CapítuloCapítulo 2020Capítulo 2020Capítulo FOTO: ALDICIR SCARIOT FOTO: FOTO: ALDICIR SCARIOT FOTO:

Drosofilídeos Rosana Tidon Denise F. Leite Luzitano B. Ferreira (Diptera, Insecta) BárbaraBárbara F.F. D.D. LeãoLeão Departamento de Genética e Morfologia Universidade de Brasília do Cerrado Brasília, DF. Constantino

336 Diversidade e endemismo de térmitas

INTRODUÇÃO A família possui representantes em praticamente todas as regiões biogeográficas, em diversos tipos Os insetos são excelentes orga- de ecossistemas. Algumas espécies são nismos para investigar questões endêmicas de determinadas áreas e ecológicas, tais como a proposição de outras são cosmopolitas, sendo que modelos que visem o desenvolvimento muitas desta última categoria sustentável do planeta, em face das dispersaram-se pelo mundo devido à sua acentuadas modificações ambientais capacidade de associação ao homem. causadas pelo homem (Lawton, 2001). São conhecidas mais de 2.800 espécies Drosofilídeos, em particular, são de Drosophilidae, quase 60% delas extremamente apropriados para explorar pertencentes ao gênero . tais questões, uma vez que são pequenos Wheeler (1986) se refere a 1.595 espécies e numerosos em termos de indivíduos e desse gênero no “Catalog of the World Drosophilidae”, e desde então dezenas de espécies, amplamente distribuídos, de espécies novas foram registradas na sensíveis a modificações ambientais, literatura, inclusive, no Brasil (Val & facilmente coletados, possuem ciclo de Marques, 1996; Vilela & Bächli, 2000; vida curto e são facilmente manipulados Tidon-Sklorz & Sene, 2001). Certamente, nos laboratórios. Devido a essas a fauna das regiões temperadas é muito características, esses insetos têm sido melhor conhecida do que a das regiões intensivamente utilizados em pesquisas, tropicais, onde provavelmente existem produzindo uma vasta literatura em centenas de espécies ainda por descrever várias áreas da Biologia. Nenhum outro (Wheeler, op. cit.). modelo biológico tem sido estudado com Em geral, as moscas dessa família tanta freqüência e em níveis tão diversos são pequenas (cerca de 3mm) e apre- quanto as moscas do gênero Drosophila: sentam coloração amarela, marrom ou em 1900 já havia 358 citações desse preta, algumas vezes com padrões gênero em trabalhos científicos (Powell, coloridos na parte dorsal do tórax. As 1997). asas geralmente são claras e o abdome

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freqüentemente possui faixas ou na literatura, no período compreendido manchas que podem estar presentes em entre 1950 e 2001. Nesse levantamento, alguns ou em todos os tergitos (Wheeler, foram incorporadas apenas as 1981). A maioria dos drosofilídeos localidades incluídas no bioma Cerrado alimenta-se de microorganismos, sensu Ab’Saber (1977). Áreas com principalmente leveduras, presentes em vegetação de cerrado sensu stricto situadas além dos domínios desse bioma fungos ou vegetais em decomposição. não foram consideradas. Adicio- Algumas espécies são restritas nalmente, foram considerados dados de ecologicamente, utilizando como sítio de coletas realizadas por nós, em diversas reprodução somente uma espécie localidades do Brasil Central, no período hospedeira; outras são mais versáteis, compreendido entre 1997 e 2002. Nesta podendo utilizar uma variada gama de categoria, incluem-se visitas mensais ao recursos em diferentes fungos e(ou) Parque Nacional de Brasília (PNB: 15o plantas. 40' S; 47o 54’W) e à Reserva Ecológica do IBGE (RECOR: 15o 56' S; 47o 53' W) Embora os primeiros dados sobre durante um período de dois anos, em espécies brasileiras de Drosophila ambientes urbanos da cidade de Brasília tenham sido publicados por Duda em durante um ano, além de outras coletas 1925, levantamentos mais sistemáticos esparsas mencionadas oportunamente. foram realizados apenas a partir da década de 1940 (Pavan & Cunha, 1947; A captura de drosofilídeos geral- Dobzhansky & Pavan, 1943, 1950; Pavan, mente envolve o uso de iscas de frutas 1950, 1959; Mourão et al., 1965). fermentadas (em armadilhas ou depositadas diretamente sobre o solo), Posteriormente, com base nas infor- cujos microorganismos atraem essas mações dos trabalhos precedentes e de moscas. Os insetos atraídos, coletados um extensivo programa de coletas, Sene com rede entomológica, em geral são et al. (1980) e Vilela et al. (1983) levados vivos para o laboratório, onde discutiram a fauna drosofiliana dos são identificados sob lupa binocular domínios morfoclimáticos brasileiros, (Dobzhansky & Pavan, 1943; Pavan & visando conhecer a distribuição Cunha, 1947; Freire-Maia & Pavan, 1949; geográfica das espécies mais comuns. A Frota-Pessoa, 1954). Em alguns casos a fauna de drosofilídeos do Brasil Central, determinação das espécies é feita entretanto, foi pouco amostrada nesses mediante a análise da genitália trabalhos. masculina, cuja morfologia é diagnóstica (Val, 1982; Vilela & Bachli, 1990; Vilela, Nesse contexto, o objetivo do 1992). Assim, é importante ressaltar que presente trabalho foi o de listar as as espécies de Drosophilidae mencio- espécies de drosofilídeos atualmente nadas neste trabalho restringem-se conhecidas no Cerrado, discutindo sua àquelas atraídas por iscas de frutas ocorrência na região em termos fermentadas, não incluindo, portanto ecológicos e biogeográficos. espécies associadas a fungos, flores e eventuais outros substratos.

METODOLOGIA ESPÉCIES DE DROSOFILÍDEOS A presente compilação foi elaborada REGISTRADAS NO BIOMA CERRADO com base em dois tipos de fontes. A primeira refere-se aos registros de A Tabela 1 lista as espécies cuja ocorrência de drosofilídeos publicados ocorrência já foi registrada no Cerrado.

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Tabela 1. Relação das espécies de drosofilídeos registradas no Bioma Cerrado

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(continuação) Tabela 1. Relação das espécies de drosofilídeos registradas no Bioma Cerrado

*: novos registros para o Cerrado Registros - 1. Burla & Pavan, 1953; 2. Dobzhansky & Pavan, 1950; 3. Ehrman & Powell, 1982; 4. Magalhães, 1962; 5. Pavan, 1950; 6. Pavan, 1959; 7. Pavan & Breuer, 1954; 8. Sene et al., 1980; 9. Tidon-Sklorz & Sene, 1995a; 10. Tidon-Sklorz & Sene, 2001; 11 . Tidon-Sklorz et al., 1994; 12. Val & Sene, 1980; 13. Val, et al., 1981; 14.Vilela et al., 1983; 15. Vilela & Mori, 1999; 16. Coletas na RECOR; 17. coletas no PN; 18. Coletas em ambientes urbanos de Brasilia-DF 19. Coletas na Fazenda Água Limpa, DF; 20 Coletas em Pirenópolis-GO. - ca = cerradão, ce = cerrado sensu stricto, mg = mata de galeria, po = pomar, ar = afloramento rochoso, au = ambientes urbanos.

Após o nome da espécie seguem as kikkawai, D. malerkotliana, D. referências que a registram no bioma e melanogaster, D. simulans, Scapto- os tipos de ambientes onde foi feita a drosophila latifasciaeformis e captura (informação nem sempre indianus). Várias dessas espécies são disponível). sinantrópicas e colonizaram a área após a chegada do homem, alterando a Foram identificados três gêneros de Drosophilidae no bioma Cerrado. composição da fauna drosofiliana da Drosophila, o maior na Região Neotro- região. Espécies da fauna nativa são pical, contempla 75 das 77 espécies encontradas em todas as fitofisionomias listadas. Scaptodrosophila e Zaprionus do bioma, demonstrando o alto grau de estão representados por apenas uma plasticidade adaptativa dessa família. espécie cada um. A seguir, são apresentadas algumas Dentre as 77 espécies de informações a respeito de cada uma das drosofilídeos reconhecidas, 67 são espécies encontradas no Cerrado. Os endêmicas da Região Neotropical e 10 gêneros e subgêneros estão ordenados nela introduzidas (D. ananassae, D. segundo sua importância relativa na busckii, D. hydei, D. immigrans, D. Região Neotropical. As categorias

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“grupo” e “subgrupo”, embora não D. annulimana (Duda) e D. aff. reconhecidas formalmente pela arapuan (Cunha & Pavan) foram taxonomia, têm sido amplamente coletadas apenas na Serra do Cipó (Vilela utilizadas para reunir espécies de & Mori, 1999), localizada no extremo drosofilídeos presumivelmente aparen- leste do bioma Cerrado. tadas (Patterson & Stone, 1952; Vilela, Grupo aureata 1983). Tais agrupamentos, definidos com base na morfologia do adulto, das formas D. aureata (Wheeler), a única imaturas, e dos cromossomos, são espécie deste grupo, já havia sido elaborados com o intuito de refletir registrada do México ao Panamá. Sua grupos monofiléticos de espécies. ocorrência na Serra do Cipó (Vilela & Informações detalhadas sobre a Mori, 1999) ampliou sua distribuição classificação dos drosofilídeos, bem para a América do Sul continental. como referências relativas às descrições das espécies, podem ser consultadas on Grupo bromeliae line no banco de dados TaxoDros (Bächli, O único espécime de D. bromelioides 1999). (Pavan & Cunha) registrado no Cerrado foi coletado na Serra do Cipó (Vilela & Gênero Drosophila Mori, 1999). Todas as espécies deste pequeno grupo neotropical criam-se e Subgênero Drosophila alimentam-se em flores, não sendo, portanto, comuns em iscas de frutas Grupo annulimana fermentadas. Este grupo compreende 15 espécies Grupo calloptera neotropicais, encontradas principalmen- te em florestas úmidas (Tosi & Pereira, As oito espécies deste grupo (Val et 1993). Cinco delas estão registradas no al., 1981) possuem manchas escuras nas Cerrado. asas, compondo desenhos peculiares. No Cerrado foram capturadas duas espécies, D. aragua (Vilela & Pereira) e D. ambas em matas de galeria: D. schildi arauna (Pavan & Nacrur) já eram (Malloch), que ocorre desde o sudeste conhecidas de áreas florestadas do do Brasil até a América Central (Burla & Estado de São Paulo (Vilela & Pereira, Pavan, 1953), e D. atrata (Burla & 1982; Tidon-Sklorz & Sene, 1992; Tosi & Pavan), espécie amplamente distribuída Pereira, 1993) e, no caso de D. aragua, em florestas da América do Sul (Val et também da Argentina. Este é o primeiro al., op. cit.). Este é primeiro registro de registro dessas espécies no Cerrado, onde D. atrata no domínio do Cerrado. foram capturadas em matas de galeria e cerrados sensu stricto (neste último Grupo canalinea apenas D. aragua). D. canalinea (Patterson & Mainland) D. ararama (Pavan & Cunha) ocorre foi registrada em diversas localidades em ambientes onde normalmente não se brasileiras na década de 1950 coletam espécies deste grupo, tais como (Dobzhansky & Pavan, 1950; Pavan, cerrados e restingas (Mourão, 1966; Sene 1959), inclusive nos cerrados de Goiás. et al., 1980). No Brasil Central, essa Expedições mais recentes não fazem espécie foi registrada em cerrados e referência a este grupo, que inclui outras matas de galeria. 10 espécies.

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Grupo cardini Grupo dreyfusi

Segundo Heed e Russell (1971) o As nove espécies que compõem este grupo inclui 16 espécies ecologicamente grupo são, aparentemente, restritas a versáteis, amplamente distribuídas nas florestas. Embora D. camargoi Américas. Quatro delas foram (Dobzhansky & Pavan) tenha sido encontradas no Cerrado. registrada no Cerrado na década de 1950 D. cardini (Sturtevant) e D. (Pavan, 1950; Pavan & Breuer, 1954), não cardinoides (Dobzhansky & Pavan) são tem sido coletada no Brasil Central. D. morfologicamente muito semelhantes, e dreyfusi (Dobzhansky and Pavan), por suspeita-se que vários dos inventários outro lado, foi recentemente encontrada realizados no Brasil possam ter na Serra do Cipó (Vilela & Mori, 1999). confundido essas duas espécies (Vilela Grupo guarani et al., 2002). De qualquer maneira, ambas já haviam sido registradas no Este grupo é formado por 13 espécies Cerrado (Sene et al., 1980), onde neotropicais (Tidon-Sklorz et al., 1994), ocorrem em diversos tipos de ambientes. cinco delas registradas no Cerrado. D. maculifrons (Duda) é amplamente D. polymorpha (Dobzhansky & Pavan) ocorre da Guatemala até o Brasil, distribuída no Brasil em vários onde vem sendo coletada desde os ambientes, com a exceção das caatingas primeiros levantamentos (Dobzhansky & (Sene et al., 1980), e vem sendo Pavan, 1943, 1950), em diversos tipos registrada no Cerrado desde a década de de ambientes: florestas, cerrados, 1950. Em contraste, D. griseolineata restingas, e até mesmo em associação (Duda) e D. guaraja (King) foram com o homem. Trata-se de uma espécie coletadas apenas na Serra do Cipó. relativamente abundante nos diferentes D. ornatifrons (Duda) ocorre na Mata domínios morfoclimáticos, exceto nas Atlântica (Sene et al., 1980) e em caatingas (Sene et al., 1980). diversos ambientes do bioma Cerrado. D. neocardini (Streisinger) também D. guaru (Dobzhansky & Pavan), é uma espécie amplamente distribuída coletada no Estado de São Paulo nos no Brasil, mas geralmente rara nas levantamentos pioneiros (Dobzhansky & coletas (Sene et al., 1980), este é seu Pavan, 1943), não vinha sendo registrada primeiro registro no Cerrado onde foi em coletas mais recentes; entretanto, em capturada em matas de galeria e cerrado 1999 ela foi encontrada em mata de sensu stricto. galeria no Parque Nacional de Brasília, Grupo coffeata seu primeiro registro no Cerrado.

Este grupo inclui quatro espécies Grupo immigrans neotropicais (Vilela & Bächli, 1990), e D. immigrans (Sturtevant) é uma apenas D. fuscolineata (Duda) foi espécie introduzida e cosmopolita, a coletada no Cerrado até o momento única deste grupo que ocorre na Região (tanto em matas de galeria como em Neotropical (Val et al., 1981). Ela já havia cerrado sensu stricto). Essa espécie, que sido coletada em associação com o possui ampla distribuição geográfica, do homem e em áreas de cerrados e México até o Brasil, foi descrita também como D. castanea e D. fumosa (Vilela & florestas, entretanto nunca foi registrada Bächli, op cit.). em caatingas e dunas (Sene et al., 1980).

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Esta espécie tem sido capturada registrada com regularidade em diversos regularmente em diversos ambientes do tipos de ambientes desse bioma, em Cerrado. baixas freqüências. Grupo pallidipennis Subgrupo mercatorum

D. pallidipennis (Dobzhansky & Das quatro espécies incluídas no Pavan) distribui-se em diversos tipos de subgrupo mercatorum, duas ocorrem no ambientes, com exceção das caatingas Cerrado. D. mercatorum (Patterson & (Sene et al., 1980). Tem sido capturada Wheeler) é abundante em ambientes esporadicamente em cerrado sensu naturais, principalmente os de vegetação stricto. aberta (Sene et al., 1981; Vilela et al., 1983), e foi encontrada também em Grupo repleta quintais e quitandas (Oliveira & Sene, Este é o maior grupo de drosófilas 1993). D. paranaensis (Barros) é uma neotropicais abrangendo, atualmente, espécie críptica de D. mercatorum que, mais de 100 espécies. Inclui seis embora mais rara, também é subgrupos (Rafael & Arcos, 1989), cinco amplamente distribuída, ocorrendo em deles presentes no Cerrado. ambientes naturais do México à Argentina. No Brasil, já foi encontrada Subgrupo fasciola em vegetação de cerrado, dunas, e matas É formado por 20 espécies secundárias (Vilela et al., 1983; Sene & predominantemente associadas a matas, Santos, 1988). As duas espécies foram embora algumas delas tenham cactáceas registradas tanto em ambientes naturais como local de criação. Três delas foram como urbanos. registradas no Cerrado. D. coroica Subgrupo mulleri (Wasserman) foi encontrada nos cerrados de Campo Grande (MS), Com mais de 35 espécies descritas, Bolívia, Argentina, e em matas este é o maior subgrupo do grupo repleta, mesofíticas do Estado de São Paulo e praticamente todas as suas espécies (Vilela et al., 1983; Tidon-Sklorz & Sene, usam cactáceas como local de criação. Em decorrência desta especificidade de 1992). D. rosinae ocorre na região nicho, estas espécies ocupam áreas onde oriental da América do Sul, incluindo a ocorrem cactáceas em todo continente Serra do Cipó, e D. onca (Dobzhansky & americano, predominantemente em Pavan) distribui-se desde o Cerrado até regiões semidesérticas ou desérticas. o sul do Brasil (Vilela et al., op. cit.). D. buzzatii (Patterson & Wheeler), Subgrupo hydei provavelmente originada no Chaco O subgrupo hydei é formado por seis argentino, foi levada pelo homem, espécies nominais que se distribuem na juntamente com um dos seus parte norte da América do Sul, América hospedeiros, Opuntia ficus-indica, para Central, e sudeste da América do Norte. várias partes do mundo. No Brasil ela é D. hydei (Sturtevant) é a única espécie abundante nos estados do sul, ocorrendo cosmopolita do subgrupo. Foi registrada junto com O. monachanta. Embora por Vilela et al. (1983) em vegetação demonstre preferência por cactos do aberta na América do Sul, incluindo o gênero Opuntia, suas larvas também já Cerrado, especialmente em áreas foram observadas criando-se em cactos alteradas pelo homem e continua sendo do gênero Cereus (Pereira et al., 1983).

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Essa espécie, que já havia sido registrada de identificação inerente a todas as no Cerrado (Vilela et al., 1983), foi espécies do grupo, Vilela (1983) capturada por nós em afloramentos encontrou cerca de 10 sinonímias desta rochosos próximos à cidade de espécie. D. zotti (Vilela) e D. Pirenópolis-GO. pseudorepleta (Vilela and Bächli) tem ocorrência registrada nas porções D. nigricruria (Patterson & sudeste e sul da América do Sul; no Mainland) possui ampla distribuição Cerrado, são conhecidas apenas da Serra geográfica, já havia sido registrada no do Cipó. Estado de Goiás (Vilela et. al., 1983), e tem sido capturada em cerrados sensu Grupo tripunctata stricto e matas de galeria. Segundo Vilela (1992), este grupo D. meridionalis (Wasserman) ocorre de espécies é o segundo maior de em diversos locais com vegetação seca drosófilas na Região Neotropical, de na América do Sul, incluindo os limites onde é endêmico; a única espécie do orientais do bioma Cerrado, onde há grupo que ocorre fora dessa área é D. áreas com esse tipo de vegetação (Tidon- tripunctata (Loew), registrada na Região Sklorz et al., 1994). D. Borborema, uma Neartica. O grupo tripunctata foi espécie endêmica da Caatinga, também proposto formalmente por Sturtevant, em ocorre nos limites orientais do bioma 1942, e desde então diversas espécies Cerrado (Vilela et al., 1983, Tidon-Sklorz novas foram nele incluídas (Frota- & Sene, 1995a). Pessoa, 1954; Heed & Wheeler, 1957; D. serido (Vilela & Sene) era Pipkin & Heed, 1964). considerada uma espécie politípica A identificação das espécies deste amplamente distribuída na América do grupo geralmente é difícil, devido à Sul (Sene et al., 1988). Atualmente, as grande variação intra-específica e, em relações filogenéticas que compõem esse alguns casos, à semelhança entre conjunto de espécies já estão mais bem diferentes espécies. Como ocorre com esclarecidas (Tidon-Sklorz & Sene, outros grupos de Drosophila, a 1995b), de maneira que podemos identificar as duas espécies que ocorrem morfologia da genitália masculina tem no bioma Cerrado: D. seriema (Tidon- sido usada como um caráter confiável Sklorz & Sene), restrita aos campos de para discriminar as espécies. Ilustrações altitude da Cadeia do Espinhaço (Tidon- sobre a genitália dessas espécies, assim Sklorz & Sene, 1995c), e D. gouveai como maiores informações sobre sua (Tidon-Sklorz & Sene), distribuída nas sistemática, podem ser obtidas em Vilela áreas mais secas da região central do país (1992) e referências inclusas. (Tidon-Sklorz & Sene, 2001). Segundo Sene et al. (1980), os Subgrupo repleta espécimes deste grupo são muito abundantes em florestas, podem ser D. repleta (Wollaston), uma das sete encontrados em baixas freqüências em espécies desse subgrupo, é generalista e cerrados, dunas, e estão ausentes das encontrada em praticamente todos os ambientes urbanos (quitandas, ban- caatingas. Pavan (1959) sugere que as heiros, lixões, etc.), sendo dificilmente moscas do grupo tripunctata são mais coletada em ambientes naturais. Dada a freqüentes nas proximidades de rios e sua ampla distribuição e à dificuldade lagos durante os meses frios do ano.

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Atualmente, 13 espécies deste grupo (Lemeunier et al. 1986; Toda, 1991). são conhecidas no Cerrado, sendo que Quatro delas têm registro do Cerrado. três delas estão sendo registradas nesse D. kikkawai (Burla) já era conhecida bioma pela primeira vez. D. no Brasil desde a década de 1950 (Freire- bandeirantorum (Dobzhansky & Pavan), Maia, 1953), porém, de acordo com D. medioimpressa (Frota-Pessoa), D. Freire-Maia (1964), nessa ocasião essa mediopunctata (Dobzhansky & Pavan), espécie era ocasionalmente confundida D. mediostriata (Duda) e D. com D. montium (Meijere). Segundo paraguayensis (Duda), já haviam sido Wheeler (1981), D. montium ocorre registradas no Bioma, e continuam sendo somente em Java, e D. kikkawai é uma capturadas principalmente em matas de espécie subtropical. Embora esta última galeria. Por outro lado, D. albirostris tenha registro nos cerrados próximos à (Sturtevant), D. mediopicta (Frota Brasília (Sene et al., 1980), ela não tem Pessoa), D. mesostigma (Frota Pessoa), sido encontrada desde 1996. D. trapeza (Heed & Wheeler) e D. unipunctata (Patterson & Mainland) D. malerkotliana (Parshad & Paika) foram coletadas apenas na Serra do Cipó. foi encontrada na América do Sul pela Por fim, este é o primeiro registro no primeira vez em 1976 (Val & Sene, 1980). Cerrado de D. bifilum (Frota-Pessoa), D. Acredita-se que tenha sido introduzida neoguaramunu (Frydenberg) e D. também na África, onde se tornou muito paramediostriata (Townsend & abundante (Chassagnard et al., 1989). Wheeler). Há registros de D. malerkotliana em Grupo virilis. diversos biomas incluindo o Cerrado (Sene et al., 1980), onde ocorre em D. virilis (Sturtevant) é uma espécie diversos tipos de ambientes. amplamente distribuída, a única do D. melanogaster (Meigen) é uma grupo que ocorre na região Neotropical. espécie sinantrópica e sua presença pode No Cerrado, foi encontrada apenas na ser considerada um indicador de Serra do Cipó. atividades humanas nas proximidades. Não agrupadas Essa espécie já havia sido registrada no Cerrado (Sene et. al., 1980), e continua D. impudica (Duda) (syn = D. sendo capturada em freqüências muito para), espécie com ampla distribuição baixas. geográfica, e D. caponei (Pavan & Cunha), espécie aparentemente D. simulans (Sturtevant) tem sido a associada a florestas, foram encontradas espécie deste grupo mais abundante em na periferia do bioma Cerrado. várias localidades, e muito mencionada nos inventários de drosofilídeos (por Subgênero Sophophora exemplo: Dobzhansky & Pavan, 1950; Grupo melanogaster Pavan, 1959; Sene et al., 1980; Val & Kaneshiro, 1988; Tidon-Sklorz & Sene, Com mais de 160 espécies descritas 1992). Das espécies introduzidas na e, provavelmente, originário do sudeste região Neotropical, é a que melhor se asiático, este grupo apresenta espécies adaptou às diferentes regiões que foram introduzidas em várias regiões fitogeográficas, principalmente em áreas do mundo e que se tornaram abertas (Perondini et al., 1979). É muito cosmopolitas ou subcosmopolitas abundante no Cerrado, em diversos tipos

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de ambientes (uma notável exceção é a Grupo willistoni mata de galeria do Parque Nacional de Brasília, onde houve predominância das Este grupo, praticamente neotrópico, espécies do subgrupo willistoni). Em inclui 23 espécies nominais, e a maioria contraste, D. ananassae (Doleschall), delas pode ser classificada em dois uma espécie muito rara na região subgrupos (Val et al., 1981). Neotropical, foi registrada apenas na O subgrupo willistoni é muito Serra do Cipó e em baixas freqüências. homogêneo e inclui seis espécies Grupo saltans crípticas de difícil identificação, amplamente distribuídas na América do Este grupo é formado por cerca de Sul em diversos tipos de ambientes, 20 espécies (Val et al., 1981), todas principalmente nos florestados. Embora conhecidas da Região Neotropical. Segundo alguns autores (Pavan, 1959; D. willistoni (Sturtevant), D. paulistorum Sene et al., 1981), estas moscas (Dobzhansky & Pavan) e D. tropicalis apresentam acentuada variação sazonal (Burla & Cunha) já tenham sido e são muito sensíveis às técnicas de coletadas no Cerrado (Ehrman & Powell, coleta. 1982), amostras coletadas por nós (Parque Nacional de Brasília) e D. austrosaltans (Spassky) foi identificadas pela Dra Marlúcia Martins considerada por Mourão (1966) como (Museu Goeldi) acusaram somente D. uma espécie rara. No Cerrado, foi willistoni. Essa espécie esteve ausente registrada por Sene et al. (1980) em nos ambientes urbanos, apresentou Caracol (MS), e tem sido capturada na baixas freqüências nos cerrados sensu Reserva Ecológica do IBGE. stricto e altas freqüências nas matas Embora D. neocordata (Magalhães) somente na estação úmida. tenha sido registrada no Cerrado por Sene et al. (1980), não foi identificada Metade das 12 espécies do subgrupo em nossas coletas. D. neoelliptica (Pavan bocainensis foi registrada no Cerrado. D. & Magalhães) já foi reconhecida em capricorni (Dobzhansky & Pavan) e D. Goiás (Pavan, 1950; Magalhães, 1962), fumipennis (Duda), registradas nesse mas aparentemente é mais comum na bioma na década de 1950, não foram Floresta Atlântica (Sene et al., 1980). reconhecidas em coletas mais recentes. Também não foi capturada por nós nas D. bocainensis (Pavan & Cunha), imediações de Brasília. distribuída em diversos pontos da D. prosaltans (Duda) e D. sturtevanti América do Sul, tem sido coletada em (Duda) são espécies amplamente cerrados sensu stricto e matas de galeria. distribuídas nas Américas Central e do Por fim, D. bocainoides (Carson) e D. Sul. Ocorrem em diferentes domínios parabocainensis (Carson) foram morfoclimáticos, embora tenham maior encontradas apenas na Serrado Cipó. afinidade pelos cerrados (Sene et al., D. nebulosa (Sturtevant) é a única 1980). As duas têm sido coletadas nesse espécie deste grupo que é mais bioma, inclusive por nós, em diferentes abundante em formações abertas, tais ambientes. No caso de D. sturtevanti, é possível que nossas amostras incluam como o cerrado e a caatinga, do que em ainda outras espécies crípticas à florestas. Distribuída amplamente na mencionada, o que deverá ser Região Neotropical, tem sido capturada esclarecido em estudos posteriores. com freqüência desde a década de 1950

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(Dobzhansky & Pavan, 1950; Pavan, ocorrem no Brasil, sendo que S. 1959; Mourão, 1966; Sene et al., 1980; latifasciaeformis (Duda) é a única Val & Kaneshiro, 1988; Tidon-Sklorz & presente em diversos tipos de ambientes Sene, 1992). Ocorre em ambientes (Sene et al., 1980). Introduzida e naturais e urbanos, sendo mais cosmopolita, freqüentemente está abundante nos cerrados sensu stricto. associada ao homem (Val & Kaneshiro, Subgênero Dorsilopha 1988). No Cerrado, essa espécie foi mais comum em cerrados sensu stricto do que O subgênero Dorsilopha tem origem em matas de galeria. na Região Oriental, e é constituído por três espécies, das quais apenas uma, D. busckii (Coquillett), se tornou CONSIDERAÇÕES FINAIS cosmopolita (Toda, 1986). Essa espécie introduzida no Brasil é freqüentemente As 77 espécies de drosofilídeos associada a ambientes modificados pelo registradas no Cerrado certamente homem, mas pode ser também representam uma subestimativa da encontrada em ambientes naturais, diversidade desses insetos no bioma, principalmente formações vegetais onde inventários regulares passaram a abertas. Registrada no Cerrado desde ser efetuados somente a partir de 1997, 1950, D. busckii tem sido encontrada em e concentram-se nas imediações do diversos tipos de ambientes naturais e Distrito Federal. No Estado de São Paulo, urbanos, mas principalmente em que ocupa uma área cerca de oito vezes cerrados sensu stricto. menor que o Cerrado, já foram Gênero Zaprionus registradas 97 espécies desses insetos (Tidon-Sklorz & Sene, 1999). O gênero Zaprionus inclui mais de Considerando que em todas as grandes 50 espécies descritas, distribuídas pelo universidades paulistas há laboratórios mundo todo, mas muito abundantes na que estudam drosófilas, essa África (Tsacas et al., 1981; Chassagnard discrepância pode ser facilmente & Tsacas, 1993). Z. indianus (Gupta) é explicada pela diferença nos esforços de uma espécie generalista que se adapta coleta realizados em ambas as regiões. facilmente a diversos tipos de ambientes No período decorrido entre 1997 e 2002 (Parkash & Yadav, 1993), registrada no foram registradas nas imediações de Brasil pela primeira vez por Vilela, em Brasília oito novas ocorrências de 1999. Desde então tem se disseminado espécies de Drosophilidae, além de rapidamente, de maneira que já se diversas outras pertencentes à família, encontra distribuída por todo o território mas cuja determinação em nível de nacional. Como é uma espécie que ataca espécie ainda não foi possível. plantações de figo tem sido monitorada Expedições que investigarem outras por diversos pesquisadores (Stein et al., 1999). Z. indianus tem sido muito regiões do bioma certamente vão abundante na região de Brasília, aumentar a lista das espécies conhecidas principalmente em cerrados sensu stricto no Cerrado. e durante estação chuvosa (Tidon et al., É importante ressaltar que, nas 2003). coletas de drosofilídeos, geralmente se Gênero Scaptodrosophila utilizam iscas de frutas fermentadas, muitas vezes no interior de armadilhas. Este gênero possui mais de 170 Isto faz com que cada coleta seja espécies distribuídas em diversas altamente influenciada pelo tipo e Regiões Biogeográficas. Duas delas localização de iscas e armadilhas, além

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da eventual competição entre elas e os nativa da região. Essas invasões, substratos naturais presentes na área de possivelmente, ocorrem devido ao coleta (Pavan, 1959; Sene et al., 1981; aumento desenfreado de urbanização Carson & Heed, 1983). Mais raramente, nas áreas adjacentes àquelas que estão são coletados também substratos sendo preservadas. O exemplo mais naturais de criação das moscas, tais recente é a invasão da espécie como fungos, flores ou frutos em oportunista Zaprionus indianus, decomposição (Valente & Araujo, 1991), introduzida na Região Neotropical, os quais são mantidos no laboratório até provavelmente em 1999, ano em que a emergência dos adultos. Esse último comprometeu cerca de 50% da safra de procedimento permite a captura de figo do Estado de São Paulo (Stein et al., espécies que não são atraídas pelas iscas 1999). Desde então tem se tornado uma normalmente utilizadas, e, portanto, das espécies de Drosophilidae mais deveria ser adotado regularmente nos abundantes em vários pontos do inventários desses insetos. território brasileiro, inclusive no Cerrado. Até o momento, nosso programa regular Apesar das limitações acima, de coletas mensais já capturou cerca de drosofilídeos são considerados 20.000 indivíduos pertencentes a essa excelentes modelos para estudos espécie no IBGE (entre 1999 e 2002), ecológicos (Powell, 1997), uma vez que, 14.000 no Parque Nacional de Brasília assim como diversos outros artrópodos, (entre 1999 e 2001) e 10.000 em apresentam a maioria das características ambientes urbanos (entre 2000 e 2001). listadas por Hilty & Merelender (2000) É importante ressaltar que os primeiros para monitorar mudanças ambientais: registros dessa espécie no Brasil (Vilela, são sensíveis a variações no ambiente, 1999) e no Cerrado (Galinkin & Tidon- numerosos em termos de indivíduos e Sklorz, 2000) são contemporâneos e de espécies, possuem ciclo de vida curto, muito recentes. e são facilmente coletados e manipulados. A intensidade com que Os dados aqui apresentados esses insetos têm sido utilizados em sustentam a necessidade de se preservar pesquisas é uma vantagem adicional: só a heterogeneidade espacial do Cerrado. nos últimos dez anos foram publicados A Tabela 1 mostra o(s) ambiente(s) de mais de 15.000 artigos sobre essas ocorrência de 73 espécies, das quais 20 moscas (Web of Science, 2004). Essas foram registradas somente em matas de características, somadas ao relativamente galeria, sete apenas em cerrados sensu baixo custo das pesquisas com stricto, e três exclusivamente em drosofilídeos, sugerem o uso desses afloramentos rochosos. As demais insetos como eventuais indicadores de espécies, embora registradas em mais de perturbações ambientais (Parsons, 1991, um ambiente, em geral foram mais 1995, Mata & Tidon, 2003). abundantes em um deles (dados não apresentados). A Tabela 1 mostra que das 10 espécies introduzidas na Região Em síntese, este trabalho mostra que Neotropical e registradas no bioma, sete a fauna de drosofilídeos do Cerrado foram capturadas por nós na Reserva ainda é relativamente pouco conhecida Ecológica do IBGE e no Parque Nacional e que, devido ao potencial desses insetos de Brasília. Isso sugere que, embora para a bioindicação, seu estudo pode mantidas como reservas ambientais, eventualmente contribuir para o essas áreas estão sofrendo colonizações estabelecimento de políticas que visem de espécies que podem alterar a fauna à conservação desse bioma.

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352 Solos e paisagem

CapítuloCapítulo 2121Capítulo 2121Capítulo

AA complexidadecomplexidade estruturalestrutural dede FOTO: ROSANA TIDON ROSANA FOTO: broméliasbromélias ee aa TIDON ROSANA FOTO:

Ludmilla M. de S. Aguiar diversidadediversidade dede Embrapa Cerrados Planaltina, DF.DF. Ricardo B. Machado artrópodes,artrópodes, emem Conservação Internacional do Brasil-CI Brasília, DF Reuber A. Brandão ambientes de campo InstitutoInstituto BrasileiroBrasileiro dodo MeioMeio AmbienteAmbiente ee dosdos ambientes de campo Recursos Naturais Renováveis - IBAMA Brasília, DF Cristiane G. Batista rupestrerupestre ee matamata dede Departamento de Ecologia Universidade de Brasília Brasília, DF galeriagaleria nono CerradoCerrado Jean François Timmers Departamento de Zoologia Universidade de Brasília dodo BrasilBrasil CentralCentral Brasília, DF

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354 Bromélias e antrópedes

pois elas são verdadeiras ‘ilhas’ INTRODUÇÃO biológicas, nas quais a riqueza de fauna A família Bromeliaceae, endêmica à está associada ao tamanho das plantas. região Neotropical, é caracterizada por Vários estudos têm sido realizados plantas terrestres, saxícolas ou epífitas, com bromélias, focando a saúde das de pequeno porte, que possuem folhas populações humanas, pois os copos de simples dispostas em forma de roseta, e água formados na planta são habitats em sua base central, formam um copo, perfeitos para a ovoposição e o onde ocorre acúmulo de água e detritos desenvolvimento de larvas (Barrera & orgânicos (Leme, 1984). A água da chuva Medialdea, 1996), principalmente dos acumulada na planta pode ser gêneros de mosquitos Aedes (Marques considerada um ambiente limnológico et al., 2001), Anopheles (Chadee, 1999) isolado, um microhabitat para muitas e Culex (Hogue, 1975). Estudos micro e macroespécies de animais e ecológicos abordam a relação de plantas (Picado, 1913), que vivem ali em espécies, populações e comunidades simbiose. Essa comunidade associada associadas a essas plantas. A supre as bromélias com nutrientes em importância das bromélias como troca de habitat (Por, 1992). Bromélias, microhabitats para artrópodes e anfíbios portanto, são estruturas biológicas é bem documentada para as florestas complexas (Beutelspacher, 1971) e não úmidas tropicais, onde são utilizadas por apenas fitotelmatas (Richardson, 1999). várias espécies como locais de Fitotelmatas são plantas não-aquáticas nidificação, fonte de alimentação e que armazenam água em suas folhas refúgio contra predadores (Monteiro et modificadas ou outras estruturas al., 2001; Teixeira et al., 2002). morfológicas, como flores e frutos abertos, ou mesmo uma depressão, que O Cerrado (sensu lato) é formado por provoque acúmulo de água. Monteiro et um mosaico vegetacional onde existem al. (2001) questionam a caracterização desde formações do tipo arbóreo denso de bromélias apenas como fitotelmatas, até gramíneo-lenhoso, criando assim

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situações e contextos ecológicos 13o50’e 14o12’ S e 47o25’ e 47o53’ W extremamente diferenciados (Eiten, (Figura 1). A altimetria da região varia 1972). Para o bioma Cerrado, essa entre 400 e 1.676m. O clima relação fauna-bromélias ainda não é bem predominante é tropical-quente-sub- documentada. Em ecossistemas alagados úmido (Köppen), caracterizado por duas ou arenosos, a presença de bromélias estações bem definidas, com um verão pode compensar a falta de lugares chuvoso entre os meses de outubro e apropriados para a pedofauna e abril, e um inverno seco entre maio e criptofauna, oferecendo condições setembro. A pluviosidade média anual subótimas comparáveis às suas situa-se entre 1.500 e 1.750 mm, sendo exigências ecológicas. A peculiaridade que 50% da precipitação anual ocorre das bromélias em guardar umidade na de novembro a janeiro. As temperaturas base das folhas e, dependendo das médias anuais oscilam entre 24 e 26oC espécies e do tamanho, formar um (MMA, 1995). A vegetação do parque é reservatório de água no centro da roseta, constituída por um mosaico de condiciona este papel. Seria esperado, formações, com campos rupestres então, que o tamanho e a complexidade localizados nas serras e afloramentos estrutural da planta determinem o seu rochosos; áreas de cerrado, nas encostas potencial de oferecer uma diversidade de menor declividade; veredas, campos de recursos, alimentos e microhabitat, úmidos e matas ciliares nos fundos dos podendo assim hospedar uma vales. As áreas de amostragem foram quantidade e variedade maior de estabelecidas em duas dessas formações: organismos. Fatores do próprio 1) campo rupestre, com estrato arbóreo ecossistema, como disponibilidade de médio de 2-3m e uma cobertura arbórea habitat, estrutura da comunidade, grau de 1-10% (Ribeiro & Walter, 1998). de predação e de competição intra e Ocorre em altitude acima de 900m, com interespecífica por recursos e habitat, ventos constantes e grande amplitude determinam também o tipo e a térmica diária, em solo profundo e intensidade de ocupação das bromélias rapidamente drenado. São características por artrópodes e outros animais deste ambiente, as espécies das famílias (Monteiro et al., 2001). Cactaceae, Araceae, Bromeliaceae e Orchidaceae (WWF 1995, Felfili et al. , Nesse contexto, os objetivos deste 1995); 2) mata de galeria alagada, que trabalho são: 1) determinar a relação ocorre ao longo das linhas de drenagem, entre riqueza e abundância de espécies ou seja, beira de rios e córregos. É uma de artrópodes e a arquitetura de mata sempre verde, com altura média bromélias; 2) comparar dois ambientes: do estrato arbóreo entre 20-30m e campo rupestre de altitude e mata de cobertura arbórea de 80-100% (Ribeiro galeria, localizados no Parque Nacional & Walter, 1998). da Chapada dos Veadeiros, no Cerrado do Brasil Central. Durante o mês de dezembro de 1996 (período de chuva), durante quatro dias, foram estabelecidos em cada um dos MATERIAIS E MÉTODOS ambientes trabalhados um quadrado de 30x30m onde todas as bromélias O Parque Nacional da Chapada dos presentes foram investigadas. Para cada Veadeiros está localizado no Planalto bromélia detectada nos quadrados, Central brasileiro entre as coordenadas foram anotadas as seguintes medidas:

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altura em relação ao solo, diâmetro morfoespécies. As identificações e a máximo, diâmetro do copo da bromélia nomenclatura estão de acordo com (centro da roseta) e número de folhas. Borror & Delong (1988). Além disso, foi medida a distância entre Para as análises de preferência de uma bromélia e outra e sua vizinha mais ocorrência em uma ou outra área foi próxima. Foram coletados exemplares utilizado o teste Chi-quadrado (χ2). A das bromélias presentes nos quadrados relação entre diversidade de artrópodes para identificação. O material coletado e morfologia das bromélias foi analisada foi comparado com exsicatas do herbário por regressão múltipla, sendo que os do Departamento de Botânica da dados foram transformados para uma Universidade de Brasília (UnB). Os escala logarítmica (base 10) para um artrópodes presentes nas bromélias melhor ajuste, conforme Zar (1984). O (copo e axilas) foram coletados com efeito do ambiente (campo ou mata) pinças e armazenados em álcool 70% sobre a morfologia das bromélias foi para posterior identificação. As espécies testado por análise de variância foram identificadas em nível de ordem (Manova) com o teste de Tukey HSD para ou família, sendo separadas em

Figura 1 Localização da área de estudo (Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros) no estado de Goiás, Brasil.

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amostras desiguais. Foi feita uma análise similaridade de Sorensen (Magurran, discriminante canônica para verificar se 1988). Como estavam se comparando as espécies de bromélias podiam ser bromélias de diferentes áreas, verificou- discriminadas em função de sua se, também, se o padrão de distribuição morfologia. A riqueza de espécies, espacial dos indivíduos de bromélias era encontrada nas áreas de mata e campo, o mesmo. Para tanto foi utilizado o índice foi comparada usando-se o índice de de distribuição espacial (C) dado por

Tabela 1. Relação das morfoespécies de artrópodes com número de indivíduos encontrados nas bromélias de campo rupestre e mata de galeria do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO).

Observação: relacionados apenas os indivíduos adultos das morfoespécies encontradas nas bromélias

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Ludwig & Reynolds (1988). O nível de A área de mata apresentou um maior significância considerado para as número de artrópodes (119) em relação análises foi de p ≥ 0,05. à área de campo rupestre (67 indivíduos). Apenas um grupo de espécies, da família Formicidae, ocorreu RESULTADOS preferencialmente na área de mata (χ2 = 7,28; p<0,05). As formigas Foram identificadas 38 espécies de predominaram tanto na área de mata, artrópodes em 81 bromélias avaliadas. quanto na área de campo, totalizando A maior parte da riqueza corresponde à 58% e 29,8% dos indivíduos coletados, classe Insecta (32 espécies), seguida da respectivamente. classe Arachnida (cinco espécies) e Miryapoda, com apenas uma espécie. A Foram encontradas cinco espécies de ordem com maior número de espécies bromélias, identificadas ao nível de foi a Orthoptera com 11 espécies, seguida gênero. No quadrado da área de campo de Coleoptera (nove espécies) e rupestre estavam presentes Dychia sp. e Himenoptera (oito espécies). A área de Bromelia sp., e na área de mata de galeria campo rupestre, onde foram investigadas Bilbergia sp., Aechmea sp. e Vriesea sp. 51 bromélias, apresentou uma riqueza Como Bilbergia sp. apresentou poucos de 26 espécies enquanto que a área de indivíduos, ela não foi considerada nas mata de galeria, que teve 30 bromélias análises. A despeito das características investigadas, apresentou 24 espécies taxonômicas, as bromélias estudadas (Figuras 2 e 3, Tabela 1). Na área de foram classificadas em função de suas campo rupestre a presença de artrópodes arquiteturas (número de folhas, altura foi detectada em 49% das bromélias e da bromélia, diâmetro do copo). na mata esse índice foi de 80%. A Os resultados da análise de sobreposição de espécies entre as duas variância, para testar o efeito da área áreas foi de 48%, segundo o índice de (campo ou mata) sobre as bromélias, similaridade de Sorensen. indicam que as de mata são diferentes

Figura 2 Número cumulativo de espécies de artrópodes em função do número de bromélias examinadas na área de campo rupestre do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO).

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das da área de campo (F4,74 = 0,291; morfométricas das bromélias não há

p<0,05) devido ao diâmetro do copo e diferenças significativas (R2 = 0,131; F4,44 ao número de folhas. A análise = 1,666; p>0,05). discriminante (Figura 4 e Quadro 1) As análises de regressão entre a corroborou esse resultado, com a abundância de Formicidae e o diâmetro separação das bromélias, sendo duas por da bromélia e do copo mostram uma cada área, em função das variáveis relação significativa (R = 0,692; F morfométricas escolhidas. 2 1,16 = 36,096; p>0,05; R2 = 0,332; F1,16 = Não foi encontrada uma correlação 7,973; p>0,05, respectivamente), significativa entre a arquitetura evidenciando que há mais formigas em (morfologia) das bromélias e a riqueza bromélias de maior porte. de espécies de artrópodes da área de Foi determinado que o arranjo campo rupestre (R = 0,296; F = 2 4,20 espacial das bromélias na área de 2,109; p<0,05), da mata de galeria (R 2 amostragem de campo rupestre é do tipo = 0,267; F = 1,732; p<0,05) ou de 4,19 agrupado enquanto na mata de galeria ambas (R = 0,169; F = 2,247; 2 4,44 esse padrão tendeu para homogêneo. As p<0,05). bromélias na área de campo estão, em A análise de regressão entre a média, localizadas a 49,9cm umas das abundância de indivíduos e as variáveis outras (N=51, DP=30,8) e na área de morfométricas, em escala logarítmica, mata estão a 53,2cm (N=30; DP=66,6). mostra que há um maior número de indivíduos em bromélias que possuem maiores diâmetros de copo (R = 0,100; 2 DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES F = 4,476; p<0,05) (Figura 5). Para 1,47 FINAIS abundância de indivíduos e as outras variáveis morfométricas, altura, diâmetro O processo de dispersão apresenta e número de folhas, e entre o número de algumas diferenças entre animais e espécies e o conjunto de variáveis vegetais. Nesses últimos, há uma

Figura 3 Número cumulativo de espécies de artrópodos em função do número de bromélias examinadas na área de mata de galeria do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO).

360 Bromélias e antrópedes

movimentação passiva, que depende de competição e predação intra e fatores alheios ao controle da planta, interespecíficas. como a existência de animais Para que o processo de colonização dispersores, correntes de ar, água etc. seja bem sucedido, é necessário que o Nos animais, o acaso tem uma menor ambiente explorado ofereça condições influência. A maioria dos animais, exceto propícias ao estabelecimento das os sésseis, é capaz de se locomover em espécies. As bromélias representam, para busca de outros ambientes, explorando alguns animais, locais onde é possível a as possibilidades de colonização de obtenção de alimentos, nidificação ou novas áreas. Vários fatores estão mesmo proteção temporária contra envolvidos nesse processo, mas os predadores. principais são a capacidade específica de locomoção, a amplitude de ambientes Mestre et al. (2001) coletaram 1.639 que satisfazem as necessidades de macroinvertebrados em 36 bromélias estabelecimento e as relações de durante estudo de um ano na mata

Figura 4 Análise discriminante canônica realizada com as medidas morfométricas de quatro espécies de bromélias nas áreas de campo rupestre e mata de galeria do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO).

Figura 5 Relação entre a abundância de indivíduos (Log) e o diâmetro do copo das bromélias nas áreas de amostragem do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO). Observação: R2 =

0,100; F1,47 = 4,476; p < 0,05.

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Atlântica. Grande parte desses longo do ano e a presença de pupa sugere macroinvertebrados consistia em formas que as formigas não estão utilizando as imaturas e foram mais abundantes os bromélias apenas devido ao Coleoptera Scirtidae, Diptera e Hymeno- comportamento alimentar. Nesse estudo, ptera. Nesse estudo, encontramos grande encontramos que a presença de formigas número de Orthoptera, Coleoptera e está positivamente associada à Hymenoptera, sendo Orthoptera o mais arquitetura das bromélias. Uma abundante, seguido por Coleoptera. explicação para a presença das formigas Orthoptera nunca havia sido na mata de galeria pode estar relacionada mencionado, em outros estudos, como às condições do solo. Como esse fauna dominante em bromélias. O ambiente é constantemente inundado, e segundo táxon mais abundante, o nível de água aumenta durante o Coleoptera, já tem sua ocorrência em período de chuvas, há uma restrição para bromélias bem conhecida. Um dos o estabelecimento de colônias sob o solo. motivos dessa ocorrência é a dieta desse Provavelmente o mesmo pode ocorrer grupo que consiste em algas e fungos com térmitas que nidificam no solo. A aquáticos, encontrados na água retida opção mais viável é a ocupação das nos copos das bromélias (Mestre et al., bromélias. 2001). Algumas hipóteses poderiam Diptera são os artrópodes mais explicar a maior utilização das bromélias estudados em associação com bromélias, por artrópodes na área de mata de focando principalmente ecologia de galeria: o espaçamento das bromélias, a população (Frank, 1990) e comunidade arquitetura ou a existência de locais (Salamandra, 1977; Privat, 1979; Ochoa, alternativos na área do cerrado para o 1993). Mestre et al. (2001) encontraram abrigo dos artrópodes. Uma vez que o a prevalência desse táxon nas bromélias padrão de distribuição das bromélias na terrestres, embora não existam dados área de campo foi agrupado e a distância que detectem essa preferência entre média entre as bromélias foi pequena, a bromélias epífitas e terrestres. distribuição espacial das bromélias não explicaria a falta de artrópodes. Caso tal Entre os Hymenoptera, como variável fosse importante, seria de se observado por Privat (1979), a esperar que na mata, onde o padrão de predominância é da família Formicidae. distribuição não é agrupado e as mesmas No entanto, Oliveira et al. (1994) localizam-se suspensas em árvores (não discordam dessa afirmação e não foi verificada a presença de bromélias consideram formigas como terrestres na área estudada), a presença características da fauna de bromélias. de artrópodes fosse menor. Outra Eles deduziram que a alta freqüência hipótese, a da arquitetura das bromélias, desses animais em bromélias, poderia explicar a variação na geralmente, é devida ao comportamento colonização. As maiores bromélias deste alimentar de formigas de colônias estudo (Bilbergia sp. e Aechmea sp.) vizinhas. Em nosso estudo na mata de foram encontradas na área de mata e galeria há significante presença de essas se distinguem das do campo formigas em bromélias, além de uma rupestre (Bromelia sp. e Dychia sp.). As preferência pela área de mata de galeria. bromélias do campo rupestre apresentam Mestre et al. (2001) observaram que a uma arquitetura mais semelhante entre freqüência desse táxon pode variar ao si, possuem menor porte do que as de

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mata e quase não concentram água entre vimento desse estudo. Também à suas folhas. A existência de locais administração do Parque Nacional da alternativos como locas entre pedras, Chapada dos Veadeiros que deu para o abrigo dos artrópodes seria a permissão para o trabalho na área. hipótese mais razoável para explicar a Obrigada também a Naíldes P. da Silva ausência desse tipo de fauna nas que ajudou nas coletas, e a J. A. de bromélias do campo rupestre. Carvalho e Dr. J. Ratter pela assistência. Agradecemos ao CNPq e CAPES pelo apoio financeiro durante nosso curso de AGRADECIMENTOS doutorado. E finalmente agradecemos aos dois revisores desse trabalho que Agradecemos ao Prof. Alexandre B. forneceram valiosas contribuições. Araújo, pelo incentivo ao desenvol-

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364 PPPParteartearte IVIVIVarte IV

ConservaçãoConservaçãoConservaçãoConservaçãoConservaçãoConservação365

CapítuloCapítulo 2222Capítulo 2222Capítulo FOTO: M. HARIDASAN FOTO: DesafiosDesafios parapara aa M. HARIDASAN FOTO: conservaçãoconservação dodo Cerrado,Cerrado, emem faceface dasdas atuaisatuais tendênciastendências dede usouso Cleber J. R. Alho Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal ee ocupaçãoocupação Campo Grande, MS. 368 Desafios para a conservação

INTRODUÇÃO consiste, em resumo, nas bases biológicas da conservação da natureza Este trabalho sobre conservação do que prevêem as conseqüências da ação Cerrado motiva mais uma oportunidade do homem sobre os ecossistemas de se concentrar foco nos valores da naturais e as espécies do bioma. sociedade brasileira e nas direções que devem ser tomadas diante da necessidade de progresso e das ameaças AMEAÇAS: A QUESTÃO MAIS à biodiversidade. O ciclo de vida na AMPLA DA EXTINÇÃO DE ESPÉCIES natureza, agora, não apenas muda por causa dos eventos naturais, como Na década passada, a questão da estações de seca e chuva, ou, numa conservação do Cerrado foi discutida a escala mais ampla, pela força da seleção partir de argumentos conflitantes, com natural, mas, muda drasticamente pela posições de pessoas que defendiam o ação do homem, eliminando e reduzindo preservacionismo (meio ambiente habitats naturais e suas espécies intocável), chegando a extremos, com associadas. acusações de iniciativas antidesen- A ausência de conhecimento volvimentistas. Hoje, a diversidade de científico e de tecnologia para uso e visões sobre a conservação da natureza ocupação do Cerrado, hoje, está reflete a diversidade de inspirações e significantemente compensada pelo convicções em defesa do Cerrado: para avanço e contribuição da pesquisa e da uso sustentável de recursos, inclusive, experimentação. Entretanto, é essencial genético e de biotecnologia; para uma conscientização e uma firme atitude recreação e turismo; para manter os elos a ser tomada pela implementação de culturais e espirituais de sociedades políticas públicas, para a conservação e tradicionais; pelos serviços ecossis- o uso sustentável deste bioma. O têmicos de água limpa, ar puro e controle conhecimento científico sobre o Cerrado, de epidemias; pelo valor intrínseco e acumulado nos últimos anos, tem estético da natureza e suas espécies; por oferecido contribuição valiosa para a questões morais e éticas, e por várias Biologia da Conservação, ciência que outras razões.

369 Alho

Essa diversidade de visões e do enorme portfolio de espécies na convicções, também, se consolida entre natureza. cientistas, como ocorreu em agosto de Os “hotspots” identificados de 2001, na reunião internacional em Hilo, biodiversidade apresentam grande Havaí, organizada pela Society for variedade de espécies e excepcional Conservation Biology, onde manifes- perda de habitats . Desse modo, o tações desesperadas, diante da perda da conceito de “hotspot” se apóia em duas biodiversidade, contrastaram com bases: endemismo e ameaça (CI, 2000). opiniões mais conservadoras (Gibbs, As espécies endêmicas são mais restritas 2001). Entre muitos cientistas há um em distribuição, mais especializadas e quase desespero, diante do nível mais susceptíveis à extinção, em face das alarmante de espécies que estão mudanças ambientais provocadas pelo desaparecendo (Levin, 2001; Lomborg, homem, em comparação com as espécies 2001; Regan et al., 2001). Contudo, tem que têm distribuição geográfica ampla. sido difícil determinar com precisão essa O endemismo de plantas é escolhido taxa de extinção em ambientes de alta como primeiro critério para definir um diversidade de espécies, como o Cerrado. “hotspot”, porque plantas dão suporte O temor manifesto de alguns a outras formas de vida. O grau de conservacionistas é que esse “holocausto ameaça é a segunda base do conceito de biótico”, segundo alguns, esteja “hotspot” e é, fortemente, definido pelo eliminando do patrimônio natural, grau de perda de habitat , isto é, quando espécies cujo código genético nunca a área perdeu pelo menos 70% de sua chegaremos a conhecer. cobertura original onde se abrigavam espécies endêmicas. Segundo o estudo Tem-se considerado, por exemplo, o citado da Conservação Internacional, dos peso real das espécies de vertebrados e 1.783.200 km2 originais do Cerrado, plantas superiores, tão enfatizadas na restam intactos 356.630 km2, ou 20% do preocupação de conservação, mas que bioma original, justificando a são minorias no portfolio da diversidade caracterização desses habitats como de vida na natureza. Como cerca de 90% “hotspots”. das espécies na natureza (principalmente organismos inferiores na escala biológica A questão central da conservação como nematódeos, insetos, crustáceos, recai sobre o tema político e social, onde vírus, bactérias, fungos, algas e outras o cientista tem participação pouco formas de vida) foram sequer expressiva na elaboração das políticas inventariadas, fica difícil estimar o exato públicas. Tem sido difícil persuadir os nível de extinção e a conseqüente perda políticos, diante da pressão social, que da biodiversidade. O próprio enfo- o combate à pobreza, à miséria, e que da preocupação em mamíferos (com também o desejo de desenvolvimento 4.650 espécies conhecidas no mundo, econômico e social, pressupõem a 195 no Cerrado, contrastando com mais necessidade de conservação da natureza. de 1 milhão de espécies de insetos) e, A perda da biodiversidade, alcançada do mesmo modo, em aves e peixes, tem pela extinção irremediável de espécies levado os conservacionistas a de flora e fauna só agrava os problemas determinarem os chamados “hotspots” da população humana. A prática tem para conservação, o que centraliza a demonstrado que, no caso de destruição preocupação num componente pequeno da natureza, como desmatamento, sobre-

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pesca, sobre-caça etc., destruindo às de produtividade, principalmente em vezes irreversivelmente os habitats Mato Grosso. Para a safra 2004/2005, naturais, a população local pobre é a está prevista a colheita de cerca de 130,9 primeira que sofre as conseqüências da milhões de toneladas de grãos, segundo degradação da natureza. o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Os custos da Por que a Convenção da Biodiver- produção da soja no Cerrado, com as sidade, assinada por 178 países durante experimentações e a tecnologia que a a conferência mundial Rio 92, ainda não Empresa Brasileira de Pesquisa foi plenamente implementada? Apesar de Agropecuária (EMBRAPA) e o setor hoje haver bom conhecimento do privado conduziram, são cerca de a potencial dos recursos da biodiversidade, metade do custo da produção nos com aplicações na biotecnologia, nos Estados Unidos. No ano de 2003, as alimentos, nos medicamentos e em vendas externas de produtos outros fins, o principal empecilho agropecuários renderam ao Brasil US$ levantado é o nível de pobreza das 36 bilhões, com superavit de US$ 25,8 populações humanas nos países ricos em bilhões (MAPA, 2004). biodiversidade. Embora esses dados variem de ano Além disso, têm-se enfatizado os para ano, em função da produção de “serviços ecossistêmicos”, prestados outros países e do comércio inter- pela biodiversidade, tais como qualidade nacional, o fato inconteste é que a da água, do ar, estoques pesqueiros, agricultura e a pecuária têm tido proteção contra pragas e outros aspectos expressão no Cerrado. Enquanto se pragmáticos, para persuadir os celebra esse sucesso econômico, a custo tomadores de decisão, reservando o da conversão da vegetação natural em enfoque moral da extinção de espécies e campos produtivos, por outro lado, a o tema estético e ético da conservação conservação dos diferentes ecossistemas da natureza ao âmbito dos naturais (campos, Cerrado, Cerradão, conservacionistas. mata de galeria etc.) não tem O grande problema da persuasão acompanhado esse progresso. sobre a importância da conservação da A cultura da soja, com a utilização biodiversidade está relacionado sempre de sementes geneticamente modificadas, ao aspecto socioeconômico da questão, tem-se expandido no Brasil, com maior isto é, ao argumento utilitário. O Governo expressão entre pequenos e médios e os produtores rurais defendem que o produtores do estado do Rio Grande do avanço da soja no Cerrado tem Sul. A legislação vigente, preocupada contribuído substancialmente para a com as conseqüências dessa prática, faz riqueza da região, aumentando as recair sobre os produtores a respon- exportações e gerando divisas para o sabilidade de possíveis danos ao meio país. Economistas apontam para o fato ambiente e a terceiros, devendo eles de a produção rural ter registrado responderem, solidariamente, pela expansão mais estável e superior à média indenização ou reparação integral do da economia. A safra de grãos de 2003/ dano, independentemente da existência 2004 teve números expressivos: 47,4 de culpa (MAPA, 2004). milhões de hectares de área plantada e colheita de 119,3 milhões de toneladas, Outros argumentos econômicos e com a soja acusando significativo ganho utilitários, resistentes à necessidade da

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conservação, afunilam para um ponto desmatamentos para diversos objetivos; ainda mais radical: por que proteger expansão da fronteira agrícola e pecuária centenas e milhares de espécies, se (sem ordenamento ecológico-econô- somente cerca de 30 espécies de vegetais mico); contaminantes ambientais cultivados suprem cerca de 90% das (emprego desordenado de pesticidas, calorias da dieta do homem e somente herbicidas e outros tóxicos ambientais, cerca de 14 espécies de animais provocando a bio-magnificação na contribuem com 90% da dieta de cadeia trófica, além da poluição das proteína animal? águas e do solo); erosão, assoreamento de corpos d’água, lixiviação e perda de solos devido ao emprego de técnicas não AMEAÇAS: REDUÇÃO, PERDA, apropriadas de uso do solo; uso MODIFICAÇÃO OU DEGRADAÇÃO predatório de espécies (sobre-explotação DE HABITATS de espécies da flora e fauna); implantação de grandes obras de infra- Há consenso em concluir que tem estrutura (impactos causados pela havido um processo de extirpação abertura de rodovias, hidrovias, significante da biodiversidade do construção de hidrelétricas e outras Cerrado pela ação do homem. Esse grandes obras); turismo desorganizado impacto adverso é devido à magnitude e predatório e outras causas. da escala da ocupação do bioma pelo Dois fatores têm sido identificados homem. É bom lembrar que o conceito como empecilhos para a implementação de biodiversidade se apóia num tripé: da legislação ambiental: a fragilidade diversidade de espécies (representando institucional, com a conseqüente o número de formas de vida no nível de deficiência na fiscalização, e a falta de espécies e suas populações), diversidade conscientização sobre a necessidade da genética (representando as diversas proteção do meio ambiente. Dois casos variedades subespecíficas ou genéticas podem ser ressaltados para ilustrar essas das formas de vida) e diversidade deficiências: a dificuldade de imple- ecossistêmica (representando as diversas mentar integralmente a chamada Lei de paisagens naturais como campo, campo Crimes Ambientais ou Lei da Natureza sujo, campo úmido, cerrado no sentido (Lei n.o 9.605/98) e o cumprimento da restrito, campo-cerrado, cerradão, mata- Lei de Recursos Hídricos (Lei n.o 9.433/ seca, mata-ciliar e de galeria, vereda 97) para, por exemplo, proteção das etc.). Cada um desses elementos pode nascentes e matas ciliares. sofrer influência de pelo menos três tipos A análise e interpretação dessas de pressão: física (degradação ou perda ameaças merecem um estudo mais de habitats), química (ação de refinado para caracterizar melhor o grau contaminantes ambientais e poluição), e a escala da perda e modificação, do e biológica (introdução de espécies impacto sobre as espécies locais, exógenas, perturbação na cadeia trófica, inclusive com a introdução de espécies eliminação de espécies-chave da exógenas e dispersão de doenças. Essa comunidade ecológica) e outros fatores. análise, por exemplo, poderia focar sobre Há diversas causas ou fatores as espécies oficialmente listadas como identificados como ameaças ao Cerrado: ameaçadas de extinção, de acordo com fogo (sem controle, ateado durante a a Lista Nacional de Espécies da Fauna época de seca para “limpar” o pasto); Brasileira Ameaçadas de Extinção,

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elaborada pelo MMA (Ministério do Meio Florestas Nacionais (FLONAs), Ambiente) e parceiros, publicada em 27 perfazendo um total de 4.056.980ha de de maio de 2003. Igualmente, a Portaria áreas protegidas pelo Sistema Nacional 37-N, de 3 de abril de 1992, do IBAMA de Unidades de Conservação (SNUC), a (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e cargo do IBAMA (excetuando-se aqui as dos Recursos Naturais Renováveis), Reservas Particulares do Patrimônio relaciona 107 espécies da flora brasileira Natural – RPPNs). Esse total representa ameaçadas de extinção (IBAMA, 2004). 2,06% da área do bioma, o que está muito longe do alvo indicado pelo O foco a partir de algumas espécies Congresso Internacional de Áreas ameaçadas começa a ser feito, com a Protegidas ocorrido em Caracas, elaboração de aproximadamente dez Venezuela, e adotado pelo Governo planos de manejo para espécies animais Brasileiro como um alvo a ser atingido. listadas, como a jaguatirica Leopardus Deve-se ressaltar ainda a carência de pardalis e o lobo-guará Chrysocyon implementação efetiva dessas unidades brachyurus e de plantas, como a cerejeira de conservação, em particular das APAs, Amburana cearensis e o cedro Cedrela cujo objetivo conservacionista tem sido, fissilis. Contudo, é necessário o enfoque na prática, bastante contestado. a partir da visão de grau de ameaça para tentar categorizar a perda e destruição O 5° Congresso Internacional sobre de habitats do Cerrado. Parques (Fifth World Parks Congress) que ocorreu em Durban, África do Sul, A questão histórica das ameaças e em setembro de 2003, e o Congresso de suas tendências atuais estão Brasileiro de Unidades de Conservação, documentadas na literatura (Alho e ocorrido este ano de 2004, em Curitiba- Martins, 1995). Por outro lado, enquanto PR, mostraram que pouco se alcançou a ocupação do Cerrado se intensifica, as quanto ao objetivo de proteger a medidas de implantação de áreas diversidade de espécies que ocorre no protegidas e mesmo a efetiva bioma (Rodrigues et al., 2004)., Embora participação de projetos conserva- tenha havido expansão das áreas cionistas têm sido tênues, de vez que as protegidas, no sentido de atingir o alvo áreas efetivamente protegidas estão bem de 10% da área do bioma, estabelecido aquém do planejado. Lista de Unidades pelo congresso internacional anterior, de Conservação no Cerrado, de acordo ocorrido em Caracas, Venezuela. Quando com a Diretoria de Ecossistemas do os autores cruzam a distribuições de IBAMA, atualizada em 15/6/2004 espécies do bioma com a distribuição (www.ibama.gov.br) mostra que há das unidades de conservação existentes, 1.867.430ha de área protegida na aplicando análise de vazios (gap categoria de Parques Nacionais analysis), concluem que as atuais áreas (PARNAs); 3.461ha de Reservas protegidas não abrigam todas as espécies Biológicas (REBIOs); 502.517ha de do bioma. Cerca de 20% das espécies Estações Ecológicas (ESECs); 128.521ha ameaçadas são identificadas como de Refúgios de Vida Silvestre (); espécies de falhas, isto é, não são 1.516.219ha como Áreas de Proteção protegidas pelas unidades de Ambiental (APAs); 2.329ha como Áreas conservação existentes. de Relevante Interesse Ecológico (ARIEs.); 20.172ha como Reservas A meta anunciada do Governo tem Extrativistas (RESEXs) e 16.331ha como sido proteger pelo menos 10% da área

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do bioma, o que evidentemente, na ameaças (conversão de habitats naturais prática, está longe de ser atingido no caso para agricultura e pecuária). do Cerrado. Além disso, os chamados Os estudos consideraram projetos integrados de conservação e também a questão da perda de habitats, desenvolvimento têm tido dificuldades no período entre 1985 e 1997, sobre a de aferir seus resultados efetivos fauna regional, tomando mamíferos (Salafsky e Margolius, 1999). De tal silvestres como indicadores. No enfoque modo, que há dúvidas se a intervenção do estudo, a perda de habitats pondera conservacionista, por intermédio dos o percentual de habitat potencial de cada chamados projetos com enfoque espécie de mamífero silvestre estudada socioeconômicos, está de fato durante os 12 anos considerados. Foram funcionando. Uma dificuldade na selecionadas 100 espécies de mamíferos implementação e monitoramento de silvestres ocorrendo no local, projetos é a falta de definição clara de representadas por nove ordens e 25 indicadores ambientais, embora, por famílias, dentre as quais há 13 espécies exemplo, o Banco Mundial tenha consideradas sob algum grau de ameaça proposto diretrizes para esse fim de extinção em nível nacional (lista do (Segnestam, 1999). IBAMA) ou internacional (lista vermelha da UICN e anexos da CITES). Os resultados apontaram para cinco grupos AMEAÇAS: ESTUDO DE CASO de animais. O primeiro grupo, com 14 SOBRE A BACIA DE MANSO, MATO espécies de mamíferos, sofreu redução GROSSO. de habitat superior a 40%, e era representado por espécies que utilizavam A bacia hidrográfica do rio prioritariamente ambientes florestados e Manso (com 10.880 km2, onde hoje há arborizados (matas de galeria e cerrado uma represa hidrelétrica) caracteriza-se sentido restrito). O segundo grupo de por um mosaico de fitofisionomias de mamíferos perdeu entre 30 e 40% do Cerrado, com diversos tipos de habitats habitat , representado por espécies que e fauna silvestre bem representada (Alho habitam ambientes florestados, et. al., 2000; Alho et al., 2003). A arborizados e campos. O terceiro grupo expansão da agricultura e pecuária sofreu redução de 8 a 12% do habitat reduziu as áreas naturais em 30%, entre potencial. O quarto grupo de mamíferos, 1985 e 1997, e a vegetação remanescente capazes de explorar habitats alterados, perdeu outros 3% com a implantação da sofreu redução de habitat potencial em usina hidrelétrica, conforme documenta 4%. E, finalmente, o quinto grupo de estudo baseado em imagens de satélites mamíferos, representado por seis e verificação no campo (Schneider e espécies, se beneficiou das alterações, Alho, no prelo; Schneider et al., no pois são espécies que exploram prelo). Dentre os indicadores de ambientes abertos e modificados. paisagem do local, o percentual da vegetação natural remanescente foi o Dentre as 17 espécies identificadas indicador que sofreu ação mais com maior grau de risco, na área de desfavorável, devido ao seu decrescente estudo, estão o tatu-canastra Priodontes percentual, durante os 12 anos maximus e primatas como Ateles chamek analisados e em virtude da alta e Aotus azarai, para citar somente três vulnerabilidade diante da pressão das exemplos. Em síntese, a perda de

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habitats potenciais afetou drasticamente de que há forte interação entre essas 24% das espécies de mamíferos espécies dentro de cada guilda, mas com silvestres que ocorrem no local, sendo interações fracas entre guildas diferentes; que 17% das espécies estudadas estão e (2) sincronização na escala de tempo em situação de risco. de agregação de espécies (abundância) com a oferta de recursos sazonais, notadamente, alimento e nichos DIVERSIDADE DE ESPÉCIES E reprodutivos. MOSAICO DE HABITATS: Há indícios de que a cadeia trófica, EVIDÊNCIAS COM VERTEBRADOS nesse caso, faculta maior abundância de espécies da fauna, e no caso de Com o advento da Biologia da vertebrados, principalmente aves, Conservação, os pesquisadores em anfíbios e alguns répteis e mamíferos, Ecologia passaram a enfatizar o papel onde os elos alimentares sazonais atuam da diversidade e abundância de espécies mais no nível da abundância local, sendo da fauna silvestre em seus habitats mais ou menos independentes da naturais como a expressão de interações diversidade (Alho et al., 2003). ecológicas, particularmente competição por recursos alimentares, reprodutivos, Desse modo, a distribuição de de uso de espaço e outros. Os processos espécies, numa escala ampla, varia ecológicos que anualmente - ou em desde os limites máximos de onde a períodos esporádicos maiores – espécie ocorre (distribuição geográfica) influenciam nos ciclos de vida da fauna a uma área de maior ocorrência da silvestre, como os períodos sazonais de espécie (distribuição regional). Já o seca e chuva do Cerrado, atuam nas termo abundância é usado para designar escalas temporal e espacial, estabele- o tamanho (ou densidade) da população cendo diferenças locais ou regionais, local. Na prática, o termo “local” se quando comparadas, em larga escala refere sempre à área amostral de um biogeográfica com os biomas vizinhos determinado estudo. (Alho et al., 2002; Alho et al., 2003). É bem conhecido que as espécies Em Ecologia, há consenso de que a capazes de explorar um leque amplo de diversidade de espécies é fruto de uma recursos se tornam, no decorrer de sua variedade de processos ecológicos e evolução, de distribuição geográfica evolutivos, com causas históricas e ampla e localmente abundante. Algumas geográficas. Contudo, o número de espécies de vertebrados do Cerrado espécies coexistindo numa escala parecem seguir essa tendência: têm espacial ampla, como no Cerrado, varia distribuição geográfica ampla, ocorrendo significantemente em abundância local, em todo o bioma e em outros biomas em função de recursos sazonais brasileiros, mas ocorrem em altas regionais. densidades em certos períodos sazonais da região. Por exemplo, parece não haver A oferta sazonal desses recursos leva diferenças interespecíficas de verte- a dois fenômenos: (1) associações e brados entre o Cerrado e o Pantanal (não agregações de espécies que interagem parece haver diferença no grau de entre si, resultando no compartilhamento especiação ecológica), mas algumas de unidades ecológicas, que formam as populações que ocorrem no Pantanal chamadas guildas, com a característica usam recursos que são mais abundantes

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ou mais produtivos (Alho et al., 2002 e menor de espécies endêmicas para o Alho et al., 2003). Cerrado. Já as plantas vasculares do Cerrado contam com cerca de 10 mil Há evidências documentadas por espécies, sendo 4.400 endêmicas, trabalhos científicos que mostram que a comparadas com 20 mil espécies da Mata variação da estrutura da fauna do Atlântica, sendo 8 mil endêmicas (Eiten, Cerrado (composição de espécies e 1993). diversidade de aves e pequenos mamíferos) ocorre em escala regional ou Outros estudos (MMA, 1999; Alho biogeográfica, por exemplo, quando et al., 2002) citam para o Brasil 195 esses estudos comparam diferentes espécies de mamíferos para o Cerrado bacias hidrográficas (Silva, 1996; Palma, (sendo 95 espécies voantes – morcegos, 2002; Alho, no prelo). Essas diferenças e 96 que dependem de habitats em composição de espécies podem estar florestados ou arborizados, contra relacionadas à penetração faunística que somente 14 espécies que vivem em áreas historicamente se deu pela malha exclusivamente abertas ou em habitats hidrográfica de outros biomas, como a aquáticos). Esses números, no Pantanal Amazônia, no caso da bacia do rio (que é um bioma com grande influência Manso. Essa penetração faunística pode, de Cerrado, mas com características de ainda, ser explicada pela expansão de uma planície inundável com drástico florestas ocorrida no passado sobre a regime anual de enchente e vazante), região do Cerrado (Ledru et al. 1998). mostram 132 espécies de mamíferos para a planície inundável (sendo 62 voantes, Há, também, diferenças na 55 dependentes de habitats florestados composição das comunidades e arborizados e 15 de habitats abertos e ecológicas, tanto de animais como de aquáticos). Estudos mais específicos plantas, quando os estudos comparam indicam 144 espécies de morcegos, das diferenças intra-habitat, isto é, no quais 80 são citadas para o Cerrado. mesmo tipo de habitat, e inter-habitats, Levantamentos feitos localmente, por ou seja, entre habitats diferentes (Alho, exemplo, no município de Serranópolis, 1981; Alho et al. 1986; Silva, 1996; sudoeste de Goiás (18° 25' S e 52° 00' Oliveira-Filho e Ratter, 1995 e Palma, W), em 758 coletas de morcego foram 2002). identificadas 25 espécies, com Segundo levantamento da predominância de morcegos insetívoros, Conservação Internacional (2000) há no seguidos de frugívoros (Zortea, 2001). Cerrado os seguintes números de Os índices de diversidade aplicados nos vertebrados: anfíbios - 150 espécies, dados desse estudo mostram que o local sendo 45 endêmicas; répteis - 120 é de alta diversidade de espécies e alta espécies, sendo 24 endêmicas; aves - 837 abundância para Glossophaga soricina. espécies, sendo 29 endêmicas; Quando se compara a distribuição mamíferos - 161 espécies, sendo 19 de anfíbios, répteis, aves e mamíferos endêmicas; perfazendo um total de 1.268 do Cerrado com a do Pantanal, e de espécies de vertebrados terrestres (sendo outros biomas vizinhos, as seguintes 117 endêmicas). Esse total do Cerrado, conclusões são ressaltadas (Alho et al., comparado com a Mata Atlântica, outro 2002): bioma ameaçado (que tem 1.361 espécies de vertebrados terrestres com 567 1. Há 85 espécies de répteis endêmicas), indica um número bem ocorrentes na planície inundável

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do Pantanal (sem serem herpetofauna da porção norte do exclusivas da região) e outras 94 Pantanal e da localidade no somente registradas, até o planalto. Enquanto na primeira a momento, em áreas do entorno, representatividade de anfíbios e num total de 179 espécies de de répteis com hábitos aquáticos répteis para a bacia do Alto ou semi-aquáticos é superior à de Paraguai, isto é, região de formas fossoriais, no planalto Cerrado. Quanto aos anfíbios ocorre o inverso, sendo as formas (anurofauna), são conhecidas de hábitos fossoriais relativa- pelo menos 45 espécies na mente mais numerosas do que na planície e 80 no entorno planície; (Cerrado). Apresentando menor 4. Há 837 espécies de aves heterogeneidade de habitats e ocorrendo no Cerrado (das quais maior disponibilidade de corpos 759 ou cerca de 90%, se d’água permanentes (menor reproduzem no bioma, Silva, número de habitats com 1995) contra 444 espécies condições ecológicas contras- distribuídas no Pantanal. Cerca de tantes), a planície inundável 80% das aves do Cerrado abriga espécies de anfíbios em dependem de habitats florestados geral abundantes e de ampla ou arborizados. A grande abun- distribuição. Já as áreas de dância documentada da avifauna entorno da bacia do alto Paraguai, do Pantanal é composta por aves especialmente as altas cabeceiras paludícolas que se agregam em em área de Cerrado, são torno de recursos sazonais virtualmente desconhecidas do alimentares ou reprodutivos, ponto de vista de sua anurofauna. formando, em muitos casos, Os poucos inventários existentes guildas de espécies. indicam haver, aí, maior número de espécies num dado sítio e 5. O comportamento reprodutivo de maior “turnover” de espécies algumas espécies mostra sincro- entre sítios; nismo entre o regime de enchente e vazante, com reflexos no 2. Na planície, formas exclusivas de sucesso reprodutivo. biomas abertos representam cerca de 54% da fauna total de répteis, 6. Há deslocamento sazonal das enquanto que, no planalto, essa aves paludícolas entre a planície contribuição equivale a apenas e o planalto, ou mesmo entre 42%. Já o número de formas diferentes sub-regiões da planície, “amazônicas”, por exemplo, é embora esses dados ainda sejam duas vezes maior na fauna de incipientes para muitas espécies répteis de localidade no planalto e contenham evidências para (Cerrado) do que entre os répteis outras, como é o caso do tuiuiú. registrados para o Pantanal; 7. Tanto no Pantanal quanto no 3. A importância relativa de formas Cerrado, a grande diversidade de com hábitos aquáticos ou semi- espécies resulta da presença de aquáticos e de formas com ambientes florestados nesses dois hábitos fossoriais distingue a biomas, tais como matas ciliares,

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matas de galeria, cerradão e Trabalho, estabelecido em cumprimento demais formações arborizadas. ao Termo de Compromisso assinado pelo Ministro, por seus Secretários e outras 8. A ampla distribuição de mamí- autoridades, para propor subsídios para feros no bioma Cerrado encontra essas diretrizes e ações. na planície pantaneira ambientes propícios de oferta de nichos Esse Grupo de Trabalho, formado alimentares e reprodutivos, por representantes dos Estados, das dentre outros, que favorecem a instituições acadêmicas e de pesquisa abundância, principalmente em científica, das ONGs, em conjunto com áreas abertas, próximas a áreas a equipe do Ministério, numa feição arbóreas, como é o caso da multidisciplinar e interinstitucional, capivara Hydrochaeris hydro- trabalhou de fevereiro a novembro de cheris e do cervo Blastocerus 2000, com reuniões mensais em Brasília, sob os auspícios do Ministério do Meio dichotomus; Ambiente, produzindo o documento 9. As análises que mostram as “Diretrizes para uma política integrada espécies de mamíferos mais de conservação e uso sustentável para o dependentes de ambientes Cerrado/Pantanal”, (MMA, 2000a). florestados podem sugerir As diretrizes identificadas pelo espécies indicadoras ou espécies- Grupo de Trabalho (tomando por base chave para esse tipo de ambiente, também os tópicos ressaltados nos como é o caso do bugio Alouatta documentos “Subsídios à elaboração da caraya para as matas ciliares ao Agenda 21 Brasileira”) convergem para longo dos rios do Pantanal. Por ações dos governos federal, estaduais e outro lado, as espécies indica- municipais, da pesquisa científica, do doras de ambientes abertos, setor privado, mormente da área rural, como a capivara e o cervo, têm das ONGs, dos povos locais, enfatizando grande apelo para o ecoturismo suas tradições e culturas, enfim, da da região. sociedade (MMA, 2000b). Estas diretrizes dão, ainda, destaque ao compromisso do Governo, no que tange AÇÃO PARA POLÍTICA PÚBLICA: estabelecer áreas protegidas represen- DOCUMENTOS RELEVANTES tativas dos ambientes focais do bioma, bem como da implementação no campo Iniciativas do Ministério do Meio da legislação recente, como a de recursos Ambiente visando estabelecer diretrizes hídricos. As dimensões ambientais, para a conservação e o uso sustentável do Cerrado/Pantanal resultaram na econômicas e sociais do documento promoção das “Ações Prioritárias para a orientam as diretrizes e metas para a Conservação da Biodiversidade do conservação do Cerrado/Pantanal, ao Cerrado e Pantanal”, (MMA, 1999) mesmo tempo em que se inserem no representando a contribuição oriunda compromisso de repensar e agir com das atividades promovidas em 1997/ novas ações para o uso do ambiente, em 1998, com a participação de várias direção do desenvolvimento, para as instituições. Em prosseguimento, o várias atividades humanas, incluindo o Ministério criou, pela Portaria nº 298 de meio urbano e metropolitano e sua 11 de agosto de 1999, um Grupo de dependência do campo.

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O impacto dramático das ameaças à demonstrado a importância do bioma em biodiversidade e outros recursos diversidade de espécies e riqueza naturais, como a água, está bem genética e ecossistêmica, no mosaico de documentado na literatura (ANA, 2004). ambientes que contém essa cobertura Este documento inspira o desejo de natural. expansão, de progresso, de demanda de recursos da natureza, sem se sobrepor CONSIDERAÇÕES FINAIS ao fato de que há meios identificados que podem conciliar o desenvolvimento, O Grupo de Trabalho multidis- de maneira sustentável, com o ciplinar interinstitucional, que atuou sob compromisso de proteger parcelas o patrocínio do Ministério do Meio representativas da biodiversidade. O Ambiente, propôs diretrizes prioritárias desafio não é desmobilizar o conflito, de políticas públicas para conservação mas indicar o caminho conciliado em e uso sustentável do Cerrado, as quais busca de necessidades competitivas, por devem ser resgatadas para imple- meio da intervenção, da gestão, do mentação. manejo, com a aceitação de que tudo isso é para benefício de todos. Embora se tenha avançado na questão conceitual da conservação do O documento mantém a preocu- Cerrado, há ainda um longo caminho a pação em conciliar o desenvolvimento percorrer para a implementação econômico e social com os compro- concreta, e de fato, de medidas efetivas, missos de conservação e uso sustentável em todos os enfoques. Dois exemplos de recursos. Enfoca, ainda, o processo ilustram essa distância entre o ideal e a de conscientização e educação ambien- realidade de ocupação e uso: primeiro, tal, os temas de biossegurança, o a dificuldade de se aplicar o que processo participativo e de integração do determina o código florestal brasileiro, Cerrado/Pantanal com os outros biomas particularmente, a proteção de matas brasileiros e o contexto dos acordos, ciliares e de galerias, nos campos onde tratados e convenções internacionais avançam o cultivo de grãos; segundo, assumidos pelo País. embora o percentual de áreas protegidas Há, portanto, informações consisten- no Cerrado ainda esteja bem aquém do tes para um plano de ação que se espera nível de compromisso do Governo possa ser implementado. O IBAMA tem, (idealmente 10% do bioma), muitas ainda, identificado novas áreas unidades de conservação, oficialmente potenciais para serem protegidas por declaradas como tal, não estão unidades de conservação. A conversão apropriadamente implementadas, sendo ou modificação da cobertura natural do o que se denomina de “parques de complexo Cerrado do país, para diversos papel”. O grau de vulnerabilidade dos usos, tem sido drástica, conforme “parques de papel” depende do grau de ressaltado em trabalhos apresentados implementação que a área, oficialmente neste Simpósio. Por outro lado, a protegida, de uso indireto, tem literatura científica especializada tem experimentado (WWF, 1999).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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381 CapítuloCapítulo 2323Capítulo 2323Capítulo FOTO: GUARINO COLLI GUARINO FOTO: FOTO: GUARINO COLLI GUARINO FOTO: OcupaçãoOcupação dodo biomabioma CerradoCerrado ee José Felipe Ribeiro Embrapa Cerrados Planaltina, DF conservação da Samuel Bridgewater conservação da James Alexander Ratter Royal Botanic Gardens Edimburgo suasua diversidadediversidade Escócia José Carlos Sousa-Silva Embrapa Cerrados vegetalvegetal Planaltina, DF Alho

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INTRODUÇÃO apresentação de um rápido histórico da ocupação do Cerrado, a partir da A conservação da biodiversidade do segunda metade do século 20, a bioma Cerrado precisa ser inversamente caracterização dos aspectos da riqueza proporcional a sua ocupação? Desen- de espécies em fitofisionomias desse volvimento implica apenas em ocupar bioma e, finalmente, a discussão do novas e grandes áreas com agricultura papel da agricultura de grãos, soja em mecanizada e grandes cidades? especial, e da pecuária como elementos Qualidade de vida pode ser medida de alterações na diversidade natural, no apenas com incremento de renda? uso do solo e nos meios de vida das Apesar de fisionomicamente homo- populações humanas. Assumindo a gênea, a paisagem savânica do Cerrado continuação do ritmo dessa ocupação, apresenta a mesma diversidade florística essas informações são úteis no em todo o bioma? Qual é a riqueza de redirecionamento de políticas públicas espécies e o papel das matas ribeirinhas para o Cerrado. na manutenção dos ambientes vizinhos? Este texto aborda algumas das respostas a estas perguntas, apresentando HISTÓRICO resultados existentes sobre a intensa heterogeneidade local e regional da flora Preocupados com a exploração de das matas ribeirinhas e do Cerrado ouro e pedras preciosas, no início do sentido amplo, mostra, também, as século 18, os pioneiros da ocupação do tendências do ritmo da ocupação Cerrado criaram as condições iniciais humana na região e sugere alternativas para o estabelecimento de diversas para o ordenamento dessa ocupação por cidades no Centro-Oeste. Com a depleção intermédio da definição de novas desses recursos, a atenção foi transferida políticas públicas. Os objetivos para a pecuária extensiva, que ocupou a específicos deste trabalho são: a atenção desta região, até praticamente o

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final da década de 1950. Com a satélite mostram 67,1% como área construção de Brasília, o desenvol- ocupada para o Cerrado (MMA-SBF. 2002). vimento de infra-estruturas viárias A população total do Centro-Oeste, (ferrovias e rodovias) e as políticas em 1950, era de 1.736.965 habitantes. agrícolas desenvolvimentistas baseadas Ao final da década, em 1960, a nos princípios da revolução verde, como população da região era de 2.942.992 o Programa de Desenvolvimento do habitantes. A partir dessa data o Cerrado (POLOCENTRO) e o Programa crescimento demográfico vinculou-se, Cooperativo Nipo-Brasileiro para o principalmente, à capacidade de atração Desenvolvimento do Cerrado (PRODE- migratória da fronteira agrícola regional. CER), houve condições para a expansão No ano 2000, o contingente de uma agricultura extremamente populacional, praticamente, atingiu os 28 comercial (Alho & Martins 1995). Dentre milhões de pessoas (49,8% são do sexo os principais cultivos havia milho, arroz, masculino e 50,2% feminino) dos quais feijão e mais recentemente café, 21,64% estão na área rural e 78,36% na mandioca e, principalmente, a soja. urbana. Algumas áreas apresentam até O domínio do bioma Cerrado ocupa 37% de população rural, como é o caso 204 milhões de hectares dos quais pelo do Vão do Paranã, no nordeste de Goiás. menos 127 milhões (62% do total) A desaceleração do crescimento acontecem em solos com boas demográfico, com exceção do norte do perspectivas de mecanização agrícola. Mato Grosso, pode estar acontecendo Sano et al. (2001), utilizando um sistema pelo relativo esgotamento da capacidade geográfico de informação, estimaram que de atração migratória da fronteira a área ocupada do bioma Cerrado em agrícola. Este fato corrobora a idéia que 1996 era de cerca de 120 milhões de a ocupação do solo no Cerrado, foi hectares (59%), com aproximadamente principalmente provocada pelo fluxo 48 milhões (23%) com pastagem migratório da década de 1950 até 1990 e cultivada, 27 milhões (13%) com possui relação direta com as atividades pastagem nativa, 10 milhões com agropecuárias nele desenvolvidas culturas anuais (5%), 38 milhões (18%) (Ribeiro & Barros 2002). com outros usos (ex.: culturas perenes, florestais e urbanização), restando aproximadamente 85 milhões de RIQUEZA DE ESPÉCIES hectares (41%) como áreas relativamente intocadas (Figura 1). Entretanto, A idade geológica da formação do previsões baseadas em imagens de bioma e as mudanças dinâmicas do

Figura 1 Estimativa de ocupação do Cerrado em 1996 (Sano et al., 2001).

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quaternário, assim como fatores estudada no Cerrado sentido amplo espaciais locais e regionais da atualidade, (Cerrado Denso, Típico, Ralo e Campo levaram à enorme biodiversidade do Sujo) e nas Matas de Galeria. bioma Cerrado (Ratter & Ribeiro 1996). As Matas de Galeria e Matas Ciliares, Dias (1992) estimou valores superiores com mais de 30% das espécies de a 160.000 para a riqueza de espécies da plantas vasculares do bioma (Felfili et biota do bioma Cerrado onde insetos, al., 2001), têm extrema importância na fungos e angiospermas são responsáveis riqueza total do bioma, pois muitos são por 87% dessa diversidade. Dessa os elementos itinerantes da fauna das estimativa, as angiospermas somariam outras fitofisionomias do bioma Cerrado cerca de 10.000 espécies. que dependem dessa flora para Valores publicados, entretanto, alimentação, reprodução e nidificação. mostram o imenso desconhecido que Com relação aos mamíferos, essas matas ainda resta, para quantificar adequa- abrigam 80% das espécies comuns no damente estas espécies. Os números Cerrado, 50% dos endemismos e 24% disponíveis apresentam cerca de 6.500 das espécies ameaçadas de extinção da espécies para plantas vasculares região (Marinho Filho & Guimarães, (Mendonça et al., 1998). Já a fauna do 2001), para lagartos, das 47 espécies Cerrado apresenta baixo grau de encontradas 25,5% são endêmicas endemismo (Vanzolini, 1963; Sick, 1965; (Brandão & Araújo 2001) e para os Redford & Fonseca, 1986; Marinho-Filho anfíbios das 113 espécies, 28,3% também & Reis, 1989) apud Marinho-Filho & são endêmicas (Brandão & Araújo 2001). Guimarães (2001), compreendendo 212 Outro fator importante: essas matas são para mamíferos (Marinho Filho & diretamente responsáveis pela Guimarães, 2001), 180 para répteis quantidade e qualidade da água que (Brandão & Araujo 2001), 837 para aves corre nos cursos d’água do Brasil Central. (Silva 1995, Bagno & Marinho-Filho, Ademais, o Cerrado é considerado “o 2001). É importante ressaltar que o berço da águas”, pois abriga nascentes Cerrado é responsável por mais de 50% de importantes bacias hidrográficas da das espécies de aves encontradas no América do Sul. Em termos de área o Brasil, sendo que 90,7% se reproduzem Cerrado abrange 78% da bacia do nesse bioma (Silva 1995) e apenas 32 Araguaia-Tocantins, 47% do São são endêmicas do Cerrado (Silva, 1997; Francisco e 48% do Paraná/Paraguai MMA – SBF. 2002). (Lima & Silva 2002). Estes mesmos autores realçam ainda que, em termos Enquanto o número de espécies de contribuição para a quantidade de endêmicas da fauna é relativamente água das bacias, os números são ainda pequeno, o mesmo não acontece para mais relevantes, pois o Cerrado é flora. Myers et al. (2000) estimaram que responsável por 71% na bacia do 44% da flora do bioma é endêmica. O Araguaia/Tocantins, 94% no São número de plantas vasculares apontado Francisco e 71% no Paraná/Paraguai. por Mendonça et al., (1998) no bioma Assim sendo, qualquer ocupação no Cerrado chega a 6.429, onde 33% delas, Cerrado vai refletir em outros locais. apesar de também ocorrerem em outros biomas, no Cerrado são encontradas O estabelecimento e a distribuição apenas nos ambientes ribeirinhos. A espacial das espécies nas florestas biodiversidade do bioma foi mais bem ribeirinhas, em termos locais, parecem

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ser mais relacionados às condições como freqüentes, porém não exclusivas hídricas que com a fertilidade natural (Copaifera langsdorffii, Faramea cyanea, (Walter & Ribeiro 1997). A distribuição Tapirira guianensis e Dendropanax espacial localizada das espécies nas cuneatum), e como eventuais (Acacia matas (zonação) pode depender da glomerosa, Anadenanthera colubrina var. resposta das sementes e plântulas ao cebil, Roupala brasiliensis, Alibertia encharcamento do solo, como discutido sessilis e Coussarea hydrangeifolia). em Ferreira & Ribeiro (2001). Entretanto, como enfatizaram esses Correlacionar topografia, material de autores, esta distribuição não pode nem origem, características do solo e altura deve ser generalizada para todas as do lençol freático com a distribuição local Matas do Bioma. Concordamos com esse das espécies têm sido objeto de estudos ponto já que a espécie Protium de variações da vegetação entre Matas heptaphyllum também pode ser de Galeria e dentro delas. Schiavini encontrada nos Cerradões e Matas Secas (1992) e Walter (1995) sugeriram esta em áreas do Brasil Central. estratificação do ambiente sob Matas de Adicionalmente, Walter (1995) Galeria. Walter (1995) descreve que o mostrou que diferenças florísticas entre ambiente é não-inundável se o lençol porções da mesma mata podem ser freático é baixo ou é inundável se o maiores que diferenças entre matas lençol é mais alto, independentemente diferentes. A análise de Silva et al. (2001) se este acontece na borda externa, no em 21 levantamentos realizados em meio da mata ou próxima ao córrego. matas diferentes no Distrito Federal Felfili et al. (2001) incluem na flora das mostrou que a similaridade florística de matas ribeirinhas 2.031 espécies, em 686 Sørensen em alguns casos foi tão baixa gêneros e 134 famílias, distribuídas em como 0,3, enquanto a similaridade 424 espécies herbáceas, 69 epífitas, 156 média de 0.4 indicou a baixa semelhança subarbustos, 237 trepadeiras, 403 florística entre os levantamentos. Esse arbustos e 854 árvores. Esses autores autor listou apenas para o Distrito ressaltam que, enquanto para as Federal 378 espécies, 44.1% do total de formações florestais Mata de Galeria/ 854 sugerido por Felfili et al. (2001) para Mata Ciliar a proporção do estrato as matas do bioma. arbustivo-herbáceo para o arbóreo é de A progressiva exploração desor- 1:1,1 na formação savânica Cerrado denada e predatória desse ambiente e a sentido amplo, a proporção é de 4:1. ausência ou mesmo ineficácia de A forma natural de ocupação do políticas públicas ambientais para sua espaço pelas espécies e sua associação gestão na região do Cerrado podem com as características ecológicas conduzir à insustentabilidade ecológica encontradas nos ambientes florestais e social. Como a legislação ambiental podem ajudar a definir grupos de protege esses ambientes, sua preservação espécies características. Schiavini et al. resultaria em redução dos espaços (2001) descreveram para uma produtivos, implicando em impacto toposequência específica para a região direto nos rendimentos de produtores de Uberlândia, como exclusivas das familiares de comunidades que vivem Matas de Galeria, (Calophyllum nas regiões ribeirinhas. Por outro lado, brasiliense, Talauma ovata, Protium vale lembrar que a depredação das heptaphyllum e Inga vera ssp. affinis) mesmas levará à redução da oferta

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hídrica essencial para a sustentabilidade e sul de Minas Gerais), Este-sudeste da produção agrícola, e que os resultados (principalmente Minas Gerais), Central encontrados mostram que a conservação (Distrito Federal, Goiás e porções de destas matas ribeirinhas vai manter Minas Gerais), Centro-oeste (maior parte importantes corredores ecológicos para de Mato Grosso, Goiás e Mato Grosso o deslocamento da fauna e da flora, do Sul), e Norte (principalmente possibilitando serviços ambientais Maranhão, Tocantins e Pará), assim essenciais para a própria ocupação como um grupo de vegetação savânica sustentável do bioma. disjunta na Amazônia. Neste estudo os autores mostraram não apenas que Quanto à vegetação savânica, dados diversidade tende a ser menor nos sítios disponíveis sobre a flora lenhosa do com solos relativamente mais férteis, Cerrado, sentido amplo, indicam que, na onde existe a dominância de espécies área nuclear contínua, o número de indicadoras como Callisthene fasciculata, espécies em uma área (diversidade alfa) Magonia pubescens, Terminalia argentea pode variar de 20 a 193 espécies lenhosas e Luehea paniculata, mas também a arbóreas, enquanto áreas disjuntas do existência de intensa heterogeneidade bioma, concentradas nas savanas entre os sítios amostrados (diversidades amazônicas, podem apresentar valores beta e gama). bem menores (Ratter et al., 2002, 2003). É claro que parte dessa variação na área A análise da vegetação lenhosa da nuclear pode ser oriunda da forma de fisionomia Cerrado sentido amplo amostragem, mas existem evidências de compreende hoje levantamentos em 376 que a grande maioria dessa variação seja sítios (Ratter et al., 2003) com um total real e deva ser estudada com maiores de 953 espécies de árvores e grandes detalhes, como é o caso de áreas arbustos, onde apenas 38 estiveram encontradas em solos mesotróficos. Estes presentes em 50% ou mais deles (Tabela solos apresentam níveis de cálcio e 1). Este estudo evidencia ainda que 309 espécies (35,3%) ocorreram em apenas magnésio, na camada superior, maiores um local, enquanto somente 300 espécies que a média e estão associados com a ocorreram em mais de oito locais presença de menor número de espécies. (≥ 2,5%). O padrão de diversidade das Espécies características desses ambientes espécies lenhosas é principalmente são Terminalia argentea, Callisthene constituído desse um grupo restrito de fasciculata, Magonia pubescens, 300 espécies (cerca de 1/3 do total) Astronium fraxinifolium entre outras relativamente comuns e 2/3 de espécies (Ratter et al., 1977; Furley & Ratter 1988). bastante raras, muitas das quais As análises biogeográficas realizadas poderiam ser incluídas como acessórias por Castro (1994), Castro e Martins (Ratter et al., 2003). Este padrão de (1999), Ratter & Dargie (1992) e Ratter oligarquia de um grupo de espécies et al. (1996) e Ratter et al. (2003) comuns e muitas outras espécies raras, permitiram a identificação de padrões de também foi reportado para as Matas de distribuição da flora do bioma. Por Galeria (Silva Júnior et al., 2001) e para exemplo, Ratter et al. (1996) matas amazônicas de terra firme no reconheceram os grupos Sul (São Paulo Equador e Peru (Pitman et al., 2001).

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Alguns pesquisadores (e.g. Rizzini, vizinhos. Isto demonstra não 1963, 1979) postularam que na área apenas a significante heteroge- central do bioma Cerrado haveria mais neidade da flora, mas as espécies que na periferia, e consideraram particularidades de cada local. que a riqueza seria principalmente Alguns estudos demonstraram a composta por espécies acessórias importância do Cerrado como um dos oriundas dos biomas vizinhos. centros de biodiversidade mais Entretanto, Ratter et al., (2003) relataram importantes do planeta (Myers et al., dois pontos relevantes: 2000). Sem dúvida, a heterogeneidade 1 - Apesar de muitas localidades da do ambiente, já demonstrada em termos região central serem de fato ricas de precipitação pluviométrica (Assad & em espécies, localidades na Evangelista, 1994), solo (Reatto et al. periferia da área nuclear do 1998), água (Lima & Silva 2002) e Cerrado, nas proximidades dos vegetação (Ratter et al. 1996; 2002; Rios Araguaia, Tocantins e Xingu, 2003), é fundamental na manutenção ou ainda, no estado de São Paulo, dessa biodiversidade. mostraram riqueza tão grande ou Uso agrícola: produção atual e até superior que a porção central. perspectivas futuras 2 -A riqueza da flora periférica é A produção agrícola no Centro- composta de espécies tipicamente Oeste, até a década de 1950, era pouco savânicas, ou seja, não é formada expressiva, a indústria não existia e por espécies oriundas de biomas

Tabela 1. Espécies lenhosas presentes em mais de 50% dos 376 levantamentos comparados [Os valores em parênteses são das porcentagens encontradas respectivamente em levantamentos anteriores Ratter and Dargie (1992) e Ratter et al. (1996)].

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apenas a pecuária bovina apresentava A área plantada, em 2001, foi de pelo relevância na região. Este panorama, no menos de 6.970 milhões de hectares, entanto, sofreu alterações provenientes assumindo que a produção da soja hoje da abertura da fronteira agrícola nacional para o Cerrado seja de cerca de 20 e do conseqüente fluxo migratório em milhões de toneladas e a produtividade direção ao oeste brasileiro. Na década média de 2.926 kg/ha (www.cnp de 1960, a quantidade de soja produzida soja.embrapa.br./radarsoja/conab0203). no Brasil era de apenas 400 mil Assim, dos 10 milhões de hectares toneladas/ano. Em 1997 a produção plantados com grãos (Sano et al., 2001), nacional superou 25 milhões de quase 65% da área total de grãos esteve toneladas e segundo estimativas da destinada a esta espécie. A partir desses Companhia Nacional de Abastecimento números, verifica-se que em 1986 a soja (CONAB) para a safra 2001/02, este era responsável pela ocupação direta de montante pode chegar a 41 milhões de mais de 3% da área bioma Cerrado. toneladas. Dos 27 estados brasileiros, 15 Além disso, observa-se que a área estão produzindo soja. A Região Sul era plantada na região tem crescido a maior produtora do país até meados intensamente. Com isso, o Cerrado da década de 1990. Na safra 2000/01, o respondia por 41,83% de toda a Sul respondeu com 42,26% da safra produção de soja brasileira. Se por um nacional, enquanto o Centro-Oeste já lado a maior ocupação acontece com produziu 44,35%. Estimativas para a pastagem cultivada (38%) (Sano et al., safra de 2001/02 apontam que a 2001), por outro, a abertura de novas produção no Centro-Oeste tende a crescer áreas nos últimos anos está praticamente chegando a 19 milhões de toneladas, o em função da soja e milho (Figura 2). que significaria 46,9% de toda a O incremento de produção de um produção de soja do país. A participação determinado plantio agrícola, em termos da Região Nordeste cresceu bastante simples, vai depender de três fatores: (i) entre 1997 e 2001, quando apresentou abertura de novas áreas, (ii) aumento da percentuais de 3% e 6,87%, respec- produtividade ou (iii) utilização de áreas tivamente, com ênfase para o estado da anteriormente plantadas com outras Bahia que responde por cerca de 70% culturas. A soja na região duplicou de da produção local. Mas qual é essa área 1985 a 1995 e praticamente triplicou nos de soja plantada e qual é o impacto últimos 15 anos (Figura 1). O incremento ambiental?

Figura 2 Evolução da produção de grãos em milhões de toneladas na área do domínio do bioma Cerrado. Fonte: Embrapa Cerrados – Palestra Institucional

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na produção até agora foi decorrente dos DISPONIBILIDADE DE dois primeiros fatores, abertura de novas INFORMAÇÕES áreas e aumento da produtividade. Da década de 1970, a produtividade As unidades de conservação de aumentou de 1.300 para algo em torno proteção integral correspondiam a 1,5%, de 2.800 kg/ha em 2001. Esta até 1998, do bioma Cerrado. Se a este produtividade pode aumentar ainda número fossem somadas as unidades de mais, pois bons produtores, com técnicas uso sustentável, o Cerrado protegido não apropriadas, poderão alcançar padrões passaria de 3% de sua extensão inicial mais altos. (Aguiar et al. 2003). A intensa heterogeneidade florística local e regional A conservação do bioma Cerrado vai aqui destacada tem conseqüências depender da criação de novas unidades importantíssimas em planos de manejo de conservação e também da diminuição para o estabelecimento de unidades de da pressão de ocupação agrícola. O conservação. Assim, os dados florísticos aproveitamento de áreas com baixa mostram que é necessário proteger ocupação ou abandonadas por outras muitas áreas relativamente menores no culturas seria muito importante. Assim, sentido de representar adequadamente dos 49 milhões de hectares ocupados por a biodiversidade local e regional. pastagens, estima-se que 30 milhões estejam degradados, sendo solos, Todo esse conhecimento é muito útil teoricamente, potenciais para a no momento de decidir localização e reincorporação ao sistema produtivo de tamanho das unidades de conservação, grãos, plantios com espécies perenes e já que a ocupação humana nas ultimas sistemas agroflorestais. Esta área três décadas, seja por agricultura, degradada é três vezes maior do que o pastagem, produção de carvão, espaço ora ocupado por todos os plantios urbanização, entre outras, reduziu a de grãos. Entretanto, esta incorporação vegetação natural para algo ao redor de depende de vários fatores como a 30%. Muito embora no Cerrado, a disponibilidade de técnicas de riqueza de espécies e endemismo sejam recuperação do solo e do uso da água altos (Mittermeier et al., 1999; Davis et (pesquisa), estudos das necessidades al., 1994 – 1997; Groombridge, 1992; específicas para a próxima cultura Heywood, 1995 apud Myers et al. 2000 (pesquisa), a conscientização e o e Brooks et al. 2002), a proteção treinamento dos produtores (educação) ambiental é pequena e a taxa de e a implementação de procedimentos ocupação sensivelmente alta.Estimativas políticos e sociais que apóiem o uso de antropização (incluindo urbanização, destas áreas (política). agricultura e áreas pouco perturbadas utilizadas como pastagem nativa) foram POLÍTICAS PÚBLICAS de 40% em 1995 (Alho & Martins 1995); 59% em 1996 (Sano et al., 2002); de O estabelecimento apropriado e 67,1% em 1998 e de cerca de 70% em eficiente de políticas públicas para 1999 (Cerrado e Pantanal, 2002). Em conservação vai depender da dispo- alguns estados como São Paulo e Paraná, nibilidade de informações coerentes e atualizadas, da integração e análise das por exemplo, somente pequenos informações disponíveis e a análise dos vestígios dessa vegetação natural interessados em todos os níveis. permanecem.

392 Ocupação e conservação

INTEGRAÇÃO E ANÁLISE DESSAS que sirvam como corredores mésicos INFORMAÇÕES entre a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica, permitindo assim a manu- O desafio, portanto, está em agrupar tenção da fauna característica de e associar toda a informação disponível formações florestais sem adaptações do ambiente físico e biológico e dos específicas a ambientes tipicamente usuários, sejam eles comunidades xéricos (Redford & Fonseca, 1996). tradicionais ou novos assentamentos, para estruturar sugestões para políticas públicas pertinentes e convincentes, INTERESSADOS procurando atingir o desenvolvimento sustentável com uma agricultura mais A principio, o objetivo único e amigável com o ambiente e com ênfase principal almeja o capital monopolista e na conservação dos 20% de reserva a economia exportadora especializada legal. em produtos alimentícios e matéria- prima, onde a soja aparece como Além disso, os dados disponíveis elemento-chave. Atitudes, em futuro bem evidenciam que, para ser efetiva, a próximo, devem considerar dois pontos: conservação deve acontecer a quem esse desenvolvimento interessa considerando a integração entre as (beneficiários) e qual a sua necessidade fisionomias. Conservar apenas a de implantação em curto prazo, sem a vegetação ribeirinha, sem que sejam devida análise das conseqüências dessas levadas em conta a sua dinâmica natural atitudes. e as relações com as fisionomias adjacentes seria ineficiente. Dessa A região Centro-Oeste, em termos de maneira, a interface com o campo úmido beneficiários, responde pela menor e o Cerrado sentido amplo é muito participação da agricultura familiar no importante, principalmente no que diz país, exatamente devido a esse alto respeito às espécies pioneiras da índice de concentração fundiária vegetação, transitórias como os animais (Expansão... 2000) de 500ha por ou mesmo com o lençol freático no solo. propriedade, estabelecido como padrão Por outro lado, manter uma reserva pela monocultura empresarial apenas com vegetação savânica (PRODECER II na região de Balsas, por apresentaria sérios problemas pela exemplo). Com isso, percebe-se que há ausência de ligação com os ambientes um impacto econômico positivo para o ribeirinhos, tão importantes para a novo proprietário da terra, enquanto por manutenção da fauna. Bagno & Marinho- outro lado, as populações tradicionais Filho (2001) observaram que apenas são pressionadas para um intenso 20% das aves do Distrito Federal são processo de êxodo rural devido à perda independentes das florestas, ou seja, a de competitividade dos seus meios de grande maioria ocorre tanto nos produção e das formas tradicionais de ambientes abertos quanto nos florestais. manejo de recursos naturais. Muito embora englobem apenas 5% da Os impactos da ocupação agrícola área total do bioma Cerrado, 50% dos tecnificada, especialmente soja, endemismos e 24% das espécies evidenciam uma área de ocupação de 3% ameaçadas de mamíferos são encon- do Cerrado em valores absolutos (Sano tradas nessas matas (Marinho-Filho & et al., 2001), porém é fundamental Gastal 2000), com sérias evidências de discutir e considerar as conseqüências

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indiretas ao estímulo de atividades comunidade poderia valorizar corre- complementares, e tidas como de tamente o ambiente onde vive. Isso se desenvolvimento regional, como torna mais crítico ao se constatar que o implementos e insumos agrícolas, número de produtores vindos de outras comercialização, transporte e moradia regiões do Brasil, no Cerrado, é muito (Expansão... 2000). alto. Foi verificado no Distrito Federal e em seu entorno, por exemplo, que 82,5% Essas atividades econômicas, sem da população amostrada nasceu fora dúvida, vão implicar na demanda de dessa área, e que a grande maioria não infra-estrutura que acaba influenciando possuía raízes culturais vinculadas ao no surgimento de outras culturas anuais ambiente Cerrado, pois seriam oriundas, (milho, feijão, arroz) ou perenes principalmente, das regiões Sul, Sudeste (banana, abacaxi). O Centro-Oeste tem e Nordeste. implementado o estabelecimento de agroindústrias para o processamento de É evidente que se os aspectos de grãos de soja que não foram admitidos valoração ambiental tivessem sido em outras regiões do país pelo impacto amplamente aplicados e divulgados ambiental dos subprodutos e dejetos. junto ao sistema privado de colonização e expansão da produção agropecuária Recomenda-se que a decisão da organizada por grandes empresas do localização das reservas legais, leve em setor ou proprietários capitalizados, os consideração toda essa integração. A resultados positivos sobre produção determinação do local da reserva, sustentada e conservação já poderiam geralmente, é tomada pelo proprietário ter sido colocados em prática. Entretanto, ou muitas vezes pelo seu encarregado, o procedimento até agora observado o que torna a escolha muitas vezes parece conseqüência da pequena inapropriada, pois é tomada com base articulação, tanto no aspecto setorial em um conhecimento insuficiente dos quanto no espacial. Muito pouco tem recursos naturais disponíveis. A ausência sido divulgado nas cooperativas do setor deste conhecimento deve ser suprida de produção de grãos sobre produção com intensos programas de educação sustentada e conservação. Além disso, ambiental. essa divulgação ainda varia de região Políticas de conscientização, para região. Esse desconhecimento pode educação e apoio para a ocupação levar a atitudes precipitadas e ambientalmente sustentável seriam inconseqüentes. imprescindíveis. Liberação de recursos para plantios agrícolas deveria estar associada a técnicas de plantio e a PROPOSIÇÕES preservação do solo, da água, da vegetação e da fauna. Este procedimento Este estudo propõe transformações deveria ser acompanhado de educação que devem partir dos seguintes ambiental, que estaria acontecendo com precedentes: toda a comunidade, das crianças até os 1) Desenvolvimento tem que ser mais idosos. A sugestão seria a aplicação da educação ambiental no sentido amplo desdobrado em pleno de Paulo Freire, ou seja, utilizando o envolvimento, entendendo que o ambiente em que a comunidade vive prefixo “des”, nesse caso, não para educá-la; somente assim a deve ser compreendido como

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negativa de envolvimento, tal longo prazos. A matriz a seguir como em des-ligar (não ligar) e apresenta os principais aspectos des-conversar (não conversar); desses níveis e prazos.

2) Pleno envolvimento seria, então, assumir que conservação e ocupação sustentada são como CONSIDERAÇÕES FINAIS faces de uma mesma moeda. Para O bioma Cerrado é regional e que essa moeda tenha mais valor, localmente heterogêneo, particular- as duas faces devem estar juntas, mente, no que diz respeito às espécies lembrando que o ser humano é vegetais raras e endêmicas. Dessa parte da natureza. maneira, é essencial a implementação de 3) Devem acontecer em pelo menos um sistema de unidades de conservação, três níveis (Tabela 2): Pesquisa, que seja capaz de representar devida- Política e Educação e dependendo mente as subprovíncias florísticas já da situação, em curto, médio e identificadas em vários estudos e

Tabela 2. Transformações na pesquisa, educação e nas políticas públicas propostas para mudar o entendimento sobre o valor ambiental do bioma Cerrado

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revisadas em Ratter et al., (2003). Além “tomadores de decisão” são incluídos disso, todas as formações florestais, aqui políticos, pesquisadores, produ- savânicas ou campestres, ali presentes tores, caseiros e até mesmo cada um de devem também ser consideradas e nós, como consumidores de produtos incluídas nesse sistema, além das provenientes do Cerrado. Esse grupo fitofisionomias e suas variações deve entender que o ambiente faz parte ambientais, como classes de solo e clima. do sistema de produção agrícola. É o Fica bastante clara a necessidade de ambiente que vai agir como filtro de criação de unidades de conservação em poluição de elementos essenciais para a chapadas de latossolo, devido à intensa nossa sobrevivência, como o ar e a água, seleção dessas áreas para a ocupação além de funcionar como sensor da agrícola nas ultimas três décadas. qualidade ambiental, indicando quando o sistema está desequilibrado, pois sua A importância da implementação de capacidade de suporte foi ultrapassada. leis e procedimentos ambientalmente Somente com esses procedimentos amigáveis é premente. Decisões devem teríamos possibilidades de garantir a acontecer em seqüência e em diversos conservação do bioma Cerrado e níveis como políticas, pesquisas, possibilitar a sustentabilidade da produtores e consumidores. Então, como produção agrícola com longa duração.

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399 CapítuloCapítulo 2424Capítulo 2424Capítulo FOTO: ANDERSON SEVILHA FOTO: FOTO: ANDERSON SEVILHA FOTO: ManejoManejo dede fragmentosfragmentos dede Cerrado:Cerrado: princípiosprincípios parapara aa conservaçãoconservação Vânia R. Pivello Departamento de Ecologia Universidade de São Paulo dada biodiversidadebiodiversidade São Paulo, SP Ribeiro, Bridgewater, Ratter & Sousa-Silva

402 Manejo de fragmentos

POR QUE MANEJAR OS biental, a conservação in situ, por meio ECOSSISTEMAS NATIVOS EM do estabelecimento de unidades de conservação, mostra-se como uma das UNIDADES DE CONSERVAÇÃO? melhores alternativas para a manutenção O processo de desenvolvimento que da biodiversidade nativa, uma vez que se instalou nas regiões Sudeste e Centro- se mantém não apenas as espécies, mas oeste do Brasil a partir do século 20, também seus habitats, as relações entre acompanhado de grande crescimento elas e os processos ecológicos. populacional, levou à rápida procura por Entretanto, a grande maioria das terras agricultáveis, locais para instalação áreas hoje destinadas à conservação de indústrias e cidades, bem como nada mais são do que pequenas ilhas utilização direta dos recursos da em meio à ocupação urbano-rural, natureza. Em decorrência, os ecos- sofrendo todo o tipo de pressão do sistemas nativos sofreram e ainda vêm entorno. Uma vez que resistência, sofrendo intensa fragmentação, resiliência e capacidade de auto- substituição e descaracterização, sendo sustentação dos ecossistemas são que aqueles que hoje restam geralmente propriedades que ocorrem dentro de constituem fragmentos pequenos e limites, mesmo a biodiversidade isolados nas paisagens modificadas pelo “protegida” nas unidades de conser- homem, ou, mesmo quando mais vação está sujeita a sérios problemas e extensos, também alterados em sua a grandes perdas, advindas da composição, estrutura e processos. Além fragmentação e isolamento dos habitats das perdas diretas de indivíduos e e das pressões do entorno. Assim, o espécies, esses fragmentos sofrem processo de fragmentação de habitats é inúmeras pressões externas, vindas de apontado como o principal responsável seu entorno alterado. pelas atuais perdas de biodiversidade, Diversas estratégias voltadas à sejam elas em nível genético, específico proteção da biodiversidade existem, ou ecossistêmico (WWF, 1989). Essas sendo elas de ordem política, econômica, questões vêm sendo muito bem educativa e ambiental, e devendo estar exploradas nas duas últimas décadas, todas interligadas. Na vertente am- especialmente no contexto da ecologia

403 Pivello

de paisagens (Naveh & Liebermann, mundo” ou “área de expansão da 1994; Forman, 1995; Meffe & Carroll, fronteira agrícola”, com estímulo oficial 1997; Primack et al., 2001; Turner et al., à sua substituição. Em conseqüência, 2001), com o intuito de fornecer apenas 2,09% deste bioma é protegido embasamento a alternativas para a nas diversas categorias de unidade de conservação biológica. conservação (situação em 18/02/2002, IBAMA, 2002). Conclui-se, então, que apenas a criação de unidades de conservação não Dentre as constantes pressões é suficiente para a manutenção do antrópicas sobre o Cerrado, destacam- patrimônio natural; é também necessário se: queimadas, invasões para sua que medidas de manejo sejam adotadas ocupação com moradias e agricultura de para estas áreas, bem como para toda a subsistência, entrada de gado, retirada paisagem onde se inserem. Intervenções de lenha e de espécies medicinais, além nos ecossistemas protegidos são da invasão biológica por espécies necessárias para direcionar seus exóticas. processos e evitar ou remediar Todavia, o Cerrado é detentor de problemas que os levem à deterioração. imensa riqueza fisionômica - congre- Os planos de manejo são uma gando mais de 20 formas vegetacionais primeira abordagem para o estabe- florestais, savânicas e campestres lecimento de diretrizes e ações para a (Ribeiro & Walter, 1998) - e florística, proteção dos recursos naturais, tendo sido registradas mais de 6.000 entretanto, deve-se destacar outras espécies vasculares para esse domínio estratégias, como políticas e ações morfoclimático (Mendonça et al., 1998). institucionais de planejamento – Seguindo uma paisagem diversificada e incluindo a elaboração e o cumprimento com grande variabilidade de habitats, a de zoneamentos regionais –, políticas de fauna do Cerrado apresenta-se também incentivos e acordos, bem como ações exuberante, com cerca de 1.270 de restauração e reabilitação de áreas vertebrados terrestres. O grupo das aves degradadas. é o mais rico, estando representado por mais de 800 espécies; seguido pelos mamíferos, anfíbios e répteis (Myers et A BIODIVERSIDADE E A PROTEÇÃO al., 2000). DO CERRADO Desde há várias décadas, já se Um dos biomas que mais tem estado reconhece o alto grau de peculiaridade sujeito à ocupação e à descaracterização e endemismo da flora do Cerrado é o Cerrado1. Os fatores de indução do (Rizzini, 1971; 1997; Goodland & Ferri, desenvolvimento, aliados a uma política 1979), entretanto, contrariando idéias governamental de incentivo agrícola no mais antigas, o maior conhecimento de Cerrado – estabelecida na década de sua fauna também vem mostrando 1970 – e desprovida de uma proposta padrão semelhante, com grande número paralela de proteção ambiental, de espécies endêmicas às fisionomias do resultaram num processo acelerado de bioma. Silva & Bates (2002), congre- sua destruição e substituição. Ainda gando dados de diversos trabalhos, hoje, o Cerrado é visto como “celeiro do mostram graus de endemismo da

1 Cerrado, iniciado com letra maiúscula, refere-se, no presente texto, ao bioma ou ao domínio morfoclimático; quando iniciado com letra minúscula, refere-se a ambientes de cerrado.

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magnitude de 44% para plantas econômicos, para sua utilização no vasculares, 30% para anfíbios, 20% para manejo ambiental. Mais do que isso, a répteis, 12% para mamíferos e 1,4% para informação precisa chegar aos agentes - aves. os técnicos responsáveis pelas unidades de conservação - e aos decisores, que Essa imensa riqueza biológica, com elaboram as diretrizes e normas a serem alto grau de endemismo, merece, sem adotadas. Em suma, o conhecimento dúvida, maior atenção e dedicação à sua prático deve ser gerado e a comunicação proteção, por meio de estratégias entre as partes envolvidas no sistema de conservacionistas diversas e manejo proteção ao meio ambiente necessita ser adequado. grandemente melhorada (Pivello, 1992).

Quanto à legislação ambiental O MANEJO DE FRAGMENTOS DO brasileira, grandes progressos têm CERRADO ocorrido a partir dos anos de 1980, voltados à proteção dos remanescentes A grande maioria das unidades de nativos, entretanto, as determinações na conservação brasileiras não recebe ações legislação têm sido sempre voltadas à de manejo sobre sua biota. Isso decorre restrição de usos e ações, e raramente de políticas ambientais ultrapassadas, ao manejo ativo. Mesmo havendo, na excessivamente conservadoras, que não legislação, a permissão para ações de admitiam intervenção alguma nos manejo ecológico em unidades de ambientes protegidos. Essa defesa da conservação (por exemplo: Decreto “não-ação” decorre, em parte, por se Federal nº. 84.017, de 21/9/1979; acreditar que ainda falta o conhecimento Resolução CONAMA nº. 11, de 14/12/ necessário para o estabelecimento das 1988; Decreto Federal nº. 97.635, de 10/ ações de manejo e, em parte, em virtude 5/1989), estas só podem ser aplicadas da legislação brasileira ter sido, quando estabelecidas em seus planos de historicamente, muito restritiva em manejo. Ainda, o Sistema Nacional de relação às unidades de conservação. Unidades de Conservação (SNUC), instituído em julho de 2000 (Lei Federal No primeiro caso, a insegurança nº. 9.985), embora tenha corrigido poderia ser justificada em parte, pois há, várias incompatibilidades anteriormente realmente, grandes lacunas de existentes, não é suficientemente claro e conhecimento em relação à dinâmica de detalhado quanto aos objetivos das nossos ecossistemas. Essas lacunas unidades de conservação e quanto às ocorrem em diversos níveis: na coleta intervenções permitidas, o que reflete dos dados, na análise e síntese das também em deficiências nos planos de informações, na disseminação do manejo. conhecimento e em sua recepção Para a grande maioria das unidades (Pivello, 1992). Por outro lado, é ampla de conservação que protegem o Cerrado, a gama de dados já obtidos para o os planos de manejo, quando existem, Cerrado, úteis para subsidiar seu manejo; são antigos e não-direcionados ao entretanto, grande parte desse manejo ecológico das comunidades, mas conhecimento biológico e fisiográfico sim a aspectos administrativos. O meio está sob forma descritiva e necessita ser biofísico é tratado de forma organizado, analisado e trabalhado sob extremamente descritiva e ações práticas uma perspectiva prática, e ainda diretamente voltadas ao manejo da flora integrado a aspectos sociais e e da fauna praticamente inexistem.

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Desta forma, pode-se perceber que rápida propagação. Quando há grande o principal passo para o manejo ativo acúmulo de material combustível, a em unidades de conservação do Cerrado intensidade do fogo pode ser alta, está na re-elaboração dos planos de prejudicando a biota - causando a morte manejo. Nestes, deve haver, primei- de animais de locomoção mais lenta, ramente, uma delimitação muito clara especialmente os tamanduás, e de dos objetivos para a área, seguida de um elementos lenhosos da vegetação (Sato bom diagnóstico da situação atual e do & Miranda, 1996) - e ameaçando delineamento de cenários futuros e comunidades humanas próximas. desejados. Nesta última etapa, as Entretanto, muitos benefícios também principais perguntas a serem respon- provêm das queimadas à biota do didas são: O que fazer? Quando (etapas)? Cerrado, por meio da ciclagem dos Como? Com que recursos (materiais e nutrientes acumulados na serapilheira, humanos)? do estímulo à floração, frutificação, brotamento e germinação de várias plantas, e conseqüente aumento da oferta PRINCIPAIS PROBLEMAS de alimento aos animais, dentre outros ECOLÓGICOS DO CERRADO (Coutinho, 1990). Dentre os problemas enfrentados Invasões biológicas pelas unidades de conservação do Cerrado, considera-se que três merecem Praticamente todas as unidades de especial destaque, devido à frequência conservação que visam à proteção do com que ocorrem e à magnitude dos Cerrado encontram-se hoje invadidas por danos decorrentes: incêndios causados espécies exóticas, que lá encontraram por queimadas acidentais, invasões ambiente propício e ausência de inimigos biológicas e fragmentação de habitats. naturais. Dentre estas, as mais abundantes são as gramíneas africanas Queimadas acidentais Melinis minutiflora (capim-gordura), Embora as queimadas sejam um Hyparrhenia rufa (capim-jaraguá), componente natural dos cerrados, as Panicum maximum (capim-colonião) e atividades humanas alteraram profun- Brachiaria spp. (braquiárias), introdu- damente o regime de fogo, aumentando zidas como forrageiras, além da muito sua freqüência e, possivelmente, pteridófita Pterydium aquilinum. No alterando a época de sua incidência estado de São Paulo, Pinus elliottii (Coutinho, 1990; Pivello, 1992; Ramos- também se tornou espécie invasora em Neto & Pivello, 2000). Hoje, a grande algumas unidades de conservação maioria das queimadas acidentais próximas a silviculturas. iniciam-se próximas aos limites das Pesquisas relacionando invasoras unidades de conservação, associadas a em cerrados e seus efeitos são ainda fazendas vizinhas, estradas, caçadores muito poucas, entretanto, em reservas ou pescadores. Entretanto, queimadas de cerrado em São Paulo, já foram naturais, causadas por raios, podem verificados prováveis efeitos ocorrer e mostraram-se bastante competitivos entre Melinis minutiflora e freqüentes no Parque Nacional das Emas Brachiaria decumbens e as herbáceas (GO) (Ramos-Neto & Pivello, 2000). nativas, com perigo de exclusão destas Queimadas acidentais podem se últimas (Pivello et al., 1999-a; 1999-b). transformar em grandes incêndios, de Estas gramíneas exóticas mostraram-se

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dominantes tanto na porção vegetativa dada à sua proteção. Ainda, as poucas como no banco de sementes do solo áreas protegidas de cerrado que existem (Freitas, 1999; Pivello et al., 1999-a; são mal distribuídas e, por todas as 1999-b). Além disso, as gramíneas razões citadas – poucas, pequenas, exóticas produzem grande quantidade de isoladas e mal distribuídas – ineficientes biomassa, altamente inflamável, em sua função de proteção ao bioma. aumentando o risco de incêndios durante Não há zonas-tampão, tampouco há o a estação seca. cumprimento da legislação ambiental, no Fragmentação de habitats sentido de se manter as áreas de preservação permanente (APPs) - em O Cerrado encontra-se hoje num alto zonas ripárias e nascentes, topos de grau de fragmentação e os fragmentos morros, altas declividades. Poucos são remanescentes apresentam-se como os proprietários que mantêm as reservas “ilhas”, circundados por pastos ou legais exigidas por lei. Em suma, os tipos grandes monoculturas, principalmente e formas de uso das terras no entorno de grãos (sobretudo soja), cana-de- das unidades de conservação raramente açúcar ou árvores exóticas fornecedoras respeitam a legislação e denotam de madeira e celulose. ausência de planejamento regional. Essa situação de fragmentação tem levado a grandes perdas de biodi- versidade, locais e regionais, seja ALTERNATIVAS DE MANEJO diretamente pela substituição de espécies Este item considerará algumas nativas por outras de interesse alternativas para lidar com os três econômico (pastagens e culturas), seja principais problemas apontados para os pelo pequeno tamanho dos fragmentos fragmentos de cerrado sob forma de remanescentes – que se tornam unidades de conservação. incapazes de suportar populações viáveis – ou ainda, pelo seu isolamento, Há diferentes níveis de abordagem encontrando-se cercados por uma matriz para o manejo dos ecossistemas, “hostil” e, portanto, incapazes de manter dependendo do tipo de problema fluxos de matéria e energia com outros existente e dos objetivos desejados, tais fragmentos semelhantes. A insularização como: manejo de populações e expõe os fragmentos naturais aos efeitos comunidades, manejo de habitats, ou de borda, à invasão de espécies exóticas manejo da paisagem. Por exemplo, um e a alterações em sua estrutura e problema de invasão biológica pode ser funcionamento, devido a mudanças em tratado junto à espécie invasora (manejo características de luminosidade e da população), ou à comunidade temperatura, entre outras. invadida; ou o enfoque pode ser voltado Além de pequenas e isoladas, as à recuperação do habitat afetado, ou áreas protegidas no Cerrado são muito ainda, podem ser aplicadas medidas que poucas em relação à extensão territorial alterem os usos das terras ou as relações que esse bioma originalmente ocupava. espaciais entre os elementos da O Cerrado permaneceu secundário nas paisagem. Dentro destas abordagens, há preocupações ambientais, mais voltadas ainda estratégias preventivas e aos ecossistemas florestais; apenas remediadoras (Wittenberg & Cock, recentemente, maior atenção tem sido 2001).

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Iniciando, então, pelo problema das O fogo pode ser outra alternativa invasões biológicas e, mais especif- para o controle de gramíneas exóticas. icamente, considerando as invasões por No caso de Melinis minutiflora, há gramíneas africanas nos cerrados, controvérsia quanto à sua resistência ao percebe-se que quase não há estudos fogo (Asner & Beatty, 1996; Costa & sobre o controle dessas espécies, uma Brandão, 1988; D´Antonio & Vitousek, vez que são de interesse econômico e a 1992), entretanto, observou-se ao longo grande maioria dos estudos tem o de vários anos que, nos cerrados, objetivo oposto, ou seja, são voltados queimadas periódicas a cada 2-3 anos, ao aumento de sua produtividade. É, principalmente se conduzidas durante portanto, premente a necessidade de sua floração, podem reduzir seu vigor e experimentação, in loco e em laboratório, favorecer as herbáceas nativas (Pivello, para se testar técnicas de combate 1992). Essa estratégia de manejo da mecânico, químico e de arranjo espacial comunidade visa, portanto, aumentar a capacidade competitiva das nativas em dos elementos na paisagem, a fim de relação a essa invasora. controlar a invasão dessas gramíneas exóticas. Contrariamente, tem sido observado que o fogo parece estimular o Dentre as técnicas mecânicas, o crescimento da Brachiaria decumbens arranquio, o corte e o sombreamento (agora, concordando com Aronovich & podem ser opções, embora adequadas Rocha, 1985; D´Antonio & Vitousek, para situações diferentes. O arranquio 1992 & Filgueiras, 1990). Esta espécie manual ou mecanizado tem a grande tem se mostrado extremamente agressiva desvantagem de revolver o solo, o que, em fragmentos de cerrado do estado de para várias dessas espécies, pode São Paulo, com vantagem competitiva estimular ainda mais sua disseminação, sobre as nativas e até mesmo sobre uma vez que se observa seu estabe- Melinis minutiflora (Pivello et al., 1999- lecimento em áreas preferencialmente a; 1999-b), formando grandes manchas perturbadas (Coutinho, 1982-a; 1982-b; monoespecíficas onde se estabelece. Em Freitas, 1999). Entretanto, pode ser casos assim, e cientes de todos os riscos aplicado em focos pequenos e isolados, ambientais possíveis numa unidade de tomando-se o cuidado de exercer conservação, acredita-se que o controle perturbações mínimas. químico, por meio de herbicidas de baixo efeito residual, seja uma das A opção pelo corte raso tem por pouquíssimas opções para o controle princípio a retirada de nutrientes por dessa invasora (Pivello, 1992; Durigan meio da biomassa epígea e o et al., 1998). Certamente, todas as conseqüente enfraquecimento da planta. precauções devem ser tomadas para se A melhor época e frequência de aplicação evitar poluição do solo e corpos d´água devem ser testadas. Imagina-se que o ou envenenamento de animais. Técnicas sombreamento também promova mistas, com a combinação de fogo e enfraquecimento e morte das gramíneas herbicida, ou fogo e corte, bem como o invasoras, especialmente por elas terem sobrepastejo nas manchas monoes-

metabolismo C4 (Klink & Joly, 1989; pecíficas de Brachiaria, especialmente Mozeto et al., 1996). O grau de quando estas se situam nas bordas da sombreamento, porém, deve ser testado unidade de conservação e permitem e balanceado para que não afete maior controle dos animais, também severamente as espécies nativas. merecem ser testadas.

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Dentre as técnicas preventivas, uma queimadas periódicas para sua das estratégias pode ser a manipulação manutenção (Coutinho, 1980; 1990; dos elementos da paisagem com a Pivello, 1992). Os diversos registros de finalidade de dificultar o fluxo de fragmentos de carvão vegetal fóssil diásporos das espécies potencialmente encontrados em regiões de cerrado invasoras. O uso de “cortinas verdes” - (Coutinho, 1981; Salgado-Labouriau & barreiras para minimizar a ação do Ferraz-Vincentini, 1994; Pessenda et al., vento, estabelecidas pelo plantio de 1998) reforçam a idéia de que o fogo fez espécies preferencialmente lenhosas - é parte da evolução dessa vegetação. comum em agrossilvicultura, No estado de São Paulo, especialmente para a conservação do principalmente, tem sido observada a solo e diminuição da erosão (Bilbro & descaracterização da flora em unidades Fryrear, 1997; Peri & Bloomberg, 2002). de conservação de cerrado que vêm Todavia, considerando-se que as sendo mantidas há mais de duas décadas gramíneas se dispersam eficientemente sem fogo (neste caso, merece destaque pelo vento, a instalação de cortinas a Reserva Biológica de Mogi-Guaçu, verdes ao redor de unidades de Fazenda Campininha), onde espécies conservação pode ser uma opção para típicas do estrato herbáceo vão se diminuir a chegada das sementes tornando raras, ou inexistentes, e as anemocóricas das invasoras (With, exóticas passam a dominar. Ainda, o 2002). Esta técnica, entretanto, necessita total impedimento de queimadas é difícil ser testada quanto à sua eficácia. O e custoso, pois exige vigilância planejamento de uso das terras no permanente na época de estiagem, entorno das unidades de conservação, principalmente na porção nuclear do com o estabelecimento de zonas-tampão bioma - onde o clima é mais seco. preferencialmente ocupadas por espécies Inevitavelmente, a área acaba por arbóreas perenes, e não por espécies queimar e, quando o fogo vem, após forrageiras, também poderia minimizar vários anos de material combustível a chegada de propágulos de gramíneas acumulado, torna-se de grande invasoras nos ecossistemas nativos. intensidade e, aí sim, danoso. Existem prós e contras em relação a A maneira mais prática e menos todas as técnicas acima citadas. As dispendiosa para diminuir a incidência opiniões divergem quanto à sua eficácia, de queimadas acidentais em unidades ainda mais porque as invasoras podem de conservação de cerrado é por meio responder diferentemente aos do consumo periódico do material tratamentos. Entretanto, quase nada combustível acumulado, promovendo-se ainda foi testado. Sem experimentos que queimadas prescritas e controladas, de elucidem a questão, as invasões vão baixa intensidade e em mosaico. Neste progredindo rapidamente nos cerrados. caso, seriam queimadas várias pequenas O problema das queimadas porções das unidades de conservação a acidentais nos cerrados é outro assunto cada ano, alternadamente, mantendo-se polêmico. Muitos defendem a exclusão sempre áreas recém-queimadas, do fogo nas reservas, pelo aparente dano queimadas há mais tempo e nunca que causam. Entretanto, se esquecem queimadas (fisionomias ripárias e que essa biota evoluiu com o fogo e que florestais), onde estas últimas depende, em diversos aspectos, de forneceriam abrigo para os animais

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durante a passagem do fogo e para o O terceiro grande problema banco de sementes de espécies menos apontado para os cerrados diz respeito tolerantes ao fogo. As áreas recém- à fragmentação de seus habitats. Grande queimadas, desprovidas de material parte dos efeitos da fragmentação combustível, atuariam como aceiros, decorre da falta de planejamento das impedindo o alastramento do fogo, no atividades produtivas humanas e do não- caso de queimadas acidentais, para cumprimento à legislação ambiental. grandes extensões. A intensidade do fogo pode ser controlada pela quantidade e Em recente análise do uso das terras grau de dessecação do material na região de Santa Rita do Passa Quatro combustível, além de parâmetros (SP), onde se localiza o Parque Estadual climáticos locais (Pivello, 1992; Pivello de Vassununga, foi observada uma & Norton, 1996; Ramos-Neto & Pivello, tendência ao total aproveitamento do 2000). espaço físico das propriedades com culturas, sem a manutenção das áreas Além de diminuir o risco de de proteção ambiental e reservas legais, incêndios, as queimadas prescritas determinadas em lei. Esse padrão ocorre atuam no sentido de manter a na maior parte da região do Cerrado, diversidade biótica do Cerrado – levando ao isolamento da biota e à favorecendo as espécies adaptadas e degradação do meio físico, com erosão dependentes do fogo e reciclando acentuada e prejuízos aos corpos d’ água nutrientes, controlando certas espécies (Korman, 2003). Verificou-se também invasoras, aumentando a quantidade de que, apenas com o cumprimento da forragem e frutos aos animais do estrato legislação ambiental, a situação de herbáceo. Esse instrumento de manejo conectividade entre as unidades de vem sendo usado há pelo menos duas conservação já aumentaria muito. A décadas em diversos parques nacionais região do Cerrado é rica em rios de que conservam savanas, tanto na diversas ordens, e a manutenção dos Austrália como na África do Sul corredores ripários poderia estabelecer (Edwards, 1984; Parsons et al., 1986; a interligação entre diversos fragmentos. Schullery, 1989; Australian National Outros remanescentes da vegetação Parks and Wildlife Service, 1991; Conroy et al., 1997; Russel-Smith, 1997), com nativa poderiam ser preservados, mesmo êxito na manutenção da diversidade que pequenos, podendo funcionar como florística e faunística. stepping stones - ou trampolins biológicos - para diversas espécies Ressalta-se, entretanto, que o fogo (Korman, 2003). deve ser utilizado apropriadamente e com segurança, para não trazer O planejamento de uso das terras no consequências desastrosas. As entorno das unidades de conservação, queimadas prescritas devem seguir com o estabelecimento de zonas tampão especificações detalhadas quanto ao e de culturas agrícolas que permitissem regime de fogo mais adequado, o maior permeabilidade da matriz à biota tamanho da área a ser queimada, as nativa constituem outra medida áreas a serem protegidas, as condições necessária, mas de implementação em climáticas ideais, os aceiros a serem médio e longo prazos. Ainda, o instalados. Maiores detalhes quanto a estabelecimento de práticas agrícolas estes aspectos encontram-se em Pivello adequadas à capacidade de suporte das (1992) e Pivello & Norton (1996). terras e a aplicação racional de

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agroquímicos minimizaria a perda de da máxima diversidade de seres vivos e habitats por erosão, o assoreamento e a de ambientes naturais, fica claro que contaminação de corpos d´água, e a intervenções de manejo tornam-se morte de animais por envenenamento – necessárias quando esses objetivos não como é frequente em unidades de conservação vizinhas de grandes estão sendo atingidos. fazendas de soja e cana-de-açúcar, Há necessidade de se rever diretrizes situações típicas dos estados de Goiás e São Paulo, respectivamente. ambientais e legislação para adequá-las ao manejo de áreas protegidas, tornando- Entretanto, todas essas medidas, as capazes de atender à realidade de para serem implementadas e tornarem- nossas unidades de conservação. Os se efetivas, necessitam passar por um sistema rígido de fiscalização ambiental, planos de manejo necessitam de urgente educação e conscientização da revisão e atualização, ou elaboração, no população, especialmente dos residentes caso das unidades de conservação que nos arredores de unidades de nem mesmo os possuem. Devem ser conservação. O estabelecimento de claramente definidos os objetivos das incentivos fiscais e créditos agrícolas são unidades de conservação e as ações também eficientes instrumentos de práticas para a solução de problemas estímulo à proteção ambiental. ecológicos e não apenas administrativos. Por fim, o constante monitoramento Em todos esses níveis – legislação, das ações de manejo é necessário para a planos de manejo, diretrizes – maior verificação do alcance das metas, integração entre decisores e técnicos é determinando a continuidade das ações estabelecidas, complementação com necessária para que definam as novas ações/técnicas, ou mudanças de prioridades e técnicas de manejo, rumo. contemplando as necessidades e limitações. A difusão do conhecimento gerado em universidades e instituições CONSIDERAÇÕES FINAIS de pesquisa aos decisores e técnicos é Uma vez que o maior objetivo das também fundamental para melhorar a unidades de conservação é a manutenção qualidade dos planos de manejo.

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413 CapítuloCapítulo 2525Capítulo 2525Capítulo FOTO: MARIA JÚLIA MARTINS SILVA MARIA JÚLIA MARTINS FOTO: FOTO: MARIA JÚLIA MARTINS SILVA MARIA JÚLIA MARTINS FOTO: CaracterizaçãoCaracterização dosdos ecossistemasecossistemas aquáticosaquáticos dodo Claudia Padovesi Fonseca Departamento de Ecologia CerradoCerrado Universidade de Brasília Brasília - DF Pivello

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INTRODUÇÃO questões mais contundentes na atualidade. Água é um recurso de alto A região nuclear do Cerrado no valor, com potenciais usos como: Brasil, considerada mais característica e geração de energia elétrica, contínua, ocupando dois milhões de abastecimento doméstico e industrial, km2, está situada no Planalto Central navegação, irrigação, recreação, Brasileiro (Brasil, 1998). O relevo piscicultura e pesca, entre outros. apresenta extensas superfícies planas a Constitui, dessa forma, uma das maiores suaves onduladas, as chapadas, situadas riquezas do planeta. em cotas elevadas de altitude (acima de 1000m). A predominância de terras altas A posse das fontes naturais e nesta região fornece condições para que nascentes é elemento-chave para a as suas águas superficiais sejam obtenção de água e na gestão de recursos drenadas por três principais bacias hídricos regionais. O Brasil detém uma hidrográficas do país: Tocantins/ parcela expressiva dos deflúvios dos rios Araguaia, São Francisco e Paraná do mundo, ou seja, 12,7% de deflúvio (Ferrante et al., 2001). Com isso, esta estão em suas redes hidrográficas (Brasil, região representa o principal divisor das 1998). O bioma Cerrado oferece águas no país. Nascentes e uma infinita mananciais ainda preservados e muito rede de ecossistemas lóticos de pequeno valorizados. Grande parte das nascentes porte, como riachos e córregos, fluem está localizada em áreas de proteção em profusão. Lagoas naturais e zonas ambiental e de difícil acesso, o que de úmidas são formadas pelo afloramento alguma forma impede o avanço da das águas subterrâneas. Com isso, a ocupação e uso dos recursos ambientais região nuclear do bioma Cerrado é pela população nestas áreas, embora considerada o “berço das águas” uma parcela significativa seja ocupada brasileiras. irregularmente.

A obtenção de águas de boa Se por um lado o núcleo do Cerrado qualidade para diversos usos pela brasileiro é especial por representar a humanidade é considerada uma das região de nascentes e divisor de águas,

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por outro lado, há de ter habilidades na estas atividades realizadas de forma gestão de seus recursos hídricos pelas inadequada, foram produzidos diversos dificuldades inerentes em acumular e impactos sobre o meio ambiente. A utilizar esta profusão de águas contaminação das águas subterrâneas e superficiais e subterrâneas. O volume de superficiais, assoreamento dos cursos água nos continentes é finito e os d´água e perda de matas ripárias mananciais estão irregularmente constituem os principais impactos sobre distribuídos. Atualmente, sua disponi- a biota aquática no Cerrado. bilidade diminui gradativamente devido É consenso que, apesar dos esforços à degradação ambiental, ao crescimento de estudos sobre a fauna e flora do populacional desordenado e à expansão Cerrado, com a estimativa de 160 mil de fronteiras agrícolas (Klink, et al., espécies, ainda pouco se conhece sobre 1995). a biodiversidade deste bioma. Esta O lençol freático, que é a parte das situação é notável para diversidade de águas subterrâneas localizada mais perto grupos aquáticos, como invertebrados, da superfície, é bem raso, e chega a algas, macrófitas aquáticas e peixes aflorar em alguns pontos, formando as (Conservation International, 1999). nascentes. A primeira impressão é que O presente capítulo apresenta uma nesta região a água é abundante. Na caracterização geral dos ecossistemas realidade, a água é de boa qualidade, aquáticos naturais do Cerrado e sua mas é escassa. Os assentamentos importância sobre a comunidade humanos em áreas de recarga que aquática. A biota aquática é apresentada abastecem os lençóis freáticos tornaram- com limitações devido ao seu pouco se um dos principais problemas no uso conhecimento dentro deste bioma. da água nesta região dos cerrados. Os aqüíferos tendem a ser de pequeno porte, e os assentamentos humanos rurais e CARACTERIZAÇÃO DOS urbanos atendidos com águas subter- ECOSSISTEMAS AQUÁTICOS râneas reduzem expressivamente a sua recarga. Com isso, muitos olhos d´água O Cerrado apresenta uma variedade e até lagoas naturais estão secando de ecossistemas aquáticos naturais. Além (Campos & Freitas-Silva, 1998). de corpos d’água lóticos (águas cor- rentes) e lênticos (águas paradas), têm- O Cerrado representa um dos se a presença de outros sistemas maiores biomas pertencente ao domínio aquáticos específicos para esta região, morfoclimático do Brasil e da América que estão associados às áreas inun- do Sul, com uma biodiversidade compa- dáveis, inseridas nas categorias das rada à amazônica (Oliveira & Marquis, zonas úmidas. Segundo a Convenção de 2002). Além da alta biodiversidade, o Ramsar (1971), é considerada zona Cerrado é considerado um bioma com úmida toda extensão de pântanos, elevado grau de endemismo (Myers et charcos e turfas, ou superfícies cobertas al., 2000). As atividades humanas, como de água, de regime artificial ou natural, agropecuária e mineração, propiciaram permanentes ou temporárias, doce, um avanço econômico no centro-oeste salobra ou salgada. do Brasil, com quase 35% de sua área substituída por pastagens e A presença e ampla extensão de monocultivos (Klink et al., 1995). Com zonas úmidas no Cerrado brasileiro é

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uma peculiaridade notável, trazendo e partículas em suspensão. Estes uma amplificação entre os meios materiais, tanto dissolvidos como em ambientes terrestre e aquático, e uma suspensão, são em grande parte área de investigação científica ainda provenientes da bacia de drenagem, com muito pouco explorada. uma ampla superfície de interação com o ambiente terrestre. Esta tendência decorre do fato destes riachos serem ECOSSISTEMAS AQUÁTICOS mais extensos que largos, além de serem LÓTICOS bem rasos (Wetzel & Likens, 2000).

Os ecossistemas aquáticos lóticos A vegetação ribeirinha é formada por compõem os cursos d´água superficiais matas formando corredores fechados, as dos continentes. Um grande número de matas de galeria (Ribeiro e Walter, 1998). riachos e de ribeirões participa dos Estas matas são localizadas em fundos sistemas de drenagem no Cerrado. É uma de vales ou nas cabeceiras dos riachos, rede hidrográfica de pequenos cursos e acompanham os cursos d´água de d’água que nascem nas encostas das pequeno porte. Em riachos de médio e chapadas, e na porção inicial e mais alta, grande porte do Cerrado, a vegetação são originalmente protegidos por uma ripária sofre modificações, com faixas densa mata de galeria (Ribeiro et al., mais estreitas e sem a formação de 2001). Em condições naturais são muito galerias, descrita como mata ciliar pobres em nutrientes, levemente ácidos (Ribeiro e Walter, op. cit.). e com baixa condutividade elétrica (até 10µS/cm). Por serem rasos, de pequeno A proporção de chuvas que entra nos porte e sombreados, a temperatura da riachos depende de vários fatores água não varia muito ao longo do ano regionais, como o tipo de solo e (17 a 20 oC). Em certos casos, rios desenvolvimento da vegetação marginal, considerados mais quentes, a relevo, entre outros. O clima temperatura da água pode chegar a predominante na região do Cerrado é 25 oC na época chuvosa (Rocha, 1990). “tropical de savana”, segundo classificação de Köppen. Apresenta uma As características hidrológicas, estação chuvosa e mais quente, entre químicas e biológicas de um córrego outubro e abril, e uma estação seca e refletem o clima, a geologia e a cobertura mais fria, entre maio e setembro. A vegetal de sua bacia de drenagem região pode ficar sem chuvas por até três (Hynes, 1970; Giller & Malmqvist, 1999). meses, diminuindo expressivamente a Os cursos d´água desta região são de vazão e velocidade de corrente dos planalto e perenes, com as principais riachos, em especial nos trechos mais bacias hidrográficas identificadas por um planos e sinuosos (Abreu, 2001). padrão de drenagem radial (Ferrante et al., 2001). Pelas características de rios Após um período seco prolongado de planalto, é comum apresentarem no Cerrado, as primeiras chuvas corredeiras ou mesmo grandes quedas geralmente são incorporadas pela d´água, formando cachoeiras. vegetação e solos da bacia, não atingindo diretamente os cursos d´água. As chuvas Os ecossistemas lóticos de pequeno subseqüentes tendem a entrar nos porte são caracterizados por um riachos, aumentando a vazão e a movimento d´água ao longo de seu eixo correnteza, notadamente em trechos longitudinal, com materiais dissolvidos situados perto das cabeceiras. Durante

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a época chuvosa, os cursos d´água ficam relevante no estudo da biodiversidade, mais largos e um pouco mais profundos. pois muitas ocorrem sob condições As chuvas neste período são freqüentes ambientais diferenciadas e endêmicas à e quase diárias, mas com intensidade e região. volume variáveis, produzindo picos de Atualmente, em extensas áreas, a vazão. vegetação ripária no Cerrado se encontra Na região do Cerrado, os solos bastante alterada ou até inexistente, e hidromórficos são importantes ao longo muitas vezes substituída por gramíneas dos córregos e nascentes dos principais (Ribeiro et al., 2001). Erosão das margens rios (Ferrante et al., 2001). Estes solos e assoreamento dos cursos d´água, além são associados ao afloramento do lençol de poluição e contaminação de suas freático, com relevos geralmente de águas são as principais conseqüências planos a suave ondulados. A vegetação dos usos das bacias de drenagem pela de mata de galeria é típica deste tipo de população humana. Atividades como solo, e pode também ocorrer em campos mineração, com a retirada de cascalho de murundus e nascentes. Apesar de a do leito dos rios, lançamentos de esgotos mata ciliar acompanhar um curso domésticos e agrotóxicos usados na d´água, não está relacionada com lençol agricultura representam os principais freático superficial (Ribeiro & Walter, agentes de degradação da qualidade de 1998). água e perda de biodiversidade aquática do Cerrado. Organismos bentônicos são A presença da vegetação ripária em excelentes como bioindicadores de cursos d´água no Cerrado exerce papel qualidade ambiental. Riachos do Cerrado fundamental na preservação da situados em áreas urbanizadas podem biodiversidade da biota aquática. A apresentar alto nível de poluição, e a cobertura densa desta vegetação impede comunidade bentônica reflete as a incidência direta de raios solares, o que condições ambientais do local tende a reduzir a produtividade primária (Fernandes, 2002). realizada pelos vegetais aquáticos. A escassez de luz associada à corrente fluvial e pobreza de nutrientes limitam ECOSSISTEMAS AQUÁTICOS o desenvolvimento de organismos LÊNTICOS aquáticos, e, por conseguinte influen- ciam toda a rede alimentar. Por outro Lagos são corpos d´água continen- lado, a presença de vegetação ripária tais com delimitações de extensão e evita o aquecimento excessivo da água, profundidade geralmente bem definidas fornece energia alóctone com a entrada (Margalef, 1983; Esteves, 1998). Cada de folhas, frutos e sementes no curso lago ou cada grupo de lagos apresenta d´água, além de evitar a erosão das características físicas e químicas margens e fornecer condições ambientais próprias. Estas características são para reprodução de muitas espécies. Os reflexos das condições da bacia materiais alóctones, como restos vegetais hidrográfica em que o lago está inserido, ou mesmo insetos, são fontes adicionais como tipo de solo, relevo, geologia, entre de alimento ao sistema lótico, conferindo outros. Os lagos surgem e desaparecem elos na amplificação da rede alimentar ao longo do tempo geológico, e (Margalef, 1983). Dessa forma, espécies constituem elementos transitórios na presentes no Cerrado exercem papel paisagem. A curta durabilidade dos lagos

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está associada a vários fenômenos, como Mesmo estando em áreas mais a entrada de sedimentos da bacia de preservadas, algumas lagoas naturais já drenagem e de afluentes e o acúmulo de se encontram alteradas devido à materiais no sedimento. expansão agrícola e assentamentos humanos. Como são formadas pelo Um grande número de lagos afloramento do lençol freático, o uso existente na Terra é considerado raso e pequeno, inclusive os lagos brasileiros, indevido da água pela população diminui e neste caso, muitos deles são lagoas a recarga dos aqüíferos e afeta a (Esteves, op. cit.). No caso de lagoa, esta qualidade da água, inviabilizando o seu é um corpo d´água raso em que a uso para diversos fins (Campos & Freitas- radiação solar pode atingir o fundo e toda Silva, 1998). a coluna d´água é iluminada, Como exemplo, com o uso da água propiciando o crescimento de macrófitas subterrânea de forma indiscriminada por aquáticas. meio de construção de poços, lagoas O Cerrado brasileiro apresenta uma localizadas em áreas urbanas podem grande variedade de lagoas naturais ficar completamente secas, como foi o formadas pelo afloramento de águas caso da lagoa do Jaburu, em área urbana subterrâneas. Grande parte delas ainda de Brasília, Distrito Federal. não foi objeto de estudo científico. A Assoreamento e contaminação também colonização de macrófitas aquáticas representam impactos ambientais sobre representa uma heterogeneidade lagoas e olhos d´água localizados em ambiental e exerce influência sobre o regiões agrícolas e assentamentos metabolismo destas lagoas (Esteves, humanos. 1998), conferindo uma amplificação dos grupos ecológicos e da biodiversidade Uma parcela significativa destas local. As lagoas tendem a ficar mais rasas lagoas está situada em áreas de proteção no período seco, e na estação chuvosa ambiental. Nesta região de planalto, há flutuação no nível de água das lagoas podem estar em locais elevados e dependendo do regime de chuvas. divisores de águas, funcionando como Durante o período chuvoso, a água fica corredores ecológicos, com a interligação mais turva, devido à entrada de da flora e da fauna de bacias contíguas. sedimentos oriundos dos solos ao redor, Estas áreas do bioma Cerrado podem ou de veios d´água de nascentes. abrigar espécies ameaçadas de extinção e endêmicas, revelando um enorme As lagoas podem ficar mais isoladas patrimônio genético (Oliveira & Marquis, ou inseridas em áreas alagadas, em um 2002). conjunto de brejos, campos úmidos e córregos. No Estado de Tocantins há regiões preservadas, como a do Jalapão e do Vale do rio Paranã, como exemplos ZONAS ÚMIDAS de paisagem de áreas alagadas com O desenvolvimento de zonas úmidas lagoas, onde a água subterrânea flui abundantemente. A lagoa Mestre típicas do Cerrado promove uma d´Armas (lagoa Bonita), localizada na paisagem bastante peculiar à região. Estação Ecológica de Águas Emendadas, Nestas áreas, o lençol freático tende a Distrito Federal, é um exemplo de lagoas ser raso, e muitas vezes aflora à mais isoladas, sem a formação de superfície, e os solos permanecem alagados. grande parte do tempo saturados de

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água. O desenvolvimento da vegetação vivem em charcos, como gramíneas, é condicionado por vários outros fatores, ciperáceas e pteridófitas. No outro estrato como tipo de solo e sua fertilidade, o das veredas ocorre uma faixa de buritis nível de saturação de água no solo (Mauritia flexuosa), palmeiras proe- durante a estação seca, além da minentes, alcançando, muitas vezes, profundidade e flutuações de volume das mais de 20 metros de altura. As veredas águas subterrâneas. Em áreas bem são muito importantes em termos drenadas e mais altas, a cobertura vegetal ecológicos, pois funcionam como local é composta de gramíneas, arbustos e de pouso, nidificação e alimentação para pequenas árvores. Em áreas mais baixas a avifauna e como área de refúgio, abrigo e com solos saturados de água, a e reprodução, além de fonte de alimentos vegetação fica predominantemente para a fauna terrestre e aquática. graminosa. Ao longo dos cursos d’água se desenvolvem as matas de galeria. Esta seqüência de vegetação de Cerrado, CAMPOS ÚMIDOS campo alagado e mata de galeria compõe uma paisagem característica da região Os campos úmidos constituem um central do Brasil (Eiten, 1982) (Figura tipo de brejo com ampla distribuição no 1). Em terras mais altas que permanecem Cerrado do Brasil Central. Estes campos úmidas, a cobertura vegetal é composta se desenvolvem sobre solo inclinado nas por plantas típicas da região, os buritis encostas dos vales ao longo de margens (Mauritia flexuosa). Descrições mais das matas de galeria. O lençol freático detalhadas sobre as fitofisionomias de permanece na superfície do solo durante zonas úmidas no Cerrado brasileiro parte do ano, especialmente na estação podem ser encontradas em Eiten (1982), chuvosa, e na seca o solo fica encharcado Furley & Ratter (1988) e Ratter et al. nas camadas subsuperficiais. A (1997). vegetação é composta por gramíneas, de estrato herbáceo, com solo altamente orgânico (não-turfoso) e esponjoso. As VEREDAS águas superficiais e mais profundas do As veredas são fitofisionomias muito solo tendem a ser levemente ácidas (pH comuns no Planalto Central Brasileiro ao redor de 5), pobres em íons que ocorrem em solo permanentemente (condutividade elétrica abaixo de 10 saturados de água. Apresenta uma densa μmS/cm), temperaturas mais baixas (até camada de vegetação rasteira composta 22oC) e bem oxigenada (acima de 60%) de espécies herbáceas paludícolas, que (Reid, 1993a).

Figura 1 Esquema geral do gradiente longitudinal de zonas úmidas do bioma Cerrado (sem escala definida).

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Os campos úmidos se situam entre Os murundus presentes em áreas de matas de galeria e campo cerrado ou campos úmidos formam um arranjo veredas. Suas bordas com o cerrado na espacial descontínuo ao longo de um encosta acima e com a mata de galeria eixo longitudinal até as bordas, e de na encosta abaixo geralmente são muito alguma forma influencia na distribuição nítidas. A composição de espécies de e abundância dos organismos aquáticos. plantas graminosas e juncos em áreas de campo úmido é bem diversificada, e apresenta um zoneamento espacial bem BIOTA AQUÁTICA demarcado (Goldsmith, 1974). Em áreas menos encharcadas podem ser O alto grau de endemismo da biota encontradas plantas de brejo, do Cerrado já é reconhecido, com uma pertencentes aos gêneros Drosera, excepcional riqueza biológica (Oliveira Sphagnum e Utricularia. Em áreas & Marquis, 2002). Diante disso, é saturadas de água, na superfície se considerado um dos hotspots mundiais, desenvolvem complexas redes de ou seja, é um dos biomas mais ricos e filamentos de algas. ameaçados do planeta (Myers et al. , 2000). As áreas mais importantes para preservação biológica concentram-se ao longo do eixo central do Cerrado CAMPO DE MURUNDUS brasileiro (Conservation International, O interior dos campos úmidos pode 1999). apresentar áreas com solos mais O Brasil central, por ser uma região elevados e expostos, os chamados de nascentes e divisor de águas das murundus. Os murundus são ilhas de principais bacias hidrográficas do país, campo limpo ou de campo cerrado, exerce um papel de grande valor na arredondadas e um pouco mais altas, diversidade biológica. O forte com cerca de 1 a 10 metros de diâmetro endemismo no bioma Cerrado reforça a e alguns decímetros de altura. São importância para a conservação da formados por erosão diferencial do diversidade biológica, e em especial da terreno e muitas vezes ocupados por biota aquática. As áreas de conexão entre cupins. as bacias, que compreendem as suas Segundo Furley (1986), há duas cabeceiras de drenagem, são focos de situações para formação de murundus. endemismo para muitas espécies de água Em áreas situadas em terrenos mais doce, representando uma das áreas baixos dos vales, a formação de prioritárias para a conservação da murundus é afetada pelo afloramento do biodiversidade aquática (Conservation International, 1999). lençol freático, localizado muito perto da superfície do solo. Neste caso, os solos Os cursos d’água que nascem nesta ao redor de murundus geralmente são região do Cerrado fluem naturalmente orgânicos e permanentemente para as bacias contíguas, constituindo encharcados. A outra situação ocorre em muitas vezes corredores ecológicos para áreas mais planas, e os murundus são muitas espécies aquáticas. Dependendo menos perceptíveis, e a sua formação é da capacidade de adaptação das influenciada pelo ciclo sazonal de chuvas espécies, aliada às condições adequadas e escoamento superficial da água, tendo para o seu estabelecimento em outras pouco contato com a água subterrânea. regiões, os deflúvios do Cerrado podem

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representar caminhos de dispersão de na Tabela 1. Apesar de vários grupos espécies aquáticas. Dessa forma, o de organismos apresentarem uma Cerrado brasileiro representa uma das elevada riqueza de espécies, esta é áreas indispensáveis para a preservação estimada, considerando a potencialidade da diversidade biológica aquática e do e abrangência do bioma Cerrado em seu patrimônio genético. Além disso, abrigar uma elevada biodiversidade, em esta necessidade se torna iminente, pois especial da biota aquática. Além disso, menos de 0,5% do Cerrado está riqueza de espécies de vários outros contemplado por unidades de grupos, como macrófitas aquáticas, conservação genuinamente aquáticas perifíton e meiofauna, não foi sequer (Conservation International, 1999). estimada.

No entanto, pouco se conhece a A diversidade de espécies da respeito da riqueza de espécies aquáticas ictiofauna no Cerrado é bastante e sua distribuição dentro do bioma expressiva. Estimativas apontam a Cerrado. Os dados obtidos até o ocorrência de quase 3.000 espécies de momento são esparsos e centrados em peixes na América do Sul, sendo que poucos grupos de organismos. A riqueza mais de 500 espécies podem ser da biota aquática do Cerrado brasileiro encontradas no Cerrado. Este número é estimada na ordem de 9.580 espécies pode ser bem maior, pois há estimativas (Dias, 1996; Martins-Silva et al., 2001; que entre 30 e 40% das espécies de Padovesi-Fonseca et al., 2001). Os dados peixes de água doce no Brasil continuam em relação à riqueza de espécies desconhecidas, além de registros não aquáticas do Cerrado são apresentados publicados. Informações sobre a

Tabela 1. Riqueza estimada (ordem de grandeza) de espécies da biota aquática do Cerrado.

Fonte: Dias, 1996 (1); Padovesi-Fonseca et al., 2001(2); Martins-Silva et al., 2001 (3).

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ictiofauna das bacias hidrográficas do espécies de rotíferos apresenta uma Brasil central destacam uma composição distribuição ubíqua, presente em quase de espécies nativas, incluindo as espécies todos os tipos de habitats de água doce. migradoras (Ribeiro, 1998). Das 457 espécies brasileiras conhecidas, Considerando o potencial para o pelo menos 30% estão em águas doce endemismo no Cerrado, e ameaças de do Cerrado, com 4% das espécies extinção de ictiofaunas em várias regiões provavelmente endêmicas. Os do Cerrado, é imprescindível a ampliação Copepoda, junto com os Cladocera, são do pouco conhecimento desta fauna, em os dois grupos mais representativos de especial nas cabeceiras. microcrustáceos nas águas doces. A estimativa da riqueza de espécies para O conhecimento sobre os os microcrustáceos no Cerrado até o invertebrados aquáticos no Cerrado momento é bastante grosseira, podendo ainda é incipiente e muito incompleto. atingir até 100 espécies (Tabela 1). O grau Entre os microinvertebrados, os Protozoa de endemismo das espécies destes são o grupo menos conhecido (Brasil, grupos é elevado, e associado ao pouco 1998). Apesar de sua importância no estudo realizado no Cerrado, abre uma funcionamento dos ecossistemas perspectiva de aumento da aquáticos, especialmente como elos biodiversidade no país. adicionais na rede alimentar, há necessidade de técnicas especiais e Nos substratos e sedimentos de muitas vezes onerosas para amostragem riachos e lagoas do Cerrado há uma e identificação dos organismos, o que fauna bentônica, onde se encontram os de alguma forma limita o seu estudo. macroinvertebrados ou zoobentos. Estes Entre os grupos de Protozoa, os animais são sedentários e com ciclo de flagelados representam o de menor vida longo, e com isso, não são capazes conhecimento, pois a sua diversidade de evitar, rapidamente, mudanças sequer pode ser estimada. Entre os prejudiciais e exibem variados graus de sarcodinos, as tecamebas são as mais tolerância à poluição (Metcalfe, 1989). conhecidas com uma riqueza estimada Como são muito sensíveis aos distúrbios na ordem de 400 espécies para o Cerrado que ocorrem no meio ambiente, eles têm brasileiro (Tabela 1). No entanto, em sido amplamente utilizados como estudos realizados no Brasil até o bioindicadores de qualidade de água momento, foram identificados cerca de (Navas-Pereira & Henrique, 1996). 20 gêneros e 150 espécies de tecamebas Representam também um papel (Brasil, 1998). Os ciliados são os importante na decomposição de matéria protozoários mais expressivos em termos orgânica e ciclagem de nutrientes de riqueza de espécies, além de serem (Esteves, 1998), e como fonte de úteis como indicadores na avaliação da alimento para níveis tróficos superiores, qualidade da água. Das 8.000 espécies como peixes (Devái, 1990). descritas no mundo, o Cerrado brasileiro A comunidade macrobêntica é apresenta uma riqueza estimada na composta por vários grupos, como ordem de 1.500 espécies (Tabela 1), com cnidários, anelídeos, moluscos e insetos 147 gêneros registrados no Brasil. aquáticos, entre outros (Martins-Silva et Considerando os microinvertebrados al., 2001). A grande maioria dos estudos planctônicos, além dos protozoários, aborda os insetos aquáticos. Estudos devem ser evidenciados representantes realizados em vários riachos do Brasil do Filo Rotifera, e dos microcrustáceos central revelaram uma fauna bastante Cladocera e Copepoda. Grande parte das variada, embora com resultados

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abordando diferentes níveis taxonô- estudada. Ainda assim, os trabalhos micos, com poucos taxa identificados até desenvolvidos nesta região detectaram espécie (Medeiros, 1997, Bispo et al., uma diversidade biológica bastante 2001, Martins-Silva et al., 2001, expressiva e com espécies endêmicas. Fernandes, 2002). Dessa forma, a Invertebrados bentônicos são numerosos composição faunística da comunidade e os peixes são de pequeno porte. Dentre bentônica no Cerrado apresenta ainda eles, o pirá-brasília (Cynolebias boitonei) uma configuração generalizada, com é endêmico nas veredas do Distrito perspectivas para ampliar a biodiver- Federal e está ameaçado de extinção sidade, inclusive com o potencial de (Rocha, 1990). Esta espécie apresenta ocorrência de espécies novas para a uma beleza física exuberante, sendo região. usado como peixe ornamental. Análise taxonômica de algas em áreas A flora aquática do Cerrado, preservadas foi realizada por Senna & considerando macrófitas aquáticas, Ferreira (1986, 1987), com a observação fitoplâncton e perifiton, tem sido pouco de uma elevada variedade fitoplanc- avaliada em ambientes aquáticos tônica. Em áreas alagadas e riachos da naturais. Leite (1990) encontrou uma região do Vale do Paranã (TO), Adamo microflora riquíssima composta por algas & Padovesi-Fonseca (2003) observaram desmidiáceas em estudo realizado na uma fauna associada bastante variada e Lagoa Bonita. Em cursos d´água da bacia composta por taxa novos e ainda não do lago do Descoberto, Caramasch et al. descritos. Em estudos da meiofauna de (1997) realizaram estudo preliminar de campos úmidos, Reid (1982, 1984, 1987, comunidades planctônicas. Por sua vez, 1993b) encontrou uma comunidade ao longo de um tributário da mesma dominada por nematóides, rotíferos e bacia, Abreu (2001) revelou uma copépodos harpacticóides, além de comunidade fitoplantônica com elevado protozoários, turbelários, copépodos número de taxa (acima de 160), apesar ciclopóides, cladóceros, ostrácodes, da baixa freqüência de ocorrência e oligoquetos, hidrocarinos e várias densidade numérica dos organismos. famílias de larvas de insetos. Pelo menos Elevada riqueza de organismos de 10 espécies de Copepoda foram comunidade perifítica associada a classificadas pela primeira vez, e macrófitas aquáticas em ambiente lótico identificadas como espécies novas e foi observada por Mendonça-Galvão endêmicas à região. (2002), no córrego Roncador, situado na Reserva Ecológica do IBGE, Distrito Federal, com a detecção de 171 taxa. Estes poucos trabalhos revelam a elevada CONSIDERAÇÕES FINAIS biodiversidade dos ecossistemas Apesar de o Cerrado ser considerado aquáticos naturais do bioma Cerrado, e um dos biomas mais biodiverso e com isso, a necessidade de intensificar ameaçado do mundo, pouca atenção tem os estudos nesta região. sido dirigida para a conservação dos A presença de ecossistemas alagados ecossistemas aquáticos naturais e da em áreas de cerrado amplia o leque de biota aquática. estudos do inventário de espécies aquáticas no país. A comunidade O grau de endemismo no Cerrado é aquática que se desenvolve nas áreas elevado, e aliado ao desconhecimento alagadas do Brasil Central é pouco científico de uma parcela significativa

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dos ecossistemas aquáticos naturais e de ramentas que favoreçam a conservação sua biota, revelam lacunas importantes ambiental da região. para a avaliação da biodiversidade e Um dos aspectos particularmente conservação deste bioma. importantes em relação à conservação As áreas definidas para a de ambientes aquáticos é a ausência de conservação ambiental raramente dados sobre sistemas prístinos do contemplam os ambientes aquáticos e Cerrado. Além de compor uma fonte sua biota. Este aparente desinteresse de essencial para a biodiversidade, pode- inclusão de ambientes aquáticos pode se constituir uma referência para estar associado à aceitação geral que ao programas de recuperação de sistemas proteger os ambientes terrestres perturbados por atividades humanas. automaticamente os aquáticos são Diante deste contexto, torna-se protegidos, como foi discutido por Junk evidente a necessidade de intensificar (1983) e Tundisi & Barbosa (1995). esforços nos estudos destes ecossistemas Considerando a potencialidade e peculiares à região, bem como da abrangência do bioma Cerrado em biodiversidade e distribuição de suas abrigar uma elevada biodiversidade, a espécies aquáticas. Tais propósitos vêm flora e a fauna aquáticas devem ser ao encontro de garantir embasamento consideradas e avaliadas com o intuito teórico para a preservação e uso de fornecer subsídios necessários e sustentável de fontes de água para essenciais para a definição de fer- gerações futuras.

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429 CapítuloCapítulo 2626Capítulo 2626Capítulo FOTO: GUARINO COLLI GUARINO FOTO: PerspectivasPerspectivas ee COLLI GUARINO FOTO: desafiosdesafios parapara

Roberto B. Cavalcanti conservaçãoconservação dodo Departamento de Zoologia Universidade de Brasília Brasília, DF CerradoCerrado nono séculoséculo 2121 Conservation International Washington DC ,EUA Fonseca

432 Perspectivas e desafios para a conservação

INTRODUÇÃO experimentava acelerado crescimento demográfico e econômico na década de A conservação da biodiversidade 1990, trouxe pouco progresso, como hoje é bem estabelecida no rol de indicado pela acentuada deterioração nos preocupações das sociedades modernas. ambientes biologicamente mais ricos, Uma série de conferências globais de seja medido na cobertura de florestas grande porte, a partir de Estocolmo, em tropicais ou nos recifes de corais do 1972 e culminando no Rio de Janeiro, planeta. em 1992, gerou o envolvimento dos governos e a adoção de leis e acordos Atualmente vivemos um processo reconhecendo a importância do contínuo de perda de recursos patrimônio biológico e a necessidade de biológicos, que embora reconhecido e conservá-lo para as gerações futuras. freqüentemente lamentado, ainda não pode ser revertido devido a conflitos com A partir de meados da década de outras prioridades das sociedades 1980, com o relatório da Comissão modernas. O objetivo deste capítulo é Brüntland para a ONU, desenhou-se um fazer uma breve revisão de alguns destes cenário para promoção do conflitos e identificar formas potenciais desenvolvimento econômico e social de promover a coexistência entre as incorporando valores de conservação populações humanas e a biodiversidade dos recursos naturais, no chamado do planeta. desenvolvimento sustentável. Durante os anos 1990 e particularmente após a Conferência do Rio de Janeiro, este BIODIVERSIDADE E EXTRATIVISMO modelo foi seriamente explorado por governos de vários países, pelo setor A produtividade dos ecossistemas privado, e por organizações não- naturais é insuficiente para os seus governamentais de todos os naipes. recursos manterem de forma sustentável Entretanto, o duplo desafio de realizar as populações humanas nas densidades uma transição para outro modelo de modernas. Embora este seja um fato desenvolvimento, enquanto o mundo reconhecido há milênios, e razão óbvia

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de nossa dependência da agricultura e novas gerações de árvores, também da criação de animais domésticos, em sustentariam populações de consumi- muitas partes do mundo, a exploração dores como as araras, roedores, insetos industrial dos ecossistemas naturais vem e toda uma fauna própria. dizimando a flora e a fauna nativa, seja Não se quer dizer aqui que o na África e Ásia, ou na América do Sul extrativismo é incompatível com a com a indústria madeireira. Trata-se de manutenção de elementos da biota um sistema perverso, pois em muitos natural, mas alertar que a capacidade de casos estas regiões sustentavam sustentação extrativa de ecossistemas populações humanas extrativistas de nativos é extremamente limitada e baixas densidades. oferece poucas perspectivas de Com a abertura de estradas e o ampliação como instrumento para acesso a cidades, a população consu- promoção de conservação. Por outro midora potencial é enormemente lado, o uso de paisagens naturais para elevada, e a extração rapidamente supera fornecimento de serviços, onde não há a capacidade de regeneração biológica necessidade de remoção de matéria ou natural. Trata-se aqui de uma transição energia do sistema, permite um complexa, mudando o uso dos crescimento de escala considerável, ecossistemas naturais para fontes de restando o desafio de promover um serviços (água, manutenção do clima, processo de valoração para justificar sua reservas de biodiversidade, estabilização manutenção. da paisagem), e o fomento a ecossis- Os esforços para conseguir valorar temas manejados para suprirem as ecossistemas naturais a título de serviços necessidades das populações humanas. foram acelerados a partir da década de Embora muitos preconizem a 1980. As principais classes são: continuidade de atividades extrativas • Serviços de ecossistema: manu- como justificativa para manutenção de tenção da água, manutenção de paisagens nativas, na maioria dos casos clima, fixação de carbono, controle a conservação destas é uma conseqüên- de erosão e conservação do solo. cia apenas temporária. Como a produtividade biológica é insuficiente • Serviços biológicos: manutenção para atender à pressão extrativa, da biodiversidade, bioprospecção, rapidamente entra-se em um processo de controle de predadores, serviços de consumo dos estoques e degradação no polinizadores, entre outros. longo prazo. Um bom exemplo é o efeito • da coleta de castanhas sobre o Serviços sociais/culturais: manu- recrutamento de novas plantas na tenção de identidade cultural de Amazônia, estudado por Peres et al. populações locais, símbolo e local (2003). Nas áreas de extração de longo para rituais sociais e religiosos, prazo, não há plantas jovens de menor ecoturismo e turismo de aventura, diâmetro o que indica que a população lazer, manutenção da qualidade de não está se regenerando localmente. vida. Outros efeitos também conhecidos são Entretanto, como é bem conhecido, resultantes da remoção física do produto na sociedade moderna os serviços da floresta. Caso não houvesse coleta, públicos, em geral, assim como as castanhas além de serem a fonte das os recursos naturais têm sido

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sistematicamente não valorados, alimentar e a saúde. Por outro lado, a subvalorados, ou então têm seus custos presença física de 6,5 bilhões de pessoas subsidiados. Dessa forma o real valor sobre o planeta, com crescimento dos ecossistemas naturais é invisível previsto de até 25 bilhões antes de se para a maioria da população. Pior, não estabilizar, demonstra claramente que os conseguem enfrentar em termos fatores limitantes passam a ser cada vez econômicos os outros usos potenciais da mais os sistemas de sustento ecológico terra em que os retornos são valorados do planeta, incluindo suprimentos de de forma mais transparente. alimentos e o meio ambiente.

IMPORTÂNCIA DA CONSERVAÇÃO OCUPAÇÃO DAS GRANDES ÁREAS NATURAIS O ambiente terrestre é um ambiente biológico. Os principais elementos que O processo de ocupação das áreas mantém as condições de vida na Terra naturais do planeta continua a passos são conseqüências da transformação largos. Na Amazônia, os dados de biológica do planeta durante o último desmatamento para 2003 mostram a bilhão de anos. O teor de oxigênio na segunda maior cifra da história – atmosfera, as condições climáticas locais 23.000km2. Mesmo que haja um esforço como temperatura, precipitação, adicional para conter tais processos, o umidade, ventos, e o teor de água no crescimento da população humana e a solo, são todos mediados e, em boa necessidade de fornecimento de parte, determinados pelas paisagens alimentos continuarão a exercer pressão. biológicas. A sustentação da vida Atualmente 83% das áreas agrícolas do humana também, em última instância, planeta são abastecidas por água da depende da transformação biológica da chuva, sendo responsáveis por 2/3 do energia solar em alimentos, mediada pela suprimento alimentar global (Gleick fotossíntese. Dessa forma é paradoxal 1993 apud Rockström et al. 1999). A que grande parte da população humana produção agrícola é mediada por luz e dê maior valor aos elementos água, para realizar fotossíntese. Estima- tecnológicos, de uma sociedade de se que um crescimento da população consumo, do que aos biológicos na humana para 8,5 bilhões, em 2025, determinação de nossa qualidade de vida exigiria um aumento de 46% no e sustentabilidade. consumo de água para agricultura ou seja, em torno de 3.100km3 (Rockström Este conceito está começando a et al. 1999). mudar por algumas razões. A eficiência dos processos industriais permite Dessa forma, não é surpreendente fornecer insumos a grande parte da que, mundialmente, haja um processo sociedade humana, a custos moderados, de expansão agrícola nas áreas de incluindo aí bens e serviços tecnológicos. floresta tropical, onde existem água e sol A descoberta da estrutura do DNA na em abundância. Similarmente, há década de 1950 viabilizou a engenharia acelerado crescimento em regiões semi- genética, promovendo a aplicação dos áridas dotadas de aqüíferos subterrâneos processos tecnológicos da sociedade disponíveis para serem explorados. industrial aos sistemas biológicos com Outros fatores limitantes, inclusive conseqüências sobre a produtividade qualidade do solo e mesmo a fisiologia

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das plantas, podem ser modificados por modelos de ocupação que viabilizem a meios tecnológicos. Os avanços da sobrevivência da biota nativa na engenharia genética, clonagem, e o paisagem regional. crescimento da infra-estrutura de Os corredores de biodiversidade são transportes permitem que regiões uma das formas de planejamento remotas do mundo produzam alimentos regional que visam manter sistemas de de paladar global a custos competitivos. áreas protegidas em uma matriz de uso Em resumo, a proteção de áreas humano da paisagem. No Brasil, os naturais hoje apresenta custos de denominados corredores ecológicos oportunidade significativos, se foram propostos no âmbito do Programa comparada à situação na década Piloto para a Proteção de Florestas passada, em função desses avanços da Tropicais (PP-G7) para Amazônia e mata infra-estrutura de transportes, bem como Atlântica (Ayres et al. 1997), e mais tarde do desenvolvimento tecnológico e da incorporados pelo governo Federal, demanda de alimentos. Estaduais, organizações conservacio- nistas e agências de desenvolvimento Ao mesmo tempo, uma estratégia de para os demais biomas. Em um corredor proteção ambiental agrega valor de biodiversidade, são desenhadas e significativo para a viabilidade da implementadas conexões entre áreas ocupação humana de uma região. O protegidas, de forma que os biomas custo de não proteger áreas-chave é naturais não sejam ilhados como muito alto. Ainda no caso da Amazônia, resultado da ação antrópica. Ao estima-se que o desmatamento poderá combater a fragmentação, mantêm-se os reduzir em até 20% a precipitação anual. processos de migração, dispersão, Nos cerrados, onde a precipitação se colonização e intercâmbio genético que concentra em seis meses do ano, a permitem a sobrevivência da biota nativa perenização dos rios depende de na paisagem. Em termos de ecossistema, armazenamento de água subterrânea, também são mantidos os fluxos de nos grandes sistemas de chapadões da matéria e energia que sustentam a Serra Geral. produtividade natural.

OPORTUNIDADES DE CONSERVAÇÃO CORREDOR CERRADO-PANTANAL

A ocupação acelerada do Brasil Um exemplo interessante é o central e da Amazônia é um processo Corredor Cerrado-Pantanal, planejado de difícil reversão, motivado por uma por ocasião do Workshop Áreas demanda global de recursos naturais e Prioritárias para Conservação da de alimentos, aliado a tecnologias Biodiversidade dos Biomas Cerrado e altamente eficientes de produção e Pantanal (MMA, Funatura, Conservação expectativas de desenvolvimento social Internacional (CI), Universidade de das populações locais. As perspectivas Brasília, Fundação Biodiversitas), em de conservação da região dependem da 1998, o qual teve sua implantação capacidade de se alavancar parte do iniciada a partir de 1999, sob um investimento e do retorno econômico consórcio multinstitucional incluindo a gerado em atividades de proteção da ONG Conservação Internacional (CI). biodiversidade, bem como na adoção de Este corredor cobre a área desde as

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nascentes do rio Taquari na região do expressam e se reproduzem por meio de Parque Nacional das Emas, abrangendo organismos, e as comunidades e sua bacia e o rio Negro no Pantanal do ecossistemas são descritos em termos de Mato Grosso do Sul. sua composição de espécies e fluxos de matéria e energia. Ao escolher espécies Ao longo dos últimos cinco anos, como alvo de proteção, é possível foram criadas pelos governos novas áreas caracterizar as medidas que darão como públicas de conservação (Parques Estaduais do Rio Negro e das Nascentes conseqüência também a proteção dos do Taquari, no MS), reservas particulares genes e dos ecossistemas. (RPPN Fazenda Rio Negro); financiados As áreas protegidas têm se mostrado estudos de populações de fauna para como um dos mecanismos mais efetivos mapear movimentos e dispersão e e com melhor relação custo/benefício realizados programas de conscientização para manter a diversidade de espécies e educação ambiental, com o objetivo (Brunner et al. 2000). Além disso, de consolidar a proteção da oferecem a oportunidade de agregar as biodiversidade na paisagem regional. funções de serviços ambientais descritos Um dos aspectos mais inovadores é o anteriormente, contribuindo com fonte planejamento de áreas de reserva legal adicional de recurso para viabilizar a de propriedades particulares. Em conservação da biodiversidade. colaboração com as agências de governo e fazendeiros, as ONGs Oréades e CI Brasil usam imagens de satélite para MUDANÇAS DE LONGO PRAZO classificar a paisagem, sobrepondo os polígonos das propriedades, e gerando Não se pode deixar de fazer cenários alternativos para cumprimento referência a fatores de longo prazo que da exigência legal de proteção de 20% podem ameaçar a sobrevivência dos das superfícies de cada propriedade. cerrados. As mudanças climáticas globais, com o aquecimento da superfície Estas análises permitem planejar estratégias de proteção que, compatíveis do planeta, podem afetar o clima da com as exigências de uso econômico das região tanto no aspecto de temperatura fazendas, multiplicam o potencial de quanto de precipitação, e por conservação regional, por meio da conseguinte ter efeitos dramáticos sobre interligação das reservas legais entre si a distribuição das comunidades e com as áreas públicas de proteção da biológicas. Infelizmente, ainda há grande biodiversidade. incerteza tanto sobre os cenários climáticos como em predizer os futuros “envelopes” bioclimáticos da vegetação ÁREAS PROTEGIDAS E PROTEÇÃO do cerrado, tornando difícil prognosticar DAS ESPÉCIES a capacidade de resistência da biota local. Estudos feitos para outras regiões, Qual deve ser o alvo da conservação por exemplo, no sul da África, da biodiversidade? Em geral, considera- mostraram extinções globais signifi- se que devem ser protegidas as suas cativas de espécies como resultado de diversas manifestações: a diversidade mudanças climáticas. genética, a diversidade de organismos, e a diversidade de sistemas biológicos. De maneira semelhante, a redução Destas, o alvo mais concreto é a da área de ambiente nativo do Cerrado diversidade de organismos. Os genes se aumenta o risco de extinções, ao reduzir

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as populações de espécies a uma fração • Transição social, para eliminação do seu tamanho anterior e tornando-as da pobreza em massa e desi- mais suscetíveis ao desaparecimento em gualdade. função de eventos catastróficos. • Transição tecnológica, com a Novamente, este aumento de risco é promoção de tecnologias limpas e difícil de estimar quantitativamente. de baixo impacto ambiental. Destaca-se que muitas espécies não são • Transição econômica, para que os homogeneamente distribuídas pela preços de bens e serviços reflitam região, concentrando-se ao contrário em os reais custos ambientais. habitat restritos como os campos • Transição para o consumo rupestres, ou em pequenas partes do sustentável. bioma, por exemplo, nas matas do rio Paranã, vale do rio Araguaia, ou na • Transição em conhecimento e região do Distrito Federal. aprendizagem, provendo a base científica para tomada de decisões A introdução de espécies exóticas e e a difusão deste conhecimento. doenças é outro impacto potencialmente • Transições institucionais, que irreversível. Gramíneas africanas, promovam a mudança na gestão trazidas como pastagem para o gado, internacional de recursos do persistem mesmo após áreas de pasto ambiente e promovam iniciativas serem abandonadas, impedindo a locais de base na gestão ambiental. regeneração dos cerrados. Espécies • Transição em cultura e conscien- arbóreas introduzidas como Pinus e tização, para incorporar nos Acacia também persistem em cerrado. valores individuais a conservação Uma vez estabelecidas, espécies do meio ambiente. introduzidas podem excluir perma- Muitas destas transições estão em nentemente espécies nativas, levando-as curso no momento. Entretanto, os à extinção. Suspeita-se que o declínio de processos de declínio da biodiversidade espécies como o cachorro-do-mato- continuam acelerados (Wilson et al. vinagre pode estar vinculado à presença 2004). Espera-se que o desenvolvimento de doenças trazidas por animais sustentável chegue a tempo de salvar as domésticos. espécies que dividem o planeta conosco.

TRANSIÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos principais proponentes do Vivemos hoje um momento de desenvolvimento sustentável, Gustave decisão, pois o processo de Speth, ex-administrador do PNUD e co- desaparecimento do Cerrado é muito fundador do World Resources Institute, bem documentado, e existem métodos propôs um conjunto de oito transições bem estabelecidos para realizar a necessárias para que a sociedade global conservação do bioma. Precisamos tenha um futuro sustentável no uso dos implementar com a rapidez necessária e recursos naturais do planeta (Speth, o apoio da sociedade a proteção efetiva 2004). São elas: do Cerrado para que o patrimônio • Transição demográfica, para uma natural possa continuar a beneficiar a população global estável ou humanidade e manter a vida na terra menor. para as gerações futuras.

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