CRISTINA PADIGLIONE

A TV virou refém do tal padrão

CRISTINA PADIGLIONE é jornalista e editora dos . suplementos Telejornal e Estadinho,O Estado que circulam de S. Paulo no jornal

102 REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 102-109, março/maio 2004 verno não é o não é muito bom, em que es

ax Nunes). “Num país em que o dinheirTV, que é uma das nossas melhor o ensino não é muito bom, em que até o go

muito bom, por que a

coisas, teria que ser maravilhosa?” (M

Atende por Pânico na TV o pro-

grama cuja fama, entre os caçulas

da televisão atual, cresce mais rá-

pido, tanto no popular boca a boca

como entre os críticos. Ao fim de

2003, antes que completasse seu

primeiro aniversário na telinha,

pela também caçula RedeTV! (ex-

tinta Rede Manchete), o Pânico na

TV foi eleito o título revelação do

ano em TV pelos membros da As-

sociação Paulista dos Críticos de

Arte (APCA). Dono de uma inova-

dora veia de deboche, o Pânico

sabe satirizar especialmente a te-

levisão e tira bom proveito dos ines-

gotáveis elementos fornecidos pela

atual programação. Até seria o caso

de se louvar, finalmente, a capaci-

dade do veículo em produzir novas

REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 102-109, março/maio 2004 103 idéias, não fosse este (e daí a discriminação vos programas. Os Normais, primeira ex- “TV” estampada no título) um programa periência bem-sucedida de adaptar para o originário do rádio. Há dez anos no ar pela gosto da massa brasileira a fórmula das Jovem Pan 2 (FM), o produto só é mesmo séries que fazem tanto sucesso nos Estados uma revelação para a TV. Cinqüenta e três Unidos, estreou sob a divulgação de que anos depois de dar o ar da graça no Brasil, seria um programa com apenas seis episó- a televisão volta a beber na fonte do rádio dios. Qualquer aceitação razoável do teles- para reabastecer seu conteúdo. pectador definiria um número acima disso e A vantagem da televisão nacional hoje, daria à nova atração a idéia de que ela era um em relação a 1950, é que, além do rádio, o sucesso. Dito e feito. Dois anos depois, quan- cinema também passou a ser um excelente do as “normalidades” do casal Rui (Luiz negócio como fornecedor de fórmulas ca- Fernando Guimarães) e Vani (Fernanda pazes de renovar linguagem e conteúdo. E Torres) foram se tornando rotina e esgotan- a um veículo interessado sobretudo em do o interesse da audiência, a estratégia se vender sabonetes, nada parece mais ade- repetiu com Sexo Frágil: a série que aborda quado do que delegar a outros meios as as aflições do homem moderno sob a ótica apostas que sempre representam risco co- masculina foi lançada só com oito episó- mercial. Assim foi com Cidade dos Ho- dios. Constatado que o novo programa não mens, o melhor produto apresentado pela comprometia o nível de audiência do horá- Rede Globo em 2002 e 2003, com apenas rio (média de até 25 pontos percentuais na cinco episódios em cada ano. O universo Grande São Paulo) (1), vieram novas tem- de Acerola (Douglas Silva) e Laranjinha poradas e a impressão de sucesso. (Darlan Cunha) jamais teria chegado ao Antigamente, pegava mal para a casa, horário nobre da principal emissora brasi- diante de seus anunciantes e telespec- leira sem os dividendos arrecadados por tadores, encerrar um programa novo com Cidade de Deus, filme que fez fama e bi- apenas dez episódios no ar. Era a denún- lheteria sem contar com o brilho de um só cia explícita do fracasso. Pelos métodos galã do casting da Globo. atuais, é bem possível dizer que a ordem Também vem credenciado pelo cinema dos argumentos altera totalmente os efei- o mais novo autor do seleto time de escri- tos do produto. tores de da Globo. João Agora, a Globo anuncia, com direito a Emanuel Carneiro, titular do folhetim Da eventos e campanha em seus intervalos na Cor do Pecado, exibido às 19 horas, assi- TV, que investe em cultura nacional. Não é nou, entre outros roteiros, um certo Cen- um marketing vazio, há de se reconhecer. tral do Brasil, filme dirigido por Walter Nem se pode ignorar o feito da emissora em Salles Jr. Só isso bastaria para que a Globo colocar seus préstimos à disposição do cine- lhe desse confiança. Mas não: a direção da ma, numa espécie de reciprocidade à reto- emissora achou mais seguro escalar alguém mada de fôlego da telona. Mas esse incenti- com larga experiência na arte de produzir vo à cultura não funciona à parte da indús- histórias em capítulos e colocou Silvio de tria que cresceu em torno de seu logotipo. E, Abreu para escoltá-lo. dentro da indústria, os recursos técnicos, tão Se a Globo, dona de uma liderança fol- caros aos cofres da empresa, engoliram as gada em todo o território nacional, teria capacidades de experimentação que fazem mais chances de arriscar novas apostas do da televisão brasileira uma das melhores do que suas concorrentes, também é verdade mundo, apesar de todos os pesares. que tem muito mais a perder diante das Graças ao lunático Assis Chateaubriand, tentativas frustradas. De quatro anos para o parto da televisão neste país foi coisa qua- cá, com receio de pôr no ar idéias que sejam se artesanal, de tão inconseqüente. Preparo

1Cada ponto percentual de au- mal recebidas pela audiência, a rede dos técnico para pôr o novo aparelho no ar, havia diência na Grande São Paulo Marinho passou a adotar a estratégia de muito pouco. Pesou, naquele setembro de equivalia, em 2003, a 48,5 mil domicílios com TV. anunciar temporadas curtíssimas para no- 1950, o afã do pioneirismo. A TV Tupi foi

104 REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 102-109, março/maio 2004 a primeira televisão da América Latina e na chamada Cidade do Rádio, complexo fazia do Brasil o quinto país do mundo a ter criado por Chatô no bairro do Sumaré e que uma estação de TV, atrás de Estados Uni- depois viria a acomodar a estação de TV, dos, Inglaterra, Holanda e França. O caso é Fanucchi era uma espécie de faz-tudo do que, se aqueles profissionais que coloca- rádio e logo passou a ser bem aproveitado ram a PRF3-TV, Tupi-Difusora, Canal 3 pela TV, então como desenhista. Ninguém (2), no ar tivessem um pouco mais de co- lhe pediu que pensasse em uma alternativa nhecimento técnico e administrativo sobre para o índio velhaco, de cara fechada, que o novo negócio, a possibilidade de experi- simbolizava todos os títulos do grupo As- mentar não teria sido tão grande. Tudo se sociados. Até porque, é sabido, Chatô ti- teria limitado a um pisar no chão (no pior nha completo fascínio por elementos indi- sentido do termo), e bem provavelmente genistas e ninguém ousaria matar o caci- sofreríamos mais precocemente do nada- que. Mas Fanucchi percebeu que o índio se-cria-tudo-se-copia. Evidentemente, essa carrancudo, estampado na tela entre um pro- estagnação não é fenômeno exclusivamen- grama e outro, em nada contribuía para as te brasileiro, mas, que sorte a nossa: a qua- longas esperas que a programação ao vivo se total falta de noção sobre televisão foi o demandava naqueles tempos. E foi com que permitiu ao Brasil avançar além do certo receio que o desenhista, já com um ponto que, em outros países, foi o limite. esboço de sua nova cria em mãos, sugeriu Em compensação, quando se percebera à direção da emissora o nascimento do sim- tão superior na qualidade de suas telenove- pático indiozinho, com aquele cocar que las, palco de roteiristas com competência sustentava duas antenas logo acima da tes- única para mesclar drama e comédia antes ta, no lugar de seu ascendente. Fanucchi do primeiro intervalo comercial e de atores queria argumentar que, além de se mostrar e apresentadores tão mais hábeis na arte de mais adequado para aplacar a intolerância improvisar, a televisão brasileira foi toma- do telespectador, o curuminzinho, como foi da de uma crise de estrelismo e subiu no batizado, serviria também para ganhar os salto. Todas as regras do jogo, vencido por pais dispostos a descobrir as funções de babá- mais de trinta anos, passaram a trafegar na eletrônica que a TV é capaz de desempe- contramão, num processo iniciado ali pelo nhar: o novo personagem ganharia fácil a final dos anos 80. atenção da criançada. Mas o subalterno nem Desde então, toda aposta em gente e precisou desfilar seus argumentos: Cos- idéias que fogem daquelas já avalizadas talima e Cassiano aprovaram a idéia imedi- pelos números do Ibope é cena cada vez atamente e mandaram que o indiozinho mais rara. Como em 1950 ninguém sabia entrasse no ar naquela mesma noite. muita coisa, os talentos se multiplicavam Essa ousadia, que nada mais é que o sem maiores receios. “Na TV brasileira não valioso senso de observação, foi engolida há escola. Somos todos autodidatas”, bem pelos tempos modernos. O deslumbramen- disse Flávio Cavalcanti, aquele mesmo que to pelos recursos técnicos deixaria um adorava quebrar discos que considerava office-boy passar tranqüilamente desper- ruins em seu show de TV, Um Instante, cebido pelos olhos de quem manda, mes- Maestro. A predisposição em ouvir e ser mo que ele fosse Walter Clark ou Paulo ouvido era enorme. Ubiratan, dois dos maiores talentos espon- Foi nessa máxima que Mario Fanucchi, tâneos que a TV brasileira já comportou. homem que preconizou a importância do Clark, o homem que abriu as portas da logotipo e das vinhetas na televisão, con- Globo para Boni (José Bonifácio de Oli- fiou para sugerir aos dois chefões da TV veira Sobrinho), com quem formou o prin- Tupi, Dermival Costalima e Cassiano cipal dueto na criação do tão aclamado

Gabus Mendes, a mudança do personagem padrão Globo de qualidade, começou a 2A Tupi foi lançada como Canal que simbolizava a emissora. Como outras carreira como office-boy na Rádio Ta- 3 de São Paulo e só viria a ser sintonizada pelo Canal 4 a centenas de profissionais que trabalhavam moyo, aos 16 anos, em 1952. Logo virou partir de 10 de junho de 1960.

REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 102-109, março/maio 2004 105 redator. Em 53, já atuava na agência de pu- ca por ibope. Mas, súbito, nesse jogo de blicidade Pan-Americana, onde desempe- vale-tudo, aparece gente e conteúdo que nhou todas as funções. Foi figurante de tele- merecem ser incorporados à receita de um novela e assistente de cameraman. Já em entretenimento saudável, isto é, capaz de 1956, entrou para a TV Rio, onde teria suas quebrar a tal passividade do telespectador funções de grande executivo reveladas: or- e de aguçar seu senso crítico – daí o mérito ganizou o setor comercial, estabelecendo do Pânico, por exemplo. ordem nos horários da programação e culti- A Globo também se abastece dos aza- vando o bem mais precioso para ganhar a rões que surgem na concorrência. Fica à audiência, hábito na rotina do telespectador. espreita para caçar aqueles que conseguem Foi esse expediente que o conduziu à TV se sobressair fora de seus domínios. Às Globo em 1965, primeiro ano da emissora vezes, pasteuriza o vanguardismo da nova de Roberto Marinho, como diretor-geral. estrela dentro do padrão comercial, como Outro contínuo que fez história na TV, fez com Fausto Silva, que hoje nada guar- Paulo Ubiratan, começou aos 14 anos, com da do apresentador do Perdidos na Noite Cassiano Gabus Mendes, na TV Tupi, e (show que fez história no final dos anos também desempenhou todas as funções até 80, saltando entre TV Gazeta, Rede Re- chegar a diretor de Núcleo na Globo. Dono cord e ). Outras vezes, de uma maestria ímpar na arte de escalar consegue até tirar melhor proveito artístico elencos, sabia como unir um time de atores do que o sujeito exibia no outro canal, como que não saísse no braço na segunda semana aconteceu com Walcyr Carrasco. Autor das de gravações e tinha feeling competen- novelas O Cravo e a Rosa e Chocolate com tíssimo para somar os casais que garantem Pimenta, ambas bem-sucedidas no Ibope a química necessária ao sucesso de um fo- na faixa das 18 horas da Globo, o escritor lhetim. Também não foi uma trajetória sim- foi contratado pela emissora logo após ples. Custou-lhe uma rotina de quatro ma- emplacar boa audiência com o folhetim Xica ços de cigarros diários até o primeiro infarte, da Silva, na extinta (e então já decadente) em 1988. Abandonou então o vício de fu- TV Manchete, sob direção de Walter mar, mas teve a imprudência de retomar Avancini, que também foi resgatado pela sua outra dependência: a TV. Dez anos Globo na época. depois, uma semana após assumir a princi- pal fatia artística do bolo que até ali havia sido comandado por Boni, Ubiratan mor- reu, vítima do segundo infarte, aos 51 anos, A DOCE ILUSÃO DE QUE TODO em março de 1998. Exatamente um ano depois de Clark, que viveu até os 61. RISCO ERA LUCRO É. Televisão dá trabalho. É preciso cons- tatar que a falta de especialização daquelas Seria utopia esperar que a televisão de primeiras décadas também favorecia a cria- hoje fosse capaz de apostar metade do que ção de profissionais do gênero 1.001 utili- ela arriscava naqueles primórdios. Não só dades, mas a distinção de funções, hoje, porque a ânsia comercial de atender ao gosto não justifica tanto medo em apostar. A te- de uma platéia cada vez mais eclética e levisão já não consegue se guiar por suas numerosa – há mais domicílios com TV do próprias antenas e faz tempo. Enquanto a que com geladeira neste país (3) – foi ini- Globo se alimenta de 70% de todo o mon- bindo a ousadia de criação, mas também tante que o mercado publicitário destina à porque, na base da experimentação, todo televisão, pouco resta às demais redes para risco era lucro e, na falta de pudor em tes- investir. É nessa condição de vítima que a tar, imaginava-se que ninguém tinha muito

3Segundo dados do Censo concorrência se apóia para justificar a pro- a perder. Isso já faz o primeiro obstáculo 2002, o Brasil tem 90% de do- dução de uma série de bizarrices e a explo- para os métodos atuais: hoje, ao contrário micílios com TV e apenas 85% com geladeira. ração da miséria alheia, sem pudor na bus- da época, sabe-se, e bem, o tamanho da

106 REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 102-109, março/maio 2004 conta. Televisão é brinquedo caro e, como dramalhões por toda a América Latina e o retorno também pode ser alto, é um jogo impor ao telespectador brasileiro histórias em que se tenta domar as apostas, abolindo de príncipes e sheikes árabes que nada ti- o acaso do lance de dados. nham a ver com a nossa realidade. Embora O custo desse laboratório foi alto para já fizesse pelo menos três anos que os au- muitos. Findadas três décadas de televisão tores se manifestassem dispostos a romper no Brasil, algumas estações já haviam tro- com a era Magadan e alguns até já tivessem cado de mãos ou fechado as portas. Entre tentado alguns passos nessa direção, foi essas, duas de grande interferência em fór- Beto Rockfeller (exibida às 20h, de 4 de mulas que até hoje valem como referenci- novembro de 1968 a 30 de novembro de ais: Tupi e Excelsior. No caso da Excelsior, 1969) que conseguiu se estabelecer efeti- o que pesou no “the end” não foi, como nos vamente como divisor de águas. Com texto outros canais, apenas má administração. de Bráulio Pedroso e direção de Lima Duar- Durante muitos anos, a Excelcior, do gru- te, o folhetim foi o primeiro a investir na po Simonsen, foi considerada a primeira figura do anti-herói, ali representado por administrada com razoável visão empresa- Luís Gustavo, e conseguiu criar, como ne- rial. A emissora, que lançou a primeira te- nhum outro até então, a preciosa identida- lenovela diária da televisão brasileira (2- de com sua platéia. 54999 Ocupado, título que também pro- Do enterro da Tupi, nasceram duas con- moveu, em 1963, a união do mais famoso cessões: a TVS, que virou SBT, e a Man- casal da TV, Tarcísio Meira e Glória Me- chete, que sucumbiu a uma má administra- nezes), começou a perder força pouco an- ção após feitos gloriosos em menos de duas tes do golpe militar de 1964. Favorável à décadas de vida (5 de junho de 1983 a 1999). democracia e à liberdade de expressão, É certo afirmar que nenhuma outra emisso- Mário Wallace Simonsen viu seus negó- ra contribuiu mais para arejar os conceitos cios com café serem boicotados e sua em- de estética e conteúdo do chamado padrão presa de aviação, a Panair, fechar. Perse- Globo do que a rede de TV criada por guido pelo governo militar, Mário Wallace Adolpho Bloch. Até (apresentada Simonsen chegou a transferir as ações da entre 27 de março e 10 de dezembro de 1990, Excelsior ao grupo Saad e Leite, que por às 21h30, ou assim que acabava a novela das sua vez as transferiu ao grupo Frical (Otá- 8 na concorrência), a Globo mal sabia como vio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Fi- se movimentar fora de seus estúdios e cida- lho, donos do grupo Folha). Wallace des cenográficas. Locação natural fora do Cochrane Simonsen Neto, filho de Si- Rio, na ficção do “plim-plim”, era cenário monsen, recomprou a emissora, mas não para os dois ou três capítulos iniciais de um conseguiu reerguer a estação que, entre folhetim, no máximo, a fim de ganhar o des- tantos outros méritos, foi a primeira a pro- lumbramento do telespectador. Também foi mover um festival de música brasileira, a Manchete, por meio de Pantanal, que fez revelando ali ninguém menos que Elis a direção da Globo entender que Benedito Regina (1965). Os canais 9 de São Paulo e Ruy Barbosa era autor que interessava à 2 do seriam os primeiros do audiência da faixa nobre, não apenas aos país a terem suas concessões cassadas pelo telespectadores das 18 horas, horário a que governo, em 30 de setembro de 1970. o escritor estava confinado antes de levar Se a Excelsior foi a primeira a apostar Pantanal à Manchete. na diária, foi a Tupi que conse- Na mais rasteira das análises, Pantanal guiu realizar, na prática, uma antiga pre- indicou à direção da Globo o quanto a emis- tensão dos profissionais que, a contragos- sora havia se tornado refém de seu padrão to, tinham como missão traduzir e adaptar de qualidade estética e de sua gigantesca ao gosto local os textos de folhetins impor- audiência (algo em torno de 50 milhões de tados pela cubana Glória Magadan. Era ela telespectadores, na época, segundo dados a encarregada de fazer uma coleta de do Ibope, compareciam diante da TV, em

REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 102-109, março/maio 2004 107 todo o território nacional, para ver uma no- aplaudidos diretores da teledramaturgia bra- vela das 8 na emissora). Ao constatar que sileira. Ele já havia participado da direção pelo menos metade dessa platéia fora ca- de outras novelas na casa, mas nunca com a paz de trocar de canal para contemplar uma autonomia recebida na ocasião. mulher que virava onça, na Manchete, a Também convidado a retornar ao Jar- direção da Globo se deu conta de que vinha dim Botânico, Monjardim resistiu por mais sendo mais conservadora do que julgava algum tempo na Manchete, a fim de expe- que seu público fosse. Mesmo porque a his- rimentar com liberdade os rumos de uma tória de Juma Marruá (Cristiana Oliveira) telenovela totalmente itinerante, A Histó- só foi produzida na Manchete após a Globo ria de Ana Raio e Zé Trovão, que substituiu ter desprezado o enredo. O projeto, que teria Pantanal. E só retornou à Globo para assu- mofado nas gavetas da família Marinho por mir a direção-geral de Terra Nostra, exibi- sete anos, até chegou a ser orçado, mas foi da de setembro de 1999 a junho de 2000, às descartado sob a alegação de ser muito caro: 20h30, voltando a fazer dobradinha com é que a Globo nem cogitou ir até o Mato Ruy Barbosa. Grosso para gravar a história; pensava em É preciso que se diga que, em razão da produzi-la em cidade cenográfica, trazen- persistência da Manchete na área de tele- do a montanha até Maomé, o que, natural- dramaturgia, não se pode atribuir a Pantanal mente, foi demais para os pródigos filhos o caráter de azarão. A novela assim o seria se do Jardim Botânico. tivesse sido produzida pela Band, SBT ou Ruy Barbosa levou seu Pantanal à con- Record, emissoras marcadas por um investi- corrência a convite de Jayme Monjardim, mento modesto e repleto de pausas na produ- diretor que também trocou a Globo pela ção de ficção. No caso da rede dos Bloch, a Manchete, naquela época, e que, por meio aposta no gênero vinha desde a minissérie do canal concorrente, pôde mostrar ao time Marquesa de Santos, exibida de 21 de agosto de Roberto Marinho que havia vida, sim, a 5 de outubro de 1984, na faixa das 21h15. fora dos domínios cariocas. O telespectador Ou seja, fazia pelo menos seis anos que a se encantou com um cenário que lhe era emissora já vinha cativando o hábito desse inédito na telinha, com os tuiuiús, as sucuris público no horário, ininterruptamente, quan- e os jacarés. E nada mais natural à Manche- do Pantanal cruzou seu destino. te, conhecida de outros carnavais, que in- centivasse o interesse do público por meio de cenas à beira do rio, ditas sensuais no melhor dos eufemismos, com moças e A RECICLAGEM PATENTEADA (OU moços nada conservadores no figurino. Ruy Barbosa foi imediatamente re- O COMÉRCIO DO TUDO-SE-COPIA) contratado pela Globo após Pantanal, com salário maior e oferta de horário nobre. Es- Segundo o evangelho dos novos tem- creveu então Renascer (no ar entre 8 de pos, o que importa, agora, não é ter uma março e 13 de novembro de 1993), a história boa idéia, mas apenas uma idéia diferente, de um mocinho que fez fortuna e fama de por mais absurda que ela possa parecer. Isso coronel sob a bênção de um jequitibá, levan- explica a overdose de reality e games shows do a Globo, pela primeira vez, a gravar mais bizarros que invade a TV em todos os can- da metade de um folhetim em Ilhéus, na tos do mundo – ou quase todos, já que no Bahia, bem longe do Cristo Redentor. Entu- Iraque, o mais leve dos reality shows, Big siasmada com o resultado dos riscos corri- Brother, ainda está em pré-produção, e em dos pela concorrência, a Globo também fez Serra Leoa, a vida fora das telas já é sufici- sua aposta em sangue novo: Renascer era a entemente bizarra para que alguém veja primeira novela sob direção-geral de Luiz graça nesse cardápio pela TV. Regendo essa Fernando Carvalho, que ganhava, com essa bíblia, hoje, está a falta de importância do produção, a chance de virar um dos mais autor original: não está em jogo quem teve

108 REVISTA USP, São Paulo, n.61, p. 102-109, março/maio 2004 a idéia primeiro, mas sim quem a registrou fissional que se criou no meio da publicida- antes. Por mais improducente que seja essa de, Boni bem sabe usar esse contexto para onda de clonagem na produção dos shows vender seu peixe. Agora que se tornou dono de TV, a tendência de se ganhar dinheiro de TV (embora delegue aos filhos a carga com a formatação de programas é um avan- formal de proprietários), o executivo anun- ço. É uma oficialização, com pagamentos ciou que suas pretensões no momento são devidos, ao nocivo nada-se-cria-tudo-se- regionais. E faz o caminho inverso, sabia- copia, que sempre existiu. Quantos progra- mente, para oferecer o modesto alcance da mas Silvio Santos produziu com base nas Rede Vanguarda (4) como laboratório para atrações que conheceu no exterior? No novas criações e talentos. As estações, em entanto, só a Casa dos Artistas e o Show do Taubaté e São José dos Campos, atingem Milhão lhe renderam longa pendengas com 46 municípios na região do Vale do Paraíba a Justiça, sob a alegação de plágio (de Big e são afiliadas da Globo, mas Boni tem horas Brother e de Who Wants to be a Millionaire, locais de sobra para experimentar forma- respectivamente). tos que, ganhando o aval de seu público, Não é propriamente um show, mas é a podem vir a ser testadas posteriormente em realidade da hora. Não convém esperar que rede nacional. as coisas voltem a ser como foram um dia, A proposta de Boni é a aplicação prática em ramo nenhum de qualquer atividade, de uma tese muito endeusada, mas raramen- muito menos numa indústria como esta. te executada, nesses tempos em que o termo Nem partir para o saudosismo que lamenta “globalização” se banaliza de modo tão ins- o fracasso de iniciativas tão nobres do pas- tantâneo, em todos os idiomas: é o tal do sado, sem apresentar soluções que combi- “pense global e realize local”, que reza como nem os interesses de criação com os co- pode ser benéfico ao seu meio de atuação a merciais. Ciente de que aqueles tempos de realização de um raciocínio elaborado sob experimentação não voltam mais, o incan- âmbito universal. O discurso é bom quan- sável Boni precisou retomar suas funções do foge da empáfia do marketing. Sua con- como executivo de TV (após cumprir seis sumação tem sido feito quase inalcançável 4A Rede Vanguarda é resultado anos de expediente como consultor-sem- num mercado em que os profissionais, de de uma concessão ganha por Boni em Taubaté e da venda ser-consultado da TV Globo) para que sur- tão atentos que estão às necessidades de de 90% da TV Vanguarda de São José dos Campos pela fa- gisse um novo sopro na fomentação de reciclagem técnica, esqueceram-se de mília Marinho ao executivo. projetos. Como alguém que teve participa- aprender também com os erros e acertos Boni também vendeu 10% do canal que ganhou, em Tauba- ção essencial na criação da TV em rede humanos do passado. Talvez por conhecê- té, a Roberto Irineu Marinho, nacional, ele sabe que já não é seguro sub- los tão bem, Boni consiga propor uma luz mantendo assim o controle so- bre 90% das duas estações. As meter ao papel de cobaia uma platéia tão que nem estava assim tão no fim do túnel, ações estão em nome de seus quatro filhos. Boni argumentou gigante e de hábitos tão distintos quanto mas que esteve impossibilitada de vir à tona que não queria cargo algum esta que faz do Brasil um território até aqui, em razão da cegueira generalizada na empresa e que seria apenas “palpiteiro”, desde que nin- multicolorido por contrastes. E como pro- que hoje toma conta do setor. guém o contrariasse.

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