Novembro2018 Revista Mensal • 2 Euros

PROGRAMA TROCA DE SERINGAS HOMENAGEM À PROFESSORA MARIA ODETTE FERREIRA 28 Uma questão de Sid@dania

Mais de 57 milhões de seringas foram Apesar de algumas mudanças na es- distribuídas nos últimos 25 anos em Portu- trutura, de algumas tentativas de destrui- gal, no âmbito do Programa Troca de Serin- ção da ENLCD e do seu modelo integra- gas. Estes são dados impressionantes, di- do, os seus dirigentes e profissionais fo- vulgados pela DGS, e que se inserem no ram capazes de manter os níveis de res- conjunto de programas e respostas integra- posta por forma a garantir uma redução das, operacionalizadas pelas estruturas na- de 90% no número de casos de infeção cionais espalhadas pelo país, das quais o por VIH e de sida em utilizadores de dro- SICAD, Serviço de Intervenção nos Com- gas. portamentos Aditivos e Dependências faz E se é verdade que o sucesso obtido se parte, e jus ao reconhecimento internacional deve a uma estratégia nacional que incluiu a como um exemplo de boas políticas e práticas a seguir. implementação de programas de redução de riscos e mini- Se alguém tinha dúvidas, hoje, decorridos 25 anos da mização de danos, entre os quais a troca de seringas, os troca de seringas em , os resultados falam por si. programas de baixo limiar de substituição opiácea, a polí- tica de descriminalização do consumo de drogas, bem Estamos a falar de uma epidemia antes mortal e estig- como o rastreio de doenças infeciosas, não é menos ver- matizada, e hoje uma doença fortalecida pela esperança dade que a tudo isto devemos acrescentar o nome da Pro- de uma longa vida… fessora Maria Odette Santos Ferreira, coordenadora do Para termos uma ideia do sucesso que representou o Programa Nacional de Luta Contra a SIDA entre 1992 e Programa Troca de Seringas, aliado a outras intervenções 2000 e que, para além de inúmeros projetos, um deles não menos arrojadas como o caso do Klotho, um programa merece destaque especial pelo impacto nacional e inter- de identificação precoce da infecção VIH/sida direccionado a nacional que veio a ter. utilizadores de drogas, que envolveram as estruturas dos Estou a falar do projeto de troca de seringas nas farmá- CAD e as equipas de RRMD, o CTC, Centro de Terapia Com- cias, denominado “Diz não a uma seringa em segunda binada localizado no antigo Hospital de Joaquim Urbano no mão”. Considerado pela Comissão Europeia como o me- , com um registo de cerca de 90% de doentes que não lhor projeto apresentado por um país comunitário, não só abandona a medicação, constituíram uma resposta que nun- pela inovação mas por ter sido possível desenvolvê-lo, si- ca é demais deixar de referir: Das pessoas que utilizam dro- multaneamente, em todo o território português, através gas injectáveis, estavam diagnosticadas em 1998, 57,3% das cerca de 2500 farmácias. com VIH; Este número baixou para 1,8% em 2017. Se mais não fosse, só isto deve-nos levar a refletir so- São dados bastante importantes e que importa referir. bre a força da vontade e o querer desta grande mulher E ao contrário do que se verificou noutros países, em Por- que, contra tudo e contra todos, foi capaz de mostrar ao tugal não houve desinvestimento na prevenção da infeção mundo o significado do amor pelas pessoas. por VIH relacionada com o consumo de drogas. Pelo con- trário, as estratégias nacionais têm vindo a ser adaptadas às características dos utilizadores de drogas e aos tipos Sérgio Oliveira, director de consumo actuais.

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3 Evento decorreu em Lisboa e serviu para homenagear Odette Ferreira: Comemoração dos 25 anos do Programa Troca de Seringas

A Estufa Fria, em Lisboa, foi palco da sessão cupação universal face ao futuro, como se encontra atualmente a comemorativa dos 25 anos do Programa Troca de questão organizativa em torno do SICAD e das várias estruturas de intervenção? Seringas, iniciativa organizada pela DGS e SPMS e A estratégia vai manter-se, vai estar em análise e não posso, nesta al- que serviu ainda para homenagear a Professora tura, dar-lhe mais detalhes sobre o assunto. Mas garanto-lhe que as Maria Odette Ferreira, grande mentora e coisas estão em análise e em evolução. impulsionadora do programa. São efetivamente 25 anos de troca de seringas mas seria redutor falar apenas deste programa… Há muita coisa… Quando abordamos uma doença como o VIH, temos que pensar na promoção da saúde, na prevenção, no tratamento… em todas as vertentes. Obviamente, o Programa Troca de Seringas Klotho e outros são estratégias fundamentais. Chegar às populações que têm pior acesso aos cuidados de saúde é fundamental, bem como tudo o resto. Temos que pensar nos três eixos desta abordagem da doença, sempre!

Em que medida continua a prevenção a constituir o parente po- bre da nossa intervenção nacional em saúde? Não, nunca será um parente pobre. A prevenção será sempre uma das principais metas, bem como a promoção da saúde.

A Portugal foi atribuída a presidência do Grupo Pompidou… Que comentário lhe merece esta distinção? Para nós, representa um grande orgulho mas igualmente um sentido de grande responsabilidade. Temos, de facto, muito boa experiência, precisamente na prevenção, na promoção, na redução do estigma as- sociado às dependências, somos olhados pelos outros países como um bom exemplo, temos muito para mostrar, para discutir e igualmen- Raquel Duarte, te um grande caminho a percorrer.

Secretária de Estado da Saúde O que espera da próxima Addictions, mais uma grande or- ganização que adotou o território português como palco? Prova-se aqui a eficácia e os motivos do reconhecimento interna- Este tipo de reuniões é muito bom para a partilha de experiências, de cional do modelo português de prevenção e redução de riscos na dificuldades, identificação de novas estratégias… Espero tudo! área da toxicodependência… Pergunto-lhe, refletindo uma preo-

4 João Goulão, Diretor-Geral SICAD

Programas Klotho, Troca de Seringas, Centro de Terapêutica Com- binada… Falamos de iniciativas e intervenções cujas origens nos remetem para o antigo IDT… Os resultados dessas intervenções, no âmbito de respostas integradas, são os esperados? Penso que sim. A evolução dos números, que eram perfeitamente devas- tadores, foi muito significativa e positiva quando a intervenção nesta área dos cuidados dirigidos aos utilizadores de drogas passou a ser mais es- truturada e mais integrada, quando houve o desenvolvimento de uma sé- rie de respostas, seja de tratamento, conseguindo chegar a todos aque- les que se mobilizavam para isso, mas também o desenvolvimento de uma rede de cuidados ao nível da RRMD. Este Programa Troca de Serin- gas, que hoje aqui celebramos, é uma das componentes essenciais e contribuiu para a inversão dos números desastrosos que tínhamos por- que, em boa verdade, o Programa Troca de Seringas não se limita a isso mesmo… O momento da troca, todos os contactos com profissionais de saúde, aos mais variados níveis, foram sempre aproveitados para pro- mover a educação dos utilizadores de drogas e para diminuir as suas práticas de risco, havendo outros fatores que se somam: a difusão, o alargamento e a fácil acessibilidade aos programas de manutenção opiá- cea contribuíram também, por um lado, para diminuir a compulsão ao uso em qualquer circunstância, aumentaram a adesão às terapêuticas anti-retrovirais, tuberculostáticos, etc, porque passou a fazer-se a admi- nistração simultânea dos fármacos para essas doenças com a adminis- tração de metadona, o que aumentou imenso a compliance terapêutica, contribuiu decisivamente para diminuir a carga viral global circulante e, como tal, a probabilidade de as pessoas contraírem as infeções. A fácil relação e interpenetração entre as estruturas de redução de danos e as de tratamento, de acordo com as fases do ciclo de vida em que as pes- soas se encontravam resultaram numa abordagem integrada e integral da pessoa, com a promoção de atividades tendentes à sua reinserção… Tudo isto, enquadrado por um quadro legal que favorece uma aborda- gem do ponto de vista da saúde pública, faz do modelo português um modelo original e, como tal, objeto de enorme curiosidade.

Terão sido estes resultados, aliados às características de pragma- dos a visitar os quatro cantos do mundo e somos visitados pelos mesmos. tismo e humanismo que mediam a intervenção, que levaram a este Voltando à questão que hoje nos convoca, é mais uma originalidade, entre reconhecimento com Portugal a presidir ao Grupo Pompidou? as várias que temos e partilhamos. Recordo que o envolvimento das farmá- Sim, penso que é fundamental… Portugal goza, de facto, de um enorme cias comunitárias neste Programa Troca de Seringas é um ovo de Colombo prestígio internacional e foi quase um corolário lógico a nossa eleição para a que se deve a uma visão inovadora da Professora Odette Ferreira. Outras presidência do Grupo Pompidou do Conselho da Europa, uma instância ex- pequenas coisas que parecem menores mas que não o são, como o envol- tremamente importante, que extravasa largamente as fronteiras da UE e nos vimento do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos na permite envolver alguns países que foram deixados para trás nesta evolu- produção de metadona, a distribuição por todo o país sob custódia militar ção da abordagem de saúde pública. Temos essa responsabilidade de parti- deste produto, evitando que tenhamos que recorrer a empresas de seguran- lhar o nosso modelo, não pretendendo impô-lo a ninguém mas mostrando ça para a realização desse transporte… Houve aqui alguns passos verda- que funcionou, mostrando os nossos resultados e a evidência científica que deiramente inovadores e até revolucionários e confesso que tenho um enor- fomos produzindo ao longo dos anos. É isso que nos leva a estes lugares… me orgulho por, ao longo dos últimos anos, ter sido a face mais visível desta Não foi por acaso que, eu, enquanto representante de Portugal, exerci a pre- enorme equipa e de dar a cara pela mesma, mas reforço que estamos pe- sidência do OEDT durante dois mandatos, não é por acaso que Portugal é rante um enorme coletivo de profissionais empenhados a quem se deve o agora eleito para o Grupo Pompidou e não é por acaso que somos chama- desenvolvimento do modelo português.

5 Paulo Cleto Duarte, Presidente da Asso- ciação Nacional das Farmácias

Sei que viveu e partilhou muito com Maria Odette Ferreira… Era uma mulher “difícil”? Era uma mulher fácil quando se compreendia… Era uma mulher com- plexa, mais do que difícil. Mas era uma pessoa muito simples de se li- dar porque se preocupava bastante connosco, preocupava-se genui- namente com as pessoas e só era complexa de lidar quando não con- seguíamos compreender o que queria. Aí sim, podia ser um pouco mais persuasiva na forma como se relacionava connosco.

É comum atribuir-lhe o desígnio de pequena grande mulher… Era uma grande grande mulher. Uma mulher cheia de forças e deter- minação, que via o mundo com olhos diferentes e que, acima de tudo, tinha uma consciência humana pouco normal e que preservou sempre a sua liberdade.

Foi o seu pensamento visionário que a levou a protocolar com as farmácias este Programa Troca de Seringas, num contexto de alto estigma? Sim, diria que demonstra duas coisas: visão – ver o que os outros não vêem antes do próprio tempo – e capacidade de concretizar.

Hoje, parece fácil quando se apresenta aqui o sucesso… Foi muito difícil, muito complexo. Recuar a 1993 e falar sobre um con- junto de temas, como tratar os toxicodependentes como doentes e a toxicodependência e o VIH como uma doença normal é um regresso ao passado que, quando a maioria de nós o faz, não acredita que fos- se possível. Torna-o ainda mais importante pelo tempo em que foi criado porque evitou muitos milhares de infeções pelo VIH e há milha- res de portugueses que estão hoje connosco graças ao programa.

São alianças como esta que sustentam uma das suas aspirações, que as farmácias representem os cuidados continuados em saú- de? Exatamente, a rede de cuidados de saúde primários mais valorizada pelos portugueses é isto: aproveitar a proximidade e a rede das far- mácias para resolver problemas concretos de saúde. O Programa Tro- ca de Seringas, em paralelo com o Programa Nacional de Vacinação, são os dois maiores programas de saúde pública do país.

Haverá SNS sem as farmácias? Estão intrinsecamente ligados. Temos uma relação simbiótica. O SNS não existe sem as farmácias e estas não existem sem o SNS.

6 Entrevista com Isabel Aldir, Diretora do Programa Nacional para a Infeção VIH e SIDA, da Direção-Geral da Saúde: “Hoje, estamos a celebrar estes ganhos, mas não devemos esquecer quão difícil foi dar esse passo fraturante” consumir e, como tal, continuarão a ter a necessidade de ter acesso a material que se pretende esteja em condições de segurança para o próprio. É nossa obrigação, enquanto país e Estado, garantir que es- tas pessoas, tenham acesso às melhores condições. É também trazer para esta área uma dimensão de direitos humanos e de respeito pelos mesmos.

Imaginaria que, há 25 anos, uma atitude vanguardista, como o programa troca de seringas, iniciado pela Professora Odette Fer- reira, avançasse e resultasse nos indicadores atuais? Agora é muito fácil concluir isso… Tenho um profundo respeito por to- das as pessoas, particularmente pela Professora Odette Ferreira, que na altura gizou esta estratégia porque, certamente, foi muito difícil consegui-lo… Hoje, estamos a celebrar estes sganhos, mas não de- vemos esquecer quão difícil foi dar esse passo fraturante.

Como analisa o estado atual do fenómeno estigma? Felizmente, baixou… Mas persiste. Portanto, não nos iludamos. Exis- Ao fim de 25 anos de um programa implementado a nível nacio- te em relação às pessoas que vivem com VIH, bem como à população nal, mais de 57 milhões de seringas foram trocadas… Como ava- utilizadora de drogas e temos que continuar também o trabalho nessa lia os resultados? área, para que o estigma e a discriminação sejam uma realidade cada Os resultados são francamente positivos. Se temos hoje a felicidade vez mais distante de nós. de estarmos a assistir ao mais baixo número de novas infeções por VIH entre os utilizadores de drogas injectáveis, isso representa um Que desafios enumeraria para o futuro? sucesso de muitas decisões no âmbito do consumo de drogas, in- São tantos! Não só mantermos todas estas conquistas que tivemos cluindo o programa troca de seringas. Atualmente, o número de casos mas continuarmos a ser inovadores e a ajustar as nossas estratégias de infeção VIH entre os consumidores de drogas é diminuto, o que às reais necessidades das pessoas. E conseguir fazê-lo de uma for- passa muito pelo facto de terem acesso ao material de que necessi- ma que nos garanta que tenham sustentabilidade no futuro. tam para fazerem os seus consumos.

Esta taxa de sucesso não encontra, no entanto, correspondência nos restantes grupos considerados de risco… De facto, as situações são completamente distintas, bem como a per- cepção do risco… E é mais fácil ser-se efetivo neste tipo de ação, ao trabalhar com esta população, do que, por exemplo, ao estimular o uso do preservativo junto da população em geral e da população hete- rossexual acima dos cinquenta anos.

Que importância atribui à estratégia nacional de luta contra as to- xicodependências ao descriminalizar o uso das drogas? Esta redução do número de pessoas utilizadoras de drogas infetadas por VIH não se deve, obviamente, apenas ao programa troca de serin- gas. Todas as estratégias são complementares e, quer o programa troca de seringas, quer a descriminalização do consumo, quer os pro- gramas de redução de riscos e minimização de danos, os programas de substituição de baixo limiar, todos eles se completam e nos permi- tiram alcançar estes resultados. Uma medida isolada permitiria certa- mente obter sucesso mas nunca a magnitude do sucesso a que hoje assistimos.

Depreendo que podemos estar satisfeitos perante os resultados mas nunca “baixar a guarda”… É isso mesmo. São resultados bons e animadores mas temos que ter consciência de que, se houvesse desinvestimento nesta área, o mais natural seria, daqui a uns anos, assistirmos a uma inversão da situa- ção e a um aumento do número de casos. As pessoas irão continuar a

7 Entrevista com Rui Sarmento e Castro: “Centro de Terapêutica Combinada tem produzido excelentes resultados”

com 212 doentes, com diagnóstico microbiológico de tuberculose e tra- duzia uma mortalidade em 12 meses de 40 por cento. Na altura, classifi- cávamos este indicador como característico de um país africano e nunca de um país desenvolvido como Portugal… A determinada altura, pensei como haveríamos de resolver esse problema e surgiu-me um conceito semelhante ao adotado nas lojas do cidadão. Uma das razões da morta- lidade, segundo constatámos, prendia-se com a disparidade das respos- tas. Os utentes tinham que ir às consultas ao hospital, ao CAT tomar me- tadona e ao CDP tratar a tuberculose… O que sucedia é que não iam à consulta de infeciosas nem ao CDP e iam todos os dias tomar metado- na… Então, falei com os colegas da direção dos CAT do norte e propus um programa que permitisse aos utentes, num só local, no caso o hospi- tal, fazer a medicação, tomar a metadona, fazer a terapêutica da tubercu- lose e os anti retrovíricos. Dois anos depois fizemos uma avaliação de resultados e constatámos que a mortalidade tinha descido de 40 para 20 por cento. Ainda era alta mas traduzia uma redução significativa. Em 2001, constatando que os doentes que faziam os anti retrovíricos, toma- vam a metadona e faziam o tratamento da tuberculose até um ano, dura- ção do programa, aquando da alta iam novamente para os CAT e deixa- vam de vir à consulta. E surgiam outras infeções… Então, modificámos o projeto, propondo a continuidade a todos os doentes que estavam nesse Recordo ouvi-lo referir, nalgumas das suas comunicações, que nos regime inicial de tuberculose, oferecendo-lhes toda a medicação em si- primeiros tempos de contactos com estes doentes transmitir-lhes multâneo. um diagnóstico de VIH/Sida correspondia basicamente a comunicar um atestado de óbito a breve prazo… Como recorda esses tempos? Recordo que criaram uma autêntica rede social que visava a aproxi- Eram tempos extremamente difíceis porque, nos primeiros anos, não tí- mação do utente… nhamos qualquer fármaco… Em 1987, surge o AZT, que pouco mais fa- Sim, oferecíamos-lhes pequeno almoço porque tinham que tomar o me- zia aos doentes senão aguentá-los um pouco mais… Em 1992, surgiram dicamento da tuberculose em jejum e o passe para o transporte público, outros fármacos do mesmo grupo, que associávamos ao AZT e também o que continuamos a fazer… A maioria aderiu, fazíamos ali anti retrovíri- não oferecia nada de especial… Só em 1996 as coisas começaram a cos, medicação para a tuberculose se fosse o caso e metadona. O que melhorar, com o aparecimento dos inibidores da protéase. No meu hospi- tem produzido excelentes resultados, quer em termos de mortalidade, tal, nesses anos, morreram mais de mil indivíduos, geralmente jovens, in- quer de outras infeções, melhores do que os dos doentes que tínhamos fetados pelo VIH, sobretudo com muitas infeções oportunistas, muita tu- em consulta. berculose, que criavam esses problemas. Por que não se replica este programa nos restantes territórios do Nessa altura, lidava muito com população toxicodependente que país? consumia por via endovenosa… Na minha opinião, deve-se às administrações hospitalares. Quem quer que Sim, inicialmente apareceram muitos casos de homens que tinham sexo estes doentes entrem pelos hospitais “normais”? Ninguém! O nosso Centro com homens mas, a partir de 1990, lembrava-me da imagem que temos de Terapêutica Combinada continua no Hospital Joaquim Urbano… da bolha de azeite que se coloca no prato e vai alargando… Foi o que aconteceu com os toxicodependentes.

Entretanto, surge o programa troca de seringas… Sim, sem dúvida que melhorou o contexto mas, de facto, só com o apa- recimento dos anti retrovíricos é que começámos a resolver o problema e, posteriormente, com as medidas auxiliares.

É um dos mentores da introdução de um programa pioneiro em Por- tugal, o Centro de Terapêutica Combinada, no Joaquim Urbano… Não existe outro no país… Em 1997, no âmbito de uma tese de mestra- do, apresentei um trabalho que traduzia uma avaliação de doentes com VIH e tuberculose ativa e os resultados que tínhamos… O que então me causava preocupação era o facto de os indivíduos entrarem na enferma- ria com tuberculose, eram tratados e, ao fim de 15 dias, um mês ou pou- co mais, uma parte significativa saía pelo seu pé… Mas, passados uns meses, apareciam novamente com tuberculose… Esse trabalho foi feito

19 Dados divulgados pela DGS ajudam a perceber sucesso português: Programa Troca de Seringas distribuiu mais de 57 milhões de seringas em 25 anos

São impressionantes os dados divulgados no dia 4 de dezembro pela DGS, segundo os quais mais de 57 milhões de seringas e cerca de 30 milhões de preservativos foram distribuídos nos últimos 25 anos em Portugal no âmbito do Programa Troca de Seringas.

Recorde-se que o o programa “Diz Não a Uma Seringa em Segunda 57,3% em 1998 para 1,8% em 2017”, frisando que, “ao contrário do Mão” resultou de uma parceria entre o Ministério da Saúde e a Asso- verificado noutros países, em Portugal não houve desinvestimento na ciação Nacional das Farmácias, tendo-se iniciado em outubro de prevenção da infeção por VIH relacionada com o consumo de drogas, 1993, pelo que se comemoram atualmente os 25 anos de implementa- e as estratégias nacionais têm vindo a ser adaptadas às característi- ção de uma das ferramentas que mais contribuíram para a muito sig- cas dos utilizadores de drogas e aos tipos de consumo atuais”. De nificativa diminuição de contágios entre utilizadores de drogas endo- acordo com o relatório, “na última década, verificou-se uma redução venosas. de 90% no número de casos de infeção por VIH e de sida em utiliza- O Programa Troca de Seringas visa ainda promover comportamentos dores de drogas, o que comprova a eficácia das medidas e estraté- sexuais seguros, através da normalização do acesso e uso do preser- gias adotadas”. vativo, diminuir o tempo de retenção de seringas usadas pelos utiliza- Conclui-se que o sucesso obtido se deve a “uma estratégia nacional dores e evitar o abandono de seringas e agulhas utilizadas na via pú- que incluiu a implementação de programas de redução de riscos e mi- blica, conforme pode ler-se na nota divulgada pela DGS, que recorda nimização de danos, entre os quais a troca de seringas, os programas que “Portugal é mundialmente reconhecido como um exemplo de de baixo limiar de substituição opiácea, a política de descriminaliza- boas práticas na adoção de políticas de abordagem aos comporta- ção do consumo de drogas, bem como o rastreio de doenças infeccio- mentos aditivos e dependências”. sas e subsequente referenciação aos cuidados de saúde”. A par do Programa Troca de Seringas, são vários os modelos imple- mentados em Portugal que suscitaram curiosidade e mereceram me- diatismo a nível mundial, tendo mesmo sido adaptados por vários paí- ses, como a descriminalização do uso de substâncias psicoativas ilíci- “Portugal é mundialmente reconhecido como um tas e os programas de substituição opiácea, nomeadamente os de exemplo de boas práticas na adoção de políticas baixo limiar de exigência. De acordo com a DGS, “todos estes progra- de abordagem aos comportamentos aditivos mas têm repercussões importantes, como a significativa redução veri- e dependências”. ficada nos últimos anos no número de novos casos de infeção por VIH diagnosticados entre as Pessoas que Utilizam Drogas Injetáveis, de

“Mais de 57 milhões de seringas e cerca de 30 milhões de preservativos foram distribuídos nos últimos 25 anos em Portugal no âmbito do Progra- ma Troca de Seringas”

8 João Goulão I Diretor – Geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências: “Chegamos aos dias de hoje com apenas 1,5% dos novos casos de SIDA a ocorrerem entre os utilizadores de drogas”

O conjunto destas políticas tem contribuído para ganhos significa- tivos em saúde, tais como: • Diminuição de consumidores recentes entre população geral (15- 64 anos e 15-34 anos); • A iniciação do consumo ocorrer em idades cada vez mais tardias. • Diminuição do número de consumidores problemáticos; • Aumento da procura de tratamento, também entre consumidores de cannabis; • Redução da prevalência do uso de drogas injetáveis; • Diminuição da prevalência de doenças infeciosas, como hepati- tes e HIV; • Em relação às overdoses, os números são muito baixos; temos a menor taxa de incidência na Europa (52 em 2010, 40 em 2015, 27 em 2016). É igualmente relevante: • Redução do peso dos delitos relacionados com drogas no siste- ma de justiça criminal; • Redução da pequena criminalidade relacionada com os consu- Os resultados que temos vindo a obter nesta área são uma das faces mos de drogas mais visíveis do trabalho em matéria de comportamentos aditivos e de- • Aumento da eficiência das autoridades policiais e aduaneiras pendências. Os “louros” não serão somente nossos (do IDT e seus par- para lidar com as grandes organizações de tráfico. ceiros, ou, no arranjo atual, do SICAD e das ARS/DICAD e da rede de parceiros dos setores social e privado). Na verdade, em 1993 a Comis- são Nacional de Luta Contra a SIDA implementou o primeiro programa de troca de seringas para que os toxicodependentes pudessem fazer um consumo menos perigoso. É da mais elementar justiça referir a coragem e visão da Profª Maria Odette Ferreira, defendendo este programa e fa- zendo-o assentar na participação da rede de farmácias comunitárias. Esta ideia deu sequência à primeira experiência feita em Coimbra, o Stop Sida. Tinha passado cerca de uma década desde a “descoberta” do VIH. O seu impacto foi desde logo reconhecido, quando dois anos depois (1995) o Centro de Atendimento a Toxicodependentes das Taipas con- cluiu que, em Lisboa, se tinha verificado um decréscimo acentuado no número de novos casos com infeção VIH. Em relação ao IDT/SICAD podemos assumir que a intervenção em RRMD (Redução de Riscos e Minimização de Danos) desenhada para chegar às franjas mais desorganizadas dos utilizadores de drogas pro- porcionou que, sobretudo os utilizadores por via injetável, ficassem me- nos expostos a uma possível infeção. Para tanto contribuíram também programas como o Klotho (realização sistemática de testes a todos os

Breve história da doença

Sabemos que surgiu na década de 80 do século passado e estava relacionada, de início, com os designados grupos de risco, entre os quais os utilizadores de drogas injetáveis. Foram identificados os vírus, descobertas as formas de transmissão e os medicamentos que, de alguma forma, “normalizaram” a vida dos portadores até em termos de estigmatização. De então até hoje a evolução foi muito rápida e para melhor. A minha expetativa será sempre positiva e otimista, mantendo a atenção necessária junto dos nossos pacientes – prevenindo, informando e tra- tando os casos que possam vir a surgir. Brevemente será iniciado o funcionamento dos programas de consumo vigiado. Verificou-se que hoje esta resposta volta a fazer sentido face a algum recrudescimento recente do consumo por via injetável e esta possibilida- de, que estava já contemplada desde 2001, vai avançar com o patrocínio da Câmara Municipal de Lisboa e o nosso apoio. É uma das medidas importantes em termos de RRMD que pode ajudar a diminuir, ainda mais, os casos de novas infeções. Sempre que for necessário, o SICAD implementará as estratégias adequadas a cada desafio colocado, assumindo o toxicodependente como um cidadão que tem direito uma maior esperança de vida com qualidade, como qualquer cidadão deste País.

9 Centro de Terapêutica Combinada (CTC)

Continuando a ser o único centro deste género do país para tratar toxicodependentes com VIH/sida e/ou tuberculose, o Centro de Te- rapêutica Combinada (CTC) do Centro Hospitalar e Universitário do Porto (CHUP) regista uma taxa de 90% de doentes que não abandona a medicação. Três infeciologistas, dois assistentes sociais, um psicólogo, um psiquiatra, quatro enfermeiros, um auxiliar de ação médica, com o apoio de farmacêuticos e um nutricionista do Hospital de Santo An- tónio / Centro Hospitalar do Porto – é esta a equipa que dá vida ao projeto criado em 1998, integrando o Centro de Terapêutica Com- binada, localizado no antigo Hospital de Joaquim Urbano. O CTC é uma das três áreas de trabalho do Serviço de Doenças Infeciosas do CHUP, que inclui, também, o Internamento, localiza- do no edifício do Hospital de Santo António, e a Consulta Externa, que engloba as consultas de VIH/sida, de Hepatites Víricas (B e C), de Medicina do Viajante, de Infeciologia Geral, de Estomatolo- gia, de Alterações Metabólicas do VIH, de Profilaxia de Infeções Induzidas por Imunomoduladores e, mais recentemente, de Profi- laxia Pré-Exposição (PrEP). nossos utentes, aconselhamento e referenciação dos seropositivos para Perante estes números, só posso continuar a defender a coragem políti- consultas hospitalares) e a oferta alargada de programas de manutenção ca que houve, à época, para implementar a Descriminalização do Consu- com agonistas opiáceos (metadona) em baixo limiar de exigência. mo e posse de Drogas para uso pessoal, enquadrando e introduzindo A verdade é que chegamos aos dias de hoje com apenas 1,5% dos no- coerência em toda as outras vertentes da política portuguesa nesta ma- vos casos de SIDA a ocorrerem entre os utilizadores de drogas, e isso é téria. fruto de uma política concertada, coordenada, coerente e colaborativa. O papel do “género” na intervenção em CAD está na ordem do dia; ainda A descriminalização faz parte de um pacote de soluções que se consubs- em junho último, no nosso III Congresso, foi abordado, indicando que são tancia no “Modelo Português”, do qual faz a atividade das Comissões necessárias formas de intervenção diferenciadas para homens e mulhe- para a Dissuasão da Toxicodependência, mas também as estratégias de res. prevenção, a oferta de tratamento, de medidas de redução de riscos e O acréscimo de mulheres que consomem substâncias ilícitas e lícitas é minimização de danos e ainda de reinserção, a par do aumento da eficá- um reflexo da sociedade contemporânea e ao qual se podem atribuir di- cia na atividade das forças policiais e aduaneiras na redução da oferta. A versas razões, desde uma maior “liberdade”, igualdade perante o com- aplicação deste Modelo permitiu que os recursos fossem orientados para portamento masculino ou mesmo mais “coragem” para assumirem os as respostas da comunidade, com mais consumidores em tratamento ou seus comportamentos; há tudo um vasto leque de prováveis causas. em programas de redução de danos e religando-os com a sociedade. Apenas um estudo sociológico mais profundo poderia aferir com clareza Também é de referir a diminuição do estigma do consumidor de drogas todos os contornos desta realidade. devido à maior abertura e tolerância dos cidadãos em relação aos consu- Contudo, tendo em conta a Intervenção integrada que é feita hoje em dia, midores e aos seus problemas e à mudança da representação social da penso que dificilmente assistiremos a um surto infeções de HIV/SIDA en- dependência, considerando-a como uma doença com a mesma dignida- tre as mulheres utilizadoras de drogas, considerando circunstâncias nor- de e merecedora da mesma atenção de outras doenças. mais.

Programa de identificação precoce e prevenção da infeção VIH/sida, Klotho

O programa de identificação precoce e prevenção da infeção pelo VIH e sida, Klotho, resulta do reconhecimento conjunto da Coorde- nação Nacional para a Infeção VIH/sida (CNIVS) e do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), atinente ao papel central da injeção de drogas na transmissão da infeção VIH/sida em Portugal e do risco de transmissão da infeção por esta via, quando compa- rada com os restantes países europeus do ocidente. Foi definido como objetivo de saúde aumentar a percentagem de novos utentes da Rede Pública de Atendimento a Toxicodependen- tes e da população alvo da intervenção da redução de riscos e mi- nimização de danos que conhecem o seu estatuto serológico rela- tivamente à infeção VIH. Desta forma, foi definido como objetivo de impacto contribuir para a diminuição da incidência da infeção VIH e de sida entre os uten- tes da Rede Pública de Atendimento a Toxicodependentes e da po- pulação alvo da intervenção da redução de riscos e minimização de danos.

10 Ares do Pinhal: VIH-SIDA no Programa de Substituição de Baixo Limiar de Exigência (PSBLE)

Apesar dos dados do VIH serem hoje uma realidade muito distante do que eram no passado e de considerarmos que existe um controle epidé- mico da doença, impõe-se o repensar das intervenções em curso em Portugal, uma reflexão que nos alerte. De 2004 até hoje, dados do PSB- LE revelam a ocorrência de 300 mortes das quais 157 eram VIH. A diminuição do preconceito em relação ao Vírus, a qualidade das equipas que trabalham com o VIH-SIDA, a massificação da informa- ção existente, a colaboração dos meios de comunicação social, as campanhas preventivas, a facilidade em relação à referenciação, a sofisticação das novas terapias medicamentosas e a ligação da maio- ria da população seropositiva aos serviços, pode promover um perigo- so “estado de conforto” a nível político, técnico e social. Mas esta evo- lução, positiva decerto, não nos pode desviar da missão de monitori- Lisboa, 1998, sob a alçada da CML e IDT (atual SICAD), num bairro de zação permanente da doença, em particular dos grupos populacionais tráfico e consumo, numa população com comportamentos aditivos muito mais vulneráveis. Senão vejamos, em 1178 pessoas acompanhadas destrutivos, entregues a si próprios e às suas rotinas da adição, sem liga- no PSBLE em final do mês de Outubro de 2018, 290 têm menos de 40 ção a redes de cuidados de saúde, sociais ou mesmos outras… aqui co- anos e destes, 27 são VIH+. meça a experiência de Ares do Pinhal num inovador Programa de Redu- Apesar dos esforços acrescidos dos diversos parceiros da redução de ção de Riscos e Minimização de Danos. danos, do tratamento e da comunidade em geral, que se constituíram em O primeiro passo face ao conhecimento da doença, VIH-SIDA, foi o ras- grupos de trabalho que têm permitido uma reflexão comum, um melhor treio a todos aqueles que nos chegavam. Os números falavam por si: conhecimento das populações de risco e o desenhar de estratégias ino- 55% das pessoas tinham serologia positiva para VIH (hoje 14,6%). O vadoras, existem três desafios face a populações às quais ainda não desconhecimento da sua situação de saúde era total, a que se aliava a chegamos: negação ou o alheamento do medo da sentença de morte que na realida- População migrante. Nos últimos 6 meses entraram no PSBLE cerca de de vivia dentro de todos nós, equipa e doentes. 50 indivíduos estrangeiros, migrantes. A cultura própria, a sobrevivência Foi iniciado o delicado processo de conhecimento, sensibilização e en- em grupos fechados e a língua, têm sido barreiras à abordagem e ao es- tendimento do que era o VIH-SIDA e logo, a referenciação dos casos e tabelecimento de uma relação de confiança. Constata-se o completo ligação às consultas de especialidade e tratamento (acessíveis apenas desconhecimento da sua situação de saúde e a inacessibilidade aos cui- aos casos mais estruturados, abstinentes), com medicação entendida de dados, as condições habitacionais de extrema precaridade e insalubrida- uma forma muito simplista como aquela que “aumentava as defesas do de e comportamentos aditivos de risco. Perfeitos desconhecidos. Como organismo e poderia assegurar mais alguns anos de vida”. cuidar melhor deles e chegar aos seus pares? A referenciação dos positivos à consulta era um processo bastante com- Práticas sexuais de risco. Práticas em contextos privados, desconheci- plexo. Os doentes com VIH positivo ou ficavam “ligados” após um inter- dos, inacessíveis, em classes sociais nem sempre desfavorecidas e em namento hospitalar ou teríamos de contar com a boa vontade de alguns diferentes Géneros. serviços de Infeciologia construindo parcerias informais, que duram até Aumento dos consumos por via Injetada. Desde 2015 regista-se um nú- aos dias de hoje. mero crescente de distribuição de Kit’s no PSBLE que chegarão natural- O PSBLE construía assim uma relação de complementaridade e confian- mente àqueles que não conhecemos, que não se expõem às equipas. ça com os serviços garantindo a administração da medicação retrovírica E, três evidências a que as entidades públicas responsáveis e a socieda- em TOD, gerindo efeitos secundários, trabalhando a adesão, desmistifi- de civil devem estar atentas: cando preconceitos, mitos e medos quer em relação à doença quer à po- Perigo de banalização da doença. O olhar sobre o VIH/SIDA como uma pulação em si, sendo objetivo primordial o prevenir o abandono da tera- doença controlada e facilmente controlável. pêutica, a infeção de novos casos e a morte, sendo a proximidade e a Rastreio. Embora hoje esteja muito mais próximo quer das populações utilização da metadona instrumentos fundamentais como facilitadores com comportamentos de risco quer da população geral, não é por si só desta ligação. uma forma de controlo, prevenção e conhecimento da doença. A periodi- Será importante refletir hoje que Ares do Pinhal enquanto parceiro do cidade do rastreio é fundamental. A ligação entre as equipas de rastreio e Programa de Troca de Seringas também fez a sua evolução e adaptação os serviços hospitalares é imprescindível. à realidade. Ao longo dos anos, deixou cair a tentação de controlar o nú- A proximidade. Estaremos suficientemente próximos dos focos da doen- mero de Kit´s ou preservativos distribuídos acentuando o seu discurso ça? Estaremos a usar todos os recursos disponíveis para evitar a todo o nos comportamentos de risco, na educação para a saúde, dando acesso custo uma nova contaminação? Os instrumentos preventivos deverão ilimitado a todos os instrumentos de redução de danos. Hoje, não faze- ser dados a quem chega à população que não é tocada pelas equipas de mos troca de seringas, mas sim distribuição de Kit´s! A “seringa” deixou RRMD ou outras, ou seja, são os pares dos protagonistas dos comporta- de ser a única protagonista no discurso dos riscos da partilha, dando lu- mentos sexuais ou de consumos de risco o veículo privilegiado para fa- gar ao recipiente, ao toalhete, ao filtro, ao uso de água destilada e ao uso zer chegar os meios de prevenção aos contextos mais privados, inaces- incondicional do preservativo. Foi fundamental a consciencialização de síveis. que a transmissão do vírus não se fazia apenas pelo ato sexual ou da in- Em Ares do Pinhal é célebre a frase “é com a nossa população que jeção mas sim através de toda a parafernália usada no consumo. aprendemos tudo”

11 Gilead lança terceira vaga da campanha VIH é: : Mais do que ser positivo

Com o apoio da APMGF, SPDIMC, Abraço, AJPAS, FPCCSIDA, GAT, LPCS, Associação Positivo, Seres e Ser +, a Gilead Sciences apresenta a terceira vaga da campanha VIH é: Mais do que ser positivo em diversos meios de comunicação e com um site dedicado (http:// www.vihmaisdoqueserpositivo.pt/), onde se pretende informar sobre a infeção por VIH e sobre a gestão de comorbilidades associados à doença. O grande propósito desta campanha é a promoção da literacia em saúde e a qualidade de vida dos doentes. Comece hoje a construir um futuro melhor é o lema e desafio lançado no âmbito desta iniciativa, pioneira em Portugal porque reúne apoios de uma dezena de instituições da sociedade civil com intervenção nesta área. O site é de utilização extremamente simples e útil, mas resulta num completo compêndio informativo, com informações subcategorizadas sobre o corpo (ossos, cancro, rins, fígado, coração, diabetes, saúde mental e pulmões), expectativas, o que perguntar, saúde do homem e saúde da mulher (saúde sexual, alimentação saudável, ser ativo(a), álcool, drogas recreativas, tabagismo e planeamento familiar), e outras questões num separador “quer saber mais?” O principal objetivo é melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem com a infeção através da sua formação e informação, contribuindo-se igualmente desta forma para a minimização de um estigma que ainda persiste.

12 Ana Campos Reis, Enfermeira: Professora Odette Ferreira e o Solidariedade

Homenagear a Senhora Professora Odette Ferreira é uma tarefa muito difícil mas a que claramente não podia deixar de me juntar. A sua presen- ça é inolvidável. Pela parceria, apoio, incentivo e atenção incondicional com que distinguiu o Projeto Solidariedade, durante os 25 anos que exer- ci funções neste programa de acompanhamento às pessoas infetadas e afetadas pelo VIH/SIDA, na cidade, apoiadas pela Ação Social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Hoje enquanto aposentada, todos regis- tos destas memórias são naturalmente em nome individual. Pela singularidade desta relação gostaria de não repetir, embora seja di- fícil, o que muito se tem escrito sobre esta personalidade impar no nosso País, na área da luta contra uma infeção que ceifou muitas vidas, deixan- do marcas nas famílias, amigos e na sociedade em geral. Queria poder registar a essência e força da sua atitude com os mais pobres, os que já sofrendo de exclusão, estigma, discriminação e isolamento severo e vi- ram a sua situação social piorar por motivos de saúde.

Respostas do Projeto Solidariedade

Apoio Domiciliário gratuito e universal com os objetivos de colaborar e/ou assegurar o acesso à prestação de cuidados de saúde; dinamizar a presta- ção informal de cuidados e rentabilizá-la de forma a um melhor acompanhamento do utente; garantir condições para cumprir um plano terapêutico; prevenir situações de dependência e promover a autonomia; prestar cuidados de ordem física e psicossocial às pessoas e famílias; contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas infetadas e famílias; contribuir para retardar ou evitar a institucionalização; disponibilizar informação que facilite o acesso a serviços da comunidade. Desenvolveu-se esta valência através do Aviso do Ministério da Saúde de 29 de novembro de 1996; Apoio residencial para doentes nas fases de ARC e SIDA, com necessidades de cuidados de convalescença continuados paliativos e terminais, que apoia 24 utentes que se encontrem numa situação de total ou parcial dependência de terceiros para satisfazer as suas necessidades humanas básicas, bem como numa situação social, familiar e económica precária em 1998. Apoio residencial para apoiar famílias monoparentais com filhos através da requalificação da Residência Santa Rita de Cássia, equipamento que funcionava desde 1989 para seropositivos com carências económicas e de rede de suporte social a todos os níveis familiares e de amigos Reabre após a consecução de obras de restauração, proveniente de protocolo com a CNLCS, como unidade residência em 2003. Formação era outro aspeto prioritário do investimento da Senhora presidente da CNLCS á época, não só na formação contínua dos cuidadores e das pessoas cuidadas, não só nos aspetos da Prevenção Primária mas nas três áreas da prevenção: o acolhimento e acompanhamento das pessoas in- fetadas e afetadas e a reintegração das mesmas na comunidade, seguindo as suas preocupações e exemplo a formação / informação foi uma priori- dade nas ações correntes das equipas, com a finalidade de diminuir o medo e o estigma, ama vez que a ignorância e o desconhecimento faziam cres- cer a discriminação nesta população, levando a situações de grande isolamento e muito sofrimento. Para atingir os objetivos preconizados pelo Projeto Solidariedade, face às características da população acompanhada e aos requisitos da ação, a formação em serviço foi um dos pilares da sustentabilidade própria resposta, contamos desde sempre como o apoio da CNLCS, não só pelo financiamento para algumas ações, mas principalmente pela presença da Senhora Professora, como formadora em todas as atividades fossem dirigidas aos técnicos ao pessoal auxiliar ou á população acompanhada pelo serviço, colaboração que continuou da sua parte durante 25 ano. Para suporte da formação o serviço a convite da CNLCS participou no Manual de autoajuda para seropositivos, amigos e família, onde participou nos capítulos; Tratar um Doente em Casa e Higiene. E noa elaboração do Manual do Apoio domiciliário a Indivíduos Infetados pelo VIH, com duas edições do Ministério da Saúde e CNLCS.

13 Em 1992 iniciou o seu trabalho na Comissão Nacional de Luta Conta a Nesse âmbito foi assinado um Protocolo de Cooperação entre a SCML e Sida (CNLCS), onde desempenhou funções como presidente durante a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa/Centro de Patogé- oito anos, nesse cargo recusou receber qualquer forma de pagamento ou nese Molecular – Unidade de Retrovírus, comprometendo-se as partes a salário, com projetos inovadores e sustentáveis alguns até hoje como o colaborar entre si na elaboração e concretização de projetos de investi- ”Diz não a uma seringa em segunda mão “, reconhecido ainda no século gação, estudos aplicados e assessorias na área do VIH/SIDA, com os XXI pelo seu pragmatismo e intervenção efetiva na área da prevenção de seguintes objetivos: a) Desenvolvimento de projetos de investigação em comportamentos de risco. Em 2012 a UNAIDS considerou este projeto diversas áreas, designadamente a medicação e acompanhamento tera- um dos melhores do mundo e a União Europeia distinguiu-o como melhor pêutico dos utentes do Projeto Solidariedade; b) Apoio mútuo nas áreas projeto a nível da comunidade pela sua abrangência e inovação em terri- de formação e assessoria técnica; c) Disponibilização das valências do tório nacional onde envolveu cerca de 2500 farmácias. Projeto Solidariedade como local de estágio para alunos da Faculdade Desde o primeiro dia da Presidência da Senhora Professora na CNL- de Farmácia da UL / Centro de Patogénese Molecular – Unidade de Re- CS a sua presença no Projeto Solidariedade foi de grande proximida- trovírus; d) Articulação das relações do conhecimento entre ambas as de e parceria, Colaborámos nas reuniões e visitas ao Casal Ventoso Instituições a fim de sensibilizar o sistema científico (2003). … o que testemunhou ali no que diz respeito á degradação do ser hu- Odette Ferreira, mesmo depois de jubilada, continuou a trabalhar como mano que consumia sem nenhuma medida de higiene e prevenção, voluntária na faculdade onde foi responsável pelo curso de Mediadores incentivou a medidas imediatas fomentado o envolvimento do centro para a Saúde em Sida, doenças sexualmente transmissíveis e toxicode- comunitário do bairro, que á época já protegia as crianças dos desvios pendência, ação da Associação de estudantes da Faculdade de Farmá- no Bairro. cia, há quase 20 anos. Conseguiu instalar um Centro Social de Apoio ao Toxicodependente no Para esta atividade contou sempre com a colaboração dos técnicos do Casal Ventoso, proporcionando a satisfação das necessidades básicas Solidariedade na aulas e em visitas guiadas nos equipamentos residen- sem necessitar de grande investimento, por ter conseguido apoios de co- ciais do serviço, onde fazia questão que os alunos contactassem de per- merciantes e particulares fruto do seu entusiasmo e capacidade de des- to com esta realidade. pertar o que de melhor têm os seres humanos com o fim do bem comum. Fez-se Irmã da Irmandade da Misericórdia e de S. Roque e também aí cum- Já em meados dos anos noventa, recebe fundos obtidos através dos Jo- priu rigorosamente o seu papel de consultora, aconselhadora, estratega gos Sociais da Santa Casa que viabilizaram a criação de diversas valên- Mais do que aquilo que podemos objectivamente assinalar e o seu cias; serviços de domiciliários; Hospitais de Dia nos serviços de infeciolo- curriculum vitae diz, não posso deixar de realçar é a dimensão huma- gia; centros de rastreio anónimo; centro de Drop-in para trabalhadores do na da relação interpessoal com a Família e os amigos do Solidarieda- sexo; entre outros. Um dos aspetos muito valorizado pela Senhora Pro- de. Teve sempre connosco os desvelos de uma mãe, a tutoria de uma fessora foi sempre a necessidade de apoio social das pessoas infetadas madrinha e uma relação individual com todos fossem técnicos, doen- em situação de carência económica e isolamento social. Iniciou-se um tes, famílias ou amigos. Nenhum dos colaboradores, funcionários ou período de estreita colaboração entre a Comissão Nacional de Luta Con- doentes ignora o seu papel, e muitos beneficiaram da sua preocupa- tra a SIDA e a SCML. ção de que cada um pudesse evoluir de acordo com a sua capacida- A missão e acção das SCML foi sempre pautada, desde a sua fundação, de. O S. incentivo para a evolução escolar e profissional de cada um, por tentar encontrar respostas para as crises que deixam a população conta-se em graus escolares ou académicos a que todos eram incen- mais carenciada ainda mais vulnerável, e foi neste âmbito de ação que a tivados (e compelidos) a fazer. Para o seu papel junto dos doentes e instituição se associou ao Grupo de Trabalho da Sida, assinando um pro- famílias há poucas palavras. A nossa Professora que ralhava e cuida- tocolo a 28 de novembro de 1989, entre o Ministério da Saúde, a Cruz va, marcou muitas pessoas e acrescentou qualidade e anos a muitas Vermelha Portuguesa e a Santa Casa. Este protocolo visava criar um vidas. serviço específico de apoio às pessoas em situações de exclusão ou vul- O carinho, a presença assídua em todos os eventos e momentos impor- nerabilidade social, neste caso por razões de saúde, visando promoção tantes, aniversários, festas, colónia de férias, visitas aos internados, da sua qualidade de vida e evitar o seu isolamento, discriminação, margi- acompanhamento de cerimónias fúnebres, formação reuniões sem fim nalização, a saber, o Projeto Solidariedade. Assim se criaram novas res- deixam marcas e saudades em todos mas o seu exemplo é uma maravi- postas e se firmaram protocolos entre a CNLCS e a SCML, a partir da lhosa ferramenta Residência Santa Rita de Cássia (Casa Amarela), primeira resposta do Tenho a firme convicção de que a influência da Senhora Professora Projeto Solidariedade dirigida a seropositivos excluídos por motivos de está intimamente ligada á excelência dos cuidados que se prestaram saúde no caso infeção por VIH/SIDA. no Projeto Solidariedade. Não só as pessoas infetadas com o VIH/ Em 2004, a Sra. Dra. Maria José Nogueira Pinto, então Provedora da Santa SIDA usufruíram de condições psicossociais e de atenção incondicio- Casa da Misericórdia de Lisboa, presta-lhe homenagem pelo valioso contri- nal que lhes permitiu condições e capacitação para chegar a um pro- buto científico prestado á sociedade enquanto investigadora e colaboradora cesso de doença crónica, com qualidade de vida e bem – estar., mas /dinamizadora de iniciativas com vista á prevenção do VIH, agradecendo a também porque nunca desistiu, nem deixou que desistíssemos e isso estreita colaboração desta com a instituição da Santa Casa da Misericórdia tem um valor que ultrapassa em muito o tempo de uma vida. O seu de Lisboa mesmo após o cessar de funções na CNLCS. Colaboração que exemplo melhorou o passado e construiu um futuro, hoje pronto para continuou na área da formação continua até 2016. se desenvolver .

14 AF_IMPRENSA_FARMACIAS_FAMILIA_294X210_RD.indd 1 07/12/2018 14:49 Entrevista com Ana Paula Martins, Bastonária da Ordem dos Farmacêuticos: “A Professora Odette Ferreira era, acima de tudo, uma patriota”

A Professora Odette Ferreira foi pioneira na área da investigação nem de ter medo. Quando alguém a aconselhava a não ir sozinha, ela di- mas igualmente no exercício de cargos como a presidência da Co- zia que não precisava de ter medo porque ia em paz, saber do que as missão Nacional de Luta Contra a Sida ou na concepção e imple- pessoas precisavam. Assim como não deixava de ser, como era com os mentação de ações marcantes para o país, como o programa nacio- seus alunos, muito afirmativa. nal de troca de seringas… Como caracteriza a Bastonária esta per- sonalidade? Aliando humanismo e pragmatismo, a Professora Odette Ferreira Ana Paula Martins (APM) - A Professora Odette Ferreira era, acima de conseguiu mobilizar centenas de farmácias no programa de troca tudo, uma grande patriota. Acreditava profundamente no país e sempre de seringas e, mais ainda, num contexto muito conservador, esten- sentiu que Portugal necessitava do seu melhor contributo enquanto cá deu o programa aos estabelecimentos prisionais… estivesse. No seu caso, foi através da ciência e da ação junto, concreta- APM - Chama-se determinação! Quando estava convencida de que a ra- mente, daqueles que mais precisaram quando a situação do VIH/Sida zão, no sentido latus sensus, existia e que o que estava a fazer era pelo começou a emergir e a ter políticas públicas próprias. A Professora Maria bem comum e que se não o fizesse haveria falhas no sistema, ou seja, Odette Santos Ferreira, naquele momento em que lutou para convencer se não lutasse por determinado tipo de medida, não estaria não só a o Professor que tinha, de facto, um vírus diferente do pri- cumprir a sua missão, como a diferença que era necessário produzir meiro já identificado e quando percebeu que tinha razão, batalhou imen- na sociedade não aconteceria. Isto aconteceu variadíssimas ve- so para montar o seu laboratório na Faculdade, desenvolveu muitíssimos zes na sua vida e, pessoalmente, testemunhei ao longo dos cursos nesta área para profissionais de saúde, trabalhou com organiza- últimos 30 anos a inúmeras situações, a Professora Odet- ções juvenis, com ONG, promoveu a sua própria organização e constitui- te Ferreira não parava, não desistia. Quando o progra- ção… fê-lo sempre na sua dupla vertente de cientista e cidadã. Ou seja, ma de troca de seringas foi suspenso nas farmácias, tinha de facto um percurso de cidadania muito forte e essa é, na minha por questões institucionais e políticas, a Professo- opinião, a marca mais expressiva da sua personalidade. ra Odette nunca mais descansou enquanto a si- tuação não foi reposta. E posso garantir que to- Quer dizer que, mais do que investigadora, a Professora Odette Fer- mou todo o tipo de medidas, chamou toda a reira foi uma missionária na saúde em Portugal? gente e garantiu que o programa voltaria às APM - Sim, claramente. Missionária porque havia uma visão clara e por- farmácias… E já não era coordenadora… que falava muito da sua missão, da missão de cada um de nós, dos alu- nos que formava, da sua equipa… Se pensarmos no conceito de missão, percebemos que se trata de algo de que não podemos desistir, com que estamos comprometidos. E, na verdade, sentiu-se sempre comprometi- da… O que mais a caracterizava era ser a cidadã, a patriota.

Era essa mesma cidadã que despia a veste de investigadora ou de professora para ir ao Casal Ventoso falar com consumidores e até com pequenos traficantes para perceber o fenómeno… Em suma, ia ao terreno para diagnosticar um fenómeno e encontrar formas de in- tervenção, o que não é propriamente habitual… APM - Muito menos nalguém que nasceu no início do século passado, em 1925... e mulher… Daí eu dizer que a maior marca que nos deixa é a da cidadania. Felizmente, temos muito bons cientistas e investigadores que marcaram e marcam o país… Mas ela tinha uma característica muito própria: saía do seu laboratório, onde podia perfeitamente estar fechada a dedicar-se à sua investigação, saía da sua faculdade, onde era profes- sora catedrática, saía do gabinete da Comissão de Luta Contra a Sida, onde coordenava esforços no âmbito das políticas públicas, para estar próxima daqueles que eram alvos dessas políticas e, dessa forma, per- ceber muito bem o que fazia falta às pessoas e o que daria mais resulta- do. Há uma grande diferença entre lutar por algo em que se acredita por- que se experienciou e viveu. Quando falava, era a voz de muitas das pessoas que encontrava na rua e com quem colaborava. Algo que me deixa particularmente emocionada é que a Professora Odette Ferreira era profundamente autêntica… Toda a gente sabe que era uma mulher elegante, que gostava de apresentar-se bem, andou bem vestida, pen- teada e pintada até ao fim e nunca deixava de ter essas características quando ia ao Casal Ventoso… Ou seja, para ela, aqueles eram cidadãos em igualdade. Falava com as pessoas, numa lógica, num terreno e numa plataforma de igualdade e, por isso, não precisava de se descaracterizar

16 Foram sem conta as cartas que tantos homens e mulheres, que viveram esse drama do VIH/Sida lhe dedicaram… E nunca foram conhecidas… Porquê? APM - A Professora Odette tinha uma característica que aprendi a co- nhecer e que só aprendi na totalidade depois da sua morte: era uma pessoa profundamente reservada. Apesar de ser muito alegre, bem- -disposta e divertida, não partilhava o que considerava do seu foro ín- timo e do seu universo mais profundo. Essas cartas, essas palavras, essa intimidade, não as punha… talvez também para preservar as pessoas e para garantir que, nunca, em algum momento, alguma coi- sa que pudesse dizer fragilizasse de alguma forma. No combate da Professora Odette, através da ciência, houve uma componente muito importante, a da não descriminação. Usou sempre todos os momen- tos em que falava do vírus, explicando exatamente quais eram os ris- cos e como se podia evitar a infeção, aproveitando para dizer que, se era possível evitar a infeção, então não havia qualquer razão para descriminar.

Vários países se vergaram à “revolução” baseada na ciência e tra- duzida em humanismo, implementada por esta mulher no seu país e exportada para o mundo… Amada e reconhecida lá fora, muito mais do que cá dentro… APM - Ao longo da vida, foi havendo uma evolução relativamente a esse reconhecimento… É verdade que foi primeiro reco- nhecida lá fora, nomeadamente pelos franceses e até por outras áreas profissionais que não a sua… Ex- ceptuaria obviamente as farmácias e as suas representava viver com o VIH e manter situações e comportamentos de organizações, nomeadamente a ANF que, a descriminação é hoje inaceitável. par dos seus alunos, estiveram sempre na primeira linha desse devido reconhecimen- Sabemos que tinha uma relação muito próxima com a Professora to. A verdade é que não temos muito insti- Odette… É capaz de destacar o reconhecimento que mais valori- tuída a cultura do reconhecimento. Esta- zou? mos melhores mas continua a parecer APM - Como é sabido, a Professora Odette recebeu muitos prémios, que é necessário que passem séculos condecorações e homenagens, assim como viveu muitos anos… Houve sobre as pessoas, que estas desapare- uma ação muito importante para ela: p reconhecimento que os alunos da çam para reconhecer não só a falta que Faculdade de Farmácia lhe prestaram, ao proporem em Conselho de Es- nos fazem mas, sobretudo, o legado cola, que o auditório, que ela tanto lutou para se construir, se chamasse que nos deixam. Essa cultura de reco- Maria Odette Santos Ferreira. Foi apenas há dois anos e recordo-me de nhecimento é algo de que todos nós, ter feito uma intervenção, enquanto bastonária, e já nessa altura sentia portugueses, precisamos fazer acon- que seria muito reconfortante passar ali todos os dias e ver o seu nome tecer. Apesar de tudo, creio que a naquela parede. Entre todas as condecorações que recebeu, como a do Professora Odette sempre viveu bem governo francês ou dos presidentes da República de Portugal, houve com isso e nunca senti que fizesse uma que a emocionou particularmente e de que falava várias vezes: as menos por não ter reconhecimento. insígnias que as farmácias lhe deram. Depois de ter isolado o VIH, o pro- E quando o reconhecimento vinha, grama de troca de seringas foi, claramente, um programa com impacto a humildemente agradecia como se ti- nível mundial, projetando na altura o país. Na altura, a ANF, com a orga- vesse sido o momento certo e acre- nização que tinha, com a persistência dela em convencer o Dr. João Cor- ditava que servia, não tanto para a deiro, fez com que o programa acontecesse e, deste modo, contribuiu promover pessoalmente mas para para mudar o padrão epidemiológico e, simultaneamente, diminuir a des- promover aqueles que representa- criminação, dar alguma ajuda e promover a referenciação. va, abrindo um espaço na agenda política, mediática e social para Falamos numa visionária? aqueles que precisavam mais, as APM - Sim, claramente. E como a maioria dos visionários, tinha razão an- populações mais expostas e ex- tes do tempo e fazia algo interessante, ao contrário dessa maioria: sabia cluídas. Nunca a ouvi lamentar ou esperar o momento certo para fazer as coisas acontecerem. Sabia insis- criticar a demora… tir quando era necessário e dar espaço para que percebessem os argu- mentos. Claramente, uma mulher à frente no seu tempo! Projetando o futuro a partir desse combate que fez ao estigma, que Terá sido a mulher que melhor soube interpretar o desígnio social melhor homenagem poderíamos da Ordem dos Farmacêuticos? dedicar à Professora Odette Fer- APM - Sem dúvida! O desígnio social, claramente! Quanto ao desíg- reira? nio científico, felizmente, tivemos também grandes figuras da profis- APM - Continuar… Continuar a lu- são farmacêutica, bem como no desígnio institucional, com grandes tar de uma maneira ainda mais for- figuras que nos honram, ou nos desígnios históricos de transmissão me contra a descriminação. Já se da nossa identidade. Em termos de responsabilidade para com a so- passaram muitos anos, a ciência já ciedade, não tenho qualquer dúvida de que marcou claramente a pro- resolveu uma grande parte do que fissão.

17 Entrevista com Rui Tato Marinho: “A Professora Odette era uma pessoa muito à frente no seu tempo...”

aspetos muito importantes: um deles, relacionado com factos e nú- meros, tem a ver com a conhecida eficácia na redução do número de contaminações, tendo vindo a provar-se que, também no campo da Hepatite C, foi capaz; colateralmente, veio melhorar outras co- morbilidades porque constituiu uma oportunidade para o profissio- nal de saúde, o assistente social e os pares se aproximarem da- quela pessoa, numa abordagem positiva e de futuro. Muitas dessas pessoas tiveram azares contextuais na vida, como o local onde nasceram e cresceram ou as companhias que tiveram e as coisas não correram bem, portanto, precisam de alguém que as trate bem, porque isto não se resolve com polícia nem criminalização. É muito interessante ouvir os colegas dizerem que deixaram de ver gangre- nas, amputações e outras feridas terríveis que víamos porque os próprios utilizadores de drogas estão mais conscientes da preven- ção da saúde. Portanto, resultaram vários aspetos benéficos, até no que concerne à pacificação da sociedade. O programa troca de seringas acaba por contribuir para a redução da criminalidade as- sociada à toxicodependência porque passámos a tratar bem aque- las pessoas, a dar-lhes metadona… começaram a ter menos pro- Se fosse desafiado a eleger um marco na intervenção portuguesa blemas de saúde e a estabilizar-se socialmente. Para mim, é um em VIH/Sida, o que distinguiria? marco que foi mais longe do que poderíamos eventualmente pen- Existem vários mas um seria, certamente, o programa de troca de sar. seringas, impulsionado pela Professora Odete Ferreira, que conhe- ci muito bem… Aliás, fomos muito amigos, foi ao meu doutoramen- to… Era uma pessoa muito humana, o que é muito importante por- Encontro aqui algum paralelismo com o que o Professor Rui Tato que fez com que entendesse o outro lado, o do consumidor de dro- Marinho faz, ao facilitar e democratizar o acesso ao serviço que gas infetado pelo VIH. Apesar de ser uma professora catedrática e representa, no plano clínico… É o que nos ensinam nas bases da medicina, desde o João Semana… de elevado nível científico, para mim um modelo, aproximou-se das todos são iguais, temos que ser empáticos, tratar bem as pessoas… pessoas do terreno, algo que tenho também procurado fazer na mi- Fico muito feliz por ser médico e por poder dedicar-me a esta grande nha vida. Acresce que pensou muito “fora da caixa” e foi capaz de paixão que é a medicina e por conseguir chegar a todos os estratos implementar, no terreno, um modelo que até pode ter chocado mui- da sociedade, desde o homicida ao presidente da república de uma tas pessoas, incluindo profissionais de saúde, porque representava maneira igual, por eles confiarem em nós e por partilharmos as coisas uma mudança de paradigma, mas que se sabe hoje em dia que re- mais íntimas que eles têm… A Professora Odete não era médica mas presenta o estado da arte. E ela terá iniciado isto há 25 anos… Co- teve essa visão humanista numa farmacêutica, numa pessoa de labo- nheci por dentro esse programa porque a Professora Odete e al- ratório… Era uma pessoa muito à frente no seu tempo e são mereci- guns colaboradores, como a Carla Torres, o partilharam por diver- das todas as homenagens e amizades que granjeou durante toda a sas razões… (aliás, ainda tenho em casa os documentos relativos vida. a essa estratégia). Do meu ponto de vista, como médico, tem dois

18 Entrevista com Cristina Sousa, Vice-Presidente da Abraço: “É preciso diagnosticar! É preciso encontrar as pessoas!”

pessoa que entra num hospital com um diagnóstico VIH inicia imediatamente medicação, ao contrário do que sucedia antiga- mente, em que os CD4 tinham que estar a um determinado nível ou ter associadas doenças oportunistas para iniciar terapêutica. Por isso, atualmente, o VIH é uma doença cronica e todas as pes- soas seropositivos que tomam antirretrovirais e que mantêm uma carga viral indetetável não têm qualquer risco de transmissão se- xual do vírus do VIH/Sida para um parceiro sem a infeção Muitas pessoas consideram que não pertencem a grupos vulnerá- veis, (como os utilizadores de drogas injetáveis, homens que têm sexo com homens ou trabalhadores do sexo.) logo acham que não são suscetíveis à contração da infeção pelo VIH. Esta baixa perceção conduz a uma pior adesão ao rastreio e a relações se- xuais desprotegidas.

Concluo que existe um desleixo público e político porque o problema do VIH/sida não está resolvido… Não diria que há um desleixo político porque Portugal teve que in- Elegendo como ponto de partida os passos mais precoces da- vestir em várias frentes, do diagnóstico ao tratamento… Continua- dos no âmbito das respostas de saúde e sociais para o fenó- mos a evoluir para controlarmos a doença nas franjas populacio- meno do VIH/sida, que futuro prevê para a intervenção nesta nais mais afetadas mas, provavelmente, nos próximos cinco anos, área? Começámos pelos consumidores de drogas, população que tinha perceberemos que continuará a existir uma parte da população à obviamente que ser intervencionada, para termos atualmente um qual ainda não conseguimos chegar… E, se calhar, concentrare- quadro de utentes cuja maioria teve uma infeção VIH por transmis- mo-nos nessa população… Para já, estamos a tentar controlar a in- são sexual. Em termos de diagnósticos, chegam-nos cada vez mais feção VIH na população que continua a chegar com doença e que casos relacionados com a homossexualidade, embora não se tra- conscientemente assume não usar preservativo. tem de diagnósticos tardios, o que nos leva a crer que essa prová- vel população heterossexual continua por diagnosticar. Mas, em Em que medida teremos passado de uma era em que um diag- termos de transformação, estamos a passar de uma população nóstico positivo constituía uma espécie de sentença de morte consumidora de drogas injetáveis que ficou envelhecida e que con- até um contexto de conquista, em que a esperança e a resolu- tinuamos a acompanhar, até enquanto agregado familiar, que per- ção de um problema são realidades efetivas? deu o trabalho, vive de pensões de invalidez e com dificuldades Sim, hoje a pessoa vive normalmente, toma uma medicação que económicas que, certamente, permanecerão ao longo da vida, para implica muito menos tomas diárias e acarreta muito menos efeitos novos utentes, nomeadamente homens que têm sexo com homens. secundários… Por isso, tornou-se numa doença crónica, muito me- nos visível e cuja transmissão também acaba por ficar controlada Diagnosticar quem, como, com que meios… como se faz atual- se a pessoa se mantiver em tratamento. mente o diagnóstico? Todas as pessoas deveriam fazer o teste, obrigatoriamente, no Será legítimo afirmar que uma revolução farmacológica resol- centro de saúde, em associações como a nossa ou na rede de veu grande parte dos problemas? ET… É essencial que as pessoas não vivam com o estigma da Sim, acima de tudo isso e outras formas de perspetivarmos popula- doença e beneficiem da informação , sem medo. Até porque ções que apresentam comportamentos de risco. Percebemos que, quanto mais tarde souberem, pior… Nós estamos a realizar diag- nósticos em segmentos crescentes, como os homens que têm sexo com homens, emigrantes ou trabalhadores do sexo, grupos que sa- bemos que têm maior predisposição para comportamentos de ris- co. Mas também sabemos que Portugal apresenta uma elevada taxa de diagnósticos tardios, provavelmente no seio da população em geral e inevitavelmente vai ter que existir um investimento que nos permita chegar a este público alvo.

Quer dizer que o VIH/Sida ainda deve constituir uma grande preocupação de todos os portugueses? Sim, desde logo porque devemos ter medo de quem não sabe que é infetado, até porque a infeção VIH passou a estar controlada. A

20 para além do preservativo, existem outras formas em que temos Em suma, não conseguimos “controlar” o momento em que a pes- que investir para prevenirmos, nomeadamente através da PREP… soa deve usar o preservativo e, por isso, não basta apenas distri- bui-lo. Temos que conseguir alterar a forma como a pessoa vê o Sendo a Abraço uma instituição pioneira no que respeita à in- preservativo e o ato sexual relativamente à sua proteção… tervenção neste fenómeno, que respostas oferece atualmente a estas populações? E de que forma visam esse objetivo? A nível nacional, temos vários projetos em desenvolvimento dando Acima de tudo, procuramos investir na sensibilização da pessoa respostas em termos de apoio psicossocial, apoio domiciliário, ga- para usar o preservativo. Se percebemos que, num momento, não binete dentário, centros de rastreio entre outros e em funcionamen- usaram, tentamos incentivar a realização do teste, sem receio e to em Lisboa, Porto e Funchal . No Porto temos em funcionamento sem medo, o quanto antes. Se a pessoa revela um resultado nega- com financiamento pela DGS, a valência de apoio psicossocial, tivo durante o rastreio, procuramos sensibilizar para que não corra uma resposta direccionada à população autónoma infetada com novamente o risco. Quando percebemos que uma pessoa vai, con- VIH mas que, por norma, apresenta carências económicas e bene- secutivamente, correr riscos, porque não quer usar preservativo, ficia ainda de acompanhamento social ou carece de acompanha- avançamos com a PREP, uma profilaxia que deve ser encarada mento psicológico. Associada a estas valências da psicologia e muito positivamente, desde logo porque estamos a controlar o VIH serviço social, temos a nutrição. Temos a valência de apoio domici- e a rastrear utentes para outras doenças, promovendo um segui- liário, destinada àqueles que apresentam dependência a nível das mento clínico, tratando outras DST. Por outro lado, no âmbito da AVD´S (atividades de vida diária), não tiveram ou apresentam difi- PREP, também se trabalha a mudança comportamental… E muitos culdade em ter uma boa adesão terapêutica. optam por usar preservativo em vez de tomarem comprimidos… E Temos ainda uma unidade residencial com capacidade para 8 pessoas que apresentem um dependência elevada ao nível das AV- É uma espécie de vacina, esta PREP? D´S para qual a resposta de apoio domiciliário não é suficiente e Vemo-lo mais como um método preventivo, semelhante ao preser- que carecem de acompanhamento 24/h dia. vativo…

Na génese do fenómeno, havia uma população de toxicodepen- Como descreve a realidade dos filhos de pessoas que vivem dentes que injectavam drogas e pareciam estar fora de qual- com VIH/sida? quer apoio… Felizmente, existem muito poucas crianças infetadas com VIH em Nuca estiveram fora… A evolução da infeção VIH é que se verifica, Portugal, também pelo controlo pré-natal em que se investiu… Mais cada vez mais, por relações sexuais e, inevitavelmente, a popula- uma vez, temos uma população diferente, com mais adolescentes a ção consumidora de drogas acaba por ter uma resposta a nível psi- partir dos 14 anos, mais uma vez no grupo de homens que têm sexo cológico e social nas ET porque, se calhar, não precisa tanto de com homens, que não é rastreado e que carece de ser rastreado por- procurar apoio sobre a sua doença VIH. Isto porque acaba por ter que estão cada vez mais casos a chegar com diagnóstico de seropo- respostas de outras estruturas face à sua toxicodependência… sitividade… Falamos das “novas crianças”, pessoas muito novas que Mas nós sempre demos resposta à toxicodependência… Os mol- vão passar a viver com a doença, realidade que estamos atualmente des do VIH é que se foram alterando e a própria população que nos a conhecer. Há dez anos, tínhamos crianças que nasciam infetadas tem chegado tem sofrido essas alterações. com a doença e que, hoje, estão estáveis. Não sei que contorno assu- mirá esta nova “chegada” de adolescentes… Durante os anos 80 e 90, a emergência do fenómeno VIH/sida estava maioritariamente relacionada com o uso de drogas por Em que medida constitui o advento do turismo uma preocupa- via injectada… Passados estes anos, o sucesso evidenciado ção para a Abraço? pelas políticas portuguesas sobre drogas e pelos projetos no É preocupante porque aumenta a transmissão VIH e outras IST… âmbito da redução de riscos é inegável mas, a contrastar, te- O turismo representa aventuras, o surgimento e propagação de no- mos a população homossexual a revelar altas prevalências… O vas doenças e surtos… que falhou? Toda a gente sabe que tivemos um sucesso extraordinário em rela- O que será então necessário mudar, na perspetiva da Abraço, ção às drogas… Não tivemos o mesmo sucesso quanto às relações para termos uma vida mais feliz, com mais saúde e menos VIH/ sexuais… Mas estamos a falar de coisas diferentes. Enquanto con- sida? seguimos dar mecanismos e meios preventivos à pessoa consumi- É preciso diagnosticar! É preciso encontrar as pessoas. Acredito dora de drogas injetaveis em termos de saúde publica, como possi- que conseguiremos, em pouco tempo, chegar aos 95, 95, 95. Pela bilitar que o consumo não tivesse que ser feito com uma seringa de forma como Portugal tem evoluído relativamente à infeção VIH, outro, para a intervenção sobre as relações sexuais, não basta dis- basta que todos continuemos a investir… Mas temos que perceber tribuirmos o preservativo porque não conseguimos passar a men- onde está esta população que continua a transmitir e onde não es- sagem de que a pessoa o deve usar num momento de emoção… tamos a conseguir chegar…

21 Luís Mendão, João Santa Maria e Adriana Curado - GAT - Grupo de Ativistas em Tratamentos: VIH e pessoas que injetam drogas: passado, presente e futuro

Em 1993, e já um pouco tarde, foi instalado o Programa Troca de Seringas. Sabemos também que por influência da comunidade e do Presidente Jorge Sampaio em 1995 se começou a pôr na agenda a necessidade imperiosa de se encontrarem soluções para o proble- ma das drogas em Portugal, e que tivemos medidas muito positivas e de que muito nos orgulhamos até 2001. No entanto, a política de drogas portuguesa não pode ser intocá- vel. Se reconhecemos tudo o que de inovador foi feito até início do Séc. XXI, não podemos deixar de referir que houve uma série de medidas que iam no mesmo sentido - do melhor conhecimento e dos direitos humanos - que ou não foram tomadas ou levaram de- masiado tempo, como vemos agora, por exemplo, com a aprovação da primeira estrutura de consumo seguro na cidade de Lisboa, que tem um atraso de 20 anos em relação ao tempo histórico. Existe um caminho ainda por fazer relativamente a outras medidas que consideramos fundamentais para cumprir o modelo português: dis- Relembrando o que não pode ser esquecido: das 57 mil pessoas re- ponibilização de naloxona em meio comunitário, introdução de ou- gistadas desde o início da epidemia com diagnóstico de VIH, o grupo tras terapêuticas de substituição e revisão da sua comparticipação, desproporcionalmente mais afetado continua a ser o das pessoas que regulação da canábis para uso adulto, não esquecendo que é im- injetam drogas. E por isso é com cuidado e rigor que devemos olhar perioso reconhecer-se o papel profissional dos pares nas equipas para os números do presente. Se a transmissão atingiu níveis resi- que trabalham na área das drogas. duais em pessoas que injetam drogas, não podemos escamotear a Se a descriminalização e o alargamento do acesso aos tratamentos elevada percentagem de diagnósticos tardios e a desproporção com de substituição opiácea e outras medidas foram extraordinariamen- que a mortalidade se verifica neste grupo. Estamos convencidos que te importantes, não podemos deixar de dizer que a discriminação, a há muitíssima coisa por fazer, e desde logo a necessidade de termos marginalização e até mesmo a criminalização das pessoas que melhores dados – desagregados por grupos-chave de transmissão – usam drogas continuam em níveis muito elevados. É preciso por que nos permitam verificar se estamos a progredir, a que velocidade, exemplo dar atenção aos fenómenos de violência policial e à res- e quais as lacunas a que temos de responder. posta do sistema judicial. Na lei que descriminalizou a posse e uso

22 de substâncias, a regulamentação da quantidade para 10 dias é muito restritiva, fazendo com que algumas pessoas que são consu- midoras sejam criminalizadas, quando o espírito da lei era exata- mente o contrário. Este enquadramento legal tem um impacto na saúde, no acesso aos tratamentos, e na vida das pessoas que usam drogas, e por isso quando se juntam problemas legais, de discriminação, de es- tigma e de perseguição, estamos na prática a retirar condições às pessoas para se ocuparem da sua própria saúde. A saúde passa assim a ser perfeitamente secundária em relação aos problemas do dia-a-dia. Por outro lado, há uma parte das pessoas que usam drogas que continua a ser encaminhada para o sistema criminal, e também aí, nas prisões, constatamos que o acesso à saúde não é feito nas mesmas condições que na comunidade. Estamos convictos que há uma vontade séria da tutela em resolver os problemas de acesso aos cuidados e tratamentos de VIH e hepatites virais dentro do sistema prisional. Concordamos que deve ser o SNS a ir às prisões, porque a logística de levar de forma regular e atempa- Também cá fora é preciso fazer mudanças no mesmo sentido. Aproxi- da todos aqueles que têm problemas sérios de saúde aos cuidados no mar os cuidados de saúde dos sítios onde as pessoas já estão. Em exterior é impraticável. É também muito importante que os números Portugal, o tratamento para o VIH e hepatites virais está sob monopó- sejam conhecidos, e que se trabalhe no sentido de diminuir a opacida- lio dos hospitais e dos seus especialistas. No entanto, ao longo destes de, e que tenhamos dados fiáveis sobre rastreios, diagnósticos, entra- 30 anos, temos verificado que para alguns grupos, e em particular da em tratamentos, e caraterização da transmissão dentro das pri- para as pessoas que injetam drogas, a maioria dos hospitais são sí- sões. Só assim poderemos também, de forma adequada, planear e tios pouco amigáveis. O número de pessoas que abandona o segui- implementar medidas de prevenção dentro das prisões, de modo a mento hospitalar ou que recusa lá ir é significativo, e, portanto, tere- que não sejam dissuasoras da sua utilização. Lembramos que em mos de encontrar soluções que aproximem os cuidados e tratamentos 2007 quando foi feito o programa de troca de seringas experimental, da comunidade, garantindo sempre a máxima qualidade para todos. E as condições eram tais que ninguém acedeu às seringas dentro das só assim pensamos ser possível fazer com que utentes, profissionais prisões que integravam o programa. de saúde e pares estejam envolvidos no trabalho de adesão, retenção Em termos de desafios futuros, a área das prisões é claramente e literacia sobre a saúde, permitindo às pessoas acederem aos cuida- prioritária. A incidência e prevalência de VIH, hepatites, tuberculo- dos e tratamentos nas suas condições reais de vida. Ao mesmo tempo se e de outros problemas de saúde não tem comparação com aqui- que devemos continuar a trabalhar para que nos hospitais a discrimi- lo que se verifica na população geral. A prisão deve ser encarada nação seja reduzida. O contacto dos profissionais de saúde com a co- como uma oportunidade de acesso ao SNS, de iniciação de cuida- munidade e as suas associações tem também contribuído para a mu- dos, de continuação de cuidados, garantindo depois também a dança da perceção sobre as pessoas que usam drogas, sobre os ho- transição da prisão para o mundo exterior em continuidade. Do mossexuais, sobre a diáspora africana em Portugal, sobre as pessoas ponto de vista epidemiológico e dos direitos humanos, as prisões que fazem trabalho sexual, sobre as mulheres trans, etc. Portanto a são uma espécie de pedra de toque da qualidade das nossas polí- educação e formação dos profissionais de saúde para um contacto ticas de saúde. Devemos dizer, para que não fique esquecido, que adequado com estas populações é essencial. E é essencial fazê-lo no as prisões não são exclusivamente os presos. O pessoal que traba- hospital, mas é também essencial trazer os seus profissionais para a lha nas prisões é por si só um pessoal com necessidades de saúde comunidade, para em contacto com as melhores práticas, podermos e prevenção sérias. fazer esta mudança de paradigma. Ninguém mais pode ficar trás.

23 CRESCER – Associação de Intervenção Comunitária: “20 anos depois, a avaliação é positiva”

acesso a material assético, a existência de memórias e narrativas de anos de consumo sem qualquer controlo, tornava a infeção uma espécie de fatura lógica. Olhando transversalmente para o número de pessoas infetadas com o VIH ao longo dos últimos 20 anos, e fazendo o paralelismo com as respostas de RRMD que foram implementadas, há uma relação positiva óbvia no decrés- cimo da prevalência da doença. A implementação e desenvolvimento das respostas sócio sanitárias de proximidade descritas no decreto lei 183/2001, vieram introduzir uma nova lógica na relação com a pessoa consumidora e a sua problemática. Falando da realidade de Lisboa, a implementação de equipas de rua, o aumento da capacidade de resposta do programa de troca de seringas, o alargamento dos programas de substituição em baixo limiar de exigência e a existência de centros de acolhimento e abrigo permitiu a criação de uma rede de cuidados mais preparada para travar as trajetórias de destruição da população consumidora. Os técnicos passaram a estar mais perto das pessoas e perto de mais pes- soas, muitas vezes no local onde o consumo ocorria. Esta nova relação de Iniciei o meu trabalho na Redução de Riscos e Minimização de Danos em proximidade, que implicou também a recolocação dos técnicos perante o 1998, numa das primeiras equipas em Lisboa a trabalhar sob esta filosofia. problema da adição, foi promovendo a construção de percursos alternativos Nessa altura, o número de pessoas infetadas pelo VIH entre os consumi- e novos estares, mais dignos, na situação ativa de consumo. Pragmatica- dores de substâncias psicoativas rondava os 60% e 80% tinham sido mente, foi potenciado o acesso a material asséptico e o encaminhamento diagnosticadas com o vírus da Hepatite C. Saber que se estava infetado para todas as estruturas que pudessem dar resposta às necessidades da pelo HIV era como receber uma sentença de morte. A forma como as pessoa, potenciando também o acesso ao tratamento. Esta intervenção em pessoas recebiam a notícia, mas também a forma como essa era trans- rede elevou a pessoa a novos cuidados consigo próprio com consequências mitida pelos profissionais de saúde, era dramática e a primeira pergunta positivas múltiplas. Especificamente em relação ao VIH e outras doenças in- era sempre sobre quanto tempo de vida lhes restava. Pouco tempo de- feciosas, estas intervenções, para além de permitirem conhecer melhor a pois, começou a saber-se que os fármacos podiam controlar a doença e realidade, tiveram uma dupla função, absolutamente determinante para a esta poderia começar a ser considerada uma doença crónica. evolução positiva da prevalência do VIH junto da população consumidora. Pensar no VIH, traz-me à memória algumas pessoas que acompanhei e Em primeiro lugar, a proximidade e o maior acesso aos programas permiti- que percorreram um caminho dramático. Lembro-me especialmente de ram que a população passasse a estar menos exposta ao risco de infeção, o um rapaz com cerca de vinte anos e um corpo esquelético que parecia consumo ganhou maior segurança e dignidade. Em segundo lugar, foi pos- estar prestes a ceder a qualquer momento. Tinha a pele da cara e dos lá- sível alargar o rastreio, encaminhar mais para consulta de especialidade, co- bios sempre seca, uma enorme deterioração física e psíquica, mas, ao locar mais pessoas em tratamento do VIH. Não quero deixar de sublinhar mesmo tempo, havia um lado de esperança, de alegria e de humor que neste momento a importância da perseverança dos técnicos na relação sempre tinha tido antes da doença o apanhar. Lembro-me de ser habitual com a pessoa, quer os que trabalhavam nos programas de proximidade, haver no Casal Ventoso, à altura conhecido como um dos maiores super- quer os que trabalhavam nas consultas de infeciologia. mercados de droga da Europa, um alguidar com meia dúzia de seringas 20 anos depois, a avaliação é positiva. O número de novos casos de infeção dentro de água que eram partilhadas, de forma natural, por centenas de junto dos consumidores de drogas injetáveis tem vindo sempre a decrescer, pessoas. Só um pequeno grupo da população de consumidores tinha a adesão ao tratamento é cada vez maior. No entanto, o desinvestimento ge- acesso a material de consumo novo, portanto os hábitos/rituais de parti- neralizado ocorrido nos últimos anos é uma variável que colocou em risco a lha eram comuns e generalizados, tendo promovido a enorme percenta- proximidade e a capacidade de resposta das estruturas de apoio. É incom- gem de pessoas infetadas que registámos ao longo de mais de duas dé- preensível que, nos dias de hoje, por falta de meios, não sejam realizados cadas. A falta de investimento de projetos de RRMD era gritante e os resul- rastreios por todas as equipas de proximidade, como são exemplo as equipas tados dramáticos dessa falta de investimento começavam a aparecer. de rua que, sendo uma resposta de primeira linha da intervenção, ainda contac- As pessoas que tinham acompanhamento médico tomavam imensos retro- tam pessoas que não estão integradas noutras estruturas. Se esta tendência virais, medicação que em muitos casos se tornava agressiva, provocando não se inverter, as trajetórias de exclusão tendem a aumentar com consequên- indisposição e mau estar geral, principalmente na fase inicial do tratamento, cias imprevisíveis a todos os níveis da problemática da adição. potenciando a não adesão ao tratamento. Dentro dos efeitos secundários Os últimos indicadores revelam que o grupo populacional com maior incidência mais indesejados, era comum a expressão adelgada, as maçãs do rosto de novos casos de infeção são os homens que fazem sexo com homens. É sa- “comidas”, algo que funcionava como uma espécie de identificação da pes- bida a existência das “chemsex”, atividade sexual em grupo acompanhada do soa infetada e que potenciava ainda mais o estigma perante os outros e a consumo de substâncias psicoativas que reduzem a inibição e aumentam a eu- sociedade. foria, diminuindo a perceção do risco. Havia entre os consumidores infetados um misto de medo, raiva e resigna- Se é fundamental manter o dispositivo existente e reforçá-lo na cobertura de ção. O desconhecimento, a falta de estruturas de proximidade dimensiona- proximidade é também crucial modernizá-lo para o acesso a novos grupos e das ao problema existente, o paradigma vigente da abstinência, a ausência novas tendências, algo que temo que não esteja a acontecer. de respostas que aceitassem a pessoa no seu atual momento de vida, o não

24 Associação Positivo: A persistência da luta contra o estigma das pessoas que vivem com VIH/SIDA (PVVS)

aparecimento de novos medicamentos que têm tido cada vez mais aceitação e reflectem as reocupações das PVVS: menos comorbilida- des e menos efeitos secundários. Hoje em dia assiste-se a tomas de um ou dois comprimidos diários e contraposição com os inicialmente usados, pois a coformulação dos mesmos levou à melhoria e condensação dos produtos activos, que inicialmente eram tomados várias vezes ao dia e em tamanhos gran- des, para deglutição e necessitarem por vezes de estarem guardados em locais refrigerados, tomados com refeição ou em jejum. Em 1993 aparece um programa dirigido às pessoas que são usuários de drogas: O Programa Nacional Troca de Seringas. É de salientar que a grande maioria dessas pessoas viviam em situa- ções degradantes, física e psicologicamente e se encontravam, con- centradas no Casal Ventoso, na Quinta da Curraleira e outros peque- nos sítios espalhados pela zona de Lisboa e pelo resto do País. Este programa, inicia-se com a ida de grupos de pessoas (equipas de rua) junto das comunidades de usuários de droga (UD), estabelecen- do contactos para a troca de seringa, desinfecções de algumas feri- Desde os primeiros casos, tornados públicos, de pessoas com VIH ou das superficiais e indiciação de vários casos, mais graves, para meio SIDA (como se definia na altura), até aos dias de hoje, um caminho de 30 hospitalar. anos, em Portugal, nos separa. O sucesso com estas equipas nas trocas de seringas e consequente Quando no início as pessoas começaram a ter apoio foi em meio hospi- diminuição de novos casos de infecção pelo VIH, conduz a uma par- talar com todas as dificuldades inerentes a uma nova infecção, que se ceria entre o programa de Luta contra a Droga e Toxicodependências, tornou uma pandemia mundial. Em Portugal, pouco se sabia da doença e Comissão Nacional de Luta Contra a Sida e a Associação Nacional de começaram a aparecer as primeiras organizações não governamentais, Farmácias, permitindo que as farmácias possam participar neste Pro- para apoio e informação nesta nova doença e seus portadores. grama Nacional de Troca de Seringas, através da recolha e forneci- As reuniões de grupo, eram na sua essência, inicialmente, aprender o mento de seringas novas, a quem a elas se dirigem a solicitar. que estava a acontecer no nosso corpo, como lidar com a situação, Nos contactos com esta população o conhecimento das suas necessi- aprender a aceitar a doença e aprender a aceitar que, devido há falta de dades e outras infecções associadas ao consumo de droga, por via medicação eficaz a morte era uma certeza. Aceitar a morte sem rancor, endovenosa, levou a aumento de apoios básicos dos materiais usa- para com os que nos rodeiam era essencial para se ter uma tranquilida- dos para consumo, bem como de tratamentos e internamentos para de, para aceitar o desconhecido (a morte). PVVS consumidores de drogas que também se encontravam infecta- Quando do aparecimento dos primeiros antiretrovirais, criou-se uma es- dos pelo Vírus da hepatite C e com tuberculose. perança. Muitos foram os que, apesar de tudo, não conseguiram sobrevi- Estas medidas de tratamento com base numa pandemia entre uma ver, já que os medicamentos não faziam o efeito desejado de parar a população específica, conduziu a uma diminuição das várias infec- multiplicação do VIH, no corpo. ções. Nos finais de 1996, aparecem os novos antiretrovirais com diferentes ac- O estigma que, desde o início, se sentiu para com as PVVS e UD, foi ções sobre o vírus e na sua entrada nas células do hospedeiro, uso da esbatendo ao longo dos anos, mas continua a ser patente e presente, proteína celular, combinação do RNA do vírus com o DNA das nossas cé- no dia a dia destas pessoas, razão pela qual poucos são os que tor- lulas e um teste que vem revolucionar a percepção do avanço do VIH, no nam a sua situação de portadores de VIH e/ou VHC, pública e apare- corpo – teste de carga viral, ou seja teste que permite saber qual a quan- cem de cara descoberta. tidade de cópias do VIH, existem dentro das pessoas. Muito mudou, mas muito há ainda para mudar, já que o preconceito Cria-se um novo paradigma, na avaliação da qualidade de vida das está associado a conceitos de cariz moral e comportamentos sociais PVVS, que é a relação entre o valor da carga viral e o número de CD4 que são muitas vezes contrários “aos padrões socialmente bem acei- (células mais apetecidas pelo VIH, para entrarem e usarem para se repli- tes”. car). Hoje com a melhoria dos tratamentos com os antiretrovirais, a quali- A adesão terapêutica (toma diária dos antiretrovirais, sem falhas) é mais dade de vida das PVVS é similar ao da população em geral, senão que divulgada e apelada para que haja uma eficácia no tratamento com melhor, já que são mais controlados com exames clínicos a cada seis estes novos fármacos. Aparecem as primeiras comorbilidades, ou seja, meses e pelos médicos. as primeiras alterações no corpo humano provocado pelos efeitos secun- A qualidade de vida das PVVs e UD melhorou substancialmente des- dários da terapêutica e do próprio VIH: perda de gordura em algumas de a implementação dos dois programas: programa de Troca de serin- partes do corpo (face, braços, pernas e nádegas) e aumento em outros gas e Programa Nacional para o VIH, já que deu acesso às diferentes locais como nas costas, zona púbica, aumento mamário em mulheres e necessidades de cada um dos denominados, grupos-alvo. homens, volume na parte superior das costas, junto à base da cabeça, A aceitação social melhorou, mas ainda existem muitas lacunas de denominado como “bossa de búfalo”. cariz social, que urge implementar nos apoios a estas pessoas, com A pressão exercida sobre as farmacêuticas para melhorarem as tera- mais necessidades, por vezes básicas. pêuticas, com menos efeitos secundários e comorbilidades, levou ao

25 Cristina Mora, Vice-Presidente da AJPAS: “Há algo que ainda não sofreu uma mudança significativa/suficiente, o estigma e a discriminação”

económica e iliteracia em saúde, são os principais fatores que mantêm estas pessoas mais vulneráveis e resistentes à adesão ao tratamento e retenção nos serviços de saúde. Se por um lado as melhorias decorrentes dos avanços da medicina e da efi- cácia dos medicamentos, levou a uma diminuição significativa de pessoas com elevados níveis de dependência funcional, por outro, a alteração do perfil das pessoas infetadas pelo VIH e também, por Hepatite C, residentes na área geográfica onde atuamos, Amadora e Sintra, exigem uma particular atenção nas questões relacionadas com a adesão ao(s) tratamento(s). A AJPAS tem procurado adequar as suas respostas às alterações e necessi- dades que ao longo dos anos se têm verificado. Se há 20 anos a resposta se centrava quase exclusivamente no apoio domiciliário e psicossocial dirigido a pessoas com dependência funcional, muitas delas totalmente dependen- tes, hoje as respostas foram alargadas e alinhadas com os programas na- cionais. Temos em funcionamento, para além do serviço de apoio domiciliá- rio, programas de apoio à deteção precoce das Hepatites Virais, VIH e Sífilis, de apoio à adesão ao tratamento VIH e Hepatites Virais, de sensibilização para a necessidade de conhecimento do estatuto serológico, de prevenção primária, dirigidas particularmente a grupos de maior vulnerabilidade. Pro- Nos seus 25 anos de existência, a AJPAS1, no seu trabalho com pessoas movemos ainda ações de informação e sensibilização dirigidas a profissio- que vivem com VIH e SIDA, foi assistindo a uma significativa mudança no nais de outras instituições, e estamos fortemente empenhados na colabora- perfil dos doentes. Pese embora não tenhamos tido uma intervenção direta ção com as Câmaras Municipais da Amadora e de Sintra, na definição e im- nas dependências de drogas, sempre trabalhámos em estreita articulação plementação de uma estratégia local, que conjuntamente com o Hospital com as Equipas de Tratamento de Amadora e de Sintra. Em todas as nos- Fernando Fonseca, Equipas de Tratamento, ACES e outras entidades, se sas valências e em particular no Apoio Domiciliário, foram inúmeros os ca- coloquem estes dois municípios na “Via Rápida para acabar com a Epidemia sos de jovens a quem prestámos cuidados no domicílio. Jovens que regres- VIH (e VHC)“. savam ao seio familiar, após um longo percurso de consumos. Regressa- PORÉM, há algo que ainda não sofreu uma mudança significativa/suficien- vam doentes, num estadio SIDA. Em muitos casos, a intervenção da AJPAS te, o ESTIGMA e a DISCRIMINAÇÂO. E no caso das pessoas utilizadoras terminou com o apoio no luto da família. de drogas e portadoras de VIH, o duplo estigma, a dupla discriminação!Mas Nos últimos anos, a AJPAS tem testemunhado o forte impacto do Programa neste caso, pensamos tratar-se de um caminho bem mais difícil e persisten- Troca de Seringas. Se por um lado, o número de utentes dependentes de te no tempo, pois dele não dependem respostas administrativas, criação drogas reduziu, por outro, os que integramos nos nossos projetos e serviços, deste ou daquele serviço, mas sim de uma cultura nacional que passe pela para além de não tão jovens, não apresentam uma fase tão avançada da in- efetiva assunção dos direitos de cidadania, da igualdade de oportunida- feção pelo VIH. As necessidades e expectativas destas pessoas são hoje des… bastante distintas de há 20 anos. As questões relacionadas com carência E este é um caminho que exige MAIS DE TODOS NÓS.

26 Isabel Nunes Associação Seres: A vulnerabilidade das mulheres que vivem com VIH

de risco assim como a uma maior suscetibilidade à violência sexual e/ou à coerção a uma prática de sexo não seguro. Na mulher seropositiva a vivência com o VIH, descrita nas 35 biografias que compõem o nosso livro ‘Poderia ser eu’ (Chiado Editora, 2011), reve- la que esta é condicionada pela gestão de conflitos internos: medo do abandono pelos parceiros, o medo da revelação não desejada, o receio dos efeitos secundários, o medo da discriminação, estigma e da violên- cia, o medo de infetar as/os filhas/os e parceiros e a necessidade de se- gurança, de apoio, de intimidade, amor e eventualmente filhas/os. Às vul- nerabilidades específicas da mulher soma o carácter de doença crónica que condiciona a sua qualidade de vida. Este livro faz referência a relatos de vidas, de Mulheres que poderiam ser a sua mãe, a sua irmã, a sua vi- zinha, a sua namorada, a sua parceira, a sua colega. Mulheres exata- A epidemia do vírus da imunodeficiência humana (VIH) exacerba as per- mente iguais a qualquer outra, exceto que estão a viver com VIH. Um ví- sistentes desigualdades de género e as violações de direitos humanos rus que não escolhe sexo, orientação sexual, religião, estatuto social ou presentes em todas as sociedades. Estas injustiças continuam a colocar económico… as mulheres e as jovens em grande risco, tanto em termos de transmis- Há quase vinte anos (desde 2005), que a Seres (con) viver com o VIH são do VIH como de acesso ao tratamento e cuidados. Acrescenta-se tem liderado a resposta ao VIH na perspetiva da mulher em Portugal no que as mulheres e as jovens deparam-se com fatores interrelacionados e sentido de capacitar as mulheres que vivem com VIH, a nível nacional difíceis de resolver de natureza biológica, sociocultural, económica, legal (Porto, Matosinhos, Fundão, Coimbra, Lisboa, Algarve), dando-lhes fer- e política que aumentam a sua vulnerabilidade em relação à saúde e ramentas, tornando-as mais fortes para intervirem na comunidade onde bem-estar. se inserem nomeadamente na replicação do programa SHE (financiado Por outro lado, o início da década de 80, a pandemia pelo Vírus da Imunode- pela BMS, Gilead e ViiV), na criação de grupos de autoajuda, na presta- ficiência Humana (VIH) era associada a grupos de risco. Apesar da epidemia ção de apoio individualizado na consulta hospitalar; de promover a sua rapidamente alastrar afetando todas as pessoas independentemente do visibilidade através da publicação de um livro sobre biografias de mulhe- sexo, escolaridade, estatuto socioeconómico, religião,… subsistiu a ideia de res que vivem com o VIH, da nossa campanha #Poderiasereu com mais ‘grupos de risco’ ao invés de contextos e comportamentos de risco, com im- de 100.000 pessoas alcançadas (financiado pela Gilead), da campanha plicações na perceção individual de risco e subsequente tomada de medidas #MaisInformaçãoMenosPreconceito (apoiada pela SECI e com mais de protetivas nomeadamente entre as mulheres e jovens mulheres. 75.000 pessoas alcançadas), da celebração do 1 de dezembro 2015 com Em Portugal apesar da tendência decrescente dos novos casos de infeção campanha de prevenção mobilizado pelas nossas associadas; de pro- por VIH, em 2016 as mulheres representam 28.5% dos novos diagnósticos, mover os seus direitos com apresentação de declaração sobre o VIH e a o modo de transmissão predominante é sexual (93.5%), e na categoria hete- Mulher aos grupos parlamentares, da Revisão Periódica Universal apre- rossexual 47% são mulheres. Portugal continua a apresentar uma das taxas sentado nas Nações Unidas, na participação no maior questionário sobre mais elevadas de novos diagnósticos de VIH na União Europeia. VIH e a mulher (que envolveu 94 países e 945 mulheres com VIH), entre A estatística revela vulnerabilidades específicas da mulher - as diferenças muitos outras…. biológicas entre mulheres e homens são óbvias, mas a par destas existem A Seres (con) viver com o VIH conta com a força e energia das suas mem- as diferenças sociais, de atitudes e comportamentos. As desigualdades, as bras para desenvolver um trabalho pioneiro em Portugal de ativismo, forma- perceções individuais e sociais que geram comportamentos ligados a con- ção/capacitação, de prevenção e intervenção social no sentido de dar voz e ceitos do que é próprio do feminino e do masculino. visibilidade às mulheres que vivem com o VIH assim como quebrar o silên- Nos fatores biológicos de salientar que as mulheres são duas a cinco vezes cio, romper com o autoestigma e com as barreiras que impedem as mulhe- mais vulneráveis à infeção ao VIH, numa relação desprotegida, do que os res que vivem com o VIH de viverem plenamente. homens. A extensão da superfície exposta e o tempo de exposição é maior: A SERES (com) viver com o VIH é a primeira e única associação de e para a mucosa vaginal é uma superfície bastante alargada (com mais riscos de mulheres infetadas e afetadas pelo VIH em Portugal, fundada em 2005 a microlesões e onde o esperma pode permanecer mais tempo); o esperma Seres encontra-se reconhecida como Instituição Particular de Solidariedade contém dez vezes mais vírus do que as secreções vaginais; os riscos são Social (nº 2/2007). A SERES acredita que a capacitação e empoderamento aumentados em situação de infeção genital assim como no ciclo de vida da da mulher é essencial para reduzir as suas vulnerabilidades, garantindo a mulher (durante a menstruação, gravidez, adolescência e menopausa). sua dignidade e o respeito pelos direitos humanos assim como saúde se- As normas de género, no contexto da epidemia do VIH, influenciam os com- xual. portamentos de risco, a expressão da sexualidade, a vulnerabilidade à infe- ção ao VIH e o seu impacto, a incorporação da informação preventiva em comportamentos protetores e mesmo na sua relação com o VIH - no trata- mento e apoio social. Aos aspetos culturais associam-se os fatores socioeconómicos que revelam um risco mais elevado de pobreza na mulher e uma maior dependência eco- nómica. O desequilíbrio de poder nas relações, a reduzida autoestima e o subsequente diminuto poder de negociação conduzem a condutas sexuais

27 Maria Eugénia Saraiva – Liga Portuguesa Contra a Sida: 29 anos a pensar nas pessoas

dade de esperança de vida das pessoas que vivem com o VIH, quer a adesão terapêutica, constituem aspectos fundamentais. Assim, estamos perante uma nova era e um novo paradigma na abordagem do VIH e SIDA, existindo desafios, orientações de forma a cumprir as metas defini- das pela UNAIDS, nomeadamente através da estratégia de 2011-2015 “ Zero novas Infecções, Zero Discriminação e Zero novas mortes pelo VIH/SIDA “. Decorrente desta estratégia, a Declaração de Paris é as- sinada em 2014, por vereadores de 27 cidades de mais de 50 países, comprometendo-se a acelerar e intensificar as suas respostas locais, criando assim, o projecto “Fast Track Cities”, ao qual Portugal aderiu, quando 10 cidades - Lisboa, Loures, Odivelas, Cascais, Oeiras, Porto, Almada, Portimão, Amadora e Sintra, assinaram a Declaração de Pa- ris, de forma a entrarem na “via rápida” para eliminar o VIH. Na estra- tégia definida pela UNAIDS para 2016 – 2020, o desafio do programa de prevenção e combate ao vírus da SIDA, centra-se em atingir até 2020, os 90 – 90 – 90 - em que 90% das pessoas infectadas estejam diagnosticadas, 90% destas sejam tratadas e que 90% dos infectados em tratamento estejam controlados e alcancem a supressão virológi- ca, incluindo também as que têm um risco “substancial” de infecção, as populações mais vulneráveis e que deverão recorrer aos mesmos trata- mentos, de forma preventiva. E também aqui Portugal tem demonstrado tentado justificar o seu compromisso, uma vez que o último relatório apresentado recentemente refere que “em 2017, houve 1.068 novos diagnósticos de VIH, o que corresponde a uma taxa de 10,4 novos casos por 100 mil habitantes.” Fundada em 1990 e reconhecida como de Utilidade Publica e autenti- De facto mais do que slogans, é importante agir e mais do que a preo- cada pelo Ministério da Saúde, como uma Associação de Defesa dos cupação centrada em números e gastos, é importante pensar nas Utentes de Saúde, como pioneira nesta área, a LIGA tem procurado pessoas e nos ganhos da prevenção, da literacia da saúde, através da desde sempre colocar o enfoque na Prevenção, na Redução de Ris- educação nas escolas, universidades, onde deveremos também in- cos e Minimização de Danos e na necessidade de mais e melhor (in) cluir as universidades seniores. Preocuparmo-nos com o diagnostico formação que disponibiliza através da Linha de Apoio SOS SIDA - precoce, adequado e atempado, a adesão à terapêutica, procurando 800 20 10 40 e de acções de sensibilização, junto de públicos diversi- envolver as PVVIH e das organizações de base comunitária. Enquan- ficados. Dar continuidade à passagem da mensagem que ainda não to existir uma franja da população sem acesso aos cuidados de saúde existe cura ou vacina para o VIH, que enquanto vírus democrático, o e que pode continuar a manter a cadeia de transmissão e permane- VIH atinge todos e não só os outros ou alguns, de que todos lhe so- cendo as IST a nível mundial, um desafio para a Saúde Pública quer mos vulneráveis, independentemente da idade, género, estrato social, devido à sua elevada prevalência e aumento progressivo da incidên- cor ou religião, continua a fazer sentido, na medida em que o “vírus cia, quer pela dificuldade de implementação de estratégias de diag- social” ainda hoje é sentido e vivido, por quem vive directa ou indirec- nóstico precoce, o que representa inúmeras consequências económi- tamente com o VIH e a SIDA. Neste contexto, a LPCS baseada no cas e sociais, parece-nos de extrema importância, dar acessibilidade modelo integrado de intervenção que se define como ecológico, sisté- e equidade a todos os cidadãos, proporcionar aconselhamento e in- mico, ético, humanista, eclético, aberto e dinâmico e justo a nível so- formação, criar novas oportunidades de contacto e intervir em contex- cial e legal, tem disponibilizado de forma gratuita e confidencial, tos sociais e culturais específicos, facilitando o acesso das popula- apoios clínicos, técnicos especializados, nas áreas jurídico, social, ções mais vulneráveis e com um risco mais elevado de exposição às nutricional, psicológico e grupos de inter-ajuda, através de uma equi- IST. Por isso, a conceptualização de uma unidade móvel de rastreios pa multidisciplinar, que se distribui por Lisboa, Odivelas e Loures e como a “Saúde + Perto” que completou este ano, cinco anos. que procura desenvolver um conjunto de acções com outros parceiros Salientar o que de melhor temos feito e o que ainda podemos fazer, sociais e numa perspetiva de apoio integrado, tentando abranger parece-nos o caminho mais indicado. O Programa de Troca de Serin- áreas de intervenção prioritárias, no âmbito das diferentes problemáti- gas (PTS), há 25 anos atrás, cuja mentora foi a Professora Doutora cas relacionadas com o VIH e SIDA e outras IST, com destaque para Odette Ferreira, criado com o objetivo de prevenir infecções pelo VIH as Hepatites Víricas e o HPV. Por outro lado, tem procurado desde o e pelos vírus das Hepatites B e C, por via sexual, endovenosa, nos início da sua fundação e através das suas respostas, integrar e envol- Utilizadores de Droga Indovenosa (UDI), à data, foi sem duvida , um ver as pessoas que vivem com o VIH (PVVIH), contribuindo para uma excelente programa de sensibilização, para a população em geral, melhor adaptação ao diagnóstico e uma boa adesão. alertando consciências para o facto de a toxicodependência não ser Hoje, o panorama do VIH e SIDA alterou-se significativamente e a situa- necessariamente sinónimo de delinquência, contribuindo para um ou- ção de patologia de ontem é muito diferente da actual. Se antes toda a tro olhar sobre o problema. comunidade científica e social se confrontava com uma doença mortal, Não fazendo futurologia, queremos acreditar que se conseguirmos hoje convivemos com uma infecção de carácter crónico e, como tal, quer passar a mensagem que enquanto não existir uma vacina, o preserva- o diagnóstico precoce da infecção, que permite o acesso a cuidados mé- tivo é um aliado, e que todos devemos pelo menos uma vez na vida dicos e ao tratamento numa fase inicial da infecção, aumentando a quali- realizar o teste de rastreio ao VIH.

28 Fundação Portuguesa “A Comunidade Contra a SIDA”: Cuidado! A prevenção continua a ser uma arma de combate à sida

desconhecem o seu estado serológico, aquelas que nunca fizeram um diagnóstico, aquelas que pensam que “há uma vacina” e aque- las que pensam que “a sida já desapareceu”. Temos que nos man- ter focados e sermos ambiciosos, contudo sempre realistas. A pre- venção continua a ser uma arma de combate a esta doença e não só desde os mais jovens, mas nas faixas etárias em que os com- portamentos de risco se mantêm. Há “antigas” e outras “novas” for- mas de prevenção e a comunidade deve conhecê-las. O conheci- mento esclarecido e informado é também uma forma de prevenção. Desde 1993, a Fundação Portuguesa “A Comunidade Contra a SIDA” – FPCCSIDA tem como Missão envolver a comunidade pelo reforço da (In)formação e Sensibilização na Prevenção da doença. A Educação para a Sexualidade e a Literacia em Saúde são fatores determinantes para dotar os jovens, os seniores e comunidade em geral, de conhecimentos e competências pessoais e sociais que os tornam informados, esclarecidos e responsabilizados por uma me- lhor qualidade de vida, e consequentemente por uma melhor saú- de. Nesse sentido a FPCCSIDA tem vindo a alargar a sua área de in- tervenção, situando-se não só nas grandes áreas metropolitanas onde as taxas de novos casos diagnosticados são mais expressi- vas, mas também em regiões do continente onde é fulcral intervir – o Interior. Neste momento, as seis delegações regionais: Porto, Lisboa, Coimbra, Beiras, Setúbal e Funchal têm reforçado a missão central Apesar dos grandes avanços ocorridos nos últimos anos na área da Fundação e, para além do trabalho focado e realizado nos Agru- do VIH, permitindo uma melhor qualidade de vida às pessoas que pamentos de Escolas, desde 2003, com o Projeto Nacional de Edu- vivem com o VIH e SIDA e suas famílias muito graças aos avanços cação pelos Pares que visa, sobretudo o desenvolvimento de com- e inovações na área da terapêutica e clínica mas também graças a petências de ação na área da Prevenção do VIH/SIDA procuram intervenções de fundo através da implementação de programas e implementar projetos concretos na área da Prevenção dos Com- projetos inovadores há dois fatores importantes que não poderão portamentos Aditivos e Dependências. ser esquecidos: a identificação de novos casos e a adesão à tera- Surgiram em Portugal, no último ano, cerca de 1070 novos casos pêutica. diagnosticados de VIH, sobretudo nas áreas metropolitanas de Lis- Nos dias de hoje, numa geração de pais com filhos (numa lógica boa e Porto, tendo-se registado a taxa mais elevada no grupo etá- descendente) e filhos com pais (numa lógica ascendente) ausentes rio entre os 25 e os 29 anos, o que é preocupante. e desresponsabilizados pela saúde e acompanhamento daqueles A FPCCSIDA, assumindo o seu dever de intervir em proximidade e que são muitas vezes dependentes, torna-se imperativo cuidar, a responsabilidade social e cívica de cuidar e fazer a diferença, quer no sentido específico dos cuidados básicos de saúde, higiene tem vindo a criar inúmeros projetos, com diversos públicos. Dos e segurança, quer no acesso aos cuidados de saúde, na atenção e mais recentes, destacamos os projetos IN.PORTO.ME I e II, nas afeto, combatendo deste modo a solidão e abandono, o estigma e áreas do Porto e Coimbra, disponibilizando, por um lado, apoio ju- a discriminação, flagelos que continuam a persistir, se não mesmo rídico, social, psicológico e domiciliário totalmente gratuito a pes- tendendo a agravar-se numa sociedade cada vez mais desprovida soas com fracos recursos financeiros e falta de mobilidade e, por de humanização. outro, assumindo um carácter preventivo junto de pessoas mais ve- O trajeto tem sido longo e nem sempre tem sido fácil, contudo, face lhas, não só com sessões de sensibilização e informação, mas aos primeiros diagnósticos da doença, a situação alterou-se pro- também pela realização de rastreios para o VIH. fundamente. Deixamos de ter grupos de risco para passarmos a Este Projeto foi recentemente reconhecido como Projeto Europeu analisar comportamentos de risco, o que trás novos desafios à de Boas Práticas e faz parte do Compêndio: Good Practices in the abordagem a esta doença. Já não estamos a lidar com um proble- Long-Term Care of People Living with HIV. ma restrito a “prostitutas, toxicodependentes e no “pulo da cerca”, Apesar de Portugal estar, reconhecidamente no “bom caminho” não estamos a lidar com pessoas vulneráveis e com comportamentos podemos esquecer que a meta dos 90-90-90 não foi alcançada na de risco que precisam ser desmistificados, conhecidos e modifica- sua plenitude, não podemos abrandar na Prevenção, Diagnóstico e dos. Do ambicioso Programa Nacional Troca de Seringas, à distri- Tratamento atempado, nas questões da adesão eficaz e efetiva aos buição de material preventivo e informativo, muitas foram as ferra- tratamentos, na implementação de tratamentos de “última gera- mentas utilizadas para mudar a história desta doença e a vida da- ção”, no combate ao estigma e à discriminação, na questão das co- queles que em determinada altura do percurso perceberam que es- -morbilidades associadas a esta doença e na qualidade daqueles tavam infetados. Mas temos as outras pessoas, aqueles que que vão envelhecendo com VIH.

29 SER+, Associação Portuguesa para a Prevenção e Desafio à SIDA: Acabar com as epidemias de Sida, hepatites e tuberculose, é uma meta a ser alcançada até 2030 VIH estendendo gradualmente a sua intervenção, aos seus familia- res, que de alguma forma não estando os mesmos infectados pelo VIH, eram afectados pela proximidade que tinham a essas pes- soas. Surge assim o serviço mais antigo da SER+ e que ainda hoje prevalece, o Serviço de Apoio Domiciliário. Apresenta-se actual- mente como uma resposta indispensável, porque permite a perma- nência da pessoa no seu ambiente social, ajudando-a, sempre que possível, na sua reabilitação e autonomização. Estudos recentes mostram os impactos positivos destes serviços no bem-estar das pessoas que vivem com esta infecção, porque para além de ajudar a melhorar os conhecimentos sobre o VIH e SIDA e sobre a medi- cação antirretroviral, tem um papel importantíssimo na adesão ao tratamento. Estas medidas práticas são adicionais à observação das necessidades ao nível social, psicológico e emocional (fre- quentemente chamadas de necessidades “psicossociais”) e que to- das as pessoas têm, mas que são mais severas quando se vive com o VIH pelo estigma que ainda hoje a infecção carrega.”Como devo lidar com o diagnóstico?”, “Quanto tempo tenho de vida?”, “A quem devo contar?”, “E agora, o que vão pensar de mim?”, “Como posso ter a certeza que não infecto ninguém?”, “Poderei voltar a re- lacionar-me sexualmente?”, “Poderei ter filhos?”, “Que tratamentos estão disponíveis?”, “Poderei continuar a trabalhar?”, “A minha fa- mília discrimina-me.” São só algumas das muitas perguntas que exigem das associações pronta resposta, com profissionais prepa- rados enquadrados em projectos monitorizados e em articulação com outros serviços, como por exemplo, os serviços clínicos da consulta hospitalar e dos cuidados primários. A Associação acom- panha actualmente no âmbito dos seus serviços de apoio psicosso- cial mais de 300 famílias. Mas apesar dos avanços médicos e científicos verificados ao longo de trinta e cinco anos de epidemia, o impacto social da infeção VIH e das hepatites víricas nas pessoas que com estas infeções vivem ainda é enorme e a prova disso foi o que aconteceu em 2008 em Portugal, onde um tribunal de primeira instância dá como provado que “O ví- rus HIV pode ser transmitido nos casos de haver derrame de sangue, A SER+, Associação Portuguesa para a Prevenção e Desafio à SIDA, saliva, suor ou lágrimas sobre alimentos servidos em cru ou consumi- fundada em 1997, é uma Instituição Particular de Solidariedade Social dos por quem tenha na boca uma ferida na mucosa de qualquer espé- (IPSS). É uma organização não-governamental, sem fins lucrativos e cie.”e, que tal decisão é ratificada pela Tribunal da Relação, pelo Su- com sede em Cascais. A actividade da SER+ inicia-se informalmente premo Tribunal de Justiça e apoiada, em comunicado, pelo Conselho em 1995 na sequência do início da consulta para a infeção pelo VIH Superior da Magistratura, justificando assim o despedimento de um no Hospital de Cascais no mesmo ano, liderada por um grupo de vo- cozinheiro pela sua condição de saúde. O que este caso provocou e luntários que percebe que em Cascais o número de casos de trans- ainda provoca, fez com que duas organizações não governamentais missão por VIH em utilizadores de drogas injectáveis cresce descon- nacionais, a SER+ e o GAT, em 2010 criassem o Centro Anti-Discrimi- troladamente. Uma das pessoas com grande destaque na vida da as- nação, o primeiro e único centro, até ao momento, que dedica a sua sociação na época foi Ana Rita Paes Braga, a primeira mulher a dar a atenção às necessidade de garantir, promover e implementar os direi- cara publicamente pela sua condição de saúde e que recrutou cente- tos fundamentais das pessoas com infeção VIH, hepatites víricas, e nas de outros consumidores, delineando estratégias de apoio poten- populações mais vulneráveis, promovendo o combate ao estigma e à ciadas pelos recursos existentes. Conseguiu com grande sucesso, discriminação através do Apoio individual e Activismo. chamar a atenção de uma classe mais privilegiada de Cascais para o Portugal tem sido o país da Europa Ocidental com a taxa de novos ca- fenómeno da toxicodependência e para o impacto que a mesma esta- sos VIH mais elevada, apresentando as pessoas, aquando do seu va a ter na epidemia do VIH e SIDA. Foram essas mesmas pessoas diagnóstico, valores de CD4 superiores a 350 cópias/mm3, o que con- que em 1997 que estiveram na génese do que na época se designava figura um diagnóstico tardio, o que significa que as pessoas são diag- por GADS, Grupo de Apoio e Desafio à SIDA e que só mais tarde, em nosticadas em fases avançadas da infeção, a importância de se che- 2011, passou a ser conhecida por SER+. gar ao diagnóstico mais cedo passou a ser prioridade não só das polí- A SER+, pela sua origem, tem um histórico, que prevaleceu ainda ticas nacionais como das associações de doentes pela sua proximida- durante muitos anos, no apoio directo às pessoas que viviam com o de à comunidade.

30 Há mais de dois séculos, o seu parceiro na vida.

E UMBoas 2019 CHEIO Festas DE SAÚDE

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