LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES

DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO:

As saborosas crônicas de Moacyr Scliar

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LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES

DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO:

As saborosas crônicas de Moacyr Scliar

Dissertação apresentada para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de concentração: Teoria Literária e Literatura Comparada), do programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Assis.

Orientadora: Profa. Dra. Heloisa Costa Milton

Assis - SP 1999

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis - UNESP

Guimarães, Lealis Conceição G963d Do fato ao texto literário: as saborosas crônicas de Moacyr Scliar. Lealis Conceição Guimarães. Assis, 1999. 178p.

Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista.

1. Scliar, Moacyr, 1937- 2. Crônicas brasileiras 3. Humorismo brasileiro 4. Paródia.

CDD 808. 7 869. 93 869. 97 2

LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES

DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO:

As saborosas crônicas de Moacyr Scliar

COMISSÃO JULGADORA

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

Presidente e Orientador: Profª. Drª. Heloisa Costa Milton (UNESP) 2º Examinador: Profª. Drª. Adelaide Caramuru Cezar (UEL) 3º Examinador: Profª. Drª. Raul Henriques Maimone (UNESP)

Assis, 08 de novembro de 1999. 3

DADOS CURRICULARES LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES

NASCIMENTO 20. 11. 1946 - JOAQUIM TÁVORA/PR FILIAÇÃO Enéas Costa Guimarães Lina Conceição Guimarães

1965/1968 Curso de Graduação em Letras Universidade Federal do Paraná - Curitiba/PR

1967/1992 Professora concursada da rede estadual de ensino (1º e 2º graus) – Curitiba e Londrina/PR

1993/1994 Coordenadora Geral de 2º grau e Curso pré-vestibular Curso e Colégio Metropolitano de Londrina /PR

1995/1999 Docente no Centro de Estudos Superiores de Londrina – CESULON 1999 Docente na Universidade Norte do Paraná - UNOPAR

1995/1998 Participante da Comissão de Elaboração, Aplicação e Correção de Provas do Concurso Vestibular - CESULON

1996/1999 Publicações: Noções da Semiótica Peirceana, Concepções de Crítica Literária em Northrop Frye, T. S. Eliot e Roland Barthes; Estudo Intertextual: Drummond X Drummond; A Crônica e o Olhar Crítico do Século XX; : A Identidade Nacional. (Revista Terra e Cultura – CESULON)

1996-1999 Apresentação de trabalhos em congressos: A crônica no Brasil do século XIX (X CELLIP – Londrina); Moacyr Scliar: algumas leituras (VI S.E.L. – Assis); Rafael Mendes: perplexo na sua estranha nação (XI LELLIP – Cascavel); Drummond no palco da vida (VII S.E.L. – Assis); As sobras da morte (V EPLLE – Assis); O poeta-viajante- observador (XII CELLIP – Foz do Iguaçu); Oficina de leitura: Cotidiano – um olhar poético (XII CELLIP – Foz do Iguaçu); Do fato ao texto literário: a subversão de valores estéticos femininos (6º Congresso da AIL – Rio de Janeiro).

1998 Participante da Comissão de Elaboração, Aplicação e Correção de Provas do Teste de Seleção para Cursos Técnicos em Eletrônica e Eletrotécnica (cursos pós-médios) - IPOLON

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1996/1999 Programação de Pós-Graduação em Letras, curso de Mestrado, área de Teoria Literária e Literatura Comparada - Faculdade de Ciências e Letras (UNESP), Campus de Assis

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Para Euphrásia e Manoel, Lina e Enéas, Marcelo, Renata, Romano, pela presença constante, dedicação e amor.

6

AGRADECIMENTOS:

Ao escritor e “co-autor” Moacyr Scliar;

À Heloisa Costa Milton, orientadora deste trabalho ;

Aos professores participantes da banca do Exame de Qualificação, Léa Mara Valezi Staut e Raul Henriques Maimone, da UNESP de Assis;

Aos outros competentes professores dos Departamentos de Letras Modernas e de Literatura da UNESP de Assis;

Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, da Biblioteca e do Departamento de Letras Modernas da UNESP;

Ao Centro de Estudos Superiores de Londrina (CESULON);

Ao Instituto Estadual do Livro, de ;

Aos meus irmãos Enéas Filho e Sônia Maria e aos outros familiares e amigos: Paulo Henrique, Judith, João José, Daniel, Mariam, Botelho, Mariza, Fernanda, Ivone, D. Ercina (in memoriam), Pedro, Godoy, Maria Cristina, Bella, Regina Maria;

A todos, enfim, que colaboraram para que se tornasse possível a realização do presente estudo.

7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 7

1 A CRÔNICA: O gênero e sua história no Brasil ...... 16

1. 1 O gênero ...... 17

1. 2 A crônica no Brasil ...... 25

2 O HUMOR COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ...... 38

3 DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO: As saborosas crônicas de Moacyr

Scliar...... 52

3. 1 SOBRE A CRIANÇA...... 62

3. 1. 1 Latindo pela vida ...... 63

3. 1. 2 A escola das ruas ...... 76

3. 2 SOBRE A MULHER...... 88

3. 2. 1 Patroas do mundo inteiro, uni-vos ...... 89

3. 2. 2 Feiúra não é desgraça. Beleza é...... 103

3. 3 SOBRE O POVO BRASILEIRO...... 116

3. 3. 1 Consultando no posto de saúde fantasma ...... 117

3. 3. 2 Aluga-se ...... 132

3. 4 SOBRE O POVO JUDEU ...... 144 8

3. 4. 1 A pausa que refresca ...... 145

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 159

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 164

Anexos:

Anexo A - ENTREVISTA COM MOACYR SCLIAR ...... 170

Anexo B – OBRAS DE MOACYR SCLIAR...... 173

Resumo...... ….. 177

Abstract...... …...178

INTRODUÇÃO

Escrever é, antes de tudo, contar história. É uma relação que se faz via literatura.

Moacyr Scliar

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O interesse desta pesquisa surgiu da leitura das crônicas do escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937- )∗, publicadas às quintas-feiras, na página 2 do caderno "Cotidiano", do jornal Folha de São Paulo.

Foram coligidas as crônicas e garimpadas as reportagens jornalísticas que deram origem a elas durante o período de 16 de março de

1995 a 28 de agosto de 1997, intervalo de tempo em que a seção em que tais crônicas eram divulgadas ainda intitulava-se “Boletim de Ocorrência”, denominação que remete à idéia de assunto policial. No entanto, o que

Scliar apresenta é a recriação do fato noticiado no terreno ficcional.

Ainda com relação à seção, a partir de 4 de setembro de

1997, embora escrita por Scliar, teve o nome alterado para "Cotidiano

Imaginário", título que alia a origem do texto e seu caráter literário, e, de 11 de novembro em diante, ela passou a ser publicada às segundas-feiras, como se mantém até hoje.

Das crônicas coletadas, extraídas de notícias do cotidiano jornalístico, nacionais ou internacionais, foram selecionadas sete, como material expressivo para o presente estudo.

∗ Tivemos um primeiro contato pessoal com o autor ao participarmos do Bate-Papo com o escritor, no projeto No calor da obra: encontros com a produção cultural contemporânea e na Feira do Livro de Curitiba, ambos os eventos promovidos pela Universidade Federal do Paraná, com o apoio da Prefeitura da cidade de Curitiba e da Fundação Cultural de Curitiba, nos dias 18 e 19 de abril de 1997.

10

A crônica, essa arte literária resultante de cuidadosa observação por parte do escritor, tanto se refere ao tecido social, quanto dele emerge, estabelecendo-se, assim, uma relação de reciprocidade no que diz respeito à configuração de sua linguagem como manifestação de um determinado contexto ou época. Evidentemente, o importante é o tratamento estilístico do assunto escolhido, uma vez que o fato focalizado

é apenas pretexto para as divagações artísticas do cronista.

Neste trabalho, procede-se a uma análise comparativa visando a estabelecer determinadas características da crônica oriunda da reportagem jornalística, seus recursos e efeitos estéticos, na medida em que, como já foi ressaltado, a matéria jornalística interessa apenas como objeto para uma apreciação ficcional dos acontecimentos com mordacidade crítica.

Em vista disso, procura-se mostrar como o autor trabalha literariamente os fatos veiculados no periódico, fazendo-se um confronto entre a linguagem denotativa jornalística e a linguagem conotativa literária da crônica, bem como entre esta e outras referências textuais presentes no corpus literário, como manifesto político, anúncio publicitário, Bíblia

Sagrada, literatura infantil, juvenil e outras. É relevante, portanto, analisar o acréscimo que Scliar dá aos acontecimentos ao reconstituí-los 11 literariamente, isto é, verificar de que forma o autor os transforma esteticamente.

Apresentando uma visão repleta de humor e ironia, típica de sua condição judaica, como faz questão de ressaltar, esse escritor gaúcho, nascido em 1937, em Porto Alegre, autor de vários livros abrangendo contos, romances, ficção juvenil, crônicas e ensaios, começou a escrever ainda criança. Já em 1951, ganhou o primeiro prêmio por redigir o melhor conto no Jornal Mural da escola em que estudava, tendo início, a partir daí, a produção literária scliariana. Premiado inúmeras vezes, com obras traduzidas em várias línguas, Scliar concilia a literatura com a profissão de médico sanitarista dedicado à saúde pública. Atualmente, ele escreve crônicas semanais nos jornais Zero Hora, de Porto Alegre, e Folha de São Paulo, de São Paulo.

Seus trabalhos literários abordam assuntos da vida política e social do país e do mundo e, na maioria das vezes, têm fortes marcas do judaísmo, cuja simbologia manifesta-se especialmente através de desejos ou sonhos de seus personagens , os quais escapam de determinados parâmetros sociais para integrar a esfera do absurdo.

Uma grande conhecedora da obra desse escritor, Bella

Jozef, afirma que Scliar,

influenciado pelos mitos bíblicos da tradição judaica, num tom várias vezes profético, traz para as suas narrativas a 12

presença do sobrenatural como forças misteriosas que condicionam a natureza e a vida do homem. Tudo transcorre no espaço literário, um espaço de fantasmas1.

Explica-se assim como, ao apresentar os grandes temas e as angústias do tempo atual, o escritor transporta o que considera realidade perturbadora para o espaço literário, valendo-se de forças sobrenaturais, quase sempre fundamentadas nos mitos e crenças da tradição judaica, como elementos extraídos do folclore e do imaginário do povo judeu.

Enfatiza-se a herança judaica de Scliar porque, como ele mesmo declara na entrevista anexada ao final deste trabalho, essa não é só uma questão cultural, é um estado de espírito permanente ao qual deve, principalmente, a sensibilidade da visão crítica do mundo para detectar a intolerância e a opressão que cercam a vida humana. Tal característica faz com que ele esteja sempre dissecando e analisando tudo e todos à sua volta, originando-se da observação contínua o seu impulso criador.

No primeiro capítulo deste trabalho, tecem-se algumas considerações sobre o gênero crônica, mais precisamente, um quadro da crônica na imprensa como retrato do universo social ou como uma análise de mundo. Apresenta-se a evolução histórica da mesma no Brasil, desde o século XIX, quando aqui se iniciou uma relação muito íntima entre literatura e jornalismo, que persiste até os dias de hoje. Destaca-se, ainda,

1 Literatura judaica no Brasil. In: Herança Judaica,68.São Paulo, jan. 1987, p.40. 13 que a crônica, como alimento intelectual do leitor, é uma espécie de pão do espírito, muito bem temperado com boa dose de humor, uma vez que a ironia está sempre presente, como resultado de procedimentos estruturais paródicos.

A crônica, enquanto gênero, sempre provoca a reflexão do leitor sobre determinado aspecto do cotidiano e, como tal, está comprometida com a análise da realidade contemporânea, mas, desvinculada da linguagem objetiva do jornal, caracteriza-se pelo estilo literário mesclado com humor. Em virtude disso, no segundo capítulo apresentam-se certos aspectos do humor, como recurso narrativo, a partir de estudos de alguns teóricos sobre o tema e em função do objeto de análise deste trabalho.

Em Scliar, o emprego do humor como experiência estética revela-se característica primordial. É interessante notar que a notícia selecionada pelo cronista como pretexto para a criação literária parece inacabada, visto que, além de permitir diversas possibilidades interpretativas, incita-o ao campo da imaginação. Cria-se uma situação em que o escritor não só se alimenta do mundo real, como também interfere nele, com seu tom irônico que descobre novos significados, os quais extrapolam os limites da lógica convencional. 14

No terceiro capítulo deste estudo, são analisadas as crônicas que foram publicadas na Folha de São Paulo, como se explicou anteriormente, e que versam sobre problemas sociais em evidência atualmente no Brasil e no mundo, como a decadência da classe média, a subversão de valores estéticos e o desrespeito a direitos indispensáveis à sobrevivência humana, como alimentação, educação, saúde e moradia, e, ainda, a tradição judaica.

Na seleção das sete crônicas, destacam-se as personagens que traduzem melhor determinados tópicos e questões sociais, já explicitados. Elas são apresentadas em campos temáticos, acompanhadas das respectivas notícias, na seguinte ordem:

1. SOBRE A CRIANÇA: Latindo pela vida (crônica),

Verba de ração acabaria com fome infantil (notícia) e A escola das ruas

(crônica), Pai é acusado de tirar 4 filhos da escola para pedirem esmola

(notícia);

2. SOBRE A MULHER: Patroas do mundo inteiro, uni- vos (crônica), Patroa é acusada de roubar empregada (notícia) e Feiúra não é degraça. Beleza é. (crônica), 'Maria Basculho', 26, é eleita a mulher mais feia de Pernambuco (notícia); 15

3. SOBRE O POVO BRASILEIRO: Consultando no posto de saúde fantasma (crônica), Pará investiga postos de saúde fantasmas (notícia) e Aluga-se (crônica), Família mora dentro de ponte em

São Paulo (notícia);

4. SOBRE O POVO JUDEU: A pausa que refresca

(crônica), Coca-Cola kosher chega ao Brasil (notícia).

Para efeito de análise da crônica como escritura paródica, o texto ficcional é examinado e confrontado com a notícia que lhe dá origem e com outros textos aos quais remete, para mostrar como Scliar faz a sua recriação literária.

Por fim, analisadas as crônicas, conclui-se este estudo enfatizando-se que o olhar irreverente do escritor sobre o cotidiano produz uma relação declarada, que pressupõe “submissão” inicial do texto literário ao fato jornalístico, mas não o seu ponto de chegada.

1 A CRÔNICA:

O gênero e sua história no Brasil

A crônica é um continente muito apropriado para que nele caiba o ensaio, uma pequena visão analítica de um determinado momento, fato ou pessoa.

Artur da Távola

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1. 1 O gênero

A crônica, palavra originária do grego chronikós, relativo ao tempo (chrónos), e recebida pelo latim como chronica(m), segundo

Massaud Moisés1, significa narração de fatos registrados em ordem cronológica e, por isso, primitivamente possuía caráter de gênero histórico, sendo considerada a precursora da historiografia moderna.

Não obstante, observa-se que, na Idade Média, freqüentemente a história se mistura à ficção em crônicas que relatam os grandes feitos de heróis mitológicos. Ainda sobre os vínculos que ligam história e ficção, é interessante destacar o seguinte comentário de Heloísa

Costa Milton:

O fato é que a ficção literária e a história guardam entre si estreita solidariedade, como instâncias que são de representação de experiência humana e pela natureza basicamente narrativa de seus respectivos discursos, que encontram na categoria do tempo o grande eixo estruturador.2

Em verdade, o que se percebe é que, mesmo que se distingam radicalmente pela aproximação ou distanciamento do real, a veracidade da história e a verossimilhança da ficção mantêm estreita

1 A crônica. In: ---. A criação literária: prosa. 1982, p.245.

2 As histórias da História: retratos literários de Cristóvão Colombo.1992, p.9. 18

relação, não só por evidenciarem a experiência humana e estarem atreladas ao fator tempo, como pela estrutura fundamentalmente narrativa de seus discursos.

Diante disso, como narrativa que mescla veracidade e verossimilhança, a crônica não pode se desvincular do seu aspecto histórico e também social, uma vez que, sendo literatura, ela faz parte da cultura, da história da vida de um povo. O cronista é o contador dessa história que, independentemente da época, é sempre o reflexo da vida do homem em sociedade.

Vale lembrar aqui a Carta de Pero Vaz de Caminha, que relata o descobrimento do Brasil, visto que, apesar das discussões quanto à sua literariedade, pode ser considerada a primeira crônica brasileira, tanto no aspecto histórico de relato de fatos contemporâneos ao narrador, como no sentido de uma construção discursiva que se aproxima da invenção.

Se o descobrimento do Brasil registra-se na forma de crônica, o gênero, sem dúvida, perfaz uma significativa tradição, cujo incremento dá-se a partir do século XIX. Em meados deste século, durante o Romantismo, iniciou-se, especialmente no Brasil, uma relação muito

íntima entre literatura e jornalismo, o que propiciou a fixação da crônica literária que, ainda fundamentada no tempo, dava destaque ao cotidiano através de seus recursos ficcionais. 19

Assim, a crônica literária, quase sempre inserida em jornal ou revista, passou a apresentar aos leitores uma visão analítica dos acontecimentos do dia ou da semana, numa linguagem conotativa e em estilo influenciado pela oralidade da cultura popular. Essa narrativa é, de certo modo, uma forma artesanal de comunicação que, ao fazer a exploração de algum fato cotidiano, apresenta poucas personagens e estas se movem num espaço reduzido, que diz respeito, em última instância, à própria limitação do espaço jornalístico.

É certo, porém, que uma parte da crítica considera de forma preconceituosa o teor poético da crônica, devido a seu caráter factual, e a classifica, injustamente, como gênero menor, o que demonstra certo desprezo às qualidades, já citadas, de um exercício literário feito, na maioria das vezes, por grandes escritores. Outro motivo, pelo qual se refuta tal julgamento, é por se reconhecer a crônica como objeto de arte dotado de uma dimensão valorativa diferente, uma vez que, ao fixar-se no cotidiano, ela está atrelada a hábitos ou relações específicas do mundo social, cuja tendência é não só sofrer mudanças ou desaparecer, como também marcar historicamente uma época.

A propósito, a pesquisadora argentina Susana Rotker3 censura os críticos que duvidam do valor literário da crônica por ser esta um

3 La invención de la crónica, 1992, p.110-11.

20 texto que se baseia na realidade concreta de um fato. Rotker ressalta que a arte literária não se fundamenta unicamente no emocional ou no imaginário para ter sentido em si mesma, já que a condição de texto autônomo, na perspectiva estético-literária, depende de sua expressão total e não apenas de um aspecto ou outro. Assim, somente o critério de relação factual não deve ser fator determinante para o reconhecimento da literariedade da crônica.

No entanto, importa destacar que a tão criticada aproximação com o real funciona como chamariz para a leitura do texto, pois favorece a união eficaz entre a objetividade do jornalismo e a subjetividade da criação literária, que se entrelaçam.

Ainda intimamente ligada a um tempo filtrado pelo cronista, a crônica evoluiu, de maneira peculiar, como um gênero propriamente literário, e alcançou um patamar de importância singular na literatura contemporânea, especialmente na brasileira, como se pode comprovar através da maioria da crítica especializada no assunto.

Desse modo, a crônica, considerada um gênero híbrido, situa-se entre a simples reportagem jornalística e a literatura, e se movimenta entre ser no e para o jornal4 , de acordo com Massaud Moisés, tendo em vista que é escrita especialmente para ser lida em jornal ou

4 A crônica. In: ___. A criação literária: prosa.1982, p.247.

21 revista, aspecto que não lhe subtrai, necessariamente, o caráter de obra literária. Ela é também um convite à reflexão sobre o encontro entre literatura e jornalismo, propondo-se como um novo gênero literário, signo de uma época em que comunicação, informação, criação e arte encontram seu espaço comum.

Além do mais, Eduardo define a crônica como um posgênero literário5, que, por ser classificada como literatura de massa, possui a flexibilidade de uma narrativa de estrutura aberta. Isso faz do narrador um retratista de seu tempo, que se utiliza da pluralidade de significados do cotidiano moderno, em que o homem vive e presencia mudanças aceleradas, tanto no aspecto material e científico como no espiritual e moral.

Em virtude disso, a crônica leva o leitor a perceber o dia-a- dia e reforça a relação criada entre o escritor, o veículo de massa e o leitor, sendo compreendida como "gênero vivo", na medida em que o seu dinamismo provoca a interação, através do jornal, entre o cronista e o leitor.

Por outro lado, Afrânio Coutinho6 , ao se referir à qualidade literária necessária para esse tipo de narrativa libertar-se de sua condição circunstancial de texto publicado na imprensa periódica e ser considerado

5 Teoria da comunicação literária, 1973, p.154.

6 Ensaio e crônica. In: ___. A literatura no Brasil,1968, p.110.

22 gênero literário, destaca a importância do estilo e da individualidade do autor para adaptar sua percepção do mundo à veracidade dos fatos cotidianos. Atrás do cronista está sempre o homem de letras, que trabalha com as palavras enquanto seu fazer literário vai desvelando cenas inusitadas que, de outra maneira, passariam talvez despercebidas.

Como bem define Marília R. Cardoso, o cronista é o interpretante-crítico - o semiólogo de hoje em dia7 , visto que ele dá sentido

à pluralidade de imagens que pululam no cotidiano e expressa, para o leitor, uma interpretação possível dos fatos da atualidade.

Já Davi Arrigucci Jr. analisa a crônica como um gênero em permanente relação com o tempo, ou seja, com a memória, de onde tira sua matéria, que é resultado de lembrar e escrever8. Além disso, o referido crítico cita o fato de, no Brasil, ela constituir-se em discurso literário pela elaboração estética da linguagem, do qual sobressai uma fina ironia.

Entretanto, ninguém ainda conseguiu determinar os limites do território oscilante da crônica, na medida em que, tendo como seus constituintes os fatos cotidianos e o estilo, conforme já foi ressaltado, ela transcende a notícia fugaz através do enriquecimento poético, elemento

7 Moda da crônica: frívola e cruel. In: CANDIDO, Antonio [et al.]. A crônica: o gênero, sua fixação e outras transformações no Brasil,1992, p.139.

8 Fragmentos sobre a crônica. In: ___. Enigma e comentário: ensaio sobre literatura e experiência, 1987, p.51.

23 responsável pela sua permanência como arte literária. Em vista disso, as leis internas da crônica são diferenciadas pela sua conjuntura híbrida, como foi salientado, uma vez que sua possibilidade poética reside no trabalho de invenção da linguagem na esfera do cotidiano, em que o cronista deve apreender constantemente os acontecimentos ao seu redor.

Quanto ao seu caráter efêmero, deve-se à matéria advinda do cotidiano mutante e ao fato de estar inserida em jornal ou revista, aspectos reforçados pela sua grande força de comunicação. Embora seja um texto aparentemente simples, a sua grande dificuldade está no fato de articular considerações precisas e profundas de maneira concisa e aparentemente simplificada, para a maior compreensão do leitor, instância receptiva de fundamental importância para o seu estatuto como gênero literário.

A propósito, Luiz Costa Lima9 , ao afirmar que a definição de um gênero se faz pelo que se analisa no processo de leitura, destaca a importância de se considerar a expectativa do leitor, já que essa interação explica porque todo gênero literário é uma forma de comunicação entre escritor e leitor.

Assim, ao se constatar que a crônica não pode ser considerada um gênero menor, reafirma-se a sua fixação como gênero

9 Sociedade e discurso ficcional, 1986, p.297.

24 merecedor de destaque especial na moderna literatura, tendo-se em vista a sua reconhecida literariedade e a perspectiva do leitor, que é seduzido pela leitura relativamente fluida de um texto que o induz à reflexão, sugere significados e desvela sentidos implícitos nos fatos do tecido social, através da recriação do cotidiano com a arte da linguagem.

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1. 2 A Crônica no Brasil

Vários são os críticos brasileiros que analisam a crônica no

Brasil, interessados em acompanhar a evolução de um gênero em ascensão valorativa na literatura contemporânea.

Segundo Afrânio Coutinho, a crônica se firmou em território brasileiro com características de ensaio, gênero iniciado por

Montaigne, através de sua obra Essais (1580), assimilado pelos ingleses

(familiar ou personal essay), que o definem como uma dissertação breve, concisa, livre, em linguagem familiar10, em oposição ao sentido da palavra no Brasil, onde ensaio é sinônimo de estudo crítico, histórico, político ou filosófico, comumente publicado em livros. Coutinho comenta, ainda, que a grande semelhança entre o ensaio de Montaigne, o ensaio inglês e a crônica brasileira está, principalmente, na sua estreita relação com a elocução oral.

Já Antonio Candido afirma que, no Brasil, antes de ser crônica propriamente dita, essa modalidade textual foi “folhetim”, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia, políticas, sociais, artísticas, literárias11. Conforme declara o crítico, o folhetim foi se transformando

10 Ensaio e Crônica. In: ___. A literatura no Brasil,1968, p.107.

11 A vida ao rés do chão. In:___. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, 1992, p.15. 26 gradualmente, deixando a função de informar ou comentar para narrar fatos com toques de humor, até adquirir as características de crônica propriamente dita, veiculada através de meio de comunicação popular

(jornal e revista).

Mesmo assim, durante algum tempo, a seção em que se publicavam essa e qualquer outra forma literária denominava-se genericamente folhetim e ocupava, no início, o espaço do rodapé do jornal.

Nesse espaço, abrigou-se a crônica, que tratava de assuntos variados do cenário brasileiro, com uma linguagem repleta de traços de oralidade trabalhados com a criatividade literária. A crônica foi, reconhecidamente, uma das primeiras tentativas de se fazer literatura nacional.

A pesquisadora Marlyse Meyer declara que, na nossa balbuciante cultura12, o território livre do folhetim, onde a crônica se instalou, teve um importante papel, na medida em que ajudou a configurar uma cultura mais brasileira, em seu gradativo processo de desprendimento do modelo francês.

Para tanto, a crônica apresentava periodicamente, em jornal ou revista, os fatos da semana, de cada quinze dias ou do mês, e seus autores buscavam as preferências da sociedade e, em especial, do mundo feminino. O escritor preocupava-se em não cansar o leitor, para manter vivo

12 Voláteis e versáteis. De variedades e folhetins se fez a chronica. In: CANDIDO, Antonio [et al.], Op. cit., p.126. 27 o interesse deste pela matéria, a qual, algumas vezes, serviu de base para a escritura de romances. Mas o fato é que a crônica brasileira, além de servir para o entretenimento dos leitores, caracterizou-se pelo romantismo, de acordo com o estilo literário em evidência na época do advento do jornal no país.

Constata-se, então, que a crônica, enquanto narrativa ficcional ligada à imprensa periódica, como a temos hoje, apareceu no

Brasil em meados do século XIX. A sua intensa e rápida penetração no país criou um grande número de leitores, o que tornou imprescindível a publicação desse tipo de texto nos jornais e revistas, até os dias atuais.

Como narrativa escrita que resulta de uma cultura auditiva como a nossa, como narrativa em que os enunciados visam a persuadir sedutoramente o leitor, a crônica encanta por seu tom acariciante de conversa à beira da rede ou ao pé do fogo, de conversa despreocupada, de acordo com Costa Lima13. O crítico enfatiza que o sistema intelectual brasileiro caracteriza-se por seu aspecto preponderantemente auditivo, salientando que está ligado a uma cultura de persuasão, baseada na oralidade, em que as palavras são usadas para seduzir o receptor. Assevera também que a crônica é o gênero mais representativo dessa escritura brasileira oriunda de uma tradição oral.

13 Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil. In: ___. Dispersa demanda,1981, p.17.

28

Esse tom peculiar da cultura brasileira, responsável pelo sucesso da crônica, que Massaud Moisés chama de caráter sui generis14 , é a nova forma adquirida pelo gênero, quando se aclimatou ao Brasil do século XIX, amalgamado ao jornalismo.

O primeiro a escrever crônica brasileira propriamente dita foi , em folhetim do Jornal do Commercio do Rio de

Janeiro, publicado em 2 de dezembro de 1852. Ele escreveu também no

Correio Mercantil do Rio de Janeiro até 1854. A partir de então, chamado a substitui-lo, o jovem José de Alencar, aos vinte anos, tornou-se folhetinista do Correio Mercantil, de 1854 a 1855.

Com o estilo romântico do escritor cearense, a crônica, inicialmente carioca, naturalizou-se brasileira e foi perdendo gradativamente a carga informativa para adquirir uma linguagem mesclada de poesia e humor. Importa ressaltar que, segundo a maioria dos críticos, foi

José de Alencar quem elevou a crônica a uma categoria intelectual, não obstante fosse escrita numa seção do Correio Mercantil denominada

“Páginas Menores”. A propósito, Ao correr da pena é o título do livro, editado em 1874, em que José de Alencar reuniu suas crônicas e nas quais demonstrava a mesma preocupação estilística com que escrevia seus romances.

14 A crônica. In: ___. A criação literária: prosa. 1982, p.246.

29

Vale lembrar, ainda, que, no suplemento “A Pacotilha”, desse mesmo jornal, Manuel Antônio de Almeida também escreveu, de

1852 a 1853, sob o pseudônimo de “Um brasileiro”, os fascículos de seu célebre romance Memórias de um sargento de milícias, publicado em dois volumes, em 1854 e 1855.

É certo que, sedimentada por Alencar, essa modalidade literária atingiu o apogeu, entre nós, ainda no século XIX, com Machado de

Assis, que iniciou suas atividades nesse gênero em 1859, na revista O

Espelho, também no Rio de Janeiro. Ele escreveu numerosas crônicas, sob diferentes pseudônimos, retratando os acontecimentos do mundo e da sociedade carioca, no período de 1859 a 1897. Esses textos foram reunidos cronologicamente e publicados com os títulos: Miscelânea (crônicas de

1859), Histórias de Quinze Dias (de 1876 a 1877), Notas Semanais (de

1878), Balas de Estalo (de 1873 a 1886) e A Semana (de 1892 a 1897).

O final do século XIX e início do XX teve também outros expressivos cultivadores do gênero, tais como França Júnior, e

João do Rio, cujas crônicas já antecipavam características, que se mantêm até hoje, como o humor amalgamado ao estilo poético e à linguagem mais simples. 30

Davi Arrigucci Jr.15 observa a visível insegurança da maioria dos jovens cronistas do século XIX, motivada não só pelo impacto da novidade literária constituída pelo jornal, veículo que era um dos instrumentos da modernização no país, como também porque tais escritores utilizavam o labor artístico da crônica como aprendizado para se entregarem, depois, a gêneros mais extensos como, por exemplo, o romance. Para o crítico, foi a geração de cronistas de 1940, composta por escritores como Paulo Mendes Campos, e, especialmente

Rubem Braga, a responsável pela valorização do gênero no Brasil. Por outro lado, poetas como e Carlos Drummond de Andrade também deram importante contribuição ao analisarem os fatos do dia-a-dia através da crônica.

Já o ensaísta Eduardo Portela lamenta não ter sido satisfatoriamente admitido o mérito literário da crônica no Brasil e enfatiza que ela é um exemplo específico de gênero predominantemente brasileiro, desde o século XIX, com Machado de Assis, até os dias de hoje, com outros grandes escritores. Argumenta, também, que a crônica, injustamente marginalizada como literatura, é uma obra de arte com sua própria verdade,

é um signo-em-si16 . Diante disso, pondera que ela tem importância histórica

15 Fragmentos sobre a crônica. Op. cit., 1987, p.57.

16 Teoria da comunicação literária. 1973, p.156. 31 peculiar na literatura brasileira contemporânea, onde perfaz uma evolução valorativa ascendente, visto que, gradativamente, foi sendo reconhecida como respeitável gênero literário, trabalhado por grandes escritores.

Tendo em vista que a história da crônica na imprensa brasileira teve início no século XIX, como foi mencionado, é interessante, neste ponto, apresentar o olhar de dois grandes cronistas daquele tempo,

José de Alencar e Machado de Assis, sobre o seu próprio fazer literário.

Dessa maneira, através da metalinguagem, procura-se entender o caminho percorrido pela crônica, na medida em que alguns de seus aspectos básicos se mantêm até hoje, como a narrativa voltada para o cotidiano e mesclada com um comentário emotivo ou uma reflexão irreverente, que revela a intimidade do autor com o leitor, e outros se modificaram no decorrer do tempo, por necessidade de adaptação a mudanças políticas, sociais, ideológicas e artísticas.

De qualquer forma, tanto José de Alencar quanto Machado de Assis aludiram à possibilidade de perpetuação da crônica, apesar do caráter aparentemente passageiro do gênero. José de Alencar , em 17 de setembro de 1854, afirma que a crônica futura desta heróica cidade consignará nas suas páginas que, pelo começo da primavera do ano de

1854, tivemos um divertimento de graça17. Assim, com referência à

17 Ao correr da pena.(1854). In:___. Obra Completa: Crônica, v.4, p.645.

32

“crônica futura”, ressalvando-se os excessos, Alencar parece prever a propagação da crônica.

Por outro lado, Machado de Assis faz a seguinte consideração, cujo teor também é a perspectiva de futuro: Que inveja tenho ao cronista que houver de saudar desta mesma coluna o sol do século

XX!18

Além de conjeturar sobre o futuro, Machado salientou a relação da crônica com textos bíblicos, especialmente os do Antigo Testamento, como escreve em 8 de outubro de 1893:

A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira semana dele, dia após dia, até o sétimo em que o Senhor descansou.19

Como se percebe, o referido escritor lança a idéia bem- humorada de que o Antigo Testamento é também uma crônica, dado que é narrativa do cotidiano. Além disso, conjetura sobre a origem do gênero, ao fazer a seguinte afirmação:

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia.20

18 A Semana (1895). In: ___. Obra Completa. v.3, 1985, p.645.

19 Antologia. In: ___. Machado de Assis: Crônicas. 1963, p.48. 33

Seja como for, talvez as vizinhas tivessem começado com

Bons Dias e terminado com Boas Noites, como Machado de Assis costumava escrever em seus textos. Ele tinha consciência da necessidade de se darem características mais brasileiras (certo instinto de nacionalidade) ao texto literário, para a crônica adequar-se ao espírito nacionalista da

época, embora afirmasse ser difícil escrever folhetim e ficar brasileiro21, numa nítida referência ao fato de ser um gênero importado.

É interessante salientar que os dois escritores citados caracterizam o cronista através da metáfora do colibri. José de Alencar descreve o cronista como

uma espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague e a sugar, como o mel das flores, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho! 22 .

Quase da mesma forma, Machado de Assis assevera que o folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal23. Em vista disso, o folhetinista, como o colibri, agita-se por todos os lados para conseguir captar melhor o humor dos fatos cotidianos da sociedade em que vive. Note-se aqui que o folhetinista se confunde com o cronista, o que é

20 História de 15 dias (1877). In: ___. Obra Completa. 1985, v.3, p.370.

21 O folhetinista. In: ___. Obra Completa. 1985, v.3, p.960.

22 Ao correr da pena (1854). Op.cit. ,1960, v.4, p.648.

23 O folhetinista. Op.cit.,1985, v.3, p.959.

34 comum, porque a seção do jornal ou revista em que se publicam as crônicas, como se viu, denomina-se “Folhetim”.

Nesse espaço, o trato de assuntos leves, descompromissados, destinados ao entretenimento, agrada principalmente ao público feminino da época. Como diz Marlyse Meyer24, alguns dos principais aspectos constitutivos da crônica à moda brasileira já estão presentes nessa seção do periódico, desde a sua origem. Depois, no seu decurso, a crônica amplia sua gama de leitores, ao incorporar o questionamento social, às vezes até de forma irreverente.

Assim, no século XX, a crônica continua ligada ao tempo, reconstruindo a memória ao desenhar a identidade de uma geração através da interação locutor-texto/contexto-receptor. Ela adquire, então, um caráter mais intelectual, apresentando um humor reflexivo, de sentido dúbio, que, aliado ao teor poético, confere-lhe a consistência que a distingue atualmente. É necessário reafirmar que a crônica agrada justamente pelo humor e pela força poética da elaboração de sua linguagem, o que favorece a sua penetração psicológica e social junto à instância receptiva.

Ela é valorizada, apesar de exibir um caráter supostamente transitório e estreitamente ligado ao jornal ou à revista, por ser um labor artístico literário com aparência de “conversa fiada” do simples rés-do-

24 Folhetim: uma história.. 1996, p.57. 35 chão25, como diz Antonio Candido, mesmo quando escrita em forma de monólogo.

O crítico afirma, ainda, que a consolidação do gênero no

Brasil se deu por volta de 1930, com o aumento do número de bons escritores-jornalistas, que transformaram assuntos sérios em matéria textual aparentemente despretensiosa, mas eivada de caráter literário e tom crítico.

Esses escritores fizeram da sua "conversa" com o leitor, através da crônica, um trabalho literário, em que o cronista faz do contar histórias do cotidiano uma arte narrativa para exprimir os valores da época. Assim, a crônica, sendo literatura, redescobre a informação e retira desta a sua função meramente referencial, realizando-se esteticamente através da preocupação do cronista com a palavra elaborada.

Do século XIX para cá há um longo percurso, em que a crônica, ao mesclar narrativa, poesia e humor, atingiu um alto grau de amadurecimento, com seu quantum satis (sua dose certa) de literatura, do qual resulta o encontro mais puro da crônica consigo mesma, como afirma

Antonio Candido26 .

Por outro lado, o cronista contemporâneo Artur da Távola ressalta que a crônica pode traduzir, de maneira precisa, o eterno existente

25 CANDIDO, Antonio [et al.]. A vida ao rés do chão. In: ___. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil,, 1992, p.14.

26 A vida ao rés do chão. Op.cit.,1992, p.15. 36 em cada efêmero27. Desse modo, a moderna crônica brasileira, sendo gênero literário típico do jornalismo, caracteriza-se pela concisão narrativa e, enquanto arte, sua ressonância ultrapassa os limites dos dramas diários da sociedade, estampados nos meios de comunicação coletiva.

Vale ainda ressaltar que, segundo Carlos Drummond de

Andrade, o artista ou o cronista é um espião da vida e quem não for bom espião do seu tempo não deixará lembrança na terra28 ou seja, o bom escritor é o que consegue não só ver mas examinar criticamente o mundo em que vive e, explorando a ambigüidade, desperta a fantasia e provoca a vadiação do espírito.

Em resumo, a crônica passa a ser literatura quando o cotidiano se transforma em arguta invenção, no âmbito da linguagem, da realidade concreta em que se apóia, compondo um vivo quadro de usos, situações e comentários da sociedade humana. Essa vivacidade está presente no toque de humor manifestado pelo olhar irônico com que o cronista analisa os fatos, dando-lhes um novo sabor.

Diante disso, com certeza, a crônica é literatura, e boa literatura, como a que fazem Manuel Bandeira, , Carlos

27 A crônica da crônica. O Globo.Rio de Janeiro, 3 set. 1979, p.24.

28 O artista como espião da vida. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 fev. 1980, Caderno B, p.7. 37

Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto (Stanislaw

Ponte Preta), , Fernando Sabino, , Nélson

Rodrigues, Artur da Távola, Luís Fernando Veríssimo e Moacyr Scliar, entre outros grandes nomes de escritores brasileiros.

2 O HUMOR COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

E o indivíduo tem no humor uma forma de escapar ao sentimento de insegurança. O riso permite ao homem esquecer-se e apaziguar-se.

Gilda Salem Szklo

39

A riqueza conceitual da palavra “humor” (do latim humor,

-oris) implica, originalmente, um material de fluidos ou líquidos do corpo humano, de cujo equilíbrio depende a saúde, para conotar, a partir dele, um sentido metafórico relacionado a uma condição de equilíbrio mental, a um modo de ser. Contudo, apesar do conceito científico (fisiológico e psicológico) do vocábulo humor, ele foi habilmente estudado pelos homens de letras de todas as épocas, desde a antigüidade clássica.

Assim, embora com abordagens diferentes, os autores gregos e latinos fizeram conjeturas a respeito do humor sob uma perspectiva ética, em que analisaram o riso provocado por ele como uma faculdade humana e, em virtude disso, tentaram determinar condições para seu emprego adequado.

Os gregos conheciam o conceito de humor e, conseqüentemente, do riso, com o sentido semelhante ao que se tem hoje.

Aristóteles, por exemplo, apresenta em sua Arte Poética, entre outras questões, a percepção do ridículo, elemento essencial da comédia, como causa do riso. Do mesmo modo, a literatura latina, com os escritos de

Cícero e Quintiliano, examina o riso sob o ponto de vista da ética, mas o considera um recurso da retórica, ao enfocar os modos e os objetivos de seu emprego na oratória. 40

O crítico Santiago Vilas1 afirma que o conceito literário de humor na Europa iniciou-se na Espanha, com Marco Valerio Marcial, que viveu entre os anos 43 e 104 e escreveu epigramas inspirado no tom festivo do humor popular da época.

Isso posto, Santiago Vilas cita exemplos de escritores franceses e ingleses dos séculos XV e XVI, como François Rabelais, com obras de crítica satírica de costumes como Pantagruel (1532) e Gargantua

(1534), e Montaigne, que, em sua obra Essais (1580), populariza a acepção de humor como momentânea disposição de ânimo de uma pessoa.

O crítico trata, ainda, de Ben Jonson, considerado pelos ingleses como o criador de the comedy of humours. Em suas publicações

Every man in his humour (1598) e Every man out of his humour (1599), ele distingue dois tipos de humor: o inato, que caracteriza uma pessoa e a diferencia de outra, ou seja, o seu temperamento, e o que é adquirido, talvez por imitação, “à moda de”, expressando-se ridiculamente na forma de comportamento, vestuário, fala, tão bem representado pelos personagens de

Molière.

A partir de então, já no século XVII, indiscutivelmente o humor europeu sofre influência, direta ou indireta, da literatura espanhola de Cervantes e Quevedo. No entanto, no final desse mesmo século, o inglês

William Temple, autor de Of poetry (1690), depois de detectar elementos

1 El humor y la novela española contemporánea. 1968, p. 22-3.. 41 humorísticos coincidentes em vários escritores de seu país, torna-se o primeiro a postular que o humor é característica do povo inglês e o vocábulo humour, peculiar desse idioma.

Daí em diante, o “humour inglês”, situado numa zona neutra e indefinida, que não nega nem afirma, converte-se em orgulho nacional, sendo considerado pelos próprios ingleses como o melhor do mundo e aceito por todo o resto da Europa. Assim, aplicado ao estilo anglo- saxão, o humour consiste em se dizer ou se representar, em tom aparentemente sério, as situações engraçadas, insólitas, ou mesmo funestas, tendendo, neste último caso, a ser também sarcástico. De qualquer forma, ressalvados os exageros, não se pode esquecer de que os ingleses foram os responsáveis pela inclusão da palavra humour no vocabulário da crítica literária.

No século XVIII, época dos descobrimentos científicos, estabelece-se a diferença entre o humor, mais alegre e natural, e a espirituosidade, ou perspicácia (ingenio, em espanhol; wit, em inglês), considerada categoria superior, porém baseada na amargura. Além do mais, importa salientar que as deficiências físicas e mentais também serviram de objeto para escritos sarcásticos. Por outro lado, na segunda metade desse mesmo século, houve sensível mudança no conceito de humor, visto que transforma-se a visão satírica das anomalias em atitude de compreensão e benevolência diante delas. 42

No século XIX, os alemães publicaram tratados sobre o humor, com destaque para Johan Paul Friedrich Richter, com a obra

Vorschelu der Ästhetik (1804), na qual afirma que o riso instaurado pelo humor funciona como uma espécie de fuga da realidade, da dor e do sofrimento.

Importa destacar, ainda, no final do século XIX e início do

XX, os filósofos Henri Bergson (francês), Sigmund Freud (austríaco) e o literato italiano Luigi Pirandello, dentre os que contribuiram com importantes ensaios sobre o humor.

Bergson publica Le rire (1899), obra em que analisa o riso, especialmente aquele provocado pelo elemento cômico. Ele enfatiza que o riso é provocado quando se instaura o absurdo, que só é cômico por estar relacionado ao que parece impossível ao homem ou ao seu comportamento.

O absurdo, no caso, é simplesmente um meio muito eficaz de revelar a comicidade de uma situação. Resulta daí que não é propriamente uma repentina mudança de atitude que provoca o riso, mas o estranhamento causado pelo que há de involuntário nessa mudança, já que o cômico é casual, de acordo com a teoria de Bergson.

Para o autor, o humor decorre, ainda, da insensibilidade humana, em oposição à emoção, diante dos fatos da vida. Assim o riso, para produzir todo seu efeito necessita de algo como uma certa anestesia 43 momentânea do coração2 e deve dirigir-se à “inteligência pura”, na medida em que muitos dramas podem ser transformados em comédia, se forem presenciados por um espectador neutro, isto é, indiferente aos acontecimentos. Em vista disso, é o homem que se apresenta como espetáculo ao próprio homem.

Outro aspecto salientado pelo filósofo é a dimensão social do riso, em virtude de, muitas vezes, ele só adquirir sentido porque está relacionado aos costumes e idéias de uma determinada comunidade ou

época. No caso, o riso é um gesto social empregado para ressaltar ou reprimir certas pessoas ou acontecimentos que subvertem as normas convencionadas.

Bergson refere-se também à comicidade das palavras, que consiste em provocar certo desvio de linguagem com a inserção de um disparate em um modelo consagrado de frase ou através de um jogo de palavras, sempre se considerando o contraste com o contexto evidenciado.

Merece ainda destaque a oposição entre ironia e humor, demonstrada por Bergson. A ironia enuncia o que deveria ser, fingindo-se acreditar ser precisamente o que é. O humor, pelo contrário, descreve cada vez mais meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as

2 O riso: ensaio sobre a significação do riso.1987, p.13. 44 coisas deveriam ser3. Diante disso, a relação contrastante está em que a ironia, de natureza retórica, fundamenta-se no ideal e o humor, mais científico, baseia-se no real.

Assim, vale ressaltar que o pensamento bergsoniano sobre o riso se funda na percepção das contradições e o efeito cômico se manifesta em toda atitude humana que se assemelhe a um gesto mecânico, automático, isto é, um movimento sem vida. O filósofo comprova isso com alguns exemplos, como aquele dos soldadinhos de chumbo enfileirados que, ao caírem uns sobre os outros, provocam o riso na criança.

Por seu turno, Freud dedica-se ao estudo do risível indiretamente em suas obras e, em especial, nos ensaios Os chistes e as espécies do cômico (1905) e O humor (1927), abordando o tema de forma distinta da de Bergson.

Ademais, Freud assinala que o risível é percebido em três domínios diferentes, ou seja, o chiste, o cômico e o humor, apesar do caráter liberador comum entre eles. O teórico vincula tais domínios ao princípio de prazer, já que são modos de obtenção do prazer pela atividade intelectual. Ele ressalta que o humor se distingue por possuir qualquer coisa de grandeza e elevação que o chiste e o cômico não têm. Na concepção freudiana, a característica essencial do humor funciona como uma

3 Ibid., p.68. 45 superação ou defesa do ego diante das provocações advindas da existência, as quais podem traumatizar o homem.

De qualquer forma, o que se percebe é que a sua teoria freqüentemente relaciona o humor e o riso com a sexualidade e a obscenidade, fatores considerados importantes devido a determinados tabus que a sociedade consegue incutir nas pessoas.

A seguir, sobressai-se Luigi Pirandello, que publica, no início do século XX, seu ensaio L’umorismo (1920), indispensável para a compreensão de sua obra e básico para o humorismo e para a literatura em geral, visto que o citado teórico é considerado um dos mais respeitáveis, especialmente no que se refere à dramaturgia.

No citado ensaio, Pirandello declara que o humor, embora de difícil definição, possui várias facetas, segundo as diversidades que naturalmente se manifestam quanto à língua, à nacionalidade, ao contexto social e histórico e ao talento e estilo dos escritores. Não obstante, tais facetas apresentam uma base comum, isto é, são dotadas de uma mesma essência, que é, em última instância, a que provoca o riso.

Ao comentar que o humor se valoriza com o emprego da ironia, Pirandello estabelece a distinção entre o modo teórico e o filosófico de se entender a ironia. Para tanto, ele explica que a ironia como figura de retórica implica uma contradição fictícia entre o que se diz e o que se pretende que seja entendido. Já com o sentido filosófico, tão difundido pelo 46 movimento romântico alemão, a ironia é essa força que permite ao escritor dominar a matéria que trata e reduzi-la a uma paródia, ou uma farsa declarada.

No caso da ironia retórica, por se fundamentar em contradição fictícia, apenas deprecia a realidade. Ao contrário, a ironia romântica com sentido filosófico, embora dela não se possa separar também o caráter burlesco e mordaz, deve ser entendida como um alerta, pois clama o leitor, ou ouvinte, a refletir sobre algum assunto.

Diante dessas considerações, Pirandello conclui que o verdadeiro humor está mais próximo da ironia filosófica, tendo em vista que ele consiste no sentimento do contrário produzido, em especial, pela atividade de reflexão sobre as diversas simulações da luta pela vida, percebidas pela aguda intuição do escritor.

Merece ainda destaque o pensamento de um dos mais importantes teóricos da literatura contemporânea, o russo Mikhail Bakhtin, cujos estudos Problemas da poética de Dostoiévski (1929) e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965) revelam as formas e expressões do riso, principalmente através do enfoque das tradições e das fontes do carnaval.

Segundo o autor, o século XVI marca o apogeu da história do riso com o romance de Rabelais. Tal situação motivou-o a uma investigação mais profunda dos domínios da literatura cômica popular da 47

Idade Média e do Renascimento que, apesar da sua heterogeneidade, refletem um mesmo aspecto cômico do mundo, em que o carnaval ocupa um lugar de destaque.

A teoria bakhtiniana define o carnaval como uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual4, em que o povo encarna uma forma especial de vida, ou seja, uma segunda vida em um mundo invertido, baseada no princípio do riso. Com efeito, a cultura do riso é essencial para a concepção de carnaval de Bakhtin.

A propósito, ele destaca que esse riso se manifesta devido à inversão de valores que evidencia a oposição à cultura oficial, ao tom sério, religioso e autoritário de uma época, já que derruba as barreiras impostas pela condição social, idade, cultura e qualquer tipo de relação entre superiores e subordinados. Diante disso, as hierarquias são ridicularizadas e deixam de existir os estamentos sociais, na medida em que não há mais diferenças, e estabelece-se a igualdade entre os mais diversos seres, que se misturam pelo riso universal ambíguo.

Dessa forma, todos os que participam deste espírito de transgressão das leis tendem a valorizar as manifestações das chamadas classes marginais da sociedade, em detrimento dos poderes próprios das autoridades. Tal comportamento se justifica, já que, como foi explicado,

4 Problemas da poética de Dostoiévski. 1981, p.105. 48 uma das funções mais importantes do riso, caracterizado basicamente como fenômeno de comunicação humana que resulta de uma oposição de sentimentos ou idéias em um determinado sistema sócio-cultural, é revelar- se como uma manifestação de conflitos sociais. Em vista disso, percebe-se que o humor, mesmo crítico, também pode provocar riso ao evidenciar a relação problemática do ser humano com o autoritarismo de certas estruturas sociais de poder, embora nem sempre isso ocorra.

Em decorrência, encontra-se aí uma visão de mundo específica, marcada pelo riso provocado pelo caráter liberal e contestador da subversão de valores sociais preestabelecidos. Essa cosmovisão carnavalesca cria uma linguagem simbólica susceptível de transposição para a linguagem da literatura. Tal processo de transposição é denominado, na teoria bakhtiniana, de carnavalização da literatura5, cuja essência está no seu caráter ambivalente, em razão da plurissignificação da linguagem empregada para focalizar as imagens que traduzem a vida deslocada do seu curso habitual. Com isso, a linguagem literária enfatiza a ambigüidade, ou seja, as palavras adquirem múltiplos significados, que possibilitam a renovação de sentidos.

Ao analisar as particularidades características do cômico- sério, Bakhtin destaca que o problema da carnavalização da literatura é uma

5 Ibid., p.105. 49 das mais importantes questões da poética dos gêneros, visto que existe uma influência determinante do carnaval na literatura. Assim, a paródia sobressai-se como elemento indispensável a todos os gêneros carnavalizados, tendo em vista que ela se constitui no modo privilegiado de se fazer carnavalização artística.

A propósito, Linda Hutcheon, pesquisadora das manifestações artísticas pós-modernas, em sua obra Uma teoria da paródia

(1985), salienta que a paródia é uma forma estética dotada de auto- reflexividade dialógica, e não monológica, e define-a como uma forma de discurso interartístico 6, que mostra uma relação explícita entre as diversas formas de arte para criticar e reavaliar as semelhanças ou diferenças existentes entre os textos comparados e gerar humor crítico. Ela declara, ainda, que uma das tendências da literatura pós-moderna é parodiar o discurso não-literário.

Com efeito, percebe-se que a intertextualidade, ou seja, a relação entre textos que remetem uns aos outros, é uma característica inerente à paródia. Entretanto, sendo paródica, a intertextualidade estabelece-se não só na semelhança com o texto primitivo como na diferença crítica manifestada na mudança de linguagem ou de foco analítico, com deliberada intenção de produzir humor.

6 Op. Cit., 1985, p.13. 50

Assim, importa reafirmar que a paródia, sendo concomitantemente especular e crítica, supõe a retomada de uma escrita por outra e seu referente é bem marcado, na medida em que ela se define ao se propor refletir outro texto. O texto paródico, embora exija certa distância crítica, identifica-se na comparação com o outro texto, movimentando-se num vaivém intertextual em que o leitor detecta a diferença irônica nele contida.

Em função disso, o gesto escritural de carnavalizar a notícia, que empreende Scliar, instaura a paródia, que é um dos mais poderosos instrumentos da crítica social, como imitação intencionalmente contestadora. O escritor emprega esse importante recurso literário com maestria, intensificando seu efeito com as tonalidades específicas do humor como experiência estética para conferir transcendência à crônica, em oposição ao caráter efêmero do texto escrito em jornal.

Entre a crônica e a notícia há um ponto de intersecção em que a intertextualidade se realiza no encontro das semelhanças e das diferenças e mostra que a crônica alude à notícia, embora suas construções tenham intenções diferenciadas. Isto se explica, em última instância, porque a notícia está comprometida com a veracidade dos fatos e a crônica, por ser ficção, opera ludicamente com esses fatos.

É importante ressaltar que as notícias escolhidas, por

Moacyr Scliar, para serem transformadas em crônicas, já apresentam 51 contornos inusitados, os quais acirram o efeito crítico-humorístico na atmosfera literária criada pelo escritor para evidenciar a importância desse diálogo paródico entre os textos.

Quanto à linguagem propriamente dita, a empregada por

Scliar possui marcas de oralidade, com construções lingüísticas imbuídas de uma variedade de fios ideológicos, que articulam a visão crítica sobre diversos tipos de relações sociais e permitem o riso melancólico e reflexivo, particularizado pelo próprio autor como “humor judaico”.

Essa modalidade de humor, segundo Scliar, Finzi & Toker, não tem, como se salientou, uma definição precisa, mas pode se distinguir por não lutar só “contra”, mas também “por”: por uma ética pessoal isenta de preceitos restritivos tradicionais, por uma sociedade mais justa, e pela liberdade de cada qual ser como é sem temer a ação insidiosa do preconceito7, visto que se caracteriza por desafiar os sistemas sociais vigentes e criticar as desigualdades, em defesa de justiça no tocante aos direitos humanos.

7 Do Éden ao divã: Humor judaico. 1991, p.2.

3 DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO:

As saborosas crônicas de Moacyr Scliar

Para escolher as notícias, eu vou lendo o jornal todos os dias. De repente, lá está: algo que, por ser patético, ou grotesco, ou inusitado pega a condição humana, por assim dizer, desprevenida. Não é realismo mágico, mas é a realidade em seu limite, a realidade que às vezes parece ficção.

Moacyr Scliar

53

Desde seu primeiro livro de contos, publicado em 1968, intitulado Carnaval dos animais, ao criticar a violência, Scliar já entremostra, em narrativas sucintas, com a linguagem cortante do seu humor, um mundo invertido, em que animais têm características sinistramente humanas, como se a vida fosse um palco festivo onde todos usam máscaras para melhor encenarem a desumanização do homem.

A propósito, evidencia-se que, independentemente da temática abordada, sobressaem o humor e a ironia, pelos quais o escritor mostra criticamente os disparates da realidade no contexto do passado histórico ou da atualidade.

No caso específico das crônicas de Moacyr Scliar aqui analisadas, a palavra da notícia se deixa transfigurar pela interferência da palavra literária, que passa então a constituir um universo discursivo autônomo, com toda a sua carga de invenção ficcional.

Os acontecimentos da vida, que retratam uma sociedade moderna desorientada e fragmentada, são os materiais interpretados pelo artista e, no caso, pelo cronista, pois tudo pode funcionar como argila, isto

é, como material que deve ser aproveitado para esculpir sua arte. Assim, no processo de criação das crônicas, a argila é a notícia moldada artisticamente pelo escritor e transfigurada em literarura, o espetáculo de situações grotescas do cotidiano é transformado em ficção por Scliar. 54

Em vista disso, pode-se afirmar que a criação artística de

Scliar se processa como um jogo de espelhos, em que um ou vários textos se projetam num outro, formando a crônica. No entanto, essa projeção adquire outra imagem porque são descobertos novos significados, especialmente os que chegam ao limite da lógica convencional, voltados para as necessidades cotidianas das pessoas. Passa-se ao mundo da imaginação e esse transporte do real para o fictício realiza-se pela criação literária carnavalizada, uma inversão que produz a crítica às ordens e aos valores predeterminados, como já se enfatizou.

Merece destaque a ironia do texto, que é a tônica desse jogo artístico-literário e manifesta-se implicitamente, sendo necessária sua inserção no contexto da época, o que depende, para a projeção de sentidos, de um conhecimento comum entre escritor e leitor. Diante disso, o leitor é despertado por uma espécie de humor que não perde de vista as fraquezas humanas, principalmente as aflições das classes média e baixa da sociedade. Tais aflições podem gerar conflitos psicológicos que, muitas vezes, são transformados em neurose, doença do século XX, segundo

Scliar1 .

1 A condição judaica: das Tábuas da Lei à mesa da cozinha,1987, p.69.

55

As narrativas, escritas em tom irônico, levam o leitor a rir e, ao mesmo tempo, a refletir sobre a temática proposta, pois, com humor crítico e misturando realidade e imaginação, Scliar questiona um dos grandes problemas da modernidade: como o ser humano pode encontrar a si mesmo e entender-se no conturbado mundo de hoje. Em função disso, a força da palavra da ficção, mesmo em textos curtos como o da crônica, permeia desde o conflito interpessoal até a conjuntura social.

Assim, Moacyr Scliar perscruta a vida humana e a desvela ao público, apresentando uma importante criação literária que analisa a realidade vivente e se contrapõe a convencionalismos sociais cristalizados.

Como cronista em busca de situações insólitas, revela profunda preocupação com os acontecimentos relacionados ao ser humano, fazendo- o de forma a estimular no leitor o riso, mas um riso contido, reduzido, que não se manifesta na gargalhada escancarada, e sim no meio-riso, aquele que enlaça comicidade e amargura.

Em verdade, não há como se definir esse tipo de humor praticado por Scliar. Pode-se dizer apenas que é um humor sutil que busca humanizar o sofrimento e os sentimentos, sem distinção, como contributo para um mundo mais justo e igualitário. O escritor ataca a hipocrisia que estrutura determinadas relações sociais, abarcando temas relacionados à família, à saúde, à alimentação e à oposição riqueza e pobreza, entre outros. 56

Nas crônicas, tal humor, qualificado pelo próprio escritor como “humor judaico”, situa-se no intervalo flutuante entre o lúdico e o crítico, desvelando tudo o que fere o valor e a dignidade do ser humano, com uma linguagem de sentido essencialmente ambíguo.

Entretanto, nem todo humor feito por judeus é considerado como característicamente judaico, segundo explicam Scliar, Finzi & Toker na obra Do Éden ao divã: Humor judaico (1991),uma antologia repleta de pequenos ensaios, historietas, provérbios e anedotas. Eles ressaltam que o

“humor judaico”, como forma de comentário social ou religioso, pode ser sarcástico, queixoso, resignado, provocando, não uma gargalhada, mas um sorriso melancólico, um aceno de cabeça, um suspiro2. Os autores notam que o riso reflexivo diante da vida, incitado por esse tipo de humor, é uma reação diferenciada daquela oriunda da maioria das cenas cômicas, porque não provém do infortúnio das pessoas, mas de uma análise crítica dos fatos.

Na contracapa desse livro, o também cronista gaúcho Luís

Fernando Veríssimo, ao tecer considerações sobre este tipo de humor, assevera que o humor judeu é, de certa forma, a contrapartida do misticismo judeu3. O referido escritor explica que o misticismo, arraigado

2 SCLIAR, Moacyr, FINZI, Patrícia & TOKER, Eliaher. Op. cit., p.1.

3 Ibid.,primeira contracapa.

57

em um povo marcado por amarguras, transforma-se na arma crítica do humor.

O que estabelece a coesão na obra de Scliar, especialmente nas crônicas, é esse humor irônico, agridoce (como destaca o próprio autor),

às vezes corrosivo, que faz o leitor pensar antes de rir. Seus textos apresentam uma cosmovisão carnavalesca que reúne tudo o que foge à lógica, produzindo no leitor uma espécie de surpresa diante das situações incomuns vivenciadas pelas personagens fictícias.

Resulta daí a paródia, que pode ser considerada, como diz

Hutcheon, uma forma pós-moderna perfeita, pois, paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo a que parodia4. Diante dessa assertiva, faz-se necessário reafirmar que a transposição citada instaura o jogo paródico entre a crônica scliariana e a notícia através de um processo multívoco, em que diferentes discursos se cruzam, completando-se ou desafiando-se. É um recurso usado pelo autor para revelar, com humor, as variadas e complexas facetas da existência humana e oferecer ao leitor oportunidade para a reflexão. Para tanto, o cronista apresenta sua cosmovisão no faz-de-conta do mundo ficcional, dando margem a novas possibilidades de interpretação, de acordo com as novas dimensões que ele propõe ao leitor.

4 Poética do pós-modernismo.1991, p.28. 58

Com efeito, o escritor consegue que um assunto muito sério converta-se em exercício estético do riso crítico, em que a sutileza da ironia

é resultado do jogo dialógico entre a narrativa, em tom "irônico-paródico- ambivalente", e a realidade noticiada. Diante disso, pode-se não só ver e analisar o mundo por um foco inusitado, como também transportar-se, por algum tempo, para um universo de fantasia.

O cronista penetra profundamente nos acontecimentos e expõe aspectos relevantes destes que, às vezes, parecem irreais e, através do labor literário, mostra-os ao mundo, uma vez que seu intuito é estimular as pessoas a enxergarem melhor o que está acontecendo à sua volta e a reagirem conscientemente. Além disso, Moacyr Scliar, cronista, ao escrever a paródia, faz com que se reconsiderem certos pressupostos literários como a originalidade artística e sua relação de proximidade ou não com o real.

No exame da relação entre notícia e crônica, há ainda outra questão a considerar. É interessante salientar como o jornal apresenta a constituição visual do espaço em que estão essas crônicas, já que o título e um ou dois parágrafos da notícia de base aparecem num quadro inserido no meio ou à direita do texto, como se intencionalmente se deixasse aberta uma janela de onde se pudesse desvendar a paisagem do mundo real, criticado humoristicamente. Ou, talvez, para ratificar o absurdo da realidade transportada para a ficção paródica pelo olhar do cronista, que espia o 59

mundo e envolve o leitor numa visão perturbadora do cotidiano, em que o real e o imaginário se fundem, evidenciando vínculos possíveis entre o estético e o social.

Na transfiguração da notícia há sempre uma palavra em torno da qual gira toda a força da temática, pois, ela está carregada de um conteúdo ou de um sentido essencial para o estabelecimento da coerência narrativa. Assim, cada crônica aqui analisada problematiza relações sociais centralizadas em determinados vocábulos, quais sejam: “alimento”,

“escola”, “patroa”, “feiúra”, “saúde”, “moradia” e "kasher".

Observe-se, a propósito, que as crônicas, apresentadas neste trabalho, abordam o desinteresse da sociedade pelas necessidades básicas da criança, como alimentação e educação; a perda do poder aquisitivo real do brasileiro; a subversão dos valores estéticos; a ineficácia dos sistemas de saúde pública e de habitação, e a passagem bíblica da travessia do deserto pelos judeus.

Vale ressaltar que há sempre um estado de perturbação, no universo ficcional scliariano, que ajuda a instaurar a ironia no texto e se manifesta implicitamente. Para se entender o teor crítico contido nas entrelinhas da crônica, é necessária a inserção do leitor no contexto da narrativa, pois tal compreensão depende de um conhecimento comum entre 60

escritor e leitor, um saber compartilhado, que relaciona notícia e crônica e, ainda, outras referências textuais literárias ou não.

A intertextualidade se processa, portanto, com a absorção e transformação de outros textos que se refletem na superfície de um texto literário especial. Em decorrência, as crônicas de Scliar implicam não só a relação entre escritor e leitor, mas também entre o texto e as condições sócio-culturais em que ele é produzido.

Assim, conforme já foi explicitado, as crônicas estudadas a seguir são apresentadas em quatro grupos, classificados de acordo com as personagens mais em evidência em cada uma delas. Ei-las:

1. SOBRE A CRIANÇA: pertencem a este grupo duas crônicas, Latindo pela vida e A escola das ruas, que mostram, com tom crítico, a vida de duas crianças, privadas de alimento e educação adequados;

2. SOBRE A MULHER: este grupo, composto pelas crônicas Patroas do mundo inteiro, uni-vos e Feiúra não é desgraça.

Beleza é., caracteriza-se por apresentar, como protagonistas, duas mulheres de categorias sociais diferentes, sendo uma patroa da classe média, revoltada porque ficara sem dinheiro para manter sua posição social, e uma dona-de-casa da classe baixa que subverte conceitos de beleza, uma vez que se considera satisfeita por ter vencido um concurso de feiúra; 61

3. SOBRE O POVO BRASILEIRO: as duas crônicas desta parte, Consultando no posto de saúde fantasma e Aluga-se, reproduzem ironicamente a luta do povo brasileiro por um bom atendimento nos postos de saúde pública e uma moradia decente;

4. SOBRE O POVO JUDEU: a crônica A pausa que refresca mostra um pouco da mítica tradição judaica, através do olhar crítico do escritor.

Como já foi salientado, consideram-se as crônicas escolhidas como expressivas da obra de M. Scliar, na medida em que são textos que demonstram bem como o escritor faz da preocupação com o social o seu impulso criador, sua forma de engajar-se na busca de uma sociedade mais justa , por meio do trabalho literário.

Na seqüência do presente capítulo, cada crônica será precedida da notícia da qual se origina, para facilitar a compreensão do processo de recriação do fato em texto literário.

62

3. 1 SOBRE A CRIANÇA

63

3. 1. 1 LATINDO PELA VIDA (crônica)

Verba de ração acabaria com fome infantil (notícia)

64

Folha de São Paulo, 21 nov. 1996, c. 3, p. 2. 65

CARVALHO, Mário César. Folha de São Paulo, 18 nov. 1996, c. 3, p. 10. 66

3. 1. 1 LATINDO PELA VIDA

Baseando-se na notícia jornalística Verba de ração acabaria com fome infantil, de Mário Cesar Carvalho, publicada na página

10 do caderno “Cotidiano", da Folha de São Paulo de 18 de novembro de

1996, Scliar faz a sua leitura do fato através da crônica Latindo pela vida, datada de 21 de novembro de 1996. Esse texto pode até mesmo ser interpretado como uma caricatura verbal, visto que subverte os dados de realidade presentes na notícia, para acentuar-lhe a crítica social e levar o leitor ao riso oriundo da construção paródica.

A notícia, que apresenta o aterrorizante quadro da desnutricão infantil no país, indica soluções para o problema, embasando-se em depoimentos de especialistas em nutrição infantil. A proposta da matéria

é sensibilizar a população, que teria gasto, em 1996, trezentos e cinqüenta milhões de reais em ração para cães e gatos, a fim de convencê-la a direcionar um valor correspondente, ou parte dele, para programas de alimentação a crianças carentes.

Constam da ilustração da reportagem duas fotos: uma da criança, cujo nome é Henrique, comendo no Centro de Recuperação e

Educação Nutricional da Universidade Federal de São Paulo, e outra de dois cachorros dálmatas acompanhados de seu dono. O contraste entre as duas fotos é realçado pelas legendas abaixo das mesmas, que citam o valor 67 mensal gasto para alimentar cada criança (R$ 23,70) e para cada cão (R$

110,00). Tal oposição causa um grande impacto pelo teor crítico da montagem fotográfica.

Além disso, há ainda um interessante levantamento financeiro que elucida, para o leitor, o que dá para fazer com os R$ 350 milhões gastos com ração, aspecto que corrobora o tom de censura presente na notícia. Esse gasto pode ser considerado um desvio das prioridades sociais, com relação à questão da desnutrição infantil, problema grave que demandaria, da população, maior atenção. A notícia, cujo título já causa impacto, pela maneira como está organizada apela à sensibilidade e à consciência do leitor.

A crônica de Scliar, que tem como “leitmotiv” o título da notícia, não só referenda tal apelo, mas incrementa o tom crítico ao fabular outros dados do texto jornalístico no universo ficcional, como os exagerados valores gastos, por algumas pessoas, para a alimentação de animais; soluções baratas, e sofisticadas, para a fome e a comprovação de que só alimentar não basta.

Para tanto, o escritor vale-se da ironia já no próprio título da crônica – Latindo pela vida – provocando uma ambigüidade que enlaça a imagem do animal bem alimentado à da criança que necessita de alimento para sobreviver, ou a do protagonista, que passa a vida latindo, diante de uma prateleira de rações, no supermercado. O gerúndio latindo é o verbo 68 que consuma o vínculo entre a notícia e a crônica, ao ser transportado para o novo contexto textual, em situação de confronto.

Assim, a crônica scliariana, sendo um texto ficcional que trata basicamente de um problema humano, reforça seu caráter crítico ao remeter, pela inversão de valores, à discrepância social que a reportagem jornalística evidencia.

A narrativa ficcional, em terceira pessoa, apresenta um narrador que assume seu papel de atento observador dos acontecimentos. O texto inicia-se com a apresentação do protagonista através do seu nome próprio e do apelido, isto é, Raimundo - Mundoca:

Raimundo - Mundoca era o mais novo de oito irmãos, um menino miudinho, pele e osso. Tão magrinho, tão fraquinho, a mãe, Indalécia, achou que ele não iria sobreviver. Mas aí teve uma idéia, uma idéia só aplicável porque o menino era mesmo muito miudinho.

Como todo apelido, Mundoca implica uma apreciação ambígua advinda do diminutivo, unindo o aspecto positivo da forma afetiva, no que se refere à visão que a mãe tem do filho, e o negativo, atribuído à fraqueza física do menino, causada pela carência alimentar.

Raimundo-Mundoca contém o lexema “mundo”, que sofre transformação, particulariza-se em “mundo pequeno” através da alcunha

Mundoca e restringe o sentido de vastidão contido em “mundo”. É

“mundo”, mas é “mundinho”, significando afetividade, mas também 69 diminuição, fragilidade e ainda pequenez, aspectos pejorativos relacionados

à condição social do protagonista pobre e faminto.

Na caracterização do personagem Raimundo, o apelido

Mundoca é expressão repleta de significação e remete a Bakhtin5. Para o citado teórico, além do sentido ambivalente, um apelido, ou nome-alcunha, estabelece a renovação do nome adquirindo uma individualidade livre e peculiar, que provoca o destronamento do nome próprio.

O carinho da mãe com o filho e a fragilidade deste, enfatizados ainda pelos qualificativos diminutivos miudinho, magrinho e fraquinho, levam a mãe, uma papeleira (catadora de papel nos lixos da rua), sem condições para sustentar adequadamente sua família, a pensar numa solução para o problema da carência alimentar do filho Mundoca.

O enredo dá conta de que a mãe passa então a observar que, perto do viaduto em que se abriga com seus filhos, mora uma viúva cega, cujo nome é Dora, que cria muitos cães de raça. Os bichos são tratados com tanta fartura alimentar que, muitas vezes, recusam a comida.

A boa alimentação, de modo geral, representa a vitória sobre a morte. No entanto, as imagens apresentadas, em que animais são mais bem alimentados que seres humanos, levam o leitor da crônica a um estranho espetáculo de abundância, até que ele se conscientiza do paradoxo

5 A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.1993, p.408. 70 da realidade: Mundoca, a criança vizinha dos animais tão bem nutridos está

“mal nutrida” porque não tem o que comer, portanto, está sujeita a morrer de inanição.

A ironia do texto, até o segundo segmento, constrói-se na oposição entre os termos de dois campos semânticos diferenciados: oito irmãos, menino miudinho, magrinho, fraquinho, sobreviver, viaduto, abrigo, que se referem ao âmbito da fome e da miséria, e viúva, sozinha, imensa casa, uma dúzia de cães de raça, bem nutridos, ração da melhor qualidade, tanto alimento, animais enfarados, que dizem respeito ao território da abundância e riqueza. Trata-se de dois mundos que, embora próximos geograficamente, estão radicalmente separados pelas discrepâncias sociais.

Evidenciam-se assim os dois grandes eixos temáticos da crônica: o da “carência” em oposição a “excesso”. Indalécia tem “excesso” de filhos e amor, mas carece de alimento e moradia adequados para eles. Já a viúva Dora tem “muitos" animais, “muito" alimento e “muito" espaço para abrigar seus bichos, porém, é uma viúva solitária, "falta-lhe” companhia e carinho.

Toda essa desestruturação social gera a perturbação responsável pelas transgressões que se iniciam. Dessa forma, a solução pensada pela mãe, Indalécia, instaura transformações grotescas no curso da narrativa. A crônica, em sua seqüência, desenrola-se de modo a nivelar 71 seres humanos e animais, criando-se nela a situação insólita de um mundo

às avessas, transportada para o universo grotesco. Como culminação desse universo, Mundoca tem que usar a fantasia de cachorro, encontrada no lixo pela sua mãe, e aprender a latir para ganhar comida, como verifica no seguinte excerto:

0 que eles rejeitam será a sua salvação, disse Indalécia. E explicou a Mundoca o plano: ela tinha achado no lixo uma velha fantasia de cachorro, que alguma criança tinha usado no carnaval. Não enganaria ninguém, obviamente - a não ser uma velha senhora cega. Vestido de cachorro, Mundoca ganharia comida. Muito mais do que a mãe, papeleira, poderia Ihe arranjar.

Ao fabular uma estratégia para conseguir receber ração de uma velha senhora cega, na realidade Indalécia quer apenas salvar o filho da desnutrição. A mãe veste o menino com um disfarce de cão e cria uma imagem invertida da situação, que simboliza a negação da condição humana como forma de sobrevivência no mundo dos homens. A vestimenta de cão, transformada em máscara, salienta, ironicamente, o aspecto animal da condição humana e derruba as barreiras entre o possível e o impossível.

Há, porém, uma condição para que Mundoca possa se misturar aos animais para receber comida da viúva cega: ele tem que aprender a latir para se confundir com os cães. Cria-se, com tal obstáculo, uma situação-limite difícil de ser resolvida, visto que o menino se esforça muito, mas não consegue latir. Transgride-se, então, a lógica e introduz-se 72 outro mundo, onde se encontra o maior entrave para que tudo transcorra de acordo com a sonhada idéia de Indalécia: Mundoca simplesmente não sabia latir.

O estilo grotesco, que suscita riso por sua extravagância, extrapola os limites do reconhecidamente possível e acentua os defeitos de forma crítica, transgredindo preconceitos e tabus.

Na crônica, a situação grotesca propriamente dita começa, na verdade, com a “segunda vida” de Mundoca, quando ele tenta se equiparar aos cães, vida essa já isenta de qualquer constrangimento.

Semelhante deformação da condição humana provoca o riso irônico pela união de seres completamente distintos, a criança e o animal, num processo de amálgama que nega e afirma simultaneamente. A necessidade de alimentação é o elo de ligação que, numa relação de contigüidade conjuga paradoxalmente o excesso de “humanização” na vida do protagonista.

Como resultado, universaliza-se no texto a esfera crítica com a proposição de que o homem, ao lutar pela sua sobrevivência, divide o mesmo espaço com os animais, fazendo-o, muitas vezes, em condição de inferioridade.

Essa comicidade amarga oriunda do humor scliariano acirra-se sobremaneira no desfecho da narrativa, que projeta um curioso

“final feliz”, adstrito ao campo das impossibilidades. Mundoca e Dora, são personagens que deveriam se cruzar, de acordo com o plano inicial traçado pela mãe do menino, Indalécia. No entanto, nada se concretizou como o 73 previsto, como se pode conferir pelo seguinte trecho:

Teria morrido de fome, mas salvou-o o destino. Indalécia achou no lixo um bilhete de loteria - premiado. Ganhou uma pequena fortuna, investiu o dinheiro na lanchonete de um compadre, tirou o pé do barro. Mundoca, por sua vez, estudou, arranjou um bom emprego e vive muito bem. A mulher acha-o esquisito, e com razão: cada vez que Mundoca passa pela prateleira de rações, no supermercado, põe-se a latir. Todos olham e riem, e a esposa fica possessa, mas tem de admitir: se há coisa que o marido sabe fazer com perfeição é exatamente isso, latir como cachorro de rico.

Trata-se, portanto, de um desfecho que elabora a paródia dos epílogos das histórias idealistas, justamente por intensificar o caráter de impossibilidade da solução encontrada por Indalécia. Observa-se que o verbo no futuro do pretérito - teria morrido – e a carga semântica presente na conjunção mas indiciam a saída para o impasse, ou seja, pressupõe que algo salvou Mundoca da sua carência orgânica e social.

Satiricamente, o lixo é o espaço de transformação positiva na vida da personagem, salientando-se como o local do mais importante achado para a solução do problema: um bilhete de loteria - premiado. Vale lembrar que, anteriormente, a velha fantasia de cachorro também havia sido encontrada no lixo, por Indalécia. Se o disfarce configura-se como o rebaixamento do protagonista à condição animal, o lixo, espaço de antemão degradado, emerge agora como o fator de ressurreição, por obra do acaso e da ação provedora de Indalécia. 74

Importa, ainda, ressaltar que, com o dinheiro ganho,

Indalécia compra uma lanchonete, estabelecimento comercial destinado a

“vender” comida, o que sugere fartura. Resulta daí um interessante contraste: a lanchonete representa “a riqueza” adquirida com o lixo.

A narrativa chega ao presente destacando os benefícios que o esforço para tentar latir como os cachorros da rica viúva Dora trouxe a

Mundoca, no âmbito do grotesco. Agora, bem de vida, ele consegue latir com perfeição, demonstrando-se a equiparação entre animal e homem, que caracteriza a personagem no supermercado, espaço de abundância ligado à imagem simbólica do banquete.

A crônica finaliza com o juízo de valor da mulher de

Mundoca sobre a capacidade de latir do marido. A carga crítica reforça-se pelo aspecto de naturalidade com que a visão da mulher refere para o leitor a habilidade conquistada pelo marido. Latir agora já não exerce função social, mas se transforma em “qualidade humana”.

Percebe-se a circularidade na estrutura do texto ficcional, já que o final remete ao sentido ambíguo do título - Latindo pela vida, que tanto pode se referir à dificuldade de Mundoca aprender a latir para receber alimento e sobreviver, como também ao fato de ele passar a vida latindo, sempre que se vê diante de uma prateleira de ração, no supermercado.

Centrada no vocábulo “alimento", a crônica apresenta os personagens Raimundo, a viúva Dora e a mãe Indalécia, que não consegue 75 pôr em prática seu plano para alimentar o filho.

A propósito, a evolução da narrativa, revela que, enquanto há a necessidade de alimento, Mundoca sente-se impossibilitado de latir.

No entanto, com a fartura, ele consegue imitar perfeitamente a voz dos cães.

Assim, paradoxalmente, a carência gera a impossibilidade e do “excesso” origina-se a possibilidade, o que instaura a ironia amarga do humor crítico de Scliar. Além do mais, reforça-se o teor crítico com o contraste que mostra a abundância presente na inversão: o lixo, como reunião de restos inaproveitáveis e o supermercado, cujos restos vão para o lixo.

76

3. 1. 2 A ESCOLA DAS RUAS (crônica)

Pai é acusado de tirar 4 filhos da escola para

pedirem esmola (notícia)

77

Folha de São Paulo, 12 jun. 1997, c. 3, p. 2.

78

FOLHA CAMPINAS. Folha de São Paulo, 10 jun. 1997, c. 3, p. 3.

79

3. 1. 2 A ESCOLA DAS RUAS

A reportagem Pai é acusado de tirar 4 filhos da escola para pedirem esmola, divulgada na página 3 do caderno “Cotidiano" de 10 de junho de 1997, foi a escolhida por Moacyr Scliar para ser recriada na crônica A escola das ruas, de 12 de junho do mesmo ano.

A notícia conta a história de um desempregado, pai de família, de Jundiaí, Estado de São Paulo, que retirou quatro filhos da escola para pedirem esmolas nas ruas da cidade. O referido pai foi indiciado em inquérito policial por abandono intelectual do menor, de acordo com o artigo 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente .

No confronto da crônica com a notícia, observa-se que o humor de Scliar manifesta-se desde o título da crônica A escola das ruas, predominantemente nominal, o sentido ambivalente da frase é um traço marcante, ao unir dois espaços implicitamente opostos: a escola, como o lugar onde as pessoas completam sua educação, e as ruas, que ensejam a

“deseducação” do ser humano.

A notícia é pretexto para que esta crônica apresente uma crítica mordaz a mais um dos grandes problemas sociais que atingem as crianças brasileiras em todos os tempos: a evasão escolar motivada por uma exigência mais imediata, que é trabalhar para sobreviver. A educação escolar, importante para a formação integral do indivíduo, apresenta-se, no 80 caso, como secundária para o chefe de família.

A crônica apropria-se não só do fato principal da notícia, como já foi mencionado, mas também de outros aspectos apresentados pela reportagem, como a suposta autoridade do pai, que determinava se os filhos iriam ou não para a escola; o depoimento da diretora da escola (na crônica, representada pela professora); a negação, pelos filhos, das acusações contra o pai. Observa-se que, no texto ficcional, tais dados são retomados, especialmente na introdução, para corroborar a evolução da narrativa.

Nesta crônica, escrita em terceira pessoa, o narrador relata a história em dois tempos, passado e presente. No início, a narrativa presentifica o passado para que se possa entender a angústia do protagonista, como se verifica no seguinte fragmento:

Tudo começou quando o pai resolveu tirá-lo da escola para pedir esmolas nas ruas. A professora ficou indignada, porque o menino era ótimo aluno, o melhor da aula, certamente teria um grande futuro. Mas o garoto não protestou, não disse nada. Não adiantaria: o que o pai decidia, os filhos tinham de cumprir. Além disto, estava faltando dinheiro em casa. Muitas vezes não tinham o que comer.

No trecho acima, faz-se necessário atentar para a repetição enfática, traço comum nas narrativas scliarianas, e o emprego do adjetivo

“bom” no grau superlativo absoluto – ótimo -, intensificado pelo comparativo de superioridade melhor, recurso de linguagem que exalta a inteligência do protagonista, particularidade de relevância para se perceber 81 o tom irônico da narrativa: ótimo aluno, o melhor da aula. Na crônica, uma criança, cuja família estava passando por dificuldades financeiras, é obrigada a interromper a educação escolar e encaminhar-se à mendicância, mais necessária para a sua sobrevivência, naquele momento.

A professora não concorda com o fato de o menino ter de abandonar as aulas, já que sua previsão para ele é otimista: teria um grande futuro. Ela profetiza que, por ser estudioso e inteligente, o menino teria grandes chances de progredir na vida, sem perceber a ambigüidade da expressão um grande futuro, só comprovada no final da história.

Dentre as justificativas, apresentadas na crônica, para que o aluno deixasse de ir à escola, estão, além da necessidade de ajudar na manutenção da casa, a autoridade paterna incontestável: o pai decidia, os filhos tinham de cumprir. Nota-se aqui como os verbos dão a idéia de um argumento definitivo para solucionar o impasse. Trata-se de um discurso centralizado na figura paterna, símbolo do pátrio poder, que, ciente de seus direitos e prerrogativas, desconhece a contrapartida dos encargos e deveres, pois o pai é a figura da autoridade que não deve ser questionada, como acentua a repetição negativa não protestou, não disse nada.

Depois de sair da escola, o protagonista começa uma outra fase, ou seja, uma “segunda vida”, totalmente desvinculada da primeira, como explicita a evolução da narrativa:

E assim começou a pedir esmola. Inteligente como era, não 82

tardou a descobrir que havia uma técnica para isso. Era preciso posicionar-se em lugares convenientes, era preciso adotar o tom de voz adequado, era preciso dizer as coisas certas. Obedecidos esses pré-requisitos, o dinheiro entrava. E entrava tanto, que ele podia guardar uma parte para si. Que começou a investir.

A expressão inteligente como era reforça a avaliação que a professora fizera, anteriormente, do estudante: ótimo aluno. O humor de

Scliar manifesta-se quando o narrador, ratificando a assertiva da professora, afirma que o menino (protagonista) aprendeu rapidamente as técnicas de mendigar. A situação é grotesca, tragicômica, aspectos que se reforçam devido ao encadeamento lógico das construções narrativas, que conferem naturalidade ao fato de o menino adquirir competência para esmolar de maneira correta e obter bons lucros, graças à sua propalada inteligência.

A ironia intensifica-se, considerando-se as expressões utilizadas pelo narrador ao comparar uma circunstância de degradação do ser humano, isto é, pedir esmola, como uma profissão especializada, em que são necessários “pré-requisitos” como técnica para isso, posicionar-se em lugares convenientes, adotar o tom de voz adequado, dizer as coisas certas.

A narrativa continua com um humor sutil, porém amargo, e mostra as etapas do rápido sucesso financeiro do protagonista longe da escola: de mendigo evoluiu para comerciante de rua; em seguida, passou a dono de uma banca de rua; depois, de uma loja; e chega ao ápice de sua carreira como grande proprietário de uma cadeia de lojas. Há uma 83 exacerbação da situação de progresso da personagem. Ele passa a viver uma situação peculiar, num mundo às avessas, que instaura esse humor, responsável por chamar a atenção para problemas sociais como a evasão escolar e a mendicância, mostrados como alternativa de sobrevivência.

O palco dos acontecimentos é a rua, espaço público, onde quase tudo é permitido. A mendicância, destronamento social, leva, ironicamente, à riqueza, ascensão social e, da maneira como se processa, suscita o caráter ambivalente do riso. Não se trata, porém, de um riso despreocupado, mas eivado de crítica, em decorrência da gravidade de uma situação, que comumente se repete, e necessita de uma solução urgente.

Daí em diante, a narrativa presentifica-se, como se observa no início do seguinte relato, em que o narrador emprega o advérbio de tempo hoje, que se repete, em seguida, no discurso indireto livre, como fala da personagem:

Hoje esse homem, ainda jovem, é um milionário. Sustenta os irmãos e o pai, naturalmente, por quem, segundo diz, não guarda qualquer rancor. Se ele não tivesse me tirado da escola, afirma, eu hoje seria um profissional liberal desempregado ou então estaria pulando de empreguinho em empreguinho Na escola das ruas eu me fiz por mim mesmo. Não sei quais são os afluentes do Amazonas, diz, mas isso não me fez falta alguma.

Nesse trecho, o narrador insere na sua a fala do protagonista, para justificar o êxito financeiro deste e tentar persuadir o leitor de que a educação escolar não lhe fez falta. Com a maioria dos verbos 84 no tempo presente, o teor crítico da crônica mostra o sentido paradoxal da temática abordada: o protagonista não estudou e venceu na vida, ao contrário de muita gente que estuda e não consegue progredir na profissão.

Há uma contradição evidente, em que a negação do direito da criança à educação passa a ser valorizada e se transforma em importante afirmação de valor no mundo capitalista de hoje: esse homem, ainda jovem, é um milionário.

A linguagem do riso, aqui, apresenta como característica sua relação essencial com a verdade popular não-oficial. Isso se comprova com a condição, explicitada na crônica, do abandono da formação escolar

(Se ele não tivesse me tirado da escola ..), que mostra uma situação invertida, fora dos convencionalismos oficiais, como responsável pelo sucesso do protagonista.

Na seqüência seguinte, a pergunta - Por que não haveriam de acreditar?, reforça a proposição É o que diz e as pessoas acreditam. A ironia faz-se presente na censura aos que costumam se vangloriar de sua riqueza, contando histórias melodramáticas em que se acentua o sucesso conseguido sem necessidade de estudo, e ao argumento criador do paradoxo apresentado pelo protagonista para valorizar tal situação: Não sei quais são os afluentes do Amazonas, diz, mas isso não me faz falta alguma.

Em seguida, a referência do narrador ao projeto secreto pressupõe a perturbação explicada no final da narrativa, que tira o sono do 85 protagonista. Verifique-se:

Ele quer voltar à escola. Não a qualquer escola; quer voltar à sua antiga escola. Quer sentar lá, na carteira que foi sua. E quer ter diante de si a professora, a antiga professora, falando sobre os afluentes do Amazonas. É um sonho? É um sonho. Ele sabe que os sonhos não dão dinheiro. Mas também reconhece, com um aperto no coração, que sem sonhos é impossível viver.

O desejo do protagonista de voltar às origens, notado em

Ele que voltar à escola. Não a qualquer escola; quer voltar à sua antiga escola., remete ao começo do texto e denuncia, também, uma característica comum ao ser humano, o qual, na tentativa de superar os problemas, necessita do sonho para preencher as lacunas deixadas por eles.

A palavra sonho aqui é enfatizada como a maneira velada de criticar a atitude do pai por quem, segundo conta o narrador, o protagonista não guarda qualquer rancor. Através de um retrocesso à infância, a personagem consegue se completar, no sonho. Em vista disso, observa-se que o sonho representa a coroação do êxito alcançado pelo menino, na vida adulta, e a escola, como espaço do sonho, passa a simbolizar espaço paradisíaco, não corrompido.

Novamente a referência aos afluentes do Amazonas é complemento à projeção do desejo, a busca de realização em esfera distinta da financeira, importante para o protagonista, porque conhecer os rios significa ter acesso à cultura, que é só o que lhe falta para conseguir 86 ultrapassar os limites de seu espaço. Além disso, os afluentes do Amazonas representam também a marca divisória em sua vida, interromper sua formação escolar e lutar pela sobrevivência.

A posse do dinheiro, ou o poder no mundo capitalista enseja no protagonista, agora adulto, o desejo de recuperar a infância, cujos sentidos de inocência e pureza, alusivos a sonho e desejo, convergem para o espaço da escola e se reiteram na forma verbal “querer”: Ele quer voltar à escola ... Quer sentar lá... E quer ter, diante de si... A indagação É um sonho? e a imediata afirmação É um sonho. conferem a legitimidade à projeção do desejo, instaurando a percepção, por parte da personagem, de que se faz credor, apesar do sucesso financeiro, de outras possibilidades de realização pessoal.

Assim, através da recriação paródica da notícia em crônica, o autor transformou um representante de uma situação cotidiana das ruas em herói de ficção, ainda que um herói problemático. Contudo, no limite do paradoxo, a personagem constitui uma dupla exceção, não só porque é dotada de alto grau de inteligência prática, mas também porque, com tal atributo, superou a miséria e conquistou a abundância.

Baseando-se na dura realidade que a notícia veicula - Pai é acusado de tirar 4 filhos da escola para pedirem esmola- , esta crônica, como se viu, tem estrutura circular, centralizada na palavra “escola”. O protagonista passa da escola convencional para a indigência, e, 87 conseqüentemente, para a “escola das ruas”, onde aprende a ganhar dinheiro e tem uma vida com muita fartura. No entanto, alimenta o sonho de volta à escola convencional, como opção desejada para a realização de sua condição humana, cujo esvaziamento é o alicerce de construção do teor crítico da crônica.

88

3. 2 SOBRE A MULHER

89

3. 2. 1 PATROAS DO MUNDO INTEIRO,

UNI-VOS (crônica)

Patroa é acusada de roubar empregada (notícia)

90

Folha de São Paulo, 13 jul. 1995, c. 3, p. 2. 91

NOTÍCIA

SOUZA, Carlos Alberto. Folha de São Paulo, 7 jul. 1995, c. 3, p. 3.

92

3. 2. 1 PATROAS DO MUNDO INTEIRO, UNI-VOS

A crônica Patroas do mundo inteiro, uni-vos, publicada em 13 de julho de 1995, relaciona-se com a notícia Patroa é acusada de roubar empregada, escrita por Carlos Alberto de Souza, também divulgada pelo jornal Folha de São Paulo, na página 3 do caderno “Cotidiano”, no dia 7 do mesmo mês e ano, ilustrada com uma foto da empregada, Beatriz, e outra da patroa, Sílvia.

A notícia Patroa é acusada de roubar empregada, traduz um fato policial insólito, quase inverossímil dentro de parâmetros sociais considerados lógicos, já que relata o episódio de uma dona de casa indiciada por estelionato, acusada de ter roubado três folhas de cheque da sua empregada. Segundo apurou o jornal, dois cheques foram usados para pagar compras de supermercado, supostamente para abastecer a casa com alimentos.

O cronista não só se fixa no aspecto inusitado do fato noticiado, ou seja, uma patroa que furta cheques de sua empregada, como também se apropria de outras informações apresentadas no texto jornalístico, como a classe social a que pertence a patroa, a desavença entre ela e a empregada e o salário atrasado da empregada, para consumar a crítica à falsa superioridade de uma classe sobre a outra e às estruturas de poder. 93

Como se pode observar, a própria notícia implica o destronamento social da patroa, ou seja, o seu rebaixamento. O processo depreciativo se assemelha a uma gangorra grotesca6, que enfatiza a descida, muda o ritmo habitual do cotidiano e viola o que está socialmente determinado. Assim, a patroa desce a um nível econômico mais baixo e, em decorrência, é também rebaixada na escala social.

Quanto à crônica, apresenta, em tom de oratória, como a suposta vítima se defende da acusação de roubar o cheque da empregada e desencadeia, assim, um desequilíbrio que provoca o riso

O seu título, Patroas do mundo inteiro, uni-vos, tem forte apelo evocativo e sua linguagem retórica remete aos escritos de Marx e

Engels, no Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1948. As palavras finais deste documento, incorporado na história universal, ressoam como um grito de guerra: Proletários de todos os países, uni-vos!7. O decalco lingüístico é evidente e, pelo procedimento paródico, a crise financeira da patroa da classe média brasileira é transportada para um espaço maior - o mundo inteiro -, alcançando uma ressonância mais ampla.

Essa espécie de grito de guerra que incita uma luta de classe às avessas é reforçado no desenrolar do próprio manifesto da patroa,

6 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 1993, p.325.

7 MARX, Karl, ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista.1988, p.109. 94 colocando-a numa ridícula situação de lutadora, que reivindica supostos direitos adquiridos como classe social superior à da empregada doméstica.

Define-se então a máscara grotesca de uma sociedade, que valoriza a aparência. A presença do grotesco no discurso literário, que narra uma situação insólita, suscita riso no leitor pela excentricidade.

A crônica em questão é uma narrativa escrita em primeira pessoa, em estilo monológico marcado pela oralidade, que se utiliza de função apelativa da linguagem, através do manifesto feito em nome de uma classe (as patroas) que se considera oprimida e clama por justiça social.

O emprego da primeira pessoa é o recurso usado pelo autor para legitimar a experiência do narrador-personagem, com o fim de tornar a ficção mais verossímil. Por apresentar apenas a visão unilateral da patroa, o discurso, configurando a inversão paródica, põe em foco uma suposta polêmica sobre direitos e deveres da classe social a que a patroa pertence.

Percebe-se que há uma inversão dos valores do modelo de relação social comumente conhecido, em termos de quem é oprimido e quem é opressor. Isso pode ser comprovado com o primeiro segmento da referida crônica, em que a patroa tenta desesperadamente retomar os direitos do “status” social perdido:

Companheiras patroas, estas linhas representam um desabafo, um apelo à comunhão de sentimentos, mas também - e por que não? - um manifesto. Companheiras patroas,está na hora de termos o nosso manifesto, um documento que expresse os nossos direitos inalienáveis e 95

sagrados. Somente quem, como eu, passou pelo mais duro transe capaz de atingir uma patroa, está em condições de, desfiando fibra por fibra o coração, escrever a plataforma da Intemacional das Patroas.

Observa-se que a crônica aproveita o tema da notícia e estabelece relação paródica com o texto comunista e com outros textos, através da inversão da linguagem, em forma de manifesto.

A crítica se estende, ainda, ao excessivo sentimentalismo da poesia Ser Mãe, da autoria de , muito difundida na década de cinqüenta do nosso século. A referida poesia diz que Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração e, mudando-se o sujeito da frase, afirma-se que também a patroa é capaz de desfiar fibra por fibra o coração.

Ao clamar pelo que julga ser um direito legítimo, a patroa emprega o vocativo típico das falanges socialistas revolucionárias: companheiras patroas.

Do mesmo modo, como se a sociedade fosse composta de juízes prontos para julgá-la, ela apela para os senhores, tentando o diálogo para justificar seu ato como legítima defesa, por ter sofrido pressão psicológica da empregada, pertencente a uma classe social considerada inferior.

A ironia mordaz alastra-se por todo o desenrolar da narrativa, que se apóia na oposição entre "ser” e "parecer", e é nessa natureza contraditória da sociedade burguesa representada pela patroa que 96 se instaura o humor crítico da crônica. A patroa não consegue resolver seus próprios problemas e sente-se vilipendiada, visto que sua vida se fundamenta no “dinheiro” e a falta deste a transforma num ser em conflito com a própria identidade.

Assim, a crônica evidencia o conflito do "eu" (a patroa, antes socialmente bem-sucedida) contra a “outra” (a empregada, agora em melhor situação), e a constante tensão dele oriunda, como se pode perceber no decorrer da narrativa, em que a linguagem é uma mistura da norma culta

(eufemismos, empedernido) com a popular, destacando-se o emprego das gírias qual é, pô? e tem de se ferrar, que conota o rebaixamento do linguajar e da condição social da protagonista. O emprego dos adjetivos simples e brutal, de forma antitética, ilustra bem a situação já mencionada.

Novamente salienta-se a revolta da patroa, por ter perdido a aparente força que o dinheiro confere às pessoas. Em vista disso, a queda do poder da burguesia, sustentada por tais valores, está ressaltada no texto, através da menção da patroa às regalias do passado ( éramos tratadas com reverência), que agora não existem mais (Hoje, não temos nem poder, nem dinheiro). As duas fases da vida da patroa são bem marcadas, no texto da crônica, com ênfase ao tempo: nosso tempo passou ... e Hoje, não temos... .

Na crônica, ratifica-se a reverência do capitalismo à força representada pelo dinheiro. A oposição entre poder e opressão, riqueza e pobreza, define essa sociedade: quem tem dinheiro tem poder e quem não 97 tem vive oprimido. Os relacionamentos humanos se valorizam de acordo com os interesses monetários, pois dependem do poder aquisitivo das pessoas, como conotam os questionamentos da patroa que, diante da situação que está vivendo, sente-se oprimida pela empregada: E quem nos oprime e nos empobrece, companheiras patroas? Hein?

Em resposta, a própria patroa acusa a empregada como responsável por sua decrescente posição financeira e social quando, no início deste fragmento, responde à pergunta feita anteriormente, como se pode observar:

Elas, companheiras patroas. As nossas empregadas. Hoje em dia dependemos tanto dessa elite (elite sim; massa somos nós) que já não podemos fazer mais nada sem elas. Vivemos sob um regime de constante terror. O que são as nossas manhãs de segunda-feira, companheiras patroas? O que são, senão uma constante e torturante dúvida - ela virá ou não? Somos obrigadas a nos nutrir, companheiras patroas, de expectativas messiânicas. Somos obrigadas a crer firmemente na vinda delas, sob pena de nossa mais completa desestabilização emocional !

Nesse trecho, a patroa rotula, ironicamente, a sua classe (as patroas) como “massa” (massa somos nós), visto que ela, agora sem dinheiro, deixou de ser “elite”.

Quanto à linguagem, observa-se o emprego de hipérboles, como: vivemos sob um regime de constante terror, somos obrigadas a nos nutrir ... de expectativas messiânicas e a crer firmemente na vinda delas e sob pena de nossa mais completa desestabilização emocional. São 98 manifestações com sentido dúbio, devido à força do exagero sem fundamento, que, simultaneamente, revelam a intensidade do desequilíbrio emocional da patroa e provocam o riso melancólico.

A expressão expectativas messiânicas, reforçada por crer firmemente na vinda delas, uma alusão à cultura judaico-cristã, refere-se à interminável espera da patroa pela vinda da empregada que não chega.

No desenrolar da crônica, e especialmente nos excertos a seguir, o humor satírico de Scliar se manifesta nitidamente através do discurso da patroa que luta com as armas do sarcasmo e da zombaria contra a outra categoria, que ela havia sempre explorado e que entra em cena como reverso do status quo, ao ocupar o lugar de classe detentora do poder na sociedade.

Diante de tal conjuntura, a patroa evoca a necessidade de mais união da classe prejudicada, as patroas, para se inteirarem do grave problema que as tortura. Ressalta-se, aqui, a terrível frustração dela, sem o objeto mais valioso da sociedade capitalista - o dinheiro. A referência à falta de recursos para aplicações financeiras, em CDBs, RDBs, commodities, dólares, reforça criticamente a derrocada da patroa, visto que se conscientiza da sua incapacidade de continuar desempenhando o papel de classe dominante.

A repetição do substantivo erro e do adjetivo plural inadimplentes enfatiza a carência de condições financeiras da categoria das 99 patroas, muito preocupada com o supérfluo necessário para a manutenção de sua condição social. A exagerada dimensão dada ao problema, transformado em angústia existencial, trata-se de um recurso irônico do autor para complementar a absurda defesa que a personagem faz de sua classe.

Além disso, a patroa tenta justificar por que havia roubado os cheques da empregada. Diferentemente do que apurou a reportagem jornalística (“dois cheques ... foram usados em um supermercado e em um minimercado, respectivamente”), a personagem “patroa” declara, na crônica, que se sente humilhada, porque teve que usar os cheques para pagar a própria empregada. A desavença entre a patroa e a empregada, segundo a notícia, devia-se à falta de pagamento do salário da doméstica, o que corrobora, na crônica, a disputa pelo poder social, alicerçado no financeiro.

Observa-se que o final desta crônica tem um teor nitidamente político-socialista de crítica ao capitalismo, tal como as últimas linhas do Manifesto do Partido Comunista, que diz:

Os proletários nada têm a perder com ela, a não ser suas cadeias. E têm um mundo a ganhar.8

8 MARX, Karl, ENGELS, F. Op. cit, 1988, p.109. 100

Mantendo o mesmo tom persuasivo, a crônica, com uma linguagem mais coloquial que a do citado manifesto, focaliza a protagonista que conclama a união das patroas, com palavras de ordem como:

Nada temos a perder, a não ser as nossas algemas e também alguns confortos extras, como a limpeza da casa, lavagem de pratos, etc.

Lutando contra o seu rebaixamento evidente, numa alusão à postura histórica de determinados condenados à morte, a patroa brada categoricamente: Mas eu, particularmente, estou disposta a marchar de cabeça erguida para o sacrifício. Reforça-se, aqui, a importância da necessidade que ela tem de manter as aparências para garantir o seu lugar na sociedade em que vive.

Mais adiante, o cronista, numa referência à História do

Brasil, emprega palavras de efeito tragicômico ao parodiar as últimas palavras da conhecida carta-renúncia escrita pelo ex-presidente Getúlio

Vargas, em 1954, pouco antes de morrer (Saio da vida para entrar na

História), com a seguinte expressão da patroa: eu saio da vida para entrar na cozinha.

Num discurso autoritário de caráter polêmico e em tom gradativo ascendente como este, a repetição da expressão se for preciso denota ironicamente a necessidade de reforçar a idéia de que a situação não

é definitiva e deve sempre ser encarada como anormal, ou até grotesca. 101

A crônica pode ser considerada uma espécie de discurso-apelo, denominação usada por Bakhtin9, que significa a invocação, pelo discurso, de atenção para si, para o outro, ou para o mundo. O discurso da personagem, em que a narração tenta legitimar o apelo, apresenta rupturas em que se encaixam os chamamentos - companheiras patroas - em tom incitante. Ela provoca uma tensão contínua porque não aceita a inversão de valores, que derruba o critério de autoridade, abolindo a suposta lei que diferencia os seres humanos por classes sociais.

Neste discurso, a fala da protagonista apresenta uma variedade de pronomes em constante troca, passando de “nós” ou “eu" para

“vocês", apelando sempre para a reação do interlocutor ausente.

Tendo em vista que esta crônica apresenta um diálogo entre a patroa ofendida e o interlocutor invisível, a classe das patroas a qual ela pertence, nota-se que este segundo interlocutor está presente apenas no vocativo companheiras patroas empregado constantemente pela protagonista, bradando por uma reação que não acontece.

Como se observa, esta narrativa ficcional, que tem como palavra-chave “patroa” (a protagonista), consta de cinco partes: o apelo, a justificativa, a espera messiânica, a confissão da inadimplência e o sacrifício. “Patroa” é o vocábulo que norteia a coerência narrativa da crônica e, além de explicitar um sentido autoritário, subentende-se, também,

9 Problemas da poética de Dostoiévski.1981, p.208. 102 a exploração da força de trabalho do empregado, assunto muito discutido pelo marxismo.

Assim, entende-se que a crônica faz uma crítica ao sistema de valores da sociedade burguesa capitalista, centrada no poder do dinheiro e na aparência. Isso problematiza a questão do “ser” e do “parecer”, que aflige o homem como membro dessa comunidade, em que muitas vezes a valorização do aspecto exterior das pessoas desmerece a sua verdadeira essência.

103

3. 2. 2 FEIÚRA NÃO É DESGRAÇA. BELEZA É.

(crônica)

‘Maria Basculho’, 26, é eleita a mulher mais feia de

Pernambuco (notícia)

104

Folha de São Paulo, 3 ago. 1995, c. 3, p.2.

105

SANTIAGO, Vandeck. Folha de São Paulo, 31 jul. 1995, c. 3, p. 1.

106

3. 2. 2 FEIÚRA NÃO É DESGRAÇA. BELEZA É.

A crônica Feiúra não é desgraça. Beleza é., de 3 de agosto de 1995, retoma a notícia ‘Maria Basculho' , 26, é eleita a mulher mais feia de Pernambuco, de Vandeck Santiago, veiculada na página 1 do caderno “Cotidiano", de 31 de julho de 1995.

A reportagem conta que uma dona de casa, Maria de Lurdes de Jesus, cujo apelido Maria Basculho confunde-se foneticamente com

“bagulho”, incentivada pelo marido, participa de um concurso que elege a mulher mais feia do estado de Pernambuco, onde mora. O texto é ilustrado com uma foto de Maria, junto aos prêmios que ganhou e de uma entrevista em que ela afirma estar orgulhosa de ser a vencedora do concurso. Além de flores, ganhou como prêmios uma bicicleta usada, sem freios e com um pneu furado, e um cheque de duzentos reais.

O espaço em que se encontra a notícia tem subtítulo bastante significativo, As belas e a fera, que foge à objetividade da linguagem jornalística e recupera o conto da literatura infantil francesa A bela e a fera, escrito por Madame de Prince Beaumont. Já que o concurso é para eleger a mulher mais feia, entende-se que “as belas” são as outras concorrentes, menos feias. Maria Basculho é a mais feia, “a fera”. Fera é um vocábulo com duplo sentido, pois tanto pode estar relacionado à aparência (feiúra) de Maria Basculho, como à sua capacidade de vencer, 107 sendo exímia representante das feias. Um sentido não pode ser dissociado do outro, porque justamente por ser tão feia é que ela conseguiu vencer o concurso.

Com isso, além de explorar a subjetividade contida no espaço da reportagem, a crônica utiliza, como pretexto, outros elementos como: o objetivo do concurso, o incentivo do marido para que a vencedora concorresse, os prêmios que ela ganhou e o orgulho dela por ser a feia vitoriosa.

Evidentemente, a intenção do cronista é causar impacto com a excentricidade do fato, visto que situações absurdas sempre despertam atenção. No caso, tal circunstância já está contida na notícia, que instiga o humor crítico de gosto indefinido: amargo pela situação (o objetivo do concurso) e doce pela satisfação da vencedora (os prêmios),

O título da crônica Feiúra não é desgraça. Beleza é. apresenta duas oposições que se complementam para sintetizar o insólito: feiúra representa felicidade; beleza, desgraça. Por meio de uma negação, o escritor circunscreve no texto dois pontos de vista contrários a respeito da estética física feminina e contesta um ideal de beleza convencionado, em busca da essência do ser humano. Diante disso, verifica-se que Scliar relativiza o valor das palavras “feiúra” e “beleza”, a partir do título da crônica. Desse modo, ao opor-se a cristalizados conceitos de beleza feminina, ele reitera o sentido ambivalente do humor, empregado como 108 recurso artístico para ressaltar a inversão de conceitos estéticos, que valoriza a feiúra e não a beleza exterior.

Observa-se que o cronista aproveita o apelido da Observa- se que o cronista aproveita o apelido da protagonista da notícia - Maria

Basculho - como nome próprio, na ficção. O motivo pode ser a comicidade do nome próprio empregada como um procedimento estilístico que reforça o efeito cômico da situação ou da trama, devido à assonância entre os vocábulos Basculho e “bagulho” (pessoa muito feia).

Nesta crônica, o narrador-observador apresenta a protagonista Maria Basculho, que vive momentos de felicidade, por ter vencido o concurso da “Mulher mais feia”, e de magia, quando encontra um sapo-príncipe que a transforma em uma linda moça. No entanto, ela fica revoltada porque não queria ser bela. Assim, Maria inverte os padrões estéticos conhecidos, já que ela desvaloriza os parâmetros determinados pela sociedade em geral, e passa a estabelecer seus próprios valores e objetivos.

Pode-se considerar, também, que o concurso “A Mulher mais Feia” pressupõe, simultaneamente, um elogio e injúria, uma vez que os extremos do feio e do belo se juntam com a sublimação da feiúra de

Maria Basculho. O belo e o feio aproximam-se e tocam-se num ponto comum, que é o excesso, tanto na crônica como na reportagem jornalística.

O destaque, em ambos os textos, é para o inusitado “Concurso da Mulher 109 mais Feia", cuja vencedora é Maria Basculho, como se comprova no início da crônica:

Logo depois de ganhar o concurso da Mulher mais feia, Maria Basculho embarcou na bicicleta que tinha ganho de prêmio e rumou para casa. Pedalava com dificuldade, porque o pneu traseiro estava furado (sendo prêmio de concurso de feiúra, o que se podia esperar?), mas ia contente: o marido vibraria com o titulo que conquistara. Afinal, fora ele quem a estimulara a concorrer - a vitória era uma homenagem à sua visão. Além disso, os R$ 200 que recebera do prefeito eram uma boa ajuda para o orçamento familiar. Isso sem falar na bicicleta propriamente dita: agora a família tinha um meio de transporte.

Nota-se aqui a ênfase dada ao tempo – Logo depois de ganhar o concurso da Mulher mais Feia – que destaca a realização do incrível concurso como ponto de partida para a evolução narrativa. A propósito, percebe-se, ainda, o tom irônico contido na interferência do narrador-observador com um comentário sobre o pneu furado da bicicleta que a mulher ganhara como prêmio: sendo prêmio de concurso de feiúra, o que se podia esperar? A carnavalização se manifesta até na realidade pois, segundo a reportagem, um dos prêmios dados a Maria Basculho era “uma bicicleta usada (sem freio e com o pneu traseiro furado)”.

A realidade é instauradora do riso crítico e amargo da ficção. Nesta crônica, a oposição entre feiúra e beleza não se refere apenas ao aspecto estético, visto que o mundo às avessas mostra também, nas entrelinhas, a censura velada à situação calamitosa do povo do agreste 110 nordestino, representado pelos pernambucanos, como se nota em agora a família tinha um meio de transporte, a bicicleta já mencionada.

Na seqüência da narrativa da crônica, Scliar dá vazão à fantasia sugerida pela notícia e a transforma em história de bicho falante, como se pode perceber no fragmento:

Ia, portanto, a Maria Basculho muito contente, quando de repente levou um susto: na estrada, à sua frente, estava um sapo. Tentou parar, não conseguiu - a bicicleta não tinha freio - e, para salvar o pobre bicho, não teve outro jeito senão sair da estrada. Na precipitada manobra, caiu, machucou o braço. Mas pelo menos o sapo tinha escapado; continuava ali, imóvel, olhando-a. Maria Basculho montou na bicicleta e já ia embora, quando ouviu uma voz grossa: - Obrigado, comadre. A senhora é boa gente.

Neste trecho, insere-se a magia na crônica através do encontro casual de Maria Basculho com o sapo-príncipe, como acontece na literatura infantil. Para adequar-se ao vocabulário de pessoas com pouca instrução, o sapo, ao dirigir-se à Maria, emprega uma expressão popular; comadre. Assim, o contexto vivido traduz-se melhor por meio da linguagem coloquial específica, tendo em vista o regionalismo do ambiente e dos tipos humanos.

Observa-se que o uso do pronome de tratamento senhora indica um certo distanciamento respeitoso da personagem sapo. O mesmo tratamento é empregado por Maria (senhor), no diálogo travado entre os dois, no decorrer da narrativa. No diálogo, nota-se também o realce dado à 111 voz grossa do sapo, estabelecendo-se uma relação de contigüidade metonímica com a masculinidade do animal, que se “humaniza” para

“falar” com Maria.

No segmento seguinte, o narrador tece irônicas considerações sobre o inusitado encontro da personagem com um batráquio, ou seja, um sapo, que fala:

Maria Basculho já tinha ouvido muitas histórias sobre sapos que falam, mas era a primeira vez que encontrava um destes – e, sobretudo, era a primeira vez que era elogiada por um batráquio. Ficou muito admirada e, claro, muito contente.

Ao afirmar que Maria Basculho já tinha ouvido muitas histórias sobre sapos que falam, o narrador prepara a situação de encantamento que se desencadeia a partir deste diálogo:

- Que é isso, compadre sapo? Não fiz mais que a minha obrigação. Então eu ia passar em cima do senhor, um sapinho tão simpático? Deus me livre e guarde. Mas me diga uma coisa: onde é que o senhor aprendeu a falar como gente, compadre sapo? - Se eu lhe contar um segredo, comadre, a senhora não espalha? Promete? Bom, então lá vai: eu não sou um sapo, comadre. Sou um príncipe, sabe? Um príncipe encantado.

Para satisfazer sua curiosidade, Maria Basculho questiona o sapo, na tentativa de entender a insólita circunstância em que se encontra.

Na evolução da narrativa, o humor irônico é percebido não só na referência a batráquio mas também no diálogo entre a protagonista e o sapo, quando ela passa a usar o pronome oblíquo o (se eu o beijar), que denota uma 112 linguagem culta, em oposição ao popular comadre e compadre. Tal linguagem certamente não deveria fazer parte do vocabulário de Maria

Basculho, uma mulher simples, que se sujeita a esse tipo de concurso para melhorar sua vida miserável. A personagem parece ter se transformado, de acordo com o contexto mágico, demonstrando ter, agora, mais instrução.

O diálogo travado entre a protagonista e o sapo-príncipe é o recurso que sustenta a transposição para o espaço fantástico, em que há uma reminiscência das leituras da infância. Contrariamente ao desenrolar da história infantil original, o sapo não quer virar príncipe, ao menos por

Maria, a mulher mais feia: Sim, eu viro príncipe, mas não precisa tentar.

Aqui passa tanta moça, sabe ... A fim de compensar o erro, o sapo prontifica-se a transformar a feia Maria Basculho na moça mais linda da região.

Importa ressaltar, ainda, que o narrador sempre introduz os diálogos com observações a respeito das personagens, como por exemplo,

Ela estava maravilhada: (para apresentar a fala de Maria Basculho) e Viu que tinha cometido uma gafe, apressou-se a repará-la (antes da fala do sapo).

Apesar dos esforços, o sapo-príncipe não possui a perspicácia necessária para entender a verdadeira escala dos valores relevantes na vida desta personagem, pois justamente por ser feia, ela ganhara o concurso. Numa época de supervalorização da aparência perfeita 113 da mulher, uma heroína às avessas é premiada pela negação da beleza. É o positivo (premiação) inserido no negativo (feiúra), gerando a ambivalência típica de uma relação paradoxal.

A concretização dos poderes do sapo-príncipe, identificada como o poder da magia, é acompanhada de um clarão, um estrondo para complementar o efeito extraordinário, como se vê no final da crônica:

Um clarão, um estrondo - e, de fato, ela estava transformada numa moça lindíssima. Foi embora, resmungando. Como é que ia ganhar outro concurso de Mulher mais Feia? Aquele sapo não tinha mesmo o que fazer. Ela deveria ter passado por cima dele.

A aceitação da feiúra já existia na notícia, especialmente no subtítulo Vencedora se diz orgulhosa, que encabeça a entrevista. No entanto, nota-se que o humor irreverente da crônica exagera quando mostra o desagrado da feia que não quer ser transformada em bela, uma vez que o segredo de sua vitória, naquele momento da vida, está em ser a mais feia possível. O dinamismo da narrativa se comprova com as palavras finais do texto, que demonstram a insatisfação com a metamorfose.

A situação veiculada pela notícia contraria os preceitos de estética, em que o desejo de auto-afirmação é responsável pela satisfação de

Maria Basculho ao ganhar o “1º. Concurso de Mulher mais Feia", incentivada pelo marido, o que também é inusitado. Maria Basculho está alegre com os atributos que tem, mesmo sendo feia. Ao parodiar a notícia, o 114 quadro apresentado pela crônica desafia o leitor a revisar seus julgamentos sobre conceitos sociais preestabelecidos.

Assim, através do questionamento ao conceito de estética, transgridem-se todos os preconceitos e tabus, tanto na notícia como na crônica, permitindo-se louvar o que normalmente não se costuma celebrar.

Exemplo disso é Maria Basculho, uma curiosa figura grotesca que se diz orgulhosa por vencer um concurso de feiúra, em entrevista concedida ao repórter do jornal Folha de São Paulo, como já foi comentado anteriormente. Ela simboliza a própria negação da beleza e insiste em se manter dessa maneira, para continuar merecedora das glórias conquistadas.

Aqui o destaque dado à feiúra não só serve de contraponto à beleza feminina, como também pode implicar uma crítica às “feiúras” (agruras) da vida, tão habituais ao contexto vivido pelo povo do agreste pernambucano, que já não causam estranheza.

O desenvolvimento narrativo da crônica, tendo a excentricidade como centro de sua cosmovisão paródica, gira em torno da palavra-chave “feiúra” e obedece à seguinte seqüência: a felicidade de

Maria Basculho, com os “estranhos" prêmios recebidos como vencedora de um "estranho" concurso; o susto provocado pelo quase atropelamento do sapo; o diálogo dela com o sapo-falante e a infelicidade da protagonista após a mágica do sapo. 115

Desse modo, Scliar deixa nítida a visão de mundo invertido na intertextualidade entre a crônica, a notícia e literatura infantil, com a valorização da feiúra, que representa a felicidade, em detrimento da beleza, que significa a desgraça, num gesto aberto à ambigüidade interpretativa da recriação paródica.

116

3. 3 SOBRE O POVO BRASILEIRO

117

3. 3. 1 CONSULTANDO NO POSTO DE SAÚDE

FANTASMA (crônica)

Pará investiga postos de saúde fantasmas (notícia)

118

Folha de São Paulo, 14 dez. 1995, c. 3, p. 2. 119

AGÊNCIA FOLHA em Belém. Folha de São Paulo, 11 dez. 1995, c. 3, p. 2. 120

3. 3. 1 CONSULTANDO NO POSTO DE SAÚDE FANTASMA

Pará investiga postos de saúde fantasmas é o título da notícia publicada em 11 de dezembro de 1995, página 2 do caderno

“Cotidiano”, na qual se baseou Moacyr Scliar para escrever a crônica do dia

14 de dezembro de 1995, Consultando no posto de saúde fantasma.

A ambigüidade cômica já se nota no título da reportagem jornalística (postos de saúde fantasmas), como forma de crítica aos desmandos políticos que atentam contra a saúde do povo brasileiro.

Trata-se do relato de uma investigação para apurar a existência de alguns postos de saúde, no interior do Estado do Pará, que recebem verbas do

Sistema Único de Saúde (SUS) e não atendem à população, porque não possuem instalações adequadas para funcionar. Em outros postos, há superfaturamento e adulteração da quantidade de pessoas atendidas, visto que a verba repassada a eles, pelo governo federal, é sempre proporcional aos registros de atendimento efetuados.

Quanto ao espaço jornalístico da notícia, explorado de maneira criativa, exibe à direita uma coluna emoldurada, com a observação

“Outro lado", que encabeça o subtítulo “Para prefeito, postos existem”. No outro enfoque da reportagem, recurso comumente usado pela Folha de São

Paulo, o prefeito da cidade em destaque tenta se defender das acusações e 121 conclui com a afirmação: “se vai atender uma criança, já cuida também do irmãozinho”.

Deixando de lado a objetividade da informação, fica evidente o teor crítico da notícia, com a oposição entre as duas partes: o relatório, que acusa a existência de postos de saúde “fantasmas” em

Ourilândia do Norte, e a declaração do prefeito, que nega tudo.

Essa amarga realidade, situada no limiar do absurdo, é transformada, por Moacyr Scliar, em ficção cômica, aproveitando questões essenciais levantadas pela reportagem, como a existência de postos de saúde “fantasmas”, ou seja, que só constam no papel; a assistência à população, com registros de atendimento forjados; a dificuldade para a localização do posto, que está registrado na zona rural mas funciona no prédio da prefeitura.

O insólito da situação dos postos de saúde fantasmas não poderia ser mais sugestivo para esse escritor, que é, sobretudo, médico preocupado com a saúde pública. O olhar sobre a saúde pública é um olhar revestido de preocupação social, que se acresce de uma crítica.

O título da crônica - Consultando no posto de saúde fantasma - coloca o leitor diante do mundo imaginário, para o qual ele é transportado no desenrolar da narrativa. Tempo e espaço não se definem no contexto desse mundo apresentado pela ficção, em que se coloca em 122 evidência a preocupação social com a saúde pública, através das conjecturas do narrador-observador. A crônica mostra como Scliar se posiciona, com humor crítico, diante do fato noticiado, como se pode observar já no início:

O primeiro problema para o paciente que quer consultar no Posto de Saúde Fantasma é saber onde se localiza. Para alguns estaria na Terra do Nunca, para outros na Ilha do Tesouro; alguns o colocam na Terra de Oz, outros, talvez mais irreverentes, Lá-onde-o-Diabo-perdeu-as- botas. De qualquer modo, a localização se inclui naquela categoria geral conhecida pelo rótulo de Lugar-Incerto-e- Não-Sabido, que com tanta freqüência figura nos editais de intimação da Justiça.

No seqüência da narrativa ficcional, escrita na terceira pessoa, o narrador explica, em forma de monólogo, como localizar e como consultar no Posto de Saúde Fantasma. Logo nas primeiras linhas, as letras maiúsculas para denominar o posto já supõem, ironicamente, que ele é uma imagem fantasiosa.

Para entender a localização do suposto lugar, seguindo as alusões do narrador, o leitor precisa trazer à memória determinados textos da literatura infantil clássica. Para tanto, recorre-se ao universo do maravilhoso, de onde os signos são captados e transferidos como doadores de sentido para a nova fabulação: a crônica.

O texto da crônica dialoga com esses outros, que lhe completam a significação. Tais textos reforçam a crítica e constituem um indício sugestivo, na medida em que são pistas apresentadas para que se 123 tente localizar, segundo a imaginação, o tal Posto de Saúde Fantasma. Com essas referências, Scliar serve-se da fantasia infantil para a sua construção narrativa e demonstra, com fina ironia, uma percepção da insensatez humana, já na esfera do tragicômico.

Assim, o narrador da crônica faz um jogo dinâmico com o leitor, remetendo-o a vários locais do imaginário infantil, como Terra do

Nunca, lugar onde morava Peter Pan, personagem do livro "Peter Pan" escrito pelo inglês James Matthew Barrie; Ilha do Tesouro, título do livro da autoria de Robert Louis Stevenson, que se refere a um lugar onde há um tesouro escondido; e Terra de Oz, onde morava o mágico de Oz, que alude ao livro “Mágico de 0z” de L. Frank Baum e W.W. Denslow. Como se pode comprovar, todos os espaços citados pertencem à ficção.

O narrador busca, de todas as maneiras, a concretização de um local fictício. A última tentativa, sugerida por ele, para que o doente encontre o tal posto é procurá-lo no popularmente desconhecido e longínquo Lá-onde-o-Diabo-perdeu-as-botas. A crítica se estende, ainda, à conhecida redundância do termo jurídico Lugar-Incerto-e-Não-Sabido, usado justamente quando o poder judiciário procura alguém arrolado em processo e não o encontra. Evidencia-se a ambigüidade instauradora do humor, uma vez que os lugares citados são os mais imprecisos possíveis, ou melhor, só se existem na imaginação, na fantasia. 124

Criam-se, então, três níveis de realidades interseccionadas: a “realidade propriamente dita” da notícia é transfigurada para a “realidade ficcional”, que se converte em “realidade maravilhosa”, transcendendo os limites do tempo e do espaço. Esses três níveis se fundem no humor de

Moacyr Scliar, que trata o absurdo fantástico com naturalidade cômica e amalgama “o que é” (real) com “o que deveria ser” (ideal), como se nota no fragmento a seguir:

O que é preciso para chegar ao Posto de Saúde Fantasma? Em primeiro lugar, naturalmente, é preciso estar doente e é preciso ser brasileiro. Como o sertanejo, o brasileiro é antes de tudo um forte; ele vai longe para buscar um remédio ou, pelo menos uma receita; ele agüenta horas numa fila; e ele, sobretudo, é portador de uma mágica e inesgotável confiança, que se aplica inclusive a lugares tão estranhos como o Posto de Saúde Fantasma.

Destaca-se aqui um recurso comum às narrativas scliarianas, em que o narrador pergunta 0 que é preciso para chegar ao

Posto de Saúde Fantasma? e ele mesmo responde, explicando que as condições mais importantes para se ter acesso ao tal posto de saúde são, respectivamente, estar doente (estado transitório) e ser brasileiro (estado definitivo). A ordem é importante para se compreender o sentido irônico de uma situação como essa que o doente, sendo brasileiro, é capaz de aceitar.

Isso se comprova com a afirmação Como o sertanejo, o doente brasileiro é antes de tudo um forte, paródia da expressão o 125 sertanejo é, antes de tudo, um forte, escrita por na segunda parte (“O homem") da obra Os Sertões, que trata da etnologia do povo brasileiro. É interessante ressaltar que, neste texto, essa é a única referência do narrador a uma obra nacional.

Fica evidente, na crítica da crônica, que o forte sertanejo brasileiro de Euclides da Cunha é o mesmo forte e corajoso doente brasileiro, portador de mágica e inesgotável confiança, que corre atrás de remédios e enfrenta filas enormes. Ele procura a sua identidade no contexto social brasileiro e tenta resgatar, com coragem, seus direitos de cidadão, até em lugares assombrados do imaginário popular, como se verifica no seguinte trecho:

Mas para lá consultar é preciso ter coragem. Porque se achar o Posto de Saúde Fantasma é difícil, entrar nele é ainda mais difícil. Ali está, recém-construído, mas já em ruínas, perdido em meio ao matagal.

No segmento acima, o paradoxo recém-construído, mas já em ruínas, além do sentido adversativo do conetivo mas, apresenta um tom de censura presente no advérbio de tempo já, o que demonstra a rapidez da deterioração do prédio, graças ao abandono das autoridades responsáveis.

A descrição do local impressiona porque reforça a idéia de uma construção não só abandonada mas até mal assombrada, principalmente pelo uso de expressões como perdido em meio ao matagal, 126 a porta apodrecida, rangido ominoso, teias de aranha e sapos coaxando pelos cantos, em que o autor destaca aspectos visuais e auditivos, que se complementam.

No simbolismo da linguagem, o doente se dedica a uma espera messiânica, e aceita tudo (engole sapos), enquanto confia em uma transformação mágica, para conseguir o que pretende.

No fragmento subseqüente, novamente uma pergunta ( Há quem atenda?) leva o leitor, de uma forma lúdica, para outro dilema a ser resolvido neste mundo insólito. Observe-se:

Há quem atenda? Sim, há quem atenda. Só que os doutores, diferente dos profissionais comuns, não vestem avental, mas sim um lençol branco com dois buracos para os olhos. E não se trata de Gasparzinho, o fantasminha camarada; o paciente tem de dizer imediatamente a que veio, mesmo porque o Posto de Saúde Fantasma, à semelhança de outras instituições desse tipo, desfaz-se como neblina ao sol forte tão logo rompe a aurora.

Para solucionar o problema do atendimento aos pacientes do posto de saúde, o fantasma, símbolo da ausência, torna-se presença sobrenatural com os médicos, chamados “doutores", que se apresentam vestidos com lençol branco com dois buracos para os olhos, como se estivessem disfarçados. Nesse ponto, a narrativa remete à personagem de desenho animado infantil Gasparzinho, o fantasminha camarada. 127

Depois desse retorno da memória à infância, o narrador parece que deseja trazer o leitor de volta à realidade social. A afirmação O paciente tem de dizer imediatamente a que veio conota a rapidez no atendimento aos doentes. Tal rapidez é ironizada na medida em que se enfatiza a inexistência do posto de saúde e também o descaso do poder público com a saúde do povo brasileiro.

A imagem de um Posto de Saúde Fantasma que desaparece ao romper do dia, é comparada a um sonho que se desfaz quando se constata a necessidade de “muita” coragem e persistência como requisitos indispensáveis a quem precisa se submeter à precária assistência da saúde pública brasileira, tendo que esperar muito para conseguir uma consulta.

Verifique-se o excerto a seguir:

Mas quem tem coragem e persistência vê os seus esforços recompensados. Porque o diagnóstico, no Posto de Saúde Fantasma, é feito rapidamente e sem ajuda de qualquer exame; e o tratamento é igualmente rápido e eficaz.

A situação de natureza cômico-grotesca é acirrada, especialmente com a ironia no comentário à precisão do diagnóstico e eficácia do tratamento no posto Fantasma. O tempo (Em dois minutos, o paciente sai do Posto Fantasma sem apêndice.), irreal para um atendimento adequado ao doente, tem duplo sentido: o grande número de pessoas que deve ser atendido em pouco tempo ou a superficialidade das consultas e 128 tratamentos em postos de saúde pública. Fica difícil desvincular um sentido do outro, tendo em vista a atual realidade brasileira.

As referências ao EIixir da Longa Vida, “slogan" de um remédio tônico fortalecedor muito popular na primeira metade do século, e a banhos na Fonte da Juventude, lugar tão procurado pelos primeiros viajantes que chegaram à América, evidenciam o desejo do ser humano de se conservar jovem e confirmam a aversão à idéia de transitoriedade da vida. Assim, os jovens continuariam jovens e os velhos rejuvenesceriam sem problemas de saúde no mundo do “faz-de-conta’ do Posto de Saúde

Fantasma.

O humor atinge seu ponto culminante, intensificando o teor crítico, neste trecho da crônica:

Muita gente consulta no Posto de Saúde Fantasma, como se pode ver pelo empoeirado Livro de Visitantes, onde constam observações de pacientes famosos: 'Jamais fui tão bem atendido ', diz uma delas. O autor? Ora, o Doente Imaginário do grande Molière. Três séculos depois de sua morte, ele continua consultando. E está cada vez melhor. Da imaginação, claro.

Citando o Livro de Visitantes, comumente colocado em exposições artísticas, o cronista lança dúvidas quanto à veracidade e à seriedade dos comentários aí escritos, quase sempre elogiosos.

Por outro lado, a crítica recorda que o problema de saúde pública é assunto muito antigo e ainda não resolvido, quando há a irônica 129 lembrança do Doente Imaginário, que afirma ter sido muito bem atendido

(Jamais fui tão bem atendido), porque é imaginário, claro.

Sabe-se que o Doente Imaginário (Malade Imaginaire) é personagem-título da última comédia de Molière, autor cômico francês do século XVII, apresentada no "Palais Royal" de Paris, em 10 de fevereiro de

1673. Molière morreu, enquanto encenava a quarta representação da peça.

O referido escritor se notabilizou por escrever comédias teatrais criando personagens-tipos reconhecidos até hoje, como este citado na crônica.

É interessante lembrar que Molière, assim como Scliar, buscava retratar as pessoas em situações limítrofes da natureza humana, com um tom crítico que incitava o riso. Assim, quando o narrador da crônica se refere ao doente que, três séculos depois de morto, ainda continua consultando, assinala uma ironia mordaz, na medida em que estabelece a comparação com os doentes forjados pelos postos de saúde fantasmas do Pará, mencionados na reportagem jornalística.

Como se observa, a alusão feita fundamenta a crítica social inserida no discurso da crônica e provoca o riso como gesto social que ressalta e reprime certo desvio, especial dos homens e dos acontecimentos10. Na crônica, o desvio ressaltado é o problema do mau

10 BERGSON, Henri. O riso: sobre a significação do cômico, 1987, p.50. 130 atendimento à saúde pública que parece se arrastar há séculos, sem uma solução adequada.

As últimas frases do texto - E está cada vez melhor. Da imaginação, claro - causam impacto no leitor, pois referendam o caráter fantasmagórico que alicerça a crítica à saúde, remetendo o leitor, mais uma vez, ao texto de Molière e reforçando, desse modo, a carga paródica que estrutura a crônica de Scliar. Através de tal procedimento, o texto salienta a necessidade de mudanças no setor da saúde pública brasileira, que, na atualidade, é um departamento de “ficção”, ou seja, não existe efetivamente.

Para atingir o cerne do problema, na transfiguração da realidade jornalística para a realidade ficcional, a palavra-chave é

“fantasma”, com toda carga de ambigüidade conotativa da linguagem literária, significando imagem fantasiosa, ou o que infunde terror, ou, ainda, ilusão.

Diante disso, instaura-se a comicidade vivida pelo homem em sociedade, uma vez que o riso depende do entendimento da força crítica implícita no sentido do vocábulo “fantasma”, no âmbito de saúde pública no Brasil, isto é, de sua relação com o contexto social.

No discurso da crônica, como já se observou, o narrador vai constituindo o relato através de perguntas que ele mesmo responde. 131

Apresenta, então, quatro problemas que devem ser solucionados para se conseguir consulta no Posto de Saúde Fantasma: saber onde está o posto, como chegar até lá, como entrar nele e como receber atendimento.

Assim, podem-se estruturar as unidades de sentido desta narrativa ficcional, da seguinte maneira: a tentativa de localização espacial do Posto de Saúde Fantasma, o persistente e corajoso doente brasileiro, os médicos, diagnóstico e tratamento no referido posto e o antigo Livro de

Visitantes. Essas unidades estão interligadas de tal modo que se pode fixar mentalmente o quadro imaginário da situação, compreendendo-se o teor crítico da crônica que provoca o riso amargo.

132

3. 3. 2 ALUGA-SE (crônica)

Família mora dentro de ponte em São Paulo (notícia)

134

Folha de São Paulo, 18 jan. 1996, c. 3, p. 2. 135

WASSERMANN, Rogério. Folha de São Paulo, 12 jan. 1996, c. 3, p. 4.

3. 3. 2 ALUGA-SE 136

Um problema social de extrema importância é a moradia, condição essencial para proporcionar o mínimo necessário à sobrevivência humana. Scliar chama atenção para esse fato ao escrever a crônica Aluga- se, publicada em 18 de janeiro de 1996. Esse texto se fundamenta na veracidade da notícia Família mora dentro de ponte em São Paulo, da autoria de Rogério Wassermann, veiculada na página 4 do caderno

“Cotidiano", da Folha de São Paulo, em 12 de janeiro de 1996.

A notícia, acompanhada de duas fotos (a escada de madeira e a entrada da moradia), relata o drama de uma família composta de quatorze pessoas, que mora no vão de uma ponte em São Paulo, como evidência do grave problema social vivido pelos chamados “sem-teto”.

O título da crônica - Aluga-se -, uma frase-anúncio, estabelece uma ligação analógica com as propagandas do caderno imobiliário dos jornais, em que são anunciados imóveis a serem alugados.

A crônica compara um vão de ponte a um apartamento. A atenção é despertada pelo absurdo que torna a situação amargamente cômica.

No diálogo intertextual com a reportagem, a crônica de

Moacyr Scliar apresenta a sua visão sobre o problema de moradia no Brasil e, para isso, ele retoma pontos importantes do fato noticiado, como o vão da ponte comparado a um apartamento; o número de pessoas que habita tal 137 espaço; a escada de acesso ao local; a falta de luz; o desejo de retornar ao

Nordeste e o medo de despejo.

A notícia serve de pretexto para um anúncio fictício, em que o espaço é reinterpretado simbolicamente, com o objetivo de realçar a luta do homem por um de seus direitos primordiais - a moradia - para encontrar seu lugar na sociedade. Eis a introdução da “crônica-anúncio”:

Local vago, recentemente liberado, e à completa disposição de novos inquilinos.

A descrição genérica do imóvel abre a crônica-relatório e destaca qualidades com significados redundantes como vago, liberado e à completa disposição, ou seja, inabitado. A partir de então, a descrição mais detalhada tem função metalingüística, uma vez que os enunciados que vêm a seguir expandem a idéia-núcleo “inabitado” contida na cadeia sinonímica.

O tom persuasivo é responsável pelo processo de inversão paródica da crônica. O narrador emprega uma seqüência de sete argumentos, de maneira cômica, em desfile de enumerações verdadeiramente carnavalizadas para caracterizar o espaço. Assim começa a sucessão de elementos particularizadores do “apartamento”:

Tem as seguintes características: 1) Espaçoso. Espaçoso, dissemos? Fomos modestos em nossa afirmação. Para que se tenha idéia das dimensões, uma família de 14 - repetimos - 14 pessoas habitava ali. Que apartamento, pergunta-se, receberia 14 pessoas?

138

Trata-se de um texto cujo teor ficcional está impregnado de comentários críticos. O discurso questionador, com repetições enfáticas, aborda primeiramente o tamanho dos imóveis atuais, que não teriam condições de acomodar quatorze pessoas de uma família.

Na notícia, o caráter crítico também é evidente, pois o vão da ponte é mostrado como “apartamento”. Tanto no texto da reportagem como no ficcional, há a censura à falta de moradia que faz com que quatorze pessoas vivam amontoadas, em um cubículo.

O segundo comentário se refere à altura do imóvel, como se pode conferir neste trecho:

2) Em andar elevado. Na verdade, é um andar único, mas é elevado. Poderia até ser descrito como uma cobertura, uma cobertura sui generis, pós-moderna.

Sabe-se que, quanto mais alto o andar, mais valor tem no mercado imobiliário, principalmente uma cobertura sui generis, pós-moderna. A ironia presente na expressão sui generis, referente à originalidade da construção, é completada com pós-moderna, denominação primeiramente usada na arquitetura e que propõe uma reavaliação crítica da arte. Assim, a imagem criada pela ironia provoca efeito cômico.

Na frase Na verdade é um andar único, mas é elevado, o conetivo adversativo mas acrescenta uma característica que enfatiza, em tom sarcástico, a posição superior do imóvel. Pressupõe-se que, embora 139 pertencentes a uma classe social inferior, os moradores estariam literalmente acima de tudo e de todos.

Na seqüência, criticando o fato de o Brasil gostar de imitar os Estados Unidos, o relator assegura satiricamente que os norte- americanos já descobriram que subir escadas é um exercício saudável.

Portanto, o acesso por escada não é desvantagem para o imóvel, ao contrário, pode ser uma qualidade, como se percebe em Não podemos garantir, mas é certo que em breve suas condições cardíacas melhorarão consideravelmente, em que a oposição entre dúvida e certeza acentua o caráter dúbio do significado da frase.

O terceiro item, valorizando a ótima localização do imóvel, está assim apresentado:

3) Bem localizada. Pinheiros, zona oeste: para quem quer morar em São Paulo, dificilmente haverá melhor localização.

Na seqüência da narração, observa-se uma preocupação em especificar a boa localização do imóvel (Pinheiros, zona oeste). A frase Até os ricos estão tendo de procurar casas e apartamentos em bairros afastados demonstra ser esse um problema que, ironicamente, incomoda qualquer classe social, pobres ou ricos, já que todos convivem no mesmo espaço urbano e procuram morar em lugares bem situados, com fácil acesso 140 ao transporte, como está salientado nesta quarta enumeração de características:

4) Perto de qualquer condução. Automóveis e outros veículos passam muito próximo - na verdade, a poucos centímetros da cabeça dos moradores.

Destaca-se, ainda, o paradoxo contido no comentário de que o barulho dos carros, que passam muito perto, é tão grande, que chega a hipnotizar os moradores do vão embaixo da ponte e provoca um sono tranqüilo. Vale ressaltar o sentido humorístico de tal afirmação, que se propaga por todo o texto, como nesta quinta série de elementos destacados:

5) Construção de primeira. Toda feita em concreto, com cálculo estrutural rigorosamente estabelecido por técnicos da prefeitura.

Ressalta-se a qualidade e a solidez da construção, através das expressões de primeira e em concreto, respectivamente, como crítica à falta de infra-estrutura não apenas na periferia, mas até em locais aristocráticos, onde ocorrem deslizamentos provocados por chuvas. O narrador frisa que a natureza é a responsável pelos estragos que atingem a todos indiscriminadamente (chuvas arrastam e soterram residências às vezes situadas em locais aristocráticos), num fenômeno análogo ao da carnavalização, em que não há diferenças de posições sociais, pois são rompidas as barreiras preestabelecidas.

A sexta especificação focalizada é: 141

6) Segurança. Não há como chegar lá em cima, a não ser pela escada, que, uma vez retirada, torna o local praticamente inexpugnável, como as antigas fortalezas medievais.

O narrador critica a insegurança em que vive o povo, mesmo com todos os recursos de que se dispõe nos tempos modernos, e defende um retrocesso, isto é, a volta ao sistema de proteção da época medieval, quando as fortalezas possuíam, como via de acesso ao portão, apenas uma ponte levadiça sobre um fosso cheio d'água. O humor do cronista se insinua no último período dessa parte, especialmente no realce à posição absolutamente vantajosa do vão da ponte, com relação à segurança do local.

A sétima é a melhor característica do referido imóvel, como o próprio narrador sublinha:

7) E agora vem o melhor: o aluguel. Grátis, absolutamente grátis. Nada de reajuste. Nada de taxas de condomínio. Nada de imposto predial. Nada de contas de água ou de luz e muito menos de telefone.

Aluguel, luz, água e telefone são absolutamente grátis, segundo a crônica, eivada de ironia, numa clara censura aos altos valores cobrados por esses serviços, necessários para proporcionar o mínimo conforto às pessoas. Nota-se aqui a repetição do advérbio absolutamente

(como no item anterior), para intensificar o valor das qualidades dos substantivos, especificadas pelos adjetivos que os acompanham: posição 142 absolutamente vantajosa (sexta característica) e aluguel ... absolutamente grátis (sétima característica).

O narrador-relator encerra seus argumentos da seguinte maneira:

Naturalmente, a ocupação não é garantida por tempo ilimitado (e o que na vida dura um tempo ilimitado?). Mesmo em caso de despejo, contudo, existe a possibilidade de uma remoção para o Nordeste. O Nordeste, com suas belas praias, seus verdes mares bravios. É preciso dizer mais?

Nesse trecho, a transitoriedade das situações da vida é questionada na pergunta do narrador: e o que na vida dura um tempo ilimitado?, referindo-se ao tempo indeterminado de ocupação do imóvel.

A proposta de remoção para o Nordeste atenua o sentido de despejo, bem como as expressões qualificativas belas praias e verdes mares bravios, que têm a mesma função de suavizar o problema da desocupação forçada do imóvel. Importa destacar, ainda, que verdes mares bravios remete às palavras iniciais do conhecido romance Iracema, de José de Alencar, que é uma exaltação ao Estado do Ceará: Verdes mares bravios de minha terra natal...

A menção à possibilidade de volta ao Nordeste é porque a família focalizada na notícia afirma que gostaria de voltar para lá, de onde saiu há um ano e meio em busca de vida melhor, em São Paulo. 143

A crônica finaliza com a interrogação É preciso dizer mais?, dando ênfase ao fato de saber quando parar para ser mais preciso em suas idéias. A declarada concisão é irônica e instaura o humor que leva à reflexão diante da relevância do problema social criticado pelo cronista.

Como se pode observar, as sete características do imóvel são enumeradas em ascendência valorativa, confrontadas com o texto-base da notícia, numa fusão do cômico com o sério, próprio da literatura carnavalizada. O imóvel é espaçoso, em andar elevado, bem localizado, perto de qualquer condução, construção de primeira, segurança e aluguel

... grátis.

É interessante notarem-se as referências ao número sete

(metade de quatorze), usado para salientar as “qualidades do imóvel”, um espaço fechado, destinado à moradia de uma família com “quatorze” pessoas (mesmo número citado na notícia). O sete totaliza as especificações positivas da moradia e também incorpora o aspecto negativo de ser habitação “improvisada”. Com isso, pressupõe um sentido dual, como reforço significativo do humor crítico.

Esta crônica mescla a descrição do imóvel com comentários de um narrador que faz perguntas ao leitor. Ademais, a narrativa, com ritmo dinâmico, tem a maioria dos verbos no presente, o que atualiza a situação problemática vivida pelas personagens. E, especialmente 144 aqueles verbos relativos às interferências do narrador, na primeira pessoa do plural (o “nós" parlamentar), que fala em nome dos outros e envolve o "eu" com os outros, levam o leitor a uma cumplicidade com o cronista.

Além do mais, a crônica Aluga-se é um texto de grande plasticidade, demonstrada pela abundância de adjetivos relacionados às qualificações do imóvel. Ora, o apelo visual, por si só, é como uma outra dimensão da narrativa, em que se salientam os aspectos positivos. No entanto, a ironia do cronista é intensificada justamente através dos exagerados atributos conferidos ao imóvel, em oposição à situação de penúria da realidade mostrada pela notícia.

A propósito, a crônica, fixando-se na palavra “moradia", apresenta, na introdução, as qualidades gerais do imóvel; enumera, a seguir, as características específicas e conclui com considerações sobre a possibilidade de despejo dos “inquilinos”, despertando o leitor para a dramática situação do povo brasileiro.

Assim, o texto analisado apresenta uma cosmovisão carnavalizada, em que o ser humano se move entre dois mundos, o real e o fictício, e mascara a realidade para poder sobreviver. Em vista disso, o sustentáculo do problema social abordado - a moradia - é o espaço, visto que ele é essencial para a exploração temática, nesta crônica.

144

3. 4 SOBRE O POVO JUDEU

145

3. 4. 1 A PAUSA QUE REFRESCA (crônica)

Coca-Cola kosher chega ao Brasil (notícia)

146

Folha de São Paulo, 4 abr. 1996, c. 3, p. 2. 147

NOTÍCIA

BARELLI, Suzana. Folha de São Paulo,1 abr. 1996, c. 3, p. 2

148

3. 4. 1 A PAUSA QUE REFRESCA

A crônica A pausa que refresca, publicada em 4 de abril de 1996, alude à reportagem jornalística Coca-Cola kosher chega ao Brasil, escrita por Suzana Barelli, em 1 de abril de 1996, na página 8 do caderno

“Negócios”, da Folha de São Paulo. A notícia é ilustrada por uma foto do rabino que participou das negociações para que o Brasil importasse a Coca-

Cola kosher, fabricada pelos norte-americanos, para ser consumida pelos judeus.

A notícia anuncia a chegada ao mercado brasileiro da

Coca-Cola kosher, importada dos Estados Unidos da América, a pedido dos membros da comunidade judaica paulistana. O refrigerante citado é fabricado de acordo com os preceitos judaicos, já que, durante os oito dias da Páscoa, os judeus são proibidos de ingerir alimentos feitos com grãos de trigo, centeio, cevada e aveia ou outros elementos que fermentam em contato com a água.

A relação intertextual da ficção com a reportagem jornalística faz com que páginas de inspiração divina, de um livro sagrado como a Bíblia, sejam amalgamadas à crônica. Tal relação se corporifica numa nova composição, paródica, com humor que assume a marca indelével do cronista Moacyr Scliar. Em virtude disso, o texto da ficção 149 provoca um clima lúdico que desafia o leitor a se movimentar de um texto para o outro, para acompanhar os diálogos superpostos entre notícia, crônica e Bíblia.

Assim, ao fazer a recriação literária, Scliar apropria-se de pontos fundamentais da reportagem jornalística, como a importação da

Coca-Cola kasher, a propagação do produto, a fórmula secreta utilizada no processo de fabricação do refrigerante e o fato de os judeus sempre perguntarem pela Coca-Cola para acompanhar o matzá, pão especial que deve ser consumido por eles, na época da Páscoa.

Além disso, o título da crônica A pausa que refresca, remete imediatamente à veiculação de uma propaganda do conhecido refrigerante Coca-Cola, muito apreciado atualmente por grande parte de consumidores.

A pausa pode ser entendida, no contexto desta narrativa em que elementos da cultura judaica são evocados, como uma parada para refletir e tentar solucionar o problema gerado pelo fenômeno da “diáspora", ou seja, a dispersão do povo judeu pelo mundo, no decorrer dos séculos, desde os remotos tempos bíblicos.

Nota-se, ainda, que o substantivo pausa é retomado pelo pronome relativo que, com o objetivo de enfatizar a sua função de sujeito da ação refresca, isto é, “a pausa refresca”. Em vista disso, manifesta-se a 150 ambigüidade de um processo irônico, em que o verbo refresca tanto pode significar “matar a sede” dos peregrinos judeus no deserto e “restabelecer as forças” deles para prosseguir viagem como “tranqüilizá-los” (no sentido mais popular de “refrescar a cabeça”) para enfrentar os problemas do exílio.

Na crônica analisada, a intertextualidade paródica se realiza na conjunção de semelhanças e diferenças, em que a recriação da notícia satiriza os recursos da propaganda para explorar o consumismo da sociedade. As semelhanças constituem os indícios da reportagem jornalística e dos textos bíblicos do Êxodo, no Antigo Testamento, reconhecidos na crônica, e as diferenças manifestam-se pelo teor crítico dessas semelhanças.

É interessante destacar que, no início, parte da narrativa da crônica é fechada por aspas, sugerindo, ironicamente, ser uma citação literal da Bíblia. Na realidade, Scliar está fazendo outra paródia, sobreposta à da notícia. Semelhante a toda narrativa bíblica, também na crônica, a fala do

Senhor está na segunda pessoa do plural, como se pode verificar:

“E disse o Senhor a Moisés no Egito: 'Durante sete dias comereis pães sem fermento. Já no primeiro dia fareis desaparecer o fermento de vossas casas. Podereis preparar-vos somente a comida que cada um comerá’."

151

O excerto acima retoma a seguinte passagem do Êxodo, capítulo 12, versículos 19 e 20, que explica a origem do pão ázimo, o matzá, para os judeus:

Durante sete dias, não haverá fermento nas vossas casas, pois quem comer pão fermentado será excluído da assembléia de Israel, seja adventício ou seja nativo. Não comereis pão fermentado; nas vossas casas, comereis pão sem fermento.11

Segundo a tradição judaica, fundamentada no Antigo

Testamento, durante a comemoração da Páscoa, os israelitas foram proibidos, por Deus, de comer qualquer alimento fermentado sob pena de serem expulsos de Israel. Essa tradição é mantida até hoje, principalmente pelos judeus ortodoxos.

A partir do segmento seguinte, a crônica muda o foco narrativo para a terceira pessoa e marca a presença do narrador-observador, que se mantém mero espectador dos fatos, sem interferir na narrativa, como se comprova:

E os israelitas saíram, levando a massa do pão ázimo e as fôrmas. E começaram a sua marcha pelo deserto. Caminharam três dias sem achar água. Por fim encontraram um lugar onde havia água, mas esta era amarga, por isso lhe deram o nome de Mara. E o povo murmurava contra Moisés, dizendo: 'O que vamos beber?' Moisés clamou ao Senhor, e este Ihe indicou certa planta que, jogada na água, tornou-a boa para beber.

11 BÍBLIA SAGRADA: edição da palavra viva. 1974, p.75. 152

Percebe-se que a ficção dialoga, ainda, com outra passagem bíblica do Êxodo, os versículos 22 a 25 do capítulo 15, que conta esse mesmo fato. Assim, o narrador conta a história da fuga dos judeus, do

Egito, quando foram liderados por Moisés que, seguindo o conselho divino, conduziu-os numa longa e penosa trajetória pelo deserto. Na crônica, tal como nas narrativas bíblicas, a pergunta ‘O que vamos beber?’ e outras falas estão sempre entre aspas, o que dá especial destaque aos diálogos.

As duas partes introdutórias da crônica preparam o desencadear do texto, em que o riso ambivalente inverte o sentido do núcleo temático da notícia e se instala na ficção cronística scliariana, mesclada com fatos bíblicos.

A seguir, os prazeres da vida, representados pelo refrigerante Coca-Cola, são ironicamente supervalorizados, em detrimento da água boa para beber, isto é, potável, que simboliza a regeneração e o renascimento do homem pela sua confiança em Deus, quando em situações críticas, como se observa:

Todos ficaram contentes, menos um. E este um dizia: 'Que graça tem em tomar água? Ainda mais com pão ázimo? Porventura haverá saco, mesmo preto, que agüente? Assim não dá, gente, assim não dá’. E Moisés foi ter com o descontente e perguntou-lhe: 'O que tens contra a água?’ E o descontente respondeu-lhe: 'Nada tenho contra a água, mas existe coisa melhor'. 153

E Moisés perguntou: 'Como sabes que existe coisa melhor?' E o homem respondeu: 'Porque tive uma visão do futuro. Eu olhava uma caixa mágica, chamada televisão, e nela eu via recomendarem uma bebida chamada Coca-Cola. Coca-Cola é a pausa que refresca. Nenhuma sede resiste a Coca-Cola, nem mesmo a sede do deserto'. E Moisés, desconfiado, perguntou: 'Mas essa tal de Coca-Cola é kasher? É permitida pela lei?' E o homem respondeu: 'Se não é kasher, a gente mexe na fórmula'.

O emprego de sucessivos “e", que, no trecho em destaque, aparece nada menos que nove vezes, estabelece um encadeamento de maior dinamismo, refletindo a vivacidade da narrativa oral, aqui transcrita. Do mesmo modo, isso se manifesta na seqüência de perguntas e respostas.

Outra observação interessante é quanto à fala de Moisés, que procura manter a distância respeitosa, como líder, usando a segunda pessoa do singular.

Nota-se, também, na contestação da personagem descontente, uma linguagem que marca a primeira perturbação no discurso até então desenvolvido na narrativa. Assim, a expressão da gíria popular

Porventura haverá saco, mesmo preto que agüente é complementada por

Assim não dá, gente, assim não dá, que também faz parte da linguagem popular e tem na repetição o reforço à não aceitação de uma ordem.

Intensifica-se, então, o humor através de uma estrutura dialógica mais aberta, que aproxima tudo e todos num mesmo plano, 154 embora a forma da pergunta de Moisés conote esforço em manter uma certa superioridade.

A visão que o peregrino descontente tem, como um sonho,

é aqui introduzida como uma possibilidade de outra vida, totalmente diferente daquela da vida comum. Essa outra vida se propõe com as imagens extraordinárias que se inserem no texto, a partir das expressões visão de futuro e caixa mágica.

Daí em diante, o diálogo intertextual liga o misticismo do tempo bíblico aos avanços dos tempos atuais, em que a propaganda tem forte apelo visual para chamar a atenção do povo e incentivá-lo ao consumo. É o discurso bíblico dialogando com o discurso da propaganda, em que o riso desconstrói a narrativa bíblica, dessacralizando-a.

Assim, a crônica retoma o discurso persuasivo do “slogan" da Coca-Cola - Coca-Cola é a pausa que refresca - para convencer Moisés das vantagens do refrigerante, que pode ser transformado em bebida kasher. O emprego do termo kasher caracteriza a força coercitiva da lei, à qual se sentem obrigados a seguir por convicção religiosa.

A propósito, a palavra kosher (assim escrita na notícia) ou kasher (como na crônica), ou ainda câsher12, delimita os produtos que devem ser consumidos pelos judeus, especialmente os ortodoxos, de acordo

12 SCHLESINGER, Erna. Tradições e costumes judaicos: uma viagem em torno do ano hebreu. 1951, p.257. 155 com os preceitos tradicionais que orientam a sua composição. A significação dessa palavra é apropriado para comer, limpo13, como explica a escritora judia Erna Schlesinger.

Quando o peregrino disse a Moisés que poderia mexer na fórmula, propondo a adaptação da Coca-Cola às exigências da lei, que deveria ser seguida por eles, configura-se uma crítica mordaz do cronista à falsificação de fórmulas químicas, tão comum hoje em dia, e também ao conhecido “jeitinho brasileiro”, que burla as leis para solucionar mais facilmente seus problemas.

Após a concordância de Moisés, todos os peregrinos passaram a beber só refrigerante Coca-Cola que, além de satisfazer as exigências religiosas, oferece vantagens para a saúde, sendo também diet, com baixas calorias.

A seqüência narrativa da crônica sofre uma ruptura que praticamente modifica a posição das personagens Moisés e o peregrino descontente, a partir da frase E Moisés não podia dizer nada, indicando que

Moisés foi obrigado a aceitar a situação criada pelo peregrino. A força da palavra do peregrino neutraliza a palavra do líder, que se torna, agora, impotente diante dos fatos. Isso porque, como já foi salientado, a Coca-

Cola, sendo kasher, está dentro dos preceitos exigidos pela tradicional lei

13 Ibid., p. 257. 156 judaica e, sendo dietética, obedece a requisitos tidos como necessários para uma vida saudável, no mundo moderno. O emprego dos qualificativos kasher e diet é importante para estabelecer essa ligação entre o tempo histórico bíblico e os tempos modernos, respectivamente.

Importa ressaltar, ainda, que, ao serem destruídas as barreiras da autoridade dominante, Moisés e o peregrino são colocados no mesmo patamar. Diante disso, instala-se, na narrativa, a perplexidade gerada pela liberdade cômica da situação às avessas, que mistura o misticismo religioso com o consumismo capitalista norte-americano, assim representados: a passagem bíblica e o apelo comercial.

A crônica provoca uma desestabilização temporal, ao inserir uma técnica moderna de propaganda no tempo antes de Cristo. Um produto norte-americano moderno, a Coca-Cola, é divulgado através de outdoors e incita o leitor a visualizar os tais painéis publicitários espalhados pela travessia do deserto, clamando a todos para amenizarem a sua sede com o refrigerante indicado. O emprego do vocábulo inglês outdoors, relacionado à Coca- Cola, produto representativo dos Estados Unidos da

América, sugere uma crítica ao domínio norte-americano no contexto mundial.

Assim, chega-se ao clímax da narrativa, com as imagens evocadas pelo narrador, as quais mostram a carnavalização do texto bíblico 157 que registra a passagem dos judeus pelo deserto em direção à Terra

Prometida, ou seja, Canaã, onde encontrariam a paz tão almejada.

Quase no final da crônica, há uma conotação irônica na referência à fidelidade de Aarão a Moisés, fiel companheiro, que observa os acontecimentos mas, após o desabafo de seu amigo (‘Só falta agora alguém ter uma visão de um produto similar e pedir para que seja incluído na bagagem dos peregrinos’), também se deixa envolver pelo espírito comercial do peregrino descontente. No entanto, ele não desafia abertamente o seu líder, como se pode conferir na última parte da crônica:

Aarão não disse nada. Mas pensou que 'Pepsi-Cola' seria um bom nome. A ser lançado no momento oportuno, claro”.

Evidencia-se, aqui, a disputa comercial que Aarão pretende encetar. Daí o silêncio, como estratégia de negócio, até chegar o momento oportuno para colocar o seu produto no mercado, com o objetivo de competir com o outro.

O enfoque narrativo sai do exterior social para o íntimo de uma personagem e o narrador mostra os pensamentos de Aarão, que incorpora o discurso do peregrino e planeja, sem dizer nada, fazer o mesmo em outra oportunidade. É o sonho da personagem, que pode se transformar em realidade, no momento certo. 158

As palavras finais da crônica, Pepsi-Cola seria um bom nome. A ser lançado no momento oportuno, claro, não encerram o assunto, mas deixam abertura para um recomeço e reforçam a noção de circularidade da narrativa, cuja palavra-chave é “kasher”.

Assim, pode-se afirmar que, na crônica, insinua-se uma rivalidade entre duas figuras autênticas e exponenciais dos primórdios do povo judeu (Moisés e Aarão) e dois produtos industriais modernos (Coca-

Cola e Pepsi-Cola), considerados extraordinários para matar a sede e que concorrem entre si no mundo todo. Seja como for, o texto bíblico, misturado ao da propaganda, corta o discurso da crônica em todas a direções e as personagens vivem situações inusitadas, em que Scliar privilegia o imaginário fantástico e apresenta um mundo às avessas, carnavalizado. Com isso, o cronista parodia fatos bíblicos já cristalizados na memória coletiva e cria uma espécie de caricatura verbal, que reforça a dinâmica do texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas.(...) Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas, - sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.

Antonio Candido

160

Este trabalho, em que são analisadas sete crônicas de

Moacyr Scliar publicadas no jornal Folha de São Paulo, teve como objetivo ressaltar o valor de um gênero literário cultivado por grandes escritores, mas depreciado por alguns críticos que o denominam pejorativamente

“gênero menor”.

Como se sabe, na moderna literatura brasileira a crônica representa um capítulo à parte, como gênero específico intimamente ligado ao jornalismo. Vinda da Europa, no século XIX, ela aqui evoluiu vestindo roupagem nova, mais brasileira. Alguns pesquisadores afirmam ser ela uma evolução do folhetim francês e outros, do ensaio inglês. Contudo, num ponto todos concordam: é um gênero importado, que sofreu adaptações no

Brasil, e incorporou uma identidade nacional.

Pode-se afirmar que a crônica se coloca entre a notícia jornalística e o conto, visto que ela alinha, no campo da invenção, uma série de fatos que caminham rapidamente para o desfecho, com aspectos descritivos, narrativos e argumentativos e, além disso, articula poucas personagens. Seu tamanho é reduzido e tanto deve despertar a curiosidade imediata do leitor, apelando para a originalidade e a surpresa, como flagrar o que é momentâneo, conferindo-lhe duração.

Destaca-se como importante, na crônica, o ponto de vista do autor como o foco narrativo que filtra os acontecimentos e restabelece a 161 dimensão dos fatos, na maioria das vezes com humor. Especialmente nas crônicas scliarianas, comprovou-se que o humor é inerente à criação literária, manifestando-se através do procedimento paródico. Scliar explora assuntos insólitos, ou constrangedores, do cotidiano veiculado pela notícia, para promover efeitos tragicômicos. Passa-se, através das crônicas, ao mundo do imaginário e, nesse transporte do real para o fictício, processa-se a carnavalização da literatura, uma inversão que funciona como crítica às ordens e valores predeterminados.

Como a palavra ficcional do cronista Scliar deriva do contexto específico da reportagem jornalística, dá-se, nela, a transformação dos elementos verídicos em componentes que apelam à verossimilhança. A voz da crônica é diferente da voz da notícia, mas ambas convivem dinamicamente. O cronista retira da notícia um aspecto temático e o transforma em ficção, instaurando, assim, um código novo, o literário. A reportagem provoca a criação artística e dá vazão às idéias do cronista, que consubstanciam e legitimam o trabalho ficcional paródico.

Em vista disso, na transfiguração da notícia em crônica, o ato criador manifesta-se também na relação dialógica com outros textos, ficcionais ou não, transcendendo o tempo e o espaço e possibilitando a renovação e a multiplicação de significados produtores de ambivalência simbólica. 162

Quanto ao leitor, cabe a ele participar, interagir com o cronista, numa intimidade suscitada pelo próprio gênero, o que leva ao riso e à reflexão simultâneos.

Em Scliar, o humor é identificado como humor judaico ou equivalente, conforme o escritor declara na entrevista anexada a este estudo. No entanto, reconhece-se que a designação “humor judaico” não é passível de conceituação, havendo, inclusive, outros tipos de humor semelhantes a esse que se convencionou denominar “humor judaico”. Pode- se afirmar, em última instância, que se trata de um humor essencialmente crítico, meio amargo, em decorrência do qual fatos e aspectos da vida cotidiana são analisados num tom irônico e escarnecedor, peculiar ao realismo grotesco e também à inversão carnavalizada.

Observou-se, ainda, que o humor presente nas crônicas analisadas, embora seja mordaz, é forma de contestação social e alerta para determinadas condições precárias que debilitam a condição humana, além de que referenda a tradição judaica, tão cara ao escritor e assumida por ele como um dos extratos culturais motivadores de sua criação.

As crônicas focalizadas neste trabalho tematizam problemas como a fome infantil, a educação no Brasil, a inversão de poder na sociedade, a subversão de valores estéticos consagrados, a saúde pública, a questão da moradia e, ainda, a da afirmação da identidade, aspecto que o 163 escritor sempre se empenha em ressaltar.

Para abordá-las, decidiu-se salientar, em cada crônica, uma palavra-chave, considerada o ponto de convergência dos principais sentidos das narrativas. Sendo assim, elegeram-se como elementos básicos geradores do discurso das crônicas os seguintes termos: alimento, escola, patroa, feiúra, saúde, moradia e “kasher”. Cada um deles constitui o eixo temático a partir do qual foram desenvolvidas as análises dos textos do escritor.

Neles, foram flagradas personagens de variados tipos, excêntricas, grotescas, ingênuas, etc., mas que desafiam normas e valores estabelecidos e, acima de tudo, questionam qualquer tipo de autoritarismo. São seres, em suma, marginalizados pela sociedade por não se adequarem aos sistemas convencionados pela mesma, aspecto que a arquitetura narrativa demonstra com toda poeticidade.

Vale assinalar, por fim, que este trabalho pretendeu demonstrar o caráter artístico, como forma de resgate, desse gênero cultivado pelo escritor Moacyr Scliar que, embora seja romancista, faz da crônica uma de suas principais metas literárias.

164

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 Textos analisados

1.1 Crônicas

SCLIAR, Moacyr. A escola das ruas. Folha de São Paulo. 12 jun.1997, c.3,

p.2.

______. Aluga-se. Folha de São Paulo,18 jan.1996, c.3, p.2.

______. A pausa que refresca. Folha de São Paulo, 4 abr.1996. c.3, p.2.

______. Consultando no posto de saúde fantasma. Folha de São Paulo, 14

dez.1995, c.3, p.2.

______. Feiúra não é desgraça. Beleza é. Folha de São Paulo, 3 ago.1995,

c.3, p.2.

______. Latindo pela vida. Folha de São Paulo, 21 nov.1996, c.3, p.2.

______. Patroas do mundo inteiro, uni-vos. Folha de São Paulo, 13

jul.1995, c.3, p.2.

1. 2 Notícias

AGÊNCIA FOLHA em Belém. Pará investiga postos de saúde fantasmas. 165

Folha de São Paulo, 11 dez.1995, c.3, p.2.

BARELLI, Suzana. Coca-Cola kosher chega ao Brasil. Folha de São Paulo,

1 abr.1996, c.2, p.8.

CARVALHO, Mário César. Verba de ração acabaria com fome infantil.

Folha de São Paulo, 18 nov.1996, c.3, p.10.

FOLHA CAMPINAS. Pai é acusado de tirar 4 filhos da escola para pedirem

esmola. Folha de São Paulo, 10 jun. 1997, c.3, p.3.

SANTIAGO, Vandeck. ‘Maria Basculho', 26, é eleita a mulher mais feia de

Pernambuco. Folha de São Paulo, 31 jul.1995, c.3, p.1.

SOUZA, Carlos Alberto. Patroa é acusada de roubar empregada. Folha de

São Paulo, 7 jul.1995, c.3, p.3.

WASSERMANN, Rogério. Família mora dentro de ponte em São Paulo.

Folha de São Paulo, 12 jan.1996, c.3, p.4.

2 Outras obras mencionadas

ALENCAR, José de. Obra Completa: Crônica. Rio de Janeiro: José

Aguilar, 1960, v.4.

ANDRADE, Carlos Drummond de. O artista como espião da vida. Jornal

do Brasil. Rio de Janeiro, 28 fev. 1980, Caderno B. p.7.

ARISTÓTELES. Arte Poética. In: ___. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de

Janeiro: Edições de Ouro, 1969, p. 277-351. 166

ARRIGUCCI JR, Davi. Fragmentos sobre a crônica. In: ___.Enigma e

Comentário: Ensaio sobre literatura e experiência. São Paulo:

Companhia das Letras, 1987, p.51-66.

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SCLIAR, Moacyr. A condição judaica: das Tábuas da Lei à mesa da

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VILAS, Santiago. El humor y la novela española contemporánea.Madrid:

Guadarrama, 1968.

ANEXOS:

170

Anexo A - ENTREVISTA COM MOACYR SCLIAR

Londrina, 10 de maio de 1997.

1. Como o escritor Moacyr Scliar avalia o gênero crônica? E a crônica no Brasil? 2. Como define a sua produção literária como cronista dotado de um humor especial? 3. Na escolha das notícias que dão origem às crônicas, pode-se dizer que você busca o caráter mágico-realista que já está nelas impregnado? Ou há algum outro critério especial? 4. O médico de saúde pública exerce importante função social. E o cronista? 5. Qual a relação do cronista Moacyr Scliar com seu local de origem (Porto Alegre)? 6. Certa vez o escritor norte-americano Bernard Malamud afirmou que “judeu é metáfora de homem”, uma vez que “todos os homens são judeus, a partir do momento em que a tragédia é universal”. E você, filho de imigrantes judeus, concorda com Malamud? 7. Pode-se apresentar Moacyr Scliar como judeu-gaúcho-escritor-médico sanitarista? Ou você prefere outra ordem de apresentação?

Muito obrigada pela atenção.

171

172

173

Anexo B - OBRAS DE MOACYR SCLIAR ∗

1 Conto

O carnaval dos animais. Porto Alegre: Movimento, 1968.

A balada do falso Messias. São Paulo: Ática, 1976.

Histórias da terra trêmula. São Paulo: Escrita, 1976.

O anão no televisor. Porto Alegre: Globo, 1979.

Os melhores contos de Moacyr Scliar. São Paulo: Global, 1984.

Dez contos escolhidos. Brasília: Horizonte, 1984.

O olho enigmático. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

A orelha de Van Gogh. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

O amante da Madonna. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.

Os contistas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

Histórias para (quase) todos os gostos. Porto Alegre: L&PM, 1998.

∗ A editora é sempre a da primeira edição. Em edições posteriores, pode ter havido alteração.

174

2 Romance

A guerra no Bom Fim. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1972.

O exército de um homem só. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1973.

Os deuses de Raquel. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1975.

O ciclo das águas. Porto Alegre: Globo, 1975.

Mês de cães danados. Porto Alegre: L&PM, 1977.

Doutor Miragem. Porto Alegre: L&PM, 1979.

Os voluntários. Porto Alegre, L&PM, 1979.

O centauro no jardim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

Max e os felinos. Porto Alegre: L&PM, 1981.

A festa no castelo. Porto Alegre: L&PM, 1982.

A estranha nação de Rafael Mendes. Porto Alegre: L&PM, 1983.

Cenas da vida minúscula. Porto Alegre: L&PM, 1991.

Sonhos tropicais. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

A majestade do Xingu. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

175

3 Ficção Juvenil

Cavalos e obeliscos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981.

Memórias de um aprendiz de escritor. São Paulo: Companhia Editora

Nacional, 1984.

No caminho dos sonhos. São Paulo: FTD, 1988.

O tio que flutuava. São Paulo: Ática, 1988.

Os cavalos da República. São Paulo: FTD, 1989.

Prá você eu conto. São Paulo: Atual, 1991.

Uma história só prá mim. São Paulo: Atual, 1994.

Um sonho no caroço do abacate. São Paulo: Global, 1995.

O Rio Grande farroupilha. São Paulo: Ática, 1995.

Câmera na mão, “O Guarani”no coração. São Paulo: Ática, 1998.

4 Crônica

A massagista japonesa. Porto Alegre: L&PM, 1984.

Um país chamado infância. Porto Alegre: Sulina, 1989.

Dicionário do viajante insólito. Porto Alegre: L&PM, 1995.

176

Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar. Porto Alegre: L&PM,

1996.

5 Ensaio

A condição judaica. Porto Alegre: L&PM, 1987.

Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM,

1987.

Cenas Médicas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1988.

Se eu fosse Rotschild. Porto Alegre: L&PM, 1993.

Judaísmo: dispersão e unidade. São Paulo: Ática. 1994.

Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.

A paixão transformada: história da medicina na literatura. São Paulo:

Companhia das Letras, 1996.

177

GUIMARÃES, Lealis Conceição. Do fato ao texto literário: as saborosas crônicas de Moacyr Scliar. Assis. 178p. Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Ciências e Letras, câmpus de Assis, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho".

RESUMO

Esta pesquisa surgiu da leitura das crônicas do escritor contemporâneo Moacyr Scliar, publicadas no jornal Folha de São Paulo, no período de 16 de março de 1995 a 28 de agosto de 1997. Tem, portanto, como objeto, matérias do gênero "crônica", ou seja, narrativas comprometidas com a análise da realidade e voltadas para a reflexão do leitor. Trata-se, assim, de um estudo comparativo que visa a desvelar o processo de recriação paródica nas crônicas de Moacyr Scliar, para expor a forma como o autor trabalha literariamente os fatos veiculados por notícias jornalísticas. Transformadas em crônicas, elas adquirem novas significações e direcionamentos no âmbito da invenção ficcional, provocando efeitos tragicômicos que levam o leitor ao riso reduzido.

Palavras-chave: Crônica; notícia jornalística; humor; paródia; Moacyr Scliar.

178

GUIMARÃES, Lealis Conceição. From fact to literary text: Moacyr Scliar’s savory chronicles. Assis. 178p. Master’s thesis - Letters - Faculdade de Ciências e Letras, at Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

Abstract

Reading the chronicles written by Moacyr Scliar, a contemporary Brazilian writer, brought about this research. Moacyr Scliar’s chronicles are published in the paper Folha de São Paulo and we selected the chronicles from March 16, 1995 to August 28, 1997 for analysis. His chronicles present analyses of the complex social reality demanding from the reader some complex processes of reading. Scliar selects news which are far from our common sense, and then he represents them in a fictional world where the tragic and comic effects make the reader chuckle. This work is a comparative study between the news and the chronicles aiming to reveal the parody recreation by Moacyr Scliar’s chronicles and how the writer takes the facts from the news to put them into a literary form.

Keywords: Chronicle; news; humour; parody; Moacyr Scliar.