Diálogos - Revista do Departamento de História e do Programa de Pós- Graduação em História ISSN: 1415-9945 [email protected] Universidade Estadual de Maringá Brasil

Rocha, Carlos Guilherme “Para a conversão das almas”: conquista espiritual, governo civil e defesa dos nativos nas Filipinas. A época missionária, 1565-1581 Diálogos - Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, vol. 20, núm. 2, 2016, pp. 132-149 Universidade Estadual de Maringá Maringá, Brasil

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Diálogos ISSN 1415-9945 http://dx.doi.org/10.4025.dialogos.v20n2 (Impresso)

“Para a conversão das almas”: conquista espiritual, governo civil e defesa dos nativos nas Filipinas. A época missionária, 1565-1581 http://dx.doi.org/10.4025.dialogos.v20n2.34571 Carlos Guilherme Rocha Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense, [email protected] ______Resumo Este artigo analisa a atuação dos missionários agostinianos e franciscanos descalços na primeira fase da colonização espanhola das ilhas Filipinas. Através Palavras-chave: de correspondências e relatos dos freis e autoridades civis atuantes nas ilhas, são Filipinas; ; destacados os modelos de ‘bom governo’ projetados pelos religiosos, bem como missionários; século XVI os mecanismos pelos quais os eclesiásticos influenciaram ou tentaram influenciar o processo de conquista do arquipélago asiático, especialmente no

que toca à incorporação dos nativos e à prática da encomienda.

Abstract

‘Para la conversion de las animas’: spiritual conquest, civil government and defense of the natives in the . The missionary age, 1565-1581 Keywords: This work analyzes the acting of the Augustinian and Discalced Franciscans Philippines; encomienda; missionaries in the first phase of the Spanish colonization of the Philippine missionaries; XVIth century. Islands. Through correspondence and reports of friars and civil authorities active in the islands, the models of "good government" designed by the religious are highlighted, as well as the mechanisms by which the churchmen influenced or attempted to influence the process of the conquest of the Asian archipelago, especially with regard to the incorporation of the natives and practice of

encomienda.

Resumen ‘Para la conversión de las animas’: conquista espiritual, gobierno civil y defensa

de los nativos de las Filipinas. La era misionera, 1565-1581 Palabras Clave: Este artículo analiza la actuación de los misioneros agustinos y franciscanos Filipinas; encomienda; descalzos en la primera fase de la colonización española de las Islas Filipinas. A misionarios; siglo XVI. través de la correspondencia y de los informes de los frailes y las autoridades civiles que trabajaban en las islas, se destacan los modelos de "buen gobierno" diseñados por los religiosos, así como los mecanismos mediante los cuales los eclesiásticos influyeron o intentaron influir en el proceso de conquista del archipiélago asiático, sobre todo con relación a la incorporación de los indígenas y la práctica de la encomienda.

Recebido em 02/09/2015, aprovado em 04/02/2016 133 CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149

77-141). Introdução: O Pacífico Espanhol A descoberta das linhas de navegação relativamente seguras entre as Ilhas do Poente e a Nova Espanha, pela parte norte do Pacífico, A região das Filipinas foi alvo de largas e no entanto, foi apenas o primeiro passo para o complexas disputas cartográficas entre Portugal estabelecimento espanhol no arquipélago. A e Castela desde as primeiras décadas do século distância entre o México e as ilhas desestimulava XVI. A imprecisão do Tratado de Tordesilhas os desejos de colonizadores e conquistadores de dava margem para que ambas as Coroas passarem às novas terras (AGI, Mexico, 19, 58; 1 argumentassem que o arquipélago estava em AGI, Mexico, 19, 82) . Porém, para um grupo suas possessões. Os portugueses, já específico de castelhanos as Filipinas eram solo estabelecidos no oriente, nas regiões de Goa e fértil para sua empresa. Os missionários de Malaca, tinham contato facilitado com o ordens religiosas estabelecidas no México arquipélago, almejando sua conquista. Já para os demonstraram grande interesse no castelhanos a situação era muito mais difícil, o estabelecimento de missões no arquipélago entreposto espanhol mais próximo das “Ilhas do (GARCÍA-ABÁSOLO, 1997). Essa presença Poente” ficava a mais de duas mil léguas, no religiosa teve efeitos não apenas no que tangia as México. Esse enorme obstáculo, o Oceano tentativas de cristianização dos naturais do Pacífico, era também um estímulo para o arquipélago, mas também na administração estabelecimento espanhol na região, a fim de jurídica e política da região. Nesse sentido, os romper com o monopólio lusitano no oriente missionários projetaram, além da evangelização (OLIVEIRA, 2003, p. 175-195). dos indígenas locais, sentidos para a colonização castelhana. Para conseguir seu intento, em 1519, a Coroa Espanhola financiou a viagem de Fernão A ordem de Santo Agostinho e o ‘bom de Magalhães, que foi a primeira expedição governo’ dos nativos europeia a atingir a Ásia pela via ocidental, passando pelo sul do continente americano. A Na jornada de Legazpi estavam cinco chegada de Magalhães ao oriente confirmou, freis da ordem de Santo Agostinho. Os religiosos para os castelhanos, a posse de sua porção partiram com ordenação e financiamento régio asiática. A viagem de Magalhães, no entanto, não para ensinar os nativos a obediência à Igreja efetivou a conquista espanhola sobre o Católica e à Coroa de Castela (BLAIR; arquipélago. A rota entre a América e as Filipinas ROBERTSON, 1903, v. 2, p. 162-168). O havia sido definida, porém o caminho de volta privilégio dado aos agostinianos se vincula era ainda um desafio. A Coroa de Castela diretamente à importância de Urdaneta na financiou diversas expedições às Filipinas, expedição. Este frei, além de orientador da porém, apenas em 1565 foi estabelecida a rota de jornada, foi nomeado como prior da ordem na volta para o México, com a expedição expedição. Os freis que se mudaram para o comandada pelo adelantado Miguel López arquipélago já possuíam larga experiência Legazpi e orientada pelo frei agostiniano Andrés evangelizadora na América, não apenas na Nova de Urdaneta (PORRAS CAMUÑEZ, 1985, p. Espanha, mas também em missões na Flórida e

1 Todos os documentos do Archivo General de Indias (AGI) foram acessados digitalmente através do “Portal de Archivos Españoles”. CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149 134

Caribe. 1570. De acordo com este frei, os agravos Apesar do cargo de prior, Urdaneta não cometidos pelos espanhóis contra os filipinos se fixou no arquipélago. Pouco tempo após a eram de pouco serviço a Deus, e também ao chegada da expedição às Filipinas, o frei partiu monarca, “pues le destruyen buenas tierras” (AGI, de volta ao México a fim de estabelecer a rota de Filipinas, 84, 1, img. 1). Explicou o frei que as retorno e também em busca das mercês régias estratégias indígenas para resistir à violência que lhe seriam encomendadas, por seus serviços espanhola eram a fuga para o interior das ilhas e (AGI, Filipinas, 6, r. 1, 3, img. 1). Os quatro “no binefiçiar sus sementeras” (AGI, Patronato, 24, missionários remanescentes não ficaram r. 16, img. 1). Herrera, assim como Rada, diz que sozinhos por muito tempo, novos agostinianos o melhor modo de se explorar a terra seria com se dirigiam às Filipinas nos anos seguintes (AGI, paz, pois os índios vendo o bom tratamento Mexico, 19, 58, img. 3). dado pelos representantes do monarca espanhol iriam “pagar tributo y darian quanto les pidiesen” Os primeiros anos da ação missionária (AGI, Filipinas, 84, 1, img. 2), assim como agostiniana são contados pelo governador facilmente se converteriam. Legazpi. Sem entrar em detalhes, o adelantado informava do constante aumento de nativos Porém, a conquista violenta, os roubos e convertidos à fé católica, que se fazia sem outros abusos cometidos contra os naturais grandes dificuldades (AGI, Filipinas, 6, r. 1, 5; tinham um sentido completamente distinto, AGI, Filipinas, 6, r. 1, 7). Junto ao avanço da fé provocando pouco a pouco a destruição da terra, andava o avanço da colonização, ou os por agir “contra la boluntad de los naturales”, afirmou ‘descobrimentos’, como eram chamados pelo Herrera. Martin de Rada foi ainda mais enfático, governador a conquista e o domínio sobre novas dizendo que se o vice-rei da Nova Espanha não terras. Tal empresa foi mote dos primeiros interviesse rapidamente “todos murieren de mala informes escritos e enviados pelos religiosos ao muerte en breve tienpo y toda la tiera se destruyra” (AGI, vice-rei da Nova Espanha, em 1569. Filipinas, 79, 1, img. 2). O frei Martin de Rada foi o primeiro a Para Rada e Herrera o sucesso da demonstrar preocupação com o modo como os conquista temporal e o bom governo das colonos lidavam com a nova possessão. A crítica Filipinas estavam intimamente atrelados aos de Rada se voltava à atuação dos soldados e avanços da conquista espiritual e da conversão militares, que destruíam aquela terra e causavam dos naturais. As riquezas almejadas pela Coroa agravos aos nativos, pensando apenas em seu Espanhola derivariam de um tratamento pacífico enriquecimento individual. Essa atuação violenta e justo aos indígenas, pelo contrário, a violência dos soldados, destaca o frei, provocava e a guerra tornariam aquela terra improdutiva. numerosas fugas dos índios de seus povoados. Além disso, a paz garantiria a possibilidade de Tal situação seria contrária tanto aos interesses fácil conversão dos filipinos, que se evangelizadores quanto aos materiais da Coroa, aproximariam cada vez mais dos espanhóis. pois, segundo o frei Rada, diante de um A raiz do mau estado descrito pelos tratamento pacífico os índios facilmente se agostinianos estaria na conivência do converteriam ao cristianismo e pagariam governador Legazpi com tal situação (AGI, voluntariamente “[...] el tributo que les mandaren” Filipinas, 79, 1). Este não cumpriria as instruções (AGI, Filipinas, 79, 1, img. 2). régias para o ‘descobrimento’ do arquipélago. Os As informações de Rada foram religiosos se referiam ao despacho régio que confirmadas pelo superior dos agostinianos no autorizava a expedição às Filipinas e era seguido arquipélago, Diego de Herrera, que escreveu em de 67 pontos com orientações da Audiencia do México a Legazpi para a ocupação do 135 CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149

arquipélago. A relação entre as potestades espiritual e No ponto XXV a instrução aponta que civil são um consenso. As bases de tal vinculação os objetivos daquele descobrimento eram a devem ser observadas na tradição jurídico- conversão dos gentios à fé católica e descobrir a teológica castelhana do século XVI, da chamada rota de volta à Nova Espanha (AGI, Patronato, ‘Escola de Salamanca’. Nesse sentido destaca-se 23, r. 12, img. 24). A vinculação entre o sucesso a obra do frei dominicano Francisco de Vitória temporal e espiritual, portanto, não partia dos (1483-1546). O teólogo castelhano ao tratar da religiosos agostinianos, mas da própria ideologia relação entre o poder espiritual e o poder imperial do período, que destacaremos adiante. temporal afirmou que as potestades civil e eclesiástica são independentes, por terem Sobre a relação com os habitantes do origens e finalidades diferentes, cabendo à arquipélago a instrução pedia que lhes fosse primeira presidir as ações terrenas, enquanto a dispensado tratamento pacífico e amistoso, segunda se volta às sobrenaturais. demonstrando “la voluntad y amor” que o rei de Castela os tinha. Foi exigido que não se Apesar de independentes, as duas cometesse nenhum abuso ou violência contra os potestades seriam complementares, pois possuem o objetivo, de modos diferentes, de filipinos, observando que “son gente politica” (AGI, Patronato, 23, r. 12, img. 28). Portanto, o garantir a justiça e o bem. Nesse sentido, a estabelecimento castelhano na região deveria ser potestade espiritual seria superior à temporal, consentido, do contrário, fariam apenas pois seu fim, a salvação, seria mais perfeito. Se, comércio e voltariam à Nova Espanha. por acaso, as jurisdições civil e eclesiástica estivessem em detrimento uma à outra, a Os freis de Santo Agostinho seriam parte primeira deveria se submeter à segunda. Assim, importante na relação entre castelhanos e os afirma Vitória, quando a potestade espiritual naturais do arquipélago. Segundo a instrução, as estivesse em dano, caberia ao príncipe temporal negociações entre as partes deveriam contar corrigir o problema, reafirmando não só a sempre com a presença de religiosos. Além inferioridade (mas não sujeição ou dependência) disso, o capítulo XL destaca a importância dos do poder secular em relação ao religioso, mas clérigos “para la conversion de los naturales como para também a conexão entre as potestades conserbar la amistad y paz q con ellos dexares asentida” (VITÓRIA, 1917a). (AGI, Patronato, 23, r. 12, img. 30). A tese da complementaridade e Apesar da clareza dos mandatos régios, confluência entre as potestades encontrava claro os próprios governadores, nas correspondências eco na documentação relativa às Filipinas. A enviadas ao Conselho das Índias, descreviam primeira evidência são os tipos constantemente atos de violência e abuso contra os nativos. Em repetidos, como de serviços prestados a “dios nro. certa carta, Legazpi escreveu que tinha sido señor y a V. mag.t” ou a importância da conquista necessário o uso da força para ‘pacificar’ algumas “para lo espiritual y temporal”. Além da vinculação, regiões, pois haviam recusado a amizade a eles fica clara a preeminência da potestade proposta (AGI, Filipinas, 6, r. 1, 12). O eclesiástica. governador justificava que tal atitude era A análise da documentação produzida necessária para que “se predique y enseñe la ley pelos missionários corrobora a tese da evangelica y dios nro señor y V. m.t sean dello servidos”. Portanto, mesmo sugerindo o uso da força e da complementaridade das potestades. A violência, o governador deixa explícito que o sustentação da ideia de que o bom governo objetivo primeiro da pacificação e da amizade é espiritual e o bom governo temporal estavam a divulgação da fé católica entre os nativos. intimamente atrelados é prova disso. Para os agostinianos o tratamento pacífico aos índios, CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149 136

além de ser um princípio para a propagação da partes então constituintes do direito, como o fé cristã, seria também base econômica para o costume e o direito positivo eclesiástico. Com estabelecimento castelhano no arquipélago, pois isso, o clero católico perdeu paulatinamente seus a relação amistosa geraria abundantes tributos poderes jurisdicionais, ou seja, poder jurídico e voluntários e manteria a mão de obra necessária de governo sobre a sociedade. Diante disso, a para extrair da terra suas riquezas. Ao mesmo Igreja e seu clero passaram a adotar outros tempo, esse tratamento seria essencial para mecanismos para continuar controlando e manter os índios próximos aos espanhóis, moldando os indivíduos e as comunidades permitindo sua conversão e manutenção na fé políticas (PRODI, 2005). A atuação dos cristã. religiosos agostinianos nas ilhas Filipinas, na Essa representação da relação entre os defesa dos gentios, é bastante significativa para poderes espiritual e secular é característica da compreensão desse novo campo de ação do cultura política europeia do século XVI. Trata-se clero católico. da confessionalização dos vínculos políticos Missionários e o controle das entre súditos e coroas, isto é, a associação entre consciências: tributo e incorporação dos fé e fidelidade, entre religião e reino. Os poderes nativos religiosos e civis alinhados estabeleciam aos súditos/fiéis padrões de vida e de pensamento Em 1572, o frei agostiniano Francisco de estritos e controlados (PROSPERI, 2013; Ortega escreveu uma longa relação ao vice-rei da XAVIER, 2008). Nova Espanha sobre o estado das Filipinas. O ‘bem comum’, a ser garantido pelos Como feito por seus colegas, o principal tema poderes seculares, estava vinculado à garantia de eram os abusos cometidos contra os naturais, salvação cristã e manutenção da ordem religiosa. classificadas por ele como ofensas a deus e Nesse mesmo sentido, o combate aos desserviço ao monarca. ‘desviantes’ e suas práticas foi enfatizado, Ortega também deu informações sobre visando a manutenção da coesão política dos importantes questões, o tributo indígena e a reinos e repúblicas. Na prática, previa-se a encomienda no arquipélago. O clérigo apontou a unificação cultural e territorial (isto é, zelo pela inviabilidade de se repartir as terras (e os índios contiguidade) das monarquias. Estes objetivos nelas residentes) entre os espanhóis. Segundo deveriam ser atingidos por uma maior presença ele, a população do arquipélago seria bem menor de autoridades e de forças seculares pelos do que informavam os capitães e o governador. territórios, a fim de reprimir possíveis forças Com isso, a maioria das repartições feitas em destoantes. Mas também houve amplo prol dos soldados seria de poucos índios, menos investimento em mecanismos mais suaves de de mil, o que causaria miséria dos colonos. controle, como a educação e a assistência. Pois, Apenas os capitães, o sargento-mór, o alferes como explica Adriano Prosperi, reprimir não geral e o escrivão do governo possuiriam bastava, os grupos dissidentes e alheios deveriam grandes repartições. ser integrados aos reinos. Aí a religião exercia papel fundamental, como mecanismo ideal para Os índios das Filipinas não viveriam em essa tarefa (PROSPERI, 2013, p. 63). centros bem povoados, como na Nova Espanha. Essa característica seria um empecilho não só à Apesar de sua ênfase religiosa, a ‘Era encomienda, mas também à evangelização, pois Confessional’ também é marcada por uma por viverem em pequenos povoados e sem mudança em relação aos poderes da Igreja senhor eram difíceis de “congregar y bibirse en Católica. Segundo Paolo Prodi, o direito positivo poliçia” (AGI, Filipinas, 84, 2, img. 4). civil foi suplantando progressivamente outras 137 CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149

A organização dos indígenas filipinos missionários agostinianos construíram modelos seria, portanto, um obstáculo tanto ao para a incorporação do novo território. estabelecimento espanhol no arquipélago quanto Martín de Rada e Diego de Herrera, na à conversão dos gentios. Mas esta não era uma mesma linha de Ortega, destacaram diversos barreira intransponível, de acordo com Ortega a abusos cometidos pelos colonos na cobrança terra era bastante fértil, sendo o arroz seu dos tributos, classificando-os como danosos à principal produto, por isso “ con poco gasto se podia propagação da fé. Herrera denunciou que sustentar esta gente española sin darles ocasion a robar y quando os capitães iam a tratar a pacificação e ” vejar y maltratar a estos miserables yndios como lo haçen amizade com os índios a primeira coisa que (AGI, Filipinas, 84, 2, img. 5). exigiam dos filipinos era o pagamento de A questão do tributo indígena e das tributos, informando que se não pagassem se torna então o principal tema das seriam considerados inimigos, com imediata missivas remetidas pelos agostinianos atuantes declaração de guerra. Isso, afirma o agostiniano, no arquipélago. Porém, entendo que o objetivo “sin averles hecho ningun beneficio sin darles a entender não era apenas tratar da prática tributária em si, a que son embiados de su mag.d ni darles noticia de dios” os posicionamentos acerca deste tema (AGI, Filipinas, 84, 3, img. 1). implicavam em muito mais. A argumentação dos Tratando dos repartimentos já freis de Santo Agostinho sobre a tinha encomienda estabelecidos, Martín de Rada destaca a ação como pano de fundo o estatuto de integração violenta dos encomenderos na exploração dos das Filipinas e suas gentes à Monarquía nativos, afirmando que esse tratamento Hispânica, isto é, não tratavam apenas da provocaria mortes tanto de índios quanto de maneira como os tributos deveriam ou não ser espanhóis. Além da violência, os encomenderos cobrados, mas também sobre os tipos de agiam “sin darles [aos índios] noticia de Dios ni de su vínculos que seriam estabelecidos entre os mag.d” (AGI, Patronato, 24, r. 22, img. 5). Nas nativos (e suas terras) e a Coroa de Castela. palavras do frei Rada, os encomenderos A importância deste estatuto de aparentavam “muy poco caso del culto divino” (AGI, agregação é muito bem destacada por Pedro Filipinas, 84, 3, img. 4). Todo esse quadro iria Cardim, Susana Miranda e Xavier Gil Pujol, que “poco a poco destruyendo y consumiendo la tierra” salientam como cada ato de incorporação contra o serviço de deus e do rei. territorial trazia consigo significados práticos – No entanto, as descrições oferecidas por jurídicos e políticos – que marcavam a relação do Legazpi destoam em seu conteúdo do que era então novo território e seus povos e a coroa apresentado pelos padres Rada e Herrera. O europeia (CARDIM; MIRANDA, 2012; GIL governador afirmava repetidamente que protegia PUJOL, 2012). Um dos pontos importantes para os índios de violências e abusos cometidos por definir esse estatuto era a condição do território colonos e que lidava pacificamente com os no momento do contato com os europeus. nativos, buscando sua amizade (AGI, Filipinas, Nesse sentido, a distinção feita por Ortega entre 6, r. 1, 7 e 12). O sucessor de Legazpi, Guido de a realidade filipina e a situação da Nova Espanha Lavezaris manteve o mesmo tom em seus implicaria também na elaboração de outra informes, inclusive valorizando a prática da condição de incorporação para o arquipélago tributação das encomiendas, que segundo ele, oriental, sem a prática da encomienda. “rresultara mucho fruto en lo espiritual y temporal” À luz da ideologia imperial de política (AGI, Filipinas, 6, r. 2, 15, img. 1). confessional, das críticas à experiência colonial Sobre a condição dos naturais do americana (especialmente Las Casas) e da arquipélago Lavezaris afirma que seriam todos situação encontrada nas Filipinas, os CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149 138

mouros e belicosos (AGI, Filipinas, 6, r. 2, 15, ROBERTSON, 1903, v. 3, p. 141). 2 img. 2) , com isto, era frequente o recurso que A escravidão dos indígenas, não só dos tinham que fazer às armas para pacificar aquela tidos como muçulmanos, era uma causa de conquista. A caracterização dos nativos pelo movia os religiosos. Segundo os relatos dos governador, como infiéis e rebeldes, também é agostinianos e das autoridades civis locais, já significativa, pois poderia dar razão à declaração havia formas de escravidão entre os nativos de ‘guerra justa’ por parte dos castelhanos, isto (AGI, Filipinas, 6, r. 2, 16; AGI, Filipinas, 84, 4). é, interferindo diretamente no estatuto jurídico- No entanto, denunciavam Rada e Herrera que a político da incorporação das Filipinas. presença espanhola agravou aquela situação. De Porém, os missionários já haviam acordo com Herrera, a pressão e a violência reagido a essa notícia. De acordo com o frei causada pelos colonos europeus faziam com que Diego de Herrera, os governadores e os capitães, os nativos vendessem uns aos outros “el padre al ao afirmarem que os nativos eram ‘maometanos’ hijo el hermano al hermano el tio al sobrino y otros a si e impediam a predicação do evangelho, pediam mismos por muy poco precio en lo qual el que conprava mercê ao rei para que “los pudiesen robar y hazer hazia misericordia al comprado“ (AGI, Filipinas, 84, esclavos” (AGI, Filipinas, 84, 1, img. 2). O que, 3, img. 5). Diante disso, pediam uma averiguação afirmou clérigo, “fue relaçion falsa”, pois eles não completa dos escravos, com liberação imediata padeciam de qualquer impedimento grave à daqueles “mal retenidos”3. evangelização, e que os muçulmanos daquela Os religiosos diante disso não se região “no tienen mas q el nonbre y no comer puerco”, limitaram a enviar informações pedindo socorro pois não tinham sacerdotes e haviam se ao vice-rei e ao Conselho das Índias. Em 1573, convertido ao islã havia poucos anos. Como Diego de Herrera viajou ao México, e dali à exemplo da fraqueza da fé de Maomé entre os corte, para negociar com as autoridades filipinos, o frei fala que pais supostamente competentes sobre o estado do arquipélago4, mouros pediam que seus filhos fossem batizados especialmente no que tocava o tratamento dado como cristãos. Por isso, concluía, o fato de aos índios. O vice-rei Martin Enriquez adotou o serem mouros “no es causa justa” para os agravos discurso de Herrera, afirmando que acreditava cometidos. no frei, e que o principal problema das ‘Ilhas do Um informante anônimo escreveu, em Poente’ era a falta de justiça (BLAIR; 1572, notícia que corrobora a versão de Herrera. ROBERTSON, 1903, v. 3, p. 209-211). Em seu relato afirmou que os nativos não eram O recurso a autoridades superiores, mouros, como afirmavam muitos espanhóis. Em como o vice-rei e o Conselho das Índias, não foi alguma região eles tiveram em contato com a única estratégia dos agostinianos. Estes mouros do Borneo e em algumas vilas da costa adotaram caminhos para, diretamente, remediar não comem carne de porco, mas certamente não aquela situação. Um desses meios foram entendiam a ‘lei de Mahoma’ (BLAIR;

2 Informação similar já havia sido feita por Miguel Lopéz Legazpi, em 1567 (AGI, Filipinas, 6, r. 1, 7). 3 O debate sobre a escravidão dos nativos do arquipélago se arrastou por mais de uma década, gerando decisões apenas no fim da década de 1580. A atuação religiosa nessa causa também foi notável, mas especialmente através do poder episcopal, após a nomeação do dominicano Domingo de Salazar para o posto de bispo de . O trabalho de Patricio Hidalgo Nuchera apresenta uma visão completa sobre o tema (HIDALGO NUCHERA, 1994). 4 Herrera já havia ido à Nova Espanha em 1570 levando informes sobre os agravos cometidos contra os nativos. Na ocasião, o frei retornou às Filipinas com a autorização para estabelecer uma província agostiniana no arquipélago (FOLCH, 2008, p. 44-46). 139 CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149

condenações públicas, através de sermões que cobrassem tributos em regiões onde não especialmente, das ações dos colonos havia doutrina estabelecida. castelhanos. Nosso informante anônimo Rada não apenas estabeleceu a sanção, destacou que durante mais de cinco meses em mas deu orientações sobre o que deveriam fazer que os espanhóis se assentaram na ilha de Panay, os faltosos para estarem habilitados a receber o no ano de 1571, Diego de Herrera, todos os dias sacramento. Primeiro, afirmou que aqueles que fazia sermões públicos e conversava com tivessem tomado tributo abusivo ou injusto Legazpi, pregando que saíssem daquela ilha, para deveriam restituir às pessoas agravadas, e que se que se cessasse o sofrimento dos nativos não fosse possível identificá-las individualmente (BLAIR; ROBERTSON, 1903, v. 3, p. 152). deveriam restituir a todo povoado por meio de Os religiosos também denunciaram obras valiosas ao bem comum, “como en yglesia o publicamente os abusos cometidos na cobrança en outra cosa del culto diuino” (“China em España” dos tributos, como destacou o governador [CHE]. RADA, 1575)5. Lavezaris: “ del pulpito diversas vezes an afirmado no se O provincial ainda determinou quais ” (AGI, poder llebar el tributo con buena consiençia seriam os meios corretos para a cobrança do Filipinas, 6, r. 2, 19, img. 4). O frei Martín de tributo. Este deveria ser exigido Rada afirmou que vários religiosos “ an puesto individualmente, isto é, pago por pessoa, e não escrupulo en los tributos” (AGI, Patronato, 24, r. 29, por barangay (nome dado ao povoado local), img. 9) em suas predicações. como usualmente faziam os espanhóis, evitando Portanto, o clero filipino por meio do assim maus-tratos e agravos cometidos contra os sermão, como um mecanismo ‘suave’ ou principais de cada povoado. Além disso, deixou ‘pedagógico’, atuava como mediador no sentido claro que escravos e jovens estavam isentos da de solucionar os conflitos envolvendo os cobrança. indígenas e os colonos europeus. Privados de O tributo a ser cobrado deveria ser poder jurisdicional, os agostinianos apelavam à moderado, assim, afirmou o frei, seria no consciência dos cristãos para gerar um estado de máximo de um maes de ouro6. Mais do que isso ordem e de paz tanto para nativos quanto para seria ilícito. O pagamento se daria no produto os castelhanos. Mas esse não foi o único método escolhido pelo tributário, não podendo os utilizado pelos agostinianos para intervir encomenderos exigir em ouro ou outro produto diretamente. determinado. O pagamento do tributo através da Tempos após a partida do frei Herrera ao exigência de serviços pessoais estava proibido. México, o frei Martin de Rada, então novo Toda cobrança deveria ser realizada sem ofensas, provincial, ordenou a todos seus subalternos que violência, cárcere ou extorsão, e que aos índios os encomenderos que ameaçassem ou violentassem fosse permitido prestar queixas aos religiosos os índios durante a cobrança dos tributos, não sobre qualquer agravo sofrido (CHE. RADA, deveriam ser absolvidos de suas confissões, pois 1575). eram ações injustas e contrárias às ordens régias. Os eclesiásticos se valiam de poder sobre O mesmo se aplicaria a soldados e encomenderos

5 “China en España (CHE): Elaboración de un corpus digitalizado de documentos españoles sobre China de 1555 a 1900” (CHE, 2014). Projeto ligado à “Escola d’Estudis d l’Àsia Oriental” da Universitat Pompeu Fabra (Espanha). Doravante, os demais documentos consultados no sítio eletrônico do projeto são indicados com a sigla “CHE”, seguida do sobrenome do autor do documento e ano de sua produção. 6 Maes (ou Taes, em algumas grafias da época) era a unidade de medida local equivalente a cerca de dois e meio reales de prata. CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149 140

as consciências para intervir diretamente na política estabelecida. Portanto, o rompimento questão dos tributos. Nas palavras de Adriano com essa ordem, pré-estabelecida e moldada Prosperi, a confissão funcionava na prática com base no direito divino, natural e das gentes, como um ‘tribunal da consciência’, no qual o frei também seria considerado pecaminoso era o juiz e a absolvição a sentença (PROSPERI, (PRODI, 2005, p. 217-222). Esse preceito 2013). Esse uso da confissão por parte clero é reafirma o anteriormente exposto sobre a uma das marcas da ‘época confessional’, não só concepção de complementaridade entre as pela obrigatoriedade anual de realização do potestades civil e eclesiástica. 7, sacramento, garantida pelo Concílio de Trento Essa atuação dos freis agostinianos mas também pelo clima religioso dos séculos contradizem as considerações clássicas de José XVI e XVII, com a grande preocupação dos fiéis António Maravall sobre a ‘era confessional’ em com o consolo de suas almas, no caminho da Castela. Segundo o historiador espanhol, salvação. Segundo Paolo Prodi, esse novo modo especialmente o período de Filipe II (no qual se de aplicar a confissão foi uma revolução jurídica, insere a primeira fase do estabelecimento pois a absolvição deixar de ser apenas uma mercê espanhol nas Filipinas, aqui estudado) foi divina diante do arrependimento do fiel, “[...] marcado pela imposição religiosa. Mas uma mas consiste numa sentença real, que por si só imposição na qual a religião atuava como produz o efeito causal da remissão dos pecados” instrumento em favor de um ‘Estado’ (PRODI, 2005, p. 73). Ministrando esse emergente, fora do controle da Santa Sé, sacramento o clero regulava o pertencimento, ou processo definido como a ‘estatização da Igreja’ não, do fiel à comunidade cristã, isso dava ao (MARAVALL, 1986). Nesse sentido, acredito corpo eclesiástico meios de controlar e moldar que a ideia Ângela Xavier de ‘aliança’entre reino os pensamentos e ações sociais dos membros (e não ‘Estado’) e Igreja é mais precisa. A desta comunidade. historiadora portuguesa demonstra como esta Nesse quadro, a confissão atuou como aliança ampliava os dispositivos de controle das um mecanismo de justiça que permitia ao poder coroas e os da Igreja Católica de maneira eclesiástico cuidar tanto do foro interior (da conjunta, pois ambas as partes possuiriam consciência, da moral) quanto do foro externo princípios coincidentes (XAVIER, 2008, p. 58- (da sociedade, do político). Partia-se da ideia que 59). um delito secular também implicaria em falta A orientação do frei Martin de Rada de moral (da consciência). Essa concepção, não conceder absolvição a soldados e combatida entre os séculos XIV e XV, voltou a encomenderos que cometessem abusos contra os figurar com força no século XVI, especialmente índios, provocou enorme alvoroço entre os na Monarquia Espanhola. Autores como colonos castelhanos, que logo enviaram Francisco de Vitória e Martín de Azpilicueta, informações à Nova Espanha sobre aquela mesmo afirmando a autonomia das potestades medida. Porém, a espera por uma resposta seria secular e eclesiástica, vincularam consciência à longa. A pressão e atuação pública dos religiosos lei, defendendo o teor moral da ordem jurídica- forçou o governador interino Guido de

7 A obrigatoriedade de realizar todos os anos a confissão, antes da Páscoa, foi estabelecida no Concílio de Latrão IV (1215), no entanto, foi uma determinação que caiu em desuso e não era seguida. O Concílio Trento, além de reafirmar a obrigatoriedade do sacramento, criou mecanismos de controle para averiguar a aplicação real do cânone, como a vinculação regional, isto é, o fiel só poderia se confessar com clérigos de sua paróquia, e estes deveriam fazer um controle detalhado daqueles que iam ao confessionário, através de listas de presença. Também ficou definido que a confissão deveria ser individual e detalhada, tornando obrigatória a mediação do confessor entre a absolvição e os pecados cometidos. 141 CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149

Lavezaris a pedir ao frei Martín de Rada a devido às falsas relações enviadas pelo elaboração de um parecer sobre o tributo a ser governador e seus capitães. A partir desses cobrado dos índios. informes, o rei entendia que a conquista das Rada aceitou o pedido e convocou uma Filipinas foi justa, voluntária por parte dos índios junta de todos os clérigos atuantes no (tornando-se vassalos régios) e sem guerra, o arquipélago para que tratassem conjuntamente que, de acordo com os missionários, era da questão. O encontro ocorreu no dia 21 de completamente falso. julho de 1574. Todos os religiosos presentes na Nota-se a completa condenação à ação reunião afirmaram que os espanhóis não castelhana nas ilhas. A ausência de títulos e a possuíam títulos justos sobre nenhuma ilha do guerra injusta tornava ao mesmo tempo ilegítima arquipélago. Mesmo nas situações em que a permanência espanhola na região e legítimo o houvesse motivo para fazer guerra justa, os direito de resistência por parte dos índios. Os colonos não poderiam realizá-la sem mandato argumentos e fundamentos expressos pela régio expresso. Segundo a junta, a única reunião dos freis agostinianos caminham no instrução régia destinada às Filipinas era uma mesmo sentido da exposição feita pelo frei carta régia que dizia ser injusta qualquer Bartolomé de Las Casas, formulada poucos anos conquista feita com força de armas, “aunq aya antes, sobre o caso peruano, na qual o conhecido avido causas para hazerla” (AGI, Patronato, 24, r. frei dominicano defendia o fim da cobrança de 29, img. 9). Além disso, como já haviam tributos e a restituição imediata dos danos denunciado anteriormente, em quase nenhuma causados (BIBLIOTECA DIGITAL das conquistas realizadas houve esses motivos. HISPÁNICA, 1564, mss 3226)8. Sempre os espanhóis foram a princípio com mão No entanto, os clérigos filipinos, ao armada, exigindo a aliança e o pagamento de contrário de Las Casas, não exigiram a abolição tributo, e que muitas vezes fizeram guerra aos dos repartimientos e a restituição integral dos bens índios por não darem quanto lhes haviam aos índios. Os missionários agostinianos pedido. adotaram uma posição consensual, que visava Martín de Rada e seus colegas também eliminar os abusos cometidos aos índios, sem qualificaram como injusta a cobrança adiantada causar miséria aos soldados ou gerar a do tributo, pois antes deveriam lhes oferecer necessidade de retirada dos castelhanos daquelas doutrina religiosa e outros benefícios. Mesmo ilhas. Os religiosos afirmavam que os soldados para os índios que viviam próximos aos que haviam passado para as Filipinas viviam espanhóis, e recebiam alguma doutrina e “pobre y miserablem.te” por não gozarem de proteção, a cobrança seria injusta, pois eles não grandes encomiendas, como os governadores e os eram tratados como livres, mas sim como capitães (AGI, Filipinas, 84, n. 1 e n. 2). A vassalos, sofrendo moléstias e tendo seu cobrança de tributos era tida pelos agostinianos trabalho explorado. como meio de sustento castelhano no arquipélago. No entanto, na concepção dos Segundo os religiosos, as decisões régias missionários esse pagamento não deveria ser de repartir e encomendar a terra não eram forçado ou violento, mas acordado de maneira apropriadas, pois o monarca estaria mal voluntária, como contrapartida ao amparo pela informado sobre a situação do arquipélago,

8 Bartolomé de las Casas. “A las 12 dudas en este tratado contenidas concernientes al bien de las conçiençias de los reyes de Castilla y León, y a la de los españoles que viven y vivirán en las Indias. Y a la salud spial. y buena gobernaçion y conspiraçion de los Indios”, 1564 (BIBLIOTECA DIGITAL HISPÁNICA, 1564). CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149 142

submissão ao rei de Castela e ao cuidado das O estabelecimento prévio de uma taxa almas oferecido pelos clérigos católicos. Aqui do tributo que deveria ser pago pelos indígenas fica claro como, na concepção dos freis, o era a exigência dos religiosos. Esse mecanismo pagamento do tributo está diretamente que visava proteger os índios de abusos já existia vinculado ao estatuto da integração das Filipinas nas colônias espanholas desde a primeira metade à Monarquia Espanhola. Não se tratava de um do século XVI, no entanto, até então não havia domínio ou conquista propriamente dita, mas de sido devidamente aplicado nas Filipinas um pacto entre as partes. Portanto, os índios (HIDALGO NUCHERA, 1992, p. 133). Com deveriam ser tratados como pessoas livres, como isso, os agostinianos dissertaram a respeito da ‘gente política’, assim como expresso nas quantia de tributo que deveria ser paga pelos ordenações para o ‘descobrimento’ do nativos. Segundo eles, o valor então cobrado arquipélago (AGI, Patronato, 23, r. 12, img. 28). seria de aproximadamente de três maes de ouro, equivalente a sete e meio de prata. Esse A visão da necessidade das encomiendas reales para a manutenção da presença espanhola nas valor seria muito elevado para a pobreza ‘Ilhas do Poente’ era compartilhada com as daqueles índios. Naquele momento, os autoridades civis locais. O governador Guido de encomenderos deveriam cobrar de tributo “lo menos Lavezaris insistia em seus informes que as que pudiere ser” (AGI, Patronato, 24, r. 29, img. 12), não passando de um , confirmando a encomiendas deveriam ser mantidas, porque sem maes orientação anterior de Martin de Rada. Além de elas “no se puede sustentar bien esta yslas sino con gran reduzir a cobrança, os espanhóis também travajo y costa” (AGI, Filipinas, 6, r. 2, 20, img. 5). deveriam mudar seu tratamento em relação aos Nota-se, assim, uma atuação filipinos. Lidar pacificamente era necessário para probabilista, entendida como característica da “que la tierra este mas gruesa” e com isso pagariam cultura jurídica do Antigo Regime. Segundo essa cada vez mais tributo, como ocorreu na Nova noção, o objetivo de quem julga é interpretar Espanha. cada caso em sua especificidade, produzindo a partir disso um consenso, prudente e provável Ponto que pode passar despercebido, (por isso probabilismo), diante de opiniões mas é determinante nessa disputa é a qualificação divergentes, como o caso aqui apresentado dada aos nativos das Filipinas. Segundo (GARRIGA, 2004; RUIZ, 2010). Rada e seus afirmaram os agostinianos no parecer, “los yndios colegas não simplesmente defenderam a son tan miserables” (AGI, Patronato, 24, r. 29, img. aplicação dos princípios por eles inicialmente 6). Essa constatação de miséria dos nativos era expostos, mas propuseram uma adaptação de constantemente repetida nos informes dos tais assertivas à condição por eles vivenciada. religiosos. Como explica Caroline Cunill, essa Vemos aqui alguns dos elementos destacados categorização não era uma simples por António Manuel Hespanha como representação dos povos autóctones da América característicos do exercício da justiça no período e das ilhas do oriente, mas foi determinante na moderno ibérico, como a flexibilização do elaboração da normativa e legislação indiana em direito e a produção de decisões de relação a tais povos. Segundo a estudiosa, essa compromisso ou mediação, em que nenhuma categoria começou a ser formulada justamente a das partes era totalmente sacrificada partir da segunda metade do século XVI, (HESPANHA, 1994, p. 444). Segundo tornando-se comum na década de 1580 Hespanha, tais compromissos eram comuns nos (CUNILL, 2011, p. 229-231), assim, pode-se mais diversos níveis, o que o leva a chamar a apontar a importância do clero filipino na sociedade de Antigo Regime de ‘sociedade construção dessa representação jurídica dos pactada’. nativos das conquistas. Ao atribuir a qualidade de 143 CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149

miserável aos indígenas, os religiosos apelavam parecer assinado por Rada foi duramente para a tradição medieval de tutela e cuidado criticado pelo governador e pelos capitães sobre os necessitados. O recurso à ‘miséria’ estabelecidos nas Filipinas. De acordo com eles, garantiu a aplicação de diversos institutos em o juízo emitido pelos religiosos agostinianos “es defesa dos nativos, como a nomeação dos bispos muy dañoso al aumento y poblazon desta tierra y a la como protetores dos índios, com poder de perpetuaçion de los españoles en ella” (AGI, Patronato, fiscalização sobre povoados de nativos e 24, r. 29, img. 7). Negaram as denúncias de encomiendas, ou a delimitação das taxas de violência e guerra injusta cometidas contra os tributos, como requerido no caso aqui estudado. filipinos, afirmando que estes se entregaram Como vimos nas descrições oferecidas voluntariamente. A réplica ao parecer também por Martin de Rada e seus colegas, a miséria não afirmou que não era injusto cobrar o tributo de é uma condição intrínseca ao índio, mas maneira adiantada, pois assim conseguiriam provocada por uma ação nova e externa, no garantir a segurança e a paz aos índios frente a caso, a relação com os espanhóis. Portanto, era seus inimigos locais. categoria que representava uma condição social, Tampouco consideraram abusivas as econômica e psicológica imposta pela situação quantias cobradas, pois essas variariam colonial, que limitava amplamente o acesso dos conforme as possibilidades de cada povo. De nativos à ‘justiça’, enquanto princípio regulador acordo com Lavezaris e seus capitães, havia das relações e do ordenamento social (CUNILL, regiões em que os indígenas eram pobres, 2011, p. 234-235). porém, em outras eram muito ricos. A taxação A construção desse conceito jurídico está de um maes pedida pelos agostinianos seria muito também relacionada aos mecanismos de baixa para garantir o sustento dos encomenderos, domínio da ‘Era Confessional’. Como explica segundo estes, mesmo a quantidade de três maes Ângela Barreto Xavier para o caso goês na era insuficiente na maior parte dos casos. primeira metade do século XVI, a aplicação do Lavezaris também rebateu as acusações princípio de captiis deminutis – que afirmava que feitas pelos agostinianos. Garantiu que combatia era obrigação do poder instituído de cuidar dos os abusos dos encomenderos, punindo estes quando indefesos, i. é., os nativos dos novos territórios necessário. Também negou que as pacificações conquistados – era uma tentativa de superar os eram feitas sempre de modo violento, pois tradicionais laços comunitários dos instruía devidamente seus capitães a tratarem conquistados, impondo um laço vertical, que pacificamente os nativos, oferecendo-lhes estabelecia a superioridade do colonizador, mas inicialmente a amizade dos castelhanos. No integrava os nativos ao catolicismo, e por entanto, ele assume que tal relação nem sempre consequência, às coroas dos reinos ibéricos, é possível, pois os índios “b” e realizariam como súditos (XAVIER, 2008, p. 101-102). Esse emboscadas e guerras (AGI, Filipinas, 6, r. 2, 20). processo de incorporação do território e, Na Nova Espanha, as informações principalmente, suas gentes, colocava o clero oriundas das Filipinas surtiam efeitos diversos. como elemento fundamental da ordem imperial O frei Diego de Herrera conseguiu persuadir ao hispânica. vice-rei Martin Enriquez que o governador O frei Martín de Rada apresentou o Guido de Lavezaris era um indivíduo pouco parecer ao governador das ilhas e também confiável e que era permissivo em relação às enviou cópia do documento ao vice-rei, pedindo injustiças cometidas contra os índios. Por conta que este fizesse justiça. disso, Enriquez fez vários pedidos para que um Apesar da proposta de consenso, o novo governador fosse nomeado (AGI, Mexico, 19, 124; BLAIR; ROBERTSON, 1903, v. 3, p. CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149 144

209-219). pelo corsário colocaram medo naqueles que Mas, a notícia do controle sobre as cobravam tributos injustamente, temendo absolvições repercutiu de maneira negativa em morrer em pecado, tal como propagavam os solo mexicano. Os agostinianos do arquipélago religiosos. acabaram sendo repreendidos por seus Na carta seguinte, Rada apresenta uma superiores novohispanos, não por terem dado nova figura dos índios das Filipinas, já não eram ordem de negar absolvição, mas por não terem mais miseráveis, mas sim gente bárbara, sem se mantido firmes nesse propósito. ordem e sem polícia. Na sequência apresentou Temos notícia disso através de duas os títulos que legitimariam a conquista espanhola cartas do ano de 1577, enviadas pelo frei Martin das Filipinas. Segundo o agostiniano seriam de Rada ao provincial dos agostinianos no quatro. O primeiro é o quinto título exposto por México, o frei Alonso de Veracruz. Nessas Francisco de Vitória: defender os bárbaros de missivas é nítida mudança no tom e na tirania e opressão (VITÓRIA, 1917b, p. 82). argumentação feita por Rada. Este continuou Como exemplo cita os sacrifícios cometidos destacando que os nativos viviam em miséria, pelos nativos, que continuariam a realizar tais mas concluiu que, bem ou mal, a terra estava práticas às escondidas. Outro título era que a conquistada e dela cobrando-se tributos. Isso conquista garantia o direito natural de mesmo sendo uma conquista violenta e feita sob peregrinar, por mar e terra, sem causar dano a ninguém. Esse título se legitimava, pois, segundo títulos injustos. Por isso, os encomenderos não estavam obrigados a restituir nada. O frei o frei, os nativos com frequência tomavam afirmou que se a situação dos índios era ruim viajantes como escravos, além disso, eram traidores e faziam falsas amizades, o que deixava com as encomiendas, pior seria sem elas, já que eram meios necessários para o sustento da terra. aquela terra em estado de insegurança. Entendendo essa situação acabaram absolvendo No terceiro título, Rada novamente os encomenderos (CHE. RADA, 1577). recorre a Vitória, citando o segundo título de O frei Rada usou do exemplo do ataque conquista justa elencado pelo teólogo do pirata chinês Limahon às ilhas, em setembro dominicano: a liberdade de predicação de 1574 como justificativa de tal afirmação. (VITÓRIA, 1917b, p. 76-80). Liberdade essa Limahon promoveu um longo cerco às Filipinas, privada pela ação dos nativos, causando injúria. espalhando destruição de povoamentos, E a última justificativa para a conquista era o fato incêndios aos assentamentos espanhóis e de que, segundo ele, os nativos não poderiam profanação de igrejas (AGI, Filipinas, 6, r. 3, construir uma república racional, pois não 26)9. Segundo o agostiniano, a presença tinham senhores ou reis, vivendo sem qualquer espanhola no arquipélago foi útil à defesa dos ordem. nativos, já que Limahon – afirmou Rada – Portanto, seriam muitas as pretendia conquistar e tiranizar aquelas terras. fundamentações para a presença espanhola no O ataque de Limahon também abalou a arquipélago – ao contrário do que o próprio consciência dos colonos. De acordo com Rada, Rada havia firmado na junta de religiosos. O a destruição causada e as mortes provocadas problema, destaca o frei, foi o modo como a conquista foi realizada, sem mandato régio e

9 Segundo os relatos, a resistência a Limahón foi uma das portas de entrada para os espanhóis na China, já que o pirata também era perseguido por autoridades chinesas. Com a expulsão do corsário das ilhas, oficiais chineses que perseguiam Limahon aceitaram levar os freis Martin de Rada e Geronimo Marin para uma embaixada na China. 145 CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149

com violência. Por isso, declarou, colocaram Do outro lado, os freis agostinianos escrúpulos no que os colonos tomavam continuaram denunciando as práticas abusivas e injustamente, não questionando a conquista, violentas dos colonos, e também do novo mas o modo como esta estava se fazendo, “contra governador. Segundo os agostinianos, perto de la voluntad de su magestad”. Sande, os dois antecessores pareciam santos, Martin de Rada também declarou que pois ele continuava a estimular as entradas sua intenção não era taxar o tributo, mas contra os nativos e as cobranças violentas de também não era cabível que o governador tributos. O novo governador faria pouco caso Lavezaris o fizesse, pois ele gozava de dos missionários e das coisas eclesiásticas, tentando intervir diretamente na ação dos repartimientos. No entanto, mesmo o valor da taxação foi relativizado pelo frei. Segundo ele, o religiosos. Governava sem escutar a ninguém, valor a ser cobrado poderia variar de região para fazendo apenas o que desejava, sem se região, em Manila e Panpangan os nativos preocupar “ni en lo espiritual ni temporal” (AGI, Filipinas, 84, 9, img. 2). poderiam pagar três maes, mas os do interior (chamados pintados) não poderiam pagar tanto Ainda sobre Sande, os agostinianos (CHE. RADA, 1577). contaram que o frei Alonso Gutierrez havia Por fim, o frei Martin de Rada pedia a descoberto, em Cebu, bruxas e feiticeiras que intervenção do provincial novohispano para que faziam espanhóis ficarem loucos e possuídos uma decisão definitiva fosse tomada sobre a pelo demônio. Escreveram que um dos garotos taxação, que deveria ser feita através de que havia sido enfeitiçado relatou que havia ido ordenação régia. ao inferno e lá visto um amigo do governador, assim como uma cadeira reservada para Sande. A taxação do tributo e os franciscanos Este acusou o religioso de intervir na declaração descalços do jovem, chamando-o de bruxo e judio. Enviavam o processo ao México e pediram para A nova definição sobre o valor dos que o provincial agisse junto ao vice-rei para que tributos foi realizada apenas durante o governo se destinasse juiz para aquela causa. (CHE. de (1575-1580), que RADA et. alii, 1577)10. confirmou a taxação de três maes (HIDALGO O estabelecimento da quantidade do NUCHERA, 1992, p. 137), mas não sem mais tributo a ser cobrado, no entanto, não aliviou a conflitos. Sande afirmou que muitos dos situação dos indígenas, pelo contrário. Como informes dos religiosos de abusos e explica Luis Alonso Álvarez, a partir do debate impedimentos à predição cometidos por não se definiu de que forma os indígenas encomenderos eram falsos. O governador também deveriam pagar os tributos aos encomenderos, criticou o estado da evangelização afirmando permitindo que estes exigissem o pagamento em que “los padres no tienen estilo de andar a predicar entre produtos que melhor os conviesse: arroz, seda, los ynfieles” (AGI, Filipinas, 6, r. 3, 25, img. 6). mantas, canela, etc. Além disso, a taxação foi Nesse sentido, Sande foi insistente nos seus estabelecida em um período de baixa dos preços, pedidos ao vice-rei Martín Enriquez para que definindo a quantidade em espécie (dos religiosos de outras ordens também passassem produtos acima citados) equivalentes aos três ao arquipélago (AGI, Filipinas, 6, r. 3, 24). maes de ouro. O valor da taxação era fixo, não

10 “Carta de Fray Joan de..., Fray Martín de Rada, Fray Francisco de Ortega, Fray Agustín de Alburquerque a Fray Alonso de Vera Cruz”, oito de junho de 1577. CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149 146

seguindo o preço de mercado. Com o avanço da Os franciscanos logo começaram a se colonização, a entrada da prata mexicana e dos destacar nas matérias relativas à defesa dos produtos chineses o resultado foi uma crescente nativos e à cobrança dos tributos. Uma de suas inflação. Esse quadro favoreceu largamente os primeiras cartas foi uma relação detalhada sobre encomenderos, pois a tributação, que deveria a atuação da ordem na evangelização dos equivaler a aproximadamente oito reales de ouro indígenas das Filipinas. Como seus colegas da – taxa baixa comparada ao Peru e ao México –, Ordem de Santo Agostinho, os descalços na prática, poderia ser de mais de 30 reales reclamaram que os colonos espanhóis faziam (ALONSO ÁLVAREZ, 2009). pouco caso dos clérigos, dando mau exemplo Assim, o estabelecimento da taxação, aos nativos. As atitudes das autoridades que visava proteger os indígenas, lançou ainda seculares, como os alcaides e oficiais maior pressão sobre os filipinos, pois deveriam responsáveis pelos povoados indígenas, seriam produzir um grande excedente para atender aos especialmente um entrave à evangelização, pois colonos espanhóis. Isso manteve a cobrança dos desautorizavam as ordens dadas pelos religiosos tributos na pauta das denúncias feitas pelos e “en todas las cosas dan a entender a los indios por obra missionários atuantes no arquipélago. y por palabra q el religiosso no les puede mandar cossa alguna” (AGI, Filipinas, 84, n. 13, img. 1). É nesse contexto que, em 1577, se estabelecem os franciscanos descalços nas ilhas A exploração do trabalho indígena feita Filipinas. Essa nova abertura não se deveu pelos encomenderos era outro grave empecilho à apenas aos apelos do governador Sande, mas conversão dos gentios. Segundo a relação, os também para atender às necessidades locais. A filipinos estavam quase sempre ocupados esse tempo o número de religiosos agostinianos trabalhando, muitas vezes em atividades era de apenas 13 (AGI, Filipinas, 6, r. 3, 26, img. desnecessárias ou injustas, o que impedia que os 24), considerado insuficiente para a religiosos pudessem os reunir para doutriná-los. evangelização dos nativos, o que era agravado De acordo com os franciscanos, essa situação era pela aproximação entre espanhóis e chineses, o motivo para que muitos nativos deixassem de ser que alimentava o desejo daqueles de cristãos ou fugissem às montanhas. evangelizarem/conquistarem o grandíssimo Os religiosos também denunciaram a reino asiático. Além de serem poucos, os aplicação de instrumentos fiscais sobre os índios. agostinianos contavam com dificuldade para Primeiro da bandala, mecanismo de compras recrutar novos membros que desejavam ir ao compulsórias de produtos junto aos índios. arquipélago. Para agravar o quadro, contaram Governador, oficiais, alcaides e encomenderos com uma enorme perda, devido ao naufrágio de tomariam dos índios, para além dos tributos já um navio que levava 10 religiosos a Manila, pagos, produtos a preços baixíssimos, de quatro estando dentre eles o frei Diego Herrera (AGI, a seis vezes menos que no valor de mercado. Filipinas, 84, 10). Tempos depois esses mesmos produtos eram A relação dos frades descalços com os vendidos, a altos preços, para os próprios índios, agostinianos foi de grande sintonia. Prova disso informavam os religiosos. está na cessão, em 1578, pelos agostinianos dos O outro tipo de mecanismo de poderes da bula papal Exponi Nobis em favor dos exploração do trabalho nativo era o polo, no qual frades menores. Essa bula concedia autoridade o indígena era obrigado a prestar 40 dias anuais episcopal e de juiz eclesiástico às ordens de trabalho, na construção de obras públicas ou mendicantes atuantes no Novo Mundo, em na prestação de serviços. Esse foi igualmente regiões nas quais não houvesse bispo (PORRAS criticado pelos franciscanos, afirmando que os CAMUÑEZ, 1985, p. 486-488). índios eram muito mal remunerados pelos 147 CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149

serviços prestados. Além disso, seriam obrigados encomenderos que se opusessem a essa finalidade a atuar em serviços desnecessários ou sem deveriam ser corrigidas. interesse público, como remadores e na As preocupações expressas pelos construção de casas. Durante a prestação dos missionários franciscanos nessa relação estão em serviços, os nativos não recebiam ‘tratamento de total confluência com o projeto de evangelização cristãos’, mas sofrendo maus-tratos e violência. estabelecido pela ordem em junta realizada na Tais institutos tinham por objetivo cidade de Manila no ano de 1580. Nessa reunião, incrementar ainda mais a Real Hacienda, no os freis estabeleceram que reduções e formação entanto, encomenderos, alcaides e governadores, de vilas seriam as estratégias a serem adotadas “devaxo de color q es para el rey”, causam mal aos com intenção de evangelizar os índios. Estes nativos e prejudicam “la promulgaçion del sancto deveriam ser reunidos e ordenados em pequenas evangelio”, pois “son gravíssimo impedimento para la cidadelas. O objetivo desse projeto era tornar a conversion de las animas” (AGI, Filipinas, 84, n. 13, Igreja mais acessível aos índios, mantendo os img. 2). missionários em contato direto e permanente Sofrendo tantas violências e abusos, os com os nativos (PORRAS CAMUÑEZ, 1985, p. índios suplicariam auxílio aos religiosos, 519-524). conforme estes mesmos explicam: “en muchas Entende-se, assim, a enorme partes an dho a los religiosos los naturales padre preocupação dos franciscanos com a dispersão no nos dexes por reverençia de dios por q si tu espacial dos indígenas, especialmente com suas nos dexas los castillas vernan y nos tomaran fugas. A constante presença de clérigos nos quanto tenemos” (AGI, Filipinas, 84, n. 13, img. povoados, além de evitar que as autoridades civis 2). A tirania e a destruição provocada pelos violassem as liberdades e direitos dos índios espanhóis faria com que muitos índios se filipinos, também era essencial à conversão dos afastassem da fé cristã, mesmo aqueles que gentios, como explicou o frei Pablo de Jésus, teriam boa vontade em receber a evangelização. superior da ordem no arquipélago: Assim como os agostinianos, os La conversion destos naturales va muy franciscanos defenderam que a melhor maneira adelante y lo que esta por convertir es por falta de ministros porq no baptizamos mas de atrair a amizade e a conversão dos gentios de lo q podemos sustentar con doctrina [...] seria agindo pacificamente. Isso implicava es menester a los prinçipios asistir con ellos também em não agir com “el rigor de las leyes” y de esta manera toman bien las cossas de contra os nativos, pois sendo eles novos cristãos nra. sancta fee y con façilidad dexan todas e novos vassalos deveriam ser tratados com sus cossas passadas (AGI, Filipinas, 84, n. enorme benignidade. Clara referência à noção de 14, img. 1). ‘índio miserável’. Com isso, também criticavam Os franciscanos voltaram todos seus diretamente a atuação dos alcaides maiores, que esforços no estabelecimento dos povoados e na tinham por função administrar a justiça em uma construção de suas igrejas. Nesse processo se determinada província indígena. Para os destacou o frei Juan de Plasencia, que buscou franciscanos, a justiça e a correção aos índios recursos e apoios junto ao rei, ao governador e deveriam ser aplicadas pouco a pouco, para que mesmo entre os encomenderos do arquipélago. A eles se interassem das coisas da fé e observassem preocupação de estabelecer esse contato direto e a caridade e amor com que eram tratados. Os permanente com os indígenas foi refletido descalços deixaram claro que o objetivo por também em outras estratégias de conversão excelência do domínio castelhano no estabelecidas pelos franciscanos em sua junta de arquipélago era a conversão dos indígenas. 1580, como a produção de catecismos em língua Quaisquer ações de autoridades seculares ou de CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149 148

nativa, o tagalo, a maioria escrita por Plasencia, ao Império Castelhano. Para isso, agostinianos e que também foi autor de obras a respeito dos franciscanos descalços se utilizaram largamente costumes nativos (PORRAS CAMUÑEZ, 1985, do modelo de ‘índio miserável’, o que resultou p. 510-513). em determinações práticas que supostamente O projeto iniciado pelos religiosos serviriam à defesa dos gentios, como a nova franciscanos, no entanto, foi administrado em taxação dos tributos, a nomeação do bispo sua maior parte pelo primeiro bispo de Manila, o Domingo de Salazar – que logo convocou o dominicano Domingo de Salazar, que chegou ao Primeiro Sínodo Diocesano de Manila, a fim de arquipélago para assumir sua diocese em tratar da condição dos nativos – e a designação setembro de 1581. Salazar assumiu a liderança de um ‘protetor dos índios’. espiritual do arquipélago, mas seguindo a trilha O protagonismo inicial dos agostinianos já iniciada por agostinianos e franciscanos na defesa dos índios filipinos, que passa aos descalços na defesa dos indígenas. franciscanos descalços pouco tempo após a chegada desta ordem no arquipélago é bastante Conclusão marcante. Mudança essa que coincide com a transição do poder episcopal, concedido pela Como visto ao longo desse trabalho, os bula Exponi nobis, de uma ordem para outra, em projetos de cristianização formulados pelos 1578. A simultaneidade nessas transições nos missionários estavam intimamente relacionados leva a inferir que a preeminência na ação de ao projeto de colonização e tratamento que defender os indígenas estava relacionada à deveria ser dado aos indígenas. As autoridade episcopal. No entanto, é importante administrações espiritual e secular se destacar que em nenhum trecho dos completavam e deveriam andar de maneira documentos aqui analisados os missionários conjunta, devendo esta ser prioritária em relação salientam agir com potestade de ‘cura das almas’ àquela. A evangelização dos gentios era ou pelo poder episcopal. As juntas citadas, a defendida pelos missionários como a principal primeira reunida por Martín de Rada em 1574, e finalidade da ocupação espanhola no a segunda pelos franciscanos em 1580, poderiam arquipélago, toda e qualquer política ou atividade ser considerados como espécies de sínodos que se colocasse como empecilho à conversão diocesanos, por se tratarem de assembleias dos nativos deveria ser remediada. Essa postura formais, com princípio de colegialidade e que estava expressa tanto na literatura doutrinária trataram de questões eclesiásticas. Porém, além católica do período, quanto em orientações de não utilizarem dessa definição para régias, das quais se valiam os missionários para qualificarem as assembleias, os religiosos questionar os procedimentos de oficiais e reuniram apenas membros de suas respectivas encomenderos. ordens religiosas. O discurso religioso dos missionários O recurso às consciências dos colonos, agostinianos e franciscanos descalços, além de pelos sermões e, especialmente, pelas confissões, projetar a evangelização e cuidado espiritual dos mostram não só as estratégias e possibilidades de nativos filipinos, também produzia um sentido atuação dos missionários no sentido de tentar para a colonização das possessões asiáticas da efetivar seus planos de ‘bom governo’ das Ilhas Monarquía espanhola. As descrições e as Filipinas, mas denotam a capacidade do discurso representações dos indígenas filipinos não eram religioso e da estrutura eclesiástica continuar simples informes sobre o estado da conquista, sendo elementos formadores e moldadores da mas atuavam como instrumento que orientava o sociedade católica, mesmo privados de seus estatuto de integração das Filipinas e suas gentes poderes jurisdicionais. Deste modo poderiam 149 CG Rocha. Dialógos, v.20, n.2, 132-149

denunciar e repreender as “grandes desordenes y monarquías ibéricas (siglos XVI a XVIII). México, D. F.: excesos contra estos pobres yndios vasallos de v. mag.t en Colegio del México, 2012. p. 69-108. grande ofensa de dios nro. s.or” (AGI, Filipinas, 84, HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: 19 , img. 1). instituições e poder político, Portugal - século XVII. Coimbra: Almedina, 1994.

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