PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PUC­SP

Venceslau Alves de Souza

Malandragem e cidadania (novas pistas)

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO

2008

MMaallaannddrraaggeemm && CCiiddaaddaanniiaa

Novas pistas

Venceslau Alves de Souza

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC­SP

Venceslau Alves de Souza

Malandragem e cidadania (novas pistas)

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Professora Doutora Vera Lúcia Michalany Chaia

SÃO PAULO

2008

BANCA EXAMIDORA

______

______

______

______

______

Dedico este trabalho aos inúmeros homens e mulheres brasileiros que, como minha mãe e meu pai, tiveram suas potencialidades sufocadas na condição de subcidadãos que o Brasil lhes reservou. Dedico­o também aos meus companheiros de cela da prisão para indocumentados da cadeia de El Paso que, na busca de algum respeito e dignidade, acabaram enjaulados como animais ferozes

Agradecimentos

Eu agradeço a todos os amigos que, de alguma forma, me auxiliaram na confecção deste trabalho: Vera, Sean, Heidy, Cliff, Patrícia. Agradeço particularmente à minha orientadora, Professora Vera Chaia, por ser tão extraordinária. Guardo ainda um agradecimento especial ao CNPq, cujo auxílio financeiro foi determinante para que a pesquisa se realizasse.

RESUMO Este estudo foi escrito numa perspectiva não­iberista do surgimento e evolução de um fenômeno muito conhecido dos brasileiros ao qual se convencionou chamar de “malandragem”. Esta prática social é aqui investigada sob a luz de uma teoria social da ação, ou seja, a partir do processo de racionalização do Ocidente, em contraponto às teorias que buscam na emoção pré­moderna as causas de sua existência. Na perspectiva deste estudo, é muito mais do formato de nossa modernidade, presente entre nós desde princípios do século XIX, particularmente da resistência dos grupos dominantes e daqueles dominados em admitir a totalidade de seus imperativos, que se forma o malandro, a malandragem e todos os seus pressupostos, tais como, o jeitinho, o xaveco, a ginga, o dar­se bem, o levar vantagem, o jogo de cintura. É nele também que, ao naturalizar a malandragem como uma ‘marca nacional’, pode­se ocultar o conflito latente onde assentam as formas de dominação modernas que (paradoxalmente) permitem fazer avançar os direitos de cidadania. A dominação entre nós é acentuada também no formato intraclasses, o que distancia os indivíduos desses direitos e os aproxima das ‘coisas da malandragem’. Palavras­chave: cidadania, democracia liberal, modernidade, malandragem, política, precarização.

7 ABSTRACT This study was written from a non­Iberian perspective to analyze a phenomenon that is very well­known in and which is commonly referred to as ‘malandragem’. This social practice is examined from the point of view of a theory of social action, in other words, from the starting point of a Western way of thinking that is in opposition to theories that seek its existence in pre­modern emotion­This study argues that ‘malandragem’ is much more a product of our modernity, that has been evident since the beginning of the nineteenth century particularly in the resistance of the dominated groups in society which resulted in the formation of the ‘malandro’, ‘malandragem’, and manifestations such as the ‘jeitinho’ (Brazilian way), ‘xaveco’ (flirting), ‘ginga’ (swing), ‘dar­se bem’ (to do well ) ‘levar vantagem’ ( to take advantage ) ‘jogo de cintura’ ( to know how to deal with situations). It is also in that resistance that by allowing ‘malandragem’ to be accepted as a ‘national characteristic’ it is possible to hide the latent conflict behind the modern forms of domination that (paradoxically) allow human rights to be advanced. The domination is also accentuated in the inter­class relationship which distances those individuals from those rights and moves them closer to ‘malandragem’. Key­words: citizenship, liberal democracy, modernity, ‘malandragem’, politics, precarization

8 Índice

Introdução...... 11

Capítulo 1: A DOMINAÇÃO MODERNA E A ESPECIFICIDADE BRASILEIRA...... 27

1.1 A lógica da dominação liberal moderna...... 30

1.2 Um habitus mandão...... 34

1.3 A ideologia da igualdade de oportunidades e sua função latente...... 41

1.4 A ideologia da igualdade de oportunidades e a propriedade...... 44

1.5 A ideologia da igualdade de oportunidades e a escolarização...... 51

Capítulo 2: A GRAMÁTICA DA MALANDRAGEM...... 56

2.1 O malandro e o homem precarizado...... 57

2.2 Quem é o malandro...... 61

2.3 Um habitus malandro...... 65

2.4 A natureza institucional da malandragem...... 69

Capítulo 3: A FORMAÇÃO PERIFÉRICA DA MASSA BRUTALIZADA...... 76

3.1 O malandro e o vazio simbólico...... 77

3.2 A massa brutalizada e a racionalidade moderna...... 81

3.3 O sentido da vida na malandragem...... 87

3.4 A quem se reserva a malandragem?...... 92

Capítulo 4: DISSONÂNCIA ENTRE TRABALHO E MALANDRAGEM...... 97

4.1 O trabalho e a práxis da malandragem...... 98

4.2 O trabalho que não dignifica...... 103

4.3 Malandragem, “bem comum” e democracia...... 107

4.4 No mundo encantado da malandragem...... 112

9 Capítulo 5: DOIS CASOS ILUSTRATIVOS: A DOMÉSTICA E O AVENTUREIRO...... 117

5.1 Uma empregada ótima: conhece o seu lugar...... 118

5.2 Uma questão de animosidade ou de respeito?...... 121

5.3 O malandro e o mito do aventureiro...... 128

5.4 A inversão conveniente do semióforo...... 132

Capítulo 6: MODERNIZAÇÃO, MITO E MALANDRAGEM...... 138

6.1 A modernização trabalhista e o poder simbólico do autoritarismo...... 139

6.2 A modernização brasileira e a criação do cidadão cabisbaixo...... 143

6.3 A competição moderna e o conflito latente na periferia...... 150

6.4 o mito do “jeitinho brasileiro” e a legitimação da malandragem...... 155

6.5 A ideologia por trás do mito da malandragem...... 161

Capítulo 7: PRECARIZAÇÃO E MALANDRAGEM...... 165

7.1 Um estudo de caso: os fatos...... 167

7.2 A condição detenta...... 174

7.3 Um dia na prisão de El Paso...... 180

7.4 Sinais (in)visíveis de malandragem...... 185

Considerações Finais...... 193

Referências Bibliográficas ...... 196

10 Introdução

cada escândalo político brasileiro, a cada ‘crime de colarinho’ branco, a cada situação em que indivíduos aparentemente em Adébito com a lei se safam das devidas punições, se lêem com freqüência em editoriais de jornais, artigos de semanários e acadêmicos, entre outros tantos, de orientações ideológicas diversas, que isso se dá em função de uma condição malandra inerente a nós, brasileiros. Daí porque se tornou incomum para quem nasce e cresce no Brasil não ter de conviver com o estigma da malandragem, um estereótipo que nos acompanha desde a hora que acordamos até o momento de dormir e que nos faz afeiçoarmo-nos com o mito de que o fenômeno está ‘impresso em nosso DNA cultural’. Segundo esse juízo, haveria entre nós um entendimento generalizado de que é possível vencer sem a observância das regras de conduta universalmente consagradas pela doutrina liberal: nossa capacidade transgressora teria sido coletivizada, fazendo com que a violação da norma se transformasse na regra geral, num valor social entre nós; ao longo de nossa experiência histórica teríamos nos transformado numa nação malandra, em cujas práticas diárias se revelaria o nosso traço singular, a nossa essência, o nosso ethos. “Os brasileiros, em geral, são avessos à ordem, à lei e à autoridade“, desabafa o congressista João Mellão Netto que faz voz junto à corrente que partilha dessa crença. “O jeitinho brasileiro é uma instituição nacional. O modo Macunaíma de ser está impresso no nosso DNA cultural”1, completa o representante da corrente liberal brasileira, ilustrando bem o que se vai buscar problematizar adiante. “O jeitinho já se consagrou como a maneira de trafegar nas diversas esferas da sociedade brasileira. Seria difícil algum de nós ou mesmo um estrangeiro que vive nesta terra não fazer parte do jeito. [...] Quando se fala em jeito ou jeitinho brasileiro, logo se pensa em esperteza, em ludibriar alguém, em pagar suborno e assim por diante”, complementa um conhecido pensador evangélico2.

1MELLÃO NETTO, Brincando com fogo. O Estado de SP, 13.09.2006. 2 REGA, Lourenço Stelio. Dando um jeito no jeitinho: SP: Mundo Cristão, 2000. p.17.

11 Tanto em opiniões de senso comum (do dia-a-dia) quanto no caso ilustrado, do deputado, quanto em análises diversas, particularmente aquelas de cunho essencialmente culturalista – que reproduzem as relações de poder dominantes ao tornar invisíveis os conflitos de classe – é corriqueiro se testemunhar esse tipo de argumento. Tanto para uns quantos para os outros, entre nós brasileiros, as fronteiras entre o lícito e o ilícito, o certo e o errado, seriam muitíssimo tênues, e isso faria parte de nossa natureza. Um argumento corriqueiro desse pensamento é que, desde muito cedo, nós, “os últimos filhos da civilização”, teríamos nos adaptado a situações variáveis, fazendo com que tudo fosse permitido, não importando as idéias nem os princípios, mas casa comida e roupa lavada, de graça, de preferência. E, por força desse nosso suposto traço cultural, estaríamos tentados a exaltar os ‘heróis sem caráter’, os malandros, representados na metáfora Mario Andradina do personagem Macunaíma, ou seja, nossa mentalidade teria sido calcada no pragmatismo, no oportunismo e na complacência diante do moralmente inaceitável, na ‘lei de Gerson’, pela qual o que importa é ‘levar vantagem em tudo’. Além disso, nós estaríamos muito mais tentados ao ócio do que outros povos, assentados numa eterna procura hedonista de gandaia e de prazer. “O Brasil é o único país em que há a figura do malandro; em outras sociedades o valor semântico do vocábulo equivale ao de preguiçoso, vagabundo, gatuno, ladrão, ora!”, esbraveja o sociólogo Hélio Jaguaribe3, numa exemplar representação do imaginário que se formou sobre o ‘caráter do homem brasileiro’. É oportuno lembrar que, como esclarecem Laplatine e Trindade, “o imaginário não significa ausência de razão, apenas a exclusão de raciocínios demonstráveis e prováveis, os quais constituem o fundamento da imaginação científica”.4 Se estiveram corretos Laplatine e Trindade, muito do argumento culturalista está pouco próximo dos fundamentos científicos. Se tudo o que se argumenta é verdadeiro sobre o indistinto caráter malandro do povo brasileiro e da própria malandragem, o que falta responder cientificamente, e que é a proposta do presente estudo, é como teríamos chegado neste ponto. Existe de

3 JAGUARIBE, Hélio. Encontro Anual da Anpocs realizado em Caxambu, , em outubro de 2005. 4 LAPLATINE, François, TRINDADE, Liana. Op. cit., p.79.

12 fato um processo histórico que permitiu que nos amalandrássemos, livrando outras nações de tamanho infortúnio? Ou seria mais sensato perguntar a quem interessa demonizar o comportamento malandro, colocando a culpa pelo amalandramento dos indivíduos sobre as próprias costas destes? Na perspectiva deste trabalho, a realização de leituras como estas dificilmente responderia satisfatoriamente às perguntas colocadas acima. Há nesse tipo de interpretação, pretensamente weberiana, uma tendência a simplificar a realidade social, tratando a ação social da malandragem como foco cultural brasileiro, que controla o comportamento das pessoas, suas decisões e suas escolhas cotidianas. Leituras como estas são capazes de criar realidades, como o referido mito de Macunaíma, “o herói sem nenhum caráter”, apresentando o indivíduo brasileiro como um ser abusado, êmulo, indolente, inimigo do trabalho, companheiro da vida fácil e apaixonado pelo dinheiro fácil Trata-se de um engodo que modela o senso comum, o senso compartilhado entre nós (inscrito no nosso cotidiano), e contribui para incorporar o mito à vida brasileira, fazendo-nos acreditar que “nós somos assim mesmo”. O presente estudo entende que esse tipo de perspectiva é prenhe de simbolizações, onde seus intérpretes vêem os fenômenos como gostariam que estes fossem e não como realmente o são, e o fazem não por outro motivo, mas por não conseguirem se livrar de conceitos e pressupostos que há muito perderam a validade entre nós. Uma análise realizada externamente aos costumeiros padrões culturalistas pode mostrar sem grandes dificuldades que o País está povoado por idéias obsoletas, enclausuradas numa ‘consciência falsa’ do significado da malandragem, que vêem a realidade de modo desfocado. Como diz Lilia Schwarcz, “algumas histórias são contadas de forma recorrente e se transformam em verdades. Nossa sociedade se constrói a partir de discursos mitológicos, aos quais nós damos a forma de História”.5 Uma análise sistemática mostra que os indivíduos, por vezes, são impelidos a tomar atitudes que em circunstâncias distintas não o fariam. E este é o caso do malandro. Uma análise weberiana do fenômeno da malandragem, na verdade, requer que se parta do pressuposto de que todas as ações

5 SCHWARCS, Lilia Moritz. Assim é, se lhe parece. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=1822. Acesso em 06.08.2008

13 humanas em sociedade sofrem influência de outros indivíduos, que, por sua vez, são influenciados pelo comportamento de outros. Mas ela não pode prescindir de retornar a idéia Durkheimiana de que o coletivo interfere necessariamente em nossas escolhas cotidianas, aparentemente individuais. A sociedade, afinal, é, obviamente, muito mais do que a soma de seus membros individuais, e as forças sociais acaloram cada conduta. Se quando nascemos o grupo social já se acha estruturado, com uma abundância inumerável de valores, normas e costumes, parece menos arriscado pensar a malandragem como uma prática social, tal qual o suicídio estudado por Émile Durkheim.6 Somente assim, poder-se-á entendê-la muito menos como uma escolha pessoal dos indivíduos que a incorporam – como resultado de problemas biológicos ou psicológicos (como células individuais) –, e muito mais como uma questão social moderna que, em maior ou menor escala, atinge a todos os membros de uma mesma sociedade, como “padrões de comportamento social ou maneiras de agir, pensar e sentir exteriores ao indivíduo, e dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se lhe impõem”, como sugere Reinaldo Dias7. Caberia, pois, elucidar como as atitudes e os procedimentos dos indivíduos são influenciados pelo grosso da sociedade (o macro influenciando o micro), e também o caminho oposto (o micro influenciando o macro), mas jamais ignorar essa perspectiva sociológica. Os resultados finais desse estudo indicam que a malandragem não surge por conta das nossas raízes ibéricas, e o brasileiro tampouco estaria ‘tentado a realizar o menor esforço possível’ – preferencialmente ‘fora da ordem do trabalho’ – para atingir seus objetivos, como tanto se escreveu. A pesquisa tampouco confirmou que “trabalho duro, ascensão social e enriquecimento pessoal nunca fizeram parte de qualquer trilogia com credibilidade no imaginário nacional”8, como quer Barbosa. Muitas leituras nesta linha procuram sustentar-se em argumentos que sugerem estarmos predispostos a associar o trabalho à escravidão e não à riqueza, o que teria desembocado numa suposta mentalidade malandra do

6 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico e outros textos. SP: Abril, 1973. p. 192. (Coleção Os Pensadores). 7 DIAS, Reinaldo. Introdução à sociologia. SP: Pearson­Prentice Hall, 2005. p. 64. 8 BARBOSA, Lívia. Igualdade e meritocracia: a ética do desempenho nas sociedades modernas. RJ: GV, 2001. p. 68.

14 brasileiro. Nosso cultivo ao ócio e à folia seria nato e nossa simpatia ao emprego de recursos engenhosos para garantir a sobrevivência, seria, pois, um vício de origem que se transferira do indígena para o negro, particularmente após a abolição da escravatura, “pouco importando se o trabalho escravo havia sustentado a economia da Colônia e do Império”9. Simbolizações como estas procuram relativizar a realidade, o mundo material, fazendo existir apenas os conceitos, daí porque se apóiam na questão meramente cultural para se fazerem ouvidas. Com isso acabam por afastar o olhar da realidade das ‘pessoas de carne e osso’, aproximando-o daquilo que Bruce Dettwiller10 chamou de “mundo da imaginação moral”, onde se conhecem bem os males sociais que assolam dada sociedade, mas que não se consegue imaginar na prática o seu significado. Nesse mundo da imaginação moral, sobram espaços para afirmações como a do autor evangélico acima mencionado, Lourenço Rega, para quem, “o brasileiro é, por natureza, um transgressor da lei, seja no trânsito, no contrabando, no quilo de 900 gramas, no metro de 90 centímetros, nas falsificações e nas mutretas. [...] A estes fatos somam-se outros que, divulgados pelos meios de comunicação, vão criando no povo brasileiro ojeriza contra as autoridades, estimulando, assim, a desobediência às leis”11. Se a ‘denúncia’ de Rega é verdadeira, é preciso cobrar do denunciante a origem de tal comportamento, como e porque ele se viabiliza. O fato é que nas análises culturalistas o que se coloca é de difícil comprovação empírica, mas se transforma em ‘verdades convenientes’ que não precisam ser chanceladas pelos fatos: acredita-se nelas e isto basta, abstratamente. Elas conduzem o ‘senso comum’ a imaginar que se tratam de verdades incondicionais, dando a impressão de que a sua certeza particular é a única apropriada, ajudando a calcificar e popularizar a crença de que nossas mazelas nascem não de nossos próprios erros, mas, nalgumas vezes, de certa raiz ibérica, ou, noutras, da qualidade do povo que se por aqui formou, legitimando, em alguma medida, as enfermidades sociais.

9 TURINO, Célio. O herói sem nenhum trabalho. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=450. Acesso em 01.02.2007. 10 Disponível em: http://www.oxfam.org.uk/search?q=bruce%20dettwiler&y=10&x=13. Acesso em: 13.03.1997. 11 REGA, Lourenço Stelio. op. cit., p. 16.

15 Não é isso que pretendemos realizar ao longo desse estudo. Embora não ambicionemos servir à ideologia neste estudo, mas à ciência, optamos por colocar em xeque as ‘verdades absolutas’ deste tipo de análise. Para tal, preferimos seguir a sugestão de Antonio Firmino da Costa, para quem, “a análise sociológica necessita explicitar os implícitos sociais, explicar o pretensamente óbvio, procurar ver para além das evidências imediatas. Um dos procedimentos básicos da sociologia é a ruptura com as convicções preconceituosas, pouco respaldadas pelos fatos, e com as explicações simplistas que circulam na sociedade a propósito dos fenômenos sociais”12. No decorrer deste estudo, pudemos identificar que a raiz do problema das análises culturalistas do fenômeno da malandragem está no fato de este pensamento abordar essa prática social enquanto uma regularidade social, uma prática sistêmica, padronizada, contra a qual não há o que fazer. É hora de pensar a malandragem enquanto uma singularidade social, uma prática que ocorre ocasionalmente, explicitando os implícitos sociais e permitindo que se caminhe para além das evidências imediatas. A malandragem enquanto fenômeno social apresenta uma singularidade observada em diferentes contextos e em diferentes espaços geográficos. Sem a efetiva intervenção e o protagonismo da sociedade civil procurando moldar a modernidade em seu favor, a sua formação independe do processo histórico particular de cada sociedade moderna em que o fenômeno se revela, e essa é uma das idéias centrais com as quais esse estudo se debateu ao longo de sua realização. Somente essa intervenção da sociedade civil, e os países avançados são o exemplo mais bem acabado disso, fará com que a modernidade trabalhe em seu favor, lhe estendendo direitos de cidadania efetivos. Nossa tese é de que a malandragem é subproduto do formato que a modernização recebe e tenderá a se evidenciar quão mais perversa ela se mostrar, como é o caso brasileiro, e quão mais distante estiver a sociedade civil de seu controle. Neste sentido, a malandragem não é outra coisa, mas uma resposta apolítica às fissuras deixadas pela ideologia moderna em sua tarefa de moldar a sociedade em questão. Talvez seja este o ‘sentido intersubjetivo’

12 COSTA, Antonio Firmino. O que é Sociologia. Lisboa: Difusão Cultural, 1992. p. 18.

16 (preconizado por Max Weber), de difícil verificação, subrepticiamente enfurnado no âmago da malandragem, e é essa a novidade que esse trabalho traz em seu bojo sobre essa temática, e provavelmente é ela a principal contribuição para fundamentar estudos futuros sobre o assunto. Em qualquer ambiente social de modernização nefanda, seja aqui, em certas regiões dos Estados Unidos protestante e individualista, ou no México católico e moralista, a causa comum imanente, não manifesta da malandragem, é a precarização das condições de vida dos trabalhadores de um modo geral. O seu surgimento e seus tentáculos – ‘o jeitinho’, o ‘dar-se bem’, a esperteza, o ‘levar vantagem em tudo’, o ‘xaveco’, a ‘ginga’, e tantos outros artifícios – independem das características físicas e psíquicas ou da ‘raiz matricial’ de onde se origina este ou aquele povo, mas da ideologia que permeia e configura dada sociedade. Daí porque se insistirá ao longo desse trabalho que, nem de longe, o fenômeno poderia ser percebido como uma questão doméstica nacional. Descobrir como se forma a malandragem, identificar suas causas políticas, econômicas e sociais, e como essa descoberta se transformaria numa real contribuição ao conhecimento científico, tornou-se o dilema central a ser examinado ao longo da pesquisa e sua principal inquietação, visto que ele não pôde ser respondido pela via das ‘formas corriqueiras’ de abordagem do assunto. Tanto mais que a pesquisa que se iniciou bibliográfica ganhou o caráter de pesquisa descritiva ao longo da investigação. O levantamento bibliográfico inicial indicava convenientemente que a malandragem se formara de nossas origens ibéricas e que, aparentemente, se limitava às fronteiras nacionais. Depois de testada, através de observação empírica, a hipótese que orientou inicialmente o estudo e que conjecturava ser a malandragem um produto cultural brasileiro, um elemento de identidade nacional, não se confirmou. A partir daí, a pesquisa recebeu um caráter experimental e, através da análise das evidências factuais e empíricas que surgiram da observação sistemática do fenômeno examinado, se pôde verificar que, em condições modernas, a malandragem necessariamente ganha forma. O fenômeno, ainda assim, pode ser evitado se o processo de modernização for acompanhado de direitos de cidadania devidamente conquistados pela sociedade civil. A

17 malandragem, portanto, não está presa a confins geográficos e, tampouco, a classes sociais, muito embora se evidencie quão mais precarizado econômica, moral ou culturalmente for o contexto social em questão e o indivíduo candidato a malandro. Muito embora o meio empregado predominantemente nesta investigação social para um entendimento mais completo das origens e desenvolvimento da malandragem seja o método histórico (uma reconstrução artificial dos fatos e fenômenos do passado), combinando também aspectos tanto do método comparativo (para identificar diferenças e semelhanças do malandro de ontem e de hoje) quanto do método monográfico (com a finalidade de obter generalizações sobre o fenômeno da malandragem), os ‘sinais invisíveis’ que permeiam o fenômeno puderam ser captados seguindo de perto as recomendações de Barney Glaser e Anselm Strauss13. Para eles, a lógica dedutiva pura, onde a teoria é construída a partir de deduções, e não de dados concretos da vida social, sem contato com a empiria, não permite que a realidade flua. Segundo essa instrução, à qual os autores chamam de grounded theory, o pesquisador não deve procurar conformar a pesquisa insensatamente a dado paradigma teórico, a esquemas prévios que podem impedi-lo de perceber o movimento espontâneo da realidade. É a partir da prática empírica, ensinam os autores, que uma teoria desenvolvida indutivamente pode melhor ser acomodada para fins de análise do corpus, e o caráter subjetivo da temática trabalhada aqui, particularmente quando transplantada para um contexto social dinâmico e de compreensão intricada tal qual o brasileiro, dificilmente permitiria que fosse de outra forma. O procedimento metodológico adotado permitiu que não se ficasse preso apenas as descrições dos fatos. Ao colocar por terra a hipótese inicial, o andamento da investigação suscitou novas respostas para o problema de pesquisa que se distanciassem do preconceito com que a questão era normalmente tratada, bem como com a tendência etnocêntrica das análises sobre o fenômeno da malandragem, verificada na pesquisa bibliográfica. A metodologia permitiu que se partisse de casos particulares, se relacionasse os

13 GLASER, B., STRAUSS, L.A. The discovery of grounded theory: strategies for qualitative research. Chicago, Aldine, 1967.

18 fatos e os comparasse, chegando a generalizações sobre o objeto de estudo. Essa conjunção permitiu identificar semelhanças e diferenças no procedimento do malandro em diferentes atmosferas – o objeto de pesquisa em questão –, acabando por demonstrar que qualquer caso analisado pode ser representativo de muitos outros. A natureza da malandragem se encontra no cerne da própria ideologia moderna, na forma como esta doutrina se desenvolveu por aqui, e é essa idéia que se vai explorar no primeiro capítulo desse estudo. Entre nós, e na periferia da modernidade de um modo geral, a ausência da premissa da igualdade de oportunidades e condições fustigou o não-reconhecimento da legitimidade da ideologia moderna, causando um distanciamento dos indivíduos das instituições criadas por esta mesma modernidade. A implantação de um sistema de dominação (de homens sobre outros homens) bem-sucedido passa pela criação das pré-condições fundadas na ideologia da igualdade de oportunidades e condições que a transformem no eixo moral, cultural, social e político da vida dos indivíduos e que justifique um suposto ‘ponto de partida comum’, the same pole position, como dizem os protestantes do norte da América. É ele que auxilia a doutrina moderna na tarefa de promover uma maior aceitação social de seus pressupostos. Sob sua vigilância, pode-se, teoricamente, disputar em pé-de-igualdade os espaços do reconhecimento social, deixando os indivíduos com a impressão de que ‘as coisas vão bem’. Este sentido ‘positivo da modernidade’ – que iguala ilusoriamente os homens e opaciona seu caráter dominador – se mostra capaz de minimizar o sentimento de que ‘uns homens são mais iguais do que os outros’ por natureza, fazendo com que os conflitos de classe sejam amainados. A modernidade liberal atua com essa lógica, que opera de cima para baixo, partindo do pressuposto de que os indivíduos devem adequar-se aos seus imperativos e não o contrário. Neste sistema de dominação reside um código moral que deve ser abarcado e acatado por toda a sociedade (Taylor, 1997, Souza, 2006)14, para que essa dominação se dê da forma mais naturalizada possível, como se verá no segundo capítulo desse estudo, e que

14 TAYLOR, Charles. Sources of the self. Cambridge: Harvard University Press. 2000 e SOUZA, Jessé (Org.). A invisibilidade da desigualdade social brasileira: BH: UFMG, 2000.

19 assenta na ideologia da igualdade de oportunidades e condições. A experiência tem mostrado que ele é capaz de levar a sociedade civil a aceitar essa dominação, permitindo que o sistema funcione relativamente bem. Nesse contexto, os indivíduos até percebem, em alguma medida, o fundo moral da hierarquia moderna que justifica essa dominação naturalizada, mas acabam por acatá-la, ‘compreendendo bem os interesses’ de cada um na sociedade – interesses que se coadunam –, dentre os quais, os seus próprios inseridos no mercado e, sobretudo, nos instrumentos do Estado. De posse destes instrumentos, a força da sociedade civil pode converter sua lógica de dominação opaca em direitos de cidadania. Nessa dialética esdrúxula, a base da pirâmide não elimina o sistema de dominação propriamente dito, mas pode utilizar-se de seus aparelhos para tornar mais sua a modernidade e reverter os efeitos perversos desta ideologia. Ocorre que houve entre nós, por longo período, uma resistência dos segmentos mandões em admitir um modelo de dominação fundado na igualdade de oportunidades e condições afastando qualquer possibilidade de mudança social, o que será determinante para o surgimento da figura do malandro. Acostumados a mandar incondicionalmente, os mandões de toda ordem não se reconhecerão no modelo regulador e classificatório moderno, encontrando uma enorme dificuldade em assimilar a noção de direitos e igualdade. A modernidade não lhes parecerá interessante o bastante para que a admitissem prontamente na sua totalidade, mas somente os aspectos que lhes parece interessante, e sua renitência em acolher seus imperativos deixará escancarada e latente o caráter dominador existente nesta doutrina. Isso desestimula as classes baixas, acostumadas a despachar diretamente com os mandões, em acolher, também elas, a estes imperativos, e neste sentido, temos de concordar com Schwartzman (1975) 15 quando esse autor infere que entre nós, a tradição venceu a modernidade. Aqui, o nascimento não deixaria de ser a fonte do destino. Os mandões é que permaneceriam fazendo o favor de garantir às classes baixas o direito civil a alguma propriedade, o direito social ao trabalho, nenhum direito político e o

15 SCHWARTZMAN, Simon. São Paulo e o Estado nacional. SP: Difel. 1975.

20 grosso do desprezível sustento.16 Estavam sempre próximos e lhes garantiam proteção, inclusive contra a polícia, a quem autorizam e desautorizavam a sua perseguição. Mandavam que se reservassem vagas nas escolas para seus filhos sempre que possível. Cobriam todos os espaços da vida social desses indivíduos, fazendo com que estes reproduzissem infindamente um tipo de personalidade inadequado às exigências modernas: desobediente, indisciplinada, ‘não-domesticada’, como se procurará explorar no terceiro capítulo. Não é outra coisa que vai fazer com que permaneçamos confusamente em dissonância com a moral classificatória moderna, enquanto nos tornávamos institucionalmente modernos. Contávamos com economia monetarizada, aumento da produtividade do trabalho, desenvolvimento técnico, ciência moderna e instituições estatais relativamente sólidas. Éramos escravocratas, mas tínhamos imprensa livre; éramos constitucionalmente iguais, mas não tínhamos nem escolaridade nem propriedade para o grosso da população. Sem esse pré-requisito, não interessava às classes baixas o respeito e a dignidade prometidos pela modernidade. Esses homens e mulheres não encontram estímulos para prezar a vida institucionalmente ordenada e comprometida ficaria o suposto aprendizado moral coletivo que a modernidade liberal clássica trás em seu bojo. Os mandões brasileiros não pareciam interessados em conceber nenhuma igualdade de oportunidades e condições para efetivar a sua dominação sobre o grosso da sociedade. Tinham sempre exercido a dominação e não seria agora que mudariam seu comportamento. Em vista disso, manteriam inalterada a estrutura fundiária colonial e fariam míopes os olhares nacionais sobre os valores da escolarização moderna e de tudo o mais que pudesse afastar os homens e mulheres daqui de suas rédeas, dando de ombros aos imperativos modernos.

16 “Nossa sociedade conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o senhor (de escravos)­cidadão, e concebe a cidadania como privilégio de classe, fazendo­a ser uma concessão da classe dominante às demais classes sociais, podendo ser­lhes retirada quando os dominantes assim o decidirem.” CHAUÍ, Marilena. Contra a violência. Disponível em: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=3467. Acesso em 20.07.2008.

21 Neste sentido, os mandões se transformavam e transformavam em malandros os indivíduos que mantinham sob controle, pois, a malandragem não é outra coisa que um fenômeno que se nega a reconhecer a legitimidade da ordem moderna, procurando agir ao largo de suas instituições, ainda que, numa espécie de “dialética da ordem e da desordem”, como denominou Antonio Candido17, a admita quando nela enxergava uma oportunidade de obter vantagens pessoais. A partir daí, a resistência ao código moderno, representado pela malandragem, valerá tanto para dominantes quanto para dominados, e isso longe está de ser uma exclusividade brasileira, conforme sugere estudo de campo apresentado no último capítulo desse estudo. O que se reproduzirá por longa data será uma massa humana que parece querer se esquivar da racionalidade moderna sempre que pode. A porção sem posses dessa massa não terá quaisquer chances de subir os degraus para a cidadania, pois estas chances não existem. Na ambigüidade de nossa modernidade, essa massa ‘não vale nada’, desde o berço. Sua cidadania será conservada no favor e suas reivindicações tratadas ‘a porrete’ , como bem disse José Murilo de Carvalho18, desvirtuando em absoluto o sentido último da modernidade liberal até, pelo menos, o segundo quartel do século passado. O aparente paradoxo está em que a modernidade liberal funda-se grandemente numa espécie de ‘seleção natural darwinista’, que diz que as espécies mais fortes e competentes se dão melhor que as demais. Ela se sustenta na idéia de que o princípio da vida está na competição e sem a qual não existiria a humanidade tal qual se conhece atualmente. Essa crença difundida ajuda a naturalizar a idéia de que algumas pessoas, supostamente melhores, dominem outras, tanto econômica, social, política quanto culturalmente. É daí que, como vêm ocorrendo nas sociedades de modernidade mais avançada, os indivíduos envolvidos por direitos de cidadania desde que nascem, têm chances menores de ‘não valer nada’. O sistema é fundamental para garantir que menos indivíduos sejam reduzidos ao estado de

17 MELLO E SOUZA, Antonio Candido. Dialética da malandragem (Caracterização das Memórias de um sargento de milícias), em revista do Instituto de Estudos Brasileiros número 8, USP, 1970. 18 CARVALHO, José Murilo de. A cidadania a porrete. RJ. Editora Mimeo. 1988. p 147.

22 degradação humana, colocando em dúvida a viabilidade da própria modernidade. É próprio da ordem moderna que, em maior ou menor escala, admite a ideologia da igualdade de oportunidades, ‘quem não tem méritos’ seja colocado de lado no sistema, formando agrupamentos de trabalhadores facilmente substituíveis a serem usados pelo mercado em tarefas que não exigem qualificação diferencial. Nela, os indivíduos que não possuem mais do que o corpo, para garantir a sua existência – que não possuem conhecimento agregado ao corpo, in-corporado – são considerados ‘socialmente pouco úteis’ do ponto de vista da integração ao mercado. São estas pessoas que constituem os excluídos, às margens também das sociedades modernas clássicas, mas nestas haverá um sistema de proteção social, civil e político que impedirá a sua total degradação moral. O processo de modernização da modernidade brasileira que ocorre a partir dos anos de 1930, coloca na dianteira da competição social indivíduos que já contavam com algum treinamento de fato moderno ou com o acúmulo de capital suficiente, funcionando ambos como fatores diferenciais entre os nacionais. Mais do que a clássica apropriação do capital econômico pelos segmentos detentores dos meios para tal, essa apropriação agora passa a ser realizada no campo do conhecimento, o que justifica o nascimento das classes médias entre nós – uma classe movida essencialmente pelo interesse moderno – que contavam já – ou foram adquirindo ao longo do tempo –, com os instrumentos de reprodução de seu poder e influência: a escolaridade e treinamento familiar, numa palavra, o aprendizado moral moderno. Elas nao se utilizam dos mesmos instrumentos de mando dos antigos mandões, aprenderam a pedir ‘por favor’ e, ao seu estilo, vão se beneficiar dos melhores empregos, dos melhores salários, de melhor escolaridade, de melhor saúde, de maior felicidade material e de melhor qualidade de vida, deixando para trás a multidão incauta.

Aos indivíduos e segmentos não possuintes de capital cultural diferencial serão reservadas as tarefas consideradas socialmente ‘menos nobres’, jogando no esgoto social os ‘derrotados’. São estes indivíduos que serão explorados, agora, não somente pelos ricos, mas também pelas classes médias, na tarefa de lhes poupar tempo para reciclarem seus conhecimentos e garantir a

23 reprodução de sua dominação cultural e econômica sobre os primeiros, e do vexame de realizar tarefas consideradas por todos como sendo socialmente desprezíveis. Estes indivíduos valem menos segundo a nossa ótica moderna e valerão muito menos a medida que não conseguem ascender socialmente por seus próprios méritos. Sem a intervenção das classes médias mais esclarecidas em favor destes segmentos, a lógica torna-se insuportável para eles, pois seus componentes se vêem numa dialética perversa da qual não conseguem se desvencilhar. Sem que consigam conquistar o reconhecimento dos outros membros da sociedade e provar a sua utilidade prática no mercado de trabalho, estas pessoas se transformam em gente ‘socialmente rebaixada’, transformando-se elas na ‘excrecência social’. Longe das pré-condições sociais, morais e culturais, o imaginário dessa massa brutalizada, parece nao avançar do estágio de desenvolvimento anterior, quando, pela ausência de igualdade de oportunidades e condições que justificasse a existência do sistema de dominação moderno, não reconhecia como legítima essa doutrina. Para fazer valer seus anseios, resta também a estes segmentos se apropriar diferencialmente do ‘capital malandro’ sempre que pode, e fazer menos sua a modernidade, como se poderá verificar no quarto capítulo. Se até este momento era o não-reconhecimento da ordem moderna como legítima que fazia gerar o fenômeno da malandragem, a partir daqui será em grande medida a busca desse capital cultural diferencial que o fomentará. Ao serem impedidos de competir em pé-de-igualdade desde que nascem, os indivíduos são levados a crer que há sempre ‘um jeitinho’ para se amolecer a rigidez da hierarquia social e ‘levar vantagem’, ‘dando-se bem’ de alguma forma. É daí que o ‘habitus malandro’ passa a valer para os mais variados segmentos sociais, tendendo a se infurnar entre e intra as classes à medida que o processo de modernização é acelerado. No jogo da dominação tupiniquim, não vale mais somente quem dispõe de maior capital econômico, e a malandragem não se reserva aos indivíduos que investem suas vidas em busca dele. Para estes a bandidagem propriamente dita preenche as lacunas de sua existência marginal. Neste jogo, é a busca incessante do capital cultural diferencial que autoriza todas as

24 classes sociais a usar o ‘xaveco’ e a ‘ginga’ sempre que estes se fizerem necessários. Não é por outra razão que as próprias classes médias se utilizarão dos recursos da malandragem sempre que a julgam indispensável. Essa é uma luta intraclasses e sua presença é latente, mas se manifesta como sendo um traço cultural brasileiro e, por isso mesmo, não aparece como conflito. O fenômeno ajuda a camuflar a própria dominação intraclasses. Mas o conflito intraclasses está presente nas relações sociais no Brasil e na periferia da modernidade como um todo, desde a hora em que acordamos até a hora de dormir, como poderemos constatar no quinto capítulo deste estudo. Em ordens competitivas selvagens como a nossa, a forma mais habitual de se amainar tais conflitos e garantir a dominação intraclasses é via a extensão dos direitos de cidadania para todos os homens da sociedade em questão, através de uma palpável garantia da igualdade de oportunidades e condições. Quando não se faz isso, como foi o nosso caso, a malandragem, ou outro tipo de ação social definida de acordo com a periferia em questão, passa a cumprir grandemente esse papel, fazendo de uns indivíduos ‘bem mais iguais que os outros’, enraizando no imaginário popular que é próprio de nossa gente essa coisa, que está inscrito em nosso DNA ético, faz parte de nossa brasilidade, e contra a qual não há o que fazer. Esta crença, alimentada e vulgarizada pelo pensamento culturalista, avaliza e cria subsídios para calcificar também o sentimento popular e geral de que a cidadania tem limites, e que os ‘perdedores’ estão no limite dessa cidadania. Os estereótipos alimentados também pelo pensamento culturalista não deixa ver que é justamente na prática da malandragem que os conflitos ideológicos intraclasses pró-dominação são ocultados, e é nele que habita uma raiz de nossa subcidadania. Não é de admirar, pois, que, aos olhos do senso comum, que, via de regra, não tem o compromisso de problematizar as questões na sua plenitude – como é o caso da intelectualidade –, a malandragem aparece como uma instituição característica e genuinamente nacional, que cabe em todas as classes sociais, sem distinção de cor raça ou credo, e, muito mais grave, sem razão para existir; parece mágica. O mito da malandragem enquanto ‘marca nacional’ e de todos os seus pressupostos, nascem da crença de que somos uma sociedade homogênea onde as oportunidades estão postas para todos os indivíduos desde o

25 nascimento. Quando se diz que o brasileiro é assim ou assado, está se ocultando o fato de que não estamos dispostos da mesma forma na sociedade e que nossos gostos e procedimentos dependerão grandemente da posição que ocupamos no mundo, conforme se verificará nos sexto capítulo deste estudo. Quando se fala em brasilidade para se classificar o comportamento dos nacionais – como se não houvesse uma abissal divisão entre e intraclasses entre nós –, se está incorrendo no mesmo erro de pensar que os indivíduos e os segmentos sociais são homogêneos. A regra que um dia se pensou ser fato há muito perdeu a validade, pois o processo de modernização brasileira varreu a possibilidade de homogeneização dos gostos, dos estilos, dos procedimentos, dos jeitos dessas pessoas agirem na e para com a sociedade, numa palavra, de formatar os indivíduos de maneira que eles se adequassem às exigências do mercado competitivo e do Estado. Nesta direção, ‘marcas nacionais’, tais como a malandragem, não trabalham em outro sentido senão para camuflar um sistema de dominação que procura afastar-se dos imperativos modernos, fazendo prevalecer o seu próprio. Esta não é exclusividade de quem nasce no Brasil e muito menos pertence a todos os nacionais; trata-se de uma questão que excede as fronteiras nativas, se fazendo evidente nos espaços periféricos da modernidade, conforme veremos no último capítulo deste estudo, mas que não deixa dúvidas que nenhum outro elemento é capaz de desarraigá-la do que um choque incondicional de cidadania.

26 Capítulo 1: A dominação moderna e a especificidade brasileira

O Brasil não é para principiantes; somos um país de cabeça para baixo – Tom Jobim, compositor (1974)

O Brasil não trouxe para seu bojo um mero conceito quando passou a importar os elementos da modernidade ocidental para modelar seu novo contorno social, a partir da primeira metade do século XIX, mas uma concepção de mundo que transformaria muitas das instâncias de sua existência. A modernidade foi o modelo de organização econômica, política e social eleito pelos segmentos dominantes em formação para conduzir o País mesmo antes de sua autonomia política. A partir da experiência moderna, a vida social é reinventada em muitos aspectos. O que nos é ofertado – assim como para todas as sociedades que se organizam nesses moldes – é uma maneira de viver inovada, que pretende refrear muito de nossa pré-modernidade e impor outro tipo de estrutura social. Tanto mais que muito do que havia por aqui – dos laços de parentesco às tradições – será, em maior ou menor medida, reacomodado pela idéia de Estado e mercado, pela idéia de modernidade. A partir da abertura dos portos nacionais, da criação do Banco do Brasil (igualando-se à França, Suécia e a Inglaterra, os únicos países que dispunham de um banco oficial naquele momento), da instituição de um tribunal de justiça, da instalação da imprensa, e de tantos outros empreendimentos e ações significativas, desenvolvidas a partir da transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, o que chega para nós não é um mero modelo de organização social, tanto mais que permanece relativamente intacto o modo de produção anteriormente vigente. A nação brasileira não existia ainda e o povo constituído ainda demandaria décadas para existir, mas o Estado brasileiro se formava ali, através da importação da “autoconsciência do Ocidente”, no dizer de Norbert

19 Elias .

19 Elias assegura que nestes processos de transformação estrutural das sociedades feitas modernas, há que se considerar outra dimensão a esta articulada que está relacionada às concepções de mundo e as formas de viver em sociedade que as pessoas desenvolvem a partir dali. Segundo o sociólogo alemão, que analisou com profundidade o processo de modernização de seu país, da Inglaterra e da França, nem um campo da vida social estaria imune a partir da introdução da lógica moderna. Padrões de comportamento dos mais diversos, do modo

27 Trata-se de um rearranjo quase absoluto de todas as instâncias da vida, embora tal mudança se tornasse manifesta e evidente somente um século mais tarde, quando o Brasil, uma das mais miseráveis sociedades da época, vai levar o processo de modernização econômica até as últimas conseqüências, transformando-se na oitava maior potência econômica do planeta. É a partir dessa matriz que o país edificará seu longo caminho em direção àquilo que se convencionou chamar de progresso e sobre a qual assentarão suas relações comerciais, sua urbanização, sua industrialização e, por extensão, suas formas de sociabilidade. A matriz moderna ordena que se transformem antigas formas de relacionamento social, interferindo na personalidade e na motivação de conduta das pessoas, na vida afetiva espontânea (Souza, 2006) 20. O Brasil estruturado sobre laços familiares e sobre a pessoalidade deveria ser negado paulatinamente, deixando a hierarquia moral de ser decidida pelo chefe da casa. Esta forma de sociabilidade deveria agora dar lugar à razão, reproduzindo as necessidades do mercado e do Estado que passam a nos dizer o que é certo e errado. A partir dessa matriz civilizacional, nosso comportamento social deveria deixar de diferir grandemente de outras culturas congenitamente lapidadas pelo pensamento ocidental.21 Nossa imersão na vida cotidiana já não podia dar-se de forma ingênua, pouco ou nada racional, mas pelo caminho de uma hierarquia moral, muito próxima da via prussiana, que entende que o equilíbrio de falar ao de comer, sofreriam alterações profundas. Isso sugere que com as periferias da modernidade aconteceria processo semelhante e o Brasil não é, de forma alguma, exceção à regra. ELIAS, Norbert. O processo civilizacional (2 vols.). Lisboa: Dom Quixote. 1990. 20 SOUZA, Jessé. Op. cit. 21 A cultura apresenta definições diferenciadas, variando de acordo com a área em questão e com a perspectiva em foco. De um modo geral, a cultura pode ser entendida como um sistema padronizador do comportamento humano nos mais variados âmbitos: político, social, econômico. Roberto DaMatta, cuja obra será objeto de leitura crítica nas páginas seguintes, define cultura como sendo “um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a sim mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam­se num grupo e podem viver juntos sentindo­ se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situações” DAMATTA, Roberto. Explorações: ensaios de sociologia. RJ: Rocco. 1986. p. 123.

28 da vida social somente pode ser alcançado pela via da disciplina, da autonomia, da liberdade e da auto-responsabilidade. Como diz Wilbert Moore, “as sociedades modernizadas definem-se por características estruturais tais como sistemas formais de educação seriada; famílias nucleares móveis, com parentesco extenso relativamente fraco e discricionário; sistemas políticos capazes de mobilizar populações diferentes e freqüentemente opostas em direção à mudança programada [...].22 Disciplina, autonomia, liberdade e auto-responsabilidade passam a ser pré-requisitos sine qua non de admissão que não tínhamos por aqui até então, mas que agora tínhamos de ter já que embarcáramos na aventura moderna. Mattos explica que na idéia de modernidade “existe uma hierarquia moral objetiva e pré-reflexiva que serve como pano de fundo para os indivíduos pensarem, agirem e julgarem uns aos outros, bem como a si mesmos”23. Mas como se poderiam aplicar tais preceitos aqui se entre nós pouca gente valia alguma coisa em termos modernos? A nossa disciplina era ainda aquela do modo de produção escravocrata e da base familiar patriarcal, não havia liberdade nem autonomia e, muito menos, auto-responsabilidade. O que havia nesta parte do mundo era uma sociedade fundada numa renitente e cabal hierarquia social pré-moderna. Naquele momento não éramos outra coisa senão um agrupamento composto basicamente por indivíduos que traziam em seu bojo resquícios daquilo que a modernidade liberal considera ‘sinais de primitividade’: gente de pele negra, de aparência indígena, mulheres de todos os matizes e outros ‘desqualificados’, que tinham em comum o fato de serem desiguais tanto entre si quanto com relação ao branco mandão. Mas nem mesmo este último estava incólume, pois não tinha qualquer erudição; era de todo ignorante.24 Tanto o primeiro quanto o segundo grupo estava aquém da lógica da dominação moderna.

22 MOORE, Wilbert E. História da análise sociológica. RJ: Zahar, 1980, p. 139. 23 MATTOS, Patrícia. A mulher moderna numa sociedade desigual. In: SOUZA, Jessé (Org.). A invisibilidade da desigualdade social brasileira. BH: UFMG. 2006.. p. 162. 58­75. 24 Segundo José Murilo de Carvalho, o mandonismo é uma característica da política tradicional e um fenômeno que sempre existiu. O chefe ou o mandão, geralmente personificado na pessoa do coronel é aquele que, em função da posse da terra, exerce sobre a população um domínio pessoal e ilícito que a impede o acesso a sociedade

29 A lógica da dominação liberal moderna A implantação de um sistema de dominação bem-sucedido passava pela criação das pré-condições fundadas na ideologia da igualdade de oportunidades e condições que a transformassem no eixo moral, cultural, social e político da vida dos indivíduos e que justificasse um suposto ‘ponto de partida comum’ que a auxilia para que haja uma maior aceitação social de seus pressupostos. A modernidade liberal atua com uma lógica que opera de cima para baixo, partindo do pressuposto de que os indivíduos devem adequar-se aos seus imperativos e não o contrário. Embora admita a presença do Estado para garantir a promoção de algum equilíbrio social via a ideologia da igualdade de oportunidades, essa modernidade opera sob a lógica do mercado, revelando que, na verdade, é a desigualdade entre os homens que se encontra em suas bases. É justamente nessa lacuna permissiva da modernidade, que admite a presença do Estado, que se encontra o espaço por onde a sociedade civil pode reaparelhar essa ideologia em seu benefício. E é precisamente dessa readequação que podem nascer e crescer os direitos de cidadania em dada sociedade. É com as ferramentas do Estado que a sociedade civil precisa operar para fazer valer os seus anseios, e as sociedades mais avançadas do ponto de vista social e político, as chamadas “democracias desenvolvidas”, que encontraram no próprio sistema de dominação um meio para reduzir substancialmente as diferenças entre os indivíduos – criando um habitus comum –, são o exemplo prático mais bem acabado disso. O fenômeno funciona, pois, como a peçonha de um animal em cujo mal se encontra o próprio remédio, mas que somente consegue se sustentar com relativo equilíbrio se admitida a ideologia da igualdade de oportunidades e condições. A experiência de sociedades mais avançadas do ponto de vista moderno tem mostrado que a ideologia da igualdade é capaz de levar a sociedade civil a aceitar essa dominação, permitindo que o sistema funcione relativamente bem. Dentro desta lógica, a modernidade não consegue evitar que os seus próprios

política. CARVALHO, J. M. de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. RJ: Rio Fundo Editora,. 1995, 23­24, passim.

30 instrumentos de dominação, dentre os quais se destacam a escolarização moderna, sejam utilizados para que essa dominação ganhe uma feição mais humanizada. Nessa dialética, a base da pirâmide não elimina o sistema de dominação propriamente dito, mas pode utilizar-se de seus instrumentos, assentados no Estado, para tornar mais sua a modernidade.

*****

Numa ordem moderna que, em maior ou menor escala, admite a ideologia da igualdade de oportunidades, ‘quem não tem méritos’ é colocado de lado no sistema, formando agrupamentos a serem usados pelo mercado em tarefas que não exigem qualificação diferencial. Os indivíduos que não possuem mais do que o corpo, para garantir a sua existência – que não possuem conhecimento agregado ao corpo, in-corporado – são considerados socialmente pouco úteis do ponto de vista da integração ao mercado. São estas pessoas que constituem os excluídos às margens das sociedades modernas clássicas. Nelas, as funções sociais desses indivíduos não recebem o valor reconhecido pela sociedade, reservando-lhes pouca ou nenhuma esperança de vida decente e de reconhecimento social. Prova empírica disso se encontra na má remuneração do trabalho dessas pessoas, no valor de seus salários, conservados baixos por toda a sua existência. De acordo com Jessé Souza,

com o desenvolvimento do capitalismo a disciplina do corpo passa a abranger cada vez mais a noção de incorporação de conhecimento útil, separando os indivíduos com conhecimento in-corporado, ou seja, cujo corpo é trespassado pela “alma”, por assim dizer daqueles que não possuem conhecimento útil algum e dispõem apenas do próprio corpo que é pura carne e músculo desejantes. Com a decadência da religião na sociedade moderna e secular, mercado e Estado passam a ser os agentes dessa hierarquia social opaca, inconsciente para os envolvidos, mas que decide, de forma tão mais eficaz quanto menos tenhamos consciência dela, todas as questões às quais associamos melhor/pior, superior/inferior, cidadão/subcidadão. Ao invés da salvação eterna na religião, mercado e Estado, que controlam todas as nossas possibilidades de acesso aos bens e recursos escassos mundanos, não apenas poder e dinheiro, mas também o prestígio e a influência social que a posse de poder e dinheiro envolve, vão separar e legitimar pré-

31 reflexivamente as classes com capital cultural das classes que só possuem o corpo.25

Os analfabetos, por exemplo, a quem estarão reservadas as funções menos bem-quistas socialmente, mesmo em sociedades mais avançadas, somente poderão votar a partir das vésperas do século XX e, ente nós, somente muito mais tarde.26 A este respeito, José de Souza Martins esclarece que, “de vários modos, o instituto da inferioridade política dos simples vigorou até recentemente, abolido com a supressão da interdição do direito de voto aos analfabetos. A demorada extensão dos direitos de igualdade à totalidade dos brasileiros adultos e sua lenta incorporação à condição de cidadãos teve efeitos amplos, que se refletem tanto na vida política dos municípios quanto dos Estados e da União”.27 Estes indivíduos valem menos segundo a ótica moderna, e valerão muito menos à medida que não conseguem ascender socialmente por seus próprios méritos. Sem a intervenção da sociedade civil em seu favor, a lógica torna-se insuportável, pois estas pessoas se vêem numa dialética perversa da qual não conseguem se desvencilhar. Neste sentido Souza reafirma que,

como o princípio básico do consenso transclassista é o principio do desempenho e da disciplina, passa a ser a aceitação e internalização generalizada deste princípio que faz com que a inadaptação e a marginalização destes setores possam ser percebidas, tanto pela sociedade incluída como também pelas próprias vítimas, como sendo um fracasso pessoal. É também a centralidade universal do princípio do desempenho, com sua conseqüente incorporação pré-reflexiva, que faz com que a reação dos inadaptados se dê num campo de forças que se articula precisamente em relação ao tema do desempenho: positivamente pelo reconhecimento da intocabilidade de seu valor intrínseco, apesar da própria posição de precariedade e, negativamente, pela construção de um estilo de vida reativo, ressentido, ou abertamente criminoso e marginal.28

25 SOUZA, Jessé. A visibilidade da raça e a invisibilidade da classe – contra as evidências do conhecimento imediato. In: SOUZA, Jessé (Org.). Op. cit., p. 142. 23­57. 26 Muito mais tarde, em 2008, o analfabeto já teria conquistado o direito ao voto, mas no nordeste do País, ele representava ainda 37% dos eleitores da região. Dos 128 milhões de eleitores brasileiros, 8 milhões não tinham escolaridade à época. Fonte: www.tse.gov.br. Acesso em 13.06.2008. 27 MARTINS, José de Souza. A morte política da metrópole: nossas cidades aumentam de tamanho, mas encolhem em civilização e fogem do controle. O Estado de SP. 24.08.2008. 28 SOUZA, Jessé. Op. cit. P. 147.

32 Sem conseguir conquistar o reconhecimento dos outros e provar a sua utilidade social prática, o que se constitui são grupos inteiros de gente socialmente rebaixada, transformando-se estes naquilo que os americanos do norte costumam chamar de loosers 29, podendo transformar-se em indigentes ou outra excrescência social. No modelo clássico da modernidade liberal os contingentes de desqualificados se perceberão limitados e sem perspectivas de mobilidade social dentro da ordem do trabalho, que passa a ser o divisor de águas da dignidade humana e do reconhecimento (Elias, 1990) 30. Mas o fato é que nem todo o trabalho será, de fato, digno, na concepção de mundo do liberalismo moderno e aos olhos da própria sociedade, gerando, como conseqüência, uma sensação de que quem o realiza é menos digno de cidadania do que os demais membros de uma mesma comunidade. Entre nós, em que pese a introdução da ordem moderna por aqui, já em princípios do século XIX, esta exclusão moral decorrente de uma suposta derrota na ordem competitiva, não ganhará tamanha proporção. Ela estará

29 “A crença no desempenho como produto de características intrínsecas a cada um de nós e na igualdade de oportunidades é que permite à sociedade norte­americana se autodividir em winners e loosers (vencedores e vencidos). Winners são os que conseguiram construir uma vida de independência e bem­estar e tiveram sucesso, ou seja, o reconhecimento público de seus méritos, através de salário, status, ascensão na carreira e celebridade. Loosers são justamente os que não conseguiram “chegar lá”, seja este “lá” onde for. Partindo do pressuposto de que todos tiveram as mesmas oportunidades, devido à ideologia da igualdade de oportunidades, os loosers não podem, legitimamente, se queixar de seus resultados, mas apenas de si mesmos. Como bem observou Young (1959), nesse modelo, o homem de posição inferior não tem como dar vazão à sua auto­estima. Daí a atual preocupação com a auto­estima e as novas e inúmeras terapias para recuperá­la e fortalecer o self que abundam na sociedade norte­ americana. Elas procuram impedir a sensação de derrota dos que fracassaram na escalada social.” BARBOSA, Lívia. Op. cit.,. p. 46. Na mesma direção, Nelson Motta ensina que, “Um dos aspectos mais detestáveis do ‘American way of life’, é o culto incondicional aos que se dão bem na vida, aos aparentemente vencedores: o fundamentalismo de resultados. Ainda mais execrável é o seu complemento, o desprezo absoluto pelos perdedores, pelos fracos, pobres e pequenos, pelos ‘losers’ que não conseguem dinheiro, poder ou felicidade. Ou tudo isso junto, e também beleza, que se tornou um bem de consumo. Porque vencer a qualquer preço não é um valor civilizatório nem moralmente aceitável. É o equivalente capitalista dos comunistas justificando os meios pelos fins. Por isso, numa sociedade ultra­competitiva, mas legalista, democrática e republicana, os que usam atalhos ilegais para ‘chegar lá’ estão em minoria e, se flagrados, são punidos. por outro lado, nem todos os ‘losers’ são vítimas de sua própria fraqueza, ignorância ou preguiça. Muitos que são visto como perdedores são apenas independentes, artistas, intelectuais, até políticos, que querem, ou acham que devem, e pagam o preço, em dinheiro e tempo perdidos [...] . MOTTA, Nelson. Uma derrota triunfal. O Estado de SP, 31.10.2008. 30 ELIAS, Norbert. Op. cit.

33 impedida de se fazer hegemônica por força dos mandões locais que continuaram a operar com os mesmos instrumentos de dominação de que dispunham e que se pautavam pelo aliciamento e pela violência. Até ganhar força o processo de modernização econômica da nossa modernidade, a partir do segundo quarto do século seguinte, não se forma por aqui uma multidão de gente ‘desclassificada’ por sua pouca funcionalidade mercadológica, pois não existe a idéia de ordem competitiva no sentido da modernidade liberal clássica. A acepção moderna daquilo que é moralmente apropriado não vale para nós e não por outro motivo, mas pela ausência da premissa da igualdade de oportunidades e condições. A cartilha liberal moderna cresce entre nós deixando de lado essa ideologia, que é a mais importante de suas premissas para garantir a dominação e produzir indivíduos obedientes aos imperativos do mercado e do Estado. Dessa forma, ela não produzirá somente relações de causa e efeito evidentes com os quais podia contar de antemão, mas efeitos colaterais outros, dos quais se destaca a gestação do fenômeno da malandragem.

Um habitus mandão

A resistência dos segmentos mandões em admitir um modelo de dominação fundado na igualdade de oportunidades e condições afastará qualquer possibilidade de mudança social de fato e será determinante para o surgimento da figura do malandro. A partir daí, a resistência ao tal código moderno valerá tanto para dominantes quanto para dominados. Esta resistência se impõe sobre o grosso da população e é a partir dessa lógica que todos passam a ser classificados. Entre nós, continuará a existir o sistema fundado na ordem dos que nasceram para mandar e daqueles que serão infindamente mandados. Victor Nunes Leal (1997) 31 nos ajuda a compreender melhor o papel do mandão na formação do Brasil contemporâneo. O autor ensina que o mandonismo e o clientelismo, implicam relações de reciprocidade,

31 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3a ed., RJ: Nova Fronteira, 1997.

34 características da política tradicional, mas não são sistemas. Ambos os fenômenos estão presentes desde o início da colonização sendo que o primeiro sobrevive ainda hoje em regiões isoladas e o segundo encontra-se por toda parte. No caso do mandonismo, o mandão, o chefe, proprietário de terra, exerce sobre a população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de adentrar o mundo moderno. Seu surgimento está ligado ao Poder Colonial que, sem braços suficientes para administrar, delegava aos chefes locais tarefas de governo ou simplesmente deixava que mandassem a seu bel-prazer. José Murilo de Carvalho, relendo o clássico de Leal, verifica que o coronelismo nasce exatamente como uma extensão daquele mandonismo. Trata-se de um momento particular do mandonismo, exatamente aquele em que os mandões começam a perder força econômica e têm de recorrer ao governo. É, da mesma maneira, o que se tornará o modus operandis encontrada pelo governo para cooptar os senhores de terra, estreitando os laços entre governo e poder privado. “Se o posto de coronel não bastava, o governo o fazia barão”, diz Carvalho. Mandonismo, segundo Leal, sempre existiu; é uma característica do coronelismo, assim como o é o clientelismo. Ocorre que o coronelismo, ao contrário dos outros dois, é um sistema político. O coronelismo é uma complexa rede de relações que vai desde o coronel até o presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos. Ele nasce da combinação do federalismo – implantado pela República em substituição ao centralismo imperial – com a decadência econômica dos fazendeiros mandões, criando condições para o surgimento da figura de um intermediário entre o poder central, o poder estadual e o poder municipal, ou seja, do coronel. Durante aquilo que ficou conhecido como ‘República Velha’, ocorre uma forte independência dos Estados em relação à União. Essa ‘frouxidão’ consentida pelo Governo Federal é que vai criar condições para o surgimento do coronelismo. Clientelismo, por sua vez, ainda que fenômeno social usado pelo coronel como moeda de troca, é o coronelismo sem a figura do coronel; sem intermediário. Aqui, ocorre fenômeno oposto ao nascimento da figura do coronel. À medida que os chefes políticos locais (coronéis) perdem a capacidade de controlar os votos da população, eles deixam de ser parceiros interessantes para o governo, que passa a tratar diretamente com os eleitores, transferindo

35 para estes a relação clientelística. Carvalho ensina que aqui não se trata de um sistema, dado que as relações do ‘toma lá, dá cá’ se dá entre o governo, ou políticos, e os setores pobres da população. Se o coronelismo utiliza-se de relações clientelísticas para atingir seus objetivos, o clientelismo não depende do sistema coronelista para existir, e essa é a diferença básica entre eles. O que Leal explicita, na interpretação de Carvalho, é que o avanço da modernidade “tende a liquidar a figura do coronel”, dado que o coronelismo está fundamentalmente ligado ao meio rural. Implícito em Leal está que, quando transferido para o meio urbano, estas relações dispensam o intermediário, mas podem carregar sintomas típicos do clientelismo. O coronel, mandão, é abandonado nas relações pré-modernas, arcaicas, do campo. Ao transferir-se para as cidades, atraída pelo processo de modernização, a população deixou de usar a enxada como instrumento de trabalho, fazendo desaparecer a relação entre ela e o coronel, ainda que não tenham desaparecido as relações de reciprocidade. Estas relações ganham novos contornos, ampliam a sua esfera para outras arenas, e, mais importante, descartam a figura do coronel. O que há, pois, são relações clientelísticas, muitas vezes de mando, mas longe das características coronelísticas.32 De qualquer forma, o que nos interessa particularmente neste estudo é a presença renitente desse caráter historicamente mandão dos tomadores de decisão brasileiros. Um breve remonte histórico pode mostrar como nem mesmo os segmentos acostumados a mandar, admitirão a essência dos instrumentos de dominação modernos e abominarão seus imperativos. Estes segmentos se acostumarão a jogar por fora do ‘jogo da modernidade’ e ‘dar de ombros para suas instituições’. Eles procurarão manter a si e a sociedade órfãos dos principais pressupostos dessa doutrina, levando ao retardamento a própria ordem burguesa entre nós. Daí porque não desenvolverão um habitus adequado à ‘fineza’ com a qual o seu grupo supostamente deveria contar (Bourdieu, 1998) 33 para dominar, conforme verificaremos abaixo, mantendo-se rudes por gerações a fio, com pouca ou nenhuma instrução escolar. O mandão

32 LEAL, Victor Nunes. Op. cit. Apud CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 32, passim. 33 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. RJ: Bertrand Brasil, 1998, passim.

36 se contrapõe ao moderno na medida em que, como bem conceitua Simon Schwartzman, não se trata “de pessoas que se recusam a viver segundo cânones antigos e tradicionais e valorizam a inovação, a mudança e o progresso”34. Acostumados a mandar incondicionalmente, estes grupos não se reconhecerão no modelo regulador e classificatório moderno e sua renitência em admitir seus imperativos deixará escancarada e latente a dominação moderna. “Para que haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada”, diz Souza35. Isso desestimula as classes baixas, acostumadas a despachar diretamente com os mandões, em acolher, também elas, a estes imperativos. Os mandões é que permaneceriam lhes fazendo o favor de garantir o direito civil a alguma propriedade, o direito social ao trabalho, nenhum direito político e o grosso do sustento. Estavam sempre próximos e lhes garantiam proteção, inclusive contra a polícia, a quem autorizavam ou desautorizavam a sua perseguição. Mandavam que se reservassem vagas nas escolas para seus filhos sempre que possível. Eles cobriam, enfim, todos os espaços da vida social desses indivíduos, fazendo com que reproduzissem infindamente um tipo de personalidade inadequado às exigências modernas: institucionalmente desobediente, socialmente indisciplinada, invariavelmente ‘não-domesticada’. Não é outra coisa que vai fazer com que permaneçam confusamente em dissonância com a moral classificatória moderna, enquanto se tornavam institucionalmente modernos. Contávamos com economia monetarizada, aumento da produtividade do trabalho, desenvolvimento técnico, ciência moderna e instituições estatais relativamente sólidas. Tínhamos imprensa livre e éramos constitucionalmente iguais, mas éramos escravocratas, não tínhamos nem escolaridade e nem reserváramos propriedade para o grosso da população. Sem esse pré-requisito, não interessa às classes baixas o respeito e a dignidade prometidos pela modernidade. Esses homens e mulheres não

34 SCHWARTZMAN, Simon. Pobreza, exclusão social e modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo. SP: Augurium, 2004, p.16. 35 Ibidem, p. 31.

37 encontram estímulos para prezar a vida institucionalmente ordenada e comprometida ficaria o suposto aprendizado moral coletivo que a modernidade liberal clássica supostamente trás em seu bojo.

***** O conceito de habitus (sistema de disposições mentais e corporais) foi desenvolvido originalmente por Pierre Bourdieu e corresponde a um componente afetivo e emocional inscrito no corpo e nas manifestações espontâneas dos indivíduos, um tipo específico de socialização. A idéia básica de Bourdieu é que as diversas condições sociais de existência das pessoas tendem a ser por elas interiorizadas como sistemas de disposições igualmente distintos, ou seja, o que os indivíduos apreciam ou não em todos os aspectos da vida social. Dito de outra forma, o habitus corresponde a forma como os indivíduos procedem em sociedade, guiados pelas estruturas que aqui encontram ao nascer, remodelando seu comportamento à medida que seguem para a maturidade. Quando nascemos, todos nós já encontramos um sistema classificatório moral inscrito em nossos corações e mentes que nos diz o quanto vale cada indivíduo na sociedade. É dele que nascem nossas escolhas, pois é também dele que nascem as nossas representações simbólicas, que criam barreiras simbólicas ou mesmo físicas entre os diversos segmentos de uma sociedade. Na ordem moderna, é o habitus que determina os ‘gostos’, do círculo de amizades de uma pessoa até a escolha do companheiro ou da companheira com quem se pretende compartilhar a vida. O habitus primário é a capacidade de se reconhecer o Outro como igual pelo compartilhamento de uma mesma economia emocional e valorativa a partir do seu reconhecimento como membro útil da comunidade. Quando se nasce numa sociedade estruturada sobre a imprescindibilidade do respeito e da dignidade humanas, numa palavra, da cidadania moderna, esta condição se torna pré-reflexiva, dispensando a ponderação sobre ela. O juízo de que todos os indivíduos são iguais de fato e de direito contido na idéia de cidadania, depois de décadas de prática endógena da mesma é capaz de extrair dos

38 indivíduos a imaginação do Outro como inferior ou superior por suas capacidades físicas ou mentais. Assim, os indivíduos se ‘habituam’ à idéia de que todos na sociedade têm uma função social a realizar e como tal devem ser enxergados. Daí que, para todos que compartilham o mesmo habitus primário, deve parecer estranho que um diretor financeiro ou outro profissional de ‘alto nível’ receba um salário duzentas vezes maior que um gari ou um cobrador de ônibus. A prática imaginária tende a tornar-se cada vez mais um habitus. Isso parece ter faltado às sociedades periféricas como a brasileira. É justamente esta ausência que permitiu a sociedades como o Brasil ou o México deixar milhões de pessoas de fora do sistema produtivo e distantes da proteção efetiva do Estado por durante tanto tempo. Isso não significa que os indivíduos não admitam a sobrevalorização de algumas pessoas em função de suas capacidades meritocráticas. O uso das ferramentas do Estado pela sociedade civil para o alcance da cidadania é possibilitada por uma pressuposição de consentimento do mercado para tal. O conceito de habitus, com esse entendimento, não nega a luta de classes. Ao contrário, reafirma-lhe na medida em que entende que o consenso transclassista não ocorre sem a luta política e mesmo sangrenta. É ela, e tão somente ela, que permite o tal consenso, particularmente pela força simbólica que representou o ‘perigo vermelho’ durante grande parte do século XX. O mercado que permite essa equalização dos indivíduos não o faz sob outra perspectiva, mas crédulo de que, a partir daí, se formará um contingente que disputará seus espaços entre si. É daí que ele espera formar um contingente apto para atender às suas demandas mais diferenciadas, das mais meras às mais complexas, formando um relativo consenso transclassista. É também a partir desse pressuposto moderno que se formarão indivíduos e grupos de indivíduos ‘merecedores’ de um status diferencial. Eles receberão melhores salários e grande distinção entre os demais membros da sociedade que compartilham o mesmo habitus primário, vendo seu habitus ser elevado ao nível secundário (Bourdieu, 1998) 36. Não é por outra razão que as pessoas freqüentam cursos superiores, fazem pós-graduação, buscam

36 BOURDIEU, Pierre. Op. cit.

39 diferencial lingüístico e tantas outras formas de especialização diferencial que provem ser eles melhores do que seus pares. Também não é por outra razão que aqueles que não se atualizam ‘ficam para trás’, para usar uma expressão do ideário mercadológico. Em grandes centros urbanos, essa classificação fica mais evidente. Um nordestino será, pejorativamente, sempre um ‘’, no , um ‘baiano’, em São Paulo e um ‘nortista’ no sul do País. Se o indivíduo não for negro, tanto melhor para ele, pois suas chances de reconhecimento e respeito aumentam, e se tiver conquistado um curso superior, elas disparam. Se este indivíduo chegar aos mais altos graus de escolarização e o fizer através de instituição internacionalmente reconhecida, seus ‘sinais de primitividade’, sua nordestinismo e sua negritude despencam, tendendo a desaparecer no plano simbólico. Essa é a forma moderna de atribuir maior respeito e reconhecimento aos indivíduos e colocá-los num patamar superior, num habitus secundário ou terciário, com relação aos demais componentes da sociedade. Isso se dá tanto no campo econômico como no campo simbólico, resultando num acúmulo de capital cultural. O primordial é que haja um habitus primário, que iguale os indivíduos num mesmo plano, e que desestimule qualquer tendência de vilipendiamento de seus semelhantes, da criação de cidadãos de primeira e de segunda classe. Não havendo a premissa da igualdade de oportunidades que estimule a criação de um habitus primário, são grandes as chances de convulsão social dentro da (des)ordem moderna. Na periferia da modernidade, entretanto, o diferencial meritocrático que transporta os indivíduos do habitus primário ao secundário parece ter tido um efeito perverso. O Brasil, embora tenha se valido dos instrumentos modernos desde primórdios do século XIX para exigir deveres de seus ‘cidadãos’, deixará de enfatizar esse aspecto moderno por tempo demasiado longo, rebaixando o habitus das pessoas comuns ao nível da precarização. A perversão de nossa modernidade deita exatamente sobre este aspecto. Enquanto nos países avançados a sociedade civil se apressou em forçar os governantes de plantão a assegurar um mínimo de dignidade para o universo da coletividade, criando um padrão de ‘ponto de partida comum’, entre nós isso não ocorreu, fazendo com que o habitus de parte significativa de seus

40 populares fosse rebaixado ao nível da degradação humana (Souza, 2006)37. Daí que teríamos tantos indigentes e pobres, tantas favelas e cortiços, tanta criminalidade, tanta gente vendo suas potencialidades mais nobres sendo desperdiçadas, ainda às vésperas do terceiro milênio, e o grosso da sociedade pagando preço tão alto por isso.

A ideologia da igualdade de oportunidades e sua função latente

A função manifesta da ideologia da igualdade de oportunidades e condições é criar ambientes onde as diferenças de origem se dissipem, enquanto sua função latente é manter coesa uma sociedade sob a dominação não-instrumentalizada do mercado e do Estado.38 Sem essa pré-condição, no contexto de sua função manifesta, são pequenas as possibilidades de se criarem um relativo equilíbrio social entre os indivíduos. Já no contexto de sua função latente, funcionarão mal o mercado e o próprio Estado. É a ideologia da igualdade de oportunidades e condições que cria uma concepção de valor diferencial dos seres humanos entre si e que legitima as desigualdades e as diferenças sociais. Ela somente opera com o que é útil, descartando todo o resto, do trabalhador desqualificado à celebridade decadente, que pouco interessa ao mercado. Essa ideologia parece ter sido a maneira encontrada pela modernidade liberal para imputar uma regra de reconhecimento moral que classifica os indivíduos merecedores de dignidade e de respeito. A ideologia da igualdade de oportunidades e condições parte do pressuposto de que todos os indivíduos nascem iguais e se diferenciam pelo mérito que demonstram ao longo de sua vida social, assegurando que os mais

37 SOUZA, Jessé. Op. cit., p. 30, passim. 38 Robert Merton introduz na corrente de pensamento funcionalista a noção de ‘função manifesta’, que é “o modo como uma instituição ou uma ação social são percebidas objetivamente, e de ‘função latente’, que é a função verdadeira e não é imediatamente percebida pelo observador. As instituições educacionais, por exemplo, podem ter como função manifesta transmitir às futuras gerações o conhecimento acumulado, contribuindo para o processo de socialização, no entanto, a sua função latente pode ser a de manter a coesão da sociedade, ou seja, tem uma importante função de controle social, reproduzindo os valores aceitos e que invariavelmente não podem ser questionados”. MERTON, Robert K. Elément de theorie et de méthode sociologique. Paris. Plon. 1965, p. 515. Apud DIAS, Reinaldo. Introdução à sociologia. Pearson­Prentice Hall. São Paulo. 200, p 83.

41 capazes, e somente estes, têm direito de adentrar este clube. As pessoas que não se adéquam aos seus imperativos têm grandes chances de pairar em suas margens e, neste sentido, ela interfere também na personalidade e na motivação de conduta dos indivíduos, gerando uma sensação de que os não- adequados devem responder por seu suposto fracasso. É a vida permeada pela ideologia da igualdade de oportunidades que justifica o fato de alguns indivíduos gozarem do bem-estar de viver numa rua bem-cuidada sem que o benefício seja estendido aos habitantes de outras ruas da mesma comunidade, cidade ou país. As pessoas não reagem politicamente a este rebaixamento porque internalizam a crença generalizada de que eles próprios fazem parte de uma fração social indigna de cidadania. A ideologia da igualdade nos causa a sensação de que as coisas ‘são assim mesmo’, como o nosso sistema orgânico; como nossos olhos a quem cabe a tarefa de enxergar e pronto, afinal, ‘todos nascemos providos de olhos’. A modernidade liberal já deve trazer embutida essa impressão, fazendo interessar a todos os indivíduos de uma sociedade a possibilidade de se diferenciar de um suposto ‘naco social de segunda classe’ através de seu próprio esforço, e esta se torna a forma de dominação consentida. Longe dela, a dominação geralmente se dá pela força bruta. Daí que nos sentimos tão confortáveis ao testemunhar exemplos de ‘gente de sucesso’, que rompeu a barreira classificatória e venceu na vida, mesmo vindo de ‘baixo’. Daí que contribuímos inadvertidamente para a conservação do sistema da dominação moderna; por ele nos parecer um ‘bom negócio’. Mas entre nós da periferia a coisa se revelaria muito mais complexa. No nosso caso, e nas sociedades periféricas de um modo geral, o sistema de dominação moderno parece não ter sido bem compreendido. Se entre nós a modernidade liberal, presente por aqui desde princípios do século XIX, foi capaz de romper paulatinamente com as formas de sociabilidade pré- modernas, grandemente apoiadas no personalismo e nos laços de família, ela fracassou miseravelmente na sua tarefa de fazer homogeneizar o tipo humano no País (Souza, 2006)39, ou seja, de formatar os indivíduos de maneira que eles se adequassem às exigências do mercado competitivo e do Estado. Com

39 SOUZA, Jessé. Op. cit.

42 isso fará nascer e crescer dois fenômenos distintos: a malandragem e a precarização. O primeiro se revela no indivíduo que se nega a reconhecer em sua plenitude a legitimidade dos imperativos modernos, embora isso nem sempre se revele em sua consciência. O segundo se revela no indivíduo que reconhece a legitimidade desses imperativos, embora não logre a eles se ajustar. Ambos têm em comum o fato de estarem diretamente relacionados ao vazio de igualdade de oportunidades e condições deixado pela modernidade cabocla e podem até mesmo se confundir. Ao não se ver pressionada pela introdução de um código fundado na igualdade de oportunidades, a modernidade tupiniquim não viu necessidade de naturalização dessa dominação, dispensou justificativa para exerça-la, desestimulando os ânimos populares no clamor por mais cidadania. Não será por outra razão que a cidadania desses indivíduos se verá em permanente débito e incompletude, seus direitos sociais se encontrarão fatiados, seus direitos políticos estarão sempre cerceados e sua vida incompreendida. Esse impasse gerará um distanciamento da sociedade com relação ao Estado, deixando o destino de nossa modernidade em poder dos indivíduos e grupos acostumados a mandar, mas que também não sabiam muito bem o que fazer com ela. Daí que estes estenderiam o modo de produção servil até vésperas do século XX, não promoveriam a escolarização moderna e impediriam o direito civil a propriedade fundiária ao grosso da população enquanto pudessem, transformando o País, desde sempre, em campeão mundial em desigualdade em propriedade da terra e renda real. Ainda assim, muitos indivíduos bem-nascidos e dispostos a tal tornar-se- iam verdadeiramente modernos buscando esse aprendizado moral noutras fontes (particularmente na escolaridade diferencial), no exterior ou na estrutura herdada do período joanino. Seus descendentes é quem introduzirão alguma noção de igualdade entre os homens no Brasil mais de um século depois de implantado o modelo e reordenarão a modernidade por aqui. Por ora, estes indivíduos serão minoria e suas vozes não soarão no tom necessário para se fazer repensar a modernidade entre nós. Os demais, ricos e pobres, pretos e brancos, se reproduzirão por inúmeras gerações resistindo a desenvolver uma personalidade do tipo moderna.

43 Fora das classes mandonas, que eventualmente contavam já com treinamento prévio diferenciado e história de vida privilegiada – conquistada pela força bruta ou pelo aliciamento, e até por merecimento – e que, por isso mesmo, monopolizarão o direito à dignidade na sociedade brasileira, restarão poucas chances de se vislumbrarem cidadãos. Os mandões se manteriam nessa condição e os demais segmentos, na falta dos instrumentos que classificam os indivíduos pelas condições que estes apresentam em dominar as técnicas de trabalho e o próprio corpo, permaneceriam infindamente na condição de trabalhadores brutalizados. É como se a modernidade por aqui não tivesse chegado para o grosso da população, o que não lhes isentaria dos deveres para com ela, e é exatamente essa ambigüidade que parece estimular os indivíduos a não enxergarem nas instituições modernas a resposta para suas queixas, preferindo agir ao largo delas. Esta resistência inerente aos dois segmentos que compõem a sociedade nacional, mandões e mandados, vai comprometer o modelo de dominação social não instrumentalizado, produzido e reproduzido pela suposição de igualdade meritocrática, da dominação naturalizada (Taylor, 1997)40. Nem os primeiros nem os segundos se convenceriam, de fato, de que a modernidade naqueles moldes, impositiva e arrogante, complexa e pretensiosa, era o melhor caminho a trilhar e dela se esquivariam enquanto pudessem e sempre que pudessem.

A ideologia da igualdade de oportunidades e a propriedade

Os mandões brasileiros não pareciam interessados em conceber nenhuma igualdade de oportunidades e condições para efetivar a sua dominação sobre o grosso da sociedade. Tinham sempre exercido a dominação e não seria agora que mudariam seu comportamento. Em vista disso, manteriam inalterada a estrutura fundiária colonial, dando de ombros para o fato de que nenhum outro elemento seria capaz de despertar tão positivamente o sentido de pertencimento, de civismo, de respeito, de

40 TAYLOR, Charles. Sources of the self. Cambridge: Harvard University Press. 2000a.

44 dignidade e, claro, da dominação sorrateira, do que a pequena posse fundiária naquele momento histórico. Os próprios liberais brasileiros, muitos dos quais igualmente mandões e latifundiários, não quiseram perceber que somente a posse mais eqüitativa da terra poderia livrar os homens e mulheres daqui da miséria social que os transformaria em indivíduos brutalizados com o paulatino avanço da modernidade. Num tempo em que as pessoas ainda pertenciam à terra, mas que a terra não pertencia às pessoas, somente a propriedade da terra podia libertar esses indivíduos da humilhação moral, e apontar com a esperança de vida digna. Em favor dos liberais, ela poderia ajudar a liberar as forças produtivas e gerar riqueza, que é a lógica maior em que se sustenta a própria doutrina da qual são parte. Este não foi o caso brasileiro, mas parece ter sido o sentido empregado pelo liberalismo, por exemplo, nas Treze Colônias do Norte. Ali, parece ter vigido o liberalismo que, acuado pela pressão popular, preferiu seguir a ideologia moderna de perto, entendendo serem as massas indispensáveis para o sucesso do processo produtivo em expansão naquele país. Este entendimento se mostrou determinante para que se criassem as condições futuras para o desenvolvimento da cidadania entre elas. Ali, em que pese às implicações dos próprios conflitos de classes, inerentes ao processo, o interesse de cada um parece ter desembocado, em maior ou menor escala, no interesse da comunidade, num ‘interesse bem compreendido’, decerto – em interesses que se coadunam. A extensão do direito civil à propriedade fundiária coletivizou o interesse e colocou os homens em pé de igualdade e condições, num “ponto de partida” análogo, espalhando uma sensação de justiça e dignidade entre os pleiteados. Isso foi feito possível não por outro motivo, mas pela terra ser concebida entre eles como um commodity, destinado a gerar lucro, e isso somente poderia se fazer possível nestes termos, se considerada a modernidade liberal. No caso brasileiro não se deu processo semelhante porque, se para o homem simples trabalhador41, sem posses, a propriedade fundiária tinha um

41 Usamos a expressão «homem simples» como referência ao “homem sem posses”, ao “homem comum” brasileiro, ao “homem pobre”, ou ao “zuanguinza”, de origem africana, que era entregue por seus algozes ao colonizador por

45 significado virtuoso, que perpassava o desejo material e conferia uma sensação de respeito e reconhecimento ao seu portador, para os segmentos que trataram de garantir para si o direito civil à propriedade, o virtual monopólio da terra representou desde sempre decisiva ferramenta política. Não é o interesse econômico que obstruirá os direitos civis de propriedade fundiária no país, como se costuma pensar, mas seu valor político. Quem o possuísse deteria também o controle sobre os destinos do homem simples trabalhador da terra e, por extensão, de sua família e, ainda, da comunidade. Com a exclusividade de sua posse, os grandes proprietários transformavam-se em chefes locais, caciques políticos, coronéis, mandões de toda ordem, podendo conseguir o apoio político das populações que as ocupavam e suas adjacências e controlar os destinos das pessoas. Não seria por outra razão que os poucos proprietários fundiários brasileiros, fossem eles liberais ou não, colocariam em prática a “Lei de Terras”, inventada na segunda metade do século XIX, visando manter inalterada a estrutura fundiária dos tempos coloniais. A tal lei determinava que qualquer pessoa poderia ser proprietária no Brasil, mas ‘esqueceu-se’ de criar as condições de crédito para que o homem simples trabalhador (a quase totalidade da população: o elemento escravo, o imigrante, o branco pobre) pudesse adquirir estas terras. Somente os latifundiários, sobretudo cafeicultores, puderam adquiri-las, pois somente estes segmentos tinham recursos para tal. Por força da tal lei, a propriedade fundiária permaneceria na condição pré-moderna, ou seja, continuaria a ser transmitida por herança, como em qualquer sociedade tradicional. E não se tratava de pequenos lotes, mas de longas extensões territoriais, pois, dessa forma, se garantia os espaços para o senhoriato construir sua identidade sobre o monopólio fundiário, evitando que a terra fosse convertida em valor de mercado. Nesta direção, Franco explica que

ao lado do latifúndio a presença da escravidão freou a constituição de uma sociedade de classes, não tanto porque o escravo esteja fora das relações de mercado, mas especialmente excluiu delas os

ser julgado moralmente inferior. Este homem é parte da classe trabalhadora mais pauperizada, que vive de trabalhos esporádicos, sub­remunerados, nos grotões das metrópoles e de cidade menores e ainda no meio rural de todo o País.

46 homens livres e pobres e deixou incompleto o processo de sua expropriação. Ficando marginalizada nas realizações essenciais à sociedade e guardando a posse dos meios de produção, a população que poderia ser transformada em mão-de-obra livre esteve a salvo das pressões econômicas que transformariam sua força de trabalho em mercadoria. Em outras palavras, as relações entre proprietários e não-proprietários não assumiram generalizadamente o caráter de relações de troca. Este enunciado, ao mesmo tempo em que acentua a forma específica de dominação social que funda uma estrutura de classes, aponta para seu corolário o alargamento dos mercados.42

Não nascia ali, mas ali se afirmava o modelo pré-moderno do grande latifúndio, da concentração de terra, que persistiria até o terceiro milênio em nossa sociedade, quando o problema fundiário já havia sido superado em outras sociedades ocidentais e que se ocupavam agora da reforma urbana. Não bastasse o caráter antidemocrático da lei de terras cabocla, a Constituição Republicana de 1891 aprofundaria ainda mais a concentração fundiária no País. Através da instituição do sistema federativo, as terras públicas ficariam agora sob a responsabilidade dos Estados. Isso permitia que as oligarquias regionais controlassem a sua distribuição 43 e dessem de ombros para o fato de que, num regime republicano, como era o nosso agora, certos bens essenciais à vida digna de todo o povo (12 milhões de pessoas à época) não podem ser objeto de ilimitada apropriação privada, de acordo com o liberalismo menos cruento. Sem terra, sem-teto, sem-dentes, sem-escolarização, sem-respeito, sem reconhecimento social, sem esperança e sem-perspectiva, o homem simples trabalhador permanece desorganizado e sem condições de romper com o

42 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na sociedade escravocrata. SP: Ática, 1969. p. 141. 43 É somente a partir da finais da década de 1940 que se ampliam os debates sobre a reforma agrária com alguma participação popular. O resultado é a criação, mais de vinte anos mais tarde, em 1962, da Superintendência de Política Agrária – SUPRA, com a atribuição de executar a reforma agrária. Em 1963, o trabalhismo faz nascer o Estatuto do Trabalhador Rural, regulando as relações de trabalho no campo, que até então estiveram à margem da legislação trabalhista. A reforma agrária, no entanto, ainda estaria por ser feita no país, visto que o autoritarismo que invadiu as instâncias governamentais a partir do ano seguinte e perdurou até meados dos anos 80 suspendeu a riqueza da troca de idéias sobre a questão agrária por aqui e adiou a realização efetiva da mesma. O resultado é que ao final do ‘ciclo de chumbo’ somente 1% dos proprietários rurais detinham 47% das terras do país. A concentração fundiária se traduziu num dos maiores símbolos do caráter antidemocrático das elites nacionais desde a organização do jovem país independente, com sérias implicações para o desenvolvimento de um código salutar de valores políticos.

47 círculo vicioso que o precariza. Não será no direito civil à propriedade fundiária que encontrará alguma dignidade e respeito, porque para ele, este não existirá, fazendo permanecer manca a nossa modernidade. Pela lei brasileira, imigrantes pobres que vieram se juntar a uma população composta majoritariamente de negros libertos e mestiços pobres, mas também de brancos pobres e pequenos comerciantes, foram deixados de fora do processo de equalização fundiária, prevalecendo a primazia de uns poucos homens, enquanto na parte norte do continente americano, aqueles foram inseridos na distribuição fundiária. Esta foi entendida como motor da economia de mercado naquele momento e da longa construção republicana, e esta percepção foi determinante para melhorar a sua modernidade. Tocqueville, ainda na primeira metade do século XIX, em 1931, escrevia que “nos Estados Unidos, os cidadãos não têm nenhuma preeminência uns sobre os outros; não devem uns aos outros nem obediência nem respeito; administram juntos a justiça e governam o Estado, e em geral se reúnem todos para tratar dos assuntos que influem sobre o destino comum”44. Não é segredo que os homens citados por Tocqueville – primeiro autor a emoldura a efervescente democracia liberal norte-americana – faziam isso muito menos por seu virtuosismo do que por interesse, um interesse coadunar, de cunho liberal-moderno, ‘bem compreendido’. Neste sentido, Costa atesta que

os grupos financeiros pensavam que a colonização e o desenvolvimento do oeste criariam novas possibilidades para investir capital; os industriais vislumbravam novos mercados; os comerciantes esperavam um aumento na exportação e na importação; a classe média urbana, ou por ressentir-se das tendências vigentes, ou por lamentar o ‘paraíso perdido’, via no Home Stead Act a promessa de uma vida melhor; os trabalhadores esperavam que o Ato estimulasse um movimento populacional em direção ao oeste, reduzindo o excesso de oferta de trabalho nas cidades. A partir do momento em que o problema da escravidão tinha dividido claramente a nação, muitos abolicionistas associaram a abolição à terra livre e também apoiaram o Home Stead Act. Todos esses grupos contribuíram de diferentes maneiras para uma importante mudança de opinião em favor da Lei. A oposição veio essencialmente dos especuladores da terra e dos sulistas ligados às formas tradicionais da economia e de propriedade de terras. Enquanto os brasileiros usaram a política de terras como um ‘cinto de segurança’, os norte-americanos usaram-na como uma ‘válvula de escape’.45

44 TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. SP: Itatiaia, 1986. p. 268. 45 COSTA, E. Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. SP: Unesp. 1999. p. 182.

48

Essa foi a forma que as elites norte-americanas encontraram, desde logo, para combater o egoísmo que habitava o espírito de seus homens e para garantir a dominação moderna. Elas não esperavam encontrar virtudes desinteressadas nos corações dos homens, mas descobrir formas de fazer com que tais virtudes se tornassem úteis, ressaltando os valores individuais. Entre nós, ao contrário, a função social da propriedade não será a que se manifesta na forma do bem interessado da coletividade, mas de uns poucos homens, em prejuízo da imensa maioria de brasileiros e imigrantes pobres e de trabalhadores brutalizados em geral. Ao trabalhar a terra própria e dela tirar o sustento para a família, o homem simples trabalhador sentia-se orgulhoso e honrado, porque tornado útil aos olhos da principal instituição à qual tinha total acesso, a sua família, e da própria sociedade. A oportunidade de cultivar seu próprio pedaço de terra equivale ao estímulo, à coragem e iniciativa dos bem-nascidos, em contraposição ao medo e à insegurança de uma herança familiar e social precarizada. Somente a propriedade da terra podia fazê-lo menos vulnerável as armadilhas sociais, particularmente a malandragem. Era do trabalho agrário que os homens e mulheres do Brasil oitocentista extraiam a substância para se encontrar no mundo e serem reconhecidos por seus pares como merecedores do respeito social; um orgulho parecido com aquele que sentirá o trabalhador urbano, um século mais tarde, ao conquistar o ‘sonho da casa própria’ (a casa própria que na nossa modernidade peculiar seguiu sendo apenas um sonho, ainda no terceiro milênio). Longe deste ‘sonho’, a gente trabalhadora da terra se vê ainda mais débil e desprestigiada diante da sociedade, perdendo de vez a sua honradez. A importância maior do direito civil à propriedade está em sua capacidade de colocar todos os indivíduos em pé de igualdade de oportunidades e condições na sociedade, gerando um efeito psicológico que acompanha o material. Nos moldes ideológicos da modernidade ocidental, o direito civil à propriedade cria a sensação de fazer desaparecer privilégios pré- estabelecidos, da desigualdade hierárquica, definida antes mesmo do nascimento. Sem esse direito, não houve o que apontasse para o nosso

49 trabalhador brutalizado com a possibilidade de prosperar e de ser respeitado. O poder simbólico da posse fundiária era enorme e, para além de seu valor mercantil, gigantesco seria o seu poder de transformação dos homens e mulheres daqui. Nessa simbologia, as pessoas simples da nação depositavam todas as suas esperanças de vida e de dignidade. A terra simbolizava exatamente a infra-estrutura da confiança e do devir, da ‘vergonha na cara’, como se diz popularmente.46 Para este homem ‘indigno’ de direitos civis de propriedade era somente com a posse do próprio corpo que poderia contar, agora que a escravidão ensaiava se tornar história, pois antes disso nem mesmo seu corpo lhe pertencia, se fosse um corpo negro. Livre mas brutalizado restava-lhe a alternativa de vender este corpo ao melhor preço possível. Seja como trabalhadora doméstica ou prostituta, para as mulheres, ou como trabalhador braçal para os homens, ou ainda, como delinqüência aberta para ambos, daí em diante, pouca coisa lhe importaria. Muito mais tarde, quando as condições de igualdade de oportunidades e condições da dominação não-instrumental burguesa ensaiassem figurar entre nós, aqueles indivíduos já seriam encontrados sentindo-se profundamente derrotados e com poucas chances de mudança de rumo. Estes homens e mulheres encontram em seu longo caminho de subcidadania, as mais perfeitas condições para assumir uma condição de anti- herói entre os seus. Malvisto e malquisto pelos segmentos que lhes reservaram esta condição, eles se entregam às práticas da malandragem, a alternativa que lhes é deixada, “congregando um submundo de boêmios, prostitutas, artistas, todos participantes de um processo de urbanização dinâmico e incessante, pois suas transformações parecem não ter fim”, como diz Ciscati47. A honestidade e a vida regrada parecem não valer muito à pena para essa gente.

46 ”Em 1959, aproximadamente 800 famílias resistiram às tentativas legais de retomada de posse das terras que haviam ocupado. Um dos líderes, Jofre Corrêa Netto, conhecido como o “Fidel Castro do campo no Brasil”, foi baleado durante o episódio. O evento tornou conhecida a luta no campo e se transformou num marco da luta pela terra e contra as desigualdades sociais no Brasil e que originaria O Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST). Fonte: http://www4.gvsu.edu/welchc/grasswar.htm. 04.05.2008. 47 CISCATI, Márcia Regina. Malandros da terra do trabalho: malandragem e boêmia na cidade de São Paulo (1930­1950). SP: Annablume/Fapesp. 2001. p. 41.

50 Derrotada pela modernidade periférica, é à prática da malandragem que ela vai se entregar, pois é somente esta que lhe reserva estimulantes espaços para se fazer visível e respeitada, e quem promete arrefecer o sentido simbólico e material de sua desgraça social.

A ideologia da igualdade de oportunidades e a escolarização

Outra premissa básica para o bom funcionamento e a aceitação social do sistema de dominação moderno, fundado na ideologia de igualdade de oportunidades e condições, é a escolarização. Na modernidade, ninguém, em sã consciência, imagina deixar um filho fora da escola. Entre nós, entretanto, a escolarização moderna, que praticamente inexistira para o batalhão de gente simples no período colonial, permanecerá reservada somente aos mais abastados no país livre, até a segunda metade do século XX (e somente vai ser universalizada ao final do milênio, quando o capitalismo de mercado, para garantir sua própria existência, decide democratizar, em alguma medida, o conhecimento entre nós). Somente quarenta anos depois de implantada a República, com as transformações políticas trazidas a cabo pela Revolução de 1930, através da Reforma Francisco Campos – mais de um século após a invenção do país –, e, muito mais tarde, pelo pensamento progressista e humanista de Anísio Teixeira e de Darcy Ribeiro, o (novo) governo provisório sancionará decretos organizando o ensino secundário e as universidades brasileiras, ainda inexistentes. Ainda assim, o fato somente será possibilitado porque o foco é colocado no aspecto eminentemente econômico da modernização, aquele que diz que desenvolvimento econômico resulta em riqueza generalizada, e não na construção dos seres humanos através de todos os olhos da modernidade. Trata-se da mesma modernização que não enxerga no capital humano a grandeza de uma sociedade, mas obras faraônicas que possam render dividendos de toda ordem, particularmente de ordem política – tanto mais que se vai permitir construir a cidade de Brasília, uma década mais tarde, acarretando encargos enormes ao governo e comprometendo a receita pública, sem que se tivesse tocado significativamente na questão educacional.

51 Nessa confusão histórica, mesmo na segunda fase de nossa modernização – ao contrário da modernidade de seus vizinhos Uruguai e Argentina – o País não universaliza a escolarização. Isso debilitará o homem simples trabalhador brasileiro, negando-lhe, em última instância, o aprendizado moral moderno e contribuindo para que ele rejeite as ‘regras do jogo’, implícitas na ideologia moderna. 48 “A função manifesta da educação é a transmissão cultural dos valores e normas de uma sociedade e o aprendizado dos papéis ocupacionais e profissionais. Porém, a educação apresenta também a função latente de promover e intensificar o contato social, elevando a sociabilidade e a tolerância”, diz Reinaldo Dias49, ou seja, em termos modernos, a função básica da educação é modelar os comportamentos sociais, apropriando-os a diversas situações. “A função primordial da escola pública é inventar um povo que sabe pensar, para que a qualificação da democracia possa ocorrer de baixo para cima. Por isso, é crucial alfabetizar-se na 1ª série com qualidade inequívoca, formal e política. Ler a realidade torna-se perspectiva decisiva, no sentido de, ao entendê-la formalmente com qualidade, se poder intervir nela democraticamente”, esclarece Pedro Demo50. “É possível formar o caráter de um povo e inculcar valores que podem ser assumidos pelos indivíduos como

48 Enquanto, no século dezesseis, no Brasil, uma entidade oficial lusa, a “Companhia de Jesus”, dedicava·se ao ensinamento básico dos costumes europeus e à propagação da fé religiosa – que se estenderia até as vésperas do século XVIII –, em colônias espanholas como São Domingos, México e Peru já existiam muitas universidades (nos Estados Unidos, a primeira instituição desse porte, Harvard, foi fundada em 1636). No caso brasileiro, embora a primeira Constituição brasileira fosse outorgada dezesseis anos depois da chegada da Corte Portuguesa por aqui, no artigo 179, liam­se “a instrução primária é gratuita para todos os cidadãos. Ocorre que praticamente inexistiam cidadãos no jovem país, e é nesse vácuo cultural que o país se organiza. A pouca educação permitida pela hierarquia do país não atingia o grosso da população. Somente a título de ilustração, observe­se que no , no Colégio de Artes Mecânicas, a lei mandava recusar matrículas ás crianças de cor preta e aos escravos e pretos em geral, “ainda que libertos e livres”. Outro exemplo da incompreensão da modernidade entre nós é o fato de que, depois do advento da República brasileira, quando Argentina e Uruguai ensaiavam comemorar o fim do analfabetismo em seus respectivos solos, os alunos matriculados nas escolas do país correspondiam a 12% da população em idade escolar. Fonte: CAVALCANTI, Rosa Maria N. T. Conceito de Cidadania: sua evolução na Educação Brasileira. SENAI. 1998. p. 68. 49 “O sistema educacional é um importante instrumento de socialização nas sociedades atuais. Ele serve para desenvolver a personalidade social de um povo, ao indicar os valores que devem ser assumidos como aqueles que serão aceitos pela maioria do grupo social.” DIAS, Reinaldo. Op. cit., p. 232 e 239. 50 DEMO, Pedro. Disponível e: www.revistadoprofessor.com.br 02.05.2006.

52 característicos da cultura, incorporando-os ao estereótipo que eles têm de si mesmos (...) ela serve para desenvolver a personalidade social de um povo, ao indicar os valores que devem ser assumidos como aqueles que serão aceitos pela maioria do grupo social”, completa Dias.51 Parece consensual que a universalização da escolarização moderna ajuda a criar contextos sociais, políticos e culturais onde todos os cidadãos possam se manifestar de forma livre e democrática a respeito dos mais variados assuntos. Sem a educação moderna, o conflito social fica latente e o processo de modernização da sociedade torna-se manco, pois ela é um pressuposto moderno que permite dissipar o que é estranho a modernidade. Como diz o pensador liberal Georges Burdeau, “é pela educação [escolarização], que o homem chega a conceber a harmonia final dos interesses; é por ela que ele faz calar o seu egoísmo para se entregar a um altruísmo que acaba por lhe ser muito mais proveitoso; é a educação que lhe ensina a moderar as suas exigências, a respeitar a liberdade dos outros, a orientar a concorrência no sentido da divisão do trabalho, a cultivar as virtudes do esforço; é a educação que lhe ensina a introduzir a justiça nas suas relações com os outros [...]”.52 A dominação moderna, feita sob a luz da ideologia da igualdade, somente pode ser admitida e naturalizada através do aprendizado e treinamento dos indivíduos. Nesse contexto, os indivíduos até percebem, em alguma medida, o fundo moral da hierarquia moderna que justifica essa dominação naturalizada, mas acabam por acatá-la, ‘compreendendo bem os interesses’ de cada um na sociedade – interesses que se coadunam –, dentre os quais, os seus próprios inseridos no mercado. Dessa forma, as pessoas mantidas pobres admitem a dominação de outros homens sobre si na esperança de ascender socialmente via este mercado. Parece enganoso o antigo pensamento que sustenta haver interesse de governos mal-intencionados em manter as massas ignorantes para controlá- las. Na modernidade, parece muito mais interessante a qualquer governo que estas massas tenham alguma informação, justamente como forma de controle.

51 DIAS, Reinaldo. Op. cit., p. 232, passim. 52 BURDEAU, Georges. O liberalismo. Brasília: UnB. 1991, p. 105.

53 As massas brutas ‘partem para a briga’, enquanto as lapidadas tendem a ponderar; quando muito, estas últimas vislumbram o diálogo via o Estado para se fazer ouvidas e não os próprios punhos. Nas sociedades liberais modernas, a escolarização ensina a todos que os mais ricos tecnicamente pagam mais impostos, o que lhes dá o direito de ter mais conforto (o que somente confirma estarem as sociedades modernas divididas hierarquicamente entre os úteis e os pouco úteis, os dominadores e os dominados). As sociedades periféricas, que desconsideraram por longo período os imperativos modernos, tal qual a ideologia da igualdade de oportunidades que permite universalizar a escolaridade, têm mais dificuldade de naturalizar a dominação em função disso.53 De acordo com Chauí,

se educação é direito, é preciso tomá-la no sentido profundo da sua origem, como formação para a cidadania e da cidadania, como o direito de todos de terem não só acesso ao conhecimento mas também à criação do conhecimento. Isso é decisivo para que outros direitos sejam criados e para que a sociedade se torne democrática. A educação formadora se realiza como trabalho do pensamento, para pensar e dizer o que ainda não foi pensado nem dito. Essa formação é civilizatória contra a violência social, econômica, política e cultural, porque age como criadora de novos direitos quando compreende que o pensamento é um trabalho e que o trabalho é a negação da realidade dada.54

É no espaço da escola moderna que se podem adquirir algum capital cultural que prepare o indivíduo para as formas de sociabilidade modernas; que o capacite a formar um habitus ‘mais elevado’. Aquele é o espaço ressocializador, no qual o indivíduo passa a ser um ser humano pensante, deixando de ser apenas mais um número ou valer apenas um ‘corpo’. É, pois, ali que ele se difere de um animal em ‘estágio inferior’, uma vaca, uma galinha ou um cachorro. Entre nós, se criou uma escola branca, cristã, elitista, excludente, seletiva e conformada, fora das exigências do mercado competitivo moderno Portanto, sem que o universo de homens simples daqui fosse ‘devidamente’

53 Dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revelavam, em 2008, que os mais ricos gastavam com impostos 22,7% do que ganhavam. Enquanto os mais pobres pagavam 32,8%. Disponível em: www.ipea.gov.br, o que mostra que a nossa modernidade ainda não se completou e chama a atenção para a incongruência do sistema de dominação entre nós. 54 CHAUÍ, Marilena. Congresso Interamericano de Educação em Direitos Humanos, em Brasília, 2006.

54 escolarizado. Daí que somente poucos dos indivíduos que não puderam contar com o senso moral construído na instrução, na referência e nos valores familiares, seriam de fato modernos.55 Muito mais tarde, às vésperas do terceiro milênio, quando a modernidade tupiniquim for revista, aqueles homens brutalizados já chegarão às salas de aulas completamente derrotados, sem os estímulos recebidos em ‘ambiente familiar enquadrado’ e sem escolarização. Daí que continuarão tendo dificuldades de absorver o aprendizado moral moderno e, portanto, de competir num mercado cada vez mais exigente. Seu insucesso já estará definido previamente, bem antes da escola. Chauí ensina ainda que

[...] o senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, culpa, vergonha, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo), e a decisões que conduzem a ações para nós e para os outros. (...) Além disso, os sentimentos e as ações morais são aqueles que dependem somente de nós, que nascem de nossa capacidade de avaliar e decidir por nós mesmos e não levados por outros ou obrigados por eles.56

A malandragem parece ter influenciado de fora para dentro às suas decisões, escapando, de acordo com o raciocínio de Chauí, das capacidades morais destes indivíduos, até porque não as tinham. Uma vez debilitadas, estas pessoas não veriam sentido em adquiri-las posteriormente, se bastando em reproduzir as precondições culturais nas quais estiveram inseridos centenariamente. A não-universalização dos pressupostos modernos entre nós não colocava o País em sintonia com a essência da modernidade e não o faria durante muito tempo.

55 Dados do MEC indicam que, embora declinante, a proporção de analfabetos na população adulta brasileira foi sempre muito alta. Os censos realizados em 1872 e 1890 não trazem cálculos sobre o percentual de analfabetos sobre a população adulta, mas apenas sobre o total populacional. Os números são entristecedores: 84,2% de analfabetos, em 1872, e 85,2, em 1890. A partir de 1900, os censos passaram a calcular o percentual de adultos analfabetos. Na primeira metade do século 20, mais da metade dos adultos brasileiros não sabia ler ou escrever, situação que variaria muito lentamente a partir de então: 65% (1900), 65%(1920), 60%(1930), 56%(1940). É somente a partir da década de 1950 que o contingente de indivíduos sem a menor instrução formal passa a ser inferior a 50% da população adulta: 48% (1950), 39%(1960), 33%(1970), 26%(1980), 20%(1991) e 13%(2000). Disponível em: www.mec.gov.br . 23.02.2007. 56 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. SP: Meca. 2005. p. 137.

55 Capítulo 2: A gramática da malandragem

O que é um povo senão aquilo que as elites querem que ele seja! Manolo Florentino, historiado brasileiro (2006) A história das nações avançadas européias ensina que somente uma sociedade civil organizada e instrumentalizada é capaz de usar as instituições como ferramenta efetiva de ação política em seu favor. Somente ela é capaz de reverter a lógica moderna, tornando-se ela própria a protagonista da história. A perspectiva marshallina é muito clara neste sentido, pois mostra que através da organização social e das instituições a sociedade civil consegue fazer com que suas reivindicações transformem-se em direitos e, à medida que aquela se fortalece ao ponto de tornar-se exigente de novos direitos, estes podem se transformar em cidadania. A dinâmica marshallina, que equaciona sistematicamente o conceito de cidadania por meio da noção de direitos, sugere, em contrapartida, que quanto mais distante dada sociedade se mantiver das coisas da democracia, da noção moderna de igualdade entre os homens, menor serão as suas possibilidades de desenvolvimento sadio dos direitos de cidadania de seu povo. A experiência brasileira ilustra bem essa dinâmica no que concerne ao segundo ponto marshallino, à sua negação, daí a importância de se estudar a malandragem nestes termos, enquanto um elemento impeditivo do avanço da cidadania. O País, desde que nasce, tem sido o retrato de uma história de instituições e sociedade civil frágeis, cuja existência manter-se-á distante das premissas republicanas que justificariam a sua edificação entre nós. Sem direitos plenos modernos até vésperas do terceiro milênio, a sociedade civil acabaria por retardar a sua organização, comprometendo a dialética do avanço e da extensão de sua própria cidadania.

56 O malandro e o homem precarizado

A experiência tem mostrado que o fortalecimento das instituições democráticas permite uma prática endógena da própria democracia, que nasce da exigência de direitos por parte da sociedade civil, capaz de lapidá-la, como num processo de osmose.57 A radicalização desse processo entre nós, ou em qualquer sociedade de modernização periférica, poderia ter evitado que se produzisse tanto o homem precarizado quanto o malandro e todos os seus pressupostos. T. A. Marshall mostra em seu estudo já clássico, que os ingleses introduziram primeiramente os direitos civis, no século XVIII e, somente um século mais tarde – após exercício à exaustão desses direitos, de sua prática endógena e de muita luta política –, os direitos políticos e, finalmente, os direitos sociais no século XX.58 Na classificação estabelecida por Marshall são distinguidos três tipos de direitos de cidadania: os direitos civis, que se desenvolveram a partir do século XVIII, são aqueles que garantem aos indivíduos livres as liberdades de locomoção, de opinião e organização. Os direitos políticos se estabeleceram somente entre os séculos XIX e XX, e são aqueles relativos a participação dos indivíduos no exercício do poder político, como o direito de voto e de ser eleito. Os direitos sociais, estabelecidos no século XX, referem-se a garantia dos indivíduos de gozarem de certo padrão mínimo de vida, de segurança e bem- estar econômico. Estes, contudo, tiveram de esperar quase cem anos até que tomassem um formato definitivo. Na esquematização rígida marshallina, a introdução de um direito estaria atrelada ao exercício pleno de outro, ou seja, o exercício dos direitos civis fez com os ingleses (bem como outros povos europeus ocidentais, em maior ou

57 “A democracia [para os liberais] é o regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais, o que redundaria na tentativa de conter os conflitos sociais. [...] só a democracia permite aos indivíduos a afirmação de suas virtudes, sem medo. [...] Ela é a forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir­se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição? Ou seja, a oposição significa que o conflito se resolve sem modificação da estrutura da sociedade, mas uma contradição só se resolve com a mudança estrutural da sociedade.” CHAUÍ, Marilena. Disponível em: http://codigo13.blogspot.com/2006/09/em­palestra­marilena­chau­defende­veia.html. Acesso em 29.10.2006. 58 MARSHALL, T. A. Cidadania, Classe Social e Status. RJ: Zahar. 1969, passim.

57 menor escala) reivindicassem direitos políticos e, daí, sociais. De qualquer forma, o que nos interessa por enquanto é verificar que, no exemplo do historiador inglês, a cidadania somente pôde avançar saudavelmente porque levada a cabo pela pressão da sociedade civil organizada – menos fecunda na periferia da modernidade – que aceitou as regras do ‘jogo da dominação moderna’, mas não de forma passiva. Marilena Chauí esclarece que a marca da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal a democracia social, “encontra-se no fato de que somente as classes populares e os excluídos concebem a exigência de reivindicar direitos e criar novos direitos. Isso significa, portanto, que a cidadania se constitui pela e na criação de espaços sociais de lutas ( os movimento sociais, os movimentos populares, os movimentos sindicais) e pela instituição de formas políticas de expressão permanente ( partidos políticos, Estado de Direito, políticas econômicas e sociais) que criem, reconheçam e garantam direitos” 59. Essa dialética sugere que os direitos que compõem a cidadania se fizeram possíveis pela presença de relações mais ou menos democráticas entre os indivíduos e as instituições, mas, por trás da visibilidade dessas relações, está o reconhecimento social que receberam os trabalhadores ingleses, moralmente enquadrados. Estes trabalhadores já dominavam os códigos lingüísticos e aritméticos desde o século XIX, situação proporcionada pelas escolas dominicais que lhes ensinaram a ler e escrever para que lessem a bíblia. Através dessa educação, tiveram acesso ao conteúdo de jornais, revistas, panfletos cartistas, etc, e viram possibilitadas a expansão de sua cidadania. Ali parece ter havido uma efetiva homogeneização da economia emocional que caracteriza o indivíduo no capitalismo, como diz Souza, e que se trata de um “processo coletivo de aprendizado cultural e político”60, ou seja, por força da sociedade civil, que se auto-garantiu direitos civis, políticos e sociais, se permitiu dividir entre os membros da sociedade um habitus primário que desautorizava a prerrogativa do privilégio como ‘ponto de partida’. Todos partiam, senão de pontos de partida comuns, ao menos muito próximos,

59 CHAUÍ, Marilena. Disponível: http://www.somosmercosur.org/?q=es/node/89. Acesso em 20.06.2007. 60 SOUZA, Jessé. Op. cit., p. 34.

58 impedindo que alguns indivíduos se fizessem infinitamente ‘mais iguais que outros’. Se estiver correta a dialética marshallina, não é de admirar que o brasileiro tenha carecido dos direitos de cidadania por tanto tempo. Por aqui, somente se criaram um (pseudo) cidadão, com a introdução dos direitos sociais pela experiência trabalhista surgida pelos idos dos anos de 1930, mas que negou a ele as instituições democráticas que lhe permitissem suportar essa cidadania. Ser cidadão, ensina Jaime Pinsky,

é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei; é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranqüila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais. [...] No sentido moderno, cidadania é um conceito derivado da Revolução Francesa (1789) para designar o conjunto de membros da sociedade que têm direitos e decidem o destino do Estado. Na clássica visão de Hannah Arendt, cidadania é, numa palavra, o direito a se terem direitos”. 61

A relação entre democracia e cidadania parece intrínseca, uma não pode prescindir da outra, e aqui a ideologia da igualdade de oportunidades parece ser de vital importância mais uma vez. Nas palavras de Chauí:

Na medida em que aqueles que são de fato excluídos de direitos são considerados universalmente como portadores de direitos, temos que observar que cada direito afirmado abre um campo de luta para a firmação e conquista de novos direitos, seja como complemento, como efeito ou como recurso de legitimação. Uma declaração de direitos civis abre campo para conquista de direitos sociais e, como conseqüência, a luta por uma igualdade efetiva. Assim, a luta pela distribuição de renda pode chegar à luta contra a propriedade dos meios de produção. De tal modo que se possa ver em operação a contradição da afirmação de alguns direitos, que isso possa quebrar o freio imposto ao exercício dos direitos declarados.62

61 PINSKY, Jaime. História da cidadania. SP. Editora Contexto. 2003. p. 23”. ”A idéia moderna de um Estado Democrático tem suas raízes no século XVIII, implicando a afirmação de certos valores fundamentais da pessoa humana, bem como a exigência de organização e funcionamento do Estado tendo em vista a proteção daqueles valores. A fixação desse ponto de partida é um dado de fundamental importância, pois as grandes transformações do Estado e os grandes debates sobre ele, nos dois últimos séculos, têm sido determinados pela crença naqueles postulados, podendo­se concluir que os sistemas políticos do século XIX e da primeira metade do século XX não foram mais do que tentativas de realizar as aspirações do século XVIII”. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. Saraiva. 2006. p. 145. 62 CHAUÍ, Marilena. Op. cit., 2006.

59 Mais importante do que haver no País um atropelo do processo seqüencial – e um tanto fatalista – descrito por Marshall, o avanço dos direitos de cidadania ficou efetivamente comprometido ao se negar aos indivíduos a prática endógena do exercício democrático – e nunca é exagerado lembrar que o Brasil teve menos que vinte anos de experiência relativamente democrática desde que se tornou uma nação independente até 1985. Esta negação democrática parece se justificar pelo julgamento moral pré-reflexivo daqueles que detinham o poder político e econômico de que estes indivíduos não eram ‘dignos’ de portar a cidadania moderna. Daí porque as instituições não funcionariam para estes indivíduos por durante tanto tempo, senão para colocá-los em seu ‘devido lugar’. As sociedades modernas são dinâmicas e carecem de instituições para se movimentar e o Brasil não é exceção à regra. É exatamente o vazio deixado pelas instituições modernas, que se negaram a existir para o homem simples trabalhador brasileiro por mais de um século – e que, por isso mesmo, o impedirá de se organizar e de assumir o protagonismo na luta por seus direitos – que vão permitir a sua precarização, fazendo com que ele, em alguma medida, também encontre na instituição da malandragem um caminho por onde rumar.63 A malandragem representa um descompasso para o alcance da cidadania, na medida em que o malandro dá de ombros para as instituições, mas delas procura se apropriar para extrair vantagens personalizadas. Dessa relação se retiram qualquer coisa menos direitos de cidadania, pois estes dependem daquelas instituições para se fazer presentes. Numa dialética perversa, a malandragem acaba se reproduzindo à medida que dela se distanciam tais direitos e a própria democracia.

63 Historicamente se fez muitas referências à malandragem em vários estudos que convergiam em encontrar as suas raízes no passado português do brasileiro, particularmente ao seu mais conhecido aspecto que é o chamado “jeitinho brasileiro”,. A expressão e suas implicações estão presentes em Guerreiro Ramos, Administração e estratégia de desenvolvimento (1966); Roberto Campos, A técnica do riso (ensaio). 1966; Oliveira Torres, Interpretação da realidade brasileira (1973). Keith Rosen, O jeito: Brazil´s institutional bypass of the formal legal system and its development implications (1971); Clóvis de Abreu, O jeitinho brasileiro como um recurso de poder (1982). Apud BARBOSA, Lívia. Op. cit., p. 46.

60 No caso estudado por Marshall, a sociedade civil não parece ter encontrado a malandragem como alternativa de sociabilidade; ela não precisou descer ao plano pessoal para fundamentar as suas reivindicações, podendo contar tão somente com a via institucional para tal. Viu-se então, ‘obrigada’ a se organizar para se fazer ouvida e forçar a extensão dos direitos que assegurava para si. Se, para seu infortúnio, tivesse podido contar com a intermediação da malandragem, dificilmente teria atingido tal nível de maturidade democrática, pois esta última, por sua própria natureza, não traz o sentido do bem coletivo em seu bojo. É bem provável que se tivesse seguido os nossos passos, teria deixado em negativo os seus direitos de cidadania, gerando, como nós, o seu próprio homem precarizado, e, até mesmo, o seu próprio malandro.

Quem é o malandro?

O malandro, conforme já se fez referência aqui, é aquele indivíduo que, ainda que isso não se revele em sua consciência, se recusa a aceitar como legítimos os imperativos modernos, a menos que deles possa extrair vantagens pessoais; ele pode ser o mandão ou o mandado, o dominador ou a massa brutalizada. Num primeiro momento, ele não se insere na moral classificatória moderna. O homem precarizado, por sua vez, é o indivíduo que, aceitando estes imperativos, não consegue ‘subir na vida’ e, em alguma medida, toma para si os instrumentos da malandragem; ele não se origina de uma classe social específica, mas pode vir a se transformar na escória social, numa ‘ralé estrutural’ – um primo próximo do lumpenproletariat europeu –, caso a modernidade não se apresente com uma feição mais humanizada, como foi o nosso caso. Ele se insere na moral classificatória moderna do princípio ao fim, embora nem sempre logre por ela ser admitido. Nesse sentido, a modernidade brasileira não produzirá aquilo que Jessé Souza chama de uma “ralé estrutural”64, pelo menos até o segundo quarto do século XX, quando grande parte da sociedade passa a acreditar que nessa ideologia assentam as bases para se melhorar de vida em todos os aspectos. Até ali, ela não traz em seu bojo o sistema classificatório moderno, o mesmo

64 SOUZA, Jessé. Op. cit., p. 37, passim.

61 sistema que diz quanto vale cada indivíduo por seu mérito e competência, e as normas sociais ainda não são definidas em referência à utilidade social, “pela funcionalidade de instituições e de comportamentos”, no dizer de Alain Touraine65. Até o momento de modernização econômica de nossa modernidade, que se dá a partir dos anos de 1930, esta doutrina não seguia lastreada nem mesmo relativamente pela ideologia da igualdade de oportunidades por aqui. Ela, ao contrário, negava efusivamente essa classificação. Dessa forma, ela não poderia ter produzido o homem precarizado nesses termos, mas uma massa brutalizada que levava a vida como se a modernidade não tivesse por aqui passado. Essa distinção é necessária para que se compreenda o processo de gestação e crescimento do malandro entre nós e para que não se fique com a impressão errônea de que o malandro é fruto exclusivo das classes baixas. Os sinais invisíveis que permeiam as relações das classes baixas com os mandões parecem querer indicar que a malandragem nasce também como subproduto destas relações, das ações materiais ou simbólicas que as próprias classes abastadas exerceram sobre esses segmentos. Foram estas classes detentoras do poder político e econômico que se ocuparam profundamente da história fazendo-a mais sua do que dos outros, fazendo as intervenções políticas que julgaram necessárias para negar os direitos de cidadania aos homens simples da nação, os quais, porque ágrafos, não puderam registrar a sua história, concebendo como verdadeira a história daqueles que os oprimiam. A organização e o desenvolvimento do Estado brasileiro não se fundamentam na construção de fato de uma nova sociedade e, portanto, não permitirá que nenhum segmento novo ascenda política, social, econômica ou culturalmente, eximindo-se de repensar as relações dos homens e mulheres sem posses com o poder. Como se vê, “também a elite, exercia uma espécie de malandragem para garantir seus interesses, no mesmo passo em que mantinha os pobres fora do circuito dos benefícios do progresso”, como diz Edu

65 TOURAINE, Alain. Uma visão crítica da modernidade. In: SOARES, Maria Susana Arrosa (Org.). A Modernidade. Cadernos de Sociologia. V. 5. nº5. p. 32­41. UFRGS. 1993.

62 Teruki 66. Daí a fraqueza do argumento presente em análises diversas, assentadas em argumentos culturalistas, de que a associação da malandragem representaria per se o “poder dos fracos” que, ante o mundo, “se vira como pode”. Neste sentido, este autor sustenta ainda que,

no enfrentamento do malandro com o poderoso o favor não é entendido como dádiva, e a divergência de interesses é ressaltada. O surpreendente é que, mesmo assim, reforçam-se os laços de dependência (e a lógica do sistema no conjunto), pois o benefício concedido pelo poderoso aparece como ganho conquistado pelo malandro. Para o malandro, a vantagem consiste em tirar proveito da relação com um proprietário ou outra instância de poder sem sentir-se obrigado à contraprestação (como na relação de favor propriamente dita). Na imaginação do malandro, a submissão ao poder passa a ser o próprio êxito (imaginário) e funciona como motivo de satisfação. Desse modo, a dependência e a cooptação são experimentados como o próprio triunfo do malandro: a sua posição subalterna se inverte e transforma-se em superioridade presumida”. Nesse cenário, o homem livre, nem senhor nem escravo, o agregado, que vive de supostos favores dos mandões – e, em alguma medida, também os escravos colocados em liberdade – é enxergado não mais como ‘otário’, mas como portador de privilégios. Por isso mesmo consegue uma relativa ascensão social e sua condição passa a ser ambicionada.67

A história tem mostrado que a esperteza e a dissimulação, capazes de transformar desvantagens em vantagens, não é exclusividade do homem sem posses, mas, desde muito cedo, dos homens e mulheres daqui de um modo geral, independentemente da classe social em que estivessem inseridos, ou mandões ou mandados. Daí que, rompendo com a norma antes em proveito próprio, e somente posteriormente de classe, propriamente, o malandro não represente sérios riscos para nenhum sistema de dominação. A malandragem, na perspectiva desse trabalho, não é outra coisa que um fenômeno que se nega a reconhecer na totalidade dos imperativos modernos o mote de conduta de vida dos indivíduos. Para se valer, o malandro admite e usa de todos os artifícios possíveis e imaginários, preferencialmente ao largo das instituições modernas; se a modernidade exige racionalidade e retidão, o malandro, em oposição, ginga, falcatrua, faz piada de seus imperativos. O fato é que a racionalidade, desprovida de valores mais profundos, passíveis de serem encontrados na ideologia da igualdade de

66TERUKI, Edu Otsuka. Era no tempo do rei: a dimensão sombria da malandragem e a atualidade das “Memórias de um sargento de milícias”. Tese de doutorado em Letras. USP/FFLCH, 2005. p. 16. 67 TERUKI, Edu Otsuka. Op. cit., p. 16.

63 oportunidade e condições, tende a se tornar estéril, como pensara Weber (Robert Skidelsky, 2003) 68 e o malandro faz da premissa weberiana um fato. O fenômeno da malandragem aparece ilusoriamente como próprio das classes baixas em função de seu expressivo número, mas data do momento e da forma como a modernidade é introduzida entre nós, como modelo regente da sociedade brasileira. E essa comprovação em pouco se aproxima do conceito do “bom selvagem”, de Jean-Jacques Rousseau, onde o homem é visto como essencialmente bom, bastando a existência da sociedade para corrompê-lo. Parece mais realista considerá-la em termos gramscianos, que permite dizer que ocorre aqui uma liderança cultural-ideológica dos segmentos dominantes sobre os demais, que age sobre o imaginário destes e orienta seus passos. O conceito gramsciano de hegemonia somente não se completaria aqui porque não é somente através de sua capacidade de subordinar intelectualmente a massa brutalizada, através da persuasão e da educação, que este segmento se fará mais forte, mas também pelo aliciamento que lhe é próprio, ou do “porrete” propriamente dito 69, sempre que necessário (Carvalho, 1988). Além disso, seria inconcebível pensar que na sociedade não se formam consensos inarticulados que interferem na política e na vida das pessoas de um modo geral. De qualquer forma, para conquistar a hegemonia este segmento se apresenta aos demais como aquele que representa e atende aos interesses e valores de toda sociedade, obtendo algum consentimento voluntário e a anuência relativamente espontânea do segmento dominado. Neste sentido, urge precisamente das classes abastadas o sentimento malandro, próprio daquele indivíduo que se utiliza da modernidade e a modela para atender aos seus próprios anseios, mas que não a reconhece em todos os seus imperativos e, para tal se nega terminantemente a admitir o embrionamento de relações democráticas no País através da ideologia da igualdade de oportunidades. Se estiver correto Gramsci, os próprios segmentos brutalizados tenderão a tomar como seus esses preceitos, vista seu imaginário ter sido formatado para tal.

68 SKIDELSKY, Robert. The mistery of growth. Disponível em: www.nybooks.com/articles/article­preview_id=16122. Acesso em 26.08.2006. 69 CARVALHO, José Murilo de. A cidadania a porrete. RJ: Mimeo. 1988.

64 O que se reproduzirá por longa data será uma massa de gente que parece querer fugir à racionalidade moderna, ‘alegre (por natureza?)’, simpática ao ‘jeitinho’, em busca de ‘vantagens pessoais’ – e que age assim justa e inconscientemente por tentar fugir aos imperativos dessa ideologia –, mas que é brutalizada, e que será mantida nessa condição por gerações a fio. A diferença é que na nossa modernidade, de dominação escancarada, onde não vige a ideologia da igualdade de oportunidades, essa massa não terá quaisquer chances de subir os degraus para a cidadania, por que estas chances não existem. Na nossa modernidade ambígua, essa massa ‘não vale nada’, desde o berço, e sua cidadania será conservada no favor e suas reivindicações tratadas ‘a porrete’. Se houvesse um sistema classificatório, de dominação camuflada, estas chances, na pior das hipóteses, teriam alguma possibilidade de existir, transformando-se as pessoas, em cidadãs, por seus próprios méritos. O que se deve ter em mente é que, até aqui, a ‘ralé estrutural’ não existe, mas, em breve existirá, e se formará justamente pela presença renitente dessa massa brutalizada de homens livres sem posses – caipiras, tabarés e tabaroas, mazombos, cativos alforriados e de tantos outros que passavam a compartilhar o mesmo “habitus precário” (Souza, 2006)70 e que não foi e não será ‘devidamente domesticada’ pelos imperativos da modernidade. Trata-se de uma multidão de indivíduos que se tornará citadina, mas com poucas chances de se tornar minimamente cidadã, de fato, e, muitas vezes, de direito.

Um habitus malandro À medida que a sociedade avança nos moldes da organização moderna, mais homens precarizados ela cria, particularmente após o 1888. O paradoxo se escancara no momento em que o quadro de “gente que pouco ou nada vale” é aumentado em quase um terço de pessoas, naquele que foi último país do mundo a abolir a escravidão. Embora a experiência imperial brasileira, sustentada no modo de produção escravocrata, tivesse criado as mais perfeitas condições para o embrionamento do malandro, é a nossa experiência republicana, com seu modo de produção fundado no mercado competitivo, que

70 Cf. SOUZA, Jessé. Op. cit.

65 dará a este indivíduo robustez e prestígio. Trata-se agora de uma enorme massa de gente feita juridicamente livre e igual, mas, paradoxalmente, “mais malandra”, na feliz expressão de Kenneth Maxwell71, que continuava apresentando ‘resíduos’ de primitividade, revelados nos ‘defeitos de cor da pele’, e nos ‘modos’, o que não é fator determinante na hierarquia competitiva – mas é o que vai levar o pensamento conservador da modernidade cabocla à época a atrelar a malandragem à negritude e coisas do gênero, e nos fazer acreditar nisso –, mas, aqui sim, na falta de escolarização, segundo os moldes de classificação modernos. Estes eram indivíduos que “saiam da escravidão física para adentrar a ‘escravidão moral’, buscando no ócio dissimulado e na vadiagem sistêmica uma forma desesperada e não consciente de protesto, que acabou, por fim, conduzindo-os à miséria e ao desalento coletivo”72. Tratava-se de mais indivíduos sem instrução nem disciplina e cujo trabalho requeria pouco uso da inteligência; trabalhos corporais, reservados aos demais animais, e, portanto, não exatamente próprios para o mercado competitivo na sua complexidade. Segundo Mattos,

no coração da modernidade ocidental existe uma hierarquia valorativa entre corpo e alma construída a partir da idéia de que se formos guiados pelas pulsões e desejos do corpo, não há nenhuma distinção entre nós e os demais animais. O que nos distingue é a nossa capacidade de dominar, em outras palavras, de nos voltarmos para nossa alma ou nosso espírito, fonte de racionalidade, expressividade, enfim, de virtudes tidas como centros do bem viver, de uma noção de boa vida. [...] A idéia guia é de que todos os atributos ligados à sexualidade, à emocionalidade, à virilidade, à espontaneidade devem ser dominados e passam a servir de critério classificador das pessoas no mundo moderno.73

A contribuição dos indivíduos com sinais de primitividade para o desenvolvimento do mercado competitivo – e nada há de paradoxal nisso –, implica na diminuição de suas próprias chances de merecer o respeito social. Daí porque, sem a incorporação de conhecimento útil, a importância de sua função social seria relativizada, não sendo reconhecida em sua plenitude, e por

71 MAXWELL, Kenneth. Mais Malandros. SP. Edusp. 2002. p. 36. 72 SOUZA, Jessé. Op. cit., p. 136. 73 MATTOS, Patrícia. Op. cit., p. 167.

66 meio do que se justificaria a sua exploração incondicional, ‘naturalizando-se’ a reprodução de sua desigualdade e subcidadania. De acordo com Souza,

será a noção de disciplina e de controle do corpo que permite a incorporação de conhecimento útil, [...] exemplarmente perceptíveis na oposição entre o trabalho intelectual e manual – que num país como Brasil legitima que se ganhe até 50 vezes mais como todos sabemos (sem que nunca sequer nos perguntemos o porquê, o que comprova seu caráter naturalizado, mas também todas as outras hierarquias que pressupõem superioridade e inferioridade ou a noção de melhor ou pior como a oposição homem/mulher e branco/negro, na medida em que tanto a mulher como o negro são percebidos como repositórios das virtudes ambíguas corporalidade, da afetividade e da sensualidade por oposição às virtudes não ambíguas do intelecto calculador e da moralidade do autocontrole.74

Depois de apreendido o código valorativo moderno, e estando devidamente enquadrado por ele, estes sinais de primitividade da mulher, do negro, bem como de outras jaezes de importância análoga, tendem a diluir-se ‘naturalmente’. Se tiver razão Souza, não é de admirar, então, que a modernidade brasileira, particularmente em sua fase inicial, tenha produzido tanta gente precarizada. Os setenta anos de vigência do modelo imperial não criaram as mínimas condições para que os “nacionais desclassificados” fossem aceitos no modelo hierárquico moderno. A libertação dos cativos somente fará multiplicar esse contingente de ‘imprestáveis’. É essa variável moderna, a classificação dos indivíduos, que sanciona a condição de “indigno” de cidadania do homem precarizado, justificando a perpetuação de sua miséria econômica, emocional, existencial e política, aprofundando a sua precarização e levando-o ao ‘fundo do poço’ do desrespeito. Esse indivíduo não vai fazer avançar seus direitos modernos de cidadania por faltar-lhe os ‘pré-requisitos’ para tal, os instrumentos que o prepare para que respeite e se faça respeitar, numa palavra, que saiba ler, fazer contas, refletir e reproduzir valores tanto pré- reflexiva quanto historicamente construídos. A modernidade brasileira não compreendeu esse aspecto, sedimentando a cultura da liberdade e da igualdade apenas no edifício institucional. Enquanto pôde, fez com que estes elementos, adquiridos via a instrução familiar e/ou escolar, não chegassem aos homens e mulheres simples trabalhadores da

74 SOUZA, Jessé. Op. cit., p. 135.

67 sociedade, precarizando suas condições de vida e impedindo que se criassem e se multiplicassem grupos de reflexão, independentes e influentes, saídos da sociedade civil; grupos que, tornando-se agentes ativos de mudança, pudessem tomar lugar na centralidade política e promover a construção sólida e vigorosa da criação do ‘homem novo’, moderno, entre nós.

***** Com a modernização de nossa modernidade, a classificação já não se dará pela dominação escancarada, fundada nas antigas formas pré-modernas de categorização. Ainda assim, ela será permissiva e não conseguirá evitar que muita gente seja colocada às margens sociais. A modernização que se segue, embora acelere a produção de coisas e transforme radicalmente a economia, é conservadora do ponto de vista social e político e não altera significativamente o quadro de insuficiência de igualdade de oportunidades e condições entre nós. O resultado é que, em que pese a geração de riquezas e a crença generalizada de que tal procedimento nos levaria a uma sociedade mais perfeita e socialmente equilibrada, aquela massa gigantesca de indivíduos brutalizados que não se identificara com a doutrina moderna, não muda, de fato, a sua percepção sobre ela. Quanto aos demais segmentos, que inclui agora uma classe média que se formava entre nós e que contava já com escolaridade e treinamento modernos75, reconhecerão nela os instrumentos de

75 Nas décadas de 1960 e 1970, período do chamado “milagre brasileiro”, enquanto a desigualdade entre ricos e pobres se avolumava, a classe média nacional viverá relativa expansão, mas cairá em desgraça nas décadas subseqüentes. Ela somente ganhará força novamente ao final do milênio, quando o argumento das autoridades do período anterior de que era “preciso antes fazer crescer o bolo, para somente então dividi­lo”, se viu enfraquecido e deslegitimado. Em 2008, essa classe, em função de uma junção de políticas de transferência de renda, de correção do salário mínimo, de benefícios previdenciários e da recuperação do mercado formal do trabalho, já respondia por 51,89% da população do País, comparando­se, enquanto parcela da população total, à fatia média norte­americana, embora não o seja em termos de renda. Isso serve como prova empírica de que a sociedade brasileira, de forma alguma, está polarizada entre pobres e ricos, e nos auxilia na ousada tarefa de realizar uma análise do fenômeno da malandragem extrapolando as possibilidades maniqueístas de investigação. A classe média em expansão sofrerá um encolhimento no pós­milagre econômico brasileiro, ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970, voltando a ganhar vigor novamente a partir do início da década de 2000. Nesse período, houve uma intensa concentração do capital econômico (e cultural) no País.

68 dominação necessários para a reprodução de seu poder e influência. Segundo Soares,

se quisermos [de fato] ser modernos, é necessário ampliar a capacidade de pensar do povo, sua racionalidade, o espírito crítico através da democratização e da generalização das oportunidades de educação; aumentar significativamente os investimentos em pesquisa e desenvolvimento e estabelecer uma política coerente, em larga escala e de longo prazo, de formação de recursos humanos qualificados, crucial para sairmos da menoridade e construirmos, sobre bases sólidas, nosso próprio projeto de modernidade. Apenas parte da recomendação de Soares seria, a partir dali, levada em consideração.76

A vida deste contingente social será tão ou mais precarizada não mais pelos mandões de outrora, que delineiam a modernidade para atender às suas próprias demandas, mas pelo fato de essa massa brutalizada já adentrar fragilizada na fase de modernização de nossa modernidade. Agora, os valores modernos aprendidos no seio familiar e nos bancos escolares já chegarão deficientes para eles e seus padrões de comportamento sociais parecerão tanto mais ‘inapropriados’, encontrando vez ou outra nas coisas da malandragem as condições ótimas para continuar a desprezar a vida institucionalmente ordenada. Na ausência de instituições modernas que lhe apontassem com real possibilidade de vida melhor em todos os aspectos, o que permanece vigente é o sentimento de que vale mais a pena tratar com outras instituições para se fazer valer, já não mais com o mandão, pré-moderno e démodé, mas com a moderníssima malandragem periférica.

A natureza institucional da malandragem Até o momento de modernização da modernidade brasileira, que vai viger a partir da década de 1930 até os dias atuais, nosso sistema de dominação moderno tinha sido ineficaz em sua tarefa de ‘enquadrar a sociedade’, posto que nenhuma instituição política moderna (tribunais, agências governamentais, partidos políticos; o Estado e sua máquina animada

76 SOARES, Maria Susana Arrosa. (Re)Pensando a modernidade latino­americana. In: SOARES, Maria Susana Arrosa (Org.). Op. cit. p. 32­41.

69 (a organização burocrática, como diria Weber) funcionara bem para a massa de homens e mulheres brutalizados daqui e para quem o Direito só chegava em forma de dever. A modernidade cabocla deixara órfãos esses indivíduos, tornando complexas as suas vidas, posto que tirava o caráter secular do Estado e desagregava as estruturas tradicionais e personalistas que se completavam no núcleo familístico, mas não os fez iguais, não lhes apresentou um suporte no qual pudessem se apoiar. Estes homens e mulheres não aprenderão a ver nestas instituições um efetivo instrumento de ação política, das garantias das condições materiais de vida, de mobilidade social e de aquisição de respeito. Estas pessoas não somente não se reconhecerão na ordem moderna como procurarão subverter suas bases, ao largo das instituições, fazendo com que esta ordem paralela e apolítica trabalhasse em seu favor. É nesta forma perversa de subcidadania e marginalização que eles se reconhecerão e por meio da qual delinearão suas vidas, ignorando o fato de que, com isso, estarão se distanciando do caminho clássico para a construção da cidadania, fazendo perpetuar infindamente a sua condição de massa brutalizada. É nesse sentido, do não-reconhecimento da dominação moderna como legítima, que estes indivíduos se identificarão com o seu opressor. É também no sentido do desencontro entre si e as instituições do Estado para fazer harmonizar seus interesses que ambos poderão ser classificados como malandros; o País nasce e cresce, mas a construção do ‘homem institucional’ não se faz sentir na prática, é impalpável. Estas instituições eram por demais abstratas e pareciam existir somente para confortar os interesses do segmentos que já detinham o poder desde muito antes da introdução da modernidade. Como mostraram Cardoso e Faletto (1969)77, entre nós, não será a sociedade civil que criará o Estado, mas o contrário, invertendo o modelo clássico que, na representação marshallina, desembocaria nos direitos de cidadania.

77 CARDOSO, Fernando Henrique, FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. RJ: Zahar. 1969.

70 Não é que se queira concordar com as teses patrimonialistas de que o Brasil herda de Portugal um “capitalismo de Estado” (Faoro, 1984)78, que determina seu modo de vida. Ocorre que a compreensão das origens e desenvolvimento do fenômeno da malandragem requer considerar que o fato de nossa Independência não ter sido produto de uma revolução social e política, nem o Estado brasileiro ter nascido independente do Estado metropolitano, pode ter levado a sociedade dos homens simples a se ver anulada de antemão, e clandestinizados se sentirem os indivíduos, percebendo-se estrangeiros e abandonados, não-integrados em seu próprio território.79 É possível que o mau funcionamento das instituições – tanto para o malandro de posses quanto para o homem brutalizado – o tenha levado a buscar ‘se aproveitar e levar vantagem’ desse mau funcionamento, ao invés de procurar aprimorar estas instituições para o usufruto coletivo. Com isso, por mais simplista que possa parecer, a sociedade fica impedida de se transformar em sociedade civil, no menos jusnaturalista sentido do termo 80, acostumando-se a não manifestar coletivamente, a não reivindicar direitos de cidadania para si, nem a recorrer ao parlamento para pedir mudanças nessa direção, ou ainda, dentro do possível, já que a Carta Magna de 1824 garantia a todos os cidadãos igualdade perante a lei, recorrer à justiça, como, já havia muito, vinham fazendo, por exemplo, os ingleses. Até a fase de modernização de nossa modernidade, não haveria registros dessas práticas, escancarando nossa aversão à maneira moderna de ordenar a vida social.81

78 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. RJ: Globo, 1984. 79 CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. RJ: Zahar. 1969. passim. 80 O conceito de sociedade civil aqui é evocado de Weber ao qual o pensador alemão se utiliza para fazer uma Justa distinção entre poder de fato, que caberia à sociedade civil e poder legítimo, pertencente ao Estado. Estas duas entidades não estariam independentes uma da outra, mas se coadunariam permanentemente, sendo, na verdade, impossível a existência de uma sem a outra nas sociedades modernas. 81 Não é de admirar, pois, que a Carta Imperial de 1824 omitisse a questão escrava, ainda que num de seus Artigos definisse a igualdade e a liberdade como “direitos inalienáveis do homem”. “A Carta Imperial copiou da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, publicado na França, tudo aquilo que interessava às elites e dele excluiu o que não lhe era simpático. As eleições, os tribunais e o mérito pessoal serão controlados pelas famílias locais. A política do jovem país se tornará um instrumento de barganha sociopolítica e a mobilidade social tornar­ se­á objeto de relações pessoais de reciprocidade.” COSTA, Emília Viotti. Op. cit., p. 167. “Quando se começou a votar”, ensina José de Souza Martins, “o número de eleitores era ínfimo em cada município. Onde viviam centenas e

71 O fato é que o homem simples, clandestinizado em seu próprio território, enxergando não mais que abstrações na idéia de Estado e de suas instituições, passa também ele a ‘jogar por fora’ do marco das instituições do Estado (e do mercado legal), e é onde o malandro parece tomar forma também em seu corpo e atitudes. Nesse contexto reina o sentimento anti-herói, da gente que ‘se vira como pode’ para sobreviver e para escapar aos aparelhos de repressão do Estado, em particular da polícia. Tanto mais que a repressão à vadiagem, à embriaguez e à medincância corresponderia a 80% dos recolhimentos às delegacias de polícia nos anos iniciais da República.82, ou seja, quase a totalidade dos indivíduos presos eram candidatos a malandros, justamente por não se enquadrarem, de pronto, no modo novo de vida que lhes havia sido reservado. Esse distanciamento do homem simples com o Estado parece se viabilizar em função daquilo que Laclau e Mouffe chamaram de enfrentamento antagonal: um enfrentamento social moderno, onde um elemento parece não querer completar o outro, ou reformá-lo para o proveito coletivo, mas destruí-lo ou, na melhor das hipóteses, subjugá-lo em proveito próprio, se fosse o caso. O motor destas relações não é o esclarecimento de todos os indivíduos da sociedade em moldes modernos, estimulando a naturalização da dominação social não instrumentalizada por via da ideologia da igualdade de oportunidades e condições, mas o conflito permanente e destrutivo. O conflito é positivo em sistemas democráticos consolidados, para que, através do debate de idéias, se possam aperfeiçoar as instituições e fazer avançar os direitos de até milhares de pessoas, os eleitores eram meia­dúzia, reduzidos numericamente pela peneira da malha fina que assegurava a coincidência de patrimônio e poder. Quem tinha bens, tinha poder. Em troca de favores políticos, recebia benefícios que se traduziam em patrimônio, na conversão do público em privado, fazia parte do jogo e da cultura servil [mentalidade de escravo, da obediência sem crítica] de que a política se alimentava. Não era corrupção. Eram relações de interesse (...)”. MARTINS, José de Souza. Procura­se um povo brasileiro, um decantado desconhecido. O Estado de S. Paulo. 01/10/2006. 82 “(...) Era preciso modernizar e europeizar o País nos primórdios da República, o que compreendia perseguir mendigos, vadios e , estes caracterizados por sua dança hábil e atlética, todos em sua grande maioria negros mulatos”. REALLI JUNIOR, Miguel. Tolerância nota 10. O Estado de SP, 02.06.2007. A partir de 1890, a própria arte da foi criminalizada, podendo ser praticada livremente somente em finais da década de 1930, por força do movimento modernista que a considerava reserva cultural nacional. Os sambistas e os praticantes do candomblé também foram perseguidos, embora suas atividades não tenham sido colocadas na ilegalidade em nenhum momento.

72 cidadania83. Longe da premissa da ideologia da igualdade de oportunidades e condições, que justifica a dominação moderna, não criaríamos espaços para o desenvolvimento da democracia liberal. A esse respeito, Mattos esclarece que

mesmo considerando que a igualdade de oportunidades pode ser uma mera ideologia, como denunciou Pierre Bourdieu (2000), uma vez que existem critérios naturalizados e pré-reflexivos de distinção entre as classes que legitimam as desigualdades entre elas, pelo menos, comparativamente com países periféricos como o Brasil, o princípio da igualdade jurídica e política foi implementado naquelas sociedades. 84

A ideologia da igualdade de oportunidades se mostra capaz de amainar os conflitos e controlar o ‘calor social’. Sua ausência está na raiz do nascimento da malandragem entre nós. Por aqui, houve a preponderância de uma relação antagônica no campo sociopolítico. Esse tipo de relação que, por sua essência, não apresenta a dominação consentida como sua possibilidade final, somente poderá se dar ao excluir o Outro, dificultando, porque essencialmente antidemocrática, a conquista dos direitos de cidadania. Evidentemente não se poderia esperar que relações plenamente democráticas pudessem florescer em meados do século XIX entre nós (ou em qualquer outra sociedade moderna), uma sociedade assentada em mão obra bruta, escravocrata. Como é sabido, a aquisição e a garantia dos direitos de cidadania aludem a existência de uma sociedade democrática, de fato e de direito, mas residia ali, entretanto, a oportunidade de se fazerem brotar as raízes para o nascimento das condições para tal. Os relatos históricos mostram que não vigorou entre nós um tipo de relação moderna onde a incubação de ambientes que se articulassem e se atrelassem em plano mais elevado se fizessem presentes, com o mínimo de organização da sociedade civil. Ao contrário, o que emerge destes relatos é uma busca permanente de silenciamento do Outro via a cristalização de divisões, seja por parte do pensamento conservador, seja do liberal, que mantêm a sociedade dividida entre aqueles que podem e os que não podem, os que têm direitos e os que nada têm.

83 Cf. LACLAU, Ernest, MOUFFE, Chantal. Hegemony & socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 1985. passim. 84 MATTOS, Patrícia. Op. cit., p. 149.

73 O resultado é que se alastra o número de indivíduos ‘clandestinizados’, dispersos no espaço, que não conseguem se constituir em Sujeito nem numa sociedade civil articulada85; indivíduos feitos invisíveis em seu próprio território, ficando impedidos de formar um Estado de direito ampliado. Dupas argumenta que

a democracia [na visão de Platão] é um sistema em que todos os cidadãos discordam do governo porque reivindicam voz ativa na resolução desse desacordo. Przeworski fala em democracia como lugar do conflito limitado, ou do conflito “sem assassinato”, mas nunca do consenso. Mas nela os cidadãos devem concordar com certos princípios, entre os quais o de que vencedores e perdedores abrirão mãos das armas, seja qual for o resultado das eleições. Na democracia representativa, a função principal dos partidos é integrar a multidão, e a da política, projetar para os cidadãos uma perspectiva de futuro num processo tenso de convergência-divergência, mantendo o poder central em contínuo movimento de adaptação às pressões populares. É toda essa complexidade que faz a democracia representativa ser conhecida como o mal menor”. 86

A história tem mostrado que somente a transformação do tipo de relação antagonal, em agonal pode garantir o nascimento saudável de relações democráticas nos moldes do liberalismo clássico, o que exige um relativo consenso social, onde haja uma agenda mínima de entendimentos acima das classes, exatamente o que nos faltou durante quase toda nossa existência. É nesse vácuo de modernidade, de fato, nesse dissenso sobre os imperativos modernos, que nasce e cresce o malandro, a malandragem e todos os seus pressupostos, e que passam a caracterizar-se como elemento de identidade social a quem os compartilha, mas não de classe. Nos primeiros cento e sessenta anos de independência, experimentaríamos não mais que dezenove anos de liberdade democrática, de democracia populista, entre 1945 e 1964, o que pode ter distanciado as pessoas das instituições políticas modernas e não lhes dado tempo para que despertassem a sua percepção do uso efetivo das instituições do Estado como instrumentos de ação política de alcance dos direitos de cidadania. Pode parecer paradoxal, mas é justamente essa ação disciplinadora liberal, ou mesmo domesticadora, como reconheceram Laclau e Mouffe acima, que pode

85 FERREIRA, Antonio Celso. Introdução da obra “Malandros da Terra do Trabalho – malandragem e boemia na cidade de São Paulo (1930­1950)”, de CISCATI, Márcia Regina. 86 DUPAS, Gilberto. Ideais republicanos. O Estado de SP, 04/04/2006.

74 criar as condições para que se reconheçam no jogo político os instrumentos de ação política capazes de fazer avançar os direitos de cidadania.87 Souza lembra que

as gerações que já nascem sob a égide das práticas disciplinadoras consolidadas institucionalmente, esse modelo contingente assume a forma naturalizada de uma realidade auto-evidente que dispensa justificação. Responder aos imperativos empíricos do Estado e mercado passa a ser tão óbvio quanto respirar ou andar. Não conhecemos nenhuma outra forma de ser, e desde a mais tenra infância fomos feitos e continuamente remodelados e aperfeiçoados para atender a estes imperativos.88

Isso parece tanto mais verdadeiro quão maior for a naturalização da dominação liberal moderna, possibilitada não por outro elemento, mas pela introdução da ideologia da igualdade de oportunidades em dada sociedade, o que no nosso caso, ganharia algum formato somente ao final do milênio.

87 Ainda assim, é salutar lembrar que tratar de cidadania hoje já não se resume a abordar as esferas dos direitos civis, políticos e sociais, mas de uma gama de assuntos que soaria absurdo para os homens do passado. De todas as drásticas mudanças que a dinâmica global do último quartel do século XX imporia sobre os agentes sociais de todo o planeta, poucas teriam a profundidade do impacto sofrido pelo paradigma que assentava na noção de cidadania. No momento em que o conjunto de direitos implícitos nessa noção exigia sua auto­extensão, seu elemento estruturante máximo, o Estado, enquanto centro da ação política – porque promotor da igualdade –, começava a ruir. Trata­se de um momento em que a luta da cidadania deixa de priorizar o alcance da igualdade e centra­se no respeito às diferenças. Considerar a todos iguais perante a lei já não parece bastar para que todos sejam realmente iguais, mas é necessário que sejam considerados iguais e diferentes – uma cidadania radicalmente ampliada. Cf. LACLAU, Ernesto, MOUFFE, Chantal. Op. cit.,. Daí o surgimento de reivindicações pró aquilo que ficaria conhecido como “ações afirmativas” e de outras formas de direitos até então não contempladas pela concepção clássica da cidadania liberal. 88 SOUZA, Jessé. Op. cit., p. 92.

75 Capítulo 3 A formação periférica da massa brutalizada A democracia é a única forma da política que considera o conflito legítimo Marilena Chauí, filósofa (2006)

De acordo com Laclau e Mouffe 89, a dinâmica da doutrina liberal seria, em tese, capaz de transformar as relações de enfrentamento antagonal em relações de enfrentamento agonal, pois a modernidade liberal pressupõe o convívio com as diferenças e divisões internas, fustigando, com sua dinâmica própria, a ampliação dos direitos existentes e estimulando a criação de novos direitos Esta é a estratégia sub-reptícia da doutrina para garantir a dominação de uns grupos sobre outros. Isso, ainda assim, dependerá do nível de autopercepção dos indivíduos de sua importância social e de sua conseqüente organização em associações, movimentos sociais, sindicatos e partidos que constituam um contra-poder social que limite o poder do Estado, ao mesmo tempo em que enxergue neste um efetivo instrumento de ação política, ou seja, é pressuposto para tal que os indivíduos enxerguem na política uma efetiva possibilidade de mudança. Para ser viabilizado, o enfrentamento agonal pressupõe a criação das precondições para a constituição de um tipo humano homogeneizado – o que não significa outra coisa senão ‘preparar’ os indivíduos para atender às exigências do mercado e do Estado – o que, entre nós, não aconteceria tão cedo. Não se precisa ir muito longe para perceber que nosso liberalismo se constituiu do tipo “possessivo”, para usar a feliz expressão de Macpherson90. É exatamente por isso que a doutrina não conseguiu enxergar as formas opacas da dominação moderna, confundindo-se com o conservadorismo – e somente neste aspecto se confundiu com o ele91 – que regeu a vida imperial brasileira e

89 Cf. LACLAU, Ernesto, MOUFFE, Chantall. Op. cit. 90 Esse aspecto possessivo do liberalismo conservador entende que o controle do Estado basta para que este o auxilie na tarefa de acumular, deixando de atentar para a necessidade de criação dos instrumentos de controle ideológico da sociedade, leia­se a criação de instituições de ensino e de mecanismos que insiram efetivamente os indivíduos na economia de mercado. CF. MACPHERSON, C. B. The political theory of possessive individualism. NY. Oxford Press. 1962. 91 Trata­se de um liberalismo federalista, como tantos outros, mas que se difere fundamentalmente dos “menos possessivos” por não cogitar a liberalização social no processo de liberalização econômica da sociedade nacional.

76 boa parte da republicana.92 Daí porque acabaria por não estender os direitos entre nós, fazendo nascer o homem precarizado e, por extensão, o malandro, vista a capacidade de organização desse indivíduo para fins políticos ser nula.

O malandro e o vazio simbólico Esse tipo de liberalismo, que vigorou no Brasil na maioria do tempo de existência do País, parece ter como referência o Segundo Tratado do Governo Civil (1690), de John Locke, que se baseia nas posses, ou censo, conforme denominava a primeira constituição nacional, e o qual contribuirá para criar as bases de uma cultura avessa ao democratismo, que levará a um retardamento dos direitos de cidadania entre nós.93 Pedro Pereira nos ajuda a entender essa questão da possessividade liberal, esclarecendo que,

Locke entende que Deus , em seguimento ao Gênesis, deu a Terra aos homens em comum, em forma de propriedade, para que estes se utilizassem dela para a subsistência. “Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo.” (LOCKE, 1978, p.45) Maquiavel anteriormente a Locke nos deixara ensinamentos neste sentido, ao dizer no cap. XIX de sua obra “O Príncipe” que, para que não seja abominado por seus súditos, o Príncipe não deve, jamais, usurpar os bens destes: “quando os súditos têm seu patrimônio e honra respeitados, vivem geralmente satisfeitos”. (MAQUIAVE L, 2004, p. 110). Locke, por sua vez, diz que o espaço incorporado pelo indivíduo para si através do trabalho é de sua propriedade exclusiva e, salvo problemas de escassez, não lhe pode ser contestada, pois se necessitássemos do consentimento de todos para apropriarmo-nos

92 Para uma melhor compreensão do processo histórico ao qual se está fazendo referência, que compreende o período imperial, mas não só, ver CARVALHO, José M. de. Teatro de Sombras – a política imperial. Paz e Terra. RJ. 1980. O objetivo do autor nesta obra é examinar a atuação da elite política no momento em que a tarefa de consolidação do poder político parecia realizada e em que novos desafios se colocavam para ela e o Estado. Em outra parte deste trabalho – “A Construção da ordem – A elite imperial”, o autor discutira a política imperial sob a ótica de seus agentes diretos, ou seja, a elite política e a burocracia. Ali, o autor tenta relacionar as características da elite, particularmente sua homogeneidade ideológica, gerada por educação e treinamento político comuns, com as características do Estado herdado da tradição portuguesa absolutista e patrimonial. Daí que nascem alguns dos traços marcantes do sistema político imperial: a monarquia, a unidade, a centralização, a baixa representatividade. Essa elite foi, segundo o autor, produzida deliberadamente pelo Estado para fortalecê­lo, particularmente em sua tarefa de controle da sociedade, para a construção da ordem, O que o autor faz nesta segunda parte é examinar, de uma forma mais aprofundada, a elite e o Estado no momento em que a tarefa de acumulação do poder estava realizada, e em que novos horizontes se abriam à sua atuação (a partir de 1837), quando as incertezas da Regência começaram a dar lugar a um esboço de sistema de dominação mais sólido. 93 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. SP: Nova Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores).

77 de uma macieira, por exemplo, morreríamos de fome “É a tomada de qualquer parte do que é comum com a remoção para fora do estado em que a natureza o deixou que dá início à propriedade.” (LOCKE, 1978, p. 46). Assim o é também com a terra: “a extensão de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva, cujos produtos usa, constitui sua propriedade.” (LOCKE, 1978, p. 47). Locke ressalta a importância do trabalho nesse sentido, ou seja, de incorporação de maior propriedade, algo que foi demasiado crucial no âmbito do protestantismo, que incorpora tal conduta à preceitualização divina: “ aquele que em obediência a esta ordem de Deus, dominou, lavrou e semeou parte da terra.94

Isso mostra que o pensamento de Locke, levado às últimas conseqüências, como foi o nosso caso, sem nenhuma perspectiva rousseuniana, dificilmente desembocaria em relações agonais. Como mostra o pensamento de Laclau e Mouffe95, introduzido nas linhas acima, o longo percurso da cidadania pressupõe relações agonais, uma espécie de consenso fabricado, na aceitação da dominação moderna, não instrumentalizada, como pano de fundo para que se formem sociedades democráticas, de fato e de direito. Somente as sociedades sem liberdade de pensamento, e distantes da idéia de igualdade entre os homens, podem sobreviver sem sua presença. Essas são sociedades onde não se toleram as diferenças, mas, ao contrário, fustigam-se a execração destas.96 O liberalismo menos conservador, ao contrário, não se incomoda com diferenças de cor, credo, gênero ou classe social. Interessa-lhe muito mais homogeneizar para o mercado e garantir o lucro e o controle social sobre o grosso da população. A tradição brasileira é ilustrativa da impossibilidade de transformação dos antagonismos em agonismos, de relações de conflito em ‘dominação consentida’, próprios do consenso liberal. Pimenta Bueno, um notável liberal constitucionalista do Segundo Reinado, revela o tamanho do espírito

94 PEREIRA, Pedro S. Resenha Crítica da obra de John Locke “Segundo Tratado Sobre o Governo Civil” http://www.consciencia.org/resenha_locke.shtml. Acesso em 10.06.2008. 95 Cf. LACLAU, Ernesto, MOUFFE, Chantall. Op. cit. 96 Os raios do liberalismo possessivo parecem ter sido mais competentemente disseminados entre nós por Hipólito da Costa (1774/1823) e por Silvestre Pinheiro Ferreira (1769/1846), dois membros das elites portuguesas que contribuirão significativamente para a reinterpretação luso­brasileira da concepção clássica do liberalismo de Adam Smith e de John Locke. O primeiro, viveu na capital inglesa trabalhando para o jornal Correio Braziliense, durante o período que vai da transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro até a Independência. O segundo, chegou ao Rio de Janeiro dois anos depois da Corte, mas aqui permaneceu exercendo funções de magistério à elite local até ser nomeado chefe de governo de D. João VI, em Portugal.

78 antidemocrático de grande parte dos homens de seu tempo, sustentando em livro, em 1857, que “[...] o espírito mais liberal não pode deixar de reconhecer que o voto universal é uma verdadeira utopia. A razão e o interesse público não podem deixar de necessariamente admitir as incapacidades resultantes do sexo, da menoridade, da demência, da falta de luzes e da ausência de habilitações, que convertem o voto em um perigo social. O voto universal [...] sujeita a parte pensadora da nação, que é sempre comparativamente pouco numerosa, à multidão que não pensa, que não ofereça as garantias necessárias, e uma destas é o fato e o sentimento da independência do votante”.97 É sustentado nessas teses que a versão brasileira do pensamento liberal contribuirá para criar as bases de uma cultura avessa ao democratismo no Brasil independente – seja no campo dos direitos políticos, seja no campo dos direitos civis, já que em direitos sociais somente se ouvirá falar ao final daquele século – e que atravessará quase dois séculos. Por força dos próprios liberais luso-brasileiros, o antidemocratismo transforma-se no elemento que constituirá o establishment do jovem país. Com a contribuição imprescindível de sua doutrina, o país nasce e segue conservador, e assim permanece durante os setenta anos da experiência imperial brasileira, contribuindo para negar ao país os valores políticos de uma ordem moderna, que tivesse como mote norteador o ‘interesse bem compreendido’. Antes desse momento, entrementes, a concepção clássica do liberalismo já vinha sendo repensada também pelos liberais britânicos na Inglaterra – inspirados na “reação conservadora francesa”, que seguiu a Revolução de 1789 –, país que exercia enorme influência política e econômica sobre o pensamento luso-brasileiro. Tanto lá quanto cá, há o temor não somente de um retorno às relações mercantilistas, mas do fortalecimento do povo realizado via o Estado, em direção ao avanço dos direitos. Na Inglaterra, entretanto, essa tendência será ofuscada primeiramente pelo terror estabelecido pelo ludistas (baseado na manutenção das tradições culturais desfeitas pela novo modo de produção) e, em seguida, pela resistência

97 BUENO, José Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Brasília: Ed. UNB, 1978. p. 98.

79 operária dos cartistas, na década de 1830, que exigirão o direito democrático de representação; uma luta que se estenderia até 1884 e seria amenizada por uma aliança entres trabalhadores e liberais. No Brasil, não há registros de movimentos que seguissem nessa direção. Outras sociedades ocidentais se livrarão de tais premissas muito cedo, mas este não seria o nosso caso. Aqui, até a ascensão do trabalhismo, não havia ainda segmentos sociais suficientemente organizados para contestar à altura o reacionarismo liberal nacional e a cultura política conservadora. Não parece ter havido, durante o longo século retrasado e parte significativa do seguinte, movimentos fortes de contestação aos grupos que se opunham às mudanças sugeridas pela modernidade de brilho Iluminista. Os instrumentos modernos instalados aqui durante a experiência imperial brasileira e parte significativa da republicana, mantiveram um sentido de confronto com os homens e mulheres simples que aqui viviam e com aqueles que por aqui chegavam sem conseguir ‘moldá-los’ em termos modernos no que concerne à criação de um habitus útil. Ante o temor de ver a estes indivíduos controlando o aparato do Estado, podendo colocar em xeque as estruturas nas quais assentava a sociedade nacional, neutralizaram-se as possibilidades de completude da ideologia moderna e de seu clássico e mais bem acabado sistema de dominação, fundado na igualdade de oportunidades. Não é assentada, de fato, nos valores modernos que grande parte dessa massa brutalizada, e tampouco seus algozes, vai aprender a edificar seu ethos98, seu caráter social e cultural, a sua maneira de ser, a sua noção do que é certo ou errado, mas na práxis da malandragem, ou seja, na matriz negadora

98 O vocábulo “ethos” é uma palavra grega que equivale ao termo “ética”, ou seja, os princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo especialmente a respeito da essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social (Dicionário Houaiss). Ethos pode ser ainda definido como o “espírito particular de um povo ou uma era”. Refere­se a uma síntese dos costumes de um povo, sendo que a natureza de tal síntese depende dos objetivos do observador. Para alguns pensadores, ethos designa o conjunto dos traços típicos de um grupo social qualquer através dos quais ele pode ser singularizado em relação aos demais grupos. Assim, pode­se, por exemplo, caracterizar o ethos ibérico como “tendente à ociosidade”, contrastando com o ethos “tendente ao trabalho duro” dos povos protestantes. O conceito pode incluir temas culturais, padrões culturais e valores. Vidal diz que o termo se refere ao “conjunto de normas e valores aceitos por uma civilização, por um povo, por uma classe social, por um grupo, ou por uma pessoa”. VIDAL, Marciano. Dicionário de ética teológica. Verbo Divino. 1991. p. 234.

80 da modernidade, que não reconhece a legitimidade desta. É dela que passarão a derivar as suas virtudes, a práxis de suas bondades, e é com ela que aprenderá a se sociabilizar. Como bem diz Souza,

um Estado e um mercado capitalistas minimamente eficientes pressupõem do mesmo modo a eficácia social desses valores. Afinal, é precisamente o princípio do desempenho individual diferencial, em que cada indivíduo ao dar o melhor de si está também a dar o melhor à instituição, a própria base da racionalidade e da eficiência social dessas instituições. Elas pressupõem também uma nova condução da vida, de acordo com horários bem determinados, com uma disciplina própria independente dos sentimentos ou inclinações individuais, e motivam um comportamento sistemático, tanto no trabalho como no lazer, seja pela ameaça da perda das condições de sobrevivência, seja pelo estímulo do lucro ou vantagens materiais e ideais.99

Até a transformação da modernidade brasileira em modernização, não interessava a esta massa ver funcionarem as instituições abstratas do Estado, das quais fala Souza, quando estas nada lhe diziam e, de nenhuma forma, respondiam aos seus apelos mais agoniados. Estas eram organismos meramente formais e com elas nao podia contar para fazer materializar suas demandas de toda ordem, para lhe preencher com os valores da modernidade. Quando elas se materializam para ele, tinha paradoxalmente de se esquivar, de se esconder, de se eximir da construção da nação, de não permitir emanarem suas energias cívicas.

A massa brutalizada e a racionalidade moderna Para a massa brutalizada que não toma as decisões políticas e não desfruta das riquezas produzidas pela nação não vale mesmo a racionalidade apontada por Souza: ela tem de conviver com o vazio simbólico do desprezo institucional além de escapulir à opressão materializada de seus aparelhos repressivos. Ela não valia antes porque estes segmentos não enxergavam legitimidade em seus imperativos, e não valerá agora, quando a modernidade ganha vigor, a partir dos anos de 1930, porque esta massa já chegará

99 SOUZA, Jessé. Democracia e personalismo para Roberto DaMatta: descobrindo nossos mistérios ou sistematizando nossos auto­enganos? In: SOUZA, Jessé (Org.) Democracia e personalismo para Roberto DaMatta: descobrindo nossos mistérios ou sistematizando nossos auto­enganos? Brasília: UnB. 2001. p. 194.

81 derrotada, sem a menor condição de disputar um lugar em seu sistema classificatório. Não é por outro motivo que estes homens e mulheres parecem continuar a empregar um sentido de independência (institucional) à sua existência. É somente na interação com seus ‘parceiros’, seus ‘chegados’ mais íntimos, que enxerga laços comunitários – o ‘comunitarismo da cumplicidade’, comum aos grupos delinqüentes, como costuma dizer o pensamento culturalista –, e se sente irmanado, imaginando poder existir independentemente da grande comunidade com a qual interage cotidianamente num plano maior, aquela que opera sob os ditames rígidos da racionalidade moderna. E esta parece ser uma maneira pela qual se constrói o comportamento malandro dos indivíduos. Paralelamente a esta modernidade que não quer saber dele, este homem cria um padrão de vida, uma subcultura de características singulares, externamente identificáveis, onde as regras de convivência são outras. Esse mundo não é completamente autônomo, não é uma mera agregação ou uma simples coletividade, mas uma realidade social que interfere na forma como ele enxerga as coisas, e que influirá sobre seus padrões de comportamento, tais como a sua linguagem, a estética própria, os símbolos que valoriza e que considera apropriados, os seus hábitos de sociabilidade e de tantas outras normas e costumes. Os juízos de valor que o malandro emite através dos olhos dessa subcultura e os símbolos sociais que ele considera importantes diferem em grande medida daqueles da cultura superior. É nela que ele se sente bem e fica à vontade, onde se identifica com o grupo de referência e de quem espera reconhecimento, lealdade e auxílio. Fora de seu contexto, seus costumes parecem estranhos, tornando-se difícil a sua aceitação fora de seu grupo de referência secundária, embora seus atos estejam longe de representar manifestações de contracultura, no mais político significado do termo, Como a qualquer indivíduo inserido num grupo humano específico, são os seus valores que orientam muito dos seus pensamentos e lhe dizem o que é desprezível ou majestoso, aprazível ou incerto, digno ou infame, insano ou habitual. Resulta daí que, mesmo que seus juízos de valor e seus ‘gostos’, seu habitus, não vão necessariamente de encontro aqueles da cultura maior, o malandro não espera ser punido pela quebra das normas e da ordem social.

82 Na verdade, ele não as entende como tal em sua totalidade. Daí porque seus atos são muitas vezes tomados pela comunidade maior como mero banditismo. Muito embora esse indivíduo fuja costumeiramente ao sistema de recompensas e punições (‘enquadramento’), ao controle social instituído pelos aparelhos coercitivos de poder da ideologia moderna, seu comportamento errante, complacente com o socialmente inaceitável não é oblíquo o bastante para caracterizá-lo como necessariamente marginal, nem para supor que ele seja capaz de promover um estado de anomia social. Ainda que os valores que guiam sua conduta sejam incertos e, em alguns momentos, ele dê pouca importância às regras sociais, o malandro modernamente enquadrado, diferentemente de seu colega da fase anterior da modernidade, está profundamente inserido no sistema como um todo, oscilando entre o judicioso e o censurável, o institucional e o descerimonioso. O malandro não é favorável à corrupção, ao tráfico de drogas, ao assalto, ao seqüestro, a tortura, ou a outras normas codificadas no Direito, mas pode eventualmente sê-lo, caso as instituições modernas – que, em termos durkheimianos, exercem um poder coercitivo sobre ele e sobre toda a população – não olhem por ele. Nesse sentido, dada a imprevisibilidade do comportamento do indivíduo amalandrado, o fenômeno será um dos tentáculos que farão funcionar mal a modernidade entre nós, uma vez que “seus interesses estão, em grande medida, subordinados àqueles do grupo inteiro”, para usar uma feliz expressão do antropólogo Ralph Linton100. O fato é que, para o malandro, a vida não teria graça se os valores da racionalidade moderna falassem mais alto; se ele não estivesse rodeado de amigos e contasse sempre com um motivo para comemorar. Para o malandro o que faz de um grupo uma comunidade não é uma associação contratual com fins de maximização de interesses dos indivíduos envolvidos, como quer a modernidade, mas a sua negação. É na forma dessa interação social que ele adquire sua forma de agir e de pensar, como se constrói sua personalidade tanto individual como social, numa palavra, seu habitus. É daí que a farra e a folia despreocupadas, a liturgia e o regozijo mambembes, passam a ser algumas de suas marcas maiores, espalhando-se para outros grupos, não

100 LINTON, Ralph. Cultura y Personalid. Cidade do México: FCE. 1965. p. 32.

83 através da transmissão formal de valores via a escola, a Igreja, e os aparelhos do Estado, mas pelo caminho informal da prática social. Esta se transforma num dos principais agentes de socialização para ele, seu grupo de referência, e é quem mantém influência sobre seu comportamento. Sendo fato que quando nascemos já encontramos estruturadas as instituições formais – constituídas por valores pensados antes mesmo de existirmos –, não é menos verdade que no Brasil, e na periferia da modernidade de um modo geral, também nos deparamos com estas instituições informais – ‘ritualizadas’ nos costumes –, cujos comportamentos e atitudes não conseguem ser regulados pelas normas sociais. São estas últimas que dizem ao observador pouco atento que a suposta ‘alegria brasileira’ – assim como a ‘ginga’, o ‘jeitinho’, o ‘levar vantagem em tudo’, e a própria malandragem como um todo – é uma ‘marca nacional. Idiossincrasias como esta é que têm levado grandes pensadores, tais como Oliveira Torres101, sem dizer o porquê e, provavelmente desconhecendo a lógica candidiana da “ordem e da desordem”, a afirmar que, por aqui, “ri-se de todos, converte-se tudo em brincadeira, criando-se um ambiente de cordialidade, de bom humor e simpatia. Assim são solucionados os dilemas complicados que normalmente resultariam em tragédia”, 102 Estas instituições, quando percebidas pelo observador ingênuo, não deixam ver que este comportamento, embora culturalmente tolerado em determinadas ocasiões e repulsado com olhares de desaprovação em outras, é próprio de alguns grupos, mas nos marca com essa perspectiva, criando sobre nós um estereótipo que nos consome por toda a vida. Qualquer pessoa de olhar atento que já tenha passado por Arapiraca, Tegucigalpa, Caruaru, El Paso, Belford Roxo, Oaxaca, Serra Pelada, pelo centro de Los Angeles, ou por tantos outros lugares onde a periferia da modernidade convive com pitadas de modernidade clássica, onde as pessoas mais simples ‘não merecem cidadania’, pôde certamente enxergar resíduos de uma alegria pré-moderna e dos mais variados vestígios da malandragem também ali.

101 TORRES, João Camilo de Oliveira.Interpretação da Realidade Brasileira. R. José Olympio. 1973. 102 (1973, Op. cit., p. 215), Ironicamente, na mesma década, o Brasil era considerado um dos países mais violentos do mundo, segundo estudos realizados pela Organização das Nações Unidas em 2007.

84 Estes são lugares onde uma montanha de templos evangélicos, mistos de pré e pós-modernidade, malandramente se utilizam, ainda hoje, de técnicas ultramodernas do mercado e de discursos progressistas para convencer as pessoas desassistidas de que sua adesão a seus dogmas fará com que algo de bom aconteça em suas vidas. São os mesmos lugares onde a modernidade encontra-se em eterna dissonância consigo própria, onde o sexo compra comida e comida compra sexo, encarnando a realidade por que passam praticamente todas as metrópoles modernas precarizadas. A presença destes elementos é muito comum onde outra perspectiva não é deixada às pessoas que somente têm ‘estômago e vislumbram sexo’. Precisam catar latas de alumínio ou ‘olhar’ carros para sobreviver, mas precisam também conviver com tecnologia de última geração, que lhes pressiona por aprendizagem permanente, para algum acúmulo de capital cultural, tal qual feito sobre os demais membros das sociedades modernas, para que possam tentar assegurar um lugar no mercado e provar a sua utilidade prática. Esta realidade parece não se aplicar, por exemplo, a grupos cujas relações sociais não mostram grande interferência da modernidade, como é o caso das sociedades indígenas, e em locais onde essa modernização não tenha sido tão perversa. Nem ali nem aqui as pessoas precisam se prestar a realizar as tarefas que o primeiro grupo faz. Parece honesto inferir que a especificidade de nossa modernidade, periférica e inacabada, tem enorme responsabilidade sobre o fenômeno. Os homens e mulheres brasileiros não diferem grandemente dos homens e mulheres de outras sociedades modernas. Como em qualquer lugar, se comportam no dia-a-dia de forma padronizada, formam filas em bancos, em cinemas, em supermercados; trabalham regularmente e pagam impostos; respeitam as regras de trânsito e de civilidade exigidas pelos imperativos modernos. O nível de precarização de cada indivíduo ou grupo de indivíduos (que longe está de se prender ao aspecto econômico), recebido pelo próprio sistema de classificação entre nós, é que dirá onde, quando e em que medida essas regras serão burladas. O comportamento dessa gente pode ser imprevisível ou imprevisível, mas é eventual e, indubitavelmente racional, friamente calculado, até mesmo na alegria desmedida.

85 O que se deve ter claro é que para o malandro, fora de sua comunidade de interesses comuns, restrita e apolítica, o que prevalece é a idéia de ‘cada um por si’, e é nela que se estabelecem as relações de sociabilidade no imaginário desse homem. De acordo com Ciscati,

a via da malandragem parece ser uma das engrenagens dessa máquina social capenga, uma maneira de safar-se da desvantagem das obrigações sociais que submetem uma coletividade, portanto, uma forma de resistência que não quer dizer que a prática da malandragem ou que o malandro represente uma resistência ideológica ou política, não há com ele nenhum agigantamento. O malandro não forma grupos de pressão política – mas pode estar situado dentro destes grupos –, e está preocupado consigo, não com a sociedade. Antes de cordialidade, solidariedade ou resistência coletiva, a malandragem indica alternativas individualistas.103

Á medida que estes indivíduos se distanciam do sentido da política e se valem da arruaça e de tantos artefatos apolíticos, eles permanecem percebendo as instituições como meios que encontram para atingir dados fins, os quais não necessariamente vão de encontro aos objetivos da coletividade, pois, como diz Konder,

é na política que as pessoas podem criar os meios de combinar seus interesses particulares ou corporativos com o interesse geral. É na política que os valores éticos são desafiados a serem traduzidos na prática, na ação, definindo a ligação entre a esfera privada e a esfera pública. E é na política, também, que essa ligação mostra os casos nos quais o sujeito simplesmente não tem valores éticos e age de maneira puramente oportunista. 104

O malandro não se dispõe a transformar em movimentos sociais eventuais desejos de mudanças que trás em sua vida. Tampouco faz um esforço coletivo para promover ou organizar as mudanças sociais que não lhe agrada. Prefere ‘encostar-se no Estado’ quando dele precisa para tirar vantagens para si105, sem saber que somente um avanço em seu nível de

103 CISCATI, Márcia Regina. Op. cit., p. 26. 104 “(...) A política é, muitas vezes, o terreno no qual se esclarecem alguns dos significados obscuros das idéias de uma pessoa”. KONDER, Leandro. Os sofrimentos do”homem burguês””. SP: SENAC. 2000. p. 71. 105 O movimento social caracteriza­se como uma coletividade de indivíduos envolvidos em um esforço organizado para promover ou resistir a mudanças na sociedade. A característica principal dos movimentos sociais – e que os diferenciam de outras formas de comportamento coletivo – é que eles são organizados e têm um período de vida mais longo. Tais movimentos possuem alguns princípios comuns que são: identidade, oposição e

86 cidadania será capaz de reverter essa sua tendência a transformar seus atos apolíticos em cultura. Tanto Konder quanto Ciscati indicam que, se em alguma medida, as ações do malandro têm como fundamento contestar a legitimidade da política, elas não são esclarecidas o bastante para converter os indivíduos amalandrados em povo político. Daí não admirar que estes indivíduos não se importem com a disseminação do espírito público e da criação de uma coletividade que tenha objetivos comuns. As fronteiras de seu mundo são um tanto rígidas, tal qual a sua percepção da política como instrumento lícito de transformação social com vistas à cidadania. Suas ações não se revelam na consciência, e esse é o ponto alto da malandragem que o faz permanecer subcidadão, ofuscando o fato de que “a política é”, no dizer de Konder, “muitas vezes, o terreno no qual se esclarecem alguns dos significados obscuros das idéias de uma pessoa”106. Neste círculo vicioso, as opções desse indivíduo para galgar lugares na sociedade permanecerão voltadas às coisas da malandragem, passando ao largo das instituições. Suas próprias ações acabarão por ofuscar as possibilidades de desenvolvimento de sua cidadania em termos clássicos de obtenção desta, sugerindo que malandragem e cidadania são fenômenos conflitantes e que onde sobra lugar para um não há espaço para o outro. O poder do malandro é limitado e, por mais que se queira enxergar nele uma forma romantizada de contestação política, suas ações acabam servindo como forma não instrumentalizada de contenção dos ânimos sociais e de preservação do status quo. A convivência centenária no Brasil entre subcidadania e malandragem somente ratifica essa assertiva.

O sentido da vida na malandragem Seja como for, a malandragem dificilmente teria se efetivado tão prontamente se a vida daqueles que assumiram uma ‘condição malandra’ não começasse a ser vista como muito mais fascinante e aprazível do que a do

totalidade. São tipos de movimentos sociais o conservador, o reformista e o revolucionário. DIAS, Reinaldo.. Op. cit., p. 299. 106 KONDER, Leandro. Op. cit., p. 71.

87 trabalhador brutalizado. Esta singularidade social, com seus diversos tentáculos e facetas, abria espaço para todos, do imigrante brutalizado, que chegava aos milhões por aqui, até o retirante da roça, que se desvencilhava lentamente dos mandões locais – os mesmos que haviam tomado conta de suas vidas ao longo dos quase quatrocentos anos anteriores. A malandragem torna-se a alternativa de sociabilidade de um povo que, como ensina Ferreira, é

composto por operários que também exercem a malandragem por boêmios que oscilam entre a vida familiar e o convívio com vigaristas, gigolôs e prostitutas; boates de letreiros luminosos e inferninhos de fachada oculta, freqüentados por notívagos de toda espécie, negros, brancos ou mulatos – sambistas, dançarinos, damas da noite cantores e cantoras, empregados do comércio, operários. E ainda por ruas onde perambulam punguistas e cafetões, policiais, malandros da pesada e malandros da leve, num meio sociocultural entremeado de música popular, artes e artimanhas, crítica social e delinqüência; em mesclas e hierarquias sempre inusitadas.107

Agora, a malandragem começa a ser admitida e cantada abertamente em verso e prosa. Ela é lembrada como fenômeno lúdico e prazeroso, capaz de aliviar a dor e o sofrimento dos homens mais sofridos da nação. Na canção “Diabos do Céu”, de Assis Valente e Durval Maia, que fez enorme sucesso na voz de Pixinguinha na década de 30 do século passado, encontram-se elementos que podem servir de alguma prova empírica para aquilo que se sustenta aqui: “Alegria pra cantar a batucada/As morenas vão sambar/Quem canta tem alegria/Minha gente era triste e amargurada/Inventou a batucada/Pra deixar de padecer/Salve o prazer/Salve o prazer! ...”. As pessoas retratadas por Valente e Maia, são as mesmas que se reconhecem nas ‘coisas da malandragem’. Da opressão, elas saltam para uma ambiência onde a alegria da cabrocha charmosa da escola de e o êxito do passista labioso com as moças, onde o luxo, o poder de convencimento e o dinheiro ilícito do bicheiro, onde o tempo ocioso do malandro de bem com a vida, batucando no botequim, na praia, na roda de samba ou jogando ‘peladas’, parecem muito mais sedutores que as ‘desvirtudes’ de seu trabalho e de sua vida precarizada, e isso ficará explicitado em inúmeros outros do período.

107 FERREIRA, Antonio Celso. Op. cit., p 12.

88 Nem todos os brasileiros precarizados seriam adeptos, a partir dali, da ginga ou do samba, nem partidários da gandaia, da batucada, da folia, da farra e da ociosidade e, tampouco, simpatizantes do ‘jeitinho brasileiro’, do uso de epítetos para identificar e classificar seus companheiros, mas começava a ficar patente que poucos deles deixariam de carregar um ou outro artifício da malandragem em sua sociabilidade, de sua singularidade social. No início eram alguns milhares de homens precarizados pensando dessa forma. Logo seriam alguns milhões e, em breve, muitos milhões, de origens e rostos diferentes, dos mais diversos continentes e das mais diversas práticas culturais. Em breve seriam negros, brancos, índios, amarelos e mestiços – caboclos, mulatos, cafuzos, pardos, morenos, mamelucos, calungas – feitos iguais muito mais pelos códigos da malandragem, de sua maleabilidade, do que daqueles da modernidade ocidental. Através dessa maleabilidade, capaz de romper com as normas comuns de conduta social e mostrada efusivamente em canções entre as décadas de 1910 e 1960, começa a se evidenciar que estes indivíduos em débito com a moral moderna passam a julgar como ‘uma coisa normal’ – que está dentro das normas – o seu jeito de agir, e não como um ‘desvio social’ e, tampouco como crime. Paira em seu imaginário a idéia fixa de que somente existe agora a órbita da malandragem; um mundo que não o criou (a modernidade o fez), mas o cooptou ao providenciar-lhe um novo sistema de normas, ao presentear-lhe com este novo código de conduta, uma nova singularidade social; ao lhe apresentar um modo de agir que passa a ser entendido como normal. É a esta singularidade social que ele deve satisfação, pois é ela que o assiste agora, e estranhas passam a ser as regras rígidas e impessoais da modernidade, cujas instituições não o reconhecem nem o respeitam – e que ele igualmente não reconhece nem respeita; que não transformam seus componentes em cidadão de direitos. Estes indivíduos precarizados podem bem ser trabalhadores ou donas- de-casa, mas podem ainda ser gente abastada. Trata-se de indivíduos submetidos a processos que não os reconhecem como dignos de direitos de cidadania, ou, na melhor das hipóteses, lhes contempla com uma cidadania em

89 negativo, como diz Carvalho (2002) 108, mas que têm de responder aos imperativos modernos. O sujeito tem de estar ‘formatado’ para atender aos imperativos do Estado e do mercado competitivo modernos, mas não consegue fazer avançar a sua condição cidadã. Somente esta condição poderia fazer com que ele fosse formatável, como não a tem, permanece a patinar sobre a precarização das suas condições de subsistência, em todos os aspectos, desde materiais àquelas ligadas ao campo das subjetividades. Dentro desse processo, os homens e mulheres tragados pela nova singularidade social, aprendem desde cedo que a regra número um é fazer valer a sua engenhosidade e dar-se bem passa a ser a fórmula que lhes impede de tornarem-se somente mais alguns dos inúmeros ‘otários’ que perambulam anonimamente pelas ruas das cidades em rápida expansão. Ela também lhe garante certo respeito nos becos apertados das favelas, que começam a tomar forma já em finais do século retrasado e que serão objeto de turismo pouco mais tarde, uma atividade admitida e incentivada pelas classes médias do País. É também da malandragem que se apresenta a possibilidade de este indivíduo feito malandro pela modernidade de não se permitir ser apenas mais um ‘otário’, que pense poder se fazer forte via o trabalho duro. Este indivíduo que já age ao largo das instituições, acostuma-se logo a enxergar no ‘jeitinho’ um atalho para se livrar da burocracia e da indiferença, no processo de amalandramento inventado pela modernidade. Na ‘esperteza’, encontra a agilidade exigida pelos seus iguais para conquistar espaço e conseguir o que almeja; o ‘xaveco’ lhe permite ultrapassar as barreiras do lícito; a ‘lábia’ e o ‘aliciamento’ lhe trazem prestígio social ao lhe reconhecer com o poder de persuadir e convencer; a intimidação, seu último expediente, lhe garante a aprovação de todos os recursos anteriores via o constrangimento e, não raro, prenuncia que algum efeito lesivo pode ocorrer contra aqueles que às suas práticas se opõem. Daí que, se a escola pública não reserva vagas para o filho do malandro, num momento histórico em que já não pode contar com o favor do mandão, ele faz viabilizar uma alternativa para garantir o suposto direito do ente a

108 Cf. CARVALHO, J. Murilo de. Cidadania no Brasil – O Longo Caminho. RJ. Ed. Civilização Brasileira. 2002,.

90 escolarização, ainda que ao largo das instituições. No momento em que a modernidade passa a lhe sinalizar que os seus entes, afilhados ou amigos, serão, fora da escolarização moderna, o ‘detrito’ que engrossará as fileiras da precarização social, ele constrói o seu direito alternativo, pois agora eles têm, em tese, os instrumentos para tal. Da mesma forma, quando o posto médico lhe nega atendimento, ele, ou outro de seus colegas precarizados em algum nível, tratam de lhe garantir acolhimento por outras vias. Nesse contexto, essa espécie de malandragem, dada sua eficácia, passa a ser vista como uma prática ‘normal’ por todos aqueles que dividem um mesmo habitus precário; gente precarizada em diferentes níveis. Aqui, onde não se excetuam doutores, padres ou policiais precarizados em alguma medida, onde os olhos das instituições não enxergam, vale qualquer tipo de barganha. Tivessem sido essas pessoas submetidas a regras pré-modernas e vivendo em sociedades no mesmo padrão – uma sociedade indígena, ou outra – elas dificilmente teriam sofrido processo semelhante, de amalandramento. Neste tipo de sociedade os imperativos são outros, e as formas de exclusão são outras, fazendo com que os imperativos da modernidade não façam o menor sentido. Mas se a modernidade ali chegasse, com seu código moral classificatório, buscando homogeneizar os indivíduos sem criar simultaneamente as condições para tal, muitos de seus habitantes, a exemplo do que aconteceu no caso brasileiro, talvez encontrassem na malandragem um código alternativo de conduta social. Daí a irrefutabilidade do argumento de que é nos imperativos modernos que se encontram a resposta para o processo de amalandramento de grupos inteiros de indivíduos brasileiros. A inconclusão da lição de casa está na raiz do problema, e a aceitação deste argumento não é tarefa das mais dolorosas para aqueles indivíduos que, de alguma, em que pese originarem-se das mais diversas classes sociais, já vivenciaram tal experiência. A precarização moderna, que favorece o aparecimento do fenômeno da malandragem, embora mais explícita e evidente, não é determinada única e exclusivamente pela questão econômica e nem a ela está restrita; seus tentáculos alcançam todos os aspectos da vida, dos mais diversos segmentos sociais.

91 A quem se reserva a malandragem? Exemplo empírico do que se está procurando sustentar aqui aparece em 1917, quando a malandragem começa a aparecer também como atividade lucrativa para o mercado competitivo que ensaia relativa expansão. Numa das obras emblemáticas do compositor carioca Ernesto do Santos, conhecido como Donga, autor de “Pelo Telefone” (primeira canção registrada como samba), o artista entoava: “O chefe de polícia/Pelo telefone/Mandou me avisar/Que na carioca/Tem uma roleta/Para se jogar”... O respeitado chefe de polícia, precarizado em algum nível – porque em débito, em alguma medida, do aprendizado moral moderno –, e o malandro assumido, precarizado em vários níveis, criavam um código comum de conduta que perpassava os limites das instituições legais. O ‘anúncio’ feito pelo chefe de polícia ao malandro sobre uma intervenção da polícia no ambiente de jogatina denunciava o debute da escancaração de um instrumento que encontravam para impor o seu estilo de vida, frente a uma modernização incompreendida pelos mais diversos segmentos sociais, e que se tornava a singularidade social desses indivíduos em particular, ameaçando se transformar num habitus. O malandro feito e declarado não precisa dar explicações: assumiu a sua condição precarizada e com ela quer estar. Ele prefere usar as armas que tem para dar-se bem, por isso se acha no direito de fazer acertos com o chefe de polícia – indivíduo este que até poucas décadas atrás acumulava também o cargo de prefeito. A modernidade tentou lhe convencer daquilo que é certo e errado, e ele não desacata de todo a sua imposição, mas não deixa de consultar sua singularidade social, e é esta quem dá a palavra final. Daí porque se costuma dizer que a malandragem é o meio do caminho entre certo e errado, justamente porque para ela não existe esse maniqueísmo, e a flexibilidade é a sua regra. Logo, o malandro declarado e assumido, fará parte daquilo que Souza (2006)109 chamou de “ralé estrutural”, enquanto o venerado chefe de polícia, transformado em classe média, se safará ao entrar culturalmente privilegiado no jogo da competição moderna.

109 Cf. SOUZA, Jessé. Op. cit.

92 Este chefe de polícia é um indivíduo não está suposto para agir dessa forma, e sim, segundo os padrões modernos de civilidade, afinal não é respeito e reconhecimento que lhe faltam. Seu procedimento revela o retrato mais bem acabado do homem cuja noção da moralidade moderna avançou em determinados pontos, mas não em outros. Este homem foi precarizado em alguma medida, embora guarde em seu imaginário distante uma noção dos limites do que é certo e errado nos moldes dessa moralidade. Daí porque ele aceita o código classificador da hierarquia moderna para prender e punir outros homens, de ‘evidentes sinais de primitividade’, ao mesmo tempo em que se confunde com este ao agir como ele, ao entrar no ‘jogo da malandragem’. Hoje ele é o chefe de polícia, amanhã será o policial que aceita propina para não punir um eventual motorista infrator, ou o chamado ‘delegado de porta de cadeia’, o juiz que ‘vende sentenças’, o patrão que escraviza trabalhadores brutalizados, o médico que atropela um pedestre e foge sem socorrê-lo. Enfim, ele será muitos e terá inúmeros rostos, distribuídos em meio a uma classe média igualmente precarizada, embora não transformada em ralé. Da mesma forma, são também estes indivíduos precarizados, ricos ou pobres (geralmente ricos), que formarão as bases da cultura política brasileira, fazendo minguar as bases de um republicanismo de fato. Por isso não se incomodarão, também eles, em atuar ao largo das instituições para fazer valer seus mandos e mandatos e isso explica muito da sensação açodada do essencialismo culturalista de que ‘nenhum indivíduo’ estaria livre do crivo da malandragem no Brasil. Daí porque este tende a apontar a esta como uma característica inata que, como nossos braços e pernas, teria nascido conosco. Mas isso é um equívoco e a pergunta que se deve fazer é se seria o ‘acerto’ realizado entre o respeitado chefe de polícia e o malandro assumido uma regra universalmente válida para todos os chefes de polícia do país, ou para a maioria destes profissionais. Teria o respeitado chefe de polícia guardado as supostas características antiéticas, malandras, dos tetravôs de seus trisavôs portugueses, gente supostamente oposta ao trabalho árduo, e de quem este indivíduo jamais ouvira falar, não sabe de onde veio e nem guarda a menor saudade? Além disso, estariam outras sociedades modernas totalmente livres de fenômeno semelhante?

93 Obviamente que não, e esta posição que se defende aqui, em alguma medida, pode muito bem estar em sintonia com aquilo que Antonio Candido chamou de “dialética da ordem e da desordem”, e ao que já se fez referência anteriormente – e que em muito vai de encontro ao conceito de hegemonia gramsciano –, ou seja, um quadro de antagonismo de classes historicamente determinado, que avança até se transformar num caldo de cultura, na singularidade social, no ‘modo comum’ de ser, do indivíduo precarizado, feito malandro pela modernidade.110 Não obstante, ainda que não seja objeto desse estudo realizar a crítica do pensamento materialista, não se pode deixar de registrar que a própria crença vulgarizada pelo pensamento marxista de que a malandragem origina- se como uma recusa aos ditames das regras, injustiças e iniqüidades do capitalismo, tampouco consegue explicar com profundidade esse tipo de relação. Ao heroicizar o malandro como costuma fazer, pela via da explanação economicista do antagonismo de classes, das relações de causa e efeito por elas próprias, deixa de dizer como, de fato, se explica o amalandramento de diferentes classes sociais, acabando por contribuir, a exemplo do essencialismo culturalista, com o ‘caráter mágico’ do aparecimento do fenômeno da malandragem. Isso é terrível, pois, sem querer, contribui, em alguma medida, para ‘manter o malandro em seu lugar’.111

110 CANDIDO, Antônio. A dialética da malandragem. In “Memórias de um sargento de milícias”, de Manuel Antônio de Almeida. Edição Crítica de Cecília de Lara. Rio, Livros Técnicos e Científicos Editora, 1978. p 67/89, passim. 111 Katie Arguello argumenta que “o que para Marx é determinação econômica, para Weber é interesse. Não que Weber tenha negado a importância do econômico; ao contrário. em muitas passagens de sua obra esse fator emerge como sendo o mais importante. O que ele tenta explicar é exatamente aquilo que ultrapassaria o aspecto econômico, isto é, o fato de o homem atribuir um sentido à vida, de ser racional”. ARGUELLO, Katie. O mundo perfeito: nem possível, nem desejável. In SOUZA, Jessé. O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultura brasileira. Brasília: UnB. 2000. p. 149. Ainda a esse respeito, Michel Lowy, notável intelectual marxista brasileiro radicado na França, proferia uma fala na 31ª Anpocs (Encontro Anual de Ciências Socias), em 2007, na qual reconhecia o papel crítico de Weber com relação ao capitalismo A diferença básica entre as duas perspectivas, segundo Lowy, reside no fato de o marxismo atuar energética e radicalmente contra esse sistema de produção, enquanto o segundo faz a crítica com certo romantismo e, talvez por isso, tenha sido capaz de ir além do aspecto econômico, do revisionismo, da crítica, desde os primórdios. O que antes era para ser uma crítica realizada cegamente pelo pensamento materialista, leia­se, o entendimento de mundo weberiano, agora precisa ser revisto por este mesmo pensamento, para que não se ‘jogue o bebê fora com a água do banho’.

94 Neste sentido, Carvalho diagnostica o fenômeno mais realisticamente, sustentando que, entre nós, “o próprio Estado é malandro... cobra taxas e nunca as devolve em serviços”112. A título de reflexão sobre o “nosso comportamento malandro”, o historiador classifica o cidadão brasileiro em quatro tipos básicos:

1) os ricos, os políticos, os empresários e os burocratas de alto escalão, que estão “acima da lei”, e para quem a transgressão é a norma; 2) subcidadãos, marginalizados do campo e das metrópoles, que estão abaixo da lei, que para eles é apenas um inimigo na figura do policial arbitrário; 3) a classe média baixa e trabalhadores com emprego formal, que não podem fugir da lei, a respeitam e temem, mas que tem dificuldade de acesso a ela; 4) a classe média-média, que tem a relação mais ambígua com a lei, porque percebe com clareza a transgressão dos outros, sobretudo dos políticos, mas, como a vê violada acima e abaixo, também a burla quando e como pode. 113

Ainda assim, o autor parece não conseguir se livrar da mesma armadilha em que caem as linhas de pensamento marxista e culturalista acima descritas. Em sua observação, também as regas da malandragem aparecem como universalmente consagradas e não há meios de contorná-la, pois parece estar ‘inscrito em nosso DNA cultural’. Também aqui, em que pese a costumeira sobriedade das análises desse autor e sua indispensável contribuição para o avanço das Ciências Sociais e da História, não aparece uma reflexão mais aprofundada que permita imaginar seriamente como nasce a malandragem. Parece mais prudente verificar que a modernidade, que, ao contrário da malandragem, está inscrita no DNA dos indivíduos brasileiros, demanda dos indivíduos um aprendizado que requer as pré-condições necessárias para que compreendam a sua própria realidade social e, somente a partir daí, possam de fato transformá-la para seu proveito próprio e da coletividade. A malandragem não se apresenta meramente como uma forma de insubordinação dos pobres ao poder estabelecido; o problema é mais profundo. Todos esses indivíduos, do chefe de polícia acima descrito ao malandro declarado, têm em comum o fato de estarem em débito moral com a modernidade em alguma medida, ainda que não venham a se precarizar em todas as instâncias da vida: econômica, social, cultural ou politicamente. Se

112 CARVALHO, José Murilo de. Escândalo é o único meio de punir os poderosos. O Estado de SP. 02/09/2007. 113 Ibidem.

95 assim não o fosse, não se justificaria o ‘enquadramento’ do chefe de polícia na ‘moral malandra’, um indivíduo respeitado e bem sucedido econômica e socialmente. O que se vê aqui, mas que é difícil enxergar na sua totalidade seguindo meramente os apelos gramscianos, é que certas características da malandragem passam a se esparramar para diferentes camadas da sociedade, numa construção cultural e simbólica que distingue socialmente os indivíduos precarizados daqueles moralmente admitidos. Não será outro elemento que permitirá a um indivíduo precarizado, digamos, politicamente, conceber como normal a via paralela às instituições, num caso, condenando essa posição noutra situação. Essa é a singularidade da modernidade tupiniquim, que, por conta de uma homogeneização que não ocorreu, precarizou muito de sua gente. Ao distanciá-la demasiado dos direitos de cidadania, fez perder de vista não somente a noção do “bem comum” republicano, mas, sobretudo, permitiu que ela encontrasse na malandragem a sua norma, a sua singularidade social mais bem acabada.

96 Capítulo 4 Dissonância entre trabalho e malandragem Tupy or not tupy; that is the question Oswald de Andrade, escritor modernista (1922)

Nenhum outro elemento sofrerá maior oposição da malandragem do que o trabalho, afinal é nele que assentam as bases de todo julgamento moral classificatório moderno. O trabalho é responsável por toda forma de reconhecimento social que permeia a construção das relações sociais no mundo competitivo moderno114, daí que no mundo alternativo da malandragem ele representará exatamente a negação desse papel, no momento de desclassificação natural desses indivíduos ao adentrarem a hierarquia moderna. É fato que durante os primeiros quatro séculos da vida brasileira, quando da ordem anterior, o grosso da população daqui não aprendera a enxergar no trabalho uma virtude. Á época, este não representava um valor capaz de transformar positivamente a vida das pessoas, de aproximar mais igualitariamente os indivíduos dessa sociedade. Ao contrário, ele denegria e as pessoas se avexavam em encontrar alguém para realizá-lo. Praticamente todos, do escravo posto livre ao homem sem posses, buscavam um substituto para realizar a sua labuta, desde que fosse sem prejuízo de seus ganhos. Essa relação deveria ser invertida, entretanto, com o relativo avanço da modernidade e de suas instituições ao longo do século XIX. Ocorre que cabe aos indivíduos livres e feitos livres – “os negros de alma branca” –, realizar as

114 “Na antiga Roma, os cidadãos viviam em uma condição de não­trabalho. Os únicos indivíduos que eram submetidos ao “tripalium”, instrumento romano de tortura com três pontas, eram os presos e os escravos. Do latim “tripalium” originou­se a palavra trabalho. O termo trabalho apareceu na idade Média (século XIV), e o seu significado continuava relacionado de alguma forma a sofrimento. Por exemplo, dizia que uma mulher no parto “trabalhava”, e referir­se a alguém que viu o fim de seus trabalhos“ significava que ele havia passado para o outro mundo depois dos sofrimentos na Terra. Nesse período, até o século XVIII, a sociedade feudal estava estruturada em camadas, chamadas “estados”, e o trabalho era monopólio do terceiro estado, no qual estava o povo. O primeiro e o segundo estados que compreendiam a nobreza e o clero tinham a obrigação de não trabalhar. ” DIAS, Reinaldo. Op. cit., p. 260. A modernidade muda radicalmente o conceito de trabalho, apresentando­o como um elemento capaz de dignificar o ser humano que se dispusesse a realizá­lo, e o Brasil moderno não ficaria incólume. Daí que a perspectiva para análise do fenômeno da malandragem (e de tantos outros), que envolve necessariamente o trabalho, não pode se dar sob a ótica culturalista da pré­modernidade.

97 tarefas laboriosas dele e dos outros, o que antes era feito pelo escravo. Isso vai levá-lo a não avançar com relação ao seu sentimento anterior pelo trabalho.

O trabalho e a práxis da malandragem Para estes homens e mulheres desqualificados na nova ordem, não seria agora que o trabalho faria sentido. Ainda assim, Barbosa diz que “o brasileiro livre ou liberto só trabalhava quando precisava e não quando os outros necessitavam de seus serviços”115. Essa é uma posição com a qual o presente estudo conflita. Segundo a autora,

[...] no ‘sistema de valores da cultura ibérica’, a dignidade e o status de um homem estavam mais relacionados à sua ociosidade do que à sua ocupação. A moral fundada no culto ao trabalho sempre pareceu repulsiva aos ibéricos, como enfatiza Sérgio Buarque em Raízes do Brasil: “uma digna ociosidade sempre pareceu mais nobilitante a um bom português, ou a um espanhol, que a luta insana pelo pão de cada dia”. O homem ibérico, segundo o autor, não se vê representado pelo trabalho manual e mecânico. A atividade produtora é sempre menos relevante que as atividades do espírito contemplativo, mas não do especulativo. Portanto quem não era forçado a trabalhar o fazia apenas o absolutamente necessário, visto que nenhum benefício adviria de qualquer atividade.116

Não é que o homem simples brasileiro carregue uma ‘ojeriza intrínseca’ à idéia de trabalho, como já insinuou por mais de uma vez o pensamento iberista, mas esse sentimento se aflora no momento da desclassificação natural desses indivíduos ao adentrarem uma hierarquia moderna que não acontece em sua plenitude. Nunca é demasiado repetir que não há entre nós, até o processo de modernização de nossa modernidade, um sistema de classificação meritocrático. Parece mais sensato perceber que, trabalhasse ou não o indivíduo, desse ele ou não o melhor de si, ele valeria a mesma coisa, ou até menos, dependendo da função que desempenhasse. Evidentemente, até aqui, não existe a lógica darwinista do mercado que diz que somente os melhores sobreviverão. Inexiste, portanto, o incentivo à produtividade no plano individual, mas o desprezo pelos ‘de baixo’, por aqueles que desempenham funções ‘menos nobres’, nunca foi segredo neste País. Negar o fato é achincalhar a imaginação.

115 BARBOSA, Lívia. Op. cit., 67. “Grifo nosso”. 116 Ibidem, p 67.

98 Não é que o trabalho fosse ainda identificado como uma coisa de escravo, com as relações verticalizadas, autoritárias e excludentes que suas funções implicavam, e que por isso ninguém quisesse se identificar com essa forma aviltada de existência humana, como já se acreditou. Não é que trabalhar para alguém ainda fosse identificado com a escravidão, mesmo depois de superado aquele modo de produção servil, uma vez que ali a produção era realizada por escravos e para os homens livres brutalizados restavam apenas os chamados serviços residuais. O fato é que a história desses indivíduos não será construída sobre uma ética do trabalho, nos moldes da modernidade clássica, onde essa prática deveria dignificar, mas, ao contrário, sobre a sua mais absoluta negação. Até a modernização da modernidade brasileira (1930), o trabalho não dignificava, portanto não ‘valia à pena’. Depois disso, ele passa a dignificar, mas somente aqueles que contavam já, ou que contariam a partir dali, com capital cultural diferencial, indicando, do mesmo modo, continuar não ‘valendo à pena’ para os demais. É exatamente a introdução do modo de produção regido pelo mercado competitivo que precariza os homens e mulheres brasileiros simples dessa sociedade e, a partir dessa condição, estes indivíduos continuarão atribuindo ao trabalho uma conotação fundamentalmente negativa. Antes dessa fase vigorosa da modernidade, o trabalho já era visto com reservas, justamente por não apontar para a possibilidade de vida melhor de quem o realizava. Pelo mesmo motivo, o desenrolar da modernidade entre nós, será incapaz mesmo de mudar o sentimento com relação ao trabalho que se tinha por aqui. Em que pese a introdução da modernidade entre nós em princípios do século XIX, a produção de coisas e a base de sustentação da vida material é mantida sobre o trabalho escravo. Já à época desse sistema de produção – um sistema de dominação de homens sobre homens, e não de brancos sobre pretos, pois todos podiam ter seus escravos –, os indivíduos, pobres e ricos, concentravam esforços para obter um escravo, para que este atuasse nos serviços domésticos, ou em qualquer outro que lhes liberasse de tamanho rebaixamento e lhes reservasse tempo livre para a gandaia, para a zoeira, para a quizomba, para o descanso ou qualquer outra atividade que não implicasse cumplicidade com o trabalho, já que este não sinalizava valer à pena. Já ali,

99 essa atividade, porque ligada à escravidão, ficava moralmente rebaixada, tanto mais que o próprio alforriado via com simpatia a oportunidade de ter um cativo lhe poupando do ultraje do batente, tal qual fizera com ele seu antigo Senhor e mandão. Com o desenrolar dos imperativos modernos e a queda do modo de produção escravo, isso já não é mais possível para aqueles que não haviam sido qualificados no filtro moral da modernidade; eles já não podem mais contar com esse subterfúgio para se realizar via o trabalho. Na modernidade cabocla, o trabalho avilta a todos os ‘não devidamente enquadrados’ – até porque não existe ainda esse enquadramento, que somente chega com a modernização –, colocando-os de lado, até que possam provar o seu merecimento social. Daí porque o trabalho que lhes tinham a oferecer, o único para o qual a grande massa de brasileiros simples se qualificava, era feio, não era meritório e não dignificava e, em pouco se diferia daquele outro realizado nos 354 anos de vigência do modo de produção anterior. O que se vê a partir dali é não somente uma desmoralização absoluta dessa atividade, mas ainda um desprezo concomitante pelos que trabalham rudemente. Por muito tempo, a modernidade singular brasileira nega ao homem trabalhador – lavrador, colono, estivador, operário, doméstica, ferreiro, etc. – salários mais justos, compatíveis com a dignidade humana e com os quais pudesse sustentar dignamente a si e a sua família; salários que crescessem de acordo com os ganhos do capitalista em ascensão, como, por exemplo, no sistema progressista lincolniano, e fizessem com que o trabalhador se sentisse respeitado em alguma medida e que o preparasse para a modernização competitiva que se aproximava.117

117 Durante a Guerra de Secessão, o governo de Abraham Lincoln, entre outras medidas de caráter progressista, concedeu fazendas aos colonos e reservou terras para escolas que mais tarde tornar­se­iam universidades estaduais. A esse respeito, Kal Marx disse, em mensagem da Associação Internacional dos Trabalhadores ao presidente Abraham Lincoln dos Estados Unidos, por ocasião da sua reeleição: “os operários da Europa sentem­se seguros de que, assim como a Guerra da Independência Americana iniciou uma nova era de ascendência para a classe média, também a Guerra Americana Contra a Escravatura o fará para as classes operárias. Consideram uma garantia da época que está para vir que tenha caído em sorte a Abraham Lincoln, filho honesto da classe operária, guiar o seu país na luta incomparável pela salvação de uma raça agrilhoada e pela reconstrução de um mundo social.” Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/marx/1864/11/29.htm#tn13. Acesso em 12.06.2008.

100 Qualquer outra atividade, prostituição, jaguncismo, cangaço (mais tarde, tráfico de drogas, camelotagem, pedintarismo, etc.) se não mais dignificantes, ao menos garantiam renda maior ao indivíduo que se prestasse a elas. Embora represente a maior das malandragens já criadas pelo homem, o capitalismo (e não exatamente a economia de mercado vigente hoje no mundo moderno), que permite a extração de parte do produto do trabalho do trabalhador por quem não trabalha, pelo capitalista, ainda não se mostrava como sendo a forma mais bem acabada de produção de coisas e de ‘enquadramento social’ do homem moderno. Durante os setenta anos do império brasileiro e parte significativa da República nacional, o indivíduo precarizado do sexo masculino que não consegue conquistar espaço e respeito através do trabalho – fundamentalmente rural, até ali –, naquele mundo hierarquizado, terá a possibilidade de ser forçadamente recrutado para os corpos de milícias organizados pelos proprietários rurais ou, ainda, pelo exército. Quando a modernidade supera esta fase de improdutividade, no campo econômico, e, no campo político, manda prender os coronéis, a partir dos anos de 1930, a questão se agrava, particularmente no meio rural, pois não se introduzem formas de proteção social que apontassem com a perspectiva de garantia das condições morais e materiais de vida e de mobilidade social para atender as necessidades destes segmentos. A saída para estes trabalhadores passará pelo êxodo rural em busca da CLT varguista, do salário mínimo, da redução da jornada de trabalho, de descanso semanal, que, embora ficasse reservada somente aos povos urbanos que estivessem filiados ao sindicato oficial, reconhecido por um governo que reprimia os sindicatos independentes e combativos, em alguma medida sinalizava com um sentido mais positivo do trabalho. O que não se pode perder de vista é que toda a movimentação dessas pessoas não se dá por outro motivo que não buscar trabalho e dignidade, mas nem sempre os encontram. Antes disso, entretanto, se já não era explicitamente coisa de escravo, se não necessariamente se identificava com a rudez do imigrante que substituíra o cativo nas fazendas brasileiras ao longo da segunda metade do século XIX, o trabalho moderno não eleva o trabalhador à condição de gente.

101 “Essa concepção [negativa] do trabalho”, insiste Barbosa, “sempre esteve na raiz das relações dos homens livres com nosso sistema produtivo”118. Isso também não parece de todo válido. Tanto antes quanto depois da experiência trabalhista, o trabalho aviltava e desmoralizava aqueles que somente contavam com o corpo para adquirir coisas, para trocar por recursos escassos, e para angariar respeito e dignidade social. E é, pois, na resistência a estas formas modernas periféricas de precarização pela via do trabalho que se manifesta a forma da malandragem, enquanto alternativa de sociabilidade e de aquisição de respeito. Dentro da ordem periférica do trabalho, o trabalhador brutalizado, superexplorado que o é justamente por não amoldar-se aos imperativos da modernidade, está fadado ao infortúnio, enquanto fora das rédeas do trabalho, o ‘malandro’ tem mais chances de levar ‘vantagem’ e ‘dar-se bem’. Ainda assim, olhares pouco cuidadosos dirão que “o grande pecado do brasileiro é achar que é uma pessoa que deve ser tratada de modo especial. Essa coisa de querer levar vantagem em tudo é encarada seriamente pela maioria” (DaMatta, 1988)119. A afirmação, embora nos preencha com a sensação de que se trata de uma leitura gramatical de nosso comportamento, parece demasiado genérica e vazia de conteúdo. No vácuo de modernidade que se seguiu à introdução dessa doutrina por aqui, na ausência de um aprendizado moderno fundado na igualdade entre os homens e mulheres da nação, esse aprendizado alternativo, da malandragem, do jeitinho, da esperteza, cria as condições para o florescimento de uma sociabilidade da malandragem. É muito mais nele do que naqueles criados pelo trabalho precarizante que se identificará também o homem simples brasileiro, e onde assentará a sua oportunidade última de prosperar e de ser feliz. Este novo código social, a malandragem, apresenta-se assim, como uma escapatória que lhe prometia poupar do vexame daquela atividade malquista; uma forma de se desvencilhar dela; uma cultura própria, uma maneira particular de organização e autodefesa, na ausência do aprendizado moral moderno.

118 Ibidem, p. 167. 119 DAMATTA, Roberto. “Anúncios apontam os ‘pecados’ brasileiros”. Entrevista, Folha de SP. 03/07/88.

102 A partir dali, muitas seriam as maneiras que ele, o trabalhador precarizado, encontraria para fugir da dureza de uma atividade com a qual se recusava a se identificar. Mais digna do que o trabalho seria a própria batucada entre amigos, as festas e os encontros na praia, que começariam a aparecer, já em finais do século XIX, como espaços de sociabilidade e de lazer. Daí que passa a ser visto como ‘otário’ quem trabalhasse em condições precarizadas, aqueles que não conseguissem se livrar de tamanho estigma. Dessa perspectiva resulta que esperto passa a ser aquele que consegue se safar dessa atividade e se aproveitar do produto do trabalho de outrem, vivendo à custa deste, mais ou menos como o faz o capitalista. Aceitar o argumento contrário, aquele que bifurca entre a via culturalista e o ‘senso comum’ e tenta nos convencer que está no espírito do brasileiro uma tendência à fugir do trabalho, e tantas outras explicações mágicas de falso fundo científico, equivaleria a repetir velhos clichês e acolher o engodo de que toda a população brasileira se amalandrara, o que terminantemente não foi o caso. O senso comum reproduz o que a academia determina como válido, pois ele traduz-se num juízo de valor, como diz Reinaldo Dias, “nem sempre assentado em premissa de fato comprovada, ao modo como as pessoas, de modo geral, abordam um problema, um fato social, fazendo-o sem nenhuma profundidade, baseando-se na primeira impressão que têm sobre o fenômeno. Surge daí um conjunto de crenças que as pessoas passam a ter em comum, sem ter feito nenhuma abordagem sistemática e organizada de verificação da realidade “120. O resultado pode ser desastrosamente pernicioso, como a geração de um sentimento generalizado de que, por exemplo, não se é digno de cidadania, quando se é ‘naturalmente malandro’.

O trabalho que não dignifica Não existe um malandro brasileiro que “habita cada um de nós em cada canto do país”, e que “dá sentido à nossa sociabilidade”, como já se quis fazer acreditar. É fantasioso pensar que a malandragem representa um traço característico da vida nacional, como já se tentou mostrar. A malandragem nem de longe é um produto genuinamente nacional, uma tendência natural nossa,

120 DIAS, Reinaldo. Op. cit. p. 34.

103 que “marca a palpitação da vida brasileira”121, ao contrário do que vemos aprendendo desde que nos formamos sob os ditames modernos. Afinal, em que pese a incompletude dessa doutrina por aqui pela quase totalidade de sua existência, desde muito cedo, fôramos modernizados e, nesse contexto avassalador, é o trabalho que, em menor ou maior escala, rege a conduta de vida das pessoas. Posições e pesquisas menos conservadoras têm mostrado muito freqüentemente que as pessoas daqui são muito trabalhadoras, muito embora não tenham se acostumado historicamente a transformar condições aviltantes de trabalho e de salários em protestos políticos e este talvez tenha sido o maior de seus erros.122 Neste gap, o protesto se transforma em malandragem e o resultado é desastroso para os direitos de cidadania modernos. Como se sabe, é a prática do trabalho uma das condições que inscrevem os indivíduos na hierarquia classificatória moderna e, por isso mesmo, independe da vontade individual de cada um. Exatamente por isso a negação da ordem do trabalho não deve ser tomada sob um olhar preconceituoso. A nossa falha foi de falta de homogeneização do ‘tipo humano moderno’ entre nós, para uma maior completude do modelo moderno de dominação, já que se optou por esse modelo de organização social, dentre outros possíveis. Outras sociedades, e a sociedade norte-americana é ilustrativa disso, para ficar num exemplo genuinamente das Américas, puderam contar com movimentos de resistência frente a degradação do status social do

121 VERÍSSIMO, José. Um velho romance brasileiro, apud Manoel Antonio de Almeida. Memórias de um sargento de milícias. Editora Crítica de Cecília de \lara. 1978. P. 291. 122 A revista VEJA publicou uma pesquisa em sua edição de número 720, no início do ano de 1996, que envolvia 2.000 pessoas em praticamente todos os estados brasileiros, onde se revelava que os entrevistados consideravam a malandragem um mal a ser extirpado da sociedade brasileira e que o trabalho e o esforço pessoal eram duas das principais características dessa sociedade. A conclusão da pesquisa é que o povo brasileiro é trabalhador, esforçado, sério, honesto, confiável, orgulhoso e otimista a respeito do futuro do país. Um ano mais tarde, a Revista Seleções publicaria uma pesquisa de campo realizada em 0o grandes cidades do País para avaliar quantitativamente o nível de honestidade do brasileiro. Uma carteira contendo dinheiro, dados e identificação do proprietário era depositada sobre uma calçada, com o objetivo de verificar se o indivíduo que a encontrasse seria levado a devolvê­la. O resultado é que o percentual de devoluções esteve muito próximo dos Estados Unidos e do Canadá, variando entre 60 e 70%, acima da Europa que obteve 58%, e da Ásia, com 57%.

104 trabalhador em função do tipo de trabalho que ele realizava, mesmo admitindo a dominação moderna. Nos Estados Unidos, embora também este país viesse a apresentar a sua versão do malandro, representado pelo trickster, se formaram comunidades e movimentos chamados utópicos, que tinham uma visão de mundo onde todas as pessoas deveriam ser respeitadas, não somente, mas também pelo trabalho que realizavam. Para estes movimentos, aqueles que trabalhavam por longas horas em trabalho duro não poderiam sofrer desprestígio social e moral e estar condenados à pobreza material e de espírito por serem trabalhadores. Estes movimentos, embora nem sempre se identificassem com os imperativos modernos, contribuíram em grande medida para a construção dos valores americanos, particularmente aqueles em que se enfatizam a necessidade de se trabalhar duro pela democratização da sociedade e por maior igualdade entre os homens. Algumas comunidades, tais como a Northampton Association, em Massachussets, foram formadas por abolicionistas radicais, que denunciavam os horrores da escravidão e trabalhavam pelo fim desse sistema. Outras, como a Brook Farm, também no Estado de Massachussets, foram comunidades compostas de artistas, intelectuais e pequenos fazendeiros. Esta última se estabeleceu nos idos de 1840 e se fundava numa perspectiva humanista do mundo, buscando quebrar as barreiras entre as classes sociais e por fim à separação social e econômica entre o trabalho físico e mental, de forma que todas as pessoas pudessem desenvolver todo o seu potencial enquanto seres humanos, evitando a sua precarização.123

123 O renomado escritor norte­americano Nathaniel Hawthorne foi um dos fundadores do Movimento Transcendentalista. Este movimento se traduzia em uma corrente literária, artística e religiosa relacionada ao Romantismo europeu e que enfatizava a importância da vida simples e a necessidade de reaproximação dos homens com a natureza. Essencialmente humanistas, os Transcendentalistas acreditavam em valores espirituais para além dos valores materiais, mas ainda assim, aceitavam a Razão e o papel da ciência como imprescindíveis para a vida do homem moderno. De acordo com o seu fundador, George Ripley, o objetivo da Brook Farm era permitir uma interconexão entre o trabalho intelectual e o manual, combinando o trabalhador e o pensador num só indivíduo, de forma a assegurar o maior uso das possibilidades mentais dos indivíduos. Os talentos individuais de cada indivíduo seriam explorados de acordo com os gostos de cada um e não em função das exigências do mercado e coisas do gênero. Isso somente seria possibilitado num ambiente onde aqueles que não trabalham não se sentissem no direito de expropriar o produto do trabalho, fosse este manual ou intelectual, das mãos daqueles

105 No Brasil, em que pese a pressão política exercida pelos abolicionistas na segunda metade do século XIX, a luta anarquista dos anos de 1920 e a perene pressão camponesa pela propriedade da terra, não se encontram registros de movimentos semelhantes nestes termos. Entre nós, a luta organizada dos ‘de baixo’ parece dar-se muito mais sob um viés socializador- economicista e muito menos particularista, e nada há de mal nisso. Ocorre que essa luta, em que pese sua contribuição enquanto manifesto popular e sinalização civil de descontentamento, não sai vencedora e, embora deixe sua marca na introdução dos direitos sociais de cidadania, colocados em prática na era Vargas, contribui em menor escala para o aprimoramento dos imperativos modernos. Daí porque questões como o aprendizado dos valores burgueses, refletidos na universalização da educação, figurarão majoritariamente na marginalidade das reivindicações desses grupos de pressão, salvo evidentemente aqueles liderados por Francisco de Campos e de seus seguidores, a partir desse momento. A conquista dos direitos sociais não é suficiente para preencher a vida dos indivíduos com reconhecimento social e respeito, para atender aos imperativos modernos, e parece ser esta a compreensão que faltou aos movimentos acima mencionados em prol da população trabalhadora precarizada. O entendimento generalizado de que a questão econômica se sobrepunha às demais parece ter sempre pautado o imaginário desses movimentos, e esse foi um desacerto que abrangeu os mais diversos segmentos sociais desde sempre no Brasil. Como conseqüência, esta enorme parcela da população brasileira que não encontra na modernidade os meios de reconhecimento social, particularmente em sua fase modernizante, e tão somente ela, justamente por ser considerada ‘socialmente inútil’, vai abominar a valorização da recompensa do trabalho individual e contínuo – que tem muito a ver com os direitos civis (de liberdade e igualdade) capengas no Brasil desde sempre –, do mérito como parâmetro esquematizador de suas vidas – embora os fundadores das

que trabalham. Muitos das demandas desses Movimentos seguiam na direção contrária aos imperativos modernos, mas em outros coincidiam, contribuindo para “lapidar e humanizar” em alguma medida racionalidade dessa doutrina.

106 comunidades norte-americanas acima citadas não concordassem integralmente com a ideologia meritocrática por ela própria e com tantas outras. É exatamente esta relação perversa, do entendimento da prescindibilidade do direito civil, da liberdade e da igualdade, da livre iniciativa nos mais diversos aspectos da vida coletiva, que deixará seqüelas profundas no modo pelo qual essa parcela da população conceberá o mundo, em sua forma de pensar e agir, do modo singular pelo qual vai apegar-se ao seu mundo particular, desprezando o quanto pode a idéia de “bem comum” e quaisquer outras que não sejam de seu próprio interesse. Sem esse direito, o sentido da ‘dominação consentida’ desaparece, desaparecendo também a percepção do longo caminho para a cidadania. A percepção dos direitos dessa cidadania permanece em outro patamar, muito mais entendida como um fenômeno reservado a alguns ou a alguns grupos do que ao conjunto da sociedade.

Malandragem, “bem comum” e democracia

Para além de seu círculo restrito de apego, o candidato a malandro não encontrará muito sentido na idéia, de solidariedade, de “bem comum” 124, onde assenta todo e qualquer princípio republicano, e o que indica que a República que estava por vir poderia carecer desse aspecto. “Se a própria criatura põe o “bem comum” acima de seus interesses individuais”, explica o zoólogo liberal e teórico do “gene egoísta”, Matt Ridley, esclarecendo estar a noção de “bem comum” presente também nos instintos de outras espécies de primatas e de outras categorias de animais, “é porque seu destino está inextricavelmente ligado ao do grupo; partilha o destino do grupo”125. A idéia central contida no argumento atomístico do autor é o de que, para sobreviver, um grupo de

124 O recorte mais aproximado da idéia de “bem comum republicano” utilizado aqui é aquele do qual tratam o (neo) republicanistas, mesmo que assenta na crença de que a própria idéia de “Res pública” traz em seu bojo uma preocupação permanente com o bem­estar das pessoas, independentemente do modo de produção em que se insere o grupo humano. Para esse pensamento, a democracia, justamente por ser o sistema que mais aproxima o povo do poder, é de fundamental importância e a sua negação acaba sendo a negação da própria idéia republicana. Nesse entendimento, a mera separação técnica dos poderes e a aplicação das leis, não caracteriza a República como Res publica, mas como mero instrumento de reprodução dos vícios sociais pelo próprio Estado. 125 RIDDLEY, Matt. As origens da virtude – um estudo biológico da solidariedade. RJ. Record. 2000. p. 51

107 animais seria obrigado a balancear comportamentos egoístas, necessário para a sobrevivência de cada membro, com comportamentos altruístas, necessários para manter a coesão do grupo. Os seres humanos não escapariam desse comportamento instintivo, embora sejam animais um tanto mais exóticos que os demais. A explicação um tanto ‘mágica’ de Ridley, por mais bem-intencionada que pareça, não nos ajuda a entender porque os grupos precarizados e os mandões da modernidade periférica brasileira não se dispuseram a “balancear seus comportamentos egoístas” e acabaram por distanciar-se da noção do “bem comum” republicano. O fato é que, como se sabe, cabe a uma instância superior chamada Estado democrático balançar esse interesse egoísta que habita o coração de cada homem e as instâncias que este mesmo homem constrói, e que envolvem o trabalho e a produção de coisas e do próprio sentido da vida, de forma a contrabalançar o próprio equilíbrio social e promover o bem coletivo, no mais radical sentido do termo que é o republicanista. A modernidade ensina que somente através do trabalho podemos transformar a natureza – o que nos difere fundamentalmente de outros animais, primitivos – e, por extensão, o mundo em que vivemos, mas não só. Também os destinos da coletividade dependem do trabalho de cada indivíduo, para que, coletivamente se possa desembocar no “bem geral”, no “bem comum”. A esperança institucionalista dos homens que idealizaram a República no Brasil, particularmente do monarquista Joaquim Nabuco e de notáveis republicanistas, tais como, André Rebouças e Silva Jardim (e, em alguma medida, dos trabalhistas, mais adiante), assentava nessa premissa liberal trazida à baila agora, por Ridley, muito embora divergissem deste na questão do papel do Estado. Daí porque entenderam que os instrumentos do regime, as suas normas técnicas, estenderiam, per se, seus benefícios ao povo trabalhador e, como extensão, à toda sociedade. Acreditaram que pela separação dos poderes, como proposto por Montesquieu126, postulando um governo constitucional – governo de leis e estado de direito –, pudessem dar outro rosto às relações sócio-políticas do país e despertar os homens e

126 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. The spirit of laws. L.A.: University of California Press. 1978.

108 mulheres daqui para a essencialidade do sentido do bem comum republicano: do respeito ao próximo, do valor de sua função social, independentemente de qual seja esta, e às instituições modernas, á crença de que elas devem ser instrumentos de alcance dos direitos de cidadania a serem usados via a ação política. A história brasileira mostraria, entretanto, que, como vemos insistindo ao longo desse trabalho, sem a homogeneização do tipo humano moderno, que preparasse os homens e mulheres daqui para suportar esse republicanismo, ficaria impedido de brotar entre nós um código de valores políticos fundados na premissa de igualdade entre os indivíduos. Sem ela, estaria abortada, de antemão, a noção republicana (moderna) do bem comum, identificada posteriormente com a idéia generalizada de democracia, e com a qual pudéssemos orientar as nossas ações diárias. Não haverá um encontro entre elas que fizesse com que suas partes chegassem juntas ao povo. Com isso, permitiu-se que o homem simples, já brutalizado pela primeira fase de nossa modernidade, permanecesse indigno de direitos democráticos de cidadania, também em sua segunda fase; por quase a totalidade do século XX. Sobre essa confusão histórica, Sérgio Cardoso ensina que

a sustentação do ideário republicano não implica em recusa ou afastamento dos ideais da democracia. Ao contrário, deve-se observar que a empresa da república incorpora as afirmações centrais do regime popular. Reafirma a liberdade e igualdade política dos cidadãos e reconhece a todos a responsabilidade pelo estabelecimento das leis, a participação na soberania legislativa. Não confere a qualquer indivíduo, classe ou parte da cidade qualquer prerrogativa (de nascimento, idade, condição social, virtude, sabedoria ou qualquer outro título) que autorize legitimamente sua elevação e poder sobre os demais. A república adverte a democracia sobre suas limitações.127

“É preciso haver esse encontro [entre as temáticas republicana e democrática], se queremos que a democracia se realize. Uma democracia sem república não é kratos, é simples populismo distributivista... a democracia, para existir, precisa da república”, conclui Renato Janine Ribeiro 128 . A recíproca,

127 CARDOSO, Sérgio. Por que República? Notas sobre o ideário republicano. In: CARDOSO, Sérgio Cardoso (Org.), Retorno ao republicanismo. BH: Ed. UFMG. 2004, p 64. 128 RIBEIRO, Renato Janine. Res Publica, In: CARDOSO, Sérgio Cardoso. Op. cit. p. 56.

109 igualmente, parece bastante verdadeira, sob pena de nos vermos estagnados no sentido platônico de república. Dentro da modernidade que conhecemos, que impõe a economia de mercado como mola propulsora das ações dos homens e despreza os apelos mais aguerridos pelas virtudes humanas, é condição sine qua non que haja uma radicalização do controle popular sobre essa modernidade, realizada via os instrumentos democráticos. Para que a boa intenção dos neorepublicanistas não vá por terra, entretanto –, uma vez admitido o modelo de sociedade proposto pela ideologia moderna liberal –, para que homens e mulheres exercitem o republicanismo moderno diariamente, para que possam manter os valores democráticos da sociedade e não permitam a precarização do Outro, parece condição sine qua non que haja a homogeneização moderna do tipo humano, onde o interesse – particularmente o mercadológico, já que a solidariedade, no mais humanista sentido do termo129, se parece cada vez mais com um sonho distante, quase inatingível, entre os homens – não descaracterize a própria idéia de república. A introdução da República entre nós não se justificaria senão para corrigir o erro histórico da nossa modernidade, fazendo jus ao próprio nome e

129 ”[...] As sociedades contemporâneas, assentadas sobre os valores do capitalismo, estão em alta medida fundadas em sistemas de competição orientada a interesses. Essa experiência coletiva, que invade tanto as instituições sociais quanto os espaços privados do mundo da vida, constrói­se dentro de uma moral egoísta, na qual a presença dos outros só é reconhecida a partir dos benefícios concretos que possa gerar, o que implica, em contrapartida, uma forte indiferença em relação aos não produtivos e uma enorme e constante violência de uns contra os outros, especialmente os que não se adaptem às regras desse egoísmo social. Tal sentimento, contudo, não pode se generalizar sem criar um mal­estar social de largas proporções, vinculado não somente à falta do outro como igual, mas também ao stress da guerra permanente e, sobretudo, ao rastro de miséria e sofrimento que os egoístas em competição vão deixando atrás de si, na medida em que constroem suas riquezas materiais e suas situações de poder. O mundo atual é, pois, um mundo carente de solidariedade. [...] Há diferença entre a solidariedade, tratada como conceito base para explicar e propor uma ordem social, e uma outra, definida como forma estereotipada e casual de auxílio a outras pessoas. Talvez se possa afirmar que há a possibilidade de uma solidariedade permanente, funcionando como cimento social, e uma solidariedade instantânea, de consumo”. SIGNATES, Luiz.. O conceito de solidariedade. Disponível em: http://www.ieja.org/portugues/Estudos/Artigos/p_oconceitodesolidariedade.htm. Acesso em 12.06.2008.

110 aproximando-se, se não o desejável, ao menos o quanto possível de uma Res publica moderna. 130 Longe demasiado dessa precondição, o homem precarizado não aprenderá a se unir ao seu vizinho, seu semelhante, para fazer do Estado a sua ferramenta de ação política, mas, ao contrário, quando o fizer, será para exercer atividades onde a racionalidade moderna é ‘dispensável’, distante daquilo que os liberais mais socialmente responsáveis chamam de “interesse bem compreendido”. Daí que ‘juntos mas separados’, esses indivíduos permaneceram isolados em suas vidas privadas, sentindo cada vez menos vontade de contribuir para o aperfeiçoamento da vida pública e da construção de sua própria cidadania. Para estes indivíduos brasileiros, passava a valer muito mais os core values (valores já enraizados) da malandragem, cultivando- os, venerando-os, tornando a malandragem a sua prática social mais comum, fazendo-a produzir sentido à sua existência.

130 Há o consenso entre os pensadores chamados de “republicanistas” ou “republicanistas” de que há uma primazia da economia sobre a política no mundo contemporâneo. É voz harmoniosa entre esses intelectuais militantes que, nessa relação, o egoísmo se coloca acima da virtude e que essa realidade estaria levando a um abandono progressivo da idéia do “público” e do “bem comum” – da essência mesma da política –, com o que este estudo está em plena sintonia. A exemplo dos comunitaristas anglo­americanos dos anos 80, esse grupo de pensadores procura contestar a insuficiência da teoria e da prática liberais, doutrinando a necessidade de (re)aproximação do aspecto econômico do político. Este estudo procura colaborar para o enriquecimento desse debate. Na esperança de que haja uma inserção da questão republicana na agenda política nacional, ele procura demonstrar que a evidencia da anteposição da economia sobre a política, embora imprescindível para que se enxergue um vácuo da noção de “bem comum” entre nós brasileiros, não dá conta de explicar a totalidade do processo que desembocou em tal ausência em nossa cultura. Se admitíssemos o contrário, correríamos o risco de concebermos a espécie humana como uma massa uniforme, onde a cultura tivesse papel tão secundário que não lhe fosse permitido interferir significativamente neste ou naquele processo sócio­histórico, conduzido ou não pelo mercado. Escolhermos seguir o raciocínio de César Benjamin, para quem, “o maior patrimônio de um país é seu povo, e o maior patrimônio de um povo são suas capacidades culturais” (entrevista televisada em 10.2006). No Brasil, não é somente a primazia da economia sobre a política que tem descaracterizado a idéia republicana do “bem comum” Por aqui, tem ocorrido uma espécie de “estrabismo cívico” capaz de obnubilar, muito menos por má­fé e muito mais como sinal de alienação, a percepção dessa premissa em nossos homens e mulheres. Se parece inegável que existe tal primazia e que o fenômeno tem descaracterizado a premissa máxima republicana na realidade contemporânea, não parece menos verdadeiro que a construção do país trás vícios de origem que remontam os períodos colonial e monárquico onde não figurava o republicanismo, mas onde se permitiu que fossem criadas as condições ótimas para a obnubilação do sentido último dessa, o “bem comum”. Nesta relação, outras variáveis, tais como a malandragem, sobrepujaram este aspecto para que nossa sociedade deixasse de criar um vínculo orgânico com aquela premissa, a perder de vista aquele imaginário.

111 No mundo encantado da malandragem Sendo fato que durante os setenta anos da experiência imperial brasileira nossa modernidade não conseguira sequer desatar de todo o vínculo familístico no qual nascera e crescera o homem brasileiro pré-moderno de todos os segmentos sociais, não será agora que ela fará. No mundo da modernidade republicana, o individuo brasileiro se apega pouco ao racionalismo moderno e continua enxergando na farra, na folia (e foliões), no churrasco entre amigos, na camaradagem, no bate-papo, no ‘samba, suor e paquera’, e mesmo na conivência com a via anti-institucional, a resposta (momentânea) para as suas agruras de cunho político, a sua ‘válvula de escape’. Tudo isso é comum a esse núcleo e a idéia de bem comum acaba restrito a este círculo. É somente neste núcleo, próximo do familístico, que o malandro enxerga solidariedade. Nele, a modernidade ocidental não consegue impor seu sistema classificatório frígido e racional com sucesso e permite que sobressaia o sentido simbólico do mundo da malandragem. Este não impõe pré-requisitos para ingresso; ele veste a todos os tamanhos e não seleciona pela cor da pele, nem pela condição social, além de ser unissex. Mais importante, entretanto, e isto é o que realmente importa, a modernidade não abre a possibilidade de o indivíduo desclassificado sentir-se gente, o que a malandragem fará com enorme sucesso. Diferentemente do que acontece no mundo ‘lá de fora’, no mundo da malandragem não é admitida uma escancarada divisão de classes e não se faz restrições à integração emocional dos indivíduos. Aqui, não se questiona o ‘comportamento inapropriado’, fruto de sua herança cultural e familiar. Este mundo, embora esta não seja a sua marca maior, reaviva muito da emoção e do sentimento, do calor humano e da hospitalidade que havia marcado a sociabilidade anterior, e promete resguardar o indivíduo amalandrado da intromissão estrangeira e impessoal de uma modernidade estruturante, impositiva e abrupta que pensa poder invadir incolumemente os mais diversos espaços sociais. Daí porque esta modernidade terá, por vezes, grandes dificuldades para tragar muito da malandragem para o seu mundo impessoal, da eficácia, mesmo com seu incremento pós-30.

112 É, afinal, na lógica que afasta o indivíduo precarizado do bem comum republicano que assenta o sentido último da produção e reprodução do malandro e que, na definição da enciclopedia Wikipedia, configura-se quando o indivíduo “abdica e mesmo escarnece de suas funções e obrigações sociais, tais como obediência às autoridades, respeito à propriedade alheia, altruísmo, etc, preferindo viver o dia-a-dia da forma mais hedonista possível. (...) O malandro não toma esta atitude por ímpeto revolucionário, convicção ideológica ou qualquer conclusão cultural. Ainda que sua atitude possa ser desencadeada por ressentimento social, o propósito do malandro não é o de mudar o status quo, e uma discussão dessa ordem simplesmente não faria diferença para ele. Malandragem equivale a um conjunto de artimanhas utilizadas para se obter vantagem em determinada situação (vantagens estas muitas vezes ilícitas). Caracteriza-se pela engenhosidade e sutileza. Sua execução exige destreza, carisma, lábia e quaisquer características que permitam a manipulação de pessoas ou resultados, de forma a obter o melhor destes, e da maneira mais fácil possível. Contradiz a argumentação lógica, o labor e a honestidade, pois a malandragem pressupõe que tais métodos são incapazes de gerar bons resultados”. 131 Isso resume bem o que é a malandragem e onde ela assenta. Daí que o malandro produzido pela seletividade moderna pouco tem de ver com a imagem ingênua e socialmente construída pela visão popular e culturalista da malandragem. Naquela não cabe o indivíduo estereotipado, idealizado, alegorizado, o desenho concluído de um arquétipo malandro, originário, não raro, de escravos. Na perspectiva da racionalidade moderna, de uma teoria da ação social, não existe um “tipo malandro” específico, um Pedro Malasartes, um Serafim Ponte Grande, um João Grilo, um Leonardo Pataca, um Macunaíma, um João Preguiçoso, mas todos eles, feitos precários. Tampouco ele se traduz no “falso malandro”: figuras que vestem ternos de linho branco, camisas de seda, usam chapéus abados, do tipo “Panamá”, e lenços no pescoço, calças e sapatos brancos ou de duas cores, e que se assemelham com o papagaio Zé Carioca, de Walt Disney, e coisas do gênero: “malandro que é malandro não dá bandeira”, já dizia uma máxima carioca de princípios do século passado.

131 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Malandragem. Acesso em 06.04.2006.

113 Se a perspectiva deste estudo não permite que se veja a malandragem sob uma ótica romantizada, ela tampouco admite que ela seja tida como fenômeno peculiar da criminalidade. É próprio dessa malandragem, enquanto produto de uma aprendizagem social moderna, fazer de sua estereotipagem pouco mais que uma romantização convencional, acabando por “banalizar o logro e a rasteira, proliferando [não raro] gatunos de colarinho branco, anel no dedo e imunidade parlamentar”, como bem o diz Sérgio Augusto132. Trata-se de uma sociabilidade que admite o enquadramento na ordem legal, mas que não se incomoda de se extraviar dela; que não cabe nem dentro nem fora dela, mas que, paradoxalmente, cabe dentro e fora dela; uma sociabilidade que, nas palavras de Roberto Goto, ”é marcada pela dissimulação e pela manipulação de uma ética flexível, não-puritana, porém isenta do senso de bem e mal. Pondo acento na nota lúdica”.133 Na tentativa de compreender o fenômeno, Moacyr Scliar diz que

“[...] embora o termo seja de origem italiana, foi aqui no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, que o malandro se firmou. E se firmou no começo do século 20, quando começava a surgir no Brasil uma classe trabalhadora. O que não aconteceu por acaso: o malandro é a negação do trabalhador. Mais: como diz o antropólogo Roberto DaMatta, o malandro é uma espécie de vingador do trabalhador, sempre pobre, sempre lutando com dificuldades. Malandragem é, em última análise, uma forma de escapar à bíblica condenação do "ganharás o pão com o suor do teu rosto": quem trabalha vive no miserê, diz o malandro, o negócio é ser esperto. Não foi o malandro quem inventou a esperteza, o jeitinho, a sacanagem, que o Brasil conhece desde os tempos de colônia. Mas o malandro fez disso um estilo de vida. Que se refletia até na sua própria indumentária: o imaculado terno de linho branco, o chapéu de banda, o lenço no pescoço. O primeiro ítem era particularmente importante: significava que o malandro jamais se meteria numa fábrica ou numa oficina, jamais se exporia à graxa ou a sujeira. E mais, tinha quem lhe lavasse o terno. Pergunta: e por que o malandro não trabalhava? Em primeiro lugar, porque simplesmente não acreditava na ascensão social através do trabalho. Mas não era só questão de crença, era vocação: malandragem era algo embutido no genoma do cara. Desta maneira, diz Antonio Candido, o malandro criava, em termos de moral, uma espécie de terra de ninguém, onde tudo, ou quase tudo, era permitido. Não que o malandro fosse um bandido; o dinheiro que ganhava (por exemplo, explorando mulheres) não era limpo, mas ele não assaltava, não seqüestrava, não roubava. E o malandro era boêmio, freqüentador da noite e não raro talentoso músico ou compositor. Como disse Cartola, aquele da Mangueira: "Malandro

132 AUGUSTO, Sérgio. Xô, jeitinho. O Estado de SP. 27.05.2007. 133 GOTO, Roberto. Malandragem revisitada. SP, Pontes, 1988. p. 73.

114 gosta de farra, mulher e bebida, isto é natural. Já ladrão e maconheiro, são bandidos; disso eu tenho vergonha.”134

Nota-se claramente que os próprios argumentos de Scliar estão sustentados em opiniões do senso comum. Não é desse malandro que tratamos aqui, se é que jamais existiu nesse formato. Em que pese a lucidez e o brilhantismo do escritor gaúcho, muito de sua afirmação está contido, não na experiência empírica do malandro, mas nesse estereótipo que se criou do fenômeno da malandragem. O malandro retratado neste trabalho não é um, mas inúmeros, bem como infinitas em números são as suas práticas e os seus lugares de atuação. Ele não é outro senão o próprio indivíduo precarizado brasileiro, que no desencontro abrupto com as coisas da modernidade, revelaria uma polidez malandra, um lhano no trato em favor da tolerância com a contravenção, e se orgulharia do paulatino relaxamento de supostos padrões morais que pudesse ter resguardado até então e que dissimularia a sua condição. É essa a malandragem, de gradação universal, que se tornaria logo um traço característico de muitas das pessoas que não se enquadram na hierarquia moral moderna. É ela que ganhará fôlego dentro da briga entre dominadores e dominados e que, sem perder sua concreção histórica, sem conceber uma harmonização natural entre essas classes – mas entre os seus –, acabará ditando o ritmo geral aos indivíduos moralmente precarizados desse lado do mundo. Logo, mostra-se ser traço comum do malandro, por sua própria natureza, não alimentar a ambição de intervir mais profundamente na história, procurando fazê-la mais sua, tornando-se ele próprio protagonista de seu tempo. Contenta-se em contemplá-la, ‘correndo por fora’. Segue rompendo as regras de conduta social sempre que pode; inventando as suas próprias na base da ‘esperteza’, pois é ela, afinal, a base de sua coragem e a esperança de vida digna. Leva sua vida apenas dissimulando, fingindo obedecer aos códigos de conduta social, contribuindo como pode para marcar a nossa especificidade com relação à modernidade de outras periferias.

134 SCLIAR, Moacyr. O fim do malandro, 06.05.2005. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=5371. Acesso 06. 09.2006.

115 Sendo na base da malandragem que o mandão garantiu para si o domínio sobre o grosso da população, na primeira fase de nossa modernidade, e na base da aquisição de capital cultural diferencial que as classes médias o farão, na fase posterior da implantação dessa doutrina, conforme veremos adiante, é somente na malandragem que o homem simples pôde lograr ser alguém, e permanece colocando de lado, ainda que ilusoriamente, a sua condição de precarizado, a sua desesperança. É somente nela que ignora o fato de que ele não atinge os requisitos objetivos para que alcance o respeito dos outros e a própria auto-estima, conferidos a partir da introdução da lógica classificatória moderna que finalmente toma lugar com o processo de modernização do País. O exemplo da empregada doméstica, que reservamos para o próximo capítulo, a quem vai se negar direitos trabalhistas por muito tempo, não poderia ser mais ilustrativo daquilo que se está procurando sustentar aqui. A negação de direitos a essa manumissa – e ao trabalhador precarizado, de um modo geral – parece ser interpretada por estes grupos como uma espécie de ‘malandragem consentida’, que ‘deixa no ar’ uma sensação de injustiça, de que ‘algo está fora do lugar’, mas contra a qual pouco ou nada há a fazer, pois ela geralmente está ancorada nas instituições modernas. Essa ‘malandragem consentida’ parece ser possibilitada pelo entendimento pré-moderno, arraigado por tanto tempo nos corações e mentes dos indivíduos envolvidos no processo, de que ‘é o mais forte quem manda’. É o mesmo sentimento que nega as formas de dominação moderna, as quais procuram convencer o trabalhador, por exemplo, que a sua exploração pelas forças capitalistas não é assim tão ruim, posto que somente ali ‘todos ganham’. A empregada doméstica, longe dos direitos de cidadania, está igualmente distante de perceber as verdadeiras causas de sua condição social precarizada e, em contrapartida, talvez para se safar, não vê problemas em agir malandramente, ‘dando o troco’ sempre que pode, não somente nos indivíduos que mandam, como em toda a sociedade e em suas instituições.

116 Capítulo 5 Dois casos ilustrativos: a doméstica e o aventureiro O passado não está morto e enterrado, mas, a rigor, nem mesmo passou – William Faulkner, escritor e poeta americano (1931)

A empregada doméstica pode, em resposta à sua precarização, se transformar na respeitada cabrocha da escola de samba no carnaval e se orgulhar do corpo e das habilidades particulares que ‘Deus lhe deu’. Ela sabe como usar seus dotes naturais e físicos a seu favor. Muitas vezes, esse se torna o meio que lhe possibilita fazer seu histórico de precarização se transformar, de fato, em história. Ali, no espaço do carnaval, da escola de samba, entre os seus samideanos, ela mostra e faz valer o seu valor. Nas festas de carnaval que nascem já no começo do século passado, onde se reúnem os seus iguais e onde as regras modernas não são bem definidas, as suas chances de sentir-se gente, de ver ascender seu status social, são muito maiores. Muito embora, tanto no espaço do trabalho quanto cá, ela não tenha mais do que o corpo e a simpatia a oferecer como encanto, é neste último, que consegue elevar-se ao status de bela cabrocha, seu status principal adquirido, ou de boa dançarina, ou ainda de líder comunitária, que lhe confere admiração e que irá prevalecer. Ali não é o espaço onde as desigualdades de gênero tornam homens e mulheres diferentes somente do ponto de vista biológico. Estas permanecem percebidas sob a ótica das capacidades sociais, mas, em compensação, é um espaço onde se podem extravasar ao olor do ‘cheirinho de loló’, de ‘lança- perfume’ e de cachaça; onde se pode amenizar temporariamente a sensação de inferioridade social. É um lugar onde mulheres se vestem de homens e homens de mulheres; onde o amor e o sexo respeitam menos a hierarquia moderna. É nele que se permitem aflorar alguns dos instintos mais primitivos dos seres humanos. E não é por outra razão que o carnaval torna-se um “rito sem dono; a folia da inversão em que pobres viram ricos e ricos viram pobres, e onde não há diferença entre o delinqüente e o policial”, como diz DaMatta135, sem explicar bem os porquês; é o lugar onde se realiza a “possibilidade utópica

135 DAMATTA, Roberto. O que faz do brasil, Brasil? RJ Salamandra .1984. p. 74.

117 de se mudar de lugar [por competência, ou por oportunismo], de se trocar de posição na estrutura social”136

Uma empregada ótima: “conhece bem o seu lugar” Nessa atmosfera, a empregada doméstica, ‘uma pretinha’ geralmente, que, embora não mais esteja sob as rédeas de um mandão que não tergiversa diante do poder, é mantida até hoje nos mais diversos lares não-precarizados do País. Ela pode se tornar, fora dos padrões modernos, a rainha da bateria, a senhora orgulhosa que compõe a ala das baianas, a mãe-de-família, a passista habilidosa. Ali, num espaço que de forma alguma se confunde com a malandragem, mas com o qual a malandragem se confunde inteiramente, a empregada doméstica é comunitariamente útil e socialmente apreciada. Ainda assim, as habilidades técnicas que possui não são suficientes para tirá-la da condição de trabalhadora precarizada, segundo as exigências da ordem moderna, exceto por forças do mercado ávido de lucro. Para ela, bem como para todo e qualquer homem precarizado, não haverá a igualdade moderna e nem reconhecimento, por mais que seja boa em atividades não reconhecidas pela modernidade. 137 É somente no espaço da malandragem que parece encontrar suas possibilidades e explorar os limites de suas capacidades. É ali que ela se descobre sirigaita, com seu toque dionisíaco, extrovertido, alegre, capaz de reverter um quadro de tristeza. E é ali também que encontra o bicheiro 138,

136 Ibidem. 137 A questão do reconhecimento social parece mesmo ser um fenômeno inerente ao ser humano, tanto mais que, quando da transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, muito da gente abastada daqui concordou em ceder algumas de suas residências aos nobres que chegavam aos milhares. No coração dessa “afabilidade” residia a promessa lusa de que a eles seriam distribuídos títulos nobiliários, que chegariam até o posto de visconde Muitas das ruas da capital e do futuro pai, cidades e outros locais seriam nomeadas em homenagem a esses senhores e senhoras. Essa prática de distribuição de títulos de nobreza foi também uma constante na política imperial como uma forma encontrada pelo Imperador D. Pedro II para conseguir o apoio político de conservadores e liberais aos seus projetos e, em grande medida, á permanência do Regime tal e qual se encontrava. Para uma melhor compreensão do processo histórico ao qual se está fazendo referência, ver CARVALHO, José M. de, Teatro de Sombras – a política imperial. Paz e Terra. RJ. 1980. 138 O “jogo do bicho” não é estranho à ninguém que nasce ou habita no Brasil. É uma instituição “semi­informal”, um costume institucionalizado que, a despeito de ter sido proibido por lei desde 1930, acabou legitimado pela

118 contraventor, malandro, de quem muito freqüentemente recebe um ‘agrado’, às vezes um chamego, um galanteio ou um xodó; é o mesmo sujeito que pode ‘dar um jeito’ para tirá-la do ‘reino da necessidade’ e de quem muito se orgulha de ser tão próxima. Fora daquele espaço, diferentemente da dona-de-casa que tem berço, pertence a uma família, foi ‘devidamente’ desposada, e é reconhecida como digna de respeito (diferentemente da dona-de-casa transformada em “sacoleira” que se aventura a cruzar a fronteira entre o Brasil e o Paraguai em busca de sobrevivência), a empregada doméstica merece pouca consideração. Do ponto de vista da cidadania, seu status social será marcado por uma presumida desqualificação natural no âmbito do trabalho, pois os mandões, seguidos das classes médias, trataram, desde muito cedo, de mantê-la em seu poder, como um objeto pessoal. Suas condições de subsistência em muito lembram a mãe-de-leite de outrora que, em cuja ignorância e angústia se revelam, para além do traço classificador moderno, a pitada antidemocrática da modernidade brasileira. O trabalho realizado pela manumissa, desde que largou a condição juridicamente acatada de servilismo, bem como aquele realizado pelo pedreiro, pelo engraxate, pelo jardineiro – transformados hoje em catadores de papel, carroceiros, olhadores de carros, vendedores ambulantes, entregadores de panfletos, seguradores de cartazes propagandísticos, ‘chapas’ de caminhões, e tantos outros trabalhadores desclassificados – não receberia valor e depreciada seria a sua função social. Ao contrário do “doutor”, de anel no dedo, ela receberia desvalor justamente por trabalhar muito e ganhar pouco ou quase nada, num exemplo claro do desrespeito desmedido e periférico dos ‘homens de cima’ pelos ‘de baixo’, numa hierarquia sem fim.

aceitação social de sua prática, presente em praticamente todos os municípios brasileiros. A prática não tem lastro governamental que, em teoria, a proíbe, mas que na prática, malandramente, fecha os olhos para ela. Esse jogo de azar foi criado por João Batista Vianna Drummond, o Barão do Drummond, em 1892, e é baseado na confiança de quem joga de que se acertar os números sorteados, ganhará um prêmio em dinheiro pago pelo bicheiro. O jogo está ligado a inúmeras outras rede que, igualmente, estão presentes no país desde finais do século XIX, e que normalmente tem ligações com Escolas de Samba. SOARES, Simone Simões Ferreira . O jogo do bicho: a saga de um fato social brasileiro. RJ. Bertrand Brasil, 1993. p. 32.

119 Os espaços onde a malandragem se faz mais evidente é onde os ditames da racionalidade são temporariamente postos de lado e onde as regras podem ser feitas elásticas e inconstantes. É neles também que se formam ambientes dos quais o malandro pode se aproveitar para torná-los mais seus do que dos outros ocupantes.139 Neste ambiente, uma valoração positiva passa a ser atribuída ao indivíduo malandro, capaz de safar-se do embaraço do trabalho, o indivíduo que consegue ‘dar um jeito’ para que seu trabalho seja realizado por outrem, permanecendo ele próprio livre de encargos, de preferência. E isso não se reserva ao contexto de uma cidade ou Estado do país, nem tampouco se limita a momentos específicos da história nacional, mas se estende a uma realidade brasileira, do Oiapoque ao Chuí, e se estabelece na medida em que a modernidade é deixada manca em seus imperativos, variando tão somente em sua gradação. Essa é a especificidade que se está procurando enfatizar aqui e não se trata de uma tentativa de esvaziar a gênese dos fatos históricos, pois se reconhece na força organizada do povo as possibilidades reais de mudança no curso da história. Mas é preciso reconhecer que, a menos que se rompa terminantemente com a ordem estabelecida, o contexto é algo menor quando se tem uma realidade impositiva que ‘atropela’ as instâncias da vida já previamente estabelecidas. Dentro da ordem moderna, essa realidade dita que os indivíduos ‘valham mais do que o corpo’, fazendo com que aqueles que não consigam quebrar o ‘invólucro’ que os envolve, procurem formas alternativas de sociabilidade e de reconhecimento social. “Diante de perspectivas que consumiam o físico e o moral em troca de escassas compensações materiais e uma existência penosa e incerta”, escrevem Freitas e Luna “o vagabundo, o ladrão e a prostituta

139 Embora o carnaval tenha procedência dos rituais pagãos da antigüidade e tenha sido trazido ao Brasil no século XVI pelos portugueses, suas características originais foram mescladas e ganharam vigor com o ritmo da batucada africana. “O que fizemos foi o carnaval. Carnavais como o de Veneza, Quebec, Nice, New Orleans acontecem na mesma época, mas nenhum tem as mesmas proporções, miscigenação, ginga, malícia que o nosso apresenta”. ANDRADE, Oswald de Andrade. Manifesto Antropológico. Editora Vozes. p. 32.

120 seriam personagens que ostentariam triunfos na imaginação dos outros, logrando respeito e conforto; verdadeira gente de sucesso“140. Daí não admirar que seja a partir da ‘matriz da malandragem’, e não propriamente da modernidade, que essas pessoas passem a construir o seu ethos, e também a se enxergar com certo respeito e através das quais poderão vislumbrar as possibilidades de bloquear a introjeção de sua inferioridade, e é com elas que se identificarão dali em diante. Como afirma Souza (2006), “na rede de conexões simbólicas [visíveis e invisíveis], própria da modernidade, há mecanismos que nos permitem separar os felizes, saudáveis, ricos, bonitos e charmosos, de um lado, e os humilhados, oprimidos, não reconhecidos, feios e sem auto-estima, de outro. O ponto principal é saber por que as pessoas sentem o que elas sentem e qual a dinâmica social que produz, de forma tão avassaladora, esse tipo de sentimento, por exemplo, humilhação e baixa- estima, precisamente para determinada classe de pessoas” 141. Souza trata aqui da mesma hierarquia moral objetiva e pré-reflexiva que os indivíduos utilizam como pano de fundo para fazerem juízo de si próprios e dos outros. A ela fizemos referência através dos ensinamentos de Mattos no segundo capítulo deste estudo e a ela voltaremos mais adiante. Antes, entretanto, é legítimo que se explore mais aprofundadamente esta questão de aquisição de respeito, para uma melhor compreensão do paradoxo que envolve a vida da empregada doméstica e dos trabalhadores precarizados, que ‘pouco’ ou ‘nada valem’, na periferia da modernidade de um modo geral.

Uma questão de animosidade ou de respeito?

Sem esse aprendizado moderno, os trabalhadores precarizados reproduziriam infindamente um tipo de personalidade inadequado às exigências modernas, desobediente, indisciplinado, não-domesticado; aquilo que Souza chamou de habitus precário, e que descredenciaria as pessoas simples a receber aquilo que a modernidade concebe como respeito. Sobre esse assunto, Souza explica que

140 FREITAS, Lorena e LUNA Lara. A família desorganizada e a reprodução da “ralé estrutural” no Brasil – In:. SOUZA, Jessé. Op. cit. p. 323. 76­94. 141 SOUZA, Jessé. Op. cit. p. 180.

121

esse padrão de modernização, em que as práticas institucionais se impõem sem o lastro ideal e valorativo que lhe permita articulação, reflexividade e consciência de longo prazo dos seus dilemas e contradições cabe como uma luva na definição do processo de modernização brasileiro enquanto uma revolução burguesa encapuzada [...] É que essas práticas institucionais passam a produzir suas conseqüências estruturais e funcionais de modo molecular, enrustido, mascarado e até imperceptível, ás vezes, precisamente pela ausência do componente comparativamente mais explícito, consciente e refletido como foi o caso das sociedades ocidentais centrais.142

Porque considerado pela sociedade enquadrada como socialmente inútil, um enorme contingente de socialmente piores jamais contaria com o reconhecimento social que poderia dignificá-lo e elevá-lo à condição cidadã, a portar um habitus útil, uma dimensão moral – operada no plano subjetivo –, para além das nítidas diferenças materiais dos homens entre si. Trata-se de um aprendizado moral adequado ao trabalho produtivo nas condições do mercado competitivo moderno, um comportamento enquadrado pré-reflexivamente que permite ao indivíduo valorar socialmente a si e aos outros, para além da barreira das classes sociais e das personalidades (Bourdieu, 1998).143 Aqui parece ocorrer um processo de introjeção dessa inferioridade (ou da superioridade no caso das classes abastadas) que logra legitimar as desigualdades e que, como interpreta Souza, dá-se

na escola e na família, não só em relação ao que se ensina explicitamente, mas antes de tudo a partir das práticas implícitas que essas instituições demandam. O que Bourdieu tem em mente é a formação do habitus percebido como um aprendizado não-intencional de disposições, inclinações e esquemas avaliativos que são in- corporados e naturalizados permitindo ao seu possuidor perceber e classificar, sem mediação consciente e reflexiva, os signos opacos da cultura legítima.144

O enquadramento moderno demandava (e demanda) que se passasse pela escola da instrução, da inteligência e da produção disciplinada, mas para o homem precarizado, estas instituições, na maior parte de sua existência, não existiriam. A esse respeito, Dalari esclarece que

142 Ibidem, p. 180. 143 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. RJ: Bertrand Brasil. . 1998. 144 SOUZA, Jessé. Op. cit. p. 181.

122 o indivíduo, que no momento mesmo de seu nascimento atende aos requisitos fixados pelo Estado para considerar-se integrado a ele é, desde logo, cidadão. Mas, o Estado pode estabelecer determinadas condições objetivas, cujo atendimento é pressuposto para que o cidadão adquira o direito de participar da formação da vontade do Estado e do exercício da soberania. Só os que atendem àqueles requisitos e, conseqüentemente, adquirem esses direitos, é que obtêm a condição de cidadãos ativos. A aquisição de cidadania depende sempre das condições fixadas pelo próprio Estado, podendo ocorrer com o simples fato do nascimento em determinadas circunstâncias, bem como pelo atendimento de certos pressupostos que o Estado estabelece.145

A própria coexistência do modo de produção escravocrata (até vésperas do século XX) e de instituições de cunho moderno já denunciava preliminarmente uma incongruência entre nós e apontava para a especificidade de nossa modernidade. Não obstante, o disparate se acentuará justamente no momento em que todos os indivíduos passam a ser considerados juridicamente iguais, com o fim do regime servil, sem que a maior parte da população consiga avançar em termos de mobilidade social e moral. Estes indivíduos se vêem tentados a permanecer nas franjas da sociedade, engrossando o contingente de gente moralmente desclassificada. Ela estará abandonada à própria sorte e fertilizará os quadros precarizados dessa sociedade, fazendo escancarar e multiplicar, não aquilo que a modernidade ocidental concebeu como sendo o tipo humano moderno, o cidadão digno de reconhecimento e respeito, mas o tipo malandro brasileiro. O ponto central aqui é que, quando não se é digno desse reconhecimento e respeito exigidos pela modernidade para que se possa ser considerado cidadão, ocorre nos indivíduos devidamente excluídos, um processo desruptivo que marca eternamente o seu comportamento social (Honneth)146. Na época moderna, é o sentimento positivo de reconhecimento e admiração que faz brotar a nossa capacidade de realizar ações consideradas valiosas para nós mesmos e para toda a coletividade. Como conseqüência, os indivíduos sem tal qualidade estão, de antemão, fora do jogo. Nesta condição, sentimentos de autoconfiança, auto-respeito e auto-estima ficam mais difíceis de aflorar, e comprometidas fica a capacidade dos indivíduos submetidos ao

145 Dalmo Dalari, op. cit.. p. 100. 146 HONNETH, Axel. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. SP: Editora 34. 2003.

123 processo, de compreenderem a si próprios como pessoas apreciadas por seus atributos e aptidões características. Isso faz com que estes indivíduos – portadores de um habitus precário – sejam envolvidos num círculo vicioso de difícil equação. O portador do habitus precário, ao qual chamamos de homem precarizado, é este indivíduo, excluído tanto moral, quanto cultural e economicamente da sociedade moderna, por não atender as exigências feitas pelo mercado competitivo e pelo Estado. Ele não compartilha as características do tipo humano moderno e, por isso mesmo, não consegue ser respeitado e nem reconhecido socialmente, vivendo em débito de auto-estima e de cidadania. Neste sentido, Souza (2006) explica que “o não- reconhecimento objetivo como produtor útil condiciona, por sua vez, o não- reconhecimento público, por exemplo, na dimensão política, assim como o não- reconhecimento na esfera privada e existencial. A ausência dessa auto-estima individual objetivamente produzida, muitas vezes ‘compensada’ e, portanto, paradigmaticamente ilustrada por um comportamento reativo e primitivamente narcísico, reflete, precisamente, o drama existencial de quem tem que viver a vida com um sinal negativo em todas as interações sociais. 147 Neste círculo vicioso que envolve o homem precarizado em todas as instâncias da vida, faltam espaços para a extensão dos direitos de cidadania a estes indivíduos, ‘não-dignos de respeito social’ e portadores de ‘reconhecida incapacidade moral’. Como neste círculo não se avança na arena da universalização dos direitos, torna-se menor a quantidade de indivíduos portadores de disciplina, de autonomia, de liberdade e de auto- responsabilidade, entendidos como passíveis de se imputar a regra do reconhecimento moral que justifica a condição de gente, nos moldes modernos. Isso corrobora a própria autopercepção dessas pessoas de não merecedoras de respeito e tende a interferir na formação de sua personalidade, mas não só. Ele implica igualmente em sua capacidade organizatória. Souza (2000), interpretando Taylor, conclui que,

como diz Charles Taylor (1994), no seu The politics of recognition, a nossa identidade é formada pelo reconhecimento ou pela ausência deste. Assim, a imagem de um indivíduo pode sofrer uma distorção real se a sociedade a sua volta refletir uma imagem de si

147 SOUZA, Jessé. Op. cit. p. 81.

124 desfavorável. Nesse sentido, não reconhecimento não é algo inofensivo e sem conseqüências, pode prejudicar, pode ser uma forma de opressão insidiosa por aprisionar um indivíduo em uma concepção falsa, destorcida e reduzida de si. Desse modo, reconhecimento não é uma cortesia ou gentileza, mas uma necessidade vital. Uma necessidade depreciativa de povos ou comunidades pode tornar-se uma das formas mais potentes e expressivas da opressão destes. Livrar-se de uma identidade depreciativa imposta e destrutiva torna-se fundamental, seja para a vida privada, seja para a vida coletiva”.148

O raciocínio de Taylor indica que os indivíduos que partilharão o mesmo habitus precário no Brasil (o que se aplica a qualquer outro grupo humano moderno e precarizado) não desenvolverão suas potencialidades ao ponto de organizar uma resistência política e brigar por sua inclusão na ordem competitiva, que está na base da busca pelos direitos modernos de cidadania. Como resultado, estas pessoas se manterão subcidadãs, distantes do conjunto de direitos (civis, políticos e sociais) 149 do qual falara Marshall ao estudar o caso inglês, ainda em 1949 150. E nada garante que isso deixará de despertar

148 SOUZA, Jessé. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. In: SOUZA, Jessé (Org.). Op. cit., p. 51. 17­ 54. 149 É salutar lembrar que a compreensão de cidadania hoje já não se resume a abordar as esferas dos direitos civis, políticos e sociais, mas de uma gama de assuntos que soaria absurdo para os homens do passado. De todas as drásticas mudanças que a dinâmica global do último quartel do século XX imporia sobre os agentes sociais de todo o planeta, poucas teriam a profundidade do impacto sofrido pelo paradigma que assentava na noção de cidadania. No momento em que o conjunto de direitos implícitos nessa noção exigia sua auto­extensão, seu elemento estruturante máximo, o Estado, enquanto centro da ação política – porque promotor da igualdade –, começava a ruir. Trata­se de um momento em que a luta da cidadania deixa de priorizar o alcance da igualdade e centra­se no respeito às diferenças. Considerar a todos iguais perante a lei já não parece bastar para que todos sejam realmente iguais, mas é necessário que sejam considerados iguais e diferentes – uma cidadania radicalmente ampliada. Daí o surgimento de reivindicações pró aquilo que ficaria conhecido como “ações afirmativas” e de outras formas de direitos até então não contempladas pela concepção clássica da cidadania liberal. 150 A Inglaterra lançou­se na aventura de buscar a liberdade política das instituições britânicas a partir de 1629, através da Petition of Rights, que representou em alguma medida, o debute da luta por direitos e a concluiu meio século mais tarde, depois de uma revolução política sangrenta (Revolução Gloriosa, 1688­1689), o que constituiria o primeiro triunfo do liberalismo. As bases do credo liberal, via a limitação do poder governamental, estavam estabelecidas naquele país com o estabelecimento do Bill of Rights, restava agora criarem­se as condições para o desenvolvimento dos direitos civis que culminaria na Act of Settlement (1701) e, dessa, para a cidadania liberal, com a conquista dos direitos políticos e sociais no decorrer dos séculos dezenove e vinte. Um século após a instauração dos direitos civis na Inglaterra, chegaram aquele país os direitos políticos, por volta de 1830, através de um movimento popular e de trabalhadores que, entre outras reivindicações, exigia a extensão do voto.

125 um eventual comportamento malandro, que permanece adormecido subrepticiamente no coração e na mente de cada homem e mulher precarizado pela modernidade periférica. E é neste contexto que se insere a empregada doméstica. Como tantos outros brasileiros precarizados, esta profissional não é vista como qualificada para a modernidade periférica, mas consegue o respeito diferencial ao largo da lógica classificatória moderna, a mesma lógica que a tinha colocado como um ser primitivo, muito mais voltado às ‘coisas do corpo e dos sentimentos’ do que da razão. Se ela não consegue ser classificada como digna de respeito e dignidade dentro da lógica classificatória moderna, ela tem a opção de fazê-lo pela via paralela onde paira a malandragem, sorridente e prazenteira. Ali ela se realiza, pois ali encontra respaldo. Os espaços da malandragem são lugares onde se encontra um maior número de indivíduos precarizados, em níveis e graus diferenciados. Por mais romântico que possa parecer, o fato é que entregar-se à malandragem, e a regra não vale somente para a mulher, pode significar não somente criar as condições para superar a inferioridade material, mas, sobretudo, deixar para trás a humilhação de não se ‘valer nada’. O primeiro caso é visível, material, de difícil contestação; o segundo, entretanto, é invisível, difícil de ser enxergado. Os espaços deixados vagos pela modernidade emanam “sinais invisíveis” (Bourdieu, 1998)151 que permitem à malandragem nascer, se reproduzir e se perpetuar, desde sempre. Para aqueles que nada têm a perder ou onde se apegar, a malandragem se torna sedutora e acaba sendo a via encontrada para que conquiste certa robustez e prestígio, uma maneira de não se deixar ser reduzido a nada. As coisas da malandragem passam a se revelar como uma espécie de ‘código unificador de conduta’ para esses homens e mulheres precarizados, operando alternativamente aos operadores classificatórios modernos e fazendo, muitas

MARSHALL, T. A. Cidadania, Classe Social e Status. RJ: Zahar. 1969. Na Inglaterra revolucionária do longo século XIX o Movimento Cartista se tornou o elemento­chave para o desenvolvimento da democracia naquele pai. No Brasil, por sua vez, permanecia a lógica anterior escravocrata. Aqui não houve reação progressista que seguisse em direção similar à inglesa, até porque não havia uma classe trabalhadora organizada. 151 Cf. BOURDIEU, Pierre. Choses dites (Le sens commun. Paris. Les éditions de minuit. 1987.

126 vezes, com que a negação destes fosse o imperativo de suas vidas, o seu habitus particular, o habitus malandro. Bourdieu, ao procurar desmascarar a ideologia da igualdade de oportunidades, nos ensinou que é o habitus que determina os gostos, desde o círculo de amizades de uma pessoa até as roupas que veste, residindo nele a capacidade de se reconhecer o Outro como igual pelo compartilhamento de uma mesma economia emocional e valorativa a partir do seu reconhecimento como membro da comunidade. Arriscamos dizer, pois, que não é noutra fonte, mas no habitus malandro que vai beber o malandro, já que não reconhece o código de valoração moral moderno como seu parâmetro classificatório. No habitus da malandragem, ‘sinais de primitividade’ tais como a cor da pele e uma personalidade julgada como improdutiva e disruptiva para a ‘sociedade enquadrada’, não são desclassificatórios. Nesse habitus, estes sinais são, ao contrário, muito perseguidos e desejados, e destacados serão os indivíduos cujas características, físicas e tantas outras, se encontram ainda em ‘estágios de primitividade’: serão os mulatos, os negros, muitos mamelucos, cafuzos ou curibocas, geralmente com pouca ou nenhuma instrução formal, mas que são bons de pernada e de tiririca, e se realçam no batuque, no samba, nas ‘peladas’ e na simpatia, sempre que a circunstância os demandar. O habitus malandro, ainda assim, não veste unicamente a estes indivíduos, expostos a um habitus precário, mas de forma alguma será capaz de delinear o comportamento de toda a sociedade. Ainda que estivesse a sociedade brasileira estruturada sobre maioria mestiça, mulata ou negra, e ainda que todas as pessoas daqui extrapolassem no carnaval e ‘se dessem bem’ no futebol, na ginga, e no samba, seria fantasia bucólica atribuir um habitus malandro, um espírito Macunaíma152, a todos os nacionais. Esse

152O mito de “Makunaíma” nasce de uma crença propagada por várias etnias indígenas do norte do Brasil, de várias etnias da Venezuela, da Guiana e do Caribe e que foi trazido à tona pelo antropólogo alemão Theodor Koch­Grümberg, em 1910, pouco antes de sua morte por malária, no baixo Rio Branco. Os relato do pesquisador dão conta de que “Makunaíma” foi o herói dos índios do norte, nascido num tempo muito distante numa região que hoje chamamos de . Makunaíma era o mais novo dos incontáveis irmãos e também o mais sapeca. Numa de suas travessuras fez cair a árvore do mundo, na qual nasciam todos os frutos de boa qualidade. Para o lado norte, caiu a copa, presenteando a úmida e bela floresta amazônica com os melhores e mais abundantes frutos. Os frutos não conseguiram abastecer o outro lado, o sul. Deste lado, é necessário que se trabalhe duro para tirar do solo a alimentação. O tronco da árvore ficou encravado sobre o Rio Caroni, transformando­se numa

127 habitus não terá força para se tornar uma norma dominante entre nós, daí porque não se pode classificá-lo como uma regularidade social, mas como uma singularidade social, ficando restrito aos grupos precarizados e aqueles indivíduos que encontrarão nele um subterfúgio para burlar o sistema classificatório moderno, como veremos mais adiante.

O malandro e o mito do aventureiro Tornou-se lugar comum em análises iberistas, de cunho essencialmente culturalista – as mesmas que costumam nos dizer que da Península Ibérica vieram as formas predominantes da nossa cultura –, inferir que os brasileiros em geral padecem de uma ética particular para lhes guiar em suas decisões diárias, um “mal de origem” trazido pelas caravelas de Cabral. O personalismo, o patrimonialismo, a malandragem, enfim, todos estes fenômenos ‘cabem no mesmo saco’, e é dessa percepção que formamos o nosso imaginário sobre nós mesmos. O argumento de sustentação dessa corrente de pensamento normalmente deita sobre a crença constituída e aceita de que esse tal “espírito Macunaíma”153 nacional justificaria a nossa (suposta) frouxidão moral, e esta

enorme rocha que impede a passagem dos barcos. O cepo ficou de pé e, juntamente com os outros restos, formou o Monte Roraima, a casa de Makunaíma, que dá nome ao Estado. É a alma de Makunaíma que trás chuvas abundantes para a região, garantindo alimentação farta aos povos dali – os mais indígenas do Brasil (Macuxis, Ianomâmis, Uapixanas, Uaiuais, Ingaricós e Taurepangs) que estão ali há cerca de quatro mil anos –, e protege o Monte Roraima de invasores externos. KOCH­GRUMBERG, Theodor. Do Roraima ao Onorico: V. 1: SP: Unesp, 2006. 152 Mário de Andrade, depois de ler os relatos de Theodor Koch­Grümberg, muda a grafia de Makunaíma para Macunaíma e dá alguns contornos em seu caráter impetuoso. Para criar uma caricatura das mazelas brasileiras, o escritor paulista inverte o sentido heróico de Makunaíma, relatado pelos indígenas, criando sobre este a figura do anti­herói. 153 Macunaíma simboliza uma consciência étnica e racial, social e cultural. Mais além, Macunaíma revela as mediações, as relativizações, do “modus vivendis” brasileiro frente a uma estrutura de poder hierarquizada. A narrativa marioandradina reflete, também o confronto entre a burocracia medieval dominante na sociedade brasileira e os “jeitinhos”e a malandragem que permeiam o cotidiano brasileiro. A partir dessa inquietações culturais e estéticas, podemos perceber em Mário de Andrade via Macunaíma, uma procura da identidade brasileira (...) Numa primeira aproximação de Macunaíma com o mundo da malandragem, percebemos o herói como avesso ao trabalho, astucioso e lúdico, afeito ao erótico e às traquinagens e peraltices do imaginário infantil. Se o ócio é uma das principais características do curumim andradino, também o é a ganância, o embuste para conseguir dinheiro fácil (...)”. GONÇALVES, R. P. Macunaíma: carnaval e malandragem. Santa Maria: UFS, 1982, p.

128 impediria que se criassem o ‘homem novo’ por aqui. Como subproduto de nossa herança ibérica, de acordo com esse raciocínio devaneador (do qual nasce, por exemplo, o “homem cordial” que ‘mágica e homogeneamente’ teria formatado a sociedade brasileira) 154, se prefere os atalhos aos ladrilhos, a farra e o ócio à labuta, o favor às abstrações do Estado. Estas seriam, pois, tendências inatas nossas, onde igualmente residiria a origem da ‘malandragem do povo brasileiro’, e é este aspecto que nos interessa particularmente nesse estudo. Os resultados desta pesquisa são qualitativos e indicam que o malandro não foi trazido ao Brasil pelas caravelas de Cabral, por meio de nossas origens

12. ***Cabe lembrar ainda que, “em Macunaíma, Mário de Andrade questiona a idéia de preguiça como fraqueza e valoriza o ócio criativo do brasileiro, que considerava libertário. “Em um prefácio preparado por Mário de Andrade e só recentemente publicado”, lembra Turino, “o autor revela: O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora, depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim, porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não; em vez entendo a realidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior, na língua, na História, na andadura tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional”. Mário de Andrade escreveu Macunaíma depois (de “A divina Preguiça”), aprofundando conceitos e apresentando a preguiça como uma das matrizes do caráter nacional, uma preguiça criativa, gingada e inovadora. Como constatou o sociólogo francês Roger Bastide, um dos fundadores da universidade de São Paulo, “o sociólogo que quiser compreender o Brasil não raro precisa transformar­se em poeta”. “Mário de Andrade fez o contrário: foi o poeta que se travestiu de sociólogo”. TURINO, Célio. Op. cit. 154 Sérgio Buarque admitiria em breve que a cordialidade do brasileiro já não era uma realidade, sobretudo em função da modernização do país. “O fato é que nem mesmo Sergio Buarque acreditaria por muito tempo ainda em seu “homem cordial”. Em 1948, declarava a Cassiano Ricardo, com uma solenidade cheia de ironia, que o homem cordial falecera”: “Associo a cordialidade antes a condições particulares de nossa vida rural e colonial, que vamos rapidamente superando. Com a progressiva urbanização, que não consiste apenas no desenvolvimento das metrópoles, mas ainda e, sobretudo na incorporação de áreas cada vez mais extensas à esfera da influência metropolitana, o homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo”. (Carta a Cassiano Ricardo, P 53). Pedro Meira Monteiro. A Queda do Aventureiro – Aventura, cordialidade e os novos tempos em Raízes do Brasil. Ed. da Unicamp – . 1999. ”No capítulo inicial”, Holanda confessaria 30 anos depois da publicação da primeira edição de Raízes, em conferência na Escola Superior de Guerra em que justificava a necessidade de revisão de algumas de suas teses, “[...] tratara eu do que julgara típico de certa “mentalidade ibérica”, cuja herança preservaríamos, e que nunca deixara naturalizar­se entre povos hispânicos o apreço moderno à atividade utilitária: entre esses povos, como entre os da Antiguidade clássica, importaria antes o ócio do que o negócio. Mais tarde procurei, de passagem, atenuar a formulação”. (HOLANDA, Sérgio Buarque. Elementos básicos da nacionalidade: o homem. Palestra proferida na ESG. RJ, 1967, p. 4).

129 ibéricas. Ele tampouco é resíduo castiço de nossas origens pré-modernas e, se o tipo malandro está, em alguma medida, integrado emocionalmente, isso se dá não em função de outro fenômeno, mas da intromissão abrupta moderna na vida do homem simples trabalhador que aqui habitava, antes de sua chegada, e daqueles que por aqui se instalariam após esse período. Assim como não se nasceu falando português por aqui, tampouco se nasceu malandro feito e não há porque se supor uma tendência inata, uma predisposição dos brasileiros à malandragem (e a nenhum outro fenômeno). Souza, em texto que trata de uma suposta corrupção endêmica brasileira, segundo o olhar de Roberto DaMatta, se pergunta:: “seria essa predisposição maior do que em qualquer outro país? Admitamos hipoteticamente que, desgraçadamente, o grau de corrupção no Brasil seja maior do que em outros países. Seria a causa desse fato uma ausência de mecanismos eficazes de controle ou uma misteriosa eficácia atávica de padrões culturais personalistas tradicionais da vida colonial brasileira?155”. Ao contrário do que já se insinuou na literatura sobre a temática, por conta de leituras pouco zelosas do nosso processo histórico, predicados tais como a malandragem, foram adquiridos por força das circunstâncias históricas, e nem de longe se aplica a toda a sociedade, mas a uns grupos precarizados – e outros tantos que se aproveitam das brechas deixadas por nossa modernidade e pelo mito que se criou sobre o caráter do povo daqui, para faturar alguns degraus no sistema classificatório, como veremos no capítulo seguinte – que se viram impedidos de se transformar em ‘povo moderno’. O modo de vida regido pelos ditames modernos é mais forte e se impõe ao grosso da sociedade, reservando à força do povo organizado, e tão somente a ela, a capacidade de mudança de curso político. Longe de alternativas de sociabilidade que não a moderna, fica a cargo desta ou das coisas da malandragem nos dizer o que fazer e como agir. É exatamente esse aspecto que costuma alimentar a falsa ilusão de que o malandro brasileiro é cada brasileiro e a malandragem uma “marca nacional”. Esta, aliás, é uma circunstância que nos envaidece quando a semântica e o olhar que se lhe aplica nos permite atribuir uma conotação positiva ao termo,

155 SOUZA, Jessé. Op. cit., p. 185.

130 mas que nos causa profunda indignação e descontentamento quando a adjetivação não nos serve, nos levando a preconizar que o caminho da malandragem somente existe porque existem aqueles que nele caminham. Não convém idealizar demais, mas o fato é que as virtudes do brasileiro precarizado jamais foram convidadas a aflorar no longo caminho de construção da sociedade nacional e sua força de organização política com vistas à mudança do fenômeno mostrou-se sempre muito débil. Quando estas forças ameaçaram reagir, rompendo com a ordem liberal dada, acabaram sufocadas por forças outras que, malandramente, buscavam conservar o status quo. Desde muito cedo e por período demasiado longo, cultivaram-se suas mais frágeis potencialidades, negando-se aos homens e mulheres simples trabalhadores da nação um código de valores afinado com as coisas da modernidade. Houve no país uma confusão histórica por parte das elites comandantes que deixou de lado os valores que justificam a introdução dessa doutrina, fazendo-a permanecer perrengue. Sem eles, a sociedade construiu suas instituições modernas, mas não conseguiu homogeneizar o tipo humano, não foi capaz de criar um habitus primário fundado na cidadania indivisível e irrestrita do conjunto completo de seus componentes. Se existe uma preferência pela batucada, pela firula e pela quizomba frente ao batente, e tantas outras formas de expressar um comportamento malandro, ela não é nacional. Ela se restringe a segmentos precarizados da sociedade brasileira que, nem por isso, se concentra nas classes baixas, estendendo-se pelas mais diversas frações sociais, como se verificará adiante. A malandragem se revela uma forma de resistência frente ao modelo hierarquizador moderno, se apresentando muito mais enquanto substrato de condições sócio-culturais, de intervenções histórico-sociais estimuladas por condições criadas pela dinâmica dessa nossa modernização desastrosa, do que de qualquer outro fator. Dizer o contrário equivaleria a brigar com os fatos ou abusar da imaginação sociológica. Ainda assim, ainda assim, o homem simples brasileiro, trabalhador e precarizado, somente aparecerá como protagonista do processo histórico quando para se justificarem as mazelas sociais que têm acompanhado o País ao longo de sua história.

131 A inversão conveniente do semióforo O excesso de simbolizações e generalizações com que a questão da construção do caráter brasileiro é costumeiramente tratada, parece querer não nos deixar pistas de como superar o lado negativo, antirepublicano, do jeito de ser do homem precarizado brasileiro. Simbolizações excessivas costumam levar o pesquisador a “atribuir características irreais à dada figura, de acordo com seu próprio desejo, sem vínculo com a realidade social ou histórica”156, fazendo incorrer em erros facilmente evitáveis, mas difíceis de serem contornados. “Tudo acontece como se o Brasil se industrializasse, construísse um Estado centralizado e se urbanizasse sem que disso resultasse qualquer efeito sobre a esfera das personalidades individuais e suas relações sociais”, verifica Souza (2006), “as quais são percebidas como se pautando por valores personalistas e emocionais ibéricos de antanho”157. Este povo é malinterpretadamente condenado ao fracasso por um suposto “caráter aventureiro”, inerente a ele. Segundo essas simbolizações, seria essa qualidade de aventureiro – que lhe atribuíram sem lhe entender bem – o fator impeditivo de que se tornasse um “ladrilhador”, um “trabalhador”. Pedro Meira Monteiro, analisando as categorias de “Aventura” e de “Trabalho” na obra Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, de onde vem boa parte das leituras que fazemos sobre nós mesmos, explica que

[...] o aventureiro é aquele que ignora as fronteiras, que vê, nos espaços ilimitados, o alvo distante que lhe trará vultosa recompensa. Mas sua demanda é pelos resultados imediatos, preferencialmente aqueles que não exijam dele um grande esforço. Pouco labor e grande resultado, num curto período, parecem ser diretrizes de sua ação. O trabalhador, ao contrário, vale-se de um trabalho persistente e constante, tendo alvos eventualmente modestos, porém seguros. Importa-lhes menos o retorno imediato e vultoso, e mais a estabilidade advinda de um trabalho lento e minucioso – são eles os dois princípios da vida social.158

O tipo-ideal weberiano que auxiliou Sérgio Buarque a iniciar todo esse devaneio parece ter sido a sua descoberta de que, em espanhol o significado semântico das palavras tratante e traficante guardaram seu sentido neutro,

156 SOUZA, Jessé. Op. cit., p. 41. 157 Ibidem, p. 146. 158 MONTEIRO, Pedro Meira. Op. cit., p 33.

132 designando o homem que realizava atividades comerciais normais (la trata, el tráfico), enquanto entre os comerciantes portugueses que por aqui aportaram já em princípios da colonização brasileira, essas palavras assumiriam a significação pejorativa que possuem ainda nos dias de hoje – o que nos permite questionar se o nível de precarização dos indivíduos que sofreram uma colonização espanhola difere significativamente da nossa.159 A idéia de Sérgio Buarque de Holanda de atribuir ao brasileiro um caráter aventureiro, por termos sido colonizados pelo povo lusitano – proprietário de tais características, segundo a interpretação do autor –, parece ter sido um tanto infeliz, tanto menos pelo uso que o historiador faz do conceito e tanto mais pela má-interpretação que se fará dele posteriormente. Essa característica folclórica atribuída ao brasileiro acabará por ser mitificada, cristalizando-se, e fazendo permanecer a crença de certa ‘fraqueza inata’ do homem brasileiro, que daria forma ao malandro. Monteiro interpreta a obra de Sérgio Buarque, observando que “distingue-se o aventureiro do trabalhador, diz Buarque (1963:13/62), “que se detém em cada obstáculo, que vê primeiro a dificuldade a enfrentar e não o triunfo almejado e que se entrega ao esforço restrito e persistente. Ao primeiro tipo agradam “audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem” (...) e as recompensas imediatas (“seu ideal seria colher o fruto sem plantar a árvore”). Seria esta a maior marca da colonização brasileira. Aqui o português se adaptou ao meio tirando deste o melhor proveito possível da forma mais fácil, recriou na rotina local seu modo de vida. Passiva adaptação muito mais do que criação de uma pretensa civilização agrícola, apesar da centralidade histórica caber sim à lavoura latifundiária: ocorre que o fator motivador é a possibilidade de ganho fácil e simplificado verificado na cana-de-açúcar, não o modo de produção escolhido.160

159 O uso da análise da semântica para entender dada sociedade não parece ser o caminho mais seguro a trilhar na busca mais próxima da verdade. A própria palavra “brasileiro” designava, no período colonial, aquele que vivia de explorar e fazer comércio com o pau­brasil, madeira de cor de brasa de grande valor comercial à época. O sufixo eiro, nesse caso, tem, entre outras funções, a de assinalar uma ação ou uma função como em madeireiro, mineiro, pistoleiro, grileiro ou garimpeiro. Todavia, o adjetivo pátrio brasileiro indica a origem colonial dos que aqui chegavam e o que vinham fazer aqui. O Superdicionário da Língua Portuguesa, da editora Globo, (2000, FERNANDES, F.; Luft, C.P. e Guimarães, F.M.) assinala que brasileiro, além de ser aquele ou aquela “natural ou habitante do Brasil” também é o “português que residiu no Brasil e que voltou rico à sua pátria”. É interessante observar que embora a língua portuguesa nos oferece sinônimos para brasileiro, como brasiliense, brasilense e brasiliano essas variantes são desprezadas. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/analiseMostrar.cfm?coluna_id=3912 160 MONTEIRO, Pedro Meira. Op. cit. p. 37.

133 Muito provavelmente pelo fato de eliminar artificialmente as classes sociais – fato comum em análises de cunho “emocional” –, Raízes levará seus interpretes a atribuir ao povo brasileiro, uma ‘tendência inata’ ao ócio, onde residiria, por extensão, a origem de ‘nossa’ malandragem, de nossa “irresponsabilidade tropical”. A idéia é de que desse homem aventureiro, resultou um povo ‘zuzuto’, tantas vezes afável, cordial, homens e mulheres ‘naturalmente’ despreparados para o exercício da cidadania e, de acordo com interpretações posteriores fundamentadas na obra, presentes em artigos de jornais e livros diversos Brasil afora (e no exterior), nascera aqui um povo sistematicamente frouxo do ponto de vista ético, com a qual se inviabilizaria a idéia republicana pura, do ‘bem comum'.161 Outros autores, como Manoel Bonfim e Vianna Moog, também tentariam ‘explicar o Brasil’ através de recursos fundados na emoção, alegando que temos uma tendência ao desânimo fácil, à lamentação, à auto-vitimização, mas nenhum deles parece ter sido levado tão a sério e ter sido tão distorcido quanto Buarque. Monteiro nos ajuda a compreender esse aspecto da obra de Sérgio Buarque, argumentando que nem a ética do trabalho e nem a ética da aventura, ainda que permeiem Raízes, são condicionantes absolutos para Sérgio Buarque, o que seus seguidores não compreenderiam bem. De acordo com Monteiro

a ação humana, para o autor perpetra-se num universo de valores conflitantes, como no caso de Weber, e é a opção individual por certos valores que dá o rumo e o sentido das condutas dos sujeitos. Se “aventura” é uma categoria que ajuda a compreender a história de nossa colonização, não é porque os indivíduos se guiem, necessariamente, por uma abstrata ética da aventura. Não se trata de uma operação procustiana em que a conduta da gente lusitana deva necessariamente adequar-se a uma categoria previamente estabelecida. [...] É através de tal orientação que os traços fundamentais de “trabalho” e “aventura” são coletados e reunidos sob aqueles rótulos. É a percepção de uma agricultura predatória, praticada segundo um espírito mais próximo da mineração que do labor propriamente agrícola, que permite ao autor do ensaio, por exemplo, formular a idéia de uma civilização “aventureira”, possuidora

161 O fato de o aventureiro e escrivão Pero Vaz de Caminha, depois de descrever as maravilhas do território recém­encontrado, em 1500, e que depois receberia o nome de Brasil, ter­se aproveitado da oportunidade da carta que enviava ao rei português para pedir­lhe emprego para um parente próximo, alimenta a imaginação de muitos pensadores, que acabam por atribuir às nossas raízes ibéricas a origem, por exemplo, do nepotismo no Brasil (como se outras nações estivessem livres desse mal). Também as capitanias hereditárias, distribuídas por meio de critérios pouco racionais, são utilizadas como argumento de sustentação de teses neste sentido.

134 de uma ética contraposta à ética morigerada e mais burguesa do “trabalhador”. Note-se que em tal procedimento, a análise das fontes precede, necessariamente, a construção teórica.162

Na análise de Sérgio Buarque, encontrava-se em nossas raízes, em nossa herança cultural, os obstáculos á modernização do país, evidenciados, de um lado, em nosso “caráter aventureiro” e, de outro, nas práticas sociais das elites intelectuais e políticas anacrônicas, que representavam um obstáculo à renovação, ao moderno, ao nacional. O problema é que, quando se trabalha com simbolizações, se está fazendo uso de ilusões ou opiniões de uma época que, como assinala Huizinga, “têm o valor de fatos reais”163, mas nem por isso deixam de ser muito perigosas. Elas são sinais ou imagens capazes de ligar o visível ao invisível e permanecem no imaginário das pessoas, aistoricizando a compreensão do mundo em que estão inseridas e fazendo com que deixem de compreender a si mesmas. Esse tipo de artifício, ao qual Marilena Chauí dá o nome de “semióforo”, é usado geralmente pelas elites intelectuais para tornar uma dada sociedade una e indivisível, criando mitos e feitos lendários que servem como instrumentos de preenchimento do imaginário popular na resolução de tensões, conflitos e contradições, difíceis de serem solucionadas no nível da realidade.164 Para tal, estátuas, músicas, esportes e tantos outros artifícios são utilizados, e a consolidação da idéia de Nação, é exemplar. “Para obter maior integração de seu povo, e assim reduzir as causas de conflitos e muitas vezes camuflar estes conflitos, os Estados procuram criar uma imagem nacional, simbólica e de efeitos emocionais, a fim de que os componentes da sociedade política se sintam mais solidários”, explica Dallari. “Para tanto, busca-se evidenciar e estimular todos os elementos comuns que atuam como pontos de ligação entre os diferentes grupos sociais, especialmente procurando ressaltar os feitos positivos de cada grupo como realizações de todo o conjunto. E é por isso mesmo que se apregoa a existência de características nacionais, quando se

162 ibidem, p. 42. 163 HUIZINGA, johan. O declínio da Idade Média. Editora Verbo/Edusp. 1978. p. 784. 164 CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. SP: Perseu Abramo. 2002.

135 apontam certas notas comuns a toda a sociedade política, pois isso favorece a formação de uma consciência de comunidade”.165 Sob a égide do semióforo, a gênese dos fatos históricos é esvaziada, fazendo com que a vida social seja explicada sob uma perspectiva paralela aos fatos históricos, justificada via o mágico, o inexplicável, transformando o irreal em real, gerando um sentimento de que ‘as coisas são assim mesmo’ e contra elas não há o que fazer. O mito do caráter aventureiro do povo brasileiro, de sua preguiça, da sua malandragem inata, e de tantos outros de difícil comprovação histórica, não se justificariam, assim, sem o auxílio dos semióforos dos quais fala Chauí e que o transformaram em história, ainda que um tanto às avessas. Entre inúmeros outros, ele equivale ao dito popular que reza que ora Brasil, ora a mulher brasileira, é abençoado(a) por Deus e lindo(a) por natureza”. A malandragem vista sob a ótica do método culturalista, que se enquadraria perfeitamente na categoria fantasiosa de “aventura” de Sérgio Buarque, em que pesem as boas intenções do autor de Raízes, parece resultar de processo semelhante, não indo além das simbolizações. Simbolizações, como já se disse, procuram relativizar a realidade, o mundo material, fazendo existir apenas os conceitos, daí porque apóiam-se na questão meramente cultural para se fazerem ouvidas, e acabam por afastar o pesquisador ou leitor da realidade das pessoas. Conceitos são abstrações e, como tal, “servem apenas como ferramenta para se tentar compreender não somente a gênese dos fatos históricos, mas, igualmente, as razões que os fizeram seguir em dada direção. Não se trata de uma história regida pelos conceitos, mas apenas uma história vista através deles. [...] Não é a história que se guia na direção do conceito, mas fundamentalmente o contrário, como deve ser em análise histórica, podendo-se ou não aplicá-lo, de acordo com as possibilidades”, diz Monteiro166. Nesse mundo da imaginação moral, dos conceitos soltos, nossas mazelas nascem, não de nossos próprios erros, mas de certa raiz ibérica, da qualidade inata do povo que se formou por aqui, como se, na dimensão

165 DALLARI, Dalmo. Op. Cit. p. 137. 166 MONTEIRO, Pedro Meira. Op. cit. p. 134

136 histórica, valores individuais ou coletivos permanecessem intactos, não se transformassem nem desaparecessem, e as virtudes não tivessem prazo de validade para quem foi precarizado. A fraqueza nacional longe está de se encontrar num suposto ‘espírito indolente’, mas na ausência de organização popular, capaz de transformar o destino de sua modernidade e, por extensão, os seus próprios, e é para esse esclarecimento que essa obra pretende contribuir em alguma medida. Qualquer estudo de caso realizado em lugares de modernidade periférica poderá mostrar como o caso brasileiro nada mais é do que a ilustração de tantos outros. No capítulo 7, apresentaremos um estudo neste sentido, para dar alguma sustentação às teses aqui expostas. Por ora, nos limitamos a verificar como se dá o desenrolar do fenômeno da malandragem a partir do esforço de modernização de nossa modernidade pelo trabalhismo.

137 Capítulo 6 Modernização, mito e malandragem O Brasil é o país do futuro Stefan Zweig, sociólogo austríaco (1941)

Quando o modelo de desenvolvimento fundado na substituição de importações tomou lugar entre nós, a partir da década de 1930 do século passado, avassalando nossos corações e mentes com a promessa de nos tirar do reino da necessidade e nos colocar entre os países modernos do Ocidente, parecia que encontráramos finalmente o ‘nosso lugar ao sol’. O Brasil se inscrevia no time dos grandes países. Sua economia se tornava de peso. Poderíamos comprar muitas coisas com nossos salários garantidos em carteira e sentir-nos civilizados com nosso sistema de proteção social debutante, mais ou menos como vinham fazendo nossos irmãos de países desenvolvidos. Para nós, tudo o mais era secundário: democracia, escolarização e tantos outros imperativos modernos sem os quais o sistema tenderia a permanecer coxo. A fórmula parecia correta. O sentido ‘positivo da modernidade’ – que iguala ilusoriamente os homens e opaciona seu caráter dominador – se mostrava capaz de minimizar o sentimento, também entre nós, de que ‘uns homens são mais iguais do que os outros’ por natureza. Teoricamente poderíamos, finalmente, disputar em pé-de-igualdade como nossos semelhantes os espaços do reconhecimento social, pois a situação de privação que a massa brutalizada vinha sofrendo poderia ser revertida com a ajuda tópica do Estado providencial no que tange às questões sociais. Entendemos ali que estas questões estavam fundamentalmente ligadas ao aspecto econômico e que a aceleração desse fator seria determinante para a reprodução tanto do mercado quanto do Estado modernos e para a garantia de um consenso social ampliado. Daí em diante, o desenvolvimento nestes termos deveria representar um salto na nossa modernidade e, por isso, havia sido eleito por ela para fazer com que os conflitos de classe (ou de classes) fossem amainados, nos preenchendo com a sensação de que as coisas iam bem. É esse salto que permitiria avanços significativos no campo dos direitos de cidadania entre nós, já que agora a vida humana tinha se transformado em mercadoria, estando disponível no mercado. Por isso ficaríamos presos a esse aspecto positivo da

138 modernidade, dando de ombros para a imprescindibilidade da aquisição de capital cultural diferencial pela massa brutalizada durante muitas gerações de brasileiros.

A modernização trabalhista e o poder simbólico do autoritarismo

O trabalhismo via com maus olhos a progressiva brutalização do indivíduo trabalhador e compreendeu que ali pairava a formação do malandro brasileiro. Os pressupostos da malandragem representavam a própria antítese dessa doutrina que, melhor do que qualquer outra, enxerga no trabalho o meio ideal de construção do ser humano em todos os aspectos. Para o trabalhismo, através do trabalho é possível realizar os fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana e construir uma sociedade livre, justa e que promova o bem de todos os trabalhadores. Esta compreensão foi muito positiva como forma de amainar o sentido negativo do trabalho para a grande leva de homens seviciados que havia entre nós. Foi através dela que se pôde perceber com clareza que a essência do fenômeno da malandragem mantinha uma relação umbilical com a resistência histórica do homem brasileiro à imposição do trabalho. Os homens de Getúlio haviam percebido, muito antes da Revolução de 1930, que nossas instituições, tanto imperiais quanto republicanas, eram, em grande medida, responsáveis pela produção de uma massa brutalizada de seres humanos que não conseguia sentir apreço pelo trabalho ordenado implicado pela modernidade. O grupo atribuiu, de maneira um tanto simplista, as causas do fenômeno às cicatrizes do trabalho deixadas pelo sistema de produção anterior e entendeu que era preciso apagá-las, através de instituições fundadas num novo sentido da produção de riquezas e num ‘sistema de recompensas’ que justificasse tamanho esforço. Em sua fixação antiliberal, o grupo trabalhista que assumiria a tarefa espinhosa de por em funcionamento a modernidade brasileira através da modernização de todas as suas instancias, entendeu que tinha sido a doutrina liberal que fizera com que a máxima de Montesquieu produzisse um efeito contrário aquele pregado pelo pensador francês: as instituições republicanas

139 tinham sido implantadas havia mais de um século, mas não por outro motivo se não para conservar a lógica colonial de construção do caráter – da opressão, do mandonismo, do aliciamento, das lealdades e reciprocidades –, da decomposição das virtudes do homem e do trabalho. O liberalismo caboclo teria feito degenerar os homens simples daqui, se abstendo de criar o povo brasileiro. Na perspectiva do pensamento trabalhista, ao homem simples trabalhador brasileiro, sem esperanças de mobilidade social através do trabalho e sem respostas institucionais para suas reclamações, restara conviver, desde sempre, com a sensação de fracasso e insegurança, e com a constante incerteza do amanhã. A construção do homem brasileiro não tivera rosto por não ter sido sustentada sobre a ordem do trabalho, do progresso e da razão, atrelando-se historicamente às conveniências do momento. Se os homens e mulheres daqui resistiam em aceitar as regras da dominação moderna, isso se dava não por outro motivo, mas pela degeneração de seu caráter. O pensamento trabalhista assenta também na crença de que o caráter é um grupo de qualidades, boas ou ruins, da pessoa humana, que resulta de progressiva adaptação constitucional às condições ambientais, familiares, pedagógicas e sociais. Essa doutrina acabou por constatar, por deduçao lógica, durante a sua gestação ideológica no país nas primeiras décadas do século XX, que por aqui não havia sucedido nenhuma surpresa. A introdução das instituições modernas, até ali, não tinham representado uma melhora significativa na perspectiva de realização pessoal e de longo prazo dos nacionais. Era preciso, pois, construir o povo brasileiro e reconstruir a nação a partir do sentido do trabalho, através da criação de um sistema de proteção social fundado nos direitos trabalhistas. O grupo getulista fundamentava seu raciocínio na máxima montesquieuana de que “não existe virtuosismo onde as instituições políticas são fracas”167, e inferiu, de pronto, que era preciso fortalecer as instituições

167 Não se admire, pois, que à época da escritura desse trabalho, nós seríamos o país que mais mudanças institucionais havia realizado, desde sua criação. Passamos da forma de Estado unitário a federativo. Substituímos a forma de governo, tendo conhecido o sistema monárquico e o republicano. Aventuramo­nos por

140 modernas, inventá-las num formato repressor e controlador, acima das classes, dos indivíduos, das diversidades, das ideologias, da própria massa brutalizada, até que a sociedade estivesse ‘devidamente formatada’. Para tanto, se fazia necessário utilizar de estratégias próprias – ou polacas, se fosse o caso – para conduzir essa massa brutalizada à fábrica e um sistema de ‘vantagens’ precisava ser mirabolado para justificar seus feitos. A visão desse grupo se mostra larga ao enxergar na precarização das condições de vida do trabalhador, as possíveis causas de sua resistência ao trabalho. Ela igualmente se mostra distinta ao conjeturar no fortalecimento das instituições uma possibilidade de reverter o fenômeno da precarização humana, através da criação dos direitos sociais e da aceleração do desenvolvimento econômico do País. A estratégia trabalhista vai levar o Brasil – nação a qual o sociólogo austríaco Stefan Zweig em conferência no Rio de Janeiro, em 1941, chamou de “o país do futuro” – a crescer a taxas de quase 10% ao ano até 1970, configurando uma das maiores e mais rápidas transformações já registradas na história da humanidade, quando despontaríamos como uma das dez maiores economias do planeta, depois de figurarmos como uma das mais miseráveis nações do mundo. Nasce daí um sistema de proteção social, manco de direitos civis e políticos que se confunde em muitos aspectos com direitos de cidadania. O grupo de Getúlio não consente que a democracia liberal debute entre nós, ofertando antes vantagens ao trabalhador – fragmentos de direitos que, se pensados em termos rigidamente marshallinos, desautoriza a cidadania a completar seu ciclo e impede que o trabalhador avance no aprendizado político endógeno, no “despertar da consciência cívica” (Marshall, 1949).168

duas vezes com o parlamentarismo, do tipo informal do Império, e do tipo formal da República. Neste momento somos presidencialistas. 168 Não se trata da necessidade de haver um esquema cronológico rígido de direitos, como queria a análise marshallina, começando pelos civis, passando pelos políticos e desembocando nos sociais, para que se conquiste a cidadania. Trata­se da possibilidade de se perceber no trabalho o tal instrumento para a conquista e a extensão desses direitos, e esta percepção foi em grande medida anulada pela introdução dos direitos sociais pelo trabalhismo, da forma como se deu, pela limitação ou supressão dos direitos, sobretudo, civis de propriedade, de igualdade e de liberdade. Observe­se que não há aqui apologia do enfraquecimento ou da diminuição do Estado, bem como não se compartilha o entendimento de que os governos são o problema e não a solução – de que estes desgastaram e fizeram colapsar as virtudes cívicas dos cidadãos. O Estado, pelo contrário, é tomado neste

141 A ação dos trabalhistas conseguirá em alguma medida atrair para a fábrica o malandro e permitirá mesmo a formação de uma classe média obediente e dócil, do tipo “bovino”, como costumava dizer Frederick Taylor, o inventor de linha de produção em alta escala (1911)169, mas esta ação será ofuscada pela permanente ausência de direitos civis de propriedade, de igualdade e de liberdade. Os trabalhistas iludir-se-iam com a perspectiva de formar o cidadão brasileiro através do trabalho e da distribuição gratuita de direitos sociais, enquanto lhe negavam direitos de ordem civil de propriedade (e política). Tinham sido esses direitos que tinham permitido ao trabalhador inglês, por exemplo, enxergar virtudes no trabalho, e não propriamente os direitos sociais. Estes não tinham sido mais que uma conseqüência daqueles (Marshall, 1949) 170. A estratégia trabalhista se mostrará insuficiente para estimular um civismo que supostamente habita o inconsciente dos homens em geral, como acreditam os republicanos de toda ordem; as suas supostas virtudes. Ela despertará nas pessoas não mais que um desejo de ascender econômica e socialmente em bases individuais. Por isso mesmo, não conseguirá desestimular a malandragem, a descrença na legitimidade dos imperativos modernos; justamente porque entrega uma “cidadania de resultados, seletiva regulada”, como diz Santos171. Entre nós, será este o modelo de cidadania que vigerá durante nossa experiência republicana, até a redemocratização do país, no último quartel do século passado, impedindo o malandro de perceber que ele pode vencer fora das rédeas longas da malandragem. Em que pese o crescimento do mercado interno e o agigantamento do Estado resultantes do processo de modernização, a doutrina se mostraria

trabalho como instrumento essencial para a promoção destas manifestações. O desconforto que se procura externar aqui é justamente a forma de atuação do Estado no período. Seu agigantamento não foi acompanhado de um crescimento em igual proporção do sentido de “bem comum republicano”. Ainda que pela imposição da obediência tenha inibido as formas tradicionais de lealdades e de reciprocidades, foi incapaz de engranzar a percepção não somente do sentido do “bem comum republicano”, como do próprio sentido democrático de cidadania. 169 TAYLOR, Frederick Winslow. Princípios de administração científica. SP: Atlas, 1979. 170 MARSHALL, T.A. Op. cit. 171 SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça. RJ. Ed. Campus, 1979. p.75.

142 incapaz de criar um habitus primário fundado na igualdade entre todos os indivíduos. As vantagens distribuídas por ela, em sua tentativa de transformar a massa brutalizada em trabalhadores respeitados, foram incapazes de conduzir os indivíduos rumo a uma maior completude de sua cidadania. Ela pecou ao não apontar sua mira para o âmago da questão, perdendo a oportunidade de criar, de fato, as condições para que se vislumbrassem homogeneizar o tipo humano por aqui e garantir a hegemonia da dominação naturalizada pelas vias da modernidade clássica. Tanto mais que se utilizará da força bruta ou do aliciamento sempre que buscar convencer os demais segmentos da sociedade sobre o melhor caminho a seguir, extendendo a ‘prática do porrete’ (Carvalho, 1995)172 até nossa cultura política.

A modernização brasileira e a criação do cidadão cabisbaixo

É a partir da experiência trabalhista que o homem simples brasileiro deixa finalmente de ignorar a presença do Estado em sua vida. É a partir daí que ele deixa de viver uma relação de total clandestinidade com este e passa a enxergar alguma legitimidade na modernidade tal qual se apresenta. A ocasião, nem por isso, se transforma numa oportunidade ótima para que este indivíduo enxergue no Estado um instrumento necessário e efetivo de ação política, para fazer acontecer a sua cidadania, para que ele se torne livre e igual, como se poderia imaginar (Carvalho, 1995).173 E isso se dá justamente porque a tradição trabalhista nasceu e se manteve autoritária, prescindindo das instituições enquanto pôde se sustentar. Ela cobrou do povo obediência, mas não manteve com ele uma relação cidadã, democrática. 174 Controlou as informações, negou a deliberação e promoveu a manipulação das massas, domesticando-as em

172 CARVALHO, José Murilo de. Op. cit. 173 Ibidem, p 147. 174 “Como se esvazia o sentido da democracia? Como no período Vargas, mais especificamente no Estado Novo, fazendo com que a sociedade esteja representada politicamente no governo, não através dos indivíduos, mas das corporações. Aqui, o Executivo absorve todas as forças vivas da sociedade, trazendo para si tudo que é vivo na sociedade e, de cima para baixo, formula políticas para esta mesma sociedade”. VIANNA, Luiz Werneck Vianna, País vive ‘Estado Novo do PT. O Estado de SP, 05.08.2007.

143 seu proveito, negando radicalmente o ideal democrático, desvirtuando as possibilidades de crescimento real do sentido republicano. No manejo do poder, o trabalhismo desprezou a ordem legal, sobrepujando as instituições públicas. Dispensou as mediações políticas representadas pelos três poderes republicanos. Apoderou-se do Congresso e induziu uma espécie de justiça direta entre governados e governante. Suprimiu a imunidade parlamentar e depurou o Poder Judiciário, sucumbindo à tentação autoritária. Não terminou totalitário, mas, apostou na incapacidade de a sociedade reagir, com firmeza, a todas as suas formas diretas e simuladas de cerceamento à plena liberdade de expressão e de organização. A idéia trabalhista era domesticar as instituições liberais, visto considerá- las oligárquicas e, portanto, contrárias à vontade popular. Logo, mandou prender os velhos coronéis da Primeira República – que entregavam o voto fechado num envelope para que o súdito o depositasse na urna, sem lhe dar o direito de saber em quem estava votando –, enfraquecendo as bases do controle clientelístico de clãs oligárquicos que dominavam setores do aparelho do Estado e transformavam municípios e Estados em feudos familiares. Tratou de falar de perto com o povo e de incitar suas paixões: o organizou, inflamou e ‘fabricou verdades’. Abominou a liberdade de expressão e mandou prender também a crítica. Voltou-se contra seus próprios fundamentos ao identificar-se com o liberalismo caboclo, menosprezando as coisas da democracia e degradando o espírito da política e da idéia republicana. Estabeleceu relações pensadas e realizadas sob a forma da tutela e do favor; da existência de um ‘salvador da pátria’ que conduziria a sociedade ao paraíso. Levando a porção positivista do pensamento moderno às últimas conseqüências, o trabalhismo não permitiu, de fato, que a massa de homens brutalizados brasileiros deixasse o passado para traz; que despertasse para formas novas de entendimento do processo político. Enxergou nelas não a soma de vontades individuais expressas em um voto e representadas por um Parlamento, e tampouco a encarnação da “vontade geral”, de Rousseau, mas uma massa seletiva e apolítica que se traduziu no trabalhador urbano. 175 O

175 Até 1930, o povo não teve lugar no sistema político. Por isso mesmo, a queda da Primeira República teria representado um avanço em relação à sua proclamação em 1889 (Cf. CARVALHO, 1980). Tal avanço conduziria a

144 trabalhismo caboclo exaltou o líder carismático, representado majoritariamente no personalismo de Getúlio Vargas – nosso homem providencial que resolveria os problemas do povo –, ‘o intérprete supremo da verdade geral’. Encarnou e incorporou o poder e dele não mais se separou e se distinguiu. Não simpatizou com a idéia republicana de ver as instituições governamentais – como o Congresso e o Judiciário – cumprindo o seu papel constitucional: o de limitar o poder do governo e de coibir os atos arbitrários dos governantes. No afã de implantar uma agenda modernizadora no país e promover a unidade nacional, deu um basta às relações promíscuas que a República Velha criara, mas não se furtou de controlar o Congresso.176 Quis conversar diretamente com os governados, e com muitas caras, incorreu no

sociedade, se não necessária e imediatamente em direção aos direitos civis e políticos, certamente em direção aos direitos sociais – um paradoxo, segundo a perspectiva da pirâmide marshalliana. Marshall ensina que a introdução de um direito, (direitos políticos), depende da familiarização à exaustão de outro (direitos civis) e, daí, aos direitos sociais, o que significa criar as bases para a cidadania (direitos civis, políticos e sociais). No Brasil, começou­se invertendo a tal pirâmide, pelos direitos sociais, sem a existência dos outros dois. O fato é que esses direitos foram insuficientes para fortalecer a sociedade civil ao ponto de fazê­la exigir a institucionalização dos direitos políticos e sociais. Se a institucionalização do país se dá em 1946, é muito mais por força das elites descontentes que da sociedade civil. A fraqueza das instituições gera o Movimento Militar de 1964. 176 O Modelo Campos Sales é a denominação escolhida por Renato Lessa para conceber a estratégia política encontrada pelo presidente Campos Sales na resolução dos problemas que afloraram nos dez anos imediatamente posteriores a ‘aventura republicana’. De acordo com o autor, feita a República, abriu­se não somente um ‘vazio institucional’, mas ainda um claro descompasso entre os anseios do Poder Central e dos Estados federados, cuja autonomia quase que irrestrita, ameaçava sair do controle da União. Para reparar tal fratura e criar uma situação de governabilidade – para legitimar a invenção republicana –, põem­se em jogo o Modelo Campos Sales, que consistia num pacto, proposto pelo Presidente Campos Sales às oligarquias regionais. O modelo buscaria congelar a competição local de forma a fazer revezar­se no poder as facções estaduais e municipais mais poderosas. Segundo o autor, o tal modelo operou como um excelente antídoto contra a possibilidade (pouco remota) de ter as massas no comando político da nação. A invenção de Campos Sales visava produzir uma nova forma de ordem, capaz de aprisionar e domesticar a barbárie. Ela não significava, pois, somente outro nome para a política dos governadores ou política dos Estados. Ela formaliza uma doutrina a respeito das funções do Estado e a forma de operação da comunidade política que está acima da própria Constituição, e que tem por finalidade máxima dotar a esfera executiva de um mínimo de governabilidade, ou seja, algemar as massas, por um lado, e, por outro, atribuir plena autonomia às elites estaduais para estabelecer nexos específicos entre o povo e o comando da polis. A estratégia central desse modelo era fazer a competição parecer desnecessária, garantindo a governabilidade máxima do poder central e mínimo revezamento no poder em todos os níveis. Cf. LESSA, Renato. A Invenção Republicana – Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira. RJ. Vértice. 1988.

145 mesmo erro: tratou o Estado como um veículo a ser conduzido segundo o paladar do condutor; prescindiu dos valores republicanos. O trabalhismo procurou justificar seus arbítrios e fazer crescer sua simpatia alegando ganhos palpáveis ou imaginários para as pessoas. Criou os direitos sociais no país depois de descobrir neles uma oportunidade rara de controle social, inventando, na melhor das hipóteses, o cidadão, cabisbaixo, acrítico; o trabalhador urbano cooptado. Buscou introduzir novas formas de relacionamento do povo com o poder. Bem-sucedido, procurou enfraquecer a malandragem redimindo o malandro por meio do trabalho e da aceitação do Estado enquanto instrumento de ação política. Foi feliz, em alguma medida, no primeiro caso, mas fracassou infimamente no segundo, e este talvez tenha sido seu maior engano. Abriu as portas para a escancaração autoritária que nos acometeria em breve. O trabalhismo fez vistas grossas à essência da Res publica. Não entendeu direito a imaterialidade dessas coisas, de seu poder simbólico (Bourdieu, 1998), mas se pretendeu de fato revolucionário. Não se deu conta do significado intangível no imaginário humano que pode representar certas coisas, tais como o acesso fundiário e o conhecimento. Não promoveu a reforma agrária, nem universalizou a escolarização. O menosprezo dessa doutrina social pela idéia de democracia e de república é que marcarão negativamente a sociedade nacional nos anos vindouros, muito mais do que qualquer outro caráter conservador de sua modernização. E não é sustentado noutras bases que se apoiará o Movimento Militar pouco mais de duas décadas mais tarde, agredindo, mais uma vez, a democracia e os direitos modernos de cidadania que ensaiavam tomar forma naquele momento entre nós. A doutrina trabalhista não funcionou no sentido de formar democratas e tampouco republicanos. Como castigo, ela própria seria excluída do processo político, e poucos anos mais tarde, ameaçadas estariam suas liberdades civis. Ali, ficaria patente que a as coisas da democracia jamais tinham recebido a devida atenção entre os homens iluminados do País. Sua concepção esteve sempre condicionada a fatores outros que prescindiram da liberdade e da igualdade, condenando-a a eterna infância, e os direitos de cidadania a uma eterna incompletude por aqui.

146 As condições criadas pela doutrina trabalhista para garantir a dominação moderna se mostraram inapropriadas para resgatar aqueles que não acumularam capital econômico e cultural suficientes para fazer o diferencial e disputar um lugar na produção em massa. O resultado não poderia ser outro, mas o aprofundamento do servilismo da massa brutalizada, o agigantamento de seu processo de precarização não somente econômica, mas também política e socialmente. O grosso da população aviltada não ‘conseguirá vencer com as próprias pernas’ e nem com o ‘empurrãozinho do Estado’. Daí em diante, a explosão de favelas, cortiços e de outras condições precarizadas de habitação e de vida, desacompanhadas de programas efetivos de ajuste estrutural do setor público – fenômeno comum à periferia da modernidade – (Davis, 2006) 177, se reproduziriam numa velocidade alarmante e a sociedade se encontraria em permanente débito de cidadania. O fato é que o trabalhismo e o pensamento formatado sob suas rédeas nas décadas vindouras parecem não ter entendido bem que a aquisição do capital cultural diferenciado, que é adquirido sob a forma de conhecimento técnico e escolar, e é fundamental para a reprodução tanto do mercado quanto do Estado modernos, seria determinante para colocar, de fato, em irrestrito pé- de-igualdade e condições a massa brutalizada que vinha sendo produzida pela modernidade cabocla nas décadas anteriores e para lhe apontar com a possibilidade de conquista de algum respeito e dignidade. Longe dele o que se produzirá e reproduzirá infindamente será uma ralé estruturalmente fabricada, que, salvo raras excessões, somente acumulará mais capital malandro. Estes indivíduos estarão cada vez mais distante das classes médias nascentes e obviamente das classes altas – as quais já não interessa tanto entregar-se as coisas da malandgragem, como havia feito num passado nem tão distante. A prática da apropriação diferencial do ‘capital malandro’, que outrora fora realizada em maior escala pelos segmentos mandões, deixa de agregar valor com o avanço da modernização, sendo colocada de lado, paulatinamente, por este segmento e ficando reservada em maior escala às classes baixas. Os mandões de outrora parecem se mostrar agora satisfeitos com as promessas de lucro realizadas pelo mercado, via a tutela do Estado. Eles parecem já não

177 Cf. DAVIS, Mike. Planeta Favela. SP: Boitempo, 2006.

147 se incomodar com os imperativos modernos e já não questionam, via a malandragem, a legitimidade dessa ideologia. Este grupo, aliás, parece bastante confortável com sua presença, visto ter acumulado não somente influência sanguinea, mas também capitais cultural e econômico durante a fase anterior da modernidade cabocla, suficientes para sair na frente no ‘jogo da competição moderna’ do mercado de trabalho e continuar dominando. Com preparo garantido, esse segmento, bem como seus filhos e netos, vai aparecer como o mais meritocraticamente apto a assumir os mais altos postos de trabalho e as melhores funcões públicas, determinando uma hierarquia social bastante rígida entre nós. Cabe lembrar que a modernidade funda-se grandemente numa espécie de ‘seleção natural darwinista’, que diz que as espécies mais fortes e competentes se dão melhor que as demais. Ela se sustenta na idéia de que o princípio da vida está na competição e sem a qual não existiria a humanidade tal qual se conhece atualmente. Essa crença difundida ajuda a naturalizar a idéia de que algumas pessoas, supostamente melhores, dominem outras, tanto econômica, social, política e cultural, quanto moralmente. Para a modernidade, a competição prevalece sobre a solidariedade e esta última somente pode acontecer se respeitada a liberdade da primeira. O processo de modernização da modernidade brasileira coloca na dianteira da competição social indivíduos que já contavam com algum treinamento de fato moderno ou com o acúmulo de capital suficiente, funcionando ambos como fatores diferenciais entre os nacionais. Mais do que a clássica apropriação do capital econômico pelos segmentos detentores dos meios para tal, essa apropriação agora passa a ser realizada no campo do conhecimento, o que justifica o nascimento das classes médias entre nós. São estas que, compreendendo bem a ‘utilidade do mérito’ e das amizades interessadas, vão se beneficiar dos melhores empregos, dos melhores salários, de melhor escolaridade, de melhor saúde, de maior felicidade material e de melhor qualidade de vida. 178

178 Não é que estas pessoas sejam ou fossem más – e se admitíssemos o engodo, não faríamos outra coisa que incorrer no mesmo erro culturalista. Estas são somente pessoas distribuídas em classes sociais, e, por isso mesmo,

148 Aos indivíduos e segmentos não possuintes de capital cultural diferencial serão reservadas as tarefas consideradas socialmente ‘menos nobres’, jogando no esgoto social os ‘derrotados’. São estes indivíduos que serão explorados não somente pelos ricos, mas também por estas, na tarefa de lhes poupar tempo para reciclarem seus conhecimentos e garantir a sua dominação cultural e econômica gradativamente, e os livrarão do vexame de realizar tarefas tão socialmente desprezíveis. Os espaços criados pela malandragem permitirão a muitas pessoas do povo se destacar por suas habilidades pessoais, por sua criatividade e por seu merecimento. É nas “peladas” de final de tarde, que logo apresentaria ao mundo o melhor futebol do planeta, nas conversas de botequim, que amadureceriam a idéia das escolas de samba, do carnaval, que resultaria na maior festa popular do mundo, que músicos, sambistas e futebolistas, originários das classes populares, particularmente negros e mulatos brasileiros natos e imigrantes pobres, serão escolhidos como os melhores. Em meio à malandragem nascente, os escolhidos como melhores são os que realmente se destacam, pois somente ali, os indivíduos são de fato submetidos a regras de validade universal, fundadas na ideologia da igualdade meritocrática. Fora destes espaços vigerá tão somente a ‘inutilidade do mérito’ para esses indivíduos. Longe das pré-condições sociais, morais e culturais, o imaginário dessa massa brutalizada, transformada em ‘ralé’ (Souza, 2006), parece retornar ao estágio de desenvolvimento anterior da modernidade, quando, pela ausência de igualdade de oportunidades e condições que justificasse sua existência, não reconhecia como legítima essa ideologia. Para fazer valer seus anseios, resta a esta ralé se apropriar diferencialmente do capital malandro sempre que pode e fazer menos sua a modernidade. Daí porque o fenômeno da malandragem permanece titubeando entre o ‘certo e o errado’, segundo a moral moderna. Ainda assim, longe ele está de ser uma prática exclusiva sua, e tenderá a se infurnar entre as classes sociais à medida que o processo de modernização é acelerado.

a dinâmica e especificidade da modernidade tupiniquim as levou a condição de dominadoras, em alguma gradação.

149 A competição moderna e o conflito latente na periferia

Sendo que até aquele momento de modernização econômica da modernidade brasileira era o não-reconhecimento da ordem moderna como legítima que fazia gerar o fenômeno da malandragem, a partir daqui será, em grande medida, a sua aceitação, através da busca desse capital cultural diferencial, que o fomentará. Ao serem impelidos a competir em pé-de- desigualdade desde que nascem, tanto os indivíduos ‘mais iguais’ quanto aqueles ‘menos iguais’ são levados a crer que há sempre ‘um jeitinho’ para se amolecer a rigidez da hierarquia social e ‘levar vantagem’, ‘dando-se bem’ de alguma forma. É daí que, dentro da ordem moderna, o habitus malandro passa a valer para os mais variados segmentos sociais. Essa é uma luta intraclasses e sua presença é latente, mas se manifesta como sendo um traço cultural brasileiro e, por isso mesmo, não aparece como conflito. Até que o processo de modernização sacudisse a nossa modernidade, o País estava dividido entre dominados e dominadores, os segundos valendo muito e os primeiros valendo nada. Agora, é esta modernização que diz quem vale, quem não vale, e o quanto vale cada um na sociedade, e é também nela que se revela o processo de dominação moderno entre nós. Neste sentido, Marilena Chauí contribui com esta reflexão, esclarecendo que

no capitalismo da segunda metade do século XX, a organização industrial do trabalho, sob o comando da chamada "gerência científica", foi feita a partir de uma divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros, que recebem educação científica e tecnológica, são considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e científicos, mas apenas sabem executar tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades de sua ação. São por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer. Essa divisão se espalha por todas as instituições sociais sob a forma de uma ideologia, a ideologia da competência , segundo a qual, os que possuem determinados conhecimentos têm o direito natural de mandar e comandar os demais em todas as esferas da existência, de sorte que a divisão social das classes aparece sobredeterminada pela divisão entre os especialistas competentes, que mandam, e os demais, incompetentes, que executam ordens ou aceitam os efeitos das ações dos especialistas. Isso significa que a política é considerada assunto de especialistas e que as decisões são de natureza técnica, via de regra secretas ou, quando publicadas, o são em linguagem perfeitamente incompreensível para a maioria da sociedade. Dessa maneira, as decisões escapam inteiramente dos

150 cidadãos, consolidando o fenômeno da despolitização da sociedade.179

Entre nós em particular, é a partir desse momento de aprofundamento moderno que os laços de família e outros artifícios fundados na emoção, que eventualmente haviam permanecido por aqui durante a primeira fase de nossa modernidade, seriam sobrepujados em nome da competição. Sob a tutela trabalhista, passávamos a experimentar as características da modernidade, que, como bem disse Walter Benjamin, “é capaz de afastar os problemas dos lares, já que os familiares produtivos não podem ficar a mercê dos cuidados que exigem os inadaptados”.180 Assim, cada vez mais, maridos e mulheres, pais e filhos, namorados e namoradas, travariam uma batalha permanente entre si, por respeito e reconhecimento no mercado, deixando para trás os laços fundados na emoção, no sentimento. Curiosamente, no jogo da dominação tupiniquim, não vale mais somente quem dispõe de maior capital econômico, e a malandragem não se reserva aos indivíduos que investem suas vidas em busca dele. Para estes a bandidagem propriamente dita preenche as lacunas de sua existência marginal. Mas isto nem sempre é dito abertamente, visto que a assertiva desnuda o conflito latente no seio da sociedade nacional. Parece mais harmonioso aceitar a idéia de que temos “defeitos de origem” e que este é o nosso problema. O conflito parece próprio de situações que envolvem relações de dominação. A ocultação desse conflito através da ideologia do “somos malandros por natureza”, omite a ausência da igualdade de oportunidades e condições perene ainda em nossa fase de modernização econômica. “A sociedade brasileira”, argumenta Chauí, “é uma sociedade em que a classe dominante exorciza o horror às contradições, promovendo a ideologia da união nacional a qualquer preço. Ela se recusa a trabalhar os conflitos, porque eles negam a idéia mítica da boa sociedade pacifica e ordeira.” 181 O problema é que “a classe dominante”, segundo a perspectiva na qual se escreve este trabalho, há muito deixou de ser uma apenas; ela(s) hoje se

179 CHAUÍ, Marilena. Disponível em: http://www.somosmercosur.org/?q=es/node/89. Acesso em 20.06.2007. 180 BENJAMIN, Walter. A modernidade. Coleção obras Escolhidas. Assírio & Alvim. 2007. Int. 181 CHAUÍ, Marilena. Congresso Interamericano de Educação em Direitos Humanos, em Brasília, 2006.

151 esparrama(m) pelos mais impensáveis espaços sociais. Por isso mesmo, o Brasil deixa de ser um lugar onde se possam aplicar indiscriminadamente teorias fundadas numa lógica maniqueísta – se é que alguma sociedade moderna permita fazê-lo –, em que se vislumbram duas classes sociais conflitantes. No jogo da dominação periférica tupiniquim, o que emperra o alcance dos direitos de cidadania, é também a busca incessante do capital cultural diferencial que autoriza todas as classes sociais a usarem o ‘xaveco’ e a ‘ginga’, as ‘coisas da malandragem’ de um modo geral, sempre que estes se fizerem necessários para evitar o conflito. Não é por outra razão que as classes médias se utilizam do recurso de dissimular esse conflito sempre que o julgam indispensável. Ou será que se sente confortável, por exemplo, um analista de sistemas ou outro profissional que tenha acumulado muito capital cultural, que, depois de negar direitos trabalhistas por anos a fio à sua faxineira particular – o que é uma prática corriqueira entre nós –, se vê denunciado pela mesma nas instâncias superiores? Em sociedades onde vige um habitus primário comum a todos, pode-se imaginar que o profissional de classe média acatasse com maestria uma suposta decisão judicial favorável a manumissa. No caso brasileiro essa imaginação parece obra de ficção. Cultivado no habitus da malandragem, o profissional em questão dificilmente deixaria de recorrer ao recurso do ‘jeitinho’ para safar-se do ‘mal-entendido’. E é nesse sentido que essa permanece sendo uma sociedade autoritária e vertical, hierárquica e oligárquica, com gradações de diversos níveis. Estas características há muito deixaram de ser exclusividade dos mandões de outrora. Embora as classes médias não se arroguem o direito de ser tão prepotentes e capciosas quanto aqueles, também elas se habituaram a contar com as ‘coisas da malandragem’ para fazer valer os seus anseios, e o fazem por meio do acúmulo de capital cultural que passaram a possuir a partir da modernização do País. As classes médias embrionadas pela competição moderna periférica aprenderam que a gentileza, o agradecimento e outras formas polidas de tratamento de seus subalternos (e da sociedade em geral) são de fundamental importância para garantirem a dominação sobre este último segmento. Elas têm o cuidado quase histérico de usar expressões de ordem tais como ”por

152 favor” e “com licença” para se dirigir às suas empregadas domésticas e aos zeladores dos prédios em que vivem, como forma de cooptação. À primeira, procuram chamar de secretária, para não parecer agressivo, e ao segundo, tratam pelo primeiro nome, não se esquecendo de lhes reservar uma gorda “caixinha” ao final do ano. Mas isso é algo do qual preferem não falar a respeito com o grupo de amigos em comum. Estas e tantas outras estratégias não-instrumentalizadas e sub-repticiass de dominação sobre “essa gente”, não somente inibem a possibilidade incômoda de revolta individual destes segmentos, como reservam ainda às classes médias a responsabilidade pela não-formação de um habitus comum entre nós. Ao final do dia, cada qual sabe bem quais são os seus lugares e compreendem muito bem que os espaços de atuação de cada um estão ‘devidamente’ delimitados na sociedade. As classes médias periféricas longe estão de conceber, na prática e em seus corações, que elas são iguais ao “moço” que corta a grama de seu jardim, embora tente se convencer disso em suas práticas sociais diárias. Esta parece ser a mais renitente das heranças deixadas a elas pelos mandões de outrora. A diferença básica entre eles reside no tipo de capital que acumulam. Não é somente a busca do capital econômico que impulsiona, digamos, um motoboy a ganhar tempo na fila do banco, através da ‘hospitalidade’, da ‘malícia’, da ‘esperteza’ e do ‘jeitinho’, da familiaridade com o gerente ou com a moça do caixa, mas justamente esse tempo que pode ser investido em aquisição de capital cultural diferencial. Ele pode bem gastar esse tempo na biblioteca mais próxima, lendo os textos exigidos pelo curso de graduação que realiza e se preparando diferencialmente para o mercado de trabalho competitivo moderno. O gerente ‘facilitador’, por sua vez, ao ‘entrar no jogo da malandragem’, ‘dando um jeitinho’ para ‘adiantar o lado’ do cliente motoboy, garante, no mínimo, não somente a preferência deste cliente e das empresas que ele representa, mas ainda sua própria permanência no cargo e, na melhor das hipóteses, pode ser reconhecido como digno de ser transferido para uma região mais nobre e tantas outras ‘vantagens’. A moça simpática do caixa, na sua esperança de dividir o cargo de gerente com o colega-chefe, faz o diferencial por garantir o bom funcionamento do modus operandis

153 circunstancial e avalizar a manutenção do habitus malandro na agência em que trabalha. Quando o sistema funciona mal, haverá sempre um indivíduo com maior acúmulo de capital cultural (e provavelmente econômico) para gritar “você sabe com quem está falando?”. E não é de outra relação – de uma suposta origem ibérica ou de outra que a imaginação sociológica eventualmente permita – que nasce esse tipo de fenômeno. Os indivíduos, no processo de modernização brasileira, passam ao estágio da competitividade agressiva pela busca do capital cultural diferencial, disfarçando essa competição. Esse código malandro criado aqui – e esse entendimento é originário provavelmente das interpretações culturalistas dessa sociedade – nos levam a acreditar que ‘nós somos assim mesmo’, e que o conflito não serve para nós, pois, nós estamos acima dele; somos uma sociedade ‘naturalmente pacífica’. Na verdade, a malandragem e seus fundamentos, particularmente o ‘jeitinho’, é uma forma maquiada de desordem que coloca em xeque toda a nossa ordem moderna e coloca por terra o argumento de que nossos males sociais são obra de nossa formação histórica. Ao se procurar enxergá-la fora do conflito, colocando no DNA do brasileiro as suas causas, não se faz outra coisa do que fantasiosamente ratificar a crença generalizada de que, por exemplo, a miséria e a pobreza aguda que assolam um terço dos nacionais desde sempre, é problema dos próprios, nos sugerindo que “nós somos assim mesmo”, como nosso sistema biológico; dizendo-nos que nossos males sociais são parte intrínseca de nossa natureza. Ora, o conflito está presente nas relações sociais no Brasil desde a hora em que acordamos até a hora de dormir. Em ordens competitivas selvagens como a nossa, a forma mais habitual de se amainar tais conflitos e garantir a dominação intraclasses, é via a extensão dos direitos de cidadania para todos os homens da sociedade em questão, através de uma palpável garantia da igualdade de oportunidades e condições. Quando não se faz isso, como é nosso caso, a malandragem (ou outro tipo de ação social definida de acordo com a periferia em questão) passa a cumprir grandemente esse papel, fazendo de uns indivíduos ‘bem mais iguais que os outros’, calcificando no imaginário

154 popular que é próprio de nossa gente essa coisa, que está inscrito em nosso DNA ético, e contra a qual não há o que fazer. Tanto mais que, nos anos 70 do século passado, ficaria famosa uma ação de marketing na TV em que aparecia o jogador Gerson, meia-armador carioca e da Seleção Brasileira de Futebol, afirmando que, em tudo o que fazia, tinha de ‘levar vantagem’. O apelo, que não atentava para a busca dos direitos de cidadania, mas para certas ‘vantagens’, seja lá de que forma elas chegassem até nós, ficou conhecido nacionalmente como ‘Lei de Gerson’ ou ‘Lei Brasilis’.182 No mesmo período em que o jogador Gerson escancarava esse suposto traço cultural brasileiro, o ator Chico Anísio apresentava um quadro de grande destaque no humor televisivo nacional. Trata-se de ‘Tavares’, um gigolô malandro e cínico que vivia à custa de uma velhota rica e assombrosa. No final do quadro, depois de experimentar várias formas malandras de ‘dar-se bem’, ele se virava para a câmera e, chacoalhando o gelo no copo de uísque, ‘confessava’ e desafiava: “Sou..., mas quem não é?”. Tudo levava a crer que ‘levar vantagem’ era nosso lema, que o mau-caratismo era a nossa destreza e o ‘jeito’, o nosso maior aliado. Este é um engodo que camufla o conflito e auxilia a negação da luta intraclasses a conservar as coisas como estão, legitimando as desigualdades culturais entre nós.

O mito do jeitinho brasileiro e a legitimação da malandragem

O ‘jeitinho brasileiro’ (ou o ‘guanxi chinês’, o trinkgeld alemão, a mordida mexicana e sul-americana, a bustarela italiana, o speedy money indiano, o backsheesh egípcio, e tantos outros fenômenos que transitam entre o legal e o ilegal, o certo e o errado) não pode se confundir com a malandragem, mas é

182 Surgida em 1976, a expressão tornou­se popular através dessa série de propagandas televisivas protagonizadas anteriormente pelos atores Felipe Carone e Maria Lúcia Dahl e, somente posteriormente, pelo “canhotinha” Gerson, da Seleção Brasileira de Futebol. Os personagens apareciam recomendando ao telespectador que levasse vantagem ele também em função do baixo preço e do leve sabor, ao fumar o mesmo cigarro que ele. É interessante notar que, entre nós, uma característica própria do capitalismo que é a vantagem, ganha um caráter particular, como se fosse nosso e não universal. No sistema capitalista, convenha­se, há uma busca permanente do “levar vantagem”. Pensadores iberistas tenderão a ignorar este fato justamente por eliminar artificialmente as classes sociais dos processos históricos.

155 um de seus fundamentos. O ‘jeitinho brasileiro’ é mais do que uma maneira que os indivíduos encontraram para se livrar da lógica do “criar dificuldades para se vender facilidades”. Trata-se de uma flexibilidade que os indivíduos encontraram para lidar com as regras nas quais não reconhecem a totalidade de sua legitimidade ou nelas vêem sempre uma boa razão para burlá-las e, sem que isso se revele na consciência, passam a usá-la indiscriminadamente, acabando por incorporá-la.183 Ainda assim, o ‘jeitinho brasileiro’ vai além dos simplismos com que normalmente é enxergado. A caminhada menos pretensiosa pelas ruas do País é capaz de revelar que essa é uma sociedade que se acostumou a banalizar a miséria e a própria desgraça social, não se incomodando, por exemplo, com o chamado “turismo na favela” e de tantas outras formas de violência simbólica existentes no País afora, fazendo com que seja esvaziada a dimensão política desse tipo de fenômeno. Ao não se criar um habitus primário no País, um sistema social em que todos os indivíduos sejam reconhecidos pelos demais como iguais, criou-se também o mesmo sentimento pelas leis e regras sociais, gerando um sentimento de que ‘quem pode mais, chora menos’. A naturalidade com que se passou a ver um indigente caído na rua, sem a incorporação do mínimo de cidadania, passou a valer para todas as instâncias da vida social. Este indivíduo não é enxergado como alguém cujos talentos e habilidades estão sendo miseravelmente desperdiçados pela má atuação ou ausência de vontade política de quem detém o poder de realizar a mudança social, mas como um problema do próprio miserável. O indigente passa a ser passível de compaixão, na melhor das hipóteses, não se transformando, sob os olhos da sociedade, em indivíduo digno de cidadania. É muito menos pela indignação ideológica do que pela indignação ética que as pessoas começam a questionar o que é feito com o dinheiro de impostos que pagam ao poder público e passam a colocar em xeque a legitimidade de governos que permitem que seus semelhantes durmam pelas calçadas do País e comam restos de alimentos. O raciocínio parece valer

183 Em 2008, uma lei que proibia motoristas alcoolizados de dirigirem, sofreria grande resistência por parte da população. Advogados, professores, engenheiros e tantos outros “malandros”, mostrariam seu descontentamento coletivo com os imperativos inventados pela modernidade, encontrando na comunicação via telefone celular um código para esparramar informações sobre os locais de blitz da polícia que enquadrava motoristas embriagados.

156 também para as leis e regras sociais. Estas deveriam valer para todos, mas pelo fato de não compartilhamos o mesmo habitus primário, o débito de cidadania de um indivíduo para o outro se torna gigantesca, elas acabam valendo mais para uns do que para outros. De forma que todos se pegam tentando encontrar formas casuais de usá-las em proveito próprio, fazendo perder o sentido de comunidade. Quando estas leis e regras sociais são burladas por terceiros, diferentemente do indigente citado acima, o ato não nos invade como um sentimento de compaixão, mas de indignação. Muda-se, na verdade, somente o tipo de sentimento. Tanto no caso do indigente, quanto no caso da quebra das regras sociais, é um fundo de natureza ética que nos invade, escondendo o fundo ideológico contido em ambos os casos. Tanto mais que a quebra das regras sociais acaba sendo aceita por grande parte da sociedade, quando estas são colocadas no plano pessoal. Ao admitir que um procedimento burocrático seja ‘facilitado’ pelo caminho paralelo aos trâmites legais, um advogado, uma dona-de-casa, um empresário, um professor, ou um catador de papelão pode não enxergar corrupção no ato, mas tampouco enxerga a sociedade em que vive composta por cidadãos, de fato, com os mesmos direitos e deveres. A experiência de sociedades amadurecidas sob um habitus primário que leve às últimas conseqüências a prática endógena da cidadania por gerações a fio, é capaz de dizer às pessoas que ‘uns não valem mais que os outros’ na sociedade. Cria-se aí, uma prática que, também ela, é pré-reflexiva, inscrita no corpo desde que nascemos, como um braço ou uma perna, não precisando descer ao plano ético para se fazer valer, e não nos coloca o dilema de decidir se é ético ou não ter um braço ou uma perna. É nesse imbróglio que se encontra o ‘jeitinho brasileiro’ e a sua afirmação, da forma como se tem dado, como uma ‘marca brasileira’ parece contribuir não mais do que para a sua perpetuação, camuflando a ideologia e as mais perversas relações de dominação nele contidas. Não se está, de fato, contribuindo para o fim ou o enfraquecimento do fenômeno quando se afirma que “o jeitinho é um patrimônio nacional e que ele está presente na forma como o trabalhador informal mostra ‘jogo de cintura’ para sustentar a família”, como o faz Lourenço Rega (2000), e que este jeitinho se encontra ainda “na ‘ginga’ das

157 empresas ao se livrarem do fisco beneficiando-se de brechas na legislação e outros artifícios e ao pagarem baixos salários aos seus trabalhadores, à dona- de-casa que leva o bebê ao supermercado para se livrar do incômodo da fila, ou na prática de suborno ou proveito de qualquer ‘vantagem’ indevida para se obter benefícios”184. Na verdade, se está contribuindo para a sua perpetuação, quando não se faz um esforço de reflexão no sentido de buscar respostas de suas causas reais. Na medida em que ‘a praga’ passa a ser enxergada como própria nossa, como uma questão puramente ética, e não como uma chaga a ser combatida politicamente pela sociedade civil, as suas causas reais permanecem míopes aos olhos da própria sociedade. O mito contribui para nos fazer imaginar que a harmonia social está ao nosso alcance e que as coisas podem ser diferentes pelo simples fato de se recusar eticamente os artifícios da malandragem. Além disso, é difícil aceitar o argumento da ‘marca nacional do jeitinho’ num país estruturado também sob os valores enraizados de milhões de imigrantes italianos, japoneses, alemães, russos, poloneses, libaneses, turcos e outros tantos que não passaram nem de perto pelas caravelas de Cabral. A respeito do mito e de suas diversas funções, Chauí esclarece que ele

a) opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo e que por isso são transferidas para uma solução imaginária, que torna suportável e justificável a realidade. Em suma, o mito nega e justifica a realidade negada por ele; b) um mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a própria realidade. Em suma, o mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente; c) um mito resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmam, isto é, um mito produz valores, idéias, comportamentos e práticas que o reiteram na e pela ação dos membros da sociedade. Em suma, o mito não é um simples pensamento, mas formas de ação; d) um mito tem uma função apaziguadora e repetidora, assegurando à sociedade sua auto-conservação sob as transformações históricas. Isto significa que um mito é o suporte de ideologias: ele as fabrica para que possa, simultaneamente, enfrentar as mudanças históricas e negá-las, pois cada forma ideológica está encarregada de manter a matriz mítica inicial. No nosso caso, o mito fundador é exatamente o da não- violência essencial da sociedade brasileira.185

184 REGA, Lourenço Stelio. Op. cit. p.17, passim. 185 CHAUÍ, Marilena. Op. cit.,. Acesso em 20.07.2008.

158 O fato é que, na ausência de um habitus primário fundado da igualdade entre todas as pessoas, o grosso da população tendeu, ao longo do tempo, a absorver muitas destas práticas, que acabaram por soar como procedimentos normais ao senso comum, como se fizessem ‘parte do jogo moderno’, formando um caldo cultural entre nós. Dessa forma, otário passa a ser o indivíduo ‘devidamente enquadrado’, que enfrenta a fila do banco, que se recusa a pagar o ‘cafezinho’ ao guarda de trânsito para se livrar de supostas multas, que nunca se aproveita de uma situação propícia para obter um benefício, que ‘não conhece a pessoa certa no local certo’, que não faz com que tudo se resolva antes dos trâmites normais, e tantos outros que não ‘driblam as regras’ modernas. Em todos estes casos, as regras rígidas e as formalidades da modernidade parecem não ser facilmente acolhidas, e estas regras acabam sendo quebradas em função de qualquer outro fator: amizade, parentesco, valentia, cinismo. O sentimento aqui parece ainda ser aquele anterior à modernização do País onde as leis eram criadas muito mais para regular as práticas sociais e muito menos para igualar os cidadãos, e é a negação desta ordem que implicaria em mudança. Embora se utilize corriqueiramente de práticas de indignação passiva que apelam para a chantagem emocional, tais como o ‘tapinha nas costas’, a ‘cantada’, a ‘ginga maliciosa’, o ‘rebolado’, o sorriso maroto e o uso do diminutivo (inho/a), o praticante do jeitinho o faz muito mais para negar a ordem moderna impositiva e transpor suas barreiras do que por certa cordialidade, de um sentimento que vem do coração. Enganam-se aqueles que imaginam ser a emoção que move a prática do jeitinho. Não é essa suposta emoção que o faz sobrepor-se à razão, impedindo-lhe de ver distinção entre o público e o privado, de dispensar formalidades, e de por de lado uma suposta ética moderna. Estas são técnicas de defesa que o praticante do jeitinho, ora visto como malandro, ora não, encontra para tentar sair de uma situação embaraçosa. Não é outra coisa que o faz sobrepor-se a razão moderna, mas justamente seu não- reconhecimento da legitimidade dos imperativos modernos que impõe leis e regras de comportamento que ele considera inconvenientes. Se em sociedades avançadas o artifício malandro do jeitinho não é comum, isso se dá pela maior aceitação dos imperativos modernos onde impera a igualdade de

159 oportunidades e condições, inclusive na forma da lei, mas não somente ali. É somente sob essa premissa que se pode legitimar a ordem moderna sob os olhos da sociedade. O mito do jeitinho brasileiro nasce da crença de que somos uma sociedade homogênea onde as oportunidades estão postas para todos os indivíduos desde o nascimento. Quando se diz que o brasileiro é assim ou assado – emotivo, assanhado, preguiçoso, aventureiro, malandro –, se está ocultando o fato de que não estamos dispostos da mesma forma na sociedade e que nossos gostos e procedimentos dependerão grandemente da posição que ocupamos no mundo. Não parece segredo, por exemplo, que um engenheiro chefe de produção tenderá a se identificar muito mais com seu colega francês do que com um morador do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro. Seu comportamento e seus modos em geral derivarão muito mais dessa identidade de classe do que de uma suposta brasilidade que ambos dividem entre si. É na afinidade dos gostos (Bourdieu, 1998) do francófono, com a elegância que este indivíduo demonstra na escolha de seus ternos e vinhos, que o engenheiro de produção brasileiro encontrará sentido em sua vida. Ele sequer considerará a possibilidade de entrar na favela e dividir uma cachaça com seu colega pedreiro brasileiro; seu habitus secundário não encontra equivalente no habitus precário de seu compatriota para fazer existir uma afinidade entre estes nacionais, já que persiste entre nós a inexistência até mesmo de um habitus primário, da existência de cidadãos que, em condições de relativa eqüidade, pelejam por uma oportunidade de classificação social e moral. Quando se fala em brasilidade, para se classificar o comportamento dos nacionais – como se não houvesse uma profunda divisão entre e intraclasses entre nós –, se está incorrendo no mesmo erro de pensar que os indivíduos ilustrados acima são homogêneos. O fato é que a regra há muito perdeu a validade, se jamais existiu, pois o processo de modernização brasileira varreu a possibilidade de homogeneização dos gostos, dos estilos, dos procedimentos, dos jeitos dessas pessoas agirem na e para com a sociedade. O engenheiro ilustrado acima age como age porque enxerga no colega francês ‘um igual’; ambos tem um habitus comum, com a diferença básica de terem partido de

160 pontos-de-partida diferentes em suas sociedades de origem, onde a prática do jeitinho, para o primeiro, não se trata de uma ação exótica.

A ideologia por traz do mito da malandragem Desde a modernização do País, a prática da malandragem vinha sendo atrelada a uma suposta brasilidade, confundindo-se grandemente com outros traços considerados malandros, porém de conotação positiva, tais como o futebol e a musicalidade. ‘Bom de bola’ todo mundo queria ser, mas malandro, aquele sujeito ‘que gosta de levar vantagem em tudo’, que dá pequenos golpes, que inescrupulosamente ‘canta’ a mulher do amigo, que não é afeito ao trabalho, e outros estereótipos, com este indivíduo ninguém queria se identificar. A condição malandra começava a perder o romantismo e logo os nacionais começariam a se incomodar com o estigma da malandragem, buscando descolar-se do estigma e superar a ‘condição antiética’ que lhe atribuíam mundo afora. O próprio trabalhismo, com relativo sucesso, já tratara de fazer propaganda procurando manchar a prática social da malandragem e cooptar o malandro. Como a indignação nacional, ainda assim, não deixa patente o conflito que a prática dos recursos da malandragem carrega em seu bojo, ninguém queria ser malandro, mas não passava nos planos de ninguém ser visto como ‘otário’. Isso dá fôlego à malandragem e permite que ela permaneça muito mais manifesta do que latente entre nós. A percepção do fundo antiético das práticas da malandragem não foi suficiente para despertar os indivíduos para seu problema maior. Ao problematizá-la no campo da ética, a sociedade perde a oportunidade de concebê-la no campo ideológico, que torna opaca a dominação moderna e camufla os conflitos não-maquinados intraclasses, e segue sem conseguir perceber seu papel inibidor dos direitos democráticos de cidadania. Como bem lembra Marilena Chauí, a democracia é constituída pela idéia de que “ela é uma forma social de criação de direitos pela ação da própria sociedade. [...] e esses direitos têm de ser conservados e garantidos pela sociedade e pelo Estado. [...] a democracia se caracteriza – ela é o único regime político que tem essa característica – por considerar que o conflito é

161 legítimo e que o conflito exprime a vida democrática. Em todas as outras formas políticas, o conflito é aquilo que é considerado um perigo, ilegítimo, ilegal, e ele é reprimido. Na democracia, ele é considerado o coração mesmo do regime, a explicitação de contradições, de conflitos, de antagonismos, de diferenças.186” Não é por outra razão, mas pela ocultação do conflito, que em breve ficaríamos conhecidos como o país do carnaval, uma metáfora para denotar nosso caráter lúdico, por conta das festas de início de ano, uma ‘bagunça organizada’, segundo os olhares mais aparentemente críticos, os mesmos olhares que, na realidade, se mostram ingênuos, ao não perceber a camuflagem do conflito e ao vulgarizar as coisas da malandragem como o estereótipo nacional. O estereótipo apresentar-se-ia como um retrato de nosso suposto traço malandro, cultural, e em cujas interações não são apresentados indivíduos de carne e osso, mas o próprio estereótipo, e levam os mais bem-intencionados pensadores a fazerem afirmações como as que seguem: “o jeito é a síntese do caráter brasileiro e tornou-se uma estratégia que se espalhou pela sociedade e se fixou na vida do povo como alternativa ética diante do sistema de normas estabelecido”.187 “A malandragem e o jeito são um modo profundamente original e brasileiro de se viver”.188 “Desde a infância, quando travam o primeiro contato com o engodo nas histórias de Pedro Malasartes, os brasileiros demonstram certo fascínio diante da esperteza, da malandragem, da vigarice”.189 Esse pensamento estereotipante e preconceituoso é cientificamente infundado. Ele é ainda terrível para o alcance da cidadania na medida em que suprime as possibilidades de os indivíduos mudarem a própria história. É um semióforo invertido onde as pessoas são colocadas a não pensar as razões de sua existência, do ponto de vista racional. Trata-se de um pensamento conformista e maniqueísta que apresenta o fenômeno da malandragem como sendo bom ou ruim, segundo as conveniências do momento. Ele aparece

186 CHAUÍ, Marilena. Op. cit. Disponível em: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=3467. Acesso em 20.07.2008. 187 REGA, Lourenço Stelio. Op. cit. p. 58. 188 DAMATTA, Roberto. Op. cit. 1984. p. 87. 189 BRANT, Vinicius Caldeira. Maluf. SP: Revista Novos Estudos CEBRAP. 2008. Edição 80, Julho/2007.

162 artificialmente como positivo (com o futebol, o samba, “a garota de Ipanema”) ao exultar a brasilidade e a unidade nacional (quando nos faz sentirmo-nos orgulhosos e desejosos de chorar ao ouvir o Hino Nacional), e como ruim (o jeitinho, o levar vantagem, o dar-se bem), ao tentar se explicar as nossas mazelas, conforme fizemos menção acima, mas com isso não contribui senão para alimentar velhos vícios de análise e a própria malandragem. A visão culturalista tende a nos estereotipar como um povo moderno único no planeta onde os conflitos de classe e intraclasses desapareceram ou jamais existiram. Os estereótipos alimentados por ele não deixa ver que é justamente na prática da malandragem que os conflitos ideológicos são ocultados, e é o lugar onde reside a raiz de nossa subcidadania (da violência material e simbólica que fazia do Brasil um dos países mais violentos do planeta, segundo dados da ONU de 2003) 190. Não é de admirar que, aos olhos do senso comum, que, a rigor, não tem o compromisso de problematizar as questões na sua plenitude – como é o caso da intelectualidade que comuna com essa crença –, a malandragem aparece como uma instituição característica e genuinamente nacional, que cabe em todas as classes sociais, sem distinção de cor, raça, gênero ou credo, e, muito mais grave, sem razão para existir; parece mágica, como os mitos.191

190 A subcidadania não nega a cidadania, mas representa a sua incompletude. “A palavra ‘cidadania’ originalmente definia a condição daqueles que viviam nas cidades européias até o início dos tempos modernos; e limitavam­se às cidades ou aos burgos o reconhecimento de direitos civis e sua consagração em documentos escritos (constituições), pois era aí que se encontravam as forças sociais mais diretamente interessadas na individualização e na codificação uniforme desses direitos: a burguesia e a economia capitalista. No sentido moderno do termo, ‘cidadania’ se refere à condição de um indivíduo como membro de um Estado e portador de direitos e obrigações. Em decorrência, ‘cidadão’ é a condição de um homem livre, portador de direitos e obrigações, assegurados em lei.” DIAS, Reinaldo. Op. Cit. p. 123. 191 Em encontro no CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em agosto de 2008, o Professor Fernando Henrique Cardoso dizia a intelectuais, classificados pela reportagem de O Estado de SP. como “alguns montros sagrados da pesquisa social no País”, que o avanço do País [rumo ao estágio das nações mais desenvolvidas], de um modo geral, é retardado porque “não temos respeito à lei, não acreditamos que somos iguais, mantemos um regime de privilégios e a nossa Justiça ainda é muito lenta”. “A volta do Professor Fernando Henrique”. O Estado de SP. 16.08.2008. O ex­presidente por dois mandatos consecutivos no comando do País e sociólogo se furtou de dizer o porquê disso acontecer, mesmo depois de sua experiência em que poderia ter pactuado uma mudança da cultura sócio­política. Daí que as explicações mágicas dos fenômenos sociais, como esta do ex­presidente, somente conseguem retroalimentá­los.

163 “O mito”, esclarece Eça de Almeida, “pode ser entendido como o relato de algo fabuloso, que se supõe acontecido [...] que tem sempre algo de mágico no ar. [...] no seu verdadeiro sentido e essência, o mito afronta e desafia nossas categorias fundamentais de pensamento; sua lógica mítica nada tem de nossas concepções lógicas de verdade, seja empírica ou racional; a explicação racional do mundo mítico surge artificial, apenas um pretexto, em lugar de ser por essência uma crença, torna-se simplesmente um ‘faz-de-conta’”.192 O pensamento culturalista faria melhor se procurasse desmistificar a malandragem e os pressupostos dessa prática social, convencendo-se de que nenhum elemento pode ser capaz de balançar as estruturas do comportamento malandro do que um choque de cidadania, dizendo ao candidato em potencial a malandro que seu tempo passou. Parece ser nesta direção que sinalizam os tempos atuais de fortalecimento da sociedade civil pelas vias democráticas e do aprimoramento da qualidade da democracia que inventamos nos últimos vinte anos. A malandragem não tem razão de ser numa sociedade onde os indivíduos nascem sob os ditames do mesmo habitus primário, onde o respeito e a dignidade não sejam entendidos como privilégios de uns poucos ou da maioria, mas de todos, como braços e pernas que compõem um corpo. O capítulo seguinte apresentará um estudo de caso que pode mostrar como um distanciamento da cidadania moderna pode aproximar os indivíduos da malandragem, sem levá-los à marginalidade explicita, revelando que o fenômeno não é uma exclusividade brasileira, mas uma singularidade da periferia da modernidade.

192 EÇA DE ALMEIDA, Maria da Piedade. Mito: metáfora viva? In: MORAIS, Régis de (Org.). As razões do mito. SP: Papirus. 1988. P6/630. 59­67.

164 Capítulo 7: Precarização e malandragem: um estudo de caso

São imundas as repúblicas da América do Sul Theodore Roosevelt, presidente dos Estados Unidos (1904)

Tem razão Jessé Souza (2006) quando diz que a não-homogeneização do tipo-humano, próprio da modernidade periférica, pode conduzir aqueles indivíduos que não compartilham um mesmo habitus – primário e/ou secundário – à precarização. Não é outro fenômeno que fará perpetuar a sua condição de “ralé estrutural” e a reprodução interminável de seu habitus precário. O fenômeno parece ser comum às sociedades onde a precarização dos indivíduos não tenha sido uma exceção, mas a regra. O fenômeno social da malandragem tem uma ligação muito estreita com o que diz Souza e apresenta uma regularidade observada em diferentes contextos e em diferentes espaços geográficos. A criação do malandro, até o momento em que a sociedade civil tome o controle dessa modernidade, independe do processo histórico particular de cada sociedade moderna em que se revela o fenômeno. Ele é subproduto óbvio do formato que essa modernização se dá, e tenderá a se evidenciar em sociedades de modernização perversa, como é o caso brasileiro. Em qualquer ambiente social de modernização nefanda, onde a sociedade civil não reaja efetivamente às suas mazelas, seja aqui, nos Estados Unidos ou no México, a sua causa comum manifesta é a precarização dos trabalhadores de um modo geral e, exatamente por isso, nem de longe poderia ser percebida como um fenômeno doméstico brasileiro. Em sociedades modernas avançadas, as chamadas “democracias desenvolvidas”, a pressão do trabalhador organizado não permitiu que se precarizasse o homem simples, havendo um esforço de se resgatar da precarização aqueles já condenados, evitando que se formasse o malandro como via de regra. Mesmo depois de testada a fórmula naqueles países, a periferia da modernidade, ao contrário, permaneceu em débito com esse compromisso, gerando um contingente insuportável desse tipo humano, acabando, em muitos casos, por expeli-lo de seu interior. Esse parece ter sido o caso dos trabalhadores precarizados das regiões que vivem na órbita dos Estados Unidos da América. Não conseguindo

165 angariar nem a mobilidade social nem o respeito, o reconhecimento e a dignidade com as quais a modernidade havia prometido preencher as suas vidas, essas pessoas tentam encontrar estes elementos em outro lugar, e os Estados Unidos, geograficamente próximo e de “homogeneização humana” mais completa, acaba sendo o lugar eleito. É ali que esses trabalhadores sonham preencher as fissuras deixadas pela modernidade inacabada de suas regiões de origem. Ocorre que esses trabalhadores, exatamente por serem precarizados, não são aprovados pela hierarquia classificatória moderna norte-americana e são impedidos de adentrar aquele território. Não aceitando as regras do jogo, eles tentam construir as suas próprias normas e acabam ‘capturados’ pelo sistema de imigração daquele país. Depois de detidos por dias, e até meses, vivem o dilema entre serem admitidos para trabalhar legalmente naquele país ou de serem devolvidos aos seus países de origem pelo governo norte- americano, e é esse momento que no interessa particularmente nesse estudo. O interior e a órbita das prisões norte-americanas, reservadas a imigrantes indocumentados, é também o lugar e o ambiente onde se evidencia o encontro entre precarização e malandragem. A realidade que permeia este lugar, e as implicações que acarreta na vida de cada indivíduo que por ali passa, ilustra bem o que se vem dizendo ao longo deste trabalho. Ali ele comunga com o fenômeno da ‘malandragem brasileira’, pois nele é igualmente praxe o uso do ‘jeitinho’ e de outros artifícios encontrados pela população interna (e externa) em geral, mas pelos presos, em particular, para ‘dar-se bem’. Na luta destes últimos para não serem deportados, essa massa de homens e mulheres se valem sempre que podem da prática social da malandragem, e acabam por nos convencer de que o fenômeno da malandragem longe está de ser um assunto doméstico brasileiro. Ele está muito mais ligado á precarização das condições de vida do ser humano feito moderno do que de características inatas dos indivíduos, que se revelam ao sabor do acaso.193

193 O estudo de campo teve o pesquisador e autor desse estudo, um dos detentos à época, como observador participante da pesquisa. Trata­se, antes de tudo, de uma experiência pessoal transformada em matéria impressa, de um testemunho sobre os bastidores do sistema de imigração que mais prende e deporta trabalhadores

166 “Um estudo de caso”: os fatos

Na “cela X”194 da cadeia de El Paso para imigrantes ilegais, Estado do Texas, Estados Unidos da América, na fronteira com a cidade de Juárez, México, a maioria esmagadora dos detentos não está ali por tráfico de drogas, estupro, roubo, assassinato, sonegação fiscal, atentado ao pudor, ou quaisquer violações dessa natureza. Tampouco fazem parte das classes médias de seus países de origem. O motivo central de sua prisão é o fato pouco convencional de serem trabalhadores e não contarem com outra coisa na vida senão sua mão-de-obra barata: trata-se de gente brutalizada, dona do mais precário dos habitus. Naquela cadeia se encontram presos homens e mulheres precarizados, que não contaram com a transmissão dos valores modernos pelas famílias das quais se originam e tampouco se impregnaram desses valores nos bancos escolares das sociedades periféricas de onde vieram, e das quais estavam tentando se livrar, em busca de mobilidade social e econômica. Para além dessa mobilidade, o que querem aqueles trabalhadores, ainda que isso não se revele em suas consciências, são os direitos de cidadania que lhes foram negados pelos lugares onde nasceram e com os quais a modernidade um dia prometera preencher as suas vidas, mas não só. Buscam ainda algum respeito e dignidade e, na medida do possível, um pouco de reconhecimento. Estes trabalhadores, que receberiam tratamento semelhante em qualquer sociedade avançada do ponto de vista moderno, procuram oportunidades profissionais há muito deixadas de ser atraentes para os seus colegas americanos. Não são advogados, professores, juízes, engenheiros, diretores de escolas ou delegados de polícia, mas pedreiros, encanadores, cortadores de grama, lavadores de carros, ajudantes de cozinha, sapateiros,

precarizados no mundo. O papel do pesquisador, por sua própria natureza, não se limitou a preencher as lacunas existentes nos documentos escritos sobre a temática, mas permitiu ao estudioso tornar­se co­agente na criação do documento de história oral e, em grande medida, tradutor da memória dos demais envolvidos. A pesquisa se deu entre os meses de julho e setembro de 1999 e teve um caráter estritamente qualitativo, onde não se fez uso de perguntas padronizadas aos detentos por meio de inquéritos por questionários ou de outras formas de entrevistas, mas de técnicas de observação de história oral, depois de realização de exaustiva investigação do objeto de estudo a partir das fontes históricas escritas disponíveis à época e da bibliografia pertinente. 194 Nome fictício.

167 faxineiros, serventes de pedreiros, trabalhadores rústicos em geral que, uma vez nos Estados Unidos, acumulam, via de regra, dois ou três empregos, na esperança de conseguir algum padrão de vida digna ao retornar à suas terras- natais. Os indivíduos estrangeiros impedidos de trabalhar nos Estados Unidos da América não são suecos, finlandeses, australianos, noruegueses, dinamarqueses, franceses ou alemães – a menos que estes também sejam trabalhadores precarizados. Aquela cadeia não fora feita exatamente para comportar presos que acumularam muito dos pressupostos modernos. Também aqui, no coração da modernidade, similarmente ao que ocorre na periferia da modernidade, o “baixíssimo grau de civilidade” que estes indivíduos acumularam, como diz Carvalho – ao tratar do processo de aquisição de cidadania no Brasil195 –, não lhes permite atingir nem galgar o posto de cidadãos. Estas são pessoas de tez rústica e olhar melancólico, cujo equívoco maior foi acreditar que a maior democracia das Américas, em que pudessem pesar as barreiras culturais, lhes daria um tratamento diferente daqueles nos quais nasceram e cresceram, apontando com um caminho para a sua dignificação. Salvo raríssimas exceções, são guatemaltecos, salvadorenhos, mexicanos, brasileiros, dominicanos, colombianos, equatorianos, hondurenhos, panamenhos, paraguaios, peruanos, jamaicanos, bolivianos, e até gente do leste europeu e da África, dentre tantos outros. Trata-se de indivíduos “capturados” ao tentar adentrar aquele país para trabalhar, ou surpreendidos no momento em que trabalhavam. A modernidade que lhes convencera de que tinham de trabalhar para se candidatar à condição de ‘gente’, agora os abandonava, dizendo-lhes que para eles a regra não valia. E é com a idéia fixa de que havia uma “ralé estrutural” excedente em seu território, e a qual precisava ser “devidamente filtrada”, que os Estados Unidos da década de setenta decidiu-se pela construção destas prisões, as quais os americanos chamam romanticamente de facilities (centros de detenção provisória). Estas cadeias têm por objetivo “guardar” esses trabalhadores até

195 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil – O Longo Caminho. RJ. Ed. Civilização Brasileira. 2002. p. 76, passim.

168 que sejam deportados para seus países de origem. Alguns terão alguma sorte e serão “sponsored” (patrocinados) por seus patrões, livrando-se da prisão em poucos dias, e voltando a trabalhar por período previamente determinado. Outros, entretanto, a maior parte dos presos, serão enviados de volta para casa, devidamente desuniformizados, algemados e acompanhados de agentes da imigração americana.196. Em que pese a proximidade geográfica de seus países de origem destes trabalhadores com os Estados Unidos, este não é o fator determinante que os leva a tentar a sorte naquele país; não se vêem canadenses ali. Os trabalhadores presos nas facilities americanas geralmente trazem em comum os “sinais de primitividade” aos quais vemos fazendo referência crítica ao longo desse estudo. São indígenas ou descendentes (astecas, toltecas, maias, olmecas), negros e mulheres – as quais ficam aprisionadas em cadeias paralelas – e cuja “primitividade” se evidencia não somente nos traços físicos, mas ainda no fato de não falarem nada ou quase nada do idioma inglês. Seu esforço de comunicação com os agentes americanos é normalmente facilitado por outros agentes, de origem latino-americana – tal qual a maioria esmagadora dos presos – que fazem a tradução daquilo que os detentos relatam ao serem encarcerados e durante o processo de sua deportação. A dificuldade maior, entretanto, fica reservada aos cativos que, na condição de indígenas, “menos contaminados”, como dizem eles próprios, sequer conseguem se comunicar claramente em espanhol. Estes, dificilmente deixarão de ser deportados, voltando para terras estranhas mesmo em seus países de origem. Gente de Oaxaca, no México, acaba deixada na Cidade do México; outros, de regiões diversas de Honduras, acabam largados em Tegucigalpa, etc. Entre esses grupos de trabalhadores precarizados, é comum se ver levas de irmãos e irmãs “capturados” pelas forças anti-imigratórias americanas. Muitos deles estão nos Estados Unidos com parte da família, numa tentativa encarniçada de, ao menos, sobreviver, depois de terem sido desapossados das terras onde nasceram e cresceram.

196 É comum ouvir­se dizer nas “facilities” que os agentes da imigração americana dão preferência para escoltar presos destinados às cidades do Rio de Janeiro, no Brasil, e Acapulco, no México. A justificativa é que estas cidades praianas são muito atraentes, onde estes profissionais podem passar alguns dias até voltarem às suas atividades nos Estados Unidos.

169 Empresas transnacionais norte-americanas e de outras partes do globo terrestre se alojaram nestas terras, acabando por segregar e expulsar muitos dos nativos dessas regiões, com o consentimento e a complacência dos governos locais – que forjam um ambiente favorável aos investimentos estrangeiros, por meio da supressão das limitações a estes –, menos preocupados com os interesses das populações presentes ali por milhares de anos do que com os interesses econômicos dessas corporações. Esses grupos empresariais, para quem pouca coisa mais importa além de lucro, aproveitaram muito da mão-de-obra barata local, transformando os indígenas em faxineiros, vigilantes, ajudantes gerais, etc., mas não tiveram a preocupação de “homogeneizar o tipo humano ali, o que sugere que elas também terão grande responsabilidade na formação do malandro que está por vir. Como conseqüência, as populações dessas regiões, carentes de incorporação de “conhecimento útil”, mas também de governos representativos de seus interesses, acabam ‘não tendo serventia prática’ e, por isso mesmo, foi descartada. A implicação final, é que essas populações terminaram por perder muito de sua identidade e acabaram migrando para as grandes cidades. Para além da visibilidade dessa questão, há que se considerar que essa expulsão é também de caráter psicológico, uma vez que seus lugares sagrados e a terra em que “podiam falar com os Deuses”, seus rios e suas florestas, foram “contaminados pela busca do lucro” moderno, e por quem “os espíritos de seus antepassados tinham sido desrespeitados”, segundo relatos dos próprios expropriados. Já não lhes pertenciam os lugares onde havia sido construída a sua história e onde assentara os seus valores comunitários. Isso é particularmente verdadeiro para os habitantes da região de Chiapas, no México, onde as indústrias petroleiras disputam as muitas commodities disponíveis no solo da região e controlam a água e quase toda a natureza do local. Ao migrarem para as urbes, os indígenas não se adéquam ao mercado de trabalho moderno e acabam engrossando as fileiras dos homens e mulheres de rua, passando a mendigar, logo se acostumarão a viver à margem da economia de mercado. Para estas pessoas, entretanto, sempre haverá um “coiote” dizendo que as oportunidades de trabalho e de vida mais digna para si e para a sua família estão logo ali, do outro lado da fronteira. O risco parece

170 valer à pena, num primeiro momento, até que a sua sorte, já combalida, o abandone. Uma vez aprisionado nas facilities americanas, o indivíduo indígena vê ‘denunciada’ a sua condição, não somente pela evidencia dos traços característicos que traz em seu corpo ou pela dificuldade de comunicação em inglês ou espanhol, mas ainda pela pouca familiaridade que mostra com os mais meros instrumentos modernos, como garfo e faca; ele prefere comer com as mãos e, em muitos casos, desconhece refrigerantes, achocolatados, sorvetes e outros alimentos. Se já não se incomoda em dormir ‘civilizadamente’ nos beliches da prisão ou sentar-se nas cadeiras do local, ao modo moderno, isso não lhe isenta de sua natureza rude, e tampouco impede que se transforme, por vezes, em motivo de chacota entre os demais cativos. A maioria dos presos, ainda assim, ‘vale muito pouco ou quase nada para o sistema norte-americano de imigração, e esse é o elemento que os torna iguais. São todos tratados com desdém pelos agentes da imigração americana em inúmeras situações e, não-raro, “alertados” sobre a possibilidade de extensão de sua estada ali, caso não se revelem “bons meninos”. O fato de serem pais e mães-de-família, respeitados no interior de seus lares, gente que a pré-modernidade tanto valorizara, não lhes aumenta em nada as chances de serem respeitados por ali. Melhor é pensar noutra saída, se quiserem trabalhar nos EUA, mas ela não pode se dar em termos conflitantes com as regras internas daquela cadeia, e isso é aconselhável que tenham bem claro em mente. Logo que chegam, os novos detentos são alertados sobe a existência de um “quartinho”, uma cela do tipo “solitária” (the lock ups), pronta para abrigar aqueles indivíduos cujos ânimos mais exaltados podem impelir os agentes de segurança à aporrinhação. Devem usar sempre um “tom ameno” ao dirigir a palavra à estes profissionais e serem “delicados” ao tratar com os colegas de cela, sob pena de terem de visitar o inóspito lugar. Ficam profundamente marcados aqueles indivíduos que pelo “quartinho” já passaram, levando os demais presos a se distanciarem entre si e fazer acirrar uma clara divisão entre eles. Os detentos provenientes da centralidade da modernidade, uma extraordinariedade naquela cadeia, embora passem não mais que poucas

171 horas na condição de detentos, recebem um tratamento informalmente diferenciado, o que lembra em muito o resultado da pesquisa realizada por Lars Schoultz (1998:14), intitulada “Estados Unidos, poder e submissão – uma história da política norte-americana em relação á América Latina”. Nesse estudo, o autor conclui que há uma tendência entre os formuladores da política externa norte-americana (mas não somente entre estes) de ver os latino- americanos como povos primitivos, onde a “lapidação moderna” se vê impossibilitada de acontecer. “Quando um funcionário do Departamento de Estado abre uma reunião com o comentário, ‘temos um problema com o governo do Peru’, escreve o cientista político norte-americano, ‘em menos de um segundo é evocada uma imagem mental de um Estado estrangeiro que é completamente diferente daquela que teria sido lembrada se o funcionário em questão tivesse dito, em contraste, ‘temos um problema com o governo da França’”. A conclusão de Schoultz ilustra bem o que se está querendo dizer aqui. A diferença entre os presos da cadeia da imigração americana se evidencia no fato de que quanto maiores seus traços de precarização, maiores serão as suas chances de passar algumas noites e dias ali, no temido “quartinho” e, na prática, menos direitos e respeito terão. As facilities são lugares muito apropriados para se verificar também a presença de fenômenos tais como o “com quem você pensa que está falando?” e do chamado “carteiraço” ou “carteirada” e tantos outros clichês sobre os quais o professor Roberto DaMatta197 se encarregou de estudar e aos quais entende se tratar de um fenômeno brasileiro. No raciocínio do antropólogo e tenente do exército, que procura compreender a estrutura da sociedade brasileira por meio de suas festividades, principalmente o carnaval, a hierarquia social é utilizada no Brasil pelos “de cima” para não se submeterem a regras com validade universal. Ora, tais regras existem também nas facilities norte-americanas, mas elas podem ser modificadas ao sabor do momento; na prática, não se submetem a leis universais, mas à “pessoa” do agente de plantão ou de qualquer outro indivíduo que valha mais do que o preso. Não é exatamente

197 DAMATTA, Roberto. A casa e a rua – espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. BSP: Brasiliense. 1995. Passim; Carnavais, Malandros e Heróis – para uma sociologia do dilema brasileiro. RJ: Rocco. 1997. Passim

172 isso que torna a sociedade brasileira “diferente e única”. Ali também vige uma hierarquia em que somente a base da pirâmide – onde se encontra uma “ralé estrutural” – está subordinada à impessoalidade da lei. Os presos mais cultos e mais afáveis, particularmente aqueles que possuem um passaporte europeu ocidental, mesmo com visto expirado, e que podem trazer problemas diplomáticos e tantos outros de ordem jurídica, têm uma preponderância informal sobre os demais, e isto é claro para todos. Mas a hierarquia social do “com quem você pensa que está falando?” não se resume a essa minudência – com o agravante de que aqui não há carnaval, para que todos sejam colocados temporariamente em pé-de-igualdade –, como imagina a mágica damattiana. O fato é que práticas sociais como estas, não podem ser observadas meramente a partir das salas de aula ou das salas de leitura das universidades, ou ainda de programas televisivos de auditório. Elas parecem ser mais bem percebidas através da observação cotidiana, vivenciando-a no mundo da rua, na roda de samba, do que dentro dos rigores acadêmicos. Elas se tornam invisíveis a olho distante e ofuscam a compreensão real do fenômeno. Como ensinara Pierre Bourdieu (1998), é o ‘campo’ (de ação) que mostra a verdadeira essência dessas práticas e a tonalidade de suas gradações. Para examiná-las com limpidez e entender verdadeiramente o seu funcionamento é preciso que se esteja efetivamente inserido no contexto; numa palavra, é preciso de fato senti-lo na pele, na condição detenta. A verificação empírica do fenômeno, em pleno solo norte-americano – e nos arriscamos a dizer que ele não se reserva, de modo algum, ao ambiente da cadeia –, põe por terra a ilusão de que esse tipo de procedimento seja próprio do indivíduo brasileiro, ou mesmo à modernidade periférica de um modo geral, mas se revela onde a precarização das pessoas se mostre evidente. A truculência dos agentes de imigração americanos não se encerra ao capturarem os indivíduos indocumentados e depositarem-nos nas cadeias. Seus gestos, olhares e atitudes indicam aos presos “quem manda ali” e “qual é o seu lugar” a partir de então, mesmo que o regulamento interno repudie esse comportamento. Fato também é que esses agentes, no que tange ao aprendizado da moral moderna, são, também eles, indivíduos tão ou mais precarizados quanto o chefe de polícia, de Donga, ao qual fizermos exaustiva referência em capítulo

173 anterior. Em que pese os cem anos que distancia ambos os registros históricos, é exatamente esse detalhe que os impede de perceber que, a exemplo dos demais indivíduos presos ali, eles próprios são vítimas de um sistema que se retroalimenta de seu próprio cotidiano. Daí porque não conseguem enxergar que a sua vida se resume a uma violência simbólica diária, que marca aquele lugar e que diz a todos os envolvidos que há um preço a pagar para se adentrar o mundo moderno. Não é por menos que apenas uns poucos indivíduos, muitos poucos mesmo, melhor nascidos e mais bem-criados, se classificarão para tal, mas tão somente estes.

A condição detenta Depois de ‘capturados’ nos desertos fronteiriços do México com os Estados Unidos, no trabalho, em casa, ou em tantas outras situações possíveis, os futuros presos são levados em peruas Kombi, individualmente ou aos montes, para as facilities durante a manhã seguinte à sua prisão. Estas vans passam de posto em posto recolhendo os indivíduos “capturados” durante a noite. Muitos destes indivíduos são reincidentes e já conhecem bem os procedimentos, enquanto outros passam por ali pela primeira vez e se mostram aturdidos com todo o processo. Não são poucos os que se põe a chorar copiosamente, mas não raros são aqueles que se habilitam a desafiar os agentes da imigração, passando a ameaçá-los com olhares e palavras. A maioria, entretanto, segue calada, como quem tenta compreender o que de fato ocorre e, de alguma forma, antever o que está por vir. Já na chegada, os detentos que não mostram ‘sinais de agressividade’ recebem uniformes azuis. Aqueles mais violentos, e/ou que um dia estiveram envolvidos em eventuais atividades criminosas, das quais as mais comuns são o coiotismo de pessoas e drogas, são vestidos com uniformes alaranjados. Depois de submetidos a certa praxe burocrática preliminar, todos são colocados em ‘revista geral’ que incluem banho gelado, análise minuciosa de todos os orifícios de seus corpos, que incluem ouvidos e anus. Após seres devidamente classificados e fichados, os detentos são distribuídos pelas celas da imensa prisão, e ali permanecem até que o processo de deportação seja finalizado, o que pode levar semanas, meses, ou até anos – como é o caso dos

174 cubanos, que não podem ser deportados –, ou até que haja a interferência de forças externas em seu favor. Nem todos os presos mantém uma relação de estranheza num primeiro contato com a cadeia e com as celas para onde são enviados, como era de se esperar. Não é raro a muitos indivíduos, particularmente para aqueles de nacionalidade mexicana, encontrar vizinhos e conhecidos já presos naquela cadeia. Desse contato com seus sequazes, nasce comumente uma relação clânica muito positiva para os “debutantes”, onde é rotineira a presença de “códigos lingüísticos muito específicos e tantos outros de diferentes significados. De imediato, já contam, por extensão, com uma grande comunidade de ‘parceiros’ que lhes são apresentados pelos ‘veteranos’. As imediatas prerrogativas que lhe são concedidas sobre os demais presos se tornarão verdadeiramente significativas, na medida em que passam a contar com informação privilegiada sobre o funcionamento informal daquela cadeia e do sistema carcerário como um todo. São os veteranos que conhecem os advogados, os agentes e outros presos, além das ‘manhas’ da prisão, o que pode aumentar significativamente as chances destes “recém-chegados” de integrar-se efetivamente ao American way of life e ter seu destino alterado. Esse privilégio que lhes é auferido, embora não signifique garantia irrestrita de sucesso, lhes acena com a possibilidade de poderem trabalhar legalmente naquele país e, até mesmo, ainda que um sonho distante, com a esperança de tornarem-se cidadãos norte-americanos. Os recém-vindos são conduzidos até as suas respectivas celas por agentes de segurança que os introduzam aos demais agentes, provavelmente terceirizados. Em seguida, os agentes apontam aos presos as dependências da cela (banheiro e pátio) e lhes indicam em quais camas irão dormir e passar a maior parte de seus dias dali em diante. Estes agentes terceirizados são os responsáveis pela organização e pela manutenção da ordem do local. São empresas prestadoras de serviços como as que empregam estes agentes que realizam a limpeza e a distribuição dos alimentos da cadeia de El Paso, passando pela lavanderia, pela tecelagem e pelos serviços gráficos do local, a exemplo do que acontece com as cadeias regulares dos Estados Unidos e com a totalidade do sistema prisional daquele país – também conhecido como “indústria do aprisionamento”, por parte do pensamento crítico

175 de esquerda norte-americano e de setores dos direitos humanos. O que se vê aqui é mais que um diálogo franco e aberto entre essa indústria, que, como qualquer outra, paga seus encargos para funcionar, e o Estado, mas um trabalho conjunto de ambos, capaz de negar a idéia republicana de democracia, já que o mercado tem precedência sobre todas as instancias. Para o preso/trabalhador, entretanto, pouco há de ilegal nisso, dado que tudo que ele busca é trabalho e sua precarização não permite que ele enxergue a conexão entre o papel do sistema como um todo e sua desgraça, e, daí, que se insurja conscientemente contra o sistema. Há relatos de presos que, depois de trabalharem precariamente para algumas dessas empresas e que, por conta do destino, acabaram na cadeia à qual um dia ajudaram a manter, asseguram que muitas delas pertencem aos agentes da imigração ou à sua parentela, e também a políticos locais. Por mais que a situação requeira sobriedade na análise, parece indubitável que seria desastroso não somente para essas firmas, mas ainda para estes indivíduos, um eventual fim do sistema de aprisionamento de trabalhadores indocumentados, vista assentar aí a base de sua subsistência. Se a malandragem é inerente ao homem precarizado que ocupa as cadeias para indocumentados norte-americanas, ela não é menos intrínseca a esse sistema que ‘fecha os olhos’ para essa realidade. Nem mesmo o comerciante norte- americano e de outras nacionalidades que emprega gente precarizada, sem documentos, ou portando permissões de trabalho claramente falsas, são menos malandros. Eles se acostumaram a pagar não mais do que um terço do salário de um trabalhador norte-americano pela realização das mesmas tarefas e poucos se importam se estes trabalhadores precarizados lotarão as celas do sistema que os faz prisioneiros. Depois das apresentações iniciais, os agentes regulares lêem as regras internas mais óbvias a cada novo grupo que chega e ordenam que se recolham. Antes, entretanto, estes profissionais certificam-se de que não há entre os detentos algum com habilidades de cozinheiro, para que eventualmente auxiliem na cozinha do presídio. Esta pode se transformar numa oportunidade única de se conseguir a tão sonhada valid permission to work (permissão para trabalhar) depois de uns poucos meses na condição de detento. Quase todos os presos precarizados buscam esta chance de se

176 transformar em cozinheiros do presídio, mas lhes faltam certa ‘ginga’ e muito ‘jogo de cintura’. Malandros, no sentido mais positivo da semântica, são considerados aqueles que a conseguem. A partir daí, a sorte de cada um dos demais trabalhadores precarizados está lançada e pouco lhes resta a fazer senão esperar até que sejam devidamente deportados, ou, eventualmente, resgatados. Nesse ínterim, muitos rezam copiosamente para a Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Aparecida e tantas outras, rogando que as santas senhoras interfiram no processo histórico em seu favor, visto que as autoridades de seus países de origem há muito deixaram de olhar por eles. Todos os dias vêem-se formarem-se filas de presos de frente aos dois únicos telefones públicos (mas não gratuitos) disponíveis no interior das celas. Os detentos gastam seus parcos recursos monetários em ligações telefônicas, na esperança de que as representações consulares de seus respectivos países venham em seu socorro. Psicologicamente abalados, riem e choram, saltam e se ajoelham numa mesma conversa telefônica com seus consulados. Há aqueles que retornam irradiantes às celas, dizendo que acabaram de receber a promessa do consulado de seus países de que uma representação consular irá interferir em seu nome. Alguns chegam mesmo a acreditar que um corpo consular os visitará na cadeia para tratar de sua liberdade e zelar por seu futuro. A verdade é que nos trinta e quatro dias de duração desse estudo de campo, essa visita jamais aconteceu. E isso se deu não por outro motivo, mas pelo fato de os presos ali não serem outra coisa que gente precarizada (que ‘nada vale’), cujo “habitus primário fora puxado para baixo”, como assinalou Souza 198. Seja no México ou no Brasil, ou na extensão destes países, muito bem representada pelas cadeias para imigrantes indocumentados dos Estados Unidos da América, a realidade dessa gente não muda. Seja ali, no interior da cadeia de El Paso, ou nos diversos lugares de onde vêem estes indivíduos, a modernidade para eles permanece porosa, incapaz de “enquadrá-los devidamente”. A saída para eles não está noutro lugar, mas no American way of life, e disso têm plena consciência e convicção.

198 SOUZA, Jessé. Op. cit. p. 37.

177 Mas a cadeia de El Paso reserva ainda algum espaço para uma pequena classe média baixa que, a exemplo de seus colegas que compõe a “ralé estrutural” do presídio, se viu precarizada por não atender aos imperativos modernos. Ela até acumulou algum capital econômico, mas encontra-se por demais em débito dos capitais cultural e social, por mais que a posse do primeiro permita que se ‘compre’ os dois últimos, como bem mostra o exemplo norte-americano. Trata-se de pequenos comerciantes e profissionais liberais que entenderam ser mais fácil alcançar o ‘sonho americano’ do que uma cidadania de qualidade em seus países de origem, e que imaginam poder acumular capital rapidamente, injetando-o em seus pequenos negócios quando retornarem à sua terra-natal. Na verdade, não buscam outra coisa, mas uma mera oferta de crédito a juros compensatórios – um programa que possa ajudá- lo a dinamizar o seu comércio e fortalecer seu poder de compra –, mais ou menos o que os Estados Unidos já vinham proporcionando havia mais de uma centena de anos para a sua população. Mas o que tem isso de ver com malandragem? Dentro das limitações do presente trabalho, esses indivíduos são considerados malandros, não por outro motivo, mas pelo fato de não enxergarem nas instituições a “forma natural”, moderna, de fazer valer as suas reivindicações. Estes indivíduos se valem de instrumentos outros que passam ao largo destas instituições, a despeito do status de bandoleiros que adquirem a partir dessa opção, e é esse ‘pormenor’ que nos permite elastificar o conceito de malandragem para além dos limites já discutidos em outros trabalhos. A presença da fronteira norte-americana apontando para estes indivíduos com a possibilidade de poder concretizar seus desejos mais meros de empreendedores, o que para os povos da modernidade clássica seria visto como um dever do Estado, somente faz fortalecer em seu imaginário a ilusão de que o ‘caminho da malandragem’ é o mais vantajoso, embora nem sempre o mais seguro. O exemplo ilustrativo de muitos de seus conterrâneos que “se deram bem” – e acabaram nem retornando às suas regiões de origem –, fala por si só e dispersa o temor de serem feitos prisioneiros e, eventualmente, banidos daquele país. Os resultados finais dessa pesquisa constataram que, entre este grupo, muitos poucos serão os indivíduos que conseguirão

178 permanecer trabalhando legalmente em solo americano. Não são eles “malandros o bastante” para “safar-se” da situação em que se meteram. Mas nem somente de ‘malandros de boa índole’ é composta a cadeia de El Paso, mesmo entre aqueles que trajam uniformes azuis. Muitos deles já chegam com um histórico bastante denso e que em muito os aproxima do banditismo puro. Estes indivíduos já chegam munidos de habilidades trapacentas que os fazem agir desonestamente mesmo entre seus companheiros. Não são solidários e qualquer oportunidade de “dar-se bem” lhes vale a “perda de consideração” de seus “parceiros de cela”: surrupiam, delatam, dão pequenos golpes e, não-raro, usam de ‘valentia’ e de ‘ameaça’ para impor seus pontos de vista e suas exigências sobre os demais. Esses são presos que, diferentemente do grupo anterior, não se tornam malandros ao sabor do acaso, mas que já chegam malandros feitos na cadeia. Os mexicanos, particularmente aqueles que portam dentes ornados com ouro e tatuagens de agulha, são os mais estereotipados; estas parecem ser uma marca negativa para os mais sérios. Também os colombianos e os bolivianos são mal-quistos, sobretudo pelo histórico de comprometimento dos agricultores daqueles países com a chamada “indústria da droga”. O segundo grupo, entretanto, é raro por ali; prefere seguir para o eixo São Paulo-Buenos Aires, onde capitalistas coreanos, judeus, brasileiros ou argentinos da indústria têxtil, igualmente precarizados, do ponto de vista moral, e, portanto, não menos malandros – mas muito mais preconceituosos e discriminatórios –, comprarão a sua força de trabalho a preço desprezível.199

199 “Na América do Sul, embora em escala menor, o fenômeno [das migrações] desloca para o eixo São Paulo­ Buenos Aires (eixo MERCOSUL) grupos de bolivianos, paraguaios e peruanos. Na Argentina, onde ocorre um processo de discriminação dos imigrantes, há um significativo número deles, levando­se em consideração a população argentina de 35 milhões de habitantes. Calcula­se que lá existam 700 mil bolivianos, 500 mil paraguaios, 5000 mil uruguaios e 300 mil peruanos, entre outros. Em São Paulo, os imigrantes bolivianos se concentram em praças da periferia paulistana buscando trabalho, em geral, em confecções nas quais não são registrados, e trabalham mais de 12 horas em condições subumanas. Seu número é tão significativo que a Igreja Católica criou uma pastoral para atendê­los“. DIAS, Reinaldo. Op. cit. p. 281.

179 Um dia na prisão de El Paso Com a desvantagem de não ser permitido visitas, como em qualquer cadeia, os dias no presídio da imigração americana da cidade de El Paso passam muito lentamente. Para amenizar os ânimos, os administradores do local mandaram colocar ali algumas mesas de jogos que são muito disputadas, e transformaram o espaço num ambiente de sociabilidade. É dali que saíram muitas das informações expostas aqui e onde se podem conhecer as poucas possibilidades de redução de estada naquela prisão. Naquele espaço se conhecem em detalhes os motivos que levaram aquelas pessoas a pararem ali, sua origem e suas expectativas. Ali se formam pequenos grupos que seguirão juntos, se confraternizando ou se consolando mutuamente até o momento da deportação. Neste presídio, a língua oficial é o espanhol, mas uns poucos indivíduos se arriscam também em inglês. Há os mais letrados, chamados respeitosamente de “professores”, que redigem cartas para as famílias dos demais presos – embora muitos destes evitem deixar que seus parentes saibam de sua condição – e escrevem notas para os advogados que fazem plantão naquela cadeia. Estes indivíduos letrados têm muito prestígio entre os presos e acabam recebendo deles presentes diversos, como forma de gratidão, que vão desde sobremesas não-consumidas até promessas de retribuição posterior em dinheiro. São eles que lêem em voz alta as colunas de esportes dos jornais escritos e, não-raro, traduzem os pensamentos expostos nos artigos destes jornais. Entre os presos do leste europeu, entretanto, que ficam mais ou menos isolados em seu grupo, não se verifica analfabetismo ou semi- analfabetismo e, tampouco uma relação de aproximação mais emotiva, mesmo entre si. Somente os eventos lúdicos, que se resumem aos jogos de pebolim, de cartas e de futebol, conseguem ligar estes grupos aos demais. Todos os dias é dia de futebol. Formam-se vários times e os brasileiros, geralmente apelidados de “Romário”, “Ronaldo”, “Rivaldo”, ou outro nome que esteja em evidência no futebol mundial, são os mais disputados para compor e comandar as equipes. O espaço do futebol se torna mais atrativo e intenso, entretanto, mesmo para aqueles sem a menor familiaridade com esse esporte, no horário das onze. É nesta hora que as presas seguem em fila dupla para

180 almoçar, não aquelas de uniforme alaranjado, “perigosas”, com histórico de violência no currículo, mas “chicas”, vestidas em uniformes azuis. Neste momento, o futebol é completamente interrompido e os presos amontoam-se nas cercas para observá-las e para “jogarem seu charme”, além de algum palavreado chulo. Como quer que seja, muitas vezes são correspondidos, recebendo sorrisos e acenos em resposta. Há histórias de presos cubanos com longos períodos de encarceramento que acabaram se casando no ambiente da cadeia, e fazendo do feito o motivo não somente de sua soltura, mas também do recebimento de “los papeles”, do direito de trabalho provisório, ou até mesmo, residência permanente nos Estados Unidos. Isso dependerá, ainda assim, do nível de cordialidade que o preso emprega para dirigir-se aos agentes de segurança; são estes profissionais, respeitada certa hierarquia, que decidirão, na prática, o que é possível ou não naquela cadeia. Esse tipo de rumor é o que mais move os presos em seus galanteios às presidiárias, daí porque lhes interessam menos as moças de uniforme alaranjado; “não são de família”. Há quem diga que muitos trabalhadores precarizados se deixam “capturar” nos desertos do Texas, na esperança de que o destino lhes traga a rara sorte dos cubanos. Daí que, minutos antes da passagem das presas, muitos detentos certificam-se que estão devidamente barbeados e perfumados. A comunicação entre eles, ainda assim, é por demais precária. Sem a complacência dos agentes de segurança, ela pode jamais existir, e essa regra vale para praticamente todas as instâncias da vida naquela cadeia. Para a utilização dos chuveiros e dos vasos sanitários não é necessário respeitar qualquer hierarquia, pode-se utilizá-los sempre que as necessidades fisiológicas demandarem. Mas, ainda assim, é aconselhável se ter bem claro que não se pode tomar banho a qualquer momento; deve-se respeitar a rigidez dos horários. Muitos dos presos esperam chegar a madrugada, quando a maioria de seus colegas está dormindo, para utilizar os banheiros. Não há portas internas nestes espaços e o constrangimento dessa brutalidade é, para muitos, insuportável. É aconselhável, entretanto, que não se faça muito barulho nestas ações. O percurso até o banheiro pode ser facilmente confundido com uma tentativa de roubo de cigarros, de cartões telefônicos, e de tudo o mais

181 que possa, eventualmente, ser convertido em dinheiro. Mais grave do que ser acometido numa situação dessas, não obstante, é ter de dividir o espaço do “quartinho” (solitária) com um eventual agressor, por dias e noites a fio, caso os agentes de segurança assim entendam por bem, como “medida cautelar”. Por volta das nove horas da manhã, os presos devem se apresentar, devidamente penteados, em fila dupla não hierárquica no pátio da cela para o café. Assim como na hora do almoço e do jantar, os cativos seguem até o refeitório, escoltados pelos agentes de segurança que lhes pedem em vão para não conversarem entre si. O sol escaldante do Estado do Texas não chega a incomodar, pois o trajeto não demora mais que dez minutos, a depender da distância da cela em que o preso se encontra encarcerado. Ainda assim, tem- se, não-raro, de aguardar em espera para que se adentrem o refeitório até que outros prisioneiros, particularmente aqueles que trajam uniformes alaranjados, se tenham retirado por completo. Alguns dos agentes, mesmo assim, não se incomodam de verem misturados presos de celas diferentes ou que trajam uniformes variados. Homens e mulheres, entretanto, nunca comem juntos e raramente se encontram no caminho de volta, para o desespero daqueles mais afoitos. Encontros íntimos e quaisquer tipos de contato entre presos e presas são expressamente proibidos, mesmo que em casos de marido e mulher, irmãos e irmãs igualmente presos. O contato entre eles não pode existir e uma tentativa desesperada de rompimento dessa regra básica, pode resultar em deportação sumária ou, na melhor das hipóteses, numa dilatada visita ao sinistro e entediante “quartinho”. Quando não há futebol na TV, as tardes parecem mais longas. Neste caso, muitos presos se distraem com os escassos materiais que a cadeia disponibiliza em sua biblioteca. Há publicações em inglês e espanhol e as edições normalmente datam de décadas anteriores, mas ainda assim são “muito úteis”, atestam os usuários. Também há exemplares de jornais diários escritos nos dois idiomas e que são disponibilizados aos detentos depois de os agentes de segurança terem feito uso deles. Os presos mais instruídos e com maior familiaridade com o local, geralmente os cubanos, se ocupam da organização e catalogação do acervo. Também no espaço da biblioteca, pode- se dividir uma antiga máquina de escrever modelo Remington 1967, ou outra,

182 do tipo Underwood 1968, que os “presos comuns” usam para dar um certo “charme” às cartas que remeterão aos seus familiares, aos amigos ou a um eventual advogado, responsável pelos pedidos de clemência dos presos junto as autoridades locais. Os serviços desses advogados são fundamentalmente privados e a sua habilidade profissional e capacidade de persuasão são conhecidas da maioria dos detentos e passadas de boca-em-boca no ambiente da prisão, como se fez menção acima. As entrevistas com esses profissionais ocorrem geralmente as quartas-feiras durante todo o dia, mas é necessário um pedido formal ao órgão competente interno, realizado com antecedência de dias ou semanas. No encontro com o advogado é estipulado o valor a ser pago por seus serviços, baseado na dificuldade do processo. Como os objetivos dos presos são muito semelhantes – a maioria absoluta dos prisioneiros gostaria de ser colocada em liberdade, sem ter de voltar à sua terra de origem, podendo trabalhar livremente nos Estados Unidos –, os defensores costumam levar aos encontros com seus clientes uma tabela de preços que facilita a vida de ambos. Dali, os presos saem com uma sensação de que suas chances de ver o sonho americano realizado são maiores do que realmente são. Não obstante, a maioria dos presos não dispõe de fundos suficientes para cobrir as despesas do processo, que gira em torno de trezentos dólares com advogados e de dois a dez mil dólares com a fiança para o Estado americano, e acaba aguardando até ser devidamente deportada. É o juiz quem decide o valor da fiança e ele tenderá a elevar o preço no caso de presos com “histórico sujo”, como relatam os detentos, de forma que se torne quase que impraticável o pagamento. Ocorre que há redes externas que garantem os pagamentos dos presos envolvidos com atividades como o “el coyotismo”200, facilitando a sua soltura e a reprodução do sistema.

200 El Coyotismo ou coiotismo é o nome que os agentes de imigração e os próprios presos dão a uma atividade muito corriqueira na fronteira dos Estados Unidos com seus vizinhos e que consiste na travessia ilegal de pessoas estrangeiras para aquele País. Os “coyotes” recebem dos interessados em entrar ilegalmente nos EUA um valor que varia de acordo com as circunstâncias. Há quem afirme na cadeia de El Paso que existe uma “indústria do coyotismo” em vários países da América Latina, particularmente no México, e que movimenta milhões de dólares, sob os “olhos míopes” não somente das autoridades locais, mas também americanas. O percurso até o território americano pode levar até uma semana, via desertos, rios e matas, e não há garantia de sobrevivência para quem

183 Muitos dos presos comuns, meros indivíduos em busca de trabalho que se esforçam demasiado para não serem cooptados pelas propostas da indústria do coiotismo, costumam dizer que, em termos econômicos, é melhor que sejam mesmo deportados e possam tentar a travessia novamente, o que justifica o grande número de reincidências naquela cadeia. O que se observa é que até mesmo no coração moderno da cadeia americana para imigrantes indocumentados se verifica a presença de uma hierarquia que separa uma “ralé estrutural” de um grupo de privilegiados, decidindo por seu infortúnio ou sorte. Ali a modernidade funciona precariamente, como qualquer periferia da modernidade, e é desta realidade que fugiam aqueles trabalhadores ao imigrarem ilegalmente para os Estados Unidos a procura de trabalho e reconhecimento social. Estas pessoas não procuravam outra coisa senão escapar da sina de “nada valer”, de terem sido abandonados pela modernidade de seus respectivos países. Era da idéia de somente possuírem o corpo para vender a preço baixo que tentavam escapulir – pelo menos no longo prazo, até atingirem o sonho americano de consumo –, mas acabavam se deparando novamente com ela, desta vez, ironicamente, em solo americano, onde, teoricamente, isso não deveria ocorrer. O encontro com o juiz não leva mais que dez minutos e ali não se perguntará exatamente aquilo que o preso passara a noite imaginando e para o que decorara respostas. Ainda assim, o interrogatório versará sobre o passado recente do preso e suas expectativas para o futuro. A rigor, os detentos devem ater-se somente ao essencial na resposta, mas isso nunca funciona. Com a ajuda de um intérprete, pedem geralmente ao juiz que diminua o valor da fiança e falam da família, de religião, dos amigos e, sobretudo, de suas boas intenções e de sua gratidão “ao grande pai do norte”, que são os Estados Unidos. Terminada a sessão, os presos julgados esperam aflitamente por mais alguns dias até que saia a sentença final. As deportações geralmente acontecem de madrugada. Os presos que não contratam advogados para serem “representados” na corte, não podem se arrisca na travessia. Há relatos dos presos (presentes também na mídia e em relatórios de entidades preocupadas com os direitos humanos) sobre gente morta de sede ou fome, ou pelos próprios coyotes durante a diáspora.

184 passar pelo crivo do juiz, e são, portanto, sumariamente desterrados. Outros, com maior capital econômico e cultural – mas sem maior sorte – são juntados a estes e levados para seus países de origem em vôos comerciais. O número de presos deportados varia de acordo com o número de presos congestionados entre as facilities, e o dia de sua deportação deverá coincidir com a de outras, com vistas á “contenção de despesas”. Numa dessas oportunidades, o serviço de imigração americano se viu obrigado a dispor com exclusividade de um avião de grande porte, com capacidade para mais de trezentos passageiros, para embarcar o número gigantesco de indivíduos considerados “personas non gratas” naquele país e sejam mandados de volta para casa.

Sinais visíveis e invisíveis de malandragem

O sorriso maroto e a delicadeza inoportuna denunciam de antemão, não que um “homem cordial” se aloja no interior de cada trabalhador preso na cadeia para imigrantes indocumentados da cidade de El Paso, mas um malandro em potencial. Parece menos dolorosa a estada daqueles indivíduos cujo ‘jeito’ com as palavras é maior e cujo ‘xaveco’ entre os colegas de cela e entre os agentes da imigração é mais apurado. Também as suas chances de conquistar o que vieram buscar, trabalho e dignidade, parecem crescer na malandragem, o que revela que esta prática social e o trabalho não são elementos necessariamente conflitantes. Somente os “mais malandros” conseguem os contatos necessários, internos e externos, para garantir a condição rara de trabalhador, mas não só. Como não carregam papeles (documentos) que possam identificá-los e dizer de onde verdadeiramente vêem, muitos dos presos, de origens diversas, se fazem passar por cubanos para não serem deportados. Com isso, podem eventualmente conseguir a cobiçada “residência”, após longo “período de lapidação” na cadeia. Esta, aliás, é uma das regras básicas entre os “mais malandros” para serem incorporados ao serem presos, muito embora as suas características físicas, muito próximas de indígenas, e seus respectivos sotaques, um tanto distanciados do cubano, acabem por denunciá-los. Atento à tática, o sistema tratou de incutir agentes de origem latina entre o “staff” (pessoal) de imigração, dificultando (ou facilitando) essa estratégia.

185 Ainda assim, embora se trate de uma opção perigosa, o desespero e o temor de se verem retornando à realidade que os conduzira àquela situação, depois de tanto sacrifício e expectativa, revestem os presos de coragem e os levam a mentir. “A ordem aqui é entender que quem nada tem, nada tem a perder”, como lembra um dos presos, e que “todo o esforço vale à pena”. Daí porque muitos detentos nem sempre contam “pequenos detalhes” aos seus próprios advogados de defesa. “Não são confiáveis”, alertam. No encontro com o advogado, todos os prós e contras sobre as possibilidades de sucesso de não se dizer exatamente a verdade sobre os mais variados assuntos concernentes ao processo são fugazmente levantados. Quão maiores os “contras”, menores as chances do cliente, mas, em contrapartida, quão maior a insistência pelo “cliente” no caso, mais expendiosos serão os honorários cobrados por aquele profissional. Questões tais como a “veracidade” sobre a nacionalidade do “réu” e de quaisquer outras ali colocadas, não são determinantes para que o profissional do direito deixe de aceitar “o caso”. Ele nada tem a perder, longe do ponto de vista ético. Aquela é uma atividade lucrativa e isso basta para que ele dê início aos trabalhos. O pagamento ao profissional deve ser feito em “cash”, mas não precisa ser à vista, podendo ser informalmente parcelado. Muitas vezes os próprios advogados se encarregam de buscar “o pagamento” ou o restante dele nas casas de familiares ou amigos dos presos-clientes, mesmo no além-fronteiras. Não parece ser outra lógica que move os advogados da cadeia de El Paso, mas uma busca sagaz por lucro; e a mesma lógica se aplica a toda a dinâmica que permeia o sistema de aprisionamento de estrangeiros naquela nação. Existe toda uma rede comercial que se formou em torno da existência do sistema prisional norte-americano para indocumentados que abrange inúmeras instâncias, escapando, por vezes, ao controle do Estado, e fazendo dele um negócio altamente rentável. Ele gera empregos e diversifica a economia local, além de garantir certo welfare e prosperidade aos indivíduos legalmente envolvidos, causando uma sensação de que ‘tudo vai bem’, sugerindo ser melhor que continue assim. Abaixo se vê um exemplo ilustrativo de ‘recibo de pagamento’ feito em seis de julho de 1999, expedido por uma advogada da cadeia para indocumentados da cidade de El Paso:

186

187 Na ocasião da entrevista com a advogada de defesa, que expediu o precário recibo acima, a profissional se esqueceu de perguntar o nome completo do preso que iria defender e se viu obrigada a questionar outros presos, de boca em boca, a posteriori, sobre esse “pormenor”; uma prática comum ali. A advogada não foi bem-sucedida num primeiro momento em sua busca pelo “brasileño de piel oscura y el pelo rizado”, pois, não somente há presos espalhados por diversas cadeias, o que impede que todos se lembrem uns dos outros pelas características físicas, como o sistema funciona dando maior importância a números do que a nomes, o que não contribui para a identificação fácil de quem pretende receber um “documento nominal”. Como conseqüência, acabou enviando o “recibo de pagamento” para três outros detentos fisicamente parecidos, um após o outro, mas de nomes e nacionalidades completamente díspares. Para a sorte do cativo em questão, um dos agentes de segurança a ajudaria a reconhecer o indivíduo através do prontuário, poucos dias mais tarde, e lhe entregaria em mãos o tal “recibo de pagamento”. Essa desorganização anti-moderna que acompanha o sistema prisional norte-americano e que em muito lembra a ‘bagunça organizada’ da periferia da modernidade, para indocumentados não vale, ainda assim, para todo o sistema. Os advogados existem na cadeia para tentar aumentar as chances do detento de se habilitar a trabalhar legalmente nos Estados Unidos. Além desse serviço, eles atuam junto ao ‘juiz interno’ para que esse considere a possibilidade de diminuição do valor da fiança paga pelo detento, em caso de soltura, mas não somente; ele procura ainda detectar os “serviços de fiança” (Bond services) mais compensadores e colocá-los em contato com os cativos. Estes “serviços de fianças” são empreendimentos especializados em emprestar crédito e prestígio que se formaram na órbita do sistema e que ‘ajudam’ os presos a arcar com os encargos financeiros de sua soltura. Muitos deles pertencem aos próprios advogados de defesa e, há quem diga que algumas são mesmo de propriedade de agentes de segurança ou de seus familiares; um negócio como outro qualquer. Como quer que seja, aos presos vale muito a possibilidade de se verem livres para trabalhar, mesmo que o investimento lhes custe os próximos anos de trabalho duro. Vê-se, pois que o sistema, por bem

188 ou por mal, interessa a todos os envolvidos, esteja ele de um ou do outro lado da fronteira. Ao se livrarem da cadeia, esses presos ‘mais sortudos’ são resgatados das dependências da cadeia pelos agentes das empresas de fianças e conduzidos até sua nova ou antiga residência. Dali em diante, se encontrarão sob a tutela destes indivíduos e por eles serão monitorados, até que quitem seus débitos com a empresa de fiança responsável e possam provar ao Estado que têm cumprido com as promessas previamente acordadas com as autoridades norte-americanas. Como têm de mandar dinheiro para casa, na maioria dos casos, esses trabalhadores precarizados, na esperança de que o acúmulo de atividades remuneradas lhes presenteie com um volume maior de recursos, acabam por realizar múltiplas tarefas profissionais, o que não impede que se endividem mais e mais e diversifiquem a sua dependência financeira. Se isso pode parecer absurdo e desumano para os leitores desse testemunho sobre a realidade do indivíduo ilegal, que foi preso em busca de trabalho na parte mais rica do planeta, o fato não o é, em hipótese alguma, para os próprios homens e mulheres precarizados que passam por tal acometimento. Em conversas com os detentos percebe-se que não é com outro meio, mas com essa realidade que sonham os trabalhadores presos na cadeia para indocumentados da cidade de El Paso, nos Estados Unidos. O mínimo de cidadania que possam eventualmente obter naquele país, pode representar para eles um avanço real em seus direitos e com os quais jamais puderam contar em suas terras-natais. Poucos desses presos estão, de fato, interessados em se tornar criminosos ou de atentar contra a integridade física ou moral das pessoas daquele país. Grande parte deles sequer sabe ler ou escrever e entende que a sua desgraça é culpa dos males que eles próprios causaram a si, isentando de responsabilidade o Estado de onde partiram. Essa gente carrega por todo o corpo as marcas brutais de sua modernidade periférica: são trabalhadores de mãos e pés rasgados e feridos pela dureza das atividades profissionais que lhes foram reservadas até ali. Têm olhos míopes, dentes falhados e estragados, além de saúde fragilizada por falta de assistência médica decente. Até na cadeia de El Paso, estes indivíduos recebem tratamento médico de melhor qualidade. Ainda assim, querem ver seus filhos alimentados e educados

189 para que não representem somente números nos noticiários policiais de seus lugares de origem e do mundo afora. Ainda que a sorte não lhes tenha contemplado ao nascer, se recusam a consentir o mesmo destino aos seus, e não é outro sentimento que os move, bem como não é por outra razão que estão presos. Não é por outra razão, aliás, que essas pessoas tentam ludibriar sempre que podem: choram quando não querem chorar, riem quando não querem rir, “xavecam” quando não precisam “xavecar”, e faltam com a verdade sempre que podem. Por vezes precisam de uma “ginga particular” e de uma “maleabilidade própria” para “dar-se bem” em seus objetivos. Noutras, se utilizam de “jeitinhos” que encontram prontos ou que desenvolvem ao longo de suas vidas, para “levar vantagem” em situações desfavoráveis. São capazes mesmo de “vestir-se de forma diferenciada” para impressionar, se for este o caso, ou ainda de ‘falar mansamente’, para iludir os ‘otários’. Fazem isso, entretanto, tanto mais pela busca de respeito e dignidade a eles negados e tanto menos por fraqueza da índole. As verdadeiras causas de sua condição não se revelam em sua consciência e acabam passando para a história como bandidos. Na verdade não o são; são trabalhadores cujo nível de precarização atingiu os últimos degraus da decência humana, convertendo-os de malandros em potencial em malandros plenos. A malandragem, afinal, é um valor que todo homem precarizado divide, independentemente da localização geográfica ou da especificidade cultural em que nasceu e cresceu. Não há equivalência entre a malandragem e a certidão de nascimento dos indivíduos, até porque, muitos dos presos da cadeia de El Paso jamais possuíram tal documento e nem sequer sabem com precisão de onde vêm. Ela se evidencia nas práticas cotidianas desses trabalhadores porque é visível, quase palpável; está onde quer que haja sinais de precarização, em maior ou menor escala, e o próprio sistema norte-americano que prende trabalhadores indocumentados não está livre do fenômeno. A malandragem é uma prática social corriqueira na cadeia da imigração para indocumentados, e isso nada tem de ver com corrupção ou coisas do gênero. Ela opera majoritariamente através de “sinais invisíveis”, para usar a feliz expressão de Bourdieu. Estes sinais estão por todo o lugar, do preso ao agente de imigração, passando pela própria dinâmica do sistema, que não

190 enxerga, para além do que lhe interessa ver, até a viciosidade do formato que lhe dá sustentação, inserida numa economia de mercado que funciona bem, mas que assenta numa estrutura igualmente precarizada. Parece desastroso para o equilíbrio da microeconomia local o fim do sistema de confinamento de trabalhadores indocumentados. Seria ilusório pensar que o mercado local morreria sem a complexa teia que envolve o sistema prisional para indocumentados da região, mas uma mudança radical em seu interior não parece ser bem-vinda, considerando que sua dinâmica opera com uma lógica própria onde nenhuma parte se completa isoladamente e que faz das ‘coisas da imigração’ um negócio rentável e bem-quisto. O fato é que o sistema sofre de males que empurram os indivíduos envolvidos, e as próprias instituições, para a precarização. E é dessa forma que ele se retroalimenta e se auto-contamina. A presença maciça das instituições no processo de captura e confinamento, soltura e deportação dos indocumentados se mostrou capaz de impedir que uma lógica malandra passe ao largo destas, mas não consegue evitar que ela sobreviva em seu próprio interior. E nenhum instrumento de accountability ou quaisquer outros que prometam ‘total eficiência’ e ‘máxima transparência’ dos aparelhos democráticos modernos são capazes de barrar essa dialética. Andando pelas ruas da região, se vêem inúmeros exemplos de atitudes malandras praticadas por parte das populações locais precarizadas, e o mau funcionamento do Estado e do mercado – da modernidade – tem muito de ver com isso. Uma eventual tentativa de reversão dessa lógica passaria necessariamente pela intervenção norte-americana na raiz do problema, que não se encontra em seu território, mas nos locais de onde vêem os detentos. Essa intervenção, entretanto, não poderá se dar sob a orientação eminentemente mercadológica, no formato yankee puro, do empreendedor avarento a quem somente interesse o lucro a qualquer custo, sob pena de se recriar infindamente esse modelo precarizado de relações humanas. Se já não pode retornar ao sonho simbólico lincolniano de construir sociedades compostas de pequenos proprietários rurais, ela pode e precisa atender a própria lógica moderna de homogeneização do tipo humano, que naturaliza a dominação, mas que pode ser usada pela sociedade civil para garantir a

191 extensão da cidadania moderna, e que deve se dar antes mesmo do nascimento dos indivíduos, mais ou menos como aquele país fez em seu próprio território. A precarização das pessoas simples, seja em El Salvador, seja na Guatemala ou no Brasil, de alguma forma está relacionada à atuação política ou comercial norte-americana, fazendo com que sua responsabilidade seja, o mínimo, de ordem moral. Não é somente pela existência de uma periferia brutalizada localizada do outro lado do Rio Grande que o sistema norte-americano de contenção de imigração ilegal se contamina e se reveste de precarização ele próprio. O seu entendimento mercadológico das relações sociais absorve a precarização periférica para o coração do país na medida em que somente enxerga na lógica das relações de compra e venda, particularmente nos acordos comerciais vantajosos que mantêm com essa periferia, o sentido para a vida. Com isso, acaba contribuindo, ainda que indiretamente, com a sobrevida de relações sociais fincadas na malandragem, e jogam por terra as chances reais de se construir um mundo menos áspero para as pessoas.201 O melhor talvez fosse pensar os dilemas da vida social sob a perspectiva de pensadores contemporâneos tais como o sociólogo americano Robert N. Bellah, autor de The good society, e seus seguidores, para quem, “comunidades fortes requerem boas instituições – legais, políticas, econômicas, familiares, educacionais, religiosas – que forneçam um contexto de solidariedade, e que sem solidariedade nem indivíduos nem grupos prosperarão”202.

201 O responsável por esta pesquisa foi solto da prisão de El Paso 34 dias após ter sido ‘capturado’ e preso por lhe faltar um carimbo no Visto de entrada nos Estados Unidos em seu passaporte, que lhe garantia dez anos de validade. Depois de liberto, o pesquisador foi autorizado a fixar residência por um período máximo de três meses na cidade de Los Angeles, no Estado da Califórnia, de onde partira antes de ser preso, e aconselhado pelas autoridades locais a dar início ao processo de “pedido de cidadania americana”, junto às autoridades do Estado. Esse pedido jamais aconteceu. O pesquisador retornou ao Brasil dois meses depois, reassumindo suas tarefas de professor, e trazendo na bagagem a certeza de que a modernidade fabrica malandros e determina o destino das pessoas, onde quer que lhe permitam fazê­lo. A experiência relatada aqui foi escrita originalmente durante essa estadia, entre os meses de junho e agosto de 1999, e deixou seqüelas que dificilmente serão cicatrizadas. 202 BELLAH, Robert N. Comunitarismo ou liberalismo? Brasil e Estados Unidos em debate. In: SOUZA, Jessé (Org.). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: UnB, 2000. 295­316. p 314.

192 Considerações finais

O malandro retratado neste trabalho não é um, mas inúmeros, bem como infinitas em números são as suas práticas e os seus lugares de atuação. Ele é o homem pobre que dá pequenos golpes para complementar a renda, que se emociona e chora nos desfiles de sua escola de samba durante o carnaval. É também a cabrocha desta escola de samba que, muitas vezes, não é reconhecida como digna de cidadania enquanto trabalhadora sem capital cultural e é levada a usar do ‘xaveco’ e da ‘ginga’, de seus dotes naturais, para fazer valer seus anseios. O malandro é a dona-de-casa brutalizada que faz vistas grossas ao comportamento marginal do filho; é a senhora que vira sacoleira nas compras no Paraguai, que usa da ‘esperteza’ para burlar a lei e a ordem modernas. O malandro é ainda o cidadão de classe média que procura ‘levar vantagem’ sobre o colega de trabalho para tomar-lhe a posição na empresa. Ele é o indivíduo que busca o capital cultural diferencial a qualquer custo e julga natural sua luta. O malandro é o capitalista brasileiro que historicamente não reajustou o salário do trabalhador de acordo com seus ganhos e abocanhou todo o lucro. O malandro é o próprio homem precarizado que permanece ilegalmente em sociedades de modernidade lapidada, em busca de trabalho e dignidade; que carece de amigos e de gente que acredite nele. Mas pode se transformar ainda no sujeito venerado pelo povo, porque é “bom de bola”, porque encanta com seus truques quase mágicos e com sua habilidade com a “pelota”, que firula como ninguém, seja no campo, seja na vida social. O malandro, na verdade, não é outro senão o próprio indivíduo que, no desencontro abrupto com as coisas da modernidade, revela uma polidez cobiçosa, um lhano no trato que atua em favor da tolerância com a contravenção, e se orgulha do paulatino relaxamento de supostos padrões morais impostos por essa doutrina. O malandro não é resíduo castiço de nossas origens pré-modernas, como tanto se diz, e, se em alguma medida está integrado emocionalmente, isso se dá em função da estranheza que sente pelas coisas da racionalidade dessa modernidade arrebatadora.

193 A prática social da malandragem se revela uma forma de resistência frente ao modelo hierarquizador moderno, se apresentando muito mais enquanto substrato de condições sócio-culturais, de intervenções histórico- sociais estimuladas por condições criadas pela dinâmica dessa nossa modernidade desastrosa, do que de qualquer outro fator. Dizer o contrário equivaleria a brigar com os fatos, e o fato é que, até a modernização da modernidade brasileira, nem mandões, nem mandados, admitiam a totalidade dessa doutrina domesticadora como modelo de organização social, política e econômica da coletividade brasileira e, embora passassem a tolerá-lo mais tarde, o fizeram sem repensar a imprescindibilidade da ideologia da igualdade de oportunidades e condições, capaz de colocar em pontos de partida relativamente similares os homens e mulheres de uma mesma sociedade. O malandro que se forma do encontro e do desencontro dos indivíduos com a doutrina moderna, por sua natureza, não alimenta a ambição de intervir mais profundamente na história, procurando fazê-la mais sua, tomando as rédeas da modernidade em suas mãos, tornando-se ele próprio protagonista de seu tempo, ajudando a transformar a coletividade em um grupo digno de direitos. Ao contrário, contenta-se em contemplar o modelo de dominação moderno, ‘correndo por fora’, ao largo das instituições, rompendo as regras de conduta social e permanecendo subcidadão ele próprio. O malandro é aquele que inventa as suas próprias regras na base da “esperteza”, pois é ela, afinal, a base de sua coragem e a sua esperança de vida digna. Leva sua vida dissimulando sempre que julga necessário, fingindo obedecer aos códigos de conduta social, contribuindo como pode para marcar a nossa especificidade com relação à modernidade de outras sociedades. É particularmente na malandragem que o homem feito malandro pela modernidade logra ser alguém, colocando de lado a sua condição de precarizado, a sua desesperança, revertendo ilusória e momentaneamente as suas frustrações. É somente nela que ignora o fato de que não atinge os requisitos para que alcance o respeito dos outros e a própria auto-estima. O malandro é vítima e algoz e, sempre que pode, atua para desbancar as potencialidades dos outros indivíduos, ‘levando vantagem’ ele próprio no mundo da desenfreada competição moderna. É individualista e sorrateiro e, por

194 isso mesmo, não consegue despertar o sentido último do “bem comum” republicano que dorme no coração de cada homem, até mesmo do seu próprio. Este é o malandro, dono de um comportamento social que ficou conhecido como malandragem e que se tornou característico de muitas das pessoas que não se deixam ou não conseguem se enquadrar na hierarquia moral moderna. É este comportamento que ganha fôlego na briga entre dominador e dominado. É ele que acaba ditando o ritmo geral aos indivíduos moralmente precarizados do lado periférico do mundo moderno, e que somente um choque radical de cidadania irá afugentar.

195 Referências bibliográficas

ANDRADE, Oswald de Andrade. Manifesto Antropológico. SP: Vozes. 1987. ARGUELLO, Katie. O mundo perfeito: nem possível, nem desejável. In SOUZA, Jessé. O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultura brasileira. 148­163. Brasília: UnB. 2000. AUGUSTO, Sérgio. Xô, jeitinho. O Estado de SP. 27.05.2007. BARBOSA, Lívia. Igualdade e Meritocracia: a ética do desempenho nas sociedades modernas. RJ: GV. 2001. _____. O jeitinho brasileiro :a arte de ser mais igual que os outros. RJ: Campos. 2000. BELLAH, Robert N. Comunitarismo ou liberalismo? Brasil e Estados Unidos em debate. In: SOUZA, Jessé (Org.). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. 295­316. Brasília: UnB. 2000. BENJAMIN, Walter. A modernidade. Coleção obras Escolhidas. Assírio & Alvim. 2007. BOURDIEU, Pierre. Choses dites (Le sens commun). Paris. Les éditions de minuit. 1987.

_____. O poder simbólico. RJ: Bertrand Brasil. 1998. _____. Critical debates. Chicago. Chigado: The Chicago University Press. 1998. BRANT, Vinicius Caldeira. Maluf. SP: Revista Novos Estudos CEBRAP. 2008. Edição 80, Julho/2007. BUENO, José Antônio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Brasília: UNB. 1978. BURDEAU, Georges. O liberalismo. Brasília: UnB. 1991. CARDOSO, Fernando Henrique, FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. RJ: Zahar. 1969. CARDOSO, Sérgio. Por que República? Notas sobre o ideário republicano. In: CARDOSO, Sérgio (Org.). Retorno ao republicanismo. BH: Ed. UFMG. 2004. 17­41. CARVALHO, José Murilo de. A cidadania a porrete. RJ. Editora Mimeo. 1988. _____. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. RJ: Rio Fundo Editora. 1995. _____. Teatro de Sombras – a política imperial. Paz e Terra. RJ. 1980. _____. Cidadania no Brasil – O Longo Caminho. RJ. Civilização Brasileira. 2002. _____. Escândalo é o único meio de punir os poderosos. O Estado de SP. 02/09/2007. CAVALCANTI, Rosa Maria N. T. Conceito de Cidadania: sua evolução na Educação Brasileira. SP: SENAI. 1998. CISCATI, Márcia Regina. Malandros da terra do trabalho: malandragem e boêmia na cidade de São Paulo (1930­1950). SP: Annablume/Fapesp. 2001. CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. SP: Perseu Abramo. 2002.

196 _____ Contra a violência. Disponível em: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=3467. Acesso em 20.07.2008. _____. Convite à filosofia. SP: Meca. 2005. COSTA E. Viotti da. The Brazilian Empire: myths and histoiries. Chicago University Press. 1985. _____. Da monarquia à república: momentos decisivos. SP. Unesp. 1999. COSTA, Antonio Firmino. O que é Sociologia. Difusão Cultural. Lisboa. 1992. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. SP: Saraiva. 2006. DAMATTA, Roberto. A casa e a rua – espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. SP: Brasiliense. 1995. _____. Carnavais, Malandros e Heróis – para uma sociologia do dilema brasileiro. RJ: Rocco, 1997. _____. Conta de mentirosos – sete ensaios de antropologia brasileira. RJ: Rocco. 1993. _____. O que faz do brasil, Brasil? RJ: Salamandra, .1984. _____. Explorações: ensaios de sociologia. RJ: Rocco. 1986. _____. Prefácio. In: BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro :a arte de ser mais igual que os outro . RJ: Campos. 2000. DAVIS, Mike. Planeta Favela. SP: Boitempo. 2006. DIAS, Reinaldo. Introdução à sociologia. SP: Pearson­Prentice Hall. 2005. DUPAS, Gilberto. Ideais republicanos. O Estado de SP. 04/04/2006. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico e outros textos. SP: Abril. 1973. (Coleção Os Pensadores). DUARTE, Nestor. A ordem privada e a organização política nacional. SP: Cia. Ed. Nacional. 1966. EÇA DE ALMEIDA, Maria da Piedade. Mito: metáfora viva? In: MORAIS, Régis de (Org.). As razões do mito.SP: Papirus. 1988. 59­67. ELIAS, Norbert. O processo civilizacional (1º vol.). Lisboa: Dom Quixote. 1990. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. RJ: Globo. 1984. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil.Globo. 1975. FERREIRA, Antonio Celso. Introdução. In: CISCATI, Márcia Regina. Malandros da Terra do Trabalho – malandragem e boemia na cidade de São Paulo (1930­1950). FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na sociedade escravocrata. SP: Ática. 1969. FREITAS, Lorena e LUNA Lara. A família desorganizada e a reprodução da “ralé estrutural” no Brasil – In:. SOUZA, Jessé. A invisibilidade da desigualdade social brasileira. Org. Jessé Souza: Editora UFMG. 2006. 76­94. GLASER, B., STRAUSS, L.A. The discovery of grounded theory: strategies for qualitative research. Chicago, Aldine. 1967. GONÇALVES, R. P. Macunaíma: carnaval e malandragem. Santa Maria: UFS, 1982. GOTO, Roberto. Malandragem revisitada. SP, Pontes. 1988. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Brasília: UnB. 1963.

197 HONNETH, Axel. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. SP: Editora 34. 2003. HUIZINGA, johan. O declínio da Idade Média. SP: Verbo/Edusp. 1978. JAGUARIBE, Hélio. Encontro Anual da Anpocs realizado em Caxambu, Minas Gerais, em outubro de 2005. JASMIN, M.G.. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. RJ: Access. 1997. _____. Tocqueville e as conseqüências despóticas da democracia. 1988. (Doutorado em filosofia) RJ: IUPERJ. 1988. KOCH­GRUMBERG, Theodor. Do Roraima ao Onorico: V. 1: SP: Unesp. 2006. KONDER, Leandro. Os sofrimentos do”homem burguês”. SP: SENAC. 2000. KOVARICK, L. Trabalho e vadiagem; a origem do trabalho livre no Brasil. SP: Brasiliense. 1987. LACLAU, Ernest, MOUFFE, Chantal. Hegemony & socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso. 1985. LAPLATINE, François, TRINDADE, Liana. O que é imaginário. SP: Brasiliense, 1997. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. RJ: Nova Fronteira. 1997. LESSA, Renato. A Invenção Republicana – Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira. RJ: Vértice. 1988. LEVORIN, Paulo. A república dos antigos e a república dos modernos. Tese de doutoramento.

FFLCH/USP. 2006. LINTON, Ralph. Cultura y Personalid. Cidade do México: FCE. 1965. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. SP: Nova Cultural. 1978 (Coleção Os Pensadores). MACPHERSON, C. B. The political theory of possessive individualism. NY. Oxford Press. 1962. MARSHALL, T. A. Cidadania, Classe Social e Status. RJ: Zahar. 1969. MARTINS, José de Souza. Procura­se um povo brasileiro, um decantado desconhecido. O Estado de S. Paulo. 01.10.2006. MARTINS, J. de Souza. A Sociabilidade do homem simples. SP: Hucitec. 2000. MATTOS, Patrícia. A mulher moderna numa sociedade desigual. In: SOUZA, Jessé (Org.). A invisibilidade da desigualdade social brasileira. BH: UFMG. 2006. 58­75. MAXWELL, Kenneth. Mais Malandros. SP. Edusp. 2002. MELLÃO NETTO, João. Brincando com fogo. O Estado de SP. 13.09.2006. MELLO E SOUZA, Antonio Candido. Dialética da malandragem (Caracterização das Memórias de um sargento de milícias), em revista do Instituto de Estudos Brasileiros número 8, USP. 1970. MERTON, Robert K. Merton. Elément de theorie et de méthode sociologique. Paris: Plon. 1965. MONTEIRO, Pedro Meira. A Queda do Aventureiro – Aventura, cordialidade e os novos tempos em Raízes do Brasil. Campinas: Unicamp. Campinas. 1999.

198 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. The spirit of laws. Los Angeles: UCLA Press. 1978. MOORE, Wilbert E. História da análise sociológica. RJ: Zahar. 1980. MOTTA, Nelson. Uma derrota triunfal. O Estado de SP. 31.10.2008. NOGUEIRA, Marco Aurélio. As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco, a monarquia e a república. SP: Paz e Terra. 2003. PINSKY, Jaime. História da cidadania. SP: Contexto. 2003. PINTO, Álvaro Vieira. Ideologia e desenvolvimento nacional. RJ. ISEB. 1959. PIVA, L. G. Ladrilhadores e semeadores – A modernização brasileira no pensamento político de O. Vianna, Sergio B. de Holanda, A. Amaral e N. Duarte (1920­1940). SP: Ed. 34. 2000. REALLI JUNIOR, Miguel. Tolerância nota 10. O Estado de SP. 02.06.2007. REGA, Lourenço Stelio. Dando um jeito no jeitinho. SP: Mundo Cristão. 2000. RIBEIRO, Renato Janine. Res Publica, In: Retorno ao republicanismo. (Org). CARDOSO, Sérgio BH. Ed. UFMG. 2004. 76­89. RIDDLEY, Matt. As origens da virtude – um estudo biológico da solidariedade. RJ: Record. 2000. SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça. RJ: Campus. 1979. SCHOULTZ, Lars. Estados Unidos, poder e submissão – uma história da política norte­americana em relação á América Latina. SP: Edusc. 1998. SCHWARCZ, Lilia. As barbas do Imperador: D. Pedro II um monarca tropical. SP: Companhia das Letras. 1998. ______. Assim é, se lhe parece. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=1822. 06.08.2008 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. SP. Duas Cidades. 1977. SKIDELSKY, Robert. The mistery of growth. Disponível em: www.nybooks.com/articles/article­ preview_id=16122. Acesso em 26.08.2006. SOARES, Simone Simões Ferreira. O jogo do bicho: a saga de um fato social brasileiro. RJ: Bertrand Brasil. 1993. SOARES, Maria Susana Arrosa. (Re)Pensando a modernidade latino­americana. In: SOARES, Maria Susana Arrosa (Org.). Modernidade. Cadernos de Sociologia. V. 5. nº5. UFRGS. 1993. 04­12. SOUZA, Jessé. (Max Weber) A gênese do capitalismo moderno. SP: Ática. 2006. _____.Democracia e personalismo para Roberto DaMatta: descobrindo nossos mistérios ou sistematizando nossos auto­enganos? In: SOUZA, Jessé (Org.) Democracia hoje: novos desafios para a teria democrática contemporânea. Brasília: UnB. 2001. 165­211. _____. Jessé. A visibilidade da raça e a invisibilidade da classe – contra as evidências do conhecimento imediato. In: SOUZA, Jessé (Org.). A invisibilidade da desigualdade social brasileira. Org. Jessé Souza: Editora UFMG. 2006. 23­57.

199 _____. É preciso uma teoria para compreender o Brasil contemporâneo? Uma crítica a Luis Eduardo Soares. In: A invisibilidade da desigualdade social brasileira. Org. Jessé Souza: Editora UFMG. 2006. 21­54. _____. A visibilidade da raça e a invisibilidade da classe – contra as evidências do conhecimento imediato. In: A invisibilidade da desigualdade social brasileira. Org. Jessé Souza: Editora UFMG. 2006. _____. A gramática social da desigualdade brasileira. In: A invisibilidade da desigualdade social brasileira. Org. Jessé Souza: Editora UFMG. 2006. 27­58. _____. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. In: SOUZA, Jessé (Org.). O malandro e o protestante. 17­54. Brasília:UnB. 2000. _____. A construção social da subcidadania – para uma sociologia política da modernidade periférica. BH: UFMG. 2006. SCHWARTZMAN, Simon. São Paulo e o Estado nacional. SP: Difel. 1975. TAYLOR, Charles. Sources of the self. Cambridge: Harvard University Press. 2000. TAYLOR, Frederick Winslow. Princípios de administração científica. SP: Atlas. 1979. TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. SP: Itatiaia. 1986 TORRES, João Camilo de Oliveir. Interpretação da Realidade Brasileira. R. José Olympio. 1973. TOURAINE, Alain. Uma visão crítica da modernidade. In: SOARES, Maria Susana Arrosa (Org.). A Modernidade. Cadernos de Sociologia. V. 5. nº5. p. 32­41. UFRGS. 1993. TURINO, Célio. O herói sem nenhum trabalho. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=450. 01.02.2007. TERUKI, Edu Otsuka. Era no tempo do rei: a dimensão sombria da malandragem e a atualidade das “Memórias de um sargento de milícias”. Tese de doutorado em Letras. USP/FFLCH. 2005. VIANNA, Luiz Werneck Vianna, País vive Estado Novo do PT. O Estado de SP. 05.08.2007. VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. RJ. José Olympio. 1994. VIDAL, Marciano. Dicionário de ética teológica. Verbo Divino. 1991. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. SP: Companhia da Letras. 1978. WELCH, Cliff .The seed was planted. The São Paulo roots of Brazil´s rural labor movement, 1924­ 1964. Pennsylvania. Pennsylvania State University Press. 1999.

200