UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA

ANDREI DE MESQUITA ALMEIDA

Trajetórias interrompidas: bloco no poder, ascensão das empreiteiras e o novo mercado de aeroportos no Brasil

Campinas 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA

ANDREI DE MESQUITA ALMEIDA

Trajetórias interrompidas: bloco no poder, ascensão das empreiteiras e o novo mercado de aeroportos no Brasil

Prof. Dr. Cláudio Schuller Maciel – orientador

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Econômico, área de Desenvolvimento Regional e Urbano.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO ANDREI DE MESQUITA ALMEIDA, ORIENTADA PELO PROF. DR. CLÁUDIO SCHULLER MACIEL.

Campinas 2020 Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Economia Luana Araujo de Lima - CRB 8/9706

Almeida, Andrei de Mesquita, 1980- Al64t AlmTrajetórias interrompidas : bloco no poder, ascensão das empreiteiras e o novo mercado de aeroportos no Brasil / Andrei de Mesquita Almeida. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

AlmOrientador: Claudio Schuller Maciel. AlmDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia.

Alm1. Privatização. 2. Aeroportos. 3. Empreiteiros. 4. Corporativismo. I. Maciel, Claudio Schuller, 1951-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Economia. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Interrupted trajectories : power bloc, rise of contractors and the new airport market in Palavras-chave em inglês: Privatization Airports Contractors Corporate state Área de concentração: Desenvolvimento Regional e Urbano Titulação: Mestre em Desenvolvimento Econômico Banca examinadora: Claudio Schuller Maciel [Orientador] Marcos José Barbieri Ferreira Jorge Eduardo Leal Medeiros Data de defesa: 11-12-2020 Programa de Pós-Graduação: Desenvolvimento Econômico

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-9362-7990 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/0083610171630673 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA

ANDREI DE MESQUITA ALMEIDA

Trajetórias interrompidas: bloco no poder, ascensão das empreiteiras e o novo mercado de aeroportos no Brasil

Prof. Dr. Cláudio Schuller Maciel – orientador

Defendida em 11/12/2020

COMISSÃO JULGADORA

Prof. Dr. Cláudio Schuller Maciel - PRESIDENTE Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Prof. Dr. Jorge Eduardo Leal Medeiros Universidade de São Paulo (USP)

Prof. Dr. Marcos José Barbieri Ferreira Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno. AGRADECIMENTOS

Esta dissertação não teria sido possível sem o acompanhamento e leitura cuidadosa de meu orientador Cláudio Maciel, a quem sou grato pelas observações e melhorias sugeridas. Estendo minha gratidão aos membros da banca de qualificação e de defesa e, em sentido geral, aos professores do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico e aos colegas do CEDE com quem convivi nestes anos de formulação, crítica e debate sobre o desenvolvimento (e seus bloqueios) em nosso país. No setor aéreo, que venho estudando desde 2006 e onde tenho atuado profissionalmente desde 2011 pude conhecer profissionais e instituições que reúnem o conhecimento técnico de alto nível do setor, com quem pude compartilhar as experiências práticas de desenvolver o transporte aéreo no Brasil nesse período, apesar das circunstâncias nem sempre favoráveis. A eles e aos colegas de consultorias de modelagem de concessão devo o aprendizado diário sobre como projetos que apoiamos em conhecimento técnico limitado são levados às mesas de decisão e se tornam planos de efeitos duradouros pelos que ocupam posições de poder. Por nunca me deixarem me iludir com esse estado de coisas, agradeço a meus pais, Alcione e Ana Célia, sempre presentes e atenciosos. E por me fazerem sonhar outros sonhos, sou grato e me sinto abençoado por compartilhar da vida com Carolina e Emiliano. RESUMO

O interesse desta pesquisa de mestrado é contribuir com o entendimento da política pública de investimento em infraestrutura como parte do esforço explicativo do ciclo econômico da construção civil que se encerrou em 2014. Assume-se a hipótese de que houve um ciclo econômico de 2004 a 2014 que teria regrado a dinâmica dos setores do transporte aéreo e da construção civil na economia brasileira, com uma fase ascensional expansiva (2004-2008), e uma fase posterior à crise global de 2008 na qual se identifica uma política anticíclica de sustentação da atividade econômica (2009- 2014), com um deliberado incentivo ao setor de construção. Argumenta-se que essa política decidida no segundo governo Lula (2007-2010) e primeiro governo Dilma (2011-2014) teria encontrado na política de concessão de aeroportos antes sob administração da estatal Infraero um espaço para a expansão da acumulação de capital de empreiteiras que se associaram ao bloco no poder naquele ciclo encerrado em 2014. O objeto de pesquisa foi definido nas 2a e 3a rodadas de leilões de concessão de aeroportos da ANAC ocorridas em 2012 e 2013, e enfocou a análise documental das peças de planejamento elaboradas pelo aparelho de Estado e contratadas com consultorias especializadas para a elaboração do “modelo brasileiro” de infraestrutura aeroportuária. O material de pesquisa foi complementado por entrevistas a profissionais chave no processo de elaboração do “modelo”, e por análise comparada com o “modelo espanhol” implantado na mesma época, e cujas características frontalmente distintas do “modelo brasileiro” indicaram a sobrevalência de questões de trajetória histórica na definição da participação privada em aeroportos, mais do que a existência de um modelo padrão de “catching up”. São reconstituídos os argumentos e ponderações que guiaram a formação de consensos e as tomadas de decisão que configuraram o “modelo brasileiro”, apontando o papel central da tradição corporativista do Estado brasileiro nessa etapa recente da “transição negociada” do setor aéreo desde a fundação da Nova República. ABSTRACT

The interest of this master's research is to contribute to the understanding of public policy on investment in infrastructure as part of a broader explanatory effort regarding the civil construction economic cycle that ended in 2014. It is assumed that there was an economic cycle from 2004 to 2014 that would have regulated the dynamics of the sectors of air transport and civil construction in the Brazilian economy, with an expansive upward phase (2004-2008), followed by a phase after the global crisis of 2008 in which we find an anti-cyclical policy aimed at sustaining economic activity (2009- 2014), with a deliberate incentive to the construction sector. It is argued that this policy decided in Lula’s second term in office (2007-2010) and Dilma’s firsts (2011-2014) would have found in the airport concession policy, which were previously under the administration of the state company Infraero, room for the expansion of capital accumulation by contractors that joined the power bloc in that cycle that came to an end in 2014. The research object was defined in the 2nd and 3rd rounds of ANAC airport concession auctions held in 2012 and 2013, and focused on the documentary analysis of the planning pieces prepared by the state apparatus and contracted with specialized consultants for the elaboration of the “Brazilian model” of airport infrastructure. The research material was complemented with interviews with key professionals in the process of elaborating the “model”, and by a compared analysis with the “Spanish model” implemented at the same time, whose characteristics distinctly different from the “Brazilian model” indicated the prevalence of issues due to historical trajectory in the definition of private participation in airports, more than the existence of a standard model of “catching up”. The research reconstitutes the arguments and considerations that guided the formation of consensus and the decision making that configured the “Brazilian model”, pointing out the central role of the corporatist tradition of the Brazilian State in this recent stage of the “negotiated transition” of the aviation sector since the founding of the New Republic. SUMÁRIO

Introdução...... 9 O comportamento de longo prazo do setor da construção civil...... 15 Capítulo 1. Formação do setor de transporte aéreo...... 35 Liberalização e expansão da Rede Aérea Nacional no pós-guerra...... 36 Formação de infraestrutura “pioneira” e oligopolização...... 39 Corporativismo e ditadura (1960-1970)...... 49 Infraestrutura aeroportuária estatizada...... 59 “Desmilitarização” e liberalização pós-1990...... 66 Capítulo 2. Crise e planejamento...... 75 O Estudo da ANAC (2009)...... 88 O Relatório McKinsey (2010)...... 94 Diagnóstico do setor no período anterior (2004-2008)...... 97 Propostas para Infraestrutura...... 109 Propostas para Serviço de Transporte Aéreo...... 111 Capítulo 3. O modelo de concessão de aeroportos no Brasil...... 118 Diagnóstico e proposta da McKinsey...... 119 O Estudo para Infraero (2010)...... 130 O modelo inscrito nos Editais de Concessão...... 136 Estrutura tarifária...... 143 Contribuição ao sistema federal...... 149 O modelo econométrico do Governo...... 154 Capítulo 4. A participação privada em aeroportos comparada entre Brasil e Espanha...... 169 Considerações finais...... 187 Referências Bibliográficas...... 195 Bibliografia...... 201 9

Introdução 10

O interesse desta pesquisa de mestrado é poder contribuir com o entendimento da política pública de investimento em infraestrutura como parte do esforço explicativo do ciclo econômico da construção civil que se encerrou em 2014. Partimos, portanto, da hipótese de que houve um ciclo econômico de 2004 a 2014 que teria regrado a dinâmica do setor da construção civil na economia brasileira, com uma fase ascensional expansiva (2004-2008), e uma fase posterior à crise global de 2008 na qual se identifica uma política anticíclica de sustentação da atividade econômica (2009-2014), com um deliberado incentivo ao setor1.

Camargos2 categoriza o “setor da construção” como o agrupamento de “segmentos econômicos controlados pelo capital privado”, dentre os quais identifica um subsetor de obras públicas a que chama de “setor de construção pesada”, seu objeto de estudo. A abordagem da autora define o “setor da construção pesada” a partir da sociologia econômica aplicada nos EUA nos anos 1980 e 1990, identificando o que chama de “meio ambiente” formado por “estruturas sociais” construídas sobre o imbricamento de interesses de agentes privados e públicos que ao mesmo tempo moldariam as políticas públicas e a forma do mercado privado a elas relacionado.

Aos setores assim definidos corresponderiam “formas de governo do setor”, isto é, um ordenamento sui generis de coordenação entre agentes privados e públicos, onde se poderia identificar hierarquia, competição e/ou conluio entre agentes, relacionando essa assim chamada “forma de governo” com as características estruturais e dinâmicas do setor.

Em lugar da terminologia sociológica utilizada por Camargos para caracterizar o que chama de “setor de construção pesada”, vamos caracterizar o setor da construção civil como subdivido em dois grandes subsetores: subsetor de edificações e subsetor de infraestrutura, focando nossa análise neste último ao

1 Segundo a classificação oficial do Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) elaborado pela Comissão Nacional de Classificação e publicado pelo IBGE, aderente à ISIC da ONU, o setor da Construção Civil corresponderia à Seção F – Construção, o que compreende as divisões 41 (Construção de edifícios), 42 (Obras de infraestrutura) e 43 (Serviços especializados para construção). Essas três divisões abrangem as atividades de incorporação de empreendimentos imobiliários, construção de edifícios; construção de rodovias, ferrovias, obras urbanas e obras-de-arte especiais (pontes e viadutos), obras de infraestrutura para energia elétrica, telecomunicações, água, esgoto, transporte por dutos, obras portuárias, marítimas, fluviais e montagem industrial; bem como demolição e preparação do terreno, acabamentos e instalações elétricas, hidráulicas e outras instalações em construções. No entanto, atividades cadastradas em outras divisões na Seção C de Indústria de Transformação também mantêm íntima relação com as atividades da seção F, como a fabricação de formas de madeira, de aditivos e preparações químicas, tubulações e artefatos plásticos, elementos pré-fabricados, incluindo estacas, postes, arames, ferragens e escoramentos para a construção civil, assim como fabricação de máquinas e aparelhos para a construção civil. Por outro lado, atividades de serviços e atividades profissionais, científicas e técnicas ligados à construção civil são classificadas na Seção M, na Divisão 71, Serviços de Arquitetura e Engenharia, e mantêm igualmente íntima relação com as atividades de construção civil. Para fins desta dissertação, consideramos o “setor da construção civil” como o conjunto de todas essas atividades econômicas cuja finalidade encontra-se na construção de edificações e obras de infraestrutura. Encontramos em outras referências bibliográficas o mesmo “setor” sendo chamado de “indústria” da construção civil, seguindo a nomenclatura usualmente aplicada nos Estados Unidos, sem com isso definir a atividade em questão como do tipo industrial, isto é, de transformação. Nesta dissertação não empregaremos o termo “indústria” como equivalente a setor. Para a classificação da Concla mencionada, ver https://concla.ibge.gov.br/busca- online-cnae.html?view=secao&tipo=cnae&versaosubclasse=10&versaoclasse=7&secao=F. 2 Em CAMARGOS, R. C. M. “Estado e empreiteiros no Brasil. Uma análise setorial”. Dissertação de mestrado, IFCH/Unicamp, Campinas, 1993. 11 qual corresponderia aquele “setor de construção pesada”3. Nesse sentido, daremos preferência ao emprego da tipologia de estruturas de mercado proposta por Possas4, e caracterizaremos o “mercado de construção de infraestrutura” como um “oligopólio concentrado”, no qual os seus agentes privados (firmas) articulam-se a agentes públicos (instituições reguladoras e empresas estatais) de maneira específica, ainda que não exclusiva da relação mais geral entre Estado e empreiteiras. Mais do que isso, essa conceituação ampla de “mercado” microeconômico, abarcando as estruturas estatais além das firmas privadas organizadas em algum tipo de oligopólio encontra respaldo nas obras mais recentes de Mazzucato5, que vem abordando o caráter associado entre público e privado para a constituição dos mercados planejados pelo Estado em políticas mais ou menos deliberadas, mais ou menos explícitas de desenvolvimento econômico pós-2008.

Como enunciado, identificamos um comportamento cíclico do setor da construção civil entre 2004 e 2014. A divisão dos períodos desse ciclo econômico estudado é marcada pelo estouro da crise financeira global de 2008, o que teria moldado a resposta de política econômica do governo brasileiro a partir de então, aí inclusa a conduta para o setor da construção civil6. Na segunda fase do ciclo, coincidente com o fim do segundo governo Lula e primeiro governo Dilma Rousseff, identificamos uma deliberada política anticíclica de fomento ao investimento em infraestrutura, dentre outras ações de retomada do crescimento. Enquanto a política anticíclica de Dilma Rousseff caracterizaria o seu governo e o debate econômico a partir de então, ela também conformaria o papel do investimento em infraestrutura como instrumento nesse processo.

Particularmente no fomento ao investimento em infraestrutura, um dos êxitos divulgados pelo governo de então e por seus sucessores foi o programa de concessão de aeroportos públicos federais. Para compreender o significado desse “êxito” que logrou obter quase unanimidade no debate de políticas públicas de transportes e de modelo de agenciamento de interesses públicos e privados em um novo mercado criado pelo planejamento estatal, adotamos a política de concessões de aeroportos de 2011

3 “As atividades desenvolvidas na indústria da construção civil são comumente agrupadas em construção de edifícios, obras de infraestrutura e serviços especializados comuns a ambos. O segmento construções de edifícios é composto pelas edificações para usos residenciais, comerciais, industriais, agropecuários e públicos, possuindo um amplo espectro de tamanho e valor. Na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), realizada pela Comissão Nacional de Classificação (Concla), a divisão de construção de edifícios considera as firmas que atuam nesta atividade propriamente dita e na sua incorporação. A segunda atividade da indústria da construção é voltada para obras de infraestrutura de transportes, energia, saneamento, abastecimento, comunicação, industrial e de lazer, possuindo importante participação para o desenvolvimento e o bem-estar da sociedade.” PAULA, Jean Marlo Pepino de. Infraestrutura de pesquisa voltada para a indústria da construção civil. IPEA, 2016. 4 POSSAS, M. L. Estruturas de mercado em oligopólio. São Paulo, Hucitec, 1990. 5 MAZZUCATO, M. The Entrepreneurial State. Londres, Demos, 2011. MAZZUCATO, M. “Which Industrial Policy Does Europe Need?” Intereconomics, Volume 50, May/June 2015, N. 3, pp. 120-155. MAZZUCATO M. “From Market Fixing to Market-Creating: A New Framework For Innovation Policy”, Industry and Innovation, 2016, 23:2, 140-156. 6 Segundo Camargos, “é possível supor que a ‘instrumentalização’ da atividade produtiva de determinados setores, com objetivo de implementar certas orientações de política econômica, leva à articulação de interesses comuns entre os segmentos público e privado. No limite, estas articulações de interesses podem dar lugar a acordos burocrático- empresariais bem-sucedidos e estáveis.” (Camargos, 1993, p. 24.) 12 até 2014 como objeto de estudo. Buscamos entendê-la tanto do ponto de vista das questões próprias do subsetor de transporte aéreo (esgotamento de capacidade da infraestrutura do transporte aéreo frente o aumento da demanda na fase anterior - “popularização do transporte aéreo”, "caos aéreo") como ampliação e diversificação do mercado de construção civil e administração de serviços públicos para grupos nacionais ligados à construção civil que já participavam de outros investimentos anticíclicos. Nesse ponto, admitimos que teria ocorrido uma sincronização dos ciclos setoriais da construção civil e do transporte aéreo, permitindo a migração de capitais do primeiro para o segundo.

Se compararmos o nosso objeto de estudo, isto é, a política de concessão de aeroportos para empresas de construção civil, com outra estratégia de fomento do setor através da expansão da atuação das construtoras e incorporadoras em programas de recuperação econômica associados à política habitacional, em que o planejamento estatal “jogava água no moinho” do mercado imobiliário já constituído desde muito tempo antes, veremos que o primeiro traço distintivo do novo mercado de aeroportos é, justamente, que se tratava de um novo mercado. Planejado e criado no seio da máquina estatal de planejamento como fronteira de expansão de acumulação de agentes que, até então, operavam em outros mercados associados.

Logo, para interpretar a política de concessão de aeroportos interessa saber para qual “moinho” aquelas águas estavam sendo direcionadas, e assim buscar caracterizar a sua motivação e justificativa. Portanto, o estudo que apresentamos nesta dissertação do novo mercado planejado para a concessão da infraestrutura aeroportuária é feito vis-à-vis a interpretação inferida dos interesses das empreiteiras e governo num determinado arranjo de mercado que era oportuno às partes interessadas, que nesse período constituíam o bloco no poder7. Buscamos demonstrar como o arranjo mencionado lograria, de um lado, abrir frentes de expansão para investimentos de empreiteiras e empresas concessionárias oriundas do setor da construção civil e, de outro lado, retirar da responsabilidade estatal os investimentos prementes para permitir a continuidade da expansão do setor aéreo (o que não significava, no entanto, reduzir gastos do orçamento público). Nossa hipótese é de que a companhia estatal de administração da infraestrutura aeroportuária (Infraero) até então responsável pelo investimento e administração da infraestrutura do subsetor aéreo teria sido preterida para dar lugar a

7 O conceito de bloco no poder de Nico Poulantzas (POULANTZAS, N. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro, Graal, 1980) é empregado para entender o Brasil por Décio Saes nos anos finais da ditadura de 1964-1985 (SAES, D. “Estado e classes sociais no capitalismo brasileiro dos anos 70/80”. In: República do capital: capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001), e na Nova República por Eduardo Pinto, quem visa “apresentar uma teorização acerca do papel do Estado na economia capitalista por meio da perspectiva relacional que compreende o Estado como um campo e um processo estratégicos onde se entrecruzam núcleos e redes de poder das frações de classe do bloco no poder; para essa finalidade, toma-se como referência a abordagem desenvolvida nos últimos trabalhos de Poulantzas. Este conceito, bloco no poder, será utilizado com a finalidade de realizar a mediação entre as dimensões abstrato-formal e concreto-real do Estado quando atuam como mecanismo unificador entre a acumulação (capital em geral) e as frações de classe (pluralidade de capitais).” PINTO, E. C.; BALANCO, P. “Estado, bloco no poder e acumulação capitalista: uma abordagem teórica”. Revista de Economia Política, vol. 34, nº 1 (134), pp. 39-60, janeiro-março/2014. 13 novas firmas formadas pela associação de investidores nacionais e estrangeiros com o capital da construção civil que se estendia ao novo mercado de aeroportos que era criado.

Sustentamos essa hipótese em abordagem teórica a partir de conceito de bloco no poder proposto por Poulantzas, e aplicado por Saes e Pinto para o caso brasileiro, o qual permite a análise do poder de classe como condicionado historicamente à forma do Estado e à correlação de forças entre frações de classe e grupos de pressão pela disputa do poder, tanto formal como real. Propomos complementar esse conceito de bloco no poder com categorias definidas em outro desenvolvimento teórico, de origem igualmente marxista, a respeito da dinâmica do exercício do poder no Brasil, e sua determinação nos períodos dos ciclos de acumulação, que condicionaram as formas pelas quais os blocos no poder puderam imprimir sua marca na trajetória do capitalismo brasileiro. Referimo-nos particularmente à teoria da dualidade básica de Ignácio Rangel, que identifica a regra dialética que perpassa as sucessivas associações de frações de classe para o exercício da hegemonia interna da sociedade em certos períodos de tempo e em certos arranjos de forças, ao que o autor chama de dualidade básica. Nessa teoria, as categorias de polos interno e externo, sócio maior e sócio menor assumem relevância para explicar como determinados grupos de pressão (ou frações de classe) podem organizar-se em alianças políticas mais ou menos duradouras que dão direção ao ciclo e imprimem sua marca na trajetória histórica do país.

Nesse sentido, essa abordagem teórica é instrumental para jogar luz sobre a dinâmica mais geral de crescimento econômico com lastro em exportações primárias que, por um lado, teria caracterizado o período de governos do Partido dos Trabalhadores (o “boom das commodities”) entre 2004 e 2011, e por outro permitido a ascensão das empreiteiras ao bloco no poder, ao menos até o fim do período estudado (2014), quando se inicia a derrocada rumo à sua dissolução e a disputa aberta pelo poder. Por sinal, em Saes8 encontramos uma pista de como a dissolução do bloco no poder reflete o caráter instável da democracia no Brasil, e aponta para razões que ajudam a explicar como o período estudado foi tão abruptamente rompido:

Consequentemente, a fração de classe dominante que aspirar à conquista da hegemonia política no seio do bloco no poder terá de interromper o funcionamento das instituições políticas vigentes e de promover a sua substituição forçada (sejam elas ditatoriais ou democráticas). Nessa perspectiva, pode-se concluir que, nas democracias capitalistas, as crises de hegemonia no seio do bloco no poder abrem o caminho — na medida em que culminam num processo de redefinição dessa hegemonia — para a revogação das instituições políticas democráticas.

Dedicamo-nos, portanto, a lançar luz sobre a dinâmica do bloco no poder que, sob hegemonia primário exportadora, permitiu a ascensão do sócio menor (empreiteiras) principalmente após 2008 e

8 SAES, D. “Estado e classes sociais no capitalismo brasileiro dos anos 70/80”. In: República do capital: capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 8. 14 muito importantemente apoiando-se no novo mercado de aeroportos criado. Esse bloco no poder foi alvo decidido de ataques destrutivos a partir de 2014, motivo pelo qual definimos nossa periodização do objeto de estudo como terminando naquele ano em que há uma mudança significativa na correlação de forças e na estratégia de destituição do bloco no poder de fora para dentro.

Ainda que nesta dissertação passemos a caracterizar a forma desse novo mercado de aeroportos no Brasil, planejado e implementado a partir de 2009, não nos dedicamos a fazer uma análise de “estrutura-conduta-desempenho”, posto que o período de estudo abarca somente a criação desse novo mercado, em que predomina o seu planejamento e pouco se pode perceber ainda da conduta dos novos agentes, muito menos de seu desempenho. Ainda que alguns dados posteriores a 2014 sejam apresentados para corroborar as conclusões alcançadas em nosso estudo, o foco da análise desta dissertação está fundamentalmente nas tomadas de decisões daqueles que ocupavam o espaço do poder na resposta à crise de 2008 e que conformariam a política pública dali por diante. Importa, portanto, conhecer o diagnóstico que foi feito sobre o que teria ocorrido até então e como o “problema” que se identificava veio a encontrar a sua solução planejada na forma da política de concessão de aeroportos no “modelo brasileiro”.

Nesse ponto, buscamos comparar o modelo escolhido no Brasil com a administração aeroportuária em outros países, em que as contradições entre “concessão e privatização”, “centralização e descentralização” também desempenhavam um papel relevante. Esse teria sido o caso espanhol, por exemplo. Mais do que isso, a comparação entre Brasil e Espanha também seria válida porque ambos os processos de abertura à participação privada na administração aeroportuária foram feitos praticamente ao mesmo tempo (2011-12), mas com resultados diferentes, pelo menos no período estudado.

O tal “modelo” definido para o novo mercado foi o ponto de partida da pesquisa. Mas para fins de ordenar a exposição do objeto de estudo, nas próximas seções desta introdução trataremos da conceituação do ciclo econômico da construção civil e do setor aéreo que assumimos como definidor da periodização desta dissertação. Buscamos lançar luz sobre algumas causações mais amplas, particularmente aquelas que apontam como a fase expansiva da economia brasileira pré-2008, que combinou a liderança do setor primário-exportador com a ascensão das empreiteiras em um salto no padrão do consumo interno, teria aumentado a pressão sobre a infraestrutura do setor aéreo que viria a favorecer aquelas empreiteiras por meio do “modelo brasileiro” de concessão aeroportuária equacionado dentro do quadro da política anticíclica pós-2008, onde encontramos o nosso objeto de estudo.

A caracterização do comportamento de longo prazo do setor da construção civil apresentada a seguir visa introduzir os elementos principais da periodização da historiografia do setor, com ênfase nos 15 períodos pós-1990. Esse recorte interessa particularmente a esta dissertação, pois consideramos a diversificação das atividades da construção civil para o mercado das concessões de serviços públicos como um dos mercados associados com os quais o novo mercado de aeroportos se relacionaria de partida.

Em seguida, abordaremos no Capítulo 1 o contexto institucional do setor aéreo objeto do planejamento estatal, destacando sua formação histórica e estrutura espacial da Rede Aérea Nacional (RAN)9, de forma a apresentar um panorama mínimo, porém suficiente da situação em que se encontrava o setor dentro do qual seria forjado um novo mercado. Esse panorama se deterá na descrição do outro mercado associado que viria a ter relação com o novo mercado de aeroportos: o mercado do serviço de transporte aéreo, resultado de 80 anos de desenvolvimento, e que se encontrava dividido entre poucas companhias aéreas no início dos anos 2000.

Como se poderá ver no Capítulo 2, consideramos como fato inicial do planejamento estatal que constitui o objeto de pesquisa a contratação do “Estudo do Setor Aéreo”, feito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) junto à consultoria internacional McKinsey em 2008- 2010. Nesse capítulo acompanhamos os caminhos pelos quais passou o planejamento até atingir a sua forma final de leilões de concessão em 2012 e 2014.

Com a intenção de caracterizar o “modelo do negócio” definido para o novo mercado de aeroportos, entrevistamos profissionais envolvidos na sua contratação e elaboração, buscando realçar as dinâmicas das tomadas de decisão de forma a evidenciar as intenções do planejamento adotado e os seus rebatimentos nas características do “modelo”, o que é mais bem descrito no Capítulo 3, no qual abordamos o assim chamado “modelo de negócio dos aeroportos”. Essas entrevistas foram conduzidas com profissionais ligados às consultorias de modelagem de concessão (Rafael Viana e Maurício Moysés, do escritório Moysés&Pires, Prof. Elton Fernandes, da COPPE-UFRJ e consultor do grupo Invepar na 2a rodada de leilões), consultores do governo para elaboração de peças de planejamento do setor (Prof. Cláudio Jorge Pinto Alves do Instituto Tecnológico da Aeronáutica - ITA e Cleverson Aroeira do BNDES) e funcionários do Governo Federal formuladores de políticas públicas (Fernando Soares da Secretaria de Aviação Civil - SAC).

Por fim, no Capítulo 4 tratamos da caracterização do que chamaremos “modelo espanhol” que, como dito anteriormente, realizava naquela mesma época a sua abertura à participação privada na administração aeroportuária, em modelo distinto e, como defenderemos, constituía justamente aquilo que se abdicara no “modelo brasileiro”, que era o fortalecimento e investimento na empresa estatal de administração aeroportuária. Nessa pesquisa também entrevistamos funcionários da área internacional

9 A Rede Aérea Nacional (RAN) constitui o espaço construído no território do Estado brasileiro pela fruição da infraestrutura aeroviária na prestação do serviço de transporte aéreo, devidamente conceituada no capítulo 1 (ver especialmente nota 25 na página 38). 16 da empresa estatal administradora da infraestrutura de transporte aéreo AENA (Enrique Donate García e Dionisio Canomanuel González).

O comportamento de longo prazo do setor da construção civil

Nesta seção faremos uma breve caracterização do comportamento de longo prazo do setor da construção civil, frisando a sua relação com a economia nacional e, especificamente, a relação entre os dois subsetores de edificações e de infraestrutura, medida na proporção da importância intrassetorial dos investimentos residenciais e não-residenciais.

No gráfico a seguir, comparamos a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro desde 1950 até 2008 com a taxa de crescimento do estoque líquido de capital fixo na construção civil no mesmo período.

Figura 1: Taxa de crescimento do estoque líquido de capital na construção civil frente a taxa de variação do PIB – 1950-2008. Fonte: Elaboração própria a partir de dados IPEADATA O conceito de estoque líquido de capital adotado aqui segue o definido na metodologia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) conforme Morandi e Reis, que utiliza o conceito de estoque perpétuo, conforme recomendado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), para calcular o estoque bruto de capital fixo no Brasil por setores10.

10 MORANDI, L.; REIS, E.J. “Estoque de capital fixo no Brasil 1950-2002”. XXXII Encontro Nacional de Economia – ANPEC, 7-10 dezembro, João Pessoa, 2004. 17

Segundo o trabalho de Morandi e Reis, realizado até 2002 e continuado pelo IPEA até 2008, a estimativa do estoque bruto de capital no Brasil foi feita mediante a aferição dos fluxos de investimentos divididos em dois setores: construção civil e máquinas e equipamentos.11 Os autores destacam que o investimento das famílias na prática resume-se à atividade de construção, desprezando-se o gasto com equipamentos e bens duráveis. Ainda no setor da construção civil, a série distingue o responsável pelo investimento, se governo ou privado. No entanto, as construções feitas por empresas estatais (poderia ser o caso da Infraero, por exemplo) são contabilizadas como “setor empresarial”, e aparecem somadas aos gastos de empresas e famílias fora da conta da administração pública.

As estimativas adotam a definição de setor privado das Contas Nacionais que engloba as famílias e o setor empresarial – onde se incluem as empresas estatais. Para fins de estimativas, o estoque de capital das famílias restringe-se às construções residenciais que constituem um componente importante do estoque de capital da economia. Outros componentes da riqueza familiar, como ativos financeiros, automóveis e eletrodomésticos, não são considerados por não estarem incluídos nas estatísticas de investimento das Contas Nacionais.12

Para efeito nesta dissertação, assumimos o indicador da taxa de crescimento do estoque líquido de capital fixo na construção civil como a melhor proxy para aferir o impulso econômico do setor da construção civil no longo prazo. Recordamos que nesse impulso somam-se as construções residenciais e não-residenciais, terminologia empregada pela bibliografia e que aqui assumiremos se tratar, grosso modo, da divisão entre os dois subsetores de edificações e infraestrutura, ainda que saibamos que as edificações industriais também são do tipo não-residenciais. Como explicado acima, a metodologia de contabilidade do estoque bruto tem problemas de origem, mas ainda é a melhor forma disponível para entender a evolução do setor no longo prazo.

No gráfico da figura anterior, podemos distinguir alguns comportamentos relevantes da construção civil vis-à-vis a evolução do PIB. Com essa comparação queremos destacar as seguintes relações: no período até 1961 podemos perceber alguma relação de precedência na aceleração da construção civil ante o crescimento do PIB (com defasagem em torno de um ano), enquanto no período seguinte, que se estende até fins dos anos 1970, percebemos um descolamento do comportamento do PIB em relação à construção, o que atribuímos principalmente ao impulso da industrialização pesada que liderava a atividade econômica no país.

11 Segundo IPEA, a formação bruta de capital fixo significa o valor total dos investimentos brutos (sem deduzir o uso devido à depreciação e obsolescência) em capital fixo (máquinas e equipamentos, estruturas e edificações, rebanhos e culturas permanentes) realizadas pelas empresas públicas e privadas em um determinado período. Equivale ao aumento bruto da capacidade produtiva do país. Em http://www.ipeadata.gov.br/iframe_dicionario.aspx, consulta em Setembro, 2019. 12 MORANDI e REIS, Op. cit., p. 5. 18

Por volta de 1980 observamos dois fenômenos novos: por um lado cessa o período anterior de crescimento do PIB puxado por outros setores que não a construção e, por outro lado, inicia-se um longo período de decadência da taxa de crescimento do estoque líquido de capital no setor, com um diferencial importante de que a taxa de estoque líquido na construção não-residencial, onde se inclui a infraestrutura, deixa de ser a mais relevante no setor, dando lugar ao investimento residencial que permanecerá na dianteira do setor até o fim do período analisado (2008).

Nessa longa decadência do setor pós-1980, notamos que as breves retomadas ocorridas em 1985 e 1997 não se consolidaram, e que o setor somente retomaria algum viés de aceleração da taxa de estoque líquido de capital após 2004, com o setor residencial crescendo mais rapidamente que os demais.

Mas quando deixamos de observar as taxas de crescimento ao longo do tempo e observamos o quantum do investimento em construção num mesmo período, vemos que a participação da construção não-residencial é sempre mais vultosa, seja ela realizada pela administração pública, seja por empresas e famílias. Veja-se a figura a seguir, onde se pode perceber como já no início dos anos 1950 o setor residencial deixa de ser dominante no valor total do capital fixo na construção, chegando a um mínimo de participação em 1978 (27,93%). No lado da construção não-residencial, vemos que a administração pública atingirá seu ápice em 1967 (35,63%), para em seguida ceder lugar ao investimento de empresas e famílias (onde se encontram contabilizadas as empresas estatais) que atingirão seu pico em 2005 (44,62%). 19

Figura 2 : Participação da construção residencial e não residencial (pública e privada) no estoque líquido de capital no setor da construção civil - 1950-2008. Fonte: Elaboração própria a partir de dados IPEADATA Concluímos, assim, que a construção não-residencial (onde se encontra a construção de infraestrutura, mas não somente) teve papel preponderante na atividade do setor, que foi historicamente praticada tanto pela administração pública direta como por empresas, fossem públicas ou privadas. Do pós- guerra até o período do “milagre econômico” destacou-se a atividade da administração pública direta. A partir de 1970, a participação das empresas (públicas e privadas) no montante total investido foi crescente.

Assim, podemos estabelecer uma cronologia simplificada do desenvolvimento do setor tendo isso em consideração. Segundo as abordagens historiográficas no campo disciplinar da história da técnica que se dedicam à caracterização da construção civil no Brasil13, podemos adotar uma periodização simplificada do setor na seguinte forma:

• pré-1930: a atividade da construção era dividida entre militar e civil, cabendo a esta última as ações de melhoramentos urbanos e empreendimentos imobiliários. Campos14 destaca que

13 Ver por exemplo RIBEIRO, N. P. “Contributo para uma ‘história da construção’ no Brasil”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. Ribeiro apresenta o campo historiográfico da história da técnica, ressaltando a contribuição de autores como Milton Vargas, Julio Katinsky e Silvia Fischer para a história da técnica construtiva no Brasil em tempos coloniais e, no caso do primeiro, principalmente no século 20. 14 CAMPOS, P. H. P. Estranhas catedrais. As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Rio de Janeiro, Eduff, 2014. 20

desde cedo a associação de empreiteiros com os poderes públicos se dava em torno do favorecimento para realização dos empreendimentos urbanos;

• 1930-1949: criação, incorporação e destruição de empreiteiras paulistas e fluminenses em torno das demandas por obras públicas dos respectivos governos locais, ganhando destaque a infraestrutura de transportes (rodovias) e energia (hidrelétricas), padrão fundante do setor no Brasil. Campos destaca o surgimento de associações patronais regionais15;

• 1950-1964: nacionalização da atuação das empreiteiras paulistas e mineiras (e confinamento das fluminenses ao estado do Rio de Janeiro), com a especialização das grandes empreiteiras em grandes obras públicas de infraestrutura de energia (usinas hidrelétricas), e surgimento das empreiteiras nordestinas sob o mercado protegido da Sudene e Petrobras;

• 1965-1979: crescimento e internacionalização das empreiteiras brasileiras, associação com a ditadura civil-militar, diversificação e migração setorial (infraestrutura de transportes passando para construção de aeroportos e energia migrando para projetos nucleares);

• 1980-1989: crise e perecimento das pequenas construtoras, oligopolização das grandes empreiteiras especializadas em hidrelétricas, maior participação dos projetos internacionais no faturamento das empresas;

• 1990-2003: abertura comercial e surgimento de novas firmas nos subsetores imobiliário residencial e não-residencial de tipo comercial, onde a lógica da dominância financeira na racionalidade de governança corporativa converterá esses subsetores da construção civil, por um lado, enquanto o subsetor de obras públicas e infraestrutura se reorganiza em torno das concessões de serviços públicos (infraestrutura de energia, saneamento e de transportes, principalmente rodovias);

• 2004 em diante: novo arcabouço regulatório no subsetor imobiliário reordena a relação público-privada no subsetor; no subsetor de obras públicas e infraestrutura expandem-se as concessões tendo o espaço metropolitano também como objeto de intervenção planejada pelo Estado (Estatutos da Cidade e da Metrópole) e cobiçada pelas construtoras; unidades de negócios de concessões com operação independente.

Tomemos o caso da Construtora Norberto Odebrecht (CNO) como um exemplo da evolução da firma construtora para um grupo multissetorial. Embora a CNO já fosse uma sociedade anônima desde 1954, tendo sido fundada uma década antes, e prestasse serviço à Petrobras desde o ano anterior, a diversificação de negócios da empresa aconteceria a partir de 1979, com a criação da Odebrecht Perfurações Ltda. e a aquisição de parte do capital do Polo Petroquímico de Camaçari, início da 15 CAMPOS, Op. Cit.. 21 participação da empresa como dona de ativos no setor petroquímico. A partir de 1980 a empreiteira entra nos setores de energia e montagem industrial quando também é criada a holding Odebrecht S.A. para controlar todas as firmas do grupo. Nos anos 2000 a atuação no setor petroquímico é concentrada numa expressa específica, a Braskem, e são criadas empresas dedicadas ao setor agroindustrial, imobiliário, saneamento, logística e transporte. Na década de 2010, o grupo dá passos mais largos e adentra os setores de defesa e tecnologia e cria um braço específico para participações em investimento em países estrangeiros. Desenvolve também uma empresa dedicada à administração de concessões, a Odebrecht Properties, que atuará nos setores de saneamento, estádios de futebol e transportes (rodovias, trens urbanos, metrô e aeroportos).

Nesse desenvolvimento dos negócios da construtora, percebemos como a organização societária se reordenará, com o surgimento de firma controladora ou holding, configurando um grupo que articula firma construtora de infraestrutura em diversos setores, participações no capital controlador de negócios e empresas concessionárias de serviços públicos. A figura a seguir representa a organização societária da empresa nos anos 2010.

Figura 3: Estrutura organizacional do Grupo Odebrecht nos anos 2010 22

E a ramificação da empresa tinha alcance global, como ilustrado na figura a seguir.

Figura 4: Diversificação de atividades do grupo Odebrecht nos anos 2010

A partir daquela periodização simplificada do setor apresentada anteriormente, destacamos o período pós-1990, quando o subsetor de infraestrutura se reorganiza em torno das concessões de serviços públicos, observando-se na época a diversificação da atuação das construtoras por meio da criação de subsidiárias dedicadas à exploração de concessões públicas, principalmente rodoviárias.

As firmas que liderarão o setor serão aquelas que melhor se posicionaram ao longo das décadas anteriores por meio do acesso a contratos públicos vantajosos em mercados quase exclusivos. Falamos do mercado de construção e montagem industrial no setor de óleo e gás, onde floresceu a Construtora Norberto Odebrecht, por exemplo, do setor de energia elétrica, onde a Camargo Corrêa cresceu entre as empreiteiras “barrageiras”, e do subsetor rodoviário, onde despontou a Andrade Gutierrez. Segundo Campos, as estratégias de ramificação, internacionalização e entrada no novo mercado de concessões teriam sido respostas das construtoras à alteração no bloco de poder que teria levado à cisão interna do 23 grupo devida à transição do período da ditadura para a Nova República. 16 No novo arranjo da redemocratização, em que a crise fiscal permanente encetada pela crise da dívida condicionou a relação público privada de tal forma em que a “parceria” entre as partes figurasse como o arranjo mais proveitoso para ambos, o mercado de concessões de serviços públicos pode ser entendido como um subproduto do ocaso da ditadura e do desarranjo do investimento e manutenção da infraestrutura econômica do país17.

As firmas líderes no período 2004-2014 estudado nesta dissertação podem ser identificadas ao contabilizarmos o patrimônio médio das empresas que frequentaram o ranking das 50 maiores construtoras do país naquele período, segundo a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC). Ao analisarmos a dispersão simples nesse ranking, vemos no topo uma divisão entre as empresas do subsetor de infraestrutura e as especializadas no subsetor de edificações: dentre as 5 firmas líderes, 2 eram atuantes no mercado imobiliário (MRV e Eztec), e as demais (Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez) eram dedicadas à infraestrutura.18

16 “A reorganização do bloco de poder em passagens dos anos 70 para os anos 80 cindiu os empreiteiros, antes unidos em torno de Andreazza e das obras do ‘milagre’. A reafirmação da hegemonia internacional norte-americana, com imposição de altas taxas de juros e a ameaça de retaliação para países que não cumprissem as obrigações financeiras [pagamento da dívida externa], levou a uma reacomodação das forças do empresariado dentro do grupo dirigente, marginalizando pequenos e médios empreiteiros e industriais. Os grandes empresários da construção se colocaram em posição razoavelmente privilegiada que lhes coube dentro do novo pacto político, adequando-se às novas configurações econômicas do país. Isso os levou a investir na ramificação, internacionalização e, posteriormente, no programa de privatizações.” CAMPOS, P. H. P., Op. Cit., p. 276-277. Em que pese o emprego do conceito de “bloco de poder”, grafado de forma distinta de “bloco no poder” como em Poulantzas, Saes e Pinto, entendemos que Campos partilha da abordagem teórica desses demais autores e assumiremos que ambas as grafias possuem o mesmo valor semântico. 17 Referimo-nos especificamente à interpretação da crise apresentada em BELLUZZO, L. G. M.; ALMEIDA, J. S. G. Depois da Queda: a economia brasileira da crise da dívida aos impasses do real. São Paulo: Civilização Brasileira, 2002. 18 Os gráficos e tabelas apresentados nesta seção foram gerados a partir de dados da Revista O Empreiteiro de 2003 a 2016 publicados pela CBIC em http://www.cbicdados.com.br/menu/empresas-de-construcao/maiores-empresas-de-construcao. Acesso em 28.11.19. 24

Figura 5 - Concentração do setor da construção civil segundo o patrimônio empresarial médio no período 2004- 2014

No entanto, se dispersarmos as firmas segundo o faturamento acumulado no período, perceberemos que as firmas que amealhavam as maiores fatias do valor de mercado eram todas dedicadas ao subsetor de infraestrutura. No gráfico da figura a seguir vemos a dispersão das 97 firmas que frequentaram o posto das 50 maiores construtoras no mesmo período de 2004 a 2014 em função do seu faturamento acumulado no período, medido em bilhões de reais correntes. 25

Figura 6 - Concentração do setor da construção civil segundo faturamento acumulado de 2004 a 2014

Destacamos as seis firmas líderes (Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, OAS e Galvão) que juntas dominavam 82% do valor de mercado do setor da construção civil. Observando-se a curva do faturamento dessas seis firmas em conjunto ao longo do período, vemos que ela foi crescente até 2013, ainda que o período de aceleração tenha se dado somente até 2008, tendo sofrido queda acentuada em 2009, a partir de quando inicia a desaceleração moderada até 2013, depois passando a queda abrupta do faturamento em 2014. 26

Figura 7 - Evolução do faturamento das 6 maiores firmas do setor de construção (2004-2014)

A partir dessas constatações, indaga-se qual teria sido o impacto da crise de 2008 para o setor?

Quando são tomados os dados de todo o setor em conjunto, pode-se levantar a hipótese de que a atividade econômica pós-2008 poderia ter contado com alguma ajuda de uma maior contratação pública de obras de infraestrutura. Essa hipótese é sustentada pelos dados apresentados na figura a seguir, onde se vê uma inversão na trajetória de diminuição da importância do setor público no setor desde 2005, observando-se um acréscimo entre 2008 e 2009 de 24% para 32% em média da participação dos contratos públicos na carteira das 66 maiores firmas do período. Em 2010 essa participação atingiria o pico do período de 36%, ou pouco mais de um terço dos contratos das firmas mais relevantes do setor. Se olharmos apenas para aquelas firmas que mais dependiam de contratos públicos, vemos um salto de 60% a 96% na contratação pública, mostrando claramente a estratégia dessas firmas em recuar de quaisquer avanços no mercado privado para abrigarem-se sob a proteção de contratos públicos. 27

Figura 8: Variação da participação de contratos públicos nas carteiras das empresas do setor (2004-2014) No entanto, esse não era o caso das 6 firmas com maior faturamento do setor, todas elas empreiteiras do subsetor de infraestrutura, listadas na Figura 6. Para aquelas firmas, a importância dos contratos públicos também era decrescente desde o início do período, percebendo-se algum aumento depois de 2008, com pico de 68% em 2009, como se vê no gráfico da figura a seguir. No entanto, percebe-se como as empresas líderes dentre as seis eram também aquelas com menor participação de contratos públicos em suas carteiras (CNO 50%, CCCC 48%), visto na figura seguinte. Essa constatação aponta para uma crescente importância do mercado privado para as firmas de infraestrutura. Mas o que seria esse mercado privado de infraestrutura? 28

Figura 9: Participação de contratos públicos nas carteiras das 6 maiores firmas (2004-2014) 29

Figura 10: Posição das 6 maiores firmas quanto à importância de contratos públicos

Se analisarmos os balanços patrimoniais e resultados anuais das duas firmas líderes mencionadas, Odebrecht S.A. e Construções e Comércio Camargo Corrêa S.A., podemos avaliar o quão importante para o grupo era a atividade de construção, ao destacar a participação da atividade de Engenharia e Construção na receita líquida geral da empresa.

Segundo apresentado nas figuras a seguir19, a evolução das receitas líquidas das duas firmas líderes do setor era fortemente dependente de atividades em outros setores além da atividade fundadora das empresas de engenharia e construção20. No caso da Odebrecht, a sua controlada dedicada à atividade de engenharia e construção (CNO) era responsável por 34% da receita do grupo no período, enquanto as atividades ligadas ao setor de óleo e gás21 respondiam por 57% em média da receita do período.

19 Os gráficos de evolução de receitas das firmas líderes foram criados a partir dos dados publicados pelas próprias companhias em seus respectivos relatórios anuais de prestação de contas aos investidores. Infelizmente não se dispõe dos dados da Camargo Corrêa posteriores a 2012, dado que a empresa restringiu o acesso a essa informação antes pública. 20 A ramificação de atividades das empreiteiras já havia sido realizada como reação a crises anteriores do setor, como no final dos anos 1970 em que a participação na mineração foi incentivada como um setor correlato, por se tratar de “um mercado ‘sem crise’ e que a adaptação ao novo ramo era fácil, dado que os equipamentos eram iguais ou similares aos da construção pesada”. Em CAMPOS, P. H. P., Op. Cit., p. 236. 21 Computamos aqui as receitas do grupo no setor de óleo e gás, química, petroquímica e plásticos através da empresa controlada Braskem. 30

Figura 11: Evolução das receitas operacionais da Odebrecht S.A. por atividade - 2006-2014

No caso da Camargo Corrêa, as atividades básicas do setor, como engenharia e construção e comercialização de cimento, eram responsáveis por 48% da receita no período em média. Destaca-se que neste caso a participação em outros setores era minoritária (13% no setor de calçados graças à Alpargatas, 4% em siderurgia e 2% em naval). No entanto, já era relevante a contribuição das receitas com concessões de infraestrutura à receita geral da empresa, observando-se a média de 21% no período entre concessões de energia, transportes e aeroportos (fora do Brasil). 31

Figura 12: Evolução das receitas operacionais da Camargo Corrêa por atividade - 2006-2012

Vemos como já estava aberto o caminho para que o capital acumulado na atividade da construção civil pudesse migrar entre setores por meio de contabilidade intrafirma sem necessidade de intermediação financeira e reproduzir-se em outros mercados, como o de concessões de serviços públicos que se desenvolvia dentro dos setores de energia e de transportes, ocasionando o florescimento das concessionárias subsidiárias das empreiteiras. Sobre essa ramificação dos negócios das construtoras, daremos destaques à expansão na direção do setor de transportes, objeto de nosso estudo.

Na figura a seguir mostramos em forma de diagrama a organização societária das principais concessionárias de transportes vinculadas às empreiteiras líderes do setor. 32

Figura 13: Estrutura societária das concessionárias de transportes vinculadas a construtoras

Pela figura anterior vemos que as firmas líderes do subsetor de infraestrutura tinham participação em empresas concessionárias de transportes: Invepar, CCR e Odebrecht Transportes.

A CCR foi constituída em 23 de setembro de 1998, com o fim de administrar concessões de rodovias federais e estaduais do programa de concessões iniciado em 1993. Inicialmente constituída para unificar as participações que as construtoras fundadoras já possuíam diretamente em cada concessão, a empresa foi listada na CVM em 2000, e em 2001 entrou no Mercado Novo na BOVESPA, iniciando a negociação de ações em 2002. Até 2003 a Odebrecht possuía 19,99% de participação na CCR, tendo sido sucedida pela Camargo Corrêa a partir de 2004. No período estudado, a composição acionária da CCR era de 17,88% Camargo Corrêa, 17,39% Andrade Gutierrez, 17,88% Serveng e 17,88% Brisa, grupo português de participação em concessões rodoviárias.22

A história da Invepar começa no ano 2000, quando o grupo foi criado por associação da OAS (17%) com o fundo previdenciário dos funcionários do Banco do Brasil, a Previ (83%). Em 2009 a Funcef (fundo de pensão dos funcionários da Caixa Econômica Federal) e Petros (fundo de pensão dos funcionários da Petrobras) tornam-se sócias da Invepar (inicialmente com 20%, depois de 2012 com 25% cada uma), quando a empresa assume a estrutura apresentada na figura anterior e que perdurou até 2014.

A Odebrecht Transport (OTP) é subsidiária do Grupo Odebrecht criada em 2010 para agrupar as participações em concessões de rodovias, trens urbanos, portos e aeroportos. Última companhia a ser criada pela associação de capital da construção civil com fundos públicos, a OTP contava com

22 Em http://ri.ccr.com.br/informacoes-corporativas/perfil-corporativo-e-historico/, consulta em 8/12/2019. No início do período estudado (2004) a constituição acionária da CCR era: Andrade Gutierrez 17,39%, Brisa [portuguesa] 17,88%, Camargo Corrêa 17,88%, Serveng-Civilsan 17,88%, minoritários 28,98%. 33 participação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), operado pela Caixa Econômica Federal, e do braço de participações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDESPar), com 30% e 10,61% respectivamente.

A estrutura societária das empresas concessionárias de serviços públicos de transporte confirma um padrão de associação de capital do subsetor de infraestrutura da construção civil com fundos públicos, os quais podem se configurar em distintas formas: ou fundos de pensão de funcionários públicos (Previ, Funcef, Petros), ou participação direta da administração de bancos públicos (BNDESPar) ou ainda a combinação das duas formas anteriores em um fundo administrado por um banco público (FGTS administrado pela Caixa). O padrão identificado é, afinal, o da associação do capital do subsetor de infraestrutura da construção civil com fundos públicos, na qual estes últimos viabilizam a expansão dos primeiros em um setor correlato ao seu de origem e, com isso, fomentam o investimento em infraestrutura e diversificam seu portfólio de participações. OAS e Odebrecht foram pioneiras na associação com fundos públicos na virada do século. Suas concorrentes Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez, por outro lado, não tiveram acesso direto aos fundos públicos, tendo recorrido a acionistas minoritários para composição do capital das empresas controladas. Contudo, a identificação de oportunidades e condução dos novos negócios dessas empresas administradoras de infraestruturas de transportes é atividade liderada pelas construtoras, em todos os casos.

A relação que as concessionárias de serviços públicos terão com as construtoras desses mesmos grupos será definida por elas mesmas, com possibilidade de contratação direta, sem licitação, fortalecendo inclusive a atividade fundadora de engenharia e construção nesse processo. Por esse motivo, entre outros, o subsetor de transporte rodoviário organizado em torno da concessão dos serviços públicos pode ser considerado como um subsetor correlato ao setor de construção civil, onde o crescimento das subsidiárias das empreiteiras pode se dar de maneira orgânica e articulada com o seu setor de origem.

Esse primeiro movimento de migração intersetorial das empreiteiras já se encontrará concluído quando da ocorrência do ciclo econômico estudado nesta dissertação, de maneira que a criação de um novo mercado de aeroportos via concessão da infraestrutura aeroportuária aparecerá como um segundo passo em oportunidade de expansão desses capitais “de maneira orgânica e articulada”.

* * * 34

Mas e o setor aéreo, como evoluía nesse mesmo período?

Como veremos mais adiante no Capítulo 2, o setor de transporte aéreo passava por uma recente aceleração do crescimento de sua demanda que configuraria claramente um ciclo entre 2004 e 2014. A partir de 2004 a quantidade de passageiros transportados no Brasil passou a aumentar a uma taxa média de 10% ao ano. Em realidade, a partir do segundo ano da série a aceleração foi maior, registrando em 2005 um mercado da ordem de 20% maior do que em 2004, crescimento esse que se manteria à taxa média de 10% ao ano até 2007, sofrendo uma queda em 2008 para 6%. A partir de 2009 essa taxa de crescimento de passageiros transportados voltou a acelerar, e ainda mais rapidamente, passando para 14% em 2009, 23% em 2010 e 17% em 2011. Em 2012, quando a desaceleração se confirma, a taxa de crescimento de passageiros transportados foi de 8%, e em 2013 resultará num crescimento de apenas 5% a.a. em média até 2014. Depois de 2014, a desaceleração se tornou em regressão, com diminuição absoluta da quantidade de passageiros atendidos no transporte aéreo. Em 2016 o mercado já era menor do que em 2012.

Se olharmos para o comportamento dinâmico entre oferta e demanda no mercado de transporte aéreo, vemos que aos anos de maior aceleração da demanda real correspondem às taxas de aproveitamento 23 mais baixas do período. A explicação desse fenômeno num ciclo de negócios está em que a oferta de assentos tende a aumentar à frente da realização da demanda e junto com o “apetite” das firmas em conquistar maior fatia do mercado, e elas o fazem na medida em que dispõem de recursos para dispender em investimentos, recursos estes adquiridos nos anos anteriores de crescimento.

Assim, maior crescimento induz a maiores investimentos em material aéreo (aviões e os custos a eles associados), maior quantidade de pessoal empregado, maiores gastos em geral para sustentar a ampliação dos negócios. Enquanto a receita por passageiro segue aumentando, o movimento continua, e o aproveitamento mantém-se relativamente baixo. Para que se tenha uma ideia, enquanto a taxa de aceleração do crescimento do mercado de transporte aéreo havia passado de 4% a.a. entre 1997 e 2002 para 10% em média ao ano naquele subperíodo de 2004 a 2007, o aproveitamento médio não passava de 68%.

A partir de 2012, como vimos, percebeu-se uma desaceleração que depois de 2014 se tornaria em regressão do tamanho do mercado. Do lado da oferta, vemos o aproveitamento das firmas então saltar dos 68% em média para 76% entre 2012 e 2014, e depois da crise ele só continuaria crescendo até a média de 81% de 2015 a 2018. O que isso significa? Primeiro, que dado um cenário de regressão da demanda por transporte aéreo, as companhias aéreas conseguiram rapidamente ajustar a oferta para a taxa relativamente alta de 80%, um padrão considerado ótimo no setor. Segundo, que esse padrão

23 Refere-se à proporção de assentos pagos ante os ofertados. Grosso modo, expressa a ociosidade das companhias aéreas e quanto do seu custo real está sendo remunerado pela comercialização de passagens aéreas. 35

ótimo equivale a um cenário em que o mercado não cresce, e a receita por passageiros oscila abaixo do teto registrado em 2011.

Considerando que aproximadamente 80% das despesas das firmas são contabilizadas em dólar, a moeda norte-americana resulta no deflator mais apropriado para regularizarmos a série histórica estudada. Assim, se quisermos ajustar os valores do RASK (receita por passageiro.quilômetro) no período pela cotação anual do dólar, e assim assumirmos o valor do dólar constante, teremos uma curva de desenvolvimento da receita no setor que mostra um crescimento real entre 2004 e 2008, uma queda abrupta de 16% entre 2008 e 2009 e uma rápida recuperação a partir de então até o auge em 2011. Daquele ano até 2014 vemos o mercado do transporte aéreo se preparando para uma “aterrissagem controlada”, com uma estagnação na oferta (ASK) frente uma demanda (RPK) que crescia lentamente à média de 5%. O gráfico a seguir representa as curvas de evolução da oferta de assentos por quilômetro e demanda de passageiros pagantes frente à evolução das receitas e despesas (dólares correntes) do setor no período 2003-2014. Fica caracterizado como o ano 2011 foi o ano de pico da atividade do setor tanto pela curva das receitas geradas como pelo lado da oferta de assentos e a despesa de voo incorrida.

Figura 14: Receitas e despesas do setor de transporte aéreo no período 2003 a 2008 (Bilhões de dólares correntes)

O que interessa da interpretação desses dados? De início, levantamos duas perguntas importantes para a nossa dissertação sobre a tomada de decisões e o papel do planejamento. Lembramos que o planejamento do governo para realizar os investimentos na infraestrutura do setor decidiu-se por seu curso a médio e longo prazo através da política de concessão aeroportuária em 2010, com um estudo realizado em 2009 com dados disponíveis até 2008. No entanto, a política de concessão aeroportuária começou a ser implantada em 2011, sendo que o período das primeiras concessões dos aeroportos 36 centrais tidos como “saturados” pelo estudo foi iniciado em meados de 2012, quando as estatísticas que mostrariam a inflexão do comportamento da demanda ainda não estariam disponíveis até o final daquele ano.

Logo, perguntamos: teria o planejamento capacidade para haver previsto a desaceleração que se manifestaria a partir de 2011? Senão, perguntamos: que medidas foram previstas no planejamento da política de concessão aeroportuária para adaptar o seu comportamento à variação da demanda projetada?

A primeira ou mais importante característica do planejamento é saber que projeções futuras estão sujeitas a flutuações que sempre ocorrerão, de maneira que o planejamento não pode ser hipersensível a elas. A visão de médio e longo prazos depende, portanto, de um certo descolamento dos movimentos conjunturais e atenção maior às tendências mais duradouras. Em se tratando de construção de infraestrutura, aliás, resulta ainda mais importante fixar-se em visões de longo prazo.

Ainda assim, o planejamento deve saber incorporar o fato de que essas flutuações ou mesmo alterações bruscas na dinâmica da demanda poderão ocorrer, e assim planejar também como a sua política lidará com elas. Veremos no Capítulo 3 como parte importante do modelo de concessão dos aeroportos refere-se à previsão dos reflexos da flutuação da demanda na regulação da concessão por meio da contribuição variável da receita bruta, parte dos pagamentos devidos pelo concessionário ao Poder Público.

Conforme comentado no início desta introdução, no capítulo 1 a seguir fazemos uma retomada do desenvolvimento do outro mercado associado com o qual o novo mercado de aeroportos viria a ter relação: o mercado do transporte aéreo. Nesse capítulo será feita uma breve reconstituição histórica, repassando os principais pontos constitutivos do setor, com ênfase nas políticas de liberalização postas em prática após a abertura comercial dos anos 1990. 37

Capítulo 1. Formação do setor de transporte aéreo 38

Como tratado na introdução desta dissertação, identificamos a ocorrência de um ciclo econômico no setor da construção civil entre 2004 e 2014, com uma fase ascensional de 2004 a 2008, e uma fase descensional de 2009 a 2014, que teria coincidido com o ciclo do subsetor de transporte aéreo, cuja fase ascendente até 2008 demandava ampliação da capacidade de sua infraestrutura. Consideramos que a conduta de política econômica do governo federal no período 2009-2014 moldou-se pela resposta ao estouro da crise financeira e econômica global de 2008, dentro da qual o investimento em infraestrutura assumiria papel relevante, notadamente para os dois setores aqui estudados, construção civil e transporte aéreo. É nesse contexto que a política de concessão de aeroportos a empresas privadas se insere, tanto como evidência da “urgência” de ampliar capacidade no sistema após a fase ascensional de crescimento da demanda, quanto como a “forma” escolhida para incentivar a atividade econômica de sustentação do crescimento econômico na fase descensional do ciclo da construção civil.

Contudo, antes de entrar a analisar o desenvolvimento dessa política pós-2008, já dentro da dinâmica do ciclo 2004-2014, é necessário resgatar a evolução de longo prazo do setor de transporte aéreo. Com esse panorama de fundo anterior ao ciclo estudado, em que destacaremos o período recente da abertura comercial seguida de desregulamentação e mudança dos atores envolvidos até o momento anterior ao ciclo, isto é, até 2004, buscaremos caracterizar, ainda que de forma estilizada, a trajetória de desenvolvimento do transporte aéreo no Brasil que viria a desembocar no ciclo econômico aqui estudado, e que deixaremos para analisar em maior detalhe nos capítulos seguintes.

Liberalização e expansão da Rede Aérea Nacional no pós-guerra

Tendo iniciado suas atividades no Brasil nos anos 1920, segundo Monteiro24, teria sido no pós-guerra que a aviação civil se enquadraria nos novos marcos institucionais estabelecidos para a regulação mundial do setor, com destaque para a Convenção de Chicago em 1944 e a fundação da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) e Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, em inglês).

Será a partir de então que a aviação crescerá em número de companhias e em área de cobertura da Rede Aérea Nacional25, a qual passava a integrar localidades do país que não eram atingidas por nenhum outro modo de transporte, nem mesmo o incipiente modo rodoviário.

24 MONTEIRO, C. F. “A trajetória da do nacional-desenvolvimentismo ao consenso neoliberal: estudo de caso sobre as relações entre empresa e sociedade”. Dissertação de Mestrado. PPGSA/IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2000. 25 A Rede Aérea Nacional (RAN) tratada nesta dissertação equivale ao espaço de fruição do direito ao transporte interurbano pelo modo aéreo, constituindo-se tanto das ligações aéreas entre aeródromos quanto da conectividade e comunicação entre centros urbanos no território nacional por esse modo de transporte, tanto de passageiros como carga e mala postal. Em outras referências bibliográficas podemos encontrar o termo “malha aérea” que se refere ao conjunto de ligações aéreas (rotas programadas de voo entre dois aeródromos) numa imagem de “tecido” ou “malha” que cobriria o território e seria a base para a Rede Aérea Nacional. 39

Nessa expansão, a construção de novos aeroportos aparecia como uma medida necessária para acompanhar o desenvolvimento do mercado de transporte aéreo, medida essa relegada às próprias companhias aéreas, principais interessadas na expansão da infraestrutura aeroportuária. A liderou essa iniciativa, e responsabilizou-se pela construção dos aeroportos de São Luís, Fortaleza, Belém, Natal, Recife, Maceió e Salvador.26

Figura 15: Formação bruta de capital fixo na administração pública - Participação da construção de aeroportos vis-à-vis taxa de investimento da economia

A atuação do governo federal em investimentos de infraestrutura aeroportuária ainda era inexpressiva. A Figura 15 apresenta a fraca evolução da participação da construção de aeroportos na formação bruta de capital fixo na administração pública, vis-à-vis a taxa de investimento da economia 27. No

26 Em https://www.aviacaocomercial.net/panair.htm, 5/1/2019. Castro e Lamy (CASTRO, N.; LAMY, P. “Desregulamentação do setor de transporte: o subsetor de transporte aéreo de passageiros”. Texto para Discussão n. 319. Brasília, IPEA, 1993, p. 9) também mencionam a responsabilização da Panair para a construção e “melhoramentos” de aeródromos: “Em 1941, a Panair foi autorizada a construir, melhorar ou equipar aeroportos no Amapá, Belém, São Luís, Fortaleza, Natal, Recife, Maceió, Salvador e Barreiras, este como alternativa no oeste da Bahia, para os voos da linha Belém-Rio da Pan Am”. Em São Paulo, a Vasp já operava de seu “campo da Vasp” recebido do governo estadual em 1936, e que seria convertido em Aeroporto de Congonhas com torre de controle, terminal de passageiros e pista de pouso e decolagem com 1865m de extensão em 1955. Segundo os autores, antes de ser encampada pelo estado de São Paulo e receber o Aeroporto de Congonhas, a Vasp teria contado com a ajuda de autoridades municipais e estadual nos anos 1930 para “a construção de uma rede de campos de pouso a cada 50km ao longo das suas rotas”. CASTRO, N.; LAMY, P., op. cit., p. 10. 27 Fonte: Centro de Estudos de Economia e Governo (CEEG) do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE / FGV-RJ). Tabulações especiais (mimeo). Obs.: Dados referentes ao total do governo federal. Série interrompida. Capital fixo - formação bruta - construção - estudos e projetos - adm. pública - R$ (mil) - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) – HIST_FBKCG1N. 40 gráfico da Figura 1628, vê-se a evolução do número de companhias aéreas em operação no país de 1924 a 1964. Se nas décadas anteriores (1920-1930) a quantidade de companhias aéreas em operação não passava de cinco, a partir dos anos 1940, principalmente depois de 1945, há um rápido crescimento na quantidade de companhias abertas, atingindo o pico histórico de 25 companhias em operação simultânea em 1948-1950, entre companhias regionais e nacionais.29

Figura 16: Gráfico de evolução da quantidade de companhias aéreas no país (1924-1964)

Segundo Ferreira30, até o início dos anos 1960 as intervenções governamentais no setor eram pouco relevantes para criar disparidades entre os agentes ou distorções no tamanho e dinâmica do mercado.31

28 Elaboração própria a partir de dados de FERREIRA, J. C. "Um breve histórico da aviação comercial brasileira". XII Congresso Brasileiro de História Econômica e 13a Conferência Internacional de História de Empresas. Niterói, Agosto 2017 e ANAC, http://www.anac.gov.br/assuntos/dados-e-estatisticas/historico-de-voos, 5/1/2019. 29 GOMES et al. “Aviação Regional Brasileira, Modal Aéreo IV”. Informe Infraestrutura. Rio de Janeiro: BNDES, n. 50, novembro 2002, p. 1., consideram um máximo de 34 empresas nessa época, sem citar seus nomes no entanto. Por outro lado, a partir dos dados que consolidamos de diversas fontes para esta dissertação, chegamos a um máximo de 25 empresas nos anos 1948-1950. 30 FERREIRA, J. C. Op. cit. 41

No entanto, Laplane32 identifica um número substancial de subvenções e adiantamentos para as companhias aéreas registrado nos decretos de autorização de funcionamento 22.144/1946, 22.905/1947, 25.470 e 25.602/1948, 27.294/1949, 31.625/1952, 32.169/1953 e 35.322/1954. Os decretos citados por Laplane nos mostram, contudo, a atuação passiva do Estado brasileiro, limitado a exigir condições genéricas prévias à autorização de operação das companhias aéreas estrangeiras em território nacional.

Formação de infraestrutura “pioneira” e oligopolização

A virada dos anos 1950 para os 1960 também ficaria marcada pelo início de uma nova forma de operação na Rede Aérea Nacional até então inédita no mundo: uma ligação direta entre os dois aeroportos mais movimentados da rede, com passagens aéreas sem direito a reservas de assentos e com horários livres de embarque indistinto entre múltiplas companhias, o que ficaria conhecido como “ponte aérea”.33

Tratava-se, de fato, de uma forma sui generis de compartilhamento de capacidade (pool) entre empresas concorrentes em um mesmo mercado, e que a partir de então decididamente passaram a operar em conluio ofertando conjuntamente um mesmo produto com altas barreiras técnicas e regulatórias para entrada de novos competidores. Nesse caso, a operação da ligação mais concentrada da Rede Aérea Nacional possibilitou a formação de um “oligopólio concentrado” no centro de um mercado que viria a se desenvolver na forma de “oligopólio diferenciado”, segundo os conceitos definidos por Possas.34

Bettini35 relembra que a diferenciação de produtos no mercado de transporte aéreo viria a caracterizá- lo de tal forma nos tempos recentes (pós abertura comercial dos anos 1990) que o transporte aéreo se tornaria em um dos exemplos preferidos dos manuais de microeconomia para explicar o que seria um “oligopólio diferenciado”.

31 Nas palavras de Ferreira, “mesmo com intervenções regulares por parte do Governo, até o início dos anos 1960 vigorava o regime de livre concorrência entre as empresas aéreas. Existia ampla liberdade de entrada e saída do mercado, livre escolha de rotas e liberdade tarifária”. Ferreira, Op. cit., p. 11. O autor pondera, no entanto, que as linhas internacionais e “de penetração” (ou regionais) eram subvencionadas pelo Estado. 32 LAPLANE, G. “Os desafios da regulação do setor de transporte aéreo de passageiros no Brasil”. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual Paulista, Programa de Pós-Graduação em Economia, Araraquara, 2005. 33 BETING, G. Ponte Aérea: “Quarenta anos de história da maior invenção da aviação comercial brasileira”. Flap Internacional, São Paulo: Editora Flap, 2007, e CASTRO, N.; LAMY, P. Op. cit., p. 6 e 7. Segundo os autores, a gestão das receitas obtidas pelas companhias era feita mediante um acerto contábil entre as firmas a posteriori. 34 POSSAS, M. L. Op. cit. 35 BETTINI, H. F. DE A. J. “Inferências de condutas em um oligopólio diferenciado: estudos sobre o comportamento do entrante em transporte aéreo no Brasil”. Tese de Doutorado—Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2013. 42

Neste caso, assumimos a definição de “oligopólio concentrado” especificamente para a ligação Rio-São Paulo na forma da “ponte aérea” como uma estratégia deliberada de manter controle sobre a principal fonte de receitas do sistema e, com isso, restringir o acesso ao mercado como um todo. Logo, o “oligopólio diferenciado” que viria a caracterizar o mercado do transporte aéreo como um todo pós- 1990 devia sua origem a um mercado homogeneizado pelo planejamento, e que tinha em sua espinha dorsal um “oligopólio concentrado”. Assim, ainda que o mercado do transporte aéreo no geral possa vir a ser caracterizado como um oligopólio diferenciado (o que só viria a se dar muitas décadas depois da inauguração da “ponte aérea”), sustentamos que um passo fundamental na direção da oligopolização do transporte aéreo se deu pela criação da “ponte aérea”, na ligação mais concentrada da Rede Aérea Nacional. Quando de sua desregulamentação e liberalização nos anos 1990, veremos como esse submercado da ligação Rio-São Paulo será o último a ser aberto à concorrência.

A figura a seguir mostra a evolução do transporte de passageiros por ano na “ponte aérea” entre 1959 e 1999. Destacando-se o fato de que o início da operação da “ponte aérea” se deu em julho de 1959 – e que, portanto, o primeiro ano completo de operação da ‘ponte aérea” foi 1960 – podemos ver um crescimento de quase 10 vezes do carregamento nessa ligação nos 38 anos que separam o primeiro ano e o ano de máximo carregamento naquele período (1998). Ou seja, crescimento de aproximadamente 400 mil passageiros no ano inaugural para um máximo de cerca de 4 milhões de passageiros em 1998.

Para fins de comparação com o período do ciclo estudado nesta dissertação, a ligação Rio-São Paulo transportou 3,23 milhões de passageiros em 2004, 2,44 milhões em 2008 e 3,35 milhões em 2014.36

36 Segundo Dados Estatísticos ANAC 2004, 2008 e 2014. 43

Figura 17: Passageiros transportados por ano na ponte aérea Rio-São Paulo (1959-1999). Fonte: BETING, G. Ponte Aérea. “Quarenta anos de história da maior invenção da aviação comercial brasileira”. Flap Internacional, São Paulo: Editora Flap, 2007.

Silveira37 destaca a mudança no padrão dos serviços aéreos na virada da década de 1950 para 1960, em que estes deixavam de ser oferecidos predominantemente ao longo do litoral e passavam a ser oferecidos também no interior do território brasileiro.

Segundo Silveira, isso se deveria a um condicionamento da Rede Aérea Nacional pelo processo de urbanização e crescimento econômico em curso. Em que pese a dominância do binômio

37 SILVEIRA, J. A. “Transporte aéreo regular no Brasil: análise econômica e função de custo”. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, COPPE/UFRJ, 2003, p. 10, apud LAPLANE, Op. cit., p. 45. 44 industrialização-urbanização nas dinâmicas setoriais como um todo naquela época, uma outra explicação dessa modificação poderia advir da mudança tecnológica então em curso na aviação civil.

Em fins dos anos 1950 e início da década de 1960 encerrava-se o ciclo tecnológico da aviação civil baseado no material aéreo herdado da 2a Guerra Mundial. Nessa mesma época, as companhias aéreas substituíam rapidamente os aviões norte-americanos de tecnologia de motor a pistão (DC, Constellation) por aviões a jato de novíssima geração.

Esse salto tecnológico mudou o perfil das rotas voadas, uma vez que a menor necessidade de paradas para reabastecimento de combustível passava a possibilitar etapas mais longas, com voos mais rápidos transportando maior quantidade de passageiros por aeronave. Logo, a rota litorânea principal já não requeria tantas paradas para abastecimento, o mesmo se dando para as rotas “de penetração”. Com isso, observa-se a primeira redução significativa na densidade da Rede Aérea Nacional, quando aquelas 358 localidades atendidas em 1950 seriam reduzidas a 254 em 1961.38

O impacto da era do jato no setor teve alcance ainda maior: a própria crise de solvência das companhias aéreas que o setor enfrentava a princípios dos anos 1960 também encontraria seu desfecho no bojo da revolução tecnológica então em curso. Segundo Castro e Lamy, o modelo anterior era deficitário no mundo inteiro, de maneira que “[o advento da aviação a jato] vai permitir, no mundo inteiro, às companhias aéreas saírem do vermelho no início dos anos 60”.

No caso do Brasil, essa nova situação significava, a um só tempo, que o perfil das empresas aéreas se modificava, alterando com isso a estrutura do mercado de transporte aéreo que passava a ostentar barreiras tecnológicas relevantes para entrada, e que a subvenção do Estado às companhias aéreas também mudava, deixando de se dar somente por transferências reiteradas de valores do orçamento público a fundo perdido. O novo período seria de intensa e crescente intervenção estatal e entrelaçamento de interesses públicos e privados, porém já assumindo que a estrutura de mercado era a de um oligopólio estável, em que a direção estatal se daria muito mais como seu guardião, com crescente controle sobre as regras de oferta que moldariam a própria forma da Rede Aérea Nacional.

Na bibliografia estudada, principalmente aquela que trata o período pelo viés da historicização estilizada das firmas envolvidas no transporte aéreo, ou aquela que aborda a evolução regulatória do setor, é traço comum não chamar atenção para os efeitos da mudança do regime político após o golpe militar de 1964. Assim, por um lado a história das empresas falará de uma “evolução para oligopólio” 38 LAPLANE, G. op. cit., p. 45. Segundo COELHO, R. P. S., Op. cit., p. 50, o número máximo histórico de localidades atendidas teria sido de 344, atingido em 1957. Guaracy, por sua vez, menciona o número de 352 localidades atendidas “na década de 60”, e que teriam se reduzido a menos de 70 em 1973. GUARACY, T, Sonho brasileiro. Como Rolim Adolfo Amaro construiu a TAM e sua filosofia de negócios. Rio de Janeiro, Editora Copacabana, 2014. Associado à mudança tecnológica das aeronaves em operação, os aeródromos e aeroportos teriam de acompanhar a evolução técnica, o que significou também um descompasso entre aqueles que puderam receber os investimentos necessários (principalmente na extensão de pista e área de pátio) e aqueles que não receberam novos investimentos expressivos, sendo preteridos na configuração da nova Rede Aérea Nacional. 45 a partir dos anos 1960 (Pereira, Gomes, Bettini, Monteiro39), enquanto por outro lado a crítica da regulação apontará um viés “centralizador” e “regulador” crescente do governo (Laplane, Oliveira), antes e depois de 1964.

Além disso, outro traço bastante comum na bibliografia secundária estudada (artigos, teses e dissertações) é a atribuição equivocada da criação da Rede de Integração Nacional (RIN) ao governo militar, quando na verdade o decreto que a instituiu foi publicado 6 meses antes do golpe de 1964. A RIN seria objeto do Plano de Integração Nacional (PIN) cuja motivação era usar do transporte aéreo para garantir o acesso e integração das distantes localidades do território brasileiro40.

Ao abordar a mudança do regime político e institucional em 1964, visando entender as suas consequências para o país em geral e para o setor de transporte aéreo em particular, é importante distinguir as rupturas e as continuidades que o golpe de Estado enseja. Assim, podemos ver continuidade na política de integração nacional inscrita no Plano de Integração Nacional (PIN), e que geraria a Rede de Integração Nacional (RIN), como fruto de um movimento do Estado brasileiro de mais longa duração, iniciado na Era Vargas, impulsionado pelos governos Kubitschek e Goulart e continuado pelos militares.

Por outro lado, destaca-se a ruptura com o cenário de atuação livre das companhias aéreas na década de 1950, direcionando-se o setor para a centralização da regulação e a discricionariedade com que passava a ser feita a autorização de operação e a relação público-privada na regulação do setor pelo DAC sob um governo militar. Como apontado por Monteiro41, o mercado do transporte aéreo ficaria determinado pela adoção dos dois princípios fundamentais inaugurados em 1964. De maneira mais geral, o novo governo passava a determinar o que se chamou a “realidade tarifária”, que removia subsídios tarifários e isenções dos mais diversos usuários dos serviços públicos, de maneira que os serviços cobrassem tarifas que fossem suficientes para cobrir os seus custos totais. E na eventualidade em que os custos totais de um serviço sobrepujassem a capacidade de pagamento dos usuários, tratava-se de reduzir a oferta naquele mercado aos usuários com capacidade de pagamento pelo serviço dentro da “realidade tarifária”, o que levava ao segundo princípio da “competição controlada” que impedia a competição em preços, dentre outras formas.

O processo de centralização de capital no setor passava, assim, a ser reforçado pelos mecanismos de regulação do Estado, tornando-se uma política “positiva” do período. O caso da “ponte aérea” evidenciou o conluio entre três companhias aéreas e o órgão de regulação do Estado (DAC), em um

39 Monteiro sim percebe a mudança que o novo regime traria, ao destacar como “o golpe de 1964 forçou a definição de algumas destas questões [da crise do setor no início dos anos 1960], com a afirmação de dois princípios que passariam a nortear a atividade a partir de então: a ‘competição controlada’ e a ‘realidade tarifária’”. MONTEIRO, C. F. Op. cit., p. 43. 40 Ver mais adiante na seção “Corporativismo e ditadura (1960-1970)” neste mesmo capítulo o tratamento sobre a criação da RIN e PIN nos anos 1960 e 1970. 41 MONTEIRO, Op. cit., p. 43. 46 processo de simbiose de interesses estatais e privados que dificulta o emprego do termo “captura”, uma vez que não se pode definir com precisão quem era o sujeito e quem era o objeto da captura em questão.

Para explicar a dificuldade em determinar “quem capturava quem”, façamos uma breve digressão sobre as mudanças ocorridas no início dos anos 1960 e que representa um marco fundamental no desenvolvimento do setor como um todo, tanto do lado do Estado como do lado das empresas privadas no mercado do transporte aéreo. Essa digressão interessa particularmente ao tema desta dissertação, pois entraremos a ver com atenção o caso da construção “pioneira” da infraestrutura do setor desde os anos 1920, dando destaque ao período do pós-guerra até os anos 1960, e observaremos como a razão de Estado interrompe trajetórias por meio da tomada de decisão do bloco no poder.

Como já expusemos, foi principalmente a partir dos anos 1950 que o setor de transporte aéreo assumiu o caráter de uma rede nacional de transporte interurbano de longa distância que, é preciso lembrar, não tinha concorrência de nenhum outro modo de transporte terrestre. À época, estava ainda em fase embrionária o “rodoviarismo” que viria a caracterizar o desenvolvimento territorial brasileiro a partir de então.

A figura a seguir apresenta a evolução do crescimento populacional brasileiro e a sua respectiva taxa de urbanização. Notar como a fronteira dos 50% seria cruzada em 1965, e a dos 75% em 1990.42

42 Fontes: Para 1996 e 2000: IBGE, Censo Demográfico 2000. Para 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991: Anuário Estatístico do Brasil, volume 56, 1996. Rio de Janeiro: IBGE. Estimativa anual da população residente em áreas classificadas como urbanas no Brasil. Nos anos intercensitários, as participações rural e urbana na população foram calculadas por interpolação cúbica dos dados censitários de 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 1996 e 2000 utilizando a função Spline do software estatístico R. A partir de 2011, série encadeada pela taxa de variação da população conforme dados das Contas Nacionais referência 2010. Para 1872 até 1950: população presente. Nos anos intercensitários, os valores da população foram estimados por interpolação cúbica dos dados censitários de 1872, 1890, 1900, 1920, 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 1996, 2000, 2007 e 2010 utilizando a função Spline do programa econométrico Troll. População residente - urbana - Habitante - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Departamento de População e Indicadores Sociais. Divisão de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica (IBGE/Pop) – DEPIS_POPURB. 47

Figura 18: Evolução populacional brasileira (hab.) e taxa de urbanização (%) - 1947-2008. Elaboração própria a partir de dados IPEA

Até os anos 1950 e 1960, cabia ao transporte aéreo o estabelecimento de uma precária rede de transporte interurbano a integrar o país, e a conectá-lo ao exterior, tanto aos países vizinhos como a outros continentes. Vimos como o setor até então organizava-se em uma estrutura de mercado ainda pouco definida, e que os órgãos estatais reguladores mudavam de designação frequentemente, mas mantinham uma mesma conduta de se limitarem a conceder acesso ao espaço aéreo doméstico às companhias interessadas em criar e expandir o mercado de transporte aéreo no país.

Naquele período, a conduta do governo federal no subsetor aeroviário era passiva no que tem de ver com a assunção dos investimentos pesados em infraestrutura, ainda mais se comparado com o papel protagonista que assumia na construção da infraestrutura de transportes terrestres e energia no Plano de Metas. Como se pode observar melhor na Figura 19 a seguir, a formação bruta de capital fixo do governo geral (União, estados e municípios) dependeu historicamente do setor de construção civil, braço ativo das políticas de investimento do Estado em infraestrutura social e produtiva.

Na série histórica do pós-guerra (1947) à crise do petróleo (1973) da figura a seguir, vemos como a participação da construção na formação bruta de capital fixo do governo geral esteve sempre acima dos 80%. Enquanto isso, dentro do universo dos investimentos das empresas públicas federais, a contribuição das estatais de transportes federais, salvo raros momentos, sempre se manteve abaixo dos 20% da formação bruta de seu capital fixo. Os “raros momentos” foram o imediato pós-guerra, em 48

1947, e o período 1956-1959, de forte expansão da infraestrutura rodoviária dentro do Plano de Metas, mais do que a aeroviária.

Figura 19: Participação das estatais de transportes federais vis-à-vis o setor de construção na formação bruta de capital fixo do governo geral (%) - 1947-1973. Elaboração própria a partir de dados do IPEA

Até essa fase, podemos classificar a estrutura desse mercado em formação como uma de poucas (ainda que significantes) barreiras à entrada, em que a concorrência entre firmas dava-se de forma franca e em muitas frentes, dentre as quais incluía-se até mesmo o estabelecimento da infraestrutura que permitia a expansão do mercado de atuação. É nesse sentido que se pode compreender como naquele período “pioneiro” cabia às companhias de transporte aéreo a tarefa de investimento na infraestrutura do setor.

Castro e Lamy atribuem a esta divisão de funções entre Estado e empresas privadas a causa da falência das primeiras companhias aéreas a operar no Brasil, como a Aéropostale. Segundo os autores,

Quando se iniciou em 1927 o transporte aéreo de passageiros e carga, a União deixou o ônus da construção, equipamento e administração dos aeródromos às companhias, o que era insustentável economicamente, e levou as primeiras empresas à falência (Aéropostale) ou à utilização de hidroaviões (Sindicato Condor, Varig, Nyrba [precursora da Panair]) ou a utilizar aeródromos militares (Campo dos Afonsos no Rio, Campo de Marte em São Paulo) ou a conseguir participação nestes investimentos dos municípios e estados interessados no serviço de transporte aéreo 49

para suas sedes, capitais e cidades principais (CAN [Correio Aéreo Nacional, serviço postal de origem militar], Vasp).”43

Como já se mencionou anteriormente, nos estudos do subsetor de transporte aéreo convenciona-se classificar a sua infraestrutura em duas partes, isto é, a infraestrutura aeroportuária e a infraestrutura de auxílio à navegação aérea.

A primeira delas irá compor a rede de aeroportos cuja fase mais recente de desenvolvimento é o objeto de estudo desta dissertação, e que foi construída paulatinamente partindo de simples campos de pouso dos anos 1920. Nos anos 1950 e 1960 essa infraestrutura era composta principalmente por aeródromos militares implantados pelas forças armadas americanas na 2a Guerra Mundial e herdados pelas forças armadas brasileiras, e que até então vinham recebendo investimentos das próprias companhias aéreas interessadas na sua manutenção, como foi caso da Panair, Cruzeiro e o caso especial da Vasp em São Paulo.

A segunda parte da infraestrutura do setor, a de auxílio à navegação aérea, também deverá a sua implantação “pioneira” ao investimento interessado das mesmas companhias de transporte aéreo. Assim, a Panair se destacará dentre as companhias aéreas na liderança da construção de sua rede de proteção ao voo44, além de já ter se dedicado ao investimento nos aeroportos de São Luís, Fortaleza, Belém, Natal, Recife, Maceió e Salvador, dentre outros45. Naquela altura, uma companhia como a Panair detinha uma infraestrutura de navegação aérea que lhe conferia um controle do território que excedia o poder do próprio Estado.

Em fins dos anos 1950 e início dos 1960, o processo de concentração de mercado que o episódio da criação da “ponte aérea” evidencia foi chancelado e reiterado por ações estatais que facilitaram e induziram a centralização de capital no setor, favorecendo empresas como Varig, Vasp e Cruzeiro, ao mesmo tempo em que prejudicava a Real. Mas no caso da Panair, a atuação destrutiva estatal ia além dessa facilitação e direcionamento da centralização do capital no mercado de transporte aéreo; passava pelos seus próprios interesses estatais em absorver a propriedade da infraestrutura construída pela companhia. A infraestrutura de auxílio à navegação aérea desapropriada da Panair em 1965 formaria uma nova empresa estatal, a Telecomunicações Aeronáuticas S. A. (Tasa).

Segundo Luiz Paulo Sampaio, filho do ex-presidente da Panair, Paulo de Oliveira Sampaio,

No dia da cassação das linhas, a Celma [principal oficina da subsidiária da Panair responsável pela manutenção de aeronaves, que prestava serviço também para a FAB e outras companhias aéreas] e o Departamento de Comunicações [ramo da companhia para infraestrutura de auxílio à navegação aérea] foram ocupados por

43 CASTRO, N.; LAMY, P., op. cit., p. 14. 44 SASAKI, D. L. “Caso Panair’ completa 50 anos, ainda sem desfecho judicial”. Revista Época Negócios, fevereiro 2015. 45 Ver também nota 29. 50

tropas armadas e forçados a permanecer no ar, porque se os serviços fossem interrompidos toda a aviação comercial pararia na América do Sul.46

Assim, sustentamos que no episódio de aniquilação da companhia Panair deu-se a “captura” e transferência de seus bens e rotas para o Estado e, por meio deste, para as companhias Cruzeiro e Varig, a qual afinal terminaria por absorver também a Cruzeiro nos anos 1970 e resultar com 50% do mercado nacional47, sendo a principal empresa do setor beneficiária das medidas arbitrárias do governo ditatorial a longo prazo48. O caso da liquidação da Panair, nas palavras de um de seus herdeiros, foi “o caso mais emblemático de pessoa jurídica perseguida pela ditadura”49.

Segundo Sasaki, o governo ditatorial desfazia o mercado de transporte aéreo segundo sua vontade, assim como desfazia a própria trajetória recente do Estado brasileiro. Segundo o autor, a quebra dessa trajetória típica de um regime ditatorial expressou-se na ação contra medidas recentes do próprio Estado, que atestavam a solidez financeira e validade da operação da Panair.

O Aviso Ministerial n° 28, emitido um ano antes pela então Diretoria de Aeronáutica Civil (DAC), órgão regulador da aviação, atestara que a Panair tinha organização boa e pessoal técnico e serviços de manutenção adequados. Além disso, um relatório da firma Ecotec publicado dias antes da intervenção apontara que, dentre todas as aéreas brasileiras, a empresa era a que tinha as melhores chances de se recuperar da crise que assolava todo o setor, provocada, principalmente, pela forte desvalorização do câmbio e a alta inflação.50

Contra toda expectativa dos analistas do mercado de então e de depois, a líder do mercado de transporte internacional e proprietária do maior parque de manutenção e proteção ao voo seria proibida de voar no dia 10 de fevereiro de 1965, sem nenhum aviso prévio. Seu patrimônio de

46SASAKI, D. L. Op. cit. 47Conforme MONTEIRO, Op. cit., p. 45. 48Segundo Sasaki, “Os aviões, hangares e lojas passaram para a Varig e a Cruzeiro a preços simbólicos, por pressão. Depois, com dois decretos, a União expropriou a Celma e a estrutura de comunicações”. 49SASAKI, D. L. Op. cit. Segundo Sasaki, “com parte do patrimônio desapropriado por dois decretos em 1966 e 1967, e pagos todos os débitos em apenas quatro anos, a Panair tentou ressurgir impetrando pedido de concordata suspensiva. Foi impedida pela promulgação em tempo recorde e com efeito retroativo de outros dois decretos-leis, baseados no Ato Institucional n°5: 469 e 669, de 1969, que retiraram das aéreas o direito de retomar as atividades após processos de falência e de pedir concordata (a legislação foi aplicada uma única vez na história, no caso da Panair)”. A Comissão Nacional da Verdade publicou seu relatório final sobre a ditadura militar de 1964-1985 em 2014, no qual incluiu relato dedicado ao fechamento da Panair. Nele, a história que se conta é uma de ação orquestrada do Estado contra políticos não alinhados ao novo regime. Segundo a leitura que se faz do relato da CNV, depreende-se que a perseguição à Panair foi parte de uma perseguição mais ampla ao grupo econômico de Mario Simonsen e Celso Miranda, sócios controladores tanto da Panair quanto da TV Excelsior, possivelmente como consequência do objetivo do regime em destruir esta última, empregando para tanto o serviço secreto da Aeronáutica, o CISA. Brasil. BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório: textos temáticos / Comissão Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, 2014, p. 315-317 e SASAKI, D. L. “Comissão da Verdade confirma que aérea Panair foi fechada por motivos políticos”. Revista Época Negócios, dezembro 2014. Por outro lado, Castro e Lamy, Op. cit., p. 9, apresentam informação contraditória, ao afirmarem que à época de sua liquidação, a Panair do Brasil era subsidiária da norte-americana Pan Am, que detinha 58% de seu capital, enquanto a CNV e Sasaki afirmam que, desde 1961, eram Simonsen e Miranda os controladores da Panair. Pereira, op. cit., ressalta a ligação dos donos da Panair com grupos franceses, o que teria desagradado aos norte-americanos. Apud COELHO, R. P. S., Op. cit., p. 51). 50 SASAKI, D. L., Op. cit., p. 49. 51 infraestrutura foi encampado pelo Estado, enquanto seu material aéreo e direitos de rotas passaram imediatamente (no mesmo dia) para a Cruzeiro, nas rotas domésticas, e para a Varig, nas rotas internacionais (equivalente a 31.510 km de rotas51).

Com esse golpe, a Varig que já detinha a rota para os Estados Unidos, conseguida pelo sufocamento da concorrente Real por meio do expediente da “ponte aérea” e a obtenção da exclusividade da concessão dessa linha em 1956, passava a ser dona da rota para a Europa, tomada da Panair. Sasaki chama atenção para o interesse da Varig na rota para a Europa como um motivo mais do que suficiente para o seu envolvimento na trama de destruição da Panair:

O tráfego Brasil-Europa é constituído em 70% por passageiros brasileiros natos ou naturalizados e de estrangeiros aqui residentes. A revisão dos acordos aéreos com os países do Velho Continente se orientava no sentido de sua reformulação em bases que permitissem, ou melhor, que reservassem, à transportadora nacional ― a Panair ― 50% desse tráfego. Assim, estariam resguardados e protegidos os legítimos interesses da economia cambial brasileira e a transportadora nacional ― a Panair ― obteria um acréscimo de receita da ordem de 20%, sem o menor dispêndio, pois, mantido o mesmo número de frequências semanais, obter-se-ia um melhor e mais justo aproveitamento das aeronaves. O tráfego Brasil-Estados Unidos, por sua vez, apresenta situação inversa. Mais de 60% dos passageiros são de outra nacionalidade, não restando, consequentemente, qualquer perspectiva para a operadora Varig, face à desfavorável posição estatística. Em suma, a Panair tinha pela frente uma larga avenida. A Varig se encontrava em um beco.52

Corporativismo e ditadura (1960-1970)

Gomes et al. configuram o início dos anos 1960 como de crise de transição no setor aéreo, ao afirmarem que

Na década de 60, a aviação civil brasileira enfrentou momentos difíceis. Em 1961, a malha rodoviária já se encontrava estruturada nos seus grandes eixos, afetando a demanda por viagens aéreas nas ligações de curta distância, principalmente na região Sudeste, a mais disputada pelas companhias de aviação. Além disso, continuou existindo grande concorrência no setor, comprometendo a rentabilidade das empresas que necessitavam de novos investimentos para a renovação da frota, pois a manutenção daquelas aeronaves oriundas da guerra tornava-se cada vez mais difícil.53

51 Segundo COELHO, Op. cit., p. 51. 52 SASAKI, D. L. “Caso Panair...”, grifos nossos. Coelho (COELHO, R. P. S., op. cit.), retoma argumento de Pereira (PEREIRA, Op. cit.), segundo o qual a Varig teria uma necessidade premente de aumentar suas receitas em dólares, de forma a honrar os vultosos empréstimos tomados junto ao banco Chase Manhattan e outros bancos internacionais. 53 GOMES et al. “Aviação Regional Brasileira, Modal Aéreo IV”. Informe Infraestrutura. Rio de Janeiro: BNDES, n. 50, novembro 2002, p. 1. 52

O termo “concorrência controlada” é utilizado por vários autores para caracterizar a forma estrutural desse mercado na qual empresas, agentes públicos e instituições se entrelaçavam em relações público- privadas que conformaram o setor de transporte aéreo a partir de meados dos anos 1960.

Alguns autores preferirão usar de periodização própria, partindo igualmente de recortes teóricos próprios, para abordar os “principais estágios de regulação” do setor de transporte aéreo, como é o caso de Oliveira54. O autor periodiza “os estágios de regulação” do setor a partir de 1970 até 2007 da seguinte forma:

• 1973-1986: Regulação com política industrial • 1986-1992: Regulação com política de estabilização ativa • 1992-1997: Liberalização com política de estabilização inativa • 1998-2001: Liberalização com restrição de política de estabilização • 2001-2002: Quase-desregulamentação • 2003-(2007): Re-regulação55 Nos parágrafos seguintes acompanharemos o desenvolvimento do setor até 2004, coincidindo grosso modo com os “estágios de regulação” definidos por Oliveira. Ao que interessa neste ponto em que estamos dos anos 1960-1970, cumpre reconhecer que o primeiro estágio de “regulação com política industrial” de Oliveira equivaleria ao período de “competição controlada”.

O autor caracteriza esse período como “a primeira e última tentativa do governo de estruturar, planejar e fomentar, de maneira sistemática e global, o desenvolvimento desse setor, bem como de estabelecer políticas para a aviação regional”56. Mas a “competição controlada” que marcaria o período que vai de meados dos anos 1960, atravessando toda a década de 1970 e terminando em meados dos anos 1980, significa, mais do que qualquer outra coisa, a atuação de um modo de regulação durante o período da ditadura militar.

Com isso queremos distinguir “estágios de regulação”, como definido por Oliveira para se referir às características da regulação estatal sobre o setor, da noção mais geral e acima das caracterizações específicas das ações governamentais que o conceito de modo de regulação consagra. No sentido que lhe é dado por Lipietz, “regulação” se refere aos aspectos mais gerais e de alguma maneira mais

54 OLIVEIRA, A. V. M. “Performance dos regulados e eficácia do regulador: uma avaliação das políticas regulatórias do transporte aéreo e dos desafios para o futuro”. Ronaldo Seroa da Motta; Lucia Helena Salgado e Silva (Org.). Regulação e concorrência no Brasil: governança, incentivos e eficiência. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, p. 133-164, 2007. 55 O autor não define o término desse estágio iniciado em 2003. Marcamos o ano de 2007 como seu limite por ser a data de publicação do artigo. 56 Idem. 53 perenes em que as relações sociais básicas se conformarão durante um período relativamente extenso da história, resultando no estabelecimento de um modo de regulação que o defina57.

Nesse ponto, em que sentido podemos falar propriamente na definição de um modo de regulação específico desse período que dê conta de caracterizar inclusive aquele “estágio de regulação” nos termos de Oliveira, por exemplo? Ou se assumirmos que “competição controlada” seria expressão de um modo de regulação constituinte daquele período, poderíamos assumir por conseguinte as relações de dependência entre o modo de regulação e o regime de acumulação da modernização conservadora então em curso no Brasil?

Coelho58, em dissertação de mestrado que tratou do impacto da desregulamentação do setor sobre os trabalhadores aeroviários nos anos 1990, trata do período de “concorrência controlada” em termos correlatos aos utilizados pela abordagem da regulação, encontrando as mesmas características do modo de regulação naquilo em que este se mostrava como uma formação específica do período. Segundo o autor, a sombra que o planejamento econômico dirigido pelo Estado lançava sobre os mercados em franco desenvolvimento, no centro e na periferia do sistema capitalista, assustava autores de inclinação liberal. Tratando do “modelo de desenvolvimento norte-americano” no pós-guerra, o autor retoma a abordagem de Shonfield, para quem “a ordem econômica e a estrutura social do pós- guerra não podem ser definidas como capitalistas”59. Apoiando-se em autores críticos como Mattoso e Francisco de Oliveira, Coelho ressaltará como a “forma de gestão econômica” e o “papel e estrutura do Estado” no período faziam alguns teóricos como Shonfield e Galbraith temer que a livre concorrência seria superada por “um tipo de socialismo”.

Nas palavras de Francisco de Oliveira, no Brasil dos anos 1960-1970 teria se dado a “sistematização de uma esfera pública” na qual o fundo público passaria a ser “pressuposto” do financiamento da acumulação de capital e da reprodução da força de trabalho, de forma “abrangente, estável e marcado por regras assentidas pelos principais grupos sociais e políticos”60. No entendimento que assumimos nesta dissertação, esta caracterização que Francisco de Oliveira faz da “sistematização da esfera pública” equivale à própria definição de um modo de regulação, segundo a abordagem da regulação, e também coincide com as linhas gerais das conclusões dos estudos sobre o corporativismo brasileiro conduzidos por Eli Diniz e Renato Boschi61.

57 LIPIETZ, A. "Rebel sons: the Regulation school", entrevista com Jane Jenson, French Politics and Society, vol.5 n°4, Setembro 1987, Harvard Univ., em http://lipietz.net/Rebel-sons-the-Regulation-school-750. 58 COELHO, R. P. S., Op. cit. 59 SHONFIELD apud COELHO, Op. cit., p. 31. 60 OLIVEIRA, F. “O surgimento do antivalor: capital, força de trabalho e fundo público”. Novos Estudos, n. 22. São Paulo, CEBRAP, 1988, p. 9, apud COELHO, R. P. S., Op. cit., p. 31. 61 DINIZ, E.; BOSCHI, R. Empresários, interesses e mercado. Dilemas do desenvolvimento no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004. 54

Portanto, nesta dissertação assumimos que a “concorrência controlada” teria sido uma forma estruturante da participação do setor aéreo no modo de regulação que entrelaçava os interesses capitalistas em um tripé formado pelo assim chamado “capital privado nacional” em associação e divisão funcional com o “capital privado internacional”, mediados pelo Estado nacional. Esse modo de regulação particular da trajetória de longo prazo do capitalismo brasileiro teria se desenvolvido no seio de instituições mais ou menos perenes e cumulativas desde a era Vargas, segundo postulado por estudiosos do corporativismo e do neoinstitucionalismo. Por fim, sustentamos que esse modo de regulação baseado em instituições que entrelaçam relações público-privadas constituiu o cerne do regime de acumulação da modernização conservadora em plena vigência durante a ditadura de 1964- 1985.

Para Gomes et al., no entanto, a forma de “concorrência controlada” no setor enfim adotada pelo novo governo aparece em sua narrativa como resultante, mais ou menos “pacífica” (isto é, desprovida de contradições), daqueles processos que se manifestavam no início dos anos 1960. Assim, para aqueles autores seria quase como se a “concorrência controlada” do período ditatorial tivesse vindo resolver o problema da “grande concorrência no setor” que comprometia a rentabilidade das empresas, ao mesmo tempo em que lidava com a concorrência direta do modo rodoviário pelo tráfego de passageiros no centro da rede, sem perder de vista a revolução tecnológica própria do setor62.

Quanto às relações público-privadas que vimos de destacar como constituintes do corporativismo que conformava o modo de regulação específico do período, serão organizados nos anos 1960 fóruns de concertação público-privada para o encaminhamento das questões pertinentes ao setor de transporte aéreo brasileiro, constituindo-se as Conferências Nacionais de Aviação Comercial (CONAC), ocorridas em 1961, 1963 e 1968, reunindo empresas aéreas e governo. Em concordância com Gomes et al., Bielschowsky e Custódio citarão Malagutti para argumentar no sentido de que as CONAC representariam o “consenso” dos agentes do setor quanto à “necessidade de que se instaurasse uma política de estímulo à fusão de empresas, ‘com o fim de reduzir o seu número a uma máximo de duas, na exploração do transporte internacional, e três, no transporte doméstico”63. Segundo Laplane64, a partir das CONAC “intensificou-se o papel do governo como agente regulador do setor aéreo e foram elaboradas políticas de estímulo à fusão de empresas e de competição controlada”.

62 Coelho assim se refere à pressão que a revolução tecnológica da era do jato imprimia ao setor: “Outro motivo determinante para a diminuição do custo [na Era do Jato] foi a troca da gasolina de alta octanagem, utilizada nos motores à explosão, pelo querosene de aviação empregado nas turbinas, bem mais barato – principalmente após a crise do petróleo de 1973”. COELHO, op. cit., p. 35. 63 BIELSCHOWSKY, P.; CUSTÓDIO, M. C. “A evolução do setor de transporte aéreo brasileiro”. Revista Eletrônica Novo Enfoque, v. 13, n. 13, p. 72-93, 2011. 64 LAPLANE, G. Op. cit., p. 47. 55

Em que pese a sua análise meticulosa do papel institucional na regulação do setor no período, a autora não dá destaque para o significado da promulgação do novo Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) em 1966 pelo governo militar, que regraria o setor por 20 anos, até sua atualização em 1986 (somente regulamentada em 1990). A autora limita-se a descrever o código, produto das três primeiras CONAC, ressaltando que a intenção do governo com o novo CBA de 1966 era impedir a competição predatória e assegurar a eficiência do serviço de transporte aéreo. Para tanto, era reservado ao DAC “modificar rotas, frequências, horários e tarifas de serviço e quaisquer outras condições de concessão e autorização”65.

Entre a primeira edição da CONAC em 1961 e a segunda edição em 1963 o país enfrentava uma grave crise macroeconômica, com alta inflação e baixo crescimento. Era o tempo de tentativas fracassadas como a do Plano Trienal de dar fôlego ao desenvolvimento nacional e, ao mesmo tempo, lidar com as disputas distributivas que culminariam na quebra da ordem institucional e no golpe militar de 1964. As disputas internas às edições do CONAC vão também mudando pari passu à mudança da conjuntura nacional.

Assim, enquanto a primeira CONAC de 1961 falava em “popularização do avião como meio de transporte, por meio da concessão de subsídios que permitissem à aviação concorrer com outro modais [sic] de transportes terrestres”, segundo Coelho66, nas edições posteriores surgirá o discurso da “realidade tarifária” com força, implicando um encarecimento das tarifas e consequente “redução e elitização dos usuários do transporte aéreo” de forma a cobrir totalmente os custos declarados das companhias aéreas. Segundo Monteiro67, “a elitização da atividade aeronáutica que ocorre no período é plenamente articulada com o processo de concentração de renda resultante da política econômica dos governos da época”.

Bielschowsky e Custódio têm uma visão mais positiva da política de “concorrência controlada” do período, à qual se referem como "regulação estrita” ou também “regulação restrita”. No período de rápida expansão econômica que se inicia em 1967, os autores correlacionam a proteção governamental ao setor com a recuperação da capacidade de investimento das firmas, que assim se mantiveram capazes de acompanhar a evolução tecnológica dos aviões a jato. Oliveira, como já mencionamos, também considera este período como “a primeira e última tentativa” de um planejamento sério do setor, tendo o governo como protagonista.

65 Idem. 66 COELHO, Op. cit., p. 52. 67 MONTEIRO, C. F. “A trajetória da Varig do nacional-desenvolvimentismo ao consenso neoliberal: estudo de caso sobre as relações entre empresa e sociedade”. Dissertação de Mestrado. PPGSA/IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2000 apud COELHO, R. P. S., Op. cit. p. 30. 56

Depois das três primeiras CONAC, as concessões para empresas aéreas operarem o transporte regular em território brasileiro passaram a ser atribuição do DAC, que através do decreto 72.898/1973 as concedeu para a Varig, Vasp, Cruzeiro do Sul e Sadia/ . Segundo Castro e Lamy 68, essa regulação a partir do DAC significou, na prática, a eliminação da possibilidade de entrada de novas empresas no mercado. Quando em 1975 a Varig absorveu a Cruzeiro, dominando 35% do mercado de transporte aéreo doméstico69, estava consolidado o oligopólio do transporte aéreo no Brasil, que combinava concentração na prestação do serviço de transporte aéreo entre três empresas e concentração espacial da rede, que então passava a atender somente 92 localidades70. Despontava, com isso, a “questão regional”, e o problema de como garantir a integração nacional através de um programa de subsídio à aviação regional, tida como estratégica pelo governo militar. Para tanto, foram planejados no mesmo ano de 1975 os Sitar, Sistemas Integrados de Transporte Aéreo Regional71.

No sentido em que estamos tratando dos eventos do período e das diversas fontes bibliográficas citadas que estudaram o assunto, tanto aquelas baseadas em história das empresas, como as calcadas em fundamentação teórica neoinstitucionalista, do estudo do corporativismo ou de abordagem da regulação, vamos compreender o surgimento da “questão regional” como produto da forma específica de concorrência que aquele modo de regulação determinou em sua trajetória de desenvolvimento.

Em outras palavras, somente porque o mercado do transporte aéreo regular desenvolvera-se dentro dos marcos de um modo de regulação que entrelaçava interesses público-privados no seio de instituições criadas pelo planejamento estatal, conduzindo-se para uma forma estruturante de “concorrência controlada” que reconhecia e assumia o desequilíbrio de agentes em disputa pela parcela rentável do mercado, que teria lugar o surgimento de seu oposto. Isto é, surgia o problema da “questão da aviação regional” como o outro lado da moeda de um mercado oligopolizado e concentrado no eixo Rio-São Paulo.

O que é característico do modo de regulação e para o que chamamos atenção é a forma específica em que essa “questão regional” seria enunciada, o que atribuímos como mais uma característica daquele modo de regulação. Assim, ao oligopólio concentrado que dominava o centro da rede, cujo exemplo síntese era sua linha-tronco principal operada pelo conluio da “ponte aérea”, associava-se (precariamente) sua contrapartida na forma de monopólios regionais determinados pelo estado através do DAC.

68 CASTRO, N.; LAMY, P., Op. cit., p. 7. 69 BIELSCHOWSKY, P.; CUSTÓDIO, M. C., Op. cit., p. 80. Monteiro aponta que a aquisição da Cruzeiro teria dado à Varig uma fatia de 50% do mercado. MONTEIRO, C. F. “A Varig e o Brasil entre o desenvolvimento nacional e a competitividade global”. Civitas, v. 7, n. 1, jan-jun 2007, Porto Alegre, p. 45. 70 LAPLANE, G., Op. cit., p. 48. 71 Decreto 76.590/1975. 57

O plano dos SITAR (Sistemas Integrados de Transporte Aéreo Regional), surgido em 1975, retomava o que havia sido preconizado em 1963 pelo PIN (Plano de Integração Nacional) de Goulart. Segundo Gomes et al., entre 1962-1968 o planejamento estatal ensaiara uma política de transporte aéreo regional, determinando que o atendimento das localidades interioranas de baixo e médio tráfego72 deveria ser realizado por aeronaves de baixa capacidade (até 30 assentos), empregando-se os aviões retirados de operação no centro da rede, os antigos DC-3 e hidroaviões herdados da 2a Guerra Mundial.

O DAC retomará a ideia daquela política de integração e a modificará. Segundo Guaracy73, o ministro da Aeronáutica, Araripe Macedo teria encomendado o projeto ao tenente-brigadeiro Deoclécio Lima de Siqueira, então diretor do DAC e ao tenente-brigadeiro Waldir de Vasconcelos, diretor de planejamento. Através de seus diretores, o DAC teria encomendado à firma projetista Multiplan o plano dos SITAR, “de maneira a recuperar o tráfego entre cidades do interior aproveitando o Bandeirante”, produto principal da nascente Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer). Fundada em 1969, a estatal ligada à Aeronáutica ergueu-se nos braços de uma política industrial de associação empresarial ao complexo industrial-militar, com transbordamentos para a aviação civil aproveitados pela política de aviação regional. Segundo Guaracy, a ideia de um “sistema de aviação regional” teria partido da própria Embraer, na pessoa de seu diretor, o coronel Ozires Silva.

Assim, a atuação da Embraer concentrou-se, em suma, em duas frentes: a produção de aeronaves e serviços militares e, por outro lado, a construção de aeronaves de pequeno porte adaptadas ao transporte aéreo regional de baixa e média capacidade. Ao que interessa ao tema desta dissertação, trataremos da associação da Embraer à política de transporte aéreo regional, como parte da política industrial do governo.

Como vimos, a Rede de Integração Nacional (RIN), criada em 1963 por decreto de Goulart à semelhança do sistema em prática nos EUA74, subsistiu até 1972, quando foi suspensa “em virtude dos crescentes prejuízos nas operações destas rotas”75.

Sua retomada após 1975 na forma dos SITAR teria sua explicação fora do setor de transportes aéreos propriamente dito. Segundo interpreta Coelho,

fica claro que a volta de uma política de subsídios para atender às rotas antieconômicas relaciona-se com uma estratégia de garantia de mercado para as aeronaves fabricadas pela então nascente Embraer, repetindo no Brasil a lógica que

72 Linhas aéreas com tráfego de 5.000 a 20.000 passageiros por ano. 73 GUARACY, T, Sonho brasileiro. Como Rolim Adolfo Amaro construiu a TAM e sua filosofia de negócios. Rio de Janeiro, Editora Copacabana, 2014. 74 Segundo Coelho (COELHO, Op. cit., p. 53), a RIN seguia a lógica de linhas tronco ramificadas em linhas alimentadoras. Diferia do caso norte-americano porque lá o subsídio era dado à companhia, e não às linhas, como no caso brasileiro. 75 COELHO, Op. cit., p. 53. 58

justificou, na Europa do entreguerras, a concessão de subsídios às empresas de transporte aéreo.76

A recomendação do projeto da Multiplan definia cinco regiões de monopólio garantido a cinco empresas concessionárias, todas criadas para tal finalidade, cuja rentabilidade seria garantida pelo governo federal mediante instrumentos de subsídios diretos77.

Chamamos atenção para a mudança da proposta de criação de novas firmas para a finalidade do transporte regional, como proposto pela Multiplan, e o afinal adotado, que concedia monopólio da região Oeste à TAM – Transportes Aéreos Regionais S. A., oriunda da TAM – Táxi Aéreo Marília, empresa de táxi-aéreo do interior de São Paulo existente desde 1961. Segundo Guaracy, a TAM teria conseguido entrar no grupo de empresas monopolistas através de lobby via Embraer, tornando-se a “campeã” do DAC para “florescer e vingar” por meio dos SITAR.

O modelo criado em 1975 para começar a operar em 1976 era, em suma, formado das seguintes partes:

Tabela 1: Regiões SITAR e respectivas companhias aéreas regionais

Área homogênea de tráfego (SITAR) Empresa Aérea Regional SITAR NORTE - Região Norte TABA – Transportes Aéreos da Bacia Amazônica S.A. SITAR NORDESTE - Região Nordeste e parte dos estados Nordeste Linhas Aéreas Regionais S. A. de Minas Gerais e Espírito Santo (com ligações para o RJ, SP, Brasília e BH) SITAR OESTE - Partes dos estados do Mato Grosso TAM – Transportes Aéreos Regionais S. A., antiga Táxi (incluindo o atual Mato Grosso do Sul) e de São Paulo Aéreo Marília, tinha participação de 1/3 da Vasp. (com ligações para SP e RJ) SITAR CENTRO - Estado de Goiás, parte dos estados do VOTEC – Serviços Aéreos Regionais S. A., originalmente Pará e Maranhão, o Triângulo Mineiro e o Distrito VOTEC – Voos Técnicos e Executivos, existente desde Federal (com ligações com RJ) 1966, e depois Brasil Central (1986), com 1/3 capital da TAM, que passou a operar nessa região. SITAR SUL – Região Sul e parte dos estados do Rio de Rio-Sul Serviços Aéreos Regionais S.A., fundada pela Janeiro, Espírito Santo e São Paulo Varig

A TABA fora formada a partir da NOTA, Norte Táxi Aéreo, do coronel Marcílio Gibson Jacques. A Votec Serviços Aéreo Regionais pertencia ao empresário Cláudio Hoelck, dono da Motortec, empresa de revenda de peças e motores de aviões que também operava no serviço de táxi aéreo via Votec Voos

76 Idem. Destaca-se que o autor apresenta certa confusão conceitual entre garantia de mercado para produção de aeronaves, que era o caso da Embraer, e subsídio a companhias aéreas prestadoras do serviço de transporte, que era o caso da Europa e também do Brasil, como veremos mais adiante, o que não exclui as similaridades de política industrial entre a Embraer brasileira e a Airbus francesa, por exemplo. 77 Coelho ressalta como os SITAR diferiam da RIN em alguns princípios, a saber: definição de regiões para a implantação de linhas aéreas regionais regulares e a exploração de cada uma destas áreas sob regime de exclusividade; pagamento às empresas participantes de uma suplementação tarifária; não concorrência entre as linhas regionais e nacionais; limitação do tipo de aeronaves a serem utilizadas, que deveriam ser adequadas às pistas pequenas e não pavimentadas e à baixa demanda das rotas; e as empresas regionais não poderiam transformar-se em nacionais. COELHO, Op. cit., p. 44-45. 59

Técnicos e Executivos. A Nordeste Linhas Aéreas Regionais era, na verdade, um consórcio entre o governo da Bahia, a Transbrasil e a própria Votec. A Rio-Sul era formada por associação da Varig com a Top Táxi Aéreo, de propriedade das seguradoras Atlântica Boa Vista e Sul América Seguros78.

A Rede Aérea Nacional ficava assim repartida entre empresas autorizadas a operar no que ficou chamado de “mercado nacional”, dominado pelo oligopólio das cinco companhias com autorização de operação pelo DAC, e o “mercado regional”, dominado por cinco monopólios concedidos às empresas mencionadas acima79. A operação de uma empresa fora de seu mercado era proibida, dado que a Rede Aérea Nacional estava pensada para operar com linhas regionais “alimentadoras-distribuidoras” e linhas nacionais “tronco”, sem superposições ou concorrência.

Segundo Gomes et al., dentre os princípios declarados dos SITAR estava o de inibir a concorrência entre empresas regionais e nacionais, e incentivar acordos operacionais entre elas. Dada a proibição das empresas regionais em disputar o centro da rede, o planejamento colocaria as empresas nacionais em posição de primazia, conformando a Rede Aérea Nacional à imagem e semelhança da visão hierárquica própria dos militares. Mais do que isso. Enquanto a ideia da rede estruturada em troncos nacionais e redes regionais partia da hierarquia racional dos militares (reproduzida pela tecnocracia do planejamento da Multiplan), a forma como isso se tornava realidade passava pelas chicanas da estrutura de planejamento montada pelo corporativismo brasileiro.

Diniz e Boschi80, ao abordarem o entrelaçamento das estruturas estatais e as diversas formas de representação e participação do empresariado na definição das políticas de Estado ao longo da trajetória de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, pontuarão a centralidade que essas formas teriam no que chamam de “regime produtivo”, mas que poderíamos também nomear como modo de regulação.

O que permite compreender a centralidade e maleabilidade da estrutura de representação dos interesses empresariais ao longo do tempo, simultaneamente à sua fragmentação e dispersão, é a noção de que essa estrutura é parte integrante do regime produtivo. 78 GUARACY, T., Op. cit. 79 “As concessões para a exploração das linhas aéreas regionais regulares seriam dadas pelo Ministério da Aeronáutica pelo período de quinze anos com possibilidade de prorrogação por períodos idênticos sucessivos. As empresas poderiam dedicar-se a outros serviços aéreos, mas não poderiam se transformar em empresas de transporte aéreo regular de âmbito nacional”. LAPLANE, G. Op. cit., p. 49. 80 DINIZ, E.; BOSCHI, R., Op. cit., p. 26, grifos nossos. É de se destacar a tradição teórica do estudo do corporativismo brasileiro empreendido pelos autores, que toma elementos da abordagem da regulação através de autores como Soskice, que foram influenciados pela escola francesa mas não empregam exatamente os mesmo termos, donde o conceito “regime produtivo” não se iguala a “regime de acumulação”, estando mais próximo de “modo de regulação”, pois, segundo Diniz e Boschi, “por regime produtivo entendemos, seguindo a definição de Soskice, a estreita relação de complementaridade entre o mercado, a atividade associativa, os microagentes econômicos e demais aspectos do marco institucional. De acordo com esta definição, regimes produtivos dizem respeito à organização da produção por intermédio de mercados e instituições correlatas”. Da mesma maneira, essa tradição teórica remete ao neoinstitucionalismo e à noção de dependência da trajetória (path dependence) que configurariam, afinal, variantes de capitalismos. Para tal, ver HALL, Peter A. Varieties of capitalism: The institutional foundations of comparative advantage. Oxford: Oxford University Press, 2001. 60

Assim, a TAM conseguiria associar-se a Vasp depois de muita resistência por parte desta última, resistência que só foi quebrada pela intervenção direta do governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, chefe da estatal paulista e amigo pessoal de Rolim, dono da TAM. O negócio foi avalizado pelo Banespa, banco do estado de São Paulo, e o capital da nova empresa era formado pelas aeronaves de cada parte: nove Cessnas 402 da TAM e seis Bandeirantes da Vasp (comprados da Embraer por intermediação do Ministério da Aeronáutica), equivalendo a 77% e 33% de participação respectiva.

O subsídio à aviação regional aparecia no modelo de financiamento dos SITAR como contrapartida da receita gerada na operação do centro da rede. Isto é, o decreto que instituiu os SITAR em 1975 fez-se acompanhar da criação de um adicional tarifário que acrescentava a alíquota de 3% aos preços das passagens aéreas domésticas nas linhas aéreas regulares no mercado nacional, que excluía os sistemas regionais. O montante arrecadado por esse adicional tarifário deveria ser direcionado a um fundo aeroviário “com destinação específica aos Sistemas Integrados de Transporte Aéreo Regional para Suplementação tarifária de suas linhas”81.

Segundo Gomes et al., o cálculo para distribuição entre as cinco empresas regionais era feito por meio da aplicação de um coeficiente do adicional tarifário, calculado baseado no custo unitário e na quilometragem voada por empresa. O índice era ponderado pelo volume de passageiros transportados pela companhia, o que na prática fixava o aproveitamento médio de voo da companhia que, se fosse atingido, garantia o recebimento integral do valor estipulado pelo índice. Caso a operação da companhia ficasse abaixo do valor referencial, ela recebia menor parcela do valor estipulado, proporcionalmente ao volume de passageiros transportados.

Segundo Gomes et al. e Laplane, no entanto, os objetivos dos SITAR não teriam sido alcançados. Não se consolidou a Rede Aérea Nacional estruturada em linhas-tronco e sistemas integrados regionais, “com exceção da Rio-Sul que teve suas linhas integradas com as linhas da Varig, sua controladora”. À exceção mencionada pelos autores adicionamos o caso da TAM, que emergiu como principal vitoriosa após o término daquela política que, segundo os critérios do tenente-coronel responsável pela criação dos SITAR, satisfaria o propósito do planejamento. Pelo que ficou evidenciado acima, foi nos anos 1970 que a dinâmica do setor foi alterada no sentido que o levaria a assumir os traços gerais que o caracterizariam por todo o período da ditadura, até fins dos anos 1980, principalmente quanto às estruturas de mercados (nacional e regional), e à política de transporte (ao estabelecer a política de transporte regional subvencionada pelo transporte aéreo regular nacional).

81 BRASIL. Decreto 76.590/1975, Art. 6o. 61

Como veremos nos capítulos seguintes, as implicações das permanências dessas políticas, e seus efeitos tanto no desenvolvimento econômico do setor quanto no desenvolvimento das “ideias de planejamento” serão duradouros82.

Infraestrutura aeroportuária estatizada

Mas foi também nesse período de início dos anos 1970 que o planejamento estatal criou um dos atores que viria a desempenhar papel central no setor a partir de então, a Infraero. Até o início dos anos 1970, o setor de transporte aéreo desenvolvera-se por 50 anos com base em infraestrutura precariamente construída. Ou melhor, construída paulatinamente conforme interesses de curto prazo e particulares.

Como vimos no início deste capítulo, os primeiros campos de pouso que dariam origem aos aeródromos brasileiros foram abertos pelas forças armadas norte-americanas durante a 2a Guerra Mundial. Para conformar o que era à época a infraestrutura aeroportuária brasileira, àqueles poucos campos militares somavam-se os rios próximos a cidades que serviam como pista de pouso para os hidroaviões da época, como o Catalina. Com efeito, deve-se reconhecer que o início da aviação brasileira dependeu bastante dos rios e baías, que eram a infraestrutura aeroportuária de pouso e decolagem mais difundida no território nacional, assim como serviam de referência para orientação das rotas de voo.

Sobre aquela base inicial de aeródromos militares, acumularam-se e diversificaram-se os investimentos feitos pelas companhias aéreas que se identificavam como as principais interessadas na existência de uma infraestrutura de suporte às suas operações. Como vimos, o investimento privado das companhias aéreas deu-se tanto na infraestrutura aeroportuária como na de auxílio à navegação aérea. Segundo os critérios atuais de classificação da infraestrutura do setor, reconhece-se que, na fase inicial de desenvolvimento do setor, as companhias aéreas conjugavam todas essas atividades. Assim, não só não havia separação formal entre uma infraestrutura aeroportuária de uma de auxílio à navegação aérea, como a própria separação hoje usual entre infraestrutura e prestação do serviço não existia. A sua criação histórica seria resultado de uma intervenção decidida do planejamento estatal, primeiro com a integração da infraestrutura de auxílio à navegação aérea criada pelos militares e

82 Diniz e Boschi reforçam o argumento do path dependence ao afirmarem “fazendo eco à literatura institucionalista, [que] esse tipo de visão [que observa uma passagem progressiva de uma estrutura de ações mais coordenadas nas fases iniciais do processo de industrialização nacional conduzida pelo Estado para uma mais fragmentada, diferenciada e diversificada de representação empresarial] sugere, como em alguns trabalhos recentes, que as políticas pregressas são um determinante fundamental das escolhas estratégicas dos atores, bem como configuram o peso relativo dos grupos de interesse, conforme se tenha um quadro de construção ou desconstrução como referencial para o comportamento dos atores”. DINIZ, E.; BOSCHI, R., Op. cit., p. 33, grifos nossos. Veremos em tópico mais adiante como a trajetória do capitalismo brasileiro nos anos 1990 passará por uma noção de desconstrução das “políticas pregressas” do corporativismo brasileiro usualmente atribuído a Vargas, tornando-se assim prisioneiro de si mesmo. 62 complementada com a expropriação da Panair nos anos 1960, depois com a criação da Infraero no início dos anos 1970.

A história oficial contada pela própria Infraero atribuirá a “necessidade” de sua criação à crescente insatisfação dos usuários com as condições dos aeroportos existentes até então e à visão estratégica de seus fundadores.83 Usando da oportunidade da organização do Projeto Aeroporto Internacional (PAI) no Rio de Janeiro, onde hoje encontra-se o Aeroporto Internacional do Galeão, o governo federal ordenou a organização de uma comissão Coordenadora que, além de acompanhar o desenvolvimento daquele projeto, estava incumbida de formar uma nova empresa administradora de aeroportos. Da mesma forma que para o caso dos SITAR, os militares encomendaram a uma consultoria o estudo de viabilidade da nova empresa de infraestrutura aeroportuária, cabendo à Hidroservice a realização do trabalho.

Segundo a Infraero, o projeto de criação da empresa teria se baseado na comparação com outras experiências coetâneas em diversos países, como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha e França84. Segundo Brighenti, o modelo de gestão empresarial da Infraero seria oriundo da combinação dos modelos canadense e britânico. Em 1970 era criada a Aeroportos do Rio de Janeiro S.A. (Arsa), com o objetivo de administrar somente o novo aeroporto internacional85, enquanto se preparava a criação da sua controladora, a nova Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária, concluída em 1972. Segundo o projeto original da Infraero, a empresa estatal poderia se consolidar como uma controladora de empresas subsidiárias responsáveis pela administração de cada aeroporto da rede, como o caso da Arsa. A história mostraria, no entanto, que aquele foi o primeiro e único caso de subsidiária da Infraero86.

Mais do que isso, percebe-se que muitas das previsões legais inscritas na Lei 5.862 de 12/12/1972 que criou a Infraero não foram executadas ao longo do tempo para dotar a empresa pública de capital e governança própria que a permitisse competir com outros operadores no período seguinte, pós- abertura. No Art. 4° da Lei 5.862/1972, a participação da União no capital da empresa é prevista na forma de transferência de patrimônio da União à Infraero nas seguintes modalidades:

a) a totalidade das ações e créditos que a União tenha ou venha a ter em empresas correlatas ou afins com a infra-estrutura aeroportuária; b) outros bens necessários e úteis ao seu funcionamento.87

83 INFRAERO. 40 anos servindo pessoas, empresas e o Brasil. Brasília, Infraero, 2013. 84 INFRAERO, Op. cit., p. 30. 85 Inicialmente coube também à ARSA a administração do Aeroporto de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. 86 A Arsa foi incorporada pela Infraero em 1987 na reestruturação de empresas estatais promovida pelo Governo Federal naquele ano. INFRAERO, Op. cit., p. 41. 87 Lei 5.862 de 12/12/1972, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1970-1979/L5862.htm, acessado em junho/2019. 63

De forma geral, podemos considerar a sua fundação como atrelada à Era do Jato e às novas exigências técnicas de infraestrutura que a aviação civil (e militar) passavam a demandar. Da mesma forma que o jato proscreveu os aviões de motor a pistão da era anterior, ele também exigia que a infraestrutura se modernizasse. Assim, a Infraero está associada a uma necessidade de modernização desde a sua fundação.

Segundo levantamento do Sindicato Nacional dos Aeronautas a partir de dados da Aeronáutica, no início dos anos 1970 “apenas cinco dos 137 aeroportos brasileiros utilizados pelos aviões comerciais tinham equipamentos como radar ou Instrument Landing System (ILS), que permite operações por instrumento”. Antes da criação da empresa, a infraestrutura aeroportuária brasileira possuiria “43 aeroportos regulamentados e aptos à operação” segundo o Ministério da Aeronáutica88.

O surgimento da estatal fora propiciado pela oportunidade de um novo projeto de aeroporto (o aeroporto internacional do Rio de Janeiro), e foi realizado de fato através da incorporação de aeroportos existentes ao novo Sistema Infraero. Assim, os primeiros aeroportos que passaram à administração da Infraero foram Brasília e Manaus89. Em 1974 a Infraero agregava mais 14 aeroportos à sua rede: Belém, Belo Horizonte (Pampulha e Confins), Boa Vista, Carlos Prates, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Foz do Iguaçu, Goiânia, Joinville, Porto Alegre, Recife e Salvador90. Em 1975, quando da criação dos SITAR, a Infraero já administrava 26 aeroportos, e em 1986 já se aproximava de seu máximo histórico, contando com “63 dos principais aeroportos do país”91.

A figura a seguir apresenta o quadro evolutivo dos aeroportos públicos sob responsabilidade da Infraero, desde a data de sua criação até a situação em que se encontrava em 2009, com 67 aeroportos sob sua administração92.

88 BRIGHENTI, G. Op. cit., p. 66. 89 À época servida pelo aeroporto de Ponta Pelada. O Aeroporto Internacional Eduardo Gomes (SBEG, na sigla da Organização da Aviação Civil Internacional – OACI, agência especializada da Organização das Nações Unidas) seria inaugurado por obra da Infraero somente em 1976. 90 BRIGHENTI, Op. cit., p. 65, diz que seriam 13 aeroportos, porém nomeia apenas 11. O número de 14 aeroportos vem de informações da Infraero. 91 BRIGHENTI, Op. cit., p. 66. Esse número informado por Brighenti será reconsiderado pelo recorte que faremos mais adiante, em que selecionamos os aeroportos que integravam o sistema Infraero em 2009. Nesse recorte, o tamanho final da rede Infraero entorno de 66 ou 67 aeroportos será atingido na passagem dos anos 1990 para os anos 2000. 92 Veremos no capítulo 2 que os aeroportos sob administração da Infraero no período estudado de 2004-2014 oscilam. Na fase inicial do período, ainda antes das concessões, ora registram-se 67 aeroportos, ora 66 aeroportos como parte da rede Infraero. 64

Figura 20: Número de aeroportos integrantes da Rede Infraero - 1973-2009 Como se pode perceber pelo exame da figura anterior, e como ficou dito parágrafos acima, a Infraero iniciou suas operações em 1973 assumindo os aeroportos de Brasília e , para posteriormente desativar este último e inaugurar um novo em 1976. Entre os anos 1973 e 1977, vemos um rápido crescimento do número de aeroportos sob sua administração, fruto da política do 2 o PND que visava ampliar o investimento em infraestrutura dentro da estratégia de formação bruta de capital fixo na economia nacional. Nessa primeira onda de 1973-1977 são incorporados ou construídos os seguintes aeroportos:

Tabela 2: Aeroportos do Sistema Infraero – 1973-1977

SIGLA NOME ANO OBSERVAÇÃO SBBR Brasília-DF 1973 SBMN Ponta Pelada-AM 1973 SBBE Belém-PA 1974 SBBV Boa Vista-RR 1974 SBPR Carlos Prates-MG 1974 SBCT Curitiba-PR 1974 SBFL Florianópolis-SC 1974 SBFZ Fortaleza-CE 1974 SBFI Foz do Iguaçu-PR 1974 SBGO Goiânia-GO 1974 SBJV Joinville-SC 1974 SBMQ Macapá-AP 1974 SBBH Pampulha-MG 1974 SBPA Porto Alegre-RS 1974 65

SIGLA NOME ANO OBSERVAÇÃO SBRF Recife-PE 1974 SBSV Salvador-BA 1974 SBAR Aracaju-SE 1975 SBCG Campo Grande-MS 1975 SBCR Corumbá-MS 1975 SBCY Cuiabá-MT 1975 SBMO Maceió-AL 1975 SBNT Natal-RN 1975 SBSL São Luís-MA 1975 SBTE Teresina-PI 1975 SBVT Vitória-ES 1975 SBEG Manaus-AM 1976 SBGL Galeão-RJ 1977

O outro salto relevante no patrimônio da infraestrutura aeroportuária pública se deu na virada dos anos 1970 para os anos 1980, quando o sistema Infraero praticamente duplicaria de tamanho, passando dos 27 aeroportos em 1977 para 57 aeroportos em 1985. Nesse segundo salto de expansão da Infraero, foram incorporados 14 aeroportos e construídos outros 16 novos, dentre eles Confins e Guarulhos, conforme listado na tabela a seguir.

Tabela 3: Aeroportos do Sistema Infraero – 1979-1985

SIGLA NOME ANO OBSERVAÇÃO SBMT Campo de Marte-SP 1979 incorporado SBJP João Pessoa-PB 1979 SBPV Porto Velho-AC 1979 SBHT Altamira-PA 1980 SBBI Bacaccheri-PR 1980 incorporado SBBG Bagé-RS 1980 incorporado SBKG Campina Grande-PB 1980 incorporado SBKP Campinas-SP 1980 SBIZ Imperatriz-MA 1980 SBJR Jacarepaguá-RJ 1980 incorporado SBJC Julio César-PA 1980 incorporado SBME Macaé-RJ 1980 SBMA Marabá-PA 1980 SBMK Montes Claros-MG 1980 SBNF Navegantes-SC 1980 SBUF Paulo Afonso-BA 1980 incorporado SBPK Pelotas-RS 1980 SBPP Ponta Porã-MS 1980 incorporado SBSN Santarém-PA 1980 SBTT Tabatinga-AM 1980 SBTF Tefé-AM 1980 SBUR Uberaba-MG 1980 incorporado SBUL Uberlândia-MG 1980 incorporado SBUG Uruguaiana-RS 1980 incorporado SBSP Congonhas-SP 1981 incorporado 66

SIGLA NOME ANO OBSERVAÇÃO SBIL Ilhéus-BA 1981 incorporado SBPL Petrolina-PE 1981 SBCF Confins-MG 1984 SBCJ Carajás-PA 1985 incorporado SBGR Guarulhos-SP 1985

Depois desse esforço de construção e ampliação da infraestrutura aeroportuária, a rede Infraero que encontraremos em 2009 terá ainda a incorporação de outros 7 aeroportos ao longo dos vinte anos seguintes, quando também são construídos 3 aeroportos novos. Veja-se a tabela a seguir.

Tabela 4: Aeroportos do Sistema Infraero – 1987-2009

SIGLA NOME ANO OBSERVAÇÃO SBCP Campo dos Goytacazes-RJ 1987 incorporado SBRJ Santos-Dumont-RJ 1987 incorporado SBSJ São José dos Campos-SP 1996 incorporado SBRB Rio Branco-AC 1999 SBLO Londrina-PR 2000 incorporado SBPJ Palmas-TO 2001 SBJU Juazeiro do Norte-CE 2002 incorporado SBPB Parnaíba-PB 2004 incorporado SBCM Forquilhinha-SC 2006 incorporado SBCZ Cruzeiro do Sul-AC 2009

Com base na figura e nas tabelas anteriores sobre a evolução da infraestrutura aeroportuária sob administração da Infraero, vemos como o esforço de investimento em infraestrutura aeroportuária pelo governo federal estava, até certo ponto, vinculado ao movimento mais geral de investimentos públicos planejados nos Planos Nacionais de Desenvolvimento nos anos 1970.

O 2o PND sucedeu o primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento de 1972-1974, planejando os investimentos federais para o quinquênio 1975-1979. Seria ainda sucedido pelo (quase nunca lembrado) 3o PND, o qual visou dirigir os investimentos no período 1980-1985.

Segundo Brighenti93,

Com o II PND, os aeroportos da rede receberam projetos de expansão de suas operações de tráfego (passageiros e cargas), aumento da capacidade em território de pousos e decolagens, manobras dos aviões nos aeródromos, absorção de equipamentos preventivos de sinistros aeronáuticos, compra de carros de incêndio, limpa pistas, programação dos terminais de cargas no controle das mercadorias junto à RF [Receita Federal] e outras medidas no sentido de adequá-los aos padrões estabelecidos pela legislação vigente.

93 Brighenti, Op. Cit., p. 67. 67

Com a ajuda dos investimentos públicos e as receitas operacionais, o balanço financeiro da empresa passaria a apresentar resultados positivos somente em 197794. Segundo a Infraero, no ano de inauguração do novo aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, a Infraero deixava de depender de repasses do Governo Federal para custeio, “graças às receitas comerciais”. A partir de então os recursos federais seriam usados para investimentos em infraestrutura95.

Em que pese a relevância de toda a literatura crítica acerca da centralidade do 2° PND para as políticas desenvolvimentistas e seus efeitos sobre a economia e o território nacional, interessa-nos neste ponto destacar a função que teria sido designada à Infraero dentro daquela política. Isto é, tomando-se essa função da Infraero como representação do papel da infraestrutura aeroportuária dentro dos marcos do 2o PND, e por sua vez da infraestrutura como um todo para o desenvolvimento nacional no período, queremos apontar para os encargos que serão levados pela estatal para depois do fim daquele ciclo.

Assim, quando se esgota a sobrevida do ciclo econômico que justificara a adoção do 2o PND em 1974, e mesmo a tentativa tardia de implementação do 3o PND em 1979, a estatal se verá com a função de realizar a maior expansão de sua infraestrutura, seja pela incorporação de aeroportos que eram transferidos de outros ramos da administração pública federal ou de outros entes federativos, seja pela construção de novos aeroportos ou reforma e ampliação dos existentes. No estouro da crise fiscal do Estado no início dos anos 1980, que levaria abaixo o regime, a Infraero duplicava a quantidade de aeroportos sob sua administração, cobrindo todas as regiões do país, das localidades mais longínquas nas fronteiras aos aeroportos mais movimentados nos grandes centros.

Em 1987, a estatal será reorganizada em superintendências regionais, responsáveis pela gestão dos aeródromos sob sua jurisdição, e atreladas à sede em Brasília, a qual ficaria responsável pelo planejamento e visão estratégica da empresa96. Seria essa a estrutura com a qual a empresa entraria no período democrático e enfrentaria a abertura comercial e liberalização econômica pós-1990.

94 “Seja pelas receitas oriundas do governo, através dos planos e recursos orçamentários, seja pela apropriação das receitas pelas operações correlatas realizadas nos terminais, a empresa pode ter sua autossuficiência em termos financeiros em 1977”. AMAZONAS, O. M. S. Memória de uma empresa: história da Infraero. 1 a parte: A criação – O presente – A perspectiva do futuro. Brasília: Editora Independência, 1989 apud BRIGHENTI, Op. cit., p. 67. Brighenti comenta, no entanto, que não estão disponíveis para acesso público os dados financeiros da empresa para as décadas de 1970 e 1980, restando-nos confiar na informação indireta de Amazonas citada por Brighenti. 95INFRAERO, op. cit. p. 8. Como veremos mais adiante no capítulo 2, a forma jurídica da relação entre Infraero e União foi sempre precária, de maneira que a contabilidade oficial do governo considerava esses “investimentos” da estatal em infraestrutura aeroportuária como “despesas operacionais”, motivo pelo qual o patrimônio da Infraero era sempre exíguo frente àquele que ela transferia paulatinamente à União. 96INFRAERO, Op. cit. 68

“Desmilitarização” e liberalização pós-1990

O fim dos governos militares em 1985 e o início do período democrático em 1988 encetaram um processo de transformação que se convencionou nomear de “desmilitarização” do setor aéreo. Isto é, a transformação de um setor outrora totalmente controlado pelos militares, para uma nova forma de gestão que gradativamente conciliasse liberalismo econômico e controle civil do setor.

O impacto da abertura comercial e a liberalização econômica dos anos 1990 em diante é objeto de muitos estudos recentes que buscam, dentre outros objetivos, avaliar a extensão de seus efeitos e a eficiência dos mercados resultante do processo. Particularmente dentre os autores que mais têm se dedicado ao seu estudo no setor de transporte aéreo encontramos aqueles ligados ao estudo de políticas regulatórias e ações antitruste97. Vale frisar que os estudos setoriais irão, via de regra, tratar somente do mercado do serviço de transporte aéreo. Os impactos do processo de liberalização do serviço de transporte aéreo na infraestrutura do setor serão objeto da preocupação de acadêmicos e de trabalhos técnicos do planejamento de meados dos anos 2000, e serão abordados oportunamente no próximo capítulo.

O processo de “desmilitarização” ou “flexibilização” do setor seria levado a cabo em ondas sucessivas, abrindo cada vez mais o setor a cada rodada. Segundo Oliveira, podemos considerar a ocorrência de três rodadas liberalizantes, a saber98:

• 1992 – Liberalização com política de estabilização inativa • 1998 – Liberalização com restrição de política de estabilização • 2001 – Quase-desregulamentação

Contudo, a primeira medida de fato no sentido da flexibilização da regulação, ou desregulamentação, teria sido a adoção das bandas tarifárias ainda em 1989, quando as companhias aéreas passaram a estar autorizadas a variar o preço de oferta de passagens em até -25% e +10% da tarifa de referência fixada pelo DAC.

97 OLIVEIRA, A. V. M.; TUROLLA, F. A. “Competição, Colusão e Antitruste: estimação da conduta competitiva de companhias aéreas”. Mimeo, 2003. SALGADO, L. H.; VASSALO, M. D.; OLIVEIRA, A. V. M. “Regulação, políticas setoriais, competitividade e formação de preços: considerações sobre o transporte aéreo no Brasil”. Journal of Transport Literature, v. 4, n. 1, 2010. OLIVEIRA, A. V. M.; SANTOS FERREIRA, N.; SALGADO, L. H. “Liberalização econômica do transporte aéreo no Brasil: um estudo empírico dos dez primeiros anos”. Transportes, v. 19, n. 3, p. 62-74, 2011. BUSTO, A. C. TUROLLA, F. A.; OLIVEIRA, A. V. M. “Modelagem dos impactos da política de flexibilização na competição das companhias aéreas brasileiras”. Economia e Sociedade, v. 15, n. 27, p. 327-345, 2006. 98 OLIVEIRA, A. V. M. “Performance dos regulados e eficácia do regulador: uma avaliação das políticas regulatórias do transporte aéreo e dos desafios para o futuro”. Ronaldo Seroa da Motta; Lucia Helena Salgado e Silva (Org.). Regulação e concorrência no Brasil: governança, incentivos e eficiência. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, p. 133-164, 2007. 69

Oliveira compara as três rodadas de liberalização do setor aéreo no Brasil aos pacotes de liberalização promovidos pela União Europeia em período anterior, cuja ênfase teria sido no gradualismo das políticas, procurando evitar os efeitos danosos de choques de curto prazo, como teria ocorrido no caso da desregulamentação norte-americana em 1978.

A primeira rodada de liberalização em 1992 teria sido objeto da 5a CONAC de 1991. Ainda que aponte a relação entre a 5a CONAC e a primeira rodada de liberalização, Oliveira não endossa um tipo de abordagem comum a outros autores sobre a eficácia dos círculos corporativistas em absorver e conduzir a concertação de interesses empresariais e estatais nas transformações do planejamento econômico99.

Ao contrário, Oliveira afirma que

pode-se perceber como o setor é marcado por tentativas de busca de consenso em momentos de crise ou de grandes transformações. Entretanto, é possível contestar a eficácia dessas tentativas, dado que somente apresentaram resultados práticos em termos de redirecionamento das políticas governamentais devido a fatores exógenos ao setor, ou seja, à introdução das políticas desenvolvimentistas do período militar (quando dos primeiros Conacs) e o surgimento do neoliberalismo em nível mundial, influenciando as políticas de vários países, e sendo a linha principal de atuação do Governo Collor (quando do V Conac).100

Grifamos no trecho citado acima os termos que melhor demonstram a percepção do autor quanto à existência de um lado “externo” e um lado “interno” do setor, como se a fronteira entre eles pudesse ser perfeitamente definida. Assim, o que Oliveira chama de “fatores exógenos” ao setor seriam aquelas atitudes e processos mais gerais (não-setoriais) que se desenvolveriam “acima” e “por fora” do setor, e contra os quais os mecanismos corporativistas (as CONAC) não poderiam apresentar “nenhum resultado prático”, quanto muito apenas o seu “direcionamento”.

Discordamos da abordagem do autor precisamente por conta dos “resultados práticos” que a concertação corporativista obteve no processo de liberalização do setor, o que fica ainda mais evidente quando os comparamos aos resultados da liberalização em outros setores menos protegidos, como a indústria de transformação ou as telecomunicações, por exemplo. O gradualismo do processo de “desmilitarização” e liberalização foi traço distintivo do setor aéreo frente os demais setores da economia brasileira que se abriam e, é preciso frisar, a sua implementação foi objeto de planejamento do setor.

99 Tratamos desse tema anteriormente no capítulo a partir principalmente da bibliografia de Diniz e Boschi, além da abordagem da regulação em discussão teórica mais ampla. Com relação à retomada da concertação público privada no início dos anos 2000, Monteiro aponta a criação do Fórum de Competitividade do setor aéreo em 2002 no fim do 2 o governo Fernando Henrique Cardoso. MONTEIRO, C. F. “Estado e mercado no transporte aéreo brasileiro pós-reformas”. Política & Sociedade, v. 8, n. 15, outubro 2009, p. 125. 100 OLIVEIRA, 2007, p. 137, grifos nossos. 70

Com efeito, esta dissertação sustenta a hipótese de que a criação do mercado de aeroportos no Brasil seria feita para a expansão de capitais do setor da construção civil associados a investidores públicos e privados sobre o terreno da estatal Infraero, e para tanto argumentamos que esse teria sido um movimento de um outro braço do corporativismo brasileiro, liderado pelo setor de construção civil.101 A forma e o ritmo definidos para a criação do novo mercado significariam, por outro lado, o ponto final da trajetória gradualista do setor e reforçariam a hipótese de favorecimento das empreiteiras e novas concessionárias por meio da destruição do “patrimônio” da Infraero.

Com a primeira rodada de liberalização em 1992, a banda tarifária era ampliada de -25% para -50% e de +10% para +32%, assim como eram extintos os cinco mercados monopólicos da aviação regional criados na forma dos SITAR em 1975102. A entrada de novas companhias atraídas pela possibilidade de competição em preços passou a ser incentivada, “o que resultou em uma onda de pequenas novas companhias aéreas entrantes no mercado (por exemplo, Pantanal, Tavaj, Meta, Rico, etc.), algumas oriundas de empresas de táxi aéreo”.

Figura 21: Episódios de entrada no transporte aéreo. Fonte: OLIVEIRA, 2007, p. 140

A figura acima sintetiza a evolução do setor de transporte aéreo através dos episódios de novas entrantes de 1970 a 2004. As principais empresas aéreas nacionais que detinham a autorização para operação no até então chamado “mercado nacional”, por oposição aos “mercados regionais”, agora passavam a perceber a concorrência dessas novas pequenas empresas. Empresas tradicionais como a Varig tiveram de mudar sua operação interna de forma crescente, enquanto outras se viram forçadas a abrir a participação na empresa para incorporar capitais gerados em outro subsetor, como foi o caso

101 Campos já apontara a força do corporativismo das construtoras em episódio do início da ditadura militar de 1964, quando o rodoviarismo era implementado à força no Brasil com financiamento definido pelos EUA, que condicionavam a liberação dos recursos mediante a contratação de firmas de engenharia norte-americanas, a contragosto das firmas brasileiras que em resposta lançaram uma campanha em defesa da engenharia nacional por meio dos seus aparelhos de hegemonia, como o Clube de Engenharia: “Por uma ironia da história, uma política de abertura da economia brasileira às empresas estrangeiras de engenharia era freada por uma instituição corporativista do Estado varguista”. CAMPOS, P. H. P. Op. Cit., p. 255. 102 Portarias 075/GM5 de 6 de fevereiro de 1992 e 686 a 690/GM5 de 15 de setembro de 1992. 71 da privatização da Vasp com a aquisição por Wagner Canhedo, empresário oriundo do transporte de carga rodoviário.

No entanto, o centro da rede103, com as ligações entre aeroportos de Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, aí inclusa a ligação Rio-São Paulo, ainda era reservado para a operação exclusiva pelas empresas aéreas nacionais. Dessa forma, a ligação mais rentável da rede permanecia no poder das grandes empresas operando em conluio na “ponte aérea”. A sua forma estrutural, no entanto, deixaria de ser a de um oligopólio concentrado para transformar-se, paulatinamente e em sintonia com o restante do mercado, em um oligopólio diferenciado.

Segundo Oliveira, teria ocorrido uma segunda rodada de liberalização a partir de 1998, que o autor caracteriza como “liberalização com restrição de política de estabilização”. Essa segunda rodada se diferenciava da anterior pelo fato de que, após 1999, a liberalização do setor sofrerá restrições devidas aos efeitos da maxidesvalorização do real em janeiro de 1999 e dos choques da política de estabilização macroeconômica. Por esse mesmo motivo, o período anterior é chamado pelo autor de “liberalização com política de estabilização inativa”.

Com efeito, uma das limitações da política de liberalização do setor nesse momento se encontrava na lei do Plano Real que conferia discricionariedade ao Ministério da Fazenda para autorizar reajustes de preços, justamente uma das atribuições do DAC que as companhias aéreas gostariam de ver eliminada. Após o choque de janeiro de 1999, a pressão de preços teria posto em cheque a política de liberalização, anunciando-se uma crise financeira no setor altamente endividado em dólar104, e arrefecimento da dinâmica competitiva recente. Segundo Monteiro,

a diminuição drástica na procura por viagens internacionais e o imediato aumento nos custos para as empresas brasileiras, sem a possibilidade de repassá-lo às tarifas devido à rígida política de controle por parte das autoridades econômicas, levaram a um retraimento expressivo do mercado.105

Outra característica da segunda rodada de liberalização seria a abolição definitiva das bandas tarifárias e da exclusividade de operação nas Linhas Aéreas Especiais106. Após meio século de existência, o conluio entre companhias aéreas (naquela década constituído pelo pool de Vasp, Transbrasil e Varig, e pelas antigas “regionais” entrantes TAM e Rio-Sul) chancelado pela autorização governamental que

103 A 4a CONAC realizada em 1986 nomeara os “Voos diretos ao centro – VDC”, posteriormente alterados para Ligações Aéreas Especiais, que se referem às ligações entre as principais regiões metropolitanas do país e a capital federal. 104 OLIVEIRA, A. V. M.; TUROLLA, F. A. “Competição, Colusão e Antitruste: estimação da conduta competitiva de companhias aéreas”. Mimeo, 2003. “Assim houve, em um primeiro momento, uma tendência generalizada de suspensão das tarifas promocionais vigentes desde o ano anterior [1998] e, depois, uma demanda por realinhamento de preços em face do choque nos custos”. OLIVEIRA, A. V. M., 2007, p. 138. 105 MONTEIRO, Op. cit., p. 52. 106 Portarias 986/DGAC de 18 de fevereiro de 1997 e 05/GM5 de 5 de janeiro de 1998. 72 operava a “ponte aérea” perdia a legislação restritiva que a protegia. Mas estaria, com isso, extinta a “ponte aérea”?

Como tratado parágrafos acima, nesse momento tínhamos a convivência de um resquício de “oligopólio concentrado” no centro da rede do “oligopólio diferenciado” (e cada vez mais diferenciado) do mercado do serviço de transporte aéreo no Brasil. Com a remoção da legislação que o validava, esse submercado tenderia a nivelar suas práticas comerciais com aquelas já em curso no restante da rede. Uma vez removido o aparato regulador, o oligopólio concentrado da ligação Rio-São Paulo se transformará em um oligopólio diferenciado, posto que o produto ofertado assumirá cada vez maior diversidade, no apetite pela captura marginal da demanda, e levará adiante o impulso de maior concorrência com maior oferta nessa ligação. Com isso, os limites de acumulação no setor ultrapassarão as antigas barreiras regulatórias e de estrutura de mercado e encontrarão seus limites definidores na infraestrutura aeroportuária disponível nos centros das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. A limitação do acesso à “ponte aérea” assumirá a forma do “sloteamento” dos aeroportos de Santos-Dumont e Congonhas. Seriam necessários ainda dez anos para que o poder regulador intercedesse na designação arbitrária do direito de pouso que o aeroporto (isto é, seu operador, a Infraero) concedia a cada companhia. Em 2009 a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), sucessora civil do Departamento de Aviação Civil ligado à Aeronáutica, criou a sua Coordenação de Slot, cujos trabalhos iniciaram-se justamente pelos aeroportos de Congonhas e Santos-Dumont.

Por outro lado, despontava então o “problema” da limitação da infraestrutura para a continuidade da expansão e diversificação do mercado do serviço de transporte aéreo. Os aeroportos entrariam a partir de então na mira do processo de liberalização do setor. A terceira rodada de liberalização identificada por Oliveira teria sido iniciada em 2001, com a abolição completa das bandas tarifárias e da definição de tarifas de referência pelo DAC107. Era franqueada a competição em preços entre as companhias aéreas, coincidindo com a entrada em operação de uma companhia que seria o símbolo do novo mercado do serviço de transporte aéreo, a Gol Linhas Aéreas108. Busto, Turolla e Oliveira em artigo de 2006 destacam que àquela altura a literatura especializada vinha sendo crítica com relação à eficácia do processo de liberalização na promoção da competição entre companhias aéreas. Citando os trabalhos anteriores de Espírito Santo Jr., Barreiro e Santos109 e Espírito Santo Jr.110, Tavares111 e 107 Portarias 672/DGAC de 16 de abril de 2001 e 1213/DGAC de 16 de agosto de 2001. 108 OLIVEIRA, A. V. M., 2007, p. 139. 109 ESPÍRITO SANTO JR., R.; BARREIRO, J.; SANTOS, M. “Flexibilização do transporte aéreo no Brasil: ingresso numa era de maior competição?” Anais XII Congresso da Associação Nacional de Ensino e Pesquisa em Transportes (ANPET), 1998. 110 ESPÍRITO SANTO JR., R. “Concentração no transporte aéreo e os possíveis impactos sobre os consumidores, a sociedade e a economia” Anais XIV Congresso da Associação Nacional de Ensino e Pesquisa em Transportes (ANPET), 2000. 111 TAVARES, M. “O transporte aéreo doméstico e a lógica da desregulamentação”. Secretaria de Acompanhamento Econômico, Mimeo, 1999. 73

Castro e Lamy112, os autores reforçam a conclusão daqueles de que “a competição existe apenas superficialmente e não como seria saudável para o passageiro”113.

No artigo citado, os autores buscam contrapor-se àquela afirmação, através de modelo econométrico que considera o período de 1997-2001, para inferir a conduta das firmas em um oligopólio diferenciado “quase desregulamentado”114, prática inovadora no Brasil, mas “relativamente comum nos estudos do transporte aéreo mundial”115. Os resultados do modelo de Busto, Turolla e Oliveira mostrarão, primeiro, que nos episódios de “guerra de preços” em 1998 e 2001 e na maxidesvalorização de 1999 teria havido tendência à homogeneização do produto e, segundo, que em nenhum momento a conduta inferida das firmas indicou ausência de competição por colusão ou coordenação de preços.

A figura a seguir apresenta o resultado da modelagem (linha inferior, com legenda “conduta” vis-à-vis um modelo de Herfindhal-Hirshman), tipicamente empregado em análises econométricas no setor aéreo mundial, além de ser o método empregado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica brasileiro (CADE), conforme veremos no capítulo seguinte.

112 CASTRO, N.; LAMY, P., Op. cit. 113 BUSTO, A. C. TUROLLA, F. A.; OLIVEIRA, A. V. M., Op. cit., p. 327. 114 Os autores aplicam metodologia da Nova Organização Industrial Empírica (NEIO, na sigla em inglês). 115 A exemplo de autores como Captain e Sickles, Brander e Zhang, e Oum; Zhang e Zhang. 74

Figura 22: Evolução da concentração do submercado Rio-São Paulo pelos métodos de HHI e o modelo de Busto, Turolla e Oliveira

Do lado da infraestrutura do setor, a década dos anos 1990 observou um movimento relevante de consolidação empresarial. Por meio do ato de incorporação da Telecomunicações Aeronáuticas S.A. (TASA) pela Infraero em 1995, a estatal ampliava sua responsabilidade na infraestrutura física do setor, assumindo tanto a parcela mais relevante da aeroportuária como a de auxílio à navegação aérea. A administração dessa infraestrutura, no entanto, continuava militar. Somente em 2000 a Infraero passaria a subordinar-se ao recém-criado Ministério da Defesa e teria seu primeiro presidente civil, de maneira que, formalmente, a administração da infraestrutura física passava para mãos civis, dando sequência ao processo de “desmilitarização”.

Do lado da gestão, o Departamento de Aviação Civil (DAC), originalmente civil em 1931, depois militar a partir de 1941, passaria a ser sucedido em 2006 por novo órgão civil em linha com o “Estado Regulador” em formação, a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Não obstante, a gestão do espaço aéreo, realizada pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA) vinculado ao Comando da Aeronáutica, permaneceria militar.

A desmilitarização gradual do setor avançava, primeiro liberando o mercado do serviço de transporte aéreo da “concorrência controlada” pelos militares, migrando a sua regulação para mãos civis. Restava, contudo, a administração e gestão da infraestrutura, tanto a aeroportuária como a de controle do espaço aéreo. 75

Enquanto esta última permanecerá por todo o período estudado nesta dissertação e até os dias atuais em manu militari, a infraestrutura aeroportuária passaria a ser “a bola da vez” do processo de liberalização do setor de transporte aéreo. A sua administração e gestão constituiriam, a partir de então, novas atividades criadas no bojo do processo de liberalização do setor. Daí surgiria um novo mercado de aeroportos que traria consigo a necessidade de uma nova forma de regulação.

* * *

Neste capítulo traçamos em linhas gerais a formação do subsetor de transporte aéreo no Brasil, dando ênfase à estrutura de mercado do serviço de transporte aéreo e à sua relação com a densidade e concentração da Rede Aérea Nacional oriunda das ações de planejamento no período 1920-2004. Vimos como a formação bruta de capital fixo na infraestrutura aeroportuária seguiu trajetória com muitas interrupções. Se de início partiu-se de um legado da 2a Guerra Mundial de baixo investimento público da União, e sobre ele foi incentivada a construção privada de infraestrutura pelas próprias companhias aéreas, num segundo momento de mudança no modo de regulação inscrito na ditadura militar houve “captura” desse patrimônio privado para o Estado, que o redistribuiu entre os agentes de mercado que escolheu favorecer.

Assumimos nesta dissertação que a “concorrência controlada” teria sido uma forma estruturante da participação do setor aéreo no modo de regulação imposto na ditadura como corolário do regime de acumulação da modernização conservadora. Nessa atuação, consolidou-se o oligopólio nas linhas- tronco do mercado doméstico, e criaram-se quase-mercados de atuação de novas empresas planejadas em monopólios regionais associados a uma política industrial proposta pela Embraer desde o início dos anos 1970. Ressaltamos como essa resultante de forças em ação no seio do Estado é chave explicativa do caráter do planejamento em vigor, realçando os efeitos reais da chicana do aparelho estatal.

Nessa análise que fizemos, utilizamos dos conceitos teóricos do neoinstitucionalismo, do estudo do corporativismo brasileiro e da abordagem da regulação para compor um quadro crítico capaz de abarcar as muitas trajetórias interrompidas do planejamento estatal. Nesse percurso, identificamos o papel modernizante conferido à Infraero desde sua fundação, cuja missão de uniformizar a qualidade e ampliar a capacidade da infraestrutura aeroportuária no país se deu em período de desaceleração da economia (2° e 3° PND). Ficou evidente como o seu “patrimônio” foi sendo composto da incorporação gradual de aeroportos pré-existentes que passavam à administração federal, aos quais se somavam novos projetos da estatal, com responsabilidades sempre crescentes na provisão da 76 infraestrutura aeroportuária do setor, ainda que em contexto de crise fiscal e após o fim do regime ditatorial.

No capítulo seguinte abordaremos o planejamento da infraestrutura aeroportuária no período 2004- 2014, bem como as tratativas para a criação do novo mercado de aeroportos a partir de 2011. No capítulo 3 subsequente nos dedicaremos à descrição do “modelo de negócios” que encerra tanto a forma do novo mercado de aeroportos, quanto a nova forma de gestão desse mercado em criação. 77

Capítulo 2. Crise e planejamento 78

Como anunciado na introdução desta dissertação, consideramos que a conduta de política econômica do governo federal no período 2009-2014 moldou-se pela resposta ao estouro da crise financeira e econômica global de 2008.

Nesse sentido, ressalta-se como a partir de 2009 a estrutura de planejamento do governo federal passa a voltar-se na direção de acelerar o crescimento econômico, ou quando não, manter o nível de atividade econômica por meio de novos programas de incentivo. Dentre as várias medidas anticíclicas que podem ser identificadas a partir daquele momento, no setor de transporte aéreo são enfrentados os problemas de deficiência de capacidade da sua infraestrutura como motivador de investimento público e privado. Essa mudança no planejamento federal para o setor é o objeto deste capítulo.

Assim, os esforços de intervenção do governo federal nesse setor visarão, em última instância, garantir o investimento em infraestrutura do setor como meio de viabilizar a continuidade da expansão da oferta do serviço de transporte aéreo registrada desde 2004. A figura a seguir apresenta a evolução da demanda de passageiros no período 2004-2008, destacando-se seu desempenho ascendente nessa fase inicial do ciclo. Em contraste, evidencia-se a discrepância entre aumento de demanda e decrescimento no investimento em infraestrutura aeroportuária pela Infraero, empresa estatal responsável pela administração aeroportuária, medida no percentual do investimento realizado em relação ao planejado pela estatal a cada ano naquele período.

Figura 23: Evolução do investimento da Infraero ante o crescimento da demanda anual de passageiros na rede aérea nacional de 2004 a 2008 79

No fim do período ascendente do ciclo (2004-2008), a deficiência da capacidade da infraestrutura do setor foi evidenciada aos usuários e caracterizou o que se chamou de “caos aéreo”. Essa infraestrutura, vale dizer, estava composta de duas partes: a infraestrutura de tráfego aéreo, coordenada pelo sistema de controle do espaço aéreo, mantida pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA) do Ministério da Aeronáutica; e a infraestrutura aeroportuária, constituída pelos 136 aeroportos integrantes da Rede Aérea Nacional, dos quais 66 até então eram mantidos pela Infraero, e que concentravam 97% do tráfego doméstico regular. O incidente do voo 1907 da Gol em 2006116, causado por uma falha de gestão da infraestrutura do controle do espaço aéreo brasileiro, desencadeou o movimento grevista dos controladores de voo ligados ao DECEA. Como consequência da "operação padrão" então implementada, que momentaneamente reduziu os movimentos de pousos e decolagens na Rede Aérea Nacional e que culminaria na greve no dia 30 de março de 2007, os aeroportos mostraram-se saturados na sua capacidade de receber, triar e processar o contingente de passageiros embarcando e desembarcando nos principais nós da rede, acarretando a manifestação visível do "caos aéreo" nos aeroportos da Infraero. A esse quadro se somava a redução temporária da operação no aeroporto de Congonhas, um dos mais movimentados aeroportos do país, e central na rede de hub- and-spoke brasileira. Congonhas também havia sido palco de um “quase” acidente de derrapamento na pista de pouso e decolagem de aeronave da companhia BRA Linhas Aéreas em 2006.

Logo, enquanto a solução do “caos aéreo” na infraestrutura do tráfego aéreo passava por equacionar a greve dos controladores do espaço aéreo e aumentar o efetivo militar dedicado a essa função, na infraestrutura aeroportuária o problema era mais amplo. Desde 2004 a Infraero vinha buscando pôr em prática um programa de investimentos em reforma e ampliação dos 66 aeroportos públicos sob sua responsabilidade da ordem de 1 bilhão de reais anuais em média. Esses aeroportos representavam 48% do total de aeroportos em atividade na rede, porém davam conta de 97% do tráfego de passageiros no final do período citado (2008). Desde 2005 o governo federal encontrava uma maneira de garantir a cada ano aportes extras da ordem de 350 milhões de reais à empresa estatal, ora diretamente via Tesouro Nacional, ora indiretamente via Ministério do Turismo, por exemplo117.

Contudo, e como ficou mostrado na figura anterior, ainda em 2008 os investimentos nem de longe se aproximavam do planejado, havendo sido executada uma média de 42% dos investimentos orçados no

116 Colisão em voo do Boeing 737-800 da Gol Linhas Aéreas, partindo de Manaus-AM com destino a Brasília-DF, com um jato de pequeno porte (Legacy 600), fabricado e vendido pela Embraer para usuário particular norte-americano, partindo de São José dos Campos-SP com destino a Manaus-AM. À época foi feita investigação pelo Ministério da Aeronáutica, constatando que o local do acidente (Amazônia, próximo à divisa do estado do Mato Grosso com Pará) fica em fronteira de jurisdição das centrais de controle de tráfego aéreo (CINDACTA 1 e 4) caracterizada por zona "cinza", de difícil comunicação terra-ar, o que somado à imprudência do piloto do jato Legacy 600 em não voar com o equipamento transponder ativado, como manda a regulação brasileira, ocasionou a colisão, que terminou com a queda do Boeing 737- 800 da Gol com a morte de todos os 154 ocupantes. 117 Os dados financeiros da Infraero informados aqui foram compilados dos anuários operacionais publicados pela estatal de 2004 a 2010, disponíveis em: http://www4.Infraero.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/relatorios-anuais/ (1/10/18). 80 período 2004-2008, de forma que a capacidade de investimento e gestão da empresa para acompanhar a evolução da demanda era questionada internamente nas estruturas de planejamento do governo.118 Com o prenúncio de crise econômica no horizonte de preocupações do governo, hipótese que sustentamos, as expectativas de que a estatal seria capaz de cumprir e inclusive aumentar sua capacidade de investimento eram decrescentes.

Com o intuito de apresentar a magnitude da atuação da Infraero na administração da infraestrutura aeroportuária do país naquele período, reunimos na tabela a seguir119 as principais informações operacionais e financeiras da Infraero no período de 2004 a 2008120:

Tabela 5: Série histórica de características operacionais e financeiras da Infraero (2004 a 2008)

CARACTERÍSTICAS 2004 2005 2006 2007 2008 OPERACIONAIS Aeroportos administrados 66 66 68 67 67 Demanda movimentos (mi mov/ano) 1,8 1,8 1,9 2 1,4 Demanda miPAX/ano 82,7 96,1 102,2 110,6 112,4

FINANCEIRAS Aportes excepcionais Gov. Federal (R$ mi) 0 350 350 565,1 223,3 Valor executado de investimentos (R$ mi) 475 278 592 329 376 Valor orçado de investimentos (R$ mi) 546 400 754 839 2214 Deficit nominal de investimentos (R$ mi) 71 122 161 510 1838 % deficit investimentos 0,13 0,31 0,21 0,61 0,83 Margem operacional (%) 16,8 1,5 9,6 12,9 15,5 Margem EBITDA (%) 24,3 19,6 24,6 22,5 23

A aviação regular121 movimentou uma média de 100 milhões de passageiros por ano nos aeroportos da Rede Aérea Nacional no período de 2004 a 2008. Como se viu, essa demanda foi crescente, partindo

118 Ver nota anterior sobre fonte dos dados operacionais e financeiros da Infraero. O relatório McKinsey (McKINSEY, Op. cit.) dá conta de um resultado positivo do EBITDA de 400 milhões de reais em 2008, quando os investimentos programados seriam de cerca de 2 bilhões de reais ao ano, porém não esclarece qual a fonte desses dados. McKinsey, Op. cit., p. 54. 119 Fonte: Anuários operacionais da Infraero, 2004 a 2010. 120 Fonte: Anuários Operacionais da Infraero, 2004 a 2010. A linha “% deficit investimentos” representa o inverso da linha “Variação da execução orçamentária da Infraero” apresentada no gráfico da figura anterior. A demanda agregada do Sistema Infraero computa os passageiro embarcados e desembarcados em aeroportos da Infraero, sem descontar duplas contagens, uma vez que esses passageiros são de fato processados nas duas pontas das ligações e resultam em proxies do custo operacional da empresa. Essa metodologia será importante para comparar com o caso espanhol no último capítulo. 121 Aviação regular consiste no serviço de voos comerciais de passageiros por meio das companhias aéreas especializadas. Além da aviação regular, a aviação civil também é composta pela aviação geral, relativa aos voos fretados e que também costumam operar nos mesmos aeroportos públicos que a aviação regular. Afora estas duas componentes da aviação civil, válida tanto para o transporte de passageiros como de cargas, também é comum encontrar na maioria dos aeroportos brasileiros o compartilhamento da aviação civil com a aviação militar, que é regida por outras regras e instituições. Para fins desta dissertação, o objeto de estudo será sempre a aviação civil, e particularmente a aviação regular de passageiros, a qual tem como subatividade a aviação regional. 81 de cerca de 83 milhões de passageiros por ano no início do ciclo em 2004 até atingir a grandeza de 112 milhões de passageiros em 2008. Desses, 97% passaram pelos 66 aeroportos da Infraero.

Importante notar como o assim chamado “Sistema Infraero”, termo que se refere à porção da infraestrutura da Rede Aérea Nacional sob administração da estatal, equivalente a 66 dos 136 aeroportos públicos integrantes da RAN em 2009, é desequilibrado quanto à distribuição geográfica de demanda, receita e cobertura espacial.

Se tomarmos todos os 136 aeroportos participantes da Rede Aérea Nacional na aviação regular doméstica122, registramos 834 ligações123 realizadas entre eles em 2009, conformando de fato a infraestrutura da Rede Aérea Nacional. Destaca-se como a rede foi concentrada durante o período anterior ao estudado, partindo de um patamar em torno de 180 aeroportos em 1999, para estabilizar- se em torno de 130 aeroportos no período estudado de 2004 a 2009, conforme ilustrado na figura a seguir. Como apresentado no capítulo 1, recordamos que nos anos 1950 a aviação regular doméstica chegou a alcançar 358 localidades124.

122 Corresponde à principal parte da aviação nacional, que compreende a aviação comercial operando regularmente entre aeroportos nacionais, incluindo a atividade de aviação regional. Portanto, não considera os voos internacionais nem os voos fretados. Em momentos oportunos nesta dissertação são usados dados internacionais para comparar com dados domésticos a fim de destacar a importância do mercado internacional para alguns aeroportos e para as companhias, ainda que o foco da pesquisa permaneça sendo o mercado doméstico e a Rede Aérea Nacional no território brasileiro. 123 Por “ligações” aqui consideramos as decolagens de um aeroporto de origem e pouso em um outro aeroporto de destino no território brasileiro por companhia aérea regular e doméstica, com passageiros pagantes. Uma viagem de ida e volta contam como duas ligações. 124 LAPLANE, G., Op. cit., p. 45. Ver nota 38 no capítulo 1. 82

Figura 24: Cobertura da Rede Aérea Nacional em número de aeroportos com aviação regular 1999-2009. Fonte: McKinsey, Op. cit, p. 223

Figura 25: Cobertura da Rede Aérea Nacional em número de aeroportos com aviação regular 1999-2009. Fonte: McKinsey, Op. cit., p. 223 83

Mas se a rede se concentrou seguindo o processo de concentração econômica impulsionado pela liberalização do mercado, isso tampouco se deu de forma homogênea no território. As regiões que mais “perderam” nós na rede foram primeiro a Região Norte, seguida da Região Nordeste, conforme se pode ver no gráfico da figura anterior. Quando deixamos um pouco de lado a magnitude dos passageiros transportados e olhamos pelo lado das ligações entre aeroportos, vemos que os 26 aeroportos da RAN com 20 ligações ou mais eram responsáveis por mais da metade das ligações totais na rede. E se associarmos esse dado sobre importância relativa de cada nó na rede em número de ligações com a magnitude da demanda de passageiros em cada um deles, conforme pode ser visto no gráfico da figura a seguir125, perceberemos como há alguns aeroportos que derivam sua importância na rede por causa de ambos os fatores (centralidade e magnitude), enquanto há outros cuja centralidade é mais importante do que a magnitude do tráfego de passageiros. No primeiro caso temos aeroportos como Brasília e Guarulhos, enquanto no segundo caso temos aeroportos como Manaus e Belém.

Figura 26: Aeroportos com 20 ou mais ligações anuais e respectivas demandas de passageiros (em milhões) em 2009 (52,4% das ligações). Fonte: INFRAERO, Anuário Operacional 2010

125 Dos aeroportos listados no gráfico, apenas os aeroportos SBPS (Porto Seguro) e SBRP (Ribeirão Preto) não eram administrados pela Infraero em 2009. 84

Sabemos, assim, que esses 26 aeroportos concentravam os nós mais importantes da Rede Aérea Nacional, refletindo-se no fato de que o equivalente a 89% dos passageiros viajavam em 52% das ligações na rede. Isso denuncia uma rede concentrada, conforme se pode ver melhor ilustrado no mapa da figura seguinte, que apresenta a magnitude da demanda de passageiros por aeroportos no território brasileiro.

Figura 27: Mapa da repartição de demanda de passageiros nos principais aeroportos do Sistema Infraero em 2009

Interpretando a figura anterior, vemos os nós principais da rede em Brasília e em São Paulo, cuja área terminal é dividida entre os aeroportos de Guarulhos, Congonhas e Viracopos, todos com uma demanda da ordem de aproximadamente 12 milhões de passageiros anuais cada126. Na sequência temos o nó do Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, na casa dos 9 milhões de passageiros; Salvador e Porto Alegre acompanham com cerca de 5 milhões de passageiros, e em seguida Belo Horizonte, Curitiba, Santos Dumont (Rio de Janeiro), Fortaleza e Recife, com cerca de 4 milhões de passageiros anuais cada.

Sem surpresa para os estudiosos do desenvolvimento regional no Brasil, percebemos como a Rede Aérea Nacional é centralizada em São Paulo e Brasília, com o Rio de Janeiro como coadjuvante. Mais do que isso, justamente o que a torna desequilibrada e não-homogênea entre suas partes é o fato de que a rede depende de alguns aeroportos cuja contribuição é muito mais de conexão do que de

126 A demanda específica de cada aeroporto da área terminal São Paulo é bastante diferente, ainda mais quando contrastada com a capacidade operacional de cada aeroporto, resultando em graus muito distintos de saturação em cada localidade, sendo o aeroporto central de São Paulo, Congonhas, o que opera mais próximo do limite de forma constante, enquanto Viracopos, por outro lado, possui capacidade ociosa devido à ampliação realizada após a concessão. 85 introdução de demanda de passageiros na rede. O que se depreende da análise anterior é que, dos 26 aeroportos selecionados por concentrarem mais da metade das ligações totais na rede, apenas Pampulha (MG), Florianópolis (SC), Londrina (PR), Maringá (PR) e Foz do Iguaçu (PR) não se encontravam também entre os aeroportos mais rentáveis da rede. Todos os 20 demais aeroportos responsáveis pela maior quantidade de ligações eram também responsáveis pela maior quantidade de receita gerada na rede, assim como pela maior quantidade de passageiros transportados127.

Mas se essa é a repartição espacial dada em função da disposição da capacidade da infraestrutura aeroportuária e oferta do serviço de transporte pelas companhias aéreas, o desequilíbrio geográfico da RAN também determinava estruturalmente os custos operacionais do Sistema Infraero. Segundo os dados operacionais anuais publicados pela empresa, dos seus 66 aeroportos administrados em 2009, somente 11 apresentavam resultado operacional positivo, dos quais apenas 4 aeroportos deviam esse resultado positivo às receitas aeroportuárias. Veja-se a tabela a seguir em que são apresentados os dados para os 66 aeroportos do Sistema Infraero em 2009 quanto ao resultado comercial, oriundo de receitas não reguladas, resultado aeroportuário, diretamente dependente do volume de tráfego, posto que oriundo de receitas aeroportuárias reguladas aplicadas sobre os clientes dos aeroportos como as companhias aéreas, transportadores e passageiros, e resultado operacional que agrega os dois anteriores128.

127 Neste caso, Florianópolis e Londrina encontram-se entre os 26 aeroportos mais demandados por passageiros. Não consideramos nesta análise os casos dos aeroportos de Porto Seguro (BA) e Ribeirão Preto (SP), por não serem administrados pela Infraero. A título de curiosidade, no entanto, destaca-se que o aeroporto de Porto Seguro (privado) ocupava a 23a posição no ranque de quantidade de ligações, a 31a posição no ranque de quantidade de passageiros e a 24a posição no ranque de geração de receitas. O aeroporto de Ribeirão Preto (administrado pelo DAESP do governo do estado de São Paulo) ocupava a 26a posição no ranque de ligações, a 32a posição no ranque de quantidade de passageiros e a 30a posição no ranque de geração de receitas. 128 Dados obtidos de ANAC. Relatório de Desempenho Operacional dos Aeroportos, ano 2009. Brasília: ANAC, 2011. A metodologia para contabilizar custos e receitas por aeroporto adotada nesta dissertação foi considerar os dados financeiros publicados no item “1.1.2 Dados financeiros dos aeroportos”, segregando os dados de custos sem depreciação e remuneração de cada aeroporto, mas já considerando embutidos nesses valores os custos da Sede e das Superintendências Regionais da empresa, todos de ordem administrativa, seguindo a própria metodologia de contabilidade da Infraero. O propósito de se usar dados sem depreciação e remuneração é poder destacar os resultados diretos de cada aeroporto, subtraindo-se os custos reais das receitas por cada tipo de atividade exercida no aeroporto, de maneira a poder interpretar a sustentabilidade do negócio caso a caso. 86

Tabela 6: Resultado dos 66 aeroportos do Sistema Infraero em 2009 87

Com a ajuda da tabela e figuras anteriores, podemos visualizar como a concentração geográfica e a concentração econômica do setor aéreo são correlacionadas e se reforçam. Em decorrência disso, exacerbam-se os desequilíbrios na Rede Aérea Nacional e o fato de que eles condicionam a estratégia de geração de receitas da Infraero, que apesar de ter tido um resultado final positivo com margem de pouco mais de 6% em 2009, tinha sua operação empresarial nitidamente dependente dos aeroportos “centrais”, como Guarulhos, Congonhas e Brasília. Isso também quer dizer, consequentemente, que os aeroportos “periféricos” eram dependentes das receitas geradas nos aeroportos “centrais”, conformando assim uma rede desequilibrada, ainda que rentável quando tomada por inteiro, graças aos subsídios cruzados entre aeroportos centrais e periféricos. Aeroportos como Galeão (RJ), Belém (PA) e Recife (PE), por exemplo, figuram no fim da lista de rentabilidade operacional da Infraero em 2009, em que pese as funções fundamentais que desempenhavam na RAN como nós da rede, ocupando as posições 5, 8 e 13 respectivamente na lista ordenada pela quantidade de ligações, conforme se pode ver no mapa da Figura 27 e Tabela 6 anteriores.

De forma complementar ao argumento que acabamos de apresentar, a Tabela 5 já havia apresentado o resultado EBITDA da Infraero para todo o período de 2004 a 2008, que foi em média de 23%. Em 2009, ano do novo planejamento do setor aqui estudado, o EBITDA baixou de 23% para 13,7% e a margem operacional de 15,5% para 6,8%, próximo da metade da média no período anterior (11,3%). Em termos reais, isso significou na prática um lucro líquido (antes de investimentos) de 166,5 milhões de reais em valores de 2009129, uma variação negativa de mais de 55% em relação ao ano anterior. Como a Infraero não possui propriedade dos aeroportos nem das benfeitorias que faz neles, o seu patrimônio limitava-se a 1,018 bilhão de reais em 2009130, enquanto que os 144,3 milhões de reais investidos nos aeroportos naquele exercício eram contabilizados como “despesas operacionais” e revertidos a bens da União.

Com base nesses dados expostos e disponíveis à época, era perfeitamente previsível que, uma vez que as receitas dos aeroportos públicos concedidos a empresas privadas de 2011 a 2013 (Brasília, Guarulhos, Viracopos, Galeão e Confins) fossem finalmente retiradas da Infraero, a estatal se encontraria numa situação de crescente deficit operacional, incapaz de sustentar seu balanço sem contínuos aportes de recursos públicos. Somente quando da aprovação da Lei 12.833 de 20/6/2013, regulamentada apenas em maio de 2016, a Infraero teria prevista autorização para operar com os benefícios de empresa de economia mista e contratar bens e serviços por meio de processo de

129 INFRAERO. Relatório de Gestão 2009, Anexo 1, parte 2, quadro 195. Disponível em http://www4.Infraero.gov.br/acesso-a-informacao/transparencia/prestacao-de-contas-anuais/ (27/9/18). 130 Segundo o Relatório de Gestão 2009 (INFRAERO, Op. cit.), o patrimônio líquido da Infraero era de 970,7 milhões de reais em 2009, formado principalmente por aportes de capital do Governo Federal, aos quais se somam reservas de lucro no valor de 47,8 milhões de reais. Seu ativo imobilizado era de 309,7 milhões de reais, dos quais os mais importantes, pela ordem, eram: computadores e periféricos, veículos, equipamentos eletroeletrônicos, móveis e utensílios, edificações e instalações (não aeroportuárias) e terrenos. 88 licitação simplificado, como já era o caso da Petrobras131. Dado que essas informações eram de conhecimento prévio dos planejadores, não se pode falar em “erro” ou em “consequência adversa” do processo de concessão de aeroportos às empresas privadas. Conclui-se que o desmonte da Infraero foi um caso de sucesso e planejado.

Quando se inicia a fase descensional do ciclo (pós-2008), dentro da estrutura de planejamento do Governo Federal (ANAC, Ministério da Defesa, IPEA e BNDES) passam a ser consideradas as hipóteses de privatização da administração aeroportuária. A concessão da infraestrutura aeroportuária já estava prevista em lei desde o decreto 3.564 de 17 de agosto de 2000, que havia criado o Conselho Nacional de Aviação Civil (CONAC), incumbindo essa instância decisória de “propor o modelo de concessão de infra-estrutura aeroportuária, submetendo-o ao Presidente da República”132.

Recorda-se que mesmo a atuação da Infraero naquela época era carente de uma forma jurídica mais bem definida, sendo uma das possibilidades de solução a adoção da figura de concessionária pública, mediante outorga ou contrato133. Até então, a relação entre União e empresa pública existia em base a um vínculo precário e irregular de outorga legal que, entre outros fatores, bloqueava a possibilidade de financiamento público da Infraero por canais como o BNDES. Isso porque a empresa não detinha nem patrimônio próprio (seus gastos eram contabilizados como despesa, e o patrimônio que construiu por décadas foi sempre revertido para a União), nem ela detinha um contrato de concessão pública por período razoável, o que lhe permitiria oferecer a receita futura como garantia de empréstimo ao banco. Nesse sentido, a condição de partida da Infraero era desvantajosa e, como dito anteriormente, tratada como parte do problema a resolver no “modelo brasileiro”.

Como já afirmamos, somente após a aprovação da Lei 12.833 de 20/6/2013, regulamentada pelo Decreto 8.756 de 10/5/2016, a Infraero seria autorizada a contratar bens e serviços por processo licitatório simplificado, típicos de uma sociedade de economia mista como a Petrobras. Desde pelo menos 2008 que a própria Infraero já planejava estruturar a sua abertura de capital, havendo adotado as medidas preparatórias de adequação às práticas da Bovespa até o mês de junho de 2008, conforme comprova o seu Relatório Anual de 2008.134

131 “A contratação de bens e serviços pela Infraero e suas controladas, a exemplo dos procedimentos facultados à Petrobras no art. 67 da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, bem como as permissões e concessões de uso de áreas, instalações e equipamentos aeroportuários observarão procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da República”. Lei 12.833/2013. O decreto que regulamentou a aplicação dessa lei pela Infraero, bem como definiu o estatuto jurídico de relação da União com Infraero foi publicado em maio de 2016 (Decreto 8.756 de 10/5/2016). 132 Decreto 3.564/2000 “Dispõe sobre a estrutura e o funcionamento do Conselho de Aviação Civil - CONAC e dá outras providências”, Art. 2°, Inciso II. 133 A situação jurídica precária da relação entre União, proprietária da infraestrutura do setor, e a Infraero já foi abordada no Capítulo 1. 134 INFRAERO, Relatório Operacional, 2008. 89

A partir de então o programa teria sido paralisado e preterido em prol de uma opção pela administração privada, uma vez que fora assinado o Termo de Cooperação Técnica entre Ministério da Defesa – MD, Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, em 28 de agosto de 2008 que, segundo o Anuário da Infraero de 2008, tinha como objeto “a realização de estudos sobre a infraestrutura, governança, regulação e concorrências no setor de aviação civil”.135

Ou seja, a assinatura desse Termo de Cooperação Técnica entre os responsáveis pelo planejamento do setor dentro da estrutura do Governo Federal marcou a mudança de direção da administração aeroportuária a partir de então, condicionando o desenrolar dos eventos no período seguinte do ciclo (2009-2014). Segundo apresentação feita em dezembro de 2008 por Fernando Soares, então Secretário de Aviação Civil no Ministério da Defesa, o modelo brasileiro deveria ser proposto por um grupo de trabalho criado naquele ministério, lotado no Departamento de Política de Aviação Civil da SAC. Seria a partir desse grupo de trabalho que, juntamente com o BNDES e a consultoria internacional McKinsey, começaria a ser elaborado o assim chamado “modelo brasileiro”136. Além disso, seria a mesma McKinsey que seria contratada para formular a “reestruturação da Infraero”137.

Nas seções seguintes passaremos a tratar desse planejamento de concessão à participação privada na administração dos aeroportos centrais da Rede Aérea Nacional, e principais contribuidores para a sustentabilidade do Sistema Infraero. Serão abordados inicialmente os estudos da agência reguladora ANAC, órgão que apesar de ter origem fiscalizadora do mercado do serviço de transporte aéreo vinha exercendo o papel de formulador do planejamento setorial naquele período, o que era um traço comum às agências reguladoras então.

Em seguida serão abordados os estudos contratados pelo BNDES através da cooperação técnica mencionada anteriormente, e que se consubstanciaria no aqui chamado “Relatório McKinsey”, elaborado por consultoria internacional que entregou às estruturas de planejamento do Estado um diagnóstico do setor e um plano de ação para o futuro a curto e médio prazo. Esse Relatório McKinsey se tornaria a peça central do planejamento do setor no período subsequente (2009-2014), desembocando em outros documentos de planejamento mais direcionados, como o estudo de reestruturação da Infraero, contratado junto à mesma consultoria em 2010, e que aqui chamamos de “Estudo para Infraero”, bem como os estudos de modelagem da participação privada no setor,

135 Idem. 136 MINISTÉRIO DA DEFESA (SECRETARIA DE AVIAÇÃO CIVIL). “Modelo de Concessão da Infra-Estrutura Aeroportuária”. Apresentação em sessão “O Desenho do Modelo Brasileiro” no Seminário Internacional sobre Concessão de Aeroportos, Rio de Janeiro, 11 e 12 de dezembro de 2008. 137 Conforme entrevista a funcionário de alto nível do BNDES em 2/4/2018. A documentação do “Estudo de Reestruturação da Infraero” elaborada no contrato 08210001 de 15/12/2009 no valor de R$ 7.452.370 é de caráter confidencial e foi disponibilizada para consulta por meio da Lei de Acesso à Informação. 90 elaborados em 2011 pela Empresa Brasileira de Projetos (EBP), oriunda da Estruturadora de Projetos sob o comando dos bancos Bradesco e do Brasil, os quais são analisados no capítulo 3.

O Estudo da ANAC (2009)

Os primeiros produtos dos estudos de planejamento para uma nova regulamentação do setor foram desenvolvidos no âmbito dos Estudos Regulatórios da ANAC, dentre os quais destacamos o texto "Regulação e concorrência no setor de aeroportos", elaborado por Fiuza e Pioner em 2009 junto à Superintendência de estudos, pesquisas e capacitação para a aviação civil da ANAC.138

Nesse estudo, os autores fazem um apanhado da experiência internacional de regulação do mercado de infraestrutura aeroportuária, propondo afinal um cenário básico de privatização e um novo marco regulatório do setor. Como veremos, algumas das propostas que figuram neste estudo de 2009 voltarão a aparecer em documentos que conduzirão o debate e o planejamento do setor desse momento até o início das concessões de aeroportos em 2011.

Ao listar as opções de participação privada na administração aeroportuária, os autores do Estudo da ANAC recorrem às alternativas dadas por Poole139:

(a) Contrato de administração terceirizada (b) Arrendamento de longo prazo (c) Venda (de aeroportos ou da empresa pública administradora) Dentro da modalidade de arrendamento de longo prazo (b), os autores identificam que, se aplicado no modelo de concessão de longo prazo, permite-se uma espécie de parceria público-privada na modalidade BOT (Build, Operate and Transfer), em que o concessionário privado constrói a infraestrutura, a explora durante o período de concessão, e ao final reverte o patrimônio para o poder público concedente.

As vantagens desse modelo, dizem os autores apoiando-se em Poole, seriam várias: acesso a novas fontes de capital, celeridade das obras privadas em comparação com obras públicas (sem obrigação de seguir a Lei de Licitações), menores custos operacionais posto que teoricamente os projetos privados visam a maximização dos lucros de longo prazo e, enfim, a transferência do risco do setor público para o setor privado140. Como veremos, essa modalidade de concessão seria parte do modelo adotado pelo planejamento do Governo Federal a partir de 2011.

138 FIUZA, E. P. S.; PIONER, H. M. “Estudo econômico sobre regulação e concorrência no setor de aeroportos”. Série Estudos Regulatórios ER01, Rio de Janeiro, IPEA, 2009. 139 POOLE JR., R. W. "Guidelines for Airport Privatization." How-To Guide No. 13, Los Angeles: The Reason Foundation, 1994, apud FIUZA, E.P.S.; PIONER; H.M., Ob. cit. 140 ANAC, Op. cit., p. 14. 91

Entretanto, antes de passarmos ao exame do modelo afinal adotado pelo Governo Federal, vamos acompanhar um pouco mais o raciocínio exposto no Estudo da ANAC de 2009 e as ênfases dadas aos motivos e critérios de decisão que apresentava. Primeiro, a comparação mais geral de administração privada versus administração pública é levantada pelos autores. Nesse ponto citam os trabalhos de Oum et al. que relatam a escassez de informação empírica que comprovasse um suposto aumento de eficiência da administração privada frente a administração pública. O que Oum et al. afirmariam, no entanto, seria que, no caso de aeroportos públicos americanos estudados, estes não seriam menos eficientes do que aeroportos privados, por um lado. Além disso, que aeroportos mundo afora operados por empresa de capital misto seriam significativamente menos eficientes do que aeroportos públicos, e que a forma mais ineficiente de propriedade dentre todas as consideradas seria a de participação societária de múltiplos níveis de governo (federal, estadual e municipal). Com efeito, uma das formas apontadas pelos autores como as mais ineficientes seria modelo para o caso brasileiro, uma vez que a criação de empresas de capital misto, ainda que com controle privado majoritário, seria a base do modelo para os aeroportos no centro da rede.

Os autores do Estudo da ANAC destacam, no entanto, que a eficiência da administração privada dependeria, por assim dizer, de que o agente privado se encontrasse em um mercado concorrencial, no qual a busca pela máxima eficiência e produtividade dirigiria a sua conduta. No caso de não haver esse ambiente concorrencial, e o agente privado se encontrasse alternativamente em um ambiente altamente regulado, então a suposta eficiência privada deixaria de se fazer perceber.141 Os autores dedicam parte considerável do estudo na tentativa de definir como pode se dar a concorrência nesse mercado de infraestrutura aeroportuária até então inexistente no Brasil. Em outras palavras, buscam definir que parte do setor seria um monopólio natural e que parte poderia ser um mercado concorrencial. Afinal, a concorrência seria somente entre companhias aéreas? Ou poderia ser entre prestadores de serviços dentro dos aeroportos? Ou ainda entre aeroportos (e as cidades a que servem)?

Essas e outras questões foram levantadas e abordadas pelo Estudo da ANAC em 2009 à luz de uma bibliografia considerável142, na tentativa de obter uma rigorosa definição de mercado relevante para os aeroportos para além da clássica definição de área de influência em função da distância entre aeroportos e tempo de acesso terrestre dos consumidores (curvas isócronas).

A rigor, o Estudo da ANAC não distingue bem o seu objeto entre um aeroporto isolado e a infraestrutura aeroportuária em rede. Isto é, ao tentar definir o seu objeto de estudo para aferir qual é e onde está o seu grau de monopólio e o seu potencial de concorrência, o estudo não se pergunta de partida se esse objeto deveria ser a infraestrutura aeroportuária em conjunto (os 66 aeroportos da

141 ANAC, Op. cit., p. 31. 142 Ver por exemplo o quadro resumo apresentado pelos autores nas páginas 56 e 57 a partir de estudos anteriores de demanda de aeroportos de 15 autores, com estudos abrangendo dos anos 1970 ao início dos anos 2000. 92

Infraero, por exemplo), ou cada aeroporto isolado, ou ainda cada serviço que possa ser prestado em dado aeroporto. Com efeito, o que faz é questionar se um aeroporto seria um monopólio natural, portanto sujeito à regulação, ou se poderia haver competição entre aeroportos.

Para definir monopólio natural, os autores concluem que determinar se um aeroporto é ou não um monopólio natural acaba por ser um problema empírico, no qual se deve considerar o tamanho de mercado juntamente com a função de custo. Isto é, considerando cada aeroporto como se fosse uma firma, segundo a teoria microeconômica neoclássica esta tal firma teria uma função de custo de sua produção (prestação do serviço de infraestrutura aeroportuária) e um tamanho de mercado (grandemente dependente da área de influência e da magnitude da demanda pelo seu serviço nessa área de influência).

Os autores direcionam sua conclusão pelo monopólio natural (ou próximo disso) ao afirmarem que

devido ao custo fixo de operação e aos custos irrecuperáveis (sunk costs) do empreendimento, é razoável imaginar que o mercado de aeroportos será caracterizado por um oligopólio de firmas. Dessa forma, a competição entre essas firmas pode acontecer em termos das variáveis de controle de curto prazo – preço e qualidade – e da variável de controle de longo prazo – capacidade. Infelizmente, não observamos na realidade aeroportos situados dentro da mesma isócrona143 administrados por firmas diferentes competindo nessas variáveis. O melhor que podemos fazer é criar contrafactuais baseados em modelos e gerar possíveis resultados de uma competição entre aeroportos".144

Como se pode ver no trecho citado do Estudo da ANAC, na impossibilidade de observar o desejado na realidade, os autores julgam razoável criar “contrafactuais baseados em modelos” para estimar o que poderia ser uma hipotética competição entre aeroportos. Infelizmente os autores não são exitosos em sua missão, uma vez que terminam por reconhecer que a teoria de oligopólios sujeita a preços não lineares não lhes permite atingir uma conclusão satisfatória na modelagem do caso de aeroportos.

Em suma, a competição entre aeroportos como produtos substitutíveis em um mesmo mercado concorrencial era desde sempre uma quimera. Nem mesmo casos em que houvesse mais de um aeroporto dentro da mesma isócrona, isto é, mais de uma infraestrutura aeroportuária disponível para uma mesma população consumidora, poderiam ser considerados como de competição entre aeroportos, dado que a singularidade de cada aeroporto ainda era o fator decisivo de escolha do consumidor.

Daí que o estudo passa a focar em como o poder de mercado de um aeroporto, agora já admitido como tipicamente monopolístico, comportar-se-ia e como deveria ser regulado. Propõem, em certo momento, que o poder regulador estabelecesse um limite de tarifa (price cap) que o aeroporto poderia 143 Curva delimitadora da área de influência de cada aeroporto em função do tempo de acesso terrestre. 144 ANAC, Op. cit., p. 66. 93 cobrar para remunerar as suas despesas aeronáuticas separando exclusivamente as tarifas de serviços aeronáuticos das demais tarifas.145

O relevante aqui é notar como para os autores do Estudo da ANAC o poder de monopólio do aeroporto frente os seus consumidores (divididos em companhias aéreas e passageiros) se daria somente nas relações das quais obteriam as suas receitas aeronáuticas. Para os autores, a obtenção de receitas não-aeronáuticas pelos aeroportos monopolistas não seriam, por assim dizer, tipicamente monopolistas, posto que os serviços pelos quais seriam remunerados seriam equivalentes aos oferecidos em outras firmas correlatas nos mesmos mercados relevantes, por exemplo centros comerciais (shopping centers).146 Ou seja, na hipótese teórica considerada, seria facultado aos consumidores ideais dos serviços não-aeronáuticos (passageiros em essência) a obtenção desses mesmos serviços de outras firmas (em outros lugares). Por exemplo: em lugar de almoçar antes de embarcar em um voo no aeroporto, o passageiro o poderia fazer em um outro shopping center qualquer fora do aeroporto, assim como uma compra de última hora, efetuar câmbio monetário, estacionar seu automóvel, etc. Logo, a abordagem do Estudo da ANAC parece desconsiderar por completo o poder monopolístico de localização dos aeroportos para a geração de receitas comerciais (não-aeronáuticas), justamente aquilo que, como veremos, será o elemento-chave do lucro projetado na modelagem financeira dos exploradores privados de aeroportos contemporâneos.

Por outro lado, ao tratar das receitas operacionais, o Estudo da ANAC busca separar as suas diversas fontes de forma a identificar o potencial de concorrência em cada uma delas, considerando então o aeroporto como o limite do mercado relevante, e as firmas que nele operam como as que estariam em competição num mesmo serviço. Surgem, portanto, recomendações quanto à atenção que o regulador deveria ter para com a concorrência nas atividades de apoio de rampa (ou handling), no qual empresas especializadas manuseiam bagagens e equipamentos auxiliares no embarque e desembarque das aeronaves, serviço que é prestado por essas empresas diretamente às companhias aéreas. A integração entre companhias aéreas e empresas de apoio de rampa seria o fator a observar, de forma a garantir a possibilidade de concorrência entre as firmas de apoio de rampa tendo as companhias aéreas como consumidoras desses serviços. Nesse caso, conclui-se pela possibilidade de concorrência.

O estudo termina por apontar a necessidade de realização de Teste do Monopolista Hipotético (HMT), que é a metodologia consagrada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) no Brasil, de forma a aferir a sensibilidade da preferência dos consumidores em função de cada variável selecionada, além da variável distância-tempo de acesso aos aeroportos. Afinal, do ponto de vista do tema abordado nesta dissertação, interessa finalmente compreender do Estudo da ANAC de 2009 a recomendação de como iniciar o processo de abertura à participação privada na 145 ANAC, Op. cit., p. 70. 146ANAC, Op. cit., p. 71. 94 administração aeroportuária, como os seus autores fazem questão de grifar na recomendação de Zhang, Parker e Kirkpatrick147, que examinaram a privatização da geração elétrica em 36 países entre 1985 e 2003, concluindo que

[...] a introdução da competição antes da privatização estava correlacionado com maior geração de eletricidade, maior capacidade de geração e, no caso de sequência de concorrência antes da privatização, melhoria da utilização de capital.

Aliás, os autores do Estudo da ANAC também citam o caso brasileiro de privatização de telecomunicações, no qual foi criada previamente a agência reguladora (ANATEL), abertura do mercado para concorrência pela entrada de novos agentes na operação de telefonia celular, para então ocorrer a privatização do sistema Telebrás por blocos regionais.

A importância dos trechos citados acima para o tema desta dissertação está mais além de trazer experiências anteriores de casos de privatizações em outros setores no Brasil. Importa aqui reparar no destaque que os autores citados pelos planejadores dão à ordem do processo de privatização, particularmente à noção de prática de concorrência antes de privatização. Interessa aqui notar o quanto essa noção pode ou não ter condicionado o rumo das decisões quanto à abertura de capital da Infraero e ao processo de concessões privadas. Isto é, como que o processo de abertura de capital da Infraero possa ter sido suspenso para a implementação do processo de concessões parciais de aeroportos selecionados no período 2011-2014, após o qual o processo de abertura de capital poderia ser retomado, mas já de forma prejudicada. Estes processos serão tratados em maior detalhe em outro tópico mais adiante.

Afinal, os autores propunham o seguinte plano para privatização e reforma regulatória dos serviços aeroportuários:

(1) Consolidar a estrutura de governança regulatória envolvendo SAC, ANAC e DECEA (inclusive com a definição de um plano diretor nacional de aeroportos); (2) Aprofundar os estudos de delimitação de mercado relevante e de custos dos aeroportos (visando reformular a estrutura tarifária em médio prazo e definir os blocos de divisão do Sistema Infraero); (3) Anunciar novo marco regulatório e processo de corporatização e privatização do Sistema Infraero; (4) Abrir chamada de propostas para construção de novos aeroportos (desde que consoantes ao plano diretor nacional previsto no item 1); (5) Estudar em profundidade os mercados relevantes oriundos das propostas apresentadas no item 4; (6) Licitar os novos aeroportos;

147 ZHANG, Y.-F.; PARKER, D.; KIRKPATRICK, C. "Electricity sector reform in developing countries: an econometric assessment of the effects of privatization, competition and regulation." Journal of Regulatory Economics, v. 33, p. 159-178, 2008. 95

(7) Cindir a Infraero em blocos regionais sob diferentes pessoas jurídicas, cujos capitais seriam também abertos à participação privada de até 49%, dos quais uma parte deveria ser de fundos com recursos do FGTS e golden share (e implementar um sistema de subsídios cruzados mediado por um Fundo de Desenvolvimento Regional); (8) Completar o processo de privatização após um tempo de maturação do novo mercado, através de: i. Revisão de estrutura tarifária ii. Realização de leilões dos blocos controladores de cada empresa do antigo sistema Infraero; iii. Realização de leilão de subsídios do Fundo de Desenvolvimento Regional.

De forma resumida, podemos concluir que a proposta do Estudo da ANAC seguia uma direção de consolidar o marco regulatório e o planejamento mais geral num primeiro momento, abrir a possibilidade de participação de novos operadores concorrentes da Infraero por meio da exploração de novos aeroportos além dos 66 pertencentes ao Sistema Infraero, e enfim proceder à privatização do Sistema Infraero em blocos regionais. Entre essa proposição estudada e aquilo que viria a ser implementado (a ser descrito em item adiante), destaca-se a diferença de que nem o marco regulatório e o planejamento mais geral foram consolidados previamente, nem a concorrência anterior à privatização da Infraero se deu por meio de novos aeroportos, mas pela concessão de aeroportos existentes, retirando do Sistema Infraero justamente os mais rentáveis.

Segundo pudemos apurar nas entrevistas realizadas para esta dissertação, a proposta de abrir a administração aeroportuária à participação privada já era fomentada dentro da estrutura de planejamento do Ministério da Fazenda. Esse núcleo duro do planejamento federal, uma espécie de “governo dentro do governo”, alimentava a ideia de conceder aeroportos individuais à administração privada, mas não teria como objetivo principal o de destruir a Infraero. Na sua formulação inicial, a sequência de concessões de aeroportos públicos existentes deveria obedecer uma lógica de sempre manter o aeroporto mais central e rentável de cada área terminal no poder da Infraero, concedendo o aeroporto secundário para um privado operar e impor concorrência à empresa estatal.

Nesse sentido, segundo a formulação original da equipe técnica do Ministério da Fazenda de então, a primeira rodada de concessões deveria ter leiloado os aeroportos de Viracopos-SP e Galeão-RJ. No primeiro caso, esse aeroporto seria tratado como um greenfield, isto é, como um investimento novo sobre o terreno de um aeroporto que seria totalmente reconstruído, e permitiria ao operador privado concorrer com a Infraero que manteria os dois aeroporto principais da RAN e da Área Terminal São Paulo: Congonhas e Guarulhos. Por outro lado, na Área Terminal do Rio de Janeiro, o operador privado ficaria responsável pelo aeroporto do Galeão, enquanto a Infraero continuaria operando Santos-Dumont e manteria a ponte aérea sob sua responsabilidade.

Contudo, a decisão de fato tomada pelo Executivo não seguiu as recomendações da equipe técnica do Ministério da Fazenda, e Guarulhos, o aeroporto de maior movimento e rentabilidade do Sistema 96

Infraero, foi incluído na primeira oportunidade de concessão de infraestrutura existente. Veremos no capítulo 3 como essa decisão política teria como consequência, de um lado, o desequilíbrio operacional da Infraero e, de outro, a maximização das receitas federais com a concessão. Nesse ponto, percebe-se como a tomada de decisão do planejamento estatal se constitui em resultante de processo complexo e não-linear, e mesmo aparentemente irracional e contrário à boa recomendação técnica. Por vezes, tudo o que o tomador de decisão precisa é ser munido de argumentos que reforcem decisões políticas definidas de forma autônoma. Para contribuir com essa funcionalidade, as consultorias especializadas cumprem papel importante em lastrear em bases técnicas decisões eminentemente de visão política do território e do Estado que estão na essência de uma política pública proposta.

No item seguinte é abordado o estudo encomendado pelo BNDES à consultoria internacional McKinsey & Company, intitulado "Estudo do setor de transporte aéreo do Brasil: relatório consolidado", de 2010, que dá contornos pragmáticos e em forma de propostas direcionadas à discussão teórica que vimos acima.

O Relatório McKinsey (2010)

Enquanto o Estudo da ANAC fora elaborado ao longo de 2008 e apresentado em fevereiro de 2009, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) contratou em 2008 a consultoria internacional McKinsey & Company para a elaboração de uma "avaliação independente que traz diagnósticos do setor e recomendações para os horizontes de 2014, 2020 e 2030".148

Essa avaliação independente, elaborada em 2009 com dados coletados até 2008 e concluída no início de 2010, conjugou os esforços técnicos da consultoria internacional e de profissionais nacionais vinculados ao Instituto Tecnológico da Aeronáutica – ITA (responsáveis por dimensionar capacidades da infraestrutura e do setor como um todo), além de profissionais da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE (responsáveis por elaborar extensa pesquisa de origem e destino) e do escritório de advocacia TozziniFreire Advogados.

148 O estudo da consultoria internacional McKinsey & Company em questão foi contratado pelo BNDES através do contrato 09205411 de 11/8/2009 com valor de R$10.180.000 (executado até 98%) oriundo da Chamada Pública BNDES/FEP nº 03/2008, em consórcio que contou com as colaborações da Fundação Casimiro de Montenegro Filho, ligada ao Instituto Tecnológico da Aeronáutica - ITA, do escritório de advocacia TozziniFreire Advogados e da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE. Segundo apurado em entrevistas, o consórcio adjudicado teria saído vencedor de disputa entre uma dezena de candidatos para a realização desse estudo encomendado pelo BNDES. O documento publicado ao final do estudo intitula-se "Estudo do Setor de Transporte Aéreo do Brasil - Relatório consolidado". Rio de Janeiro: McKynsey&Company, Janeiro de 2010. A contratação da consultoria foi feita através do Fundo de Estruturação de Projetos do BNDES, o qual evoluiria ainda em 2008 para uma figura jurídica independente, na forma da empresa Estruturadora Brasileira de Projetos - EBP, formada em associação do BNDES com bancos comerciais (Bradesco, do Brasil, Espírito Santo, Santander, Votorantim, Citibank, HSBC e Itaú) a qual viria a ser indicada em 2011 para estruturar o modelo da segunda rodada de leilão dos aeroportos de Brasília, Campinas e Guarulhos ocorrida no mesmo ano. 97

Embora esse estudo se apresente como uma "avaliação independente", nesta dissertação o consideramos como a peça central do planejamento federal vigente para o setor no período estudado. Isto é, trata-se da “causa teórica” das medidas tomadas no período posterior a 2008, em especial de 2011 a 2014, quando são implementadas as ações planejadas, como a posta em leilão dos principais aeroportos da Rede Aérea Nacional e a criação do assim chamado "modelo brasileiro de concessão dos aeroportos". Significava, afinal, a mudança de rumo na política de transporte aéreo, com o consequente abandono do planejamento de abertura de capital da Infraero, por um lado, e, mais do que isso, resultaria na criação do novo mercado de aeroportos de que tratamos nesta dissertação. Nessa tomada de decisão, atuaram decisivamente o BNDES, contratante e líder do estudo, e a própria SAC (e Casa Civil), quem havia encomendado a contratação ao BNDES. Segundo pudemos apurar em entrevistas conduzidas diretamente com os profissionais envolvidos na tomada de decisão de planejamento, o BNDES teve papel propositivo do modelo de concessão, adotando Termo de Cooperação com o Ministério da Defesa, enquanto os órgãos setoriais (ANAC) tiveram papel consultivo e de aprovação a posteriori do trabalho elaborado pela Consultoria.

Neste item vamos avaliar o diagnóstico apresentado do setor e os desdobramentos da aplicação desse estudo, que chamaremos “Relatório McKinsey”, e a sua centralidade nos eventos ocorridos no setor a partir de então. Para tanto, partiremos de uma análise do conteúdo do relatório, comparando-o com o Estudo da ANAC, já analisado no item anterior, e cruzaremos nossas interpretações com as de alguns profissionais diretamente envolvidos na sua elaboração.149 No capítulo seguinte abordaremos especificamente o assim chamado “modelo dos aeroportos” brasileiros que seria criado a partir das recomendações desse estudo. As pessoas chave do processo foram Antonoaldo Neves e Arlindo Eira Filho, coordenadores pela McKinsey, Cleverson Aroeira, então chefe do SEP no BNDES, e Fernando Soares, secretário na SAC, então ligada ao Ministério da Defesa. O “modelo brasileiro” seria resultado da interação das instituições lideradas por esses profissionais, com entrelaçamento de suas atuações pessoais e participações em processos chave. Personagem emblemática nesse processo foi o executivo Antonoaldo Neves que, da posição de 16 anos como sócio da consultoria McKinsey, após a elaboração do “modelo brasileiro” foi indicado pela SAC para o Conselho Administrativo da Infraero no período 2011-2012, coincidente com as primeiras rodadas de concessão estudadas150.

149 Durante a pesquisa desta dissertação foram colhidas entrevistas com profissionais envolvidos na elaboração do Relatório McKynsey e/ou dos Editais de Concessão da ANAC. Além disso, também foram entrevistados outros profissionais do setor, que participaram das discussões e trabalhos posteriores ao Relatório McKynsey, e que tiveram alguma atuação indireta no setor no período. 150 Conforme informado em seu Curriculum Vitae atualizado em julho 2020, Antonoaldo Neves licenciou-se da McKinsey entre 2010 e 2012 para dirigir a Cyrela Brazil Realty, quando acumulou o cargo de conselheiro da Infraero, sendo responsável por “desenhar a reestruturação e abertura de capital da Infraero, a maior operadora aeroportuária do Brasil”. Disponível em: https://www.linkedin.com/in/antonoaldo-neves-95516b e em https://www.tapairportugal.com/en/about- us/board-of-directors, acesso em 22/7/2020. Neves retornou à consultoria internacional no período 2012-2014, tendo depois desse período ocupado a presidência da Azul Linhas Aéreas entre 2014 e 2017, oportunidade em que se associou ao investidor David Neeleman, quem o indicou para presidir a companhia áerea portuguesa TAP, cargo que ocupou até julho de 2020, quando a empresa portuguesa foi retomada pelo Estado português em meio à crise da pandemia da 98

As equipes envolvidas na elaboração do relatório agruparam-se em três frentes de trabalho ao longo de aproximadamente 25 semanas. As contribuições a que se propunham essas frentes de trabalho são resumidas na introdução do relatório na seguinte forma151:

• Infraestrutura: avaliação de capacidade dos principais aeroportos brasileiros em contraponto com as projeções de demanda até 2030, buscando identificar e estimar as necessidades de investimentos. Foi realizada uma ampla pesquisa de Origem e Destino (O/D) nos 32 principais aeroportos do país152, fornecendo bases para um melhor entendimento da demanda atual por transportes aéreos no Brasil;

• Competição: avaliação das condições do setor com foco na administração aeroportuária e oferta de serviços aéreos. Também foi objeto de análise a abrangência da malha aérea e a criação de mecanismos que permitam a criação e o desenvolvimento de linhas de baixa e média densidades; e

• Governança: avaliação jurídica e institucional, visando identificar lacunas, sobreposições e oportunidades de aprimoramento na estrutura organizacional e regulatória do setor.

Em todos as frentes de trabalho a mesma metodologia de análise é empregada, e acompanharemos como o relatório forma o seu diagnóstico do setor no período imediatamente anterior (2004-2008), como seleciona os pontos cruciais que requereriam ação imediata do planejamento e, finalmente, como chega à visão de futuro que planejava para o setor.

Diagnóstico do setor no período anterior (2004-2008) O Relatório McKinsey reconhece o aumento da demanda de viagens como efeito da atuação em competição “saudável” das companhias aéreas no período anterior ao do planejamento apresentado no relatório, o qual é definido pela McKinsey tendo como ponto de partida o ano 2003 (início da gestão que os contratou) e término 2008 (ano do contrato de consultoria e dos dados disponíveis). Na figura a seguir, em que o estudo apresenta uma série histórica de evolução da demanda de passageiros no setor até o ano de 2008, podemos marcar o início da fase de aceleração no ano 2004, logo após a “crise no setor aéreo brasileiro” em 2003.

COVID19. 151 McKinsey&Company, Op. cit., p. 6. 152 Os aeroportos da Pesquisa OD do Relatório McKinsey foram: São Paulo (Guarulhos e Congonhas), Rio de janeiro (Galeão e Santos Dumont), Brasília, Salvador, Belo Horizonte (Confins e Pampulha), Porto Alegre, Recife, Curitiba, Fortaleza, Belém, Florianópolis, Manaus, Vitória, Natal, Goiânia, Cuiabá, Campinas, Maceió, São Luís, Campo Grande, Aracaju, Macapá, Teresina, João Pessoa, Porto Velho, Rio Branco, Palmas, Boa Vista e Porto Seguro. Desses 32 aeroportos, o Relatório McKinsey selecionará 20 aeroportos em situação crítica e destacará os seus gargalos de infraestrutura. Mais adiante faço uma comparação entre os aeroportos selecionados pela McKinsey e o ranque de aeroportos segundo demanda e função na rede já apresentado no início deste capítulo. 99

Figura 28: Gráfico de comparação da evolução do PIB do Brasil e demanda de passageiros no setor de transporte aéreo no período 1998-2008 (1998=100). Fonte: McKinsey, Op. cit., p. 206

Ainda que os motivos que teriam levado o Relatório McKinsey a ter essa periodização não sejam nomeadamente os mesmos que definiram a periodização usada nesta dissertação, conforme descrito anteriormente na Introdução, partimos da mesma definição do período anterior ao planejamento do setor. Isto é, admitindo o ano de 2003 como marco inicial da nova gestão que coincidia com a “crise no setor aéreo brasileiro” (nomeadamente a falência e incorporação da Varig pela Gol) e de mudança no rumo da política econômica do governo federal, o primeiro ano de dados estatísticos a considerar na fase ascendente do ciclo econômico é o ano de 2004, assim como o fim da fase ascendente é delimitada pelo ano de 2008 do estouro da crise mundial.

Portanto, o que chamamos aqui de período anterior ao planejamento corresponde à fase ascendente do último ciclo econômico ocorrida de 2004 a 2008, e é válido para esta dissertação assim como é o utilizado de fato nas análises contidas no Relatório McKinsey. Mais do que isso. Mesmo que a causalidade dessa periodização não seja explícita ou mesmo identificada no Relatório McKinsey, cuja entrada em cena dá-se somente através do ato de sua contratação em 2008, sustentamos nesta dissertação que o próprio ato de contratação da consultoria por si mesmo atesta a tomada de decisão das estruturas governamentais de planejamento em intervir no setor como forma de dar resposta à modificação da conjuntura internacional e como parte da política econômica então posta em exercício.

Com isso, o Relatório McKinsey identifica uma saturação da infraestrutura aeroportuária no período 2004-2008 frente ao aumento de demanda mencionado, que conjugava dois vetores de pressão do lado 100 da demanda no período: “melhora da economia como um todo” e “inclusão de passageiros das classes B e C”. Isso teria significado um aumento da demanda de viagens anuais em média de 10% ao ano de 2004 a 2008153, espelhando uma diminuição do preço médio por quilômetro voado em 48% no mesmo período.154 Isto é, partindo de um patamar de preço inicial em 2003 de R$0,50 por assento.quilômetro ofertado (valores deflacionados para 2008), houve uma primeira diminuição no preço já em 2004 da ordem de 6%, a partir de quando a queda do preço acentua-se, chegando a 29% em 2005, resultando afinal em redução média do preço da passagem de 48% no período até 2008.

A figura a seguir apresenta a demanda agregada (doméstico e internacional) para o período 1997 a 2008.

Figura 29: Evolução da demanda realizada dom+intl (miPAX/ano) no período 1997-2008. Fonte: McKinsey, op. cit., p. 9

Como se pode ver pela figura anterior, ao ano regressivo de 2003 sucede o ano de crescimento positivo de 2004 iniciando o ciclo de crescimento. Por todo o período subsequente até 2008, a demanda de tráfego internacional é constante, sendo que o crescimento indicado anteriormente deve- se praticamente ao crescimento do tráfego doméstico. Esse diagnóstico é fundamental para 153 Idem. 154 De forma a calcular os custos médios no mercado do transporte aéreo, convenciona-se medir os custos e preços do serviço em base a cada passageiro individualizado, ponderando os valores em função dos quilômetros voados. Assim, fala- se usualmente de indicadores como "passageiro por quilômetro voado" como o dado específico de demanda realizada, enquanto se usa o indicador de "assento por quilômetro ofertado" como o dado específico de custo da oferta no mercado. Da mesma forma, a receita de cada companhia aérea assim como o agregado do mercado é contabilizada em termos de "receita por passageiro-quilômetro voado" (RPK), e a oferta como "preço de assento-quilômetro ofertado" (ASK). Além disso, convenciona-se referir-se ao coletivo de passageiros através da sigla PAX. Ao longo do texto desta dissertação faremos uso dessa nomenclatura do setor para facilitar a referência aos termos técnicos encontrados nos documentos originais. 101 compreendermos o motor do crescimento do setor (a expansão do mercado interno e a incorporação de novos viajantes). A figura a seguir apresenta a série histórica de passageiros pagos no mercado doméstico desde 2000 até 2014, destacando-se o ciclo de 2004-2014.

Série histórica de passageiros pagos (miPAX/ano)

2004-2014 120

100 95,9 88,7 90,0 82,1 80 70,1 57,1 60 47,4 50,1 43,2 38,7 40 32,1

20

0 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Figura 30: Série histórica de passageiros pagos por ano na Rede Aérea Nacional – Transporte doméstico (2004- 2014)

Para analisarmos o impacto da crise de 2008 na rentabilidade do setor aéreo nos aeroportos que seriam concedidos nas 2a e 3a rodadas de leilões da ANAC, apresentamos as figuras a seguir, que reúnem os valores de Tarifa Aérea Média (Yield) para valores em reais de 2020155. O período 2004- 2007 é de queda acentuada no yield, evidenciando uma concorrência em preço que barateava o quilômetro voado para o passageiro pagante. Em 2008 vemos um repique, e a partir de 2009 uma continuidade na redução do yield (acompanhada de aumento relativo das distâncias voadas de cada aeroporto selecionado), o que poderia apontar para uma rigidez do preço nominal de tarifas em média (sticky price) já adaptado ao cenário pós-crise. Nesse sentido a curva do aproveitamento (dada pela relação entre demanda em RPK e oferta em ASK) aponta para um melhor aproveitamento do material aéreo e uma redução de custos das companhias pós-2008. Esse melhor aproveitamento é evidenciado na Figura 36, onde apresentamos a evolução percentual do RPK, ASK e aproveitamento considerando o ano 2004 como base 100156.

155 Dados originais e metodologia de monitoramento de ligações disponíveis em https://www.anac.gov.br/assuntos/dados-e- estatisticas/mercado-de-transporte-aereo/consulta-interativa/tarifas-por-localidade (Consulta em maio/2020). 156 A figura mencionada não apresenta os valores absolutos de RPK e ASK, mas a sua variação percentual sobre o ano 2004. 102

Figura 31: Yield Tarifa Aérea Real Médio (R$/km) - Aeroporto de Guarulhos-SP (2004-2019) - Reais de Maio/2020

Figura 32: Yield Tarifa Aérea Real Médio (R$/km) - Aeroporto de Viracopos-SP (2004-2019) - Reais de Maio/2020 103

Figura 33: Yield Tarifa Aérea Real Médio (R$/km) - Aeroporto de Brasília-DF (2004-2019) - Reais de Maio/2020

Figura 34: Yield Tarifa Aérea Real Médio (R$/km) - Aeroporto do Galeão-RJ (2004-2019) - Reais de Maio/2020 104

Figura 35: Yield Tarifa Aérea Real Médio (R$/km) - Aeroporto de Confins-MG (2004-2019) - Reais de Maio/2020

Variação anual de RPK, ASK e aproveitamento

2004 a 2014 (2004=base 100) 3,5 1,00 0,95 3 0,90 2,5 0,85 0,80 2 0,76 0,80 0,73 0,75 0,69 0,71 0,70 1,5 0,68 0,68 0,70 0,65 0,66 0,66 1 0,65

0,60 Aproveitamento (%) Variação RPKVariação (%) ASK e 0,5 0,55 0 0,50 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 RPK ASK APROVEITAMENTO (%) Figura 36: Variação anual de RPK, ASK e aproveitamento no mercado doméstico (2004 a 2014, 2004 = base 100)

De forma geral, o Relatório McKinsey parte de um diagnóstico de aumento acentuado da demanda no período anterior (até 2008) que justificaria um novo esforço de investimentos que fizesse com que a infraestrutura aeroportuária acompanhasse aquela demanda crescente. Mas mais do que igualar as grandezas dos aumentos do lado da oferta com o lado da demanda, o diagnóstico da McKinsey 105 identificava a pressão excepcional que a demanda adicional exercia sobre gargalos já acumulados na rede de aeroportos da Infraero, notadamente em alguns dos seus aeroportos centrais.

Assim, é fundamental perceber como são identificados os aeroportos tidos como saturados, e por quê. Dessa forma, pode-se deduzir tanto a importância geográfica e espacial da dinâmica recente do setor, quanto as próprias medidas de planejamento adotadas no período, e suas implicações para a reiteração da concentração espacial do transporte aéreo. Vejamos o que dizem o diagnóstico e as propostas de planejamento associadas aos principais aeroportos até 2030 contidas no Relatório McKinsey.

Segundo McKinsey, 13 dos 20 principais aeroportos nacionais apresentavam gargalos nos seus terminais de passageiros, sendo o mais crítico o de São Paulo, principal hub da rede, por onde passariam anualmente 25% do tráfego total da rede.157 A tabela abaixo lista os 20 principais aeroportos selecionados pela McKinsey segundo o critério de haver processado mais de um milhão de passageiros por ano, destacando os 13 críticos, e os compara àqueles 26 aeroportos já comentados no início do capítulo, e que eram responsáveis por 89% do tráfego de passageiros em mais da metade das ligações.

157 De fato, o aeroporto de Guarulhos, principal aeroporto da área terminal São Paulo e hub do país tinha como limitador de sua capacidade o seu sistema de pátio de aeronaves, mais do que os terminais de passageiros. Isso quer dizer que a capacidade geral do aeroporto encontrava-se limitada em 2008 pela falta de disponibilidade de posições de estacionamento de aeronaves para embarque e desembarque de passageiros, mais do que áreas internas de terminal. 106

Receita por Passageiro.quilômetro Passageiros LIGAÇÕES voado – RPK (R$ RANK RANK RANK 1 ID CÓDIGO AEROPORTOS (miPAX/ano) ANUAIS milhões) PAX LIGAÇÕES RPK 4 1 SBBR BRASÍLIA 12,0 56 7,96 3 1 1 3 2 SBGR SÃO PAULO - GUARULHOS 12,4 55 3,50 2 2 5 2 3 SBSP SÃO PAULO - CONGONHAS 12,8 44 7,10 1 4 3 8 4 SBPA PORTO ALEGRE 5,0 42 2,84 7 7 7 6 5 SBSV SALVADOR 6,2 39 3,48 5 9 6 9 6 SBRJ RIO DE JANEIRO - SANTOS DUMONT 5,0 37 0,39 8 10 21 19 7 SBCY CUIABÁ 1,6 34 1,15 18 12 13 7 8 SBCF BELO HORIZONTE - CONFINS 5,2 30 1,31 6 15 12 12 9 SBFZ FORTALEZA 3,7 29 2,54 11 16 9 20 10 SBGO GOIÂNIA 1,6 27 0,36 19 18 22 14 11 SBVT VITÓRIA 2,2 25 0,33 13 19 23 17 12 SBFL FLORIANÓPOLIS 1,9 24 0,11 16 20 33 18 13 SBNT NATAL 1,6 17 0,70 17 29 15 16 14 SBEG MANAUS 2,0 49 2,75 15 3 8 5 15 SBGL RIO DE JANEIRO - GALEÃO 9,0 44 7,17 4 5 2 10 16 SBCT CURITIBA 4,7 44 1,47 9 6 11 15 17 SBBE BELÉM 2,1 42 1,55 14 8 10 13 18 SBKP CAMPINAS 2,8 37 0,44 12 11 19 11 19 SBRF RECIFE 4,6 31 5,43 10 13 4 34 20 SBBH BELO HORIZONTE - PAMPULHA 0,5 31 0,09 33 14 38 21 21 SBCG CAMPO GRANDE 1,0 28 0,62 20 17 16 32 22 SBPS PORTO SEGURO 0,5 21 0,30 31 23 24 28 23 SBPV PORTO VELHO 0,5 20 0,28 27 25 25 27 24 SBLO LONDRINA 0,6 23 0,13 26 21 31 37 25 SBMG MARINGÁ 0,3 22 0,10 36 22 34 24 26 SBFI FOZ DO IGUAÇU 0,8 20 0,21 23 24 27 33 27 SBRP RIBEIRÃO PRETO 0,5 20 0,14 32 26 30 25 28 SBAR ARACAJU 0,7 19 0,51 24 27 17 22 29 SBMO MACEIÓ 0,9 15 0,97 21 31 14 23 30 SBSL SÃO LUÍS 0,9 15 0,43 22 32 20 30 31 SBJP JOÃO PESSOA 0,5 11 0,09 29 43 35 31 32 SBTE TERESINA 0,5 10 0,48 30 45 18 35 33 SBMQ MACAPÁ 0,4 10 0,15 34 46 28 39 34 SBRB RIO BRANCO 0,3 9 0,04 38 54 46 50 35 SBBV BOA VISTA 0,2 8 0,00 49 60 97 40 36 SBPJ PALMAS 0,3 6 0,00 39 81 109 Tabela 7: Aeroportos selecionados pela McKinsey e principais do Sistema Infraero em 2009

A tabela anterior lista os 36 aeroportos que foram pesquisados pela FIPE, parte da equipe do Consórcio da McKinsey, para gerar uma matriz de Origem-Destino de transporte aéreo. Em cor azul estão destacados os 20 aeroportos principais da RAN segundo o Relatório McKinsey, adotando-se o critério de haver processado pelo menos um milhão de passageiros por ano158 e desses, os 13 primeiros são classificados como críticos do ponto de vista de capacidade operacional da infraestrutura instalada segundo o relatório.

Se compararmos essa seleção da McKinsey com aquela que fizemos no início do capítulo, veremos que os aeroportos principais são praticamente os mesmos, mas com algumas diferenças que merecem comentário. Primeiro, o relatório considera o aeroporto de Natal como um dos principais e, além disso, em situação crítica de capacidade. No entanto, vimos que esse aeroporto figurava na 29a posição no ranque de ligações da rede, sendo responsável pelo transporte de 1,6 milhão de passageiros no ano

158 Importante destacar que o critério de seleção aplicado por McKinsey refere-se ao tráfego doméstico e internacional somados. A tabela 3 apresenta tão somente o tráfego doméstico, objeto de estudo desta dissertação. Possivelmente por esse motivo, figura na lista da McKinsey o Aeroporto de Pampulha, em Belo Horizonte (MG), que teria operado somente 500 mil passageiros em 2009, devendo ficar fora da seleção da McKinsey, enquanto o Aeroporto de Campo Grande (MS), que operou 1,0 milhão de passageiros, não constava da seleção. 107 de 2009, ocupando assim a 17a posição no ranque de passageiros, sendo que a sua receita por passageiro.quilômetro voado lhe conferia tão somente a 15a posição naquele ranque.

Outros aeroportos também foram incluídos na pesquisa OD, porém não figuravam como principais. É o caso dos aeroportos de Campo Grande (MS), Porto Seguro (BA) e Porto Velho (RO), que em nossa tabela de ligações apresentada no início do capítulo figuram na 17a, 23a e 25a posições no ranque de ligações, lembrando que Porto Seguro (BA) era administrado por um ente privado.

Além destes três, a pesquisa OD não considerou os aeroportos paranaenses de Londrina, Maringá e Foz do Iguaçu, operados pela Infraero, nem o aeroporto de Ribeirão Preto, operado pelo DAESP, do governo do estado de São Paulo. Estes quatro aeroportos, somados aos 22 aeroportos anteriores (exceto Natal) configuram a lista de 26 aeroportos com 20 ligações ou mais, responsáveis por mais da metade do tráfego de passageiros na RAN em 2009. Os aeroportos que fazem parte dessa lista mas não foram considerados na pesquisa OD da McKinsey estão assinalados em cor laranja na tabela anterior. Na figura a seguir é apresentado o mapa da pesquisa OD da McKinsey.

Figura 37: Mapa das principais origens e destinos (15 maiores municípios) segundo pesquisa OD de McKinsey Fonte: McKinsey, Op. cit., p. 111 108

Afinal, a partir de diagnóstico sucinto, o relatório projeta um crescimento da demanda em curto e médio prazos até 2030, com um "aumento de pressão sobre a infraestrutura"159 devido à realização dos dois eventos esportivos de Copa do Mundo de Futebol e Olimpíadas em 2014 e 2016, respectivamente, apontando a necessidade de crescimento correlato da infraestrutura. Neste ponto é destacado o "ritmo abaixo do planejado" de expansão da capacidade pela Infraero, frente o tamanho do desafio identificado: aumentar a capacidade da infraestrutura geral da Rede Aérea Nacional em 2,4 vezes até 2030 (de 130 miPAX/ano para 310 miPAX/ano).

Figura 38: Projeção de demanda até 2030 e capacidade de aeroportos em 2009. Fonte: McKinsey, op. cit., p. 11 e 12

A interpretação final que o Relatório McKinsey tem da Infraero é de incapacidade de investimento frente às necessidades identificadas. Vale a pena destacar como o Relatório McKinsey interpretava a estrutura de receitas da Infraero e suas oportunidades de evolução, representados nas figuras 39 a 41 a seguir160. Na Figura 39 vemos como o Relatório McKinsey reconhecia que 80% da receita do setor de aviação brasileira era formado pelo orçamento da Infraero, sendo os demais 20% proveniente de recursos militares e de fomento à aviação regional, além de aportes do próprio Tesouro Nacional.

159 McKinsey, Op. cit., p. 11. 160 McKinsey, Op. cit., p. 55 e 57. 109

Figura 39: Receita aeroportuária no Brasil em 2008

Quanto à estrutura de receitas da Infraero, o Relatório McKinsey destacava que a estatal angariava 80% de suas receitas da operação direta dos aeroportos (sendo os 20% restantes oriundos de tarifas de navegação, cujo principal é direcionado ao Comando da Aeronáutica mas que tem uma parcela destinada a remunerar os custos civis de apoio da Infraero). Dessa receita operacional, pouco mais da metade (46% do total) eram provenientes de tarifas aeroportuárias cobradas dos clientes dos aeroportos, enquanto que praticamente um terço (ou 24% do total) vinham de explorações comerciais, sendo o restante preenchido por receita do Ataero, o adicional à tarifa aeroportuária que existia à época e que financiava o Fundo Nacional de Aviação Civil (FNAC), responsável pelo custeio do reinvestimento na infraestrutura aeroportuária de então. O Ataero foi extinto em 2017 e seu valor foi incorporado às tarifas reguladas de operação dos aeroportos, uma vez que já haviam sido realizadas as concessões de aeroportos para operação por empresas privadas, em que estas passaram a ser obrigadas ao repasse de parcela pré-definida de suas receitas para custeio do FNAC. A aplicação dos recursos do fundo passava a desconsiderar os aeroportos privatizados como objeto de reinvestimento, devendo dedicar-se ao investimento nos aeroportos públicos não concedidos, justamente aqueles aeroportos periféricos que vimos ser deficitários, segundo a Tabela 6.

Por outro lado, a participação das receitas comerciais era interpretada pela McKinsey como inferior às boas práticas internacionais, antevendo uma possibilidade de expansão de 2,2 vezes. Essa expansão projetada, vale dizer, caberia à iniciativa privada realizar, não à Infraero. Na Figura 41, a McKinsey selecionou alguns dos principais aeroportos da Infraero e que viriam (à exceção de Santos-Dumont e 110

Congonhas) a ser concedidos a empresas privadas a partir de 2011, destacando a sua baixa produtividade em relação à experiência da aviação na América do Norte.

Figura 40: Geração de receitas da Infraero vis-à-vis mercado internacional. Fonte: McKinsey, Op. cit., p. 211

Figura 41: Produtividade dos aeroportos da Infraero em 2007

Em resumo, o Relatório McKinsey reconheceu um deficit de investimentos em infraestrutura aeroportuária sob responsabilidade da Infraero até o momento de análise (2009), e com um diagnóstico de saturação da capacidade em vários aeroportos principais da RAN, focando nos aeroportos centrais da rede. 111

Aparte os investimentos para ampliação de capacidade da infraestrutura aeroportuária, o Relatório McKinsey também aponta para outras questões igualmente abordadas pelo Estudo da ANAC, como a regulação do setor. Assim, o Relatório proporá, por exemplo, reduzir barreiras estruturais e custos evitáveis de forma a reduzir entre 11 e 15% os custos totais no setor através de reformas jurídicas e de mercado. Os itens tratados variam de equalização de tarifas de ICMS entre estados (redução da guerra fiscal), cujo impacto direto no mercado de transporte aéreo tem sido a indução de práticas antieconômicas de tankering161, até flexibilização de regras trabalhistas e parâmetros normativos da ANAC e DECEA. Ressalta-se o diagnóstico exposto no Relatório de que o principal indutor do aumento da demanda realizada no setor no período anterior teria sido a redução do preço final da passagem aérea ao consumidor, e como essa redução somente poderia ser maior se fossem reduzidos os assim chamados “custos evitáveis” no serviço, de forma a aproximar os preços do mercado brasileiro às médias internacionais, ainda uns 32% mais baixas.162

A estrutura de governança do setor também é criticada, no sentido de propor que seja completada a passagem do controle do setor de mãos militares para gestão civil iniciada na década de 1990. Isso significaria intervir na infraestrutura de controle do espaço aéreo, bem como destacar claramente dentro da estrutura governamental federal a responsabilidade pelo planejamento do setor, então distribuída entre ANAC, SAC e Ministério da Defesa. A proposta do relatório será a de atribuir ao Ministério dos Transportes o papel exclusivo de planejamento do setor de transportes (do qual o transporte aéreo seria, de fato, um subsetor).

Em suma, a visão do Relatório McKinsey para o setor de transporte aéreo em 2030, chamado “Brasil a pleno potencial”, foi elencado em tópicos de Governança, Infraestrutura, Administração Aeroportuária e Serviços Aéreos. Assim, os tópicos de “Infraestrutura” e “administração aeroportuária” tratados por McKinsey serão agrupados na próxima seção de Infraestrutura, separado do nível da prestação dos “Serviços Aéreos”. Por fim, abordaremos no começo do próximo capítulo o tópico da “Governança”, que está do lado de fora do setor, por assim dizer, e tem que ver mais geralmente com o modo de regulação do setor e o papel do planejamento, influindo nos dois níveis do setor (infraestrutura e serviço).163

Propostas para Infraestrutura As intervenções em infraestrutura do Relatório McKinsey são agrupadas em três blocos: intervenções emergenciais para 2010, preparação para eventos esportivos em 2014 e 2016, e medidas estruturantes. Além disso, recorda-se que a infraestrutura do setor aéreo é composta de duas partes: infraestrutura

161 Tankering significa a prática de transportar combustível excedente de um aeroporto a outro sem necessidade técnica na etapa de voo realizada, mas feita apenas por motivos de custo de abastecimento díspares entre aeroportos. 162 McKinsey, Op. cit., p. 61. 163 McKinsey, Op. cit., p. 16. 112 aeroportuária e infraestrutura de navegação aérea. Sobre a segunda parte, de infraestrutura de navegação aérea, o Relatório termina por propor em linhas gerais que essa atividade seja profissionalizada (isto é, possa também passar a ser exercida por civis e empresas privadas, não necessariamente permanecendo no controle da Aeronáutica como na atualidade), e exercida de forma dissociada de outras funções de coordenação do sistema, para evitar conflitos.

Por outro lado, os três blocos de intervenções em infraestrutura se aplicam mais diretamente à infraestrutura aeroportuária. O primeiro bloco de intervenções emergenciais não envolvia investimento para aumento de capacidade propriamente dito, limitando-se a indicar melhorias de gestão e aproveitamento de equipamentos (quick wins). No segundo bloco, de preparação para eventos esportivos em 2014 e 2016, que chamaremos aqui como “Grandes Eventos”, o Relatório seleciona dentre as medidas pontuais necessárias aquelas que se justificam a partir do diagnóstico de que "os aeroportos a serem mais utilizados durante a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 exigem atenção especial". Isso significa, de fato, que os aeroportos que serviam as cidades-sede bem como aqueles que garantiam a integração desses pontos à rede aérea nacional seriam os "mais utilizados".

No entanto, não há uma correlação declarada entre a ocorrência dos Grandes Eventos e a necessidade de aumento da capacidade dos aeroportos hub ou das cidades-sede. Nem pelos fatos, e nem mesmo nos documentos da época analisados. O próprio Relatório aponta tão somente a necessidade de “atenção especial”. A chamada "atenção especial" se configurou, de fato, em medidas administrativas e protocolos cerimoniais nos aeroportos selecionados, assim como no equacionamento dos voos da malha aérea passando por esses aeroportos. Ou seja, a "atenção especial" configurou-se muito mais como "gestão", do que "investimento" propriamente dito.

Ainda que essa tenha sido a abordagem correta do ponto de vista dos analistas e responsáveis pela administração aeroportuária, pública e privada, não era exatamente o argumento divulgado para justificar a decisão de investimentos em aeroportos de então. Reconhecer isso é particularmente importante para podermos criticar o discurso oficial que justificou o esforço concentrado de investimentos em infraestrutura aeroportuária no período (2009-2014) como diretamente relacionado à realização dos eventos esportivos, e assim corretamente desvincular a necessidade de investimentos no setor (diagnosticada a partir do crescimento da demanda no período anterior) da ocorrência programada dos eventos esportivos em 2014 e 2016. Veremos como a consequência de se adotar o calendário dos grandes eventos terá sido impactante na definição e andamento dos investimentos em infraestrutura aeroportuária, com reflexos no desempenho de todo o setor. Esse talvez tenha sido o motivo de inclusão de aeroportos centrais como o de Guarulhos já nas primeiras rodadas de leilão de concessão, garantido de um lado o investimento em infraestrutura para os “Grandes Eventos” e, ao 113 mesmo tempo, atraindo o investimento de empreiteiras e investidores privados para maximizar a geração de receitas para os cofres públicos.

Propostas para Serviço de Transporte Aéreo

O diagnóstico feito no relatório baseia-se em uma análise ECP (Estrutura, Conduta e Performance) do subsetor de transporte aéreo. O relatório dedica-se a apresentar a evolução histórica estilizada do setor, repassando os principais momentos do setor dos quais tratamos no capítulo 1, mostrando sua formação militar e desenvolvimento das companhias tradicionais (legacy carriers) no período de “concorrência controlada” e a estruturação do mercado após o início do período de liberalização do transporte aéreo. A figura abaixo resume essa trajetória descrita no relatório.

Figura 42: Gráfico estilizado de evolução do subsetor de transporte aéreo no Brasil. Fonte: McKinsey, Op. cit., p. 208

O caráter oligopolizado do mercado do serviço de transporte aéreo não é destacado, ainda que não seja olvidado. O estudo considerou a metodologia de Herfindahl-Hirschman para aferir o grau de concentração do mercado de transporte aéreo no Brasil. Esse índice varia de 0 a 1, sendo 0,18 o parâmetro a partir do qual considera-se um setor como concentrado. Segundo apresentado pelo estudo, o mercado de transporte aéreo manteve-se acima de 0,25 desde 1970, chegando a 0,44 em 2008. McKinsey concluiu que nosso mercado era concentrado, ainda que menos do que na Austrália e 114

França. As figuras a seguir, elaboradas pela consultoria McKinsey, ilustram o processo de concentração no mercado de transporte aéreo no Brasil até 2008. Destaca-se como o processo de liberalização (fim do período de “concorrência controlada”) dos anos 1990 e início dos anos 2000 enseja a falência das companhias tradicionais (legacy carriers) e acelera o processo de concentração do mercado, que fica mais acentuado no período de 2004 a 2008.

Figura 43: Gráfico comparativo de concentração de mercado oligopolizado do setor de transporte aéreo no Brasil e mundo segundo o Índice de Herfindahl-Hirschman. Fonte: McKinsey, Op. cit., p. 216

Figura 44: Evolução da repartição de mercado entre companhias aéreas segundo receita por passageiro.quilômetro pago (2000-2008). Fonte: McKinsey, Op. cit., p. 227. 115

O destaque do relatório vai para as profundas mudanças no setor devidas ao processo de liberalização, ao qual creditam o aumento da demanda percebida nos 10 anos anteriores (2000-2010) que, acompanhado do crescimento do PIB no período 2003-2008, teriam causado o aumento de 10% da demanda em média no período. O discurso explicativo que se consolidou a partir daí já é bem difundido e não pode ter sua origem imputada apenas ao Relatório McKinsey: uma “nova classe média” teria dilatado o tamanho do mercado consumidor e possibilitado a sua expansão mantendo os baixos preços das passagens, causando uma pressão extraordinária na capacidade do sistema.

Os critérios de classificação socioeconômica são tema controverso nas ciências sociais. O argumento de que uma “nova classe média” teria surgido no período 2004-2008 parte de critérios de classificação de poder de compra das famílias utilizado pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP) ou de modulação da renda por faixas de salário-mínimo, segundo o IBGE. Ambos critérios detalham a renda familiar nos espectros mais baixos da pirâmide social, nas famílias com renda entre 2 e 10 salários-mínimos, enquanto por outro lado agrupam os estratos superiores na faixa A sem detalhar sua distribuição. Esse ordenamento estatístico que privilegia a análise da maior parte da população que se encontra nas faixas de menor renda também serve para encobertar a desigualdade de renda ao não detalhar a distribuição da renda dos 1% a 10% mais ricos da sociedade.

Contudo, apesar dos problemas analíticos e teóricos advindos de tal classificação da sociedade, os critérios de classificação econômica do estudo da McKinsey foram adaptados da ABEP164 para representar o poder de compra das famílias do mercado consumidor do transporte aéreo, em que se dividiu a população em 7 classes:

Tabela 8: Renda familiar por classes econômicas. Elaboração própria a partir de dados do IBGE e ABEP

Classe Renda familiar média % famílias em % famílias em % famílias em % famílias em ABEP (em reais de 2008) 2005 2006 2007 2008 A1 11480 1 1 1 1 A2 8295 4 4 5 4 B1 4754 8 9 10 9 B2 2656 15 15 16 19 C 1210 38 39 42 46 D 680 31 29 24 19 E 415 3 3 2 2

A partir dessa classificação econômica da sociedade, o diagnóstico ressalta a maior participação da “classe C” no mercado consumidor do transporte aéreo. Destacamos que, segundo os dados do próprio

164 Fonte: ABEP, 04_cceb_base_lse_2009. (disponível em http://www.abep.org/criterio-brasil. 10/10/2018). Consideramos que as classes C1 e C2 da ABEP foram mescladas no Relatório McKinsey, e o valor da renda média familiar é média aritmética das duas classes econômicas da ABEP. 116 relatório, nota-se também uma evolução positiva da renda das famílias na classificação B2, ainda que à metade da taxa anual percebida na “classe C”.

Figura 45: População consumidora do serviço de transporte aéreo por ocupação, faixa de renda e frequência de viagens anuais em 2009. Fonte: McKinsey, Op. cit., p. 114

Constatou-se também que a maioria das viagens é realizada por passageiros frequentes, que realizam três ou mais viagens ao ano, representando cerca de um terço dos passageiros e sendo responsáveis por 80% das viagens.

Figura 46: Gráfico de evolução do PIB e renda das famílias no período anterior a 2008. Fonte: McKinsey, Op. cit., p. 206

Na figura anterior apresentamos o gráfico de evolução da renda das famílias como função do crescimento do PIB e o rebatimento no crescimento da demanda de passageiros considerada no estudo da McKinsey. O setor aéreo como um todo era considerado pela McKinsey como pouco desenvolvido 117 em termos de quantidade de passageiros frente a população do país, de um lado. Por outro lado, reconhecia que dado o perfil dos passageiros do setor, o seu tamanho parecia ser adequado, ainda que coubesse expansão que acompanhasse a expansão da renda média das famílias.

Ao analisar a conduta das companhias aéreas, o relatório conclui que elas se comportavam entorno de três eixos: competição em custos, tendência à homogeneização dos serviços (para possibilitar a concorrência marginal em preços) e a tendência ao aumento do aproveitamento das aeronaves (diminuição de assentos não vendidos em cada voo).

Mas nem tudo eram vantagens. Nas palavras do próprio relatório, reconhecia-se que a liberalização trazia consigo consequências negativas:

Por outro lado, esses mesmos fatores acarretaram algumas questões a serem enfrentadas como a redução da malha aérea devido à exclusão de algumas rotas de menor densidade, descontinuidade de serviços em certas rotas que foram testadas e abandonadas pelas companhias aéreas, uma vez que não se mostraram autossuficientes.165

Concentração de empresas no mercado com concentração da oferta de viagens, assim como diferenciação de produtos em redução são aspectos de um oligopólio diferenciado em transição para um oligopólio concentrado. A concentração econômica reforça a concentração espacial da Rede Aérea Nacional. Se a periferia já não era atendida da mesma forma que o centro da rede, também nele o diagnóstico do relatório era de preocupação com um possível bloqueio ao processo de aumento de demanda e consequente crescimento do setor. “Fatores externos e a configuração do mercado” conjuravam contra o desenvolvimento do setor, uma vez que um possível aumento dos custos operacionais das companhias aéreas, a existência de barreiras à entrada de novos concorrentes, a prática de soluções “subótimas” de limitação do mercado como o “sloteamento” dos aeroportos da área terminal de São Paulo (Congonhas e Guarulhos) configuravam práticas e limitações que precisavam ser transpostas. A figura a seguir resume o esquema da análise ECP realizada pela consultoria. Destacamos os pontos de “concentração de mercado” na estrutura e “abandono de linhas periféricas” na conduta.

165 McKinsey, Op. cit., p. 204. 118

Figura 47: Gráfico de análise ECP elaborado pela consultoria da McKinsey (destaque para pontos de concentração de mercado na estrutura e abandono de linhas periféricas na conduta). Fonte: McKinsey, Op. cit., p. 205, grifos nossos Em resumo, a análise ECP da McKinsey reconheceu o desempenho inferior da Infraero frente outras empresas administradoras de infraestrutura aeroportuária no mundo (em países selecionados), e identificou a baixa geração de receita comercial como o principal indicador de oportunidade de melhoria. Impunha-se, com isso, a necessidade de ampliação de capacidade da infraestrutura do setor, isto é, destravar a capacidade da infraestrutura aeroportuária era imperioso. Fruto de um diagnóstico 119 externo, o relatório da consultoria identificava a Infraero também como parte do problema a ser solucionado. Como parte secundária das propostas elencadas pelo estudo, propunha-se para “aperfeiçoar a cobertura da malha aérea, inclusive no âmbito de linhas de baixa e média densidade”, ou seja, alguma política de aviação regional.

Antes de passarmos ao quê seria feito em função desse diagnóstico, precisamos concluir o exame do planejamento daquele momento abordando a governança do setor que se redefinia. Essa parte estabeleceria fundamentalmente como se daria a expansão do setor de transporte aéreo no Brasil de 2011 em diante.

* * *

Neste capítulo 2 repassamos o contexto de crise conjuntural na economia a partir de 2008 e como a política de investimento em infraestrutura, particularmente no setor aéreo, se viu enredada na resposta de política anticíclica do governo. A partir de dados estatísticos do desempenho aquém do previsto do investimento realizado pela Infraero no período anterior do ciclo (2004-2008), mostramos como a insatisfação dentro da máquina estatal de planejamento encontrou nos estudos de participação privada na administração aeroportuária o apoio necessário para a tomada de decisão pela mudança no setor e a interrupção da trajetória de desenvolvimento da Infraero. Nesse ponto, constatamos o grau de concentração e densidade da Rede Aérea Nacional, e como o assim chamado “Sistema Infraero” era fortemente dependente dos aeroportos centrais para a sustentação do balanço da empresa e a viabilidade da operação da rede como um todo. Em 2009, ano de mudança de trajetória da política no setor, a Infraero dependia de 11 aeroportos rentáveis, dos quais apenas 4 deviam esse resultado positivo às receitas aeroportuárias. Naquele ano o resultado da empresa já despencava 55% em relação à média do período ascendente do ciclo (2004-2008), mas isso não mudou o plano já definido no seio da máquina estatal pela concessão privada sobre terreno da estatal.

Como procuramos demonstrar, a tomada de decisão seguiu caminhos não-lineares que se apoiaram em estudos ora da agência reguladora, ora internos da equipe econômica, ora de consultorias contratadas especialmente para esse fim. A política de concessões de aeroportos à administração privada por meio de leilões foi antes uma resultante de processo complexo e descontínuo de tomadas de decisão que obedeceram a lógicas políticas que, aos olhos dos agentes técnicos, podem parecer pouco racionais ou “sub-ótimas”, mas que dentro do referencial teórico que propusemos considerar podem ser interpretadas como condicionadas por um arranjo derivado das disputas pelos rumos da acumulação no país ocorridas dentro do aparelho do Estado por grupos de pressão que então compunham o bloco no poder. 120

Capítulo 3. O modelo de concessão de aeroportos no Brasil 121

Neste capítulo trataremos do modelo de negócios definido para a concessão dos aeroportos públicos federais a partir de 2011, resultando nas primeiras três rodadas de leilões públicos da ANAC que transferiram para a administração privada o aeroporto de São Gonçalo do Amarante-RN, construído já para essa finalidade, e os aeroportos centrais da Rede Aérea Nacional: Guarulhos-SP, Viracopos- SP e Brasília-DF na segunda rodada, e Galeão-RJ e Confins-MG na terceira rodada de leilões.

O modelo de negócios como viria a ficar estabelecido nos Editais de Concessão que regeram aqueles leilões foi forjado no seio da máquina estatal de planejamento, como resultante de um processo interno de elaboração de políticas de parcerias público-privadas que assumiu protagonismo na política anticíclica pós-2008. Esse processo apoiou-se tecnicamente em diagnóstico apresentado na peça de planejamento do setor elaborada pela consultoria internacional McKinsey, motivo pelo qual iniciamos nossa abordagem pelo exame do texto do Relatório McKinsey no que ele se dedica a tratar da governança no setor e no que propõe que seja “o modelo brasileiro”.

Diagnóstico e proposta da McKinsey

Tendo analisado o setor de transporte aéreo quanto à evolução de sua infraestrutura e do mercado do serviço prestado pelas companhias aéreas no período selecionado, McKinsey completa seu relatório examinando o ordenamento geral de governança do sistema, e comparando o caso no Brasil com outros países, de forma a poder definir o que deveria ser “o modelo brasileiro”, e assim poder elaborar recomendações para seu desenvolvimento.

O estudo selecionou seis países de dimensões territoriais e tamanho de mercado condizentes para comparação com o Brasil, em busca de lições a aprender. Os países estudados foram Alemanha, Austrália, China, Estados Unidos, Índia e Reino Unido, e as lições aprendidas foram resumidas pela consultoria na lista abaixo:

• obter o máximo possível dos aeroportos como ativos (“aeroportos como negócios”); • identificar objetivos conflitantes (ex: maximização de receitas conflita com tarifas baixas aos usuários); • reconhecer que estabelecer os incentivos corretos não é suficiente (papel atuante do poder público como garantidor das condições adequadas); • alocar funções a seus proprietários “naturais” (receitas comerciais devem ser geradas por especialistas em comércio varejista, operação aeroportuária por especialista comprovado); • alocar riscos a quem estiver melhor posicionado para assumi-los (riscos devem ser asignados aos seus proprietários “naturais”); 122

• promover consulta pública é benéfico (“público” não se refere à sociedade como um todo, mas aos demais atores do mercado, como companhias aéreas, empresas de handling, etc. como detentoras de conhecimento específico do mercado); • contar com a ajuda da participação privada (conseguiriam maior celeridade e produtividade na implantação e exploração de infraestrutura); • considerar o setor aéreo inserido na matriz modal de transportes (aeroportos devem ser pensados dentro de um contexto de matriz de transporte com diversos modos, tanto de forma complementar como em concorrência). Tendo em vista que a consequência prática deste estudo de McKinsey foi ter subsidiado o que passou a ser conhecido por “o modelo brasileiro”, passaremos brevemente em exame os comentários mais relevantes que são apresentados pelo Relatório McKinsey a respeito de cada país estudado, destacando o que teria sido aproveitado no “modelo brasileiro”, dado que o estudo concluiu não haver um modelo padrão aplicado em todos aqueles países.

Na seção intitulada “Modelo de administração aeroportuária”, o Relatório McKinsey afirma que a privatização de aeroportos singulares era um fenômeno relativamente recente, com exceção do Reino Unido, onde a privatização havia iniciado em 1986. Ao abordar inicialmente o caso da rede de aeroportos na Alemanha, identifica que a rede permanecia à época (2009) predominantemente sob administração estatal, com exceção de cinco aeroportos (Dusseldorf e Frankfurt entre eles) que haviam aberto capital em bolsa e contavam com participações privadas minoritárias.

Essa proporção de aeroportos privados na Alemanha apresentada pela McKinsey contrasta com o diagnóstico de outro autor que comparou a administração aeroportuária na Europa no início do século 21, para o qual 58 aeroportos principais da rede aérea alemã eram de alguma forma privados e operados por companhias limitadas, com exceção principal do aeroporto de Frankfurt sob administração da Fraport AG, empresa pública com participação acionária privada minoritária166.

Segundo Wollersheim, a administração da infraestrutura aeroportuária na Alemanha obedece à divisão de poderes de um Estado nacional federado, onde as autoridades locais (estados regionais) detém muito mais poder administrativo do que em Estados unitários centralizados, como é o caso do Reino Unido ou Brasil. Naquele país, a administração dos aeroportos em cada cidade cabe à respectiva administração estadual, e a regulação federal dedica-se ao nível geral de preços e normatização em geral, sem estabelecer limites máximos para tarifas aeronáuticas167.

166 WOLLERSHEIM, C. On the provision of airport infrastructure in Germany. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2009. 167 McKinsey, Op. cit., p. 234. 123

Wollersheim contribui com uma visão para além do caso alemão, e lista países europeus cujas administrações aeroportuárias obedecem a um planejamento centralizado, dentre os quais destacam-se França e Espanha, e os contrasta com aqueles países de estrutura federal (Alemanha entre eles) onde parte da responsabilidade foi passada do governo central para as regiões. O autor vê ganhos de escala na centralização, com possibilidade de planejamento de alocação “ótima” de recursos, melhor decisão de investimento em escala adequada para a rede aérea, dentre outros argumentos favoráveis à centralização. Segundo o autor, o poder central em modelos descentralizados como na Alemanha mantém sua influência através de publicação de documentação regulatória de referência (White Books), que todavia não tem nenhuma vinculação legal para as regiões.

Ao tratar do caso francês, de modelo centralizado, o autor pondera que alguns aeroportos foram transmitidos da administração federal para local, através de acordos nas câmaras de comércio locais, identificando algumas tendências descentralizantes também na política aeroportuária francesa168. Naquele país, os 12 maiores aeroportos movimentavam até 90% do tráfego aéreo de passageiros em 2004. Os 20 maiores aeroportos fechavam suas contas em equilíbrio, mas dependiam de subsídio estatal para novos investimentos. Os aeroportos menores, por sua vez, são mantidos pelos governos locais, e segundo o autor o governo central se negaria a fechar aeroportos "improdutivos" com o argumento de que se as comunidades querem pagar para mantê-los, não haveria o que o governo central pudesse fazer em contrário. Essas localidades com aeroportos "de terceira categoria" ficam vulneráveis à competição deletéria imposta pelas companhias aéreas, e acabam por subsidiar seus aeroportos. Na visão da OCDE169, a ajuda e a capacidade ociosa resultante não podem ser sempre justificadas e representam uma massiva má alocação de fundos aeroportuários170.

Comentando sobre a programação para a ampliação de terminais aeroportuários na Alemanha, Wollersheim destaca que de 1998 a 2004, a ocupação média dos aeroportos alemães foi reduzida de 110,04 para 90,44 passageiros/m², o que leva o autor a questionar a necessidade (rentabilidade) das ampliações de terminais em curso na época (2004)171. E numa perspectiva temporal o autor conclui que, "enquanto as companhias aéreas fizeram esforços significativos para reduzir seus custos unitários médios [especialmente seguindo o aparecimento de novas firmas entrantes de baixo custo], os aeroportos alemães obviamente aumentaram seus custos [no período 1998-2004]”.

168 Wollersheim, Op. cit., p. 95. 169 Sigla para Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. 170 Wollersheim, Op. cit., p. 92. 171 O autor não explicita os critérios de cálculo para obter essas conclusões. Estima-se que considere a capacidade total anual de passageiros (PAX.ano) e a divida pela área útil de terminal (m²). 124

O argumento do autor resulta claramente crítico à administração federalizada na Alemanha, e mais favorável a modelos centralizados. Wollersheim critica os casos de pequenos aeroportos172 demonstrando a sua fraqueza de negociação ante as companhias aéreas que, ao menor sinal de reajuste dos termos de contrato, fogem para um aeroporto mais vantajoso, o que replica a dinâmica da guerra fiscal e competição entre cidades.

O Relatório McKinsey, por seu turno, conclui que o exemplo alemão é de um modelo descentralizado, com incentivos federais ao desenvolvimento da infraestrutura aeroportuária pelos estados regionais, ressaltando que seria permitido a empresas aéreas serem proprietárias de terminais aeroportuários, sendo identificada relação de concorrência entre aeroportos. Recordamos que, para o paradigma liberalizante endossado por McKinsey e também pela ANAC173 e o planejamento em curso no Brasil em geral, a concorrência entre aeroportos era um ideal a perseguir. Neste caso alemão em específico, isso significa observar uma concorrência entre estados regionais pela atração de viagens aéreas. Como única crítica ao modelo alemão, McKinsey aponta que o Estado (federal e local) apresentaria um conflito de interesses ao ser simultaneamente administrador e regulador do setor.

O caso seguinte examinado pela McKinsey foi o da Austrália, que entre 1997 e 1998 transferiu os 22 aeroportos públicos da sua Rede Aérea antes administrados pela Federal Airports Corporation (FAC) para administração privada em concessões individuais de 50 anos. A FAC acabou tendo vida curta, uma vez que havia sido fundada em 1988 e foi extinta em 1999174. Em comparação a outros modelos, inclusive o que viria a ser adotado no Brasil como veremos, os aeroportos privatizados na Austrália passaram a ser vistos como entidades privadas independentes sem exigência de geração de receitas públicas. Em comparação com modelos federados, no caso australiano existe limitação à intervenção do poder local na regulação de cada aeroporto, resguardando-se a primazia da empresa privada ante a possível regulação dos poderes públicos.

Em seguida, a McKinsey apresenta o resultado do estudo da administração aeroportuária na China. O caso chinês possui os dois lados da moeda da oposição “centralização-descentralização”, dado que até 2002 todos os aeroportos da sua rede aérea nacional eram administrados por uma entidade centralizada (a Administração de Aviação Civil da China – AACC), quando foram todos transferidos para administrações locais, sendo que alguns aeroportos foram abertos a participação privada limitada. Em 2008 a China adotaria classificação em três níveis para os seus aeroportos, com distintos graus de regulação, permitindo inclusive que operadores estrangeiros entrassem no negócio da administração aeroportuária no país, como foi o caso da Fraport da Alemanha que passou a ter

172 Wollersheim, Op. cit., p. 52. 173 Estudos ANAC (2009). Op. cit. 174 KIEL, E.E. “The Federal Airports Corporation: The Infrastructure Challenge.” In: International Transport Conference: Transport Shaping Australia - Issues and Opportunities; Preprints of Papers, 1991. 125 participação no aeroporto de Xi’an, e da Changi de Cingapura, que passou a ter participações nos aeroportos de Shenzhen e Nanjing.

Ao adotarem os três níveis de aeroportos na infraestrutura do país, os chineses assumiram que os aeroportos listados nos dois níveis mais baixos poderiam operar em deficit, devido à insuficiência de geração de receitas pelo baixo tráfego a regiões periféricas. Os aeroportos lucrativos concentram-se no nível 1 e recolhem receitas diretamente para os governos locais, com contribuições limitadas para o governo central. Nesses aeroportos, há a participação majoritária de administradores privados listados em bolsa, abarcando uma quantidade de 45 dentre os 68 aeroportos de nível 1 na China em 2008.

A figura a seguir elaborada por McKinsey relaciona os aeroportos de nível 1 em ordem de volume de passageiros transportados em 2008 com a participação de administradores privados.

Figura 48: Proprietários e operadores aeroportuários na China - Relatório McKinsey, p. 237.

Em suma, o modelo chinês parece obedecer mais a uma necessidade de repartição de custos e geração de receitas locais inserida numa política regional mais ampla do Estado chinês, na qual a AACC não administra nenhum aeroporto, mas as grandes companhias que operam no nível 1 concentram o mercado dos aeroportos privados lucrativos. Segundo McKinsey, cinco das dez empresas que administram os catorze maiores aeroportos do nível 1 tem ações negociadas em bolsa (como a Capital 126

Airport Holding Company, dona de 100% das ações de aeroportos como Changsha, Wuhan, Chongqing e 57% do aeroporto de Pequim).

McKinsey analisa então o caso da administração aeroportuária nos Estados Unidos, país que iniciou a desregulamentação do mercado de transporte aéreo no período 1975-1978. Contrariamente aos demais casos analisados pela consultoria, nos EUA a administração aeroportuária seguia inteiramente estatal, ainda que descentralizada entre os poderes municipais ou estaduais. Toda a regulamentação do setor em escala federal é feita pela Federal Administration Agency (FAA), cujo alcance normativo supera as fronteiras nacionais e é comumente adotada ao redor do mundo como padrão internacional. A participação privada na administração aeroportuária se dá em componentes dentro de cada aeroporto, como terminais dedicados a uma companhia aérea, por exemplo, como ocorre no Terminal 4 do aeroporto JFK em Nova Iorque, construído por um consórcio privado entre Schipol, LCOR e Lehman Brothers175. A exploração privada de componentes de aeroportos se dá, no entanto, sem “captura” de parcela da receita adicional por parte do administrador do aeroporto. Ou seja, a participação privada não contribui diretamente para o financiamento do orçamento público.

Da forma como está organizada a administração aeroportuária no país, toda intenção de ampliação da infraestrutura é regulada e pré-aprovada pela FAA, os governos locais devem reverter todas as receitas geradas exclusivamente para a infraestrutura aeroportuária, e os preços das tarifas são administrados localmente, visando cobrir os custos operacionais, sem incentivos declarados em obtenção de receitas comerciais nos aeroportos. No modelo americano, aqueles aeroportos que reverterem 100% dos lucros em reinvestimentos em infraestrutura são qualificados para receber subsídios federais através da FAA. Segundo McKinsey, esse modelo desincentiva a geração de lucros nos aeroportos e tende ao superinvestimento em ampliação de capacidade sem retorno econômico.

Outro país estudado pela consultoria para buscar exemplos para a definição do modelo brasileiro foi a Índia. Naquele país, o processo de privatização de alguns aeroportos centrais começou em 2006, pelos aeroportos de Delhi e Mumbai. Em 2009, eram 5 aeroportos privatizados responsáveis por até 60% do tráfego aéreo de passageiros na Índia. Dos demais 92 aeroportos que permaneceram sob administração estatal da Autoridade Aeroportuária da Índia (AAI), apenas 7 eram lucrativos, evidenciando um país territorialmente desigual e com grandes disparidades de níveis de renda.

Por último, a consultoria analisou o modelo do Reino Unido, no qual a autoridade aeroportuária britânica (BAA) havia sido criada em 1986 como administradora privada monopolista dos 7 principais aeroportos do reino. Em 2006, a BAA foi incorporada por um consórcio liderado pela empresa espanhola Ferrovial176.

175 Banco americano de investimentos que viria a falir no estopim da crise financeira de 2008. 176 A companhia foi rebatizada Heathrow Airport Holdings em 2012. 127

Importante notar que, apesar de não constar no Relatório McKinsey, a rede aérea britânica também era classificada em 3 categorias: categorias A e B para aeroportos com movimentação de mais de 5 milhões de passageiros por ano, enquanto na categoria C encontravam-se aqueles com movimentação entre 1 e 5 milhões, sendo que a BAA dedica-se à parte superior da rede. Segundo Meira177, paralelamente ao processo de privatização dos principais aeroportos do Reino Unido via BAA, outros aeroportos controlados por governos locais do Reino Unido também foram privatizados, somando mais de 20 casos até 2010.

Segundo McKinsey, o principal objetivo de privatização dos aeroportos no Reino Unido foi o de gerar receitas públicas e bancar o funcionamento da Agência de Aviação Civil do Reino Unido (CAA). Os aeroportos britânicos geravam quase o dobro de receitas comerciais do que a média no restante do mundo, segundo um modelo no qual a receita requerida (tarifa de equilíbrio) é calculada subtraindo-se a contribuição aferida das receitas não aeronáuticas, conforme desenhado na figura a seguir. A finalidade dessa metodologia de cálculo da receita total requerida é minorar a parcela da receita aeronáutica por passageiro (£/pax). Nesse caso, em lugar de ser uma tarifa administrada fixa, como é o caso na maioria dos países, a receita aeronáutica tem um viés de redução permanente, cujo intuito seria o de atrair consumidores (principalmente companhias aéreas) e encorajar investimento em novas instalações.

177 MEIRA, T. W. N. “A privatização aeroportuária no brasil e o turismo: uma análise crítica da gestão aeroportuária brasileira”. Trabalho de conclusão de curso. Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Turismo – UFF, Niterói, Rio de Janeiro, 2010. 128

Figura 49: Metodologia de cálculo de receita requerida na modelagem de privatização de aeroportos no Reino Unido - Relatório McKinsey, p. 244.

Nos parágrafos anteriores repassamos a avaliação feita por McKinsey quanto aos exemplos de privatização de infraestrutura aeroportuária ao redor do mundo, em países selecionados, segundo critério estabelecido pela própria consultoria. Adicionamos a ela comentários tomadas de outros autores, com o intuito de contextualizar a análise apresentada no Relatório McKinsey, cuja finalidade explícita era a de coletar bons exemplos replicáveis para o caso brasileiro. Do estudo de Wollersheim, anterior ao da consultoria mas com abordagem similar, enfocado na forma da administração da infraestrutura aeroportuária na Alemanha, com um viés crítico à descentralização da administração que conferia muito poder às autoridades locais e, consequentemente, pouca liberdade econômica para a exploração privada, a conclusão apresentada pelo autor era que não era possível admitir que a administração privada tivesse vantagens evidentes ante a administração pública178.

Olhando para o caso alemão, onde cada aeroporto é administrado pelo estado regional, formando uma rede aérea nacional com múltiplos administradores públicos, o autor percebe que seria a figura do administrador privado que carregaria as vantagens virtuais da centralização e ganhos de escala, dado

178 Wollersheim concorda e cita o trabalho de Oum; Yan; Yu, (2008), já citado nesta dissertação, para os quais a aplicação de modelos de PPP para administração aeroportuária não era garantia comprovada de melhor administração. 129 que ele poderia atuar em mais de um aeroporto por vez e assim alocar competências mais eficientemente entre os recursos da empresa. Em oposição, isso não seria possível ao poder público, dada a sua base de poder territorial segundo a qual cada governo local seria responsável somente pelo seu aeroporto, conferindo um caráter peculiar de pulverização do poder público ante uma centralização do administrador privado.

Outro argumento do autor contra a descentralização na Alemanha é que esse modelo geraria concorrência entre regiões e a tendência de que a região com a pior regulação vencesse a concorrência, o que chamamos “guerra fiscal”. A partir desse diagnóstico, o autor argumenta em favor de um “nível ótimo de centralização”, o qual se daria a partir do princípio de equivalência fiscal e equilíbrio de custos organizacionais. Sem desenvolver muito o argumento, fica implícito, no entanto, que esse tal “nível ótimo de centralização” estaria em algum lugar intermediário entre a administração local, modelo existente que o autor criticava, e a administração central, cuja autoridade para tomadas de decisão de cima para baixo encontraria resistências no pacto federativo alemão. Conclui que nem uma estrutura de decisão centralizada ou descentralizada é ideal do ponto de vista das externalidades positivas, e que um meio-termo deveria ser escolhido, sendo que, seguindo o princípio de equivalência fiscal, o nível de governo correspondente deveria ser o do estado federado.

Para Wollersheim, afinal, a descentralização organizava o subsetor aéreo na Alemanha no início dos anos 2000. Os aeroportos eram majoritariamente administrados179 pelos municípios, enquanto o planejamento e aprovação eram definidos pelos estados federados. Essa estrutura era equivalente à da Grã-Bretanha, com exceção da privatização dos aeroportos de categoria A, já mencionada. Na França, as câmaras de comércio locais desempenhavam papel semelhante na infraestrutura aeroportuária, porém o grau de centralização e estatização era maior.

Ao compararmos a pesquisa apresentada pela consultoria McKinsey para as autoridades brasileiras com o mesmo tipo de análise desenvolvido por autores como Wollersheim, Oum, Yan e Yu, entre outros, visamos destacar como a contradição “administração pública ou administração privada” fazia- se acompanhar do par contraditório “centralização-descentralização”, aqui entendido não apenas na atividade de regulação do setor, mas nos efeitos materiais da operação da rede aérea nacional segundo um dado modelo de propriedade e administração da infraestrutura aeroportuária. Essa contradição não era estranha à consultoria, ainda que não estivesse explícita no relatório. Segundo veremos, ao escolher os exemplos que levaria para o “modelo brasileiro”, a consultoria daria preferência àqueles encontrados em países com grandes dimensões territoriais, disparidades econômicas relevantes entre regiões e classes sociais, e pouca tradição federalista, como seria o caso da Austrália e Índia. Além

179 Além de administrados, eram de propriedade pública dos respectivos municípios. 130 disso, a consultoria daria destaque a experiências mais bem-sucedidas de ampliação de capacidade, identificada como o principal desafio para o caso brasileiro então.

A abordagem do “modelo brasileiro” pela consultoria inicia-se, portanto, identificando a ineficiência da Infraero em implementar seu próprio plano de expansão de capacidade nos aeroportos mais carregados da rede. Neste ponto, nota-se como não era posta em dúvida a capacidade da empresa pública brasileira em identificar a necessidade de ampliação de capacidade ou mesmo que o aumento de demanda por transporte aéreo tivesse algum problema de origem. O problema do caso brasileiro resumia-se a como melhor realizar a ampliação de capacidade nos aeroportos saturados da rede e, ao mesmo tempo, estabelecer modelo de governança que incentivasse a ampliação de capacidade no centro como forma de subsidiar a manutenção da capacidade na periferia da rede, dados os desequilíbrios regionais no caso brasileiro.

Esse ponto já foi tratado no Capítulo 2, com a apresentação dos planos de investimentos da Infraero, seu andamento e frustração de execução. O que interessa neste momento destacar é o diagnóstico da consultoria de que o principal entrave à execução do plano de investimento da Infraero (nunca criticado pela consultoria) seria devido à “burocracia existente no processo de contratação (decorrente da Lei 8.666/1993), a capacidade de execução limitada e a necessidade de retrabalho nos projetos após paralisações pelo Tribunal de Contas da União”180. Em suma, o entrave à ampliação da capacidade da infraestrutura aeroportuária que motivava o estudo de sua privatização seria devido à sua competência conferida à administração pública, subordinada a processos burocráticos antieconômicos que provocariam, in extremis, a aversão à realização do interesse público da atividade da empresa estatal. Significava, na prática, assumir o argumento de que o Estado sabota a si mesmo quando se dedica à prestação de serviço que envolva investimento e operação de infraestrutura.

A estratégia encontrada pela consultoria seria aproveitar a exploração de receitas comerciais nos aeroportos existentes até então subaproveitadas pela empresa estatal. Seguindo a lógica declarada de alocar riscos e competências aos seus “donos naturais”, a exploração de receitas comerciais deveria ser dedicada a operador privado, uma vez que a empresa estatal não possuiria as competências natas para tal atividade. O modelo inglês de exploração do espaço interno dos terminais centrais da rede seria um dos mais próximos a considerar, mas o mesmo se poderia encontrar nos novos desenvolvimentos de aeroportos no Oriente Médio e Ásia, onde as áreas comerciais em terminais de passageiros mais se pareceriam a shopping centers do que a uma infraestrutura funcional de transporte de passageiros.

Na argumentação da consultoria, a definição do “modelo brasileiro” deveria obedecer às suas condições históricas (como a limitação da burocracia estatal que impedia o desenvolvimento da

180 McKinsey, Op. cit., p. 247. 131

Infraero) e aos objetivos da política definidos junto aos principais tomadores de decisão do setor. Esses objetivos declarados seriam:

• considerar aeroportos como bens prestadores de serviços de utilidade pública • manter a operação dos aeroportos (sem desativação programada), independentemente da lucratividade de cada aeroporto • garantir que o sistema seja autossuficiente (ao máximo possível), sem exigência de maximizar a receita pública, mas que os aeroportos deficitários fossem subsidiados pelos aeroportos superavitários • incentivar o sistema a obter ganhos de eficiência constantemente

Para tanto, a iniciativa privada deveria ter alguma participação em aeroportos. As opções que a consultoria apresenta para esse desenvolvimento do setor iam desde uma possível, mas improvável, reestruturação interna da Infraero, para que ela elevasse seu nível de eficiência operacional e acelerasse sua efetividade de execução dos investimentos de expansão de capacidade; até a transferência dessas responsabilidades para a iniciativa privada, passando por um ponto intermediário no qual fosse concedida à Infraero um regime especial de contratação similar ao utilizado pela Petrobras, que a dispensaria de seguir os mesmos ritos da Lei 8.666 e supervisão do Tribunal de Contas da União (TCU). Essa opção intermediária dependeria de alterar a governança interna da estatal para dotá-la das “melhores práticas de governança empresarial, com participação privada em sociedade de economia mista”, o que ainda não ocorreu até o presente, em que pese o estatuto diferenciado de contratação permitido à estatal pela Lei 12.833/2013, regulamentada em 2016.

Uma vez que o Relatório McKinsey não tinha funções prescritivas181, a forma dessa participação seria definida em seguida pelo governo brasileiro, apoiado em novo estudo liderado pela mesma consultoria McKinsey182 para a reestruturação da Infraero no qual seriam delineados até 7 modelos distintos de reordenamento da administração da infraestrutura aeroportuária, objeto de análise da seção a seguir. A partir daí a tomada de decisão do governo incumbiria a modelagem final à EBP, empresa que contrataria outra consultoria internacional, desta vez Leigh Fischer, para elaborar e definir os Editais de Concessão, analisados mais adiante em tópico específico.

181 McKinsey, Op. cit., p. 254. 182 Consórcio McKinsey – BDO Trevisan – Demarest – Rothschild, contratado pelo BNDES mediante contrato OCS N° 298/2009 para a “Prestação de serviços de consultoria visando a elaboração de projeto de reestruturação da INFRAERO e à adoção dos procedimentos necessários a sua transformação em companhia aberta, de forma a possibilitar a captação de recursos no mercado de capitais, bem como, a proposição de modelos alternativos de gestão e/ou configurações empresariais para a INFRAERO, conforme especificações do Edital e seus Anexos”, em valor global de R$7.452.370 reais, assinado em 18 de novembro de 2009. MCKINSEY&COMPANY; BDO TREVISAN; DEMAREST; ROTHSCHILD. "Reestruturação da Infraero – Sumário Executivo". Rio de Janeiro: McKynsey&Company, BNDES, Outubro de 2010. 132

O Estudo para Infraero (2010)

Segundo o trabalho realizado em 2010 pelo consórcio liderado por McKinsey para a reestruturação da estatal, a que chamamos “Estudo para Infraero”, avaliava-se que quaisquer soluções de reestruturação da empresa (entre abertura de capital ou concessão de componentes ou aeroportos selecionados), o impacto positivo esperado na gestão da infraestrutura aeroportuária seria reduzido para os investimentos necessários para os Grandes Eventos, supondo-se que os efeitos ainda não seriam plenos até 2014183. O indicativo era de que não seria em função dos prazos que se daria preferência a um ou outro modelo. Segundo os objetivos enunciados no estudo, e confirmados em entrevistas, o critério principal para o modelo que viria a ser adotado derivava da necessidade premente de realização de investimentos em curto prazo, com mobilização de capital e celeridade de execução que somente um investidor privado poderia ter.

Nesse sentido, foram estudados 7 modelos (2 de operação estatal com participação privada, 4 de operação privada, e 1 na combinação de ambos), dos quais foram detalhados três:

• A1 - abertura de capital da Infraero • A2 - abertura de capital de grupo de aeroportos com maior necessidade de investimentos • B1 - concessões de componentes de aeroportos visando investimentos O modelo A1 previa a abertura de capital com manutenção do controle estatal da Infraero, o que não traria muitas vantagens para a celeridade de execução dos investimentos ou para a mobilização de capitais privados. Além disso, os parceiros privados seriam obrigados a arcar com os custos dos aeroportos deficitários da periferia da rede. Embora o edital de contratação do estudo requeresse expressamente o estudo de casos de operadores em outros países, como ADP, BAA e AENA184, o consórcio liderado por McKinsey decidiu estudar outros países cujos modelos mais se assemelhavam às propostas que faziam para a Infraero. Para o modelo A1, o único exemplo listado pela consultoria foi o caso da Malásia. O caso da AENA na Espanha, em discussão naquele mesmo período, ainda viria a se configurar nesses mesmos moldes, como veremos no capítulo 4.

O modelo A2 previa a manutenção da Infraero estatal na maior parte da rede, mas com participação de capitais privados naqueles aeroportos mais relevantes da rede e que estivessem mais carentes de investimentos críticos para a realização dos Grandes Eventos em 2014 e 2016. Ainda que o controle continuasse praticamente estatal, esse modelo permitiria a quebra do monopólio em alguns pontos (os mais relevantes) da rede. O exemplo do modelo A2 era a Alemanha e a África do Sul.

183 MCKINSEY&COMPANY; BDO TREVISAN; DEMAREST; ROTHSCHILD. "Reestruturação da Infraero – Sumário Executivo". Rio de Janeiro: McKynsey&Company, BNDES, Outubro de 2010, p. 23. 184 Operadores de aeroportos na França, Reino Unido e Espanha, respectivamente. 133

Os modelos que dependiam de abertura de capital da Infraero necessitavam que o fluxo de caixa fosse atrativo ao investidor e apresentasse valor presente líquido positivo. Na simulação de VPL e fluxo de caixa descontado da firma, mesmo para um modelo 100% estatal, a consultoria avaliava que o prognóstico melhoraria somente no longo prazo quando os investimentos tivessem sido realizados e as receitas operacionais fossem aumentadas pelo crescimento tendencial do volume de passageiros. Isso quer dizer que, fosse qual fosse o modelo escolhido, inclusive a manutenção da administração estatal, o fluxo de caixa projetado da administração aeroportuária no país seria negativo nos primeiros 10 anos, pelo menos, em função dos investimentos prementes para ampliação de capacidade no centro da rede. Na figura a seguir vemos representação gráfica do fluxo de caixa projetado para a estatal no “Estudo para Infraero”185.

Figura 50: Projeção de Fluxo de Caixa da Infraero (2010-2030)

Para garantir VPL positivo e fluxo de caixa atrativo, esses modelos de abertura de capital pressupunham que os custos com investimentos e desapropriação fossem arcados pela União, e que as receitas com ATAERO fossem incorporadas pela nova(s) empresa(s), enquanto eventuais novas despesas (como pagamento de impostos municipais de ISS e IPTU até então ignorados pela estatal federal) fossem integralmente repassados aos usuários finais.

A disputa em torno do pagamento de impostos municipais (ISS e IPTU) havia sido judicializada e encontrava-se em decisão no Supremo Tribunal Federal (STF), que havia adotado, até então, o entendimento de que a Infraero não exerce atividade econômica, mas que prestaria serviço público de administração de infraestrutura por meio de outorga da União. Por tal motivo, não seria devido o

185 MCKINSEY&COMPANY, Op. cit., p. 6. 134 pagamento de imposto (ISS). A argumentação de prestação de serviço público sem caracterizar atividade econômica baseava-se também no regime de monopólio da Infraero, segundo o qual não haveria concorrência, ou seja, não haveria um mercado com outras empresas aferindo lucros em competição, motivo pelo qual não deveria incidir o imposto sobre serviços (ISS). Já a isenção do IPTU era justificada com base na imunidade recíproca entre órgão da administração pública. De todo modo, os modelos do “Estudo para Infraero” incluíam a projeção de pagamento de impostos municipais nas simulações econômico-financeiras como previsão de recursos em caso de decisão contrária à expectativa da Infraero.

Para a abertura de capital, o Estudo para Infraero considerava que as contingências da antiga Infraero deveriam ser inteiramente assumidas pela União, sem riscos para a nova empresa de economia mista. Para tanto, deveria haver uma reorganização societária que segregasse ativos e contingências. Isso poderia ocorrer por meio de cisão parcial da estatal, com uma “Infraero A” sucessora da atual que receberia as contingências e, no modelo de privatização de parte dos aeroportos, seguiria operando os aeroportos não privatizados; ou por meio da criação de uma subsidiária integral, onde a União deixaria de deter participação direta na Nova Infraero, dado que a Infraero Atual continuaria existindo e seria ela a proprietária da maioria das ações da nova empresa.

No entanto, a forma jurídica do vínculo entre União e Infraero deveria ser alterada, de outorga legal para concessão pública. Segundo colocado pelo estudo, a nova forma deveria pressupor o

pagamento pela concessão do direito de uso da infraestrutura aeroportuária à Infraero e o valor de aquisição deste direito deverá basear-se no seu potencial valor econômico-financeiro, a ser apurado em estudo a ser realizado por empresa de consultoria especializada a ser contratada. Em seguida, o pagamento por este direito deverá ser realizado com recursos aportados na Infraero pela União, resultando em uma operação sem desembolso líquido de caixa tanto para a União, quanto para a Infraero.186

Essa “contabilidade circular” proposta deveria permitir a passagem de uma modalidade de vínculo precário (outorga legal sem patrimônio) a outra com metas e limites claros à empresa pública em equiparação a seus concorrentes de mercado, com possibilidade de corrigir a falta de patrimônio por meio de valoração do ativo intangível da infraestrutura aeroportuária que construiu nos seus 40 anos de atuação. Do ponto de vista contábil, o ponto importante levantado pelo Estudo foi de fato a necessidade de “registrar o ativo intangível representado pelo direito de uso da infraestrutura aeroportuária nos demonstrativos financeiros da Infraero” 187. Seria esse o patrimônio a ser total ou parcialmente transferido à Nova Infraero a depender do modelo escolhido (A1, de abertura de capital da estatal, ou A2, de abertura de capital de aeroportos centrais).

186 MCKINSEY&COMPANY, Op. cit., p. 26. 187 Idem. 135

Com essas premissas, o relatório concluía que a abertura de capital seria viável188. Caso o Governo optasse por seguir no modelo A2, a Rede Aérea Nacional poderia ser então dividida em duas: uma totalmente estatal, na periferia, e outra de capital aberto no centro da rede189, prevendo-se mecanismo de subsídio cruzado da empresa de capital aberto à estatal “quando necessário”. Os aeroportos do centro da rede a privatizar deveriam ser constituídos cada um como uma nova empresa subsidiária da Infraero (uma previsão legal original da fundação da estatal nunca efetivada), e então ter suas ações abertas para participação majoritária de capitais privados, mantendo-se os 49% da Infraero já predefinidos. Esse modelo chegou a ser considerado inicialmente pela equipe da EBP, porém tinha a desvantagem de requerer maior prazo de maturação, dado que era necessário sanear as empresas e consolidar o patrimônio de cada aeroporto previamente à abertura de capital.

Mas os principais pontos negativos que levavam a consultoria a não recomendar os modelos A1 e A2 de abertura de capital da Infraero eram, de um lado, a manutenção do controle estatal que implicava a manutenção da supervisão dos órgãos de controle (MP, CGU, TCU, com aplicação da Lei 8.666/1993) e, de outro lado, a irreversibilidade da decisão no futuro. De fato, a previsão da possibilidade de interrupção futura era um critério essencial da tomada de decisão da política de Estado.

Os demais modelos da série B (B1 a B4) seriam baseados em liderança de operador privado, dentre os quais o modelo B1 escolhido pelo Governo para detalhamento previa a concessão de componentes selecionados de aeroportos para operadores privados190. Esse último modelo não era o indicado pela consultoria, dado que “idealmente, atividades de pista e pátio e terminal de passageiros (operação e comercial) devem permanecer integradas”191. Ainda assim, o modelo B1 previa uma participação público-privada (PPP) administrativa192 da Infraero com possível operador privado de um componente, como um terminal de passageiros ou de carga. Segundo apuramos em entrevistas com 188Além dessas premissas, também considerava que o fluxo de caixa da atividade de navegação aérea deveria se neutro, e que fossem implantadas melhorias de gestão na empresa para aumentar sua lucratividade. 189Alternativamente, estudou-se a separação entre aeroportos com capacidade saturada e maior necessidade de investimentos como parte da empresa de capital aberto e os demais sob administração da estatal. Em ambos critérios a consultoria julgou viável a abertura de capital. 190 Chegaram-se a estudar modelos distintos, como a concessão da totalidade da rede para um único consórcio privado, como foi o caso da Argentina que concedeu a Aeroportos Argentina 2000 (liderado pela Corporación America) em 1998. Com essa operação, o vizinho sul-americano preparou um grupo privado local para, pouco mais de 10 anos depois, estar apto a investir nas concessões do Brasil e se tornar o vencedor no leilão do aeroporto da capital nacional. 191 MCKINSEY&COMPANY; BDO TREVISAN; DEMAREST; ROTHSCHILD. "Reestruturação da Infraero – Modelos alternativos de configuração empresarial". Rio de Janeiro: McKynsey&Company, BNDES, Outubro de 2010, p. 10. 192 Participação público-privada (PPP) refere-se a todos os contratos de concessão entre um ente público e um ente privado selecionado por critérios publicizados e que tem como finalidade a prestação de serviço público em situações em que a receita tarifária projetada é julgada insuficiente para a viabilidade financeira do negócio. Nesses contratos, a parte privada é encarregada de um objeto definido e por tempo limitado para empreender, implantar, operar e/ou manter um empreendimento com apoio da parte pública que pode variar desde a segurança e garantia das condições de exploração do negócio até o aporte de recursos para viabilidade financeira (configurando-se como PPP Administrativa quando a parte privada opera e é remunerada pela parte pública pelos serviços prestados, ou PPP Patrocinada, quando a parte pública transfere recursos adicionais à parte privada além da receita tarifária do negócio). 136 participantes da elaboração do Modelo da ANAC finalmente implantado, a EBP seria inicialmente contratada pelo Governo para desenvolver essa última modalidade, e elaborar o edital de PPP do Terminal 3 do Aeroporto de Guarulhos-SP em maio de 2011193. O consórcio adjudicado para esse trabalho seria informado, duas semanas depois, de que o objeto do trabalho mudara: tratava-se então de modelar a concessão dos três aeroportos da 2a rodada: Guarulhos-SP, Viracopos-SP e Brasília-DF. A qual planejamento essa mudança de trajetória obedecia?

O modelo que finalmente foi implantado não foi nenhum daqueles três detalhados a pedido do Governo no âmbito do “Estudo para Infraero” de 2010. Estes supunham ou a abertura de capital da estatal, que não ocorreu, ou a concessão de componentes de um aeroporto da Infraero, o que vimos foi apenas o ponto inicial da modelagem da EBP. O modelo de fato implantado de participação minoritária da estatal em concessão de aeroportos isolados e depois em blocos, já estava parcialmente pensado, de alguma forma, dentre os 7 modelos estudados em 2010, representado pelo modelo híbrido AB conforme se pode ver na figura a seguir.

Figura 51: Modelos de reestruturação da administração da infraestrutura aeroportuária - McKinsey (2010)

À luz dos acontecimentos que se seguiram a esse estudo de 2010, podemos concluir que a decisão tomada pelos planejadores tenha sido autônoma, no sentido de que não apenas ratificou uma

193Além de Guarulhos, o “Estudo para Infraero” concluíra que somente Galeão poderia ser objeto de PPP sem aporte de recursos públicos para realizar os investimentos necessários. Os demais cinco casos estudados dependiam de aportes da União. 137 recomendação de consultoria contratada, e também criativa, dado que o Poder Concedente aproveitou dos modelos estudados para implementar cenários regulatórios cambiantes ao longo do tempo.

Assim, ao adotar sequência de leilões em que a cada ocasião eram alteradas as regras de participação da Infraero (de 49% obrigatórios na 2a e 3a rodadas para nenhuma participação a partir da 4a rodada), e também dos concessionários privados (os vencedores da 2a rodada não puderam participar da 3a rodada, mas nesta foi permitido a um mesmo interessado ser adjudicado em mais de um aeroporto em regiões diferentes), inclusive alterando o objeto licitado a cada rodada (a partir da 5 a rodada passou-se de aeroportos isolados para blocos regionais) a própria relação entre Poder Concedente e mercado de administradores de infraestrutura aeroportuária era condicionada por esse planejamento cambiante e casuístico: era “um modelo sem modelo”.

O “Estudo para Infraero” conclui que as recomendações de melhorias internas de organização, governança e gestão, assim como adequação contábil, poderiam e deveriam ser adotadas pela empresa imediatamente, independentemente do modelo de reestruturação a ser escolhido (A1, A2 ou B1). A reestruturação da empresa deveria estabelecer um Escritório de Gerenciamento da Transformação com equipe dedicada de 35 a 50 pessoas, contando com recursos de 100 a 150 milhões de reais (2008), em prazo de aproximadamente 2 a 3 anos. Em seu diagnóstico, a consultoria evidencia a falta de planejamento “acima” da Infraero, ao afirmar que “o direcionamento e prioridades estratégicas governamentais para o setor aéreo brasileiro como um todo e, consequentemente, da Infraero em particular, não estão formalizados, o que dificulta sua atuação”194. Uma das primeiras recomendações que faz é reforçar o Conselho de Administração da Infraero como instituição de tomada de decisões estratégicas. Será para esse conselho que será indicado Antonoaldo Neves, ex-McKinsey, que depois transitaria por Azul e TAP, e seria um dos atores chave na definição do “modelo brasileiro”.

* * *

Como anunciado no início desta dissertação, reconhecemos a ocasião do primeiro leilão do aeroporto de São Gonçalo do Amarante-RN como um “ensaio geral” do novo modelo, mais no sentido de testar o instituto do leilão de aeroporto do que do resultado real de investimento em infraestrutura aeroportuária ou da promoção de alguma concorrência que traria ao setor. Naquele caso, tratava-se de um novo aeroporto na periferia da rede que viria a substituir paulatinamente a demanda de um aeroporto público existente, sem ainda mexer sensivelmente na estrutura operacional e financeira da Infraero.

194 MCKINSEY&COMPANY, Op. cit., p. 2. 138

Por outro lado, reconhecemos também que o instituto da concessão pública de infraestrutura aeroportuária não era novidade no país, uma vez que os aeroportos estaduais transferidos pela União ao estado da Bahia (aeroportos de Porto Seguro, Lençóis e Teixeira de Freitas) já haviam sido concedidos à administração privada desde 2000. O mesmo caso de transferência interfederativa seguida de concessão seria encontrado em Juiz de Fora-MG. Nestes casos, no entanto, além de se tratar de aeroportos periféricos, são também todos aeroportos sob responsabilidade estadual e não federal, ou seja, não dependiam nem contribuíam para o desempenho da Infraero, e tinham participação muito pequena no mercado doméstico. Com efeito, podemos comparar esses casos de aeroportos federais transferidos à administração estadual com alguns dos casos estudados de políticas federais encontradas em outros países, como China, Alemanha ou França. Trata-se, no entanto, de exceções que confirmam a regra de dependência da RAN de aeroportos públicos federais administrados pela Infraero que seriam objeto de concessão pela União a partir de 2011.

Passamos, assim, a analisar os textos dos Editais de Concessão das 2a e 3a rodadas de leilões públicos, que viriam a conceder os aeroportos de Guarulhos-SP, Viracopos-SP e Brasília-DF em 2011, e Galeão-RJ e Confins-MG em 2013.

O modelo inscrito nos Editais de Concessão

Os leilões de concessão foram conduzidos pela ANAC com base nos Editais de Concessão, publicados em forma de minuta e depois de maneira definitiva até 4 meses antes da data de cada leilão. A documentação de referência aprovada pela ANAC foi desenvolvida pela Estruturadora Brasileira de Projetos (EBP) com consultoria de Leigh Fischer, e constituía-se de pacote composto por estudos de mercado, engenharia, ambiental, avaliação econômico-financeira e due dilligence contratual e trabalhista195. No entanto, é importante destacar que os estudos de referência não tinham caráter obrigatório ou vinculante à concessão, de maneira que eram tratados somente como informativos da expectativa do governo, devendo cada interessado desenvolver os seus próprios estudos e modelos, o que de fato fizeram.

Aliás, segundo pudemos apurar com mais de um participante naqueles leilões, ao elaborarem seus próprios estudos e modelos os interessados descobriram falhas e omissões graves nos estudos de referência do governo, levando a avaliações prejudicadas e conclusões incorretas, como a definição do valor mínimo de outorga no caso do Aeroporto de Guarulhos. Ainda que a decisão de investimento

195 A Estruturadora Brasileira de Projetos (EBP) foi apresentada no capítulo 2. A modelagem que proporcionou à ANAC foi remunerada pelos concessionários vitoriosos nos valores de 17,31 milhões de reais na 2 a rodada e 19,14 milhões na 3a rodada. Para esse trabalho, foi subcontratada a consultoria internacional Leigh Fischer. Os estudos foram disponibilizados pela ANAC aos candidatos ao leilão à época, porém não constam publicados na página da agência após a concessão. 139 por parte do parceiro privado tenha partido de informação mais confiável, apoiada em estudos próprios, destaca-se o fato de a decisão pública ter se baseado em informação possivelmente falha.

A análise apresentada neste item parte inicialmente das definições encontradas nos contratos de concessão dos aeroportos leiloados na 2a rodada de leilões (Guarulhos-SP, Viracopos-SP e Brasília- DF) e 3a rodada de leilões (Galeão-RJ e Confins-MG)196, estes sim vinculantes. Nos subitens mais adiante (Contribuição ao sistema federal e O modelo econométrico do Governo) são resgatados os estudos de referência para a tomada de decisão pública, em especial o modelo econométrico de projeção do período de concessão desses aeroportos.

O objeto de concessão em todos os contratos eram os “serviços públicos para a ampliação, manutenção e exploração da infraestrutura aeroportuária do Complexo Aeroportuário” em fases pré- definidas com investimentos específicos que viriam a condicionar o futuro de cada aeroporto e, eventualmente, se tornariam um dos aspectos dos editais a ser alterado nas concessões posteriores. Ao definir o objeto da concessão pública, excluía-se ao mesmo tempo “a prestação dos serviços destinados a apoiar e garantir segurança à navegação aérea em área de tráfego aéreo do Aeroporto”, cuja responsabilidade continuaria exclusivamente militar (Aeronáutica). A União, proprietária do patrimônio público da infraestrutura aeroportuária antes administrada por uma estatal, concedia a sua administração a empresas de propósitos específicos (SPE) e intitulava a ANAC como representante do Poder Concedente197. Essas sociedades de propósito específico deveriam constituir uma pessoa jurídica única, a Concessionária, cuja estrutura societária deveria respeitar a participação de 49% da Infraero e 51% do consórcio privado vencedor do leilão de concessão. Esse consórcio privado, por sua vez, deveria estar composto por, no mínimo, 10% de um operador privado internacional com experiência no setor, para os aeroportos da 2a rodada, e 25% para os aeroportos da 3a rodada, experiência que seria garantida pela exigência de ter sob sua responsabilidade a administração de aeroportos com fluxo médio anual de 5 milhões de passageiros no caso da 2a rodada e 12 a 22 milhões de passageiros no caso da 3a rodada de leilão198.

A concessão teria duração pré-definida de 20, 25 e 30 anos para os aeroportos de Guarulhos, Brasília e Viracopos, respectivamente. Na terceira rodada, o prazo de concessão foi fixado em 25 anos para o aeroporto do Galeão-RJ e 30 anos para Confins-MG, conforme resumido na tabela a seguir.

196 Contratos de Concessão disponíveis na página da ANAC: https://www.anac.gov.br/assuntos/paginas-tematicas/concessoes/aeroportos-concedidos (Acesso em julho/2020). 197 Passaremos a nos referirmos simplesmente a concessionário, em lugar de SPE, e a ANAC, em lugar de Poder Concedente. 198 12 milhões PAX/ano para Confins e 22 milhões PAX/ano para Galeão. 140

Tabela 9: Prazos de concessão dos aeroportos da 2a e 3a rodadas de leilões

Aeroporto Concedido Prazo de duração Ano de início Ano de término da concessão (anos) da concessão da concessão Guarulhos-SP 20 2012 2031 Viracopos-SP 30 2012 2041 Brasília-DF 25 2012 2036 Galeão-RJ 25 2014 2038 Confins-MG 30 2014 2043

Na prestação do serviço objeto do contrato de concessão, era facultado ao concessionário a geração de receitas tarifárias e não-tarifárias. As tarifas aeroportuárias, no entanto, permaneceriam tendo seus tetos fixados pelo Poder Concedente, restringindo a atuação do concessionário a eventuais descontos previamente aprovados pela ANAC. Na prática, o teto de tarifas aeroportuárias (tarifa de embarque, cobrada de passageiros, e tarifas de pouso, permanência, armazenagem e capatazia, cobradas das companhias aéreas) fixado pela agência representa um preço administrado quase rígido, com alguma variação admitida conforme a incidência de fatores de desempenho do concessionário, chamados Fator X e Fator Q, que juntos formariam os Parâmetros da Concessão explicados mais adiante.

Com isso, o incentivo à eficiência do concessionário privado estava contido nesses fatores de ajuste da tarifa aeroportuária, enquanto que a expectativa de desenvolvimento da infraestrutura aeroportuária pela administração privada teria de contar com financiamento público associado a acumulação de capital lastreada na geração de receitas não-tarifárias a partir da exploração comercial do sítio aeroportuário concedido, com a implantação, operação e posterior transferência à União de projetos associados. Dessa forma, as receitas não-tarifárias poderiam ser obtidas da exploração comercial desde aluguéis de lojas isentas de impostos em espaços internacionais dentro dos aeroportos (Free Shop) até centros comerciais inteiros (shoppings centers), hotéis, edifícios garagem ou quaisquer outras benfeitorias proporcionadas pelo concessionário dentro do sítio aeroportuário segundo sua estratégia comercial própria.

Por sinal, o que distinguia de partida o caso brasileiro de outros casos internacionais era a ausência de obrigação do concessionário privado de se limitar às definições prévias de um plano diretor aeroportuário estabelecido pelo poder público. Assim, um dos traços característicos do “modelo brasileiro” seria justamente transferir ao concessionário privado a autoria de um “quase” plano diretor aeroportuário próprio, através dos instrumentos do Plano de Melhorias da Infraestrutura (PMI) e do Plano de Gestão da Infraestrutura (PGI), duas das principais obrigações contratuais do concessionário. 141

O PMI deveria ser elaborado na forma de um inventário das condições da infraestrutura recebida pelo concessionário, seguido de um Projeto Básico de Engenharia199 a ser entregue para aprovação expressa da ANAC em até 90 dias após a data de eficácia do contrato de concessão200. Constituía-se no marco decisivo para a implantação das obras de investimento já definidas nos Editais de Concessão pela ANAC e que deveriam estar em operação em até 22 meses (Fase I-B) e 24 meses (Fase I-C), antes dos Grandes Eventos de 2014 e 2016.

A esta primeira fase de curto prazo o Edital de Concessão chamou Fase I, que se subdividiria em Fases I-A, I-B e I-C, configurando a primeira uma transição operacional e de gestão da Infraero para o novo concessionário, e as fases I-B e I-C como etapas de adequação e ampliação da capacidade operacional do aeroporto no curto prazo através da implantação das melhorias pré-definidas nos Editais de Concessão. Como veremos mais adiante, um dos pontos sensíveis do modelo de concessão de aeroportos foi considerar uma transição de responsabilidades da Infraero para o concessionário durante o período de concessão que incluía, dentre outras coisas, a conclusão de obras públicas em andamento em cada aeroporto.

Enquanto o PMI constituía-se no compromisso de curto prazo do concessionário, o PGI por sua vez tinha escopo mais abrangente e de médio prazo, e deveria ser submetido à aprovação periódica da ANAC a cada 5 anos ou quando fosse alterado o planejamento a critério do concessionário, oportunidade em que o Poder Concedente poderia interceder e arbitrar o caminho do desenvolvimento de cada aeroporto caso a caso. O texto do contrato, no entanto, previa somente algumas obrigações de investimento para essa Fase II da Concessão, as quais visavam essencialmente a manutenção do nível de serviço201 no atendimento ao crescimento de demanda conforme “gatilhos” de investimentos pré-determinados.

Em outras palavras, era nas exigências expressas no PMI que o Poder Concedente condicionava a finalidade do investimento em cada aeroporto, ocupando-se de definir em detalhe parâmetros e características técnicas, como a quantidade de posições de contato para embarque de passageiros (portões equipados com pontes de embarque).

Por outro lado, a abertura dada para a elaboração do PGI transferia a autoria do planejamento aeroportuário de médio prazo ao concessionário. Soluções de relacionamento do aeroporto com seu

199 Nomeado “Anteprojeto ANAC”, contendo todas as definições técnicas das obras de adequação e ampliação da capacidade dos aeroportos em todas as suas infraestruturas, como sistemas de pistas, pátios, terminais, acessos e estacionamentos, bem como na infraestrutura de utilidades, com comprovação de atendimento dos parâmetros mínimos dos níveis de serviço da IATA estipulados pelo Edital de Concessão. 200 As datas de eficácia dos contratos de concessão dos aeroportos estão listadas na Tabela 9. 201 O “nível de serviço” de um aeroporto é objeto de um padrão internacional estabelecido pela IATA para categorizar o atendimento dado pelos aeroportos às necessidades operacionais, parametrizando cada processo operacional em termos de capacidade e métricas de indicadores de desempenho de forma a garantir padrões mínimos de disponibilidade de capacidade do aeroporto. 142 entorno, integração com outros modos de transporte (além de viário de acesso provido pelo poder público), e outras incidências da infraestrutura aeroportuária sobre o espaço urbano e interurbano passavam de mão, do público para o privado, sem que questões herdadas do período militar estivessem solucionadas, ou minimamente equacionadas. Ao não constarem nas previsões de obrigações contratuais, essas questões permaneceriam fora do horizonte de preocupações dos planejadores, evidenciando uma falha de regulação do modelo. Como exemplo eloquente dessa falha do modelo, aponta-se o caso da integração do Aeroporto Internacional de Guarulhos com a malha ferroviária da Região Metropolitana de São Paulo, fosse com uma nova linha dedicada ao aeroporto, fosse com a integração à malha da CPTM.

A integração modal é uma premissa básica do planejamento de transportes, e que de certa forma tinha seus princípios previstos no planejamento oficial, inclusive no Relatório McKinsey. Mesmo assim, somente após a Fase I seria finalmente construída a Estação Aeroporto na linha 13 da CPTM (Brás- Aeroporto), inaugurada em março de 2018. Sua implantação não havia sido prevista no Edital de Concessão nem no PMI, de maneira que o projeto implantado não reservou espaço adequado para a integração física do fluxo de passageiros e usuários aos terminais, resultando numa implantação desfavorável à integração, em local afastado dos terminais de passageiros, demandando uma nova modalidade de transporte a ser implantada para conectar a linha férrea aos terminais do aeroporto202.

Em se tratando de uma concessão pública por tempo determinado, a administração desses aeroportos passava a estar sob responsabilidade de empresas privadas de propósito específico que passariam a dividir com o poder público a gestão da infraestrutura do setor. Nesse sentido, as responsabilidades compartilhadas entre poder público e empresas privadas ficam mais evidentes quando examinamos o capítulo de “alocação de riscos” dos contratos de concessão, no qual fica definido que caberia ao poder público, entre outros pontos, os custos relacionados aos passivos trabalhistas, previdenciários, fiscais, ambientais, cíveis e outros anteriores ao término da Fase I-A. Nos termos definidos para essa fase, aliás, estabelecia-se um mecanismo de transição de carreira para os funcionários da Infraero lotados nos aeroportos concedidos, sendo-lhes facultado migrar para outras unidades da Infraero ou da administração pública direta, ou então permanecer no aeroporto em novo contrato de trabalho com a concessionária, saindo do regime público. Neste caso, era prevista um estágio anterior de 3 a 6 meses durante a Fase I-A, no qual os empregados da Infraero alocados no aeroporto continuariam na condição de contratados da Infraero, mas cedidos à Concessionária, sendo que a Infraero deveria ser reembolsada por todos os custos e encargos trabalhistas e previdenciários relacionados aos empregados alocados no aeroporto durante esse estágio.

202 Até 2020 essa integração era feita de forma precária por serviço de ônibus intermitente providos pelo concessionário do Aeroporto. A ANAC aprovou em 2019 a construção de um sistema APM (Automated People Mover) em via elevada que deverá conectar a estação de trem aos terminais de passageiros, a ser executado pelo concessionário com abatimento dos seus custos dos pagamentos da outorga de concessão. 143

Na prática, retardava-se a demissão de grande parte dos funcionários da Infraero, ou mesmo impedia- se que ocorresse de qualquer maneira, uma vez que parte desses funcionários sem função nos aeroportos concedidos seria transferida para outras unidades da Infraero, ou mesmo para outros órgãos da administração direta da União. Em contrapartida, os chefes e outros funcionários chave na operação dos aeroportos eram seletivamente contratados pelas concessionárias, num processo paulatino e errático de construção da nova experiência em administração aeroportuária no país, que ainda poderá levar anos para completar-se.

Da forma como foi feita essa transição, reconhece-se a determinação do regime do funcionalismo público federal sobre a definição do modelo brasileiro de concessão aeroportuária. Entrevistados para esta pesquisa demonstraram percepção comum de que um dos fatores preponderantes na escolha de alto nível (pela SAC, Casa Civil e Presidência) teria sido a preservação de empregos dos funcionários lotados na Infraero. Como dito anteriormente, segundo as regras do funcionalismo público, aos funcionários previamente lotados em um aeroporto concedido seria oferecida a oportunidade de passar por processo seletivo para contratação na nova concessionária ou, alternativamente, serem relocados para outra unidade da administração pública direta, não necessariamente na própria Infraero. Essa última foi a alternativa mais comum para a maioria do quadro funcional da Infraero, o que acentuou o seu deficit operacional e, secundariamente, significou uma descontinuidade na formação técnica do conhecimento e experiência aeroportuária no país, ao retirar dos aeroportos concedidos esses profissionais experientes.

Outro ponto sensível da transição entre administração pública e privada se deu na continuidade das obras de melhorias da infraestrutura em andamento sob responsabilidade da Infraero. Como ficou demonstrado, a interrupção da trajetória da administração de infraestrutura aeroportuária no país foi decidida à revelia do planejamento em andamento na estatal, o que significou na prática que muitas intervenções nos aeroportos concedidos encontravam-se incompletas e com contratos públicos em aberto. Também é verdade que o histórico da Infraero em abandonar projetos de ampliação repetidas vezes contribuía para o desprezo estatal pelo trabalho técnico contratado pela empresa.

No entanto, alguns desses projetos já haviam se convertido em frentes de obras em andamento, cujos prazos de término previstos eram seguidamente descumpridos e reprogramados, com novos aditivos de prazos e valores, extrapolando as datas dos leilões e inclusive do início do período das concessões. No fim das contas, este aspecto de descontrole do andamento das obras de melhorias dos aeroportos pela administração federal era mais um dos componentes do “problema” a resolver.

Assim, o término das obras em andamento nos aeroportos foi inicialmente planejado como de responsabilidade pública, por meio da execução integral dos contratos de obras da Infraero ainda em aberto, a ocorrer concomitantemente ao andamento das Fases I-A e I-B das concessões. Em paralelo, 144 o concessionário deveria encarregar-se do projeto e obra das intervenções previstas nos respectivos PMI. Se na 2a rodada os novos concessionários souberam contornar os problemas criados por essa transição imperfeita, muitas vezes assumindo o ônus de alterar uma obra em andamento, na 3 a rodada de leilões esse modelo atingiria um litígio manifesto. Em Confins-MG, a nova concessionária acionaria a ANAC com o intuito de revisão de valores devidos das suas obrigações contratuais, alegando que se viu obrigada a encampar e refazer as obras deixadas pela Infraero em condições inadequadas à operação do aeroporto.

Revelava-se, com isso, a fragilidade e artificialidade da parceria público-privada forçada pelo modelo brasileiro de 51% SPE privada e 49% Infraero, em que o acionista privado majoritário levava ao Poder Concedente um litígio com o acionista público minoritário. Também ficava evidente o caráter dependente e passivo da Infraero dentro da Concessionária, uma vez que não participava das decisões de investimentos e condução da empresa, ao passo que arcava com praticamente a metade dos seus custos nos anos iniciais da concessão. Por sinal, esse cronograma era conhecido do Poder Concedente à época do leilão, e a modelagem anterior ao pregão já o previa.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o resultado negativo nos primeiros anos foi pensado para ser custeado meio a meio pelo lado privado e público da concessionária, sendo que ambos eram bancados por financiamento igualmente público, via BNDES. O funding do novo negócio de aeroportos privados no Brasil era garantido pela receita futura da operação (composta, como visto, por receita tarifária e não-tarifária) que cobriria os empréstimos públicos via BNDES com taxas de juros de 7,4% a.a. pagos semestralmente ao longo do prazo de empréstimo de 180 a 240 meses203. O valor total emprestado pelo banco poderia cobrir até 70% dos investimentos em cada aeroporto; dado que o financiamento do BNDES era condicionado a conteúdo nacional, e sabendo que parte dos equipamentos especiais de aeroportos (pontes de embarque, Sistemas de Tratamento de Bagagens, e outros) são itens importados, os estudos de viabilidade previram um financiamento de 63% via BNDES, muito próximo do realmente executado204. O quadro abaixo resume o valor dos empréstimos do BNDES a cada aeroporto selecionado205.

203 A taxa de juros aplicada no financiamento público era: remuneração básica do BNDES + Risco de Crédito + TJLP + 1%, equivalente a: 0,9+0,5+5,0+1,0=7,4% a.a., segundo informado pelo BNDES em https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/financiamento/produto/leiloes-infraestrutura/aeroportos-gru-bsb-vcp, consulta em março 2020. 204 “Relatório 4 – GRU - Avaliação Econômico-Financeira”. Estudos de Viabilidade Técnico, Econômica e Ambiental para Concessão do Aeroporto Internacional de Guarulhos. EBP e Leigh Fischer, outubro 2011. 205 Elaborado a partir de informações divulgadas pelo BNDES. Valor do investimento inferido a partir do valor do empréstimo e % de participação no investimento informados pelo BNDES. 145

Tabela 10: Resumo dos valores de empréstimos do BNDES aos aeroportos concedidos

Aeroporto Valor do Valor do Valor do Part. do Prazo (meses) beneficiado investimento empréstimo empréstimo LP investimento (%) (R$ bi) ponte (R$ bi) (R$ bi) Brasília-DF 1,31 0,49 0,8 61 180 Guarulhos-SP 5,44 1,2 3,48 64 180 Viracopos-SP 2,4 1,2 1,5 63 180 Confins-MG 0,98 0,41 0,51 52 240 Galeão-RJ 2,31 1,11 1,62 70 240 Total/ Média 12,44 4,4 7,91 63,56

Com isso, as características do modelo apontam para uma solução contraditória entre preferência pela liderança do parceiro privado e custos elevados ao sócio público. Como já ficou dito, isso é observado na participação acionária da Infraero, limitada a 49% da concessionária, o que lhe imputava praticamente metade dos custos correntes ao mesmo tempo em que a excluía do processo decisório da governança interna das novas empresas. Nesse período estudado fica evidente a contradição de a Infraero continuar sendo o maior operador aeroportuário do país, com 49% dos cinco aeroportos centrais concedidos naquelas rodadas de leilões, mais os outros 61 aeroportos públicos da RAN, e ainda assim não ter poder de conduzir o processo decisório do setor. Ao aumentar o deficit da empresa pública de forma tão manifesta, ao mesmo tempo em que a alijava do processo decisório, é de se considerar que essa seria uma das características essenciais do modelo, não uma externalidade.

Ao final de contas, com o financiamento público via BNDES, tanto no empréstimo-ponte como na linha de crédito de longo prazo de 60 a 70% do investimento que, na prática, contribuiria com fluxo de caixa para custear o pagamento das elevadas outorgas comprometidas nos leilões de concessão (tratadas mais adiante), reconhece-se como o tão buscado investimento privado seria, em grande parte, um atalho institucional que o modelo forjou para viabilizar a expansão de capitais no setor a partir de aumento dos gastos públicos.

Estrutura tarifária Estrutura tarifária Passamos agora a detalhar a estrutura tarifária a regrar a remuneração operacional do concessionário e, indiretamente, a contribuir com o financiamento do sistema aéreo como um todo, segundo definido no modelo brasileiro. Trataremos das componentes da tarifa aeroportuária, por um lado, e depois da contribuição dos concessionários ao sistema por meio da outorga onerosa e contribuições anuais de parcela da receita bruta, destacando a participação do poder concedente no processo.

Como dito anteriormente, as tarifas aeroportuárias cobradas pelo concessionário seriam reajustadas pelo IPCA, dentro de uma faixa pré-definida pela ANAC, e sobre elas (com exceção das tarifas de armazenagem e capatazia) incidiriam dois fatores de ajuste derivados do desempenho do concessionário, os fatores X e Q, e um adicional tarifário a contribuir com o Fundo Nacional da 146

Aviação Civil (FNAC). O primeiro Fator X é o fator de produtividade calculado segundo metodologia estabelecida pela ANAC no Anexo 11 dos Contratos de Concessão, e que deveria resultar num eventual favorecimento dos usuários com redução das tarifas a cobrar em função dos ganhos de produtividade no setor. O desempenho satisfatório do concessionário que cumprisse com o seu cronograma de investimentos poderia minorar esse fator redutor até que se tornasse nulo. De todo modo, o Fator X deveria ser nulo nos dois primeiros anos das concessões, passando a incidir sobre o reajuste tarifário a partir do 3o ano obedecendo a equação a seguir:

X = VR * [1- (TP+PE)] sendo:

X: Fator de Produtividade a multiplicar o reajuste tarifário passível de cobrança por cada concessionário VR: valor de referência numérico, calculado antecipadamente para cada grupo de aeroportos integrantes de cada rodada de leilão TP: redução percentual devido à ampliação do terminal de passageiros PE: redução percentual devido à ampliação de posições de estacionamento

A metodologia de cálculo do Fator X segue o índice de Tornqvist, no qual se busca medir a razão entre a variação da produção ponderada pela receita e a variação de custos. O paradigma do regulador era o da variação anual da produtividade total de fatores (PTF), cuja base de cálculo eram os aeroportos sob administração da Infraero (aqueles listados na Tabela 6: Resultado dos 66 aeroportos do Sistema Infraero em 2009)206. Como “produtos” da atividade de administração aeroportuária, o regulador considerava os dados de movimento de passageiros domésticos e internacionais e o número total de movimentos (pousos e decolagens, domésticas e internacionais) de 2009 a 2010 (no caso da 2a rodada) e até 2012 (no caso da 3a rodada). Como “receitas” e “custos”, o regulador tomava as informações publicadas pela Infraero das atividades relacionadas a embarque, pouso e permanência, não sendo consideradas informações de armazenagem, capatazia, navegação aérea e atividades comerciais desempenhadas pela Infraero no período anterior207.

A equação final utilizada pela ANAC para calcular o Fator X é apresentada na figura a seguir.

206 No cálculo do Fator X da 3a rodada (aeroportos do Galeão-RJ e Confins-MG) foram retirados da base de dados de aeroportos da Infraero aqueles já concedidos na 2a rodada (Brasília-DF, Viracopos-SP e Guarulhos-SP). 207 Um dos componentes tarifários pagos pelo concessionário era o adicional FNAC, que foi posteriormente fixado no valor de 18 dólares, independentemente da tarifa praticada e dos reajustes decorrentes do Contrato de Concessão. Resolução alterada pela Decisão n.193 de 22 de dezembro de 2016. Em ANAC. “Anexo 4 do Contrato de Concessão do Aeroporto Internacional de Brasília – Tarifas”. Contrato de Concessão do Aeroporto Internacional de Brasília, revisão de 2019. 147

Figura 52: Equação reduzida de cálculo do Fator X Na equação reduzida do Fator X, “Si,t” representa a participação da receita do produto “i” no total da receita do período “t”, “Yi,t” representa a quantidade do produto e “Ct” representa o custo total no mesmo período. Uma vez calculado o ganho de produtividade da rede aérea nacional nos aeroportos selecionados, foi admitida a média geométrica nos anos do período anterior, resultando no valor porcentual de 4,12% e 2,85% (2a e 3a rodadas, respectivamente). Considerando essas taxas de ganho de produtividade no setor para o período anterior, o regulador admitiu a repartição desse ganho pela metade, considerando uma parte a ser cedida ao concessionário, e a outra parte aos usuários, na forma de um “aumento evitado das tarifas”. Segundo o regulador, tal medida evidenciaria um “tratamento com equidade dos agentes envolvidos no processo de reajuste tarifário”208. A tabela a seguir lista os percentuais definidos para cada um dos 5 aeroportos concedidos entre 2011 e 2013.

Tabela 11: Valores de Fator X para os aeroportos concedidos (2a e 3a rodadas)

Aeroporto Valor de % TP Embarque % TP % PE Posições de % PE Posições Referência (redução percentual Desembarque contato Remotas devido à ampliação do (redução (redução (redução terminal de passageirospercentual devido percentual devido percentual devido - Embarque) à ampliação do à ampliação de à ampliação de terminal de posições de posições de passageiros - estacionamento – estacionamento – Desembarque) a cada ponte de a cada posição embarque) remota) Aeroporto de 2,06 6% (a cada 100 pax 4,5% (a cada 90 1,67% 0,83% Brasília-DF doméstico adicional) pax doméstico adicional) Aeroporto de 2,06 3% (a cada 75 pax 3% (a cada 75 pax 1,15% 0,575% Viracopos-SP adicional) adicional) Aeroporto de 2,06 3% (a cada 90 pax 3% (a cada 110 1,25% 0,625% Guarulhos-SP internacional adicional) pax internacional adicional) Aeroporto do 1,42 - - 2,63% 1,32% Galeão-RJ Aeroporto de 1,42 3% (a cada 85 pax 3% (a cada 85 pax 2,86% - Confins-MG doméstico adicional) doméstico adicional)

O Fator Q deriva do indicador de qualidade dos serviços, definido no Anexo 2 – Plano de Exploração Aeroportuária com métrica que se relaciona com os parâmetros de dimensionamento da infraestrutura aeroportuária definidos pela IATA e adotados pela ANAC como a única forma de regulação do

208 ANAC. Contrato de Concessão do Aeroporto Internacional de (Brasília/Campinas/Guarulhos), Anexo 11, Fator X PEA, p. 4. 148 projeto de adequação e ampliação dos aeroportos. Esse Fator Q resulta num índice que congrega alguns indicadores de qualidade do serviço assim medidos, variando dentro de faixa pré-definida de descontos de -7,5% a bônus de até 2%209, e relacionados em geral a:

• Serviços diretos (fila de inspeção de segurança) • Disponibilidade de equipamentos (transporte de passageiros, bagagens e pontes de embarque) • Instalações Lado Ar (Atendimento em pontes de embarque)210 • Pesquisa de Satisfação de Passageiros (com quesitos para sinalização dentro do terminal, qualidade de restaurantes, limpeza dos banheiros e disponibilidade de rede wi-fi, conforto termoacústico e facilidade para entrar e sair de veículos no meio-fio211) Havendo calculado os fatores de produtividade e qualidade do serviço (Fator X e Fator Q), o cálculo tarifário resulta da soma de duas parcelas:

Pt = At + Bt Onde:

Pt: corresponde às tarifas aeroportuárias passíveis de reajuste no período

At: Parcela A, corresponde à incorporação do Fator de Produtividade (Fator X) aferido no período, dada pela equação abaixo:

At = At-1 * (IPCAt/IPCAt-1)*(1-Xt)

sendo IPCA o Índice de Preços ao Consumidor Ampliado, publicado pela FGV no mês anterior ao reajuste, e:

Bt: Parcela B, corresponde à incorporação do Fator de Qualidade do Serviço (Fator Q) aferido no período, dada pela equação abaixo:

Bt = At*(-Qt)

Mas como esses novos fatores criados pelo modelo brasileiro para induzir o bom desempenho dos operadores aeroportuários influenciariam o setor?

Com o fim de testar a relevância dos fatores X e Q no comportamento dos agentes, e assim avaliarmos o planejamento inscrito no “modelo brasileiro” aqui estudado, buscamos medir o impacto na variação do valor das tarifas aeroportuárias que os fatores X e Q acarretariam para os aeroportos concedidos em comparação com a operação da Infraero. Como já afirmamos anteriormente, as tarifas

209 Como resultante, o concessionário poderia ser bonificado e até 2% ou penalizado em até -7,5% do valor teto da tarifa fixado pela ANAC em função do Fator Q. No caso de persistência de falhas de qualidade do serviço por 3 meses seguidos ou 6 meses em um dado ano, a penalização poderia ser acrescida em 50%, mas sempre inferior ao limite de -7,5% de penalidade. 210 No caso dos aeroportos da 3a rodada, aplicava-se de início também a disponibilidade de posições de estacionamento e fluxo no sistema de pistas, o que foi eliminado após a decisão n. 205 de 20/12/2017, quando os quesitos já estabelecidos para os aeroportos da 2a rodada foram estendidos aos aeroportos da 3a rodada. 211 Estacionamento, disponibilidade de carrinhos de bagagem e cordialidade de funcionários influiriam no Fator Q dos aeroportos da 3a rodada, mas foram eliminados após a decisão n. 205 de 20/12/2017, quando os quesitos já estabelecidos para os aeroportos da 2a rodada foram estendidos aos aeroportos da 3a rodada. 149 aeroportuárias praticadas pelos concessionários (e Infraero) partem de um patamar de preço administrado na data do leilão212 para gradualmente oscilar em função da variação geral de preços. Considerando que a definição dos preços das tarifas aeroportuárias nos Contratos de Concessão leva embutido um reajuste anual automático pelo IPCA, restariam garantidas de partida as condições iniciais da concessão sem necessidade de reequilíbrio financeiro dos contratos. Assim, vamos comparar a variação além do IPCA do valor da tarifa de embarque doméstico entre os 5 aeroportos concedidos e o Sistema Infraero no período 2011-2019, como evidência do desempenho dos concessionários resultante de conduta induzida pela estrutura de mercado desenhada pelo modelo brasileiro213.

Se considerarmos o IPCA no início do período selecionado (2011) como base 100, observaremos uma variação de 53,19% até o final do período (2019), equivalente a 6,65% ao ano em média. O gráfico da figura a seguir apresenta a variação percentual dos preços da taxa de embarque doméstico, e representa os patamares de preços do IPCA e das tarifas de embarque doméstico dos 5 aeroportos concedidos e do Sistema Infraero, assumindo 2011 como base 100.

212 E desde 2017 para a Infraero, sendo que a partir de 2019 a estatal passaria a poder fixar ela mesma as suas tarifas aeroportuárias dentro dos limites marcados pela Resolução 508 da ANAC, de 14 de março de 2019. 213 Assumimos que a tarifa de embarque doméstico é uma proxy satisfatória para depreender o comportamento de cada concessionário a partir da incidência dos fatores de desempenho. Ademais, os testes mostraram que a variação da tarifa de embarque internacional segue o mesmo perfil do embarque doméstico. A seleção do período 2011-2019 foi feita em função dos dados disponibilizados pela ANAC em planilhas CSV em https://www.anac.gov.br/dadosabertos/areas-de- atuacao/operador-aeroportuario/tarifas-aeroportuarias-tetos-tarifarios-e, consulta em 10 de fevereiro de 2020, complementados pelos dados publicados pela agência através das decisões de reajuste tarifário (período 2012-2017) e como revisão compilada dos Anexos 4 dos contratos de concessão (a partir de 2019). 150

Figura 53: Variação percentual do preço de Taxa de Embarque Doméstico em aeroportos concedidos e Infraero 2011-2019 (2011 = Base 100) Destaca-se que até 2015 não incidiam os fatores de desempenho, de maneira que os valores das taxas de embarque doméstico eram os mesmos para todos os aeroportos da 2a rodada. Além disso, a variação em termos reais acima do IPCA é mais acentuada após 2017. Por esse motivo, dividiremos nossa análise em dois subperíodos (2011-2016) e (2017-2019), anulando a variação do índice de preços e evidenciando somente a variação do valor das tarifas de embarque doméstico além do IPCA, conforme ilustrado nos gráficos das próximas duas figuras. 151

Figura 54: Variação percentual do preço de Taxa de Embarque Doméstico além do IPCA em aeroportos concedidos e Infraero (2011-2016) No subperíodo 2011-2016 podemos ver como quase todos os operadores oscilaram negativamente em relação ao IPCA214, isto é, suas tarifas de embarque doméstico arrecadavam proporcionalmente menos do que antes do início das concessões. Desses, o pior desempenho era o do Sistema Infraero, do qual já haviam sido subtraídos os aeroportos concedidos, enquanto os demais aeroportos eram hierarquizados segundo o desempenho dos seus cronogramas de investimentos. Ou seja, dado que o Fator Q era quase nulo naqueles primeiros anos215, os aeroportos mais eficientes na execução das obras do PMI conseguiam minorar o impacto do Fator X, com Guarulhos à frente.

No entanto, no subperíodo subsequente ilustrado na figura a seguir, marcado por um forte reajuste tarifário em 2017, percebemos uma mudança de comportamento dos operadores aeroportuários. O Sistema Infraero deixa de ser o último colocado para se converter no operador com maiores tarifas de embarque doméstico entre 2017 e 2019. Isso poderia significar um esboço de recuperação do caixa da estatal, enquanto por outro lado ficam mais claras as diferenças entre os aeroportos concedidos. Pela ordem, vemos o Aeroporto de Guarulhos como o que menos sofreu reduções de tarifa devido aos fatores de desempenho, seguido do Aeroporto do Galeão-RJ, Confins-MG, e por último os aeroportos de Brasilia-DF e Viracopos-SP.

214 Exceção seja feita aos 3 aeroportos da 2a rodada de leilões (Brasília-DF, Viracopos-SP e Guarulhos-SP) que obtiveram um ganho real de 0,03% sobre o IPCA em 2014. 215 Apenas o Aeroporto de Brasília-DF teve incidência real do Fator Q no ano de 2015, no valor de -0,41%. 152

Evidenciados os efeitos dos fatores de desempenho na conduta dos operadores aeroportuários, indaga- se qual o efeito real desse desempenho operacional para o negócio de cada aeroporto. Ou melhor: qual a importância das tarifas aeroportuárias assim reguladas (dentre elas a tarifa de embarque aqui analisada) para as receitas totais dos concessionários? Na próxima seção, ao nos debruçarmos sobre o fluxo de caixa das empresas, interessa-nos em última instância conferir a contribuição ao sistema aéreo nacional que os aeroportos concedidos viriam a ter por meio do instituto do pagamento de percentual da receita bruta anual, além da quitação das parcelas do pagamento da outorga onerosa da concessão.

Contribuição ao sistema federal A concessão dos aeroportos centrais da rede teve como objetivo principal a geração de receitas à União. A arrecadação federal se daria de três formas: através da arrecadação de impostos federais, potencializados em função da expectativa de aumento da geração de receitas nos aeroportos, e também por meio dos pagamentos anuais da outorga onerosa comprometida nos leilões de concessão, e da contribuição variável incidente sobre a receita bruta de cada aeroporto. Essa contribuição era de 2% no caso de Brasília, 5% nos casos de Viracopos, Confins e Galeão, e 10% da receita bruta, no caso de Guarulhos. Caso a receita bruta excedesse o projetado pelo próprio concessionário (e informado à ANAC por meio do PGI já tratado anteriormente), essas alíquotas poderiam ser revistas para 4,5%, 7,5% e 15%, respectivamente, a incidir sobre a receita excedente. A outorga onerosa, por sua vez, foi proposta em leilão de viva voz pelo próprio concessionário, e seus valores ficaram definidos conforme anotado na tabela a seguir. O seu pagamento foi previsto em base anual, a ser iniciado no 2° ano e distribuído ao longo do período de concessão.

Tabela 12: Valores de lance mínimo, outorga e CAPEX previsto até 2016 para os aeroportos concedidos (R$ bilhões, 2011 constante)

Valor de Valor da Valor arrecadado % CAPEX/ Valor de CAPEX lance outorga previsto em Arrecadação previsto em mínimo (R$ onerosa (R$ Ágio de modelo até 2016 Federal Modelo até 2016 Aeroporto bi) bi) leilão (%) (R$ bi) (2011-2016) (R$ bi) Guarulhos-SP 3,42 16,21 373,51 -5,468 62,27% 3,405 Viracopos-SP 1,47 3,82 159,75 -1,189 250,85% 2,982 Brasília-DF 0,58 4,51 673,89 -1,059 88,32% 0,935 Galeão-RJ 4,83 19,02 293,91 -1,231 97,99% 1,206 Confins-MG 1,1 1,82 66,06 -0,315 223,28% 0,703 Total 11,4 45,38 298,03 -9,261 99,68% 9,231 Tanto a contribuição variável quanto a outorga onerosa foram modeladas como forma de financiar o Fundo Nacional de Aviação Civil (FNAC), representando a contribuição dos aeroportos concedidos à manutenção da Rede Aérea Nacional. Nesse modelo, os recursos gerados nos aeroportos concedidos, operados por empresas privadas que buscariam a maximização das receitas, seriam revertidos a fundo 153 comum e poderiam, em tese, financiar os investimentos e custos operacionais da Infraero nos demais aeroportos públicos periféricos.

Frisamos o termo “em tese”, uma vez que o FNAC constituía-se somente como fundo contábil, sem independência de execução orçamentária ou vinculação com dispêndios definidos. Isso significava que os recursos arrecadados sob sua rubrica eram direcionados ao caixa comum do governo e, nesse sentido, eram passíveis de contingenciamento ou redirecionamento pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, posteriormente integrado ao Ministério da Economia. Não havia nenhuma garantia de subsídio cruzado entre aeroportos rentáveis e deficitários no modelo. Essa relação passava pelo caixa comum da União e podia ser registrado no Orçamento como verba para investimento ou custeio da Infraero. Ou nem isso.

Dessa forma, se de um lado a Infraero perdia parte considerável de sua receita, a qual deveria “reaparecer” como receita federal angariada para o caixa comum da União, por outro lado o dispêndio necessário para operação e manutenção dos aeroportos não concedidos, ou investimentos necessários na infraestrutura aeroportuária seriam anotados como “custo Infraero”, exacerbando ainda mais o caráter deficitário da empresa pública. 154

CONTRIBUIÇÃO FNAC

Projeção 2011-2030 (R$ milhões 2011 constante, Modelo LF, EBP, 2009)

0 0 -200 -133-133 -145 -203 -220 -240 -251 -263 -275 -286 -294 -302 -310 -319 -327 -400 -334 -340 -346 -353 -370

-600

-800

-1000 su -1200 -1.263 -1400

-1600 -1.551 -1.568 -1.588 -1.599 -1.611 -1.623 -1.634 -1.642 -1.650 -1.658 -1.667 -1.675 -1800 -1.682 -1.688 -1.694 -1.702 -1.718

-2000 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 2024 2025 2026 2027 2028 2029 2030

GRU.receita variável GRU.outorga onerosa VCP.receita variável VCP.outorga onerosa BSB.receita variável BSB.outorga onerosa GIG.outorga onerosa GIG.receita variável CNF.receita variável CNF.outorga onerosa Subtotal Receita Variável - 2a rodada Subtotal Receita Variável – 2012-2013 Subtotal 2a rodada Total 2012-2013 Figura 55: Projeção de contribuições ao FNAC pelos aeroportos concedidos em 2012 e 2013. Elaboração própria a partir dos relatórios de Avaliação Econômico-Financeira de cada aeroporto desenvolvidos por EBP -Leigh Fischer (EBP-LF, 2011, 2013) Segundo o modelo econométrico que baseou a tomada de decisão pública, a projeção de geração de receitas por cada aeroporto e em cada rodada pode ser observada no gráfico da figura a seguir, que representa a evolução da geração de receita federal pela outorga onerosa e pela contribuição variável no período selecionado de 2011-2030. Nesse ano se encerrará a concessão atual de Guarulhos, motivo pelo qual limitamos a série a 2030, ainda que as demais concessões continuem para além desse período, indo até 2043. Os prazos de duração de cada concessão estão apresentados na Tabela 9: Prazos de concessão dos aeroportos da 2a e 3a rodadas de leilões. De toda arrecadação federal esperada com os aeroportos concedidos, a contribuição ao FNAC deveria representar algo em torno de 60% em média ao ano, no período de 2011 a 2030, em total de 48 R$ bi nesse período (valores de 2011 constantes), ou 2,4 bi ao ano, conforme ilustrado no gráfico da Figura 56. 155

ARRECADAÇÃO FEDERAL

Projeção 2011-2030 (R$ milhões 2011 constante, Modelo LF, EBP, 2009)

0 0 -99,3 -133-133 -145 -203 -220 -240 -251 -263 -275 -286 -294 -302 -310 -319 -327 -334 -500 -340 -346 -353 -370 -607,9

-1000

-1.263 -1500 -1.551 -1.568 -1.588 -1.599 -1.611 -1.623 -1.634su -1.642 -1.650 -1.658 -1.667 -1.675 -1.682 -1.688 -1.694 -1.702 -1.718 -1798,9 -2000

-2167,2 -2238,9 -2500 -2348,8 -2399,9 -2469,8 -2522,6 -2576,3 -2685,6 -2740,2 -2759,1 -2717,7 -3000 -2857,5 -2840,7 -2977,0 -3035,5 -3017,4 -3159,5 -3500 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 2024 2025 2026 2027 2028 2029 2030

Subtotal Receita Variável - 2a rodada Subtotal Receita Variável – 2012-2013 Subtotal 2a rodada Total 2012-2013 Arrecadação Federal (Outorga + Contribuição + Impostos) Figura 56: Projeção de pagamentos dos aeroportos para arrecadação federal até 2030 com aeroportos concedidos na 2a e 3a rodadas. Elaboração própria a partir dos relatórios de Avaliação Econômico-Financeira de cada aeroporto desenvolvidos por EBP -Leigh Fischer (EBP-LF, 2011, 2013)

Dos gráficos apresentados nas duas figuras anteriores, podemos ver a importância da 2a rodada na contribuição para a arrecadação federal. Juntos, Guarulhos, Viracopos e Brasília contribuiriam com 84% do valor direcionado ao FNAC, e 80% da arrecadação federal total, incluindo impostos. Somente Guarulhos seria responsável por 66% de toda a arrecadação federal com as concessões nas 2 a e 3a rodadas somadas.

Qual o significado dessa arrecadação federal com as concessões aeroportuárias?

Uma forma de mensurar o valor arrecadado pelos cofres públicos federais é comparar o montante que se previa arrecadar, de um lado, com o montante do capital que igualmente se previa como necessário inverter nesses aeroportos até a realização dos Grandes Eventos de 2014 e 2016, o qual se configuraria como um custo evitado no orçamento público anual. Apresentados como um dos motivos principais da tomada de decisão pela concessão a administradores privados, em lugar de realizar esses investimentos com recursos exclusivamente públicos, através da Infraero, o valor estimado nos modelos da ANAC para o Capex nos 5 aeroportos estudados somava 9,231 bilhões de reais (2011) a serem realizados pelos novos concessionários. O valor estimado de arrecadação no mesmo período (2011-2016) seria de aproximadamente 9,261 bilhões de reais, ou seja, praticamente o mesmo montante a ser gasto no investimento previsto. 156

Considerando que todo investimento em infraestrutura aeroportuária feito pelos concessionário devem retornar como patrimônio público após o término da concessão, podemos concluir que o modelo de concessão previa quase duplicar o valor daquele capital, uma vez que ele seria dispendido por outra fonte de recurso que não o orçamento público, e ainda possibilitaria a geração de receitas em igual montante a serem revertidas aos cofres da União.

No entanto, deve-se ressaltar que o capital a ser mobilizado para o investimento privado dividia-se em duas parcelas: aquela custeada por capital próprio do concessionário, obtido dos lucros operacionais e aportes societários, aos quais a empresa pública Infraero estava comprometida em 49%; e aquela parcela a ser financiada com o BNDES, e garantida pelo Tesouro Nacional, conforme tratado anteriormente na Tabela 10: Resumo dos valores de empréstimos do BNDES aos aeroportos concedidos. No modelo da ANAC, essa divisão estava fixada na proporção 37% capitais próprios e 63% capitais financiados.

Além disso, é importante notar que o valor dos investimentos declarados ao BNDES para empréstimo excediam aqueles previstos originalmente no modelo da ANAC, principalmente devido à defasagem temporal entre data-base de preços. Enquanto os modelos estimavam um total de 9,231 milhões de reais (constantes de 2011, que a valores de 2014 seria equivalente a 10,688 bi corrigidos pelo INCC), o valor realmente informado nos contratos de empréstimo de longo prazo com o BNDES somavam 12,44 bilhões de reais (nominais de 2012 e 2014). Isso se converteu em um valor de dívida total de 7,91 bilhões de reais, a serem pagos ao longo da concessão a partir da receita operacional gerada nos negócios, conforme apresentado anteriormente.

Isso também significa assumir que os outros 4,53 bilhões do Capex até 2016 deveriam ser custeados pro recursos próprios dos sócios. Dado que a Infraero detinha 49% da sociedade, podemos inferir que a sua parcela de dívida para o Capex até 2016 somaria 2,22 bilhões de reais. Para efeito de comparação, esse mesmo encargo havia sido estimado nos modelos da ANAC em 3,480 bilhões de reais de investimentos a serem feitos com capital próprio dos sócios (4,029 bi corrigidos pelo INCC), dos quais 1,705 bilhões de reais (1,974 bi corrigidos pelo INCC) seria o valor correspondente à participação da Infraero, com base no valor de investimentos previstos então. Ou seja, entre aquilo que ficara apresentado no modelo (1,705 bi, reais constantes de 2011, corrigidos para 1,974 bi pelo INCC) e o que de fato a Infraero se viu obrigado a arcar (2,22 bi), houve um acréscimo de aproximadamente 12,5% nas despesas de capital da empresa nesses negócios sobre os quais não detinha nenhum poder de comando.

No item a seguir apresentamos os detalhes do modelo econométrico da ANAC para analisar essa estimativa de investimentos e, principalmente, a previsão de geração de receitas e fluxo de caixa da empresa para avaliar a tomada de decisão e o lugar da Infraero durante a concessão. 157

O modelo econométrico do Governo Se retomarmos os dados orçamentários da Infraero de anos anteriores às concessões, já apresentados na Tabela 5: Série histórica de características operacionais e financeiras da Infraero (2004 a 2008), poderemos continuar a série histórica com a projeção da geração de receitas pelo concessionário privado segundo o previsto no modelo da ANAC. Dado que sobre essas projeções incidiriam as alíquotas de arrecadação federal e, de forma geral, dependeriam todos os demais custos da empresa que conformariam seu fluxo de caixa, essa reconstrução das projeções resulta crucial para avaliar o propósito e efeito da política de concessão de aeroportos da ANAC.

Nas figuras a seguir apresentamos as projeções de geração de receitas brutas em cada aeroporto concedido estudado para o período 2009-2030, exibindo o início da série (2009-2011) a partir de dados históricos recolhidos dos anuários da Infraero e complementados com informações dos estudos da EBP e Leigh Fischer para a ANAC. Na linha tracejada até 2030 vemos a projeção da evolução de geração de receitas brutas constante nos modelos da ANAC que serviram de referência aos Editais de Concessão e justificaram a tomada de decisão pública. Em cada gráfico adicionamos linhas de tendência de evolução da série da Infraero e as comparamos com a projeção da ANAC para avaliar as expectativas do Poder Concedente que iriam condicionar a capacidade de pagamento das novas firmas, o que será melhor observado nas projeções de fluxos de caixas das empresas, apresentados nas figuras subsequentes.

Figura 57: Projeção de geração de receitas brutas - Modelo ANAC para Aeroporto de Guarulhos (2009-2030)

Para o caso do Aeroporto de Guarulhos-SP, a projeção de receitas tarifárias previa uma redução no ritmo de crescimento por volta de 2016 e nova queda em 2020, provavelmente devido à projeção de 158 demanda que se veria limitada pela capacidade do aeroporto (~54MiPAX/ano). A linha de tendência logarítmica é a que melhor se ajusta à projeção de receitas tarifárias nesse caso216. A figura a seguir apresenta a projeção de demanda utilizada por Leigh Fischer e EBP na modelagem217, onde se confirma a previsão de redução no ritmo de crescimento da demanda por volta de 2020. No entanto, percebe-se como a demanda real ficou aquém do esperado no modelo da ANAC considerando dados disponíveis entre 2010 e 2019. O ano de 2020 deverá retornar resultados ainda piores para o mercado de transporte aéreo em função da crise econômica prolongada, choque cambial e calamidade pública por causa da pandemia de COVID19.

Figura 58: Projeção de demanda aeroportuária no Aeroporto de Guarulhos no Modelo ANAC (2008-2030)

Por outro lado, a projeção de geração de receitas não-tarifárias adotada no modelo não encontra relação com os dados históricos da operação pela Infraero. Isso significava claramente uma previsão de mudança de patamar operacional do aeroporto, em função da adoção de práticas direcionadas a gerar receitas comerciais. Por esse motivo, apresenta-se no mesmo gráfico da Figura 57 a curva de

216 No Relatório de Estudos de Mercado da EBP, a projeção de demanda aeroportuária é feita com base em modelo log-log (“modelo de elasticidade”) em que os parâmetros de elasticidade são utilizados para estimar a alteração do número de passageiros dado o valor de uma das variáveis pré-definidas (PIB Brasil do Governo Federal e “fator de liberalização”, que significava na prática uma aposta no crescimento do mercado em função da continuidade do processo de liberalização, com acordos de Open Skies e outras mudanças regulatórias no mesmo sentido). 217 Compilamos dados apresentados nos Estudos de Mercado e de Avaliação Econômico-Financeira da EBP-Leigh Fischer e que foram utilizados pela ANAC como referência para tomada de decisão pública. Destaca-se que os dados aplicados no modelo econométrico constante na Avaliação Econômico-Financeira não coincidem com os dados dos Estudos de Mercado, e também podem apresentar discrepâncias com relação aos dados estatísticos do Mercado de Transporte Aéreo publicados pela ANAC. A série “projetados” utiliza somente dados da EBP-Leigh Fischer, preferencialmente do modelo, e a série “registrados” utiliza dados preferencialmente compilados pela ANAC, e disponíveis em https://www.anac.gov.br/assuntos/dados-e-estatisticas/dados-estatisticos/dados-estatisticos (acesso em julho, 2020). 159 regressão logarítmica da série projetada no modelo, identificando-se a distância entre esse patamar e aquele realizado pela Infraero nos anos anteriores à concessão (distância entre a linha preta tracejada e a linha azul após 2013).

Por fim, se isolamos apenas a projeção de passageiros regulares, verificamos que a frustração de demanda observada após o período de estudo do modelo da ANAC chegou a ser de -22%, com média até 2019 de -14% em relação ao esperado, conforme demonstrado no gráfico da figura a seguir.

Figura 59: Projeção de Demanda de Passageiros e frustração proporcional do esperado no Modelo ANAC (até 2019)

No caso do Aeroporto de Viracopos-SP (ver Figura 60), a linha de tendência linear ajusta-se sem muitas distorções à projeção adotada no Modelo da ANAC para a geração de receitas tarifárias. Para as receitas não-tarifárias percebe-se uma expectativa mais otimista do que o histórico da Infraero. Nesse caso, a linha de tendência que mais se aproxima da curva projetada no modelo é a exponencial, ainda que o R² encontrado seja relativamente baixo (0,88). Em nenhum dos casos indica-se limitação de crescimento devido a variação de demanda. 160

Figura 60: Projeção de geração de receitas brutas - Modelo ANAC para o Aeroporto de Viracopos (2009-2030) No caso do Aeroporto de Brasília-DF, a projeção de geração de receitas tarifárias também previa uma mudança de patamar em relação ao passado da Infraero. A curva de regressão linear a partir da projeção do modelo (linha preta tracejada) assinala a distância entre o previsto em modelo e o praticado anteriormente pela Infraero (linha laranja contínua) na geração de receitas tarifárias.

Figura 61: Projeção de geração de receitas brutas - Modelo ANAC para o Aeroporto de Brasília (2009-2030) 161

A projeção de receitas não-tarifárias está aderente com a linha de tendência linear da série histórica da Infraero, indicando um possível limite ótimo de eficiência já identificado no operador público. Por outro lado, recorda-se que apenas no caso do Aeroporto de Brasília a alíquota de contribuição da receita bruta foi a mínima de 2%; todos os demais aeroportos estudados estão obrigados a contribuir com 5% ou 10% de suas receitas brutas, o que reforça o argumento de que a ANAC identificava Brasília como dentro do limite ótimo operacional. Em nenhum dos casos indica-se limitação de crescimento devido a variação de demanda.

Para os aeroportos da 3a rodada, o procedimento de projeção adotado por Leigh Fischer e EBP não diferiu muito daquele já aplicado na 2a rodada. Assim, no caso do Aeroporto do Galeão-RJ, observamos como a linha de tendência de regressão linear da curva projetada para a receita tarifária indica a premissa de operação em patamar superior ao anterior da Infraero.

Figura 62: Projeção de geração de receitas brutas - Modelo ANAC para o Aeroporto do Galeão-RJ (2009-2030)

Por outro lado, a geração de receita não-tarifária prevê crescimento praticamente linear a partir do praticado recentemente pela Infraero. Em nenhum dos casos indica-se limitação de crescimento devido a variação de demanda.

Por último, o Aeroporto de Confins-MG apresenta projeções semelhantes aos casos anteriores, em que se considera um rápido crescimento inicial na geração de receitas tarifárias, para depois adotar-se crescimento linear sem restrições de demanda ao longo do período de concessão. No caso das receitas não-tarifárias, identifica-se uma projeção linear nos primeiros 2 anos de concessão a partir do 162 histórico da Infraero, quando se assume um salto na curva de projeção para novo patamar, possivelmente aliado a um salto na projeção de demanda considerada.

Por esse motivo, na Figura 63 apresentamos também a curva de projeção de demanda aeroportuária no Aeroporto de Confins-MG desde 2004, quando sua operação era insignificante e secundária em relação ao aeroporto central de Pampulha, até o período 2012-2030 projetado pela EBP. Fica mais uma vez evidente a frustração da expectativa do Poder Concedente quando da realização do leilão de concessão, dado que, no período 2012-2019, a diferença entre demanda de passageiros realizada e projetada foi de -21% em média, apontando uma estagnação na casa dos 10 milhões/ano.

Figura 63: Projeção de demanda aeroportuária no Aeroporto de Confins no Modelo ANAC (2004-2030)

Com base na análise anterior, em que destacamos a comparação entre realizado e projetado nos modelos da ANAC, conclui-se que o início da queda em 2012 foi marcante para o setor e, particularmente, para os aeroportos concedidos estudados. Enquanto Confins parece estagnar, Guarulhos perde ritmo de crescimento e aponta para um cenário cada vez mais provável de operação por todo o período de concessão sem atingir seu limite de capacidade operacional, estimado ao redor dos 54 milhões de passageiros/ano.

Nesse cenário, resulta problemático o contrato de concessão do Aeroporto de Viracopos-SP, implantado na mesma área terminal de São Paulo e competidor no mesmo mercado relevante que o Aeroporto de Guarulhos (e Congonhas, ainda administrado pela Infraero), e cujo modelo considerava a migração de demanda de Guarulhos já na década de 2020. Dentre as muitas dificuldades pelas quais 163 passa o concessionário daquele aeroporto, e que o levaram à recuperação judicial definida em 2020, não poder contar com a demanda futura excedente de Guarulhos pode ser a “pá de cal” que faltava para inviabilizar o Aeroporto de Viracopos-SP. Nos motivos elencados para o pedido de recuperação judicial, a Aeroportos Brasil Viracopos (ABV) apontou218:

i. ocorrência de diversos eventos ensejadores de desequilíbrio econômico-financeiro da concessão, causados ou, quando menos, agravados pela ANAC, que não foram objeto de recomposição tempestiva e integral pela Agência Reguladora; ii. enorme descompasso entre a demanda projetada à época da licitação, na forma dos estudos integrantes do EVTEA (os quais foram contratados pela ANAC e divulgados juntamente com o edital), e a demanda real, em níveis absolutamente exorbitantes e imprevisíveis, o que foi agravado pela não construção de trem de alta velocidade ligando a cidade de São Paulo ao aeroporto de Viracopos (cuja construção fora considerada no EVTEA); iii. grave crise macroeconômica, imprevisível à época da licitação e com consequências incalculáveis, que empurrou o País para a maior e mais longa recessão de sua história e contribuiu para o agravamento dos efeitos dos dois itens anteriores.

Dentro os motivos de pedido de recuperação judicial que apontaram para a responsabilidade da ANAC e de seus estudos de modelagem que balizaram o leilão de concessão, a ABV faz menção à previsão de fluxo de caixa e as premissas assumidas que, segundo seu pleito, não foram cumpridas pelo Poder Concedente, particularmente na autorização para empreender novos negócios geradores de receitas não-tarifárias em que as desapropriações deveriam correr por conta do poder público.

Sobre o fluxo de caixa, crucial em um modelo de negócio baseado em project finance 219, a queixa principal foi a previsão de salto de patamar de 10% no período pré-leilão para uma média de 55% da participação daquelas receitas não-tarifárias que, segundo a ABV, não puderam ser alcançados devido principalmente a omissões do Poder Concedente. Além disso, o impacto da redução da tarifa sobre o transporte de carga foi decisivamente prejudicial à ABV, dada a relevância dessa atividade naquele aeroporto. Na figura a seguir apresentamos a reconstituição gráfica da previsão de fluxo de caixa acumulado da firma até 2030 elaborada a partir de dados originais do Modelo da ANAC para o Aeroporto de Viracopos-SP.

218 “Plano de Recuperação Judicial das sociedades AEROPORTOS BRASIL S.A., AEROPORTOS BRASIL - VIRACOPOS S.A. e VIRACOPOS ESTACIONAMENTOS S.A.”. Campinas, 12 de fevereiro de 2020, p. 16. 219 Modalidade em que o próprio empreendimento gera os recursos que deverão pagar pelo financiamento incorrido para o investimento e operação do negócio. 164

Figura 64: Reconstituição de Fluxo de Caixa Acumulado da firma (modelado) - Aeroporto de Viracopos-SP

Pelo perfil da linha do fluxo de caixa livre acumulado (linha azul no gráfico acima), percebemos como a proposta do Poder Concedente era que o vencedor do leilão deveria assumir uma operação deficitária por duas décadas, dado que, para um Valor Presente Líquido (VPL) igual a zero, o tempo de retorno estimado era de 19 anos. Contrariamente ao pleito da ABV, a previsão da ANAC era de que a essa altura o Aeroporto de Viracopos-SP haveria passado do patamar de 10% para 28% de participação de receitas não-tarifárias no resultado operacional da empresa.

Por outro lado, o Edital da ANAC obrigava o concessionário a um dispêndio de capital (Capex) inicial da ordem de 3 bilhões de reais até 2016220, além do que a versão final do Edital havia elevado o valor do lance mínimo de outorga onerosa do leilão de 430 milhões para 1,471 bilhões de reais (sendo que o lance vencedor da ABSA foi de 3,821 bilhões de reais, ágio de 160%). Tudo isso contribuiu como pano de fundo para o desequilíbrio do contrato, cujo motivo gerador foi o envolvimento dos sócios controladores em investigações de corrupção que paralisaram suas operações e destruíram seus patrimônios221.

Entretanto, para que encerremos nossa avaliação sobre a proposta contida nos modelos da ANAC para além do caso fracassado de Viracopos-SP, passamos a apresentar a reconstituição gráfica dos fluxos de caixa acumulado das firmas concessionárias dos demais aeroportos estudados segundo os dados

220 A ABV declara em seu Plano de Recuperação Judicial haver investido 3,277 bilhões de reais nas fases I-A e I-B da concessão, havendo financiado 2,3 bi com o BNDES e comprometido seus acionistas com 804 milhões (ABSA) e 777 milhões (Infraero). AABSA foi o veículo jurídico criado para a sociedade entre Triunfo, UTC e Egis. 221 https://contraponto.jor.br/grupo-triunfo-pede-recuperacao-judicial-e-culpa-a-lava-jato/, acesso em julho de 2020. 165 contidos nos estudos da EBP e publicados como referência aos Editais de Concessão das 2 a e 3a rodadas de leilões.

Figura 65: Reconstituição de Fluxo de Caixa Acumulado da firma (modelado) - Aeroporto de Guarulhos-SP

O aeroporto mais importante da RAN mostrava seu prognóstico rentável ao futuro concessionário, permitindo o ágio de 374% na outorga onerosa leiloada e um financiamento para investimento de 5,4 bilhões de reais222. O tempo de retorno do negócio era estimado em 9 anos, e contava com elevar a participação das receitas não-tarifárias no total do resultado do aeroporto de 35% em 2011 para 47% em 2030. As receitas totais passariam de 943 milhões de reais anuais para 1.708 milhões em 2030, estimando-se a contribuição variável ao FNAC na ordem de 3,03 bilhões no período 2012-2030.

222 Valor declarado pelo BNDES referente ao empréstimo de longo prazo concedido à Concessionária do Aeroporto de Guarulhos para a execução de investimentos das fases I-B e I-C (entregues até 2016). 166

Figura 66: Reconstituição de Fluxo de Caixa Acumulado da firma (modelado) - Aeroporto de Brasília-DF

O Aeroporto de Brasília-DF obteve ágio de 674% na outorga onerosa leiloada e um financiamento para investimento de 1,3 bilhões de reais223. O tempo de retorno do negócio era estimado em 17 anos, e contava com manter a participação das receitas não-tarifárias no total do resultado do aeroporto no patamar de 36-38% até 2030. As receitas totais passariam de 170 milhões de reais anuais para 574 milhões em 2030, estimando-se a contribuição variável ao FNAC na ordem de 140 milhões no período 2012-2030.

223 Valor declarado pelo BNDES referente ao empréstimo de longo prazo concedido à Concessionária do Aeroporto de Guarulhos para a execução de investimentos das fases I-B e I-C (entregues até 2016). 167

Figura 67: Reconstituição de Fluxo de Caixa Acumulado da firma (modelado) - Aeroporto do Galeão-RJ

O Aeroporto do Galeão-RJ obteve ágio de 294% na outorga onerosa leiloada e um financiamento para investimento de 2,31 bilhões de reais224. O tempo de retorno do negócio era estimado em 12 anos, e contava com elevar a participação das receitas não-tarifárias no total do resultado do aeroporto de 42% em 2012 para 53% em 2030. As receitas totais passariam de 468 milhões de reais anuais para 1,15 bilhões em 2030, estimando-se a contribuição variável ao FNAC na ordem de 831 milhões no período 2012-2030.

224 Valor declarado pelo BNDES referente ao empréstimo de longo prazo concedido à Concessionária do Aeroporto de Guarulhos para a execução de investimentos das fases I-B e I-C (entregues até 2016). 168

Figura 68: Reconstituição de Fluxo de Caixa Acumulado da firma (modelado) - Aeroporto de Confins-MG O Aeroporto de Confins-MG obteve ágio de apenas 66% na outorga onerosa leiloada e um financiamento para investimento de 703 milhões de reais225. O tempo de retorno do negócio era estimado em 17 anos, e contava com elevar a participação das receitas não-tarifárias no total do resultado do aeroporto de 38% em 2012 para 47% em 2030. As receitas totais passariam de 150 milhões de reais anuais para 487 milhões em 2030, estimando-se a contribuição variável ao FNAC na ordem de 286 milhões no período 2012-2030.

* * *

Neste capítulo 3 tratamos das recomendações de McKinsey para o “modelo brasileiro” e das características finalmente definidas nos Editais de Concessão da 2a e 3a rodadas de leilões que estudamos. As recomendações de McKinsey se apoiaram em diagnóstico dos modelos em outros países, os quais contrastamos com bibliografia complementar para concluir que não há um único modelo de administração aeroportuária reputado como mais “moderno” ou “atual” dentre as melhores práticas desse mercado. Se muito, podemos deduzir que McKinsey apontaria os casos de países de grandes dimensões territoriais, desigualdade interna relevante e pouca tradição federalista como os mais similares ao caso brasileiro.

225 Valor declarado pelo BNDES referente ao empréstimo de longo prazo concedido à Concessionária do Aeroporto de Guarulhos para a execução de investimentos das fases I-B e I-C (entregues até 2016). 169

No entanto, podemos ver que os casos estudados comportam desde uma situação totalmente estatal (EUA, por exemplo) para uma variação de composições de participação privada na administração aeroportuária, frequentemente encontrando casos de responsabilidade local (Alemanha, França, China), bem como redes aéreas nacionais estratificadas, com regimes administrativos distintos segundo a função e/ou localização da infraestrutura. Este era o caso na China e no Reino Unido, por exemplo. A oposição de administração “pública ou privada” aparecia acompanhada da contradição “centralização x descentralização” nos casos estudados, resultando em pressões nos pactos interfederativos, em alguns casos como Alemanha, ou na política regional mais ampla, como na China.

Dos estudos de caso da McKinsey, passamos a detalhar as características dos contratos de concessão escritos pela ANAC e que conformavam “o modelo brasileiro” na prática. Repassamos a estruturação dos incentivos ao concessionário privado através dos projetos associados geradores de receitas não- tarifárias, que deveriam impulsionar o resultado operacional das novas empresas e alimentar o caixa do governo. Tratamos também dos incentivos contratuais dos fatores de desempenho que deveriam incutir a lógica da eficiência na operação de cada aeroporto.

Na análise documental do Contrato de Concessão, ressaltamos as omissões e limitações auto-impostas pelo Poder Concedente, bem como as exigências faseadas em função dos Grandes Eventos, no curto prazo, e baseada em gatilhos de investimentos segundo a demanda registrada no longo prazo. A passagem da administração pública para privada, o passivo trabalhista e o papel passivo relegado à Infraero na governança das novas concessionárias foram pontuados para compor o quadro de fomento ao investimento e administração privados garantido por recursos e gastos públicos (tanto via orçamento da União, como através de empréstimos do BNDES lastreados no Tesouro Nacional).

Reconstituímos o fluxo de caixa livre acumulado de cada concessionário conforme previsto nos modelos da ANAC para evidenciar o referencial disponível para o tomador de decisão pelo Poder Público que definiu os Editais de Concessão. Ressaltamos como as deficiências daqueles estudos foram percebidas pelos agentes de mercado, inclusive tardiamente, como no caso do Aeroporto de Viracopos-SP, que ora se encontra em recuperação judicial com indicação de relicitação do aeroporto, responsabilizando a agência reguladora e seus estudos pelo ocaso do negócio.

Concluímos que os modelos da ANAC, materializados nos estudos da EBP-Leigh Fischer e embasados nos estudos setoriais de McKinsey que buscaram dar validade às decisões internas dos aparelhos do Estado pela concessão são a peça efetiva de ação estatal que finalmente implementou o planejamento do setor e o condicionou pelas próximas três décadas. Destacamos, além disso, que não se identifica uma trajetória contínua e claramente orientada sob o planejamento estatal, seja da empresa estatal anteriormente responsável pela infraestrutura aeroportuária e que foi preterida em 170 função da concessão onerosa, seja do próprio planejamento dentro dos aparelhos de Estado. A continuidade e razoabilidade que ornam os manuais de planejamento não participam do processo decisório do planejamento real, que toma ideias de longa maturação dentro da máquina estatal e as adapta e impulsiona conforme as janelas de oportunidade que surgem em conjunturas quase sempre desfavoráveis. Condicionado de nascença por razões de Estado (vocacionado para a geração de receita para cobrir rombos do orçamento público e sobredeterminado pela necessidade do “ajuste”), o “modelo brasileiro” não é um modelo. Ele é um resultado eclético de ideias justapostas que conjugam desde o planejamento ativo do Poder Concedente (exemplificado nas exigências draconianas de investimentos iniciais sem base em demanda real) até a passividade do parceiro público (encontrado tanto nas omissões dos Editais da ANAC mencionadas neste capítulo, quanto no papel relegado à Infraero como sócio incapaz). Na 1a rodada de leilão de aeroporto, tivemos o caso de São Gonçalo do Amarante-RN, que não abordamos nesta dissertação, mas que assumimos tratar-se de um “ensaio geral” do que deveria ser “o modelo brasileiro”. Naquela ocasião, o objeto era um aeroporto novo, que deveria ser viabilizado pela operação privada, o que estava em linha com os pressupostos dos Estudos da ANAC (examinados no capítulo 2) e a estratégia do grupo formulador da proposta de concessão dentro do Ministério da Fazenda na década de 2000.

Na 2a e 3a rodadas estudadas nesta dissertação, vimos um modelo alterado que obrigou a participação de operadores internacionais experientes que, segundo pudemos apurar, foi incluído como exigência no Edital de última hora por pressão das empreiteiras brasileiras que já haviam se associado a grupos estrangeiros antes que isso fosse exigido pelo Governo. Neste episódio encontramos mais um exemplo do corporativismo em ação para garantir uma passagem controlada dessa infraestrutura para grupos previamente escolhidos.

Nas rodadas subsequentes, fora do objeto desta dissertação, vamos encontrar novos arranjo societários, em que a Infraero não seria mais sócia obrigatória, nem as empreiteiras serão líderes do negócio, como será o caso dos aeroportos da 4a rodada: Salvador-BA, Fortaleza-CE, Porto Alegre-RS e Florianópolis-SC. Na 5a rodada, aliás, o “modelo” será alterado para leilão por blocos de aeroportos, em que participariam um aeroporto “âncora” e outros periféricos a serem operados por uma mesma empresa. A mutação e ecletismo das soluções encontradas em cada rodada de leilão permitem-nos concluir que o “modelo brasileiro” não é um modelo, mas um processo permanente de ajuste da participação do capital privado na infraestrutura aeroportuária segundo as exigências do núcleo duro do Governo sobredeterminado pela crise fiscal do Estado.

Chegamos a essa conclusão a partir dos fatos e dados analisados, e a explicamos por meio do emprego do arcabouço teórico que busca lançar luz sobre as trajetórias de capitalismos tardios em processos de transição. Com o peso típico dos estudos de formação e de trajetórias e longas narrativas como esses, 171 não seria difícil determo-nos em uma conclusão do tipo “as coisas são como são porque assim deveria ser” e estavam fadadas pelas estruturas do corporativismo brasileiro e do Estado patrimonial que nos governa.

No entanto, buscamos entender a trajetória do caso brasileiro ao contrastá-la com outro caso de país que, guardadas as diferenças estruturais, conjunturais e históricas como é necessário avisar em estudos comparados, também passou por processo similar de abertura à participação privada na administração aeroportuária. No capítulo 4 a seguir tratamos da comparação do “modelo brasileiro” com o espanhol, onde em lugar de concessões casuísticas de aeroportos isolados em rodadas sucessivas do centro para a periferia, optou-se por um modelo unitário de manutenção da empresa pública nacional com participação minoritária de sócios privados. 172

Capítulo 4. A participação privada em aeroportos comparada entre Brasil e Espanha 173

Segundo autor226 dedicado ao estudo de privatizações no período posterior à Transição Espanhola227, e da companhia aérea “de bandeira” Iberia em especial, a participação privada na economia encontraria três modalidades para se concretizar:

• Transferência de propriedade (por métodos de venda direta ou negociada de ativos, ou ainda oferta pública de ações) • Concessões, contratações e subvenções públicas para provisão de bens ou prestação de serviços • Liberalização ou desregulamentação dos mercados de monopólio legal A Transição Espanhola (1975-1978) marcou o retorno do Estado espanhol à democracia liberal no fim dos anos 1970, pondo em causa a necessidade da continuidade da transição ao longo das décadas seguintes, de maneira a transformar um Estado fascista em uma democracia liberal tipicamente ocidental e, a partir de fins dos anos 1980 e início dos anos 1990, adaptada aos padrões do mercado comum europeu exigidos pela União Europeia. Consideramos esse tempo histórico pós-transição na Espanha como regido pela sobredeterminação do “ajuste”228 daquele Estado nacional de tipo autoritário e, diz-se ultimamente, “iliberal”, para uma democracia moderna de economia aberta, em que a redefinição do papel do Estado na sociedade seria tema central. Esse processo de “catching up” que se seguiu à transição é assim considerado ainda incompleto e em andamento. Com efeito, o caráter permanente do “ajuste” é sua principal força, a qual se exerce através do planejamento estatal guiado por diretrizes externas (de adaptação às normas da União Europeia, por exemplo) e constituído pelas questões legadas da sua trajetória229, marcada especialmente pela questão regional e multinacional de longa permanência sob o Estado espanhol.

Guillén230 escreveu sua tese em 2006 sob os efeitos da aplicação da política de desregulamentação no setor aéreo, em curso naquele país desde a década anterior, argumentando em prol da transferência de propriedade da companhia aérea estatal para investidores privados. Ainda que dedicado especialmente à companhia prestadora do serviço de transporte aéreo espanhola, seu estudo é igualmente válido para tratar das questões levantadas nesta dissertação quanto ao modelo de participação da administração

226 GUILLÉN, J. C. “La dirección de resultados en las empresas privatizadas”. Tese de Doutorado, Departamento de Economía Financiera y Contabilidad – Universidad de Extremadura, Extremadura, Espanha, Setembro de 2006. 227 A “Transição Espanhola” constitui o período histórico iniciado pela morte do General Francisco Franco em 1975, sucedido por Juan Carlos de Bourbon, proclamado rei da Espanha em 1976, e quem promulgou naquele mesmo ano a Lei Para a Reforma Política. A essa lei sucederia a elaboração de uma nova Constituição do Estado espanhol em 1977, sendo promulgada em 1978, quando oficialmente se encerraria o período da Transição Espanhola, iniciando-se a Consolidação da Democracia (Román, 1993 apud CARVALHO, César; ARAUJO, Gerado. “Transições políticas negociadas: uma análise dos processos de democratização de Brasil e Espanha”. Revista O Olho da História. 1-10, Salvador, 2012). A nova Constituição, entre outras definições dadas pelos representantes das Cortes Generales, reconhecia a soberania popular ao passo que também reconhecia o Rei Juan Carlos I como chefe de Estado. 228 ARANTES, P. E. O Fio da Meada Uma Conversa E Quatro Entrevistas Sobre Filosofia E Vida Nacional. 1996. 229 Ver as obras de Eli Diniz e Renato Boschi citadas. 230 Guillén, Op. cit., 2006. 174 privada no setor de transporte aéreo e, em abordagem mais geral, quanto ao contexto nacional dos processos de privatização na Espanha e Brasil que comparamos.

Em que pese o viés claramente favorável à causa da privatização em qualquer cenário, qualquer que fosse a modalidade, o autor apresenta mapeamento exaustivo das experiências de privatizações em todas as modalidades, na Europa e demais continentes, ao longo das décadas anteriores231. No caso espanhol, identifica que o processo de privatizações encetado no período pós-transição teria ocorrido em dois grandes blocos: venda direta de empresas industriais deficitárias num primeiro bloco (1985- 1992), seguido de oferta pública de ações de estatais rentáveis e com presença internacional em um segundo bloco (1992-1997)232.

O primeiro bloco seria parte do “ajuste” espanhol devido à entrada na União Europeia (UE), e tinha como finalidade aumentar o caixa do governo central e cumprir regras fiscais sobredeterminadas pela UE. O segundo bloco teria propósitos bem diferentes, como o fortalecimento dos mercados de capitais e a internacionalização da economia espanhola233. Segundo o autor, as condições subjacentes à adoção do método de oferta pública de ações seriam, entre outras, que a renda fosse mais ou menos bem distribuída em todo o país, pois isso aumentaria o número de investidores potenciais e evitaria fixar o preço da ação em patamar demasiado baixo, o que frustraria o propósito de arrecadação pública com a privatização234; e que o Governo transmitisse sinais de segurança ao mercado de capitais mais ou menos duradouros e estáveis de que não haveria possibilidade de nacionalização ou imposição de taxas excessivas à empresa privatizada num futuro próximo, neste caso principalmente se se tratasse de grandes investidores. No caso da AENA, ambas as condições viriam a ser relevantes, dado que 21% das ações seriam transferidas a poucos grandes investidores, enquanto 28% seriam pulverizadas no mercado de capitais entre investidores minoritários, permanecendo 51% das ações da empresa sob a propriedade do Estado espanhol.

A partir dessas condições dadas, o autor conclui que a ação do governo ao ofertar ações de estatais teria como finalidade o “desenvolvimento de uma nova classe de acionistas que não existiam antes”235.

231 Em um universo de 1992 privatizações realizadas em 92 países, 767 empresas estatais teriam sido privatizadas mediante ofertas públicas e 1225 por venda direta. Apoiado em outros estudos de Megginson, com base de 2477 privatizações em 108 países, Guillén conclui que a oferta pública era a modalidade mais usada nos mercados (de capitais) menos desenvolvidos, e para empresas maiores e mais rentáveis. Por outro lado, a modalidade de venda direta seria mais comum em países onde o direito à propriedade privada seria mais respeitado, evitando-se o risco de uma encampação estatal no futuro. Guillén, Op. cit., p. 34. 232 Guillén, Op. cit., p. 35. 233 Guillén, Op. cit., p. 36. 234 Guillén, Op. cit., p. 37. 235 Guillén, Op. cit., p. 38. Ao longo de sua tese o autor adicionará outros argumentos em torno do que chama de “capitalismo popular”, inclusive análises de outros autores que questionariam esse método por suas ligações explicitamente político-eleitorais, enfatizando a ligação entre partidos de direita e a “criação de uma classe capitalista que os apoie politicamente com seu voto”. Megginson e Netter (2001); Álvarez e Gonzalez (2000); Biais e Perotti (2000) apud Guillén, Op. cit., p. 50. 175

É mais: na avaliação de Guillén, as empresas privatizadas são, afinal, um porcentual importante do total do valor negociado na bolsa do país e também correspondem a porcentagens relevantes da capitalização do mercado no total236, tendo participado decisivamente entre os principais responsáveis pelo aumento do tamanho do mercado acionário em 10 vezes nos “países desenvolvidos” entre 1983 e 1999, e de 16 vezes nos “países em desenvolvimento”237.

Da abordagem apresentada por Guillén, frisamos o reconhecimento do caráter pretensamente demiúrgico da ação do governo ao privatizar, e o seu efeito em escolher qual fração da classe de proprietários seria favorecida com a política de privatização em curso. Segundo o autor, nos “países desenvolvidos” o mercado acionário teria substituído o capital bancário na intermediação financeira das empresas de serviços públicos privatizadas, visto que naqueles países o crédito bancário teria permanecido estável nos anos 1990 ao redor de 125% do PIB. Destacamos, além disso, como o autor distingue o método de privatização a aplicar em função do quão estratégico fosse o setor em questão: a privatização no setor de transportes, por exemplo, teria como método mais adequado a venda de ativos, em lugar da transferência do controle da empresa estatal, evitando-se a participação estrangeira e a perda do controle nacional sobre infraestrutura estratégica238. De fato, uma das preocupações em voga à época da adesão à União Europeia e compartilhada pelos estudiosos do “modelo espanhol” seria a transferência do poder de decisão para fora do país, dado que muitas empresas importantes vendidas nos anos 1990 passaram a estar sob controle de capital estrangeiro. No caso da AENA, como vimos, o modelo espanhol garantiria 51% das ações sob domínio do governo central, enquanto o segundo maior investidor unitário poderia possuir, no máximo, até 28% do capital da empresa de administração aeroportuária, afastando a possibilidade de rivalizar ou criar qualquer impasse à governança corporativa da empresa.

Outra faceta da transferência do controle acionário das empresas encontra-se na separação de ações ordinárias e nominais, em que a propriedade e controle da empresa poderiam ser dissociados, e que ainda pode ser acompanhada da adoção de uma forma de controle “pós-privatização” por parte do governo na modalidade da “ação de ouro”. Segundo estudo de Jones et al.239, de uma amostra de 107 ofertas públicas de ações entre 1977 e 1997, os Estados se reservaram o controle por meio da “ação de ouro” em 82% dos casos. No Reino Unido, epicentro do processo de privatizações no mundo, esse controle foi ainda maior, e se deu em 93% dos casos240.

236 Guillén, Op. cit., p. 59. 237 Guillén, Op. cit., p. 59. O valor de capitalização no mercado acionário na Espanha teria aumentado de 22,6% do PIB em 1983 a 52,5% em 1998. 238 Guillén, idem. 239 Jones et al. (1999) apud Guillén, Op. cit., p. 57. 240 Além da “ação de ouro”, outra forma de controle encontrado nos estudos é o estabelecimento de um “núcleo duro” de acionistas comprometidos com dar continuidade ao projeto empresarial, frequentemente ligados ao controle estatal por outros meios (sejam empresas mistas, fundos de pensão estatais, ou outros cruzamentos de acionistas por dentro da 176

No caso espanhol em estudo, a adoção da “ação de ouro” é regulada por lei de 1995 que tinha a finalidade de favorecer a aceitação social e política dos processos de privatização e manter a defesa dos interesses nacionais241. Nos termos em que temos tratado nesta dissertação, a sua definição por lei pode ser entendida como o estabelecimento formal dentro do Estado espanhol da resultante de um consenso mais ou menos compartilhado, mais ou menos forçado a partir do Governo em torno do processo de privatização. Quer dizer que a “ação de ouro” representaria o resultado da concertação dos interesses políticos em causa ao redor do processo de privatização, em um contexto de transição daquele país para a entrada na UE, quando a ideia política que norteava a discussão pública se dava ao redor do teor do “ajuste” a ser adotado. Naquele contexto, a possibilidade de que uma empresa sob controle de um Estado viesse a assumir o controle da infraestrutura de outro país era significativamente real, daí que o mecanismo da “ação de ouro” garantiria a adoção de práticas de mercado comuns aos países do bloco, ao mesmo tempo em que mantinha alguma margem de manobra dos governos nacionais e a isonomia entre eles dentro da UE. Logo, a adoção desse mecanismo respondia diretamente a questões próprias do problema inerente à consolidação da UE, dando conta da convivência de Estados nacionais em bloco econômico comum com regras compartilhadas obrigatórias. Segundo apuramos nas entrevistas realizadas na pesquisa para esta dissertação, no caso específico da privatização da AENA a preocupação com uma tomada estrangeira sobre a infraestrutura de integração territorial do Estado espanhol era real.

Do lado interno, percebe-se como a transição espanhola de um Estado fascista para uma democracia liberal era negociada em termos de uma abertura controlada. Carvalho e Araújo242 desenvolvem comparação entre os processos políticos de transição no Brasil e na Espanha dentro do marco teórico dos “estudos de transição”243, e consideram que os casos desses dois países poderiam ser tipificados

máquina estatal, garantindo algum controle remoto por parte do Estado sobre a empresa privatizada). 241 Guillén, Op. cit., p. 65. 242 CARVALHO, C.; ARAUJO, G. Op. cit. 243 O trabalho de comparação entre as transições de regimes autoritários para regimes democráticos apresentado por Carvalho e Araújo apoia-se em estudos anteriores, datados dos anos 1970 ao início dos anos 2000, encontrados em CALVO, Enrique Gil. “Crítica de la Transición”. Revista Claves de Razón Practica, no 107, 2000. p. 09-15. KINZO, Maria D‘ Alva G. “A Democratização Brasileira: um balanço de processo político desde a transição”. Revista São Paulo em Perspectiva 15(04), 2001, p. 3-12. O‘DONNELL, Guillermo. “Transições, continuidades e alguns Paradoxos”. In:_____ Reis, F.W & O‘Donnell, G. A Democracia no Brasil: Dilemas e Perspectivas. São Paulo: Vertice, Editora Revista dos Tribunais, 1998. p.41-90. ROMAN, Manuel Redero San. Transición a la democracia y poder político en la España postfranquista (1975-1978). Librería Cervantes. Salamanca, 1993. RUSTOW, D. A. “Transitions to democracy: toward a dynamic model”. Comparative Politics, v. 2, n. 3, 1970 p. 337-363. SHARE, Donald & MAINWARING, Scott. “Transiciones vía Transacción: La Democratización en Brasil y en España”. Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), na 49. Enero-Febrero 1998, p.87-135. WEFFORT, Francisco Correia. Qual Democracia? São Paulo Editora Companhia das Letras, 1992. Além destes, os estudos de transição são dedicados ao acompanhamento das economias dos Estados surgidos após o fim da União Soviética, cujo interesse para estudiosos latino-americanos estaria nas semelhanças dos dilemas e limitações da transição do autoritarismo centralizador a uma economia aberta de mercado sob a égide da globalização neoliberal. Ver Eli Diniz e Roberto Boschi, Op. cit. 177 como processos de “transição política negociada”, a partir de conceituação apresentada por Share e Mainwarning244.

A partir de Rustow, Share e Mainwarning recuperam a ideia de fases de transição, segundo a qual todo processo se iniciaria por uma “fase preparatória”, em que a polarização de poder criaria as condições para a mudança de regime, e que levaria a uma “fase decisória”, quando o poder seria desafiado e reordenado entre as lideranças das forças políticas atuantes, desmobilizando as massas, seguida de uma “fase de consolidação”, na qual as bases de um novo regime democrático estariam definidas e as instituições restabelecidas245. No caso espanhol, aquilo que é comumente chamado de “transição espanhola” daria conta das duas primeiras fases de Rostow, em que a preparação teria se dado de 1975 a 1976, com a morte do ditador Francisco Franco e a coroação de um novo rei Juan Carlos I, e a fase de decisão teria ocorrido de 1977 a 1978, quando foi aprovada a lei de Reforma Política e promulgada a nova Constituição e os Estatutos de Autonomia. A partir daí, o processo de transição na Espanha teria entrado na fase de consolidação, cuja duração é discutida e criticada. Para alguns autores246, a fase anterior da “transição espanhola” teria ficado incompleta, ou resolvido mal as questões políticas de fundo da trajetória do Estado espanhol desde o início do século 20, de maneira que a história recente daquele país apresentaria as condições para uma “segunda transição”. Isso seria reforçado pelo ressurgimento do nacionalismo catalão e basco, e a erupção de novas forças políticas que desafiariam o pacto político da transição, como o Podemos, que se tornaria a terceira legenda eleitoral no país na década de 2010.

Ao longo dessa fase de consolidação, o Estado seria reorganizado, passando pelo processo de privatizações. Esse processo já foi categorizado em dois blocos por Guillén, a saber: 1985-1992, de “ajuste” para adesão à União Europeia; e 1992-1997, de fortalecimento do mercado de capitais e preparação das estatais espanholas para a internacionalização. Evidentemente, as privatizações seguiram acontecendo depois desse período, porém em um ritmo e volume menores do que o pico atingido em 1997-1998247. 244 SHARE, Donald & MAINWARING, Scott. “Transiciones vía Transacción: La Democratización en Brasil y en España”. Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), na 49. Enero-Febrero 1998, p.87-135. Além da transição política negociada, o marco teórico dos “estudos de transição” considera ainda dois outros tipos: transição por colapso do regime ou transição via auto exclusão. 245 Os autores chamam a esta fase de “fase de acomodação”. 246 Por exemplo ASSIS, F. “Espanha: a segunda transição”. Público, edição de 21/3/2019. Disponível em: https://www.publico.pt/2019/03/21/mundo/opiniao/espanha-segunda-transicao-1866155, acesso em março 2020. Ou ainda segundo reportagem do Portal G1: “A política neste país já mudou, agora, nós temos que mudar as instituições”, disse o líder socialista, Pedro Sánchez (atual líder do Executivo espanhol), ao abrir a sessão. Em um tuíte, o líder do Ciudadanos, Albert Rivera, chamou esse ato de “uma segunda transição”. Em “Parlamento espanhol é constituído com impasse sobre novo governo”, publicado em 13/1/2016, disponível em http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/01/parlamento-espanhol-se-reune-em-meio-impasse-sobre-novo-governo.html, acesso em março 2020. 247 GARCÍA, L. C.; ANSÓN, S. G. “Privatización y ‘performance’ de las OPVs españolas”. Em Estableciendo puentes en una economía global / coord. por Julio Pindado García, Gregory Payne, Vol. 1, 2008 (Ponencias), p. 81. E BEL, G. “Share issue privatization and political objectives: do governments make a difference?” Working Papers in Economics 56. Espai de 178

No caso brasileiro, vimos como o processo de privatização iniciado nos anos 1990 se dava em contexto de abertura econômica que se confundia com a abertura política e a constituição da Nova República. Naquele contexto, a transição da economia nacional também pautava o debate público em torno do “ajuste” a ser adotado, neste caso em como deveria ser restabelecida a relação entre propriedade estatal, prestação de serviços públicos definidos na Constituição e fomento à atividade de empresas privadas e geração de emprego num cenário de crise fiscal quase permanente e deterioração da qualidade dos serviços prestados pelas empresas públicas. Para utilizarmos o método de Rostow também no Brasil, poderíamos considerar a fase de preparação indo de 1974 a 1981, com a abertura lenta e gradual do regime248, a fase de decisão de 1982 a 1988 com a permissão de organização de partidos políticos e retomada de eleições diretas, e o início da fase de consolidação em 1988-1989 a partir da promulgação da nova Constituição e nova eleição direta para a Presidência da República. No total, a transição no Brasil teria durado 11 anos, legando também críticas de incompletude e omissões que viriam cobrar seu preço no período da Nova República249.

Segundo Carvalho e Araújo, “a transição espanhola para a democracia, em comparação ao processo transitório do Brasil, ocorreu num período relativamente mais rápido, três anos (entre os anos de 1975 a 1978), e teve um começo e um final mais claro” 250. A conjuntura política nos dois países se assemelhava no sentido em que ambos governos ditatoriais haviam logrado massacrar a oposição e amedrontar a população de tal forma que não se viam pressionados por movimentos insurgentes revolucionários capazes de destituir a ordem vigente, o que lhes permitiu estabelecer os termos da transição junto à elite econômica, diante de representantes de movimentos de oposição enfraquecidos. O resultado dessa “transição negociada” teria sido a permanência de estruturas anteriores e o estabelecimento de um Estado democrático incompleto por um lado, e de uma arena política condicionada pela negociação anterior por outro. Zaverucha critica o que chama de “semidemocracia” brasileira ao partir de metodologia de transição democrática similar à de Rostow, também com três fases: liberalização, transição e consolidação. O problema de se comparar processos em distintos países usando-se dessa metodologia está, justamente, na definição dessa terceira e última fase. Segundo o autor,

A trajetória histórica dos países latino-americanos é diferente da experiência europeia e norte-americana. É um erro acreditar que a concepção sobre democracia seja a-histórica, isto é, válida para qualquer sistema político independente do tempo.

Recerca en Economia, Universitat de Barcelona, 1999. 248 CARVALHO, C.; ARAUJO, G., Op. Cit., p. 6. 249 Diversos estudos e autores apontaram a incompletude da transição democrática no Brasil, e a ausência de uma justiça de transição e reparação nos moldes das realizadas na Alemanha pós-nazismo e África do Sul pós-apartheid. Para uma coletânea de textos nesse sentido, ver TELES, E.; SAFATLE, V. (Org.) O que resta da Ditadura: a exceção brasileira. São Paulo, Boitempo, 2010. 250 CARVALHO, C.; ARAUJO, G., Op. Cit., p. 6. 179

A terceira fase, a da consolidação, não se refere primordialmente à liça eleitoral e, por isso mesmo, os critérios para sua avaliação são distintos das duas fases anteriores. Em países como o Brasil, onde avançamos muito mais nos direitos políticos do que nos civis e sociais, a divisão trifásica é problemática.251

Isso quer dizer que, se no Brasil a instituição das Forças Armadas não foi responsabilizada pelos crimes de Estado do período ditatorial, ela estava apta a colocar condições ao processo de abertura política e econômica que se desenvolveu a partir de então. Enquanto há inúmeros aspectos da permanência da influência dos militares no controle político, como a centralização dos comandos das polícias militares de cada unidade da federação252, ou mesmo a formação do corpo executivo do Governo253, um dos aspectos da influência dos militares na abertura econômica pode ser visto no tema abordado nesta dissertação, referente ao controle da liberalização do setor aéreo como discutido no capítulo anterior do ponto de vista da regulação, mas que também aparece em escritos sobre “a exceção brasileira”254 como o de Zaverucha. Ali encontramos uma comparação do papel e responsabilidades no setor aéreo legados aos militares no Brasil e Espanha pós-ditadura a partir de um trabalho de 2008 de Roberto Santos255, citado por Jorge Zaverucha:

Na Espanha de Franco, os militares controlavam a Marinha mercante, agências meteorológicas e aviação civil. A Constituição de 1978 aboliu estas prerrogativas dos militares espanhóis. No Brasil, a Constituição de 1988 não acabou com a participação militar em áreas de atividade econômica civil. O Departamento de Aviação Civil (DAC), dirigido por um militar, foi extinto em 2006. Neste ano, foi criada a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) que, todavia, manteve o controle do tráfego aéreo civil nas mãos da Aeronáutica.256

A disparidade do poder dos militares no período pós-ditatorial é um traço distintivo da “transição negociada” em Espanha e Brasil de que tratamos. Na Espanha, a transição negociada da ditadura para a democracia liberal também traria as suas permanências, ou faria ressurgir questões não resolvidas na sua trajetória histórica. O ressurgimento com força da “questão regional”, ou dito de outra forma, da luta por independência das nações que coabitam o território do Estado espanhol, é um dos traços mais marcantes do discurso político na conjuntura recente, o qual já referimos anteriormente ser tratado sob a consigna de uma “segunda transição”. Heranças de enunciados políticos da 2a República (1931- 1939) e marcas da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) despontam e desafiam a “transição 251 ZAVERUCHA, J. “Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988”. Em TELES, E.; SAFATLE, V. O que resta da Ditadura: a exceção brasileira. São Paulo, Boitempo, 2010, p. 67. 252 Idem. 253 Caso do governo Bolsonaro, iniciado em 2019. 254 O título da coletânea “O que resta da Ditadura: a exceção brasileira” faz uma clara referência à obra “O que resta de Auschwitz”, de Giorgio Agamben, e se posiciona no sentido de exame do presente buscando as permanências “insidiosas” da ditadura militar brasileira na Nova República. 255 SANTOS, R. Mais do mesmo: a semidesmilitarização da aviação civil na semidemocracia brasileira, Manuscrito, 2008, citado por Zaverucha. 256 ZAVERUCHA, J. Op. cit., p. 64. 180 negociada” que as forças políticas cada vez mais poderosas na atualidade não aceitam como completa. A dicotomia “centralização x descentralização” continua sendo, e o é cada vez mais, um dos eixos de polarização política na Espanha atual. Nessa polarização, o centralismo é equiparado ao espanholismo, ou nacionalismo espanhol, e identificado com a figura do rei e dos militares. Em contraposição, o federalismo é resgatado como bandeira política das regiões autônomas num discurso descentralizador, republicano e autonomista.

Nesse contexto, faz sentido reconhecer a “questão regional” como um aspecto dos mais relevantes no discurso político recente na Espanha, e que, portanto, deveria condicionar políticas de Estado a partir do eixo de polarização “centralização x descentralização”. Logo, ações relevantes do governo do Estado tais como o processo de privatização de empresas estatais são forçosamente condicionadas por razões de Estado baseadas também nessa polarização, tanto ou mais do que diretrizes de “fortalecimento do mercado de capitais e internacionalização de empresas espanholas”. Admitindo essa hipótese, consideraremos que o que aqui chamamos de “modelo espanhol” de participação privada na administração da infraestrutura aeroportuária teria sido condicionado por diretrizes como “fortalecimento do mercado de capitais e internacionalização de empresas espanholas”, de um lado, assim como por razões de Estado determinadas por uma disputa de soberania sobre o território e pela atuação na contradição “centralização x descentralização” que está contida na política de transportes interurbanos da aviação civil.

Considerando as trajetórias dos Estados espanhol e brasileiro, a partir da bibliografia referenciada admitimos que ambos países podem ser enquadrados em uma condição semelhante de países que têm o seu debate político direcionado pela consolidação da “transição negociada” de uma forma de Estado autoritário para um Estado democrático. E seria nesse enquadramento que os processo de “ajuste” e “catching up” se realizariam dos anos 1990 em diante, com destaque para o período de estudo desta dissertação (2004-2014).

Dado esse enquadramento teórico das trajetórias dos capitalismos na Espanha e Brasil, e considerando ainda a conjuntura semelhante de resposta à crise financeira e econômica global de 2008, questionamos como em um contexto semelhante (o pós-2008 e o “catching up” no mercado de aeroportos globais), Espanha e Brasil optariam por soluções tipicamente distintas de participação privada na administração da infraestrutura aeroportuária. Comparando os contextos e interesses envolvidos nos casos espanhol e brasileiro, seria a transferência do poder de decisão para fora do país um aspecto decisivo para a definição do modelo a adotar? Apresentaria algum risco adicional o modelo de oferta pública de ações, em comparação com outras modalidades de participação da administração privada em aeroportos, como as concessões de aeroportos isolados no caso brasileiro? 181

Ainda que extrapole o período de estudo selecionado nesta dissertação, a 4a rodada de leilão de aeroportos no Brasil ocorrida em 2019 viria a confirmar a eficácia de ambos os modelos. De um lado, o modelo brasileiro perseguia a sua tarefa de conceder à experiência de operador internacional a administração de seus aeroportos, particularmente de um conjunto de aeroportos que compõem nós importantes de um trecho da Rede Aérea Nacional na região Nordeste257. Na 4a rodada de leilões de aeroportos públicos, esse novo operador internacional viria a ser justamente a AENA, estatal espanhola que substituía a sua homônima brasileira e assumia a administração do bloco de aeroportos do Nordeste por 30 anos. Com isso, eram atingidos os objetivos do modelo brasileiro de trazer “expertise” internacional, garantir investimentos mínimos e melhorias futuras a serem implantadas em função do próprio interesse do novo concessionário, ao mesmo tempo em que diminuía o tamanho da Infraero.

Por outro lado, a estatal espanhola lograva cumprir um dos objetivos do modelo espanhol, consagrado na fórmula “fortalecimento dos mercados de capitais e internacionalização da economia espanhola”258. O leilão no Brasil em 2019 consolidaria a expansão da empresa na América Latina e Caribe, assim como o maior operador aeroportuário do mundo em volume de passageiros259. Com o pagamento de 1,9 bilhão de reais, representando um ágio de mais de 1000% ante o preço de referência da ANAC, a estatal espanhola se comprometeu com investimentos a curto prazo da ordem de 790 milhões de reais, e contribuição sobre receita bruta de 1,63% no primeiro ano até 8,16% a partir do décimo ano.

Examinando-se o perfil operacional da empresa, podemos concluir que desde a abertura de capital da estatal e sua transformação em empresa de economia mista, a AENA logrou o seu objetivo de “internacionalização da economia espanhola” por meio da atuação em mercados da América Latina e Caribe. Destaca-se que não se deu, por exemplo, o caso de aquisição da infraestrutura aeroportuária por um outro país membro da UE, cuja possibilidade era real conforme já tratado anteriormente. Pelo contrário, a atuação da estatal espanhola foi extrovertida, buscando atuação em ex-colônias das Américas, além de garantir sua dominância na ligação da região latino-americana à Europa, dada pelo aeroporto de Madrid-Barajas, responsável por 28% do fluxo de entrada em 2019.

Mas a “internacionalização da economia espanhola” era apenas um dos objetivos da atuação da empresa de economia mista. O outro objetivo consagrado no processo de privatização espanhol, o

257 Os seis aeroportos do Bloco Nordeste concedido à estatal espanhola AENA são: Recife-PE, João Pessoa-PB, Campina Grande-PB, Aracaju-SE, Maceió-AL e Juazeiro do Norte-CE. Juntos movimentaram 13% dos passageiros domésticos em 2019. 258 “O motivo que levou o Governo a desfazer-se de metade da empresa pública, segundo justificou a ministra de Fomento Ana Pastor, é prepará-la para competir no mercado exterior”. Em ROMERO, A. “España privatiza el 49% de su red de aeropuertos”. El Pais, 13/06/2014. 259 Além dos 49 aeroportos na Espanha, a estatal espanhola possui 51% de participação no aeroporto de Luton, em Londres, Inglaterra, único na Inglaterra, e outros 22 aeroportos na América Latina e Caribe: 6 no Brasil, 12 no México, 2 na Colômbia, 2 na Jamaica, além de assessoria à estatal cubana na gestão dos aeroportos daquele país. Fonte: http://www.aena.es/es/corporativa/perfil-compania.html, consulta em março, 2020. 182

“fortalecimento dos mercados de capitais”, tinha como objeto o mercado interno de capitais negociados nas bolsas espanholas260. Em 2019, a AENA era responsável pelo transporte de quase 300 milhões de passageiros, dos quais 275 milhões passaram por aeroportos na Espanha (ou 92%). O resultado operacional total da empresa, no qual o negócio de “aeroportos” responde por 92% da operação, foi de 32%261, garantindo-se fluxo de caixa positivo de 240 milhões de euros. Com essa operação, remuneraram-se os acionistas e possibilitou-se o investimento de outros 520 milhões de euros, dos quais 94% se deram em território espanhol262.

Em retrospecto, a AENA é um empresa relativamente jovem do Estado espanhol. Fundada em 1991 já sob domínio civil, incorporou tanto a administração aeroportuária como a navegação aérea, posteriormente delegada a uma nova empresa inteiramente estatal, a ENAIRE. Em 2010 é alterada para AENA S.A., e em 2017 substitui a denominação de sociedade anônima por sociedade mercantil estatal, convertendo-se em AENA S.M.E., da qual a ENAIRE passará a ser acionista majoritária com 51% das ações. Com capital declarado em total de 1,5 bilhão de euros, desde fevereiro de 2015 possui ações negociadas em bolsa, com a seguinte estrutura societária em 2020: 51,0% ENAIRE, 3,21% Capital Research and Management Company, 3,00% Blackrock Inc., 8,29% de TCI Advisory Services LLP (de Christopher Anthony Hohn, representando 3,61% The Children’s Investment Master Fund, 2,45% TCI Luxembourg S.A.R.L. e 2,23% Talos Capital Designated Activity Company) e os restantes 34,5% negociados em bolsa com minoritários (free float).

O tráfego na rede aérea na Espanha, à semelhança da brasileira, é altamente concentrado em poucos aeroportos nas cidades mais ricas e principais destinos turísticos, uma das atividades econômicas mais importantes no país desde a entrada na União Europeia. Se selecionamos o mesmo período em que estudamos o caso brasileiro, iniciando em 2004, identificamos uma mesma estrutura espacial de distribuição do tráfego de passageiros nos 49 aeródromos espanhóis ao longo do período: os três principais aeroportos concentram mais da metade do tráfego aéreo na Espanha no período 2004-2019. A AENA estratifica sua rede separando esses três aeroportos e reunindo os restantes em grupos: Grupo Canarias para aeroportos que dão serviço ao arquipélago, Grupo I com aeroportos predominantemente turísticos e também regionais com demanda média de 2 milhões de passageiros/ano, Grupo II com aeroportos regionais com demanda média de 500 mil passageiros/ano e Grupo III com aeroportos regionais e aeródromos de aviação geral de menos de 500 mil passageiros/ano. A tabela abaixo relaciona a participação média dos aeroportos e grupos com suas

260 A AENA possui 1,5 bilhões de Euros em ações negociadas (com valor nominal de 10 euros cada) nas quatro bolsas espanholas: Madri, Barcelona, Valencia e Bilbao desde 11 de fevereiro de 2015. 261 Resultado do período atribuível aos acionistas da dominante. Em AENA, Informe de gestión consolidado 2019. 262 AENA, Informe de gestión consolidado 2019. 183 características definidas pela AENA para a estratificação da rede263. O mapa dos aeroportos da rede aérea da AENA é mostrado na figura a seguir.

Figura 69: Mapa dos 45 aeroportos públicos do Sistema AENA

Tabela 13: Aeroportos e Grupos de aeroportos da rede aérea na Espanha

Aeroporto/ Grupo Participação % Destino Madrid-Barajas 23% Hub Barcelona 17% Hub Palma de Mallorca 12% Turístico Grupo Canarias (Gran Canaria, Tenerife Sur, Lanzarote, Fuerteventura, Tenerife 17% Turístico e Norte, La Palma, El Hierro, La Gomera) regional Grupo I (Málaga, Alicante, Ibiza, Valencia, Sevilla, Bilbao, Girona, Menorca, 26% Turístico e Reus, Granada, Santander, Zaragoza) regional Grupo II (Santiago, Múrcia, Asturias, Jerez, A Coruña, Vigo, Almeria) 4% Regional Grupo III (Valladolid, Melilla, San Sebastian, Pamplona, Leon, Vitoria, Badajoz, 1% Regional e Burgos, Ceuta, Córdoba, Logroño, Salamanca, Albacete, Algeciras, Huesca- Aviação Geral Pirineos, Madrid-Cuatro Vientos, Sabadell, Son Bonet)

263 Fonte: Anuários da AENA (2000-2019), Relatórios Financeiros na CNMV e entrevistas. 184

Também no caso espanhol vamos encontrar uma linha aérea principal em volta da qual se organiza a rede: a ligação Madri-Barcelona, na qual opera a versão espanhola da “ponte aérea” inaugurada em 1974 como reserva de mercado para a empresa estatal Iberia. Nessa rede estratificada e ao mesmo tempo distribuída no território do Estado espanhol percebemos o resultado da ação estatal de planejamento da infraestrutura de transportes. Os grupos II e III concentram 25 “aeroportos regionais” mantidos pela AENA por razões de integração territorial, ainda que a contribuição para o tráfego como um todo esteja limitado a 5%. Ou seja, mais da metade dos pontos da rede aérea na Espanha respondem por menos de 5% do volume de tráfego, enquanto apenas 3 aeroportos (6%) concentram mais da metade do tráfego total. Se descermos ao detalhe dos planos de investimento e expansão da AENA antes da sua abertura para participação privada, veremos que a década de 1990 foi, grosso modo, uma década de modernização em geral e de ampliações moduladas de capacidade no centro da rede, enquanto as decisões de investimento da década de 2000 (algumas das quais não se completariam até 2014) seriam em geral de ampliação e atualização dos aeroportos centrais e dos turísticos, essenciais para a infraestrutura econômica do país. Através do caixa comum da empresa, os demais aeroportos regionais seriam custeados pela geração de receitas nesses aeroportos “com vocação econômica”264.

Segundo os balanços auditados publicados pela Comissão Nacional do Mercado de Valores da Espanha (CNMV), e as informações disponibilizadas pela própria empresa, a valorização das ações desde sua abertura em fevereiro de 2015 superou o índice de referência do mercado de valores na Espanha (IBEX) e também teve desempenho superior aos de seus concorrentes europeus de capital aberto (Zurich, Fraport, Aéroport de Paris), conforme demonstrado na figura a seguir (AENA representada por linha verde clara acima das demais, Viena por linha vermelha, Aéroport de Paris por linha violeta, Fraport por linha verde escura e Zurich por linha roxa).

264 Dos aeroportos principais, o aeroporto de Madri nunca deixou de receber investimentos para sua modernização e ampliação. O aeroporto de Palma de Mallorca, de grande afluência turística, teve sua mais completa reforma realizada entre 1993 e 1997. Em 2004 são ampliadas as pistas de pouso e decolagem e taxiways, bem como construída a 3a pista paralela no Aeroporto de Barcelona, tendo o novo terminal de passageiros sido inaugurado em 2009 com 500 mil metros quadrados e investimento de 1,2 bilhões de euros (correntes) com capacidade para mais de 50 milhões de passageiros/ano. Em 2006 é implementado o “Plan Barajas” de ambiciosa expansão de Madrid-Barajas, com a construção de novo terminal para 35 milhões de passageiros/ano, novas pistas e pátios e infraestrutura auxiliar. Em 2007 é inaugurado o novo terminal do Aeroporto de Málaga dentro do também ambicioso “Plan Málaga”: infraestrutura de área de manobras e terminal para atingir a capacidade altíssima de 9 mil passageiros em hora-pico (concluído em 2010). Em 2011 são finalmente concluídas as obras do Terminal de Alicante (atrasadas após a crise de 2008) para uma capacidade de 6 mil passageiros/ hora-pico, também muito elevada, coincidindo com o início de operação da AENA S.A. Os investimentos no aeroporto de Gran Canaria já iniciados na década de 2000 seriam reprogramados e não se concluiriam até 2014, quando se inaugurou o novo terminal, e que coincidiu com a reestruturação societária da AENA que incorporou a ENAIRE (subsidiária de controle de navegação aérea). Em 2015 a AENA S.A. abriria seu capital nas bolsas espanholas. 185

Figura 70: Cotação da ação AENA comparada a operadores europeus concorrentes nas bolsas espanholas no período 2015-2020 (Fonte: AENA, 2020)

No médio prazo, o seu desempenho contábil foi marcado pelos efeitos da crise financeira e econômica de 2008 e pelas decisões de investimento e de reestruturação societária por que passou no período pós-2011. Na figura a seguir reunimos a evolução de variáveis selecionadas nesse período, evidenciando impacto positivo identificado após a abertura do capital em bolsa e o impulso resultante no EBITDA e produtividade geral da empresa em termos de passageiros totais transportados265.

AENA PÓS-2011 - EVOLUÇÃO DE VARIÁVEIS SELECIONADAS

(Receita Bruta, EBITDA, Fluxo de Caixa e Volume de Passageiros) - 2011-2019

60% 1.000

900 36,7% 855 40% 31,2% 800 19,0% 20% 13,5% 700 11,0%8,9% 8,2%9,7% 651 6,0% 4,5% 5,9% 5,8%5,5% 4,1% 0 12,8% 12,7% 565 -5,0%8,0% -3,5% 6,5% 7,2% 6,8% 7,2% 600 0% 511 4,2% 500 -20% 400

-40% 249 241 300

200 (Correntes) Euros de Milhões -60% -63,9% 100 1 4 1 -80% 0 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

TRÁFEGO DE PASSAGEIROS EBITDA RECEITA BRUTA FLUXO DE CAIXA Figura 71: Evolução percentual de tráfego de passageiros, receita bruta, EBITDA (2011 = base 100) e Fluxo de Caixa (Valores nominais em milhões de euros) no período 2011-2019

265 Considerando somente o mercado europeu (Schengen e não Schengen), exclusive Luton no Reino Unido adquirido em 2014. 186

Se recuarmos ainda um pouco mais antes de 2011, e remontarmos a série histórica de transporte de passageiros pela AENA, veremos os efeitos da crise de 2008, um período de altos e baixos que não mostraram tendência de melhora até 2014, quando a empresa voltou a crescer decididamente até o período atual. Na figura a seguir comparamos os números do tráfego de passageiros regulares, doméstico e internacional, na rede aérea na Espanha e Brasil. Nesse gráfico podemos ver, ademais da diferença do porte de cada rede, como cada sistema reagiu à crise e à reestruturação do planejamento estatal. Por um lado, a crise foi mais impactante logo em 2008 para o caso espanhol, enquanto a reestruturação societária trouxe benefício do lado da produtividade mais claros do que no caso do Brasil. Neste, a crise de 2008 não marcou negativamente o país: pelo contrário, viam-se os efeitos das medidas anticíclicas de fomento ao consumo e exportações, e a desaceleração viria somente em 2011- 2012. Depois de 2014-2015 há uma redução absoluta no volume de passageiros transportados, mas nenhum efeito sobre a curva de passageiros totais pode ser creditado à política de concessão de aeroportos da ANAC. Por outro lado, como dissemos, a curva que representa a rede na Espanha mostra um viés claro de crescimento a partir de 2014. Se retomarmos os números absolutos que geraram a curva de Fluxo de Caixa da empresa da figura anterior, veremos um salto do patamar de 1 milhão de euros em 2011 para 250 milhões em 2014, 500 milhões em 2015 e 850 milhões de euros em 2017. A partir de 2014 a margem do EBITDA é elevada, chegando a média de 61% (2014-2019).

Figura 72: Evolução comparada do tráfego aéreo (doméstico e internacional) na Espanha e Brasil (2004-2019)

* * * 187

Para fins de comparação do modelo espanhol com o modelo brasileiro, importa-nos não apenas o resultado econômico da empresa espanhola abordado acima, que poderia ser comparado com aquele já detalhado a respeito da Infraero no capítulo anterior, ou mesmo com os fluxos de caixas negativos projetados para esse mesmo período nos aeroportos concedidos. De fato, se entendemos que os seus desempenhos são devidos aos modelos específicos escolhidos em cada país, interessa concluir o que cada modelo carregaria de visões da função das suas infraestruturas no processo de formação de parcerias entre capitais públicos e privados, e particularmente do papel das empresas estatais que as administram. Embora ambos países apresentem trajetórias históricas recentes que possam ser consideradas como “transições negociadas”, nas quais o poder civil encontrava-se tutelado de alguma forma, vimos neste capítulo como a transição de um Estado fascista para uma democracia liberal sob uma monarquia constituinte representou uma ruptura maior e mais profunda do que no caso da transição brasileira para a Nova República.

No entanto, as incompletudes daquele processo na Espanha fazem-se sentir no presente e, segundo entendemos, condicionam a razão de Estado na definição de políticas e estratégias de desenvolvimento dentro do paradigma do “ajuste” e do “catching up” em curso. Com isso em consideração, a trajetória da infraestrutura aeroportuária naquele país observou sua mudança mais significativa nos anos 1990, com a fundação da empresa estatal AENA responsável por implantar a infraestrutura econômica para o desenvolvimento do turismo e da integração territorial que marcavam a estratégia do Estado quando de sua adesão à União Europeia. Nos anos 2000, o investimento público havia expandido consideravelmente a capacidade no setor, por vezes inclusive muito além da demanda observada, chegando aos anos 2010 em situação de altas despesas de operação e manutenção, porém com baixas necessidades de investimentos. O fluxo de caixa da empresa era raso, porém dispunha de um centro de rede aérea muito lucrativo, estruturado ao redor da ponte aérea Madri-Barcelona. Em termos comparativos com o Brasil, reencontramos as questões das disparidades regionais, rede concentrada e subsídios cruzados por meio da administração estatal em empresa única.

Nesse contexto, a entrada da participação privada na administração de infraestrutura aeroportuária foi objeto de planejamento pelos dois partidos que dominaram o debate político nas últimas três décadas, Partido Socialista Obrero Español (PSOE) e Partido Popular (PP). Em polos opostos do espectro político, dentro do condicionamento do debate nesse período pelas sobredeterminações referidas anteriormente, ao Partido Popular coube representar as heranças “franquistas” ou centralistas mais que ao PSOE, que frequentemente se viu enredado em disputas vacilantes do governo central com regiões autônomas. Nessa polarização, foi no governo do PSOE sob Zapatero (2004-2011) que o impulso ao investimento estatal para o turismo e a integração territorial foi maior (em comparação com o período 1996-2004 do Governo Aznar), e também quando o primeiro “modelo” espanhol foi formulado, modelo este que muito se assemelhava ao que viria a ser estabelecido no Brasil na mesma época. 188

Propugnando a concessão dos aeroportos centrais de Madri e Barcelona, o PSOE pensava em angariar receitas para o governo central, enquanto permitiria aos capitais privados assumirem (temporariamente) o controle desses aeroportos, e dos demais rentáveis na sequência, começando por Palma de Mallorca. Segundo a bibliografia consultada e entrevistas realizadas, a tônica do debate então era de que a participação privada “era uma prática mundial” inescapável, e que o “catching up” passava por conceder ou privatizar aeroportos isolados e mais rentáveis. A “massa falida” teria de permanecer um problema do Estado nacional, o que não ficara bem resolvida no modelo sob o PSOE, uma vez que os investimentos mais pesados já haviam sido feitos pela AENA que dependia dos aeroportos centrais para se equilibrar.

Com a mudança de governo e ascensão do partido conservador PP sob liderança de Rajoy (2011- 2018), o modelo é radicalmente alterado para uma visão centralizadora e unitária: uma única rede aérea com uma empresa estatal centralizada a operar, contando com participação privada por meio de ações negociadas em bolsa de forma minoritária. Nessa trajetória, é importante notar como há complementaridade nas ações executivas de ambos partidos na construção da institucionalidade que permitiria a operação da AENA sem as graves omissões de sua contraparte no Brasil. O marco jurídico de aplicação no presente para a estatal já estava definido em 2003, ficando claramente instituída a transferência de patrimônio do Estado para a empresa, garantindo assim sua estabilidade patrimonial e, consequentemente, financeira. A opção por um ou outro modelo, naquele caso, aparecia como opção política real, e nesse ponto a tradição centralista e conservadora imbuída no PP levou o governo a reconsiderar o modelo de concessão de aeroportos centrais isolados e a definição de um modelo “peculiar” segundo a Comissão Nacional dos Mercados e Competição (CNMC), órgão regulador do setor266. A opção por uma trajetória fora das expectativas do mercado e em favor de razões de Estado ou de uma visão particular dos rumos que o Estado deveria tomar como resposta a questões de longa permanência revelou a natureza essencialmente política do planejamento, mesmo em contexto de sobredeterminação do “catching up”. O partido conservador no Governo dava preferência à centralização e organização unitária do Estado, em detrimento do fracionamento da rede e participação “regional” de capitais interessados em desenvolver aeroportos como Barcelona ou Palma de Mallorca, mas descompromissados com a integridade da Rede Aérea. Com isso, viabilizava as pretensões de expansão internacional, principalmente sobre o território de ex-colônias, reforçando um traço característico da economia espanhola de geração de valor fora do país267.

266 “INFORME SOBRE EL BORRADOR DE REAL DECRETO-LEY POR EL QUE SE ESTABLECE EL MARCO JURÍDICO DE LA REGULACIÓN AEROPORTUARIA Y EL RÉGIMEN DE TRANSPARENCIA Y CONSULTA EN LA FIJACIÓN DE TARIFAS AEROPORTUARIAS DE AENA, S.A.”. Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia, Madri, 2/7/2014. 267 Em 2017, o valor de negócios de empresas espanholas no exterior foi equivalente a 17% do PIB. Desse valor, 50% era gerado nas Américas, sendo 30% na América Latina. INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICA. “Estadística de Filiales de Empresas Españolas en el Exterior: Año 2017”. 27 de setembro de 2019. 189

Em comparação com o caso espanhol, por que a integração territorial e o fomento à expansão internacional de empresa estatal não seriam atributos válidos para a política de concessão aeroportuária no Brasil? 190

Considerações finais 191

Do que vimos expondo sobre o processo decisório para a adoção de um modelo para a criação de um novo mercado de administração aeroportuária, comparando os casos de Brasil e Espanha, ressaltamos as razões que sobredeterminavam as ações dos planejadores em posição de tomada de decisão. No caso brasileiro, nosso objeto de estudo, reconstruímos a longa trajetória de formação do setor debaixo das asas do Estado brasileiro, em processo cumulativo, paulatino, errático e condicionado pelo corporativismo estatal que, em sua forma específica no Brasil, teria moldado o processo de tomada de decisão dentro do aparelho do Estado. Dentro dessa superestrutura, a própria forma de mercado gestada no seio da máquina estatal seria marcada por um processo de seleção de potenciais interessados de acordo com o cenário de participação privada na administração aeroportuária, com consequências para o futuro da empresa estatal e da Rede Aérea Nacional.

Nesse processo, as positividades e negatividades de cada cenário ou modelo cotejado pelos tomadores de decisão seriam ponderadas em função das questões mais prementes aos planejadores e ao bloco no poder: se afinal é preciso contar com capitais privados para realizar investimentos urgentes que a empresa estatal não era capaz, de que forma atrair os capitais privados? Ademais, seria possível sustentar um discurso político de que não se trataria de promover uma privatização, lesiva aos interesses nacionais como aquelas dos anos 1990? Se o paradigma corrente de concessões em outros setores é o de menor tarifa ao usuário, como é possível atingi-lo nesse objeto sem com isso criar um desequilíbrio no setor ao incentivar a competição entre aeroportos (e as cidades a que servem na condição de monopólios naturais)?

Com opções desde abertura de capital da estatal, que levaria a configuração de capitais privados anônimos minoritários pulverizados, com pouca capacidade de acumulação direcionada, e que aqui tratamos como o “modelo espanhol”, a opções de concessão de toda a rede, aeroportos selecionados ou mesmo componentes específicos (terminais, explorações comerciais), que por sua vez levaria a criação de novos grupos mais ou menos poderosos, com maior ou menor poder de monopólio, a tomada de decisão inclinou-se por essa última. Nessa opção, não seguiu o “modelo argentino” de concessão integral da Rede Aérea Nacional a uma empresa privada, o que equivaleria à primeira opção de manter a rede integrada, porém com a desvantagem de extinguir de vez a Infraero. Tampouco espelhou-se em modelos federados que combinam rede estratificada com poder de decisão regional (governos estaduais, provinciais) como na Alemanha e, até certo ponto, na França e Reino Unido.

Segundo interpretamos da análise dos documentos obtidos ao longo da pesquisa e das entrevistas colhidas com participantes chave no processo de elaboração do “modelo brasileiro”, a escolha foi no caminho de comprometer-se com uma “solução intermediária” em um modelo híbrido que combinaria a participação da Infraero em concessão de aeroportos mais necessitados de investimentos 192 urgentes no centro da rede com a permanência da estatal operando a periferia da rede em modo de deficit permanente. As consequências dessas escolhas públicas baseadas na urgência do momento são várias, das quais destacamos as mais relevantes:

• reforço à tendência de centralização da RAN, ao concentrar investimentos nos aeroportos centrais que não se espalham ao restante da rede de forma orgânica: o mecanismo de subsídio cruzado através do FNAC era um artifício contábil inventado para dar sustentação a um discurso político impraticável • proteção excessiva do investidor privado com subsídio do seu custo de capital e despesa operacional ao conceder-lhe inteira autonomia para tomada de decisão de gastos contando com o custeio de 49% através da participação obrigatória da Infraero, a qual não intervia na tomada de decisões de planejamento ou investimento • inflacionamento do valor de outorga onerosa, na medida em que permitia o parcelamento do pagamento ao longo do período de concessão, o que a converteu em mais uma despesa para- fiscal que pode ser contabilizada no fluxo de caixa da empresa, beneficiando-se do financiamento público de longo prazo • alteração do modelo a cada rodada de leilão, resultando num mercado de estrutura heterogênea, com operadores privados com um aeroporto, dois aeroportos ou bloco de até 9 aeroportos, ora com participação da Infraero ou não, ora com pagamento integral à vista do valor de outorga onerosa ou parcelamento

Nesse processo decisório que se desenvolveu até os dias atuais, o modelo brasileiro teria assumido a singularidade de se apresentar como um modelo que não é um modelo. Nas 2a e 3a rodadas de leilões que estudamos, vimos como o “ensaio geral” anterior na concessão do aeroporto greenfield de São Gonçalo do Amarante-RN foi revisado, para adotar uma concessão por tempo determinado, com reversão do patrimônio à União, decidido por meio de leilão a viva voz simultâneo. Em lugar de dar continuidade ao movimento “gradualista” da desregulamentação do setor até então em voga, e iniciar pela concessão dos aeroportos secundários em cada área terminal central da rede, como Viracopos-SP em São Paulo e Galeão-RJ no Rio de Janeiro, mantendo os aeroportos principais com a Infraero, o que na visão dos planejadores que fomentavam as concessões no Ministério da Fazenda desde a década anterior deveria induzir a competição entre a Infraero e novos atores privados, o Governo decidiu-se pela concessão dos principais aeroportos da rede logo de início. O critério parece não ter seguido aquela recomendação técnica, que também era encontrada nos “Estudos da ANAC” de 2009 que analisamos no capítulo 2, mas o da urgência em executar os investimentos nos aeroportos centrais, cuja capacidade encontrava-se saturada e era identificada como uma das preocupações da Matriz de Responsabilidades da Copa.

Com critério de seleção pelo maior lance de outorga onerosa, o modelo gerava instantaneamente caixa para o Tesouro Nacional amealhando diretamente os aeroportos mais rentáveis do Sistema da Infraero, comprometendo seriamente sua viabilidade financeira. Esse processo seria conduzido 193 inteiramente por civis, funcionários públicos de carreira conduzidos pelo bloco no poder e supervisionados pelo Comando da Aeronáutica em todo o tempo268.

Segundo pudemos apurar em entrevistas com profissionais diretamente envolvidos na elaboração do Edital e Contrato de concessão de praticamente todas as rodadas de leilões de aeroportos da ANAC, o modelo forjado nas 2a e 3a rodadas não representava exatamente a visão da consultoria privada (Leigh Fischer) contratada pela EBP para elaborar o modelo. Tampouco salvaguardava todas as petições dos distintos órgãos internos do governo (Presidência, Casa Civil, Infraero) sobre a governança das concessionárias numa estrutura societária sui generis, que contava com uma mesma sócia com 49% em todos os aeroportos sem poder de decisão e arcando com metade do ônus nesse período inicial de fluxo de caixa negativo. Recordamos o exposto no capítulo 3 sobre o período de retorno dos modelos econométricos dos 5 aeroportos estudados, que variava de 9 anos (caso de Guarulhos-SP) a 19 anos (Viracopos-SP). Mesmo no caso mais favorável, exigia-se da estatal um fôlego extra de endividamento que não condizia com o cenário anterior à concessão de dificuldade de custeio da estatal por aportes de capital para a realização de investimentos.

Por outro lado, a tão sonhada competição entre aeroportos em um mesmo mercado relevante, motivo principal para a concessão para os planejadores na SAC e Ministério da Fazenda, colocava um conflito societário na maior área terminal da rede: em São Paulo, Viracopos-SP tinha seu modelo inteiramente dependente da migração de demanda de Guarulhos-SP. No entanto, a Infraero era sócia de ambos os aeroportos concedidos simultaneamente, e não poderia desempenhar nenhum papel ativo no desenvolvimento de nenhum dos aeroportos (caso fosse possível) sem incorrer em prejuízos reais: se “desinvestisse” em Guarulhos-SP, incorreria em um custo mais elevado de capital para a realização de um investimento que traria como retorno uma margem sempre menor do que aquela obtida com investimentos marginais no maior aeroporto do país, pelo menos até o limite de sua capacidade, estimada em 54 milhões de passageiros anuais. E se seguisse nessa linha, o problema de Viracopos-SP somente se agravaria, levando-o a insustentabilidade operacional e financeira.

Por sinal, um traço característico do “modelo brasileiro” que apontamos foi o fato de haver pré- definido os investimentos de curto prazo, configurados no Plano de Melhoria da Infraestrutura (PMI) que focava em intervenções até 2014 e 2016, sincronizados com os Grandes Eventos, enquanto os investimentos de longo prazos eram previstos em contrato por meio de gatilhos de demanda. O instituto do gatilho de demanda era uma inovação relativamente recente em concessões no setor de infraestrutura no Brasil, mas para que pudesse passar pelo crivo do Tribunal de Contas da União, os

268 “Só via fardas” foi a expressão que entrevistados que participaram ativamente da elaboração do “modelo brasileiro” comentaram em entrevistas a respeito das reuniões de apresentação de resultados ao Governo. O papel dos militares no processo decisório dentro do governo foi de tutela e supervisão, sem participação ativa na elaboração do modelo de concessão de aeroportos, uma vez que estava garantida a manutenção do seu poder sobre a infraestrutura de auxílio à navegação aérea e controle do espaço aéreo do Estado brasileiro. 194 planejadores julgaram que o modelo não poderia ser inteiramente baseado em gatilhos de demanda. Aos olhos do Tribunal, se a modelagem previa algum investimento para justificar aquele fluxo de caixa simulado, esse investimento deveria ser declarado e exigido do concessionário. Por esse motivo, a solução de compromisso inserida no modelo foi adotar parte dos investimentos como obrigatórios e declarados (em princípio, deveriam ser aqueles já identificados pelo planejamento estatal como exigidos pela demanda presente) e parte restante vinculada a gatilhos de demanda que seriam aferidos pelo próprio concessionário com aprovações frequentes do Poder Concedente (ANAC).

No futuro reservado à Infraero, é impossível precisar quanto do “Estudo para Infraero” foi de fato considerado para a implantação da política no setor. Alguns traços dos prognósticos e medidas sugeridas naqueles documentos parecem ter dirigido as ações do governo, como a adoção do modelo híbrido AB em agenciamento casuístico dos modelos B2 (concessões de aeroportos com alta necessidade de investimentos) e B3 (concessões em blocos de aeroportos), preservando algumas opções para o futuro da estatal, como a concessão dos aeroportos restantes em bloco, com controle pulverizado (B4) ou a abertura tardia de capital da Infraero (A1)269. Como previsto naqueles estudos e na própria modelagem para concessão da ANAC, a primeira década do novo “modelo brasileiro” seria fatalmente condicionada por fluxo de caixa negativo devido ao grande volume de investimentos que se exigiam para a rápida expansão da capacidade nos aeroportos centrais antes dos Grandes Eventos. Nesse sentido, a previsão de deficit persistente e nenhum retorno do investimento já realizado em seu nome nos anos iniciais pode ser parcialmente creditado a um “legado da Copa” para a Infraero em função do modelo que se adotou para lograr a realização dos investimentos. Se o novo governo que assumiu após a destituição do antigo bloco no poder, que governou no período 2004-2014, desistir da participação de 49% da Infraero nesses 5 aeroportos ainda durante esse período de fluxo de caixa negativo, possivelmente motivado por uma sanha saneadora de redução do deficit momentâneo das contas públicas, significaria assumir um prejuízo para o Estado que daria preferência a consolidar as perdas do que investir no futuro da estatal.

A interrupção da trajetória traçada no “modelo brasileiro” dez anos atrás é, no entanto, uma possibilidade real, além de uma constante da prática de planejamento brasileira. Em interpretação mais ampla e de mais longo prazo da história recente do país, traçamos paralelo entre a “transição negociada” no Brasil pós-ditadura e na Espanha pós-fascismo. Enfocamos particularmente as consequências para o setor aéreo e como a sua desregulamentação aqui assumiu um caráter de “desmilitarização”, em sucessivas etapas controladas de abertura do setor, até o ponto atual de criação de um novo mercado de aeroportos. Resta intocada, no entanto, a infraestrutura de auxílio à navegação aérea e o controle do espaço aéreo, ainda sob domínio militar. Nessa interpretação,

269 Rever quadro de modelos alternativos de configuração empresarial para a Infraero elaborado nos “Estudos para Infraero” na Figura 51. 195 sustentamos que o corporativismo, forma específica de composição do aparelho de Estado no Brasil, logrou ser a regra por detrás de toda descontinuidade na política pública do setor, e que teria sido por meio dele também que o bloco no poder que governou no período 2004-2014 pode conduzir o aparelho de Estado nas tomadas de decisões que conformaram aquilo que tentativamente chamamos de o “modelo brasileiro” de administração aeroportuária.

Essa condução, como defendemos, estaria sobredeterminada pelo “ajuste” que o “catching up” impunha à transição brasileira, no sentido de que as razões de Estado e motivações do bloco no poder a condicionar o debate público e a ponderação da correlação de forças se voltavam a questões práticas de como modernizar o setor ao mesmo tempo em que se decidia que características do passado corporativista se conservariam, que grupos se privilegiariam. Nesse contexto, a política de campeãs nacionais dava uma orientação clara às políticas de desenvolvimento do período, mormente na fase descensional do ciclo pós-2008, quando políticas anticíclicas fomentavam o investimento privado puxado pela construção civil e o setor primário exportador. Sob a liderança deste último, o setor de construção civil assumia grande responsabilidade na resposta à crise, sustentando o nível de emprego e investimento em formação bruta de capital fixo na infraestrutura econômica do país. Particularmente no mercado de concessões públicas, como tratamos na Introdução desta dissertação, as empreiteiras já haviam se posicionado vantajosamente para ramificarem sua atuação na direção de assumir concessões de serviços públicos nos setores de energia, saneamento e transportes.

Na pesquisa prévia que os estudos de modelagem contratados pelo BNDES costumam fazer, é prática comum que seja feito um reconhecimento do mercado potencial de uma nova concessão. No caso de mercados constituídos, é estimado o apetite e interesse dos atores conhecidos e já envolvidos em concessões no mesmo mercado, para averiguar a pertinência do lançamento de mais uma concessão dentre outras já em curso. No caso de concessões em que não exista um mercado prévio, o planejador procura perscrutar mercados correlatos e sondar as possibilidades e interesses de atores de outros mercados em participarem de uma nova concessão a ser criada. Segundo pudemos apurar em nossa pesquisa, ao elaborarem o Edital de Concessão das 2a e 3a rodadas de leilões de aeroportos da ANAC, EBP e consultores haviam identificado as empreiteiras brasileiras como líderes de grupos de interesse em potencial. A minuta do Edital havia sido publicada no início do 2° semestre de 2011, após uma série de audiências públicas e roadshows de apresentação do modelo, disparando a mobilização dos grupos de interesse para a elaboração dos estudos preparatórios à participação nos leilões agendados para o início de 2012. Quando da publicação da versão definitiva do Edital de Concessão em dezembro de 2011, três meses antes do leilão, uma importante alteração havia sido incluída, e para a qual as empreiteiras já haviam se preparado: passava a ser exigida a associação com operador aeroportuário de experiência internacional (mínimo de 5 milhões de passageiros/ano) com 10% na 196 sociedade. Todas as grandes empreiteiras concorrentes já haviam se associado a operadores internacionais, largando na frente de grupos que não estavam devidamente articulados.

No entanto, a promoção de concorrência era ainda um problema não resolvido no “modelo brasileiro”, como vimos no capítulo 2. Em um contexto de monopólios naturais, com baixíssimas possibilidades de que a concorrência entre aeroportos durante o período de concessão induzisse comportamentos eficientes dos concessionários, o “modelo” definido pela EBP e ratificado pela ANAC apoiava-se em teoria dos jogos para prever que a concorrência se daria na outorga da concessão, por meio de leilão de viva voz simultâneo. Nesse sentido, a ação do Poder Concedente indutor da concorrência deveria ser o de reduzir as barreiras à entrada para ampliar o número de participantes no leilão. Para tanto, o critério de experiência anterior do operador internacional foi limitado a mínimos 5 milhões de passageiros/ano, equivalente ao tráfego do Aeroporto de Belém-PA em 2009. Recordamos que o tamanho do mercado em 2011 era de 82 milhões de passageiros/ano e que, Guarulhos sozinho, movimentava 29 milhões de passageiros naquele mesmo ano. O que a ANAC conseguiu com isso foi permitir que grupos menores passassem na frente de grandes grupos associados a importantes operadores internacionais. A consequência foi um resultado de leilão festejado no mercado e imprensa, mas remoído nos palácios. Na 2a rodada, grupos importantes como Odebrecht e Changi, ou CCR e Fraport ficaram de fora, sendo ultrapassados pela Invepar (associação de fundos de pensão públicos com a empreiteira OAS) em Guarulhos-SP, UTC e Triunfo em Viracopos-SP e Corporación America em Brasília-DF. A emenda viria na 3a rodada, com exigências altíssimas aos participantes que só poderia ter levado ao desfecho conhecido: Odebrecht e Changi vencedores no Galeão-RJ e CCR+Zurich+Munchen vencedores em Confins-MG270.

Passadas as 5 rodadas de leilão de aeroportos até os dias atuais, pudemos ver que o “modelo brasileiro” metamorfoseou-se durante o processo de leilões da ANAC. Nas 2a e 3a rodadas estudadas nesta dissertação, vimos um mesmo modelo com alterações casuísticas nas exigências de experiência anterior que oscilaram entre o favorecimento à competição e a grupos de interesse do bloco no poder. Na 4a rodada, a participação obrigatória da Infraero será retirada, e será permitido a um mesmo concorrente ser vencedor em mais de um aeroporto em regiões diferentes. Na 5a e 6a rodadas, o modelo passará a agrupar aeroportos de média e baixa demanda em blocos regionais, em concessões mais longas (30 anos), com pagamento de outorga à vista. Logo, se o modelo foi se ajustando ao longo do tempo, aperfeiçoando-se para os otimistas, também podemos dizer que ele foi condicionado pelas urgências cambiantes da situação. Nas 2a e 3a rodadas que nos interessam como objeto de estudo, identificamos um nexo causal entre a emergência de um problema até então negligenciado pelo planejamento, traduzido como a necessidade de acelerar o ritmo de investimentos em infraestrutura

270 Logo após a efetivação do contrato, a parte de Munique foi comprada pelos demais sócios. Zurich Airports depois evoluiria para associar-se com a construtora Racional e vencer o leilão do Aeroporto de Florianópolis na 4a rodada, e tornar-se a concessionária do Bloco Sudeste (Vitória-ES e Macaé-RJ) na 5a rodada. 197 aeroportuária, e a formulação de sua solução que passava por convocar grupos econômicos associados ao bloco no poder para realizar os investimentos que seriam retirados da programação estatal.

Queremos com isso dizer que o “modelo”, assim como ficou conhecido nas 2a e 3a rodadas, foi forjado pelo bloco no poder num período condicionado pela hegemonia do setor primário-exportador que permitia o crescimento econômico do país puxado pelo “boom das commodities” e de seu reflexo interno no impulso ao consumo que impactou o setor aéreo de maneira positiva para o mercado de transporte aéreo, com crescimento médio anual de 10% no período ascensional do ciclo (2004-2008), mas de maneira negativa para a infraestrutura que não expandia sua capacidade adequadamente, levando ao “caos aéreo”. Uma vez criado o modelo, como apontamos, ele atingiria o status de consenso no debate público que o permitiria persistir mesmo depois do fim do ciclo e da destituição do bloco no poder. As rodadas subsequentes, em tudo o que viriam a alterar o “modelo”, somente confirmariam a periodização adotada nesta dissertação para definir a causa, a oportunidade e a solução consagrada no modelo brasileiro de participação privada na administração aeroportuária. O bloco no poder encontrou no “modelo” uma oportunidade de resolver seu problema emergente ao passo que abria caminho para a continuidade da acumulação de capital pelas empreiteiras em expansão sobre mercados associados aos seus de origem. Conclui-se que o novo mercado de aeroportos era criado como um espaço de expansão das empreiteiras sobre terreno retirado da Infraero.

Nessa perspectiva, a designação da estatal para ser o veículo de transferência de recursos do orçamento da União para reduzir a conta de capital e despesas correntes dos concessionários privados foi apenas um lado do arranjo; o outro lado era dado pelo financiamento público via BNDES para cobrir um dispêndio de capital excessivo e concentrado no tempo para a expansão de capacidade muito acima da demanda média observada no período.

Os efeitos positivos para o usuário, que pode desfrutar de melhores infraestruturas sem alteração de custos aparentes, e a natureza cambiante do “modelo” engendraram a formação de um consenso dominante do sucesso da política de concessão de aeroportos no país, o que permitiu a sua continuidade mesmo após a destituição do bloco no poder (pós-2014). A ascensão das empreiteiras ao bloco no poder, que pode ser observada em destaque na política de concessão de aeroportos segundo o “modelo brasileiro”, foi alvo de um ataque decidido e certeiro que logrou desfazer a associação que sustentou o poder político no ciclo do setor estudado nesta dissertação, no período 2004-2014. Esse movimento levaria àbaixo o setor da construção civil e a retomada da economia após 2014, encerrando definitivamente o ciclo do setor e a sua efêmera ascensão ao bloco no poder. 198

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