GARRINCHA: GÊNIO OU NÃO CIVILIZADO?

Miguel A. de Freitas Jr. (UEPG) - Grupo de Estudos Esporte, Lazer e Sociedade - [email protected]

Resumo

O objetivo deste artigo é realizar uma análise sociológica da biografia de Garrincha. Para isto, bus- cou-se subsídios metodológicos no estudo realizado por Norbert Elias quando ele analisa a vida de Mozart. Garrincha foi um atleta que durante toda a sua trajetória viveu a tensão entre a assimilação de um processo civilizacional e a expressão dos seus instintos mais íntimos, isto resultava em repre- sentações quase opostas entre o jogador e o homem. Analisá-los como parte de um mesmo indivíduo e as suas relações figuracionais, é um excelente exercício teórico que permite compreender melhor suas atitudes dentro e fora de campo. De certa forma revelando muitos fatores mal resolvidos na sociedade brasileira, entre os quais destacam-se: a constante busca pela definição de sua identidade; a dificuldade em aceitar o negro e o embate entre o tradicional e a modernização forçada. Palavras chave: Garrincha; análise sociológica; processo civilizacional.

INTRODUÇÃO Grande parte da produção teórica de Norbert Elias está centrada na análise de objetos empíricos que até então apresentavam pouca relevância social e acadêmica, mas que após o olhar privilegiado deste autor tornam-se temas de larga investigação científica. Quando Elias resolve trabalhar com a biografia sociológica de Wolfgang Amadeus Mozart, esta situação não é muito diferente, pois este foi um indivíduo que socialmente fora desprezado, chegando ao sucesso somente após a sua morte, pois durante a vida ele quis viver à frente do seu tempo e não aceitou grande parte das imposições sociais externas, ou seja, viveu a tensão entre a aqui- sição de um processo civilizador e o despertar de seus instintos não civilizados. Ao realizar este estudo de caso, o autor nos mostra a relação vivida entre pai e filho que buscavam a realização de suas necessidades. Apresentando uma forma diferenciada de trabalhar com a biografia, até então consagrada por destacar os fatos significativos de grandes personagens, Elias chama a atenção para a necessidade da análise da relação entre o eu e o ele, ou seja, da forma que o indivíduo se percebe e a forma que ele é percebido pelos outros. Utili- zando o método configuração da interpendência, o autor analisa o indivíduo à partir das rela- ções que ele mantém com as pessoas daquela configuração. Porém, faz o seguinte alerta:

Ninguém pode pretender hoje em dia responder a pergunta de como chegou a existir um talento tão extraordinário quanto o de Mozart. Mas é possível definir a questão de maneira mais clara, e indicar direções em que se pode encontrar as respostas. Tam- bém neste aspecto, o caso individual tem significância paradigmática. Interessa a to- dos de algum grau, a questão de como surge um talento criativo singular1. Pautado nestas indicações, busca-se neste artigo analisar a trajetória de uma figura em- blemática do futebol brasileiro, que viveu o dilema entre ser um jogador talentoso e um indi- víduo sem a formação social necessária para alcançar o sucesso que alguns de seus colegas acabaram vivendo, mesmo estes jogadores sendo considerados menos talentosos do que Ma- nuel dos Santos, ou como ficou imortalizado nos anais da história: “Garrincha2”. Garrincha é um caso singular no futebol brasileiro, que atinge o ápice da sua carreira em um momento em que o Brasil vivia a tensão entre um processo de modernização acelerada e a dificuldade de libertar-se das suas tradições patronais e oligarquicas. Desta maneira, é pos- sível perceber na trajetória da vida deste indivíduo a constante luta contra as coerções externas para formar o homem civilizado e a manutenção de valores e atitudes comportamentais que seu eu julgava como adequado. Mozart pagou um “preço” bastante alto para este tipo de com- portamento, vivendo no ostracismo. Garrincha viveu intensamente cada momento de sua ale- gre vida, porém morreu em condições lastimáveis de miserabilidade.

GARRINCHA E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS (DES)CIVILIZADORAS

Natural da cidade de Pau Grande, cidadezinha localizada a 70 quilômetros do , ele era o quinto filho de Amaro Francisco dos Santos e Maria Carolina dos Santos. Seus pais nunca freqüentaram a escola e tão pouco se preocupavam que Garrincha o fizesse, até porque foram bastante ausentes na educação do filho. Garrincha ou Camisinha3, começou a ter os seus primeiros estímulos civilizatórios por volta dos 7 anos de idade, momento em que ele vai para a escola, inicia a primeira comunhão e recebe o seu primeiro par de sapatos. Elias indica que as primeiras experiências são fundamentais na incorporação do habitus e na assimilação do processo civilizador. Observando por este prisma, talvez seja possível começar a analisar Garrincha de maneira diferenciada, sem estabelecer os (pré)conceitos de quem olha o passado com os olhos do presente, e sem saber que:

1 ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 67. 2 Garrincha ou garricha é como no nordeste chamam a cambaxirra: um passarinho bobo, marrom, com o dorso listrado de preto, comedor de insetos e aranhas. Canta bonito, mas não se adapta ao cativeiro. Sua irmã Rosa, foi quem notou esta semelhança. Sobre a trajetória da vida de Garrincha o melhor estudo foi realizado por Ruy Cas- tro, que realizou uma exaustiva pesquisa teórica em jornais da época, documentos oficiais e principalmente en- trevistando cerca de 500 pessoas que conviveram com Garrincha, por isso ele foi a nossa referência central para a biografia deste jogador. Cf. CASTRO, Ruy. Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 3 Até por volta dos quatro anos de idade Garrincha era também chamado de Camisinha por andar dia e noite com a mesma camisinha de meia, babada pela chupeta pendurada por um barbante, as calças curtas caindo e o umbigo de fora. Cf. CASTRO, Ruy. Op cit. p. 27. ... nos primeiros anos, o pequeno Manuel cresceu em quase selvagem liberdade. Po- dia perambular horas pelas matas sem que dessem por sua falta. Mas outro nome pa- ra essa liberdade é desleixo: raramente alguém lhe cortava as unhas, escovava-lhe os dentes ou esfregava atrás das orelhas. Ninguém o mandava assoar o nariz ou pentear o cabelo. Seu cabelo era cortado em casa, de meses em meses, donde os anéis pretos e grossos que lhe desciam pelo pescoço. Mas, mesmo que deixado sozinho ao relento em noite de chuva, entregue a Tupã, Manuel teria sobrevivido4. Se esta vida considerada quase selvagem, parece ter prejudicado o seu processo civili- zador, ela acabou sendo fundamental na criação de um repertório motor que posteriormente foi fundamental para a criação do atleta Garrincha. Pois como indica Parlebás, a relação entre o praticante de uma determinada atividade esportiva e o meio em que ela é executada é funda- mental na forma que o indivíduo passará a tomar decisão. Este autor justifica o seu argumento mostrando que um indivíduo que aprende a praticar algo em um meio selvagem (não padroni- zado), mantém um diálogo diferenciado com o meio, pois se quiser ser bem sucedido terá que prever os obstáculos, devendo ficar constantemente alerta, pois a prática de atividades físicas neste meio exige um incessante ajuste corporal e técnico frente ao imprevisto5. Neste aspecto cria-se um certo paradoxo entre o social e o ambiente, pois ao mesmo tempo em que Garrin- cha não está tendo experiências que lhe possibilite introjetar o comportamento civilizado, ele tem a possibilidade de vivenciar experiências corporais distintas: O pequeno Garrincha não teve patinete, velocípede ou pistola d’água como muitas crianças do seu tempo. Também nunca o obrigaram a usar roupinha de marinheiro. Em compensação, teve todas as peladas com que sonhou e mais algumas. Nos anos 40, em que o futebol era como uma segunda natureza para toda a nação, o kit de so- brevivência de qualquer menino incluía uma bola. [...] Mas (Garrincha) não precisa- va ser dono da bola para garantir seu lugar nas peladas – já era melhor que todos os moleques da rua. Ter uma bola significava apenas, que agora, ele tinha o seu próprio brinquedo. Podia correr sozinho com ela, driblar árvores e chuta-la contra os muros sem depender dos outros6. Garrincha teve uma infância precária do ponto de vista social, o que acaba dificultando ligar a sua imagem como a de um símbolo de jogador brasileiro. Espera-se que o símbolo de jogador e que em alguns momentos é a identidade do próprio brasileiro, seja pautado em um modelo idealizado. Esta discussão é recorrente na literatura brasileira que historicamente tenta definir a identidade nacional e derrepente identifica-se com um indivíduo que praticamente não freqüentou a escola; que não era uma pessoa responsável (pois qualquer tarefa que lhe fosse atribuída era facilmente substituída pela prática do futebol); e que fisicamente era consi- derado um aleijado (pois tinha a perna esquerda arqueada para fora e a direita para dentro, ou seja, as duas eram tortas para o mesmo lado. É importante destacar que naquele momento isto já poderia ter sido corrigido se ele tivesse utilizado um aparelho ortopédico enquanto criança, mas não usou). Em síntese, o futebol jogado por Garrincha é muito distinto do seu eu, ou seja, a sua figura não é exatamente o tipo ideal de homem brasileiro, algo que fica explícito na crô- nica de Nelson Rodrigues:

4 Ibidem. 5 PARLEBÁS, Pierre. Perspectivas para una educación física moderna. Andalúcia – Espanha: Junta de Anda- lúcia, 1987. 6 CASTRO, Ruy. Op cit. p. 30. Garrincha não podia corresponder a um ideal de jogador de escrete, que a gente, in- clusive muda de quando em quando. Em 50 esse ideal era um Obdúlio Varela, “El Gran Capitan”. O que nos faltava, e nisso estávamos todos de acordo, era Obdulio Varela. Ainda hoje, com oito anos de atraso, há muitos entre nós que pensam ainda num “Gran Capitan”, que resolveria todos os nossos problemas num Campeonato do Mundo. Mas, se tivéssemos uns Garrinchas em 54, tudo seria diferente. Pelo Menos não tremeríamos em Berna. Garrincha jogaria contra os húngaros de 54 como se es- tivesse jogando contra um Madureira. Se um húngaro caísse sentado no chão depois de um drible dele ou se lhe tomasse a bola, a curiosidade seria a mesma. Perguntaria a Nilton Santos, e não por preferência e sim porque Nilton Santos jogava com ele e era um dos poucos que para ele não era João, quem era aquele João. Preferíamos, tal- vez outra noção de responsabilidade, outra compenetração, mas Garrincha nos dá a grande lição: é preciso aceitar o jogador como ele é7. As lutas individuais ainda foram pouco exploradas pelas Ciências Sociais, a experiên- cia de Garrincha é singular neste aspecto, pois é a história de um mestiço que conseguiu ven- cer em uma sociedade que ainda não havia se libertado totalmente do seu preconceito racial, estabelecido desde o seu descobrimento. Como indica Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil” esta mistura de raças que deu origem a cordialidade do brasileiro foi o motivo do nosso atraso.

O JOVEM GARRINCHA E O DESENVOLVIMENTO DO SEU PROCESSO CIVILI- ZADOR

Em 1947, aos 14 anos de idade Garrincha começou a trabalhar na Companhia América Fabril. Seu pai o convenceu a voltar a estudar, porém ele não chegou a ir até o final daquele ano letivo, seguindo o padrão de quase todos os operários da empresa em que trabalhava8. Desempenhava as suas funções na seção de algodão da empresa, serviço este bastante pesado, pois as fábricas inglesas instaladas no Brasil eram em sua maioria formadas por máquinas “su- cateadas” vindas da Europa. Como indica Castro: A seção de algodão da América Fabril era exclusiva dos meninos – talvez porque só eles se sujeitassem a trabalhar num anexo do inferno. Era um porão onde ficavam as cortadoras – as máquinas que recebiam e descaroçavam o algodão. Não se sabia o que era mais enlouquecedor: se o barulho de ensurdecer, o calor de quarenta graus ou o índice inconcebível de resíduo de algodão produzido pelas máquinas. Um canário não sobreviveria cinco minutos ali. Esse resíduo, chamado pelos operários de piolho, tinha de ser varrido e peneirado para ser reaproveitado como estopa. Garrincha era varredor9. Garrincha estava seguindo o caminho que seu pai queria, estava trabalhando e o pai não sabia que ele havia abandonado os estudos. Na fábrica ele faltava bastante, ou então ia dormir no meio das caixas de papelão, mas mesmo assim foi promovido no ano seguinte, pas- sando a exercer um trabalho braçal na seção de fiação. Tal ascensão não foi devido ao seu de- sempenho, mas por ele ser atleta juvenil do Sport Club Pau Grande, que tinha como presidente

7 RODRIGUES, Nelson. Garrincha o gran capitan. Revista Manchete Esportiva. Rio de Janeiro, 26 abr. 1958. 8 CASTRO, Ruy. Op cit. p.32. 9 Ibid. p. 33. o Sr. Franklyn Leocornyl, que também era chefe de Garrincha na empresa e, por ele ser um atleta de futuro promissor, acabava sendo protegido em seu ambiente de trabalho. Neste momento o futebol brasileiro já havia assumido o profissionalismo, logicamente que os atletas não recebiam os salários milionários que conhecemos hoje, mas tinham a possi- bilidade de sobreviver daquilo que ganhavam através do esporte. Destarte, outra forma de as- censão social foi através do esporte praticado dentro das empresas, algo comum até a década de 80, onde o funcionário acabava sendo contratado pelos seus dotes esportivos, tendo um tratamento diferenciado dos outros empregados por ser um funcionário-atleta, ou seja, por ser um indivíduo que além da produção fabril iria representar a equipe da empresa em competi- ções oficiais. No ano de 1948, Garrincha acabou sendo demitido da empresa, pois o seu comporta- mento era visto como um exemplo negativo para os outros funcionários. Ao dar esta notícia, seu pai o expulsou de casa. Esta é uma situação bastante interessante para que se perceba co- mo o Processo Civilizador é algo brutal, pois a sociedade impõe normas comportamentais que devem ser interiorizadas pelo indivíduo para que este não se torne um “outsider”. Durante as duas semanas que ficou nesta situação, dormindo na rua, jogando futebol durante o dia todo e comendo na casa de um amigo, ele não pode mais atuar pelo time de Pau Grande, uma vez que naquela configuração, era obrigatório o jogador estar trabalhando para poder participar da equipe. Visualiza-se aqui uma tensão entre o profissionalismo e o amado- rismo, pois não se aceitava o futebol como profissão, algo que foi combatido no Brasil durante muito tempo, mesmo após o futebol ter assumido o profissionalismo. Após este período Garrincha foi readmitido na empresa, seu pai acreditava que ele a- prendeu a lição e acabou aceitando-o novamente em casa. Voltando a trabalhar na seção de algodão, seu chefe foi autorizado a abonar as suas faltas e desta maneira em pouco tempo ele estaria indo para empresa somente para dormir. Foi neste momento em que Garrincha conhe- ceu os irmãos Jorge (Pincel) e Sebastião (Swing), os quais tinham muita coisa em comum: Nenhum dos três gostava de estudar, trabalhar ou submeter-se ao relógio de ponto ou de qualquer espécie. Pincel tinha jeito para o futebol e era lateral esquerdo; Swing não dava no couro. Mas os três descobriram que eram bons de copo [...] Naquele ambiente rural, não havia nenhuma restrição a uma criança beber e muito menos, fumar. Considerava-se que fumar era tão natural quanto respirar. [...] Garrincha já fumava antes de entrar na fábrica. Na verdade, começara antes mesmo dos dez anos e, naturalmente cigarros de palha10. Se voltarmos a teoria dos Processos Civilizadores, veremos que as atitudes individuais ou coletivas, são bastante significativas dentro uma determinada figuração sendo muitas vezes estranhas para alguém que não a compreende. Desta maneira, ao observarmos a vida de Gar- rincha temos dados empíricos que nos permitem perceber a sua relação com o alcoolismo, com a boêmia, com a vida desregrada... Obrigando-nos a exercitar uma análise dinâmica tendo como referência o estilo de vida “real” de um indivíduo criado em uma família pobre, que vivia em uma sociedade rural do Rio de Janeiro, de meados da década de 40 e que acabou ten-

10 Ibid. p. 36 do sucesso através do um projeto não planejado, no qual a sua habilidade para o futebol foi um fator decisivo. Este projeto teve início vários anos antes, mas nos interessa neste momento o ano de 1949, quando Garrincha e outros colegas de equipe passaram a representar a equipe do Cruzei- ro do Sul, de Petrópolis, atuando sempre aos domingos de manhã, momento em que um táxi ia busca-los e leva-los novamente após a partida, para que eles pudessem jogar no período da tarde pelo Sport Club Pau Grande. Esta situação foi até 1951 quando Garrincha foi contrato no papel para representar a equipe chamada Serrano, na liga Petropolitana de Futebol11, mas ele jogava por prazer, não se preocupava com o dinheiro, por isso após três meses de campeonato, acabou cansando-se de ter que ir para o Rio todo o final de semana e abandonou o Serrano e permaneceu jogando no seu time de coração. Pois as suas primeiras tentativas em equipes de maior porte não foram positivas: ... em 1950, às vésperas de seus dezessete anos, um diretos da fábrica insistira para leva-lo ao Vasco para treinar. Ou para tentar treinar. Os grandes clubes reservavam um ou dois dias da semana para testar os garotos que apareciam em busca de uma chance nos juvenis [...] No Vasco, o encarregado da triagem era o ex-jogador Volan- te, um argentino. Ao ver garrincha descalço e de meias entre a multidão de moleques na pista, perguntou porque não estava de chuteira. Garrincha respondeu tibiamente que a deixara em casa – não disse a Volante, mas tivera vergonha de aparecer no Vasco com a chuteira velha e rasgada que usava em Petrópolis. Achava que em São Januário lhe emprestariam uma. Volante dispensou-o ali mesmo: Sem chuteiras não treina. Garrincha diria depois que Volante olhou para suas pernas tortas e o chamou de aleijado. Mas ninguém, além de Garrincha, ouvi-o dizer isso – e os que conhece- ram Volante garantem que ele seria incapaz de tal grosseria12. Mais importante do que saber se é verdade ou não a fala de Volante, Garrincha nos revela neste momento a percepção de processos civilizadores, nos quais é importante a sua forma de se vestir, e por isso teve vergonha de suas chuteiras, bem como já se percebia como alguém fisicamente diferente. Dentro de campo, ele era consciente de que essa diferença apa- recia, porém o seu ele vivia em constante insegurança. Na seqüência teve outras tentativas frustradas no São Crsitóvão e no Fluminense, por isso resolveu que iria jogar somente no Sport Club Pau Grande. Esta situação começa a ser modificada em 1952, quando Araty, lateral direito do Bota- fogo vai para uma festividade em Pau Grande e acabou apitando um amistoso entre a equipe local e uma equipe de bancários da região. Em síntese, após ver a atuação de Garrincha Araty convidou-o para fazer um teste no Botafogo, entregando-o um cartão para que Garrincha o procura-se quando fosse a sede do clube em General Severiano. Araty ficou impressionado de tal forma que no Botafogo acreditavam que ele estava delirando:

... segundo ele, no interior do estado do Rio havia um ponta-direita de pernas com- pletamente tortas, que driblava como um demônio e era imarcável. Quem podia acre-

11 Por esta contratação Garrincha recebia trinta cruzeiros por jogo e mais o almoço, este dinheiro naquele momen- to equivalia a um dólar, mas este valor era proporcionalmente muito maior do que ele recebia por hora para traba- lhar na fábrica. Cf. CASTRO, Ruy. Op cit. p. 38. 12 Ibid. p. 40-41. ditar nisso? Era como se estivesse recomendando ao Botafogo o curupira ou o saci- pererê. E, se o sujeito era tão bom, porque nunca tinham ouvido falar dele? E que história era essa de pernas tortas? Os treinadores e dirigentes desconfiavam dessas bizarrices. [...] Mas uma pessoa acreditou em Araty e resolveu conferir [...] Ao fim do jogo, Salgado foi falar com Garrincha à beira do gramado: Você vai para o Bota- fogo comigo. Garrincha, que nunca vira aquele senhor, ouviu-o com educação, mas ao final desconversou. Disse que já tentara outros clubes do Rio e que não queria sa- ber mais disso. Perdia um dia de trabalho na fábrica, não o deixavam treinar e ainda o chamavam de aleijado13. Influenciado por seus chefes da empresa e pela nota de cem reais que recebera como sinal das boas intenções do “olheiro”, Garrincha vou procura-lo na terça-feira como haviam combinado. Até começar o treino nenhum dos juvenis havia lhe dado atenção, mas quando o jogo começou ninguém acreditava nas jogadas que aquele garoto de pernas tortas era capaz de fazer. A ponto de não precisar jogar o segundo tempo com os juvenis e ser convidado para voltar treinar com os profissionais no dia seguinte. De acordo com o relato de Castro, no dia seguinte Garrincha chegou no Botafogo no horário marcado (9 horas da manhã), tivera que sai de casa às seis e chegou para treinar com o aval do filho do Técnico que era responsável pela equipe juvenil. Ao vê-lo o técnico pergunta: “Você que é o craque do Araty? Garrincha ficou sem jeito. Sem esperar resposta, gentil entre- gou-o a seu auxiliar, o preparador físico Paulo Amaral: Esse é o craque do Araty – ponha ele contra o Nilton Santos”. Deixemos que o próprio Nilton Santos retrate o episódio: Então colocaram “aquele cara” todo torto e desengonçado na ponta direita. Não fiz muita fé. Quando ele pegou a bola fui logo desarmá-lo e ele, na maior desenvoltura do mundo, parecia até que jogava ali, enfiou a bola no meio das minhas pernas e foi buscar do outros lado. Nessa época, eu estava muito badalado no clube. Todos dizi- am que eu era o cobrão. Um cara todo torto fazer aquilo comigo é porque era bom. Falei logo: contratem o homem, não quero passar esse vexame no Maracanã cheio14. Novamente temos a diferenciação entre o eu e o ele, pois Garrincha sabia do que era capaz de fazer dentro de campo e colocou em prática ao ser testado. Porém, os indivíduos que faziam parte daquela figuração não acreditavam que alguém com aquelas características, seria capaz de ser um jogador de futebol talentoso. É interessante perceber que Garrincha já cum- pria horários, ou seja, estava modificando o seu comportamento devido a interiorização de determinadas condutas sociais. Não obstante, Elias alerta para a permanência desta dicotomia entre o homem e o artista(jogador): A razão pela qual a dicotomia romântica sobreviveu tão tenazmente é clara. É um re- flexo do sempre renovado conflito entre os civilizados e sua animalidade, que até a- gora nunca foi adequadamente resolvido em todos os estágios do desenvolvimento. A imagem idealizante do gênio é um dos elementos que os indivíduos agrupam em nome da espiritualidade contra o eu corporal. Mas, com isso, desloca-se o campo de batalha. A divisão resultante, na qual se colocam em escaninhos separados o mistério atribuído a um gênio, de um lado, e sua humanidade comum, de outro, expressa uma

13 Ibid. p. 52. 14 SANTOS, Nilton. Minha bola, minha vida. Rio de Janeiro: Gryphus, 2000. p.100. desumanidade profundamente enraizada na tradição intelectual européia. Trata-se de um problema civilizatório não resolvido15.

SELEÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL: A TENSÃO DE PROCESSOS CIVILIZA- DORES

Partindo das indicações elisianas, pode-se afirmar que a trajetória do indivíduo não é suficiente para que se possa compreender a sua mudança de comportamento.Tal atitude meto- dológica só se torna possível depois que o pesquisador consegue compreender a interdepen- dência da figuração que o indivíduo está presente. Escolheu-se a Copa do Mundo de 1958 co- mo exercício empírico, por ela ter sido a primeira grande conquista internacional do futebol brasileiro, que teve como seus protagonistas o negro Pelé e o mestiço Garrincha. Neste momento o futebol foi um elemento fundamental para a internacionalização do Brasil. Servindo inicialmente como um catalisador da formação do ideário nacional, apresen- tando um brasileiro que não se aceitava e uma crônica esportiva que tentava mostrar as carac- terísticas brasileiras através de uma diferenciação dos europeus. Cria-se um certo paradoxo, pois no futebol todos os países do mundo gostariam de ser como os brasileiros, porém os bra- sileiros invejavam os europeus, por não se considerarem civilizados. Mário Filho atribui este fato como sendo “Complexo de ser Brasileiro”, e isto impedia que ele assumisse a sua identi- dade. É importante perceber que a década de cinqüenta foi um momento em que o futebol brasileiro alcança a sua maturidade e as tradições deste esporte passam a ter uma dimensão mais ampla. Pois quando a seleção nacional conquista o título na Suécia, cria-se uma renova- ção das tradições futebolísticas, que podem ser melhor visualizadas através das várias crônicas escritas por Nelson Rodrigues, onde ele demonstra que deixou-se de lado o complexo de Vira- Latas que o brasileiro sofria quando se defrontava com o estrangeiro e graças as atuações de Garrincha e Pelé, o brasileiro transforma-se em um “Moleque Genial”. A modernização do futebol brasileiro seja na sua integração nacional e/ou na organiza- ção da seleção brasileira, tem início no período JK. Este fato fica explícito na infra-estrutura montada para a seleção brasileira poder participar da Copa de 58. Pela primeira vez na história deste selecionado foi utilizado um grupo multidisciplinar de profissionais, que além de contar com os “especialistas da bola”, também teve a participação de um supervisor, uma equipe mé- dica e um psicólogo, além de um dentista que tratou aqui no Brasil antes da Copa, todos os jogadores convocados. Neste momento o futebol já não era nenhuma novidade nos centros urbanos e periféri- cos, mas era um fenômeno social que mantinha as tradições da cultura popular em uma socie- dade que ao buscar a modernidade estava novamente sendo invadida pelos padrões de vida europeus. Mesmo tendo modernizado a sua estrutura, o futebol ainda era uma forma de manter a autenticidade brasileira. Garrincha pode ser visto como a expressão desta manutenção:

15 ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 55. Na seleção de 1958, vivia brincando com todos. Ele segurava o braço da gente e di- zia: “Ta preso”. Soltava e dizia: “Ta solto”. Isso o dia inteiro. Se notasse que você ia se aborrecer, aí é que ele fazia mesmo. Garrincha era diferente de tudo e todos. Já pensaram um ponta, em dez tentativas de dribles nos seus marcadores, passar por oi- to? Como dizia Zezé Moreira: “O Garrincha era sem esquemas. No campo, não adi- antava orienta-lo, tinha de deixa-lo jogar do jeito que ele sabia. Tudo que fazia em campo era nato. Ninguém o ensinou, quem tentasse se dava mal. Zezé [...] reclamava que o Garrincha driblava. Para ele, às vezes sem necessidade. Tentou ensina-lo a fa- zer diferente, usando toda a didática que sabia: colocou no campo uma cadeira da Brahma. Chamou o Garrincha e disse: “Faça de conta que essa cadeira é o seu adver- sário. Só tem uma, só tem uma, não tem mais nenhuma na sua frente, você está ven- do? Então, vai driblar a cadeira e cruza para o gol. Você vai fazer a mesma coisa no jogo: driblar o adversário uma só vez e cruzar, Entendeu? Mane olhou e respondeu: “Entendi”. “Então faça. Tragam a bola”, determinou o treinador. Garrincha pegou a bola, driblou a cadeira em círculo, meteu a bola no meio das pernas da cadeira e só aí cruzou para o gol. Zezé desistiu16. É possível perceber que Garrincha vivia a dificuldade de incorporar “hábitos civiliza- dos”, dentro e fora de campo. A situação parece ter sido pior fora de campo, pois ele viveu uma constante luta contra o alcoolismo e a boêmia, algo que não era bem visto socialmente, principalmente para um atleta que servia de exemplo para uma geração. Provavelmente este é um dos motivos pelo qual Garrincha caiu no ostracismo, pois a imagem do homem era muito diferente da imagem do jogador. Dentro de campo esta situação foi melhor aceita, pois uma das características do esporte de alto rendimento é o resultado e Garrincha foi fundamental para que a seleção Brasileira obtivesse resultados positivos. Mesmo não tendo passado nos testes psicológicos, não tendo assimilado a necessidade de jogar taticamente, não aceitando a idéia de não driblar e principalmente não se preocupando com o adversário, ele conseguiu transformar todas estas adversidades em fatores positivos. Como indica Mário Filho: Pode-se dizer que uma coisa nada tem a ver com a outra. Tem muito. A Rússia é a Rússia. Se o escrete brasileiro não estivesse bem, que graças a Deus está, o Sputnik poderia ter uma influência decisiva no jogo. Os jogadores, na hora da realidade, po- diam lembrar-se de que os russos eram senhores de meio mundo, que tinham lançado três Sputniks, que podem lançar foguetes intercontinentais com uma bomba de hi- drogênio no cone e tudo isso atrapalha. Só não atrapalhou porque o escrete brasileiro jogou o jogo dele, para jogar de tabela, por nós. E, por felicidade, se não tínhamos o Sputnik, tínhamos Garrincha, que nem toma conhecimento dessas coisas. Para Gar- rincha, um russo, mesmo que seja o próprio Kruschev, se entrar em campo e jogar contra ele, é um João como outro qualquer. Ele não distingue um russo dum inglês, um inglês, dum panamenho. Tudo é João. O que Garrincha quer é fazer, fazer as coi- sas dele. E desta vez, Feola estava iluminado. Chamou os jogadores e disse: Joguem o que vocês sabem. E mais não disse, no que fez muito bem. Daí a tranqüilidade de um Garrincha, que podia fazer o que quisesse17.

Além disto, a questão racial ainda era um problema para o processo civilizacional bra- sileiro, pois o negro era considerado um jogador talentoso, mas não apresentava as condições emocionais necessárias para suportar a pressão presente em uma partida decisiva:

16 SANTOS, Nilton. Op cit. p. 103-104. 17 RODRIGUES, Mario. O confronto Brasil X Rússia. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, p. 6, 17 jun. 1958. Nunca a ciência pesquisara tão fundo para descobrir o porquê de o time brasileiro ter bons jogadores, mas não conseguir se superar em campo, não conquistar nenhum tí- tulo mundial. Será que os nossos atletas eram covardes? Relatórios médicos foram feitos, sigilosamente, para a CBD. Chegaram à conclusão de que o problema brasilei- ro estava na alma dos jogadores, que eram muito nostálgicos, sentiam muita falta de casa, da comida, principalmente os negros, que eram emocionalmente mais instáveis. Portanto, o time na estréia da Copa deveria ser o mais branco possível. [...] Conforme os relatórios determinavam, o time que estreou contra a Áustria foi [...] Mas escuri- nhos, só Didi e Dida porque eram de pele mais clarinha que seus reservas Pelé e Mo- acir18. A utilização do esporte como um meio de representação de um regime político ideal, foi típico dos governos autoritários. Porém, com trajetória e objetivos bem diferentes dos vi- venciados no Brasil, de qualquer forma entende-se que o futebol acabou sendo um catalisador para auxiliar na criação de uma imagem de um país vencedor e na resolução dos problemas políticos internos, onde se encontrou no esporte a possibilidade da união das massas em torno de um objetivo comum, a vitória da nação, a vitória do brasileiro, a afirmação do nacional frente ao estrangeiro e principalmente a afirmação do nacional frente ao próprio nacional. Es- tes fatos foram possíveis graças a tensão de um processo modernizador tradicional, que por um lado organizou a estrutura da comissão técnica, mas por outro lado teve que aceitar que qualquer Processo Civilizador sofre desvios e que estes desvios, não são necessariamente ru- ins, pois de acordo com esta teoria este é um processo cego, que não é planejado antecipada- mente e parece que Garrincha entendia isto como ninguém.

GARRINCHA: A GENIUS OR A NON-CIVILIZED?

Abstract

The objective of this article is to carry out a sociological analysis of Garrincha's biography. Therefore, the methodological framework was based on the study developed by Norbert Elias in which he analyses Mozart's life. Garrincha was an athlete that throughout his trajectory lived the tension between assimilation of a civilization process and the expression of his most intimate instincts; this resulted in almost opposite representations of the player and the man. Analyzing them, as part of the same individual and their figurative relations, is an excellent theoretical exercise that permits better comprehend his attitudes inside and outside the football pitch. In this way several unresolved factors in the Brazilian society are revealed, among which are: the constant search for the definition of his identity; the difficulty to accept the black people, and the constant fight between the traditional and the forced modernization. Key words: Garrincha; sociological analysis; civilization process Referências

CASTRO, Ruy. Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

18 SANTOS, Nilton. Op cit. p. 75-75. ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. ______. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. PARLEBÁS, Pierre. Perspectivas para una educación física moderna. Andalúcia – Espanha: Junta de Andalú- cia, 1987. RODRIGUES, Mario. O confronto Brasil X Rússia. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, p. 6, 17 jun. 1958. RODRIGUES, Nelson. Garrincha o gran capitan. Revista Manchete Esportiva. Rio de Janeiro, 26 abr. 1958. SANTOS, Nilton. Minha bola, minha vida. Rio de Janeiro: Gryphus, 2000.