperta o antigo. A idade antiga vem reviver dentro da nova. Nunca a poesia é tão una como quando ela se diversifica. (Tradução nossa) 23 fílmicos de Joris Ivens e Maya Deren. A multiplicidade de perspectivas se afirma na segunda metade do século XX, engendrando novas técnicas e conceitos no fazer artístico. Assistimos à proliferação de obras multimeios, que frequentemente recorrem a suportes audiovisuais: Essas ramificações e sobreposições técnicas e conceituais têm contribuído para fomentar a produção de documentários poéticos. Foram mencionados apenas alguns realizadores que pensam filmicamente por meio de imagens e cuja obra transcendeu o filme em si, expandindo as possibilidades nos processos criativos em cinema documentário, e, consequentemente seus resultados. Devido a essa expansão, tal como na ficção os limites entre cinema de arte e cinema comercial têm se diluído, não seria despropositado imaginar que tendem a aumentar as áreas de interseção entre o documentário poético e o documentário mais estreitamente vinculado aos fatos. Duas últimas perguntas antes de se seguir adiante: no documentário No Além do azul selvagem com Werner Herzog (2006), extra do DVD do filme Além do azul selvagem, o diretor afirma que filmes pertencem às salas de cinema, e não a outros meios de veiculação e difusão, como o computador ou o i‐Phone. Poderia essa afirmação significar que o local onde um filme é projetado pode servir de parâmetro para defini‐lo como cinema ou arte visual? O conceito que articula projeção e espaço é desenvolvida por Roberto Moreira Cruz:

É cada vez mais frequente a presença de uma situação cinematográfica em espaços distintos ao da sala de cinema. Nos circuitos demarcados por museus, galerias, mostras de arte contemporêneas e centros dedicados à artemídia, o público encontra o que pode ser considerada uma tendência nos modos de exibir obras audiovisuais. O chamado cubo branco tradicional se transforma em caixa‐preta. O espaço da exposição transforma‐se em espaço da projeção. O cinema se instala no museu e as imagens projetadas nestes ambientes sugerem modos originais de elaborar e compreender as narrativas propostas nestas circunstâncias. (2010: 6)

Ao pensarmos na relação entre filme e espaço, torna‐se inevitável ponderar a relação entre filme e realizador: na medida em que, diante das transformações do gênero, o termo “documentário” (aparentado à palavra “documento”) tem sido colocado em questão, não seria natural colocar em questão também a intenção de quem realiza um documentário ou faz videoarte? Diante da dificuldade crescente de se definir o gênero (documentário, documentário poético, ensaio fílmico, filme‐ensaio, 24 fantasia em ficção científica, videoarte, etc.), uma única certeza aparece com relação à produção desses filmes e os reúne sob uma mesma égide: a experiência poética na produção audiovisual. Nos capítulos seguintes, a fim de se desenvolver a questão do documentário como experiência poética, serão comentados três documentários de Werner Herzog: Fata Morgana (1971), Lições da escuridão (1992) e Além do azul selvagem. No contexto deste estudo, esses filmes foram escolhidos para compor uma trilogia poética do diretor e serão estudados não apenas sob o aspecto técnico, mas também sob o sensível, não raro, indissociáveis. Esclareço que antes de escolher os documentários, escolhi o diretor. Em primeiro lugar, por acompanhar a produção cinematográfica de Werner Herzog há anos. E, não menos importante, por sua postura independente e transgressora, notadamente quando se recusa a fazer qualquer distinção entre seus filmes de ficção e seus documentários: “Não faço documentários, não senhor!” 8. Pergunto, então, o que faz Werner Herzog? A seguir, demonstrarei que Werner Herzog faz poesia audiovisual.

8 Informação verbal a partir do documentário No Além do azul selvagem com Werner Herzog, Michael Basden, 2006.

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CAPÍTULO 2. WERNER HERZOG, POETA AUDIOVISUAL

O cinema está muito mais próximo da poesia e da música que o teatro. (Werner Herzog)

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2.1. Um epicentro poético

A afirmação de Herzog na epígrafe deste capítulo, feita durante o seminário Werner Herzog Rogue Film School, em Londres, em março de 2011, se refere a uma relação antiga. Herzog publicou uma coletânea de dez poemas (Zehn Gedichte) no no 3 da revista literária Akzenten, em 1978. Os poemas estão transcritos integralmente na dissertação de mestrado de Lúcia Nagib, Werner Herzog: O cinema como realidade, cinco deles com tradução da autora para o português9. Não cabe aqui avaliar o realizador na competência de poeta literário. O escopo, no caso deste estudo, é a atuação de Herzog como poeta audiovisual. Contudo, essa pequena coletânea aponta para o epicentro da produção cinematográfica herzoguiana: a poesia. Fazendo filmes desde 1962, Herzog foi parte da geração que, amadrinhada pela teórica de cinema Lotte Eisner10, deu origem ao Novo Cinema Alemão depois do silêncio do pós‐guerra que calou a produção cinematográfica alemã por mais de uma década. Mesmo se nunca chegou a ser considerado um cineasta comercial ou mainstream, Herzog transpôs, nos anos de 1960, a barreira que o manteve ao largo do reconhecimento público ao realizar O enigma de Kaspar Hauser (1974), Coração de cristal (1976) e Nosferatu, fantasma da noite (1978). É importante ressaltar que a crítica e o público alemães sempre foram mais refratários ao trabalho do diretor do que seus pares estrangeiros, fazendo com que o reconhecimento por seu trabalho ocoresse em primeiro lugar fora da Alemanha. Aos trinta e seis anos, Herzog provavelmente não pretendia afirmar‐se como poeta literário ou abandonar o cinema pela poesia. Mas, ao expor‐se como poeta em uma publicação especializada, deixa claro a importância que confere ao exercício poético. Desde 2010, Herzog ministra seminários em sua escola itinerante de cinema, a Werner Herzog Rogue Film School. Durante o seminário de Londres, em março de 2011

9 NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: o cinema como realidade, p. 297‐311. 10 Lotte Eisner foi crítica de cinema, historiadora, escritora e poeta. Nascida em Berlim, fugiu para a França em 1933 com a ameaça nazista que começava se configurar na Alemanha. Conheceu Eisenstein e Meliès. Foi importante colaboradora de Henri Langlois e cofundadora da Cinémathèque Française, onde trabalhou como arquivista chefe de 1945 a 1975, quando se aposentou. Amiga do então jovem Werner Herzog, ela o incentivou a persistir na carreira cinematográfica quando este se abateu diante da falta de reconhecimento público. O cineasta fala sobre essa amizade no livro de sua autoria, Caminhando no gelo (1974).

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– do qual participei –, ao falar sobre a proximidade do cinema e da poesia, o diretor mencionou como exemplos do vínculo entre cinema e poesia os diretores Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini que, além da produção filmográfica, têm também uma produção literária, notadamente poética. A poesia que perpassa os filmes de Herzog não está contida na palavra. Os documentários poéticos, ou ensaios fílmicos do diretor, encontram ressonância na obra Richard Wagner e no conceito de Gesamtkunstwerk, ou obra de arte total, ou ainda, obra de arte ideal ou universal. Wagner pretendeu unificar todas as formas de arte por meio do teatro e consagrou quase três décadas de sua vida à criação das quatro óperas que compõem a tetralogia O Anel dos Nibelungos11. Em obras como Fata Morgana, Lições da escuridão e Além do azul selvagem, Herzog reúne pintura, música, literatura, atuação dramática (do narrador, dos personagens humanos e elementos da natureza), e coreografa os movimentos da câmera por meio de um filme. Contudo, não se trata de fazer um filme nos moldes de uma ópera, empreitada que Herzog considera fadada ao fracasso, como explica em depoimento para Emmanuel Burdeau (AUBRON; BURDEAU, 2008: 32), mas da aproximação de processos de criação distintos – ópera e cinema documentário –, regidos, no caso, por intenções parecidas. Tanto na obra de Wagner como na de Herzog, o cimento dessas complexas construções é a poesia, que lhes confere uma unidade poética, e no bojo da qual se fundem diferentes formas de expressão artística. A afirmação de que o cinema está mais próximo da poesia e da música do que o teatro alude à intangibilidade da música e do filme que, a não ser pela película – que representa o filme fisicamente, e não o essencial dele, a projeção de imagens que compõem uma história – é luz, fugacidade e ilusão. Desde o surgimento dos meios eletrônicos de produção audiovisual, analógicos e depois digitais, a intangibilidade de um filme só se fez aumentar. No ano de 2011, uma grande quantidade de filmes sequer recorre ao suporte da película de celuloide: são inteiramente gravados em cartões digitais ou outros dispositivos semelhantes, e, em seguida, armazenados em computadores e discos duros externos. Podem ser transmitidos por projetores digitais,

11 Tetralogia musical composta por Richard Wagner, entre 1848 e 1874. Integram a tetralogia as óperas: O ouro do Reno, A Valquíria, Sigfried e O crepúsculo dos deuses. 28 satélites ou fibras óticas. O filme torna‐se, assim, uma sequência numérica, um código, um arquivo virtual de imagens e sons digitalizados. Enquanto no teatro, há – como sempre houve – a materialidade da presença física dos atores e do espaço cênico, o filme, desencarnado, torna‐se parente próximo da poesia, tão fugaz e imaterial quanto ela. No entanto, é preciso atentar para não confundir o meio, seja ele película, eletrônico analógico ou digital, com a criação poética propriamente dita. Assim como a poesia escrita não nasce do lápis ou do papel, mas do pensamento e sensibilidade humanas, a poesia audiovisual não é fruto da câmera ou de um disco duro. Por mais que o meio incida sobre a forma final do produto, o motor do exercício poético está na tentativa de capturar um sentimento ou uma emoção que talvez não dure mais que um átimo. Vale retomar a menção sobre a poesia como mentira ou fingimento, segundo Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor./Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente”. Isto porque, ainda segundo Pessoa, quando o poeta escreve sobre um sentimento, ao racionalizá‐lo por meio da ordenação das palavras, já deixou de senti‐lo. Podemos, então, dizer que o sucesso do resultado do exercício poético pode ser medido pela capacidade de um poema a respeito de um sentimento que não mais existe no poeta, suscitar um ressurgimento desse mesmo sentimento, dessa vez no leitor. O mesmo princípio lógico pode ser aplicado à realização de um documentário de poético. Os sentimentos que tomaram conta de Herzog no deserto do Saara ou no Kuwait passaram por um processo de ordenação poética por meio de imagens, sons e palavras, e encontraram sua forma de expressão final durante a montagem do filme. Em seguida, foram compartilhados com os espectadores. Isto faz de Werner Herzog um fingidor à maneira de Pessoa e, como veremos, não somente pelo viés de um silogismo, um poeta audiovisual. Mas o logro não conta apenas com o poeta‐cineasta. O espectador também colabora para a criação de um estado imaginado e imaginário. Ao refutar a equiparação entre a situação fílmica e a onírica, Christian Metz afirma:

O sonhador não sabe que sonha, o espectador do filme sabe que está no cinema: é esta a primeira e principal diferença entre situação fílmica e situação onírica. Fala‐se por vezes de impressão de realidade em relação a 29

ambas, mas a verdadeira ilusão é característica do sonho e apenas dele. Para o cinema é melhor limitarmo‐nos a notar a existência duma certa impressão de realidade. (METZ, 1980: 105, grifo do autor)

A colocação de Metz talvez esteja mais fundamentada sobre preceitos psicanalíticos do que poéticos, e é rebatida por Arlindo Machado de uma perspectiva que responde aos propósitos deste estudo:

Tudo muito sensato de bem colocado, Mas dizer sumariamente que o espectador “sabe” que está diante de um filme, que ele jamais alucina as imagens a ponto de imaginá‐las dotadas de realidade, nada disso explica o desejo de ir e de estar no cinema. Se a regressão vivida pelo espectador na sala de projeção é consentida e desejada, se é ele próprio quem escolhe colocar o mundo entre parênteses para viver uma experiência imaginária, isso só ocorre porque ele busca no cinema algo mais que a mera consciência do processo. Justamente porque o indivíduo sabe de antemão que o que se passa na tela é objeto ausente e que, portanto, ele pode viver suas emoções sem riscos de qualquer espécie, porque, ainda, tudo não passa, no fim das contas, de um “sonho”, é que ele pode precisamente alucinar as imagens e vivê‐las com a intensidade de um acontecimento real. Isso é precisamente o que o mobiliza ao cinema e explica a sua entrega resoluta ao artifício do filme. (MACHADO, 2002: 51)

A partir do eixo poético da obra de Werner Herzog, declinam‐se três áreas de construção narrativa: a música e a palavra (som), os personagens, tanto humanos quanto elementos da paisagem ou a própria paisagem (imagem), e a montagem (articulação som‐imagem). Essas três aéreas resultam no poema audiovidual herzoguiano, ou Gesamtkunswerk audiovisual. Cada uma dessas áreas será abordada a seguir.

2.2. O êxtase da música e da palavra

Werner Herzog se refere em vários depoimentos e textos ao “êxtase da verdade”. Esse conceito diz respeito a uma verdade que, como ele diz, é inimiga daquilo que é meramente factual.12 Ao realizar um documentário como Lições da escuridão, o objetivo é alcançar esse êxtase, elevando o espectador a um nível mais

12 Palestra dada por Werner Herzog em Milão, depois da projeção de Lições da escuridão. Traduzida e transcrita no jornal da Universidade de Boston, Arion, vol. 17.3, na edição do inverno de 2010. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2011. 30 alto de compreensão sensível sobre um determinado assunto. É o que Herzog chama de estado de sublimidade (Erhabenheit), e do qual nasce uma verdade extática, mais verdadeira do que a verdade dos fatos. O primeiro alicerce para a construção dessa verdade poética é a construção narrativa que conjuga a música e a palavra. Esses dois elementos compõem o som do documentário. Estão presentes na obra documental de Herzog: o comentário narrativo dramático (formado por textos literários, religiosos, mitológicos, fábulas e letras de músicas); depoimentos em diversas línguas (raramente legendados, são contados ao espectador pelo narrador); a música; os sons do ambiente e efeitos sonoros. Herzog diz ser um colecionador de sons13. Costuma jogar fora os negativos do material bruto de seus filmes seis meses depois de o filme ser lançado em salas de cinema, mas guarda o som. Além da importância que atribui ao som, ele afirma que armazenar som é mais fácil e barato do que armazenar filme. Esse acervo é o que ele chama de “uma cornucópia de sons”, e inclui o som ambiente que grava depois de terminada a filmagem de uma tomada. É o que ele chama de cut and freeze, ou, “corta e congela”. O som ambiente é gravado depois dessa ordem. Esses sons não constituem apenas um arquivo morto. Ao contrário, é por meio deles que Herzog diz trazer vida para seus filmes. Quanto à música, ela tem um papel fundamental na obra do diretor, e, em especial, nos três documentários deste estudo. Nunca é utilizada para ilustrar ou “vestir” uma imagem. Para muitos realizadores, a música é um pano de fundo, uma ferramenta para manipular a intensidade das emoções, ou apontar para o espectador o que ele deve sentir em determinado momento do filme. No caso de Herzog, a música exerce uma função narrativa, com status de personagem, e contribui dramaticamente, contracenando de igual para igual com outros elementos do filme, de atores a elementos da natureza. Podemos citar outros exemplos, como Alfred Hitchcock, que encontrou em Bernard Herrmann um compositor que ajudava a construir o suspense de seus filmes musicalmente. Ou a música de Nino Rota que imprimiu um caráter dramático e identidade própria às imagens de Federico Fellini. Quantas vezes não reconhecemos

13 Informação verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março de 2011. 31 um filme de Fellini pela música antes da imagem? Steven Spielberg afirmou certa vez que quem fizera a bicicleta voar em E.T., o extraterreste (1982) não fora ele, mas o compositor da trilha musical do filme, John Williams. Outros diretores, como Martin Scorsese e Spike Lee, lançam mão de um repertório musical pré‐existente, o qual será incorporado ao roteiro do filme de um ponto de vista dramático. Foi mencionada a cornucópia de sons de Werner Herzog. Diante das obras estudadas, podemos falar também em uma cornucópia musical. Se, no caso de músicas pré‐existentes, Scorsese e Lee utilizam um repertório majoritariamente de jazz e rock’n’roll, Herzog costuma dar preferência a um repertório erudito. Mas não descarta músicas populares pertencentes ao folclore de determinadas culturas, como, por exemplo, polifonias sardas no documentário O diamante branco (2004) e em Além do azul selvagem. Ou, então, os cantos siberianos tuva que ouvimos em Sinos da profundeza – Fé e superstição na Rússia (2005). Herzog também conta com a colaboração de músicos que compõem trilhas originais para seus filmes. Uma das parcerias mais longevas se deu com Florian Fricke, líder do grupo de rock progressivo alemão Popol Vuh, nos anos de 1970 e 1980. Recentemente, encontrou no compositor Ernst Reijseger um interlocutor musical para suas imagens: Reijseger compôs a trilha original dos documentários Além do azul selvagem, O diamante branco, Caverna dos sonhos perdidos (2010), e de filmes de ficção também. A música se faz presente na filmografia do diretor de duas maneiras: como trilha e como tema de documentários. Herzog dirigiu documentários sobre música, como A transformação do mundo em música (1994), Morte a cinco vozes (1995) e o registro documental de La Bohème, no Festival de Bayreuth (2009). Nos documentários estudados, não há diálogos entre personagens humanos. Isto quer dizer que não há diálogos em linguagem falada, o que não significa que não haja diálogos. Há um diálogo contínuo entre música e palavra. No caso de Além do azul selvagem, a montagem das imagens e do texto de se deu a partir da música, composta antes da realização do filme. Em Lições da escuridão e Fata Morgana aconteceu o oposto: antes foram filmadas as imagens, e depois foram elaborados o texto e a trilha musical. Portanto, existe a possibilidade de intercâmbio entre imagem e som no contexto do processo criativo, mas não entre música e palavra, pois esse intercâmbio 32 representaria a interrupção – ou impossibilidade – do principal diálogo do filme, que se dá entre música e palavra. Em Fata Morgana, são utilizadas músicas eruditas e populares, como trechos de composições da banda inglesa de rock progressivo Blind Faith, de Steve Winwood, e do grupo de música experimental The Third Ear. Contudo, é notável a presença musical de Leonard Cohen. Herzog escolheu três músicas do compositor (não por acaso considerado um poeta além de compositor), que se tornaram clássicos da música popular da década de 1960: Hey, that’s no way to say good‐bye, Suzanne e So long, Marianne. A importância das músicas de Cohen no contexto do filme reside no fato de elas terem se tornado inseparáveis das imagens. Por esse motivo, estão entre as sequências de maior carga dramática. Assim como Stanley Kubrick associou para sempre Assim falou Zarathustra, de Richard Strauss, às imagens que criou do espaço em 2001 ‐ Uma Odisseia no Espaço (1968), Herzog funde imagens e música de maneira que o espectador não conseguirá mais pensar nas imagens sem aquela que se tornou sua parceira mais natural, a música. Não se pode ignorar o fato de que Herzog dirige óperas desde 1986, tendo até mesmo dirigido Tannhäuser no Brasil em 2001, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Portanto, seu vínculo com a música é estreito. Municiado por esse conhecimento, Herzog aplica recursos dramáticos musicais aos filmes que faz. De Sea of Joy, de Winwood, apenas a parte instrumental é utilizada. Os versos iniciais da composição (“Sigo sombras no céu /Ou serão apenas ilusões dos meus olhos?”) sugerem um estado de espírito com imagens imaginadas que estão muito próximas das imagens do documentário. Esse fato torna impossível a antinomia que Herzog busca na montagem do filme. A combinação fácil, ilustrativa, corre o risco de esvaziar o conteúdo da imagem. Herzog opta por dar voz a Leonard Cohen, que canta‐ fala de amor em plena desolação do deserto, criando uma alquimia antinômica entre imagem e som, melancolia e beleza. São as imagens sonoras a que se refere Gillo Pontecorvo, ao falar sobre a importância da música dentro de um filme, diferenciando imagens visuais e imagens sonoras14. Imagens sonoras são um canal ampliado de

14 Informação verbal a partir do depoimento de Gillo Pontecorvo, extra do DVD do filme A Batalha da Argélia, 1965. 33 comunicação sensível com o espectador, que passa a perceber e absorver o que vê e ouve, não pelo viés intelectual, mas sensorial. Existe uma transição musical de Fata Morgana para Lições da escuridão: as Lições de Tenébras de François Couperin, utilizadas na trilha musical de Fata Morgana inspirarão, duas décadas mais tarde, o título do documentário, Lições da escuridão, e darão o tom místico e fúnebre que perpassa o filme. No entanto, passando mais uma vez ao largo de qualquer associação ilustrativa e esquemática, a música de Couperin não fará parte da trilha musical de Lições da escuridão. A trilha musical de Lições da escuridão representa a uma rica cornucópia musical. É formada por trechos das seguintes obras: Edvard Grieg e Peer Gynt, A Morte de Aase; Gustav Mahler, Sinfonia nº 2; Arvo Pärt, Stabat Mater; Sergei Prokofieff, Sonata nº2, opus 56; Franz Schubert, Noturno, opus 148; Giuseppe Verdi, Requiem – Recordare; da tetralogia O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner: O ouro do Reno, a Marcha Fúnebre de Siegfried, de O crepúsculo dos deuses, além do prelúdio de Parsifal. Vários trechos de óperas, sinfonias, noturnos e sonatas têm como denominador comum o tom fúnebre e místico, e o tema da dor ou da morte (Réquiem, de Verdi, a Marcha Fúnebre de Siegfried, de Wagner, A Morte de Aase, de Grieg, e Stabat Mater, de Pärt). A música acentua a dimensão apocalíptica ao filme. Tal efeito foi também logrado por Francis Ford Coppola em Apocalypse Now (1979), na sequência em que helicópteros do exército americano bombardeiam um pacato vilarejo vietnamita ao som de Cavalgada das Valquírias, que integra A Valquíria, que, por sua vez, é a segunda ópera da tetralogia O Anel dos Nibelungos. Há também a coincidência do ponto de vista da câmera: em ambos os filmes, a música de Wagner é articulada com planos aéreos, conferindo à narrativa a perspectiva de ira divina que se abate sobre seres indefesos. A dramaticidade sonora de Lições da escuridão também é construída com o som da água e do fogo. Esses sons são, na realidade, efeitos sonoros criados na pós‐ produção do documentário15. São violentos, fortes e dramáticos, pois oriundos do fogo e da água antropomorfizados no contexto da narrativa. A água não escorre

15 Ver depoimento de Rainer Standke, no Apêndice. 34 docilmente, mas jorra com força, como um lutador em posição de ataque que enfrenta o fogo, que revida com movimentos bruscos e traiçoeiros, emitindo sons profundos e inquietantes. O fogo é um elemento onipresente em O Anel dos Nibelungos e também no documentário de Herzog. A simbologia associada a ele pode ser compreendida à luz do conceito de Gaston Bachelard:

Le feu et la chaleur fournissent des moyens d´explication dans les domaines les plus variés parce qu´ils sont pour nous l´occasion de souvenirs impérissables, d´expériences personnelles simples et décisives. Le feu est ainsi un phénomène privilégié qui peut tout expliquer. [...] Le feu est l’ultra‐ vivant. Le feu est intime et il est universel. Il vit dans notre cœur. Il vit dans le ciel. Il monte des profondeurs de la substance et s´offre comme un amour. Il redescend dans la matière et se cache, latent, contenu comme la haine et la vengeance. 16 (BACHELARD, 1985: 19)

Para Bachelard, o fogo é o início do devaneio, pois é ao observar o fogo que começamos a sonhar. O fogo é mutável, pode assumir várias formas: pode ser acolhedor ou brutal, ser a vida ou a morte. O fogo simboliza o amor romântico, o sonho, a luta, a conquista, a purificação. No caso, o fogo e sua simbologia são citados no contexto da trilha sonora por sua associação com a obra de Richard Wagner. Mas aspectos simbólicos associados ao fogo são encontrados em outras camadas de interpretação de Lições da escuridão. Por exemplo, a simbologia do fogo está presente na noção de ciclo ou recomeço presente na obra de Herzog, e que encontramos na afirmação de Bachelard sobre o fogo que sobe das profundezes até o céu para tornar a descer. Há um paralelo entre Bachelard e a trilogia poética de documentários: o caminho que sobe até o céu, até o espaço, para depois descer ao fundo do oceano. É a busca vertical de Herzog que, sem encontrar um fim, acaba por virar um círculo. Como foi citado, em Além do azul selvagem Herzog pediu a Ernst Reijseger para compor a música antes de ter as imagens. Reijseger trabalhou com o cantor senegalês

16 O fogo e o calor fornecem meios de explicação nos domínios mais variados porque são, para nós, a ocasião de lembranças imperecíveis, de experiências pessoais simples e decisivas. O fogo é, assim, um fenômeno privilegiado capaz de explicar tudo. [...] O fogo é o ultravivo. O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e se oferece como um amor. Torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança.(Trad. Paulo Neves, 1999).

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Molla Sylla, a cantora mexicana Dora Juárez e o grupo de cantores da Sardenha, o Cuncordu e Tenore de Orosei. As músicas compostas por Reijseger são: Bad news from outer space, Kyrie, Rosa, Andromeda, Liberame Domine, Last breath, Conversation, Song of the desert, Do you still…?, Santus, S´Andira. Somam‐se às composições de Reijseger obras de George Friedrich Händel, Dank sei Dir Herr, Arioso da Cantata con strumenti e Ombra mai fu, de Xerxes. Ao comentar a música de Além do azul selvagem, Herzog diz que já tinha música em mente no contexto do filme: “Eu queria gravar a música antes [de fazer o filme], porque que eu via algo como um grande oratório no espaço, um réquiem no espaço.”17 . No documentário de Nicholas McClintock, Réquiem no espaço – Werner e Ernst fazem música (2005), é visível a participação de Herzog no processo de criação da trilha musical. Ela tem início desde a escolha deliberada do diretor por músicos de culturas diferentes para compor um grupo musical que só se reunirá em função do filme. A intenção é trazer para a música elementos culturais que se misturam musicalmente, conferindo uma qualidade universal no som que será criado. Essa universalidade é necessária ao filme, pois torna possível a perspectiva extraterrestre que enfoca a humanidade como um todo no planeta, que é visto e comentado por um alienígena. Herzog, de certa forma, dirige as gravações. Não dá instruções musicais, pois estas estão a cargo de Reijseger, mas orienta os cantores sobre o espírito que procura para a música e que deverá estar presente no filme: quer mostrar musicalmente a sensação de flutuar e a tristeza daquele que paira a esmo no espaço à procura de uma estrela ou de um planeta para viver, pois não pode mais voltar para casa, tampouco pode ficar no planeta que encontrou, pois o mesmo foi arrasado. O alienígena de Herzog possui um sentimento de Sehnsucht característico do movimento romântico alemão, uma melancolia, ou banzo interstelar. Ainda sem um filme realizado e em meio a músicos, Herzog afirma representar o filme no estúdio de gravação. Quanto à palavra, ela aparece escrita – como no caso da epígrafe de Lições da escuridão e dos títulos dos blocos dos três documentários – mas é essencialmente falada (narração dramática) ou cantada, utilizada tanto por seu significado como por

17 Informação verbal obtida no documentário Réquiem no espaço – Werner e Reijseger fazem música, Nicholas McClintock, 2005. 36 sua sonoridade. Existe, nessa construção, uma busca por uma imagem poética segundo a concepção de Bachelard, quando ele aborda a questão da psicologia do maravilhamento:

A l´émerveillement s´ajoute en poésie la joie de parler. Il faut la prendre, cette joie, dans son absolue positivité. [...] L´image poétique éclaire d´une telle lumière la conscience, qu´il est bien vain de lui chercher des antécédents inconscients. [...] La poésie est un des destins de la parole. En essayant d´affiner la prise de conscience du langage au niveau des poèmes, nous gagnons l´impression que nous touchons l´homme de la parole nouvelle, d´une parole qui ne se borne pas à exprimer des idées ou des sensations, mais qui tente d´avoir un avenir. On dirait que l´image poétique, dans sa nouveauté, ouvre un avenir du langage. (BACHELARD, 2009: 3) 18

A epígrafe de Lições da escuridão atribuída à Blaise Pascal e de autoria de Herzog, estabelece um estado acima da mera verdade dos fatos. Fica estabelecido, desde o início do filme, que a palavra não se submete necessariamente a uma verdade etimológica, nem as frases a uma articulação lógica. A verdade da palavra está contida em outras camadas de significado que compreendem a cultura e as emoções, assim como seu som ou musicalidade. A música permite fundir som e palavra dramaticamente, como no caso da ópera. Herzog conta que, ao chegar ao estúdio para gravar com Ernst Reijseger, Mola Sylla lhe disse: “Não se preocupe, também sou poeta”19, e criou palavras para a melodia de Reijseger em wolof, um dos idiomas falados na África Ocidental. Essas palavras não foram traduzidas, nem receberam legendas. Os outros cantores também cantaram em suas línguas de origem – o dialeto sardo e o espanhol. As três línguas e as vozes se sobrepõem na melodia composta por Reijseger, se harmonizam e se integram em uma sonoridade una e única, comprovando a visão de Herzog que consiste em buscar a carga dramática no timbre da voz e na sonoridade da palavra, no lugar de

18 Em poesia, acrescenta‐se ao maravilhamento a alegria de falar. Essa alegria, cumpre apreendê‐la em sua absoluta positividade. [...] A imagem poética ilumina de tal maneira a consciência, que é vão buscar‐ lhe antecendentes inconscientes. [...] A poesia é um dos destinos da palavra. Ao tentar afinar a tomada de consciência da linguagem de poemas, adquirimos a impressão que tocamos o homem com a nova palavra, com uma palavra que não se limita a expressar idéias ou sensações, mas que tenta ter um futuro. Parece que a imagem poética, na sua novidade, descortina um futuro da linguagem. (Tradução nossa). 19 Informação verbal a partir do documentário No Além do azul selvagem com Werner Herzog, Michael Basden, 2006. 37 ater‐se ao seu significado etimológico. Além de atribuir uma qualidade narrativa ao som, Herzog descortina um estado de espírito por meio dele (palavra‐música), visando a criar uma tensão e um estado de atenção quase hipnótica no espectador. Som e palavra trabalham juntos, de maneira coordenada, coreografados pelo diretor. Ao falar da poesia da palavra, surge a questão do romantismo alemão e sua relação com a obra de Herzog. O diretor rechaça a associação entre seu cinema e o movimento romântico, com algumas exceções, como Friedrich Hölderlin na literatura, que não fez parte do grupo de românticos formado, dentre outros, por Novalis e pelos irmãos August e Friedrich Schlegel e que, de certa maneira, está mais próximo do classicismo tardio ou pré‐romantismo de Johann von Goethe e Friedrich Schiller. Na pintura, uma influência reconhecida pelo diretor é Caspar David Friedrich, que abordaremos mais adiante. Há um dado na biografia de Hölderlin que o aproxima dos personagens de Herzog: a loucura. Diagnosticado como hipocondríaco, foi em seguida decretado louco (diagnóstico contestado postumamente) e confinado em um quarto numa torre da cidade alemã de Tübingen, onde viveu por mais de trinta anos, até morrer. A convivência entre o saber e a loucura está presente na biografia pessoal de Herzog também: depois de uma carreira acadêmica, seu avô paterno tornou‐se arqueólogo. Anos mais tarde, enlouqueceria. Essa figura teve um grande impacto sobre o jovem Herzog, que só conviveu com o avô quando ele já se encontrava nesse estado. (HERZOG, CRONIN, 2002: 38‐39) É possível que Werner Herzog, de fato, não tenha particular apreço pelo romantismo, e que não sinta afinidade com aspectos do movimento que talvez lhe pareçam denotar afetação. No entanto, sua visão poética possui parentescos com a visão poética de românticos como Novalis. Na revista virtual francesa de crítica literária La Revue des Ressources (La RdR)20, Laurent Margantin afirma:

La poésie romantique se caractérise par le fait qu’elle reconnaît à la base de toute créativité romantique une capacité à mêler des éléments les plus divers, ou mieux: le génie de faire naître à partir de germes préexistants une nouvelle diversité qui sera perçue aussi bien comme une unité, puisque toute grande création a pour visée la régulation d’une diversité en un

20 La revue des sources. 15 jan. 2007. Disponível em: < http://www.larevuedesressources.org/spip.php?article684 >. Acesso em 7 set. 2011. 38

individu, l’œuvre. Celle‐ci est "hautement romantique" lorsque son exécution équivaut à l’intégration d’un très grand nombre d’éléments. Mais toute poésie n’est‐elle pas en vérité romantique puisqu’elle opère à partir d’une diversité? On peut seulement dire que profondément romantique est la poésie qui se sait potentialisation, qui se définit comme telle, poésie de la poésie, parole qui déploie l’infini à partir du fini, parole qui se fonde elle‐ même sur ce que Novalis appelle une "poétique de l’infini". (2007 : 1)21

Margantin cita Novalis em carta a August Schlegel,

Seul le poète peut célébrer les noces de l’esprit et de la nature, au travers de ce qu’on pourrait appeler une "infinitisation réciproque": l’infini de la nature (encore inconnu) ouvrant la poésie à son propre infini (également à explorer), et inversement. C’est seulement par ce jeu réglé entre deux mondes infinis (celui de la conscience poétique et celui de la nature) qu’apparaîtra, pour s’étendre éternellement, l’univers romantique. [...] La poésie est véritablement le réel absolu. Ceci est le noyau de ma philosophie. Plus poétique, d’autant plus vrai. (2007: 1)22

Margantin arremata: “É graças à poesia que podemos fazer a experiência positiva do caos.”23 (MARGANTIN, 2007: 1, tradução nossa). Portanto, a relação que me permito fazer entre a obra de Herzog e o romantismo alemão não é no sentido de uma incidência direta ou intencional de elementos desse movimento sobre seus filmes, mas do reconhecimento da herança cultural de um movimento cuja envergadura o torna incontornável, na medida em que, em determinado período, impregnou a cultura, a percepção da poesia e da criação artística alemãs, de um modo geral. O movimento romântico alemão – com suas raízes na estética e espírito místico gótico de elevação espiritual – pautou, no século XIX, as principais formas de expressão artística, como a literatura, a pintura e a música.

21 A poesia romântica se caracterisa pelo fato que ela reconhece na base de toda criatividade romântica uma capacidade de misturar os elementos mais diversos, ou melhor: a genialidade de fazer nascer a partir de germes pré‐existentes uma nova diversidade que será percebida também como uma unidade, na medida em que toda grande criação tem pour objetivo a regulamentarização da diversidade em um indivíduo, a obra. Esta é “altamente romântica” quando sua execução equivale à integração de um grande número de elementos. Mas não será, na verdade, toda poesia romântica à medida que se faz a partir de uma diversidade? Podemos dizer apenas que profundamente romântica é a poesia que se sabe potencialização, que se define como tal, poesia da poesia, palavra que escancara o infinito a partir do finito, palavra que se funda nela mesma, segundo o que Novalis chama de “poética do infinito”. (Tradução nossa) 22 A vasta esfera da poesia, do campo ilimitado de nossa imaginação, da imaterialidade (Geistgkeit) de suas imagens que podem avizinhar‐se em número e variedade sem perder seu brilho ou uma invadir a outra, como fariam os objetos e suas imagens materiais nos estreitos limites do espaço e do tempo. [...] A poesia é verdadeiramente o real absoluto. Este é o âmago de minha filosofia. Quanto mais poético, mais verdadeiro. (Tradução nossa) 23 No original: « C’est grâce à la poésie que nous pouvons faire l’expérience positive du chaos.» 39

Atravessou as fronteiras europeias e seu impacto sobre o pensamento e as artes se disseminou não só geográfica como temporalmente. Herzog talvez não seja um romântico na acepção do termo, mas a afirmação de Novalis “A poesia é verdadeiramente o real absoluto. [...] Quanto mais poético, mais verdadeiro” não nos convida a uma relação com o êxtase da verdade de que fala Herzog?

2. 3. Paisagens mentais e seus personagens

Werner Herzog afirma estar em constante busca de imagens. Todavia, não de imagens quaisquer. Ele procura imagens adequadas:

As a race we have become aware of certain dangers that surround us. We comprehend, for example, that nuclear power is a real danger to mankind, that over‐crowding of the planet is the greatest of all. We have understood that the destruction of the environment is another enormous danger. But I truly believe that the lack of adequate imagery is a danger of the same magnitude. It is as serious a defect as being without memory. (HERZOG; CRONIN, 2002: 66)24

Mas, o que são imagens adequadas? A inquietação contida na afirmação de Herzog tem uma fonte estética, epistemológica e ética. Esta última encontra em Amos Vogel25, um parâmetro. Sobre ele, Herzog declarou: “Amos Vogel é a consciência moral do mundo do cinema.”26 Intelectual da área de cinema, Vogel nunca fez distinção entre o cinema de experimentação e o cinema de massa. Acreditava na formação de um público de cinema por meio da exibição de filmes interessantes e instigantes.

24 Como espécie, adquirimos a consciência de certos perigos a nossa volta. Compreendemos, por exemplo, que a energia nuclear representa um perigo real para a humanidade, que a superpopulação do planeta é o maior perigo de todos. Compreendemos que a destruição do meio‐ambiente é outro enorme perigo. Porém, eu realmente acredito que a falta de imagens adequadas representa um perigo de igual magnitude. É um defeito tão grave quanto não ter memória. (Tradução nossa) 25 Amos Vogel nasceu em 1921, em Viena. Fugiu com a família para os EUA em 1938. Cineasta, é autor do livro de ensaios Film as a Subversive Art. Fundou o cineclube Cinema 16 de Nova York, onde exibia filmes de , John Cassavetes, Nagisa Oshima, Jacques Rivette e Alain Resnais, e também obras da vanguarda americana como Stan Brakhage, Maya Deren e Carmen D'Avino. Em 1963, com Richard Roud, criou o New York Film Festival, sendo seu curador até 1968. Em 1973, Vogel fundou a Cinemateca Annenberg na Universidade da Pennsylvania, onde também foi professor de cinema na Faculdade Annenberg de Comunicação. 26“Amos Vogel is the moral conscience of the world of cinema”. Disponível em: . Acesso em: 24 maio 2011. 40

Pretendia, dessa maneira, criar uma comunidade onde as pessoas pudessem se reunir para discutir questões políticas e tornar‐se cidadãos melhores. Para Vogel, uma sociedade fílmica representa uma ajuda à cidadania e democracia. Esta é, portanto, uma primeira indicação, ou uma primeira interpretação do que sejam imagens adequadas. O adjetivo “adequado” vem do latim adaequatus (ad + aequus) e significa aquilo que foi tornado igual, ou, ainda, “igualar”, adaequare. Adequado é aquilo que dá conta de seu objeto, que é proporcional a ele; que é adaptado ao seu objetivo; apropriado; justo; conveniente; satisfatório; competente; suficiente. Portanto, adequado não é nada além daquilo que é, ou deve ser. Em se tratando de imagens, a definição do termo chega a ser difícil de ser compreendida em tempos em que a imagem parece ter incorporado o dever de chocar e surpreender, assim como ter de se superar constantemente nesses quesitos, como se condenada a um castigo eterno. Herzog reverte a condenação e propõe algo talvez até mais difícil do que o choque gratuito, ou o espetáculo da imagem autista que deslumbra sem nunca espelhar a alma humana, e só resiste pelo tempo de uma explosão: propõe a imagem adequada. Mas adequada a quê? Igual (adaequata) a quê? É a imagem que dá conta do imaginário contido em cada pessoa; que dá conta do imaginário coletivo e seus símbolos. É a imagem que não existe apenas por si só, mas expressa e espelha os anseios sociais, políticos, espirituais e estéticos, enfim, humanos, da maneira mais precisa possível. É a imagem que, se é efêmera em uma tela de cinema, é longeva na mente de quem a viu. A catástrofe prenunciada por Herzog sobre o perigo de não se ter imagens adequadas pode, a princípio, parecer conter certa dose de exagero. Porém, parte‐se, aqui, do conceito de signo de Charles Peirce de que tudo à nossa volta e dentro de nossas mentes, antes de ser palavra, é signo, ou imagem:

Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige‐se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que eu, por vezes, denominei fundamento do representamen. (1977: 46)

41

Ou ainda, como menciona Lucia Leão no artigo Reflexões sobre imagens e imaginário nos processos de criação em mídias digitais27:

No presente artigo, adotamos a noção de imaginário cunhada por Gilbert Durand “[...] como conjunto das imagens e das relações de imagens que constituem o capital do homo sapiens” (2002: 17). Para compreender a complexidade de sua noção, é preciso destacar que, para Durand, todo pensamento tem sua matriz nas imagens, imagens estas que indicam o tipo de sistema simbólico que permite o “ser no mundo” do pensamento. (2011: 3)

Entenderemos, então, que as imagens são referências fundamentais para o próprio ato de existir no mundo. E, mais além, de estabelecer contato e se comunicar com os outros e com o mundo, e, assim, dar início ao ciclo que chamamos de vida. Por décadas, Herzog tem procurado imagens adequadas e as tem encontrado. Seus filmes apresentam imagens poderosas, raras e fabulosas – no sentido de “fábula” – ou algo que não existe de fato. Essa qualidade onírica, sobrenatural das imagens de Herzog nunca é fabricada com efeitos especiais. Ao tentar representar um estado de espírito gerado por um sentimento (no caso, o ciúme) no filme O Inferno (1964), Henri‐ Georges Clouzot extraviou‐se em testes de imagens e efeitos visuais tão complicados que o filme nunca chegou a ser concluído. Em Lições da escuridão, o único efeito visual de que Herzog lançou mão para fazer a sua representação do inferno foram imagens filmadas em câmera lenta. Seu montador, Rainer Standke, precisou insistir para que Herzog lhe concedesse algumas fusões de imagem.28 Portanto, as imagens de Herzog são a representação mais próxima que ele encontra no mundo físico das imagens que sua mente percebe. As imagens internas são representações que criamos a partir daquilo que percebemos do mundo, como explica Lucia Leão ao se referir ao conceito de imagem segundo Hans Belting:

Outro aspecto fundamental da teoria de Belting diz respeito ao fato das imagens, a rigor, não existirem por si mesmas, isto é, as imagens não são independentes. Enfim, para ele, as imagens não são aquilo que vemos na parede ou na tela do computador. Esta pontuação é necessária para entendermos um importante aspecto em sua conceituação de imagens exógenas e endógenas. Na abordagem defendida por Belting, as imagens mentais (representações internas ou endógenas) e as imagens externas (ou

27 Disponível em: . Acesso em 13 nov. 2011. 28 Ver depoimento de Rainer Standke no Apêndice. 42

exógenas) são consideradas como dois lados de uma mesma moeda. (2011: 2)

Herzog se refere com frequência à necessidade de despertarmos paisagens adormecidas dentro de nós: “Tento encontrar a paisagem impensável.”29. Antes das filmagens, ele instrui seu diretor de fotografia, pautando as filmagens por um acervo mental de imagens constituído por literatura, pintura, referências imagéticas culturais e geográficas, como as montanhas da Bavária, onde passou a infância e adolescência. A memória existe, portanto, para além do papel de reservatório estético. Gilbert Durand fala sobre essa memória que articula momentos diferentes vinculados pelas imagens:

Longe de estar do lado do tempo, a memória, como o imaginário, ergue‐se contra as faces do tempo e assegura ao ser, contra a dissolução do devir, a continuidade da consciência e a possibilidade de regressar, de regredir para além das necessidades do destino. É essa saudade enraizada no mais profundo e no mais longínquo do nosso ser que motiva todas as nossas representações e aproveita todas as férias da temporalidade para fazer crescer em nós, com a ajuda das imagens das pequenas experiências mortas, a própria figura da nossa esperança essencial. (DURAND, 2002: 403)

Na obra de Herzog, a paisagem não releva somente de um plano físico: é um estado mental que traduz sensações e emoções. Mais do que isto, um plano reflete o outro, não apenas superficialmente, mas cosmicamente, como descreve Bachelard na Poética do devaneio, ao falar sobre o devaneio cósmico:

Dans une vie cosmique imaginée, imaginaire, les mondes différents souvent se touchent, se complètent. La rêverie de l´un appelle la rêverie de l´autre. Dans un ouvrage antérieur (L´air et les songes), nous avons assemblé de nombreux documents qui prouvent la continuité onirique qui unit les rêves de la nage et les rêves de vol. Déjà, par le pur miroir du lac, le ciel devient une eau aérienne. Le ciel est alors pour l´eau un appel à une communion dans la verticalité de l´être. L´eau qui reflète le ciel est une profondeur du ciel. Ce double espace mobilise toutes les valeurs de la rêverie cosmique. (BACHELARD, 2009: 177, grifo do autor)

Esse conceito se aplica ao caso dos filmes estudados em dois momentos: a

29 Informação verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março 2011. 43 noção de cosmos está presente em cada um dos três documentários filosoficamente, na noção de imaginação cósmica, e está presente fisicamente em Além do azul selvagem, nas imagens que Herzog encontrou nos arquivos da NASA. Herzog espelha o espaço com imagens do fundo do mar, filmadas sob a crosta de gelo da Antártida. Desse espelhamento nasce o que ele chama de “paisagem da imaginação”, que ele explica da seguinte maneira:

Sempre deixei muito claro que para o bem de uma verdade mais profunda do que aquilo que os olhos veem, para atingir um nível de verdade muito profundo nos filmes, você deve inventar, ter imaginação.30

Há uma referência material fundamental na intermediação entre o reservatório de imagens de Herzog e as imagens que ele criará: a natureza. As imagens adequadas de Herzog nunca são encontradas em meios urbanos. Para o diretor, a urbanização do mundo significa o contrário de possibilidades imagéticas. A metrópole é a negação de qualquer imagem adequada, ou de imagens detentoras de um teor de pureza, como diz em depoimento a Wim Wenders no documentário Tokyo‐Ga (1985). Na natureza, Herzog não esbarra em limites: do fundo do mar ao espaço, das cavernas de Chauvet ao deserto do Saara, as imagens que decanta em sua mente sempre hão de encontrar seu espelho no mundo. Por outro lado, ficarão sem tradução mundana assim que Herzog chegar às portas de uma metrópole. Portanto, não há encenação, pois o diretor não tem poder sobre um rio, um vulcão ou um incêndio. Não há manipulação tampouco, à medida que Herzog não filma maquetes em estúdios, como foi o caso de James Cameron em Titanic (1997). Em Fitzcarraldo (1982), um navio de verdade foi alçado até o topo de uma montanha. Herzog já declarou dirigir a paisagem. Ao fazer essa afirmação, refere‐se a uma direção que releva de um aspecto mental: algo é encenado na mente do diretor e ele, em seguida, torna essa encenação visível por meio das imagens que encontra no mundo, abrindo um canal de comunicação e expressão entre imagens endógenas e exógenas. Na bibliografia do seminário de sua escola de cinema itinerante, Werner Herzog não inclui nenhum manual de cinema. Ao abrir o seminário de Londres em março de

30 Informação verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março 2011. 44

2011, o diretor afirmou, não sem um tom de desafio, nunca ter lido um exemplar desse tipo de literatura. As Geórgicas, de Virgílio e um conto de Ernest Hemingway, A breve vida feliz de Francis Macomber são leituras obrigatórias para os participantes. Não acredito ser isso fruto do acaso: as Geórgicas constituem uma obra poética que trata de temas rurais, com elementos da natureza como personagens fundamentais. Tampouco escapa do embate entre ser humano e natureza (que oculta outro embate, entre o ser humano e sua própria natureza) o personagem Francis Macomber, do conto de Hemingway. No cinema de Werner Herzog, a natureza é uma presença poderosa em si, mas é também uma entidade cujo impacto sobre o ser humano expõe seus limites e seus mais profundos dilemas. Essa confrontação tem a função dramática de levar os personagens herzoguianos ao limite da sanidade, atingindo um estado de clarividência – não muito distante do já mencionado êxtase da verdade – que, fugaz como um poema, se transformará em loucura. O romantismo alemão foi mencionado com relação à poesia. Traços românticos podem ser encontrados em personagens herzoguianos. Muitos deles (como o alienígena de Além do azul selvagem) parecem acometidos pelo já mencionado sentimento de Sehnsucht que tão bem descreve o espírito romântico. No caso, não se trata de um romantismo do tipo amoroso, mas de um romantismo filosófico: os personagens têm anseios e sonhos impossíveis que representam a única possibilidade de transpor limites materiais que simbolizam os limites do espírito humano. O substantivo feminino Sehnsucht, contém, em sua definição, os principais elementos que descrevem o espírito romântico alemão. Da composição do verbo sehnen, que significa “desejar ardentemente” e “aspirar a algo”, com o substantivo Sucht, que significa “paixão”, configura‐se o sentimento muito particular de nostalgia, de espera apaixonada, de sofrimento atávico e tristeza da alma. Também traduz melancolia e a lânguida expectativa pelo ser amado, ou o anseio por algo distante e inatingível, como é o caso do personagem do vampiro em Nosferatu, o fantasma da noite. Sehnsucht engloba um paradoxo ao ser uma saudade do futuro, de algo perdido de antemão e, portanto, um pesar. Se, em alguns personagens, a Sehnsucht romântica se atém à sofreguidão, em outros esse sentimento é superado pela loucura, não necessariamente triste, mas 45 melancólica, como é o caso de Timothy Treadwell no documentário O homem urso (2005), e também dos personagens de Fata Morgana. Em Elogio da Loucura, Erasmo de Rotterdam descreve – não sem ironia –, a loucura como elemento inerente ao ser humano:

Creio aqui ouvir os filósofos reclamarem: Precisamente, é muita infelicidade ser mantido assim pela Loucura na ilusão, no erro, na ignorância.” Mas não, é ser homem nada mais! Não vejo por que chamam infelicidade ter nascido assim, ser criado e formado de acordo com a condição comum. Não há infelicidade alguma em ser o que é, a menos que um homem se julgue digno de pena por não poder voar como os pássaros, andar de quatro patas como o resto dos animais, ou não ser dotado de chifres como o touro. Achar‐se‐ia infeliz um belíssimo cavalo, por não saber gramática, ou um touro, por não saber fazer ginástica? Da mesma forma que a ignorância gramatical não poderia tornar o cavalo infeliz, a Loucura não faz a infelicidade do homem, já que é conforme a sua natureza. (ERASMO, 1997: 36)

Menos irônico, Michel Foucault oferece uma leitura da loucura matizada pelo contexto histórico: aponta para o fato que, a partir do século XVIII, a loucura deixa de ser vista necessariamente como um sintoma da maldade ou perversidade – ou uma doença –, para ser considerada um sinal de elevação espiritual que coloca o louco em contato com uma verdade mais profunda:

Mas o louco tem seus bons momentos, ou melhor, ele é, em sua loucura, o próprio momento da verdade; insensato, tem mais senso comum e desatina menos que os atinados. Do fundo de sua loucura atinada, isto é, do alto de sua sabedoria louca, sabe muito bem que sua alma foi atingida. E renovando, em sentido contrário, o paradoxo de Epimênedes31, diz que está louco até o âmago de sua alma, e, dizendo isso, enuncia a verdade. (FOUCAULT, 2010: 211)

Se a própria definição de loucura permite mais de uma abordagem, não é possível afirmar que os personagens de Herzog padecem de um romantismo na acepção associada ao século XIX. Pós‐modernos – no sentido do termo que inclui o porvir – foram contaminados por uma alienação, na qual o ser humano, tendo destruído o mundo à sua volta, isolado, perdeu as referências do mundo e de si

31 Paradoxo de Epimênides (atribuído a Epimênides de Creta, VII a.C.). Epimênides declarava: "todos os cretenses são mentirosos". Ora, se ele diz a verdade, ele mente (por ser também cretense); mas se mente, a proposição "todos os cretenses são mentirosos" não é verdadeira e, nesse caso, ele diz a verdade; por conseguinte, todos os cretenses são efetivamente mentirosos e, nesse caso, Epimênides mente (e assim por diante, "ao infinito"). 46 próprio. Sua natureza – à qual, segundo Erasmo, a loucura é inerente – se desnuda na desolação do deserto que ele mesmo criou, seja ele interno ou externo. O paradoxo citado por Foucault descreve o estado desses personagens herzoguianos: não são estados alternados de loucura e lucidez, mas um estado só, onde, como uma engrenagem que gira ad eternum, a lucidez só é possível por meio da loucura, e a loucura é, por sua vez, o resultado da lucidez. Já dissemos que, em Herzog, o humano existe e se revela por meio da inevitável experiência de estar dentro do mundo. E o mundo que contém seu imaginário é a natureza. Mas, a experiência de estar no mundo não confere necessariamente aos personagens sabedoria ou a possibilidade de evolução ou transcendência em direção a algo “melhor”. A natureza de Herzog não é benevolente e acolhedora, como a renascentista mediterrânica que abraça o ser humano, permitindo‐lhe a plenitude na graça e na sensualidade. Mesmo quando tropical, traz em seu âmago a monumentalidade ameaçadora das montanhas do norte da Europa: nela, o sol é tão opressor quanto a neve, o calor tão tirânico quanto o frio. No documentário de Les Blank, Fardo de sonhos (1982), sobre as filmagens de Fitzcarraldo, Herzog diz que a selva amazônica é obscena. E completa: “Não há harmonia no universo. Precisamos nos acostumar à ideia que não há harmonia, não do jeito que a concebemos.” A cada recomeço, a cada nova chance de mudar sua própria história, o ser humano fracassa ao tentar transpor tanto muralhas externas como internas, as quais acabam por se fundir em um só obstáculo. Não há iluminação transformadora ou a possibilidade de redenção para os personagens. Aos mais audaciosos, como Aguirre ou Fitzcarraldo, que ousam desafiar a natureza, cabe apenas a loucura, ponto mais distante que eles conseguem chegar, por meio de um sonho, da condenação congênita que é a condição humana. Em Fata Morgana e Lições da escuridão, Herzog inventa personagens que são revelados ao espectador por meio do comentário narrativo. São criaturas de outros planetas ou, talvez, seres humanos vindos de outra dimensão. Mas, não importa de onde venham, eles também são sugados para dentro do rodamoinho da destruição: observam apenas, sem poder romper o círculo que gira eternamente sobre si mesmo sem sair do lugar, que é a história da humanidade. 47

Em Além do azul selvagem, os extraterrestres estão em quadro e têm um rosto, o do ator Brad Dourif que encarna o personagem do Alienígena. A semelhança entre algumas tomadas de Dourif em Além do azul selvagem e Klaus Kinski em Aguirre, a cólera de Deus (1972) são notáveis: as mesmas entradas em quadro laterais do ator, os planos fechados sobre o rosto, a atuação tensa, para a câmera. Da mesma forma que o Alienígena de Além do azul selvagem não está em casa na Terra, Aguirre é um corpo estranho da selva tropical. Ora o embate dos personagens é com a floresta, ora com o deserto. Ora com rios de petróleo, ora com o espaço. A constante é a situação de tensão entre o personagem e o meio em que se encontra. Esta tensão é tão presente que o meio acaba por se tornar personagem: ser humano ou alienígena se digladiam contra montanhas, geleiras ou desertos, com visível vantagem para o personagem‐paisagem. Essas são as grandes batalhas dos personagens de Herzog, e não enfrentamentos entre exércitos e generais briosos. Dessa maneira, a imagem do filme é composta igualmente de personagens humanos e da paisagem com seus elementos naturais. Essa é a noção que infere Herzog quando afirma: “A paisagem não deveria ser um pano de fundo [...] A paisagem tem direito a uma existência própria.”32 Já tínhamos estabelecido que Herzog trabalha com o som (palavra e música) em uma chave de personagem também. Portando, chegamos à equação seguinte: na composição dramática herzoguiana, não há a tradicional composição de personagem humano no primeiro plano, paisagem no segundo plano, e trilha sonora que ilustra a ação. Atribui‐se, a cada um dos elementos, palavra, música, personagem humano e paisagem, uma função narrativa: são partes de uma engrenagem dramática equilibrada que o diretor constrói na mesa de montagem. Contracenam uns com os outros como personagens de igual importância. Mas, de onde vêm as imagens que Herzog cria? Diante da indagação sobre por que solicitara a leitura de Virgílio para um seminário sobre cinema, Werner Herzog abriu o livro do poeta ao acaso e leu‐nos uma passagem. Era o relato da agonia e morte de um animal. De tão precisa, detalhada e carregada de emoção, a descrição adquiria qualidades audiovisuais na mente de quem lia e, no caso, de quem ouvia o

32 Informação verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março 2011. 48 relato. O passo seguinte seria, naturalmente, a materialização dessa imagem imaginada em uma pintura ou filme. Algumas importantes referências visuais do diretor para a leitura de uma paisagem podem ser encontradas na pintura romântica alemã, notadamente nas obras de Caspar David Friedrich (1774 – 1840). Também há referências na obra do pintor e gravador holandês Hercules Seghers (c. 1589 – c. 1638). Outra relação possível encontra‐se na obra de William Turner (1775 – 1851). Como Friedrich, Turner explora o uso da luz na construção de paisagens de teor épico que transcendem o realismo, a fim de dar conta de um estado espiritual que se dá diante daquilo que vemos. Na pintura romântica, esse espírito de contornos místicos é chamado de Stimmungslandschaft (literalmente Stimmung, “humor”, “espírito”, “atmosfera”, e Landschaft, “paisagem”), ou “paisagem da alma”. O Stimmungslandschaft, que traduz a intenção do artista de representar o que vê, tanto fora como dentro dele, é também visível nas imagens de Herzog. Herzog diz buscar “algo escondido, algo misterioso”. Esse olhar não se limita a ser curioso: tem uma postura de reverência e até pasmação mística diante da natureza que deslinda o pathos nórdico que Herzog imprime nas imagens que filma. Estão presentes, tanto na pintura romântica alemã de Friedrich como nas imagens de Herzog, a noção do sublime como zona sombria da paisagem, os elementos góticos visíveis, tanto nas catedrais de fumaça dos poços de petróleo do Kuwait como na câmera distante, quase fria; nas tomadas aéreas – celestes no sentido de divinas –; no romantismo magoado diante do inevitável fracasso do ser humano; no exílio, não se sabe se de um lugar no mundo, um país, ou se de nós mesmos. A seguir, proponho uma série de comparações entre fotogramas dos três documentários estudados e obras de Friedrich, Seghers e Turner, onde são visíveis, em primeiro lugar, as referências estéticas de Werner Herzog. Em seguida, dois tipos de espelhamento: o espelhamento entre elementos da imagem, por exemplo, entre água e céu, e o espelhamento entre pinturas e fotogramas dos filmes. Esses espelhamentos estão à escuta do devaneio descrito por Bachelard, pois se referem a imagens imaginadas e recriadas no decorrer dos séculos, aproximando o tempo e o espaço, mas também aqueles que imaginam e sonham. 49

Paisagens 1

Figura 1 ‐ Paisagem montanhosa (H. Seghers, c.1633)

Figura 2 ‐ Lições da Escuridão, incêndio 1 (W. Herzog, 1992)

50

Paisagens 2

Figura 3 ‐ Cidade com quatro torres (H. Seghers, c.1631)

Figura 4 ‐ Fata Morgana, habitações no deserto (W. Herzog, 1971) 51

Paisagens 3

Figura 5 ‐ Monge à beira‐mar (C. D. Friedrich, 1821)

Figura 6 ‐ Além do azul selvagem, Antártico 1 (W. Herzog, 2005)

52

Figura 7 ‐ Tempestade de neve (W. Turner, 1842) 53

Paisagens 4

Figura 8 ‐ Figura Beira‐mar ao luar (C. D. Friedrich, 1818)

Figura 9 ‐ Lições da Escuridão, poço de petróleo 1 (W. Herzog, 1992) 54

Paisagens 5

Figura 10 ‐ A cruz na montanha (C. D. Friedrich, c. 1808)

Figura 11 ‐ Lições da Escuridão, poço de petróleo 2 (W. Herzog, 1992)

55

Figura 12 ‐ O navio negreiro (W. Turner, 1840)

56

Paisagens 6

Figura 13 ‐ Homem e mulher observando a lua (C. D. Friedrich, 1830‐35)

Figura 14 ‐ Além do azul selvagem, Antártico 2 (W. Herzog, 2005)

57

Existe uma característica nas imagens dos documentários estudados: o ponto de vista celeste. Ela imprime uma mudança na narrativa que acontece na passagem de Fata Morgana para Lições da Escuridão e Além do azul selvagem. Os três documentários se desenrolam em um registro de ficção científica. Em Fata Morgana, a câmera é distante, mas nem sempre assume a perspectiva do olhar “fora do mundo” por seu posicionamento físico. Werner Herzog já se perguntava, em 1969, como alienígenas veriam o deserto do Saara. Mas, o olhar “fora do mundo” se dá pelo viés do conteúdo insólito das imagens capturadas pela lente da câmera, pelo tempo dilatado das sequências, e não necessariamente pelo posicionamento da câmera: com exceção de algumas tomadas aéreas, a maioria das sequências foram filmadas em terra firme ou de cima de veículos em movimento. Em Lições da Escuridão, Herzog assume a perspectiva aérea como ponto de vista dominante de seu relato, conferindo ao documentário uma dimensão extra‐ humana. O cinegrafista Paul Berriff sobrevoou grandes extensões de terra e água, registrando a paisagem desolada. Também foram filmadas imagens em terra firme, ora com a câmera na mão, ora em um tripé, ora em um veículo em movimento. Porém, são as tomadas aéreas que determinam o tom do documentário e seu ritmo. No caso de Além do azul selvagem, as imagens que constroem a dimensão fabulosa do documentário são as imagens de arquivo da NASA, filmadas em 1989 pelos astronautas do ônibus espacial Atlantis, em missão no espaço. A missão STS – 34 foi também chamada de missão Galileu por conta da sonda que seria enviada a Júpiter. E há também as imagens subaquáticas filmadas por Henry Kaiser33 no oceano antártico, anteriormente à realização do filme. A perspectiva é espacial e, em um caso de licença poética imagética, a mesma perspectiva é atribuída às imagens do fundo do oceano. Herzog filmou os depoimentos de cientistas da NASA e o monólogo de Brad Dourif no papel do Alienígena, em terra firme. É preciso fazer a seguinte ressalva: em Lições da escuridão, as tomadas são aéreas, pois foram filmadas em pleno ar, de um helicóptero, ou seja, da perspectiva do céu para baixo. Em Além do azul selvagem, muitas tomadas que aceitamos como

33 Henry Kaiser é um guitarrista e compositor americano. Em 2001, passou dois meses na Antártida. As imagens subaquáticas que fez estão em dois filmes de W. Herzog, Além do azul selvagem e Encontros no fim do mundo (2007), do qual é produtor e para o qual compôs a trilha musical. Foi produtor musicalde O homem urso (W. Herzog, 2005). 58 aéreas, mostram o que acontece no interior de um ônibus espacial. São consideradas aéreas, pois o espectador aceita o contrato proposto por Herzog de que, fora daquele quadro e daquele ônibus espacial, há de fato o espaço. O mesmo contrato é válido para as tomadas subaquáticas de Kaiser, que flutua não no ar, mas na água, e que filma inversamente, ou seja, de baixo para cima, da água em direção à atmosfera. No filme, a noção de “em cima” e “embaixo” é derrubada pela noção de falta de gravidade das imagens feitas pelos astronautas e é incorporada por Herzog no filme. Tomadas aéreas costumam ser minoritárias em filmes, pois, além de caras, apresentam dois tipos de limitação: em primeiro lugar, uma limitação de perspectiva, a perspectiva de pássaro, estranha à percepção humana e, em segundo lugar, a imposição de um tipo de movimento específico, o movimento da aeronave dentro da qual se encontra a câmera. Este movimento acaba se impondo sobre o movimento da câmera em si e ao movimento daquilo que a câmera filma. O movimento da câmera está subordinado ao movimento da aeronave, e o que é filmado ficará em quadro pelo tempo que a velocidade da aeronave permitir. E, afinal, quais roteiros foram elaborados a partir de uma perspectiva celeste? Por exemplo: Stanley Kubrick não utilizou em 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968) a perspectiva aérea de maneira tão efetiva quanto Herzog em Lições da escuridão. As imagens do filme de Kubrick são o produto da criação de técnicos de efeitos especiais, que elaboraram suas paisagens celestes com os pés bem no chão. O que ocorre no documentário de Herzog é um fenômeno inverso: o movimento do helicóptero do qual uma grande parte das tomadas foram filmadas acaba sendo o movimento fundamental, pois ajuda a criar a perspectiva extraterrestre, chegando a sugerir a falta de gravidade. O olhar da câmera celeste é a perspectiva subjetiva de uma criatura alienígena visitando um planeta estranho, ou talvez o próprio ser humano revisitando seu planeta destruído. Em alguns momentos, a sombra do helicóptero aparece. Não foi cortada na montagem: aparece como mais um elemento estranho, meio‐máquina, meio‐animal no cenário devastado que o olhar sobrevoa. Friedrich não pintou suas paisagens de uma perspectiva aérea. Mas encontramos em suas obras, assim como nos documentários de Herzog, um olhar que procura alçar‐se acima das coisas do mundo. O olhar de Friedrich e o de Herzog 59 convergem em direção a essa busca por algo que existe na paisagem para além de sua materialidade. Segundo Herzog:

O que é estranho é que quando temos uma imagem numa tela, fisicamente, a imagem não muda. É sempre a mesma imagem, a mesma projeção de luz. Porém, nossa perspectiva como espectadores muda. Enxergamos de maneiras diferentes. A imagem adquire significados diferentes, cria algo como um todo que está além da música, além da pura projeção de luz.34

É a busca por uma verdade ontológica que, dada a efemeridade da vida humana – ou de um filme –, está mais adequadamente contida em paisagens milenares que inspiram o imaginário de sucessivas gerações de seres humanos. Talvez o que impeça Herzog de encontrar imagens adequadas em metrópoles, seja a transformação rápida e constante desses lugares que, à semelhança do ciclo de vida de seus criadores, são paisagens efêmeras, mutáveis e, portanto, às quais não se pode confiar a guarda da memória da humanidade e seu repertório imagético. Pois, afinal, não está o futuro da humanidade encerrado em sua memória?

2.4. A articulação de sonhos

Ao citar André Bazin, Jacques Aumont discute o quanto, segundo Bazin, o perímetro de atuação da montagem de um filme dentro de seu processo de realização é restrito por princípios de não‐interferência no processo de representação do “real”. (AUMONT, 2010: 51‐56): a “montagem proibida”, a transparência e a recusa da montagem sem raccord. A rigidez desses princípios não admite a realização de filmes como Fata Morgana ou Lições da escuridão, que rompem com narrativas tradicionais essencialmente por meio da montagem. Portanto, é em Gilles Deleuze que encontramos as bases necessárias para ponderar a montagem dos documentários estudados. Deleuze determina dois tipos de descrição cinematográfica: orgânica e cristalina. A noção de descrição orgânica abarca o irreal, o sonho e o imaginário, mas

34 Informação verbal a partir do documentário Réquiem no espaço – Werner e Reijseger fazem música, Nicholas McClintock, 2005. 60 por oposição às imagens ditas reais. Na descrição cristalina, “[...] l´actuel est coupé de ses enchaînements moteurs, ou le réel de ses connections légales, et le virtuel, de son côté, se dégage de ses actualisations, se met à valoir pour lui‐même. ” (DELEUZE, 2002: 166).35 Construções narrativas como as que encontramos nos documentários estudados estão à escuta de Deleuze quando ele afirma:

[...] la narration cristalline implique un écroulement des schèmes sensori‐ moteurs. Les situations sensori‐motrices ont fait place à des situations optiques et sonores pures auxquelles les personnagens, devenus voyants, ne peuvent plus ou ne veulent plus réagir, tant il faut qu´ils arrivent à voir ce qu´il y a dans la situation. (DELEUZE, 2002: 167 – 168) 36

A noção de personagem‐testemunha da construção critalina, na acepção de Deleuze, remete aos narradores dos três documentários de Herzog. No caso, além de testemunhas, são personagens‐narradores que não podem fazer nada com relação àquilo que acontece. Por outro lado, na mesa de edição, eles são elementos articuladores da narrativa e é nesta condição que são analisados. Os documentários estudados não têm um protagonista humano cuja biografia (ou fato de sua biografia) sirva de fio condutor da narrativa. O narrador assume essa posição e torna‐se o mestre de cerimônias, o fio condutor e articulador da história. Em primeiro lugar, o narrador é a voz do documentário. Em segundo lugar, ele não relata apenas: a narração é diegética, pois dramática, e o narrador, mesmo não podendo fazer nada com relação ao que vê, está implicado na história, tem uma relação com aquilo que aconteceu ou acontece. Werner Herzog faz o que se costuma chamar de cinema de autor. Sua visão pessoal está inscrita em todas as etapas de seu processo criativo: escreve seus próprios argumentos, é o principal produtor de seus filmes, e tem a palavra final sobre a montagem. Nos documentários, Herzog conta com um aliado para seduzir o espectador, o narrador. Em Fata Morgana, Herzog narra, mas convida outros

35 “[...] o atual é cortado de seus encadeamentos motores, ou o real de suas conexões legais, e o virtual, por sua vez, se desvencilia de suas atualizações, passa a valer por si mesmo.” (Tradução nossa) 36 [...] a narração cristalina implica em um desmoronamento das conexões sensório‐motoras. As situações sensório‐motoras deram lugar a situações ópticas e sonoras puras às quais os personagens, tendo se tornado aqueles que veem, não podem mais, ou não querem mais reagir, pois precisam conseguir ver o que há na situação. (Tradução nossa) 61 narradores com os quais tem um vínculo pessoal, como Lotte Eisner, e Amos Vogel na versão inglesa do filme. A narração nunca é desvinculada emocionalmente das imagens. Compassada, contribui dramaticamente para a trilha sonora como um todo. O texto da primeira parte de Fata Morgana se baseia em trechos do Popol Vuh, que são relatos maias mítico‐históricos, transcritos pela primeira vez em 1701 pelo espanhol Francisco Ximénez. Popol Vuh significa “livro da comunidade”, ou “livro do conselho”, e descreve o mito da criação, o dilúvio e a ação de heróis (ancestrais antropomórficos do povo maia), como os gêmeos Hunahpú e Xbalanqué. O Popol Vuh é dividido em quatro partes, que relatam a criação de seres vivos sobre a Terra, a linhagem das principais figuras mitológicas presentes no relato, a criação de seres humanos, migrações, a primeira aurora e a migração e divisão de povos, com o relato do povo quiché, seu domínio e suas cidades. Herzog cita uma passagem que fala de Cucumatz, uma entidade divina do período pós‐clássico maia. Cucumatz é a serpente coberta de penas, deus do Popol Vuh que criou os seres humanos, junto com o deus Tepeu. Pouco mais de um ano depois do lançamento de Fata Morgana, Herzog faria Aguirre, a ira de Deus (1972), filmado em regiões próximas aos antigos territórios do povo maia. E uma década depois retornaria a essas mesmas paragens para filmar Fitzcarraldo (1982). Nas partes seguintes do filme, Herzog costura o Popol Vuh com poemas, trechos de fábulas infantis europeias e um texto de sua autoria. Constrói, assim, sua própria lenda sobre a criação do mundo. Assina o documentário duas vezes, como diretor e roteirista, e, mais tarde, em Lições da escuridão, três vezes, ao assumir fisicamente a voz de seu próprio documentário. Ao tornar‐se o narrador, cria o personagem Herzog, com características distintas: a dicção clara, a voz suave, compassada e monocórdia. O sotaque alemão contribuiu para a criação desse personagem, presente em muitos de seus documentários. Ao narrar, não há alterações de registro significativas em sua voz. Todavia, a perplexidade do diretor‐narrador diante das imagens que vê está presente – e audível. Herzog não aparece fisicamente em quadro, pois é fundamental que a ideia do personagem extraterrestre seja preservada na imaginação do espectador. Em Além do azul selvagem, a voz do documentário se materializa no personagem do Alienígena. No entanto, ele não está maquiado ou vestido de nenhuma forma especial. Parece um ser 62 humano comum, mas diz coisas que só um alienígena poderia conceber. Ou, um louco. Da mesma maneira que Herzog não lança mão de efeitos especiais de imagem, não cria um alienígena por meio de figurinos ou máscaras: deixa ao espectador a liberdade de imaginar o que vê na tela como um ser vindo do espaço, ou questionar‐se sobre certas ambiguidades do personagem. Se em Além do azul selvagem o narrador conta algo que já aconteceu, em Fata Morgana e Lições da Escuridão, a narração não comenta algo que o personagem‐ narrador viu, mas algo que está vendo. O tom é de um relatório ou diário de bordo poético com contornos místicos37. Comenta e deduz o que aconteceu baseando‐se no que está vendo e em informações que possui e compartilha com o espectador. Ao construir o comentário narrativo nesse falso tempo presente, o espectador tem a sensação de estar acompanhando o personagem‐narrador em sua viagem e fazendo descobertas no mesmo tempo que ele. O narrador funciona como um alter ego do diretor. Herzog não é um cineasta de estúdio. Tampouco é um cineasta que vai a uma locação, filma e volta para a mesa de montagem com o material bruto, como quem traz despojos de guerra. Herzog‐ narrador tampouco é um explorador‐conquistador: é um explorador‐cientista, da linhagem dos exploradores europeus dos séculos passados que registravam suas descobertas por meio de escritos, desenhos, pinturas, gravuras e fotografias. Há décadas Herzog deixa o conforto e previsibilidade da vida na Europa ou nos Estados Unidos para se embrenhar em florestas tropicais, águas profundas, desertos e na tundra siberiana. Seu olhar é compassivo e empático, mas ele não se deixa ser absorvido pelo que o circunda. Permite o contágio, concede‐se ser tocado e comove‐ se, mas não é o Coronel Walter E. Kurz de Apocalypse Now: nunca perde de vista o fato que, mais cedo ou mais tarde, deverá regressar para o mundo ao qual de fato pertence. Talvez não por amor a esse mundo, mas porque, como Hermes, é seu valioso mensageiro. O aspecto heroico está sempre presente na obra de Herzog, não raro encarnado por personagens que perseguem quimeras. Esses personagens talvez sejam

37 Werner Herzog não se apresenta publicamente como uma pessoa religiosa, mas a questão mística o acompanha desde a adolescência, quando cogitou, por um tempo, converter‐se ao catolicismo e entrar para um seminário. 63 o próprio Herzog, ou partes do realizador, mas, diferentemente deles, Herzog conhece o caminho de volta para territórios seguros. Em Lições da escuridão, a narração está na primeira pessoa do plural, esfumaçando os limites do ponto de vista pessoal do diretor e o que seria o ponto de vista de um explorador vindo de outro lugar. Em Além do azul selvagem, o Alienígena conversa diretamente com o espectador, olhando para a câmera. Dá a impressão que se dirige a um grupo de conhecidos, explicando a eles o que aconteceu. Não revela detalhes demais. Para ele, o espectador já sabe do que está falando, pois está apenas retomando uma conversa. Provavelmente, a conversa que ficou inacabada em Lições da escuridão. O personagem‐narrador é o fio condutor da articulação dos três documentários. A articulação propriamente dita acontece na montagem. A montagem é uma etapa fundamental no processo de realização de um documentário: é neste momento que som e imagem são construídos de maneira a se chegar ao roteiro final do filme. A montagem dos documentários estudados apresenta características que os aproximam e serão comentadas a seguir. Em primeiro lugar, é preciso estabelecer a diferença entre o material bruto dos dois primeiros filmes, Fata Morgana, montado por Beate Mainka‐Jellinghaus, e Lições da escuridão, montado por Rainer Standke, e o terceiro, Além do azul selvagem montado por Joe Bini. Nos dois primeiros casos, todo o material bruto foi gerado por Herzog. Além do azul selvagem é um filme cujo projeto nasce a partir de imagens já existentes ou de arquivo. Como foi citado, são imagens que Herzog encontra na Califórnia, esquecidas nos arquivos da NASA, e imagens que lhe são mostradas pelo músico e amigo Henry Kaiser. A esse material de arquivo soma‐se o material filmado por Herzog: depoimentos de cientistas e o monólogo dramático do Alienígena. Herzog procura privilegiar, nos três filmes, sequências longas, tanto na captação como na montagem. O tempo é dilatado, mas não sobra, dando à montagem final um ritmo de respiração tranquila ou de sono profundo, o que pode ser interpretado como uma referência subliminar aos sonhos a que se refere Herzog: “Não são apenas meus sonhos. Acredito que todos esses sonhos são seus também, e a única 64 diferença entre eu e você é que eu consigo articulá‐los. E é disto que se trata a poesia, ou a pintura, ou a literatura, ou o cinema. É simples assim.”38 Mas como articular sonhos? Em primeiro lugar, pelo viés do tempo. A montagem privilegia raccords desconectados – notadamente em Fata Morgana – e espaços ópticos e sonoros que podem ser compreendidos a partir do conceito de Deleuze de imagem‐tempo:

Il y a aussi les espaces vides, amorphes, qui perdent leurs coordonnées euclidiennes, à la manière d´Ozu, ou d´Antonioni. Il y a les espaces cristallisés, quand les paysages deviennent hallucinatoires dans un milieu qui ne retient plus que des germes cristallins et des matières cristallisables. Or, ce qui caractérise ces espaces, c´est que leurs caractères ne peuvent pas s´expliquer de façon seulement spatiale. Ils impliquent des relations non localisables. Ce sont des présentations directes du temps. Nous n´avons plus une image indirecte du temps qui découle du mouvement, mais une image‐temps directe dont le mouvement découle. (DELEUZE, 2002: 169) 39

Portanto, é reiterado na montagem o princípio de uma lógica estética e sensível do processo criativo, que estabelece um canal de comunicação sensorial com o espectador tão importante ou mais do que o canal racional. A articulação de som e imagem é de fato a base da articulação de sonhos acontece na mesa de montagem. Logo, a intenção poética e criativa, processo de construção desses sonhos, está estreitamente vinculada ao aspecto prático da montagem, e são aspectos indissociáveis. Perguntei a Rainer Standke como equaciona lógica e intuição no processo de montagem de um documentário como Lições da escuridão, se a intuição e a sensibilidade eram fatores mais importantes do que a lógica. Standke respondeu:

Sim, positivamente, são. É preciso manter vários fatores sob controle, mas é necessário ter sensibilidade com relação àquilo que estamos fazendo. Quanto mais assisto a filmes e vídeos, mais me dou conta que eles devem ter uma verdade emocional dentro deles, pois se não houver, eles não

38 Informação verbal a partir do documentário Fardo de sonhos, Les Blank, 1982. 39 Há também espaços vazios, amorfos, que perdem suas coordenadas euclidianas, à maneira de Ozu, ou de Antonioni. Há os espaços cristalizados, quando as paisagens se tornam alucinatórias em um meio que retém apenas germes cristalinos e matérias cristalizáveis. Ora, o que caracteriza esses espaços é o fato de seus caráteres não poderem ser explicados apenas espacialmente. Eles implicam relações não localizáveis. São presenças diretas do tempo. Não temos mais uma imagem indireta do tempo que decorre do movimento, mas uma imagem‐tempo direta da qual o movimento decorre. (Tradução nossa) 65

fazem diferença alguma. É necessário que as coisas funcionem em termos emocionais. É preciso prender a atenção das pessoas. As pessoas precisam estar com seu filme em algum nível emocional. Se não estiverem, não importa o quanto os fatos que você apresenta são brilhantes, pois elas não estão conectadas emocionalmente, e está tudo perdido. E, certamente, num filme que como este, que representa um desafio, que não pega o espectador pela mão e o conduz através da história, o espectador precisa estar interessado por vontade própria. O filme precisa funcionar num nível 40 emocional, e para isto é necessário ter sensibilidade.

Ao articular o som e a imagem dos documentários, Herzog não procura associações óbvias ou fáceis. Isto quer dizer que uma imagem do deserto não será articulada com uma música folclórica da região; da mesma maneira, uma imagem do espaço não será articulada com uma música eletrônica, futurista ou efeitos sonoros que lembrem o som de computadores ou foguetes. Como foi mencionado, Herzog busca uma antinomia entre o som e a imagem, mas a finalidade dessa antinomia não é apartar: ao contrário, é criar uma oposição complementar que procura alcançar uma fusão mais integral, profunda e ampla entre o som e a imagem que qualquer justaposição ilustrativa de uma com relação a outra jamais resultaria. Sobre esse procedimento, podemos relacionar o que diz Sergei Einsenstein em A unidade na imagem, ao citar Goethe e sua doutrina das cores:

“Color and sound do not admit of being directly compared together in any way, but both are referable to a universal formula.” (apud GOETHE) I believe that this “higher formula” may legimately be interpreted as that intellectual‐emotional image which both sound and colour are capable of expressing in equal measure, uniquely and independently. (EISENSTEIN, 41 2011: 268)

O texto fala de cor, e não de imagem. Esse detalhe chama a atenção para o fato de, nos três documentários, a cor ser o elemento determinante das imagens. São cores saturadas como o amarelo e o azul de Fata Morgana; o azul, que está presente tanto nas imagens como no título de Além do azul selvagem, e o negro da tenebrosa fumaça de Lições da escuridão, que resulta em uma não‐cor. No caso de cada uma das obras, as imagens são essencialmente cor, e por vezes, seu inverso. Os documentários são

40 Ver depoimento de Rainer Standke no Apêndice. 41 “Cor e som não admitem nenhuma comparação direta, mas estão ambos sujeitos a uma fórmula universal.” Acredito que essa “fórmula superior” possa ser legitimamente interpretada como a imagem intelectual‐emocional que som e cor são capazes de expressar juntos em uma mesma medida, de maneira única e independente. (Tradução nossa) 66 montados como sequências de quadros – ou pinturas – sobre um tema, e a cor determina o lugar onde se desenrola a ação, assim como o sentimento associado a esse lugar, da sensação física (calor, frio) a um estado de espírito (tristeza, leveza, opressão). Nesse ponto, retornamos a Deleuze quando ele define a montagem de tipo expressionista alemã. Da mesma maneira que não podemos atribuir uma intenção romântica à produção de Herzog, seria incorreto afirmar que o diretor segue essa escola de montagem. Contudo, da mesma maneira que o romantismo é parte da formação cultural alemã, no cinema alemão, referências do expressionismo também dificilmente serão inócuas no caso de cineastas da geração de Herzog. Deleuze fala de uma montagem de contrastes de oposição entre luz e sombra, e mais, faz referência ao romantismo:

D´abord, la force infinie de la lumière s´oppose les ténèbres comme une force également infinie sans laquelle elle ne pourrait se manifester. Elle s’oppose aux ténèbres pour se manifester. [...] C´est une opposition infinie telle qu´elle apparaît déjà chez Goethe et chez les romantiques: la lumière ne serait rien, du moins rien de manifeste, sans l´opaque auquel elle s´oppose et qui la rend visible. (2003: 73) 42

O contraste de que fala Deleuze pode ser visto no embate entre a luz e as trevas de Lições da escuridão, no céu negro que se opõe ao sol que aparece ao final, seguido de uma nova sombra que prenuncia a possibilidade de uma nova guerra. Há também um jogo de claro‐escuro entre um documentário e outro. Se em Fata Morgana a luz invade todos os quadros do filme, em Lições da escuridão acontece o contrário: é a luz que tenta, ao longo do filme, encontrar brechas para aparecer. Dos três documentários, Lições da escuridão é o que melhor representa a montagem expressionista descrita por Deleuze quando ele cita a noção de sublime dinâmico, “[...] la vie non‐organique des choses culmine dans un feu, qui nous brûle et brûle toute la Nature, agissant comme l´esprit du mal ou des ténèbres.” (DELEUZE,

42 Em primeiro lugar, a força infinita da luz se opõe ás tenébras como uma força igualmente infinita sem a qual ela não poderia se manifestar. [...] É uma oposição infinita, como ela aparece em Goethe e no romantismo: a luz não seria nada, ou nada de manisfesto, sem o opaco ao qual ela se opõe e que a torna visível. (Tradução nossa)

67

2003: 80)43. O que era ainda miragem em Fata Morgana – ou a nascente do rio Estige no deserto, como sugerem as tomadas aéreas ao final do filme –, assume definitivamente a forma de tenébra na viagem rio adentro em direção ao Hades de Lições da escuridão:

[...] une obscure vie marécageuse où plongent toutes choses, soit déchiquetées par les ombres, soit enfouies dans les brumes. La vie non‐ organique des choses, une vie terrible qui ignore la sagesse et les bornes de l´organisme, tel est le premier principe de l´expressionisme, valable pour la Nature entière, c´est‐à‐dire pour l´esprit inconscient perdu dans les ténèbres, lumière devenue opaque, lumen opacatum. (DELEUZE, 2003: 75, grifos do autor) 44

A montagem é, portanto, o principal fator na articulação dos sonhos a que se refere Herzog. É um processo de construção cujo motor é a intuição e a sensibilidade. O filme vai surgindo pouco a pouco, como uma estátua que nasce de um bloco de mármore. O caminho na busca do resultado tem diretrizes formais e culturais e uma mesma intenção poética. Apesar de cada documentário ter sido montado por um profissional diferente, eles possuem uma coerência estética – mesmo se contrastada – que torna possível associá‐los dentro de um processo narrativo contínuo. Assim, a montagem torna‐se o fator que concatena um documentário ao outro, e possivelmente seu principal fio condutor, acima do narrador, articulando um sonho que começa em Fata Morgana e termina em Além do azul selvagem.

43 “[...] a vida não‐orgânica das coisas culmina no fogo que nos queima e queima toda a Natureza, agindo como o espírito do mal ou das tenébras.” (Tradução nossa) 44 [...] uma vida obscura e pantanosa onde mergulham todas as coisas, ou retalhadas pelas sombras, ou tragadas pelas brumas. A vida não‐orgânica das coisas, uma vida terrível que ignora a sabedoria e os limites do organismo, tal é o primeiro princípio do expressionismo, válido para toda a Natureza, isto é, para o espírito inconsciente perdido nas tenébras, luz que se tornou opaca, lumen opacatum. (Tradução nossa) 68

CAPÍTULO 3. UMA TRILOGIA POÉTICA EM CINEMA DOCUMENTÁRIO

Oh, santos gênios! Vós caminhais, lá por cima, em luz, sobre terra suave. Brilhantes deuses etéreos Tocam‐vos levemente, Qual os dedos da artista nas cordas santas

Sem destino, como a criança Adormecida, os anjos respiram; Castamente guardado Em discretos botões, O espírito floresce‐lhes, Eterno, E os santos olhos Veem em silenciosa E eterna claridade.

Nós, porém, fomos condenados a errar, Sem descanso, pela terra fora. Ao acaso, de uma Hora para a outra, Os homens sofredores Somem‐se e caem, Como a água atirada de Recife para recife, Ano após ano, na incerteza.

(Friedrich Hölderlin, A canção de Hyperion) 69

3.1. Terra, céu, espaço

Este capítulo apresenta um desafio: Werner Herzog já expressou por diversas vezes sua aversão por análises de obras cinematográficas – em especial às suas – chegando a utilizar o termo “vivissecção”, ou seja, a mutilação ou desfiguração de uma obra por uma análise científica. Essa desaprovação do diretor por teóricos de cinema, em geral, com algumas exceções, como Lotte Eisner e Amos Vogel, não impediu que um grande número de estudiosos se debruçasse sobre seus filmes com o objetivo de analisá‐los, a partir dos mais variados prismas e recortes. Diante da afirmação do diretor e do reconhecimento que, de certa forma, ele tem razão ao apontar para esse perigo inerente a processos analíticos, procuro apresentar uma análise que leva em conta a integridade dos objetos de estudo. Para tanto, proponho uma abordagem que descobre, mas não saqueia. O intuito, neste caso, é tornar possível uma interpretação das obras que ofereça novos ângulos e camadas de compreensão sensível, escorada pelo fato que um filme existe, vive, sobrevive não apenas por si, mas por meio da percepção que os espectadores têm dele. Logo, o objetivo não é uma investigação que desconstrói sem reconstruir nada no lugar: a análise é uma ferramenta a serviço de um pensamento criativo e imaginativo, no caso não de Herzog, mas de seus espectadores – dentre os quais eu me incluo –, e de outros realizadores que acompanham a sua obra. Herzog possui em uma filmografia vasta, ainda em expansão. Ao se aproximar dos setenta anos, não diminuiu o ritmo de sua produção cinematográfica, nem dá sinais de pretender fazê‐lo. Entre filmes de ficção e documentários para cinema e televisão, o número se aproxima de sessenta. Dentre essas seis dezenas de produções, cerca de dois terços são documentários. E dentre esses quase quarenta documentários, vários se destacam por sua linguagem poética, que lhes vale o nome de “ensaios fílmicos” ou “documentários poéticos” em diferentes estudos. Desde o seu primeiro filme, Herzog demonstrou fazer um uso particular das imagens e dos sons: seu primeiro curta‐metragem, Herácles (1962), é uma obra que não se conforma nem ao formato tradicional do documentário, nem à ficção. A escolha dos documentários Fata Morgana, Lições da escuridão e Além do azul selvagem como 70 objetos de estudo não é fortuita. São obras que dão prosseguimento à poética do primeiro curta‐metragem do diretor, porém, são construções mais complexas de média e longa‐metragem, sem um personagem humano no centro de sua narrativa. Não contam a história de um ser humano em especial, pois narram a história da humanidade. Na obra documental de Herzog, não há lugar para a pretendida objetividade do Cinema Direto ou do Cinema Verdade. A subjetividade é um dos componentes tanto de seu processo criativo quanto da percepção de seu resultado pelo espectador. Ao afirmar que a percepção que as pessoas têm do mundo muda de acordo com sua cultura45, Herzog autoriza diversas leituras dos filmes que faz. Sobre Fata Morgana, declara:

The film is not there to tell you what to think. I did not structure it to push any ideas in your face. Maybe more than any other films I have made it is one that needs to be completed by the audience, which means all feelings, thoughts and interpretations are welcome. (HERZOG; CRONIN, 2002: 46)46

No caso deste texto, ele está sendo redigido por uma brasileira que assistiu aos filmes que um diretor alemão (ou bávaro, como ele próprio prefere se definir) fez com imagens do continente africano, do Oriente Médio, da Antártida e do espaço. Essa multiplicidade cultural e ambiental determina de antemão uma multiplicidade do olhar. Em um caso como esse, a objetividade se torna refém de um binômio constituído por coisas que existem por si, com uma imanência própria, mas que também existem em nossas mentes, por meio de nossos filtros biológicos, culturais, psicológicos e emocionais. Como em um desenho de M. C. Escher, onde o rigor do raciocínio e a precisão geométrica resultam na representação do impossível, o impossível torna‐se possível e existe na dimensão do imaginário. Ao organizar uma trilogia de documentários poéticos com a finalidade de estudá‐los, perguntei‐me quais os fatores que justificariam essa composição. Alguns já

45 Declaração verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março de 2011. 46 O filme não está aí para dizer o que você deve pensar. Eu não o estruturei para empurrar ideias na sua cara. Talvez mais do que qualquer outro filme que fiz, ele deva ser completado pelo público, o que significa que todos os sentimentos, pensamentos e interpretações são bem‐vindos. (Tradução nossa) 71 foram citados, como o comentário dramático‐narrativo presente nos três filmes; a música e a paisagem como personagens; a perspectiva extraterrestre do narrador e a visão apocalíptica com relação ao destino da humanidade. Porém, há algo que justifica a aproximação de Fata Morgana, Lições da escuridão e Além do azul selvagem para além da comparação baseada em similaridades formais. Abordarei primeiramente o que articula os três documentários em uma trilogia original para, em seguida, retomar alguns aspectos formais e conceituais gerais que ainda não foram mencionados. A realização dos três documentários ocorreu com importantes espaços de tempo entre um e outro. Vinte e dois anos separam Fata Morgana de Lições da escurição, e treze anos separam Lições da escuridão e Além do azul selvagem. A construção narrativa de viagem, ou road movie, está presente nos três, e evoca uma só viagem, que começa em 1968‐70, com Fata Morgana, e termina mais de trinta e cinco anos depois, em 2005, com Além do azul selvagem. Essa relação nasce do fato de não ser esta uma viagem qualquer: ela tem um roteiro e destino específicos, não necessariamente físicos. O percurso de Herzog ao longo dos anos como realizador e, geograficamente, por diversas partes do mundo, possui uma coerência estética e ideológica que lhe determina um mesmo destino. No caso dos documentários estudados, existe a passagem de um ponto para o seguinte, em uma linha ascendente: da terra vai‐se para o céu, do céu segue‐se para o espaço. Essa é a busca vertical presente na obra do diretor: é a montanha a ser escalada e suplantada em nome da sobrevivência. Porém, as altitudes herzoguianas têm seu espelho, que pode ser o fundo do oceano ou uma caverna. Se falarmos em uma só viagem contínua nos três documentários, poderemos também afirmar que houve um processo de criação contínuo ao longo dos anos, no qual Fata Morgana fez parte do processo de criação de Lições da escuridão, e, por sua vez, Lições da escuridão fez parte do processo de criação de Além do azul selvagem. Logo, a linguagem poética presente nos três filmes passou por transformações da captação de imagens à montagem. No entanto, apesar dessas transformações, cada filme é uma parte de um mesmo relato cosmogônico: uma narrativa sobre as origens do mundo, dos seres humanos e de seres sobrenaturais ou extraterrestes. 72

Há um fator determinante nesse processo criativo: o tempo. No caso de Lições da escuridão, os poços de petróleo do Kuwait não queimariam para sempre, e os vestígios da guerra recente seriam apagados. Capturar o momento que não se repetirá é uma questão essencial na realização de documentários. Em Fata Morgana, não há menção de um prazo estipulado, seja por produtores, seja por fatores naturais, limitando o tempo de realização. Sabe‐se apenas que Herzog e sua equipe enfrentaram dificuldades e viajaram durante meses por vários países (Quênia, Nigéria, Tanzânia, Costa do Marfim, Camarões). O elemento do acaso presente na narrativa revela a falta de urgência das filmagens. Tempo em excesso pode representar um problema tão grande quanto sua escassez. O tempo que parece sobrar nas filmagens de Fata Morgana (variedade de personagens e locações) é mais enxuto em Lições da escuridão. Essa diferença no processo de captação de imagens confere a cada filme características próprias: sendo o tempo um fator importante num processo experimental, Fata Morgana se conforma melhor a esse tipo de fazer na etapa das filmagens, onde a busca por algo ainda indefinido abraça o acaso e o imprevisto como parte do processo criativo. Já em Lições da escuridão, a curva da experimentação atinge seu ápice no contexto controlado da mesa de montagem. Sabemos que os três documentários têm a perspectiva de um narrador extraterrestre. Porém, cada um desses narradores – que, no âmbito da trilogia, pode ser o mesmo – descobre e percorre um território diferente: Em Fata Morgana, depois da sequência inicial do filme mostrando o pouso de oito aviões, o território percorrido é terrestre: longos travellings pelo deserto, tomadas com a câmera fixa, o visitante de outro mundo se encontra na Terra, próximo aos seres que a habitam. Em Lições da escuridão, o narrador‐viajante paira no ar e, com ele, o espectador. Talvez tenha retornado para ver o que aconteceu na Terra desde sua última visita. Desce ao solo por alguns momentos, mas não há quase nenhum contato com seus habitantes, fora dois personagens que contam o que aconteceu. Diante da confirmação da catástrofe apocalíptica que se abateu sobre o planeta, o viajante extraterrestre não vê possibilidade de ficar na Terra. Flutua sem poder aterrissar e se instalar. Se a chegada ao planeta é colocada claramente no início do filme, a partida é mais nebulosa e permite ao espectador perguntar‐se se o extraterrestre resolveu ficar 73 ou não, o que significa que, neste caso, a viagem não acabou. Pelo menos não neste filme. Em Além do azul selvagem, o Alienígena relata sua história, sua vinda à Terra e a saga dos seres humanos à procura de um lugar para viver. Ele se encontra na Terra, mas o território percorrido em seu relato é o espaço. Portanto, nesta última etapa da viagem, o último território é o espaço, mas é também o fundo do mar, mostrado ao espectador como uma região do universo. Esse espelhamento do fundo do mar com o universo sugere a ideia de recomeço, de ciclo sem fim, presente na montagem inicial aterrissagens de Fata Morgana. Dessa maneira, os três documentários formam uma trilogia que não é linear, com um começo, um meio e um fim, mas circular: Depois de subir aos céus, e ir além do céu à procura de imagens adequadas ou de um mundo habitável (sendo imagens adequadas um mundo habitável, na ótica herzoguiana), retornamos ao ponto inicial da vida, o oceano. Tendo estabelecido o percurso de uma viagem contínua ao longo dos documentários como base para a trilogia proposta, é necessário, antes da análise específica de cada documentário, retomar alguns os fatores comparativos gerais que aproximam os documentários como, por exemplo, o título. Nos três casos, ele funciona como uma apresentação, quase um aviso, que chama a atenção do espectador para o tipo de aventura que o espera, mas também para o tom dos documentários. Tanto Fata Morgana como Lições da escuridão e Além do azul selvagem podem ser chamados de títulos‐imagem. Há a referência a uma miragem, à escuridão e à cor azul, acrescida de um adjetivo que a descreve. Os títulos são um alerta para o espectador que embarca na viagem com o narrador extraterrestre: o lugar para onde vai não necessariamente existe, pelo menos não numa dimensão conhecida, e o destino pode ser a escuridão no sentido das profundezas do inferno, ou a cor e a luz que cega quando entrar no paraíso. Os documentários são divididos em capítulos, como num livro. Mas há outras correspondências possíveis para essa divisão. Os títulos dos capítulos fazem mais que simplesmente apresentar: comentam aquilo que será mostrado. No caso de Fata Morgana, há uma abertura e três partes que formam uma lenda ou fábula, com início, meio e fim. Em Lições da escuridão, há a abertura, além de treze capítulos que se 74 acomodam no formato de quadros operísticos. Além do azul selvagem é dividido em dez capítulos ao longo dos quais um Alienígena narra uma saga de seres humanos. Foi estabelecido, no âmbito deste estudo, a possibilidade de uma trilogia de natureza poética. Este posicionamento exige uma reflexão sobre o termo e suas implicações conceituais e estéticas. Fábula, ópera ou saga audiovisual? Vários formatos podem conter os documentários. Um formato em particular abraça os três, o de poema épico. Foram mencionados capítulos, mas dado o teor poético das imagens, torna‐se possível designar os blocos dos documentários de estrofes, ou partes de um poema. O poema épico tem raízes na Ilíada e Odisseia, de Homero. Outro importante exemplo é a Canção de Rolando (anônimo), o mais antigo relato de guerra francês, datado do século XI. É característica do poema épico a presença do narrador. Isto porque o termo “épico” vem do grego antigo, onde epos significa “palavra” e, num sentido mais amplo, “relato” ou “narração”. Épicos são narrados em versos. No caso do comentário narrativo de Herzog, não há rimas no texto narrado, nem poemas do diretor ou de outros autores. Contudo, uma construção lírica do texto o torna comparável a um poema em prosa. No caso, talvez mais relevantes que rimas verbais sejam as rimas visuais, resultado de uma montagem que, como vimos, não obedece a uma sequência lógica, mas a situações ópticas e sonoras, com uma estrutura poética própria. Épicos não contam apenas histórias de guerras e seus heróis. Abordam também o aspecto político e religioso dos acontecimentos em seu relato. Têm fundamentos históricos, mas não são fiéis aos fatos, assim como acontece no caso dos documentários. No entanto, ao abordarmos os documentários como poemas épicos, é necessário defini‐los como poemas épicos modernos: em primeiro lugar, são audiovisuais. Em segundo lugar, não há heróis. Em seguida, o conhecimento que Herzog transmite ao espectador não se refere a uma guerra específica: é a revelação de um Zeitgeist moderno, ou pós‐moderno. Originalmente, épicos eram apresentados com acompanhamento musical. No caso dos documentários estudados, não é menos épica a trilha musical utilizada. Poderíamos falar em suíte ou movimentos musicais? No caso de Lições da escuridão, dado o teor dramático do filme e a experiência de Herzog como diretor de ópera, o 75 mais adequado fosse talvez pensar em atos de uma ópera. Não estaria o espectador diante de uma ópera documental ou uma sinfonia audiovisual? Herzog afirma ter procurado fazer um “réquiem para um planeta impensável” (HERZOG; CRONIN, 2002: 249) em Lições da escuridão, e uma sinfonia visual em Além do azul selvagem. A variedade de possibilidades de leitura das obras estudadas denota o quanto estão distantes de formatos e linguagens tradicionais. A riqueza da análise não está em dar respostas definitivas, mas na revelação das possibilidades engendradas por um processo criativo que lança mão de vários elementos e os conjuga segundo o principal fundamento desse processo, a poesia. O objetivo desse processo em Herzog assemelha‐se àquele das tragédias clássicas gregas, que é revelar ao espectador, por um viés trágico, a ação do ser humano sobre seus semelhantes e sobre o mundo. Segundo Aristóteles, a tragédia é a imitação de ações e estados, sendo estes últimos pensamentos e opiniões de personagens considerados dignos (que não é o caso dos personagens da comédia). Ele afirma:

[...] la tragedia es imitación no de hombres sino de acción, vida, felicidad, pues la felicidad y la infelicidad están en la acción y el fin es uma acción, no una cualidad. Los hombres tienen cualidades por sus caracteres; pero según sus acciones son felices o al contrario. (ARISTÓTELES, 2003: 47)47

O uso da palavra “imitação” já foi abordado anteriormente. Se, por um lado, a natureza da palavra pode ocasionar questionamentos, por outro, não se pode refutar que os “estados” descritos por Aristóteles estão presentes no comentário narrativo subjetivo dos filmes que enfoca as ações humanas. Se em Fata Morgana várias imagens são justificadas pelo impacto estético que causam, contribuindo por esse viés para a narrativa como um todo, em Lições da escuridão, praticamente todas as imagens estão diretamente vinculadas a algum conflito que ocorreu nos locais filmados. Em Além do azul selvagem, as imagens de arquivos são deliberadamente utilizadas para construir uma situação imaginada por

47 A tragédia não é a imitação de homens, mas de ação, vida, felicidade e infelicidade, pois felicidade e infelicidade estão nas ações e o fim é uma ação, não uma qualidade. Os homens têm qualidades por seu caráter; porém, são felizes segundo suas ações, ou o contrário. (Tradução nossa) 76

Herzog. Dessa maneira, os documentários incorporam características de fábulas bélicas ou pós‐bélicas. Para melhor compreender a relação dos documentários com a fábula, recorremos mais uma vez a Aristóteles. Para ele, a tragédia é composta por seis elementos: a fábula, que é o princípio e a alma da tragédia, os personagens, a linguagem (no caso, exteriorização do discurso verbal), o pensamento, o espetáculo e a composição musical (ARISTÓTELES, 2003: 46). Encontramos cada um desses elementos da tragédia nos documentários. Lições da escuridão conjuga esses elementos com trechos da obra musical trágica de Richard Wagner, O Anel dos Nibelungos. Também a obra de arte total proposta por Wagner tem antecedentes na tragédia grega, cujas estruturas dramáticas tornam‐se complexas ao aliar, na composição de um só acontecimento dramático, diversos elementos como música, cenografia, texto, personagens, etc., como é o caso da já mencionada Gesamtkunstwerk wagneriana. A aproximação entre essas obras deve ser feita tendo em mente mais a poesia do que a técnica. Em Origem do drama trágico alemão, Walter Benjamin refuta a influência de Aristóteles sobre o drama trágico alemão, alegando que, neste caso, não são levados em consideração elementos que caracterizam a tragédia grega clássica, como, por exemplo, a unidade de tempo e espaço (BENJAMIN, 2009: 60). O comentário abarca a tragédia alemã de um modo amplo, incluindo‐a ao drama trágico burguês que surge na Alemanha no século XVIII. A relação com Aristóteles que é feita no contexto deste estudo refere‐se especificamente à obra de Richard Wagner, que tem características particulares, e é, por sua vez, articulada com a obra de Werner Herzog de um ponto de vista essencialmente poético. Aristóteles distingue fábulas simples e complexas. Uma fábula simples é aquela onde a ação transcorre de acordo com o desenvolvimento dos acontecimentos, sem peripécia nem reconhecimento, enquanto uma fábula complexa é aquela que se desenvolve com reconhecimento e peripécia. A peripécia pode ser definida como a mudança de sorte ou de curso, e o reconhecimento como a mudança de um estado de ignorância para um estado de conhecimento. Ambos os elementos da fábula têm como função produzir piedade e terror. O patético pode ser um terceiro gênero de 77 fábula de estrutura complexa. Ele é caracterizado pela ação destruidora e dolorosa que expõe cenicamente morte, feridas, etc. Se Fata Morgana está mais próximo da fábula simples, Lições da escuridão e Além do azul selvagem têm características de fábulas complexas. O Alienígena de Além do azul selvagem é um dos poucos personagens herzoguianos que aprendeu com seus erros. Ele tenta compartilhar com os seres humanos o que sabe, mas não consegue. No entanto, é Lições da escuridão que encontra no conceito de patético sua mais adequada tradução trágica, ao mostrar a Terra como uma grande ferida que sangra fumaça e petróleo, e onde apodrecem carcaças de animais e construções humanas. Há um último dado importante para a compreensão dos filmes: o momento ou contexto histórico em que foram feitos. Fata Morgana foi realizado entre 1968 e 1970, ou seja, em plena era hippie ou flower power, um dos mais pontuais períodos de transformação social e cultural do século XX. Nesse período, experimentação era a palavra de ordem no campo das artes, no campo sexual ou com relação às drogas. É nesse contexto que Werner Herzog deixa o filme fluir por essas correntes de experimentação, em busca de um conceito de beleza, mas também de liberdade e transformação social. Nesse período, havia um sentimento de esperança social e política que seria aniquilado vinte anos depois. Havia ideais que acenavam com a possibilidade de salvar o mundo e a humanidade da ganância e da caretice por meio do amor, da arte e de uma participação coletiva nas questões essenciais da vida. Lições da escuridão foi filmado em 1991 e tem como contexto um mundo muito diferente, regido pelo individualismo e por cowboys políticos como Ronald Reagan e George Bush. Na década de 1990, os cowboys venceram e Herzog contrapõe‐se a eles com um discurso de forma e fundo mais pungente e focado. A experimentação parece ter sido disciplinada, possivelmente porque os objetivos do realizador sejam mais claros e urgentes: a crítica a um modo de vida pautado por um sistema político que, segundo Herzog, levará o planeta e os seres humanos à aniquilação. Ao realizar Além do azul selvagem treze anos mais tarde, há uma volta ao experimentalismo encontrado em Fata Morgana. A relação é reconhecida pelo diretor em No Além do azul sevagem com Werner Herzog. Depois do alerta de Lições da escuridão, nenhuma providência foi tomada para resgatar o mundo do estado apocalíptico em que se encontrava. A humanidade entrou no século XXI, mas não 78 mudou seu curso: continua trilhando o caminho da autodestruição. Os governos ocidentais tendem cada vez mais para ideologias de direita, favorecendo modelos de desenvolvimento que priorizam o crescimento econômico em detrimento das questões sociais. O mundo continua em guerra na África, no Oriente Médio e Oriente Próximo, com a participação efetiva de governos europeus e do norte‐americano. Em 2005, o olhar humanista de Werner Herzog se volta de novo para o universo onírico de Fata Morgana. Em Além do azul selvagem, os planos dos seres humanos deram errado. À procura de um lugar para viver, retornam à Terra, que se encontra então em um estado pré‐histórico. Serão eles capazes de recomeçar? Conseguirão romper o ciclo de destruição daquela vez? Talvez seja o sonho o último refúgio possível do ser humano, ou de qualquer forma de vida.

3.2. Fata Morgana: deserto e danação

Fata Morgana é um projeto de filme que nasce no final da década de 1960, a partir de um roteiro de ficção científica sobre alienígenas do sistema solar Andrômeda. Mas, ao chegar ao Norte da África, desconcertado pela visão do deserto, Herzog deixa de lado o roteiro. Com sua equipe, empreende viagens pelo continente africano e registra imagens, guiado não por um roteiro cinematográfico, mas por seus olhos48. O diretor passa a procurar uma qualidade visionária das imagens, filmando aquilo que o fascina.49 Se, na década de 1930, Salvador Dalí criou um método específico, o método “Crítico‐Paranóico”50, para reproduzir imagens de seu subsconsciente por meio de um delírio autoinduzido – Herzog não precisou mais do que o calor e a aridez da paisagem do Saara para entrar em um estado alterado de percepção das coisas. Nesse

48 Durante as filmagens de Fata Morgana, Werner Herzog e sua equipe chegaram a ser presos na República de Camarões, ao serem confundidos com mercenários. Segundo relatos de Herzog, eles sofreram maus tratos, apanharam e ficaram doentes. 49 Informação obtida a partir da banda comentada do DVD do filme. 50 Criado por Salvador Dalí no início da década de 1930, o método “Crítico‐Paranóico” é um método surrealista utilizado para ajudar um artista a entrar em contato com seu subconsciente por meio de pensamentos irracionais sistemáticos e um estado paranóico autoinduzido. Esse estado paranóico permite ao artista transcender tanto noções e conceitos preestabelicidos, como seu entendimento do mundo e da realidade, com a finalidade de ver o mundo de uma forma diferente, nova e única. 79 momento, o formato final do documentário está longe de ser definido. Na banda comentada do filme, Herzog não fornece explicações lógicas para a escolha das imagens que filmou. Em seu discurso, a palavra strange ou “estranho” é recorrente. Pode parecer um termo vago e abrangente demais, mas, ao reiterá‐lo, Herzog o alça ao patamar de parâmetro: o diretor busca especificamente aquilo que é estranho. Mas, o que é estranho? Estranho para Werner Herzog? A noção de estranho, neste caso, está estreitamente vinculada à noção de imagem adequada: é aquilo que nunca foi visto antes, pelo menos não da forma que está sendo visto pelo diretor. Sua perspectiva é europeia, mas seu olhar não é o de um turista. Não há clichês, mas imagens fixas e em movimento (travellings, ou filmadas de cima de veículos em movimento) com qualidade pictórica. Apesar da preocupação estética, Herzog não propõe ao espectador imagens de fácil digestão visual, tampouco o convida a participar ou “entrar” nas imagens, como no caso das imagens de publicidade. Roland Barthes definiu a imagem como “tout ce dont je suis exclu” ou “tudo aquilo de que sou excluído”51, na medida em que a imagem é aquilo que existiu um dia, o que exclui o tempo em que o observador olha para a imagem. Barthes diz que, por esse motivo, a observação de uma imagem comporta um elemento de crueldade, de tristeza e até de dor. Mesmo se referindo à fotografia e não ao cinema, a melancolia e o distanciamento proposital das imagens de Herzog – e o próprio título do documentário – corroboram as afirmações de Barthes. Mas, de que tipo de imagem estamos falando em Fata Morgana? O termo fata morgana significa miragem, mas não qualquer tipo de miragem. O nome, de origem italiana, refere‐se a uma irmã do Rei Artur com poderes de feiticeira, Morgan Le Fay. Portanto, a ideia de sobrenatural é introduzida desde o início. As miragens (do latim, mirare: olhar para, fitar), ao contrário das alucinações, são fenômenos ópticos explicados pela física e, portanto, podem ser filmados. Há dois tipos de miragens, as chamadas “inferiores” e as “superiores”. Estas últimas acontecem com menos frequência. Miragem complexa, do tipo superior, o fenômeno fata morgana é causado por fatores físicos, como a luz que passa por diferentes camadas de ar de temperaturas diferentes, em situação de inversão térmica

51 BARTHES, Roland. Fragments de Voix. Archives Sonores Ina, Série Les Grandes Heures. Depoimento para Jean‐Marie Benoist e Bernard‐ Henri Lévy, fevereiro de 1977. 80 aguda. Isto gera imagens invertidas, zonas de compressão e dilatação das imagens, e miragens em estado de mutação, isto é, que mudam rapidamente. Assim, desde o início, o espectador sabe que o que verá na tela não tem compromisso o real ou o factual. Herzog propõe uma viagem de incertezas e impressões que conduzirão a um determinado estado de espírito e às reações a um entorno. Ainda na banda comentada do filme, Werner Herzog afirma que certas imagens não são reais, mas produto do fenômeno fata morgana, como o caso de um longínquo ônibus e de pessoas que circulam à sua volta. Ele afirma que, após a filmagem da sequência, ele e sua equipe foram verificar o local e não havia vestígios da existência do ônibus ou das pessoas. É difícil acreditar que as imagens que vemos no documentário sejam produto de uma ilusão óptica. Porém, ao assistir o filme, o espectador compreende que deve aceitar o contrato proposto pelo diretor, e o fato de o ônibus existir ou não passa, a partir desse acordo, a não ter importância. As imagens de Fata Morgana são paisagens africanas, filmadas no deserto. Há também imagens de seres humanos que, por serem mais raras, pontuam os estágios de um crescente clima de estranhamento no documentário. No lugar de aproximar o espectador, os personagens humanos o afastam, pois são estrangeiros, no sentido de estranhos, ou alienígenas. Alguns não parecem estar no que se convém chamar de estado mental normal. São seres do deserto, não apenas do deserto do Saara, mas do deserto onírico, por vezes alucinógeno, das paisagens mentais de Herzog. Portanto, o deserto do filme não é deste mundo e conta a história de desertos que não têm saída e que são a revelação da nossa impotência perante o infinito. Labirintos e prisões oferecem o reconforto de limites conhecidos aos quais podemos nos agarrar. Jorge Luis Borges descreve, em um pequeno conto, o labirinto sem fim que é o deserto e do qual só é possível encontrar uma saída dentro de nós mesmos:

Contam os homens dignos de fé (mas Alá sabe mais) que nos primeiros tempos houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu seus arquitetos e magos e os mandou construir um labirinto tão desconcertante e sutil, que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar, e os que entravam se perdiam. Essa obra era um escândalo, porque a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus, e não dos homens. Com o passar do tempo, veio à sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade do hóspede) fez com que ele penetrasse no 81

labirinto, onde perambulou ofendido e confuso até o cair da tarde. Então implorou por socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa alguma, mas disse ao rei da Babilônia que ele na Arábia também tinha um labirinto que, se Deus fosse servido, lhe daria a conhecer algum dia. Depois voltou à Arábia, reuniu seus capitães e alcaides e devastou os reinos da Babilônia com tamanha boa sorte que arrasou seus castelos, dizimou sua gente e aprisionou o próprio rei. Amarrou‐o em cima de um camelo veloz e levou‐o para o deserto. Cavalgaram três dias, e disse‐lhe: “Ó, rei do tempo e substância e cifra do século!, na Babilônia desejaste que eu me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso teve por bem que eu agora te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros para impedir a passagem”. Logo depois, desamarrou‐o e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre. (BORGES, 2008: 122)

A chegada a esse deserto se dá com uma sequência de aviões. Apenas o momento do pouso é mostrado. Não há referência a país, aeroporto ou companhia aérea. São oito aviões no total, ou oito pousos, num total de quatro minutos de filme. O que significa a repetição? Essa sequência já foi interpretada em outros estudos sob a ótica do mito do eterno retorno de Mircea Eliade. Na visão de Valérie Carré, que enfoca a obra de Werner Herzog do ponto de vista antropológico, essa iteração visual representa a chegada de várias levas de estrangeiros ao continente africano que o diretor está prestes a mostrar, numa primeira referência visual às conquistas colonialistas (CARRE, 2007: 14). Para Herzog, as aterrissagens seguidas eram um teste: “Eu tinha a sensação que se o público ainda estivesse assistindo quando o sexto ou sétimo avião pousasse, eles ficariam até o final.” (HERZOG, CRONIN, 2002: 48, tradução nossa). No recorte deste estudo, na medida em que a ideia original era filmar um roteiro de ficção científica, a repetição é interpretada como a chegada de seres vindos do espaço. Tem início a primeira parte do filme. I. A Criação (Die Schöpfung): Quando pousa o último avião, é introduzida a trilha musical, o segundo movimento do Concerto nº 8, Opus nº 3 Bach – Vivaldi (BWV 593), seguido do Kyrie da Grande Missa de Mozart. Começam os longos travellings de paisagens desertas que determinam o tempo dilatado do filme. As imagens mostram o que poderia ser de um planeta deserto, abandonado. Tem início a narração. O texto é o Popol Vuh, narrado em alemão por Lotte Eisner:

82

Contam como um dia a Terra caiu numa profunda quietude, num silêncio profundo e calmo, e descansou. Havia apenas silêncio, quietude e noite, docemente ninados, lá deitados, solitários e vazios.

Os travellings se encadeiam. As paisagens desérticas têm a textura de uma pintura impressionista, por vezes pontilhista. As cores são saturadas, como o amarelo do solo e o azul do céu. Se há figuras humanas (ou figuras indefinidas) ao longe, elas foram absorvidas pelas cores que se manisfestam pelas ondas de calor. As imagens mostram marcas de pneus no solo. Articuladas com o Kyrie, estas marcas adquirem um sentido místico que altera a percepção que o espectador tem delas: passam a ser desenhos com uma intenção, lembrando os grafismos que aparecem no solo e são atribuídos a extraterrestres em notícias de jornal. A narração prossegue:

E este é o primeiro testemunho, a primeira palavra. Não havia homem, ave, peixe, caranguejo, árvore, pedra, caverna, desfiladeiro, mato ou arbusto. Havia apenas os céus.

O texto diz que a palavra precedeu a existência humana e as coisas no mundo. A palavra se torna, assim, sagrada e nos remete ao Evangelho segundo São João, quando diz:

No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio Ele estava em Deus. Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência. Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos homens.52

A dimensão mística e mitológica da narrativa é estabelecida desde o início. É, todavia, uma abordagem panteísta, pois Herzog não tenta separar, discriminar ou atribuir valores diferentes às referencias religiosas presentes no filme. O que importa é criar espaço na narrativa para o sobrenatural e o divino. Assim, em nenhum momento é dito ao espectador que o texto narrado é o Popol Vuh, relato sobre a história mítica da criação do mundo e os seres que o habitam. Não há explicação a respeito da figura de Cucumatz, a quem Lotte Eisner se refere repetidas vezes. Tampouco há referência à própria Lotte Eisner, quem é, nem por que é a narradora do documentário.

52 Evangelho segundo São João 1,1‐18. 83

As imagens tremulam sob as ondas de calor. Ao longe, vemos algo se mover: Um animal? Um carro? Parece mover‐se a esmo, sem rumo ou sentido no meio da imensidão que o circunda. Num mundo como esse que o espectador tem diante dos olhos, para onde pode ir o ser humano? Está condenado a girar em círculos, não chegando nunca a lugar algum. Será a noção de chegar a algum lugar, seja fisicamente ou existencialmente, apenas ilusão?

Figura 15 ‐ Fata Morgana, miragem 1 (W. Herzog, 1971)

Há um corte para travellings de dunas. Mudança de trilha musical para Ghetto Raga, do grupo experimental da década de 1970, The Third Ear. Aos poucos, são introduzidos elementos reconhecíveis aos olhos humanos, como árvores. O mundo começa a tomar forma. Surgem as primeiras imagens contendo construções (refinarias?) que revelam a presença humana no lugar. A câmera está agora no tripé e as imagens são fixas. As paisagens do deserto são quadros cuja fruição Herzog compartilha com o espectador, por meio de planos demorados. O encadeamento de imagens da montagem faz pensar no que é chamado em literatura de stream of consciousness, ou fluxo do inconsciente. 84

É narrada a primeira tentativa dos deuses de criarem o ser humano. O relato é construído com imagens de carcaças de animais no deserto, em diferentes estágios de decomposição, ao som do órgão barroco da terceira Lição de Tenébras de François Couperin. A articulação entre texto, imagem e som cria a noção de dois tempos, o passado e o presente. O passado está presente por meio do texto que explicita aquilo que os deuses pretendiam para o planeta e as criaturas que nele foram colocadas. O presente está nas imagens que expõem o que de fato aconteceu com os seres criados pelos deuses: foram destruídos. A música tem duas funções: em primeiro lugar, ao descartar o som ambiente e substituí‐lo por música, Herzog distancia o espectador do lugar que mostra. O espectador não está “dentro” do deserto, não é parte daquele mundo: é convidado a refletir sobre o que vê, de longe. Além disso, a música erudita confere uma qualidade sacra ou oracular às imagens, como se aquilo que aconteceu estivesse escrito, ou previsto. É uma noção de predestinação – ou danação – que se estabelece. O texto narra como foram criados os animais sobre mais imagens de carcaças de animais: os ossos brancos e a pele seca, queimada, da cor da areia. Na sequência, sempre com uma trilha musical sacra, imagens de destroços de veículos. Animais e destroços se fundem nas ondas de calor e na percepção do espectador. A música sacra é produto de uma cultura que enaltece a vida acima de tudo. As imagens mostram que, pelo menos no mundo que Herzog mostra, a vida não vale muito, não mais do que objetos inanimados. Surge a imagem de um menino segurando uma pequena raposa do deserto. Ela tem uma corda no pescoço e está à mercê do menino. O animal não parece feroz ou agressivo, mas acuado. Nada acontece, o menino não maltrata o animal diante da câmera, mas a sensação de mal‐estar gerada pelo desconforto do animal revela o poder que tem o menino sobre a pequena criatura, e, paralelamente, o poder do ser humano sobre outras criaturas: é mais fácil o homem mudar o mundo para pior do que mudar a si mesmo para melhor. O menino poderia matar o animal sem muito esforço, apertando um pouco os dedos, e o espectador percebe isso. Só não sabe se o menino o fará de fato. A tensão paira durante a tomada e se prolonga para além dela, na mente do espectador.

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Figura 16 ‐ Fata Morgana, menino com raposa do deserto 1 (W. Herzog, 1971)

A narração do Popol Vuh conta como começaram os primeiros desentendimentos entre os deuses e os seres criados por eles, quando estes últimos se recusaram a falar como seres humanos. As imagens mostram crianças norte‐africanas. A trilha musical muda, e o tom do documentário também: começa o rock com elementos folk Sea of Joy de Steve Winwood. Há imagens de formações rochosas, vegetação e cachoeiras. Neste ponto específico, a conjugação da música de uma banda de rock com as imagens da paisagem arenosa e castigada pelo sol sugere um paralelo com o filme Zabriskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni. O paralelo não é apenas estético: Antonioni e Herzog filmaram praticamente na mesma época, cada qual em um deserto: Herzog no Saara, Antonioni no Vale da Morte, na Califórnia. Ambos lançaram seus filmes com menos de um ano de intervalo, e lançaram mão de uma paisagem inóspita e a uma trilha‐personagem para realizar um manifesto cinematográfico contra a natureza gananciosa e predatória do ser humano. Nos dois filmes, há uma busca metafísica – consciente ou não –, por parte dos personagens; a narrativa recorre a processos criativos experimentais e, por este motivo, os filmes foram recebidos com perplexidade pela crítica. 86

Nas sequências das dunas de Fata Morgana, o deserto se torna antropomórfico e lembra as formas de um corpo feminino. É uma das raras concessões à sensualidade que encontraremos na obra de Herzog. Já Antonioni faz do deserto o cenário da expressão sensual e sexual dos protagonistas do filme. A aridez, o sol e a imensidão fazem emergir o que há de mais primitivo no ser humano. Ao final do encontro amoroso, os personagens estão cobertos de poeira e parecem seres pré‐históricos. 87

Figura 17 ‐ Fata Morgana, dunas (W. Herzog, 1971)

Figura 18 ‐ Zabriskie Point (M. Antonioni, 1970)

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A trilha sonora de Fata Morgana introduz sons de grilos e insetos. As imagens são de pequenas habitações no deserto. Lotte Eisner narra que, em sua segunda tentativa, os deuses fizeram o homem de madeira e talharam a mulher no junco. Mas essa tentativa também não deu certo, e os deuses afogaram o homem e a mulher. Por esta razão, fizeram escurecer o mundo. Choveu por muitos dias e os animais choraram. Estes tentaram se proteger da chuva, mas não conseguiram. Assim, ocorreu a segunda destruição das criaturas que deveriam ter se tornado seres humanos. II. O Paraíso (Das Paradies): O Paraíso que é mostrado é diferente daquele descrito na Bíblia: não é acolhedor ou reconfortante. No segundo bloco (ou capítulo), os personagens humanos ocupam um espaço maior na narrativa. O capítulo começa com uma sequência filmada na entrada de uma caverna, com a câmera parada. Dois vultos se aproximam. Ao chegarem mais perto da luz, vemos que se trata de dois homens negros: um deles é um jovem com um rádio ligado, que leva pela mão o outro, um idoso aparentemente cego, que anda com a ajuda de uma bengala. Do rádio emana um tango e o som de uma voz feminina falando em francês. Há um plano fechado na jaqueta militar do homem velho: ele tem no peito uma medalha e deve ter pertencido a algum exército. Provavelmente, lutou para defender uma nação que o colonizou, possivelemente a França. Ao lado da medalha está alfinetado em sua jaqueta algo que parece ser um chaveiro e que ele ostenta como se também fosse uma condecoração. Plano do homem velho, da cintura para cima. O personagem fala em seu idioma olhando para a câmera. Não há legendas. Herzog repetiria duas décadas mais tarde, em Lições da escuridão, a decisão de não legendar o discurso de personagens falando árabe. O que interessa não é o relato falado do personagem, mas aquilo que ele comunica por meio da voz, da entonação, da expressão facial, da linguagem corporal, dos gestos, do olhar, das roupas e do lugar em que se encontra, e como o espectador percebe essas informações. Não se trata de um depoimento inserido no documentário, que poderia existir e fazer sentido independentemente das demais imagens, mas de um relato não verbal, orgânico, inserido no todo formado pelo filme. 89

Há uma mudança de narrador. Além de Lotte Eisner, também participaram da narração os atores Eugen Des Montagnes e Wolfgang von Ungern‐Sternberg53 – nos créditos finais do filme, constam também os nomes de Wolfgang Bächler e Günther W. Welpert. Há um novo corte para um menino com a pequena raposa do deserto presa por uma corda. O texto narrado foi extraído de O Struwwelpeter, coletânea de poemas infantis de autoria do psiquiatra alemão Heinrich Hoffman, da metade do século XIX. O livro, de orientação moral, contém dez poemas ilustrados que relatam as aventuras de crianças que tiveram seus dedos cortados, pegaram fogo ou morreram de fome porque eram distraídas, não queriam tomar sopa ou não penteavam os cabelos. (HOFFMAN, 1995: 26) Herzog atribui ao Popol Vuh, aos seus próprios escritos e aos poemas infantis igual valor dramático, costurando os textos na montagem e não identificando nenhum deles para o espectador. Os textos podem ser diferentes na sua origem, mas apontam para uma mesma direção, em um tom que não dispensa o humor: a danação daqueles que se extraviam do “bom” caminho e a redenção para aqueles que compreendem a necessidade de se permanecer nesse caminho. A história de Robert é o poema escolhido de O Struwwelpeter: ao desobedecer e sair de casa num dia de chuva, o menino é carregado pelo vento e desaparece no céu com seu guarda‐chuva vermelho:

Agora Robert Voador É um ponto no horizonte Guarda‐chuva na mão Cabelos ao vento Ensopado e trêmulo Teso e triste como ninguém

No filme, o menino e a pequena raposa vão embora, açoitados pelo vento do deserto, enquanto a câmera fixa registra as duas silhuetas que se afastam. O menino lembra outro personagem de uma fábula, que também vive num mundo insólito: o Pequeno Príncipe, que vaga de planeta em planeta à procura de um amigo.

53 Wolgang von Ungern‐Sternberg foi o protagonista do primeiro longa‐metragem de Werner Herzog, Sinais de vida (1968).

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Figura 19 ‐ Fata Morgana, menino e raposa do deserto 2 (W. Herzog, 1971)

Figura 20 ‐ O Pequeno Príncipe e a raposa (A. de Saint‐Exupéry) 91

Tanto as imagens como o texto do documentário têm elementos do universo fantástico infantil. Isto inscreve a história narrada num tempo primitivo – ou na infância da humanidade –, que, apesar disso, não é necessariamente bom ou feliz. Assim como a raposa de Antoine de Saint‐Exupéry ensina o Pequeno Príncipe a criar laços ao pedir para ser domada, ou cativada – segundo a tradução que leva em conta a etimologia da palavra, aparentada a “cativeiro” –, a raposa de Herzog segue o menino amarrada a uma corda. As duas duplas são próximas e distantes ao mesmo tempo. Procuram criar um vínculo afetivo que não é espontâneo e vem com a contrapartida da dependência e da melancolia. Um dia, a raposa se despede do Pequeno Príncipe: “Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.” (SAINT‐EXUPERY, 2004: 74). A raposa de Fata Morgana não tem a liberdade de se despedir, de sentir saudade, nem tem o dom da palavra. Mas, tão etérea quanto a raposa da fábula de Saint‐Exupéry, sua imagem com o menino no deserto é uma miragem, não sabemos se de uma amizade ou da tristeza. Têm início sequências do deserto filmadas de cima de um veículo em movimento. A narração descreve um Paraíso insólito sobre imagens de carcaças de animais. As sequências do deserto, quase sem cortes, desfilam sobre a música folk. Depois de um hiato de silêncio (sem narração, sem música) de vinte e dois segundos, tem início uma das sequências mais emblemáticas do filme: a paisagem filmada de cima de um veículo em movimento conjugada com a trilha musical Hey, that’s no way to say good‐bye, de Leonard Cohen. É importante notar que a mudança de trilha musical (fim de uma música, silêncio e início de outra música) não determina um corte de imagem. A longa sequência do deserto que desfila sob os olhos do espectador não é interrompida para “combinar” com o tempo da música:

I loved you in the morning Our kisses deep and warm Your head upon the pillow Like a sleepy golden storm. Yes many loved before us I know that we are not new In cities and in forests They smile like me and you. But now it's come to distances And both of us must try 92

Your eyes are soft with sorrow Hey, that's no way to say goodbye.54

Imagens de homens trabalhando no deserto e planos fechados de rostos empoeirados. Os homens quebram pedras com um pedaço de pau. Parecem seres saídos de um tempo pré‐histórico. Os gestos abruptos, os rostos secos, talhados pelo sol e pela areia, áridos como a topografia do lugar, contrastam brutalmente com a melodia e a voz de Leonard Cohen que fala de amor. A antinomia entre a música, e as imagens provoca um tipo de emoção, como uma saudade de algo desconhecido. A narração recomeça sobre a música de Cohen. Há frases no texto que relevam de um absurdo poético e que poderiam fazer pensar em uma tradução errada. A falta de sentido do texto indica que o documentário se afasta mais e mais de um percurso conhecido ou sensato. A danação é inevitável e se faz presente por meio da perda de sentido do comentário narrativo e das imagens:

Os portões do Paraíso estão abertos para todos. Lá, são inspecionados trabalhos que ninguém quer fazer. Lá, cavam‐se buracos sem que se tropece no homem. Lá, esfarela‐se o limo, e os ricos escolhem quem fará essa tarefa. Lá, os homens têm uma sombra apesar do sol escaldante. Depois, animais raros são vistos lá.

Há um corte para a imagem de um personagem que segura um lagarto, sempre sobre a trilha musical de Leonard Cohen. Na banda comentada do filme, Herzog explica que ele e sua equipe encontraram por acaso essa figura, um alemão que estuda lagartos. Diferentemente do personagem africano que abre o bloco, seu discurso, em alemão, mereceu legendas. Mesmo acessível ao espectador, não parece ter mais relevância no contexto da narrativa do filme do que o discurso do velho africano medalhado. Mas esses personagens possuem algo em comum: a estranheza pela sua composição, que se revela na maneira de falar, nas roupas, acessórios (medalhas, óculos de aviador), gestos, expressão facial e corporal. Além disso, a presença tanto de um como de outro no deserto não tem uma explicação.

54 Eu te amava pela manhã/nossos beijos profundos e cálidos/seus cabelos sobre o travesseiro/como uma tempestade dourada e sonolenta/sim, muitos amaram antes de nós,/Sei que não somos novidade,/Na cidade e na floresta/Sorriram como eu e você,/Mas agora nos distanciamos/E ambos precisamos tentar/Seus olhos doces de tristeza/Ei, isso não é jeito de se dizer adeus. (Tradução nossa)

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Há uma relação também entre o alemão com o lagarto e o menino com a raposa do deserto: os animais que eles exibem estão em situação de desconforto, subjugados e estressados pela ação de um ser humano completamente indiferente à sua condição. Os animais são tratados como brinquedos ou objetos curiosos. Ambos parecem orgulhosos, em particular o alemão, que exibe para a câmera o prazer que sente em manipular um animal que, para um europeu, aparenta periculosidade. Fica assim registrada sua suposta bravura num longo plano‐sequência. O espectador vê agora imagens de carcaças de automóveis abandonados no deserto. Esses carros certamente não foram fabricados no Norte da África. As imagens são uma referência à passagem do europeu pelo continente africano e o resultado de sua ação colonizadora. O tema da colonização como ação nefasta e do deslocamento cultural estão presentes na obra de Herzog, tanto no documentário como na ficção (Aguirre – a cólera de Deus, Fitzcarraldo, Cobra Verde, de 1987). Herzog desenvolve esses temas de uma perspectiva crítica, associando‐os à loucura: Na medida em que a ação colonizadora está destinada ao fracasso, aqueles que a conduzem estão condenados à loucura, pois não podem mais voltar para casa, tampouco podem ficar no território conquistado impunemente. Em Fata Morgana, a loucura vai tomando conta da narrativa por meio dos personagens humanos, das paisagens gradualmente mais mentais do que reais, do comentário narrativo e da montagem. No caso das imagens de carcaças de automóveis, surgem dois paralelos: em primeiro lugar, entre os deuses que criaram o mundo e os seres vivos – os quais não escapam da danação e da destruição – e a colonização europeia: o europeu colonizador que se apresenta como ser superior culturalmente (dimensão divina do colonizador), e que tentar subjugar e moldar as populações colonizadas, assim como os deuses moldaram os primeiros seres humanos. Ao final da colonização, sobram apenas destroços. Em segundo lugar, a montagem paralela entre as carcaças de automóveis e de animais remetem à morte que iguala objetos inanimados e seres vivos em um cenário onde todos são perdedores. Herzog encontra outro alemão no deserto. Em pé, com um menino norte‐ africano do lado, ele lê uma carta para a câmera. Há quinze anos ele está longe da casa, vivendo no deserto. A carta, de um amigo ou parente, pergunta sobre o calor e quando ele vai voltar para casa: “Eu vou voltar!”, diz ele. Que miragens terão levado 94 esse homem a deixar a Europa para viver no deserto? O que buscava? Uma nova chance? Fugia de algo? Depois de uma pausa, olhando para a câmera, o menino pede de maneira mecânica: “Um dinar!”. Ele repete três vezes o pedido, sem emoção aparente, sem alteração da expressão facial, como se fosse um boneco de ventríloquo. Essa impressão é reforçada pela proximidade com o alemão, mais alto e fisicamente diferente do menino, tanto nas vestes como nas feições europeias. A dupla é tão insólita quanto o menino com a raposa do deserto. Onde o menino gastará o seu dinar num lugar tão desolado? O personagem existe de fato e, segundo Herzog, a carta que lê é uma carta que recebeu de sua mãe, há quinze anos (HERZOG; CRONIN, 2002: 53). No entanto, a situação do depoimento é encenada. Se as paisagens são filmadas sem interferência do diretor, os personagens humanos são dirigidos de maneira a servir ao propósito dramático do filme, que encontrará o fio de sua narrativa na mesa de montagem. É provável que Herzog tenha pedido aos personagens para encenarem a si próprios, sob sua orientação ou imaginação. A partir deste momento, o documentário se distancia definitivamente de uma construção narrativa tradicional e cria uma lógica interna. Os personagens humanos descobertos no deserto são tão aleatórios quanto as paisagens. Os encontros que acontecem no filme lembram aqueles do Pequeno Príncipe. Porém, há no personagem de Saint‐Exupéry um dado redentor: a busca pela amizade. Por esse motivo, talvez outros personagens de fábula estejam mais próximos do universo herzoguiano, pois transitam num mundo onde a lógica se perdeu completamente, ou passou a obedecer a um raciocínio desconhecido, que não deixa lugar para a bondade, como os personagens de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll. O comentário narrativo “No Paraíso, pombas assadas voam diretamente para dentro da boca. Lá, você se diverte sem ser forçado. Lá, divertimento significa obrigação” poderia ter saído da boca do Chapeleiro Maluco. Segue uma montagem de personagens humanos: um brinca ao lado de um esqueleto de animal, outro continua a falar do lagarto que tem nas mãos. O espectador jamais saberá se está diante de um personagem com alguma sustentação científica que justificaria sua presença no deserto, ou perante um louco. Há uma dimensão lúdica e, ao mesmo tempo, perversa nos personagens, como nos personagens de Hoffman ou Carroll, e o elemento bizarro – não o afeto – é o elo entre 95 seres humanos, animais e o lugar em que se encontram. A raposa do deserto e o lagarto têm um lugar na narrativa pela sua estranheza, da mesma maneira que os personagens humanos. O Coelho Branco de Lewis Carrol não é menos estranho, e, como o animal do filme, também vive com a corda do pescoço, ou acorrentado a um relógio – o tempo. 96

Figura 21 ‐ O Coelho Branco (John Tenniel, 1865)

Figura 22 ‐ Fata Morgana, menino e raposa do deserto 3 (W. Herzog, 1971)

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A câmera fixa enquadra uma mulher europeia55, provavelmente alemã, com cinco meninos africanos – um deles com uma metralhadora de brinquedo. Eles estão em pé, dentro de um lençol de água muito raso, de frente para a câmera, como se fossem posar para uma fotografia. Sua voz é dublada e ela diz: “A guerra‐relâmpago é insanidade”. Ela faz os meninos repetirem a frase em alemão, um por vez, como se ensinasse uma lição. Em seguida, há um corte para a imagem de três meninos africanos de shorts, em pé diante da câmera. Com o rosto sério, eles fazem uma pose com os braços levantados e os punhos fechados. Estão eles encenando uma luta? Eles estão imóveis, como numa pintura. A narração prossegue:

No Paraíso, até os gentios movem montanhas. Lá, guerras foram evitadas por mães. Lá, você espera garças pela esquerda. No Paraíso, ruínas significam felicidade. Lá, você encontra portões sem fronteiras. No Paraíso, carcaças de aviões foram distribuídas pelo deserto antecipadamente. Lá, a paisagem é como Deus comandou que fosse.

Um travelling cria uma antinomia entre a narração e as imagens: vagões sem locomotiva, containers, cercas de arame farpado semidestruídas e outros vestígios de civilização no deserto. Esses objetos e construções não têm nenhuma serventia aparente. Sua disposição não revela se estão em uso, se serão usados, ou viraram sucata. É esta a vontade de Deus ou do ser humano? Sobre imagens de construções (estruturas metálicas, casinhas humildes, filmadas em travellings de cima de um veículo em movimento), tem início a segunda música de Leonard Cohen, Suzanne:

Suzanne takes you down to her place near the river You can hear the boats go by You can spend the night beside her And you know that she's half crazy But that's why you want to be there And she feeds you tea and oranges That come all the way from China And just when you mean to tell her That you have no love to give her Then she gets you on her wavelength And she lets the river answer That you've always been her lover And you want to travel with her And you want to travel blind And you know that she will trust you

55 Trata‐se de uma enfermeira. 98

For you've touched her perfect body With your mind 56

As imagens que desfilam têm o efeito de um filme que passa na frente dos olhos do espectador. Esta constatação pode parecer prosaica, mas não se pensarmos que, normalmente, todos os esforços que cercam a produção de imagens cinematográficas são no sentido contrário, o de camuflar o filme como tal e os mecanismos inerentes à filmagem. Procura‐se criar a sensação de espaço e tempo “reais”. Ao fazer a câmera acompanhar o que seriam o olhar e movimentos humanos, espera‐se que o espectador se esqueça que está diante de um filme. No caso de Fata Morgana, a câmera assume o movimento de um filme que se desenrola. Há um único corte, para uma panorâmica de uma enorme estrutura de metal vermelho em pleno deserto. Esse corte é uma ruptura, uma quebra no ritmo da longa sequência. A montagem sempre busca o fator inorgânico, o inesperado, a contraposição entre a alucinação e o despertar, para chegar a uma nova alucinação. Ao final da música, a narração retorna com mais um comentário sobre as imagens: “No paraíso, você diz ’olá’ sem ver ninguém. Lá, você briga com estranhos para evitar ter amigos. No Paraíso, o homem nasce morto.” E, assim, começa a terceira música de Leonard Cohen, So long, Marianne. Neste ponto há um corte para tomadas aéreas de vastas extensões de terra e areia, crateras, rios, seguidas de uma panorâmica do deserto. Em seguida, há uma imagem onde vemos em último plano, um ônibus e pessoas. Eles parecem estar sobre um espelho d’água e seus contornos são incertos, por causa das ondas de calor. A câmera é fixa e observa até o momento que o ônibus parte. Na banda comentada do filme, Herzog afirma que essa sequência é uma miragem do tipo fata morgana. Ele conta que a equipe foi até o lugar onde tinham estado o ônibus e as pessoas, e não encontram nenhum vestígio deles. Herzog conclui que era uma miragem. Acreditar – ou não – é parte do contrato que se estabelece entre o diretor e o espectador.

56 Suzanne te leva para sua casa perto do rio/Onde você ouve os barcos passar/Você pode passar a noite ao seu lado/E você sabe que ela meio louca/E por isso você quer estar lá/E ela te oferece chá e laranjas/Que vieram lá da China/E quando você quer dizer a ela/Que você não tem amor nenhum para lhe dar/Ela entra na sua onda/E deixa o rio responder/Que você sempre foi o seu amor/E você quer viajar com ela/Viajar para qualquer lugar/E você sabe que ela confiará em você/Pois você tocou seu corpo perfeito/Com sua mente. (Tradução nossa)

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Herzog não fecha o bloco com a imagem do ônibus que se afasta, como talvez fosse a opção tradicional de montagem. Escolhe terminar o bloco com mais uma imagem, desta vez mais curta, de algo que parece ser um veículo em movimento ao longe – ou uma miragem –, envolta em ondas de calor. Imagens curtas e fora do lugar, segundo parâmetros tradicionais de montagem, contribuem para a dimensão de fantasia ou alucinação daquilo que o espectador vê. Não estaria o espectador, por meio do processo criativo de Herzog, também imaginando ver coisas que não existem? E não é tudo que vemos numa tela de um cinema ilusão, ou apenas uma luz tremeluzente? III. A Idade de Ouro (Das Goldene Zeithalter): Nesse bloco, a montagem é radicalmente fora dos padrões tradicionais narrativos. As sequências se sucedem e cabe ao espectador decidir como as interpretará, que sentido atribuirá a elas. Dessa maneira, Herzog repassa ao espectador a responsabilidade pelas suas próprias emoções. Esta é, provavelmente, a maior ruptura conceitual do filme, na medida em que, no cinema tradicional, o diretor costuma assumir o comando das emoções do espectador, direcionando o que sente e suas reações. O bloco começa com a imagem fixa de dois personagens tocando uma música em um lugar que não é identificado no filme. As imagens foram filmadas na ilha de Lanzarote, na Espanha57. Um dos personagens é uma senhora com os cabelos com laquê tingidos de ruivo, sentada a um piano de armário. O outro é um homem de cerca de trinta anos que toca uma pequena bateria. Eles estão em uma pequena sala ou cubículo, cuja decoração se resume a dois falsos violões na parede e duas guirlandas que se cruzam no teto. O homem usa óculos de aviador ou de esquiador, aparentemente os mesmos que usa o alemão com o lagarto e um dos meninos negros em sequências anteriores. Na banda comentada, Herzog conta que a mulher era dona de um bordel e o homem, um proxeneta. Os personagens terminam de tocar e ficam imóveis. A câmera é fixa. A narração é retomada, desta vez na voz de Manfred Eigendorf. Herzog diz ser ele um amigo e poeta.58 O casal retoma seu pequeno recital. A qualidade do som é ruim, e a qualidade das imagens não é muito melhor. O todo faz lembrar um vídeo caseiro gravado em um

57 Informação verbal a partir do seminário Werner Herzog’s Rogue Film School, Londres, março de 2011. 58 Informação verbal a partir da banda comentada do DVD do filme. 100 final de festa, ou em um restaurante que ninguém frequenta. Ainda com a trilha da música espanhola, retornam as imagens do deserto, filmadas com a câmera na mão. Ao final da música, um dos raros cortes que sincronizam som e imagem. Em seguida, imagem de menino negro numa beira de praia, posando para a câmera. Ele aponta para a areia com os dois dedos indicadores. A narração é de Eigendorf: “Na Idade de Ouro, vestígios do Paraíso ainda podem ser detectados. Aqui, por exemplo, uma nave um dia pousou”. Estaria o menino ilustrando o que é dito na narração com seu gesto, apontando para vestígios de uma nave celeste? Para cada pergunta que o filme coloca, cabem respostas diferentes, ou praticamente uma resposta por espectador. Vemos agora um plano aberto de uma procissão de africanos passando em frente a uma igreja. A trilha sonora é um canto foclórico africano que pertence ao acervo sonoro de Herzog, gravado em outra ocasião. Ainda sobre a narração, é mostrada uma montagem de tomadas de mulheres e homens europeus se comportando como se fossem loucos, em meio a uma paisagem rochosa. Na banda comentada do filme, Herzog explica que encontrou turistas alemães e pediu a eles para se comportarem dessa maneira diante da câmera. É necessário notar que a loucura é encenada. Em Fata Morgana, Herzog não foi a um hospital filmar pessoas com condições mentais especiais, como foi o caso, por exemplo, de Frederick Wiseman em Titicut Follies (1967), ou o caso de Albert e David Maysles em Grey Gardens (1975). Tampouco contratou atores com alguma deficiência mental, como fez com Bruno S. em Stroszek (1976) e O enigma de Karpar Hauser. Neste caso, Herzog escolhe seus personagens e os dirige. Mesmo se não o são, tornam‐se loucos no contexto da narrativa. Na maior parte das sequências, os personagens apenas parecem estranhos ou loucos pelo viés da composição da imagem e dos elementos cenográficos, como é o caso do proxeneta e da dona do bordel. Quanto aos turistas alemães, eles são incitados a se comportar de maneira explicitamente insana. A montagem é seca, brutal na apresentação de de personagens estranhos: Voltam os personagens da ilha de Lanzarote, que tocam agora outra música, sempre na mesma posição. A imagem é fixa e a música segue até o final, sem cortes. Há um corte para uma sequência externa, onde estão três novos personagens. Na banda comentada, Herzog diz tratar‐se de seu técnico de som, de um habitante do lugar e de 101 um ator, que é também seu melhor amigo. Visivelmente orientados por Herzog, o ator lê um texto sem sentido em alemão, enquanto o técnico de som lida com uma câmera filmadora portátil; o personagem norte‐africano toca um pequeno violão e gargalha. A loucura parece ter tomado conta de todos e a narrativa é desconstruída a cada nova sequência. O personagem termina sua leitura e ergue um vaso com uma planta. Um dos últimos personagens desse desfile de figuras bizarras está à beira de um tanque de tartarugas, vestido com roupa de mergulho. Segura uma tartaruga marinha e demonstra como é o animal. A explicação ecoa com a do personagem alemão com o lagarto. Ele coloca a tartaruga de volta no tanque e mergulha atrás dela. Na banda comentada, Herzog diz tratar‐se de um suíço‐alemão, dono de um restaurante. Mais uma vez aparece a dupla de músicos que, nesse ponto, se tornaram um leitmotiv audiovisual da loucura. E há mais um corte para uma vista aérea, com a música espanhola ao fundo. A topografia que a câmera sobrevoa pode ser de mar, rios ou areia. As tomadas aéreas adquirirão uma importância crescente nos filmes seguintes da trilogia. A música chega ao fim, e a narração retoma:

Não há nada como a paz da Idade de Ouro. A guerra foi proclamada morta pela Paz. Nada é maior que a Areia. Nada é maior que a Paz. A Terra está encantada com a Paz.

A música Sea of Joy volta quando das tomadas aéreas. Há um corte para a imagem de um veículo em movimento ao longe, no deserto. Uma derradeira miragem? A pergunta deixou de ter relevância. A câmera para de seguir o veículo, que sai de quadro. Entram os créditos finais. Há um comentário de Herzog na banda comentada do filme que explica em parte sua opção pelo caminho do absurdo:

Às vezes, é um modo de se fazer as coisas num filme que lhe conferem um certo poder, pela insistência de persistir nesse modo. A insistência dá força e poder à imagem. Isto é algo que Hollywood não compreende. A busca por imagens é algo que não abandonei. 59

59 Informação verbal a partir da banda comentada do DVD do filme. 102

Ao dizer isto, Werner Herzog compartilha com o espectador o processo experimental de Fata Morgana, visível na construção poética do filme, e seu resultado. Ao espectador que acompanha Herzog em sua busca nem sempre fácil por imagens adequadas, cabe o privilégio de conhecer a viagem iniciada em Fata Morgana que terá continuidade em Lições da escuridão.

3.3. Lições da escuridão: o Apocalipse em treze quadros

Lições da escuridão foi exibido pela primeira vez no canal Discovery Channel, como parte de uma série de documentários chamada Discovery Journal. Diferentemente de Fata Morgana, o projeto de documentário tinha uma pauta definida: a Guerra do Golfo (agosto 1990 / fevereiro 1991). Em 1991, logo após o final da guerra, Herzog envia o cinegrafista Paul Berriff para o Kuwait para filmar poços de petróleo que queimavam há sete meses, ou seja, desde fevereiro daquele mesmo ano. Tropas iraquianas acuadas por ofensivas do exército do Kuwait, fortemente escorado pelo exército americano de George Bush (pai), tinham ateado fogo nos poços de petróleo de seus inimigos antes de baterem em retirada. Quando Herzog chega ao Kuwait (alguns dias depois de Berriff), empresas petrolíferas americanas e inglesas tinham mandado seus especialistas in loco para conter e apagar os incêndios. A batalha travada contra as labaredas com a qual Herzog se depara é uma guerra dentro de outra guerra, onde o confronto não se dá entre exércitos formados por homens e armas, mas entre o ser humano e natureza. Herzog traz esta guerra para o centro do palco e faz do fogo e da água os protagonistas da narrativa. É difícil dizer se esse era o produto que o canal Discovery esperava: Herzog regressa do Kuwait com um documentário fora dos padrões narrativos televisivos (e padrões narrativos audiovisuais, em geral), desdenhando o formato jornalístico e descartando qualquer informação precisa: no lugar, ele cria uma obra poética, constituída por rimas visuais e contornos de um filme de ficção científica. Lições da escuridão suscita reações e críticas violentas a Herzog por ocasião da projeção do filme no Festival de Cinema de Berlim, de 1992. Em uma Alemanha que ainda não se apaziguou completamente com relação à sua história recente, Herzog é 103 vaiado e acusado de estetizar o horror da guerra (vale lembrar que, de um modo geral, a obra de Herzog nunca foi aclamada ou bem recebida em seu próprio país). Sete anos depois, o diretor escreveria a Declaração de Minnesota, manifesto que rejeita o Cinema Verdade, assim como toda e qualquer verdade vinculada apenas aos fatos.60 A Declaração tem doze itens, vários dos quais são mais poéticos do que objetivos, como, por exemplo: “A lua está sem brilho. A Mãe Natureza não está chamando, não fala com você, embora uma geleira, eventualmente solte ar. E você não ouve a Música da Vida.” Se, em Fata Morgana, o caráter experimental da realização é visível nas costuras do filme, em Lições da escuridão Herzog se embrenha mais profundamente na trilha que abriu em 1971, sem mudar de curso. Porém, desta vez, tem objetivos mais definidos e, como transparece no produto final, maior controle sobre o material que foi filmado. O título do documentário pode, à primeira vista, aludir a uma obra didática. Já foi mencionada a possível relação entre os blocos do documentário e quadros operísticos ou movimentos sinfônicos. O espectador compreenderá, no decurso do filme, que Herzog pode estar aludindo às Revelações bíblicas, que estão divididas em capítulos, e às quais também é atribuído o nome de Profecias do Apocalipse. Lektionen in Finsternis é o título original em alemão – Lições da escuridão, em português. O substantivo Finsternis pode também ser traduzido como “tenébra” ou “eclipse”. Lembramos aqui a relação entre Fata Morgana e Lições da escuridão, que se faz por meio do título, sendo a trilha musical de Fata Morgana inspiração para o título de Lições da escuridão. François Couperin compõe, no século XVIII, as Leçons de Ténèbres, ou Lições de Trevas, para liturgias da Semana Santa, mais especificamente para o Ofício de Trevas. O Ofício de Trevas era celebrado nos mosteiros e catedrais na penumbra, com a iluminação proveniente apenas de um grande candelabro de 15 velas. A cada versículo cantado, uma vela era apagada, de modo que, ao final do ofício, o local estava na total escuridão. As Lamentações de Jeremias descrevem os sofrimentos dos hebreus exilados com a queda de Jerusalém ante os babilônios. Trata‐se, portanto, de um ritual

60 Ver a Declaração de Minnesota, no Anexo. 104 sobre o mistério do sofrimento e da morte – temas próximos àqueles abordados por Herzog – representados de maneira dramática, tanto na música como na encenação do ritual. Vinte anos depois de Fata Morgana, as trevas ainda ameaçam a humanidade e o diretor dá o nome das composições de Couperin ao seu documentário, Lições da escuridão. Desde seu primeiro contato com o filme, o espectador sabe que uma história feliz ou solar não o espera. O lugar a ser visitado é sombrio, e o estado de espírito que ali impera, também. O título é um convite para uma visita ao submundo de Hades. O que o espectador não faz ideia, ao começar a assistir o filme, é do grau de licença poética que Herzog irá se permitir para abordar uma guerra já fartamente mediatizada nos telejornais. Será a Guerra do Golfo apenas uma desculpa para Herzog abordar certas questões, expressar de maneira autoral sua visão sobre os seres humanos e suas ações sobre o planeta? O tom apocalíptico do documentário é determinado, desde o início, pela trilha musical O ouro do Reno, de Richard Wagner. Há uma epígrafe atribuída ao matemático francês Blaise Pascal: “O colapso do universo estelar ocorrerá – como a criação – em grandioso esplendor”. Nunca será dito, em nenhum momento do filme, que a citação que abre o documentário não é de autoria de Blaise Pascal, mas do próprio Herzog. Ao não assinar sua epígrafe, o diretor estabelece, desde o início, que seu compromisso não é com a verdade, ou pelo menos não como verdade absoluta, mas uma verdade deontológica, segundo o conceito de Maffesoli:

Quando já não se tem quaisquer garantias, ideológicas, religiosas, institucionais, políticas, talvez seja preciso saber apostar na sabedoria relativista. Esta “sabe”, por um saber incorporado que nada é absoluto, que não há verdade geral, mas que todas as verdades parciais podem entrar em relação umas com as outras. É isto, o bom uso do relativismo, quando não há uma finalidade assegurada, quando o objetivo distante esmaeceu‐se, podemos conceder às situações presentes, às oportunidades pontuais, um valor específico. (MAFFESOLI, 1998: 9)

Herzog se deparou com imagens impressionantes no Kuwait e procura reproduzir no espectador esse impacto. Imagens sempre foram manipuladas ou construídas ao longo da história, por motivos diversos – políticos, religiosos, morais ou 105 estéticos. Da Mona Lisa, que até hoje não sabemos com certeza de quem se tratava (uma mulher ou um jovem rapaz?), da perspectiva renascentista ao trompe l’oeil, e, no século XX, a arte op; da fotografia, onde personagens que se tornaram personae non gratae – como Trotsky, na União Soviética – são apagados, ao filme e, mais recentemente ao vídeo, a imagem que permanece não é necessariamente aquela que detém a verdade histórica, mas aquela que melhor interpreta e traduz imageticamente uma sociedade em um tempo e lugar determinados. No caso, se Herzog não utiliza efeitos especiais, nem por isso suas imagens deixam de ser construídas de maneira a gerar um certo estado emocional. Vemos imagens de poços de petróleo, paisagens esfumaçadas que desfilam em um tempo dilatado e o comentário narrativo que descreve a Terra como se fosse um planeta desconhecido. Imagens de silhuetas humanas, trabalhadores de empresas petrolíferas. O narrador‐explorador se refere a eles como “criaturas”, tirando‐lhes a humanidade e estabelecendo o clima do filme como sendo uma obra de ficção científica, ou algo “fora do mundo”: “A primeira criatura que encontramos tentou nos comunicar algo.” Esta afirmação revela que existem dois mundos que não se conhecem e não estão em comunicação. O narrador‐explorador menciona a tentativa de comunicação, mas deixa em suspenso se a comunicação foi estabelecida ou não. Que mundos serão esses? Não há definição geográfica de fronteiras. O comentário narrativo pode estar se referindo a diferenças geográficas, mas também diferenças culturais, políticas ou religiosas. Afinal, não são as guerras o resultado de diferenças que ultrapassam a topografia ou o mapa geopolítico de uma determinada região? Não há letreiros ou intertítulos contendo qualquer indicação com nomes de cidades, pessoas ou datas, apenas o nome de cada bloco do filme. Fica a cargo da imaginação do espectador estabelecer quais são aqueles lugares e quem são os personagens. Em nenhum momento é dito que o documentário foi filmado no Kuwait. Fala‐se em soldados, mas não é explicitado de que exército se trata, nem de qual guerra, quando ela ocorreu e quem venceu e foi vencido. Está assim aberta a porta para uma fábula que, como toda fábula, carrega em si uma essência simbólica da realidade. 106

I. Uma Capital (Eine Hauptstadt): O primeiro bloco mostra imagens de uma cidade. A chegada a essa cidade se dá pelo céu. De imediato, o espectador é exposto a sons e imagens estranhos, sem explicação. Eis a única indicação: “Um planeta do nosso sistema solar.” Som de uma voz humana, falando uma língua desconhecida, provavelmente um imã dizendo uma oração (a última antes do Apocalipse?) em sua mesquita. A voz ecoa pela cidade. Assim é introduzido o primeiro elemento de natureza mística no documentário, uma oração em língua estrangeira. No primeiro plano da cidade, ergue‐ se uma construção que parece ser o minarete. A luz crepuscular contribui para construir o quadro fúnebre que se prenuncia. As imagens, filmadas em câmera lenta, dão a impressão de um tempo suspenso. Fora a câmera lenta, não há outros efeitos especiais no documentário: tudo aquilo que parece estranho, estrangeiro, alienígena é o que foi registrado pela lente da câmera. A estranheza das imagens se dá na confluência de vários elementos: a luz (ou a falta dela), a câmera lenta, a perspectiva aérea, a arquitetura local, a língua que é falada, os destroços de guerra, as roupas das pessoas e a natureza desfigurada. Neste primeiro capítulo (estrofe, ato ou movimento), o narrador fala da batalha e da destruição que se aproximam. Os moradores da cidade são inocentes, mas o espectador não, pois, como cúmplice do narrador onisciente, é testemunha dos últimos momentos de paz antes do caos: “Ninguém suspeita da inevitável condenação.” A trilha musical tem início: A morte de Aase, em Peer Gynt, de Edvard Grieg. É comovente a tranquilidade da cidade que desfila sob os olhos do espectador. Tudo aquilo que seus olhos veem em breve não existirá mais, e não há nada que ele possa fazer. A trilha é uma marcha fúnebre antecipada, que anuncia o fim da cidade e dos seres que a habitam. Não estaria o imã pedindo proteção divina contra a catástrofe que se aproxima? II. A Guerra (Der Krieg): Capítulo curto, com pouco mais de quarenta segundos. Sobre imagens de arquivo da CNN, o narrador conta que a guerra durou apenas algumas horas. As imagens da CNN são tão insólitas quanto as imagens filmadas pelo cinegrafista de Herzog. São cenas de um ataque noturno, filmadas com infravermelho. A chuva de bombas sobre a cidade nas imagens granuladas e esverdeadas parecem 107 imagens de alguma guerra interplanetária. Som de uma sirene sobre a trilha, como um alerta ou um toque de recolher. A sirene é rouca e sinistra, como o grito de um animal em perigo. Herzog não possuía um registro próprio da guerra, mas encontrou nas imagens de arquivo um material no mesmo diapasão das imagens que filmou. Herzog‐ narrador anuncia: “Depois da guerra, estava tudo diferente.”

Figura 23 ‐ Lições da escuridão, imagem de arquivo (W. Herzog, 1992)

III. Depois da Batalha (Nach der Schlacht): Este capítulo abre com pássaros negros voando no céu. Corta para a terra, aparecem os primeiros destroços, que o espectador ainda não sabe se são pedaços de máquinas ou esqueletos. Estas imagens compõem rimas visuais com as imagens de destroços de Fata Morgana. A trilha é o prelúdio de Parsifal, de Richard Wagner. Sequências filmadas de cima de um veículo também lembram Fata Morgana. Cenário de desolação e destruição, destroços, ruínas. A batalha terminou, deixando apenas vestígios do que foi uma cidade povoada. O olhar do espectador paira no ar, a câmera lenta passa a sensação de falta de gravidade. Aparecem os primeiros indícios da exploração de petróleo na região: dutos inoperantes, containers gigantescos que desmoronaram como se fossem feitos de papel. Tornaram‐se inúteis, sucata. A tranquilidade desse passeio aéreo contrasta com a violência que ocorreu no lugar recentemente. A terra ocre e seca tem a textura de pele queimada, com feridas e cicatrizes: dela emergem o que restou de edificações 108 humanas. Não há vestígios de vegetação ou de vida animal: “A grama nunca mais cresceria de novo aqui.” IV. Achados das câmaras de tortura (Fundstücke aus Folterkammern): A câmera está na mão. A trilha é uma sonata de Prokofieff para dois violinos. Ouvem‐se passos da pessoa que anda vagarosamente e descobre instrumentos de tortura. Há vestígios de sangue sobre esses instrumentos. Que lugar é esse? Onde fica essa câmara de tortura? Em um quartel? Em um hospital? As respostas nunca serão fornecidas. Sem respostas, o horror das imagens não poderá ser aplacado por meio da racionalização. Instrumentos estranhos desfilam sob a lente da câmera – ou sob o olhar do espectador‐explorador. O tempo longo da sequência que custa a passar permite que o espectador se pergunte de que maneiras aqueles instrumentos foram usados, quem padeceu por meio deles. Uma cadeira de metal fecha a exposição macabra. Há material elétrico perto da cadeira. Esses objetos pertencem a um mundo desconhecido onde valores civilizados também são desconhecidos. Há um corte para uma mulher muçulmana, vestida de negro, com a cabeça coberta por um véu, mas o rosto à mostra. Sentada em uma cadeira, ela conta como assistiu ao assassinato dos filhos por soldados inimigos, e como perdeu a fala depois disso. Ela consegue apenas balbuciar palavras. A expressão de seus olhos e o tom de sua voz, que soa como a de um pequeno animal ferido, comunicam ao espectador a dor pela qual passou e obviamente ainda persiste. Ao final de seu depoimento, ela suspira profundamente. Não por acaso, trilha musical é o Stabat Mater de Arvo Pärt. O Stabat Mater, que pode ser traduzido como “A mãe em pé”, é originalmente um hino católico do século XIII associado a Nossa Senhora das Dores. O texto original evoca o sofrimento de Maria ao assistir à crucificação de Jesus. Esta é uma das duas aparições de personagens humanos com diálogos que Herzog irá conceder à narrativa do documentário. Em nenhum dos dois casos há legendas para as falas das mulheres. Herzog as deixa falar e narra para o espectador a essência do que ela dizem, à sua maneira. Como em Fata Morgana, os elementos narrativos dos personagens não estão em seu discurso, mas em suas vestes, olhar, expressão corporal, gestos e na entonação de sua voz. 109

V. Parque Nacional de Satã (Satans Nationalpark): Sobre a vista aérea, a narração conta que a terra seca que desfila sob os olhos espectador foi um dia uma floresta, e que o que parece ser água é, na realidade, petróleo. Há grandes lagos de petróleo negro. O narrador diz que as águas são enganadoras, pois, como no devaneio cósmico de que fala Bachelard, refletem o céu. Porém, neste caso, existe uma noção de logro, de traição ou armadilha, e não de complementaridade benévola: “O petróleo está tentando se fazer passar por água. Caminhões trafegam por estradas de terra em meio à poeira. Do helicóptero de onde são filmadas as sequências, avista‐se o primeiro poço de petróleo em chamas ao fundo da paisagem. Neste momento, há a primeira inserção de textos bíblicos na narração, do Livro das Revelações61 do Novo Testamento: “E se fizeram relâmpagos, e vozes, e trovões, e foi feito um grande tremor de terra, tal tremor e tão grande, qual nunca foi feito depois que estiveram homens sobre a terra. (16:18)”. Essa descrição se refere a um terremoto físico descrito em versículos anteriores, mas também a um terremoto simbólico, a queda da Babilônia. O terremoto físico deixa a cidade em ruínas e o simbólico desmantela a noção de civilização. “E a grande cidade se dividiu em três partes, e as cidades das Gentes caíram; e a grande Babilônia veio em memória diante de Deus, para lhe dar o copo do vinho da indignação de sua ira. (16:19)”. A destruição da Babilônia representa a queda de poderes políticos e poderes religiosos apóstatas. “E toda ilha fugiu; e os montes não se acharam. (16:20)”. As convulsões da terra descritas aqui são o resultado do terremoto do versículo 18. O céu está coberto por nuvens escuras. A trilha musical, o Stabat Mater, intensifica o clima apocalíptico que cresce à medida que o explorador celeste se aproxima dos poços de petróleo em chamas. VI. Infância (Kindheit): Este capítulo começa com a imagem de uma nuvem negra varrendo a terra e qualquer forma de vida que haja sobre ela, como se fosse uma praga, uma punição divina que se abate sobre o planeta, indiferente ao sofrimento das criaturas que o habitam. Em seguida, há um corte para uma jovem mãe

61Existem muitas interpretações das Revelações. Minhas pesquisas delinearam quatros principais escolas: a preterista, que faz uma leitura da ótica do apóstolo João, a histórica, cuja ótica é a história da humanidade, a idealista que alerta para uma sucessão de impérios sem Deus até a volta de Cristo, e a futurista, cuja ótica é profética. As duas últimas são as que dão conta da interpretação das Revelações escolhidas por Werner Herzog no contexto deste estudo. 110 muçulmana. É a segunda e última concessão a um depoimento. Ela conta que até suas lágrimas eram negras. A narração não explicita que a causa era a fumaça dos incêndios. Dessa maneira, as lágrimas negras adquirem uma conotação de horror metafísico, como um castigo dos céus. A mãe prossegue seu relato: com um menino no colo, ela conta que o filho teve a cabeça pisoteada por um soldado, e viu o pai ser assassinado por soldados inimigos. O filho nunca mais falou depois desse trauma. Suas últimas palavras foram: “Mamãe, eu nunca quero aprender a falar”. O menino se encolhe no colo da mãe. Não há trilha musical. A criança tem o olhar sério de um adulto. VII. E uma fumaça levantou como a fumaça de uma fornalha (Es stieg ein Rauch auf, wie ein Rauch vom Ofen): Vista aérea. A velocidade das imagens se intensifica. A trilha musical é a Marcha fúnebre de Siegfried, de O crepúsculo dos deuses, quarta e última ópera da tetralogia O anel dos Nibelungos, de Wagner. Esta obra de Wagner é também chamada de poema épico e foi inspirada na mitologia nórdica. Foi mencionado o uso dessa obra por Francis Ford Coppola em Apocalypse Now. Há outra referência no cinema com relação à ópera de Wagner: Luchino Visconti que, como Herzog, dirigiu óperas além de filmes. Visconti deu o título La caduta degli dei (1969), ou O crepúsculo dos deuses, ao filme sobre uma rica família aristocrática alemã que lida com os primeiros e inegáveis sinais de sua decadência durante a ascensão do nazismo. A história é uma alusão ao embate e difícil transição entre forças do passado e do presente, simbolicamente representadas nas óperas de Wagner pelo embate entre deuses e homens. 111

Figura 24 ‐ Lições da Escuridão, incêndio 2 (W. Herzog, 1992)

Figura 25 ‐ O Anel dos Nibelungos (R. Wagner / Ópera de Colônia, 2010) 112

Como os três filmes da trilogia, O Anel dos Nibelungos é uma viagem onírica, inspirada na Edda Poética62. A ópera é a história da luta pelo poder entre homens e deuses, entremeada por uma história de amor incandescente, fadada a levar seus protagonistas à tragédia e à morte que prenuncia o crepúsculo dos deuses. A relação com Lições da escuridão se estebalece por meio da luz crepuscular, dos personagens sobrenaturais (ou extraterrestres, no caso do filme) e do fogo – que imprimem o tom de poema épico trágico às duas obras. Há outra relação entre a trilha musical e o documentário. Foi citado que, ao compor o ciclo de O Anel dos Nibelungos, Wagner não queria apenas compor uma ópera: ele almejava criar uma obra que fosse uma obra de arte total, onde teatro, poesia, música e pintura comporiam um todo. Richard Wagner dá conta de uma visão interdisciplinar da criação, que será abraçada também por Herzog quando ele pulveriza as barreiras entre música, cinema documentário e ficção e comentário narrativo, transcriando a linguagem operística em linguagem cinematográfica. Em um crescendo de catástrofe iminente, Herzog‐narrador introduz as Revelações: “E o quinto anjo tocou a trombeta, e vi uma estrela que do céu caiu na terra; e foi‐lhe dada a chave do poço do abismo. (9:1)”. A estrela que cai representa a queda de um líder. A chave que é dada a esse líder apóstata abre a porta para uma terra desolada. “E abriu o poço do abismo, e subiu fumo do poço como o fumo de uma grande fornalha: e com a fumaça do poço, escureceu‐se o sol e o ar. (9:2)”. O sol de que fala a Revelação se refere à verdade e à luz de Cristo. Logo, a escuridão é o oposto da verdade e representa ensinamentos falsos e errôneos. “E naqueles dias os homens buscarão a morte e não a acharão; e desejarão morrer, e a morte fugirá deles. (9:6).” Esta Revelação é uma alusão à vida que só é mantida para que a dor continue, para que tudo o que é sagrado seja profanado, para

62 Também conhecida como Codex Regius, a Edda Poética é originalmente um conjunto de lendas orais islandesas que passaram a ser escritas entre os séculos X e XIII em versos, por autores diferentes. São relatos sobre a mitologia nórdica, onde os personagens são deuses e heróis, dentre eles mulheres guerreiras. Os poemas são trágicos e serviram de inspiração para August Strindberg, Richard Wagner e Ezra Pound. 113 que tudo o que é caro aos homens seja ameaçado, e o descanso seja sempre brutalmente interrompido, tornando assim a morte um bem‐vindo alívio. Chegamos ao coração da tormenta: a fumaça apocalíptica cobre o céu. Este capítulo e o próximo são os mais longos do documentário. Entram em cena os poços de petróleo, protagonistas do documentário. Se não fosse por eles, Herzog e sua equipe sequer teriam ido até o Kuwait filmar. Além disso, a nova batalha que se trava nesse lugar sem nome gira em torno da extinção desse personagem dramático, o inimigo post‐bellum que surge após a debandada do exército iraquiano. Herzog expõe a arena desolada onde é travada a batalha entre o fogo e os seres humanos, entre o fogo e a água. VIII. Uma Peregrinação (Eine Wallfahrt): O capítulo começa com a introdução de três novos personagens: os técnicos que trabalham na extinção do fogo, o fogo e a água. Os técnicos são mostrados como cosmonautas ou seres de outro planeta, vestidos com roupas especiais, capacetes e máscaras. Vieram de muito longe para aplacar a ira do fogo, expondo‐se ao perigo das chamas, correndo o risco de perderem suas vidas neste sítio infernal. Elementos simbólicos da obra de Wagner, como o fogo e a água, encontram resonância nas imagens do documentário: o fogo é presença constante na tetralogia, sendo encarnado pelo deus Loge, que consome vários personagens, tanto física como espiritualmente, inclusive Brunnhilde, par romântico de Siegfried. Na ópera O crepúsculo dos deuses, o fogo interage com a água, que por sua vez prenuncia um recomeço, símbolo da criação e serenidade, representada pelo rio Reno. Como acontece no documentário de Herzog, a água apaga o incêndio no último ato. Herzog dirigiu várias óperas de Wagner, como Parsifal, Tannhäuser, O holandês voador e Lohengrin, mas não dirigiu nenhuma das obras da tetralogia de O Anel dos Nibelungos. Apesar desse fato, em certos momentos, a construção dramática de Lições da escuridão parece calcada na construção de certos momentos da tetralogia wagneriana. A partir deste momento, é explorada a antropomorfização do fogo e da água, como dois oponentes em uma batalha de vida ou de morte: o fogo é um personagem furioso, ultrajado, que ameaça os seres humanos. Fruto de uma terra violentada – por seres humanos –, o fogo não se submete à vontade do homem como o resto da 114 natureza. A água é o único oponente à altura do fogo. Ela é uma aliada dos técnicos‐ cosmonautas, que enfrenta o adversário e também esfria seus corpos superaquecidos. Ouve‐se vozes humanas, mas o que dizem é ininteligível. Não há trilha musical: a trilha sonora é o rugido do fogo e da água. A água escorre, misturada ao petróleo. A terra é negra. Outros aliados dos seres humanos aparecem: tratores e gruas são mostrados como animais que comem fogo em uma tentativa de enfrentá‐lo. Os homens têm agora bananas de dinamite nas mãos. Tentarão conter a explosão do fogo com uma explosão ainda maior. O fogo começa, aos poucos, a ser subjugado. Os sons diminuem. IX. O caminho dos sáurios (Saurier unterwegs): A trilha musical é o Réquiem de Verdi. Requiem, acusativo de requies, em latim, significa “repouso”. A missa de réquiem é também conhecida como a missa dos mortos, celebrada para que suas almas repousem em paz. O réquiem musical é uma composição que segue a estrutura de uma missa, e é tocado em cerimônias fúnebres. Assim, ao final do documentário, a trilha musical anuncia a morte de seu principal personagem, o fogo. Como foi pontado, nas obras musicais escolhidas para o documentário, tanto de Wagner como de Verdi, existe uma relação com o mundo metafísico por um viés místico. Panteísta desde Fata Morgana, Herzog não faz diferença entre o viés católico de Verdi ou o mitológico de Wagner. Tratores, como insetos gigantes (ou seres pré‐históricos) passeiam pela fumaça tranquilamente. Um helicóptero surge da fumaça, como um dinossauro alado. As partes dos tratores são mostradas como garras gigantes, patas, braços e pernas. Alguns seres humanos observam calmamente esses “animais” devidamente domesticados que trabalham para eles. Não há texto narrativo. As imagens são acompanhadas pela música. Neste ponto do documentário, ou deste ato ou quadro, talvez não seja mais o caso de chorar a morte da cidade e das pessoas que nela habitavam, mas a morte do principal personagem desse épico, o fogo. X. Protuberâncias (Protuberanzen): O petróleo é de origem fóssil. O fóssil líquido se esparrama pela terra em 1991, visão que alude ao fato que, de certa maneira, essa matéria negra que emerge de lugares profundos representa uma volta dos sáurios à superfície da terra. Este pequeno capítulo é uma montagem de imagens de substâncias líquidas borbulhando, fervendo, sem música. Os lagos lisos e tranquilos 115 de petróleo do capítulo V. Parque Nacional de Satã, deram lugar a um novo tipo de solo, enrugado, machucado, inóspito, onde é impossível pisar. Ora esburacado, ora pontiagudo, escorregadio, pegajoso e traiçoeiro, o novo solo que surge depois dos incêndios tem sua própria topografia e constituição, e, por muito tempo, sobre ele não serão bem‐vindos seres humanos. XI. A extinção dos poços (Das Versiegen der Quellen): Vista aérea da região. O céu está coberto pela fumaça escura dos poços, quase extintos. O petróleo volta a jorrar. Neste momento, resta fechar os poços. A trilha musical é um noturno de Schubert. O espírito lúgubre de Wagner deixou o campo de batalha e o documentário. Os técnicos aparecem de novo, desta vez, humanizados: Herzog mostra seus rostos, sujos e sorridentes: eles são os vencedores da batalha contra o fogo. O sol aparece pela primeira vez. Em certas tomadas, a câmera é lenta. Schubert é substituído pelo som do petróleo que jorra. Os técnicos conversam, satisfeitos, rindo, como se contassem piadas um para o outro. Não são mais cosmonautas ou seres de outro planeta: são seres humanos. Não há narração. As imagens perdem a qualidade sobrenatural ou estranha que havia anteriormente. Os homens trabalham com suas máquinas, fechando um a um os poços, agora inteiramente domados. Por um instante, o espectador quase poderia estar diante de um documentario institucional de alguma empresa petrolífera. XII. A vida sem fogo (Leben ohne Feuer): Não há trilha musical, apenas os sons do lugar. Na realidade, são efeitos sonoros. As imagens mostram dois técnicos. Um deles acende uma tocha e atira num poço de petróleo que jorra, e este volta a queimar. Outros técnicos fazem a mesma coisa. Há tomadas em primeiro plano de técnicos fumando e rindo perto dos poços de petróleo que ardem. Na realidade, há uma razão para os técnicos reacenderem os poços: o petróleo que jorra de alguns poços apagados se alastra, formando um lago que ameaça chegar até os poços que ainda queimam. O contato entre os dois elementos precisa ser evitado a fim de prevenir uma grande queimada. No entanto, no comentário narrativo, Herzog aproveita a situação e cria uma situação dramática: o narrador pergunta se alguns desses homens não teriam enlouquecido, se não precisam ter um incêndio para extinguir para ficarem satisfeitos, se a vida não se tornou insuportável sem o fogo. Seria realmente loucura? Simples 116 divertimento? Compulsão? Ou haverá alguma explicação lógica ou técnica para tal ato? O narrador não oferce respostas a essas perguntas. Diante das imagens, prefere vaticinar que se trata de um caso de loucura. Apesar da interpretação de que os técnicos enlouqueceram não parecer muito provável, ela contribui para a dramaticidade trágica do documentário. A loucura está presente nos personagens de Lições da escuridão como em Fata Morgana, mas, neste caso, ela não é encenada a mando do diretor, mas construída por meio da montagem. Há outro caso de bombeiros incendiários na história do cinema. No filme Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut (baseado no livro homônimo de Ray Bradbury), os bombeiros não apagam incêndios. Pelo contrário, ateiam fogo. Como Lições da escuridão, o filme de Truffaut é uma ficção científica cujo escopo não é científico ou tecnológico, mas social e filosófico. No caso, uma sociedade vive sob o jugo de um sistema que proíbe a leitura, destruindo livros, prendendo e brutalizando quem os possui. Também no filme de Truffaut, o fogo tem um papel simbólico. Os livros simbolizam o conhecimento, as emoções, a vida, a liberdade, a memória e, portanto, a possibilidade de sobrevivência da humanidade. Eles são queimados, e aqueles que não acatam a lei são punidos à maneira dos autos‐de‐fé da Inquisição ibérica. O fogo atua como elemento purificador às avessas, a serviço de uma força opressora e deletéria, como revelam as palavras do capitão do corpo de bombeiros incendiários:

Romances não são a vida. O que Montag esperava tirar de todas essas páginas? Felicidade? Que pobre idiota você foi. Essa bobagem é capaz de levar um homem à loucura. Você pensou que aprenderia a caminhar sobre as águas, não pensou? Montag precisa a aprender a pensar um pouco. Pense como todos esses escritos, todas essas receitas de felicidade discordam entre si. Deixe queimar essa pilha de contradições! Somos nós que trabalhamos hoje para a felicidade do Homem. Olhe, não é adorável? As páginas como pequenas pétalas de flores, ou borboletas, luminosas e negras... Quem pode explicar a fascinação do fogo, o que nos atrai a ele, sejamos jovens ou velhos? 63

O bombeiro Montag (vivido no filme por Oskar Werner) um dia lê um livro no lugar de queimá‐lo. A partir desse momento, seu espírito é “corrompido” pela leitura que o faz sentir e pensar. Começa a surrupiar livros durante missões. Dentre esses

63 Diálogo a partir do filme Fahrenheit 451, François Truffaut, 1966. 117 livros, o único livro enfocado pela câmera durante o furto é, coincidentemente, a autobiografia de Kaspar Hauser, um dos principais personagens do panteão herzoguiano, e que, enquanto estava recluso, não sabia discenir sonhos da realidade. Do ponto de vista de sua mulher e colegas, Montag enlouquece. Porém, do ponto de vista oposto, se considerarmos as regras da sociedade mostrada no filme absurdas, isto significa que Montag recobra a sanidade. Essa dualidade de perspectivas pode ser utilizada na interpretação das imagens dos técnicos incendiários de Lições da escuridão: quando nada à nossa volta faz sentido, entregar‐se à loucura talvez seja a derradeira prova de sanidade. Ao som da Sinfonia nº 3 de Mahler são mostradas as últimas imagens do fogo: tratores que, como grandes animais, terminam sua tarefa transportando areia. A movimentação por vezes faz pensar nas silhuetas em movimento em Fata Morgana. Veículos mostrados como bichos estranhos em planos distantes, que parecem não ter destino certo: movimentam‐se em função do instante em que os vemos. XIII. Estou tão cansado de suspirar. Senhor, deixai cair a noite. (Ich bin so müde vom seufzen. Herr, lass es Abend werden.): Curto epílogo, a trilha musical continua. As imagens escurecem, a noite cai. Alguns poços ainda queimam, ao longe. A câmera se distancia e vai deixando para trás o lugar e os personagens: Herzog, o diretor‐explorador, vai embora, levando consigo o espectador, seu copiloto. É o fim de uma missão, ou o último ato de uma trágica ópera documental de sua autoria. No entando, como acontece na tetralogia de Wagner, a ópera termina, mas não o ciclo. Ao deixar para trás o Kuwait e os poços de petróleo, o explorador não revela para onde vai e o que acontecerá agora. O fogo foi apagado, mas o destino da humanidade continua incerto nesse cenário onde tudo precisa ser reconstruído. E, assim, a viagem segue adiante.

3.4. Além do azul selvagem: o círculo poético se fecha

O manifesto de 1999, ou Declaração de Minnesota, contém a indicação de que Lições da escuridão não era a etapa final da viagem. O item que fecha o manifesto diz:

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A vida nos oceanos deve ser um inferno. Um vasto e impiedoso inferno de perigo permanente e iminente. Um tal inferno que, durante a evolução, algumas espécies – incluindo o homem –, rastejaram, fugiram para alguns pequenos continentes de terra firme, onde as Lições da Escuridão continuam.

Como os dois primeiros filmes, Além do azul selvagem é dividido em blocos ou capítulos. As primeiras imagens são do fundo do oceano antártico. O som é uma sobreposição da respiração humana por meio de um tanque de oxigênio para mergulho, sinais sonoros de cabine de nave espacial e vozes de astronautas. O letreiro inicial anuncia: Uma fantasia de ficção científica. Essa apresentação não situa o filme nem como ficção, nem como documentário. Já foi mencionado como essa nomenclatura confere duas camadas de fantasia ao filme que estamos prestes a assistir: uma camada é aquilo que é imaginado a respeito do futuro da humanidade. A outra, a abordagem poética daquilo que se imagina. O título do filme aparece sobre a imagem de moinhos de vento, referência a Sinais de vida (1968), primeiro longa‐metragem de Herzog. Se tivesse de definir a imagem dos moinhos de vento sucintamente, diria que ela é o Rosebud imagético de Herzog. Ainda jovem, ele acompanhou o avô arqueólogo em expedições à Grécia, onde um dia se deparou com moinhos de vento como os que reproduz em Sinais de vida: centenas deles (ou o que pareceu uma infinidade para o jovem Herzog) girando na paisagem grega. Conta Herzog que, diante da magnitude do que via, precisou sentar‐se para recompor‐se, pois pensou que tinha perdido a razão. A imagem dos moinhos de vento cataliza a essência da busca herzoguiana: a imagem adequada, pois pura, original no sentido de “origem” ou “gênese”; o elemento insólito que está em direta relação com a loucura; o espelhamento da imagem que se tem diante dos olhos com imagens mentais; o estado de êxtase ou sublimidade diante daquilo que vemos que nos leva à descoberta de uma verdade mais profunda, interna; os moinhos como símbolo das quimeras (ou sonhos) de Dom Quixote; o movimento circular do moinho simbolizando o eterno recomeço, os ciclos que o ser humano não consegue romper. Os círculos estão em Fata Morgana, nos veículos que giram a esmo no deserto; na montagem do filme, que volta a imagens que já foram usadas várias vezes em um leitmotiv sem lógica aparente. Estão em Além do azul selvagem, quando 119 o ônibus espacial orbita em torno da Terra em vão, e, no seu interior, os astronautas que pairam no ar, girando sobre si mesmos. O segredo da poética herzoguiana está contido nessa sequência de seu primeiro longa‐metragem, que dura pouco mais de três minutos. É a poética que encontramos em todos os filmes que fez depois de Sinais de vida. Assim como Herzog, o protagonista do filme, Stroszek (um soldado alemão na Grécia) descobre a paisagem com os moinhos de vento. O personagem se entrega à loucura e termina trancado numa fortaleza (como Hölderlin em sua torre), atirando fogos de artifício. Herzog não sucumbe à loucura. Lida com a experiência de outra maneira, tornando‐se um articulador de sonhos. O personagem do Alienígena é introduzido desde o início. Neste filme, não há segredo ou ambiguidade com relação à identidade do narrador. Ele olha diretamente para a câmera, dirigindo‐se ao espectador terrestre e diz: “Esta é minha história, agora é minha história. Eu venho das distantes fronteiras de Andrômeda.” É preciso lembrar que, ao ir filmar Fata Morgana, Herzog tinha a intenção de realizar um filme de ficção científica sobre Andrômeda, o que não aconteceu. Portanto, desde o início de Além do azul selvagem fica estabelecido o vínculo com Fata Morgana prenunciando um ciclo que se fecha. É um roteiro, tanto de cinema como de viagem, que chega ao fim de sua narrativa ou jornada. O Alienígena declara: “Eu venho de outra galáxia, uma galáxia azul. Muito, muito além do seu mundo. Eu venho do além do azul selvagem”. A trilha musical começa com um trecho de O Messias, oratório de Händel, Dank sei Dir, Herr. A letra da música é um preâmbulo da história que o Alienígena se prepara para contar:

Obrigado Senhor, Obrigado Senhor, O Deus, Tu guiaste teu povo Contigo E agora Tua é a terra.

Antes mesmo desses inimigos nos ameaçarem, Tua mão nos protegeu; Com Tua graça nos salvaste

Obrigado Senhor, Obrigado Senhor, O Deus, 120

Tu guiaste teu povo Contigo E agora Tua é a terra.

Obrigado Senhor, Obrigado Senhor, O Deus, Tu guiaste teu povo Contigo, Com Tua graça nos salvaste

E tem início o primeiro bloco, ou capítulo do filme, ainda sobre a música de Händel. I. Réquiem para um planeta moribundo (Requiem for a dying planet): Sobre imagens do fundo do mar, o Alienígena conta que sua estrela estava morrendo, ameaçada por um tipo de era glacial. Ele e seu povo tinham de fugir e assim o fizeram a bordo de suas naves espaciais. Muitos se perderam pelo universo. Aparecem as primeiras imagens de astronautas sendo removidos da água. Podem ser imagens de treinamentos ou o registro da volta à Terra de uma missão espacial. Não há indicações para que a factualidade das imagens não interfira com a fábula que conta o Alienígena. II. Os primeiros Alienígenas (The Alien Founding Fathers): O bloco começa com um travelling de uma cidade vazia, filmado de um carro em movimento. No documentário No Além do azul selvagem com Brad Dourif, o ator conta que ele, Herzog e uma pequena equipe de filmagem encontraram essa locação não muito longe de Los Angeles, e lá filmaram sem pedir autorizações. As filmagens, que não duraram mais que poucos dias, tiveram um caráter improvisado ou informal com um ator sem figurino ou maquiagem, sem iluminação especial. Esse lado “documental” de uma história de ficção gera uma antinomia que contribui para a narrativa pouco convencional do filme. O dia é cinzento. Ao longe, o Alienígena está em pé, perto de uma construção abandonada. A arquitetura, com colunas e frontão, é uma imitação precária do estilo greco‐romano e pode ter abrigado um shopping center ou um banco. A presença de um personagem que aceitamos ser um extraterrestre permite outras leituras da construção: seria o quartel general dos alienígenas na Terra? A casa do último remanescente dos alienígenas que agora nos conta sua história? Isto explicaria a arquitetura que tenta reproduzir um estilo “terrestre”, mas não consegue. Explicaria também a desolação do lugar. 121

O Alienígena está agora em primeiro plano, com a construção em segundo plano. Conta como foi a chega dele e de outros alienígenas à Terra, diz que foram bem recebidos. Corta para imagens de arquivo em preto e branco dos primeiros voos de avião. Não há indicação de que imagens são, mas, segundo minhas pesquisas, são imagens dos irmãos Wright. Herzog enfatiza as aterrisagens. Vemos o piloto sair do avião (aparentemente Orville Wright), e ser recebido efusivamente por uma multidão eufórica. É carregado e aclamado como um semideus. Esse material e sua montagem constitui uma rima narrativa e visual com Fata Morgana: imagens de aviões aterissando logo no início do filme, sinalizando a chegada de seres celestes. Herzog faz o paralelo entre o primeiro homem que voou (se aceitarmos, no âmbito do filme, que esse título cabe a Orville Wright e não a Santos Dumont) e, portanto, aterrissou na Terra, e o primeiro extraterrestre a chegar ao planeta. O Alienígena fala das vicissitudes da vida na Terra: o desespero causado pela saudade. Um dos alienígenas tentou cometer suicídio, mas não morreu. Encontramos nos alienígenas um estado de espírito que remete ao romantismo de outros personagens já citados de Herzog. Corta para imagens de arquivo, provavelmente da mesma época dos primeiros voos dos irmãos Wright (preto e branco, cinema mudo, portanto, material filmado antes dos anos de 1930). Desta vez, um homem se joga na frente de um caminhão. Não morre: levanta‐se e acende um cigarro com amigos. Não há indicação de quem seja. É possível que tenha sido um dos primeiros dublês da história do cinema. O Alienígena conta que seus antepassados foram grandes cientistas, mas, depois da longa viagem que empreenderam, os que chegaram à Terra não eram grande coisa (“They sucked!”). Ele chegou com a terceira leva. Tinham grandes planos, queriam causar boa impressão, e assim decidiram construir uma grande capital, para rivalizar com Washington D.C. Ele mostra a construção e seu entorno e diz que o lugar era maravilhoso, que havia linhas de trem. A construção era o principal shopping center. Construíram um tribunal e até o Memorial Andrômeda. Mas nada deu certo. Ninguém foi à cidade dos alienígenas. Ninguém quis viver na cidade, fazer compras lá tampouco. 122

Um trem passa. O Alienígena parece irritado. Ele se aproxima da câmera e fala diretamente para ela, num primeiríssimo plano. Confidencia ao espectador que alienígenas têm recursos tecnológicos que poderiam destruir Nova York em dois minutos. O problema, diz ele, é que os alienígenas são idiotas. Mostra a paisagem deserta, estéril e diz: “Detesto dizer isso, mas nós, alienígenas, somos todos uns idiotas. Somos fracassados. Isto me deixa muito triste.” Começa a trilha musical Corona, de Toru Takemitsu. O Alienígena conta que um dentre eles teve êxito: graças ao seu conhecimento sobre o céu e naves voadoras, tornou‐se Presidente do Comitê de Planejamento Estratégico do Pentágono. Corta para imagem de arquivo em preto e branco de um homem não identificado, sentado num banco de jardim que afirma que a aviação recebeu pouco reconhecimento pela sua atuação na Primeira Guerra Mundial, mas ficou claro que, com o tempo e equipamentos apropriados, a aviação há de se tornar um instrumento de guerra importante. Pela sua maneira de falar, postura e roupas (um terno sóbrio e bem cortado), o personagem deve ter ocupado um cargo importante em determinado momento da história americana, provavelmente antes da Segunda Guerra Mundial. Para Herzog, a identidade do personagem é tão irrelevante quanto a de personagens sem dimensão histórica, como as duas mulheres de Lições da escuridão. No caso, o personagem interessa à narrativa porque, em primeiro lugar, é parte de um material que compõe uma rima visual com os demais materiais de arquivo em preto e branco. Além disso, a postura física do personagem, sua maneira de falar (composta, contida e calma, que denota bom senso) e o conteúdo de seu depoimento (postura belicosa e agressiva) possuem a estranheza necessária para criar a sensação de deslocamento narrativo. Há um corte para imagens de arquivo sobre uma cantata de Händel. Trata‐se do registro do voo aparentemente experimental de uma máquina voadora que lembra um disco voador pela forma circular e achatada. Voltam as imagens de entulho e lixo ao ar livre. III. O mistério do OVNI Roswell reexaminado (The Roswell UFO mystery re‐ examined): O Alienígena está em meio ao entulho. Há móveis velhos, a carcassa enferrujada de um ônibus, eletrodomésticos e o que restou de casas pré‐fabricadas. Elas estão cortadas ao meio e é possível ver o interior da habitação, como se fossem 123 grandes casas de bonecas. O Alienígena achava que estava se dando bem na Terra, pois tinha conseguido um trabalho na CIA. Mas, encontrou pessoas interessadas apenas em suas carreiras. Tentou dizer a eles que sabia de coisas, mas ninguém lhe deu ouvidos. Ficou furioso com tanto descaso, e, por esse motivo, resolveu contar tudo a nós, espectadores.

Diz que participou do resgate em Roswell. Fala como se não cogitasse o espectador não ter familiaridade com o assunto. Em nenhum momento explica a que se refere. O que ficou conhecido nos Estados Unidos como o “incidente Roswell”64 foi o resgate de destroços não identificados perto da cidade de Roswell, no Novo México, em junho de 1947, supostamente atribuído à queda de uma nave espacial e seus ocupantes. No contexto político da Guerra Fria, o incidente inflamou o debate sobre extraterrestes e teorias conspiratórias por anos. Fotos de supostos alienígenas mortos estamparam revistas pelo mundo. Apesar de as Forças Armadas americanas desmentirem histórias sobre naves espaciais, Roswell tornou‐se referência nas elucubrações sobre objetos voadores não identificados.

Até recentemente, o “incidente Roswell” ainda causava dúvidas e discussões. Em 1989, um agente funerário americano ofereceu à imprensa o relato detalhado sobre as autópsias que teriam sido feitas nos alienígenas. Na década de 1990, a Força Aérea americana conduziu duas investigações: a primeira, em 1995, concluiu que os destroços encontrados em Roswell eram de um balão espacial cujo objetivo era monitorar as ondas de som emitidas por testes nucleares soviéticos. A segunda, em 1997, concluiu que os alienígenas mortos eram o resultado de alterações psicológicas das pessoas que alegavam tê‐los visto, na maior parte militares que tinham passado por situações de estresse, como acidentes de trabalho.

É possível compreender por que o incidente chamou a atenção de Herzog. Há nele a dimensão da miragem, ou seja, daquilo que vemos, mas não temos certeza se existe. Há a imagem que vemos pela primeira vez, no caso uma nave espacial e seres alienígenas. Há a dimensão da loucura, que se transforma na verdade de um personagem, e há a poesia de acreditar em miragens, sonhos e seus personagens, como moinhos de vento e naves espaciais.

64 Disponível em: . Acesso em: 11 nov. 2011. 124

Segundo o Alienígena (a esta altura, o contrato não pode ser desfeito: o espectador não tem mais como contestar a veracidade da história que lhe é contada), os destroços da nave encontrada em Roswell foram escondidos, pois “eles” não sabiam o que fazer com eles, os destroços. A quem se refere o pronome? O Alienígena não esclarece se fala de cientistas, das Forças Armadas ou da CIA (onde trabalhava). “Eles” mentiram. Disseram que não passava de invenção da mídia. Cinquenta anos mais tarde, ajudados por novas tecnologias, “eles” decidiram reexaminar o caso. E foi este o grande erro. Imagens de um comboio de carros e caminhões: o Alienígena diz que desde o início aquele comboio foi um sinal de mau agouro.

As imagens do comboio correm sobre a música de Ernst Reijseger, com as vozes dos cantores sardos e de Mola Sylla. Uma carga não identificada (imagens de arquivo da NASA) é levada para um depósito e um grande portão de metal se fecha. Foi tudo feito em surdina, sem televisão, sem imprensa, sem fotos. Segundo o Alienígena, as imagens que vemos são o único registro existente da operação. O que aconteceu dentro daquele lugar teve consequências gravíssimas e nós sequer temos consciência disso: “Tudo estava hermeticamente selado. Até o caminhão tinha um invólucro de plástico. Algo perigoso poderia estar lá”.

O que “eles” não sabiam, é que aqueles destroços vinham do planeta do Alienígena. Era uma sonda enviada antes da chegada dos alienígenas para investigar o planeta. Havia uma forma de vida desconhecida na Terra. O que “eles” não sabiam é que, enquanto examinavam os destroços, algo invisível se desprendia deles, algo tóxico que impregnava a pele humana. E “eles” levariam isto para fora daquele recinto, espalhando pelo mundo. Quando isso aconteceu, houve pânico, pois de nada serviram as quarentenas. Então, mandaram um grupo de astronautas em uma missão com o objetivo de procurar um novo lugar para os seres humanos viver, ou seja, uma alternativa para a Terra.

IV. A missão para as Fronteiras Externas (The mission to the Outer Fringes): O bloco abre com imagens de arquivo da NASA, filmadas do ônibus espacial Atlantis, em missão no espaço. A missão STS – 34 aconteceu em 1989, quando o ônibus espacial e seus cinco tripulantes (o comandante Donald E. Williams, o piloto Michael J. McCulley 125 e os especialistas Franklin R. Chang‐Diaz, Shannon W. Lucid e Ellen S. Baker) passaram cinco dias em órbita. O Alienígena relata que a missão dos astronautas iria até as fronteiras externas do nosso sistema solar. (O Alienígena se refere ao “nosso sistema solar”, o que é uma perspectiva humana. Este pequeno equívoco da narrativa revela a verdadeira voz do Alienígena, o humano Werner Herzog). Os astronautas não imaginavam o quão terrível seria a jornada. Era uma viagem sem volta. As imagens que vemos dos astronautas dentro da nave espacial são os registros de viagem enviados a Terra. O Alinígena relata que ficaram trancados na nave por anos: imagens de astronautas flutuando no interior da nave, sem gravidade. São imagens do dia a dia: eles leem, arrumam suas coisas, se alimentam. A câmera flutua também, gira sobre si mesma. É impossível dizer que lado é para cima ou para baixo. A montagem intercala imagens da Terra vista do espaço. Os astronautas olham pela escotilha. É relevante lembrar que essas imagens foram feitas pelos próprios astronautas. Os astronautas orbitaram em volta da Terra por muito tempo. A missão não estava dando em nada. Precisavam ir mais longe. A epidemia causada pelos micróbios dos alienígenas tinha sido controlada. Mesmo assim, o pessoal de Terra encorajou os astronautas a prosseguirem sua busca por um lugar seguro, como precaução. Mas, eles não tinham ideia de quanto o universo era hostil. O Alienígena diz que poderia ter avisado. Afinal, ele sabe tudo sobre esse assunto. Conta que os astronautas mandaram uma sonda explorar as fronteiras externas do sistema solar. Chamaram a sonda Galileu. Os astronautas esperaram semanas, meses. Um dia, receberam imagens enviadas pela sonda. Os lugares visitados por Galileu jamais acolheriam seres humanos. As imagens mostram explosões, a superfície de planetas inabitáveis, incandescentes, que lembram o solo de lava e fogo em Lições da escuridão. O Alienígena conta que, para os matemáticos, a solução do problema estava na mudança de trajetória. São inseridos os primeiros depoimentos do documentário: matemáticos e cientistas. Herzog costura as explicações dos matemáticos com a narrativa do Alienígena de maneira que um discurso sustenta o outro. Nesse momento, é notável o fato que a fábula que o Alienígena conta, por mais absurda e fantasiosa, é 126 provavelmente mais acessível e intelegível à média dos espectadores do que as explicações “reais” dos cientistas sobre astrofísica. Enquanto isso, a viagem no espaço se prolonga. Os astronautas estão cada vez mais distantes da Terra: não há mais nascer do sol, não há nada para se ver lá fora, exceto pontos de luz. Eles começam a se conformar com uma vida diferente. A partir da música de Reijseger, vemos imagens dos astronautas envolvidos com suas tarefas e rotinas cotidianas. O espectador sabe que, talvez, não haja volta possível. Assim, do ponto de vista do espectador, a rotina e execução de tarefas perde o sentido. O absurdo da situação gera um sentimento de claustrofobia e aflição em quem pode apenas assistir, sem poder fazer nada. V. A morte de um sonho (The death of a dream): O Alienígena conta que ele e seus companheiros vieram dos confins da Galáxia de Andrômeda. Explica o quanto é longe, e, por isso, sempre soube que a missão dos astronautas fracassaria. Diz que o primeiro pecado dos seres humanos foi criar porcos, pois foi quando deixaram de ser nômades para se tornarem sedentários. O sedentarismo leva a assentamentos que, por sua vez, engendram vilarejos, que engendram cidades e todos os problemas que levarão à destruição da humanidade. Criar cachorros não é um pecado, porque cães nos seguem para onde formos. Porcos são o pecado. Nesta parte do monólogo do Alienígena, podemos quase ouvir a voz de Herzog expondo sua aversão por cidades e os males da civilização. É um dos poucos momentos em que ele não esconde o aspecto pessoal do monólogo. Herzog sabe disso e, ao final da diatribe a respeito de porcos, o Alienígena diz: “Fugi do assunto”. Dos três filmes estudados, Além do azul selvagem é o que faz mais concessões ao humor, mesmo se sutis e dentro de um contexto que não é cômico, mas trágico. A nave está agora mergulhada na escuridão do espaço. Os astronautas procuram meios de manter seu equilíbrio mental. Com o fundo do violoncelo de Reijseger, ouvimos vozes de astronautas falando pelo rádio. As imagens filmadas dentro da nave espacial vão se tornando inquietantes. Os astronautas fazem extamente o que faziam nas imagens anteriores, mas a narração criou uma tensão que é acentuada pela trilha musical. O fato de a câmera flutuar e não sabermos onde fica o chão contribui para construir a sensação de desconforto e para a impressão de falta de estabilidade psicológica dos astronautas. A energia da nave estava acabando e o caos 127 começou a tomar conta da situação. O Alienígena comenta que os astronautas não tinham noção do quão longe tinham ido. VI. A matemática do transporte caótico (The mathematics of chaotic transport): Algo precisava ser feito para aumentar drásticamente a velocidade da viagem. Um matemático pária talvez tivesse a solução. O matemático está em quadro. Ele conta que, quando descobre algo, guarda o segredo por um tempo, pois quer aproveitar a sensação de ser a única pessoa no mundo a ter conhecimento de algo. Conta como descobriu uma teoria sobre túneis no sistema solar e que serviriam para o transporte de seres humanos. Sua exposição é didática, ele usa slides do tipo power point para ilustrar o que diz. Herzog não se preocupa em matizar a mudança de tom entre o monólogo dramático e emocional do Alienígena e o depoimento do matemático, que é didático e impessoal. Eles falam da mesma coisa, mas de um ponto de vista diferente e por meio de imagens distintas. Não há unidade de estilo, como encontramos em Fata Morgana e Lições da escuridão. As costuras da montagem são propositalmente visíveis, não porque a montagem não seja boa. Pelo contrário, ela consegue dar conta de expor uma história linearmente com um material fílmico gerado por fontes variadas em suportes diferentes e, portanto, aparentemente incongruente. A montagem consegue manter o curso da narrativa auxiliada por raccords entre um material e outro. Os astronautas são orientados a seguir até o planeta do Alienígena, que diz ficar muito bravo por não ter sido avisado da decisão: “Logo eles estariam à porta do além do azul selvagem.” Imagens de um planeta azul. Os astronautas se preparam para aterrissar. Uma escotilha se abre. O Alienígena acredita que o que torna seu planeta tão bonito é o fato de ele estar congelado. Só de pensar, fica com saudades de casa. Os astronautas descem, cortam o gelo e, segundo o Alienígena, penetram em uma atmosfera de hélio líquido. As imagens são na realidade o fundo do oceano antártico. Para o Alienígena, é quase intolerável assistir de longe aos seres humanos explorando seu planeta. Ele diz ouvir o som do além do azul selvagem: “Esse é o meu lar”. Na trilha sonora do filme, ouvimos o som de respiração por meio de tanques de oxigênio e o que parece ser o som de grilos em um jardim. VII. Mistérios do Azul Selvagem (Mysteries of the Blue Yonder): Imagens de um mergulhador no mar da Antártida, que nada sob uma crosta de gelo. O som ainda é 128 a respiração ritmada por um tanque de oxigênio. Vemos ao longe silhuetas que flutuam na água. As imagens sob a água dialogam esteticamente com as imagens do espaço. A montagem faz com que o espelhamento cósmico de que fala Bachelard encontre uma representação nessas imagens. O Alienígena acrescenta que, fora o gelo, outra coisa deixa o planeta dele bonito: a vida selvagem. Os animais costumam tentar fazer contato, mas agora estão tristes, pois ficaram sozinhos. Medusas e outros animais aquáticos passam pela câmera. Pela sua forma, alguns poderiam ser confundidos com pequenas naves espaciais ou discos voadores. O Alienígena constata que os astronautas não tratam as criaturas de seu planeta com respeito. De fato, um mergulhador brinca com um animal aquático como se fosse uma bola de tênis ou um brinquedo. O mar parece ter um céu de nuvens que lembram a fumaça de Lições da escuridão: na realidade, é a crosta de gelo vista por baixo, ou da perspectiva do mergulhador. Os astronautas‐mergulhadores brincam com animais sem delicadeza. A trilha musical é a voz de Mola Sylla, que emite um som que poderia ser a respiração de um animal em estado de agonia. A ação dos mergulhadores sobre a fauna aquática tem um paralelo na situação dos animais de Fata Morgana: também são animais estranhos que são oprimidos, incomodados e acuados por seres humanos. Depois de um dia de explorações, os seres humanos começaram a vislumbrar a possibilidade de fundar uma colônia no planeta gelado. Como seria essa colônia? O matemático explica que o caos não é algo negativo, pois, segundo sua teoria, geraria a energia necessária para o transporte por meio de túneis no espaço. VIII. Utopia da colônia ideal (Utopia of the ideal colony): O matemático explica que a noção de viajar no espaço implica colonizar o espaço. Ele tenta imaginar como isto se daria: chega à conclusão que o meio ideal seria algo como um shopping center no espaço, onde haveria de tudo, de lojas a academias e bares. Ele prevê que este seria o mais perfeito paradigma de colonização do espaço. Esta afirmação deixa o Alienígena perplexo, que rebate com humor: “Shopping center? Eu poderia ter dito a eles! Nós tínhamos um plano parecido e vocês viram que não funcionou. Onde estão os consumidores, se me permite perguntar? Onde estão? Fico tão triste de pensar em toda aquela mercadoria jogada lá, sem ter sido vendida”. 129

Em pé, em frente ao shopping center abandonado, o Alienígena diz que o que o deixa mais triste é o fato de seu planeta ter começado a morrer há centenas de anos e, agora seres humanos o consideram como um substituto em potencial para a Terra. Já começaram a mapear as áreas que seriam apropriadas. A trilha musical é o violoncelo de Reijseger com a voz de Dora Juarez sobre imagens do fundo do mar. Homens nadam sob a crosta de gelo. O Alienígena relata, em um tom indignado, que, no segundo dia, exploraram lugares adequados para instalar canos de esgoto, cabos elétricos e um sistema de fornecimento de oxigênio. Em seguida, os astronautas chegam ao grande vale do planeta. Os alienígenas costumavam chamar esse lugar de Catedral Azul. Surgem imagens de formações rochosas ou arrecifes submarinos iluminados pela luz difusa, filtrada pela crosta de gelo. Mais uma vez, as formações de gelo sob a água evocam a fumaça de Lições da escuridão. O impacto das imagens dos dois filmes vem da própria natureza, não de efeitos especiais. Se em Lições da escuridão as cores eram o ocre, o cinza em várias tonalidades, e o negro, a palheta de Além do azul selvagem é essencialmente azul com alguns amarelos. No entanto, não é o amarelo puro, saturado e denso da palheta de Fata Morgana, mas um amarelo cuja transparência recebe a luz que o atravessa tornando‐o dourado. Não há nitidez em muitas imagens, o que borra o realismo nelas contido, conferindo‐lhes no lugar uma qualidade onírica e “fora do tempo”. Em Fata Morgana não há claro‐escuro, pois a luz do sol é onipresente, a ponto de ser opressora. Nos dois filmes seguintes, o claro‐escuro se faz presente, mas não é um contraste como encontramos na pintura de Caravaggio, ou seja, o contraste entre uma luz exógena à imagem que incide sobre certas partes de uma cena deixando outras no escuro. No caso, o contraste se dá entre uma luz endógena, que alude a um estado de introspecção ao despontar nas trevas, como o sol ou a lua das pinturas de Caspar Friedrich, ou a chama das velas de Georges de La Tour. Esse pequeno ponto de luz exerce uma força de atração centrífuga, tanto sobre personagens que fazem parte da imagem, como sobre o olhar do espectador.

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Figura 26 ‐ São José carpinteiro (G. de La Tour, 1642)

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Figura 27 ‐ Além do azul selvagem, espaço (W. Herzog, 2005)

Figura 28 ‐ Além do azul selvagem, buraco no gelo (W. Herzog, 2005) 132

Há um corte para uma breve imagem do matemático de olhos fechados, talvez registrada enquanto esperava pelo início das filmagens. Ele espirra e a imagem é imediatamente cortada. O uso dessa imagem denota a intenção de reiterar a presença do humor dentro de uma narrativa trágica. Permite também pensar que, depois de suas declarações sobre um shopping center como base ideal para presença humana no espaço, Herzog castiga imageticamente o matemático por emitir essa opinião, que vai contra todo o ideário herzoguiano a respeito de colonização, consumo e urbanização. IX. O túnel do tempo (The tunnel of time): Imagens de um buraco no gelo e mergulhadores passando por ele. O Alienígena relata que esse era um portal do tempo, e que os astronautas sabiam que poderiam passar por ele. Porém, ao fazê‐lo, se dissolveriam em partículas, e, consequentemente, tornariam‐se pura luz. As vozes dos cantores sardos acompanham as acrobacias subaquáticas dos mergulhadores. Toda a ação gira em torno do buraco no gelo, que é também um buraco de luz. As bolhas de oxigênio têm uma função estética e narrativa: por um lado, dão textura às imagens e ajudam a difundir a luminosidade. No contexto da narração, representam os astronautas virando partículas ao passarem pelo buraco no gelo ou, segundo o Alienígena, pelo portal do tempo. Depois dessas sequências filmadas por Henry Kaiser, há um corte para as imagens de aquivo da NASA: astronautas emergem de dentro de um tanque de água, num raccord que dá continuidade à narrativa. Por um lado, os astronautas entraram no portal do tempo (no planeta do Alienígena) e, agora, saem pelo outro lado (de volta a Terra), tendo viajado pelo tempo na condição de partículas e luz. O Alienígena relata que demoraram a reassumir a forma humana. Sob a água do tanque da NASA, é visível uma nave espacial. Os astronautas pensavam que apenas quinze anos tinham se passado. Mas sua existência de volta à Terra não passava de ilusão. Na realidade, tinham viajado tão rapidamente no túnel do tempo que a jornada tinha acontecido em uma dimensão paralela. Na realidade, oitocentos e vinte anos tinham se passado na Terra. As imagens mostram primeiros planos dos astronautas de volta à Terra, olhando para a câmera, como se fossem tirar um retrato. Começaram, então, a olhar para seu planeta sob outra luz, enxergando diferentes possibilidades. Corta para o depoimento de um astronauta: ele diz que espera que um dia a humanidade possa viver em outros planetas ou asteroides. Nesse 133 caso, a Terra poderia ser protegida, como um grande parque nacional preservado pela humanidade. A Terra seria uma área protegida para onde os seres humanos iriam passar férias. X. A verdadeira história da volta (The true story of their return): O último bloco abre com imagens aéreas de uma montanha com um altiplano em seu topo. O Alienígena relata que, quando os astronautas voltaram oitocentos e vinte anos mais tarde, não havia mais pessoas na Terra. O planeta os esperava como um grande parque nacional. O altiplano serviu de terreno de pouso, pois não havia mais pistas, cidades, pontes, represas, bancos, dinheiro, tempo ou sopro. A Terra tinha voltado a sua beleza original. Era pré‐histórica de novo. Imagens aéreas de grandes extensões de vegetação envolta em bruma. Em Fata Morgana e Lições da escuridão, etapas anteriores da viagem, a perspectiva de salvação ou recomeço era distante e até impossível. Em Além do azul selvagem, as tomadas aéreas finais não mostram o horror da guerra, a destruição e a desolação. Oferecem ao espectador a visão da Terra em seu esplendor, com cachoeiras, árvores frondosas, a bruma que as envolve delicadamente como um véu matinal. A luz de Fata Morgana faz pensar num eterno meio‐dia, com o sol inamovível no centro do céu. Em Lições da escuridão, a luz é crepuscular e se harmoniza com a trilha de Wagner em O Crepúsculo dos deuses. Em Além do azul selvagem, caminhamos (ou voamos) em direção a uma escuridão mais profunda do que a da noite, a escuridão mais absoluta que há: o universo. Ao final do percurso, chegamos ao fim de tudo: do sistema solar, do universo, da luz e da razão. Mas, apesar de termos encontrarmos uma alternativa para a vida na Terra, optamos por regressar, talvez compelidos por algo maior do que a razão. Dessa vez, ao voltarmos, não nos deparamos com o planeta ferido de Lições da escuridão. Durante nossa ausência, a Terra teve tempo de se regenerar, não sabemos se sozinha ou se auxiliada por deuses ou forças divinas. Se pensarmos nas palavras do oratório de Händel no início do filme, podemos concluir que Deus abençoou a Terra mais uma vez e guiou o ser humano de volta a ela. Mas, talvez, para fechar o círculo formado pela trilogia de documentários poéticos, caibam melhor as palavras que fecham Fata Morgana, primeiro filme da trilogia, e que, em uma iteração herzoguiana, repetimos agora: 134

Não há nada como a paz da Idade de Ouro. A guerra foi proclamada morta pela Paz. Nada é maior que a Areia. Nada é maior que a Paz. A Terra está encantada com a Paz.

Se em Fata Morgana essas palavras são pronunciadas em meio a situações inconclusas, absurdas, e acompanham miragens que lhes conferem o tom de uma prece, em Além do azul selvagem, diante das imagens de uma natureza exuberante, elas soam como uma graça concedida. Assim se encerra o círculo poético iniciado em Fata Morgana. A história da humanidade foi contada com imagens da terra, do mar, do céu e do espaço. Compreendemos que todas essas coisas fazem parte de um todo, e que o ser humano não é mais poderoso ou importante do que o meio que o acolhe. Cabe a ele ter a sabedoria para simplesmente saber viver em seu meio. As vozes dos cantores sardos acompanham a última parte da viagem sobre a Terra, que tem agora mais uma chance de renascer. E ao ser humano é dada uma nova oportunidade de viver no seu planeta de origem.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Die Gedanken sind frei.65 (Bruno S.)

65 Os pensamentos são livres. (Tradução nossa) 136

Ao longo deste trabalho, foi reiterado que os documentários de Werner Herzog representam uma viagem. Foi exposto como o diretor expressa sua busca poética por meio de textos, sons e imagens capturadas nos mais diversos lugares da Terra, até o espaço. Foi dito que Herzog é generoso ao convidar o espectador a acompanhá‐lo nessa jornada que não se confina ao mundo físico, colocando‐o diante de questões que dizem respeito à sua própria condição de ser humano, dentro do meio em que vive, em uma dimensão existencial, espiritual, sensorial e poética. Já tinha viajado com Herzog na condição de espectadora de seus filmes. O trabalho que empreendi com esta pesquisa me permitiu uma segunda viagem de caráter mais pessoal, mais profunda e reveladora. Percebi desde o início que não poderia me ater ao perímetro do cinema. Contudo, como os astronautas de Além do azul selvagem, não imaginava que a viagem que faria por meio das minhas pesquisas me levaria tão longe. Para compreender Werner Herzog e sua obra, tive de mergulhar até onde foi possível naquilo que o motiva, comove, indigna, aguça sua curiosidade, seu intelecto e seus sentidos. Se tivesse de descrever o que digo com uma imagem, diria que desci aos porões de um grande navio para ver a casa de máquinas. Enquanto no deque as pessoas se regozijam com a paisagem, o vento e o sol, no porão, as engrenagens dos motores giram sem descanso, como os moinhos de vento de Sinais de vida e Além do azul selvagem, gerando a energia que torna a viagem possível. Por várias vezes, receei estar me distanciando do escopo do trabalho ao parar de escrever para mergulhar na ópera de Wagner até chegar à Edda Poética; ao ler a poesia de Hölderlin e as cartas de Novalis a Schlegel discutindo a verdadeira essência da poesia; ao pesquisar os tipos de aviões que havia no início do século XX; ao vasculhar arquivos virtuais sobre objetos voadores não identificados; ao passar horas ouvindo músicas de grupos experimentais da década de 1970, mas também Händel, Vivaldi, Couperin e alguns compositores de que nunca tinha ouvido falar; ao tentar descobrir qual o idioma nativo do Senegal; ao reler um livro que tinha lido pela última vez quando tinha seis anos; ao estudar trechos da Bíblia; ao analisar a pintura romântica pelo olhar de um cineasta; ao me perguntar por dias o que de fato era uma miragem. 137

Compreendi que esse era um caminho para se chegar à essência da obra de Herzog, pois a poesia é feita de tudo o que há no mundo, conjugado com tudo que há dentro de nós. Precisava, em um primeiro estágio, me afastar de um recorte específico, pois isso era o que Herzog abominava: uma camisa de força para o pensamento. Precisava expandir‐me para ter para onde voltar: a poesia. Mas não podia chegar a ela de mãos vazias. Tinha de ampliar meu repertório, refinar‐me intelectualmente e, oxalá, espiritualmente. Precisava permitir o contágio das coisas que um dia contagiaram Herzog para completar o círculo da minha viagem particular. E, como Herzog, queria que o resultado dessa jornada – não somente um texto acadêmico, mas aquilo que descobri e aprendi – pudesse, por sua vez, ser compartilhado. Acredito que este deva ser o principal objetivo de um estudo. O conhecimento que não é compartilhado está fadado a se perder e desaparecer nas costuras da história. Não importa tanto o teor de nossas iluminações como nossa capacidade de transmiti‐las. Aqueles que se dedicam à pesquisa e ao conhecimento (seja criação ou preservação) devem ter em si a essência das pessoas‐livro que François Truffaut mostra no filme Fahrenheit 451. A certa altura, o personagem Montag se rebela contra o sistema que destrói toda forma de literatura, e diz: “Por trás de cada um desses livros, há um homem. É isto que me interessa”. A frase sintetiza os motivos pelos quais o conhecimento reunido em um texto é essencial. O livro não é um fim em si, mas um meio de comunicação entre seres humanos para além do tempo e do espaço. É um canal de conhecimento virtual que se desdobra numa abrangente rede de comunicação intelectual e sensível. Ao final da história, o fugitivo Montag encontra pessoas‐livro num bosque. Cada uma memorizou um livro, tornando‐se o livro: enquanto aguardam o dia em que ler for de novo permitido, repetem – como em uma iteração herzoguiana – o texto continuamente e o ensinam a outras pessoas, preservando e compartilhando seu saber. Desde o início, eu quis que a pesquisa e, sobretudo a redação, fosse um processo criativo. Estudar com a finalidade de gerar um relatório analítico sobre os filmes de Herzog representava uma falta de compreensão da poética do diretor e da poesia, de um modo geral. Portanto, impus‐me o desafio de encontrar um caminho 138 reflexivo analítico que, de certa forma, seguiria o processo criativo de Herzog: a articulação de vários elementos harmonizados num todo que contém um significado novo e próprio. Era minha intenção, por meio deste trabalho, retribuir um pouco a Werner Herzog pelo dom que ele faz de si próprio em sua obra. Meu olhar sobre os filmes releva, espero, mais da interpretação de um músico diante de uma partitura que do âmbito médico, ou seja, da vivissecção de algo vivo e pulsante como são os filmes de Herzog. Pautada por essa intenção, procurei nos documentários relações oriundas do universo herzoguiano em si, mas também me permiti, na qualidade de espectadora‐ pesquisadora criativa, outras tantas, exógenas a esse universo. Para não ficar fora do compasso dos meus objetos de estudo, permiti‐me alguns devaneios e um pouco de loucura. Queria que, ao percurso de Herzog em seus filmes, se somasse o meu em minha pesquisa, agregando uma nova abordagem sensível à interpretação e assimilação das obras. Uma das primeiras questões que se colocou foi o uso da palavra “documentário” com relação aos filmes escolhidos. Em diferentes estudos Fata Morgana é chamado de ensaio fílmico (ou filme‐ensaio), realismo poético e outros termos que remetem ao caráter experimental da obra. O próprio Herzog se refere a Além do azul selvagem como uma fantasia em ficção‐científica, rechaçando o termo “documentário”. Chego ao final do trabalho como uma filha pródiga que volta para casa: apesar de Herzog afirmar que “documentários são filmes de ficção disfarçados” (HERZOG; CRONIN, 2002: 239), por mais que o termo tenha um parentesco com a palavra “documento”, acredito que esteja comprovado – não apenas no âmbito desta pesquisa – que essa relação é hoje mais fonética do que etimológica. Na medida em que até agora não se chegou a um consenso a respeito do termo ideal para designar filmes como os que compõem a trilogia deste estudo, reivindico o direito de esses filmes receberem a denominação “documentário”. A falta de um termo apropriado nasce da dificuldade em se definir o que é documentário. No prefácio de Espelho Partido, de Silvio Da‐Rin, João Moreira Salles diz:

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O fundamental é perceber que, bem mais do que conteúdos ou estratégias narrativas, o que faz um filme ser documentário é a maneira como olhamos para ele; em princípio tudo pode ou não ser documentário, dependendo do ponto de vista do espectador. (DA‐RIN, 2004: 10)

Algumas páginas adiante, Da‐Rin completa:

De fato, estamos diante de um “regime” de fácil constatação empírica – qualquer espectador que entre inadvertidamente em uma sala de cinema, em poucos minutos saberá responder se aquilo a que está assistindo é ou não um documentário. Se suas “fronteira incertas” desafiam o estabelecimento de uma definição extensiva, capaz de esgotar todas as ocorrências, isto não nos impede de reconhecer a existência concreta deste “grande regime cinematográfico” – que preferimos chamar de um domínio, entendido como âmbito de uma arte. (2004: 18, grifos do autor)

O domínio a que se refere Da‐Rin abraça tanto o documentário jornalístico como o documentário poético. Negar o nome “documentário” aos documentários de contornos experimentais ou poéticos é afirmar que o documentário tem o direito de experimentar e criar, porém, somente até até certo ponto. Na medida em que, além desse indefinível ponto, o documentário não se torna aquilo que entendemos por cinema de ficção, cai numa zona cinzenta, ainda pouco mapeada. O que quero dizer é que, em vista da crescente porosidade entre linguagens e abertura para o conceito de interdisciplinaridade nos processos criativos audiovisuais, talvez não seja interessante para quem pesquisa cinema documentário – e muito menos para quem faz – criar uma área (ou domínio) específica para o documentário poético, com perímetro e nomenclatura próprios. Acredito que essa divisão aja de fato como uma forma de segregação que fragiliza um fazer já tradicionalmente frágil por sua falta de penetração junto ao público. É uma digressão daquilo que está em questão, o reconhecimento do documentário como possibilidade de um fazer criativo, imaginativo e poético legítimo, e merecedor de divulgação nos meios de comunicação. Que documentário com abordagem jornalística daria conta de comentar a guerra como faz Herzog em Lições da escuridão? Que fato fidedigno (ou conjunto de fatos) daria conta das grandes questões que o diretor coloca a respeito da humanidade, de sua origem às indagações sobre seu destino, na trilogia apresentada? Será possível dizer que o teor político de As brumas da guerra (2003), de Errol Morris é superior àquele contido nos filmes de 140

Herzog? O monólogo do Alienígena de Além do azul selvagem recebe de Herzog um tratamento menos crítico do que o depoimento de Robert McNamara recebe de Morris? Portanto, o que este estudo aponta, não é a necessidade de se aprofundar a discussão sobre o que incluir sob a égide do nome e conceito de documentário, mas o quão vasta – e por esse motivo, inquietante – é a zona cinzenta do documentário que foge do fazer tradicional, dentro do domínio mencionado por Da‐Rin. Os três documentários estudados são pequenas ilhas a receber atenção nesse horizonte. Ao final da viagem que possibilitaram, demonstram pela sua riqueza que esta foi apenas uma etapa. Foi abordada a poética de um diretor, sob um recorte. Outras poéticas, outros processos criativos hão de merecer nossa atenção em estudos futuros. Contudo, a finalidade de toda reflexão deve ter uma dimensão macrocosmológica: não se trata de compreender apenas um processo, uma forma de pensar e perceber o mundo em particular, mas apreender sensivelmente a essência do ser humano em sua lida com a vida pelo viés de sua criatividade, inventividade, inteligência e sensibilidade. É também um meio de avaliarmos nossas próprias necessidades e desejos, e medirmos o alcance de nosso instinto de sobrevivência como espécie no meio em que vivemos. Ao final da pesquisa, fica flagrante que ao fazer filmes poéticos, a intenção do cineasta não se resume a encontrar novas linguagens pelo exercício que isto representa. Almeja chamar a atenção para algo, atiçando os sentidos do espectador e despertando sua sensibilidade para outras formas de perceber o mundo. Esse maravilhamento não se encerra em si mesmo. No caso de Herzog, ao capturar e mostrar imagens adequadas, no sentido de puras e originais, ele oferece ao espectador um novo olhar sobre mundo, pois torna visível um mundo com imanência própria, que pode existir por si sem ser subjugado pela ação do ser humano. E quando o é, se revolta da forma magnífica. Ao revelar um mundo sublime e majestoso, livre do referencial humano – e portanto caótico – faz a pergunta: como é possível destruir algo tão belo? Para Herzog, mesmo quando violenta, beleza do mundo é sua melhor autodefesa. Outras obras e outras pesquisas revelarão diferentes maneiras de se perceber e representar o mundo e contar sua história. Estamos apenas começando a 141 jornada em direção ao mapeamento de um território poético em cinema documentário. Toda pesquisa deve obrigatoriamente passar pela condição humana do pesquisador antes de seu intelecto. Se para Montag há um homem por trás de cada livro, pode‐se propor que por trás de cada documentário poético ou filme‐ensaio também exista. Orientados por guias‐criadores, seguimos adiante encontrando um pouco deles e muito de nós mesmos em cada uma de suas obras. Se, à luz do conceito de obra de arte total nos permitimos pensar numa humanidade total, isto é, não segmentada por fatores como etnia ou orientação religiosa, política ou sexual, iremos além daquilo que nos aparta e nos ameaça como espécie, chegando à linguagem que nos une como um todo: a poesia, sob todas suas formas. E é esta a grande lição que tiramos do cinema documentário do poeta audiovisual Werner Herzog.

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APÊNDICE 143

1. Entrevista com Rainer Standke, montador de Lições da escuridão

Em 19 de setembro de 2011, entrei em contato com Rainer Standke1, montador do documentário Lições da escuridão. Ele falou sobre o processo da montagem do filme em detalhe. Transcrevo a seguir o depoimento realizado via skype (São Paulo/Los Angeles) que traz ao presente estudo a perspectiva interna desse processo, e revela uma ressonância sensível entre o processo de trabalho, seu resultado e aspectos do estudo sobre o documentário:

Paola Prestes: Eu gostaria de perguntar sobre o processo de edição do filme documentário Lições da escuridão. Rainer Standke: Foi em 1991, 1992. Os poços de petróleo estavam prestes a ser apagados. Acho que montamos em novembro. Foi rápido, não demoramos muito. Passamos quatro ou cinco semanas em Viena, onde Werner morava na época. O que nós tínhamos era uma grande pilha de filme, em super‐16 mm., negativo. Eu tinha uma grande pilha de copiões, cerca de dezesseis horas, o que, pelos padrões atuais, não é muito. Mas, em termos de filme, é bastante. Uma grande parte tinha sido filmada em câmera lenta por Paul Berriff. Ele tinha chegado ao Kuwait antes do Werner. Por algum motivo, Werner não pode ir para lá imediatamente. Acho que ele deu a instrução ao Paul Berriff para filmar imagens incríveis, que o mundo ainda não tinha visto, e filmar tudo em câmera lenta, e filmar material de documentário. Eu tinha a impressão de que o Paul Berriff e sua equipe tinham vontade de fazer algumas entrevistas e filmar um material de documentário mais tradicional e convencional, mas eles tinham sido instruídos para não fazerem isso, ouvi dizer, obviamente pelo Werner. Só encontrei o Paul Berriff na estreia do filme, e mesmo assim, rapidamente. Isto foi na época em que se trabalhava com película. Naquele tempo, estávamos acostumados a receber uma pilha de filmes: era aquilo e pronto. Não havia

1 O montador alemão Rainer Standke trabalhou com Werner Herzog em nove projetos, dentre eles, Wodaabe, pastores do sol, 1989; Ecos de um império sombrio, 1990; Lições da Escuridão, 1992; Sinos da profundeza – Fé e supertição na Rússia, 1993; A transformação do mundo em música, 1994; Morte para cinco vozes, 1995; O pequeno Dieter precisa voar, 1997. Ele vive desde 1996 em Los Angeles, onde recentemente começou a criar softwares usados na pós‐produção de filmes.

144 o conceito de sair para filmar material adicional ou coisa do gênero. Mas eles acabaram voltando… Eu tinha esquecido isso. Werner viajou uma segunda vez para lá, acho que ele levou um cinegrafista alemão com ele. Foram os créditos ao final do filme que me lembraram disso. Há um segundo cinegrafista, o nome dele é Rainer Klausmann. E acredito que eles filmaram as entrevistas das duas mulheres em pé. Em todo caso, quando você se depara com uma grande pilha de material e você não tem ideia do que fazer com ele – e este era mais ou menos o caso, pois nós não sabíamos como íamos montar –, o que você faz é separar os pedaços bons, você alinha as partes boas, as de que você gosta, que te dizem algo. Você as separa e as assiste de novo, e vê o que funciona e que não funciona. E você vai burilando, até ter uma ideia daquilo que você irá fazer com esse material. PP: Quando você diz “as partes boas”, isto pode variar… Que partes são boas? Se você olhar para o material com olhos de jornalista, você vai achar certas coisas boas. Se você olhar com olhos de artista, as partes boas serão algo muito diferente. RS: Como montador de documentário, é vital que você tenha uma boa noção de todo material que você tem, antes de começar a lapidar. Porque, se você não souber realmente o que tem, não tem como saber que rumo as coisas vão tomar, a não ser que você assista a todo o material bruto. Isto é algo que alguns documentaristas hesitam em fazer. Também porque custa caro. Ouvi um montador de documentários americano contar numa entrevista que ele assiste aos copiões do material bruto durante seis semanas. Ele faz anotações e não faz um único corte antes de ter feito tudo isso. Seis semanas é mais tempo do que o tempo total que tínhamos para montar Lições da escuridão! O que estou tentando dizer é que nós assistimos ao material – e assistimos tudo. Algumas partes em fast‐forward, em uma mesa de montagem plana Steenbeck, que, em alemão, se diz Schneidertisch, e que quer dizer “mesa de corte”. Olhamos tudo, algumas partes aceleramos, o que não chega a surpreender, porque as partes em câmera lenta não ficam tão rápidas quando você roda o filme mais rapidamente do que o tempo real. Depois de olhar todo o material, ficou claro que não era um material de tipo jornalístico. Não poderíamos ter feito um documentário convencional com o material. 145

Não havia depoimentos, ninguém relatando os fatos nus e crus sobre o que estava acontecendo. Não havia ninguém contextualizando nada. PP: Você trabalhou com Werner ao seu lado? Você tinha um assistente? RS: Eu não tinha um assistente. Quando você filma em película, é preciso sincronizar o som e a imagem. Em documentário, isso representa um desafio, mas eles não tinham gravado nenhum som. Tem uma sequência, depois da metade do filme, onde alguns caras estão se preparando par detonar algo. Sincronizei aquilo antes, depois numerei o filme. Você coloca números no filme e isso te ajuda a organizar o material e, na hora que quiser, reconstituir coisas que você tinha cortado ou jogado fora. Não tinha um assistente. Trabalhamos de maneira disciplinada das nove às seis, em Viena, só parando uma hora para o almoço. Eu fiz algumas coisas sozinho, mas a maior parte do tempo Werner estava presente. Era o relacionamento de praxe entre um montador e um diretor: Assisitir ao material, reagir a ele, compartilhar as reações e ter ideias sobre o que fazer com ele. PP: Sobre a música: esse documentário sempre me intrigou até eu começar a assisti‐lo novamente por causa da dissertação de mestrado que estava fazendo. Eu o redescobri por meio de Richard Wagner. Tive de ouvir Wagner, aprender sobre sua música. Percebi que a estrutura do documentário era muito próxima da estrutura de uma ópera. Comecei a olhar para o documentário como uma ópera. Todo mundo menciona ficção científica a respeito de Lições da escuridão, e claro que parece ficção científica com todas aquelas tomadas aéreas… mas, para mim, a descoberta foi a ópera e a música como parte do filme. Praticamente, todas as músicas do filme falam de morte. RS: Isto é inteiramente possível! Não tinha me dado conta, mas faz sentido. PP: Por exemplo, de Peer Gynt, tem A morte de Aase, tem o Réquiem de Verdi… Quase todos os trechos musicais estão relacionados com a morte ou a dor, como o Stabat Mater de Arvo Pärt. Redescobri o documentário por meio da música. RS: Interessante. PP: Reparei que em muitos dos documentários que você montou com Werner Herzog, a música é central. E é central no trabalho dele, como diretor de ópera, suponho que ele goste muito de música. A música é um tema, como em Morte a cinco 146 vozes2. Em Lições da escuridão, a música não é um tema em si, mas é uma parte muito importante na composição do documentário. Mas vou direto ao assunto: gostaria de saber se a música veio antes, depois ou durante a montagem. RS: Não foi escolhida antes. O processo a que me referi foi no sentido de identificar, encontrar o filme no material que eu tinha. Num material tão desestruturado como era no caso esse, isso é um desafio. Vou me estender um pouco, mas vou chegar à sua pergunta: você encontra as partes boas, as partes que “falam” para você, certo? Você as alinha e então você encontra a história mecânica que você quer contar. Por exemplo: na metade do filme, quando eles colocam aquela peça sobre os poços, tem um cara que começa a martelar esse lacre que foi colocado na boca do poço, em câmera lenta. Esse corte conta uma história mecânica: primeiramente, eles fazem isso para preparar outra ação, correto? Depois, eles tiram o lacre e colocam outra coisa no lugar e ficam felizes... É uma pequena história em si. É uma questão de escolha, se você gosta de contar uma história desse jeito. Em uma dimensão maior... no documentário, há pessoas que estão perdidas e você mostra que elas têm algo para se agarrar. É um pequeno procedimento para contar uma história muito tangível dentro do filme como um todo. Na maior parte do filme, você não sabe direito o que está acontecendo, você é claramente confundido pela narração sobre o que ele trata. O filme deixa o espectador se perguntar o que está acontecendo por um bom tempo. Você assiste ao material e tenta encontrar as partes boas. Quando você as alinha, você junta pequenos trechos que têm a ver um com o outro. Próximo passo: você começa a brincar com a ordem das coisas. Você tem grupos de coisas que combinam e se pergunta: “Como vou estruturar a ordem delas? Qual a maior, a melhor dentre elas? Isto deveria estar perto do final do filme. Qual delas faz a narrativa avançar?”. Tem um momento no filme, quando chegamos pela primeira vez aos poços de petróleo queimando, que começa com uma longa aproximação de um poço em chamas, e é quando ouvimos… o Crepúsculo dos deuses? Não tenho certeza, o trecho de Wagner… Esse é um bom exemplo de como fazer a transição para um novo

2 Tod für fünf Stimmen (direção Werner Herzog, montagem Rainer Standke). Documentário sobre a vida do compositor italiano renascentista Carlo Gesualdo, 1995.

147 momento no filme, para um novo grupo de tomadas e sua pequena subparte dentro do filme final. O que chamou minha atenção, quando assisti de novo, é como são pictóricas essas tomadas. Poderiam todas ser sido pintadas por antigos mestres holandeses! PP: Sim, e pintores românticos alemães também. Algumas pinturas de [Caspar] Friedrich correspondem a fotogramas muito parecidos do filme. RS: Sim, sim. Quando você chega ao ponto em que o filme começa a tomar forma, faz sentido começar a pensar na música. Porque nesse ponto, nesse filme em particular, era evidente que precisávamos de um áudio, uma trilha. Tínhamos esses fragmentos de narração que Werner ia fazendo enquanto trabalhávamos, mas sabíamos que havia longos trechos do filme em que não havia nada mais a se dizer. Esse filme teria sido aniquilado por uma narração contínua! Se tivesse sido narrado do começo ao fim, teria ficado horrível! Começamos, então, a trabalhar a música. Tenho muito familiaridade com o jazz, sou um grande fã de jazz, mas sou ignorante em se tratando de ópera. Werner, na época, tinha começado a dirigir óperas. Tinha dirigido algumas. Dirigiu muitas mais, desde então. Não são todas as músicas que funcionam num filme. É difícil dizer o que faz uma música funcionar com imagens em movimento. Fizemos alguns poucos testes com jazz. Jazz costuma ter uma vida própria muito forte. Tende a impor sua estrutura à imagem. E, num filme como o que acabamos fazendo, isso não é bom. Se a música for um fundo musical, for por trás de uma cena dramática, ou narração ou entrevistas, ela não pode ser dinâmica demais, tanto no sentido do dinamismo do áudio em si, alto e baixo, como no sentido da história que a própria música está contando. Você pode entender isso melhor ao ouvir a trilha musical de um filme padrão de Hollywood: se você prestar atenção só na trilha, verá que ela é incrivelmente insossa. Para mim, um jeito de identificar uma música boa é se ela mantém o impulso, a pressão, continua a crescer. No mundo do jazz, Dave Brubeck é um bom exemplo de alguém que começa num ponto e vai constantemente crescendo. Ele chega num tempo x, chega ao clímax, e então a música acaba. Procuramos música assim durante toda a montagem. Enquanto ainda estávamos em Viena, trabalhando no filme, experimentamos várias coisas. 148

Compramos CDs, eu tinha músicas comigo… O trecho de Wagner, acho que é do Crepúsculo dos deuses… PP: É. RS: …Eu tinha essa gravação numa fita‐cassete com a big band de Stan Kenton. Disse a Werner: “Sei que esse não é o tipo de música que você gosta, mas acho que a música em si pode funcionar”. Então, ouvimos e foi bastante convincente. A versão da big band é muito parecida dramaticamente falando com a gravação que usamos. Achei engraçado como chegamos num determinado ponto e identificamos esse trecho de música em particular. Depois disso, foi uma série de experimentos: era tocar uma música com a imagem e ver o que acontecia. Às vezes, dá certo, às vezes, não dá. PP: Então, você acredita que um filme é inventado durante a montagem, ou as imagens e os sons trazem em si as indicações de como eles deveriam ser montados? RS: É uma mistura das duas coisas. No caso, era mais… o filme foi encontrado e construído na sala de montagem, portanto, durante o processo de montagem. Não tínhamos nada, for a uma pilha de material bruto, e nenhuma ideia do que fazer com ele. Minha abordagem foi começar com o material que era espetacular e construir a partir daí. Contruir o aspecto espetacular e dramático das imagens para chegar àquilo que descrevi sobre Dave Brubeck: chegar no clímax, e, depois desse ponto, chegar numa coda3 no filme. Às vezes, tem um pouco de coda. Ou o final do filme. Lembro bem de que sabíamos que não queríamos mostrar nada queimando por um bom tempo de filme. Depois desse momento, a maior parte das coisas começam a queimar e fumegar. PP: E o fogo e a água tornam‐se personagens importantes. Em O Anel dos Nibelungos, de Wagner, o fogo e a água são símbolos muito fortes que personificam a luta entre vida e a morte. Encontrei um eco disto no filme. Os personagens mais importantes são elementos da natureza, e dentre eles, o fogo e a água são os mais importantes. Os seres humanos são como insetos… RS: Sim, Sim. PP: …que se tornam gradualmente mais humanos à medida que a batalha vai terminando. Quando o fogo é subjugado pela água, os homens tornam‐se humanos de

3 Coda (termo italiano que, em português, quer dizer cauda): é a seção com que se termina uma música. 149 novo. Daí, as tomadas são mais fechadas, podemos ver faces humanas, dando risada… até que um deles faz algo louco, que é acender um poço de petróleo de novo! É esta a impressão que a montagem passa: que enlouqueceram e fizeram uma coisa dessas. Não sei se o material foi mesmo filmado nessa ordem. A montagem foi feita com o intuito de fazer os homens parecerem loucos ao acender os poços de petróleo de novo? RS: (ri) Sim… Foi uma escolha. Obviamente, Werner teve essa ideia quando fazia o voice‐over, de retratar esses caras como se estivessem enlouquecendo. PP: Coisa que ele costuma fazer em seus filmes… Todo mundo enlouquece num determinado momento! RS: (ri) Sim, assim como na vida! Acontece que o documentarista não se atém à ordem em que as coisas foram filmadas. Porque isso não tem importância. Não existe uma maneira mecânica de você controlar o material que você escolhe. Mas, no caso do Werner, em especial, o material bruto não veio com uma papelada cheia de anotações. O que tinha era uma pilha de copiões revelados, e só. A gente tinha de se virar com o material bruto filmado. Ele nem tinha colocado etiquetas em muitos dos rolos de filme para ordená‐los. Era como um grande jogo de adivinhação. Cortamos esses pequenos segmentos. Os poços sendo acesos de novo era um deles, e mexemos, testamos a ordem das coisas. Sabíamos que tínhamos de chegar a um filme de cerca de uma hora. Era preciso encontrar o melhor lugar para cada segmento. É assim que você chega a um filme. PP: Mas em que momento você sentiu que tinha uma história? RS: Boa pergunta! (ri). É o momento quando você sente que você tem um pedaço que funciona. Você tem três, quatro, cinco desses módulos que você estruturou, e você acha que cada um desses módulos funciona sozinho, e você tem um conjunto de três, quatro ou cinco módulos de material que funcionam em uma determinada ordem. Mas, talvez, o jeito que você os utilizou não funciona. Eles talvez estejam no lugar errado do filme. Ou, talvez, funciona de um modo geral, mas você não tem lugar para um trecho especialmente incrível, ou uma cena incrível, digamos. Daí, você vai experimentando. E você começa a ter a sensação que algo está funcionando, muito gradativamente. Você tem que dar uma passada geral de olhos de vez em quando, a cada dois ou três dias, para ter ideia do que está dando certo e do 150 que não está. É esse o desafio da montagem. Porque você já viu o material inteiro cinco mil vezes e você precisa conseguir reagir a ele com o frescor da primeira vez. Para mim, o único jeito é assistir a tudo de novo. Não dê fast‐forward, não fique pulando de lá para cá. Olhe para o material e brinque com o que você tem, e seu instinto dirá a você o que dá certo e o que não dá. PP: Queria perguntar a você sobre isso, sobre lógica versus intuição. Parece‐me, portanto, que a intuição ou a sensibilidade é até mais importante do que a lógica. Ela é fundamental na realização de um documentário? RS: Sim, positivamente. É preciso manter vários fatores sob controle, mas é necessário ter sensibilidade com relação àquilo que estamos fazendo. Quanto mais assisto a filmes e vídeos, mais me dou conta que eles precisam ter uma verdade emocional dentro deles, pois, se não tiverem, não fazem diferença nenhuma. É necessário que as coisas funcionem em termos emocionais. É preciso prender a atenção das pessoas. As pessoas precisam acompanhar seu filme em algum nível emocional. Caso contrário, não importa o quanto os fatos que você está apresentando serem brilhantes, pois elas não estarão conectadas emocionalmente, e estará tudo perdido. E, certamente, num filme que, como este, que representa um desafio, que não pega o espectador pela mão e o conduz através da história, o espectador precisa estar interessado por vontade própria. O filme precisa funcionar em um nível emocional, e, para isto, é necessário ter sensibilidade. PP: Se a realização de um documentário sempre representa correr alguns riscos, Lições da escuridão corre muitos riscos. Entendo que o filme foi encomendado, que pediram a Werner Herzog para fazer o filme para um canal de TV. Ele tinha de ir ao Kuwait fazer um filme sobre a guerra. Ele volta com um filme onde sequer o nome do país é mencionado! O nível de risco que isto representa… não há datas, nenhuma referência de que guerra é aquela... Você estava preocupado com relação ao público? Como o filme seria recebido? RS: Não. Werner Herzog é muito seguro. Ela vai e filma, certo? Ele filma muito deliberadamente, e não filma muitas tomadas de cobertura. Durante o tempo em que trabalhei com ele – faz tempo que não falo com ele –, ele filmava aquilo que filmava, e, frequentemente, aquilo que você vê na tela é aquilo que ele filmou. Ele não filmou de um ângulo diferente, ou um primeiro plano, ou algo do gênero. Ele é corajoso: chegou 151 para editar sem saber como ia montar o material. Mas ele acabou encontrando o caminho do filme. Depois de trabalhar com ele algumas vezes, notei que tem um momento durante a montagem em que ele começa a mostrar o filme, ou partes dele, para pessoas que vão visitá‐lo na sala de montagem. Ele testa coisas com as pessoas, como um trecho da narração, para ver se as pessoas reagem, ou não, àquele determinado trecho da narração. Foi interessante testemunhar aquilo: o início, quando ele não sabia o que ia fazer, e depois, à medida que progredíamos, quando ele foi tendo mais certeza sobre as coisas, o que não chega a ser surpreendente... Mas, deixe‐me voltar à sua pergunta. Lembro que havia um canal alemão de TV a cabo, o Première, que era parte do império do Leo Kirch4. Foi o primeiro canal de TV a cabo da Alemanha. Eles estavam tentando ser um tipo de HBO. Então, Lições da escuridão foi uma das poucas coisas que eles encomendaram e produziram. Eles tinham outros parceiros, acho que tinha um produtor da BBC e o Canal+ francês. PP: Sim, e o Canal+ espanhol também.5 RS: O diretor de programação, que era nosso contato, veio a Viena pelo menos uma vez, talvez duas. Era um alemão da Première, de Hamburgo. Ele viu o que estávamos fazendo desde o início. Ele tinha muito respeito pelo Werner, e nunca se manifestou no sentido de nos mandar fazer algo totalmente diferente. Acredito que a Discovery comprou o filme pronto muito mais tarde. Quando eles adquiriram o filme, ele era um fait accompli. Li em algum lugar que eles apresentaram o filme de maneira meio equivocada... como um programa político. Erraram feio. (ri) PP: Não sei como o filme foi recebido pelo público de televisão. Talvez você saiba. Li que o filme foi muito mal recebido no Festival de Berlim (1992). O público não gostou nem um pouco. Depois disso, Werner escreveu seu manifesto contra o Cinema

4No final do anos de 1990, Leo Kirch chefiou a segunda maior empresa de comunicações da Alemanha. Com o apoio financeiro de politico e investidores como Rupert Murdoch, Silvio Berlusconi e um príncipe saudita, Kirch criou um império que incluía canais de TV, direitos de filmes e uma participação das corridas de Fómula 1. Uma manobra malsucedida levou o grupo de Kirch à falência em 2002. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2011. 5 Lições da escuridão é uma coprodução entre a Werner Herzog Filmproduktion, os Canal+ francês e espanhol, e o Première. Estreou na televisão no canal Discovery, como parte de uma série de documentários chamados Discovery Journal. 152

Verdade6. O filme é agora considerado uma obra de arte. Talvez as pessoas precisassem de tempo para começar a entender o filme? RS: Sim, possivelmente. O público alemão gosta de polemizar. No que diz respeito a Herzog, ele é amado ou odiado. Não importa o filme, haverá sempre um grupo de pessoas que ama o filme de paixão… Isto vale para todos os filmes que eu conheço, e sempre foi verdade para todos os filmes dele. Eu estava em Berlim, mas confesso que não me lembro direito. Estava estressado porque tínhamos montado em cima da hora e a cópia do filme estava atrasada. Houve problemas com o laboratório. Portanto, eu ainda estava bastante estressado por causa disso. Nem todas as pessoas entendem todos os filmes, certo? Não me surpreende que houve gente pensando que era algo que não podia ser feito, ou que fosse impróprio… Mas o Werner não é do tipo de se deixar impressionar com coisas assim. PP: Você usou o termo “impróprio”. Estou pensando em documentários poéticos, ensaios fílmicos... Como você se sente a respeito desses termos? RS: Quando funcionam, são lindos. Quando não funcionam, são o caos. Há exemplos de coisas que deram certo, por exemplo... Você se lembra de Koyaanisqatsi7? PP: Sim. RS: Assisti há muito tempo, e não vi mais desde então. Mas me lembro que fiquei impressionado. Não se tratava de documentar nada. Não era um documentário, eu acho. As lembranças vão voltando à medida que conversamos. A questão que se coloca sobre aquilo que é próprio ou impróprio é: na qualidade de documentarista, será que você não deveria mostrar a “verdade”, entre aspas? Desde o começo dos anos de 1990, é mais amplamente aceito que documentários não sejam objetivos. Documentários não podem ser realmente objetivos. As pessoas hoje em dia… com todo esse lixo dos reality shows que as pessoas engolem, elas esperam... elas são cúmplices dos diretores e produtores de reality shows. As pessoas sabem que não estão vendo a “realidade”. Elas sabem que as coisas podem ser manipuladas, comprimidas. Assim, acho que a discussão na época acontecia em um nível mais fundamental, e, hoje, essa questão não tem mais tanta importância.

6 Declaração de Minnesota, 1999. Ver Anexo. 7 Koyaanisqatsi, vida fora de equilíbrio, Godfrey Reggio, 1982. 153

PP: Há um primeiro nível, que é quando o documentarista resolve romper o contrato com a verdade e diz: “Eu não tenho de ser fidedigno ou fiel aos fatos”, que é o que Herzog chama de “a verdade dos contadores”. O segundo nível acontece quando o documentarista chega a algo diferente, que pode ser chamado de poesia audiovisual ou arte. No caso do documentário, isso ainda nem tem um nome, porque não é exatamente ficção, como a entendemos, e não é mais documentário. Eu me pergunto sobre esse segundo nível. Acho que é aquilo que Herzog chama de “êxtase da verdade”. Ele mencionou isso durante a montagem de Lições da escuridão? RS: Não. O processo todo não foi uma coisa cerebral demais. Foi mais intuitivo, acho que tanto para mim quanto para o Werner. Nenhum de nós dois é um erudito. Não somos cineastas porque fizemos uma escola de cinema. Não somos versados em teorias sobre cinema e coisas do tipo. Quando falamos sobre filmes, pelo menos eu não soo – e nunca soei – como um intelectual, creio. Em uma uma situação de montagem, você normalmente está lidando com restrições: Este é o material que você tem, e este é o tempo que você tem. A invasão do Kuwait aconteceu na primavera, entre fevereiro e abril. Os poços de petróleo estavam sendo apagados entre o verão e o outono. Eles [os técnicos] tinham acelerado a extinção do fogo. Eles vinham progredindo mais rapidamente do que tinham imaginado, e a ideia era lançar o filme no primeiro aniversário da libertação do Kuwait, que também coincidia com o Festival de Berlim. Portanto, havia restrições bem palpáveis. E não ter um filme pronto era algo que não passava pela cabeça de ninguém. Isso ajuda tremendamente na hora de se livrar de certos receios, porque, quando você olha para algo o suficiente, você sabe o que não está dando certo, não sabe? Você tem de confiar no seu instinto. Estou tentando descrever o processo de construção de um filme como esse, e esse filme em particular, claro: você tem esses blocos de encaixe que você vai combinando até chegar ao ponto em que sente que funciona, ou, pelo menos, funciona da melhor maneira possível. E, aí, você segue em frente. Werner e eu concordamos que há um tempo determinado que a gente passa na montagem e que é produtivo. Eu especificaria isto um pouco mais: há um tempo determinado que você passa até chegar… quando o filme é 90% daquilo que ele pode ser. O tempo que você gasta além desse ponto torna‐se infinitamente menos 154 produtivo. Você corre o risco de piorar o filme. Você fica fazendo aquelas melhorias minúsculas que, no final, não fazem tanta diferença. Elas não alteram aquilo que há de fundamental no filme. PP: Quando você recebe um material bruto, como as dezesseis horas de Lições da escuridão, você acredita que há um filme apenas contido nesse material bruto? Ou você poderia ter feito outro filme com esse mesmo material bruto? RS: Penso que, nesse caso em particular, havia só um filme. Havia muitos segmentos de três minutos, mas este não era o foco, certo? O que virou um documentário de cinquenta e quatro minutos, um documentário de uma hora para a TV, era um só. Acredito que é isso e ponto final. É o que fizemos com aquele material bruto. Não acredito que pudéssemos ter ido em nenhuma outra direção por muito tempo sem darmos em um beco sem saída. PP: Normalmente, Werner Herzog não usa efeitos especiais em seus filmes. Notei a câmera lenta em Lições da escuridão e me perguntei se esse efeito tinho sido usado durante as filmagens ou depois. Você acabou de me dizer que foi durante as filmagens. RS: Sim, sim. PP: Isso não é um pouco perigoso para o montador? Se Werner pediu isso, quer dizer que ele já tinha algo em mente... RS: Sim. Você tem de olhar para o que ele tinha feito antes, já em 1991. Ele tinha feito vários documentários que eram meio poéticos, não muito convencionais, e ele tinha feito vários longas‐metragens que continham elementos estranhos. A longa sequência de Cobra Verde8, por exemplo é um desses momentos que não são convencionais. Podemos chamá‐los de poéticos. Dão certo no caso de alguns realizadores, e não dão certo com outros. Técnicamente falando, quando aplicamos o efeito de câmera lenta depois da filmagem, não chegamos a um resultado redondo. Por isso, se você quer que algo fique bonito no resultado final, é preciso filmar numa velocidade menor do que a do tempo real. Acredito que ele tinha isso em mente quando falou com o Paul Berriff, antes de ele partir para o Kuwait. Você está lembrada que o diretor de fotografia foi para lá antes de Werner.

8 Cobra Verde, Werner Herzog, 1987. 155

PP: Normalmente, tomadas aéreas são usadas como complemento. Em Lições da escuridão, há uma quantidade enorme desse tipo de tomada. Sinto que essas tomadas são uma das coisas que fazem o filme dar tão certo. Decolamos e pairamos sobre esse planeta estranho. Você escolheu deliberadamente as tomadas aéreas? Ou essas eram praticamente o único tipo de tomada que você tinha para trabalhar? RS: Muito do material… sabe, as tomadas aéreas? Só tinha isso. Foi a escolha certa, filmar só aquelas imagens de cima, pois é o que faz com que o filme se sustente em longo prazo. Todos aqueles longos voos, se fossem substituídos por tomadas estáticas, tomadas terrestres, seriam extremamente enfadonhas. Assim, acho que foi uma boa escolha. E, falando sobre efeitos especiais, quando você corta um filme, você não tem fusões, onde uma tomada faz a transição para outra no espaço de alguns segundos. Não tem isso em película, não dá para simular. Tive de convencer Werner a usar fusões desde o início. Você se lembra daqueles voos sobre o deserto vazio? PP: Sim. RS: Chegamos ao que parece ser bunkers de aviões. Aquela sequência tem fusões. Precisei de um pouco de lábia para conseguir a permissão para usar as fusões no final do filme. Acho que deram muito certo. PP: Há um certo espírito em vários filmes do Werner. Eles passam a mensagem de que a humanidade está condenada. Ele utiliza partes da Bíblia, relatos mitológicos, costurados com músicas e imagens, e o resultado é uma visão desencorajadora sobre a humanidade. É como uma lupa: Ele vai para o Kuwait filmar uma guerra e o que aparece no filme é a história de todas as guerras. Não é uma série de guerras diferentes. Talvez, no final das contas, estamos sempre lutando na mesma guerra, que nos levará a um só lugar, a destruição. É uma interpretação apocalíptica. RS: Eu não tinha uma diretriz quando começamos a montar. Quando escolhemos os títulos de cada bloco, Werner estava trabalhando na narração. Nós, certamente, vetamos coisas pelo mesmo processo que vetamos outras: Isso está funcionando emocionalmente, nas nossas entranhas? Como repercute em nós? Acho que você tem razão, que Werner tem tendência a chegar a declarações do tipo “O mundo está acabando”, ou que ele tem uma afinidade com, digamos, o apocalipse. Mas ele, certamente, não me passou instruções para fazer um filme apocalíptico que ele só viria a assistir depois de pronto. (ri) 156

Tem outra coisa que eu gostaria de te contar sobre o áudio. Tínhamos o filme montado, isto é, tínhamos as imagens montadas no que seria a sequência final e o som sincronizado, mas ainda não tínhamos gravado o voice‐over. Tínhamos o texto do voice‐over que o Werner lia para quem estivesse conosco assistindo o filme. Eu tive de voltar a Munique, onde eu vivia, e onde ficava a produtora do Werner, nem sei se ainda é sediada lá... Começamos a trabalhar na trilha sonora e… tinha muito pouco áudio utilizável do Kuwait. Você nunca ouve um helicóptero no filme, e isto é deliberado. Se a gente tivesse colocado o barulho do helicóptero, teríamos acabado com um filme que zumbia sem parar. Teria sido horrível. Há pouquíssimo áudio original. Tinha um som sibilino, acredito que esse não seja um efeito. Aquela locação deve ter sido muito barulhenta. Não dava para dizer o que era líquido jorrando, mangueiras silvando ou máquinas, e por aí afora. Um editor de som inglês chamado Max Hoskins, que morava em Munique na época, trabalhou no filme por dez dias. Tudo passou por ele. Ele colecionava sons. Ele usou um ou dois sons da gravação original. Portanto, o som do filme não é extamente real. PP: Interessante, não tinha pensado nisso. Voltando para a música: Há vários compositores como Schubert, Wagner, Prokofieff, Mahler, Grieg, Arvo Pärt... Quem sugeriu a música? Como você testou a música que iria utilizar? RS: Eu conheço relativamente pouco sobre música clássica. Eu propus a ideia de usar o Crepúsculo dos deuses, porque eu tinha uma gravação em fita em uma versão de uma big band. PP: Certo. RS: Eu trouxe a fita para ouvirmos quando estava cortando o filme. Depois que isso deu certo, sabíamos que haveria outros trechos de Wagner que poderíamos tentar usar. Usamos um CD com versões instrumentais, sem voz, de greatest hits de Wagner, com os trechos de ópera mais conhecidos. É um processo de erro e acerto. Você se lembra daquele procedimento que mencionei há pouco sobre a substituição dos lacres das bocas dos poços de petróleo? PP: Sim. RS: Tem um pedaço de música clássica que usamos antes, num filme diferente, acho que em Wodaabe – pastores do sol… Mas não posso levar o crédito pela escolha de nenhuma outra música, não que eu me lembre. Werner conhecia e admirava Pärt. 157

Não me lembro de onde vieram as outras músicas. Tínhamos trabalhado com um cineasta em Viena e ele prestou uma consultoria musical para nós. Ela já tinha feito isso em filmes anteriores. Ele achou o Schubert, creio, e talvez tenha sugerido outras músicas. O nome dele é Michael Kreihsl. PP: Você se recorda em que ponto da montagem encontrou esse fio conductor musical, digamos... o trecho de Wagner? Você se recorda do quanto já tinha cortado? RS: Não me recordo porque é um alvo em movimento. Você reconsidera esses segmentos o tempo todo, certo? Isto está muito longo, isto aqui está ficando chato... Aí, você condensa mais um pouco. É provável que, quando fizemos um primeiro esboço de montagem, o filme estivesse longo demais. Talvez uma hora e meia ou duas. Normalmente, quando tem um canal de televisão envolvido, a gente trabalha com uma duração determinada. Por isso, lapidamos mais um pouco. PP: Há dois depoimentos no filme, com as duas mulheres. Eles não têm legendas, portanto, precisamos confiar em Werner, como no caso da falsa epígrafe de Blaise Pascal. Ele quase nunca usa legendas. É ele que conta ao espectador o que os personagem estão dizendo. Essas entrevistas são uma quebra estética e narrativa. Tem as paisagens, a música, e, de repente, dois depoimentos curtos. Não estou dizendo que eles não “casam” com o resto do filme, mas talvez, você poderia ter montado o filme sem eles. Havia a opção “Vamos ser radicais, não queremos nenhum ser humano falando neste filme”. Você pode comentar sua escolha? RS: Todas essas coisas formais nunca funcionam. Quando você está montando um documentário e você determina “Não vamos usar música ou legendas, ou títulos para os blocos, ou coisas do tipo, você sempre acaba violando as regras ou dogmas que você se impôs. Porque você vai chegar à conclusão que você precisa de certas coisas... Costumo pensar que, se você optar por uma abordagem ortodoxa, vai acabar num lugar bem desconfortável. Essas coisas nunca funcionam de fato. Quando assisti ao filme de novo, recentemente, me perguntei se espectadores árabes entenderiam o que elas dizem. A jovem mãe, especificamente, deve ter sido coerente no que diz. Não tenho tanta certeza com relação à outra mulher. Não tenho certeza se o que ela estava falando faz algum sentido para quem fala árabe. Porém, elas certamente tiveram um papel. Em retrospecto, elas nos envolvem porque são humanas, mesmo se há um distanciamento. Vários governos na época reagiram com 158 indignação diante dos atos de tortura que os iraquianos praticaram no Kuwait. Foi assim que as “peças de museu” entraram na montagem. Creio que tanto o museu como as mulheres foram filmados na segunda viagem. Ele [Herzog] se ausentou por uma semana e, aliás, o cinegrafista que filmou esse material era de Munique. PP: São os únicos elementos que localizam o filme. Elas usam roupas de uma certa cultura ou país. Assim, somos trazidos de volta à Terra por alguns minutos. Mas não por muito tempo. É como um lembrete da humanidade, sem estragar o aspecto fantástico, de fábula, do filme. Elas nos lembram disso pelo simples fato de estarem lá, pois não compreendemos o que falam. Estamos nas mãos de Werner, que narra o que elas dizem. RS: No que diz respeito ao ritmo do filme, elas têm a função muito útil de impulsionar e aumentar a pressão do filme. Elas aparecem relativamente cedo. Pintamos o quadro de uma paisagem devastada, e aí encontramos essas duas mulheres, mas, por outro lado, as encontramos antes de penetrar no fogo e na fumaça. Elas certamente ajudaram a orquestrar o grande arco dramático do filme. PP: Eu o agradeço muito pelo seu tempo e por compartilhar tudo isso comigo. RS: Se você tiver qualquer outra pergunta, não se acanhe. Podemos conversar mais. PP: Obrigada. 159

ANEXOS

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1. A Declaração de Minnesota

A Declaração de Minnesota (também conhecida como Carta de Minnesota) é um manisfesto que mais se aproxima de uma explicação sobre a teoria herzoguiana do “êxtase da verdade”. Ao ser apresentado no Festival de Cinema de Berlim de 1992, o documentário Lições da escuridão foi vaiado e o diretor hostilizado9. Eis a descrição do acontecimento feita pelo próprio Herzog:

Ao estrear no Festival de Cinema de Berlim, o filme se deparou com uma orgia de ódio. Em meio aos gritos irados do público, eu conseguia entender apenas “estetização do horror”. E, quando me vi sendo ameaçado, e as pessoas cuspiram em mim quando subi no palco, dei apenas uma única, banal resposta: “Seus cretinos,” disse, “isto é o que Dante fez em seu 10 Inferno, o que Goya fez, e Hieronimus Bosch também.”

O acontecimento motivou Werner Herzog a escrever seu manifesto, o qual ele apresentou no Walker Art Center em 30 de abril de 1999, em Mineápolis, Minnesota (EUA). Na ocasião, o Walker Art Center promovia uma retrospectiva da obra de Werner Herzog. Herzog escreveu o manifesto em inglês e nunca o traduziu por achar que o texto funciona melhor nesta língua. A seguir, o manifesto no original em inglês, seguida de uma sugestão minha de versão para o português.

Minnesota Declaration11 Truth and fact in documentary cinema – Lessons of darkness.

1. By dint of declaration the so‐called Cinema Verité is devoid of verité. It reaches a merely superficial truth, the truth of accountants. 2. One well‐known representative of Cinema Verité declared publicly that truth can be easily found by taking a camera and trying to be honest. He resembles the night watchman at the Supreme Court who resents the amount of written law and legal

9 Em outros países, notadamente nos EUA, o filme foi bem recebido. 10 Palestra dada por Werner Herzog em Milão, depois da projeção de Lições da Escuridão. Traduzida e transcrita no jornal da Universidade de Boston, Arion, vol. 17.3, na edição do inverno de 2010. Disponível em: . Acesso em 15 set. 2011. 11 Disponível em: . Acesso em 15 set. 2011. 161 procedures. "For me," he says, "there should be only one single law: the bad guys should go to jail." Unfortunately, he is part right, for most of the many, much of the time. 3. Cinema Verité confounds fact and truth, and thus plows only stones. And yet, facts sometimes have a strange and bizarre power that makes their inherent truth seem unbelievable. 4. Fact creates norms, and truth illumination. 5. There are deeper strata of truth in cinema, and there is such a thing as poetic, ecstatic truth. It is mysterious and elusive, and can be reached only through fabrication and imagination and stylization. 6. Filmmakers of Cinema Verité resemble tourists who take pictures amid ancient ruins of facts. 7. Tourism is sin, and travel on foot virtue. 8. Each year at springtime scores of people on snowmobiles crash through the melting ice on the lakes of Minnesota and drown. Pressure is mounting on the new governor to pass a protective law. He, the former wrestler and bodyguard, has the only sage answer to this: "You can´t legislate stupidity." 9. The gauntlet is hereby thrown down. 10. The moon is dull. Mother Nature doesn´t call, doesn´t speak to you, although a glacier eventually farts. And don´t you listen to the Song of Life. 11. We ought to be grateful that the Universe out there knows no smile. 12. Life in the oceans must be sheer hell. A vast, merciless hell of permanent and immediate danger. So much of a hell that during evolution some species ‐ including man ‐ crawled, fled onto some small continents of solid land, where the Lessons of Darkness continue.

Verdade e fato no cinema de documentário – Lições da escuridão

1. De tanto reiterá‐la, o chamado Cinema Verdade é destituído de verdade. Alcança uma verdade meramente superficial, a verdade dos contadores. 162

2. Um conhecido representante do Cinema Verdade declarou publicamente que a verdade pode facilmente ser encontrada ao empunharmos uma câmera e tentarmos ser honestos. Ele parece o vigia noturno da Corte Suprema que se indigna com a quantidade de leis escritas e procedimentos legais e diz: "Para mim, deveria existir apenas uma lei: os bandidos deveriam ir para a cadeia". Infelizmente, ele está parcialmente certo, na maior parte dos casos, na maior parte do tempo. 3. O Cinema Verdade confunde fato e verdade, e, portanto, ara apenas pedras. Mesmo assim, os fatos às vezes têm um estranho e bizarro poder que faz com que sua verdade inerente pareça algo inacreditável. 4. O fato gera normas, e a verdade, iluminação. 5. Há camadas mais profundas de verdade no cinema, e existe uma verdade poética, extática. É algo misterioso e elusivo, que só pode ser alcançado por meio da fabricação, da imaginação e da estilização. 6. Os cineastas do Cinema Verdade parecem turistas que tiram fotografias de antigas ruínas de fatos. 7. O turismo é um pecado, viajar a pé, uma virtude. 8. Todos os anos, na primavera, muitas pessoas morrem afogadas ao pilotar motocicletas de neve no gelo que começa a derreter nos lagos do Minnesota. Cresce a pressão sobre o novo governador para que ele crie uma lei que proteja essas pessoas. Ex‐lutador e guarda‐costas, ele dá a única resposta sensata para o problema: "Não se pode fazer uma lei contra a burrice". 9. Assim, o desafio está lançado. 10. A lua está sem brilho. A Mãe Natureza não está chamando, não fala com você, embora uma geleira, eventualmente solte ar. E você não ouve a Música da Vida. 11. Deveríamos ser gratos pelo fato do Universo, lá fora, não conhecer o sorriso. 12. A vida nos oceanos deve ser um inferno. Um vasto e impiedoso inferno de perigo permanente e iminente. Um tal inferno que, durante a evolução, algumas espécies – incluindo o homem –, rastejaram, fugiram para alguns pequenos continentes de terra firme, onde as Lições da Escuridão continuam.

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2. Ficha técnica dos documentários estudados

Fata Morgana Ano: 1971 Escrito e dirigido por Werner Herzog Filmado entre 1968 / 1970 Cor Suporte: 35 mm. Duração: 75 min. Locações: Saara argelino, Costa do Marfim, Tanzânia, Nigéria, Obervolta, Mali, Quênia, Lanzarote (Ilhas Canárias) Com: Wolgang von Ungern‐Sternberg, James William Gledhill, Eugen des Montagnes Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Hans von Mallinckrodt, Werner Herzog Narração: Lotte Eisner, Werner Herzog, Manfred Eigendorf, Wolgang Bächler Música: Leonard Cohen (So long Marianne, Suzanne, Hey, that’s no way to say good‐ bye), Steve Winwood (Sea of Joy), Third Ear Band (Ghetto Raga, do álbum Alchemy), François Couperin (Leçons des ténèbres), Wolgang Amadeus Mozart (Kyrie, Missa da Coroação), BWV 593 Johann Sebastian Bach – Antonio Vivaldi (Opus 3, Concerto nº 8, 2º movimento) Produtor: Walter Saxer Produção: Werner Herzog Filmproduktion, Munique

Lições da escuridão / Lektionen in Finsternis Ano: 1992 Escrito e dirigido por Werner Herzog Cor Suporte: S 16 mm. Duração: 55 min. Locações: Kuwait Fotografia: Paul Berriff, Rainer Klausmann. Tomadas aéreas: Jerry Grayson 164

Montagem: Rainer Standke Narração: Werner Herzog Música: Edvard Grieg (A Morte de Aase, Peer Gynt), Gustav Mahler (Sinfonia nº 2), Arvo Pärt (Stabat Mater), Sergei Prokofieff (Sonata nº2, opus 56), Franz Schubert (Noturno, opus 148), Giuseppe Verdi (Recordare, Requiem) Richard Wagner (Parsifal, ato 1, e da tetralogia O Anel dos Nibelungos: O ouro do Reno, ato 1, O Crepúsculo dos Deuses, a Marcha Fúnebre de Siegfried) Produtor executivo: Paul Berriff Diretor de produção: Lucki Stipetic Produção: Werner Herzog Filmproduktion, Munique, Canal + França, Canal + Espanha, Première (Alemanha)

Além do azul selvagem / The wild blue yonder Ano: 2005 Escrito e dirigido por Werner Herzog Cor Suporte: HD vídeo. Duração: 81 min. Locações: Ártico, Texas, NASA, espaço Com: Brad Dourif, astronautas do ônibus espacial STS – 34 Fotografia: Tanja Koop, Henry Kaiser, os astronautas do ônibus espacial STS‐34, Klaus Scheurich Montagem: Joe Bini Som: Joe Crabb Música: Ernst Reijseger (Bad news from outer space, Kyrie, Rosa, Andromeda, Liberame Domine, Last breath, Conversation, Song of the desert, Do you stil…?, Santus, S´Andira (vozes: Mola Sylla, grupo de cantores da Sardenha, Cuncordu de Orosei e Dora Juarez), Toru Takemitsu, Tokyo realization, Corona (com Jim O´Rourke), George Frideric Händel (Dank sei Dir, Herr, de O Messias, Arioso da Cantata con strumenti e Ombra mai fu, de Xerxes) Diretor de produção: Irma Strehle Produtores executivos: Lucki Stipetic, Christiane Le Goff 165

Produtor: Andre Singer Produção: Werner Herzog Filmproduktion, Munique, West Park Pictures, Tetra Media ‐ coprodução para BBC e France 2

3. Filmes de Werner Herzog

Filmes escritos, produzidos e dirigidos por Werner Herzog. Empresa produtora: Werner Herzog Filmproduktion de Munique, chefiada por Lucki Stipetic, irmão de Werner Herzog (no caso de haver outra empresa produtora ou coprodução, o nome será citado). Os filmes foram elencados cronologicamente, sem separação por gênero.

Héracles / Herakles: Documentário, PB, 12 min., 16 mm., 1962

A defesa sem precedente da fortaleza Deutschkreuz / Die beispiellose Verteidigung der Festung Deutschkreuz: Ficção, PB, 15 min., 16 mm., 1966 Com: Peter H. Bumm, Georg Eska, Karl‐Heinz Steffel, Wolgang von Ungern‐Sternberg Fotografia: Jaime Pacheco Montagem: Werner Herzog

Brincando na areia / Spiel im Sand: Documentário, PB, 14 min., 1964 Fotografia: Jaime Pacheco Montagem: Werner Herzog (filme retirado de circulação por Werner Herzog)

Últimas palavras / Letze Worte: Ficção, PB, 13 min., 35 mm., 1967 Fotografia: Thomas Mauch Montagem: Beate Mainka Som: Herbert Prasch

Sinais de vida / Lebenszeichen: Ficção, PB, 87 min., 35 mm., 1968 166

Com: Peter Brogle, Wolgang Reichmann, Athina Zacharopoulou, Wolgang von Ungern‐ Sternberg Fotografia: Thomas Mauch Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Herbert Prasch Música: Stavros Xarchakos Diretor de produção: Nicos Triandafyllidis

Os médicos voadores da África oriental / Die fliegende Ärtze von Ostafrika: Documentário, cor, 45 min., 35 mm., 1969 Fotografia: Thomas Mauch Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Narração: Wilfried Klaus Produtora executiva: Eleonore Semler

Precauções contra fanáticos / Maßnahmen gegen Fanatiker: Ficção, cor, 12 min. 35 mm., 1969 Com: Petar Radenkovic, Mario Adorf, Hans Tiedmann, Herbert Hisel, Peter Schamoni Fotografia: Dieter Lohmann, Jörg Schmitt‐Reitwein Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus

Os anões também começaram pequenos / Auch Zwerge haben klein angefangen: Ficção, PB, 96 min., 1970 Com: Helmut Döring, Gerd Gickel, Paul Glauer, Erna Gschwendtner, Gisela Herwig, Hertel Minkner, Gertraud Piccini, Alfredo Piccini, Marianne Saar, Brigitte Saar Fotografia: Thomas Mauch Assistente de fotografia: Jörg Schmitt‐Reitwein Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Herbert Prasch Música: Florian Fricke, canções populares de Costa do Marfim e das Ilhas Canárias (cantora: Felisa Arrocha Martin) Diretor de produção: Francisco Ariza 167

Futuro obstruído / Behinderte Zukunft: Documentário, cor, 43 min., 16 mm., Munique, 1971 Fotografia: Jörg Schmitt‐Reitwein Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus

País do silêncio e da escuridão / Land des Schweigens und der Dunkelheit: Documentário, cor, 85 min., 16 mm., Munique, 1971 Com: Fini Straubinger Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Música: Johann Sebastian Bach, Antonio Vivaldi

Aguirre, a ira de Deus / Aguirre, der Zorn Gottes: Ficção, cor, 93 min., 35 mm., Munique, 1972 Com: Klaus Kinski, Ruy Guerra, Helena Rojo, Del Negro, Peter Berling, Cecilia Rivera, índios da cooperativa Lauramarca Fotografia: Thomas Mauch Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Herbert Prasch Música: Florian Fricke (Popol Vuh) Diretores de produção: Lucki Stipetic, Walter Saxer Coprodução: Hessischer Rundfunk, Frankfurt

O enigma de Kasper Hauser / Jeder für sich und Gott gegen alle: Ficção, cor, 109 min., 35 mm., Munique, 1974 Com: Bruno S., Walter Ladengast, Brigitte Mira, Alfred Edel, Clemens Scheitz, Florian Fricke, Hans Musäus, Willy Semmelrogge, Henry van Lyck Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Com: Heimo H. Heyder 168

Música: Popol Vuh, Wolgang Amadeus Mozart (A flauta mágica), Johann Pachelbel (Kanon), Orlando di Lasso (Requiem), Tommaso Albinoni (Adagio) Diretor de produção: Walter Saxer

Stroszek: Ficção, cor, 108 min., 35 mm. Munique, 1976 Com: Bruno S., Eva Mattes, Burkhard Driest, Prinz von Homburg, Clemens Scheitz Fotografia: Thomas Mauch Fotografia adicional: Ed Lachman Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Heimo H. Heyder Música: Chet Atkins (On my way down to Phoenix, The last thing on my mind, By the time I get to Phoenix), Sonny Terry (Old lost John), Ludwig von Beethoven (Arioso, op. 81 Mondscheinsonate), canção folclórica (Sabine war ein Frauenzimmer) Diretor de produção: Walter Saxer Coprodução: ZDF

How much wood would a woodchuck chuck: Documentário, cor, 45 min., 16 mm., Munique, 1976 Fotografia: Thomas Mauch Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Walter Saxer Diretor de produção: Walter Saxer

Ninguém quer brincar comigo / Mit mir will keiner spielen: Documentário/ficção, cor, 14 min., 16 mm., Munique, 1976 Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein

Coração de cristal / Herz aus Glas: Ficção, cor, 97 min., 35 mm., Munique, 1976 Com: Josef Bierbichler, Stefan Güttler, Clemens Scheitz, Volker Prechtel, Sonja Skiba Roteiro adaptado: Herbert Achternbusch Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus 169

Som: Heimo H. Heyder Música: Popol Vuh, Studio der frühen Musik Diretor de produção: Walter Saxer

La Soufrière: Documentário, cor, 31 min., 16 mm., Munique, 1977 Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein, Ed Lachmann Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Werner Herzog Música: Sergei Rachmaninoff (Concerto no 2 para piano e orquestra), Felix Mendelssohn (Canção sem palavras, no 1), Johannes Brahms (Wiengenlied meiner Schmerzen), Richard Wagner (O Anel dos Nibelungos, Crepúsculo dos deuses) Diretor de produção: Walter Saxer

Nosferatu – Fantasma da noite / Nosferatu – Phantom der Nacht: Ficção, cor, 103 min., 35 mm., Munique 1978 Com: Klaus Kinski, Isabelle Adjani, Bruno Ganz, Roland Topor, Jacques Dufilho, Walter Ladengast Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Harald Maury Música: Popol Vuh, Vokal Ansambl Gordela (Zinskaro), Charles Gounod (Sanctus, Missa Solene), Richard Wagner (O Anel dos Nibelungos: O Ouro do Reno) Diretor de produção: Walter Saxer Coprodução: Gaumont, Paris

Woyzeck: Ficção, cor, 81 min., 35 mm., Munique 1979 Com: Klaus Kinski, Eva Mattes, Wolgang Reichmann, Volker Prechtel, Irm Hermann, Josef Bierbirchler, Willy Semmelrogge Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Harald Maury 170

Música: Fidelquartett Telc (Polcas), Rudolf Obruca (Söpvamsly Pochod), Benedetto Marcello (Concerto para oboé em fá menor), Antonio Vivaldi (Concerto para violão e orquestra em ré maior) Diretor de produção: Walter Saxer

O furioso homem de Deus / God’s angry man: Documentário, cor, 44 min., 16 mm., Munique, 1980 Com Eugene Scott Fotografia: Thomas Mauch Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Diretor de produção: Richard Cybulski

O sermão de Huie / Huie’s sermon: Documentário, cor, 43 min., 16 mm., Munique 1980 Com: Huie L. Rogers Fotografia: Thomas Mauch Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Diretor de produção: Richard Cybulski

Fitzcarraldo: Ficção, cor, 157 min., 35 mm., 1982 Com: Klaus Kinski, Claudia Cardinale, José Lewgoy, Miguel Ángel Fuentes, Grande Otelo, Paul Hittscher, Peter Berling, Huerequeque Enrique Bohorquez, David Pérez Espinosa, Milton Nascimento Fotografia: Thomas Mauch Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Juarez Dagoberto Música: Popol Vuh, Richard Strauss (Morte e Transfiguração), Giuseppe Verdi(Ernani), Ruggero Leoncavallo (I Pagliacci, Ridi Pagliaccio com Enrico Caruso), Vincenzo Bellini, (A te o cara, amor talora, I Puritani), Giacomo Puccini (O Mimi, tu più non torni, La Bohème, com Enrico Caruso), Giacomo Meyerbeer (O Paradiso, L’Africana, com Enrico Caruso), Giuseppe Verdi (quarteto), música tradicional do Burundi Diretor de produção: Walter Saxer Coprodução: Project Filmproduktionen im Filmverlag der Autoren, Munique; ZDF 171

Gasherbrum – A montanha luminosa / Gasherbrum – Der leuchtende Berg: Documentário, cor, 45 min., 16 mm., 1984 Com: Reinhold Messner, Hans Kammerlander Fotografia: Rainer Klausmann, Jorge Vignati, Reinhold Messner Montagem: Maximiliane Mainka Som: Christine Ebenberger Música: Popol Vuh Produtor: Lucki Stipetic

A balada do pequeno soldado / Die Ballade vom kleinen Soldaten ‐ Der untergrundkampf der Miskito‐Indianer in Nicaragua: Documentário, cor, 45 min., 16 mm., 1984 Fotografia: Jorge Vignati, Michael Edols Montagem: Maximiliane Mainka Som: Christine Ebenberger Música: canções populares Diretor de produção e assistente de direção: Denis Reichle Produtor: Lucki Stipetic

O país onde sonham as formigas verdes / Wo die grünen Ameisen träumen: Ficção, cor, 100 min., 35 mm., 1984 Com: Bruce Spence, Wandjuk Marika, Roy Marika, Ray Barrett, Norman Keye Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Beate Mainka‐Jellinghaus Som: Claus Langer Música: Gabriel Fauré (Requiem), Richard Wagner (Wesendonk‐Lieder), Ernest Bloch (Voice in the Wilderness), Klaus‐Jochen Wiese (Temporary Galaxies) Produtor: Lucki Stipetic

Retrato Werner Herzog / Werner Herzog ‐ Filmemacher: Documentário, cor, 29 min., 1986 172

Com: Werner Herzog Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Maximiliane Mainka Som: Christine Ebenberger Coprodução: TransTel GmdH, Colônia

Cobra Verde: Ficção, cor, 110 min., 35 mm., 1987 Com: Klaus Kinski, Rei Ampaw, José Lewgoy, Peter Berling, Salvatore Basile Fotografia: Victor Ruzicka Montagem: Maximiliane Mainka Som: Heymo H. Heyder Música: Popol Vuh Diretores de produção: Walter Saxer, Salvatore Basile Produtor: Lucki Stipetic

Os Franceses vistos por... / The French as seen by...: Documentário, 12 min., 1988

Wodaabe, pastores do sol / Wodaabe, herdsmen of the sun: Documentário, cor, 52 min., 16 mm, 1989 Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Rainer Standke Som: Walter Saxer Música: Wolgang Amadeus Mozart (Don Giovanni), Charles Gounod (Ave Maria), Giuseppe Verdi (Requiem), George Frideric Händel (Julius Caesar, Xerxes) Diretor de produção: Walter Saxer

Ecos de um império sombrio / Echos aus einem düsteren Reich: Documentário, cor, 93 min., 16 mm., 1990 Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Rainer Standke Música: Michael Kreihsl Diretor de produção: Walter Saxer 173

Jag Mandir: Documentário, cor, 85 min., 16 mm., 1991 Fotografia: Rainer Klausmann, Wolfgang Dickmann, Anton Peschke Montagem: Michou Hutter Som: Rainer Wiehr Diretor de produção: Wolfgang Rest

Film Lesson 1 – 4: Documentários (4), 1991

Grito de pedra / Schrei aus Stein: Ficção, cor, 105 min., 35 mm., 1991 Com: Donald Sutherland, Vittorio Mezzogiorno, Mathilda May, Stefan Glowacz Roteiro original: Hans Ulrich Klenner, Walter Saxer, Robert Geoffrion Fotografia: Rainer Klausmann Montagem: Suzanne Baron Som: Christopher Price Música: Richard Wagner (Tristão e Isolda), Ingram Marshal (Fog tropes), Sara Hopkins (Songs of the wind), Alan Lamb (Journeys on the winds of time, I), Heinrich Schütz (sacral choir music) Diretor de produção: Erna Erlacher Produtor executivo: Walter Saxer Produtores: Walter Saxer, Henri Lange, Richard Sadler

Sinos da profundeza – Fé e supertição na Rússia / Bells from the deep – Faith and superstition in Russia: Documentário, cor, 60 min., S16 mm., 1993 Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Assistente de direção: Rudolph Herzog Montagem: Rainer Standke Som: Vyacheslav Belozerov Música: Coral do mosteiro de Zagorsk, Coral da Academia Espiritual de São Petersburgo, cantores Tuva Produtor: Lucki Stipetic

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A transformação do mundo em música / Die Verwandlung der Welt in Musik: Documentário, 92 min., S 16 mm., 1994 Com: Wolfgang Wagner, Sven Friedrich, Yohji Yamamoto, Placido Domingo, Dieter Dorn, Heiner Müller, Waltraud Maier, Siegfried Jerusalem Fotografia: Jörg Schmidt‐Reitwein Montagem: Rainer Standke Som: Ekkehart Baumung Música: Richard Wagner (Tristão e Isolda, O Holandês voador, Parsifal, Lohengrin) Produtor: Lucki Stipetic

Morte a cinco vozes / Tod für fünf Stimmen: Documentário, cor, 60 min., S 16 mm., 1995 Com: Pasquale d’Onofrio, Salvatore Catorano, Angelo Carrabs, Milva, Angelo Michel Torriello, Vicenzo Giusto, Alan Curtis, Gerald Place, Príncipe de Avalos Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Rainer Standke Som: Ekkehart Baumung Música: Carlo Gesualdo (madrigais, com Il Complesso Barroco e Gesualdo Consort of London) Diretor de produção e produtor: Lucki Stipetic Co‐produção: ZDF

O pequeno Dieter precisa voar / Little Dieter needs to fly: Documentário, cor, 80 min. e 52 min., S 16 mm., 1997 Fotografia: Peter Zeitlinger, Les Blank Montagem: Rainer Standke, Glenn Scantlebury, Joe Bini Som: Ekkehart Baumung Música: Bela Bartok (Buciumcana), Carlos Gardel (tangos: Volver e Juventud), Glenn Miller (In the mood), Kongar‐ol Ondar (Echoes of Tuva), Richard Wagner (Morte do amor, Tristão e Isolda), Anton Dvorak (Aus der Neuen Welt, Sinfonia nº 9), música popular (Uzlyau, Oay Lahy É, Madagascar), Hiran’ny Tanovan’ny, Ntao Lo), Johan Sebastian Bach (Jesus alegria dos homens, Coral da Cantata nº 147) 175

Produtor: Lucki Stipetic Prodtudor associado: Café Productions, para ZDF Co‐produção: ZDF, ZDF Enterprises, BBC

Deus e os carregadores de fardos / Gott und die Beladenen: Documentário, cor, 43 min., vídeo, 1999 Fotografia: Jorge Vignati Montagem: Joe Bini Som: Francisco Adrianzen Música: Charles Gounod (Missa de Santa Cecília, Sanctus), Orlando di Lasso (Lamentações de Jeremias, Missa pro defunctus) Produtor executivo: Lucki Stipetic Produtores: Joachim Puls, Martin Choroba

Cristo e demônios na Nova Espanha / Christ and demons in New Spain: Documentário, cor, 35 min., vídeo, 1999 Fotografia: Jorge Vignati, Ed Lachman Montagem: Joe Bini Som: Francisco Adrianzen Produtor executivo: Lucki Stipetic Diretor de produção México: Luz‐Maria Rojas Diretor de produção Guatemala: Alfonso Rios Montt Produtores: Martin Choroba, Joachim Puls

Asas da esperança / Wings of hope: Documentário,: Documentário, cor, 70 min., 49 min., e 42 min. (Julianes Sturz in den Dschungel), S 16 mm., 1999 Com: Juliane: Köpcke Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Joe Bini Som: Josch Rosen Música: Richard Wagner (O ouro do Reno, Parsifal), Igor Stravinsky (A sagração da primavera) 176

Produtor executivo: Peter Firstbrook Diretor de produção: Ulrich Bergfelder Produtor: Lucki Stipetic

Meu melhor inimigo / Mein liebster Feind: Documentário, cor, 95 min., S 16 mm., 1999 Com: Klaus Kinski, Eva Mattes, Claudia Cardinale, Beat Presser, Guillermo Rios, Andres Vicente, Justo Gonzalez, Benino Moreno Placido, Barão e Baronesa v. d. Recke, José Koechlin von Stein, Bill Pence Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Joe Bini Som: Eric Spitzer Música: Popol Vuh Produtor: Lucki Stipetic

Invencível / Invincible: Ficção, cor, 120 min., 35 mm., 2000 Com: Youko Ahola, Tim Roth, Anna Gourari, Udo Kier, Max Raabe Palast Orchestra Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Joe Bini Som: Simon Willis Música: Hans Zimmer Produtor executivo: Lucki Stipetic, James Mitchell Produtores: Werner Herzog, Christine Ruppert, Garry Bart

Peregrinação / Pilgrimage: Documentário, cor, 18 min., 35 mm., 2001 Fotografia: Jorge Pacheco, Jörg Schmidt‐Reitwein, Erik Söllner Montagem: Joe Bini Som: Neil Pemberton Música: Sir John Tavener (Mahamatra) Produtor executivo: Rodney Wilson Diretor de produção: Luz‐Maria Rojas Produtor: Lucki Stipetic

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Dez mil anos mais / : Documentário, cor, 10 min., 35 mm., 2001 Fotografia: Vicente Rios Montagem: Joe Bini Som: Walter Saxer Música: Paul Englishby Diretor de produção: Walter Saxer Produtor: Lucki Stipetic Coprodução: Central Independent Television

A roda do tempo / Wheel of time: Documentário, cor, 80 min., 35 mm., 2003 Com: Sua Santidade o 140 Dalail Lama, Ven. Geshe Tenzin Dhargye, monges do mosteiro de Namgyal Negi, Chungdak D. Koren, Dr. Manfred Klell, Madhurita Negi Anand, Lama Lhundup Woeser, Takna Jigme Sangpo, Matthie Ricard, Thupten Tsering Mukhimsar Fotografia: Peter Zeitlinger, Werner Herzog Montagem: Joe Bini Som: Eric Spitzer Música: Florian Fricke / Popol Vuh (Silence of the night), Lhamo Dolma (Tibetan song),Prem Rana Autari (Himal), Sur Sudha‐Autari (Raja Mati) Produtor executivo: Andre Singer Diretor de produção: Irma Strehle Produtor: Lucki Stipetic

O diamante branco / The white diamond: Documentário, cor, 87 min., HD vídeo e 35 mm., 2004 Com: Graham Dorrington, Mark Anthony Yhap, Anthony Melville, Red Man, The Rooster, Jason Gibson, Jan‐Peter Meewes, Michael Wilk Fotografia: Henning Brümmer, Klaus Scheurich Montagem: Joe Bini Som: Eric Spitzer Música: Ernst Reijseger 178

Produtores executivos: Rudolph Herzog, Klaus Scheurich Diretor de produção: Hennes Grossmann Produtores: Annette Scheurich, Lucki Stipetic, Werner Herzog Empresa produtora: Marco Polo Film AG.

O homem urso / : Documentário, cor, 103 min., S 16 mm., HD vídeo, 2005 Com: Timothy Treadwell, Amie Huguenard, Jewel Palovak Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Joe Bini Música: Richard Thompson Produtores executivos: Erik Nelson, Billy Campbell, Tom Ortenberg, Kevin Beggs, Phil Fairclough, Andrea Meditch Co‐produtor executivo: Jewel Palovak Produtor: Erik Nelson

O sobrevivente / : Ficção, cor, 126 min., 35 mm., 2006 Com Christian Bale, Steve Zahn, Jeremy Davies, Marshall Bell, Pat Healy Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Joe Bini Música: Frances‐Marie Uitti Produtor executivo: Jimmy de Brabant, Gerald Green Produtor: Elton Brand, Steve Marlton, Harry Knapp Empresas produtoras: Gibraltar Entertainment and Production

Encontros no fim do mundo / Encounters at the end of the world: cor, 99 min. HD‐CAM, 2007 Com: David Ainley, Samuel S. Bowser, Regina Eisert Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Joe Bini Som: Werner Herzog Música: Henry Kaiser, David Lindley Produtor: Henry Kaiser 179

La Bohème, cor, 2009 Fotografia: Richard Blanshard Produtor executivo: Lucki Stipetic, Fiona Morris Produtor: Andre Singer

Vício frenético / The bad lieutenant: Port of Call New Orleans: Ficção, cor, 122 min., 2009 Com: Nicolas Cage, Eva Mendes, Val Kilmer, Jennifer Coolidge, Brad Dourif Roteiro: William Finkelstein Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Joe Bini Música: Mark Isham Produtor: John Thompson, Melanie Brown, Alessandro Camon, Boaz Davidson, Danny Dimbort, Avi Lerner, Elliot Lewis Rosenblatt. Coprodução: Millennium Films, Saturn Films

My son, my son, what have ye done: Ficção, cor, 91 min., 2009 Com: Michael Shannon, Willem Dafoe, Chloë Sevigny, Udo Kier, Brad Dourif Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Joe Bini, Omar Daher Música: Ernst Reijseger Produtor: David Lynch

A caverna dos sonhos perdidos / : Documentário, cor, 90 min., 2010 Com: Werner Herzog, Dominique Baffier, Jean Clottes, Jean‐Michel Geneste, Carole Fritz, Gilles Tosello, Michel Philippe Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Joe Bini, Maya Hawke Música: Ernst Reijseger Produtor: Erik Nelson, Adrienne Ciuffo, Dave Harding, Julian Hobbs, David McKillop 180

Coprodução: Creative Differences, More4, Arte France, Ministère de la Culture et de la Communication, History Films

Dentro do abismo / Into the Abyss: Documentário, cor, 105 min., 2011 Fotografia: Peter Zeitlinger Montagem: Joe Bini Música: Mark Degli Antoni Produtor executivo: Lucki Stipetic, Erik Nelson Produtor: Andre Singer, Dave Harding, Amy Briamonte, Henry Schleiff, Sara Kozak Coprodução: Investigation Discovery, Creative Differences

4. Documentários sobre Werner Herzog e seus filmes citados

Fardo dos sonhos / Burden od dreams, cor, 95 min. 1982 Direção: Les Blank Fotografia: Les Blank Montagem: Maureen Gosling Produção: Les Blank, Kathy Kline e David R. Loxton

Réquiem no espaço – Werner e Ernst fazem música / Requiem in space – Werner and Ernst make music, cor, 27 min., 2005 Direção: Nicholas McClintock Edição: Robin Pender e Patrick Nugent Música: Ernst Reijseger Produtor: Andre Singer, Nicholas Singer Produção: Werner Herzog Filmproduktion, West Park Pictures e Tetra Media

No Além do azul selvagem com Werner Herzog / The Wild blue yonder with Werner Herzog, cor, 26 min., 2006 Direção e produção: Michael Basden, Norman Hill, Peter Langs, Carl Tostevin, Christopher Viers 181

Fotografia: Eric Gersh Montagem: Mark Savage

De cortes de cabelo a Herzog – No Além do azul selvagem com Brad Dourif / Haircuts to Herzog – The Wild blue yonder with Brad Dourif, cor, 19 min., 2006 Direção e produção: Michael Basden, Norman Hill, Peter Langs, Carl Tostevin, Christopher Viers Fotografia: Eric Gersh Montagem: Mark Savage

5. Filmes de outros diretores citados

A chegada do trem à estação de la Ciotat / L’arrivée d´un train en gare à La Ciotat, Auguste e Louis Lumière, 1895 As brumas da Guerra / The fog of war, Errol Morris, 2003 As cinco obstruções / The five obstructions, Lars von Trier, 2003 Abril / Aprile, Nanni Moretti, 1998 Apocalypse Now, Francis Ford Coppola, 1979 Caro diário / Caro diario, Nanni Moretti, 1993 Central do Brasil, Waler Salles, 1998 Documentiroso / Documenteur, Agnès Varda, 1980 2001: uma odisseia no espaço / 2001: a space odyssey, Stanley Kubrick, 1968 Duas ou três coisas que sei dela / Deux ou trois choses que je sais d´elle, Jean‐Luc Godard, 1967 Edifício Martinelli, Ugo Giorgetti, 1975 E.T., o extraterrestre / E.T., the extra‐terrestrial, Steven Spielberg, 1982 Fahrenheit 451, François Truffaut, 1966 Grey Gardens, Albert Maysles, David Maysles, Muffie Meyer, Ellen Hovde, 1975 Irmãs jamais / Sorelle Mai, Marco Bellocchio, 2010 Isto não é um filme / This is not a film, Jafar Panahi (com a colaboração de Mojtaba Mirtahmasb), 2011 182

Jogo de Cena, Eduardo Coutinho, 2007 Koyaanisqatsi, vida fora de equilíbrio / Koyaanisqatsi, life out of balance, Godfrey Reggio, 1982 Naqoyqatsi, vida como guerra / Naqoyqatsi, life as war, Godfrey Reggio, 2002 O crepúsculo dos deuses / La caduta degli dei, Luchino Visconti, 1969 O homem com a câmera / Chelokev s kinoapparatom, Dziga Vertov, 1929 Ônibus 174, José Padilha, 2002 Powaqatsi, vida em transfomação / Powaqatsi, life in transformation, Godfrey Reggio, 1988 Sábado, Ugo Giorgetti, 1995 Sem sol / Sans soleil, Chris Marker, 1983 Socorro Nobre, Walter Salles, 1995 Titanic, James Cameron, 1997 Titicut Follies – Frederick Wiseman, 1967 Tokyo‐Ga, Wim Wenders, 1985 Última parada 174 ‐ Bruno Barreto, 2008 Zabriskie Point, Michelangelo Antonioni, 1970

6. Óperas dirigidas por Werner Herzog

1986: Doutor Fausto, de Ferruccio Busoni, Teatro Comunale Bologna, regente Zoltan Pesko 1987: Lohengrin, de Richard Wagner, Festival Bayreuth, regente Peter Schneider 1989: Joana D’Arc, de Giuseppe Verdi, Teatro Comunale Bologna, regente Riccardo Chailly 1991: A flauta mágica, de Wolgand Amadeus Mozart, Teatro Bellini, Catania, regente Spiros Argiris 1992: La donna del lago, de Gioacchino Rossini, Teatro La Scala, Milão, regente Riccardo Muti 1993: O Holandês voador, de Richard Wagner, Opéra Bastille, Paris, regente Chung Myung‐whun 183

1994: O Guarany, de Antonio Carlos Gomes, Oper Bonn, regente John Neschling 1994: Norma, de Vincenzo Bellini, Arena di Verona, regente Gustav Kuhn 1996: O Guarany, de Antonio Carlos Gomes, The Washington Opera, regente John Neschling 1997: Chushingura, de Shigeaki Saegusa, Tóquio 1997: Tannhäuser, de Richard Wagner, Teatro de la Maestranza, Sevilha, regente Klaus Weise 1997: Tannhäuser, de Richard Wagner, Opéra Royal de Wallomie, Liège, regente Friedrich Pleyer 1998: Tannhäuser, de Richard Wagner, Teatro di San Carlo, Nápoles, regente Gustav Kuhn 1998: Tannhäuser, de Richard Wagner,Teatro Massimo, Palermo, regente John Neschling 1999: Tannhäuser, de Richard Wagner,Teatro Real, Madri, regente Cristof Perick 1999: A flauta mágica, de Wolgand Amadeus Mozart, Teatro Bellini, Catania, regente Zoltan Pesko 1999: Fidelio, de Ludwig van Beethoven, Teatro La Scala, Milão, regente Riccardo Muti 2000: Tannhäuser, de Richard Wagner, Baltimore Opera Company, regente Christian Badea 2001: Joana D’Arc, de Giuseppe Verdi, Teatro Carlo Felice, Gênova, regente Nello Santi 2001: Tannhäuser, de Richard Wagner, Teatro Municipal, Rio de Janeiro, regente Karl Martin 2001: Tannhäuser, de Richard Wagner, Houston Grand Opera, Houston, regente John Fiore 2001: A flauta mágica, de Wolgang Amadeus Mozart, Baltimore Opera Company, regente Will Crutchfield 2002: O Holandês voador, de Richard Wagner, Domstufen Festspiele Erfurt, regente Norbert Gugerbauer 2008: Parsifal, de Richard Wagner, Palau de les Arts, Valencia, regente Lorin Maazel

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7. Índice iconográfico

Imagens Paisagens mentais e seus personagens

Paisagens mentais 1...... 49 Figura 1 ‐ Paisagem montanhosa (H. Seghers). Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. Figura 2 ‐ Lições da Escuridão, incêndio 1 (W. Herzog, 1992). Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011.

Paisagens mentais 2...... 50 Figura 3 ‐ Cidade com quatro torres (H. Seghers). Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. Figura 4 ‐ Fata Morgana, habitações no deserto (W. Herzog) Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011.

Paisagens mentais 3...... 51 Figura 5 ‐ Monge à beira‐mar (C. D. Friedrich). Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. Figura 6 ‐ Além do azul selvagem, Antártico 1 (W. Herzog). Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. Figura 7 ‐ Tempestade de neve (W. Turner ...... 52 Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2011.

Paisagens mentais 4...... 53 Figura 8 ‐ Beira‐mar ao luar (C. D. Friedrich). Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. Figura 9 ‐ Lições da Escuridão, poço de petróleo 1 (W. Herzog). Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011.

Paisagens mentais 5...... 54 Figura 10 ‐ A cruz na montanha (C. D. Friedrich). Disponível em: 185

. Acesso em: 9 out. 2011. Figura 11 ‐ Lições da Escuridão, poço de petróleo 2 (W. Herzog). Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. Figura 12 ‐ O navio negreiro (W. Turner) ...... 55 Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2011.

Paisagens mentais 6...... 56 Figura 13 ‐ Homem e mulher observando a lua (C. D. Friedrich). Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. Figura 14 ‐ Além do azul selvagem, Antártico 2 (W. Herzog, 2005). Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2011.

Imagens Fata Morgana: deserto e danação Figura 15 ‐ Fata Morgana, miragem 1 (W. Herzog ...... 83 Disponível em: Acesso em: 9 out. 2011. Figura 16 ‐ Fata Morgana, menino com raposa do deserto 1 (W. Herzog...... 85 Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. Figura 17 ‐ Fata Morgana, dunas (W. Herzog...... 87 Disponível em: Acesso em: 9 out. 2011. Figura 18 ‐ Zabriskie Point (M. Antonioni). Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. Figura 19 ‐ Fata Morgana, menino e raposa do deserto 2 (W. Herzog...... 90 Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2011. Figura 20 ‐ O Pequeno Príncipe (A. de Saint‐Exupéry). Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2011. Figura 21 ‐ O Coelho Branco (J. Tenniel...... 96 Disponível em: Acesso em: 13 nov. 2011.

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Figura 22 ‐ Fata Morgana, menino com raposa do deserto 3 (W. Herzog) Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2011.

Imagens Lições da Escuridão: o Apocalipse em treze quadros Figura 23 ‐ Lições da Escuridão, imagem de arquivo (W. Herzog ...... 107 Disponível em: < http://filmsufi.blogspot.com/2010/05/lessons‐of‐darkness‐werner‐herzog‐ 1992.html>. Acesso em: 12 out. 2011. Figura 24 ‐ Lições da Escuridão, incêndio 2 (W. Herzog ...... 111 Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2011. Figura 25 ‐ O Anel dos Nibelungos (R. Wagner). Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2011.

Imagens Além do azul selvagem: o círculo poético se fecha Figura 26 ‐ São José carpinteiro (G. de La Tour ...... 130 Disponível em: Acesso em: 12 out. 2011. Figura 27 ‐ Além do azul selvagem, espaço (W. Herzog...... 131 Disponível em: Acesso em: 12 out. 2011. Figura 28 ‐ Além do azul selvagem, buraco no gelo (W. Herzog) Disponível em: Acesso em: 12 out. 2011. 187

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4. Webgrafia www.wernerherzog.com www.imdb.com www.revelationbibleprophecy.org